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A Fé Revolucionária - James H. Billington
A Fé Revolucionária - James H. Billington
A Fé Revolucionária - James H. Billington
BILLINGTON
A FÉ REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA
JAMES H. BILLINGTON nasceu na
Pensilvânia em 1929, formou-se
pela Universidade de Princeton e
obteve seu doutorado pela Uni
versidade de Oxford. Foi profes
sor de história nas universidades
de Harvard e Princeton, e recebeu
numerosas honrarias internacio
nais, incluindo mais de 40 dou
torados honorários do mundo
inteiro. Nomeado pelo Presidente
Ronald Reagan, com aprovação
unânime do Senado, foi o 13° bi
bliotecário do Congresso, perma
necendo no cargo por 28 anos.
Levou o tesouro do conhecimento
da nação à era digital, colocando
milhões de livros, filmes e artefa
tos culturais nos acervos histó
ricos. Faleceu no dia 20 de no
vembro de 2018, em Washington,
com 89 anos.
, JAMES H. BILLINGTON
A FE REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA
VIDE EDITORIAL
, JAMES H. BILLINGTON
A FE REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Tradução de Ronald Robson
A fé revolucionária: sua origem e história
James H. Billington
Ia edição — março de 2020 — CED ET
Título original: Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith
Copyright © 1980 by James H. Billington
Editor:
Thomaz Perroni
Assistente editorial:
Verônica van Wijk Rezende
Tradução:
Ronald Robson
Revisão:
Jonathas de Castro
Preparação de texto:
João Mallet
Dtagramação:
Virgínia Morais
Capa:
Vicente Pessoa
Conselho editorial:
Addice Godoy
César Kyn d’Àvila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÀFICA
Billington, James H.
A fé revolucionária: sua origem e história /
James H. Billington; tradução de Ronald Robson — Campinas, SP: Vide Editorial, 2020.
ISBN: 978-85-9507-110-0
Título original: Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith
1. Revoluções
I. Título II. Autor
CDD — 303.64
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Revoluções — 303.64
ABREVIAÇÕES.................................................................................................. 9
NOTA EXPLICATIVA......................................................................................... 11
AGRADECIMENTOS......................................................................................... 13
INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15
LIVRO I
Fundamentos da fé revolucionária:
fim do século xvni e início do xix
CAPÍTULO 1 : Encarnação............................................................................... 37
A idéia de revolução...................................................................................... 37
O fato da revolução...................................................................................... 44
CAPÍTULO 2: Uma instância de legitimidade............................................ 49
Os cafés do Palais-Royal............................................................................... 51
Nicholas Bonneville e o jornalismo profético............................................. 62
Os campos de celebração.............................................................................. 81
LIVROU
O predomínio dos revolucionários nacionais:
meados do século xix
LIVRO ni
A ascensão dos revolucionários sociais:
fim do século xix e início do século xx
CAPÍTULO 13: A máquina: a social-democracia alemã......................... 607
Origens lassalleanas.................................................................................... 613
Ortodoxia kautskiana................................................................................. 622
A luta contra o revisionismo...................................................................... 627
CAPÍTULO 14: A bomba: a violência russa............................................... 635
Os slogans da década de 1860................................................................... 639
As bandeiras dos anos 1870........................................................................ 660
O legado permanente.................................................................................. 672
CAPÍTULO 15: O sindicalismo revolucionário........................................ 689
A “Greve Geral”.......................................................................................... 692
A mutação fascista....................................................................................... 704
A fronteira ocidental.................................................................................... 712
omo muitos dos livros impressos utilizados nas referências são ex
não menos um dever que um prazer registrar meu débito para com
que perpassa toda a era dessa narrativa. Reflete apenas a necessidade espe
cial de concentrar-se aqui mais na sede espiritual dos que pensam do que
na fome material dos que trabalham. Pois foram intelectuais apaixonados
que criaram e desenvolveram a fé revolucionária. Esta obra buscar explorar
concretamente a tradição dos revolucionários, não explicar abstratamente
o processo da revolução. Minha abordagem foi antes intuitiva que deduti
va, antes perscrutadora que definitiva: uma tentativa mais de abrir que de
“encerrar” o assunto.
Minhas conclusões gerais podem ser enunciadas de maneira simples logo
no início — e, por assim dizer, de maneira mais abrupta do que aparecem
no texto que se segue.
A fé revolucionária foi moldada não tanto pelo racionalismo crítico
do Iluminismo francês (como em geral se pensa) quanto pelo ocultismo e
proto-romantismo da Alemanha. Essa fé foi incubada na França durante
o período revolucionário junto a uma pequena subcultura de literatos que
estavam imersos no jornalismo, em sociedades secretas e que logo depois se
deslumbraram com “ideologias” enquanto sucedâneos seculares da crença
religiosa.
Os revolucionários profissionais que primeiro apareceram durante a
Revolução Francesa estavam em busca principalmente de uma simplicidade
radical. Seus mais profundos conflitos giravam em torno das palavras sim
ples do seu principal slogan: liberdade, igualdade e fraternidade. Liberdade
fora o grito de guerra de revoluções anteriores (na Holanda do século xvi,
na Inglaterra do século xvn, nos Estados Unidos do século xvm) que pro
duziram estruturas políticas complexas para limitar a tirania (separação de
poderes, constituição de direitos, legitimação da federação). A princípio, a
Revolução Francesa também invocou idéias similares, mas os novos e mais
coletivistas ideais de fraternidade e igualdade emergiram para rivalizar com
o conceito mais antigo de liberdade. As palavras nacionalismo e comunismo
foram inventadas na década de 1790 para definir os ideais mais simples,
mais sublimes, aparentemente menos egoístas da fraternidade e da igualdade,
respectivamente. A luta básica que depois emergiria em meio aos revolucio
nários mais empenhados foi entre os advogados da revolução nacional em
nome de um novo tipo de fraternidade e os advogados da revolução social
em nome de um novo tipo de igualdade.
O exemplo nacional francês e o ideal republicano dominaram a imagina
ção revolucionária ao longo da primeira metade do século xix. Intelectuais
INTRODUÇÃO 17
O sol nascente trouxe calor bem como luz, pois o fogo era geralmente
aceso não ao meio-dia com sol a pino sobre alguma tàbula rasa por algum
rei-filósofo, e sim por algum convidado desconhecido que chega à meia-noite
em meio aos excessos do banquete de Don Giovanni. “Comunismo”, o ró
tulo que Lênin finalmente adotou, foi inventado não pelo grande Rousseau,
mas por um Rousseau du ruisseau (um Rousseau degradado): o transeunte
noturno, entregue a fetichismos na Paris pré-revolucionária, Restii de la
Bretonne. Então o rótulo revolucionário que hoje controla o destino de mais
de um bilhão de pessoas no mundo contemporâneo adveio da imaginação
erótica de um escritor excêntrico. Assim como outras palavras-chave da
tradição revolucionária, primeiro apareceu como rude ideograma de uma
língua ainda em elaboração: um sinal de trânsito apontando para o futuro.
Este estudo se empenha em identificar alguns desses sinais ao longo do
caminho que vai de Restii até Lênin. Segue faíscas através de fronteiras
nacionais, transportadas por pequenos grupos e indivíduos idiossincráticos
française”, La Nouvelle Revue Française, 1968, agosto, pp. 56-57.
4 “Dir Strahlen der Sonne vertraiben die Nacht, Zernichten der Heuchler erschlichene Macht”. Estas
últimas palavras de Die zauberflöte [Ä flauta mágica] são pronunciadas diante do Templo do Sol,
que — ao fim da era revolucionária — era representado por um sol circular dentro de um triângulo
gigantesco (v. J. Baltrusaitis, La Quête d'Isis. Introduction à l’Egyptomanie. 1967, p. 57), desse modo
ligando o mito solar a símbolos geométricos ocultistas que depois seriam de importância central
para os articuladores revolucionários profissionais.
INTRODUÇÃO 21
5 Restii de la Bretonne, L’anée 2000, publicado como suplemento a Le thesmographe, ou idées d'un
honnête-homme sur un projet de règlement, proposé à toutes les nations de l'Europe, pour opérer
une reforme générale des loix: avec des notes historiques. Havre, 1789, pp. 515—556. O único estudo
recente importante sobre as idéias revolucionárias de Restii data a finalização dessa obra em 1788.
Foi republicada em 1790. V. A. Ioannisian, Kommunisticheskie idei v gody velikoi frantsuzskoi
revoliutsii. 1966, pp. 187, 211.
Uma segunda íantasia sobre o mesmo assunto íoi publicada por um comunista alemão para uso na
França no início dos anos 1840, Paris en Pan 2000, a qual descreve um historiador a dar aula naquele
ano na Catedral de Notre Dame para uma platéia incrédula sobre os horrores das eras passadas
de guerra e luta de classes. V. A. Saitta, Sinistra hegeliana e problema italiano negli scritti de A. L.
Mazzini. 1968, pp. 394, 402. Uma terceira íantasia utopica é a obra, que teve bem mais leitores,
de Edward Bellamy, Looking backward, 2000-1887, de 1888, acerca da qual se pode consultar S.
Bowman, The year 2000, Nova York, 1958. Veja-se também o ingresso soviético nesse campo: V.
Kosolapov, Mankind in the year 2000, Brooklyn Hights, Nova York, 1976; bem corno H. Kahn e
A. Wiener, Year two thousand, Nova York, 1967. M. Abensour se teiere a Paris en Pan 2000 (com
base em urn veterano da Comuna de Paris que íoi executado, o Dr. Tony Moilin, obra indisponível
na maior parte das bibliotecas) em “L’Histoire de l’utopie et le destin de sa critique”, Textures, 1973,
n. 6-7, p. 24, nota 2.
22 A FÊ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
10 History will absolve me, L, 1968, pp. 43—45, 77—78, 101—104. Fidel Castro se valeu do Inferno de
Dante para referenciar seu extenso relato das atrocidades de Batista (pp. 62-63).
11 V. R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, Princeton, 1959-1964,2 v.; J. Godechot, France
and the Atlantic Revolution of the Eighteenth Century, 1770-1799, Nova York, 1965; e também
deste ultimo a exposição mais completa e a bibliografia transnacional: Les Révolutions (1770-1799),
2a ed., 1965.
12 E. Hobsbawn, Social Bandits and Primitive Rebels. Nova York, 1959.
13 N. Cohn, The Pursuit of the Millennium, L, 1957, para o periodo medieval; e, para o mais importante
exemplo da Reforma, E. Bloch, Thomas Münzer als Theologe der Revolution, Munique, 1921;
disponível também em francês. G. Lewy, Religion and Revolution, Oxford, 1974, tem bibliografia
valiosa e estabelece a relação entre religião e revolução numa ampla gama de épocas e lugares.
Mas suas sugestões de similaridade e continuidade entre os primeiros movimentos religiosos e as
revoluções seculares modernas não são sustentadas por nenhuma análise séria destas últimas.
14 M. de Certeau, “La Revolution fondatrice, ou le risque d’exister”, Études, 1968, jun.-jul., p. 88.
INTRODUÇÃO 25
18 Como quase toda generalização sobre revoluções, esta está sujeita a debate — uma vez que a revolta
holandesa contra a Espanha no século xvi criou uma nova república, e uma vez que a revolução
constitucional mexicana de 1917 proclamou objetivos tanto sociais como políticos. Mas nenhum
desses eventos teve o impacto ecumênico das mudanças nos Estados Unidos e na União Soviética.
19 “Vem por aí uma revolução. Não será como as revoluções do passado [...] a revolução de uma nova
geração”. C. Reich, The Greening of America. Nova York, 1970, p. 4.
20 J. Rével, Nz Marx ni Jésus; de la seconde révolution américaine à la seconde révolution mondiale,
1970, traduzido como Without Marx or Jesus. Nova York, 1971.
21 J. D. Rockefeller, The Second American Revolution, Nova York, 1973; e, a ser tornado à parte, J.
Beré, “The Second American Revolution”, Vital Speeches, 1978,15 de janeiro de 1978, pp. 208-211.
INTRODUÇÃO 27
28 Mezhdunarodnoe rabochee dvizhenie, 1976-1978, 3v. O grupo editorial de 21 pessoas está sob
a direção do ideólogo veterano do Comitê Central, Boris Ponomarev: o primeiro volume trata
do “nascimento do proletariado e de sua formação como classe revolucionária”; o segundo, de
1871-1904; o terceiro, de 1905-1917.
29 Main Currents of Marxism. Its Rise, Growth and Dissolution, Oxford, 1978,3v. O primeiro volume,
The founders, trata das origens filosóficas do marxismo; o segundo (e na minha opinião, o melhor),
The Golden Age, trata do desenvolvimento diversificado do pensamento marxista no período da
Segunda Internacional (1889-1914); e o terceiro, The breakdown, trata do período stalinista e
posterior. Uma história de vários volumes do marxismo projetada pelo Partido Comunista Italiano
pode vir a se mostrar mais interessante que a maior parte das publicações oficiais, coletivas, já que
está programado que se incluam contribuições de não-comunistas e de dissidentes comunistas.
30 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
30 Para uma introdução crítica à imensa literatura sobre a natureza da revolução, v. I. Kramnick,
“Reflections on Revolution: Definition and Explanation in Recent Scholarship”, History and Theory,
1972, n° 1, pp. 26-63; vejam-se também as discussões de dois historiadores da revolução puritana:
L. Stone, “Theories of Revolution”, World Politics, 1966, jan., pp. 159-176; e P. Zagorin, “Theories
of Revolution in Contemporary Historiography”, Political Science Quarterly, 1973, mar., pp. 23-52;
bem como E. Hermassi, “Toward a Comparative Study of Revolutions”, Comparative studies in
society and history, 1976, abr., pp. 211-235; e M. Hagopian, The phenomenon of Revolution, Nova
York, 1975.
Cf. ainda P. Calvert, “The Study of Revolution: A Progress Report”, International Journal, 1973,
verão; S. Wolin, “The Politics of the Study of Revolution”, Comparative Politics, 1973, abr., pp.
343-358; e a discussão ignorada de teorias revolucionárias propostas pelos próprios revolucionários:
R. Larrson, Theories of Revolution. From Marx to the first russian Revolution, Kristianstad, 1970.
Para um exame da “natureza mutável do ‘ideal revolucionário’” durante os últimos 200 anos, cf. R.
Blackey e C. Paynton, Revolution and the Revolutionary Ideal, Cambridge, Massachusetts, 1976; e
também a antologia feita por eles, Why Revolution?, Cambridge, Massachusetts, 1971; e, de Blackey,
Modem revolutions and revolutionists. A bibliography, Santa Barbara, Oxford, 1976. Os métodos do
marxismo e da sociologia política moderna são combinados em uma análise histórica comparativa
de três revoluções modernas por T. Skocpol, States and social revolutions. A comparative analysis of
France, Russia, and China, Cambridge, 1979, com útil bibliografia às pp. 295-303, notas 7, 18, 20,
97, e pp. 380-390. Outras sínteses sociológicas não incluídas em Skocpol são: A. Decouflé, Sociologie
des révolutions, 1968; e W. Overholt, “An Organizational Conflict Theory of Revolution”, American
behavioral scientist, 1977, mar.-abr., pp. 493-552. A substanciosa literatura alemã é negligenciada
por Skocpol e quase todos os outros estudos mencionados aqui. Para um exemplo inteligente com
amplas referências, v. H. Wassmund, Revolutionstheorien, Munique, 1978. Para uma perspectiva
extra-européia, cf. K. Kumar, Revolution — the theory and practice of an european idea, L, 1971.
Uma discussão soviética recente (M. Barg, “Sravnitel’no-istoricheskoe izuchenie burzhuaznykh
revoliutsii xvi-xviii vv”, Voprosy Istorii, 1975, n° 9, pp. 69-88) propõe uma comparação passo a
passo das três maiores “revoluções burguesas” (as guerras dos componeses alemães do século xvi,
a Revolução Puritana no século xvn e a Revolução Francesa no século xvm) como um antídoto ao
mencionado caos da historiografia ocidental. Tanto a simplicidade polêmica desse estudo quanto
sua hostilidade doutrinai à abordagem sincronica estão em franco contraste com o melhor estudo
individual do processo revolucionário na Europa do início da modernidade: B. Porshnev, Frantsiia,
Angliiskaia Revoliutsiia i evropeiskaia politika v scredine xvii veka, 1970, que trata de toda a Europa
de 1630 a 1655. Outras importantes discussões do processo revolucionário durante o período anterior
à Revolução Francesa e o desenvolvimento da tradição revolucionária tal como descrito neste livro
são J. Elliott, “Revolution and Continuity in Early Modern Europe”, Past and present, 1969, fev.,
pp. 35-56; e P. Zagorin, “Prolegomena to the Comparative History of Revolution in Early Modern
Europe”, Comparative studies in society and history, 1976, abr., pp. 151-174.
Um amplo esforço soviético de reconciliar as pretensões marxistas de desenvolver uma teoria científica
da revolução com as exigências soviéticas de defesa das políticas em desenvolvimento de um estado
supostamente governado por essa ciência é realizado por M. Seleznev, SotsiaTnaia revoliutsiia, 1971,
útil sobretudo por seus relatos de discussões soviéticas internas dos anos 1960.
31 Um importante e subestimado “modelo sociológico do processo revolucionário” veio do breve período
tcheco de reforma e inclui gráficos comparativos das revoluções inglesa, francesa e tcheca (a última
circunscrita a 1414-1450). V. J. Krejèí, “Sociologickÿ model revoluõního procesu”, Sociologicky
casopis, 1968, n° 2, pp. 159-173. Uma tentativa recente de introduzir novas distinções nas categorias
marxistas tradicionais é J. Topolski, “Rewolucje w dziejach nowozytnych i najnowszych (xvn-xx
wiek)”, Kivartalnik historyczny, lxxxiii, 1976, pp. 251-67. Ele distingue (pp. 264-266) seis tipos
de revolução: pré-capitalista, proto-burguesa, burguesa, burguês-democrática, protoproletària e
socialista.
INTRODUÇÃO 31
marxista, pode ela mesma ser uma espécie de técnica datada — às vezes mais
apropriada à época do historiador que à época histórica.
Além das reconhecidas dificuldades da psicanálise retroativa, é fato que
a maior parte dos primeiros revolucionários pareciam surpreendentemente
desprovidos de características pessoais extraordinárias. Um dos melhores
estudos sobre a faceta emocional dos revolucionários franceses observa que
“os futuros revolucionários eram quase todos eles dóceis pupilos de jesuí
tas e oratorianos”.34 Como a maior parte das crianças francesas da época,
eram apegados às suas mães, ao seu torrão natal e à literatura apolitica de
sentimentalidade amena.
Os revolucionários da posterior época romântica só raramente eram
tão idiossincráticos e anti-sociais quanto os artistas e poetas, e eram menos
dedicados à violência do que em geral se pensa. As escolas de pensamento
que tiveram importância mais decisiva no desenvolvimento da tradição re
volucionária viam-se a si mesmas como propiciadoras da racionalidade que
poria um fim à violência. Os iluministas politizados prometiam renovação
moral interior; os saint-simonianos revolucionários, uma ordem orgânica para
acabar com a perturbação revolucionária; os jovens hegelianos, a pacífica
conclusão das reformas prussianas.
O fato mais fascinante é que a maioria dos revolucionários buscava os
objetivos simples, quase banais, do homem secular moderno comum. O que
tinham de único eram sua energia e comprometimento em alcançá-los. Essa
fé e dedicação transformaram os revolucionários em desbravadores maiores
revolucionários de tipo mais tradicional. J. Seigel aperfeiçoa pesquisas anteriores (como a de A.
Künzli, Karl Marx. Eine psychographie, Viena, 1966) ao estender esse método a Marx: “Marx’s
Early Development: Vocation, Rebellion and Realism”, Journal of Interdisciplinary History, 1973,
Inverno, pp. 475-508; e, no contexto de sua carreira como um todo, Marx's fate. The shape of a
life, Princeton, 1978.
W. Blanchard, Rousseau and the Spirit of Revolt: A Psychological Study, Ann Harbour, 1967, é obra
de um psicólogo profissional que fala do “masoquismo moral” de Rousseau. B. Mazlish, um dos
melhores historiadores psicológicos, discute a secularização do ideal ascético da Revolução Francesa,
mas concentra sua atenção principalmente em Lênin e Mao em The revolutionary ascetic: evolution
of a political type, Nova York, 1975. Análise sociológica e análise psicológica são combinadas com
particular eficiência e aplicadas aos casos de Rousseau e Robespierre em F. Weinstein e G. Platt, The
wish to be free: society, psyche and value change, Berkeley / Los Angeles, 1969.
Ocupa lugar à parte o retrato dos revolucionários russos pioneiros como uma combinação de
ascetismo e teatralidade feito por Yu. Lotman, “Dekabrist v povsednevnoi zhizni (Bytovoe povedenie
kak istoriko-psikhologicheskaia kategoriia)”, in Literaturnoe nasledie dekabristov, Leningrado,
1975, pp. 25-74. Apesar de alguma opacidade terminológica, este artigo deixa entrever de maneira
promissora a perspicácia analítica que a notável escola soviética de semiótica poderia sem dúvida
trazer para assuntos contemporâneos, caso não estivesse restrita a escrever sobre tempos e lugares
distantes.
34 M. Trahard, La sensibilité révolutionnaire (1789-1794), 1936, p. 28, e também pp. 35-37.
INTRODUÇÃO 33
35 P. Berger, “The Socialist Myth”, The Public Interest, 1976, Verão, p. 15.
36 D. Bell, The end of ideology; or the Exhaustion of political ideas in the fifties, Glencoe, 1960; Z.
Brzezinski, Between two ages: America's role in the technetronic era, Nova York, 1970; and Bell,
The coming of the post-industrial society: a venture in social forecasting, Nova York, 1974.
37 Essa linha de pensamento tem origem, embora não seja por ele sugerida, em N. Georgescu-Roegen,
The entropy law and the economic process, Cambridge, Massachusetts, 1971.
38 V. o chamado a uma “segunda Reforma Protestante” pelos ex-patrocinadores da Comissão Bicentenal
do Povo de 1976, J. Rifkin e T. Howard, The emerging order: God in the Age of Scarcity, Nova
York, 1979.
Esses advogados da revolução social de outrora sugeriram que o cristianismo evangélico podería ser a
ponta de lança de uma revolução vindoura, isso no mesmo ano de 1979 que viu o Islã fundamentalista
dominar uma inesperada revolução no Irã e um papa relativamente tradicionalista reunir em vários
países massas populares muito maiores que aquelas comandadas por quaisquer líderes políticos.
34 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A idéia de revolução
1 V. a exaustiva e inédita tese de doutorado de E Seidler, “Die Geschichte des Wortes Revolution. Ein
Beitrag zur Revolutionsforschung”, Munique, 1955, pp. 20-23 (LC).
38 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
revolução urbana espanhola de 1521 contra os Habsburgos como “uma das primeiras explosões”
de revolução tanto nacionalista quanto social (p. 65).
7 D. Kelley caracteriza desse modo o notável herói de seu François Hotman, A revolutionary ordeal.,
Princeton, 1973.
8 H. Koenigsberger, em New Cambridge Modem History, Cambridge, 1971, v. 3, p. 302; e também
seu “Early Modem Revolutions”, Journal of Modem History, 1974, mar., pp. 99-110.
9 J. Salmon, “The Paris Sixteen, 1584-1594; The Social Analysis of a Revolutionary Movement”, The
Journal of Modern History, 1972, dez., p. 540.
10 P. Hazard, La crise de la conscience européenne, 1680-1715, 1967, é a obra clássica sobre essas
mudanças revolucionárias.
11 P. Gay, The enlightenment: an interpretation. The rise of modem paganism, NY, 1966, esp. o L. I,
“The Appeal to Antiquity”.
12 Ottavio Sammarco, A treatise concerning revolutions in kingdoms, L, 1731, esp. pp. 51-52. A edição
italiana original foi publicada em Turim em 1629. Para compreensão do cenário no qual ocorreu a
revolta de Masaniello, ver R. Villari, La rivolta antispagnola a Napoli: le origini (1585-1647), Bari, 1967.
13 Le rivoluzioni di Napoli. Descritte dal signor Alessandro Giraffi, Veneza, 1647, com muitas edições
subseqüentes.
40 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Ele então sugere que a esperança do céu na terra deve substituir a espe
rança do céu lá no alto:
14 A revolta de Masaniello também inspiraria revolucionários do século xix por meio de influentes
recriações literárias e operísticas. Ver M. Lasky, “The Novelty of Revolution”, Encounter, 1971,
nov., pp. 37-39, esp. nota 24.
15 James Howell, Pathernopoeia, or The history of the most noble and renowned kingdom of Naples,
1654, discutido em Lasky, “The Birth of a Metaphor: On the Origins of Utopia and Revolution”,
Encounter, 1970, mar., p. 32. Para maiores detalhes, ver Lasky, Utopia and Revolution, Chicago,
1976; para urn magistral levantamento de 2.500 anos de pensamento utópico feito com a preocupação
de que “o espírito criativo utópico” possa ser “suplantado pelo rugir de sociedades existentes que
se autoproclamaram ideais”, ou de que possa ser barrado pela “algaravia de efeitos especiais” da
televisão e pela prática da “pseudociência da predição”, ver F. Manuel, Utopian Thought in the
Western World, Cambridge, Massachusetts, 1979, e a resenha feita por R. Nisbet, The New Republic,
10 de novembro de 1979, pp. 30-34.
16 De acordo com Lasky, “Birth”, Encounter, 1970, fev., p. 35. A discussão de Lasky complementa os
materiais citados aqui com copiosos exemplos ingleses e debates espanhóis do fim do século xvi
sobre as possibilidades da revolução na Inglaterra.
17 Ibid., p. 36.
18 Um conjunto de publicações parisienses, de Révolutions d’Anglaterre (1670) a Histoire de la
révolution dTrlande (1692), além de sete panfletos ingleses com “revolução” em seu título datados
de 1689 a 1693, estão disponíveis em BO. K. Griewank {Der neuzeitliche Revolutionsbegriff.
Entstehung und Entwincklung, Weimar, 1955, pp. 182-189) identifica Histoires des révolutions sobre
praticamente qualquer país do passado ou do presente publicadas ao firn do século xvii e início do
LIVRO I, CAPÍTULO 1 : ENCARNAÇÃO 41
XVIII; e havia muitos outros títulos, como o de R. Vertot, Histoire des révolutions arrivées dans le
gouvernement de la République romaine, 1719, 3v., que foi traduzido para o polonês (J. Sapieha,
Varsóvia, 1736) e recebeu muitas outras edições.
A palavra apareceu como título de uma peça (Catharine Cockburn, The revolution in Sweden, L,
1706), corno pseudònimo de um panfletário (William Revolution, The real crisis or, the necessity
of giving immediate and powerful succour to the Emperor against France and her present allies,
L, 1735) e como um adjetivo para descrever um novo tipo de política: Revolution politicks: being
a compleat collection of all the reports, lyes and stories wich were the fore-runners of the great
revolution in 1688, L, 1733. (V. a esse respeito H. Horwitz, Revolution politicks: The career of
Daniel Finch, Second Earl of Nottingham, 1674-1730, Cambridge, 1968).
A colonização inglesa foi mencionada como “nossa última e fortunada Revolução” e como “gloriosa”:
The Revolution and Anti-Revolution Principles Stated and Compar'd, the Constitution Explained
and Vindicated, and the Justice and Necessity of Excluding the Pretender maintain'd, etc., L, 1724,
2a ed., p. 5 (LC).
Um extenso atlas mundial de 1763, que retratava todas as mudanças políticas da humanidade de
Noè até Luís xv (com exceção das “révolutions intérieures” [revoluções interiores]), recebeu por
título Les révolutions de l'univers, 1763 (CA).
O jesuíta Pierre-Joseph Dorléans foi o primeiro a tratar da história das revoluções como único objeto
de sua Histoire des révolutions d'Anglaterre depuis le commencement de la monarchie, 1693, 3 v.,
que descreveu 1688 como “la révolution qui met encore l’Europe en feu” [a revolução que ainda
arrasta a Europa em chamas]. Ver K. H. Bender, Die Entstehung des politischen Revolutionsbegriffes
in Frankreich zwischen Mittalter und Aufklärung, Munique, 1977, p. 40 (nota 1), 132. Para urna
bibliografia e lista cronològica de histórias de revoluções nos séculos xvi e xviii, cf. pp. 184-201.
19 Frederico, o Grande, Oeuvres, v. 2, p. 325, citado em Seidler, p. 91, nota b.
20 Oeuvres, v. 2, p. 325, em Seidler, p. 236, nota a.
42 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRI A
O fato da revolução
No verão de 1789, a monarquia absoluta e a autoridade aristocrática foram
derrubadas para sempre no mais poderoso reino da cristandade. Foi isto a
Revolução Francesa em sua essência: o fato bruto que originou a crença
moderna de que a revolução secular é historicamente possível. Essa trans
formação política não planejada ocorreu no curso de um período de cinco
meses — entre 5 de maio, quando o Rei Luís xvi abriu em Versalhes a primeira
reunião dos Estados-Gerais em 175 anos, em 5 de outubro, quando o rei foi
trazido de volta para Paris como virtual prisioneiro das massas.
O acontecimento decisivo desses cinco meses foi ter o Terceiro Estado
(que representava todos os cidadãos, com exceção do clero e da nobreza, e
era dominado por bem-articulados advogados de classe média) se autopro-
clamado Assembléia Nacional. Membros dos outros dois estados se juntaram
ao Terceiro Estado; este resolveu, no “juramento do jogo da péla” de 20 de
junho, manter-se ativo “até que a constituição esteja estabelecida e consolidada
sobre firmes alicerces”. Após a violência em Paris que conduziu à tomada
da Bastilha de 14 de julho, um “grande medo” se espalhou pelo campo.
Incêndios destruíram muitos registros e símbolos do sistema senhorial. Ao
longo de agosto, a Assembléia aboliu a servidão e o privilégio aristocrático e
do vocabulário, mas prova apenas que os termos básicos da política parlamentar não-revolucionária
(a “maioria”, “constitucional”, “oposição” etc.) haviam sido tomados de empréstimo da Inglaterra
desde bem antes da revolução. O uso político polêmico desses termos data pelo menos da revolução
dos Países Baixos. Um panfleto de 1583 se iniciava com a afirmação de que “não existe povo algum
mais feliz que o suíço, porque Democratici — isto é, um honesto e bem constituído governo burguês
(borgerlijcke) — está estabelecido aqui”. Texto presente em Griffiths, “Democratic Ideas”, pp. 62-63.
O termo foi empregado ampla e variamente ao tempo da Revolução Americana (v. R. Shoemaker,
“Democracy and ‘Republic’ as Understood in Late Eighteenth Century America”, American
Speech, 1960, maio, p. 83). James Wilson, um dos autores da Constituição dos Estados Unidos,
via-a como promotora do “princípio democrático”. (Citado em ibid., p. 89). Mas a maioria das
pessoas identificava a democracia com o caos próprio a pequenos estados. Eles defendiam antes
o republicanismo, concordando com Madison, segundo o qual “as democracias sempre foram
espetáculos de turbulência e discórdia (...) e têm sido tão curtas em sua existência quanto violentas
em suas mortes”. The Federalist, n° 10; citações também em Shoemaker, p. 88.
32 Uma interpretação defendida tanto por contra-revolucionários como Joseph de Maistre e entusiastas
da revolução como Georg Foster. Ver K. Julku, “La conception de la révolution chez Georg Foster”,
Annales Historiques, 1968, abr.-jun., pp. 227-251. Julku pode exagerar ao sugerir (p. 251) que, em
comparação, o uso da palavra no século xviii parece quase “pastoral”. Já no século xvn se verifica
um entendimento dinâmico e político do termo “revolução”. Ver, além de Seidler e Griewank, J.
Goulemot, “Le mot Révolution politique (fin xvm siècle)”, Annales Historiques, 1967, out.-dez.,
pp. 417-444.
LIVRO I, CAPÍTULO 1: ENCARNAÇÃO 45
37 Cf. Brunot, v.9, pp. 769-771, para empregos anteriores, segundo a localização dos diferentes partidos
dentro da Assembléia Nacional.
38 J. Laponce observa que em todas as línguas de cultura, com exceção do chinês, a noção de esquerda
era associada com oposição secular aos hábitos religiosos e sociais tradicionais: “Spatial Archetypes
and Political Perceptions”, American Political Science Review., 17 de março de 1975; também R.
Hertz, “The Pre-Eminence of the Right Hand: A Study in Religious Polarity”, in R. Needham (ed.),
Right and Left: Essays on Dual Symbolic Classifications, Chicago, 1973. Usos anteriores da dualidade
esquerda-direita por pitagóricos e maniqueus são discutidos (junto à genealogia da esquerda moderna
estabelecida por E. Bloch em Avicenna und die Aristoteliche Linke) em V. Fritsch, Left and Right in
Science and Life, L, 1968, p. 139.
39 Brunot, v. 9, p. 769.
LIVRO I, CAPÍTULO 1 : ENCARNAÇÃO 47
em certo sentido se pode dizer que a revolução original de 1789 liderada por
Lafayette teve início no deleitoso palácio parisiense do pai de Luís Filipe,
Filipe de Orléans: o Palais-Royal. Lá, à sombra do Palácio das Tulherias,
Filipe decidira aceitar a revolução e ser rebatizado com o nome de Égalité
a permanecer fiel ao seu primo, o Rei Luís xvi. Foi Filipe que renomeou os
grandes jardins públicos do Palais-Royal — onde se reuniu a massa que in
vadiu a Bastilha — como “o jardim da igualdade”. E é nesse revolucionário
Jardim do Éden, nessa inesperada Belém, que a história propriamente dita
da fé revolucionária tem propriamente início.
CAPÍTULO 2
1 O livro magistral de W. Kula, Miary i ludzie, 1970, pp. 429-573, mostra que a reivindicação por
padrões de peso e de medida unificados era coisa generalizada (e inteiramente desconcertante
aos contemporâneos) até nos cahiers de doléance [“cadernos de queixas”, nos quais, através das
assembléias locais, a população podia registrar suas demandas] mesmo antes da revolução.
2 P. Chevalier, Histoire de la Franc-Maçonnerie française. I, La Maçonnerie: École de l’Égalité
1725-1799, 1974, pp. 360-364. A loja Le Point Parfait [O Ponto Perfeito] foi na verdade fundada
durante o período do Terror, tornando-se “a última a receber sua constituição da Grande-Oriente”,
p. 363.
3 Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, Lyon, 1884, v. 5, pp. 125-126.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 51
Os cafés do Palais-Royal
Lugar nenhum — significado literal de utopia — se tornou pela primeira
vez algum lugar em Palais-Royal. Nos cafés que rodeavam os jardins desse
grande cercamento real no centro de Paris, a “cidade celeste dos filósofos do
século XVIII ” encontrou suas raízes terrenas; altos ideais foram transportados
para conversas prosaicas; sofisticação de salão se tornou bravata burguesa;
reforma passou de revolta a revolução.
O Palais-Royal tinha origens políticas, na medida em que fora criação
do Cardeal Armand de Richelieu, o pai da raison d’état na França moderna.
O palácio foi transformado em um complexo fechado de galerias, salões de
exibição e centros de entretenimento no início da década de 1780 — e foi
aberto ao público pelo reformista Filipe de Orléans. Sua avareza rapidamente
transformou o espaço em um lucrativo centro de prazer onde “todos os desejos
podem ser satisfeitos tão logo concebidos”.4 Ao fim da primavera de 1787,
Filipe construiu Le Cirque — um amplo recinto fechado com cem metros de
comprimento localizado no meio do jardim — para que nele tivessem lugar
reuniões de grande público e eventos esportivos.
4 A. Ducoin, Études révolutionnaires. Philippe D’Orléans-Égalité, 1845, p. 22. Sobre o Palais-Royal
durante o período revolucionário, cf. S. Lacroix, Actes de la Commune de Paris pendant la révolution,
1896, v. 7, primeira série, apêndice iv, p. 596, para informações mais precisas; R. Heron de Villefosse,
UAnti-Versailies ou le Palais-Royal de Philippe Égalité, 1974, p. 201, para uma discussão estimulante,
embora não documentada.
52 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
inserido na elite real. Sua viagem a Londres um pouco depois, em 1789, foi
vista por alguns como parte da manobra de um anglofilo para levar a França
a se aproximar do modelo monárquico constitucional. Filipe escrevera a sua
própria Regra de Convivência para o Palais-Royal em fevereiro de 1789; entre
outras coisas, propunha uma tertúlia formal de vinte e cinco pensadores às
noites de quarta-feira.1
Seu patrocínio pessoal do Musée Française em seu apartamento e de
várias publicações, bem como de dramas ao ar livre nos jardins do Palais,
levou muitos conservadores a achar que o tumulto revolucionário foi em
certo sentido o resultado de uma conspiração orleanista.
Pouco depois da proclamação da República em 17 de setembro de 1792,
Filipe de Orléans se apresentou ao novo governo comunal de Paris com o
pedido de que fosse rebatizado com o nome Égalité e de que o jardim do Palais
fosse chamado “Jardim da Igualdade”.17 18 Ele reconheceu que sua experiência
de maçom lhe deu “uma espécie de imagem da igualdade”, mas se disse grato
por ter agora “deixado para trás um fantasma em prol da realidade”.19
O rebatizado chefe da Casa de Orléans foi então eleito membro da
Convenção — sob oposição de Robespierre. Dois meses depois, um decre
to da Convenção desafiou a sinceridade da conversão de Filipe, sugerindo
que ele “tratava da revolução como se de uma de suas piadas” e que havia
simplesmente agido tendo em vista o que fosse “mais conveniente aos seus
interesses”.20 Jean Paul Marat lançou ainda mais dúvida sobre a “dedicação
cívica” (civisme') de Filipe. Quando um líder revolucionário foi assassinado no
Palais-Royal em 20 de janeiro, as suspeitas em torno de Filipe se agravaram,
e a Convenção lançou uma espécie de unidade de assalto, os assim chama
dos defensores da república, sobre o reduto orleanista.21 Quando o filho de
Filipe, o futuro Rei Luís Filipe, desertou para o lado contra-revolucionário
junto com o General Charles François Dumouriez no início da primavera,
Filipe-Egalité foi preso — e afinal guilhotinado em 6 de novembro de 1793.
17 G. Du Boscq de Beaumont e M. Bernos, La Famille d'Orléans pendant la révolution d'après sa
correspondance inédite, 1913, 3a ed., pp. 214-216. O Règlement de vie pour le Palais-Royal, datado
de 20 de fevereiro de 1789, era o guia para “um novo gênero de vida”. Mais detalhes sobre a Casa
de Orléans durante a revolução talvez possam ser fornecidos por uma obra anunciada no Journal
of Modem History, dez., 1979, mas não acessível durante a realização deste estudo: G. Kelly, “The
Machine of the Duc d’Orléans and the New Politics”.
18 Moniteur, 17 de setembro de 1792; Ducoin, Études, p. 184.
19 Du Boscq de Beaumont, p. 272.
20 Ducoin, pp. 225, 192-193.
21 Ibid., pp. 245, 209; Rose, Babeuf, p. 131.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 57
O Palais-Royal era o centro de Paris não apenas com relação à alta po
lítica e aos altos ideais, mas também em relação ao prazer barato. Junto à
“efervescência política” alimentada por “agitadores cuja existência misteriosa
parece mais apropriada a um romance do que à realidade”, apareceram
publicações rumorosas que misturavam política e pornografia, a exemplo
de O bordel nacional sob patrocínio da Rainha, para uso dos confederados
provinciais.11 Mais uma vez, Filipe-Egalité mostrou o rumo a seguir. Sua
amante de longa data, Madame de Genlis (posteriormente Cidadã Brûlart),
era uma espécie de princesa entre as prostitutas do Palais, além de uma “edu
cadora dos príncipes”. O novo secretário pessoal que levou consigo para o
Palais em 1788, Choderlos de Laclos, era o autor de As ligações perigosas
e um pioneiro da pornografia explícita que se difundiu durante o período
revolucionário.2223 Amigo de Laclos, o Marquês de Sade abriu uma livraria
no Palais durante o tumulto para vender suas sombrias obras-primas; toda
forma de satisfação sexual que ele descrevia estava disponível nos cafés e
apartamentos do complexo do Palais. Os jardins eram o lugar de encontro
das prostitutas, e mulheres respeitáveis não o freqüentavam depois das onze
da manhã.24 Já antes da revolução, o Palais-Royal tinha degenerado numa
contra-moralidade toda sua. Uma desafiadora prostituta que se negara a se
entregar ao Conde d’Artois se tornou uma heroína popular, e um café, La
Vénus, foi assim chamado em sua homenagem.25 A esplanada de butiques e
galerias no centro do Palais, onde se costumava firmar contratos e assinaturas
(a assim chamada Gallerie de Bois [Galeria de Madeira] ou Camp des Tartares
[Acampamento dos Tártaros]), tinha como sua escultura central “la belle
Zulima”,26 uma estátua de cera de uma mulher nua com cor de pele realista.
Os cafés eram o coração e a alma do Palais-Royal. Cerca de duas dúzias
deles o rodeavam e acenavam aos errantes que vinham dos jardins em di
reção aos pontos de prazer sob as arcadas que eram — tanto literal quanto
figurativamente — o submundo de Paris. Assim como o Circo no meio dos
22 A. Tuetey, Repertoire general des sources manuscrits de l'histoire de Paris pendant la révolution
française, v. 2,1892, pp. in, xm-xiv, xviii; H. Cros, Claude Rauchet 1744-1793. Les Idées politiques,
économiques, et sociales, 1912, pp. 27-28.
23 Du Boscq de Beaumont, pp. 8-9; Ducoin, p. 87 ss.; Heron de Villefosse, p. 224 ss.
24 Ibid., p. 22, esp. nota 1.
25 Traz, p. 73.
26 Heron de Villefosse, p. 215. Para conhecer o traçado exato do Palais-Royal, bem como ter acesso a
um comentário sobre as modificações subseqüentes desse monumento parisiense notavelmente bem
preservado e surpreendentemente negligenciado, v. J. Hillairet, Connaissance du vieux Paris, 1956,
pp. 185-200.
58 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
jardins (do qual cinco oitavos estavam construídos abaixo do nível do solo),
os cafés iam às profundezas. Alguns dos nomes mais importantes — Café du
Caveau [Café da Caverna], Café des Aveugles [Café dos Cegos] e Café du
Sauvage [Café do Selvagem] — sugerem o ar fétido, a escuridão misteriosa e
o abandono permissivo que caracterizavam os abrigos subterrâneos. O Café
des Aveugles oferecia vinte “cavernas” separadas para as delícias sexuais e
narcóticas de seus clientes, que em geral desciam até lá após preliminares
alcoólicas mais brandas no Café Italien localizado logo acima.27 Para aqueles
que permaneciam ou retornavam ao Café Italien (também conhecido como
Corazza), as paixões se tornaram políticas e a política se tornou internacional
em virtude de sua grande clientela italiana.
O verbo politiquer [falar de política] talvez tenha tido origem na linguagem
dos cafés do Palais.28 Um tipo especial de política surgiu nesse ambiente. A
irreverência divertida e a especulação utópica eram preferidas à consideração
imediata de coisas práticas. Não se tratava da política daqueles responsáveis
por exercer o poder na Assembléia Nacional ou nas seccionais parisienses.
Era a política do desejo forjada em meio a drinks que provocavam uma de-
leitosa amnésia, caso do non-lo-sapraye (italiano truncado para “você não
ficará sabendo”), e depois de doces feitos sob medida para glutões (como os
sorvetes do Café Tortoni).29
Os cafés do Palais-Royal também estavam repletos de objetos votivos da
nascente nova fé nas ciências aplicadas. No Café Mécanique [Café Mecâni
co], “o ancestral de nossos bares automáticos”,30 as bebidas vinham através
de alçapões, os quais faziam parte de um complexo conjunto de alavancas e
outros dispositivos que ilustravam os princípios da física de Newton. A ilusão
se tornou realidade no Café des Milles Colonnes [Café das Mil Colunas],
onde espelhos faziam umas poucas colunas se tornarem milhares. O forno
que aquecia o Café Italien era moldado na forma do balão pioneiro no qual
voou Joseph Montgolfier, ele próprio um freqüentador do café.31
Esse complexo de cafés fez o Palais-Royal parecer, aos olhos do mais
acurado observador de Paris à beira da revolução, “a capital de Paris, uma
suntuosa cidadezinha dentro de outra maior; o templo da voluptuosidade”.32
O santuário desse templo era o Café Foy, diante do qual Desmoulins fez
sua famosa conclamação às armas em 12 de julho de 1789. O Foy era o único
café com o privilégio de dispor mesas dentro do jardim e de controlar uma
passagem que levava dele até a Rue de Richelieu. Assim, tornou-se um “pór
tico da Revolução”,33 o ponto preciso no qual os seguidores de Desmoulins
passaram do discurso à ação nas ruas: “Durante esses meses de entusiasmo,
o Café Foy era para o Palais-Royal o que o Palais-Royal era para Paris: uma
pequena capital de agitação dentro do reino da agitação”.34
O Foy mereceu a palma do martírio quando foi fechado por um curto período
pelo rei um pouco mais tarde em 1789, e os cafés do Palais-Royal continuaram
a politizar a plebe de Paris de maneiras emocionalmente satisfatórias que nem
a Assembléia Nacional nem os governos seccionais eram capazes de reproduzir.
Como escreveu um observador relativamente neutro em 1791:
Quando uma posteridade mais reflexiva e esclarecida que a geração presente estudar
de maneira desapaixonada a Revolução Francesa, poderá acreditar que os cafés
tinham se tornado os supremos tribunais numa cidade situada no centro de um
estado livre. O Café de Foy e o Café du Caveau [...] são hoje duas repúblicas nas
quais a mais extremada intolerância assume o nome de patriotismo.35
Nessa época “os cafés cresceram e formaram clubes; suas mesas se tor
naram tribunais; seus freqüentadores, oradores; seu barulho, movimento”.36
À medida que as discussões entre os revolucionários ficavam mais inten
sas, cada facção tendeu a ter o seu próprio café dentro do Palais — a servir
tanto de posto avançado como de quartel. O Café du Caveau era o lugar de
encontro dos girondinos que prepararam as manifestações de 10 de agosto de
1792, as quais derrubaram a monarquia e estabeleceram a Primeira Repúbli
ca. O Café Italien era o ponto de reunião dos mais radicais, os jacobinos, os
quais depois vieram a ocupar a Assembléia Nacional e a instaurar a ditadura
revolucionária no início do verão de 1793.37
Mas os jacobinos operavam principalmente fora do Palais, tendo derivado
o nome de sua organização de alcance nacional do mosteiro jacobino no qual
38 Traz, p. 75; “La Lanterne Magique au Palais-Royal”, em Du Boscq, pp. 19-25, além da p. 216.
Hillairet, Connaissance, p. 190.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 61
39 Du Boscq, p. 68.
40 Grande Aventure arrivée hier au soir au ci-devant vicomte de Mirabeau, au Palais-Royal, sem lugar
nem data, mas de 1790, p. 21 (BH). Alguns elementos sobre a nova linguagem empregada no Palais
se encontram em Rogers, pp. 66-70.
41 Aventure, p. 19.
42 Ibid., p. 18.
V. o livro de André Monglond imerecidamente ignorado, Le Préromantisme français, Grenoble, 1930,
2v.,para um tratamento da “explosão de sensibilidade [...] sem fingimento [... | que não terminava em
lágrimas e abraços” (v. 2, pp. 406, 408) e a teoria geral de que a Revolução Francesa se desenvolveu
em parte de uma anterior révolution sentimentale (v. 1, p. 276, e “Les origines sentimentales de la
révolution”, v. 2, p. 79 ss.).
A intensidade do culto revolucionário da sensibilidade é ilustrada pelas denúncias do “vício da
insensibilité” e pela proliferação de neologismos criados para descrever aqueles que produzem
as distorções da sensiblerie, sensiblomanie ou sentimanie [diferentes designações para a “moda
sentimentalista”] (v. 2, pp. 444-446).
62 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
[...] nunca começava um número do Père Duchêne sem empregar um foutre [“fo-
der”] ou um bougre [“imbecil”, “filho da mãe”]. Essa vulgaridade grosseira não
queria dizer nada, mas apontava [...] para uma situação inteiramente revolucionária
[por meio da linguagem] [...] a fim de impor algo que ia além da linguagem e que
é tanto a história quanto o papel que cada um deve desempenhar nela.56
55 Fuck — NT.
56 R. Barthes, Degré zéro de Récriture, 1953, p. 7. Para um comentário sobre o emprego dessa tática
no maio de 68 pelos estudantes revolucionários em Paris, v. M. de Certeau, La prise de la parole,
1968.
57 A. Decouflé, “La révolution et son double”, Cahiers Internationaux de Sociologie, 1969, jan.-jun.,
pp. 33-34.
58 Em um discurso aos eleitores de Paris em 25 de junho de 1789, reimpresso em La Chronique du
Mois, maio de 1792, pp. 95,101 (LC). Esse período inicial da atividade revolucionária é discutido na
tese inédita apresentada à Sorbonne por C. Delacroix, Recherches sur le Cercle Social (1790-1791 ),
66 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA GRIGI.\ I F HISTÓRIA
86 Sobre a justaposição que Bonneville faz de associations parlières com sociétés des frères et d’amis,
cf. Chronique du Mois, julho de 1792, p. 82.
87 Lettre de Nicolas de Bonneville, avocat au Parlement de Paris à M. le Marquis de Condocert, L, 1787,
p. 41 (BN).“Hino à verdade”, La Poésie de Nicolas Bonneville, 1793, p. 155 (BA); e a tradução por
Bonneville de Jules de Tarante, citada em Harivel, p. 92.
88 Baltrusaitis, Quête, pp. 28, 30-31, 65-66; Poésie de Bonneville, p. 123 ss.
89 “Idéias-chave”, porém aqui empregado com o sentido mais específico de idéias prontas — NT.
90 Citações da tese de doutorado ainda inédita de D. Gordon, A Philosphe views the French Revolution:
the Abbé Morellet (1727-1819), Princeton, 1957, pp. 257-260. V. também Morrelet, “Remarques
philosophiques et dramatico-morales sur la particle ON”, Mélanges de littérature et de philosophie,
1818, v. 6, pp. 219-230.
Argumentos similares foram utilizados antes: ( 1 ) por literatos defensores do poder real que criticavam
os revolucionários americanos por abusarem da palavra liberdade “cujo próprio som transporta
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 71
O povo, sobrecarregado pelo seu trabalho diário, não tem capacidade, tempo nem
vontade de 1er. Essa enorme massa de pessoas jamais poderia ter sido levada a esse
terrível movimento nos últimos três anos mediante obras metafísicas, filosóficas
ou eloqüentes. Faziam-se necessárias outras bases [...] não livros, mas palavras:
liberdade, tirania, despotismo [...].91
um charme fascinante” e por deflagrar “um entusiasmo com a política, tal qual aquele que noções
religiosas inspiram, o qual dirige os homens com uma impetuosidade incomum, que desorienta e
confunde todos os cálculos baseados em princípios racionais” (citado em Stout, “Religion”, p. 534),
e também por (2) constitucionalistas moderados na Revolução Francesa, os quais alertavam, já em
1789, para “o poder e perigo das palavras” quando usadas por líderes que “nos oprimiríam com
grilhões ao mesmo tempo em que falassem de liberdade” (Révolutions de Paris, 1789, 7 a 14 de
nov., p. 3) e para “o nome da liberdade que matava a própria liberdade” (M. J. Chenier, irmão do
poeta que foi guilhotinado, citado em Gordon, Philosophe, p. 254). Para mais elementos sobre a
oposição de importantes philosophes à revolução, cf. A. Kors, D’Holbach’s Coterie. An Enlightenment
in Paris, Princeton, 1976; também R. Mortier, “Les Héritiers des ‘philosophes’ devant l’expérience
révolutionnaire”, e S. Moravia, “La Société d’Auteuil et la révolution”, Dix-Huitième Siècle, v. 6,
pp. 45-57, 181-191.
Ao relacionar o processo de popularização política nos Estados Unidos a uma tradição anterior
de revivalismo religioso, Stout ajuda a explicar por que a Revolução Americana não foi
terminologicamente tão inovadora se comparada à inventividade institucional e prática dos franceses.
G. Wood (“Rhetoric and Reality in the American Revolution”, William and Mary Quarterly, janeiro
de 1966, p. 26) afirma a importância geral da “retorica alucinada” durante o levante americano,
mas não oferece exemplo algum de novos termos.
91 Morellet, “Apologie de la philosophie contre ceux qui l’accusent des maux de la révolution” (1796),
Mélanges, v. 4, p. 329.
92 Relato do Abade Grégoire, citado em M. Mormile, La “Neologie ” révolutionnaire de Louis-Sebastien
Mercier, Roma, 1973, p. 199.
93 Varlet, L’Explosion, p. 7 (BM). No auge de sua guerra contra a burocracia e a tradição herdada, a
revolução cultural da China estimulou a rejeição até do lema inicial da revolução: “Tire a Máscara
Burguesa da ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade”’, Peking Review, 10 de junho de 1966, esp. p.
13.
72 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM E HISTÓRIA
alimentadas por palavras de jornais “duas vezes mais longos que as gazetas
inglesas”.100 Quando a conflagração revolucionária se realizou, Mercier fez
suas origens remontarem a Rousseau101 e percebeu que ela se espalhava
mediante palavras que “crepitavam” no uso contemporâneo. A introdução
da edição alemã de O ano 2440 considerou “inflamado”,102 “full of fire”,
o cenário que ele traçara, e Mercier se valeu dessa mesma metáfora quatro
anos depois, ao sugerir profeticamente o elo entre idéias e revolução: “A
flama da filosofia [...] foi acesa e domina a Europa: o vento do despotismo,
ao inibir a flama, apenas a atiça ainda mais e a ergue em irrupções maiores
e mais brilhantes”.103
O zelador decisivo dessa chama foi o mais secreto grupo do Palais-Royal:
o “Círculo Social” de Bonneville. Essa organização combinava o ideal ma-
çônico de um círculo secreto purificado com o ideal de Rousseau de um
contrato não apenas político, mas também social. Pode ser que tenha havido,
aí, continuidade em relação ao pré-revolucionário Clube do Contrato Social
ou Clube Social dirigido por Filipe de Orléans, ao qual Bonneville tinha per
tencido.104 Ele parece ter idealizado pela primeira vez essa nova organização
em outubro ou novembro de 1789, e primeiramente tê-la formado no verão
de 1790 a partir dos encontros editoriais às quintas-feiras do seu Tribuna
do Povo — inicialmente como um órgão de vigilância e censura a serviço de
La Bouche de Fer.105
Bonneville distinguiu sua nova organização de todos os outros clubes
revolucionários. “O Círculo Social, que não almeja nem mestres nem discí
pulos^ simplesmente não é um clube”, ele insistiu no primeiro número de La
Bouche.106 Os membros tinham cartões secretos e novos nomes lhes eram
atribuídos. Eles compreendiam um grupo central dentro de um mais amplo
100 L’An (ed. Trousson), p. 388. Vejam-se os extratos imaginários de gazetas de 22 diferentes partes do
mundo, pp. 388-415.
101 Mercier; J.-J. Rousseau considéré comme l’un des premiers auteurs de la révolution, 1791; também
Mormile, p. 155.
102 Citado em Trousson, p. 68.
103 Éloges et discours philosophiques, p. xv, citado em Trousson, p. 22. Assim como muitos outros
philosophes, Mercier se sentia tentado a visitar a Rússia para realizar os seus planos utópicos, tendo
antes tentado sem sucesso ir ao reino de Catarina a Grande. V. a tese de doutorado inédita de T.
Zanadvorova, Lui-Sebast’ian Mers’e i ego utopichesky roman “2440-i god”, Leningrado, 1947, p.
16.
104 Cros, Fauchet, p. 29; e comentários sobre o Círculo Social, no qual ele era o principal colaborador
de Bonneville, pp. 25-41.
105 Lacroix, Actes, primeira série, 1898, vol. 7, pp. 577, 567, 564, 585-590.
106 La Bouche de Fer, 1790, vol. 1, p. 3.
74 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
107 Ibid., segunda paginação, pp. 1-4, para acesso ao “Prospectus pour le Cercle Patriotique”; e pp.
5-12, para o “Portrait du Cercle Social”.
108 Estimativas dadas em Rose, p. 146, as quais diferem ligeiramente daquelas em Lacroix, Actes,
primeira série, vol. 7, p. 597.
109 Ibid., p. 585.
110 Delacroix, pp. 33-34.
111 Rose, p. 144.
112 lonnisian, Idei, pp. 39-40, 43.
113 Ibid., pp. 35-38, complementa o relato ainda fundamental de A. Lichtenberg, “John Oswald, écossais,
jacobin et socialiste”, La Révolution Française, vol. 32, 1897, pp. 481^495.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 75
114 John Oswald, Review of the Constitution of Great Britain, 3a ed. aumentada (Paris, 1792), “vendida
no Círculo Social”, o que é citado em Ioannisian, Idei, p. 47. Desempenhou também importante
papel nessa campanha o padre inglês David Williams, cujas Lessons to a Young Prince by an Old
Statesman on the Present Disposition in Europe to General Revolution (1791) foram traduzidas e
republicadas em La Bouche', ele influenciou Bonneville antes mesmo de emigrar para a França como
“cidadão” honorário da república. Idei, pp. 41-42.
115 Uma tradução francesa foi publicada no mesmo ano: ibid., pp. 49-50 ss.
116 De VEsprit des religions. Ouvrage promis et nécessaire à la confédération universelle des amis de la
vérité, 1792, pp. 88, 249 (LC).
117 Ibid., p. 88.
118 Ibid, (apêndices da segunda edição), p. 118.
119 Ibid, (apêndices), p. 132.
120 Citado a partir de uma obra do Círculo Social não identificada segundo menção feita no Mercure
de France, 18 de dezembro de 1790, p. 96.
76 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Ele se dirigia aos seus leitores não como maçons-livres {franc-maçons}, mas
como francs-cosmopolites [cosmopolitas-livres] — uma classe inteiramente
nova que combinava a ordem natural dos antigos francos e a “fraternidade
universal” do Iluminismo. Depois de um Hino à Verdade que invocava a
necessidade de “conquistar a luz”,126 Bonneville entoava: “cercle du peuple
franc [círculo do povo livre], derramai com mão segura os vossos raios
luminosos nas atmosferas sombrias”.127
Um apêndice notável falava de “círculos mágicos” e reduzia os principais
sistemas políticos a representações gráficas circulares de como as partes se
relacionam com o centro de poder. A impressão criada pelos seus cercles
constitutionels foi a de que tanto a constituição original da Inglaterra sob
o domínio de Alfred quanto a constituição da França revolucionária repre
sentavam sistemas simples, simétricos, se comparados com a constituição
da Inglaterra durante e após a Revolução Puritana.128 Contudo, mesmo o
mais puro dos círculos políticos parecia implicitamente inferior ao círculo
social, o qual realizaria “a perfectibilidade de todos os governos”129 ao criar
uma sociedade igualitária: o círculo perfeito no qual todos os pontos estão
eqüidistantes do centro, a Verdade.
A Confederação Universal dos Amigos da Verdade representou um dos
primeiros esforços de um pequeno círculo de intelectuais de divulgar siste
maticamente idéias sociais radicais para uma audiência de massa. A Confe
deração advogava uma grande communion sociale que proveria benefícios
sociais, imposto progressivo e universal e a ampliação da igualdade civil a
mulheres e negros.
“Dos clubes políticos de Paris, o Cercle Social foi o primeiro a advogar
o feminismo”.130 Ele defendia que círculos de mulheres acompanhassem os
dos “irmãos livres”,131 e em 15 de fevereiro de 1791 formou, no Circo do
Sou vosso igual. A cor não é nada, o coração é tudo, não é mesmo, meu irmão?
Livre, como vós: Assim o quis a República Francesa em cumprimento da natureza:
não sou vossa irmã?133
132 Além do seu Appel aux françaises, v. também Discours de Mme. Palm d’Aelders, hollandaise, lu à la
confédération des amis de la vérité, Caen, s/d.; e, sobre a Société des Amis de la Vérité, A. Mathiez,
La Révolution et les Étrangers, 1928, p. 96.
133 E. Hamy, “Note sur diverses gravures de Bonneville représentant des nègres (1794-1803)”,
Anthropologie (1899), vol. 10, pp. 42-46. John Oswald, associado de Bonneville, insistia em que
os “direitos do homem” fossem estendidos não só às mulheres e escravos, mas também aos animais.
V. o seu The Cry of Nature, or an Appeal to Mercy and Justice on behalf of the persecuted animals,
L, 1791 (BN).
134 Aleksev-Popov, Sbornik... Volgina, p. 329.
135 Lacroix, Actes, primeira série, vol. 7, p. 601.
136 M. Conway, “Thomas Payne et la révolution des deux mondes”, La Revue Hebdomadaire, vol. 26,
26 de maio de 1900, p. 478; vol. 27,2 de junho de 1900, pp. 74-75. Estudos recentes de Payne não
oferecem material importante sobre sua estada em Paris e, em geral, passam ao largo do estudo de
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 79
Conway, o qual caracteriza (vol. 27, p. 75, nota 2) a Declaration of the Volunteers of Belfast (1791)
de Payne como o primeiro manifesto público de apoio à Revolução Francesa feito desde fora da
França. Barlow também escreveria depois uma Letter Adressed to the People of Piedmont: cf. J.
Woodress, A Yankee's Odyssey. The Life of Joel Barlow, Filadélfia / NY, 1958, p. 134.
137 Citado e comentado por Conway, p. 479; sobre o incòmodo dos jacobinos com o círculo, pp.
480-482.
138 Marat, Izbranrrye proizvedeniia, 1956, vol. 3, p. 126; Dalin, Babeuf, p. 324.
139 Morton, Bastille, p. 205.
140 Mathiez, Étrangers, pp. 37,105-111. Também os suíços tinham o seu “escritório de correspondência”
situado perto do Palais-Royal (p. 34). Sobre a furiosa campanha anti-estrangeiros ao fim de 1793
v. p. 138 ss.
so A FF R EVO I UCIOX’ARÎA: SUA ORIGF.M F HISTÓRIA
Os campos de celebração
E quase certo que não existia nenhuma conspiração séria dentro do Palais-
-Royal. Filipe de Orléans era fraco demais para ser uma ameaça política,
e nenhuma organização reunida em torno dos cafés possuía a estrutura de
apoio necessária para rivalizar fosse com a rede nacional de clubes jacobinos,
fosse com os governos seccionais de Paris.
Mesmo assim, o que Nicholas Bonneville havia criado no ambiente permis
sivo do Palais-Royal era nada menos que o protótipo da organização revo
lucionária moderna. Possuía ambições políticas globais (“uma confederação
universal”) baseadas em convicções ideológicas (“amigos da verdade”) sob
a disciplina de um grupo central secreto (o Círculo Social), o qual pretendia
transformar a vontade geral de Rousseau em estratégia revolucionária por
meio de um jornal profético (A Boca de Ferro).
Do ponto de vista físico, a organização de Bonneville pode ser vista
como uma série de círculos concêntricos. A circunferência mais exterior
era o quadrângulo de altas colunadas do Palais-Royal; o segundo círculo,
o Circo fechado onde a Confederação Universal de Amigos da Verdade
se reuniu em 1790-1791; e o círculo mais ao centro era onde o grupo de
Bonneville se reunia, em um café situado mais baixo ainda no subsolo do
que o subterrâneo Circo.
Bonneville perseguia a legitimidade, não o poder, e assim ele é subestimado
por historiadores modernos para os quais a luta entre facções políticas é, de
algum modo, mais real que a disputa de símbolos políticos. Contudo, não é
menos importante delinear a busca por legitimidade do que as políticas do
poder se quisermos penetrar nas mentes dos revolucionários, e não apenas
descrever aspectos exteriores do processo revolucionário. Bonneville fez o
mais cabal esforço de substituir o círculo da corte de Versalhes por um novo
círculo de autoridade em Paris. Mas “o povo” ainda precisava de algo em
torno do qual se reunir, um ponto de referência em comum, senão mesmo
de reverência, precisava de novos rituais que substituíssem os de Versalhes
e de Notre Dame.
A busca por autoridade em uma paisagem recém-despida das balizas
familiares levou muitos a olhar para além da linguagem à procura de certe
za imediata. Homens e mulheres desorientados abandonaram os símbolos
“orientadores” costumeiros da comunicação convencional e se voltaram para
símbolos de “condensação” que pudessem representar diretamente a própria
82 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Descenda, ó Liberdade,
Pilha da Natureza
Esse ritual coletivo nos espaços públicos de Paris fez com que qual
quer palco fechado perdesse a graça em comparação. O espetáculo era
gratuito e (para citar a propaganda que os teatros tinham adotado do
círculo Bonneville-Fauchet) par et pour le peuple. Talma e seus colegas do
pró-revolucionário Théâtre de la République no Palais-Royal eram especta
dores freqüentes do drama maior que se encenava publicamente. Evreinov,
o homem que dirigiu o maior espetáculo revolucionário a céu aberto do
século XX — a recriação, pela cidade de São Petersburgo, da tomada de
poder pelos bolcheviques — talvez tenha sido quem melhor descreveu a
peça revolucionária que se encenou em Paris:
Na França do século xvm, a competição entre vida real e vida no palco havia che
gado a tal ponto que ninguém sabia mais dizer qual era a mais teatral. Em ambas
havia frases pomposas, ensaiadas demais, um refinamento afetado de deferências,
sorrisos e gesticulações; em ambas, trajes vistosos [...] pátios [...] pó de arroz,
batom, pintas, monóculos e bem poucos rostos “naturàis”. [...]
E então tem início uma reação. [...] O primeiro a “se dar conta” no palco da
vida foi Jean-Jacques Rousseau; o primeiro no palco teatral foi Talma. Ambos, adu
ladores na juventude, queriam que os senhores da vida retomassem a naturalidade.
Era necessário mais que uma revolução política para exibir “a enfatuação
teatral do sistema hierárquico de sua vida”.
Numa palavra, a Grande Revolução foi tão teatral quanto política. Só obtinham
sucesso aqueles dotados de temperamento artístico e intuição do momento certo.
153 N. Evreinov, “Teatralizatsiia zhizni”, in Teatr kak takovoi, Berlim, 1923, pp. 50-51. Para uma discussão
das teorias de Evreinov e seu impacto na encenação que ele realizou da tomada do Palácio de Inverno
(depois em grande medida incorporado ao filme Outubro, de Eisenstein), veja-se a tese de doutorado
defendida em Princeton por P. Thon, a ser publicada em breve, autor ao qual devo esta citação.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 87
Mas a busca por legitimidade abrangia mais que a dança ao redor da ár
vore da liberdade e o drama da guilhotina. Abrangia uma tentativa festiva de
realizar a utopia não no fechado Palais-Royal, mas ao ar livre: transformar
a velha Paris em uma nova Jerusalém; passar do reino do medo da guilho
tina para uma república de júbilo na qual a Mãe Natureza era a Rainha.
Um revolucionário que propunha mudanças nos nomes das ruas de Paris
perguntou: “Não é natural que da Praça da Revolução se pegue a Rua da
Constituição em direção à da Felicidade?”.155
A própria geografia de Paris ganhou significado moral, e a única questão
pertinente para um revolucionário fiel era onde em Paris fica a Praça da
Felicidade e como se chega até ela.
A Paris revolucionária proclamou, na prática, que a felicidade se localiza
a céu aberto para ser alcançada mediante uma procissão festiva. O ponto de
destino para as primeiras e as últimas das grandes festividades revolucionárias
foi o mais amplo espaço aberto em Paris, o anfiteatro decisivo para o drama
da redenção revolucionária: o Campo de Marte.
Cerca de cem mil parisienses cavaram esse imenso campo de revista militar
e criaram uma arena de chão batido para a Festa da Federação de 14 de julho
de 1790, o primeiro Dia da Bastilha. Mais de trezentos mil franceses de todo
o país marcharam em procissão sob forte chuva para ouvir um grandioso
coro consagrar a nação francesa unida ao Sol: “fogo puro, olho eterno,
alma e fonte de todo o mundo”.156 O Campo de Marte se tornou “o centro
metafísico de Paris”;157 e os coreógrafos revolucionários decidiram que dali
em diante “as festividades nacionais não terão confinamento algum senão
o arco do céu, pois a soberania, isto é, o povo, jamais pode ser trancafiada
em um local delimitado”.158
A constituição foi distribuída ao povo, em 10 de setembro de 1791, por
um balão que desse céu aberto jogava exemplares sobre um campo aberto.
154 Ibid., p. 51. Para outra descrição alentada da Revolução Francesa como teatro (“de um pitoresco
bizarro [...] perfeição latina da forma”), v. E. Friedell, A Cultural History of the Modern Age, NY,
1954, vol. 2, pp. 380-385.
155 Cidadão Grégoire, Systèmes de dénominations topographiques ( 1793), citado em B. Baczko, Lumières
de l’utopie, 1978, p. 369.
156 Tiersot, p. 40.
157 Ozouf, Fête, p. 177.
158 Declaração feita por Sarrette, citada em Ozouf, p. 152.
88 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
exato momento em que a “igualdade era assinalada nos céus entre o dia e a
noite” e “o sol passava de um hemisfério ao outro”, a autoridade na terra
“passava do governo monárquico ao republicano”.163
O novo calendário refletia “a racionalidade e simplicidade da natureza”
e oferecia uma “nomenclatura eloqüente” de neologismos que sugere “uma
vaga ideologia ‘rural e agrícola’”.164 O calendário estava dividido em quatro
estações, com novos nomes para os meses, a fim de sugerir o estado de es
pírito de cada um: terminações pesarosas em ôse para os meses de inverno
(Pluviôse [Chuvoso], Ventôse [Ventoso]), nomes primaveris terminados em
al sugerindo uma nova floração (Germinal, Floréal). A semana — baseada na
idéia dos sete dias da criação — foi inteiramente eliminada. Domingos e dias
de santos eram substituídos por festejos que santificavam objetos naturais
(em sua maioria ligados à agricultura): árvores, frutos, animais domésticos.
Estes últimos, escreveu um dos autores do calendário, deveriam ser “muito
mais preciosos à luz da razão do que esqueletos beatificados arrastados de
dentro das catacumbas de Roma”.165
Ele comemorava que o cultivo tivesse substituído o culto na França, ao
invocar a natureza em ambos os sentidos — como lei mais alta e como a sim
ples área rural provinciana — como a suprema autoridade da nova ordem. Ao
anunciar a necessidade de completar a revolução “física” com uma revolução
na ordem moral, Robespierre proclamara “a religião universal da Natureza”.166
Varlet classificou 1793 de “o primeiro ano da verdade” e consignou uma nova
Declaração dos Direitos do Homem “em estado de sociedade” ao “povo da
natureza”.167 Uma nova versão de La Marseillaise se iniciava com
169 Ozouf, pp. 136—137; A. Mathiez, A wtowr de Robespierre, 1925, pp. 117-120; e também pp. 123-124.
170 C. Nodier, citado em Ozouf, p. 130.
171 Ibid., p. 131.
172 A importância dessa exibição é enfatizada por Walter Benjamin, “Paris, capitale du xixe siècle”,
Oeuvres, 1971, vol. 2, p. 129.
173 Citado em Ozouf, p. 205, nota 1.
174 Tiersot, Fêtes, pp. 202-204.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 91
175 M. Thibaut, “Restii à Carnavalet”, La Revue de Paris, 15 de janeiro 1935, p. 439. “Apprends ô ma
chère île/ Que je puis mourir/ J’ai fini mon grand ouvrage” [“Saiba, ó minha querida Ilha, / Que já
posso morrer, / Que terminei minha grande obra”]. O mais completo retrato pré-revolucionário de
uma utopia comunista feito por Restii é aquele de uma ilha imaginária em La Découverte australe
par un homme-volant, ou le Dédale français; Nouvel très philosophique. Suivie de la lettre d’un
singe, Leipzig, 1781; obra discutida em maiores detalhes por Ioannisian, “Utopiia Retifa”, p. 181
ss. J. Pinset, ao citar várias versões do hino de louvor de Restii à sua amada ilha, compreende a
ilha não tanto como o lugar de uma utopia social, e sim mais como o foco psicológico “da grande
peregrinação romântica e egocêntrica”. “Les Origines instinctives de la révolution française”, Revue
d’Histoire Economique et Sociale, 1961, n° 2, p. 201.
O entusiasmo por ilhas como refúgios protegidos contra as convenções sociais artificiais pode
também remontar a Rousseau. V. E. Wagner; L’île de Saint-Pierre ou Pile de Rousseau dans le lac de
Bienne, Berna, s/d.; Monglond, Préromantisme, vol. 2, p. 4 ss. Estímulo adicional veio da série de
livros de Charles Garnier: Voyages imaginaires, songes, visions, et romans cabalistiques, Amsterdã
/ Paris, 1787-1795, esp. vol. 8,1787: L’île inconnue.
176 A literatura utópica tornou-se imensa e cada vez mais repetitiva nos últimos anos. More criou a
palavra grega que significa “lugar nenhum”, Utopia, em seu retrato de um viajante imaginário que
descobre uma sociedade ideal: De optima reipublicae statu, deque nova insula Utopia, Louvain,
1516; e alguns tratados da Reforma que seriam publicados depois na Antuérpia eram listados como
tendo origem em Utopia. M. Kronenberg, “Forged Adresses in Low Country Books in the Period
of the Reformation”, The library, 1947, set.-dez., pp. 81-83. Surgiram fantasias similares de urna
92 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖRIA
ordem ideal, como as de Andreas e Campanella, ao romper das guerras de religião do início do
século XVII (do mesmo modo como a República de Platão havia surgido depois do sofrimento e
divisão originados da Guerra do Peloponeso); mas o utopismo secular tem início com o despertar
da imaginação geografica e da crítica social na literatura do Iluminismo.
As primeiras utopias seculares — assim como muitas das mais recentes — falavam de homens que
superavam as distinções sexuais e sociais. Les Aventures de Jacques Sadeur (1676), de Gabriel Foigny,
e Histoire des Sévérambles (1677), de Varrasse d’Alais, descreviam, respectivamente, uma sociedade
de hermafroditas e uma vida comunal com oito horas de prazer por dia (Reybaud, Étude, pp. 37-40,
54,60). Mas a literatura secular logo começaria a caracterizar lugares reais com qualidades utópicas
de perfeição. A tendência de idealizar os experimentos europeus (a cidade jesuítica da Patagônia,
no Paraguai) seria logo substituída pelo louvor mais radical dos próprios índios intocados pelo
europeu, a começar por peças como Dialogues or Encounters between a Savage and the Baron de
la Houta, 1704. Ao longo do século xviii, as utopias “heróicas” que inspiram os homens a agir
prevaleceram cada vez mais sobre as utopias “escapistas” que acalentam os homens sugerindo-lhes
o sossego. Esse processo, tal como visto por J. Scacki, Utopia, Varsóvia, 1968, é similar àquele que
C. Rihs descreve como uma passagem das utopias “sentimentais” para as “revolucionárias” em Les
philosophes utopistes; le mythe de la cité communautaire en France au xvin^ siècle, 1970, bem corno
similar à distinção que E. Bloch faz entre “ucronias”, as quais olharam para trás em busca de um
passado heróico, e “utopias”, as quais, voltadas para o futuro, são fontes de otimismo militante e
revolução secular. V. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, 1955, vol. 2; e Geist der Utopie, Frankfurt am
Main, 1964; cf. também P. Furter, “Les fonctions de Putopie”, L’Imagination créatrice, la violence
et le changement social, Cuernavaca, 1968, pp. 3, 11—13, 41. B. Baczko, “Lumières et Utopie.
Problèmes des Recherches”, Annales, 1971, mar.-abr., pp. 355—386, está antes inclinado a crer que
idéias de utopia levam mais ao reformismo que à revolução. L. Sargent, “Utopia — The Problem
of Definition”, Extrapolation, 1975, maio, pp. 137-148, não discute nenhuma das obras citadas
anteriormente e lida com problemas estruturais e literários mais delimitados. Para uma série de
breves artigos e discussões — de qualidade irregular, mas sempre estimulantes — sobre idéias sociais
em utopias, cf. Le discours utopique. Colloque de Cerissy, 1978.
O pensamento utopico ajudou a lançar a busca revolucionária por uma “geografia simbólica”
(Certeau, “La révolution fondatrice”, p. 81 ss.): a busca por um local secular, tangível, onde realizar
uma sociedade alternativa. O potencial destrutivo desse tipo de especulação foi intensificado quando
combinado à tendência “polêmica, irreligiosa e socialmente revolucionária” de justapor a lei natural
à tradição cristã. R. Lenoble, Esquisse d’une histoire de l’idée de nature, 1969, p. 365. A somar-se
a esse penetrante estudo das tentativas, desde a antigüidade clássica, de “construir, contra os mitos
de uma determinada época, uma Natureza coerente submetida a leis” (p. 927), vejam-se também as
obras de G. Atkinson, esp. Le Sentiment de la nature et le retour à vie simple (1690-1740), Genebra,
1960, e de G. Chinard, esp. L’Amérique et le rêve exotique dans la littérature française ao xvne siècle,
1963, 2v.; também L. Crocker, Nature and Culture: Ethical Thought in the French Enlightenment,
1963; e P. van Tieghern, Le Sentiment de la nature dans le préromantisme européen, 1960.
177 O ainda misterioso escrito de Morelly, Code de la nature, ou le véritable esprit de ses loix, de tout
temps negligé ou méconnu, teve cinco edições entre 1757 e 1773, seguindo-se ao seu Naufrage des
isles flottantes, ou Basiliade, Messina, 1753, que alegava se tratar da tradução de uma obra indiana.
V. R. Coë, “A la recherche de Morelly”, Revue d’Histoire Littéraire de la France, 1957, jul.-set., pp.
326-328.
O projeto de Babeuf de redistribuição econômica e bem-estar social se baseava tão substancialmente
no Code de la nature de Morelly que eie pròprio chegou a ser chamado de “Morelly transformado
em um homem de ação”. H. Baudrillat, Dictionnaire d’économie politique, 1852, vol. 1, p. 427;
citado por M. Dommanget, Babeuf et les problèmes du Babouvisme, p. 32. V. também R. Coë, “Le
théorie morellienne et la pratique babouviste” e a discussão anexa entre Dautry, Saitta e Coë, Annales
Historiques, 1958, jan.-mar., pp. 38-64; sobre as ligações de Morelly com o suposto movimento
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 93
de “comunismo literário” do século xvm, cf. Coe, Morelly: Ein Rationalist auf dem Wege zum
Sozialismus, 1961, p. 9; e, para conhecer o testemunho do próprio Babeuf sobre essas ligações, p. 296.
178 G. Likhotkin, Sil'ven Mareshal' i “zaveshchanie Ekateriny n”, Leningrado, 1974, pp. 18-20. Le
Tombeau de J.-J. Rousseau, 1779; L'Age d'or, recueil des contes pastoreaux par le Berger Sylvain,
1782. A principal influência foi veio do poeta-pintor suíço de expressão alemã S. Gessner.
179 Parece que nenhum exemplar sobreviveu. Ver O. Karmin, “Sylvain Maréchal et le Manifeste des
Egaux”, Revue Historique de la Révolution Française, 1910, vol. 1, p. 513.
180 Corretifà la Révolution, 1793, discutido em Ioannisian, Idei, pp. 149-159. Esta obra chegou a ser
chamada de tratado fundador do anarquismo moderno por um dos principais historiadores deste
movimento: M. Nettlau, Der Vorfrühling der Anarchie, 1924, vol. 1.
181 Citado em Karmin, “Maréchal”, p. 511; também Dommanget, Maréchal, p. 455.
182 G. Pariset, Études d’histoire révolutionnaire et contemporaine, 1929, pp. 129-130.
94 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O retorno repetido dos revolucionários aos cafés sugere que a Mãe Natureza
não era apenas uma casta estátua clássica que representa a ordem racional e
a simplicidade pastoral. Ela era também uma sedutora feiticeira que oferece
a satisfação emocional de mãe e de amante. A Mãe Natureza era uma deusa
de duas faces: um Janus que, voltado para trás, olhava o “racionalismo” do
século XVIII, e que, voltado para frente, olhava o “romantismo” de início do
século XIX. O revolucionário moderno, nascido da conjunção dessas duas
eras, cultuava ambas as imagens. Fundamentava-se intelectualmente na
crença de que a Natureza representa alguma ordem mais alta de perfeição,
e emocionalmente na crença de que a Natureza provê formas terrenas de
satisfação. Depois teremos de retornar à concepção filosófica anterior de
Natureza quando examinarmos as surpreendentes fontes das idéias revo
lucionárias sobre organização. Aqui, temos de nos deter um pouco sobre o
elemento psico-sexual da compreensão revolucionária da natureza.
Deve-se mencionar de passagem a importância de Laclos e Marquês de
Sade no clima do Palais-Royal, o fato de que muitos pensadores revolucio
nários originais, de Mirabeau a Maréchal, eram grandes colecionadores e
autores de pornografia literária, e o não atípico ménage à trois de Bonneville,
sua esposa e Payne (o primeiro chegando a dar o nome deste último ao seu
segundo filho e a permitir que sua esposa fosse definitivamente embora com
Payne para os Estados Unidos).
O amigo mais próximo de Payne em Paris, Joel Barrow, acreditava que
existiam origens sexuais “naturais” para os símbolos revolucionários de
festividade. Fazia as árvores da liberdade remontarem ao símbolo fálico do
culto egípcio de Osíris — levado daí para a Grécia e Roma, onde “Baco era
conhecido pelo epiteto de Liber, de modo que Falo tornou-se o emblema de
183 Citado em Thompson, Babeuf, p. 28; também pp. 27-29, e Ioannisian, Idei, p. 223.
LIVRO 1, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 95
184 Barlow, “Genealogy of the Tree of Liberty”, inédito, manuscrito sem data, Houghton Library,
Harvard, BMS Am 1448 (13), p. 22.
Pode ser que este seja um dos poucos rituais revolucionários franceses que tenham se originado
diretamente de algum precedente revolucionário americano, a estar correta a sugestão de Arthur
Schlesinger de que Thomas Payne introduziu na França a prática de louvar árvores da liberdade:
“Liberty Tree: A Genealogy”, New England Quarterly, 1952, dez., p. 453. Mas o erudito estudo de
Schlesinger trata apenas do lado americano. Ele parece desconhecer que essa prática se desenvolvera
na França muito antes da chegada de Payne, mostrando-se curiosamente partidário em sua sugestão
de que Barlow estava apenas escrevendo “para a sua própria diversão” (p. 436, nota 1).
185 Cf. a folha solta acrescida a Barlow, “Genealogy”, p. 25, sobre o barrete frigio, que supostamente
foi adotado pelos romanos como símbolo do dom da liberdade dado a um escravo.
186 Ibid., p. 23. Os aspectos eróticos dos símbolos revolucionários serão tratados, ao que parece, em uma
obra polonesa ainda a ser publicada de M. Janion, que já escreveu sobre “as febres do romantismo”:
Goraczka romantyczna, 1975.
187 Le Pied foi traduzido no ano seguinte para o alemão e, em 1774, para o russo em São Petersburgo,
onde as obras de Restii em geral encontravam cálida recepção. V. G. Buachidze, Restif de la Bretonn
v Rossii, Tblisi, 1972, esp. pp. 102-109. Para uma oportuna bibliografia em francês sobre trabalhos
russos a respeito de Restii ignorados no Ocidente, v. pp. 328—340. Le pomographe ou idées d’un
honnête-homme sur un projet de règlement pour les prostituées, L / Le Havre, 1779; veja-se discussão
em Poster Restif, pp. 33-50, e as referências listadas à p. 97, nota 1, sobre a possível podolatria do
próprio Restif.
188 Poster; p. 99.
189 Ibid., e Monsieur Nicolas, vol. 1, p. 359. Como quase todos os escritores ocidentais que tratam de
Restif, Poster parece inadvertido da importância de sua obra “comunista” — e assim relaciona os
impulsos eróticos antes a formas literárias, e não a uma substância social ou revolucionária.
96 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Os objetos de fé
6 The life and works of Thomas Payne, New Rochelle, 1925, vol. vi, p. 206.
7 Républicain ou le défenseur du gouvernement représentatif teve apenas quatro números. Dalin,
Babef, pp. 407-408. Paine vislumbrava “uma nova era que iria extirpar o despotismo da face da
terra” para quando o republicanismo revolucionário alcançasse “abrangência universal”. V. sua
Lettre de Thomas Paine au peuple français, 25 de setembro de 1792, pp. 3, 7 (EU).
8 Dalin, p. 405.
9 “Constitution”, em La Chronique du Mois, 3 de janeiro de 1792. Esse jornal, assim como Républicain,
foi editado por um grupo que incluía Bonneville, Paine, Condorcet e Brissot. Bonneville estabelece
ligação entre a constituição do estado e as constituições da natureza e do corpo humano — com “o
povo”, o seu “sangue” (p. 4).
10 A. Mathiez, “La Constitution de 1793”, La Revue de Paris, 5 de julho de 1928, esp. p. 318 ss.
11 Momentos posteriores dessa tradição, que se tornou essencialmente não-revolucionária, são descritos
em G. Weill, Histoire du parti républicain en France de 1814-1870, 1928, e J. Scott, Republican
Ideas and the Liberal Tradition in France, 1870-1914, NY, 1951.
A palavra “republicano” foi usada já em 1770 na França como possível sinônimo de revolucionário.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 101
16 G. Zernatti, “Nation: The History of a Word”, Review of Politics, 1944, jul., pp. 352-358, 36 1-365.
17 Relato de abril de 1790 feito por Nicholas Karamzin, citado por Brunot, vol. ix, p. 638.
18 Le magnificat du tiers-état, 1789 (ELI).
19 Symboles des patriotes françois, ou Credo des anti-aristocrates, 1790, p. 7 (EU).
20 Litanies du tiers-état, 1790, 2a ed., pp. 10-11 (EU).
21 Essa linha de interpretação é sugerida, embora não desenvolvida, por um novo e estimulante estudo
de autoria do separatista bretão J. Y. Guiomar, L’Idéologie national: nation représentation propriété,
1974, pp. 91-94. G. Gottmann acredita que urna nova concepção de soberania territorial emerge
da Revolução Francesa como característica básica de uma nação: The significance of territory,
Charlottesville, 1973, pp. 74-76.
22 Mémoires pour server à l’histoire du jacobinisme, Hamburgo, 1798-1799, vol. in, p. 184; citado
em Godechot, “Nation”, p. 500.
23 L. Krieger, “Nationalism and the Nation-State System: 1789-1870”, em Chapters in Western
Civilization, NY, 1962, 3a ed., vol. n, p. 113.
104 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A Canção de Estrasburgo
24 Z.-E. Harsany, La vie à Strasbourg sous la révolution, Estrasburgo, 1963, p. 99, lista 73 cabarés,
86 restaurantes a céu aberto e 33 cervejarias em 1789, bem corno se dedica a descrever (pp. 89-99)
essa “era de ouro dos cafés”.
LJVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 105
a cidade como uma família que tivesse ramos franceses e alemães (Didier e
Dietrich), uma esposa suíça multilingue e uma sala de visitas bilíngue onde
velhos antagonismos tendiam a se dissolver.
Nos primeiros meses sitiados de 1792, uma consciência nacional foi inten
sificada pela percepção crescente de que o inimigo estava próximo e de que
a guerra era provável. A população normal de cinqüenta mil pessoas tinha
se inchado com os amigos da revolução que vinham fugidos da Áustria e da
Prússia e com voluntários oriundos de toda a França, que chegavam para
fortalecer a cidade que servia de guarnição no Reno. A notícia de que ambos
os monarcas germânicos tinham declarado guerra à França revolucionária
chegou primeiro a Estrasburgo que a Paris; e, na noite de 24 de abril de
1792, Dietrich encarregou um jovem capitão de engenharia que frequen
tava sua casa, Claude-Joseph Rouget de Lisle, de escrever uma canção que
incitaria o exército poliglota a resistir ao previsto ataque dos Habsburgo.
Na inspiração febril de uma noite, ele escreveu uma canção que uniu um
povo como não se via desde Ein feste burg [Um castelo forte] de Lutero.25
Originalmente chamada Chant de guerre de l’armée du Rhin, seus versos
surpreendentemente sanguinários eram cantados com especial zelo pelos
voluntários recém-chegados do estrangeiro. O contingente de marselheses
deu à canção de Estrasburgo seu nome permanente: La Marseillaise.
A origem de A Marselhesa em Estrasburgo não foi acidental, pois fora a
partir dessa cidade que a rica cultura musical da Alemanha havia entrado na
25 Os aspectos básicos do retrato aqui feito são aqueles estabelecidos por J. Tiersot, Histoire de la
Marseillaise, 1915, pp. 27-29, os quais podem ser suplementados por A. Dietrich, La création de la
Marseillaise: Rouget de Lisle et Frédéric de Dietrich, 1917, e confirmados por P. Martin, '‘Propos
autour d’um tableau historique: Rouget de Lisle chantant la Marseillaise”, Saison d’Alsace, 1964,
Winter, pp. 108-111.
Por muito tempo se defendeu que a melodia não poderia ter sido criada tão rapidamente e teria
sido tirada de alguma esquecida obra operistica da época — a qual teria sido ou Sargines ou 1’élève
de l’amour de Dalayrac, ou La caravane de Caire de Grétry, ou ainda uma composição perdida de
Méhul, a quem Rouget de Lisle dedicou a sua coleção de composições publicada em 1796. Tiersot
refuta cuidadosamente essas alegações e insiste em que Rouget era o único autor tanto da letra
como da música: Histoire, pp. 410-422. Especulações mais recentes têm dado atenção aos possíveis
empréstimos que Rouget teria tomado de um oratório baseado na Esther de Racine, composto por
um mestre de música da Catedral de Saint-Omer, onde Rouget passara um período anteriormente.
V. M. Vogelais, Quellen und Bausteine zu einer Geschichte der Musik und des Theatres in Elsass,
Estrasburgo, 1911. A. Gastoué, “L’air de la Marseillaise, naquit-il à Saint-Omer?” [“Terá a melodia
da Marselhesa nascido em Saint-Omer?”], Echanges et Recherches, Roubaix, 1939, jan., pp.
148-153, responde à questão com um decisivo não, insistindo em que a composição era original. Ao
mesmo tempo, ele observa que Rouget tomou algumas expressões centrais da terminologia militar
local (“enfants de la patrie” [filhos da pátria] e “aux armes, citoyens” [às armas, cidadãos]) e de
Sargines (“entendez-vous le bruit de guerre... Marchons, marchons” [“escutai o rumor da guerra...
Marchamos, marchamos”]). V. também mais referências e comentários em J. Mouchon, La Musique
en Alsace, Estrasburgo, 1970, p. 136.
106 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
França. Tinha coros de catedral franceses bem como alemães, casas de ópera
francesas e alemãs e as melhores orquestras da França pré-revolucionária
situadas fora de Paris e Versalhes. Estrasburgo fabricava tanto instrumentos
quanto melodias. O grande fabricante de pianos Ignace Pleyel se tornou
kapelmeister [mestre de capela] da Catedral de Estrasburgo em 1789. Tendo
por fontes tanto o fausto católico quanto a fonografia protestante, Estrasburgo
produziu um repertório revolucionário original, introduzindo composições
musicais sofisticadas em festividades revolucionárias a céu aberto por meio
do Hino à Liberdade de Rouget, de Lisle.26 Executado pela primeira vez em
25 de setembro de 1791, utilizou toda a audiência como coro pela primeira
vez na história, uma técnica só posteriormente levada a Paris. As palavras
austeras de Rouget de renúncia ao “vão delírio da felicidade profana” e à
“voluptuosidade branda” sugeriam o puritanismo revolucionário que es
preitava no futuro.2728Desde o princípio, La Marseillaise foi uma espécie de
produção coletiva. Quando Rouget mostrou o esboço da melodia ao prefeito
na sala de visitas deste, Dietrich, que era um tenor, tornou-se o primeiro a
cantá-la, e sua esposa violinista, a primeira a orquestrá-la. La Marseillaise
eletrizou uma nação que ia para a guerra. Os dois principais compositores
da Opéra Comique, Dalayrac e Gossec, compuseram Oferta à liberdade,
Cena religiosa na Marselhesa.1* Essa “cena religiosa” foi levada de dentro
dos teatros para os campos do exército. Coros de mulheres se ajoelhavam
diante da estátua da liberdade, cantando “amour sacre de la patrie [...]”
corno se fosse serena oração, para então se erguerem cantando o verso final
com um acompanhamento de percussão que “faria o pavimento das ruas
acorrer às fronteiras”.2930O principal compositor do período, André Gretry,
parabenizou Rouget por criar “musique à coups decanonniQ [música a tiros
de canhão], e o seu Guillaume Tell,31 talvez a mais popular nova ópera da
26 Harsany, pp. 109-110 ss.; R. Reuss, La Cathédrale de Strasbourg pendant la Révolution, 1888. “Ein
feste Burg” foi ela própria adaptada para a revolução: M.-J. Bopp, “La Poésie politique pendant la
révolution”, Deux Siècles d’Alsace française, Estrasburgo / Paris, 1948, p. 184.
27 Bopp, pp. 195-196.
28 Tiersot, Histoire, pp. 68-71. Essa Offrande de la liberté. Scène religieuse sur le chant des Marseillaises
foi representada pela primeira vez em 30 de setembro de 1792.
29 Ibid., p. 71. V. também ibid., pp. 63-67; e L. Fiaux, La Marseillaise: Son Histoire dans l'histoire
des français depuis 1792, 1918, pp. 148, 346-347; também B. Shafer, Faces of Nationalism: New
Realities and Old Myths, NY, 1972, esp. p. 136; e, sob ponto de vista mais geral, J. Leith, “Music as
an Ideological Weapon in the French Revolution”, The Cannadian Historiai Association: Historiai
Papers Presented at the Annual Meeting, 1966, pp. 126-140.
30 Fiaux, p. 32.
31 J. Chailley, “La Marseillaise et ses transformations jusqu’à nos jours”, Actes du 89 congrès national
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 107
para o francês foram feitas por Nicholas Bonneville quando ele estudava
em Estrasburgo na década de 1780. Os primeiros românticos alemães ins
piraram o tipo inteiramente novo de peça que Bonneville escreveu em 1789
para comemorar a queda da Bastilha. Foi a Tragédie nationale dedicada
aos peuples-germains... peuples-fères [povos germânicos... povos irmãos]
dignos de ingressar numa nova société fraternelle,35 Bonneville solicitou a
Camille Desmoulins que se institucionalizasse esse gênero “nacional” como
uma espécie de censura aos “lacaios de Corte” que preferiam entretenimento
ameno desprovido de propósito moral.36
Estrasburgo se tornou o principal centro de correspondência no continente
para o Círculo Social de Bonneville, além de o local para tradução e publi
cação de suas obras para distribuição no mundo alemão.37 Charles Nodier,
mais tarde um pioneiro das organizações revolucionárias secretas e o inventor
do gênero antitradicional e parcialmente musical do melodrama, descobriu
a literatura alemã por meio das traduções de Bonneville, e dedicou a este
seus Ensaios de um jovem poeta. Inspirado por Schiller/Bonneville e pelo
“romantismo” (uma palavra primeiro empregada no círculo de Bonneville),38
Nodier transmitiu seus enredos inverossímeis e seus heróis iconoclastas ao
seu famoso pupilo literário, Victor Hugo.
O principal professor de Nodier em Estrasburgo foi Eulogius Schneider,
o mais original e imaginativo — e o mais violento — dos muitos alemães
que emigraram para a Estrasburgo revolucionária. Schneider, um ex-monge
capuchinho, tornou-se um Iluminista em Neuwied e um professor popular
em Bonn até ser demitido acusado de heresia em junho de 1791.39 Ele liderou
50 N. von Wrasky, A. G.E Rebmann. Leben und Werke eines Publizisten zur Zeit der grossen französichen
Revolution, Heidelberg, 1907.
51 Mathiez, Étrangers, pp. 112-117,142,153-157. Palmer observou corretamente (Age, vol. ii, p. 117)
que “os revolucionários estrangeiros [...] permanecem um dos mistérios da Revolução Francesa”.
Nenhum aspecto desse mistério foi menos estudado que o impacto, na França, da maior nação entre
as suas vizinhas, a alemã. Um dos poucos estudos que pelo menos aponta o problema é o de S. Stern,
Ana charsis Cloots der Redner des Menschengeschlechts. Ein Beitrag zur Geschichte der Deutschen
in der französichen Revolution, 1914.
52 Cloots, La République, p. 190.
53 Bonneville, Les Vieux Tribun et sa Bouche de Fer, p. 27; citado em Brunot, vol. ix, p. 633, nota 2.
54 Assim como o seu incendiário “Prise des armes”, La Chronique, 1972, maio, pp. 94-101.
55 Appel au genre humain, par Anacharsis Cloots, représentant du people sauveur, s/d., p. 20. Essas
palavras em caixa alta encerram o panfleto.
56 Herdei; Sämtliche Werke, 1891, vol. 5, p. 510; R. Ergang, Herder and the Foundations of German
Nationalism, NY, 1931, pp. 110-111. A possibilidade de que Barruel possa ter de fato tomado a
expressão de algum emprego anterior por Herder ou outro alemão é robustecida pela análise que
Palmer faz de sua obra como quase que exclusivamente baseada em fontes e autoridades alemãs:
Age, voi. li, pp. 251-254.
112 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O Santo da Picardia
57 Declaração de 1803, citada em Harivel, Bonneville, Cf. pp. 77-118a respeito das influências literárias
alemãs na França desde o início da década de 1780.
58 Palmer, Twelve, pp. 3-6; sobre Saint-Just, pp. 9-10, 73-77; e, sobre sua missão a Estrasburgo, pp.
177-201.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 113
...original, original...
Je veux vivre à mon sens désormais
Narguer, flatter, parler, me taire, rire
Aimer, haïr!
[...original, original...
Quero doravante viver do meu jeito
Desafiar, cortejar, falar, me calar, rir
Amar, odiar!].65
67 Ibid., pp. 71,117,94 sobre UEsprit de la révolution, concluído ao fim de 1791; sobre De la Nature,
de l’état civil, de la cité ou la règle de l’indépendence, que Abensour data de algum momento entre
setembro de 1791 e setembro de 1792, v. a edição bilíngue realizada por A. Soboul: Saint-Just,
Frammenti sulle Intituzioni republicane, Turim, 1952.
68 Olliviei; pp. 69-70.
69 Ibid., pp. 228-229.
70 Frammenti, p. 133.
71 Ibid., p. 174. Destaque em itálico feito por nós.
72 B. Baczko, Rousseau: solitude et communauté, Paris/La Hague, 1974, pp. 141-142. A primeira parte
desse rico estudo defende de modo bastante persuasivo a aplicação retroativa do abusivamente
empregado termo “alienação” a Rousseau; e a segunda parte defende a centralidade de um conceito
duplo de natureza como a negação daquilo que é e a afirmação do que podería ser. V. também E.
Reiche, Rousseau und das Naturrecht, 1935; e a respeito do impacto sobre Saint-Just, S. Kritschewsky,
J.-J. Rousseau und Saint-Just: Ein Beitrag zur Entwicklungsgeschichte der sozialpolitischen Ideen
der Montagnards, Berna, 1895, esp. pp. 30-31.
116 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
que uma pessoa faz é um paliativo. Deve-se esperar por uma doença geral
grande o suficiente para que a opinião geral sinta a necessidade de medidas
capazes de fazer algum bem. O que produz o bem geral é sempre terrível” 79
A imagem que criou da nação como um corpo único tornou qualquer
perda de território coisa tão dolorosa quanto uma amputação. No início
da primavera de 1793, ele viu a nação ameaçada de morte “caso a divisão
se instalasse no território”,80 e assim partiu para a primeira de três missões
especiais com o objetivo de organizar a resistência nas províncias vulnerá
veis. Ao trabalhar no Comitê Constitucional da Convenção, fracassou em
sua campanha para criar um governo executivo de 48 membros colhidos no
nervo central de cada departamento; mas saiu vitorioso ao conseguir inserir
na Constituição de 1793 uma previsão contra jamais se firmar paz com um
poder estrangeiro que esteja ocupando algum território francês.81
No seu grande discurso de 10 de outubro de 1793 em defesa de uma di
tadura revolucionária, Saint-Just denunciou todo governo tradicional como
um “mundo de papel”:
84 D. Hamiche, Le Théâtre et la Révolution, 1973, p. 174; para o texto, pp. 269-305. Sobre as
representações provincianas e imitações, v. M. Dommanget, Sylvain Maréchal. L'égalitaire, “l'homtne
sans dieu”. Sa vie, son oeuvre (1750-1803), 1950, pp. 258—273, esp. pp. 260-261.
A imagem da “palavra revolução” como “tromberà do Juízo Final” a ressoar “nos quatro cantos
da Europa” já havia sido usada em maio de 1791 no Révolutions de Paris para o qual Maréchal
escrevia (A. Aulard, The French Revolution. A Political History, NY, 1910, vol. 1, p. 257). De
maneira independente, em 1793 o radical alemão Georg Foster escreveu que “a lava da revolução
está fluindo e já nada poupa”. Julku, “Conception”, p. 251.
85 Seção de Organi que descreve o “santo arrepio” de contemplar a lava dentro do Monte Etna, “onde
o Terror mora”, capaz de pôr fim ao “sono dos tiranos”. Ollivier, p. 52.
86 “Dans le temple de la Raison, / Aux yeux de la nature, / Je viens me mettre à l’union, / Abjurer
l’imposture”. La fête de la raison. Opéra en um acte, 1794, p. 20. Copias dessa e de outra ópera
pouco conhecida de Maréchal-Grétry, Denis le Tyran. Opéra en um acte, 1794, estão presentes em
IA.
87 Ollivier, pp. 36-37.
88 O conhecimento que se tem dessa obra advém apenas da resenha de uma apresentação publicada na
Gazette Nationale ou le Moniteur Universel, 22 de outubro de 1793 (reimp. 1847, vol. 18, p. 171),
na qual o autor é identificado apenas como “cidadão Saint-Just” e o compositor, como “Mengozzi”.
Este último é sem dúvida Bernardo Mengozzi; e o primeiro, provavelmente o líder revolucionário,
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 119
tal qual A. Soboul defendeu ao chamar minha atenção para essa notícia. Outro Saint-Just, contudo, o
cunhado de Cherubini, depois escreveu óperas de teor mais ameno com colaboradores franceses: v. A.
Pougin, L’Opéra-comique pendant la révolution de 1788 à 1 SOI, Genebra, 1973, pp. 207,213,247.
89 Ollivier, p. 233; Oeuvres (Gratien), p. 292.
90 Oeuvres (Gratien), p. 306.
91 Schneider foi preso no dia seguinte ao seu casamento, tendo Les Bas desempenhado um papel
invulgar: Harsany, Vie, p. 310, nota 628; Mathiez, Étrangers, p. 174.
92 Mathiez, Étrangers, pp. 94—98. Eia parece ter sido vítima da aplicação retroativa de um conceito
até então desconhecido, segundo o qual a “cidadania” de um país era vista como incompatível com
a comunicação com representantes de outro país.
120 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
97 Abray, p. 56.
98 Citado de um relatório de A. Amar em nome do Comitê de Segurança Geral em Abray, p. 57.
99 Censer, pp. 96-97.
100 Sobre as gravuras em água-forte (com temas cotidianos e distribuídas rapidamente) como resposta
popular aos aristocráticos desenhos entalhados do período revolucionário, v. H. Mitchell, “Arte and
the French Revolution: An Exhibition at the Musée Carnavalet”, History Workshop, 1978, inv., esp.
pp. 127-129.
101 Thompson, Revolution, p. 553.
102 14 de dezembro de 1793, em Oeuvres completes äe Saint-Just (ed. c. Vellay), 1908, voi. n, p. 161,
a ecoar sua reclamação de que “as leis são revolucionárias, aqueles que as aplicam não o são”.
Relatório para a Convenção em 10 de outubro de 1793, em Oeuvres (Gratien), p. 174.
122 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
103 De acordo com E. Hamel, o primeiro biógrafo de Saint-Just e um dos mais dispostos a encontrar
companhias femininas para ele a todo momento, em Ollivier, p. 505.
104 Relatório para a Convenção sobre facções, 13 de março de 1794, em Saint-Just, Discours et Rapports
(ed. A. Soboul), 1957, p. 171; e o início de sua famosa última defesa de Robespierre: “Je ne suis
d’aucune faction; je les combattrai toutes” [Não faço parte de nenhuma facção; combaterei todas
elas]. Ollivier, p. 614.
105 Ibid., p. 510.
106 Tiersot, Fêtes, p. 41.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 123
Seja qual tenha sido o seu papel, é certo que Saint-Just manteve até o fim
um frio desprezo pelo “pó” da vida comum, pela “moleza” e preguiça daque
les que se entregam ao processo de corrupção, e não ao de regeneração.1’1
O “espírito da revolução” foi barrado não só pela “força das coisas” — da
qual ele com freqüência reclamava com impaciência; faltou também força
entre os próprios revolucionários — retrocesso do esprit de la révolution
para o bon esprit das salas de visita aristocráticas: “l’esprit é um sofista que
conduz todas as virtudes ao patíbulo”.111112
Dentro da orgulhosa cabeça de Saint-Just, à medida que se dirigia para la
sainte guillotine^ pode ter repousado a mais sublime de todas as contradições
do pensamento revolucionário: a necessidade de uma tirania da virtude para
prevenir o regresso de uma tirania cercada de vícios. Sua aparente tentativa
de passar por cima da Convenção usando o exército, sua revelação de que
César Augusto era o seu herói preferido da antigüidade, suas misteriosas
referências a Oliver Cromwell e a associação final que Robespierre fez entre
eie e Charles ix, autor do Massacre da Noite de São Bartolomeu113 — tudo
indica que esse reto santo, que não buscava poder pessoal algum, bem pode
ter se sentido impelido a legitimar o poder absoluto.
A idéia nacional de fraternidade alcançou seu ápice na execução de
Saint-Just logo após o suicídio de seu “irmão” revolucionário mais novo,
Le Bas. A idéia rival de igualdade comunitária surgiu durante a reação
termidoriana seguinte. Seu líder, Babeuf, era, tal qual Saint-Just, natural da
Picardia e dotado de uma nostalgia similar pela simplicidade agrária e pela
antiga virtude em um mundo corrupto.114 Sua expressão cultural suprema
não foi a festa musical da fraternidade de Robespierre, mas sim o Manifesto
dos iguais em prosa de Sylvain Maréchal. Se Maréchal tirou a sua imagem
da revolução-como-vulcão de Saint-Just, absorveu de Robespierre a idéia
mais importante ainda de uma revolucionária Segunda Vinda. O conceito
de Maréchal da insurreição política de 1789—1794 como o prenuncio de
uma segunda revolução, desta feita social, emerge diretamente das palavras
A conspiração de Babeuf
127 Fournier se considerava o primeiro a ter transformado l'esprit publique em l'esprit militaire ao
incitar o Palais-Royal em 30 de junho de 1789; e, em seu projeto de um cercle d'éducation, sugeriu
as bases de uma escola militar revolucionária: Mémoires secrets de Fournier l'américain, 1890,
pp. 5, 42^44; também A. Espinas, La Philosophie sociale du xvm siècle et la révolution, 1898, pp.
219-223; e Dalin, Babef, pp. 508-514, que corrige algumas datações da introdução de Aulard às
memórias de Fournier.
128 Sobre os laços de Babeuf com Noë Makketros, Rose (Babeuf, pp. 138-139) corrige Dalin.
129 Citado em Dalin, p. 516.
130 Espinas, p. 225; Dalin, p. 516; Rose, pp. 138, 151.
131 Aulard, Paris pendant la réaction thermidorienne et sous le diréctoire, 1869, vol. 1, art. 2 da
introdução, p. x. Material recentemente descoberto sugere que Babeuf favorecia a liberdade de
imprensa ilimitada: R. Legrand, “Les manuscrits de Babeuf conservés à la Bibliothèque Historique
de la Ville de Paris”, Annales Historiques, 1973, out.-dez., esp. p. 573.
132 Carta a Joseph Bodson, 28 de fevereiro de 1796, em Dommanget (ed.), Pages choisies de Babeuf,
1935, p. 285. Ver também pp. 165-166.
Pesquisas mais recentes que atualizam as discussões sobre Babeuf feitas por Dommanget e Rose
são Dalin, “L’historiographie de Babeuf”, La Pensée, 1966, agos., pp. 68-101; e “The Most Recent
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 129
Foreign Literature on Babeuf”, Soviet Studies in History, 1973, primavera, pp. 353-370. A obra
Babef, de Dalin, aborda apenas o período prévio à conspiração. O primeiro volume (de quatro), que
trata dos escritos de Babeuf até 1789 {Sochineniia, 1975, vol. i), também foi publicado em francês
e inclui materiais ainda não publicados na União Soviética.
133 Prospecto em Pages, p. 228; para a justificação do novo título, pp. 169—171. A edição recentemente
reproduzida (1966) mostra que o novo lema começou a aparecer regularmente a partir do n° 19 do
Journal de la liberté de la presse; o novo nome, Le tribun du peuple ou le défenseur des droits de
l'homme, começou a ser adotado a partir do n° 23 corn urna nota explicativa de cinco paginas.
134 Resposta a Pierre-Antoine Antonelle datada de 1796, Pages, pp. 268-270.
135 Manifeste des plébéiens de 1796 publicado no Tribun du peuple, em Pages, pp. 250-264. Essas
expressões são repetidamente destacadas em itálico. O prospecto não datado do Tribun está em
Pages, pp. 228-231.
136 Citado de um texto de G. Lecocq, Un Manifeste de Gracchus Babeuf, 1885, em Pages, pp. 172-173.
Sobre o eclipse dos clubes jacobinos, v. J.-A. Faucher; Les Clubs politiques em France, 1965, esp. p.
23.
130 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
para a época) a indústria. Essa sociedade seria realizada mediante uma nova
base geogràfica e urna nova organização militante. Numa importante carta de
28 de julho, Babeuf elaborou aquele que talvez tenha sido o primeiro esboço
de um programa para completar a revolução, e antecipou a idéia posterior de
um espaço basilar protegido para agentes revolucionários.137 Ele fala alterna
tivamente de “nossa Vendéia”,138 “Montanha Sagrada” e “Vendéia plebéia”.139
“Avançando etapa por etapa, consolidando-nos à medida que ganhamos
território, podemos conseguir nos organizar”.140 Os “inimigos da raça hu
mana” temem a militância de “numerosas falanges” revolucionárias141 que
abriríam mão de suas ocupações tradicionais para fazer a batalha avançar.
Babeuf se evadiu para o passado em matéria de tempo e para o futuro
em matéria de consciência revolucionária ao trocar o ideal da legião romana
pelo da falange grega como modelo de luta revolucionária. Seus esforços para
criar uma “falange de sans-culottes” na primavera de 1793 fracassaram, mas
a imagem reapareceu na defesa que em outubro Saint-Just fez de novas for
mas de apoio sociomilitares ao governo revolucionário. Anacharsis Cloots,
o desenraizado “orador da raça humana”, viu o exército revolucionário da
França não como um corpo nacional, mas sim como novos gregos a lutar
por toda a civilização como “falanges de intérpretes, de tradutores da lei
universal”.142
Babeuf empregava o termo phalange para se referir às organizações
necessárias para a realização da disciplina social bem como militar de sua
nova communauté; e o termo viria a ter venerável história na linguagem
revolucionária subseqüente.143
137 C. Mazauric {Babeuf et la conspiration pour l’égalité, 1962, p. 116, nota 1 ) considera essa passagem
como situada no princípio de uma linha de pensamento sobre áreas fundamentais para a guerra
revolucionária que atravessaria Blanqui e chegaria até Mao.
138 Carta de 28 de julho a Charles Germain, Pages, pp. 219-220.
139 Pages, pp. 257, 264.
140 Ibid., pp. 219-220.
141 Ibid., p. 215.
142 Citado em H. Baulig, “Anacharsis Cloots conventionel”, La Révolution Française, 41, 1901, dez.,
p. 435.
143 Charles Fourrier, no início do século xtx, propôs que phalanges de cerca de 16.000 pessoas se
retirassem da sociedade para formar phalanstères, o equivalente socialista dos monastères. (A.
Bestor, Jr., “The Evolution of the Socialist Vocabulary”, Journal of the History of Ideas, 1948, jun.,
pp. 270-271.) Essas falanges defenderíam um idealismo social pacífico desde a primeira tentativa
realizada por um jornalista romeno na Bulgária (F. Manuel, The Prophets of Paris, Cambridge,
Massachusetts, 1962, pp. 208-209) até o confinamento de intelectuais da Nova Inglaterra em Brook
Farm. O mesmo termo foi resgatado pelos fascistas um século depois: das Falanga dos fascistas
poloneses que mais tarde se tornariam estalinistas (A. Bromke, “From ‘Falanga’ to ‘Pax’”, Survey,
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 131
1961, dez., pp. 29—40) às unidades de elite (falanges) da bem-sucedida revolução militar de Franco
contra a República Espanhola.
Mas a principal linha de continuidade no emprego do termo — e que era mais fiel a Babeuf
— se encontra em Filippo Buonarroti, o discípulo e futuro biógrafo de Babeuf, ele próprio um
revolucionário, sobre o qual teremos muito a dizer mais à frente. Os seguidores de Buonarroti iriam
tão longe, a ponto de estabelecer a flamenga Phalange flamande Anneessens da década de 1830. (A.
Galante Garrone, “Buonarroti en Belgique et la Propagande Égalitaire”, em Babeuf et les problèmes
du Babouvisme, 1963, esp. pp. 221-225; fundamentando-se bastante em J. Kuypers, Les Égalitaires
en Belgique, Buonarroti et ses sociétés secrètes, d’après des documents inédits, 1824-1836, Bruxelas,
1960.) Auguste Blanqui defendia uma phalange homogênea de ativistas capazes de prover liderança
militante, de agir como “fórceps da revolução” (Marx e Engels, Sochineniia, voi. ii, p. 596), ao
passo que o líder comunista alemão Wilhelm Weitling mobilizava, no início da década de 1840,
uma “falange fraterna” em prol de igualdade entre os emigrados em Londres.
Bakunin, em sua correspondência de 1870 com Nechaev, dizia que os estudantes revolucionários
russos da década de 1860 eram “uma verdadeira juventude [...] sem status nem lar”, os quais
poderiam viabilizar a necessária “falange” para a “revolução do povo”. (Carta de Bakunin a
Nechaev em 2 de junho de 1870, primeiro publicada por M. Confino em Cahiers du Monde Russe
et Soviétique, 1966, out.-dez., p. 626.)
A recorrência desse termo bebeuvista-buonarrotiano pode ser mero acaso; e as genealogias
revolucionárias são sabidamente falhas. Mas há na “falange” original de Babeuf — em especial tal
como retrospectivamente idealizada por Buonarroti — uma interessante antecipação da paixão por
pureza — e por expurgo — do revolucionário profissional moderno.
144 Babeuf, Pages, pp. 249-250. A cifra de 2.000 membros é dada apenas por Buonarroti. Para uma
discussão crítica e concisa, v. D. Thompson, The Babeuf Plot, L, 1947, p. 21 ss.
145 Pages, pp. 265-267.
146 “Manifeste des Plébéiens”, em Pages, p. 256, e para o texto, pp. 250-264. O Manifeste des enragés
de 1793, escrito pelo padre revolucionário Jacques Roux, não era a princípio intitulado assim e não
tinha a estrutura sistemática da obra de Babeuf. V. Dommanget, Jacques Roux, Le curé rouge, s/d.,
p. 53, e texto as pp. 83—91.
132 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
147 Mazauric, pp. 138-140. Ele concorda com a refutação feita por A. Saitta das sugestões de que tenha
havido discordância séria dentro da conspiração. Saitta demonstra que pelo menos seis dos sete
membros estavam de acordo quanto ao essencial do programa de Babeuf. “Autour de la conjuration
de Babeuf, Discussion sur le communisme (1796)”, Annales Historiques, 1960, n° 4, p. 426.
148 V. P. Bessand-Massenet, Babeuf et le parti communiste en 1796, 1926, p. 28; também Mazauric, p.
139.
149 Batedor no sentido militar da palavra: o soldado que vai à frente da tropa — nt.
150 O título completo era L’Éclaireur du peuple, ou le défenseur de 24 millions d’opprimés. V. Mazauric,
Babeuf, pp. 190-191.
151 M. Dommanget, “La Structure et les méthodes de la conjuration des égaux”, Annales Révolutionnaires,
XIV, 1922, p. 282. Os fatos sobre a conspiração estão às pp. 177-196, 281-297.
152 De acordo com o relato detalhado, mas freqüentemente desprovido de fontes, em K. Bergmann,
Babeuf: Gleich und Ungleich, Colonia, 1965, pp. 346-351.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 133
tendência de pensamento que eie — assim como a maior parte dos admiradores dos primeiros
revolucionários — aparentemente acha ou desagradável ou embaraçosa. A invocação de Cristo
também ocorre no importante documento que pela primeira vez propõe sua Lei Agrária, a carta
de 10 de setembro de 1791 (Pages, p. 122); mas Dommanget exclui outras obras de Babeuf que
discutem esse tema.
157 G. Avenel, Anacharsis Cloots. L'Orateur du genre humain, 1865, vol. i, pp. 220-269; as idéias
religiosas de Fauchet estão em seu De la religion nationale, 1789.
158 Os jacobinos espartanos foram antes contrastados com os girondinos atenienses. V. Ozouf, Fêtes,
pp. 327 ss.; e E. Rawson, The Spartan Tradition in European Thought, Oxford, 1969.
159 Citado com múltiplas fontes em Dommanget, Maréchal, p. 308.
160 Correctifà la Révolution, 1793, p. 306. A obra foi publicada anonimamente, mas um poema assinado
com as iniciais S.M. está impresso no verso da folha de rosto (BN).
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 135
171 J. Godechot, “Le Babouvisme et l’unité italienne (1796-1799)”, Revue des Études Italiennes, 1938,
out.-dez., pp. 265, 270 ss. Algum material adicional se encontra em Onnis, Buonarroti, p. 38 ss., o
qual inexplicavelmente parece não fazer nenhum uso do artigo de Godechot.
172 Godechot, p. 268, para o texto de uma diatribe contra Buonarroti endereçada do exército ao
ministro de relações exteriores em 9 de abril de 1796: “ele não sabe nada das coisas do mundo [...]
ele persegue uma missão cuja grandiosa meta é inteiramente indeterminada”.
173 Ibid., p. 272. O amigo de Buonarroti era o “comissário revolucionário” do exército napoleònico.
Tanto o seu posto quanto sua queixa lembram os comissários políticos de exércitos comunistas em
nossa época contra as perspectivas limitadamente pragmáticas dos soldados profissionais.
174 Ibid., pp. 273-283.
175 M. Kuziel sugere uma possível influência babeuvista em Próby powstancze po trzecim rozbiorze.
1795-1797, Cracóvia / Varsóvia, 1912, p. 253. I. Miller enfatiza as raízes nativas polonesas:
“Vozzvanie Frantsishka Gozhkovskogo”, in Iz istorii sotsial’nopoliticheskikh idei. Sbornik. statei k
semidesiatipiatiletiiu Volgina, 1955, pp. 365-375.
138 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O comunismo de Restii
cósmicas, sociais e sexuais que ninguém até agora conseguiu catalogar in
teiramente. Seus escritos prenunciaram tudo que vai entre viagens interpla
netárias e energia atômica, e abrangeram praticamente qualquer fetiche ou
perversão sexual imaginável.180
Incansável, a energia erótica o tornou tão compulsivo quanto criativo. Vivia
possuído pela mística do novo meio de comunicação jornalístico — inventan
do centenas de novas palavras e uma variedade desorientadora de formatos
tipográficos. Sua ligação com a imprensa era quase fisiológica. Trabalhou
por muitos anos como compositor tipográfico e freqüentemente compunha
ele próprio suas obras diretamente em sua prensa caseira sem manuscrito
algum.181 Todo e qualquer aspecto da produção formal de uma obra literária
contribuía para a sua mensagem total. Sua escolha de tipografia, o uso de
itálicos, o abuso de maiúsculas (freqüentemente no meio das palavras), seu
emprego errôneo de acentos e uma infindável invenção de pseudônimos e
neologismos182 — tudo isso refletia um fascínio quase religioso pela produção
da palavra impressa.
Para os partidários da comunidade igualitária, a legitimidade advinha da
imprensa. A única atividade política de Restii durante o período revolucionário
foi sua tentativa, a partir de 1789, de organizar uma associação profissional
para pintores e tipógrafos.183 Suas obras oferecem um panorama inigualável
da vida das classes baixas. Distinções entre fato, ficção e fantasia eram postas
de lado pelo seu transbordante fluxo de consciência. Restii permaneceu o
mais puro tipo de intelectual autocentrado desde os seus dias de juventude na
Borgonha rural até os seus anos finais de andarilho noturno em Paris. Fosse
quem ele fosse, Restii viveu apenas no mundo de palavras que ele mesmo
criou, o seu labirinto de monólogo.
Em 1785, Restif publicou uma resenha de um livro descrevendo um
experimento comunal na Marselha. Citou uma carta de 1782 do autor do
livro, que descrevia a si mesmo como um auteur communiste — a primeira
180 Esse aspecto profético de Restif é discutido em detalhes (embora às vezes com exageros) em
Chadourne, Restif.
181 Ioannisian, Idei, p. 181.
182 Nerval, pp. 111-112.
183 Proposto pela primeira vez em Le Thesmographe, The Hague, 1789,2a parte, pp. 511-514; discutido
em Ioannisian, “Utopiia”, pp. 180-181; e depois em Idei, pp. 219-222, com valiosos novos
detalhes servidos juntos à pregação ideológica desnecessária de que a obra tipográfica de Restif (ele
era uma espécie de artesão extremamente habilidoso) lhe teria dado uma espécie de perspectiva
protoproletària.
140 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
184 Les Contemporaines communes, ou aventures des belles marchandes, ouvrières, etc., de l'âge présent,
Leipzig, 1785, 2a ed., vol. xix, segunda paginação não numerada depois do parágrafo n° 69 (BM).
185 V. seu Règlement d'éducation nationale, 1789, pp. 3, 6-14(BN). Ele também enviou o projeto
para Volney, que o rejeitou. Baseava-se em um projeto anterior seu (pp. 6-7), e foi reafirmado e
aperfeiçoado no seu Généralif, maison patriarchale et champêtre, Aix, 1790 (BN). V. também seu
Alcoran républicain ou institutions fondamentales du gouvernement populaire ou légitime pour
l’administration, l'éducation, le mariage et la religion... par l'auteur de la communauté philosophe,
1794. J.-M. Quérard, La France littéraire, vol. 6, p. 167, descreve Hupay corno “um ardente discípulo
de Swedenborg”, mas isso não é nada evidente em seus escritos seculares, rousseuanianos.
186 Material presente em Ioannisian, Idei, p. 99.
187 Maison de réunion pour la communauté philosophe dans la terre de l'auteur de ce projet. Plan d'ordre
propre aux personnes des deux sexes, de tout âge et de diverses professions, pour leur faire passer
dans des communautés semblables la vie la plus agréable, la plus sainte et la plus vertueuse, Eufrates
(Aix) e Utrecht, 1779. Cópia em Houghton Library, Harvard. Ioannisian (Idei, p. 97) considera essa
obra como inteiramente perdida. P. Jacob (pseudônimo de Lacroix) reproduz o título com maior
correção, embora menos completo, do que Restii e Ioannisian: Bibliographie et iconographie de
tous les ouvrages de Restif de la Bretonne, 1875, pp. 209-210.
188 Maison, pp. 3, 34. Deveria se dar em um clima agradável bem distante do “tumulto” da cidade.
189 Ibid., p. 3, prospecto no verso da folha de rosto, e particularmente pp. 32 ss., 158-170, sobre os
morávios, que aparentemente ajudaram a publicar a obra em Utrecht.
190 Ibid., pp. 11-12, 87-88.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 141
Mas de onde viria a nova raça espartana? Existia alguém que pudesse
realmente aspirar estabelecer a “comunidade de governo moral-econômico”
baseado numa “comunidade de bens” igualitária?195 Não existe registro de
nenhuma tentativa séria nas proximidades de Marselha; mas há no texto
indícios fortes e verdadeiramente proféticos de que ele achasse que ela poderia
ser realizada com maior facilidade na Rússia.
Hupay — assim como muitos philosophes — foi inspirado pelos am
biciosos planos reformistas de Catarina, a Grande, protótipo de “déspota
esclarecida”. Os primeiros e pretenciosos escritos dela o levaram a crer que
fosse possível “pôr em prática as belas leis da República de Platão”, criar
“toda uma cidade de filósofos” que “seria chamada de Platonópolis”.196 Uma
comunidade ideal como essa poderia ser estabelecida com mais facilidade na
Rússia do que no Ocidente em razão de aquela ser uma sociedade autoritária
com poder de coerção, “na qual cada lorde poderia mais facilmente se tornar
pai e benfeitor de seus servos”.197
Hupay, contudo, era uma figura que recebia pouca atenção. Sua carta a
Restii de 1782 fora instigada pela leitura da obra deste último, Le Paysan
perverti, ou les dangers de la ville [O Camponês pervertido, ou os perigos
da cidade]. No quarto volume de sua obra, Restii anunciou a intenção de
191 Ibid., pianta da Maison, verso da p. 8, na qual esses dois nomes são os únicos em itálico.
192 Ibid., verso da p. 8.
193 Ibid., pp. 6, 26.
194 Ibid. p. 45.
195 Ibid., pp. 6, 221. Esse é o mais antigo uso da expressão communauté des biens.
196 Ibid., pp. 144-145.
197 Ibid., p. 146. Sobre o fascínio geral dos intelectuais ocidentais pela possibilidade de realizar reformas
radicais em solo russo no século xvm, consultar A. Lortholary, Le Mirage russe en France au xvnie
siècle, 1951.
142 A FÉ REVOLUCIONÁRIA; SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Tudo deve ser compartilhado entre os iguais. Cada um deve trabalhar pelo bem
comum. Todos devem tomar idêntica parte no trabalho.200
Sob muitos aspectos, essa foi a ilha utópica mais sofisticada a aparecer
na literatura pré-revolucionária. Descrevia não apenas a bondade inata dos
habitantes da Ilha de Cristina, mas também a compatibilidade de seu igua-
litarismo sem mácula com idéias avançadas levadas de “Megapatagonia”
(uma versão idealizada da França) para lá. Assim, o “Dèdalo francês” tentou
não apenas fugir voando da decadente França para a ilha paradisíaca, e sim
proteger uma sociedade igualitária do “povo da noite”, governando-a por
meio de um “Códice dos Megapatagônios”, de dezoito artigos, que decretava
a posse coletiva de toda propriedade e as obrigações uniformes de trabalho
que os habitantes oprimidos em segredo desejavam.201
Uma obra ainda mais ambiciosa do ano seguinte criou a expressão “co
munidade de bens” e sugeriu a “maneira como estabelecer a igualdade” em
“todas as nações da Europa”.202 Assim, Restii pôde fazer referência, em
correspondência com o autoproclamado “autor comunista”, a obras de sua
198 V. J. Childs, Restifde la Bretonne — témoignage et jugements. Bibliographie, s/d.; E Prigault, “Restii
de la Bretonne communiste”, Mercure de France, 16 de dezembro de 1913, pp. 732-739.
199 Contemporaines, vol. xix, segunda paginação não numerada, p. 3.
200 Citado em Ioannisian, Idei, p. 190, de La Découverte australe par un homme-volant ou le dédale
français. Nouvelle très philosophique, Leipzig, 1781, 3v.
201 Ioannisian, “Utopiia”, p. 184 ss. Nerval insinua (Illuminés, p. 267) que essa obra — bem como
suas idéias posteriores de viagens inter-planetárias — pode ter sido inspirada pela amizade com o
balconista Montgolfier.
202 L’Andrographe ou idées d’un honnête-homme, sur un projet de règlement, proposé à toutes les nations
de l’Europe, pour opérer une reforme générale des moeurs, et par elle, le bonheur du genre-humain,
The Hague, 1782, p. 82.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 143
autoria que já tinham levado suas idéias comunistas além do esboço presente
em Le Paysan perverti.
O comunismo pode em parte ser uma das novas idéias sopradas de volta
sobre o Atlântico pelo “vento da América” originalmente revolucionário.203
Tanto o “projeto” de Hupay quanto Le Paysan de Restii foram concebidos
em 1776. Em seu comentário à carta de Hupay, Restii argumentava que “o
povo dos irmãos da Filadélfia” tinha aberto a possibilidade para que houves
se “aquela união e aquela comunidade de governo moral e econômico [...]
que exclui toda distinção vã e externa”. Restii falava do futuro surgimento
de uma comunidade supranacional que poria fim à “rivalidade pueril que
confunde os estados e arrasta todos eles para a ruína e o crime”.204
Ainda mais crucial para o comunismo de Restii foi a sua intensa identifi
cação com o campesinato; os camponeses foram pervertidos pelas cidades,
mas retinham ainda a força moral para construir o comunismo. Às vésperas
da revolução, Restii escreveu um panfleto defendendo que os camponeses
fossem aceitos como um quarto estado nos Estados-Gerais;205 e, no primei
ro aniversário da queda da Bastilha, escreveu outro panfleto chamando a
atenção dos franceses campesinos que vinham a Paris por ocasião da Festa
da Federação para os males da cidade.206
Embora Restii se orgulhasse de não pertencer a nenhum partido ou clube,
seus escritos de início do período revolucionário parecem vislumbrar um
outro levante {soulèvement général) para apoiar seu amplo projeto de justiça
social: “Mettez toute la nation en communautés... faites une insurrection
générale, partagez” [Colocai toda a nação em comunidades... realizada uma
insurreição geral, compartilhai].207208
Após seu apelo ao comunalismo agrário feito aos Estados-Gerais em
1789, voltou-se ao fim de 1792 e início de 1793 para a Convenção com um
apelo em nome do que agora denominava plan de communauté général2^3
203 Sobre outros aspectos, v. o compêndio de C. Mancéron, The Wind from America, NY, 1978; P. Sagnac,
“Les origines de la revolution française: l’influence américaine”, Reune des Études Napoléoniennes,
1924, jan.-fev., pp. 27—45.
204 Contemporaines, v. xix, segunda paginação não numerada, p. 3.
205 Le plus fort des pamphlets. L’ordre des paysans aux États-généraux, 26 de fevereiro de 1789,
publicado sob o pseudônimo de Noilliac (BN).
206 Avis aux confédérés des lxxxiii départemens, sur les vantages et les dangers du séjour à Paris, 1790
(BN).
207 Citações de Le Thesrnographe em Ioannisian, Idei, pp. 214-215.
208 Ibid., p. 230.
144 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A conexão Bonneville
exemplos contemporâneos); Idei, p. 237; mas Gaspar Beaurieu, amigo de Restii, insistia com total
irresponsabilidade em 1794 (na nova edição de L’Elève de la nature de 1766, citação em Idei, p.
82) em que os “habitantes da Virgínia” davam exemplo admirável de trabalho colaborativo sem
propriedade privada.
223 A. Radischev, Puteshestvie iz Peterburga u Moskvu, Moscou/Leningrado, 1935, pp. 202-203;
discussão presente em Buachidze, pp. 62-64, em que se avança a hipótese de uma oculta simpatia
por Restii. O papel fundamental de Radishchev é afirmado não apenas por críticos soviéticos, mas
também por N. Berdiaev em seu Origins of russian communism, obra que caracteriza Radishchev
como o primeiro “fidalgo arrependido” a elevar a consciência moral à intensidade revolucionária.
Assim como muitos dos franceses, Radishchev foi profundamente influenciado por idéias proto-
românticas alemãs durante o período pré-revolucionário.
224 loannisian, “Utopiia”, p. 854, nota 2. A convocação feita em 1931 por loannisian para que se
realizasse uma investigação arquivística do problema permaneceu sem resposta até do próprio
loannisian.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 147
ser que tenha tido contato pessoal com Bonneville em Paris em dezembro
de 1790, ou ainda em abril de 1793, quando Maréchal sugeriu que Babeuf
aceitasse emprego de tipógrafo na imprensa do Círculo Social.
Exatamente ao mesmo tempo, Maréchal estava dedicado a um projeto
intenso de publicação na imprensa de Bonneville; e ambas as suas principais
obras de 1793, Correctif à la révolution e Almanach des républicains^ trazhm
a misteriosa indicação de “à Paris chez les Directeurs de l’Imprimerie du
Cercle Social” [“impressa em Paris pelos Diretores da Imprensa do Círculo
Social”]. Parecia assim que o próprio Maréchal era um dos “diretores” dessa
imprensa; e que esta, que continuava a publicar as obras de Maréchal e outros
babeuvistas, ligava de algum modo o círculo de Bonneville à conspiração
de Babeuf.233
Mais indícios importantes dessa ligação podem ser encontrados no igno
rado panfleto de Varlet, que apareceu em 1792 como o primeiro documento
a conter o imprimatur dos “diretores da imprensa do Círculo Social”. Seu
Projeto de um mandato especial e imperativo para aqueles deputados pelo
povo na Convenção Nacional alegava ter sido “impresso às custas dos
sans-culotes [sic]” e parecia defender pouco menos que uma revolução social.
Era uma advertência sobre os perigos da “tirania legislativa” em qualquer
assembléia central em uma nova república, na qual “carreiristas” podem
alegar “representar” o povo, ao passo que fracassam em satisfazer as suas
necessidades sociais e econômicas concretas. Para não trair aquilo que Varlet
foi o primeiro a chamar de “segunda revolução”, ele indicava sem rodeios
àqueles “deputados pelo Povo”: “Vocês cimentarão o pacto social [...] Lan
çarão as bases, até agora tão negligenciadas, da felicidade social”.234
233 Ibid., pp. 66-67. Babeuf começou a trabalhar de perto com Maréchal no início de 1793 e foi por
ele influenciado ao 1er suas obras na prisão no ano seguinte: Ioannisian, Idei, pp. 159-160; G.
Kucherenko, Sud’ba “Zaveshchaniia” Zhana Mel’e v xvm veke, 1968, pp. 141 ss., 165 ss.
234 Jean Varlet, Projet d’un mandat spécial et impératif, aux mandataires du people à la convention
nationale, 1792, pp. 22, 7, 9, 13, 15. Varlet não previu, contudo, a necessidade de medidas
igualitaristas radicais tanto quanto “o desaparecimento graduai da desigualdade excessiva” tão logo
fosse garantida a responsabilidade de legislaturas de grande importância perante as assembléias de
base: pp. 11—14.
A natureza e o alcance das atividades da imprensa do Círculo Social talvez nunca possam ser
aferidos em razão do incêndio que destruiu os arquivos do Palais-Royal; mas a imprensa durou
pelo menos até 1800 por meio do jornal Le Bien-Informé, editado por Bonneville e Mercier no
período 1797-1800 com o imprimatur de l’imprimerie-librairie du Cercle Social. Esse jornal (BN)
comparou Napoleão a Cromwell (v. a biografìa de Bonneville em Biographie Universelle, 1843, vol.
5, p. 38) e representa uma continuação da íntima colaboração que Mercier claramente mantinha
com a imprensa (ali publicando uma série de escritos, desde suas Fictions morales de 1792 até seu
Le libérateur de 1797).
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 149
235 Ibid., pp. 71-72. Dalin, o único estudioso a já ter ao menos levado em conta uma possível relação
Bonneville-Babeuf, conclui (em uma análise estranhamente superficial) que “não há dúvida de que
o Círculo Social não exerceu influência alguma sobre a formação da concepção revolucionária
comunista de Babeuf” (Babef, p. 325; repetido verbatim em “Cercle”, p. 73). Mas as investigações
de Dalin não embasam essa conclusão, nunca lidando com a natureza daquela concepção (ou, na
verdade, sequer com idéias, formas de organização ou dinâmica revolucionária). Ele geralmente ignora
o papel de Maréchal e Varlet, para não mencionar o de Restif; mostra pouca curiosidade com relação
à sobrevivência da Imprensa do Círculo Social; e parece ideologicamente inclinado a afastar Babeuf
sob todos os aspectos das opiniões menos radicais em matéria de sociedade de Fauchet e Bonneville.
Se, como é óbvio, a influência fosse de natureza organizacional e conspiratória, a completa ausência
de referências escritas a Bonneville (de quem Dalin admite que Babeuf era muito próximo: Babef,
p. 325) poderia ser um sinal de ocultação deliberada. Os papéis de Babeuf eram reconhecidamente
omissos do ponto de vista conspiratório.
Babeuf atacou Bonneville como “um falso tribuno do povo” depois que Bonneville fundou seu
Velha Tribuna do Povo em 1796 como um concorrente do novo Tribuna de Babeuf. Babeuf associou
Bonneville ao tribuno traidor Rufus Manlius, o qual “vendeu-se covardemente ao partido dos ricos
em Roma” para destruir o verdadeiro tribuno, Graco. Babeuf distinguia o breve período do autêntico
tribunado de Bonneville em 1789 de sua posterior decadência rumo à “intriga ministerial” e à
“dependência eslava” para com “Mirabeau e outros patrícios”. A excessiva raiva e o ato de Babeuf
de abolir sua assinatura como “Babeuf da Confederação dos Amigos da Verdade” podem denunciar
a técnica clássica de exprobrar um rival revolucionário durante o processo de apropriação de suas
idéias.
150 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Independentemente de qual fosse seu relacionamento pessoal, Babeuf claramente ecoava a linguagem
simbólica de Bonneville ao definir o propósito de sua organização. Babeuf se concentrou no impulso de
simplificação radical em um projeto político unidimensional quando sugeriu o conceito mais inclusivo
de um ponto “central” ou “perfeito” que poderia propiciar uma nova legitimação. Sua conspiração
convergiria para um point unique com localização precisa de espaço (o círculo dos conspiradores),
de tempo (a transformação social vindoura) e de sentimento (a permanente busca de satisfação
humana). O propósito declarado da conspiração de Babeuf era “assinalar antecipadamente um
ponto único, para o qual vocês deverão se dirigir sem divisão, modificações, restrições nem nuances;
ponto que será circunscrito por um círculo estreito de homens virtuosos, isolados de todos os que
poderíam opor opiniões divergentes e contraditórias — de tudo o que não pudesse ser fundido no
único e perfeito sentimento do mais alto grau de bondade”. Citado em J. Talmon, The origins of
totalitarian democracy, NY, 1970, p. 186.
CAPÍTULO 4
1 J. Roberts, The mythology of the secret societies, NY, 1972, oferece uma discussão inteligente (pp.
9-16) das razões para esse descuido em relação ao assunto. Por outro lado, a sua própria abordagem
pode levar o leitor desinformado a crer que o mito, em si mesmo, era a realidade principal, e não o
fenômeno.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 155
(Utopisti e Riformatori italini, 1794-1847, Florença, 1943, pp. 128-1 77) deve ser complementado
por P. Onnis Rosa, Filippo Buonarroti e altri studi, 1971, esp. p. 161 ss.
6 L. Basso, “Il Prospetto a stampa del ‘Journal Politique’”, Critica storica, voi. vi, 1967, p. 863.
7 Ibid.
8 L. Modona, “Un Numero del ‘Journal Politique*”, Critica storica, voi. vi, 1967, p. 866; e p. 868 ss.
9 E. Michel, “Le Vicende de Filippo Buonarroti in Corsica (1789-1794)”, Archivio Storico de Corsica,
voi. ix, 1933. A obra fundamental sobre esse período ainda é A. Galante Garrone, Buonarroti e
Babeuf, Turim, 1948. E. Eisenstein, The first professional revolutionist: Philippo Michele Buonarroti
(1761-1837), A biographical essay, Cambridge, Massachusetts, 1959, pp. 161-190, oferece um
valioso ensaio bibliográfico e uma boa narrativa geral. Investigações e publicações posteriores estão
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 157
adequadamente resumidas em Dizionario biografico degli italiani, 1972, vol. xx, pp. 148-161.
10 Os primeiros 32 números desse jornal raro (de 3 de abril a 27 de novembro de 1790) foram
reimpressos acompanhados de algumas informações biográficas em Bulletin de la société des
sciences historiques et naturelles de la Corse, Bastia, 1919, 1921, n° 389-392, 421-424. As páginas
têm numeração contínua e possuem um índice, que lhes foi apenso às pp. 221-268. A numeraçao
provavelmente seguiu até pelo menos as edições 36-37. V. nota à p. 219.
11 Carta aberta de Buonarroti em Giornale, 12 de junho de 1790 (reimpressa em Bulletin, pp. 112-113),
em resposta a um bispo que tinha escrito que os apoiadores do confisco de terras da igreja “fedem
a heresia social” (“da ogni parte puzzate di eresia sociale... ”) e ameaçam atirar os homens de volta
ao caos (“nello stato de natura”). Ibid., pp. 112, 119.
12 Citado em Onnis, Buonarroti, p. 213.
13 Discurso presente em Moniteur Universel, 30 de abril, comentado em Onnis, p. 213.
14 Citado em Onnis, p. 167.
158 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
19 Ibid., p. 138.
20 Ibid., pp. 87-88.
21 Discurso de defesa de Buonarroti, reimpresso em Onnis, p. 137.
22 Ibid.
23 Saitta, Buonarroti, vol. i, pp. 117-118.
24 Ibid., vol. i, p. 118, citando o principal memorando de Buonarroti sobre a organização revolucionária,
reimpresso em vol. il, pp. 91-116.
25 Ibid., vol. il, p. 93.
26 Ibid., vol. il, p. 140, para os comentários de Buonarroti sobre cette douce communauté como “algo
que não é impossível” de realizar e como um objetivo ao qual só “a leviandade, a depravação ou a
fraqueza” poderiam levar alguém a se opor.
160 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Ele poderia me ter sido muito útil na organização do Reino da Itália. Poderia
ter sido um excelente professor. Era um homem de talento extraordinário: um
27 Detalhes sobre esse longo período (que encontrou algum consolo apenas no breve caso que teve
com Teresa Poggi) podem ser encontrados em Onnis, pp. 303-311.
28 M. Pianzola, “Filippo Buonarroti in Svizzera”, Movimento Operaio, 1955, jan.-fev., p. 123.
29 O relato mais completo sobre esses contatos é, no momento, D. Tugan-Baranovsky, “General Male,
‘obshchestvo filadel’fov’ i Napoleon”, Frantsuzsky ezhegodnik, 1973, 1975, esp. pp. 184-188.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 161
30 Citado em V. Dalin, “Napoléon et les Babouvistes”, Annales Historiques, 1970, jul.-set., pp. 417—418.
31 Ibid., p. 413.
32 O crescente temor da polícia em relação a Buonarroti e suas ligações maçônicas em Genebra
é documentado por M. Pianzola, “La mystérieuse expulsion de Philippe Buonarroti”, Cahiers
Internationaux, 1954, dez., p. 61; também “Svizzera”, p. 124.
33 A discussão básica de Saitta, Buonarroti, vol. I, pp. 79-119, é complementada por A. Lehning,
“Buonarroti and His International Secret Societies”, International Review of Social History, vol. I,
1956, pp. 112-140, esp. pp. 119-120; estudos mais recentes são indicados por Godechot, “Travaux
récents”, p. 1, notas 25-30.
162 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O ambiente da maçonaria
34 Segundo a etimologia implicitamente adotada pelo autor, o uso da palavra “mason” para designar
“maçom” provém de um uso mais antigo, que designava “pedreiro”. — ne
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 163
Os rituais que davam acesso a cada novo grau de associação não eram,
como às vezes se sugere, iniciações infantis. Eram impressionantes ritos de
passagem a novos tipos de associação, com a promessa de acesso a verdades
mais elevadas da Natureza tão logo a venda fosse removida dos olhos no
cômodo interior da loja. Cada noviço deveria buscar se tornar um pedreiro
“livre” e “aperfeiçoado” capaz de 1er os planos do “Divino Arquiteto” para
“reconstruir o templo de Salomão” e de remoldar a ordem secular mediante
a força moral.
Era mais acessível a mobilidade ascendente propiciada pela fraternidade
ritualizada da maçonaria do que aquela que se encontraria no restante da
sociedade. O título maçom de “irmão” materializava na França parte da mescla
de burguesia e aristocracia sugerida na Inglaterra pelo uso do invejado termo
“cavalheiro”.35 Nos meios maçônicos, pessoas normalmente conservadoras
poderíam cultivar seriamente a possibilidade de uma Utopia36 — ou pelo
menos de uma alternativa ao ancien régime. Filipe de Orléans era o chefe
titular da maçonaria francesa (a Grande Oriente); e muitos dos freqüentadores
pró-revolucionários dos cafés do Palais-Royal eram seus “irmãos” maçons.
Nos primeiros dias da revolução, a maçonaria proporcionou grande parte
dos principais simbolismos e rituais — a começar com a recepção maçônica
sob uma “abóbada de espadas” feita ao rei no Hotel de Ville três dias antes da
queda da Bastilha.37 Compreenda-se, contudo, que a maior parte dos maçons
franceses antes da revolução “não tinham sido revolucionários, nem mesmo
reformistas, nem mesmo descontentes”;38 e, mesmo durante a revolução, a
própria maçonaria permaneceu politicamente polimorfa: “Qualquer elemento
social e qualquer tendência política poderia ‘se tornar maçônico’ caso assim
quisesse”.39 Mas a maçonaria propiciava um refúgio rico e relativamente não
tradicional para os novos símbolos nacionais (moedas, canções, cartazes,
35 V. a valiosa pesquisa de D. Ligou, “Un source important de l’histoire du xvme siècle. Le fond
maçonnique de la Bibliothèque Nationale”, Actes du 89 Congrès National des Sociétés Savantes
(Section d’histoire), 1965, p. 38.
36 J. Servier; “Utopie et franc-maçonnerie au xvm siècle”, Annales Historiques, 1969, jul.-set., pp.
409-413; também outros artigos nesse número tratam da questão dos laços da maçonaria com a
revolução.
37 Sobre o uso do voûte d’acier no 17 de julho, v. J. Palou, La franc-maçonnerie, 1972, p.187.
38 D. Mornet, Les origines intelectuelles de la révolution française (1715-1787), 1954, p. 375; vejam-se
comentários às pp. 357-387; bibliografia às pp. 523-525; e, fora da França, veja-se Billington, Icon,
pp. 712-714. A. Mellor; Les mythes maçonniques (1974), também minimiza a influência maçônica,
embora reconhecendo vagamente a influência do renascimento ocultista no movimento revolucio
nário.
39 Ligou, “Source”, p. 46, também p. 49.
164 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
40 O assunto nunca foi estudado em maior profundidade. Para as melhores discussões, porém em
termos gerais, veja-se O. Karmin, “L’influence du symbolisme maçonnique sur le symbolisme
révolutionnaire”, Revue Historique de la Révolution Française., 1910, vol. i, pp. 183-188
(particularmente sobre numismàtica); J. Brengues, “La Franc-Maçonnerie et la fête révolutionnaire".
Humanisme, 1974, jul.-ago., pp. 31-37; Palou, pp. 181-215; R. Cotte, “De la Musique des loges
maçonniques à celles des fêtes révolutionnaires”, Les Fêtes de la Révolution, 1977, pp. 565-574; e a
avaliação mais exata de Ligou, “Structures et symbolisme maçonniques sous la révolution”, Annales
Historiques, 1969, jul.-set., pp. 511-523.
Sobre a grande influência das estruturas maçônicas sobre os rituais provinciais civis, ver, por exemplo,
F. Vermale, “La Franc-maçonnerie savoisienne au début de la révolution et les dames de Bellegarde”,
Annales Révolutionnaires, vol. ni, 1910, pp. 375-394; e especialmente a obra monumental, referente
ao departamento de Sarthe, a qual eleva o nível de pesquisa muito acima de tudo que já se fez
referente a Paris: A. Bouton, Les Franc-maçons manceaux et la révolution française, 1741-1815,
Le Mans, 1958. Veja-se seu volume posterior Les Luttes ardentes des franc-maçons manceaux pour
l’établissement de la république 1815-1914, Le Mans, 1966.
No Novo Mundo, onde os elos entre as organizações maçônicas e as revolucionárias eram
particularmente fortes, partidos revolucionários adversários às vezes adotavam nomes de ritos
adversários. No México, por exemplo, escoceses (“centralistas” pró-ingleses oriundos de lojas do
rito escocês) combatiam os yorquinos (federalistas oriundos do rito de York, criado pelo primeiro
embaixador norte-americano, Joel Poinsett).
V. A. Bonner, “Mexican Pamphlets in the Bodlein Library”, The Bodleian Library Record, 1970,
abr., pp. 207-208.
41 Ligou, “Source”, pp. 42-43, 46-47. La Parfaite Égalité surgiu em Franche Comté e, em geral, dava
apoio aos magistrados do Parlamento, opondo-se às lojas da “Sinceridade” dos intendentes da
realeza.
Devido ao extremo segredo que cercava esses grupos e à preocupação da polícia apenas com o
próprio Buonarroti, sabemos muito pouco acerca dos demais participantes; mas, ao que parece,
havia antigos amigos seus de Oneglia e exilados franceses como Jean Marat (relojeiro, irmão do
jornalista martirizado), com os quais Buonarroti vivia em Genebra. V. Onnis, Buonarroti, p. 225,
esp. nota 13.
42 O. Karmin, “Notes sur la loge et le chapitre, La Perfaite Égalité de Genève”, Revue Historique de
la Révolution Française, vol. xn, 1917, jul.-dez., pp. 314-324.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 165
O modelo iluminista
que “o que falta é a força para colocar em prática o que há muito já foi
afirmado pelas nossas mentes”.46
Essa força deveria vir de um tipo inteiramente novo de sociedade secreta,
a qual teria “muito mais das características de uma milícia em ação do que
de uma ordem com iniciações”.47 A finalidade de ascender na hierarquia dos
Iluminados não era tanto alcançar sabedoria quanto ser refeito como um
servo completamente leal a uma missão universal. “Não podemos usar as
pessoas tal como elas são, mas podemos criá-las”.48 O complicado processo de
recrutamento criado por Weishaupt envolvia a criação, nos neófitos, de uma
dependência psicológica em relação ao processo que os estava transformando.
“Insinuadores” (aqueles que trouxeram novos membros) deveríam proceder
“pouco a pouco em seus rodeios”: “[...] Primeiro suscitando desejos vagos
e imprecisos, para então, enquanto o candidato os saboreia, mostrar-lhe o
objeto que ele próprio irá agarrar com suas duas mãos”.49
O “objeto” era um cartão de deferência ao desejo do novo membro de
ser admitido ao próximo nível da ordem. Nesse momento de ansiedade, o
“insinuador” se tornava o “superior” e dificultava a ascensão do novato ao
próximo círculo. O “postulante” podería de fato passar por intenso escrutínio
durante um “noviciado” de dois anos, e um questionário de trinta páginas
lhe era aplicado sobre absolutamente tudo, desde seu gosto em matéria de
roupas até a sua posição de dormir. Esse processo de demolição psicológica
1967, n° 2, p. 247. O que existe de mais similar a um estudo moderno e acadêmico desse movimento
em geral ignorado é, provavelmente, L. Wolfram, Die Illuminaten in Bayern und ihre Verfolgung,
Erlangen, 1899-1900, duas partes.
R. von Dülmen, Geheimbund der Illuminaten. Darstellung, Analyse, Dokumentation, Stuttgart,
1975, oferece a mais completa lista de livros publicados sobre os Iluminados durante o período
revolucionário — um total de 88 títulos de 1784 a 1800: pp. 423-429. Rogalla von Bieberstein, Die
These von der Verschwörung 1776-1945, Bern/Frankfurt, 1976, faz o melhor relato das sucessivas
etapas percorridas até que se chegasse à padronização de uma teoria da conspiração dos Iluminados
(pp. 95-137) e mostra que, a partir do período napoleònico, começou-se a atribuí-la aos judeus (pp.
161-163). Uma tese de doutorado que me é inacessível é W. Hofter, “Das System des Illuminatenordens
und seine soziologische Bedeutung”, Heildelberg, 1956.
46 Weishaupt, Pythagoras oder Betrachtung über die geheime Welt und Regierungskunst, Frankfurt,
1795 (publicação original em 1790), p. 385; citado em Le Forestier, Les Illuminés de Bavière et la
Franc-maçonnerie allemande, 1914, p. 596.
47 J. B. Baylot, Le Voie substituée. Recherche sur la déviation de la franc-maçonnerie en France et en
Europe, Liège, 1968, p. 64. As obras pouco notadas de Landa e Baylot (valendo-se de materiais
maçônicos dos Países Baixos e de países eslavos, respectivamente) são os primeiros estudos, desde
Le Forestier, a ampliar tanto material quanto conceitualmente os horizontes deste problema.
48 Carta de Weishaupt a K. Zwack (seu colaborador original mais importante), 10 de março de 1778,
citado em Landa, p. 246.
49 Carta de Weishaupt a Zwack (é quase certo que a data de 21 de março de 1772 está errada), citada
em Baylot, p. 38.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 167
tinha o objetivo de estimular uma nova elite cujo propósito era “não con
quistar territórios nem impor autoridade, nem tampouco reunir os mais
ricos [...] [e sim] a conquista mais difícil dos indivíduos. A sua indiferença,
a sua submissão passiva ou obediente não é o suficiente. Deve-se ganhar a
sua inteira confiança, sem reservas, o seu entusiasmo”.50
A visão de mundo primitiva dos revolucionários como uma luta dualista
entre as forças das trevas e da luz pode ter se originado na concepção dos
seguidores de Weishaupt de que seu grupo de eleitos, de “iluminados”, travava
uma batalha contra “os filhos das trevas”, o nome categórico que davam ao
mundo exterior. O nome da ordem, no princípio, foi aparentemente indeter
minado (Perfectibilistas chegou a ser usado e Abelhas, a ser considerado);51
mas o nome Iluministas foi escolhido, ao que parece, com base na imagem do
sol que ilumina os círculos exteriores. No centro do círculo dos Areopagitas
ficava acesa uma vela simbolizando a fonte solar de toda iluminação. Esse
culto zoroastrista-maniqueu do fogo era de importância central para o em
geral eclético simbolismo dos Iluminados; o seu calendário era baseado no
calendário persa, e não nos modelos clássico ou cristão.52
Pseudônimos e símbolos, cujo sentido esotérico era preciso nas lojas
maçônicas, tornaram-se instrumentos deliberados de camuflagem para os
Iluminados. Ingolstadt era ao mesmo tempo Elêusis e Éfeso; Munique era
Atena; Viena, Roma. O nome do próprio Weishaupt na Ordem dos Ilumina
dos, Espártaco, o líder de uma revolta de escravos na Roma antiga, serve de
indicativo do seu comprometimento revolucionário; mas os seus principais
colaboradores originais tomaram para si os nomes do grego Ájax e do egípcio
Dánao, e outros nomes iam de Tamerlão a Confúcio.53
Os Iluminados tentaram utilizar a agitação e a confusão da maçonaria
para os seus próprios objetivos. Weishaupt ingressou para uma loja maçônica
de Munique em 1777; e tentou recrutar “comandos” (grupos de seguidores)
dentro de lojas da capital bávara. Ao fim de 1780, a campanha de Weishaupt
se espalhou por toda a Alemanha e às falsas ordens de cavalaria mais altas
da maçonaria com a entrada de Weishaupt para o círculo próximo do Barão
Adolph Knigge. Ele era natural de Hanôver e líder ocultista em Frankfurt,
50 Ibid., p. 38.
51 Ibid., p. 37; Wolfram, Illuminateti, parte i, pp. 16, 22.
52 Baylot, pp. 39—40, para esses e outros detalhes de terminologia, baseando-se em novas fontes.
53 Weishaupt, Einige Originalschriften des Illuminatenordens, Munique, 1787, pp. 1-2; Baylot, pp.
40-42.
168 A FÉ REVOLUCIONÁRIA. SUA ORIGEM E HISTÓRIA
57 Estimativa feita por Methiez em Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916, p. 433.
58 J. P. L. de la Roche, Marquês de Luchet, Essai sur la secte des illuminés, 1789, 2a ed., pp. 73-76.
A primeira e a segunda edições foram publicadas em 1789, ao passo que uma terceira, aumentada
por Mirabeau, foi publicada em 1792. V. Chevallier; Franc-maçonnerie, vol. I, p. 317.
170 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
63 Crítica feita pelo Mercure de France, 18 de dezembro de 1790, p. 121 (com referência dada errada
em Harivel, p. 155).
64 Les jésuites, vol. i, p. 26; também De l’Esprit des religions, pp. 88, 249.
65 Les jésuites foi quase imediatamente publicado em tradução alemã de Bode, o qual, por sua vez,
impressionara Friedrich Schiller com a história de uma conspiração jesuítica contra o Iluminismo (v. a
carta de Schiller de 10 de setembro de 1787, “Die jetzige Anarchie der Aufklärung wäre hauptsächlich
der Jesuiten Werk”, Grassi, p. 290). Desse modo, Bode influenciou tanto o dramaturgo alemão
como o seu amigo tradutor, Bonneville, o qual logo publicou outros dois trabalhos, ampliando o
argumento dos Iluminados ao denunciar os maçons de Rito Escocês e os jesuítas: La maçonnerie
écossaise comparée avec les trois professions et le secret des templiers e Les jésuites retrouvés dans les
ténèbres, discutido em Mathiez, Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916, p. 435, nota 2. Darnton
sugere que Restif, bem corno Mirabeau e Bonneville, podem ter sido o canal para a introdução de
idéias dos Iluminados na França: Mesmer, pp. 132-133. Elementos novos, mas não devidamente
apreciados, que sugerem o empréstimo de idéias dos Iluminados e ampla influência de Bonneville,
estão em Bayot, Voie, pp. 103-107.
Ollivier (Saint-Just, pp. 96-116, 149-150) nota influências alemãs na loja dos Amis Réunis à qual
Saint-Just pertencera antes da revolução, aponta para comunicação entre Saint-Just e Bonneville ainda
na Picardia, em 1791, e observa a ajuda prestada por um grupo ocultista à eleição de Saint-Just para
a Assembléia no ano seguinte. Desmoulins provavelmente absorveu idéias dos Iluminados enquanto
serviu como secretário de Mirabeau; e Bonneville dedicou a Desmoulins uma peça comemorativa
da queda da Bastilha se valendo de um fortmato romântico e maçom: v. BA, Rf 17043, pp. 1-4; Rf
17044.
Dietrich traduziu obras do Círculo Social de Bonneville para o alemão e possuía um interesse por
ocultismo que em nada deixava a desejar ao de seu rival na Estrasburgo revolucionária, Schneidet;
que fora um Iluminado ativo. O trabalho fundamental de Mathiez (Annales Révolutionnaires, vol.
vi, 1913, pp. 102-103; voi. vili, 1916, p. 437) pode ser complementado por P. Leuillot, “Bourgeoise
d’Alsace et franc-maçonnerie aux xviiie et xixe siècles”, Bourgeoisie alsacienne, pp. 343-376.
66 Não se fez nenhuma investigação séria sobre esses personagens desde Mathiez, Révolution et les
étrangers, pp. 61,117-118, 142. A sugestão de que Rebmann tenha servido de canal para as idéias
dos Iluminados não encontra embasamento na obra à qual Mathiez se refere: N. von Wrasky, A.
G. R Rebmann. Leben und Werke eines Publizisten zur Zeite der grossen französischen Revolution,
Heidelberg, 1907, embora a verdade seja que nunca se estudaram apropriadamente os muitos
aspectos desse e de outros ativistas alemães em Paris.
172 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
que bem pode ter sido o primeiro órgão revolucionário dos tempos modernos:
Apêndice Político a Todas as Gazetas e Demais Folhas...
O jornal se propunha a ir além da política ao proporcionar uma espécie
de guia pedagógico de leitura de todas as outras publicações. Os editores
insistiam: “O Apêndice não é uma gazeta, e sim um bem-pensado curso de
Direito, de Governo, de Economia Política, aplicado às atuais revoluções da
Europa”.71
Seu ideal era a “igualdade feliz”72 tal qual “pregada pelo cidadão de Gene
bra”73 e corporificada em uma “constituição social”.74 Esse ideal claramente
ia além da leitura puramente política de Rousseau cultivada pelos políticos
franceses do período revolucionário. O ideal social mais radical havia libe
rado sobre a Europa “a energia dos ventos, que ora sopram violentamente
contra a opressão”.75
O primeiro número elogiava o conceito de Weishaupt-Mirabeau de uma
“revolução da mente” como o objetivo apropriado ao “século dos Ilumina
dos”.76 Identificava esse tipo de revolução com os Iluminados da Baviera (“a
organização que o Conde Mirabeau comparou aos Sacerdotes de Elêusis”)77
e diferenciava o ideal deles de suas distorções espiritualistas. O editor seguia
a praxe dos Iluminados de adotar um pseudônimo pretensioso, “Lazzaro
Jona” (fazendo referência talvez a Lázaro, Jonas e o retorno dos mortos), e
cumprimentava, como um amigo, a “Abraham Levi Salomon”, o “compi
lador” {estensore) do Jornal Patriótico da Córsega.7* Uma nota de rodapé
identificava esse personagem como “o cavaleiro Buonarroti”, um “homem
de espírito”.79 Uma vez que se trata do único italiano contemporâneo men
cionado nominalmente no jornal, Buonarroti parece ter tido alguma relação
especial com o Apêndice bem como com o Jornal Patriótico, “o primeiro jornal
revolucionário em italiano”,80 que ele lançou logo após ter sido banido para
71 Appendice politica a tutte le gazzette e altri foglietti di novità o sia la spezieria de Sondrio, voi. il,
1790, p. 1. Museu do Risorgimento, Milão.
72 Ibid., p. 101.
73 Ibid., p. 4.
74 Ibid., p. 101.
75 Ibid.
76 Ibid., vol. I, 1789, pp. 78-79.
77 Ibid., p. 79.
78 Ibid., vol. II, p. 45; vol. i, pp. 134-135.
79 Ibid., vol. I, p. 135.
80 De acordo com Onnis, Buonarroti, p. 165. C. Francovich (Albori socialisti nel Risorgimento;
174 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Que a República seja o único proprietário; como uma mãe, proverá a cada um de
seus membros igual educação, alimento e trabalho.
83 Definição dada por Knigge em 1782, citada em C. Francovich, “Gli Illuminati di Weishaupt e l’idea
egualitaria in alcune società segrete del Risorgimento”, Movimento Operaio, 1952, jul.-ago., p. 562,
também pp. 556, 559.
84 Saitta, voi. n, p. 105; também discussão em vol. i, pp. 114-119. Novos documentos de período um
pouco posterior levaram M. Vuilleumier, em sua discussão de ligações maçônicas de ordem mais
geral, a supor que os Sublimes Mestres Perfeitos tivessem origem nos Iluminados: “Buonarroti et
ses sociétés secretes à Genève”, Annales Historiques, 1970, jul.-set., pp. 475—476, 494-497.
85 Citações do relato feito por Prati (Penny Satirist, 10 de março de 1938) reproduzidas com comentários
em Saitta, “Una conferma irrefutabile: il terzo grado Buonarrotiano”, Critica Storica, voi. vili, 1969,
pp. 709-710. Não existe nenhum testemunho direto além das afirmações gerais de Prati de que o
igualitarismo sócio-revolucionário de Buonarroti date de antes de seu envolvimento na Conspiração
de Babeuf. A datação dos escritos fragmentários de Buonarroti é coisa sabidamente incerta; e os
elementos de clara influência dos Iluminados em suas formulações podem tanto anteceder como
suceder a conspiração.
176 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
desaparecido da história [...] viveu apenas como lenda”.86 Parece haver boas
razões para crer que a influência dos Iluminados não era tanto uma “lenda”
quanto uma realidade percebida de maneira imperfeita.87 A observação per
plexa do mesmo historiador de que “a lenda policial” sobre os Iluminados
começou a “se desenvolver com maior amplitude e originalidade” no perí
odo napoleonico88 aponta para uma surpreendente fonte de influência dos
Iluminados. Suas idéias influenciaram os revolucionários não só através de
simpatizantes de esquerda, mas também por meio de oponentes de direita.
À medida que os medos da direita se tornavam um objeto de fascínio para a
esquerda, o iluminismo veio a ter uma paradoxal influência póstuma muito
maior do que exercera quando era um movimento vivo.
A paixão pitagòrica
Como vimos, uma imensa série de nomes e imagens foi tirada da antigüidade
clássica para legitimar a nova fé revolucionária. Dois nomes relativamente
negligenciados tiveram importância central para o desenvolvimento de uma
identidade ideal em meio aos intelectuais revolucionários: a imagem do re
volucionário como um Pitágoras moderno e de seu ideal social como uma
Filadélfia. Esses dois tópicos ilustravam o alcance proto-romàntico de um
distante ideal grego como uma alternativa majestosa às imagens romanas de
poder e conquista que haviam dominado a França à medida que esta, assim
como a Roma antiga, passava da república para o império sob o governo
de Napoleão. Pitágoras e Filadélfia representavam uma destilação dos altos
ideais fraternos comuns tanto às irmandades ocultistas da maçonaria e do
iluminismo quanto à mobilização idealista de jovens para defender a revolu
ção de 1792-1794. Esses dois tópicos reaparecem como leitmotifs em maio
à cacofonia de ideais e grupos mutáveis durante a recessão das esperanças
revolucionárias ao fim do século xvm e começo do xix.
O círculo
94 Ibid., p. 141. Poulet relaciona essa imagem à filosofia de Fichte da oposição entre “o eu e o não-eu”,
na qual a palavra se torna, afinal, o lugar para “a imposição do eu sobre o não-eu” e a tendência
do homem para a expansão do seu ego se torna “não apenas psicológica. Ela é ontològica”. Na
cosmologia resultante do romantismo, o homem é simultaneamente “centro em razão do princípio
ativo do seu pensamento, círculo em razão de sua extensão infinita”. Ibid., pp. 141, 145, 147.
95 Ibid., pp. 185-186.
96 M. Tourneux, Répertoire général des sources manuscrites de l'histoire de Paris pendant la Révolution
française, V, 1899, p. 5; e veja-se o modelo de planta feito por Mirabeau em exibição no Museu
Carnavalet.
97 Projetos respectiva mente de Étienne-Louis Boullée, Claude-Nicolas Ledoux e Jean-Jacques Lequeu,
ilustrados e comentados respectivamente em Kaufman, pp. 461—462, 523, 553. Outras citações e
títulos que servem aqui de embasamento podem ser encontrados às pp. 471, 483, 521.
Pierre Patte (não discutido em Kaufman) criou a mais extensa argumentação pré-revolucionária a
favor da moralidade das formas circulares como essencialmente mais igualitárias e comunais: Essai
sur l'architecture théâtrale (1782), p. 40 ss. Ver também D. Rabreau, “Architecture et fêtes dans Ia
Nouvelle Rome”, em Les Fêtes de la révolution. Colloque de Clermont-Ferrand (juin 1974), 1977,
esp. p. 364 ss.
180 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
98 Weishaupt, Einige, p. 8, além de p. 7; Nachtrag, p. 136, e também p. 158; e “Circulare an die Logen”,
em ibid., p. 133 ss.
99 Luchet, Essai, pp. 54, 67, 91; e os capítulos “Circles” e “Proofs used to Concentrate an Illuminist
member of a Circle”.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 181
O Cercle Social!
Espoir toujours plus doux, d’un pacte général,
Des peuples opprimés ta ligue fraternelle
Jura la délivrance, entière, universelle.
100 K. Epstein, The genesis of german conservantism, Princeton, 1966, esp. pp. 107 ss.; sobre o Zirkel
der Verderbnisse enquanto distinto do Circuì dos Iluminados, v. J. Popp, Weltanschauung und
hauptwerke des Freiherrn Adolph Knigge, Leipzig, 1930, pp. 82, 88.
101 Bonneville, Les jésuites, vol. i, p. 27, ilustra a cooptação radical do rosacrucianismo.
102 Les jésuites, vol. i, p. 17. Benjamin Franklin ganhou de Maréchal e outros o título distintivo de
“Pitágoras do Novo Mundo” depois de ter servido como “Venerável” na loja maçônica ocultista
das Noves Irmãs na Paris pré-revolucionária, junto a Bonneville, Sieyès, Desmoulins, Cloots, Danton
e Maréchal. (Citado a partir de Maréchal, Dictionnaire des athées anciens et modernes, 1800, em
A. Aldrich, Franklin and his french contemporaries, NY, 1957, p. 192; e, para citações francesas
anteriores que tomam Franklin como Pitágoras, v. pp. 225,232). “The True Light”, a mais notável
tentativa durante os primeiros anos da revolução de utilizar a estrutura típica de lojas da maçonaria
ocultista diretamente com propósitos revolucionários, também invocava o nome de Pitágoras: “A
maçonaria na França, a despeito de todo o brilhante mecanismo de seus graus, está muito longe da
moralidade da Escola de Pitágoras”. Carta circular de “La Vraie Lumière” de 5 de março de 1792,
defendendo a democratização da Grande Oriente: Chevallier, vol. i, p. 355.
103 Alekseev-Popov, p. 303.
104 “Les Nombres de Pythagore”, La Poésie de Nicolas Bonneville, 1793, pp. 199 ss. (BA).
182 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORKÆM E HISTÓRIA
[Ó Círculo Social!
Esperança sempre mais doce de um pacto geral,
Tua irmandade de povos oprimidos
Jurou libertação total, universal].
Thomas Paine, que viveu num ménage à trois corn Bonneville e sua esposa
de 1797 a 1802, acreditava que os druidas e os pitagóricos tinham se unido
para oferecer uma alternativa ideológica ocultista ao cristianismo. Seu “Um
ensaio sobre a origem da maçonaria”, escrito após seu retorno aos Estados
Unidos (com a esposa de Bonneville) e imediatamente traduzido para o
francês por Bonneville, insistia em que a adoração natural do sol cultivada
pelos druidas não havia desaparecido, mas apenas passado para dentro da
maçonaria.
No apogeu de sua influência em 1782, o Círculo Social começou a publicar
novas obras cripto-revolucionárias do sumo-sacerdote do misticismo de Lyon,
Louis-Claude de Saint-Martin. Esse inimigo de longa data do Iluminismo
havia subitamente descoberto no misterioso caos da revolução a possibilidade
de construir uma nova Jerusalém através de formas e números pitagóricos.
“Um radiante sol se desprendeu do firmamento e veio se instalar sobre Paris,
desde onde espalha sua luz universal”. O “novo homem” pode perceber essa
luz ao contemplar os círculos concêntricos que convergem sobre um ponto
dentro da chama de uma vela acesa, assim a se “reintegrar” com os elementos
Compartilhar a posse de tudo, nada para você mesmo [...] a igualdade da natureza
[...] a república dos iguais.110
parte dos livros de história. Eles não eram — como vimos — líderes militares,
mas jornalistas-intelectuais; eram influenciados não tanto pelo racionalismo
do Iluminismo francês, e sim mais pelo ocultismo do nascente romantismo
alemão. A obra de Maréchal era ampiamente distribuída no mundo de fala
alemã;112 mas, profeticamente, era mais prezada no distante Império Russo,
na atmosfera de vaga religiosidade e disperso reformismo sob o governo do
Tzar Alexandre i. A começar em 1804, as Viagens de Maréchal passaram a
aparecer em jornais governamentais oficiais em tradução russa ao ritmo de
um volume por ano. Outro jornal russo publicou, paralelamente, 150 “regras
de Pitágoras” tiradas do sexto volume de Maréchal.113 O agente russo de
Maréchal era o protegido de Nicholas Novikov, um ocultista encarcerado,
cujo pseudônimo era “amante da verdade” e cujas reuniões secretas ao fim
do século XVIII tinham dado início à kruzhkovsh china (mania de círculos)
da tradição radical moderna na Rússia.114
O sonho de uma organização pitagorica revolucionária animou o primei
ro fluxo de atividade política juvenil no Império Russo depois da derrota
de Napoleão. Um grupo de estudantes de Vilnius se reunia em encontros
noturnos em locais de beleza natural para ouvir a sabedoria ocultista de um
visitante “arquiiluminado” vindo de um círculo mais interno; e a tradição
de “pitagóricos livres” se espraiou pelas regiões do Império onde havia
influência polonesa.115 Na Ucrânia ocidental, três jovens russos formaram
uma “sociedade de Pitágoras” em maio de 1818 e estabeleceram as “regras
da seita pitagorica”.116 Propuseram os três clássicos círculos concêntricos,
112 Primeiro Maréchal enviou Voyages ao mesmo editor de Hamburgo que publicara a obra de denúncia
do Abade Barruel; e, embora afinal publicado em Paris, foi logo distribuído em Basel, na Breslávia,
em Metz, em Estrasburgo e em Viena — todos esses sendo lugares dentro ou perto do mundo de
fala alemã: Dommanget, Maréchal, p. 349.
113 Yu. Oksman, “Tifagorovy zakony’ i Travila soedinennykh slavian”’, em N. Druzhinin (ed.), Ocherki
po istorii dvizheniia dekabristov, 1954, pp. 485-487, 490. Outro estudo de Oksman (Vosstanie
chernigoskogo pekhotnogo polka, Leningrado, 1929, pp. 2, 35—36) discute a possibilidade de que
a “seita pitagòrica” na Rússia e seu desenvolvimento posterior tenham origem em Maréchal, assim
como o discute em sua resenha em Katorga i Ssylka, 1928, n° 2, pp. 174-175.
114 Sobre Novikov como pravda-liubov’ e a euforia da época de Alexandre, v. Billington, Icon, pp.
242-259. Sobre o protegido de Novikov, D. Dimitrevsky, o qual lançou a tradução russa serial em
seis volumes (Moscou, 1804-1810), v. Druzhinin, Ocherki, p. 485 ss. V. também G. Likhotin, Sil’vem
Mareshal’ i ‘Zaveshchanie Ekateriny II’, Leningrado, 1974, o qual confessa (p. 50) que o tema da
influência de Maréchal na Rússia “ainda aguarda um pesquisador”.
115 S. Landa, “U istokov ‘ody k iunosti’”, Literatura slavianskikh narodov, vol. i, 1956, pp. 29-33; e
discussão da transformação que corria paralela da sociedade secreta dos filômatas em Vilnius (à
qual Mickiewicz pertencia), p. 9 ss. Landa discute os ecos russos em “Konspiracje”, pp. 243-265.
116 Oksman, em Druzhinin, Ocherki, pp. 475, 502 ss. Sua argumentação no sentido de existir uma
tradição contínua é fortalecida pelas provas fornecidas e por sua relutância em sugerir elos poucos
substanciais.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 185
117 G. Luciani, La Société des slaves units, 1823-1825, Bordeaux, 1963, p. 60. Essa obra complementa
o pouco imaginativo M. Nechkina, Obshchestvo soedinennykh slavian, 1927,
118 Druzhinin, Ocherki, p. 508, além de pp. 502, 509 ss.
119 A. Ulybyshev, Son (1819), escrito em francês, traduzido e publicado por B. Modzalevsky, “K istorii
‘zelenoi lampy’”, em Dekabristy i ikh uremia, 1927, vol. i, pp. 53-56; v. também pp. 41-42. Para um
estudo recente e bem detalhado, que diferencia esse escrito de outras utopias russas sem, no entanto,
avaliar suas fontes pitagóricas, ver a tese de doutorado inédita de D. Neuenschwander; “Themes
in russian utopian fiction: a study of the utopian works of M. M. Shcherbatov, A. Ulybyshev, F. V.
Bulgarin e V. F. Odoevskij”, Siracusa, 1974. V. também Lotman, “Dekabrist”, Nasledie, pp. 56-60.
120 Citado em Nechkina, Dvizhenie, vol. I, p. 246.
121 T. Sokolovskaia, “Masonskie kovry”, More, vol. vi, 1907, abr., p. 424. A maçonaria russa desenvolveu
no mínimo dois conjuntos de símbolos geométricos como equivalentes às letras do alfabeto. V.
186 A FÉ REVOl UCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O triângulo
Sokolovskaia, “Masonskaia tainopis”, Russky Arkhiv, voi. ii, 1906, pp. 399-400.
122 E von Baader, Über das pythagoräische Quadrat in der Natur oder die vier Weltgegenden, Tübigen,
1798, em Sämtliche Werke, Aalen, 1963, vol. in, pp. 266-267; também p. 249. A influência de
Baader deu-se principalmente sobre a idéia conservadora de uma “Santa Aliança”, um triângulo de
poder no qual “três reis do Oriente” (um russo ortodoxo, um prussiano protestante e um austríaco
católico) eram unificados pelo Espírito Santo para proporcionar o “ponto de aurora” na Europa
pós-napoleônica. O livro de Baader, Über das durch die französische Revolution herbeigeführte
Bedürfniss einer neuern und innigem Verbindung der Religion mit der Politik, foi divulgado junto
aos três monarcas em 1814 e publicado em Nuremberga, em 1815. V. H. Schäder, Die dritte Koalition
und die Heilige Allianz, 1934, pp. 65-70; F. Büchler, Die geistige Wurzeln der Heiligen Allianz,
Freiburg, 1929, pp. 53-60, para essas e outras influências ocultistas alemãs.
123 Só em Le Mans, encontram-se selos triangulares de lojas que trazem a estrela do “triplo laço social”,
o olho da vigilância, o “E” de Elêusis e as palavras “Age d’Or” [Era de Ouro], que estão ilustrados
em A. Bouton, Les Francs-maçons manceaux et la révolution française, 1741-1815, Le Mans, 1958,
pp. 100, 252, 275,286.
S. Hutin discute o simbolismo revolucionário do triângulo equilàtero como um “delta luminoso”, com
cada um de seus lados a representar passado, presente e futuro: Les sociétés secrètes, 1970, p. 71.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 187
para além do qual ele não se atreverá a ir impunemente”.124 Essa idéia aparen
temente tradicional é revalidada para o liberto “homem sem Deus” ao vê-lo
como uma espécie de trindade secular: três pessoas em uma única substância.
Maréchal freqüentemente colocava sua alcunha HSD dentro de um triângulo.
Os primeiros revolucionários, ao estabelecer suas organizações nucleares,
revelaram uma mania por triângulos. A idéia original dos Iluminados de um
círculo interno de nove homens foi logo descartada como suscetível demais à
penetração policial, de modo que projetos posteriores de reorganização reparti
ram o círculo em três “triângulos” de três homens.125 Um homem de um grupo
interno recrutaria dois de um grupo externo para serem aprendizes; e assim
uma cadeia indefinida de organizações interconectadas podería ser formada.
Qualquer membro só precisava conhecer outros dois — de algum outro grupo
situado acima ou abaixo dele hierarquicamente — fora de sua célula de três.
Pode ser que esse processo de triangulação não tenha sido implementado
pelos Iluminados — ou sequer concebido por eles. Os projetos atribuídos aos
Iluminados foram publicados pelo governo da Baviera como parte de um re
latório, e talvez tenham sido editados para parecerem mais incriminadores.126
Mas, tenha a direita inventado essa tática da esquerda ou apenas a divulgado,
ela foi logo adotada pelos círculos revolucionários. Essa forma triangular de
organização, íntima e relativamente segura, reapareceu nos tempos modernos:
no Vietnã, na Argélia e até na União Soviética.127 Pouco após sua chegada a
124 Maréchal, Correctif, pp. 313-314. Maréchal também insistia em que, nos casamentos republicanos,
se abençoasse a natalidade cantando em resposta à Marselhesa: “Aux armes, couple heureux,
comblez votre destinî/Neuf mois, neuf mois;/Et donnez nous un fier Républicain!’*. Recueil d'hymnes
républicains et de chansons guerrières et patriotiques, s/1., s/d., p. 19 (BH).
125 “Tenho diretamente sob mim dois nos quais sopro toda a minha alma, e esses dois têm cada um
outros dois, e assim por diante. Assim posso, de maneira muito simples, pôr milhares de pessoas em
movimento e em chamas. Assim a Ordem deve ser organizada e operar politicamente’*. Weishaupt,
Originalschriften des Illuminatenordens, Munique, 1787, voi. n, p. 32. O esquema que acompanha
o seu comentário é reproduzido, com uma discussão despropositada e sem referência alguma, em
Webster, Secret Societies, p. 224. Sobre a longa história do triângulo como símbolo religioso, v. G.
Stuhlfauth, Das dreieck. Die geschickte eines religiösen symbols, Stuttgart, 1937.
126 Como sugere R. Eckart, “Aus den Papieren eines Illuminaten”, em Forschungen zur kultur-und
literaturgeschichte Bayerns, vol. in, 1895, p. 208. O fascínio pelos múltiplos triângulos interligados na
maçonaria ocultista chegou a gerar debates especiosos, por exemplo sobre se o “G” dentro do triângulo
central de um símbolo (que incluía seis outros triângulos triplos) fazia referência ao Grande Arquiteto
do Universo (Deus [God]), à mais alta ciência da Geometria, ao deus hermafrodita dos gnósticos ou
a uma usurpação da maçonaria pelo superior [geral] da Ordem dos Jesuítas (a posição defendida por
Bonneville). V. E. Lesueur, La franc-maçonnerie artésienne au xviiie siècle, 1914, p. 205.
127 O modelo de célula de três homens é particularmente prezado pelos revolucionários que, assim como
os primeiros revolucionários europeus de início do século xix, viam-se como veículos da educação
bem como da mobilização de um povo. Esse modelo se tornou fundamental para o comunismo
vietnamita; e, levado para a Argélia, foi ilustrado em imagens com o filme A Batalha de Argel. O
188 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖR1A
sistema de células de três homens desconhecidos entre si reapareceu em meio a grupos de dissidentes
da União Soviética ao fim da década de 1960: P. Sormani, “Dissidence in Moscow”, Survey, 1971,
primavera, pp. 18-19.
128 Saitta, vol. n, pp. 79-80.
129 Esboço de reconstrução do interior do santuário em Radice, p. 76.
130 Saitta, vol. n, pp. 78-79.
131 Lehning, pp. 119-120, complementado por E Ruchon, Histoire de la franc-maçonnerie à Genève de
1736 à 1900, Genebra, 1935, pp. 99-120. G. Weill, valendo-se de um boletim policial, identificou
Buonarroti, Vilard e Terray de Lyon como o “triângulo” original: Revue Historique, vol. LXXVi,
1901, mai.-ago., p. 261.
132 Sobre a ainda misteriosa Conspiración del triângulo, v. E. Astur, Riego, Oviedo, 1933, p. 102. V. de
la Fuente, Historia de las sociedades secretas antiguas y modernas en Espana, Barcelona, 1933, pp.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 189
134 Lantoine, Histoire, p. 220; R. Gould, “Military Mansory”, Ars Quatuor Coronatorum, vol. xix,
1901, p. 45. Um grupo anterior de “filadelfos”, de procedência independente, também havia surgido
em meio a ocultistas alemães: seguidores de Jacob Böhme em Londres. V. N. Thune, The Behmenists
and the Philadelphians, Uppsala, 1948.
135 O Rito Escocês Retificado foi estabelecido na França por meio de duas conferências (em Lyon, em
1778, com o auxílio do clero luterano, e em Wihelmsbad, em 1782, com o patronato do Duque
de Brunswick), sob a liderança do místico Jean-Baptiste Willermoz. V. B. Guillemain, “La Franc-
maçonnerie comme utopie: J. B. Willermoz”, em Le Discours utopique, pp. 259-268; A. Joly, Un
mystique lyonnais et les secrets de la franc-maçonnerie. 1730—1824, Mâcon, 1938.
A melhor história do surgimento do ocultismo dentro da maçonaria francesa antes da Revolução
está em Chevallier, Histoire, vol. i, pp. 211-256. O ponto de partida decisivo foi a fundação, em
Paris, da Grande Oriente em 1773 e o decréscimo da dependência dos franceses frente à maçonaria
mais casual e filantrópica de origem inglesa e que foi limitada a três graus. A proliferação dos graus
mais altos se iniciou com o sistema rival da maçonaria “escocesa”. O influxo na França de ocultismo
alemão — um assunto surpreendentemente negligenciado na literatura histórica francocêntrica —
com freqüência se deu dentro dos 33 graus do Rito Escocês.
136 E. Faguet, citado em J. Triomphe, Joseph de Maistre. Étude sur la vie et sur la doctrine d’un matérialiste
mystique, Genebra, 1968, p. 494, nota 22. Essa biografia vai além de todos os outros estudos sobre o
futuro reacionário ultramontanista que começou como um partidário da maçonaria de Rito Escocês,
quando este foi importado da Alemanha para a França, e que escreveu uma história da maçonaria
para o Duque de Brunswick, à época do congresso em Wihelmsbad: reimpressa em E. Dermanghem
(ed.), La franc-maçonnerie. Mémoire inédit au duc de Brunswick (1782), 1925. Sobre a difusão, de
maneira mais geral, de idéias místicas em Lyon, v. J. Buche, L'École mystique de Lyon. 1776-1847,
1935.
Um epiteto bastante apreciado em meio ao lyonenses era o de “amigo da verdade”; um grupo mais
secular de ocultistas em Avignon usava de sua forma grega, Philalèthes', e estes últimos podem ter
originado os filadelfos de Narbonne. Veja-se o esquecido estudo sobre o chefe dos Philalèthes, o polonês
Conde de Grabianka, escrito por J. Ujejski, Król nowego Izraela, Varsóvia, 1924; e a abordagem mais
geral e de âmbito europeu do grupo como uma “internacional mística” em C. Garrett, Respectable
folly, millenarians and the French Revolution in France and England, Baltimore, 1975.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 191
137 P. Schmidt, Court de Gébelin à Paris (1763—1784), Genebra, 1908, de forma alguma esgota o assunto.
Court foi um partidário parisiense da Reforma alemã, que ele considerava a primeira interrupção do
regime tirânico desde Nabucodonosor; e foi o primeiro francês a discutir as idéias artísticas proto-
românticas de Johann Winckelmann (Monde primitif analysé et comparé avec le monde moderne,
1775, vol. ni, p. 18). O fascínio de Court pela linguagem precedeu a busca similar de Herder pela
Ursprache [proto-lingua] do homem primitivo, o qual também foi influenciado pelo ocultismo: v.
R. Unger, Herder und der Palingenesiegedanke, Frankfurt, 1922.
138 Court de Gébelin, Monde, vol. in, pp. 284-285,450. Havia acréscimos extensos nos títulos de cada
um dos nove volumes que foram publicados em 1773-1784. A segunda edição de 1787-1789 foi a
maior, e foi geralmente esta que se estudou durante a revolução.
139 N. Hans, “Unesco of the Eighteenth Century. La Loge des Neufs Soeurs and Its Venerable Mastei;
Benjamin Franklin”, Proceedings of the American Philosophical Society, vol. xcvn, 30 de outubro
1953, pp. 515—516. Hans estima que no periodo de 1776—1792 o número de membros subia a 400.
Os registros da organização foram destruídos pela Gestapo na Segunda Guerra Mundial.
140 Monde, vol. vin, pp. 17-20.
141 Schmdt, Court, p. 153.
192 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
o que outros homens chamam universo, céu, globo. Que nossa escola, nossa
família adotiva, seja para nós um pequeno mundo (monde) tão harmonioso
quanto o grande mundo!”.152
Maréchal pode ter sido a fonte do termo monde, que Buonarroti por fim
estabeleceu para a sua própria organização.153 Mas os Filadelfos foram os
primeiros a realizar a visão de Maréchal; e sua história é melhor contada
através da figura excêntrica do seu fundador, Charles Nodier: o último dos
ocultistas germanófilos e literários a desempenhar papel pioneiro na forma da
organização revolucionária.
O pentágono de Nodier
152 Marechal, Voyages, vol. v, p. 354. Sua bibliografia se inicia (p. 367) enfatizando que philosophie et
monde, são duas “felizes expressões” que Pitágoras legou à humanidade.
153 O termo é empregado em uma proclamação de Isambert datada de 1820 {Charbonnerie,p. 94; texto
em Saitta, vol. ii, p. 138), embora a maior parte das autoridades no assunto acompanhem Saitta ao
datar a designação formal da organização buonarrotiana central como monde em torno de 1828.
Ninguém jamais propôs qualquer teoria, em toda a rica literatura sobre essas organizações, sobre
a origem do termo — que dirá então discutir possíveis empréstimos do monde de Maréchal ou do
monde primitif de Court.
154 Delatte, Constitution, pp. 15-17.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 195
o seu signo de amizade e reconhecimento; o seu selo era uma estrela de cinco
pontas com o número cinco gravado nela. As iniciações deviam acontecer às
cinco horas da tarde no quinto dia do mês, quando então os membros deveriam
encarar o sol poente — não importa onde estivessem — por cinco minutos,
a fim de renovar seus votos de fidelidade à irmandade. O poder de revisar os
estatutos era confiado aos “cinco irmãos mais velhos”.155
O modelo de célula com cinco membros surgiu, ao longo de período breve,
ao mesmo tempo na Irlanda,156 na Itália157 e na Polônia,158 e se tornou o tipo
de unidade revolucionária mais comum na França, a começar por um comitê
diretor e uma rede de brigadas de cinco homens que vieram a ser formados
155 Texto do seu Règlement de la Société des Philadelphes, 25 de novembro de 1797, presente em
Pingaud, Jeunesse, pp. 231-234, esp. artigos 5, 13-16, 22-23, 25. A estrela de cinco pontas foi
símbolo também das “Brigadas Vermelhas”, grupo terrorista italiano da década de 1970.
156 Os Irlandeses Unidos, organização fundada em 1791 para estabelecer contatos com a Revolução
Francesa, reunia católicos e protestantes submetidos a um centro secreto composto de cinco
homens, o qual buscava agir por meio de análogos comitês subordinados. A biografia clássica do
seu líder supõe “uma conexão próxima entre a maçonaria e os Irlandeses Unidos”, afirmando que
“um grande número de lojas maçônicas eram na prática comitês revolucionários” (F. MacDermot,
Theobald Wolfe Tone, 1, 1938, p. 89). Frost insiste em que “sempre houve bem poucos elementos
maçônicos” nos Irlandeses Unidos, mas que sua reorganização em 1795 criou um “sistema que
muito se assemelhava ao dos Illuminatti” (Societies, vol. i, pp. 62, 60). Segundo um ex-oficial de
polícia da Irlanda, houve extenso impacto dos Iluminados na organização (afirmação em grande
medida baseada em um panfleto de R. Clifford a que se dá pouca atenção, The Application of
Barruel’s Memoirs of Jacobinism to the Secret Societies of Ireland and Great Britain, L/Dublin,
1798), conforme relatado em H. Pollard, The Secret Societies of Ireland. Their Rise and Progress,
L, 1922. Veja-se especialmente o Apêndice A, “Illuminism and the United Irishmen”, pp. 257-263.
Nenhum desses estudos oferece documentação alguma.
Após a supressão dos Irlandeses Unidos em 1797-1798 e o ato de União com a Inglaterra em 1801,
os revolucionários irlandeses gradualmente se reorganizaram sob uma mais centrada Sociedade
Católica da Fita [Catholic Ribbon Society], cuja hierarquia em 1805 revelou haver um mestre
com cinco seguidores próximos, cada um dos quais com doze irmãos subordinados (E. Lennhof,
Histoire des sociétés secretes au xixe et xxe siècles, 1934, pp. 139-142). Esse modelo “apostólico”
de unidades de doze homens tendeu a prevalecer na Irlanda católica sobre o modelo pitagòrico.
Com efeito, os Irlandeses Unidos também se valeram de unidades de doze (T. Williams (ed.), Secret
Societies in Ireland, NY/Dublin, 1973, p. 63).
Ao que parece, técnicas irlandesas influenciaram outras comunidades religiosas de zona rural da
Sicilia, da Península Ibérica e da América Latina, onde soldados irlandeses às vezes se estabeleciam
(amiúde depois de servirem nos exércitos anti-napoleônicos patrocinados pela Inglaterra). Esse
assunto nunca foi objeto de estudo detalhado. Ver a respeito, contudo, F. Melgar, O’Donnell, Madri,
1946, pp. 7-20; S. Clissold, Bernardo O’Higgins and the Independence of Chile, NY/Washington,
1969, pp. 11-16, 63.
157 O grupo babeuvista da “Liga Negra”, ativo na Itália durante 1798-1799, estruturava-se em comitês
de cinco homens “dos mais puros” em cada grande cidade, mas também possuía um comitê executivo
composto de quatro e um comitê superior composto de oito homens, os quais somados totalizavam
apostólicos doze membros: Godechot, “Unité”, p. 278 ss.
158 Cf. a figura geométrica que toma ambos os lados de um panfleto que anunciava uma organização
conspiradora na Polônia quando do governo de Gorzkowski em 1796-1797, em especial a figura
que descreve um quadrado de 25 pequenos círculos que encerravam conjuntos de números primos
organizados na forma de círculos similares, figura tal qual reimpressa em Miller, “ Vozzvanie”, verso
da p. 370. V. comentários às pp. 369-375.
196 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
159 B. Pance, “Les Étudiants sous la restauration”, em Paris révolutionnaire, 1848, esp. pp. 267-268.
160 C. Johnson, Utopian communism in France. Cabet and the Icarians, 1839-1851, Ithaca/L, 1974,
pp. 74-75.
161 Segundo o piano de P. Pestel’, líder de um grupo mais extremista, a Sociedade Sulista, e profundo
estudioso de saberes maçônicos e pitagóricos: Vosstanie dekabristov, vol. v, p. 32.
162 Land e Liberty propuseram uma rede controlada por um “5” que incluía Chernyshevsky (v. Ya.
Linkov, Revoliutsionnaia bor’ba A. I. Gertsena i N. P. Ogareva i tainoe obshchestvo "zemlia i volta”
1860-kh godov, 1964, p. 242; E. Vilenskaia, Revoliutsionnoe podpoPe v Rossii [60-e xix v.], 1965,
p. 149; e A. Yarmolinsky, Road to Revolution, NY, 1959, p. 125).
A idéia de grupos de 5 provavelmente se originou junto a grupos de emigrados russos em Londres,
que por sua vez provavelmente a tinham tomado de empréstimo de Mazzini (F. Venturi, Roots of
Revolution, NY, 1960, pp. 267, 760-761, notas 37-39). A única fonte possível para essa transmissão
é A. Sleptsov, o principal canal de transmissão de idéias entre Londres e São Petersburgo (v. memórias
de Sleptsov em N. G. Chernyshevsky, issledovaniia i materialy, Saratov, 1962, esp. pp. 266-268).
Linkov (pp. 166-167, 242) segue a prática soviética usual de minimizar influência estrangeiras.
163 Os revolucionários eslavos do sul formaram a organização anti-turca Omladina com uma rede de
células que tinha por eixo uma junta diretora “honorária” de cinco homens (Garibaldi, Mazzini,
Cobden, Herzen e Chernyshevsky), e o revolucionário russo Ivan Bochkarev estabeleceu conexões ao
organizar os estudantes sérvios em São Petersburgo, em seguida viajando a Belgrado para participar
de um encontro da Omladina (Venturi, pp. 352-353). Uma organização posterior de mesmo nome
(a efêmera Omladina tcheca dos anos 1890) desenvolveu a metáfora da mão. V. A. Vesely, Omladina
a pokrokové hnutí, Praga, 1902, pp. 167-173; G. Simmel, “The Sociology of Secrecy and of Secret
Societies”, American journal of Sociology, 1906, jan., pp. 478-479.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 197
170 Mathiez, “Charles Nodier opiomane et épileptique”, Annales Révolutionnaires, vol. x, 1918, pp.
403-405; Biographie des suicides, 1808; Pingaud, p. 49.
Sobre seu amor pelo “teatro de fantasmas” e a sugestão de que este realiza a ressurreição de Mirabeau,
V. P. de la Vassière, “Charles Nodier conspirateur”, Le corréspondant, 25 de outubro de 1896, pp.
291-294, baseado em urna carta à sua irmã, ao que parece datada de 1802.
171 P. Shchegolev, “Filipp Buonarroti i ego kniga ‘Zagovor ravnykh’”, Leningradsky Universitet. Uchenye
zapiski. seriia istoricheskikh nauk, vol. lu, 1940, pp. 239-240.
172 Assim como Nodier, Bazin primeiro achou inspiração ao participar da Festa da Federação em 1790.
A única discussão séria sobre essa prolífica e esquecida figura está em A. Bouton, Francs-maçons,
pp. 212, 267-274.
173 Vassière, p. 295; Minet, p. 14; Viatte, Sources, vol. ii, p. 161; e A. Lebois, “Un Bréviaire du
compagnonnage: Le Fée aux Miettes de Charles Nodier”, Archives des lettres modernes, 1961, n°
40, p. 226. Nodier saudou Bonneville como seu “Colombo”, “o coração mais simples e exaltado
que jamais conheci em minha vida”, “o Isaias da Maçonaria”. Roberts, Mythology, p. 272, nota
60; Cros, Fauchet, p. 26; também Salomon, pp. 264-265; Hamenachem, p. 10.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 199
177 Essa possibilidade é sugerida pela discussão presente em Tugan-Baranovsky, “General Male”, p.
184.
178 Nodier, Souvenirs, p. 309; e toda a seção “Malet ou Oudet”, pp. 303-339.
179 Citado em Pingaud, Jeunesse, p. 204.
180 Nodier elogiou Oudet por ter recapturado a perdida “ligação com o divino” na linguagem humana,
quando “palavras já não mais estavam presas na ponta de uma pena e afogadas num tinteiro”.
Souvernirs, pp. 328, 331.
181 Apothéoses de Pythagore. Imprécations de Pythagore, Crotona (Besançon), 1808. V. Salomon, pp.
64-65, sobre o seu Dicionnaire raisonné des onomatopées françaises, produzido para livrarias e liceus
de Paris; e p. 68 sobre sua Théorie des langues primitives, que ao que parece ou não foi concluída ou
não foi publicada. Ao mesmo tempo, Bazin publicava periodicamente brochuras (Lettres françaises
e Lettres philosophiques) que parecem ter sido órgãos de propaganda mais direta dos filadelfos:
Bouton, p. 272; Baylot, p. 134.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 201
turai, a Esparta dos seus sonhos, o “último e comovente abrigo dos costumes
antigos”.186 A intensidade ideológica do seu ideal filadelfo original não foi
além de 1809, quando Oudet foi morto e Bazin preso, onde permaneceu
pelo resto do período napoleonico. Doravante, a atividade anti-napoleônica
entre os franceses se concentraria em cabalas militares vigilantes quanto ao
momento oportuno de insurreição.
O mundo de Buonarroti
191 Aceito a data de 1811 sugerida pelo transcritor de documentos dos adelfos no Escritório de Registros
Públicos de Londres (Radice, p. 88), e 1812 como o momento de sua fundição com os filadelfos
(Radice, p. 79), apesar das possibilidades que ele levanta, sem nada concluir, de uma datação
posterior para ambos os casos. Os inestimáveis documentos dos adelfos reproduzidos em Ars
Quatuor Coronatorum, vol. LV, 1944, pp. 89-117, são — assim como a maior parte dos materiais
reproduzidos em publicações maçônicas — considerados muito superficialmente e deixados de lado
por todos os historiadores desses movimentos. V. também Saitta, vol. ii, p. 61.
192 Archives Nationales, F7 6684, p. 283. Existem dois conjuntos de cópias feitas pela polícia dos
decretos e estatutos do Grande Firmamento dos Sublimes Mestres Perfeitos. O arquivo foi explorado
apenas de maneira bem parcial e estava desorganizado quando o consultei. Reuni e utilizei o mais
completo dos dois conjuntos.
193 Archives Nationales, F7 6684, p. 286. “Extrait du rituel à l’ouverture de chaque Eglise”, não datado.
194 Archives Nationales, F7 6684, p. 284. “Profession de foi du Synode de (TT)» ou rassemblement des
Sublimes Maîtres Parfaits”, não datado; e “Profession de foi de ou rasse^^ement des Sublimes
Maîtres Parfaits”. V. também D.Tugan-Baranovsky, “Buonarroti i missiia Andriana”, Voprosy Istorii,
1977, n° 1, esp. p. 124.
195 Archives Nationales, F7 6684, p. 299. “Livre des Statuts des Sublimes Maitres Parfaits”, não
datado. No texto paralelo também não datado “Livre des Status des Sublimes-Elus”, o grupo “Les
Illuminés” na Alemanha aparece como uma das cinco “sociedades secretas já formadas” de que os
revolucionários desse segundo grau poderíam se valer: p. 289.
204 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
201 Fragmens sur les institutions républicaines. Ouvrage posthume de Saint-Just précédé d'une notice
par Ch. Nodier, 1831, pp. 10-11 (PU).
202 W. Wordsworth, The prelude, vol. xi, pp. 140-144 (ed. Original de 1850).
203 Brunschwig, p. 183.
204 Corinne, ou ITtalie, 1820, vol. 1, p. 117 (ed. original de 1807).
206 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
209 Les vers dorés de Pythagore, 1813. Extratos em A. Tanner (ed.), Gnostiques de la révolution. Fabre
d’Olivet, 1946, pp. 103-153. Esse personagem notável descendia de uma família de huguenotes
perseguidos e foi influenciado por Court e ocultistas alemães. Escreveu grandes pièces d’occasion
para a Festa da Federação (Le Quatorze Juillet, um drama poético de 1790), para a vitória de
Toulon (Toulon soumis, ópera histórica de 1794) e para a coroação de Napoleão como imperador
(Oratorio, 1804). Tanney pp. 279-286.
210 Fabre d’Olivet, La musique expliquée comme science et comme art et considérée dans ses rapports
analogiques avec les mystères religieux, la mythologie ancienne et l’histoire de la terre, 1896, vol. I.
211 Ibid., pp. 46-47.
212 Ibid., pp. 81-82.
213 L. Angeloni, Sopra la vita, le opera ed il sapere di Guido d’Arezzo, Paris, 1811.
214 O. Spengler; The Decline of the West, NY, 1939, vol. i, p. 282; também p. 183 ss. para sua distinção
geral entre o homem “fáustico” e o “apolineo”.
215 E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, tal como parafraseado em Furter, LTmagination, p. 12; e ainda,
para a visão de Bloch da música como uma forma de arte coletiva e revolucionária, pp. 10-13.
216 Kuypers, Les égalitaires, pp. 80-81.
208 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
217 Sobre o “Toonel der Volksbechaving” de Kats, v. Kuypers, “Les liens d’amitié de Karl Marx en
Belgique (1845-1848)”, Socialisme, vol. lviii, 1963, p. 412, e obras lá referenciadas.
LIVRO I, CAPÌTOLO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 209
218 V. “Der‘Jesuitismus’ als persönliches Ordensprinzip Weishaupts”, em Grassi, Aufbruch, pp. 184-187.
219 Ibid., p. 238.
220 Esse tema originado com Knigge, Über jesuiten, freymaurer und deutsche rosenkreuzer, Leipzig,
1781, ganha maior dimensão em E Nicolai, Beschreibung einer reise durch Deutschland und die
Schweiz im jahre 1781, Berlim/Stettin, 1785. O ponto alto dessa paranóia parece ter sido atingido
por Weishaupt em Apologie der illuminaten, Frankíurt/Leipzig, 1786. Para discussão dessa e de
outras obras, v. Grassi, pp. 236-259.
221 E. von Göchhausen, Enthüllung des Systems der Weltbürgerrepublik., Leipzig, 1786; Grassi, pp.
266-267.
222 Modena, “Numero”, pp. 869-870.
210 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
passagem é citada sem referência em Frost, Societies, vol. i, pp. 151-152. A história em dois volumes
de Frost oferece um tratamento surpreendentemente sofisticado e injustamente negligenciado, escrito
por um jornalista veterano e um cronista que testemunhou o movimento carlista, obra que se ressente
apenas de documentação inapropriada.
235 E Rousseau, “Sociétés”, p. 189. V. também referências em M. Kukiel, “Lelewel, Mickiewicz and the
Underground Movements of European Revolution (1816-1833)”, Polish Review, 1960, verão, p.
62, nota 5.
236 Sua carreira memorável é traçada pelo grande romancista basco Pio Baroja, Aviraneta o la vida de
un conspirador, Madri/Barcelona, 1931, esp. pp. 15,29-32,84; e (sobre seus laços com Merino) pp.
41-50, 54. Os anos mexicanos de Aviraneta são discutidos em Mis memórias íntimas, 1825-1829,
México, 1906. Dos seus muitos escritos sobre guerra de guerrilha, ver especialmente Las guerrillas
espanolas o ias partidas de brigantes de la guerra de la independencia, Madri, 1870.
214 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
De maneira mais ampla, sobre a confusão de fidelidades, v. E Rousseau, “Les Sociétés secretes et la
révolution espagnole en 1820”, Revue des Études Historiques, 1916, jan.-fev., pp. 1-33.
237 Eloge de Victor-Amédée iti, Chambéry, 1775, citado em Triomphe, Maistre, p. 98.
238 De Maistre, Oeuvres complètes, Lyon, 1886, vol. xm, p. 204.
239 Triomphe, p. 498.
240 R. de Felice, Note e Ricerche sugli “illuminati” e il misticismo rivoluzionaria (1789-1800), 1960,
p.59.
241 Em Lyon antes da Revolução, em Lausanne e em São Petersburgo como um emigrado. V. “Joseph
de Maistre et l’Allemagne”, em Triomphe, pp. 498-576.
242 De Maistre, Quatres Chapitres inédits sur la Russie, 1859, p. 27.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 215
243 Correctif à la gloire de Bonaparte ou lettre à ce général, Veneza, 1798, pp. 15, também 22-23. Está
assinado “P. S. M. PH. S. D” (l'homme sans Dieu).
244 Ibid., pp. 8-9,28.
245 Ibid., p. 29. Maréchal também nutria o fascínio geral dos revolucionários pelos jesuítas, e sua
principal obra literária da década de 1890 adotou o lema dessa ordem, só com a simples substituição
de “Deus” por “virtude”. Ad majoram gloriam virtutus, epígrafe a Le Lucrèce français; fragments
d'un poème, ano vi (BH).
246 Correctif, pp. 25-26.
247 Histoire de la Russie réduite aux seuls faits importans, L/Paris, 1802, p. 323, nota 1, com destaque
em itálico e indicação de serem palavras “de um famoso personagem”. A segunda edição de 1807
atribuiu a autoria da obra com “par l’auteur du Voyage de Pythagore”.
216 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
Se o fraco e desafortunado Luís xvi [...] não tivesse cometido a óbvia imprudên
cia de recorrer ao conselho de sábios e publicistas sobre o deplorável estado das
finanças, o infeliz príncipe ainda estaria reinando.251
Não dês ao povo tempo para pensar [...] O comum dos homens ama a movimen
tação. [...] Águas estagnadas se tornam sujas e geram doenças.252
248 Da seção Les bons et derniers avis de Cathérine U à Paul 1er trouvés parmi les papiers de bimpératrice
de Russie, après sa mort, em Histoire, pp. 362-363.
A análise de Likhotin mostra que o testamento foi aceito como autêntico por estudiosos conservadores
simpáticos a ele no século xix. Um relato parcialmente ficcional sobre os primeiros radicais maçons
exilados em Smolensk à época de Catarina os retrata como gratos ao documento, já que este daria
fim às ilusões de intelectuais sobre aqueles que exercem o poder. N. Rylenkova, Na staroi smolenskoi
doroge, Smolensk, 1961, pp. 11-12; Likhotin, p. 66, nota 21.
249 Histoire, p. 363.
250 Ibid., p. 364.
251 Ibid., p. 365.
252 Ibid., pp. 366, 373-374.
253 Ibid., p. 377.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 217
destino das pessoas individualmente consideradas, pois ele é “um ser abaixo
apenas de Deus, mas acima de todos os homens”.254
Desde a altura em que nos encontramos, meu filho, devemos nos importar apenas
com o conjunto; e também nisso devemos nos conformar à natureza, a qual parece
abandonar ao seu próprio destino aqueles seres de que ela não mais necessita.255
260 Faivre, Eckhartshausen, pp. 75, também 72-84, 619-638, complementando outros elementos
fornecidos em Billington, Icon, p. 279 ss.
261 Brengues, “Apport”, em Les Fêtes, p. 589; H. Buisson, Fouché, duc d’Otrante, Bienne, 1968.
262 Texto em De Maistre, Oeuvres complètes, xiv, pp. 371-372.
LIVROU
O predomínio dos revolucionários nacionais:
meados do século xix
10 A importância do livro The Revolt of the Bees de John Minter Morgan (serializado em Co-operative
Magazine, 1826) na popularização das idéias de Owen é discutida em W. Ar my tage, Heavens Below.
Utopian Experiments in England 1560-1960, L, 1961, p. 131. O primeiro emprego do termo “co-
munionista”,como urn termo social e não religioso, deu-se na Co-operative Magazine, 1827, nov., p.
509 (Bestor, “Evolution”, p. 278), e ao fim da década de 1830 os owenistas radicais se designavam
a si mesmos “comunionistas” e estabeleceram The Working Bee como seu semanário.
Já em 1840, o primeiro historiador do socialismo, L. Reybaud, nata va que o impulso por trás
dos experimentos utópicos de Owen e Fourier era “mais um retorno à natureza que um chamado
à purificação da civilização” (Étude, p. 25). Fourier foi ainda mais longe em matéria de fantasia
pastoral com seu famoso “falanstèrio”, com seu contraste entre as formas de associação “naturais e
atraentes” e as falsas e repelentes, com sua visão cósmica da harmonia natural e dos laços eróticos
entre os astros celestes.
CAPÍTULO 5
Os conspiradores constitucionalistas (1815-1825)
1 V. citação do texto de “Mémoire sur les sociétés secrètes et les conspirations sous la restauration
par Simon Duplay”, Revue internationale des Sociétés Secrètes, vol. n, 5 de março de 1913, pp.
547-550, bem como o prefácio bibliográfico de L. Grasilier, esp. pp. 513-515, 518, e ainda texto
suplementar, pp. 526-547. V. também Leo Spitzei; Old Hatreds, pp. 190-193; Baylot, “L’Affaire de
Misraïm”, Voie, pp. 223-231.
224 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A Fraternidade da Floresta
Quando o principal colaborador de Buonarroti se referiu ao movimento re
volucionário durante o período da Restauração como “esse partido de Jura”'
deu a ver a genealogia, assim como a geografia, da tradição revolucionária.
Os filadelfos originais da década de 1790 procederam da região verde e re
lativamente intocada de Jura, situada entre Besançon e Genebra; Buonarroti
e seus amigos lá operaram até que ele se mudasse para Bruxelas em 1824;8
6 Essa estimativa do General Pepe é a mais baixa das várias reunidas em Radice, Ars, vol. lui, p. 92.
Para outras estimativas contemporâneas duas ou três vezes maiores, v. Landa, “Konspiracje”, p.
256.
7 Andryane, Souvenirs, vol. il, p. 173.
8 O próprio Buonarroti visitava freqüentemente a região de Genebra (e de Grenoble, onde ele
morou intermitentemente de 1812 a 1815) e restaurava a sua “estamina” revolucionária mediante
“devaneio metafísico” ao longo de extensas caminhadas pelo campo, o que lhe possibilitava 1er o
“hieróglifo” contido na “linguagem misteriosa da natureza universal”. Andryane, vol. il, p. 157;
Prati, “Autobiography”, The Penny Satirist, 17 de junho e 26 de agosto de 1837.
Mais tarde Buonarroti leu uma brochura, e pode ser que tenha sido influenciado por ela, assinada
por “J.B. (de Jura)”, The Age of Gold unveiled, or a plan of civil, political and religious organization
(Saitta, vol. I, p. 168, nota 112), e depois compartilhou essa visão com seus seguidores belgas,
conforme se evidencia na peça The earthly paradise (J. Kats, Het Aerdsch Paradys of den Zegeprael
der Broederliefde, Antuérpia, 1836, BM, comentado em Kuypers, Égalitaires, pp. 80-81 ), a alcançar o
piano de 736 páginas de uma reorganização igualitária da Europa de autoria do cervejeiro flamengo
LIVRO n, CAPÍTULO 5; OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 227
13 G. Leti, Carboneria e massoneria nel Risorgimento italiano, Bolonha, 1915, p. 69 ss. V. também J.
Rath, “The Carbonari: Their Origins, Initiation Rites, and Aims”, American Historical Review, 1964,
jan., pp. 353-370; também sobre a importância da liderança no sul da Itália, v. Berti, Democratici,
p. 148 ss.; e sobre as primeiras preocupações (e fantasias, como sugerir um elo com os Iluminados)
nutridas pelos Habsburgos, v. Lennhoff, pp. 17-19.
14 Lennhof, pp. 25-28; Radice, Ars, vol. Liv, 1943, pp. 143-144.
LIVRO n, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 229
15 V. as anônimas Memoirs of the secret societies of the South of Italy, particularly the Carbonari, L,
1821 (uma obra rica em documentos e citações de trechos seus), esp. pp. 4-8 (BO).
16 Dos papéis dos conspiradores de Macerata, 1817, impressos nas minutas do julgamento em Roma,
1818, em Memoirs, p. 31.
17 Ibid., pp. 26-27.
230 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
nante dessas provações pelo fogo. O grande mestre entrava pela única porta
secreta que vinha do Ocidente.
Ecos internacionais
O primeiro — e o único a chegar a bom termo — eco dos carbonários se
iniciou com um conclave secreto de revolucionários no verão de 1820, ao
mesmo tempo que as potências contra-revolucionárias estavam reunidas no
Congresso de Troppau. Um grupo de europeus orientais reunido em Izmail,
à foz do Danúbio, ouviu falar de planos para um levante vindouro na Gré
cia que fora projetado por uma organização notavelmente parecida com a
carbonária: a Philiki Hetairia ou Associação Fraterna. Formada por gregos
nas redondezas de Odessa em 1814,29 lembrava a organização italiana em
seus rituais de iniciação e em seus juramentos, em sua mistura de símbolos
maçônicos e cristãos. Havia quatro graus em sua hierarquia, depois com
plementados por três graus superiores especialmente recrutados sob um
diretório de sete homens. Essa estrutura complexa e secreta se desenvolveu
rapidamente, em especial dentro da comunidade comerciante grega do
Mediterrâneo. Seus afiliados se espalharam de Gibraltar aos portos do Mar
Negro. Ela proporcionava uma causa capaz de unir indivíduos e um refúgio
para veteranos dos Bálcãs descontentes com uma década de luta intermitente
contra os turcos.
A Hetairia tinha quatro vantagens sobre a carbonária: um importante
padrinho posicionado na estrutura de poder continental (o General Alexander
Ypsilanti, ajudante-de-campo do Tzar Alexandre i); um inimigo não-euro-
peu (os muçulmanos turcos); um foco mais explicitamente político (suas
ordens alta e baixa eram as de cidadão e administrador, respectivamente);
e, sobretudo, uma canção. Pois o movimento nacionalista grego havia sido
28 G. Spini, Mito e realtà della Spagna nelle rivoluzioni italiane del 1820-1821, 1950. Também houve
empréstimos da constituição que os ingleses tinham ajudado a introduzir na Sicilia em 1812.
29 G. Arsh, Eteristkoe dvizhenie v Rossii, 1970, esp. p. 167 ss. Para uma discussão do movimento
grego em seu contexto europeu e quanto à sua interação com outros movimentos nos Bálcãs, v. D.
Djordjevic, Révolutions nationales des peuples balkaniques 1804-1914, Belgrado, 1965, pp. 31-56.
LIVRO n, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 233
32 Essa notável paixão literária, talvez sem paralelo até que a Guerra Civil Espanhola provocasse
reação similar na década de 1930, é discutida em W. St. Clair, That Greece might still be free: the
Philhellenes in the War of Independence, NY, 1972.
33 Em 1810, os espanhóis começaram a utilizar o termo partido libre para designar aqueles que
defendiam uma imprensa livre e reformas constitucionais, vindo a utilizar, com o mesmo sentido, o
termo partido liberal em 1813. M. Cruz Seoane, El primer linguaje constitucional espanof Madri,
1968, p. 158.
34 Uma “guerra político-literária entre liberais e servis” foi anunciada em um artigo com esse título
em El Semanario patriótico, 29 de agosto de 1811, o que é discutido em Seoane, pp. 158-159. O
contraste foi reforçado por meio da hifenização do termo “servil”, a fim de acentuar suas partes
componentes, ser-vil (p. 157). A neutralidade era impossível no clima moral polarizado: “No seas
neutral / O servil o liberal” (p. 166).
Para outra discussão da súbita politização de um termo com múltiplos empregos espanhóis anteriores,
ver. J. Marichal, “Espana y las raíces semânticas dei liberalismo”, Cuadernos, 1955, mar.-abr., esp.
pp. 57-60.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUC ION ALISTAS (1815-1825) 235
45 Paris révolutionnaire, esp. pp. 267-268. Para detalhes sobre os subgrupos de cinco homens» veja-se
o estudo hostil e anônimo The Carbonari; or, the Spanish War assigned to its Real Cause, 1823, p.
8 (BO). Cada departamento, contudo, deveria ter um comitê supervisor de 9 membros, enquanto
“os comitês de vigilância” responsáveis pela segurança deveriam ser grupos de três que respondiam
a censores eleitos a cada três meses (ibid., pp. 8, 18-20).
46 “Des conspirations et des coups d’état”, em L’Aristarque français, 14 de março de 1820, citado
em Isambert, p. 81, que a chama “uma das mais explícitas declarações de guerra ao regime dos
Bourbon”.
47 Com discriminação e descrição detalhadas em Spitzer, Old Hatreds, pp. 77-141,189-209.
48 V. a seção final sobre magnetismo em J. Witt, Les sociétés secretes de France et d’Italie, 1830, p.
140 ss.; também o primeiro capítulo sobre magnetismo em A. Viatte, Victor Hugo et les illuminés,
Montreal, 1942, pp. 13-32; e, com abordagem mais ampla, o seu Sources occultes.
238 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
49 Prati, “Autobiography”, Penny Satirist, 21 de janeiro e 3 de fevereiro de 1838. Mesmer foi contra
a revolução, como a maioria dos espíritas. Sobre o interesse revolucionário prévio em torno de
Mesmer; v. Darnton, Mesmerism.
50 Saitta, vol. i, pp. 115, 170; também Viatte, Hugo, pp. 33-53, sobre o renovado interesse geral por
Swedenborg depois de 1830.
51 Tchernoff, p. 39.
52 Sua biografia foi escrita pelo principal historiador e popularizador do espiritismo, Frank Podmore:
Robert Owen, A Biography, L, 1906, 2 voi.
53 Andryane, Souvenirs, p. 134, que também relaciona as palavras de Buonarroti aos “oráculos das
sibilas”.
54 Segundo argumenta Isambert, pp. 95-96.
55 Jean-Louis Fazy era próximo tanto de Buonarroti como do movimento italiano (Vuilleumier,
“Buonarroti”, pp. 485-488). O seu irmão James, mais famoso, comandou as atividades da carbonária
francesa nas regiões próximas de Genebra. V. H. Fazy, James Fazy, Genebra, 1887, pp. 16-23; também
A. Calmette, “Les Carbonari en France sous la restauration”, Revue de la Révolution de 1848, vol.
ix, 1912-1913, pp. 412-414, sobre a infiltração de carbonários na França, independentemente de
intermediários buonarrotianos.
56 De la Gérontocratie ou abus de la sagesse des vieillards dans le gouvernement de la France, 1828.
Para uma discussão desse assunto, com a conclusão de que não se deve “pedir da noção de idade
o que só a noção de classe é capaz de proporcionar”, v. L. Maxoyer, “Catégories d’âge et groupes
sociaux: Les jeunes générations françaises de 1830”, Annales, 1938, set., pp. 385-423.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 239
57 V. a confirmação feita por membro de importância secundária que tomou parte de uma iniciação
como essa na Sabóia em 1821 e de encontros na casa do ^-conventionnel e líder maçônico, François
Gentil; consultar M. Vuilleumier, “Deux documents inédits sur le saint-simonisme, l’influence de
Lamennais et Buonarroti en Savoie (1821—1831)”, Cahiers d’Histoire, vol. vu, 1963, n° 2, esp. pp.
220-222. Sobre encontros em Lyon durante esse período, v. Andryane, Souvenirs, vol. u, pp. 153-156.
58 “An Autobiography”, Penny Satirist, 3 de março de 1838, p. 1.
59 V. Breve esposizione storica della Riforma avvenuta già trecent’ anni nella Svizzera e nei Grigtoni.
Scritta nell’idioma tedesco... da G.G. degli Orelli, volgarizzata dal di lui amico D.G. dei Prati
membro della società bibblica, Coira, 1819. Essa e outras traduções estão em BM, bem como obras
posteriores em favor da pedagogia de Pestalozzi. V. em especial On the Principles and Practice of
Education, L, 1829. Orelli era professor da escolar cantonal de Coirà, que depois serviu de emprego
a Carl Folien e de abrigo para outros radicais emigrados.
60 Radice, “Philadelphes”, p. 83, para um importante exemplo de 1820.
61 Esses temores alcançavam a maior intensidade na Rússia, onde sua influência era máxima. V. A. Pypin,
Religioznyia dvizheniia pri Aleksandre i, Petrogrado, 1916; v. também J. Clarke, “The Russian Bible
Society and the Bulgarians”, Harvard Slavic Studies, vol. in, 1957, pp. 67-103, sobre sua conexão
com acontecimentos políticos nos Bálcãs.
62 Prai, Penny Satirist, 10 de março de 1838.
63 Ibid., 3 de março, 4 de maio. Spitzer, Old Hatreds, p. 269, nota 175, e cartas (com fontes assinaladas)
de Prati e Folien para Joseph Rey escritas em linguagem aparentemente esópica, p. 268, nota 174.
240 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGF.M F FUSTÓRIA
71 Adolf Karl Christian von Sprewitz, um jovem teólogo de Rostock cuja notável carreira é narrada
no estudo não devidamente apreciado de Silbernagl, “Verbindungen”, p. 786 ss. Conexões com a
Itália por meio da Suíça são discutidas em detalhe e com melhor documentação por M. Barazzoni,
“Le società segrete germaniche ed i loro rapporti con i conspiratori Lombardi del 1821”, Rassegna
Storica del Risorgimento, voi. xix, 1932, pp. 89-138.
72 Os comentários concisos feitos por Lehning, pp. 125-126, em grande medida baseados na
autobiografia de Prati, não estabelecem essa conexão. Prati se refere às organizações como
Maennerband e Ingendband (Penny Satirist, 10 de fevereiro de 1838). Para maiores detalhes sobre
a Jünglingsbund (um termo que antes possuía emprego com sentido diverso), v. H. Haupt, Karl
Folien und die giessener Schwarzen, Giessen, 1907. Quem teve papel central na Liga dos Jovens foi o
terceiro dos triúnviros de Buonarroti, Wilhelm Snell, que desde 1814 planejara unir os revolucionários
alemães em uma única liga com três níveis de associação. V. Silbernagl, pp. 776, 787 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 243
Reprise russa
O último eco das rebeliões constitucionais se deu na distante Rússia, com a
revolta dezembrista ao fim de 1825, na qual os principais temas das rebeliões
anteriores no leste e no sul da Europa foram reprisados.
Uma coalização mal coordenada de várias organizações secretas tentou
forçar a Rússia a aceitar alguma forma de limitação constitucional do poder
tzarista após a morte de Alexandre i. Seus líderes eram jovens oficiais e até
73 V. The Carbonari; or The Spanish War, p. 4: “A Hidra [...] ergueu sua cabeça em Nápoles e no
Piemonte [...] refugiou-se na Espanha [..♦] mais uma vez ergueu sua crista ensanguentada”.
74 N. Bulich, Ocherki po istorii russkoi literatury i prosveshcheniia s nachala xix veka, São Petersburg©,
1905, voi. il, p. 271. Talvez haja uma espécie de vingança sutil contra Pitágoras e os gregos — por
terem inspirado tantos românticos revolucionários — no fato de que a geometria moderna, não-
euclidiana, tenha sido descoberta por um amigo e protegido de Magnitsky em Kazan, Nicholas
Lobachevsky.
75 The Carbonari; or, The Spanish War, p. 10. O autor identificou em oficiais inferiores e estudantes
sem vocação os principais fomentadores da revolução.
244 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
76 S. Turgenev, carta de Io de novembro de 1820, citada em Landa, Dukh, p. 229. Para o testemunho
igualmente eloquente de N. Turgenev, v. Yu. Oksman, Dekabristy. Otryvki iz istochnikov, 1823-1825,
1926, pp. 2, 76-82.
77 Landa, (Dukh, pp. 48-58) discute a influência que exerceu sobre o grupo deles o livro de H.
Schmalz, Über politische Vereine, 1815, bem como a influência de outras críticas mais moderadas
à Tugendbund, inclusive a do famoso historiador B. Niebuhr, da qual se originou, ao que parece, a
expressão “estado dentro do estado” (p. 51).
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCION A LISTAS (1815-1825) 245
1929, pp. 12-49; v. também V. Semevsky, “Dekabristy Masony”, Minuvshie Gody, 1908, fev., pp.
1-50, mar., pp. 127-170.
82 M. Dovnar-Zapolsky, Tainoe Obshchestvo dekabristov, 1906, p. 305.
83 Para conexões com a Polônia e a Lituânia, v. P. Ol’scansky, Dekabristy i pol’skoe natsional’no-
osvoboditel’noe dvizhenie, 1959; sobre conexões com as províncias dos Bálcãs, v. Yu. Lotman, Unsi
materiale dekabristide voitlusest baiti aadli vas tu, Tartu, 1955.
84 Dois relatórios particularmente influentes preparados para a corte russa foram Alexander Sturdza,
Mémoire sur l’état actuel de l’Allemagne, 1818, que trata principalmente sobre educação; e o
que foi escrito pelo Conde Benckendorf sobre sociedades secretas, reimpresso em M. Kovalevsky,
Khrestomatie po russkoi istorii, 1923.
A sociedade de Orenburg falou em recrutar os basquires para ajudar a libertar os tártaros na Ásia
Central e, em seguida (em caso de sucesso), pressionar para que se estabelecesse uma república na
índia. V. Petrov, “Tainoe obshshestvo oktrytoe v Astrakhani v 1822 godu”, em Tainye obshchestva
v nachale xix stoletiia, 1926, p. 19; além de pp. 9-31.
A sociedade Petrozavodsk exemplifica quão inofensivas eram muitas dessas organizações
ostensivamente políticas. Ela objetivava apenas estimular o estudo de coisas estrangeiras naquele
centro provincial do norte; e o nome escolhido pelo seu líder foi Matvei Fadeevich Don Kichot
Lamanchsky, uma clara alusão ao herói eminentemente não revolucionário do romance de Cervantes.
V. “Frantsuzsky parlament v Petrozavodske”, Katorga i Ssylka, vol. xiii, 1924, pp. 132-134.
85 Chto pochta, to revoliutsiia. N. Turgenev, citado em N. Nechkina, “Dekabristy vo vsemirno-
istorischeskom protsesse”, Voprosy Istorii, 1975, n° 12,13. Esse é um esforço tardio, mas bem-vindo,
de um estudioso de longa data do movimento para relacioná-lo a outras revoluções contemporâneas.
Inclui perspectivas não contempladas aqui (acontecimentos contemporâneos na Escandinávia,
os relatos de um marinheiro russo que voltara do Brasil), mas em momento algum considera a
dependência russa para com nada de ocidental.
UVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTTTUCIONALISTAS ( 1815-1825) 247
início de 1803 (H. Trouillot, “Le Vodou dans la guerre de l’indépendence”, Revista de História de
America, 1972, jul.-dez., pp. 87-90). Ao fim de 1813, o próprio Napoleão fez planos, em resposta
a uma esperada invasão da França, de um movimento de resistência nacional que envolvesse corps
de partisans lutando com utensílios agrários em uma guerra total e sem regras {point de règles) e
com a promessa de patentes de partisan que garantissem ampliação de direitos aos líderes locais
(Vermale, Conspirateur, pp. 84-85). Mas todos esses precedentes eram praticamente desconhecidos.
A maior influência do período era o general conservador prussiano Karl von Clausewitz, cujo
ensinamento sobre o ato de “armar o povo” para uma “guerra do povo” propiciava um tratado
sistemático de guerra de guerrilha defensiva: Vom Krieg, Bonn, 1952, pp. 697-704, e p. 618 para
o uso do termo “partisan”. Sua influência se daria muito depois, contudo, principalmente sobre
Lênin; e as principais influências ao longo da maior parte do século xix foram escritores italianos
e poloneses que ainda serão discutidos.
88 Nechkina, depois de apontar para a falta de estudo desse grupo fundamental e de rastrear suas
formas puramente maçônicas, lamentavelmente falha em considerar possíveis influências estrangeiras
sobre “a primeira organização revolucionária russa”: Dvizhenie, vol. i, pp. 141-147.
89 Druzhinin, Ocherki, pp. 477-478, vê a idealização de Pitágoras remontar à “Entretien sur l’institut
de Pythagore” de Jean-Jacques Barthélemy, presente em sua muita aguardada e muito reimpressa
obra em quatro volumes Voyage de jeune anacharsis em Grèce, publicada pela primeira vez em
1789.
90 Demonstrado por A. Pypin (nas notas a Obshchestvennoe dvizhenie v Rossii pri Aleksandre i, São
Petersburgo, 1900, pp. 547-576) e não adequadamente refutado por Nechkina {Dvizhenie, vol.
I, p. 185 ss.). Oskman, Dekabristy, pp. 78, 82, vê influência da Tugendbund; já Semevsky, Idei,
pp. 311-313, vê influência da carbonária napolitana. O principal colaborador de Rey, Hugues
Blanc, também foi à Rússia em 1817. V. Onnis, “Propaganda”, p. 498. Para maiores detalhes, v.
M. Wischnitzer, Die Universität Göttingen und die Entwicklung der liberalen Ideen in Russland in
ersten Viertel des 19. Jahrhunderts, 1965, pp. 139-179; e S. Landa, “O nekotorykh osobennostiakh
formirovaniia revoliutsionnoi ideologii v rossii 1816-1821 gg”, em M. Kalushin (ed.), Pushkin i
ego vrernia, Leningrado, 1962, pp. 86-98.
Assim como a carbonária francesa, a organização russa agiu por meio de uma loja maçônica de
amigos da verdade e utilizou um concílio-raiz para controlar os galhos regionais, que tinham o
tipo de forma de associação tipicamente francesa de 10 a 20 membros. G. Perreux, Au Temps des
sociétés secretes, 1931, p. 65, observa que esse número era usado “para respeitar e ao mesmo tempo
contornar o artigo 291 do código penal”. Compare-se com Nechkina, Dvizhenie, vol. i, p. 207.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 249
91 Sobre bliustiteV, v. Nechkina, Dvizhenie, vol. i, p. 205; sobre os gradi di osservazione, Saitta, vol. i,
pp. 104-105. (Observe-se também o uso buonarrotiano das misteriosas letras W, AA, que Saitta
lê corno Veri Amici, p. 104, nota 68.) Buonarroti, por sua vez, talvez tenha chegado à idéia de um
observador por meio do Círculo Social de Bonneville, no qual se menciona a posição “observateur
du Cercle Social” já no primeiro número de La Bouche de Fer, vol. i, 1790, p. 229. O pseudônimo
“Observador” ainda é utilizado nos principais jornais comunistas para pronunciamentos ideológicos
de alta relevância.
92 Andryane, citado em Semevsky, pp. 376-377.
93 Carta de Roma de 27 de outubro de 1819, em Saint-Edme, p. 211.
94 V. a carta anônima de Roma de 12 de julho de 1819, em Saint-Edme, p. 202; também Semevsky, Idei,
pp. 365-367. Para um rico detalhamento de contatos de 1815 a 1820, v. M. Koval’skaia, Dvizhenie
karbonariev v Italii 1808-1821, 1971, pp. 175-202.
95 Lennhof, pp. 44-45. Ele subestima o temor de Metternich de que diplomatas russos na Itália pudessem
utilizar a carbonária contra os Habsburgos. A respeito do impacto da carbonária sobre personalidades
literárias da época, v. p. 74 ss. e Landa, “Konspiracje”, p. 256, o qual valoriza exemplos da Grécia
e da Itália.
250 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A diàspora mediterrânea
Chegara ao fim uma década de agitação constitucional contra a restauração
conservadora. A imagem do movimento revolucionário em 1826 era de total
96 O artigo anônimo, “Sekta pifagoreitsev”, Vestnik Europy, 1819, maio, n° 9, p. 36. Oksman atribui
esses artigos a LI. Davydov: Druzhinin, Ocherki, p. 505.
97 Ibid., p. 38. O artigo possui, com efeito, uma continuação, “Dukh sekty sokratovoi”, no mesmo
jornal, 1819, maio, n° 10, pp. 110-120.
98 Vosstaniia, vol. iv, pp. 141-142. Isso permanece coisa plausível, a despeito de Pestel negá-lo, p. 157.
Em momento anterior do interrogatório, Pestel admitiu conexões com a Alemanha e a Hungria,
além da Itália, p. 107. Também Oksman, p. 212.
99 Semevsky, Idei, pp. 364-367, 374-375. Semevsky, que dá mais atenção às influências estrangeiras
do que estudiosos posteriores, insiste (p. 377) em que “as relações de revolucionários russos com
sociedades secretas da Europa Ocidental ainda pedem muitas investigações”.
LIVRO H, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTÎTUCIONALISTAS (1815-1825) 251
100 Citado em M. Dommanget, Les idées politiques et sociales d’Auguste Blanqui, 1957, p. 341.
101 A. Herzen, “Nik i Vorob’evy Gory”, Polnoe sobranie sochinenii i pisem’, São Petersburgo, 1919, vol.
XII, p. 74. Os dois depois voltariam cada um sozinho “uma ou duas vezes por ano” a esse “local de
peregrinação”.
102 Venturi, Roots, cap. 1, esp. pp. 1-2; também M. Malia, Alexander Herzen and the Birth of Russian
Socialism, 1812-1855, Cambridge, Massachusetts, 1961, esp. a última frase da seção 2, p. 425.
103 S. Utechin, “Who Taught Lenin?”, Twentieth Century, 1960, juL, pp. 8-16; P. Scheibert, Von
Bakunin zu Lenin: geschickte der russischen revolutionären Ideologien, 1840-1895, Leiden, 1956,
pp. 222-231.
252 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,EM E HISTÓRIA
104 Todos esses grupos — e muitos outros — estão listados em Radice, “History”.
105 M. Emerit, “Une société secrète: Les bons cousins de la foret d’Oran”, em La révolution de 1848
en Algérie, 1949, esp. pp. 76-86.
106 Ibrahim Temo, o fundador de origem albanesa, em 1889, da “sociedade patriótica secreta” em
Istambul que levou ao movimento dos Jovens Turcos, foi profundamente influenciado, durante
visitas a Brindisi e Nápoles, pelo papel que os carbonários desempenharam na história italiana. V.
E. Ramsaur, The Young Turks. Prelude to the Revolution of 1908, Princeton, 1957, pp. 15-16. V.
também C. Buxton, Turkey in Revolution, L, 1909, pp. 44-48, sobre os ritos de iniciação de tipo
carbonário.
CAPÍTULO 6
Revolução nacional vs. revolução social (1830-1848)
2 Journal d’un poète, 1935, vol. i, p. 101, citado em Leroy, Histoire, pp. 382-383.
3 Barthélémy e Méry, cujos L’Émeute universelle e Nemesis (dos quais são oferecidos esses trechos)
são discutidos em F. Rudé, L’Insurrection lyonnaise de novembre 1831. Le mouvement ouvrier à
Lyon de 1827-1832,1969, pp. 677-679.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 255
4 Citado e datado como de julho de 1833 por S. Barr, Mazzini: Portrait of an Exile, NY, 1935, p. 59.
5 A expressão la grande revolte finale du prolétariat prenuncia a abertura da Internationale escrita
em 1871, e é citada a partir do anônimo Aperçu sur la question du prolétariat a que se faz menção
no prefácio ao romance La revolte de Lyon en 1834 ou la fille du prolétariat, 1835, de acordo com
Rude, Insurrection, p. 719, o qual sugere (p. 716) que o autor “L.S.” possa ser o ex-saint-simoniano
Léon Simon.
6 Blanqui via a educação como “a força que governa o mundo” e “o único e verdadeiro agente
revolucionário”. A. Spitzer; The revolutionary theories of Louis Auguste Blanqui, NY, 1957, pp,
53-54. Spitzer dá destaque a essa preocupação pouco lembrada do famoso insurgente, esp. pp.
47-64.
256 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
7 Texto presente em T. Tucker (ed.), The Marx-Engels reader, NY, 1972, p. 350.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 257
A Internacional Mazzini
fora preso durante a Revolução de 1830, Mazzini via sua vida como um
“apostolado” que forneceria mártires bem como ensinamentos para um novo
tipo de sociedade. No exílio em 1831, fundou uma sociedade que serviria de
modelo às organizações revolucionárias nacionalistas: a Jovem Itália. Durante
algum tempo, colaborou com a nova Sociedade dos Verdadeiros Italianos, de
Buonarroti, mas não demorou a rejeitar a dependência deste último para com
lideranças francesas e seu hierárquico “espírito de casta”, e a desafiar a idéia
de que um povo com a riqueza cultural dos italianos pudesse confiar, ainda
que provisoriamente, poder ditatorial a um pequeno grupo de conspiradores
desenraizados.8 Ele teimava em dizer que um movimento autenticamente
italiano não poderia tolerar nem o terror nem o governo de um homem só,
que ele notava emergirem da abordagem própria a Buonarroti. (Buonarroti,
por sua vez, denunciava os elos de Mazzini com os ricos da Lombardia,
posicionando-se contra qualquer tentativa de invasão do Piemonte que não
contasse com o auxílio da França).9
Mazzini abdicou de sua profissão de advogado e com freqüência criticou
a ênfase dos franceses mais em direitos legais que em deveres morais. Pro
fessores jansenistas o tinham cumulado de uma religiosidade moralista; e a
literatura romântica o infectara com uma compulsão de produzir escritos
inspiradores. Mais de cem volumes de suas obras reunidas não deram conta
de abarcar toda a sua produção em prosa. Em particular, excelia no mais
pessoal dos gêneros: cartas a amigos, e sua rede de contatos e influência se
estendia por toda a Europa.
Filosoficamente, Mazzini oferecia uma fundamentação universal, e não
meramente italiana e provinciana, para um movimento nacionalista. Ele falou
de um senhor (Deus), uma lei (o progresso) e um intérprete terreno (o povo).
Nenhum “povo” está completo até que se torne uma nação. “O indivíduo
é demasiado fraco e a humanidade demasiado vasta”.10 Verdadeiras nações
não vivem em conflito, são unidades orgânicas de pleno direito — geográfi
ca, lingüística e culturalmente — de uma harmoniosa ordem internacional.
Simbolicamente, a causa italiana assumira o papel que a luta pela inde
pendência grega havia desempenhado no período anterior. Ela incendiou a
8 Sobre esse conflito, v. Garrone, Buonarroti, pp. 342-385; também E Della Feruta, “Mazzini e la
Giovine Europa”, em Annali, vol. v, 1962, pp. 11-147; e E. Hales, Mazzini and the Secret Societies,
L, 1956, esp. pp. 59, 80.
9 Weill, “Buonarroti”, pp. 272-273.
10 The duties of man and other essays, L, 1907, p. 52.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 259
11 O número total (quase certamente menos que os 780 alegados por Mazzini) incluía 200 poloneses e
150 alemães e suíços. Só cerca de 300 chegaram a alcançar a fronteira da Sabóia. V. Hales, Mazzini,
pp. 118-119; Barr; Mazzini, p. 64.
12 Circular de 19 de abril de 1834, citado em Della Feruta, pp. 19-20.
13 Esses personagens (em H. Keller; Das “Junge Europa“, 1834-1836, Zurique/Leipzig, 1938, p. 53)
provavelmente não constituíam o cume. Schieder (Anfänge, p. 120) indica que a Jovem Alemanha
cresceu de 172 membros em meados de 1835 para 268 no início de 1836.
260 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
14 C. Hibbert, Garibaldi and His Enemies, Boston/Toronto, 1965, esp. pp. 21-22.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 261
O estímulo da ópera
15 M. Maretzek, Revelations of an Opera Manager in 19th-Century America, NY, 1968, pp. 10-11.
16 Duveyrier, cujos co-réus eram Rogé do Opéra Comique, Urbain e Cayol: Religion saint-simonienne.
Procès en la cour d’assises de la Seine les 27 et 28 août 1832,1832, pp. 183-184 (Fundação Einaudi,
Turim). Os saint-simonianos, que depois discutiremos, sonhavam incluir uma casa de ópera e um
palácio de indústria em seus templos da humanidade, e fizeram experimentos operísticos berrantes
na missão ao Oriente que empreenderam após esse julgamento. V. P. Gradenwitz, “Félicien David
(1810-1870) e o Orientalismo Romântico Francês”, em The Musical Quarterly, 1976, out., pp.
471-506.
17 Vinçard aîné, Mémoires épisodiques d’un vieux chansonnier saint-simonien, 1878, pp. 77,115-116.
18 Os revolucionários nacionais, como é óbvio, com frequência extraíam as suas práticas dos socialistas
universalistas. Pode ser que Garibaldi, por exemplo, tenha adquirido o seu hábito de cantar em
círculos a bordo de navios (Hibbert, pp. 29-30) de experiências anteriores com esse hábito dos
saint-simonianos (Vinçard, p. 80, nota) durante a viagem que fizera com eles até o Oriente Próximo.
262 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
contra a tirania pode ter sido ainda mais intenso em uma ópera perdida
escrita nessa mesma época por Saint-Just, Selico ou Les nègres.24
A terceira e última etapa da ligação entre ópera e revolução nacional se
deu durante as guerras napoleônicas. “O orgulho revolucionário foi trans
ferido para os exércitos franceses, que eram vistos como libertadores dos
países oprimidos”. Um novo gênero de “óperas de resgate” glorificava “a
libertação de povos ou pessoas estrangeiras que estivessem sofrendo sob
o absolutismo”.25 A mais famosa delas foi a obra de 1798 de um chefe de
polícia da França revolucionária: Leonora ou o Amor desposado: um drama
histórico espanhol em dois atos, que serviu de base para a única ópera de
Beethoven, Fidélio, a maior de todas as obras de libertação heróica. A ópera
foi, no entanto, banida durante sua primeira década de existência, com sua
estréia adiada por censores austríacos e pela invasão de Viena pelos france
ses em 1805. Foi só com sua versão revista de 1814, em meio às esperanças
incertas que se seguiram à derrota de Napoleão, que Fidélio se imprimiu
sobre a imaginação européia. O cenário da cena final, na qual os prisioneiros
reaparecem, foi transposto de uma caverna para céu aberto — da mesma
maneira que a sede de libertação estava prestes a transbordar do teatro de
ópera para a revolução nacional real.
A música ajudou a manter vivo algum sentimento de unidade na Polônia
dividida e humilhada.26 Em 1811, o diretor do Teatro de Ópera Nacional
da Polônia, Karol Kurpinski, apresentou em Varsóvia a sua nova ópera
Kalmora, que tratava de um tema até então inédito em palcos de ópera de
quaisquer partes do mundo: a Revolução Americana. Kalmora, uma garota
norte-americana, não consegue se casar com um soldado britânico até que
os revolucionários derrotem a Inglaterra e o convençam da superioridade da
Fête de la Raison, ópera en un acte, 1794, p. 20. Denis le Tyran. Ópera en un acte, 1794, p. 11.0
texto data sua primeira apresentação de 23 de agosto de 1794 (depois da queda de Robespierre).
Copias em IA.
Em La Fête, o padre promete ir a Roma e pregar sua nova fé a um “papa sans-culotte'". Mas o prefeito
- com o cuidado austero de quem está incumbido de supervisionar a reeducação revolucionária -
adverte que o padre deve primeiro se provar digno “par une conduite civique” [demonstrando ter
uma conduta civil], Ibid., p. 22.
24 O conhecimento que se tem dessa obra se deve apenas a uma resenha de representação dela impressa
na Gazzete Nationale ou le Moniteur Universel, 22 de outubro de 1793. A reimpressão (1847, vol.
XVIII, p. 171, para a qual A. Soboul chamou minha atenção) identifica o libertista apenas como
“citoyen Saint-Just” e o compositor como “Mengozzi”.
25 Lang, p. 111.
26 Z. Lissa, “Muzyka jako czynnik integracji narodowej”, em Kwartalnik Historyczny, vol. lxxvi,
1969, n° 2, pp. 367-73.
LIVRO IL CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 265
T7 Esse texto, recentemente redescoberto em partes separadas (o texto propriamente dito em Varsóvia,
a partitura na Cracóvia), foi restaurado pelo diretor da Ópera de Câmara de Varsóvia, S. Sutkowski,
a quem devo esta notícia.
28 H. Opienski, “Les premiers opéras polonais considérés dans leurs rapports avec la musique de
Chopin”, em Revue de Musicologie, 1929, maio, pp. 92-98.
A ópera de Kurpiùski (Krakotviacy i Górale) às vezes é chamada de Novos Cracovianos para
distingui-la da anterior. A maior parte das obras de referência insiste misteriosamente em datar
o aparecimento de uma escola nacional de ópera polonesa apenas a partir da Halka de 1848. A
mazurca foi usada em óperas nacionais russas como símbolo da arrogância ocidental, a começar
por A Vida pelo Tzar (Ivan Susanin) de Glinka, 1836.
29 R. Schumann, Gesammelte Schriften über Musik und Musiker, Leipzig, 1954, vol. i, p. 279.
30 Citado em A. Laster, “Musique et peuple dans les annés 1830”, em Romantisme, 1975, n° 9, p. 77;
E. Haraszti, “Berlioz, Liszt and the Rákóczi March”, em Musical Quarterly, 1940, abr., p. 212.
31 Ibid., pp. 216-218 (também p. 214 sobre outras marchas proto-revolucionárias desse período); e
S. Katonova, Muzyka rozhdennaia revoliutsiei, Leningrado, 1968, pp. 16-25, sobre o entusiasmo
musical de Berlioz para com diversas revoluções.
266 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
veu pela primeira vez “o tipo de ópera que todos os alemães querem: uma
obra de arte autônoma na qual todos os elementos artísticos colaboram,
desaparecem e reaparecem para criar um novo mundo”.32
Cinco anos depois, ele aplicou esse conceito a Der Freischütz [O
Franco-Atirador]. Concentrando-se em um mito do folclore alemão, ele
ampliou a orquestra e misturou a localização dos instrumentos, produzindo
um novo tipo de dependência da execução para com o regente e preparando
o caminho para o regente-compositor que realizaria o seu sonho de uma
Gesamtkunstwerk [obra de arte total] singularmente alemã: Richard Wagner.
O Wagner da maturidade entrelaçou mito pagão e um sedutor novo idioma
musical, criando um veículo singular do nacionalismo moderno alemão. Mas
a sua primeira virada na juventude para a política revolucionária pré-1848
ilustra as formas românticas mais gerais que ele depois desprezaria. Cola
Rienzi, o último dos tribunos, sua primeira ópera e a politicamente mais
explícita, foi concluída em Paris em 1840 para celebrar o revolucionário
romano do século xiv.33 Nesse mesmo ano, então com 21 anos, Friedrich
Engels escreveu uma peça celebrando o mesmo Rienzi.34
A primeira conspiração da esquerda contra Napoleão consistiu em um
plano de assassinato a ser cometido num momento de clímax do coro de
uma ópera quando de sua estréia em 10 de outubro de 1800. Menos de dois
meses depois, a primeira conspiração da direita matou ou feriu oito pessoas
durante uma tentativa fracassada de matar Napoleão quando se dirigia a
uma ópera.35 Em ambas as ocasiões, Napoleão deu mostra de seu sang-froid
[sangue-frio] ao prosseguir ainda para a ópera e assistir à apresentação como
se nada tivesse acontecido — tornando-se assim, à sua maneira, uma espécie
de herói de ópera.
A estabilidade da Restauração pós-napoleônica foi abalada pelo assassinato
do Duque de Berry em uma casa de ópera em Paris no dia 12 de fevereiro
de 1820. E uma apresentação de ópera no Teatro d’Angennes de Turim, em
12 de janeiro de 1821, ajudou a precipitar a revolução que rebentou no
39 Laster, pp. 79-80; e W. Crosten, French grand opera. An art and a business., NY, 1948, p. 39; o tenor
Adolphe Nourrit viu Rossini como “uma das perdas de 1830” quando ele se retirou do ativismoe
parou de escrever óperas (Crosten, p. 115). Rossini, contudo, improvisou uma composição fúnebre
(que não sobreviveu) para o líder carbonário Silvio Pellico quando de sua morte em 1854; Weinstock,
Rossini, pp. 251, 464.
40 G. Franceschetti, La Fortuna di Hugo nel melodrama italiani dell’ottocento, Milão, 1961, p. 191,
mostra que a adaptação de Hernani feita por Verdi foi apenas uma entre muitas, e assim discute
outras adaptações de compositores esquecidos, as quais traziam títulos provocativos, como II Bandito
e II Proscritto.
LIVRO 11, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1 848) 269
Músicas e bandeiras
52 R. Wagner, My life, NY, 1911, vol. il, p. 466 ss. E. Istel, Revolution und Oper, Regenburg, 1919,
enfatiza a influência de Bakunin sobre Wagner e contrasta os centros de festivais de Wagner e de
Mozart como representativos, respectivamente, da arte revolucionária e da pré-revolucionária. V.
“Bayreuth oder Salzburg?”, p. 62.
53 Gottfried Keller (ao descrever o poeta revolucionário Georg Herwegh, o qual colaborou com Liszt
na escrita de letras revolucionárias), citado em Legge, Rhyme, p. 203. Para a relação entre violência
e música, v. pp. 203-219; também a coleção de K. Kuhnke, “Die alten bösen Lieder’', em Lieder
und Gedichte der Revolution von 1848, Ahrensburg/Paris, 1970.
54 Relato feito por Etienne Arago em Paris révolutionnaire, p. 408, além de nota 1.
55 Katonova, Muzyka, p. 17; J. Halévy, Derniers souvenirs et portraits, 1863, pp. 156-157.
56 Katonova, p. 17.
57 Citado em J. Lucas-Dubreton, Béranger, pp. 107-108/; e também p. 143. A discussão às pp. 109-152
sugere que Béranger talvez tenha sido o mais importante “ideólogo” do período pré-1830. J. Puech
mostra o quão profundamente ele tinha imprimido sua marca já no período revolucionário anterior,
“Les Chansons de Béranger poursuivies en 1821”, em La Révolution de 1848, jun.-jul.-ago., pp.
313-327.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 273
58 Life of Lafayette including an account of the memorable revolution of the three days of 1830,
Boston, 1835, pp. 240-246; também M. Leroy, Histoire des idées sociales en France. De Babeuf à
Tocqueville, 1962, p. 382; e a valiosa discussão geral às pp. 377-428.
59 O jovem autor transitou, de maneira bastante típica, da posição de membro de uma sociedade
estudantil idealista chamada “universalidade” [Allgemeinheit), após uma visita infeliz a Paris, para
a posição nacionalista. Vol. v. Fleury, “L’Auteur du ‘Deutschland, Deutschland über alles’”, em La
Révolution de 1848,1936-1937, dez.-jan.-fev., pp. 193-201. A crise também produziu a “Marselhesa
da Paz” para se opor à onda nacionalista. V. Jules Gay, Le Socialisme rationnel et le socialisme
autoritaire, Genebra, 1869, pp. 129-130, nota.
60 Para a transposição e desaceleração da marcha de uma antiga canção anglo-irlandesa de bebedeira,
“Anachreon in Heaven”, e sua relação com o poema de Francis Scott Key escrito durante a defesa
do Forte McHenry em 1812, que se tornaria formalmente o hino nacional norte-americano somente
em 1931, vol. v. Weybright, Spangled Banner. The story of Francis Scott Key, NY, 1935, pp. 119-168.
O circulo de 13 estrelas sobre uma área azul oficialmente adotado como bandeira dos Estados Unidos
em 14 de junho de 1777 adveio provavelmente de simbolismo maçônico (a proclamação oficial de
uma “nova constelação” no firmamento), embora isso não seja sugerido no estudo clássico de G.
Preble, History of the flag of the United States of America, Boston, 1880,2a ed. rev., esp. pp. 259 ss.
No início do século xix, os alemães e os poloneses, assim como os norte-americanos, valiam-se de
versões adaptadas do hino nacional inglês: em vez de “God Save the Queen!”, os alemães adotavam
“O Povo em Armas!” (Volk in Gewehr!) e os norte-americanos, “Que ressoe a liberdade!” (Let
freedom ring!). Preziger, Parteigeschichte, vol. iv, p. 56, além de pp. 86-90; e Askenazy, tukasinski,
vol. I, p. 145.
Os conservadores se sentiam obrigados a se defender com os seus próprios hinos nacionais — os
Habsburgo adaptando uma melodia de Haydn, os Romanov adotando um hino antes empregado nos
refeitórios do exército prussiano. Vol. v. Tapié, The rise and fall of the Hapsburg Monarchy, NY, 1971,
p. 246; e “Kto kompozitor nashego nyneshniago narodnago gimma”, em Russkaia muzykal’naia
gazeta, 1903, n° 52, pp. 1313-1314. Para a penetração da Marselhesa até na Sibéria como um
contra-hino de protesto, é provável que se encontre algo a respeito em E. Kuklina, “Marsel’eza ” v
Sibiri, Novosibirsk, 1975, um trabalho anunciado em Sovetskie Knigi, 1975, n° 1, chast’ i, p. 14,
mas indisponível em todas as grandes bibliotecas.
274 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
61 De “Vive la liberté”, que, como a maioria das primeiras composições de Pottier, possui algo de
Béranger. Texto presente em Eugène Pottier, Oeuvres completes, 1966, p. 33; v. também seu “Les
trois couleurs”, p. 36. O editor das obras de Pottier, P. Brochon, escreveu vários trabalhos sobre
a emergência e a importância social da música de protesto. V. especialmente Chanson sociale de
Béranger à Brassens, 1961; também V. Skerlitch, U Opinion publique en France d’après la poésie
politique et sociale de 1830 à 1848, Lausanne, 1901.
Esses materiais podem ser complementados com artigos de Puech (em La Révolution de 1848)
sobre as canções dos saint-simonianos (vol. xxx, 1933, mar.-abr.-maio, pp. 21-29), sobre a Polonia
(vol. XXXVI, 1939, mar.-abr.-maio, pp. 19-35) e sobre a própria revolução de 1848 (vol. xxxm,
1936, jun.-jul.-ago., pp. 82-97). Em Proletarskie pesni SSSR, 1932, estão presentes músicas e textos
multilingues (em francês, alemão, polonês e inglês) das versões soviéticas de algumas dessas canções.
62 Uma folha impressa por uma testemunha descreve o saque do escritório de Libry Bagnano e a
elaboração da nova bandeira, observando que, “assim como em Paris, a luta sanguária (sic) [síZwgMj/y]
não foi manchada pela pilhagem”. V. Revolution in the Netherlands, Insurrection at Brussels, s/p.,
s/d., (L, 27 de agosto de 1830). Cópia na coleção de livros raros, LC.
63 Ibid.
64 E. Ghisi, Il tricolore italiano (1796-1870), Milão, 1831, estuda à exaustão a origem da bandeira
tricolor italiana com base na francesa em função de contatos estabelecidos na região da Lombardia na
década de 1790. V. também o relato da introdução de cachecóis tricolores (verde, branco, vermelho)
no norte da Itália nos anos 1790 em Prati, Penny Satirist, 8 de julho de 1837.
65 As bandeiras alemã e húngara eram as únicas tricolores não verticais. Ambas ganharam relevo
somente durante as revoluções de 1848. As cores húngaras eram uma inversão consciente das
de Maria Theresa; as cores alemãs, uma rejeição do azul-vermelho-verde vertical adotada pelas
Burschenschaften. V. P. Wentzcke, Quellen und Darstellungen zur Geschichte der Burschenschaft
und der deutschen Einheitsbewegung, Heidelberg, 1939, vol. xvi, pp. 217-223 (e pp. 199-259
LIVRO 11, CAPÍTULO 6: REVOL UÇÃO NACIONAL. VS. REVOITJÇÃO SOCIAL (1830-1848) 27$
72 Ibid, p. 55.
73 Tchernoff, p. 271. Há quem considere isso já característico dos protestos de 1831. V. Leroy, Histoire,
p. 399.
74 A. Bardoux, Les dernières Années de Lafayette, 1792-1834,1893, pp. 422-423. Em geral vista pelos
moderados como uma rememoração do Terror, até aqueles que a empunhavam viriam a culpá-la
pelo fracasso de sua insurreição: Dommanget, pp. 55-56, 59-60.
75 Dommanget, p. 58.
76 Ibid., pp. 50, 69 ss. Dommanget sugere que o uso da bandeira vermelha na Paris de 1848 não era
de forma alguma tão disseminado quanto a historiografia revolucionária posterior geralmente
supõe. Entre outros estudos, E Wendel, Die rote Fahne, Hamburgo, 1927, fornece detalhes sobre
o uso internacional da bandeira, mas sem oferecer documentação, e J. Slayton, The old red flag,
Pittsburgh, s/d., pp. 12-13 (PU), faz o uso moderno retroceder às legiões de Pulaski durante a
Revolução Americana e inclui derivações ingênuas e imaginosas da antiguidade clássica. A. Schoyen,
“From Green Flag to Red” (The Chartist Challenge, L, 1958, pp. 171-198), mostra que a bandeira
vermelha encontrou algum curso no vácuo deixado em 1848 pelo descrédito do estandarte verde
dos cartistas.
Um ensaio inédito de E. Gombrich (que o autor gentilmente me franqueou) rastreia um prenúncio da
substituição de vermelho por tricolor na troca do bonnet rouge (o barrete frigio) pelo cocarde tricolor
(insígnia tricolor) durante a Revolução Francesa. A boina vermelha tinha ressonâncias mais sociais
que políticas, uma vez que se originava de um regimento suíço cujos membros haviam se rebelado
contra os oficiais aristocratas em agosto de 1790, em seguida sendo condenados como escravos de
galés, para posteriormente, quando anistiados em novembro de 1791, serem ovacionados em Paris
como heróis populares: “The Dream of Reason. Propaganda Symbolism in the French Revolution”,
LIVRO TL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL. VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 2T7
O mito do “povo”
em British Journal for Eighteenth Century Studies, pp. 13-16. A publicação feita pelo governo
bávaro de documentos supostamente pertencentes aos Iluminados, durante a revolução, atribuía
a boina vermelha àquela seita: Die neusten Arbeiten des Spartacus und Philo in dem Illuminaten
orden, Munique, 1794, p. 71.
77 Goodwyn Barmby, o primeiro popularizador inglês da palavra comunista, “Letters from Paris”, n°
1, Howitt’s Journal, vol. in, 25 de março de 1848, p. 207.
78 Ibid., n° 7, 6 de maio de 1848, p. 301. Barmby contrasta essa “iris celestial que floresce como sinal
de esperança” à bandeira norte-americana, que “pode ter estrelas para os seus estados, mas também
tem açoites para os seus escravos”.
79 Ibid. Garibaldi já tinha excluído a cruz da Sabóia do estandarte tricolor de sua legião italiana no
Brasil em 1836: Parris, Lion of Caprera, p. 47. Era crença comum a de que as cores simbolizavam
as virtudes morais de cada povo — e assim o verde, o branco e o vermelho da bandeira italiana
supostamente representariam a fé, a esperança e a caridade.
80 Lettre...à...Condorcet, p. 31.
81 Hymne des combats, pp. 5 ss.
82 Conclusão a que chegou Cloots, La République universelle, p. 20. O destaque em caixa alta consta
no original.
278 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
novos monarcas assuntos ao poder depois das revoluções de 1830, Luís Filipe
e Leopoldo i procuraram receber a sanção do “povo” como rei dos “france
ses” e dos “belgas”, em vez de da França e da Bélgica. Até o reacionário tzar
Nicolas I, três anos depois de sufocar a insurreição polonesa de 1830-1831,
proclamou que sua autoridade se baseava na “nacionalidade” (bem como na
autocracia e na ortodoxia) — e sua palavra narodnost\ que também significa
“espírito do povo”, foi derivada da palavra polonesa narodowosc.
“Povo” significava uma coisa para os nacionalistas revolucionários e ou
tra para os liberais evolucionistas (que pensavam em grupos específicos de
pessoas detentoras de propriedades e às quais se poderiam estender o direito
de voto e as liberdades civis), e outra ainda para os revolucionários sociais
(que pensavam em um proletariado industrial que poderia proporcionar um
novo combustível para a revolução). Para os nacionalistas românticos, o
“povo” era simplesmente a fonte de legitimidade para o exercício do poder
soberano no estado-nação moderno. Sua sanção era alcançada não por meio
do apoio de parcelas do parlamento e das classes sociais, e sim por meio da
invocação poética de uma esquecida unidade interna.
O nacionalismo revolucionário foi fortalecido no período de 1830 a 1848
por uma visão romântica da história que contrastava a criatividade do povo
não apenas com os reis e bispos que dominaram a França até 1789, mas
também com os banqueiros e políticos que passaram a predominar depois
de 1830. Jules Michelet foi o sumo-sacerdote dessa nova religião do “povo”.
Deslumbrado com a ação espontânea das massas na Revolução de 1830
em Paris, publicou uma Introdução à história universal em 1831 como um
prelúdio ao seu extenso épico, História da França^ na qual ele trabalharia
na maior parte dos quarenta anos seguintes.
Para Michelet, a França era “não apenas uma nação, mas um grande
princípio político”,83 vago o suficiente para incluir “nossas duas grandes
redenções, uma pela Virgem de Orleães [Joana D’Arc] e outra pela Revolu
ção”.84 A revolução abrira uma “segunda temporada” da presença de Deus
na terra. “Sua encarnação de 1789”85 na França levaria à ressurreição de
todos os povos. A libertação das massas durante o mês de julho prenunciou
o “julho eterno” ainda por vir. O desenvolvimento espontâneo da unidade
popular e das instituições populares de julho de 1789 a julho de 1790 tor-
83 Michelet, The People, L, 1846, p. 26.
84 Ibid., p. 161.
85 Ibid., p. 137.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 279
100 Falou-se da “revolução nacional” na Polônia como sendo também dos lituanos e dos russos. V. a
brochura (incluindo o discurso de Lelewel, pp. 22-23) Les Polonais, les lithuaniens et les russiens
celebrent les premiers anniversaires de leur révolution nationale du 29 novembre et du 25 mars
1831, 1832. Também houve uma sociedade nacionalista lituana e bielorrussa fundada no dia 10
de dezembro de 1831 em Paris, apenas cinco dias antes do comitê polonês de Lelewel. Consulte-se
A. Barszczewska, “Société lituanienne et des territoires biélorusses et ruthènes à Paris 1831—1836”.
em Acta Baltico-Slavica, vol. vi, 1969, pp. 75-102.
101 The People, p. 87.
102 A tese de que a idéia do potencial socialista da comuna campesina foi colhida por Bakunin e Herzen em
Lelewel (B. Nikolaevsky, “‘Za vashu i nashu volnost’ — stranitsi iz istorii russko-polkish otnoshenii”,
em Novy zhurnal, 1944, n° 7, pp. 252-276) é vista com ceticismo por Malia (Herzen, p. 473) e por
A. Walicki (em um seminário de que tomou parte junto com Nikolaevsky em Harvard, em 1959). A
celebração do comunalismo eslavo antigo era disseminada junto à emigração polonesa, e pode ter
surgido com vários outros personagens que não Lelewel. V., por exemplo, P. Brock sobre a principal
figura do Lud Polski, “Zeno Swiçtoslawski, a polish forerunner of the Russian Narodniki”, em
American Slavic and East European Review, vol. xm, 1954, n° 4, pp. 566-587; e, com tratamento
mais completo, o seu Revolutionary Populism in Poland, Toronto, 1977, no qual defende que a Polonia
de fato produziu um movimento populista agrário pienamente desenvolvido entre as revoluções de
1830 e 1863, assim prenunciando as principais características do bem-conhecido movimento russo
que surgiria depois.
Sobre a transformação da “utopia conservadora” envolvida na idealização eslavófila da comuna
camponesa em um utopismo revolucionário dos populistas, v. A. Walicki, “Slavophilism and Populism:
Alexander Herzen’s ‘Russian Socialism’”, em The Slavophile Controversy. History of a Conservative
Utopia in Nineteenth-Century Russian Thought, Oxford, 1975, pp. 580-601.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 283
103 M. Serejski, Joachim Lelewel 1786-1861. Sa vie et son oeuvre, Breslávia/Varsóvia/Cracóvia, 1961,
p. 56.
104 The People, p. 132, e a § “Association of Fisherman of Normandy”, pp. 131-137.
105 H. Weisser, “The British Working Class and the Cracow Uprising of 1846”, em Polish Review, 1968,
inverno, pp. 3-18, esp. 9-10.
106 Enquanto Bakunin e um bispo vétero-católico oriundo do Imperio Habsburgo foram os únicos russos
entre os 340 delegados no Congresso Eslavo de Praga de 1848, por outro lado os representantes
russos e as declarações pró-russas dominaram inteiramente o Congresso Eslavo de Moscou de 1867.
Sobre a passagem do pan-eslavismo de causa radical a doutrina reacionária russa, v. M. Petrovich,
The Emergence of Russian Panslavism, 1865-1870, NY, 1956.
Sobre as pouco estudadas atividades conspiratórias desse período na Lituânia e a na Bielorrússia, v.
D. Fajnhauz, Ruch konspiracyjny na Litwie i Bialorusi 1846-1848, Varsóvia, 1965. Sobre os Bálcãs
nos anos 1840, v. Djorjevic, Revolutions, pp. 66-85.
A idéia revolucionária de um levante camponês eslavo contra os proprietários de terra teve origens
conservadoras na agitação realizada na década de 1840, perto de Lublin, pelo padre católico Piotr
Sciegienny, o qual se valeu de um apelo falsificado, em nome do Papa Gregório xvi, para organizar
um movimento clandestino com o objetivo de banir os proprietários e se unir com o campesinato
oprimido russo. Voi. r. Narsky, “Razvitie revoliutsionno-demokraticheskoi filosofskoi mysli v Pol’she
30-40-kh godov xix veka”, em Moskovsky universitet, uchenye zapiski, n° 169,1954, pp. 87-91.
Essa técnica foi repetida na Ucrânia trinta anos depois com um apelo falsificado, em nome do tzai;
para que se fizesse uma insurreição contra as classes abastadas. V. Venturi, pp. 582-583.
284 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
107 Grandes porções do texto (de La Réforme} estão em Venturi, Rooís, pp. 47—49. Venturi (p. 48)
considera essa “a primeira vez [...] que as forças e problemas do que depois se tornará o populismo
russo foram apontados e descritos publicamente”.
108 Citado em Venturi, Roots, p. 56. V. também Carr, Bakunin, pp. 163-189, para discussão do Apelo. 0
texto, que traz ainda outros materiais relevantes sobre as atividades de Bakunin durante esse período,
está em J. Pfitzner, Bakuninstudien, Praga, 1932, pp. 78-106.
A identificação dos eslavos com paz e democracia retrocede a Herder, e foi desenvolvida energicamente
nos anos 1820 pelo poeta eslovaco romântico Ján Kollár. V. H. Kohn, Pan-Slavism, Notre Dame, 1953,
p. 16; T. Masaryk, Meaning of Czech History, Chapel Hill, 1974, pp. 55-56.
Embora não tenha havido dentro do Império Russo nenhum tipo de versão nacional das revoluções
de 1848, a Sociedade Ucraniana de Cirilo e Metódio contrastava o mundo eslavo ao moscovitismo, do
mesmo modo como o revolucionário “Catecismo do Povo Russo” em Paris contrastava uma Rússia “do
Povo” à Rússia “tzarista”. V. o importante documento Zakon bozhii, reimpresso em P. Zaionchkovsky,
Kirillo-mefodievskoe obshchestvo, 1959, pp. 156-160; e “Katekhizis russkogo naroda” de I. Golovin,
em“Pervaia revoliutsionnaia broshiura russkoi emigratsii”, Zven’ia, 1932, pp. 195-217.
109 Viallaneix, Voie, pp. 471-479, contrasta a compreensão terminantemente não-revolucionária e cristã
de “povo” de Lamennais à versão mais revolucionária do Michelet maduro.
110 O texto da carta de setembro de 1851 — depois intitulada “The Russian People and Socialism” —
está em Herzen, From the other shore and the Russian people and socialism (introd. Isaiah Berlin),
L, 1956, pp. 165-208; discussão em Malia, Herzen, pp. 395-409.
111 Expressão empregada por Michelet em Légendes, p. 239. Para acesso aos seus textos sobre a Romênia
na década de 1850, consultar pp. 209-259.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 285
112 C. Bodea, The Romanian's struggle for unification — 1834-1849, Bucareste, 1970, p. 130 ss.
113 Ibid., p. 117 ss. V. também I. Breazu, Michelet si românii, Cluj, 1935; e a tese de doutorado inédita
que J. Campbell defendeu em Harvard, “French Influence and the Rise of Rumanian Nationalism.
The Generation of 1848”, 1940.
114 Detalhes tirados do livro comemorativo do centenário de sua morte em 1852: Nicolae Bãlcescu. a
fighter for freedom, Bucareste, 1853, o qual indica (pp. 67-68) que os estatutos redigidos em código
da Irmandade nào foram preservados.
115 Bodea, p. 120. Sobre a influência de Mickiewicz sobre Bãlcescu, v. A. Zub, “Les Rapports roumano-
polonais à la veille de la révolution de 1848”, em Revue Roumaine d'Histoire, 1975, n° 4, pp.
623-624.
286 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
116 A. Otetea (ed.), The history of the romanian people, Bucareste, 1970, pp. 359, 372. Como em toda
parte no período romântico, apresentações teatrais desempenharam importante papel quanto ao
estímulo dos revolucionários nacionais. Assim como os gregos em Bucareste tinham sido incentivados
a entrar em ação pela representação do Brutus de Voltaire, assim também Bãlcescu foi inspirado
pelos protestos juvenis deflagrados, em janeiro de 1848, por uma representação do Júlio César
de Shakespeare em Bucareste. O ponto decisivo veio quando Brutus gritou “Morte aos tiranos!”.
Consulte-se o relato parcialmente ficcional de C. Petrescu, Un Om íntre oameni, Bucareste, 1956.
117 Sobre o desenvolvimento dessa idéia entre os populistas, v. “The first myth: belief in ‘the people’”,
emJ. Billington, Mikhailovsky and Russian Populism, Oxford, 1956, pp. 86-98.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 287
publicou a primeira das quatro partes de sua obra mais famosa, Os deveres
do homem. A ênfase na obrigação moral também era evidente no cabeçalho
de um jornal que publicou mais tarde dirigido aos trabalhadores italianos:
“Moralidade, Pátria, Trabalho”.118
Ele sonhou ao longo da década de 1840 com um “conselho da huma
nidade” que pudesse emitir uma declaração de princípios que suplantasse
as declarações similares de direitos produzidas pelos franceses.119 Essa con
centração antes em imperativos éticos que materiais é visível em sua última
tentativa de uma Internacional nacionalista: a Associação Internacional
de 1855-1859. Mazzini organizou esse projeto em Londres, aonde tinha
retornado após participar do triunvirato governante da efêmera República
Romana de 1849. Buscou assim fortalecer sua velha fé em uma “Terceira
Roma” do “povo” que substituísse as Romas anteriores dos imperadores e
papas. Agora argumentava que uma mais ampla “aliança dos povos” estava
prestes a ser formada pelos três grandes “povos” da Europa (os eslavos, os
germanos e os “gálico-romanos”), a fim de renovar sua luta comum.120
Mas a década de 1860 destruiu o sonho para sempre. A Itália foi unifi
cada não apenas pela paixão de Mazzini como também pela realpolitik de
Cavour, “a tradução em prosa do seu poema”.121 A Polônia se sublevou e foi
novamente esmagada em 1863; e a Alemanha optou pela Einheit [unidade]
em vez da Freiheit [liberdade] ao alcançar sua unificação sob o governo de
“sangue e aço” de Bismarck.
Tudo isso foi acompanhado de guerra e derramamento de sangue jamais
previstos pelos nacionalistas românticos, que sonhavam com uma família de
nações infensa a conflitos. Os poetas e historiadores nacionais, “ideólogos”
do nacionalismo, sempre pressupuseram que a única guerra nacional seria
de povos contra reis.
118 L. Ravenna, Il giornalismo mazziniano, Florença, 1967, pp, 72, nota 2, 282,
119 Salvemini, Mazzini, pp. 35-38.
120 V. a resposta de Mazzini ao convite do comitê internacional no cabeçalho do “Rapport annuel
du comité international à toutes les nationalités” de março de 1856, reimpresso em Lehning,
“Association”, p. 251,
121 Como Herzen caracterizou em sua carta a Turgenev de 20 de julho de 1862, em My past and
thoughts, L, 1927, vol. vi, p. 20. Sobre seus laços com Mazzini, V. W. Giusti, “A. I. Herzen e i suoi
rapporti con Mazzini e l’Italia”, em L'Europa Orientale, 1935. Giusti, em Mazzini e gli slavi, Milão,
1940, deixa clara a importância permanente da causa nacional polonesa para Mazzini, mas também
revela (pp. 237-255) um crescente interesse dele pela Rùssia depois de 1848. O herói romântico
dos acontecimentos de 1848-1849 na Itália, Giuseppe Garibaldi, também nutria fortes sentimentos
pelos poloneses. V. A. Lewak, Corrispondenza polacca de G. Garibaldi, Cracovia, 1932,
288 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
122 Um empréstimo bem oportuno dos norte-americanos nativos pode ter se mesclado à mobilização
ideológica para dar à milícia durante a Revolução Americana algumas características de um exército
moderno de “libertação nacional”: J. Shy, “The Military Conflict as a Revolutionary War”, em S.
Kurtz e J. Hutson (ed.), Essays on the American Revolution, Chapel Hill, 1973; também E Pogue,
The Revolutionary Transformation of the Art of War, Washington, D. C., 1974.
Contudo, o mais notável antecedente de guerra revolucionária irregular na América do Norte
colonial é a figura esquecida de James Smith, do Kentuchy, que foi capturado e adotado por índios
aos 18 anos, em 1755, e que veio a aplicar os métodos indígenas de guerra de fronteira depois
de fugir em 1759. Os integrantes de sua milícia no oeste da Pensilvânia, os Blackboys, vestiam
tangas e perneiras, e pintavam o rosto; em 1767, eles assaltaram o Forte Bedford, que se tornou “o
primeiro forte britânico na América a ser tomado pelos que chamavam de rebeldes”. An account
of the remarkable occurrences in the life and travels of Col. James Smith, apêndice e notas de W.
Darlington, Cincinnati, 1907, p. 123.
Smith tentou sem sucesso obter o apoio do governo dos Estados Unidos para a condução de guerra
irregular em 1777 e mais uma vez em 1799. Ele queria evitar o erro britânico de tentar o emprego
de guerra convencional no Novo Mundo, incitando seus companheiros americanos a emular a
proximidade dos nativos com a natureza, sua ênfase no mérito demonstrado e sua habilidade de
enfrentar largos contingentes inimigos por meio de camuflagem, emboscada e surpresa. O seu
primeiro Remarkable occurrences (Lexington, Kentuchy, 1799) foi expandido e revisto pouco antes
de sua morte, tornando-se A treatise on the mode and manner of Indian War. Their tactics, discipline
and encampments, the various methods they practice in order to obtain the advantage, by ambush,
surprise, surrounding, etc., Paris/Kentuchy, 1812.
123 A obra que chegou mais perto de sugerir novas formas de guerra para um regime revolucionário
foi a quase despercebida brochura escrita por um amigo de Bonneville, o mercenário escocês John
Oswald. Ele escreveu, baseando-se em sua experiência anterior com o exército britânico na índia
e na América, Le tactique du peuple ou nouveau principe pour les évolutions militaires, par lequel
le peuple peut facilement apprendre à combattre par lui-même et pour lui-même, sans le secours
dangereux des troupes réglées (BN), que Ioannisian data do firn de 1792 ou início de 1793, Idei, p.
38.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 289
chegou a 10.000 membros e deu início ao longo elo entre as duas tradições
revolucionárias nacionais. Lutando contra os franceses na Itália, os polone
ses sonhavam com um retorno derradeiro “da Itália para a Polônia”; e sua
canção se tornou depois o hino nacional polonês.124
O líder ferido do derrotado levante polonês, Tadeusz Kosciuszko, acreditava
que a libertação da Polônia iniciaria uma “época de pacificação geral” que
daria fim a todos os conflitos humanos.125126 No exílio, desenvolveu a crença
bastante característica de que a violência revolucionária acabaria com todas
as outras violências. Em 1800, publicou Poderão os poloneses recuperar sua
independência por meio de ação armada?116 e, ao responder afirmativamente,
disse que “um povo que aspira à independência não pode deixar de ter fé
nas suas próprias armas”.127 A combinação de militância e autoconfiança
impostas aos poloneses pela história garante, com efeito, que um novo tipo
de homem e nação emergirá.
Kosciuszko se baseava em oito anos de experiência na Revolução Ame
ricana e também na tradição polonesa nativa, influenciada pelos cossacos,
de resistência a incursões de suecos e russos em épocas passadas.128 Ele dava
atenção à principal pergunta não respondida que se originara da experiência
polonesa de 1794: como pode um exército popular enfrentar forças milita
res convencionais que lhe são superiores? Os poloneses tinham enfrentado
simultaneamente os exércitos das três potências conservadoras mais podero
sas da Europa: Rússia, Prússia e Áustria. Impressionara-lhe o fato de que, a
despeito da impossibilidade de vitória, se tivesse conseguido uma duradoura
129 V. Histoire militaire, pp. 132,160. Esse, obviamente, é o sentido literal da palavra espanhola guerrilla.
130 Ibid., pp. 124-127; também o seu manual Manoeuvres of horse artillery adapted to the service of
the United States, NY, 1812; e E. Brink, “Koáciuszko — Antepassado da Artilharia Americana”,
Field Artillery Journal, vol. xxn, 1932, mai.-jun., pp. 303-313.
131 Citado em E. Alexander; “Jefferson and Koáciuszko”, Pennsylvania Magazine of History and
Biography, 1968, jan., p. 99. A força de vontade extraordinária de Koáciuszko fez com que Jefferson
empregasse toda sua herança na compra da liberdade ou educação dos negros: ibid., pp. 92-93.
132 Para M. Kukiel, essa organização representou a primeira adaptação inequívoca de formas carbonárias
ao leste europeu: “Lelewel, Mickiewicz and the Underground Movements of European Revolution
(1816—1833)”, Polish Review, 1960, verão, p. 63.
133 Radice (Ars, vol. LIV, p. 162) data a fundação de 1821; C. Francovich (Idee social e organizzazione
operaia nella prima metà dell’800, 1815-1847, Milão, 1959, p. 49) propende para a data de 1823.
Garrone, pp. 335-336, nota 2, discute o nome grego e a origem da sociedade, inclinando-se para
uma datação posterior de suas origens. Os líderes tomavam ritualmente para si os nomes de heróis
romanos antigos (particularmente os militares). V. A. Ghisalberti, Cospirazioni del risorgimento,
Palermo, 1938, p. 39, também pp. 31-58.
292 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Quero que meus olhos sejam arrancados de minha cabeça, que minha língua seja
cortada de minha boca, que meu corpo seja cortado e despedaço pouco a pouco;
que meus intestinos sejam eviscerados; que um veneno corrosivo possa comer-me
dolorosamente — com espasmos do peito, pulmão e estômago gerando dor ainda
pior. [...]135
134 N. Naldoni, “Sulla setta degli Apofasimèni”, Aiti del xxvii Congresso per la Storia del Risorgimento,
Milão, 1948, pp. 465—472.
135 Ibid., p. 467.
136 Ibid. Muitos italianos (incluindo Bianco) em algum momento lutaram contra os franceses na Argélia.
Cf. E. Michel, Esuli italiani in Algeria (1815-1861), Bolonha, 1935.
137 Prati, Penny Satirist, 31 de março de 1838.
138 Ibid., 17 de março, p. 2.
139 Della forza nelle cose politiche ragionamenti quattro di Luigi Angeloni Frusinate dedicati all’italica
nazione, L, 1826, Parte n, p. 151 ss., além de p. 166. Angeloni denuncia as potências da Europa por
renunciarem à sua promessa de libertar e unir a Italia (pp. 203—204) e considera o Generai Malet,
que “serviu tanto à França quanto à Itália”, o único líder admirável daquela época (pp. 206-207,
também 211).
140 Ibid., o terceiro “ragionamente”, p. 1 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 293
141 Ibid., pp. 61-88. Angeloni se descreve como “um dos primeiros promotores (promovitore) na França
daquela verdadeira forma americana de liberdade (quella vera libertà americana)”, p. 207. Antes
disso, em sua primeira obra política, de 1814, ele vira tanto a federação americana quanto a suíça
como modelos para a unificação italiana. Sopra l’ordinamento che aver dovrebbono igoverni d’Italia,
ragionamento di Luigi Angeloni, Frusinate, Paris, 1814, pp. 12-13. V. também o seu Dell’Italia
uscente il settembre del 1818, ragionamenti iv di Luigi Angeloni, frusinate, dedicati all’italica
nazione, Paris, 1818, 2 voi. Não existe nenhum bom estudo de Angeloni, o qual veio a acabar num
asilo de mendicidade londrino em 1842, morrendo no ano seguinte. (V. L. Fasso, Lettere di esuli,
Lucca, 1915, pp. 126-127). O melhor trabalho ainda é o de G. Romano-Catania, Luigi Angeloni e
Federico Gonfalonieri, Milão, 1898.
142 M. Battistini, Esuli italiani in Belgio (1815-1861), Florença, 1968, p. 205.
143 Della Guerra nazionale d’insurrezione per bande, applicata all’Italia. Tratatato dedicalo ai buoni
Italiani da un amico del paese, Italia, 1830, 2 voi. (duas cópias desse livro raro, ao que parece
publicado em Malta, se encontram em Brera, Milão).
294 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Malta, Córsega, Argélia, Londres e Bruxelas.144 Assim, seu tratado de 1830 era
um apanhado e síntese de uma década de experiência direta — e ao mesmo
tempo, um prenúncio da torrente derradeira de violência revolucionária que
ele estava prestes a desencadear em Lyon, em fevereiro de 1831, e dos esforços
de Mazzini para invadir a Sabóia e lá inspirar revolução em 1831 e 1834.145
O tratado de Bianco incitava a Itália a rejeitar os tímidos filósofos polí
ticos, “mais estrangeiros que italianos”, em favor de uma mobilização po-
lítico-militar “forte, robusta e ardente” em prol da “insurreição nacional”,
do mesmo modo como ocorrera nos Estados Unidos após sua “estupenda e
rápida revolução”.146 Defendia a formação de uma rede nacional de grupos
de guerrilha que evitariam combate direto e, em vez disso, assaltariam arse
nais, camuflar-se-iam e sabotariam todos os meios locais de subsistência dos
Habsburgos.147 Aos poucos, áreas seriam libertadas, “grupos de guerrilha” se
fundiríam em “colunas móveis” e depois em formações militares regulares com
cores, uniformes e títulos romanos (decurião, centurião, cônsul, tribuno).148
A insurreição deveria produzir um modelo de organização política mediante
sua estrutura de comando militar (quatro províncias, doze congregações ou
cantões e duzentas unidades menores).149
O segredo do sucesso numa guerra de povos, e não de reis, está na mobi
lização política e moral de todo o país. Argumentando, de modo implícito,
contra o predomínio do pensamento parisiense na tradição revolucionária,
144 L. Carpi, Il risorgimento italiano, Milão, 1887, vol. ui, p. 176; Battistini, Esuli, pp. 376-378; e a
curta, porém bibliograficamente rica biografia escrita por Della Feruta para o Dizionario biografico
degli Italiani, 1968, vol. x, pp. 226-229. Não existe nenhum estudo decente — nenhuma biografia
integral, aliás — dessa figura memorável. Sobre a relação entre seu livro e a rica história da insurreição
italiana, v. P. Pieri, “Carlo Bianco conte di Saint Jorioz ed il suo trattata sulla guerra partigiana”,
Bollettino Storico-Bibliografico Sub-Alpino, vol. LV, 1957, pp. 373—424; vol. LVI, 1958, pp. 77-104;
bibliografia às pp. 375-376.
145 V. Parmentola, “Carlo Bianco, Giuseppe Mazzini e la teoria dell’insurrezione”, Bollettino Domus
Mazziniana, voi. v, 1959, n° 2, pp. 5-40; também Garrone, pp. 333-342, sobre as relações, em meio
às comoções de 1830-1831, entre Buonarroti e Mazzini. Embora a colaboração entre revolucionários
nacionais e sociais não tenha sobrevivido ao desastre na Sabóia, a influência de Bianco sobre Mazzini
lhe permitiu exercer impacto permanente, ainda que não muito reconhecido, sobre a tradição
revolucionária. V. Pieri, pp. 95-104. Existem alusões a uma versão revista dessa obra, Manuale
pratico del rivoluzionario italiano desunto del trattato sulla guerra d'insurrezione per bande, que, ao
que parece, era um manuscrito inacabado que fora composto tendo em vista os preparativos para
a segunda expedição à Sabóia em 1833, embora Pieri se refira a eie corno se tivesse sido publicado,
“(Italia, 1833)”, pp. 374-375.
146 Della guerra, voi. i, pp. 12, 51, 70.
147 Ibid., p. 170 ss.
148 Ibid., p. 198 ss.; v. também Pieri, p. 79, além de pp. 290-292, para títulos superiores e cargos
complexos, indicados por nomes como “Grande Celiarca” e “Topógrafo-Geral”.
149 Pieri, p. 77.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1 848) 295
Bianco defendia que a posse de uma grande cidade — até mesmo uma capital
— não é importante nos primeiros estágios de uma insurreição nacional. A
verdadeira guerra nacional contra o invasor na Espanha e na Rússia começou
depois que Madri e Moscou tinham caído.150 A conquista de uma capital —
assim como o uso de uniformes e bandeiras específicos — deveria vir depois.
Era importante se prevenir para que as cidades grandes não corrompessem o
movimento durante os estágios embrionários da revolução. A própria Roma
era uma “cloaca” de desonestidade; e grandes cidades, de um modo geral,
privilegiavam “uma vida luxuriante e afeminada”.151
O movimento insurrecional foi então visto como uma espécie de revi-
vescência moral da nação a partir do campo. Os sete tipos de movimento
militar recomendavam uma espécie de calistenia corporativa para um povo
que já afundava em la dolce vita. Havia uma sensação de aventura atlética na
preferência de Bianco por armas leves, as quais valorizavam as habilidades
individuais e a intimidade entre homem e instrumento: estacas e forcados, a
faca espanhola e o pugnole italiano.152
Para Bianco, a violência (assim como a “força artificial” para Angeloni) só
era própria de estados reacionários. Bianco (tal qual os apóstolos posteriores
da violência revolucionária) via a si próprio como um relutante combatente
empenhado na causa da libertação nacional, a enfrentar os mercenários de um
império degenerado. Estes últimos lutavam apenas per violenza.153 Mazzini
tentou pôr em prática a sua teoria insurrecional,154 mas veio a depender mais
de exortação dos emigrados do que de ação revolucionária após os fracassos
do início da década de 1830. Garibaldi faria reviver a noção de confrontos
de guerrilha em meados da década de 1840; e as derrotas revolucionárias de
1848-1849 na Itália inspirariam um retorno à violência nos anos 1850 —
em especial no notável levante liderado por Cario Pisacane em 1857, feito a
partir de um navio que ele havia seqüestrado em alto mar.
Antes disso, Pisacane havia escrito um longo estudo da Revolução Italiana
de 1848-1849. Oficial militar de carreira, deu especial ênfase à necessidade de
motivação ideológica para a guerra revolucionária. Estabelecia-se diferença
150 Della guerra, vol. i, p. 25 ss.
151 Ibid., p. 18 ss., e Pieri, p. 382.
152 Sobre o que Bianco pensa de armas e vestes, v. Della guerra, voi. i, p. 176 ss.
153 Della guerra, voi. i, p. 301.
154 Sobre a natureza e o impacto da tradição insurrecional italiana antes de 1848, v. Francovich, “L’azione
rivoluzionaria”, em Idee; também S. Mastellone, Mazzini e la “Giovine Italia“, Pisa, 1960. A teoria
bàsica de Mazzini està em seu Della guerra d’insurrezione conveniente all’Italia, Marselha, 1833.
296 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
155 Segundo a introdução de E di Tondo à nova edição de Pisacane, Guerra combattuta in Italia negli
anni 1848-1849,Turim, s/d., p. 3. A obra, originalmente concluída em Lugano no dia 25 de outubro
de 1850, foi primeiro publicada lá em 1851.
156 Ibid.,pp. 187,200-201.
157 Ibid., p. 190.
158 Ibid., pp. 195,202.
159 Ibid., pp. 191-193, 206.
160 L. Cassese, La spedizione de Sapri, Bari, 1969, pp. 12—15.
161 Kosciuszko escreveu, em sua análise dos fatos de 1800 (Czy Polacy, p. 90, citado em Histoire militaire,
p. 132), que “não existe arma capaz de resistir à foice nem exército algum da Europa que não se
possa derrotar com foices”. Sobre o mito da foice, v. Halicz, pp. 44-45, 175, 183.
162 Histoire militaire, pp. 176—177, para muitos exemplos e referências. O fascínio polonês por armas
leves e portáteis talvez deva algo às duas pistolas (nas quais está gravado E pluribus unum) que
Kosciuszko recebeu de George Washington como presente de despedida (ibid., p. 125).
Kukiel sugere uma possível influência de Kosciuszko sobre Bianco ( “Military Aspects”, pp. 368-369),
embora essa especulação pareça questionável em vista do fato de identificar erroneamente Bianco
em outras passagens (“Problèmes des guerres d’insurrection au xix siècle”, Antemurale, 1955, p.
80). A obra de Bianco é atribuída equivocadamente a Mazzini em Histoire militaire, p. 181. Halicz
mostra que Bianco foi influenciado por Kosciuszko (p. 21) e influenciou poloneses importantes (pp.
77-79), bem como a Mazzini (pp. 45, 92-93).
LIVRO H, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 297
163 Wojciech Chrzanowski, O wojnie partyzanckiej, 2a ed., Paris, 1835. Ele enfatizou a importância de
ataques repentinos e emboscadas (pp. 78-79) e defendeu (p. 77) que se preferisse como arma de
fogo de mão preferencial a “carabina curta”, mais potente, à pistola. Até mesmo um monarquista
extremo como Ludwik Bystrzonowski, contribuiu com a discussão sobre rebeliões de partisan. V.
Histoire militaire, pp. 173-174 e nota 16.
164 P. Brock, “The Political Program of the Polish Democratic Society”, Polish Review, 1969, verão, p.
1; Kukiel, “Military Aspects”, pp. 370-372.
165 Escrito por um amigo de Mazzini, Karol Stolzman, Partyzantka; czyli, Wojna dia ludów powstajacych
najwlasciwsza, Paris, 1844. V. também H. Kamienski (pseudônimo Filaret Prawdowski), O prawdach
zywotnych narodu polskiego, Bruxelas, 1844. Lelewel insistia, no mesmo ano, em que a “insurreição
nacional” era “o meio mais seguro de chegar à independência nacional”. Histoire de Pologne racontée
par un oncle à ses neveux, Paris/Lille, 1844, vol. i, p. 328.
166 O notável tratado, Notes sur les fusées incendiaires, foi preparado pelo comandante-em-chefe
liberal da Polonia (e herói dos dezembristas), o Grâ-Duque Constantino. Foi litografado em 1819
e publicado em alemão, em Weimar, no ano de 1820. Ele também publicaria mais tarde um tratado
sobre o uso militar de “máquinas a vapor”. V. L. Komuda, “Constructor and Hero”, Poland, 1973,
dez., pp. 31-32.
298 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
167 Katechizm demokratyczny, Paris, 1845, p. 49; citado em Halicz, p. 168. Consultar a seção “Henryk
Kamienski’s ‘People War’” para tratamento detalhado (pp. 156-189).
168 Wojna ludowa przez X. Y. Z., Bendlikon, 1866; citado em Halicz, p. 159. Esse tratado, pioneiro em
seu conceito de independência total e mobilização em massa para a insurreição, foi traduzido para
o francês, para uso da resistência clandestina à ocupação nazista, com o título Insurrection est un
art, trad. J. Tepicht, 1943. V. Walicki, “Problem of Revolution”, p. 36. Kamienski acreditava tanto
na mobilização ideológica como na militar, e logo antes de concluir o seu Guerra Popular, em 1863,
fundou e editou um jornal aperiòdico em Genebra, o qual tinha um nome que depois seria adotado
pelos russos: Prawda (Verdade).
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 299
divorciados das massas. Fora de Paris e Lyon, mesmo entre os operários ur
banos havia pouca luta de classe organizada, que dirá consciência proletária.
Ainda assim, uma sensação de revolução social iminente assombrou boa
parte da Europa ao longo da década de 1830. O conservador Tocqueville, no
prefácio de seu A democracia na América, de 1835, empregou a expressão
“revolução social” e dela disse ser “irresistível [...] um fato consumado, ou
em vias de se consumar”.
Houve dois estágios principais no nascimento da tradição revolucionária
social, isto é, na transição das conspirações republicanas do início da década
de 1820 para o comunismo marxista do fim da década de 1840. Primeiro se
deu o aperfeiçoamento da idéia de ditadura revolucionária com Buonarroti
em sua última década de vida, de 1828 a 1837. Durante esse período, o ideal
babeuvista de igualdade e a luta de classes proletária foram ligados um ao
outro por alguns discípulos de Buonarroti — e também pelo seu sucessor
como principal organizador e símbolo da conspiração revolucionária, Au
guste Blanqui.
A segunda fase, que vai da década de 1830 até 1848, foi dominada por
emigrados, os quais, por um lado, internacionalizaram o impulso rumo à
revolução social e, por outro, estabeleceram seu elo com a classe trabalhadora.
Essa passagem dos revolucionários sociais da conspiração para a ideologia
se deu em Paris, Londres, Bruxelas e Genebra. Nessas cidades, havia relati
vamente pouca liberdade de expressão, de modo que o intelecto crítico era
forçado a confrontar a realidade de uma nova ordem industrial.
O legado de Buonarroti
174 A tradução para o inglês feita por Bronterre O’Brien, History of Babeufs conspiracy for equality,
L, 1836, foi em seguida bastante reimpressa e extratada. Diz-se que vendeu 50 mil copias em pouco
tempo (B. Barète, Mémoires, 1844, vol. iv, p. 92). A sugestão de Dommanget de que havia uma
primeira edição inglesa de 1828 (Pages, pp. 12-13), a qual é repetida por Saitta, é refutada por
Garrone, Buonarroti, p. 413, nota 1. A melhor edição da obra original francesa (cujo título completo
é Conspiration pour Pégalité dite de Babeuf, suivie du procès auquel elle donna lieu, et des pièces
justificatives, etc., etc., par Ph. Buonarroti) está editada com prefácio de G. Lefebvre, 1957,2 vol.
302 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
175 Memorando de Buonarroti em comemoração ao Dia da Bastilha, 1828, escrito logo antes da
publicação de seu Conspiração. Saitta, vol. ii, p. 92. Essa metáfora, depois invocada por Lênin, foi
utilizada por Nodier em 1815 (Histoire, p. 28) e por Jean Witt, outro historiador de sociedades
secretas na década de 1830 (Sociétés, p. 6, nota 1).
176 Saitta, vol. ii, pp. 136-139. Buonarroti não inclui a Rússia em sua lista de revoluções fracassadas,
talvez devido ao fato de os dezembristas terem desenvolvido diversas idéias sobre esse assunto (v. M.
Murav’ev, “Idéia vremennogo pravitel’stva u dekabristov i ikh kandidaty”, em Tainye obshchestva,
pp. 68-87). O principal grupo pedia um governo de três meses com poder provisório, durante o qual
a autoridade total seria transferida para a nova assembléia nacional (p. 84); mas alguns dezembristas
contemplavam um governo provisório que realizasse reformas sociais radicais (p. 70).
Não existe certeza alguma de que Buonarroti tenha mantido qualquer tipo de contato com os
dezembristas antes de meados dos anos 1830 através dos irmãos N. e A. Turgenev em Paris (v.,
deste último, “Parizh”, Sovremennik, 1836, n° 1, p. 275), embora Semevsky sugira a possibilidade
de contatos mais amplos (Idei, p. 536).
177 Mazauric, Babeuf, pp. 173-174. O autor revela a sensibilidade comum em leninistas que vivem em
democracias ocidentais para com a relutância que governos revolucionários “provisórios” têm de “se
desfazer”. Ele reprocha ao editor da obra de Babeuf, Lefebvre, por “não distinguir suficientemente a
organização de uma ditadura política e social provisória [...] do período posterior no qual se antevê,
como diz Buonarroti, a crescente participação de todos os cidadãos no sentido de estabelecimento
do estado comunista”, p. 173, nota 1.
178 Saitta, voi. ii, p. 139.
LIVRO II, CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1 848) 303
179 Saitta, vol. i, p. 125. Uma boa discussão geral da origem dessa idéia está em Garrone, “La dittatura
rivoluzionaria”, em Buonarroti, pp. 310-322.
180 Saitta, vol. n, p. 138.
181 Conspiration, vol. i, pp. 114—115.
182 Citado em Garrone, p. 338. Buonarroti defendia “a sabedoria de investir um homem da têmpera
de Robespierre na ditadura”. Conspiration, vol. i, p. 114, nota 1.
Para acesso aos escritos de Bianco sobre a necessidade de um governo provisório forte para governar
a Itália entre o desaparecimento do poder habsburgo e a “perfeita libertação”, v. Pieri, p. 77; e
Bianco, Della Guerra, vol. i, pp. 256-257, bem como outras frases em vol. i, p. 198 ss., e a seção
Dei governo provisionale fino alla perfetta liberazione d’Italia, vol. il, pp. 207-244. Ele argumenta
que a experiência trágica da Espanha depunha contra a dispersão da autoridade pelas assembléias
e contra receber prematuramente embaixadores estrangeiros. Daí a necessidade de um Condottiero
Supremo já no governo provisório: ibid., vol. n, pp. 229-231, 239 ss.
Saitta lança a hipótese de que os Veri Italiani de Buonarroti fossem os mesmos que os Apofasimèni
de Bianco {Buonarroti, vol. i, p. 203, o que é apoiado por E. Regioneri, Belfagor, vol. vi, n° 1,1951,
jan., pp. 112-113). Bianco inclui os Adelfi, os Filadelfi e os Sublimes Mestres Perfeitos de Buonarroti
em sua lista de antecessores especialmente reverenciados: Della Guerra, vol. i, p. 55.
304 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
193 De la Révolution à faire d'après l'expérience des révolutions avortées (também traduzido para o
italiano), citado em Saitta, vol. i, p. 147. Ele se opunha a quaisquer tipos de assembléia, que só
serviríam “para por freios à carruagem da revolução, para matar o impulso do povo” (p. 148).
194 Projet de constitution républicaine et declaration des principes fondamentaux de la société, 1833, em
Saitta, vol. I, p. 151. V. também a carta de De Potter a Teste de 10 de março de 1832, em Saitta, vol.
il, pp. 155-157. O jovem Étienne Cabet também defendeu, em setembro de 1832, um gouvernement
provisoire para fortalecer a segurança após uma revolução e conduzir as eleições depois de “unia
prorrogação suficiente [...] a fim de que os eleitores possam chegar a uma opinião pienamente
esclarecida sobre as qualidades que importa buscar nos deputados”. Révolution de 1830, pp. 93-94.
Mas Cabet, diferentemente dos buonarrotianos, tolerava a monarquia constitucional, pp. 97-98.
195 Dos estatutos da Famiglia em Garrone, Buonarroti, p. 351, nota 2.
196 Kuypers, p. 35 e ss. para estudo detalhado de suas operações na Bélgica; Garrone, Buonarroti, p.
349 ss. para os laços complexos entre essa e outras organizações.
197 Kuypers, p. 44.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 307
198 G. Isambert. “Les Anagrammes de Buonarroti”, Le Révolution Française, vol. xxxvn, 1899, pp.
455-462.
199 M. Rousseau, “Filippo Buonarroti et les artistes français sous la monarchie de juillet”, Revue des
études italiennes, 1938, abr.-set., pp. 162-163.
200 Ibid., pp. 163-166; v. também Egbert, Radicalism and the arts, pp. 191-194.
201 Reproduzido em Rousseau, “Buonarroti”, verso da p. 160. V. também, no verso da p. 163, a medalha
de bronze com o perfil de Buonarroti feita pelo escultor (e futuro prefeito do segundo arrondissement
da Paris revolucionária) David D’Angers.
202 De Espérance, 1834, citado em Rousseau, “Buonarroti”, p. 165.
308 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
203 Citado em R. Bouis, “Filippo Buonarroti nei ricordi di un democràtico francese”, Movimento operato,
1955, nov.-dez., p. 889. Esse valioso artigo (não utilizado por Saitta, Garrone e Eisenstein) inclui
longos excertos e discussão das Mémoires d'un prolétaire de Delorme, iniciadas em 1846, mas, ao
que parece, em sua maior parte concluídas antes de 1848, embora nunca publicadas na íntegra. V.
também, à p. 907, laços de buonarrotianos posteriores com agentes bonapartistas.
204 Bouis, p. 895.
205 Ibid., p. 896.
206 Ibid., pp. 897-898.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 309
Blanqui
224 Essas estimativas, mas não as relações estabelecidas e as conclusões tiradas, são feitas por Tchernoff
(pp. 89-90, 374, 380 e ss.
225 O texto com as perguntas e respostas está em Dommanget, Blanqui. Des origines, p. 149; v. também
discussão, p. 147 ss.
226 Esses últimos dois elementos exemplificavam algo que viria a caracterizar os movimentos
revolucionários sociais no século xx: o pária racial e o intelectual alienado. Barbès era um crioulo
extravagante originário de Guadalupe que pôs o seu treinamento militar em Paris a serviço da
insurreição revolucionária. Martin Bernard se entusiasmou sucessivamente com a Revolução Grega,
o saint-simonismo e o fourierismo antes de se tornar um tipógrafo a trabalhar diretamente para a
organização de Blanqui.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 315
Emigrados alemães
massas ainda pias. Isso foi importante para a construção de uma base para as
organizações revolucionárias de maior envergadura. Também foi importante
psicologicamente por prover laços humanos a intelectuais desenraizados em
uma cidade impessoal. A solidariedade entre pequenos grupos — relações
humanas face a face — era uma necessidade profunda para líderes sensí
veis e solitários. Respondeu a essa necessidade, particularmente na Itália, o
pequeno bando revolucionário, como um substituto da família, com rituais
quase religiosos.
Alguns dos novos exilados políticos estavam, contudo, atrelados fortemente
a idéias, desligados de fidelidades locais e tomados por uma visão revolucio
nária que era — para usar a palavra favorita daquela década — universal.
No início dos anos 1840, Flora Tristan, a autora franco-peruana e totalmente
desenraizada das Peregrinações de uma Pária, elaborou em Londres o primei
ro plano para uma aliança proletária de toda a Europa, a Union Ouvrière
[União Trabalhadora].235 No início dos anos 1850, emigrados continentais
em Londres que se designavam “os fora-da-lei” (proscrits) estabeleceram uma
aliança com nacionalistas revolucionários para constituir uma “república
universal”. Essas foram as primeiras de uma série de tentativas de exilados
políticos de construir uma organização ecumênica, o que por fim conduziría
à Primeira Internacional.236
Um certo gosto pela desordem começou a infetar os intelectuais. Flora
Tristan, por exemplo, defendeu uma “união [puramente] intelectual” dos
trabalhadores, mas queria que esta fosse movida pelo “fogo no coração”, de
modo que pudesse se constituir num “tição dentro do sistema”. À sugestão
de que alguém deveria acender esse tição, ela respondeu: “Não antes que
se tenha certeza de que o fogo será inapagável”.237 Quanto maior fosse o
sonho de irmandade, maior era, com freqüência, a necessidade pessoal de
uma “família” protetora ou de — para citar outra imagem de Flora Tristan
— uma “rede”.
Foi principalmente em meio aos alemães que ocorreu a passagem da
perspectiva nacional para a perspectiva social “universal”. Desiludidos com
a virada reacionária do seu próprio novo líder nacional, Frederico Guilherme
235 J. Puech, La vie et 1’ouevre de Flora Tristan. 1803-1844 (l’union ouvrière), 1943, p. 423.
236 V. o jornal que publicaram, Proscrit: Journal de la république universelle, e discussão feita em A.
Zévaès,uLes proscrits français en 1848 et en 1851 à Londres”, La Révolution 1848,1924, jan.-fev.,
p. 358 ss.
237 Do relato inestimável, baseado nos discursos dela em uma reunião no verão de 1843, publicado em
A. Ruge, Zwei Jahre in Paris, Leipzig, 1846, pp. 94-95.
318 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
238 W. Schieder, Anfänge der deutschen arbeiterbewegung (Die Auslandsvereine im Jahrzehnt nach der
Julirevolution von 1830), Stuttgart, 1963, esp. pp. 22-24.
239 Andler, Manifeste, p. 8 ss. Também C. Wittke, The utopian communist, a biography of Wilhelm
Weitling, Baton Rouge, 1950, p. 21, sobre Zelte ou Hütten, Kreislager e Brennpunkt. Os estatutos
dos Geächteten estão em L. Ilse, Geschichte der politischen Untersuchungen welche... in den Jahren
1819 bis 1827 und 1833 bis 1842 geführt sind, Frankfurt/Main, 1860, pp. 571-579.
240 Glaubensbekenntnis eines Geächteten, Paris, 1834. Esse panfleto raro de 12 páginas foi reimpresso
em W. Kowalski, Vorgeschichte und Entstehung des Bundes der Gerechten, 1962, p. 183 ss. Sobre
laços internacionais e influências, v. Garrone, Buonarroti, pp. 230-427; Mikhailov, Istorila, pp-
37-40; e (sobre o papel de um maçom de Heidelberg que, aparentemente, conhecia Buonarroti) W.
Koppen, Jacob Venedy, Frankfurt/Main, 1922.
LIVRO lí, CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAI VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 319
241 Steklov, Bakunin, vol. i, p. 144. Essa idéia pré-marxista da revolução como motim de presos se
originou em Weitling e viria a reaparecer brevemente nos anos 1960 com a versão pós-marxista e
radical da “revolução das ruas” a ser dirigida pelo Lumpenproletariat fora-da-lei, visão essa nutrida
por um Elridge Cleaver e um Franz Fanon. V. E. Cleaver, “On the Ideology of the Black Panther
Party”, The Black Panther, 6 de junho de 1970, p. 15; implicações deduzidas a partir de Wretched
of the earth, de Fanon, são discutidas em ibid., pp. 12—14; desenvolvimentos em B. Franklin, “The
Lumpenproletariat and the Revolutionary Youth Movement”, Monthly Review, 1970, jan., esp. pp.
19-20.
242 V. H. Schmidt, “Ein Beitrag zur Geschichte des Bundes der Geächteten”, Die Neue Zeit, vol. xvi,
1898, vol. I, p. 150 ss.; sobre o Nationalwerkstätte, v. Schieder, p. 196 ss.
243 Andler, p. 12 ss.; Schieder; pp. 223-224.
244 Em razão de todo seu radicalismo social, Schuster poderia ter colaborado com qualquer um dos
três governos (ou mesmo com todos eles). V. Mikhailov, ïstoriia, pp. 37-40.
245 Silbernagl, “Verbindungen”, pp. 808-809.
246 Ibid., p. 811 ss.
320 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
254 Die Menscheit wie sie ist und wie sie sein sollte, primeira edição publicada anonimamente, Paris,
1838,2a ed. em Berna, 1846; texto reproduzido em edição a cargo de E. Fuchs, Munique, 1895, e
discutido em Andler, pp. 24—29. Em 1840 também apareceram traduções húngara e norueguesa.
255 Sobre o Deutsche Bildungsverein für Arbeiter, que continuou existindo (embora sob nova roupagem)
até 1914, v. Lehning, “Association”, p. 194 ss.
256 E. Kandel*, Marks i Engel’s — organozatory soiuza kommunistov, 1952, pp. 106-107.
324 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖRIA
Uma mudança total na sociedade — uma mudança que significaria uma completa
subversão da atual “ordem do mundo” — é vislumbrada pelas classes trabalha
doras. Elas aspiram a estar no topo da sociedade, e não em sua base — ou, antes,
aspiram a que não existam topo nem base alguma.259
259 Poor Man’s Guardian, 19 de outubro 1833, pp. 333—334, em Thompson, The Making of the English
Working Class, p. 803, o qual atribui essa passagem a O’Brien. V. também A. Plummer, “The Place
of Bronterre O’Brien in the working class movement”, The Economic History Review, 1929, jan.
260 O papel fundamental dos irlandeses no cartismo proporcionou não apenas ímpeto em direção ao
extremismo por meio de O’Brien, mas também uma tendência (através de Fergus O’Connor) a
idealizar a vida agrária e ver no operário um ex-campônio. V. R. Higgins, “The Irish Influence in
the Chartist Movement”, Past and Present, 1965, nov., pp. 83-96.
261 B. Quarles, Frederick Douglass, NY, 1969, p. 81; K. Koszyk, Deutsche Presse im 19. Jahrhundert,
1966, vol. U, p. 188.
262 Braunthal, History, p. 51.
263 Relato presente na seção “Communist Intelligence” de Goodwyn Barm by, Communist Chronicle,
vol. I, n° 12, p. 133.
326 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Então Babeuf e Buonarroti se levantaram para declarar que sem reforma, sem
trabalho compartilhado e sem alegria não se alcança o objetivo da revolução.264
264 Ibid. O orador era Barmby, que, de acordo com o texto, pronunciou erradamente o nome de Babeuf.
265 “Arrivel of Weitling in England”, Communist Chronicle^ vol. I, n° 12, pp. 132-133.
266 Citado em Schraepler, “Der Bund”, p. 20.
267 Segundo Schapper, numa carta de Marx de 6 de junho de 1846, em Kandel, p. 112; o cálculo anterior
do número de membros é apresentado sem comprovações em Kandel, p. 106. Schraepler (“Der
Bund”, p. 8) estimou o número de membros para 1847 em acima de mil.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 327
272 Texto em Demokratisches Taschenbuch für 1848, Leipzig, 1847, citado em Obermann, p. 72.
CAPÍTULO 7
A alternativa evolucionária
3 Citado em Bardoux, Les dernières Années, p. 367. Esta ainda é a única grande obra de síntese sobre
os anos finais de Lafayette.
4 Ibid., p. 350.
5 Ibid., pp. 424-425.
6 13 de junho de 1833, em ibid., p. 419.
332 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
É difícil determinar com exatidão quão íntima e abrangente foi de fato sua
colaboração com os muitos grupos revolucionários com os quais manteve
contato ao longo dos anos 1820. As investigações policiais se mostravam
relutantes de se atirar com afinco num rastro que levasse a uma figura tão
poderosa e respeitada.7 A ascendência que tinha sobre a imaginação dos jo
vens representava uma transferência de esperanças messiânicas após a morte
de Napoleão em 1821. Ele se mostrava tanto o sucessor como a antítese da
“falsa libertação de Napoleão”. Em contraste, parecia injetar pensamentos
positivos em um projeto de racionalidade liberal. Sua distância aristocrática
frente à participação ativa em conspirações o tornou ainda mais vulnerável,
na condição de herói, quando as conspirações fracassaram.
De todo modo, mais importante que os detalhes de como Lafayette
colaborou com a nova geração de revolucionários europeus é a questão
de por que o fez. A resposta muito nos diz do poder permanente do ideal
revolucionário. Em 1787, antes da Revolução na França, ele defendeu diante
de uma assembléia de notáveis tanto a tolerância para com os protestantes
como a instauração de uma assembléia nacional. Ele dava primazia à idéia,
portanto, de reconhecer legitimidade na oposição ideológica e política, um
passo que poderia ter ajudado a França a seguir o caminho da Inglaterra e
da Suíça e a se prevenir contra o desenvolvimento de uma tradição revolu
cionária. E ele defendeu com não menos paixão a soberania popular total no
seu último grande discurso perante a Câmara dos Deputados, pouco antes
de sua morte em 1834.
Assim como o seu amigo Thomas Jefferson, Lafayette continuava a acreditar
na renovação por meio de perpétuo reexame e revolução periódica. Mas, ao
passo que os jeffersonianos contemplavam essas revoluções a se dar dentro
do sistema, os jovens radicais franceses que assistiam a Lafayette durante a
Restauração não estavam, de sua parte, tão certos assim. Lafayette sempre
acreditou estar agindo desde dentro do sistema, mesmo quando cooperava
com grupos revolucionários clandestinos. Assim como muitos reformadores
em épocas posteriores, ele pensava ser capaz de elevar e educar os jovens
extremistas — e de talvez recuperar algo de sua própria juventude em meio
7 Bardoux não é convincente com sua ampla generalização de que as conspirações do período
“começaram e terminaram com ele” (p. 284); mas não existe nenhum outro estudo imporrante do
problema. O perspicaz relatório político de Rémusat aponta para a dificuldade de investigar um
personagem que, cedo na vida, “adquirira o hábito de fazer segredo não de suas opiniões, mas de
seus planos”, que evitava mentiras, “mas não o silêncio”. Mémoires de ma vie, 1959, vol. li, pp-
24Ó-247.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÄRIA 333
8 Rémusat, p. 57. Segundo a análise de Rémusat, “a Revolução Americana botou Lafayette a perder
[...] a criação do fabuloso governo que adveio dela o encheu de ilusões. Ele acreditava na facilidade
das revoluções, e que ele havia nascido para fazê-las e liderá-las” (p. 245). Assim, quando viu a
juventude francesa protestando por uma revolução, “o entusiasmo deles o fez lembrar de seus
próprios anos de jovem. Aqui estava, mais uma vez, o seu sagrado batalhão. [...] Ele acreditava
lhes dever alguma coisa, e os via impacientes para consegui-la dele. Impôs-se o dever de liderá-los
pessoalmente — incapaz do pensamento de que alguém pudesse se arriscar mais do que ele pela
liberdade” (p. 57).
9 Ibid., pp. 57-58.
10 Bardoux, pp. 422-423.
334 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
11 Vie politique de... Lafaytte (publicada com o pseudônimo de Gigault), Coleção Franklin, YU, 1833,
p. 33. Ele foi ridicularizado por evitar participação revolucionária ao se retirar para sua propriedade
rural em La Grange, depois despertando “como uma marmota após o inverno” e esperando que o
levassem a sério.
12 Ibid., p. 1.
13 Citado em Harivel, p. 63.
14 Vie politique, p. 44.
15 Ibid., p. 46. A Inglaterra era denunciada como traiçoeiramente aliciadora (“a fortuna da aristocracia
foi lapidada à base de insurreições”) e irritantemente insular (“as revoluções ficaram restritas à sua
ilha sem qualquer impacto no continente”), p. 42.
LIVRO n, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 335
O mesmo egoísmo que fez com que os americanos dessem as costas à França
revolucionária em 1793 levou Lafayette à “omissão da palavra igualdade”16
em todos os seus discursos públicos. Claramente o “herói de dois mundos”
não era herói algum para os novos revolucionários sociais.17
Talvez não exista papel mais difícil de desempenhar nos tempos modernos
do que o de revolucionário moderado: o homem que honestamente compar
tilha tanto a esperança radical de um novo começo quanto a preocupação
conservadora para com os velhos valores e a continuidade. Nisso nada diverso
do que ocorrería a Martin Luther King em época posterior, Lafayette se viu
no centro dos acontecimentos e ponto de convergência “de todos os ódios e
preconceitos”18 de um tempo difícil. Embora nunca tenha atraído para si o
raio do assassinato, Lafayette enfrentou milhares de zombarias da direita e
da esquerda e um longo período de ignomínia póstuma. Logo antes de mor
rer, falou em tom cansado, numa carta a um velho revolucionário italiano,
da oscilação entre apatia e despotismo, que se alimentam mutuamente e
inviabilizam a maturidade política e o progresso social. Ela antevia tempos
nos quais “se iniciará a grande luta entre os dois princípios, o despertar dos
oprimidos contra os opressores; e haverá um grande incêndio na Europa
que poderia ser evitado por meio de um modesto endosso do programa do
Hôtel de Ville [...]”.19
A despeito de quão repugnante sua posição possa ter se tornado para
velhos aristocratas, novos revolucionários e orléanistas oportunistas, La
fayette permaneceu o mais destacado símbolo na Europa de esperanças
moderadas do típico ideal revolucionário. Embora lamentasse a infelicidade
resultante da malfadada disseminação da revolução por outros países em
1830,20 ele aceitou se tornar membro da guarda nacional polonesa em 1831
16 Ibid., p. 34.
17 Mesmo uma avaliação neutra de Lafayette logo passaria a ser vista como “prova” de insinceridade
ou timidez revolucionária. Veja-se a denúncia que Théodore Dézamy faz daquele que outrora fora
seu patrono, Cabet, por deixar passar o desmascaramento feito por Buonarroti e assim falhar em
denunciar Lafayette com vigor suficiente. Calomnies et politique de M. Cabet. Réfutation par des
faits et par sa biographie, 1842, p. 31-33.
18 Rémusat, vol. il, p. 254.
19 Carta a Belgiosco de 21 de agosto de 1832, em A. Malvezzi, “Il generale La Fayette e la rivoluzione
italiana del 1831”, em PAN, Io de julho de 1934, p. 366.
20 Carta de 6 de maio de 1831 a Casimir Périer, solidarizando-se com os italianos e reconhecendo as
“obrigações especiais” dos franceses, ibid., pp. 363-364. Lafayette foi, contudo, julgado acerbamente
por Pepe como “um desses aristocratas que, ligando-se a idéias sem nada entender delas, torna
trágica uma situação que não o era”. Falcionelli, Sociétés, p. 252; também p. 124, para a promessa
de Lafayette de ajudá-lo.
336 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Mas fora o vulcão, e não o sol, que dominara a vida política da França
durante a era revolucionária. Os grandes momentos de Lafayette — a De
claração dos Direitos do Homem de 1789 e os “três dias gloriosos” de 1830
— foram ofuscados pelas convulsões mais decisivas de 1792 e 1848, respecti
vamente. Cada uma dessas revoluções eminentemente políticas terminou por
levar ao poder um Napoleão. Em um mundo de política polarizada, poder
centralizado e liderança demagógica, havia pouco espaço para Lafayette.
25 A biografia-padrão escrita pelo seu filho, Henri Fazy, James Fazy. Sa vie et son oeuvre, Genebra/
Basel, 1887, pp. 1-2, 4-5, deve ser complementada com E Ruchon, “Une Famille genevoise: Les
Fazy d’Antoine Fazy, fabricant d’indiennes, à James Fazy, homme d’état et tribun”, em Bulletin de
l’institut national genevois, vol. li, 1939, pp. 3, 6, 8.
26 Vuilleumier,“Buonarroti... à Gèneve”, pp. 486-487; Henri Fazy, pp. 3-16. V. também a boa discussão
em F. Brokgauz e I. Efron, Entsiklopedichesky slovar’, vol. xxxv, pp. 235-236, e Les mémoires de
James Frazy, Genebra, 1947.
27 De la Banque de France, considérée comme nuisible aux transations commerciales, 1819; a alegoria
utópica sobre a soberania popular Voyage d’Ertelib, Genebra, 1822; e a peça La mort de Lévrier,
Genebra, 1826.
28 L’Homme aux portions ou conversations philosophiques et politiques, 1821, pp. 140,211-213; v.
também a § “Observations sur la révolution française”, pp. 66-119, LC.
338 A FÊ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
uma unidade interna no trabalho de sua vida — nas idéias que expressou,
bem como na tradição que representou. Ideologicamente, articulou como
ninguém o que pode ser descrito como a alternativa gradual e evolucionária
à revolução e à reação. De modo mais geral, a tradição suíça mostrava uma
tal receptividade à mudança gradual, a ponto de parecer eficazmente — e
talvez instrutivamente — imune à formação de uma tradição revolucionária.
Ao examinar as idéias de Fazy, acha-se desde o princípio a crença numa
democracia humanizada, personalizada — composta pelos ideais univer
sais da Revolução Francesa e pela experiência intimista e comunal de sua
Suíça natal. Suas raízes numa família ligada à manufatura lhe permitiram
perceber, duma forma que poucos teóricos sociais radicais eram capazes de
fazê-lo na Europa continental, a necessidade irreversível e o potencial liber
tador do desenvolvimento industrial. Como Saint-Simon, ele acreditava na
“necessidade de uma revolução industrial como meio de evitar uma nova
revolução política”.41 Para Fazy, o verdadeiro conflito era, por um lado, entre
aquelas sociedades fechadas e “absolutistas” e, por outro lado, aquelas que
eram abertas e “inquiridoras”. Ele temia igualmente as velhas autoridades
eclesiásticas e os novos ideólogos políticos com suas doctrines alarmantes
du sans-culottisme apostolique.
A França da Restauração estava falsamente preocupada mais com pro
teger a riqueza antiga do que com criar novos ricos. Tomada de assalto
por ligeiras manobras políticas de “todos aqueles partidos mais ou menos
detestáveis ou ridículos”,42 a França se deixou transformar numa arena de
disputas débilitantes entre velhos. As “ruínas da emigração”43 altercavam
com a revolucionária “geração de 1789” já esgotada, que “começou por
interditar os pais e terminou por deserdar os filhos”.44
À juventude se deveria dar poder porque era ela, “parte viril da nação”45,
que fazia a maior parte do trabalho e era a única a compreender “as ver
dadeiras necessidades do corpo social”.46 A juventude buscava objetivos
socioeconômicos concretos, em vez de ideais políticos abstratos; e deveria
41 Fazy, Principes d'organisation industrielle pour le développement des richesses en France. Explication
des malaises des classes productives et des moyens d'y porter remède, 1830, título da § às pp. 271-282.
42 Gérontocratie, pp. 6-7.
43 Ibid., p. 22.
44 Ibid., p. 5.
45 Ibid., p. 9.
46 Ibid., p. 22.
342 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
“Em nome do povo de Genebra, que não tolera mais o seu governo e que se alinhou
comigo”, e logo em seguida Fazy puxou a cortina da porta da sala. Um grupo de
homens armados tomou o salão, pronto a descarregar fogo ao primeiro sinal de
Fazy. Os velhos “patrícios” e pacíficos calvinistas foram pegos de surpresa.
49 Mémoires, p. 246.
50 Herzen, My Past, vol. n, p. 726.
51 Ibid.
344 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A soberania do povo é uma soberania absoluta, cuja totalidade nunca pode ser
confiada a ninguém [...] O povo nunca delega senão partes de sua soberania.54
62 Onu, “Sotsiologicheskaia”, pp. 29-55, distingue essa revolução local com objetivos universais das
ondas mais disseminadas de revoluções que possuem, contudo, objetivos mais provincianos (como
em 1848).
LIVRO IL CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 347
67 K. Jürgensen, Lamennais und die Gestaltung des belgischen Staates. Der liberale Katholizismus in
der Verfassungsbewegung des 19 Jahrhunderts, Wiesbaden, 1963. Lamennais tendia a ser influente
em países onde a revolução havia sido frustrada: na Alemanha dos anos 1830, como já discutido,
e na Rússia dos anos 1840; v. E Nikitina, “Petrashevstsy i Lamenne”, em Dostoevsky. Materialy
i issledovaniia, vol. ui, 1978, pp. 256—258, a primeira divulgação de um longo estudo ainda a ser
publicado.
68 Essai sur l'indifférence en matière de religion, 4 vol., 1817-1823.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 351
69 É a tese de H. Commanger, The empire of reason. How Europe imagined and America realized
the Enlightenment, NY, 1977, ecoada no essencial por P. Gay, “America the Paradoxical”, emThe
George Mason Lectures, Williamsburg, 1976.
CAPÍTULO 8
Profecia: o surgimento da intelligentsia
Os saint-simonianos
Pesquisas recentes, às quais se tem dado pouca atenção, indicam que os revo
lucionários babeuvistas e filadelfos podem ter influenciado diretamente Henri
de Saint-Simon durante a primeira década do século xix. Muito estudado
como uma influência de revolucionários posteriores, Saint-Simon também
deveria ter sido visto ele próprio como talvez influenciado, de modo direito,
pelos primeiros conspiradores da era napoleonica.
O elo crucial na sucessão apostólica que vai da Conspiração de Babeuf ao
nascimento da ideologia com Saint-Simon está em um dramaturgo e editor
revolucionário de menor importância, Jacques Rigomer-Bazin, com quem
Saint-Simon viveu em Paris em vários momentos importantes durante aquela
década. Pode ser que Bazin estivesse ligado ao Círculo Social de Bonneville,
e é quase certo que tomou parte da Conspiração de Babeuf quando ainda
trabalhava como jornalista revolucionário na provinciana Le Mans.56Depois
de se mudar para Paris, tornou-se próximo de Maréchal e de outros sobre
viventes da conspiração por meio de um círculo de intelectuais radicais que
começou a se reunir periodicamente no Café Manège em 1799. A polícia
parisiense prendeu Bazin em maio de 1804 e confiscou o seu Esboço de um
novo projeto de organização social^ que aparentemente propunha que uma
elite autoritária de 30 sábios ajudasse os pobres a instaurar a igualdade social?
Saint-Simon estava morando com Bazin à época de sua prisão; e poste
riormente, como fica claro, ele tomaria de empréstimo muitos elementos
dos escritos de Bazin desse período. Sua Carta de um Morador de Genebra
(1802-1803) propunha que 21 homens de gênio iniciassem uma subscrição
diante do túmulo de Newton e dessem início à reorganização científica da
5 O nome da sua organização em Le Mans, cercle constitutionnel ambulant, sugere elo com Bonneville.
V. J. Dautry, “Babuvistskaia traditsiia posle smerti Babefa i do revoliutsii 1830 g.”, em Frantsuzsky
ezhegodnik 1960, 1961, pp. 156-157, 165.
6 Ao que parece, não restaram cópias da obra confiscada de Bazin, Esquisse d’un nouveau plan
d’organisation sociale par un philanthrope. V. J. Dautry, “Saint-Simon et les anciens babouvistes
de 1804 à 1809”, em Babeuf... deuxième centenaire, p. 164. Dautry duvida da hipótese lançada
anteriormente por Mathiez, de que Saint-Simon pode ter sido influenciado diretamente por Babeuf
quando ambos estavam na Picardia em 1790—1793.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 357
sociedade. Sua obra seguinte, de 1804, adotou até o título da obra confiscada
de Bazin, acrescentando à defesa que este fizera de uma elite científica uma
idéia que pouco depois ganharia maior desenvolvimento nas mãos de Bazin:
o artista deveria ser o moralista da nova era científica; e um novo tipo de
escritor, o littérateur, o seu propagandista.7
Bazin desempenhou esse papel quando reapareceu, após sua soltura em
1807, como editor de um novo jornal, o Lettres Philosophiques, que atacava
os católicos e defendia ferrenhamente Maréchal em nome do “partido que
persiste em instruir para o progresso da filosofia”.8 O jornal se propunha
supostamente a “iniciar uma correspondência pública entre os filósofos”;9
mas parece que, na verdade, serviu de meio de comunicação (e talvez até de
mensagens codificadas) entre revolucionários filadelfos. Bazin era um de seus
líderes. Assinou um artigo de destaque, “Diálogo sobre a filosofia”, com o
nome de Philadelphe*, e a lista de 250 assinantes incluía a maior parte dos
principais revolucionários do período, cuja soma total era compatível com
a organização da sociedade em células de cinco homens. Parece razoável
a suposição de que o Lettres fosse simplesmente o órgão público de uma
conspiração secreta.10
No último número do jornal, Bazin lançou o clamor clássico do intelectual
alijado socialmente; perturbado com objetivos abstratos, ansioso por adquirir
relevância política e obcecado com a sua própria importância missionária,
anunciou que estava desistindo da filosofia de uma vez por todas em prol de
un plan d'une plus grande étendue; j'ouvre un plus vaste champ à la critique
[...] sur tous les points de la République des Lettres [um projeto de maior
escopo; lavro um campo mais vasto para a crítica [...] de todos os aspectos
da República das Letras].11
O novo jornal de Bazin incumbido de realizar essa missão jamais foi
criado; ele foi preso no início da primeira conspiração de Malet em 1808.
7 O Esquisse d’un nouveau plan d’organisation sociale par un philanthrope, do próprio Saint-Simon,
foi escrito anonimamente e permaneceu inédito até 1925. Dautry o comenta em Saint-Simon, Textes
choisis, 1951, p. 20.
8 Citado das Lettres philosophiques em Dautry, “Saint-Simon et babouvistes”, p. 165. Seu elogio de
Maréchal está em Lettres, pp. 109-118 (BN). Sua visão similar à de Maréchal da filosofia como o
“ponto” da “perfeição da espécie humana” para o qual todas as ciências convergem é desenvolvida
em Lettres, p. 203.
9 Citado em ibid., p. 166.
10 Interpretação sugerida por Dautry (ibid., p. 169) e Tugan-Baranovsky, “Male”, p. 179. Indicações
suplementares da importância de Bazin para os filadelfos estão em Vermale, Didier, pp. 96-97.
11 Citado em “Saint-Simon et babouvistes”, p. 170.
358 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Liberto da prisão em 1809, morou secreta e ilegalmente mais uma vez com
Saint-Simon, que o ajudou a fugir para o exílio.12 Embora seus caminhos
pareçam não ter mais se cruzado,13 fica claro que, durante esse período
de formação, Bazin serviu de inspiração pessoal e ideológica para a visão
saint-simoniana de uma elite de intelectuais que transformam não só a po
lítica, mas toda a sociedade e cultura humanas.
Para rastrear a origem da ideologia revolucionária, deve-se distinguir
duas fases sucessivas do movimento saint-simoniano: a cientificista e a ro
mântica. A primeira delas ocupou os últimos vinte e cinco anos de vida de
Saint-Simon, o que corresponde ao primeiro quarto do século xix. Repre
sentou, em essência, uma reafirmação da crença setecentista no progresso
racional, secular. A segunda fase romântica se desdobrou durante a década
que se seguiu à morte do mestre, em 1825. Atendendo ao chamado de sua
última obra, O novo cristianismo, os discípulos de Saint-Simon criaram uma
nova e fantástica religião secular, com uma perspectiva global que antecipou
muitos aspectos do pensamento do século xx.
15 Éléments d’idéologie, 1801, vol. i, p. 1. V. G. Lichtheim, The concept of ideology and other essays,
NY, 1967, 3-46.
16 Cabanis, “Rapport du physique et du moral de l’homme”, p. 123, citado em G. Boas, French
Philosophes of the Romantic Period, Baltimore, 1925, p. 69.
17 A transposição de categorias fisiológicas para sociológicas é discutida nas obras de G. Gurvitch sobre
Saint-Simon, de modo mais breve em sua introdução a Comte Henri de Saint-Simon. La physiologie
sociale, 1965.
18 Considérations sur les mesures à prendre pour terminer la révolution, 1820.
19 A abordagem clássica do grupo está em F. Picavet, Les idéologues, 1891, embora esse conceito de
idéologues seja às vezes demasiado abrangente. V. C. van Duzer, Contributions of the Ideologues to
French Revolutionary Thought, Baltimore, 1935. Uma nova história englobante do movimento, de
suas origens pré-revolucionárias até sua dissolução sob Napoleão, está em S. Moravia, Il Tramonto
dell"illuminismo. Filosofia e politica nella società francese (1770-1810), Bari, 1968.
360 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
20 O título era Projet d'éléments d'idéologie à l'usage des écoles centrales de la république française.
Sobre a “academia revolucionária”, v. Kennedy, pp. 78—79.
21 Napoleão não foi seu único crítico. Filósofos moralistas como Mercier (que também estava
competindo pelo favor de Napoleão) os chamavam de idiologues, “idiotas” (Mormile, Néologie,
p. 197; Mercier, L'An [ed. Trousson], p. 26). O arquicrítico de Napoleão em meio aos intelectuais,
Madame de Staël, por sua vez o chamou de idéophobe (T. Jung, Lucien Bonaparte et ses mémoires,
1882, vol. il, p. 233 ss., citado em Madame de Staël, Ten Years of Exile, NY, 1973, p. 19).
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 361
que chamou littérateurs no seu Esboço de 1804, aos quais depois se referiría
como publicistes. A doutrinação científica e a unidade intelectual deveríam
ser fornecidas mediante uma nova “enciclopédia positiva” na qual trabalhou
de 1809 a 1813.22 Seu Ensaio sobre a ciência do homem^ de 1813, sugeria
que todo campo do conhecimento transitava de um estágio conjetural até
um estágio “positivo”, e que as ciências alcançavam esse estágio seguindo
uma ordem precisa.23 A fisiologia chegava agora ao estágio positivo, assim
como antes a astrologia e a alquimia haviam dado lugar à astronomia e à
química. Agora era a vez da ciência do homem chegar ao estágio positivo e
reordenar inteiramente todas as instituições humanas.
Sob certo aspecto, Saint-Simon estava apenas revivendo a visão iluminis-
ta da humanidade como a cruzar três estágios sucessivos até chegar a uma
ordenação científica da vida (veja-se Turgot e seu Discurso sobre a história
universal, de 1760), bem como a visão do progresso universal até chegar a
uma ordem racional (veja-se Condorcet e seu Esboço de um retrato históri
co do progresso da mente humana, escrito em segredo pouco antes de sua
morte em 1794).
Mas, do mesmo modo como o regime revolucionário condenara Condorcet,
assim também Napoleão fechou a Segunda Seção do Instituto. Saint-Simon
foi forçado a publicar anonimamente as suas primeiras propostas e a fazê-lo,
em geral, fora das fronteiras do império napoleonico. Desse modo, Napoleão,
que ajudara a inspirar a busca por uma ciência do homem, também deu início
ao processo de voltá-la para caminhos revolucionários sociais.24 Convicto
de que o método científico deveria ser aplicado ao corpo da sociedade tanto
quanto ao corpo individual, Saint-Simon passou a analisar a sociedade em
22 Seus escritos sobre esse projeto são discutidos e pormenorizados em J. Walch, Bibliographie du
saint-simonisme, 1967, p. 31. V. também Gurvitch (ed.), Saint-Simon, p. 17; e H. Gouhier, “Un ‘projet
d’encyclopédie’ de Saint-Simon”, em Revue Internationale de Philosophie, vol. xiv, n° 53-54,1960,
pp. 387, 393.
23 Mémoire sur la science de l’homme, elaborado com diversas variantes em 1813, embora inédito até
1858. Algumas seções estão traduzidas em Markham, pp. 21-27.
24 Um exemplo paralelo e único de propostas excêntricas elaboradas na França, objetivando a
transformação revolucionária social do governo de Napoleão, está nas obras de dois naturais de
Lorraine, os quais se conheceram na Rússia e se mudaram para Paris, Pierre-Ignace Jaunez-Sponville
e Nicolas Bugnet: Catéchisme social ou exposition familière des principes posés par feu (1808) e La
Philosophie du Ruvarebohni, 2 vol. (1809). Essa ùltima retrata os náufragos “icanarfs” (franceses)
que vivem numa ilha sob o poder despótico de “Ponélano” (Napoléon), e descreve sua transformação
na “verdadeira felicidade” (vrai bonheur, um anagrama de Ruvarebohni} de uma “comunidade de
bens” cristã e comunista que rompe com todos os vestígios de consumo egoísta. V. Ioannisian, “Iz
utopicheskogo kommunizma vo Frantsii v nachale xix stoletiia”, em biovaia i Noueishaia Istorila,
1961, n° 3, pp. 58-69; e E. Pariser, “L’Utopie de deux lorrains sous Napoléon 1”, em Études, pp.
241-260.
362 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
afirmou, com uma falta de modéstia bem característica, nas palavras finais
de sua última obra endereçada aos chefes políticos da Europa: “Retornem
ao verdadeiro cristianismo novamente [...] Cumpram todos os deveres que
ele impõe aos poderosos. Lembrem-se de que ele os manda devotar toda sua
força à mais rápida melhoria da sina dos pobres”.26
Saint-Simon prometeu explicitar detalhadamente a natureza do “novo
cristianismo”. Morreu, porém, em 1825 e nunca pôde ir além da sugestão de
que se assemelharia a seitas cristãs heréticas do passado e que reorganizaria
a sociedade em benefício dos mais pobres.
Saint-Simon era uma força intelectual verdadeiramente seminal: pai do
socialismo e da sociologia, e um João Batista da ideologia revolucionária,
clamando no deserto da era napoleònica e da Restauração um novo histo-
ricismo e o relativismo moral.
Saint-Simon foi um dos primeiros a popularizar a crença especificamente
oitocentista de que a verdade não é absoluta e sim histórica, e é materializada
não no pensamento individual, mas na ação social. Foi um dos primeiros pen
sadores continentais a afirmar que a Revolução Industrial foi mais importante
que a revolução política na França. Para ele, os fatores decisivos da história
eram as ferramentas e as revoluções tecnológicas. Arquimedes foi maior que
Alexandre; Newton maior que Napoleão. As verdadeiras forças de mudança
na sociedade moderna, os industrieis, longe de terem sido favorecidos pelas
mudanças políticas na França, suportavam agora, ao contrário, o peso de um
segundo grupo de oisifs improdutivos: os novos políticos junto aos velhos padres.
Para Saint-Simon, a burguesia era praticamente tão parasita quanto os
aristocratas ociosos do ancien régime. Ele rejeitava o liberalismo (o qual logo
veio a triunfar entre seus amigos mais próximos, como Augustin Thierry)
como um movimento negativo e crítico, incapaz de reunificar a humanidade,
incompatível com o novo estágio positivo da ciência. Ele reconhecia a primazia
da economia sobre a política, da fisiologia sobre a metafísica. O governo era
uma função social apropriada ao estágio metafísico da história e deveria ser
agora substituído por uma organização social racional adequada à explo
ração da natureza. O jugo do homem sobre o homem sempre foi opressor;
o jugo do homem sobre as coisas, libertador. Até em sua manifestação mais
política, sua Reorganização da Sociedade Européia, de 1814, ele incitava a
uma ruptura com os sistemas políticos pretéritos, saindo em defesa de um
27 A importância dessa obra é enfatizada em E Manuel, The eighteenth century confronts the gods,
Cambridge, Massachusetts, 1959.
28 De acordo com um de seus líderes, E de Corcelle, Documents, p. 8; citado em Isambert, De la
Charbonnerie, p. 118.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 365
[...] serão para o futuro social o que o balão de ensaio é para a experiência aero
náutica. O balão de ensaio incha diante dos olhos da turba maravilhada, sobe, vai
ficando cada vez menor, perde-se no espaço. Após um papel brilhante e passageiro,
não mais existe; mas [...] durante esse processo ganhou uma familiaridade com as
zonas atmosféricas e com os caprichos dos ventos que o aguardam [...]39
36 Fakkar, p. 95.
37 Esses pedidos de Comte para que adotassem o seu Système de politique positive estão discutidos
e documentados em Billington, “The Intelligentsia and the Religion of Humanity”, em American
Historical Review, 1960, jul., pp. 807-808.
38 Pormenorizado em G. Deville, “Origine des mots ‘socialisme’ et ‘socialiste’ et de certains autres”,
em La Révolution Française, 1908, jan.-juL, pp. 395-399.
39 L. Reybaud, “Socialistes modernes. I. Les Saint-Simoniens”, em Revue des Deux Mondes, 15 de
julho 1836, p. 341.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 367
40 V. J.-P. Callot, Histoire de l’école polytechnique, 1959* pp. 65,223-226; e para a integração da escola
ao ethos napoleònico, particularmente após a mudança para a sua nova localização em 1805, v. pp.
33-54.
41 Expressões tiradas da Exposition presente em Isambert, De la Charbonnerie, pp. 182-183. Existe
uma tradução inglesa em G. Iggers: The doctrine of Saint-Simon: an exposition; first year» 1828-1829,
Boston, 1958. O termo protocomunista “comunidade de bens" foi concebido e defendido por Prati
no seguinte tratado: Fontana (presidente), Prati (sacerdote), Samt-Simonism in London. On the
Pretended Community of Goods or the Organization of industry, on the Pretended Community of
Women or Matrimony or Divorce, 2a ed., L, 1834, esp. p. 7 (GL).
42 R. Parkhurst, The saint-simonians Mill and Carlyle, L, 1958.
368 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
43 Essas ênfases triádicas são reforçadas na tese inédita de P. Mickey, “Le Livre Nouveau: The Vision of
Monastic Saint-Simonism”, Princeton, 1971, esp. pp. 82-93. A tese traz como apêndice a primeira
reprodução completa do inédito Livre Nouveau a partir do manuscrito presente em BA.
44 Mannheim, Ideology and Utopia, NY, 1936 (as seções ii-iv são tradução do original alemão, Bonn,
1929); esp. “The Sociological Problem of the ‘Intelligentsia’”, pp. 153-164.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 369
Globalismo romântico
51 “El movimiento sansimoniano argentino senala el punto de divergência definitiva entre la involution
del espírito hispano-colonial y el nacimiento de una mentalidad argentina”. J. Ingenieros, “La filosofia
social de Echevarria y la leyenda de la ‘Asociación de Mayo’”, em Revista de Filosofia, 1918, mar.,
p. 236. O líder Esteban Echeverria esteve na França em 1826-1830; e o jornal planejado pelo seu
grupo em 1838 deveria ser um “periódico puramente literário y socialista nada político”, com
Jnteligencia e várias outras palavras do tipo inscritas no cabeçalho, p. 240. V. também Ingenieros,
“Los Saintsimonianos Argentinos”, em Revista de Filosofia, 1915, set., pp. 275-315.
52 Sobre Zmartwychwstmicy, que se ignora em todas as histórias não polonesas, v. Callier, Janski,
e a história oficial da ordem: Historia zgromadzenia zmartiuychwstania panskiego, Cracóvia,
1892-1896, 4 vol. Ao mesmo tempo, a Sociedade Democrática Polonesa, composta de emigrantes
revolucionários, definiu o seu programa empregando termos saint-simonianos, isto é, trabalhando
para alcançar uma “época orgânica” de reconstrução social. V. Brock, “Program”, p. 98.
53 J. S. Mill, Correspondance inédite avec Gustave d’Eichtal, 1898, p. 147.
54 A. Abdel-Malek, Idéologie et renaissance nationale. L’Egypte moderne, 1969, p. 197, lista as primeiras
como Paris (1794), Berlim (1799), São Petersburgo (1809), Praga (1806) e Glasgow (1823). Tanto
no Oriente Próximo como na América Latina, as idéias de Saint-Simon tendiam a se mesclar com
o positivismo comteano e a fortalecer mais o estatismo que o socialismo (pp. 189-198).
LIVRO n, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 371
Suez
Est le centre de notre vie de travail
Là nous ferons l'acte
Que le monde attend
Pour confesser que nous sommes
Mâles.
[Suez
É o centro de nossa vida de trabalho
Lá realizaremos o ato
Que o mundo aguarda
Para confessar que somos
Homens.]62
70 Urbain, Notice autobiographique, 1883, manuscrito inédito 13737, BA, p. 6. Esse testemunho
valiosíssimo e não utilizado complementa, no que tem de essencial, o único esforço de maior fôlego
de oferecer uma história abrangente da vida de Urbain, Emerit, Saint-Simoniens, esp. pp. 67-83.
LIVRO IÎ, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 375
84 Ibid., p. 16. Eichtal se expandiu em entusiasmo com o espetáculo de dançarinos negros no Ópera
de Paris: “Das profundezas de meus estudos, eu me transporto com prazer para o meio de tribos
negras. [...] Vejo-os remexendo suas ancas por horas a fio” (p. 29). Urbain observou em resposta
que os muçulmanos africanos dançam ao ar livre, não em casas de ópera fechadas, e o fazem tanto
para rezar como para festejar (pp. 43-44, 48, na única carta de Urbain presente nesse volume).
85 Ibid., p. 52 ss.
86 Ibid., pp. 7, 58-59.
87 G. d’Eichtal, De l’état actuel et de l’avenir de l’islamisme dans l’Afrique centrale* 1841. Ele tinha sido
o primeiro apóstolo do saint-simonismo para os ingleses. V. Fakkar, p. 149 ss.; também B. Ratcliffe,
“Saint-Simonianism and Messianism: The Case of Gustave d’Eichtal”, em French Historical Studies*
1976, primavera, pp. 484-502, o qual, contudo, não menciona Urbain.
88 L’Algérie: courrier d’Afrique* d’Orient et de la Méditerranée.
89 Notice, p. 27.
90 Emerit, Révolution...en Algérie, pp. 76-77; e, de modo mais amplo, v. pp. 76-86 sobre esse grupo
de feitio carbonário. Um dos réus prenunciou Dostoiévski ao chamar outro réu de Cristo e seu
promotor de acusação de Inquisidor (pp. 81-82).
378 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Os hegelianos
Os “jovens hegelianos”, ou “hegelianos de esquerda”, transformaram o vago
historicismo dos saint-simonianos e outros em estreita convicção revolu
cionária. Sua influência (como a dos discípulos de Saint-Simon) se iniciou
apenas após a morte do mestre. Cerca de uma década depois da aparição
do movimento saint-simoniano, o hegelianismo de esquerda surgiu ao fim
dos anos 1830 como distintivo geracional dos radicais mais jovens situados
a leste do Reno. Alexander Herzen, um dos fundadores da tradição revolu
cionária russa, procedeu de modo bastante típico ao passar do entusiasmo
inicial com Saint-Simon, cujas obras ele “carregava comigo como um Corão”,
para Hegel, em quem encontrou “a álgebra da revolução”.95 As metáforas
Pedagogia prussiana
101 S. D’Irsay, Histoire des universités françaises et étrangères^ 1935, vol. n, pp. 184-202.
382 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
106 Carta de 13 de outubro de 1806, na valiosa introdução de Z. Pelczynski a Hegel’s political writings,
Oxford, 1964, p. 7.
107 V. o penetrante ensaio de Karl Barth sobre Hegel como intelecto moderno modelai; Protestant thought
from Rousseau to Ritschl, L, 1959, pp. 268-305. Das muitas discussões filosóficas de Hegel, esta
exposição deve-se principalmente a E Grégoire, Études hégéliennes; les points capitaux du système,
Louvain, 1958. Alguns dos elementos aqui incluídos são mais implicados que afirmados diretamente
por Hegel (por exemplo, tese-antítese-síntese); mas, uma vez que lidamos com sua influência póstuma
por meio de expositores secundários, apresenta-se um retrato compòsito.
384 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O despertar eslavo
108 B. Baczko, “La gauche et la droite hégélienne en Pologne”, em Annali, 1963, vol. vi, pp. 137-163;
e a antologia Polskie spory o Hegla 1830-1860, Varsóvia, 1966.
109 A. Walicki, “Hegel, Feuerbach and the Russian ‘philosophical left*”, em Annali, vol. vi, pp. 121-122.
110 Citado em Fakkar; p. 107.
388 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
119 A contínua liderança polonesa na criação de termos é novamente indicada no caso de inteligentny,
a forma adjetiva de intelligentsia. A versão polonesa estava já listada em uma enciclopédia de 1863:
“[...] no sentido mais amplo da palavra, chamamos inteligentny todo aquele que é um mestre completo
de algum ramo do conhecimento, por exemplo, um estadista, um arquiteto etc.”. Encyklopedyja
powszechna S. Orgelbranda, vol. xii, 1863, pp. 617-618, como citado em Wójcik, p. 22, nota 6.
120 M. Malia, “Schiller and the Early Russian Left”, em Harvard Slavic Studies, vol. iv, 1957, p. 188.
121 Polnoe sobranie sochinenii, vol. xi, 1956, pp. 293-294.
122 Carta de 4 de fevereiro de 1837, em A. Kornilov, Molodye gody Mikhaila Bakunina, vol. I, 1915,
p. 376.
123 Polnoe sobranie, vol. xn, p. 22.
124 A. Koyré, Études sur Thistoire de la pensée philosophique en Russie, 1950, p. 161. V. também a
bibliograficamente bem-informada discussão da influência de Hegel na Rússia.
125 A gênese de sua “filosofia da ação” entre os eslavos está delineada em Volodin, GegeP, p. 138 ss.
LIVRO IL CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 391
129 Incluindo o teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard e o romancista russo Ivan Turgeniev. Aulas
posteriores atraíram uma quantidade impressionante de russos, inclusive o futuro líder reacionário
Mikhail Katkov, o filósofo eslavófilo Yury Samarin e o teórico da revolução conspiratória, Nicholas
Ogarev. V. Volodin, Gegel’, p. 280.
130 V. a tradução reimpressa Trubny glas strashnogo suda nad Gegelem, 1933; também Volodin, p. 138.
131 Citado do Deutsche Jahrbücher, 1842, out., em M. Bakunin, Sobranie sochinenii i pisem', 1935,
vol. in, p. 148; v. também Annali., vol. vi, 1963, p. 110.
132 Ao que parece, nunca foi observado que esse lema soa muito similar àquele do “segredo da
Maçonaria” revelado apenas ao 33° e último grau da Maçonaria escocesa — pelo menos na Itália do
século xix: Distruggere e rifabbricare, Sòriga, Albori, p. 36. Assim como em tantas outras questões
relativas à revolução, a origem maçônica parece provável no caso de Proudhon, uma vez que ele
era ativo nas lojas de sua nativa Besançon, onde as tradições maçônica e revolucionária haviam
estabelecido antigas inter-relações.
133 God and the State, Boston, 1883.
134 M. Stirner (pseudônimo de Johann K. Schimdt), The ego and his own, NY, 1918.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 393
135 Izbrannye proizvedeniia progressivnykh pol'skikh myslitelei v trekh tomakh, 1958, vol. il, p. 292,
“Kilka mysli o eklektyzmie”, em Rok, 1843.
136 “Mysli o przyszlosci filozofii”, em Rok, 1845; também Polskie spory, pp. 277-368.
137 V. discussão em Janion, Goracka, pp. 456-458.
394 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
13'8 Descrição de J. Feldman em The Cambridge history of Poland, NY, 1971, vol. n, pp. 352-354. O
melhor tratamento geral de Dembowski ainda é M. Stecka, “Edward Dembowski”, em Przeglad
Historyczny, voi. xn, 1910, n° 1 e 2.
139 O primeiro publicado em 2 vol., Poznan, 1843, 1845; o segundo, Bruxelas, 1844.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 395
144 R. Baldick, The life and times of Frederick Lemaitre, L, 1959, p. 79, também p. 80.
145 Ibid., p. 199.
146 P. Robertson, Revolutions of 1848: a social history, Princeton, 1952, p. 54.
147 A. Zévaès, “Le mouvement social sous la restauration et sous la monarchie de juillet”, em La
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 399
Antes mesmo que o novo governo francês tivesse adquirido forma política,
justificava a si mesmo “por direito natural e por direito nacional”, dirigindo-se
antes às nações que aos soberanos da Europa.153
Como se ocorrendo em resposta, uma velocíssima torrente de revoluções
nacionais se espraiou de Copenhague e Amsterdã até Veneza e a Sardenha.
Nos seus “dias de março”, a Alemanha foi o redemoinho situado ao centro.
Metternich, símbolo par excellence do antinacionalismo, abdicou e fugiu.
No prazo de uma semana, Berlim se revoltou como Viena; o rei da Prússia
adotou a bandeira tricolor revolucionária da Alemanha; e toda autoridade
parecia à beira do colapso. Nessa atmosfera, os revolucionários nacionalis
tas buscaram formas políticas constitucionais que haviam proporcionado
as bandeiras para a revolta no início da era Metternich. Assim, o mundo de
fala alemã trouxe para o centro do palco a segunda doutrina revolucionária
da época romântica: o liberalismo.
O liberalismo dominou o pensamento europeu desde o momento em que
se reuniu, ao fim de março, um comitê de cinqüenta líderes alemães em um
“pré-parlamento” que cobrava a eleição de uma assembléia constituinte para
151 “La chanson du banquet” de 21 de fevereiro de 1848, citado em A. Zévaès, “Pierre Dupont,
chansonnier de 1848”, em La Révolution de 1848, 1931, mar.-abr.-maio, p. 39.
152 “La Jeune République”, em ibid., p. 40. V. também Dupont, La Marseillaise de l’atelier, pp. 37-38.
153 Lamartine, “Manifesto to Europe”, em Postgate, Revolution, p. 193. Para um novo e grande estudo da
Revolução Húngara, v. I. Deak, The lawful revolution: Louis Kossuth and the hugarians 1848-1849,
NY, 1979; e, sobre a mais importante das várias revoluções nacionais eslávicas, a qual acabaria por
entrar em conflito com a Revolução Húngara, v. I. Leshchilovskaia, Obshchestvenno-politicheshaia
bor’ba v khorvatii 1848-1849, 1977. V. esp. pp. 256-263 sobre os esforços dos poloneses, que na
luta pelos húngaros desempenharam papéis de liderança, para ao mesmo tempo ajudar os croatas.
Sobre o conflito de uma minoria nacional não-eslava com a Revolução Húngara, v. K. Hitchins,
Rumanian national mouvement in Transylvania, 1780—1849, Cambridge, Massachusetts, 1969, pp.
243-256.
O conflito entre os advogados universalistas da liberdade constitucional e os advogados nacionalistas
da fraternidade encontrou desdobramento no novo mundo com o fracasso geral dos abolicionistas
radicais de cooptar os nacionalistas irlandeses para a luta contra a escravidão dos negros. V. G.
Osofsky, “Abolitionists, Irish Immigrants and the Dilemmas of Romantic Nationalism”, em American
Historical Review, 1975, out., esp. pp. 911-912.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 401
por ódio à Rússia, e os italianos por ódio à Áustria. Tanto alemães como
italianos se mostraram dispostos — às vezes até ansiosos — a abandonar
ideais republicanos e aceitarem um rei. Desde que fosse um rei deles próprios
que lhes desse identidade, pareciam prontos a escolher o ideal nacional de
unidade em detrimento do ideal liberal de liberdade: Einheit [unidade] a
prevalecer sobre a Freiheit [liberdade].
O fracasso da revolução de 1848 na Alemanha também ilustrou o con
flito interno ao liberalismo entre o desejo de um estado de direito forte e de
crescente liberdade individual. Os liberais alemães derrotados em Frankfurt
eram só um pouco menos autoritários que os nacionalistas alemães vitoriosos.
Os liberais acreditavam em um executivo forte e em um legislativo fraco;157 e
seu conceito de “união constitucional” ajudou a separar a expressão “cons
titucional” de suas associações anteriores com libertação revolucionária
romântica. A palavra Konstitutionelle sugeria o juste milieu de lei e ordem;
e esse conceito de “constituição constitucional” se opunha diretamente ao
de constituição revolucionária. Aquela primeira propunha moderação, a
segunda prometia libertação. O liberalismo constitucional deixou de ser um
ideal revolucionário na Alemanha não só por causa da pressão hostil exercida
por conservadores, mas também em razão das opções que os liberais fizeram
quanto ao que era seu programa.
As reivindicações de mudança política se tornaram menos revolucionárias;
e reivindicações por revolução social passaram quase despercebidas. Mesmo
dentro do “ismo” revolucionário dominante, o nacionalismo, os levantes de
1848-1850 revelaram conflitos profundos jamais antevistos pelo sonho de
Mazzini de uma fraternidade feliz de povos federados. O poder alemão foi
assegurado às expensas das identidades dinamarquesa e tcheca. A Hungria,
que havia produzido a mais exuberante e bem-sucedida das revoluções
puramente nacionais, foi esmagada desde cima pelo nacionalismo rival e
reacionário da Rússia e minada desde baixo pelo nacionalismo separatista
dos croatas, sérvios, eslovacos e romenos.
Ao leste do Reno, os monarcas reacionários triunfaram por toda parte;
em 1851, a única esperança dos revolucionários parecia estar na França e na
Inglaterra. A Inglaterra havia preservado certa margem de liberdades civis e
acolhia bem os refugiados políticos do continente. A França havia derrubado
o seu último rei e estabelecido uma república baseada no sufrágio universal.
157 D. Mattheisen, “1848: Theory and Practice of the German juste milieu”, em The Review of Politics,
1973, abr., pp. 187-190.
404 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Mas a Inglaterra havia neutralizado o lado radical de sua tradição liberal me
diante uma combinação criativa de repressão policial profilática e cooptação
seletiva, por meio do poder legislativo, do programa de reformas cartistas.
O protesto cartista em Londres em abril de 1848 envolveu pessoas da
classe majoritária de trabalhadores urbanos e da classe média mais bem
instruída da Europa. Mas os proponentes do uso de “força física” já tinham
malogrado dentro do próprio movimento. Com o fracasso desse ajuntamento
popular (sob forte chuva) em provocar algo que fosse além de uma inútil
petição por mais direitos democráticos, a Inglaterra viu o ano de 1848 passar
sem nenhuma insurreição, que dirá uma revolução. O liberalismo se apartou
mais ainda da militância revolucionária; e a grande exibição de produtos
no Crystal Palace em 1851158 afastou da vista dos ingleses quaisquer idéias,
concentrando-as na promessa de prosperidade e progresso gradual.
Em 1851, a França desferiu pancadas de outro tipo nas esperanças ainda
vivas de republicanismo revolucionário. No dia 2 de dezembro, data de
aniversário da primeira grande vitória militar de Napoleão I em Austerlitz,
Napoleão m dissolveu a assembléia legislativa e assumiu poder ditatorial.
Apesar da dura resistência ao golpe no interior do país, ele conseguiu trans
formar a Segunda República no Segundo Império e estabelecer, ao longo de
uma década, uma espécie de estado policial sancionado por plebiscito, o que
refletia um desejo bastante difundido de ordem e estabilidade.159
Quatro dias após o golpe, Napoleão m devolveu o Panteão ao arcebispo de
Paris, o qual o rebatizou (pela terceira vez) de Abadia de Sainte-Geneviève —
desse modo condenando ao esquecimento um esforço artístico insubstituível
de expressar a fé comum a todos os ismos. Por mais de três anos um grupo
empenhado de pintores revolucionários vinha trabalhando, sob a direção
de Paul Chenavard, em um grande conjunto de projetos para redecorar o
Panteão.160 Foi talvez o projeto artístico ideologicamente mais ambicioso no
período de 1848-1851 — e uma digna reprise daqueles primeiros esforços,
após a morte de Mirabeau em 1791, de transformar a igreja em um santuário
158 Expressão maior da modernização e industrialização por que passava a Inglaterra à época, o Crystal
Palace foi uma colossal construção (quase 100 mil metros quadrados) em ferro e vidro erguida no
Hyde Park especialmente para abrigar a Grande Exposição de 1851 {Great Exhibition of the Works
of Industry of all Nations), cujo escopo mundial ajudou o país a firmar sua imagem vanguardista
em matéria de bens de consumo e progresso social — NT.
159 H. Payne, The Police State of Louis Napoleon Bonaparte 1851-1860, Seattle, 1966.
160 J. Sloane, Paul Marc Joseph Chenavard. Artist of 1848, Chapel Hill, 1962; Egbert, Radicalism, pp.
183-186.
LIVRO TI, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 405
161 Tirado da declaração que representa o ápice musical da fé revolucionária no terceiro ato da ópera
de U. Giordano sobre o Reino do Terror, Andrea Chenier (1896): “Fare del mondo un Pantheon!
Gli uomini in dei mutare e in un sol bacio e abraccio tutte le genti amare!’*.
162 Sloane, pp. 46—47, 112 ss. Além dos murais e mosaicos, os quatro pilares principais deveriam
ficar enfileirados frente a estátuas que simbolizassem as quatro divisões da história e estágios de
desenvolvimento social: a era de ouro da religião (Moisés), a era de prata da poesia (Homero), a era
de bronze da filosofia (Aristóteles) e a era de ferro da ciência (Galileu). Haveria estátuas de Adão e Eva
em cada lado da entrada principal. Sloane relaciona esse simbolismo às teorias sexuais de Enfantin
(pp. 114-115), sem compreender o ideal sério e andrógino que ancora todo o desenvolvimento do
pensamento romântico de Ballanche a Enfantin, e deste a Chenavard.
406 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Credo: comunismo
ais que qualquer outro movimento partícipe da tradição revo
1 Bertier de Sauvigny, “Liberalism”, pp. 147-166, analisa três fases distintas (e geralmente sucessivas)
da história de qualquer novo rótulo político de importância: a criação morfològica de uma nova
palavra, sua associação semântica com um novo conceito e sua maturidade lexical^ quando cai no
uso comum. O nascimento da palavra comunismo, que ele não discute, oferece exemplo ímpar de
todas as três fases a ocorrer quase simultaneamente,
Até a já discutida e inteiramente independente pré-história dessa palavra, com Restii de la Bretonne
no século XVIII, é antes abrupta que gradual. Restii criou morfologicamente a palavra a fim de
expressar um sentido semântico já amadurecido.
A única indicação de qualquer emprego do termo entre a década de 1790 {com Restii) e a de 1840
é uma atribuição não documentada a Lamennais que se encontra em Dauzat, Nouveau dictionnaire^
p. 182. Não encontrei nenhum emprego da palavra por Lamennais nos anos 1830, nem tampouco
o encontrou Y. Le Hir em seu estudo exaustivo de termos: Lamennais Écrivant 1948.
408 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A palavra-amuleto
2 Sauvigny, p. 149.
3 Ibid., p. 157, e ainda pp. 155-160. Durante a Revolução Francesa, a designação de qualquer coisa
como um “ismo” (jacobinisme, sans-culottisme etc.) era quase uma forma de insulto, senão mesmo
de denúncia. No exílio após a Revolução de 1848, Metternich sustentava que a terminação ismo
sempre implicava desdém (ibid., p. 150).
410 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
4 Ibid., p. 160.
5 O emprego que Ferdinando Fecchinei faz em Note ed osservazioni sul libro intitolato ‘Dei delitti
e delle pene’, contrário a Beccaria, é discutido em E Venturi, “‘Socialista’ e ‘socialismo’ nell’Italia
del settecento”, em Rivista Storica Italiana, voi. lxxv, 1963, pp. 129-141. Empregos anteriores do
termo diverso “socialista”, em meio a juristas da escola de direito naturai que se seguiu a Grotius,
são discutidos em H. Müller, Ursprung und geschichte des Wortes Sozialismus und seiner verwandten,
Hanöver, 1967, p. 30 ss.
6 De autoria de Giacomo Giuliani, L’antisocialismo confutato — Opera filosofica, Vicenza, 1903, p.
74, o qual também empregou o verbo “socializar-se” {socializzarsi), p. 160, discutido em Müller, p.
37.
7 G. Laurent, “Drouet sous le Directoire — A propos d’une lettre”, em Annales Historiques, vol. x,
1925, pp. 412-416. O texto completo da carta de Drouet foi perdido, mas ele também falou, em
1798, da necessidade de “vigiar as intrigas dos fanáticos socialistas e emigrados”, p. 416. Sauvigny
acredita que a palavra foi provavelmente usada na França antes de Drouet (“Libéralisme”, p. 162,
nota 31). V. também J. Godechot, “Pour un vocabulaire politique et social de la révolution française”,
em Actes du 89e Congrès des sociétés savantes, vol. i, p. 1964.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 411
8 J. Gans, “L’Origine du mot ‘socialiste’ et ses emplois les plus anciens”, em Revue d'histoire economique
et sociale, vol. xxx, 1957, pp. 79-83, no qual se utiliza a correspondência de Owen em Manchester.
Applegath (também chamado, ao que parece, Applegarth) foi um instrutor em New Lanarck e
pertenceu à efêmera Sociedade Educacional em New Harmony, Indiana. R. Leopold, Robert Dale
Owen. A Biography, Harvard, 1940, pp. 36-37.
9 1827, nov., p. 509; citado em Bestor, p. 277.
10 Adam Mickiewicz, citado em Walicki, “Messianists”, p. 99.
11 Primeiro empregado em publicações francesas, aparentemente por um suíço, Alexandre Vinet,
“Catholicisme et Protestantisme”, em Le Semeur, 23 de novembro de 1831, citado em Müllen p.
97. Em Müller se encontra a discussão mais completa do assunto; e outras referências aqui presentes
são em grande parte materiais não utilizados ou pouco explorados por ele.
12 Deville, “Origine”, esp. pp. 387-398, ainda traz as melhores referências básicas desses primeiros
usos e discussão deles. V. também Bestor; p. 277, nota 95.
13 Charles Pellarin (o organizador jornalístico da conferência, que tinha laços tanto com os
saint-simonianos quanto com os fourieristas), citado em Müller; p. 102.
412 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
ingleses.14 Sua idéia de que a mudança deveria ir até a própria raiz {radix) da
sociedade fora intensificada pelas expectativas elevadas que a Revolução de
1830 gerou.15 “Radical” foi cada vez mais empregado ao fim dos anos 1830
— especialmente após republicano ter se tornado um termo ilegal.16 Mas em
breve radical, assim como liberal, começou a sugerir oposição à revolução.
Théophile Thoré, um jovem revolucionário, citou em seu julgamento em 1841
o caso de um radical professo que anunciou, em um banquete em Rouen,
no início de 1839: “Nós somos revolucionários. Sim, amigos da revolução
completa, a fim de prevenir novas revoluções”.17
A nova palavra que o jovem Thoré e sua geração elegeram para a defesa
do ideal de revolução social foi comunismo.
Em março de 1840, um jornal conservador alemão publicou: “Os comu
nistas pretendem nada menos que um nivelamento da sociedade — de modo
a substituir a ordem atual das coisas pela utopia absurda, imoral e impossível
da comunidade de bens”.18
Esse, que é o primeiro uso documentado do termo, já ilustra a repulsa
mesclada a fascínio que o novo conceito inspirou no oficialismo europeu. O
uso disseminou-se muito rapidamente pela Europa.19 Outro jornal conservador
14 J. Kayser, Les grandes batailles du radicalisme des origines aux portes du pouvoir 1820-1901,1962,
p. 8; Müller, pp. 54-55, para empregos britânicos anteriores.
15 Metternich escreveu que “o liberalismo foi substituído pelo radicalismo” em uma carta de 10 de
junho de 1832 ao embaixador austríaco em Berlim, Conde von Trauttmansdorff, a partir de texto
em V. Valentin, Nationalfest, PP- 138-139.
16 V. G. Alroy, “Les radicaux après la revolution de 1848”, em Le Contrat Social, 1966, set.-out., pp.
290-291.
17 M. Laffitte, citado de Siècle, 22 de março de 1839, em Procès de T. Thoré, 1841, p. 19.
18 Citado do primeiro de urna série de artigos sobre o comunismo na França em Augsburger Allgemeine
Zeitung, 11 de março de 1840, em F. Klitzsch, Sozialismus und soziale Bewegung im Spiegel der
Augsburger “Allgemeinen Zeitung” 1840-1850, Gütersloh, 1934, pp. 32-33. O uso nesse jornal
pouco lembrado (o qual também antecipou com seu ABC des Kommunismus o título do primeiro
manual soviético de doutrinação escrito por Bukharin), portanto, antecede qualquer um dos usos
documentados na melhor discussão disponível dos primeiros usos precisos da palavra feitos por
Bestor, “Évolution”, pp. 278-281, e ainda anterior a outras obras aqui mencionadas. O primeiro
emprego italiano é rastreado até os franceses e datado de 1840 por S. Battaglia, Grande dizionario
della língua italiana, Turim, vol. n, p. 448.
A. Bobkov indica que, pouco depois de janeiro de 1837, um agente de Metternich relatou que a Liga
dos Fora da Lei de Schuster estava à frente de “um movimento ora democrático, ora comunista,
ora republicano” (“K istorii raskola soiuza otverzhennykh vol. i 836-1837 godakh”, em Novaia i
Noveishaia Istorila, 1959, n° 5, p. 102). Mas o artigo original de que Bobkov tomou sua referência
torna claro que esse relatório data na verdade de 1843 (G. Wendel, “Vorläufer des Sozialismus”,
em Der Abend, 19 de novembro de 1929).
19 A rápida disseminação do novo termo pode ser analisada a partir de três dos mais antigos estudos do
assunto: a obra em geral favorável de L. von Stein, Der socialismus und communismus der heutigen
Frankreichs, Leipzig, 1842; o muito alarmista L. de Carné, “De quelques publications démocratiques
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 413
alemão elogiou três anos depois o “poder imenso” e a paixão polêmica que a
palavra desencadeara: “Quando folhas hostis não são capazes de atingir um
jornal liberal, reprovam-no por suas tendências comunistas... Considera-se
o comunista um criminoso contra a propriedade de outrem”.20
Nos anos 1840, o comunismo era mais uma presença nas mentes das
classes abastadas do que um ideal — que dirá uma realidade — para o prole
tariado. Seus primórdios como movimento podem ser claramente rastreados
até a França do fim da década de 1930. O primeiro uso formal do termo
comunista na Alemanha de 1840 alude a uma realidade francesa prévia, e
Cabet alegou em 1841 que o comunismo teve início com discussões em pri
sões francesas após as prisões de 1834.21 Embora não se tenha encontrado
nenhum exemplo, é quase certo que o termo surgiu durante o fim dos anos
1830 como uma das várias novas palavras francesas derivadas do termo
babeuvista — então revivido — communauté. Deste modo, qualquer relato
acerca do nascimento do comunismo deve começar com a França.
Fundadores franceses
et communistes”, em Revue des Deux Mondes, Io de setembro de 1841, pp. 724—747; e o antagônico,
porém relativamente erudito, L. Reybaud, “Des idées et des sectes communistes”, em Revue des
Deux Mondes, 1 ° de julho de 1842, pp. 5—47.
O último desses trabalhos, que descobri só após ter concluído esta §, não traz nenhuma documentação
em particular; mas sugere de forma geral um traçado muito próximo do que desenvolvo aqui
— enfatizando partícularmente os papéis de Buonarroti, Owen e Cabet — e que o comunismo,
como movimento consciente e organizado, teria começado somente após o fracasso da insurreição
blanquista de maio de 1839 (p. 28).
Numerosos empregos em jornais alemães de 1841 estão documentados em Schieder, Anfänge, p.
271, nota 1; também um emprego no londrino Times, 13 de novembro de 1841, p. 5. Para elementos
concretos e controvérsia em torno dos primeiros empregos, v. A. Cuvillier, “Action ouvrière et
communisme en France vers 1840 et aujourd’hui”, em La Grande Revue, 1921, dez., pp. 25-35; e
seu “Les communistes allemands”, em Hommes et Idéologies de 1840,1956, pp. 121-137.
20 Do jornal publicado em Leipzig Illustrierte Zeitung, 2 de setembro de 1843, p. 9, tal qual citado em
K. Koszyk, “Das Jahr 1845 und der deutsche Sozialismus”, em Annali, 1963, voi. vi, pp. 516-517.0
autor chega a falar de “comunismo na mais alta acepção” como garantidor de benefícios educacionais
e de outra espécie para os trabalhadores.
21 Schieder; Anfänge, pp. 270-271; A. Zévaès, “L’Agitation communiste de 1840 à 1848”, em La
Révolution de 1848,1926, out., p. 974.
414 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
22 Por Buffenoir, “Communisme à Lyon”, p. 348, sem qualquer indicação, contudo, de que fosse assim
chamado pelos contemporâneos.
23 M. McDougall, “After the Insurrections. The Worker’s Movement in Lyon, 1834-1852”, tese de
doutorado inédita, Columbia, 1974, p. 201 ss.
24 Sobre a Société des travailleurs e sua estrutura buonarrotiana comandada por um comitê central
dirigente que controlava agents révolutionnaires especiais, v. Rémusat, Mémoires de ma vie, 1960,
vol. in, pp. 390-391. Havia oito indivíduos em um métier chefiado por “um trabalhador”, três
métiers em um atelier comandado por um supervisor, três ateliers em uma fábrica chefiada por um
lojista (commis).
Diz-se que a organização possuía “menos de 500 membros” (ibid., p. 391). O melhor relato
da emergência dos comunistas a partir da tradição babeuvista (sem, contudo, mencionar essa
organização) é Zévaès, “Agitation”, out., pp. 971-981; dez., pp. 1035-1044; 1927, mar.-abr.-maio,
pp. 31-46.
25 McDougall, pp. 223-224; J. Benoît, Confessions d’un prolétaire, 1968 (originalmente escrito em
1871), pp. 61-62.
26 Benoît, Confessions, pp. 37—40, 56-57. Para maiores detalhes sobre essa organização secreta e
hierárquica que durou até 1843, v. McDougall, pp. 223-225.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 415
27 M. Mikhailov, Istorila soiuza kommunistov, 1968, p. 54; Cabet, Histoire du journal “Intelligence”,
p. 7 (fragmento não datado em BN, identificado apenas como um extrato de Le Populaire, n° 6).
Cabet continua: L’Intelligence ne s’est jamais avoué communiste parce qu’elle ne jugeait pas qu’il
fut opportun de le faire alors; mais les idées et les principes qu’elle développait menaient droit à la
communauté [L’Intelligence jamais assumiu ser comunista, porque não julgou que fosse oportuno
fazê-lo então; mas as idéias e princípios que ele desenvolve levam diretamente à comunidade].
28 Sobre Lyon, v. Benoît, pp. 59-60; McDougall, pp. 222, 227. Sobre a Suíça, v. Barnikol, Geschichte,
p. 16; Pianzola, “Expulsion”, p. 65.
29 L’Intelligence, 7 de agosto de 1838.
30 Relato do julgamento em L’Intelligence, 3 de setembro de 1838.
31 O lema do jornal de Blanqui de 1834, Le Libérateur. Dommanget (Blanqui des origines, p. 129)
subestima a importância dessa substituição, mas enfatiza (p. 144) a importância do jornal para o
estabelecimento do ideal moderno de uma revolução social baseada em classes. Só chegou a sair um
único número (2 de fevereiro de 1 834), com o título revelador de Journal des opprimés voulant une
reforme sociale par la République. Blanqui preparou para o segundo número o seu famoso artigo
“Quem faz a sopa é quem deveria tomá-la”, que Benoît Malon considerou a primeira formulação
da doutrina coletivista moderna. Dommanget, pp. 129—130.
32 J.-J. Pillot, Th. Dézamy, Dutelloz, Homberg, Premier banquet communiste 1er juillet 1840,1840, p.
1. P. Angrand altera para 1.000 o número de participantes que, na brochura, diz-se ter sido 1.200:
“Notes critiques sur la formation des idées communistes en France”, em La Pensée, 1948, set.-out.,
p. 62.
416 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
33 Banquet, pp. 1, 9.
34 Vários brindes descritos em ibid., pp. 11-12.
35 Brinde ao alfaiate Vellicus, pp. 6-7.
36 Vários brindes, pp. 4, 3, 8. O primeiro destes pretendia explicitamente inserir “uma nova palavra”
nesse “lema”.
37 Esse brinde (feito por um não identificado Courmont, p. 12) é concluído desta forma: “Ao Governo
dos Iguais!”.
38 Pillot,p. 14.0 compositor saint-simoniano Vinçard já tinha antes cunhado o lema “Unam-se!’’como
resposta revolucionária ao “Enriqueçam-se!” de Luís Filipe, e acrescentou “unidade” à “liberdade,
igualdade, fraternidade”. V. F. Isambert, “Une religion de la fraternité. A propos de quelques journaux
ouvrièrs sous la monarchie de juillet”, em Journal de Psychologie Normale et Pathologique, 1957,
jul.-set., p. 319.
39 Essa designação foi primeiro dada à ala intelectual revolucionária extremista da Sociedade Parisiense
de Trabalhadores que surgiu em 1839 e, de acordo com a afirmação que C. Johnson faz — sem,
todavia, dar referências —, “também se chamavam a si mesmos simplesmente Les Communistes”.
Utopian Communism in France. Cabet and the Icarians, 1839-1851, Ithaca, 1974, p. 75.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 417
42 V. especialmente o seu Cours publique de l’histoire de France depuis 1789 jusqu à 1830;e sua Histoire
de la révolution française, 1838, 2 vol. As passagens mais relevantes são citadas e suas idéias pouco
lembradas são discutidas em G. Santanastaso, II Socialismo francese, Florença, 1954, pp. 110-113.
43 Oeuvres de Maximillien Robespierre, 1840. V. também suas Mémoires de Charlotte Robespierre
sur ses deux frères, 1835.
44 Laponneraye, “Babeuf et son système”, em L’Intelligence, 1840, fev., pp. 1-2.
45 Laponneraye, Catéchisme démocratique, s/d., p. 5.
46 Ibid., pp. 3, 6.
47 Ibid., pp. 12, 13.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 419
Não existe miragem mais pérfida que a de exaltar a medicina (ou o direito ou a
literatura) acima das ciências sociais... Eu compararia o médico ao alfaiate que
põe nova costura em terno antigo, e que ao fechar um pequeno buraco abre outro
ainda maior.52
59 Code, p. 290.
60 Ibid., p. 291.
61 Ibid., pp. 268-269.
62 Ibid., p. 157, nota 1.
63 Ibid., pp. 156-161.
64 Le Jésuitisme vaincu et anéanti par le socialisme, ou les constitutions des Jésuites et leurs instructions
secrètes en parallèle avec un projet d'organisation du travail, 1845, p. 134.
65 Calomnies, pp. 35-36, citado em Garaudy, pp. 206-207. Dézamy está denunciando o novo jornalismo
de Émile de Girardin.
66 Code, p. 237.
67 Question, p. 14; também Code, pp. 286-287.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 423
68 Question, p. 58.
69 Code, p. 292.
70 Ibid., p. 261.
71 Ibid., p. 123.
72 Ibid.
73 Ibid., p. 285.
74 De la Hodde, p. 269.
75 Sobre a hábil defesa de Dézamy no tribunal como escritor “puramente teórico”, v. G. Bourgin, “Le
Comuniste Dézamy”, em Festschrift für Carl Grünberg, Leipzig, 1932, pp. 69-74, esp. p. 70.
V. Rüge, “Dézamy und die Pressefreiheit”, em Zwei Jahre in Paris, Leipzig, 1846, vol. i, esp. pp. 77,
92-93 sobre sua relação próxima. Encorajado por Marx, Hess começou uma tradução alemã do
Code: Gesetzbuch der Gemeinschaft nach Theodor Dézamy, manuscrito inédito, datado em cerca
de 1846 por E. Silberner, The Works of Moses Hess, Leiden, 1958, p. 77. V. também as cartas de
Hess para Marx (Hess, Philosophische und sozialistische Schriften 1837—1850,1961, pp. 482—484);
Garaudy, Sources, p. 191; e a tradução alemã de Le Jésuitisme, Leipzig, 1846, junto a um breve
extrato de texto: Organisations-Entwurf, Leipzig, 1848. O negligenciado impacto de Dézamy sobre
Marx é discutido em D. Riazanov, Ocherki po istorii marksizma, 1923, pp. 76-77.
A figura misteriosa de Nicholas Speshnev, que introduziu na Rússia de meados dos anos 1840 a
idéia do comunismo revolucionário, ficou ao lado de Dézamy contra Cabet. (V. carta que esçreveu
424 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Influência inglesa
82 De acordo com C. Tsuzuki, “Robert Owen and Revolutionary Politics”, em S. Pollard e J. Salt (ed.),
Robert Owen Prophet of the Poor, Lewisburg, Pensilvânia, 1971, p. 34.
83 V. H. Desroche, “Images and Echoes of Owenism in Nineteenth-Century France”, em ibid., pp.
246-247. V. Saitta, Buonarroti, vol. I, pp. 64-69. A exposição que Rey faz das idéias de Owen
(reimpressa a partir da publicação em Producteur, 1826, set.-out.), Lettres sur le système de la
coopération mutuelle et de la communauté de tous les biens, d'après le plan de M. Owen, 1828,
defendia “la commmunauté de jouissance des produits, basée sur l’égalité”, p. 33. Rey, em seguida,
estabeleceu uma Sociedade Cooperativa Owenista em Paris (J. Gans, “Robert Owen à Paris en
1837”, em Le Mouvement Social, 1962, out.-dez., p. 35.).
O próprio Buonarroti saudou Owen já em 1828 {História da conspiração, citado em Pollard, Owen,
p. 248) e veio a admirá-lo ainda mais em seus últimos anos de vida. V. este importante artigo que
relaciona, bem mais do que é costumeiro, Owen com a tradição revolucionária: A. Mathiez, “Babeuf
et Robert Owen compares et défendus par Buonarroti”, em La Révolution de 1848, 1910, pp.
233-239.
Engels descobriu os ensinamentos de Owen, no momento em que também o descobria o proletariado
inglês, quando de sua visita à fábrica de Manchester em 1843, escrevendo dois importantes artigos
sobre o socialismo continental para o Novo Mundo Moral de Owen, 4 de novembro de 1843, p.
18 (Riazanov, Ocherki, pp. 44—45, 100—101). Há cerca de 300 extratos de Owen — de longe o
mais freqüente dos primeiros pensadores socialistas — nos cadernos de Marx de 1845-1847. V. M.
Rubel, “Les Cahiers de Lecture de Karl Marx”, em International Review of Social History, vol. il,
1957, pp. 401-402.
84 Berbrugger, citado em Sauvigny, “Liberalism”, p. 163.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 427
85 Owen estava a caminho de uma visita a Metternich — uma de suas fracassadas e periódicas tentativas
de atrair governantes para suas idéias comunais. V. E Podmore, Robert Owen. A Biography, L, 1906,
vol. II, pp. 459-460. Desroche, pp. 249-258.
86 Bestow “Evolution”, p. 278, corrige o de resto valioso trabalho de K. Gründberg, “Der Ursprung
der Worte ‘Sozialismus’ und ‘Sozialist’”, em Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der
Arbeiterbewegung, vol. il, 1912, p. 378, o que levou muitos a crer que Owen usava o termo
“comunista” em vez desses outros tantos correlatos.
87 O último verso de uma típica canção dos Hinos Sociais (Leeds, 1838, L, 1840), em Podmore, vol.
li, p. 472. Owen também escreveu uma Bíblia Social (Manchester, 1835) e um Catecismo do Novo
Mundo Moral (Manchester, 1838; 2a ed., Leeds, 1838).
88 Gay tentou sem sucesso colaborar com o Intelligence de Laponneraye em 1838—1839 e fundar o
seu próprio jornal Communauté. Bulletin Mensuel de la Science Sociale (Gans, pp. 36-45). Esse
último esforço provavelmente inspirou o efêmero novo jornal de Dézamy de 1840, Communautaire.
Gay e Dézamy colaboraram em 1841 na publicação de L’Humanitaire, o primeiro jornal a advogar
abertamente o comunismo revolucionário e “o jornal mais radical a ver a luz do dia durante a
Monarquia de Julho”. Johnson, Communism, p. 113. V. também a opinião contemporânea e positiva
de um estudante francês sobre Owen, A. Cochut, em Revue des Deux Mondes, Io de abril de 1841,
p. 471.)
428 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
89 Desroche, em Pollard e Salt, Owen, p. 249. V. também pp. 239-240, 262. A influência substancial
de ambas as idéias e do exemplo de Owen sobre Cabet é discutida em Prudhommeaux, Cabet, pp.
133-139, mas é quase certo que será ainda mais enfatizada em um estudo de Desroche que está
para ser publicado, o qual se baseia em material inédito e no arquivo pessoal de Prudhommeaux,
bem como em outras fontes.
90 Ataques de fourieristas e proudhonistas citados com referências em M. Rubel, “Robert Owen à Paris
en 1848”, em Actualité de [’Histoire, 1960, jan.-fev.-mar., pp. 4-6.
91 Ibid., pp. 10-12 para o texto de sua Proclamation au peuple français aux militaires et aux civils de
toutes les classes, de tous les partis, de toutes les religions, 1848, jun.; também pp. 5-6 sobre outras
publicações parisienses de Owen em 1848.
92 O interesse de Cabet pela liderança revolucionária ditatorial se desenvolveu na Inglaterra ao fim dos
anos 1830 e se refletiu no seu Histoire populaire de la révolution française, primeira edição publicada
até 1830,1839-1840, 4 vol.; segunda edição publicada até 1845, 1845, 6 vol.; e especialmente seu
Rapport sur les mesures à prendre... le lendemain d’une insurrection victorieuse, L, 1840, sobre
o qual se pode 1er Lehning, “Discussions”, pp. 91-93, 96. Cabet, em Voyage en Icarie, 1845, p.
360, previu “um reino provisório de 30-100 anos”. Ele pode ter tomado essas idéias de Teste, que
ele conheceu em Londres, ou até mesmo de Buonarroti, com o qual trocou uma primeira versão
de Icária por uma cópia de sua História da Conspiração de Babeuf (v. Toute la vérité, pp. 85-86);
mas O’Brien, tradutor de Buonarroti (e partidário do culto a Robespierre), parece ser a fonte mais
provável dessa ênfase, em vista de sua proximidade e notoriedade em Londres.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 429
93 “Journal of a Social Mission to France”, em The New Moral World, vol. 1,11 de julho de 1840, n°
2, p. 21.
94 New Moral World, vol. i, 18 de julho de 1840, n° 3, p. 43.
95 Ibid., n° 2, p. 21.
96 Ibid.
97 Ibid., vol. I, Io de agosto de 1840, n° 5, p. 74.
98 Ibid.
99 Ibid.
100 Barmby diz apenas que o prospecto foi apresentado a um não identificável “M. Havre” (ibid.). Já
que, contudo, Gay é discutido com destaque na mesma página em que consta uma bibliografìa das
obras de Owen, que somente Gay poderia ter fornecido, parece provável que Gay fosse de fato o
“amigo ardente” escolhido para chefiar a Associação.
430 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
101 New Moral World, vol. i, Io de agosto de 1840, n° 5, p. 77, em uma § separada intitulada
“Correspondência Francesa”, na qual Barmby fala de um “jantar comunitário”. Sua nota prévia
fazia referência a um “banquete social dos adeptos da escola Comunista ou Comunitária” (ibid., p.
75).
102 Barmby contava que, quando em Paris, “em companhia de alguns discípulos de Babeoeuf [sic],
à época chamados igualitários, pela primeira vez pronunciei o nome Comunista”, em seu artigo
principal para The Apostle, and Chronicle of the Communist Church, vol. I, Io de agosto de 1848,
n° 1 e 2. A única cópia conhecida desse artigo (no qual eie pròprio faz um relato detalhado dos
primeiros anos de sua carreira) está em GL. Faz-se referência de maneira equivocada a essa citação no
Oxford English Dictionary, vol. ii, p. 701; o mesmo se aplica ao artigo sobre Barmby no Dictionary
of National Biography, 1921, vol. I, no qual se diz que Barmby reivindicava ter criado a palavra
communisme no curso de uma discussão com uma não nomeada “celebridade francesa” durante
sua viagem a Paris.
103 New Moral World, vol. i, 22 de agosto de 1840, n° 8, p. 123.
104 Ibid., p. 122.
105 Explicação da mudança em editorial em The Promethean, vol. i,n° 1, p. 12.
106 Texto em The Promethean, vol. I, n° 1, p. 23.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 431
107 Ibid., p. 38, para hinos típicos de Owen: “Deus é tudo em tudo. [...] A Natureza, o Cristo material,
ensina que ele de fato existe [...]”.
108 Prospecto, ibid., p. 23.
109 Plano para “Gradações Administrativas na Comunização” elaborado por Barmby na página de
abertura de The Communist Chronicle, vol. I, n° 14.
110 New Tracts for the Times; or, Warmth, Light, and Food for the Masses. Bible proofs from Isaiah
Against Jesus Christ’s Being the Messiah, L (datado de 1842 no catalogo de BM), p. 14.
111 Ibid.,pp. 10-11.
112 Ibid., p. 10.
113 As aspas se justificam pois aqui o autor grafa Christianism, e não Christianity, a forma correta da
palavra em inglês. A construção excêntrica reforça a tentativa de Barmby de enquadrar o cristianismo
corno mais um “ismo” componente de sua teoria — nt.
114 W. Armytage, Heavens Below. Utopian experiments in England 1560-1960, L, 1961, pp. 198-199.
115 Ibid., p. 208.
432 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
116 Thomas Frost, Forty years' recollections: literary and political, L, 1880, pp. 58-62, 70-71; Army tage,
pp.201-204.
117 Frost, pp. 67-68; A. Morton, The english utopia, L, 1952, p. 134.
118 Frost, 71.
119 De acordo com Frost, p. 74, também p. 67. O Chronicle está em NP, o que invalida a indicação de
Morton (p. 135) de que nenhuma cópia teria sobrevivido.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 433
120 The truth on Baptism by Water, According to the Doctrine of the Communist Church, publicado
como n° 5 de The Communist Miscellany, s/L, s/d., pp. 2-3, GL.
121 Communist Chronicle, vol. i, n° 12, p. 133. Os itálicos são de Barmby.
122 Parágrafo final do texto “The Truth Concerning the Devil” de Barmby, em Morton, p. 136. V. a
antecipação dessa idéia na canção revolucionária dos anos 1830 “The Devil is Dead”: J. Puech,
“Chants d’il y a cent ans, autour des Saint-Simoniens”, em La Révolution de 1848,1933, man-abr.-
maio, pp. 26-29.
123 Barmby traduziu Avenir des Ouvriers com o título de The Workmen's Future em New Moral World,
vol. I, 26 de setembro de 1840, n° 13, p. 196.
434 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
124 Polska Chrystusowa (1842-1846) foi sucedido por um segundo jornal, também publicado em Paris.
Brotherhood (Zbratnienie, 1847-1848). Królikowski exerceu considerável influência na França por
meio de seus escritos de início da década de 1840 em Le Populaire com o pseudônimo de “Charles”.
Depois que Cabet se mudou para os Estados Unidos, ao fim de 1848, Królikowski se tornou editor
de Le Populaire e assumiu a posição geral de “mandataire du citoyen Cabet”. Brock, “Socialists”,
pp. 160-161, bem como a discussão que se segue; também J. Turowski, Utopia spoleczema Ludwika
Królikotvskiego, 1958.
V. também os megalomaníacos “Estatutos da Igreja Universal” de Zenon Swietoslawski, que propunha
uma ordem comunista mundial com toda propriedade nacionalizada, uma capital no istmo de Suez
e o polonês como língua oficial. Discussão a respeito em Brock, “Socialists”, pp. 157 ss.; texto dos
estatutos em Lud Polski: Wybór, pp. 230-315; descrito como “totalitarismo revolucionário” por A.
Walicki em seu inédito “The Problem of Revolution in Polish Thought of 1831-1848”, 1976, p. 51.
125 Isambert, “Religion”, p. 319.
126 Citado de uma edição de abril de 1844, em Isambert, p. 312.
127 Reproduzido em Cuvillier, Hommes, verso da página 78. Sobre o papel central de Bûchez, líder do
Ateliê, V. ibid., pp. 9-137; também Cuvillier, Un Journal d'ouvriers. L'Atelier (1840-1850), 1954.
128 Isambert, p. 320.
129 Ibid., p. 325.
130 Weitling, “Die Communion und die Kommunisten”, em Der Hülferuf der deutschen Jugend,
1841, nov.; tal qual reimpresso em W. Kowalski, Vom Kleinbürgerlichen Demokratismus zum
Kommunismus, 1967, pp. 149, 147.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 435
131 V. o exemplo de hinografia radical em Schieder, p. 285, nota 23; e, sobre a já bem fundada
disseminação na Alemanha de versões revolucionárias dos Dez Mandamentos, do catecismo e do
Pai-Nosso, pp. 221—222. V. também o texto de Barmby “Exposition of the ‘Lord’s Prayer’ According
to the Doctrines of the Communist Church”, em The Communist Miscellany, vol. I, n° 3, pp. 49—50.
132 A. Scherzer, Ermahnung zur Nächstenliebe, an die deutsche Jugend, Paris, 1842, maio, citado em
Schiedet, p. 284.
133 A. Dietsch, Gleichheit und Einigkeit, der Weg zur Freiheit und zum ewigen Friden. Das tausendjährige
Reich, publicado pela primeira vez no jornal Postthörnchen, entre 22 de julho e 12 de agosto de 1842,
depois publicado separadamente em Aarau, 1843. Esse e muitos outros exemplos são discutidos na §
“Der religiöse Sozialismus der Weitlingianer”, em Schieder, esp. pp. 280-296. Dietsch logo transportou
suas esperanças milenaristas para o Novo Mundo (como em breve também faria Weitling). V. o
seu Das tausendjährige Reich, nebst Plan und Statuten zur Gründung von New-Helvetia im Staate
Missouri in Nordamerika, Aarau, 1844.
Esse conceito de um reino de mil anos também animou as profecias radicais de M. L. B. Müller
(que chamava a si próprio de Ludwig Proli) na Bavária dos anos 1820. Depois de sua prisão em
1830, fugiu para a comunidade do grupo milenarista de Rappite na Pensilvânia. V. E Herrmann,
“Maximilian Ludwig Proli, der Prophet von Offenbach”, em Archiv für hessische Geschichte und
Altertumskunde, New Series, vol. xiii, 1922, esp. pp. 216-231.
134 Informação constante do relatório oficial de J. Bluntschli, Die Kommunisten in der Schweiz nach
den bei Weitling vorgefundenen Papieren, Zürich, 1843; discutido em Winke, p. 41. V. também W.
Seidel-Höppner, Wilhelm Weitling, der erste deutsche Theoretiker und Agitator des Kommunismus,
1961, pp. 27-53; e G. Bravo, Wilhelm Weitling e il comunismo tedesco prima del quarantotto,Turim,
1963.
135 Ctado em Wittke, p. 82.
136 Ibid., p. 98. Cabet também estava interessado nas possibilidades revolucionárias na Irlanda. V. o
seu État de la question sociale en Angleterre, en Ecosse, en Irlande et en France, 1843.
137 Embora Weitling tenha recuado um pouco quanto à sua religiosidade em Garantien der Harmonie
und Freiheit, Vevey, 1842, onde a palavra “Deus” aparece entre aspas, sua cepa religiosa foi reafirmada
em Das Evangelium eines armen Sünders, 1845.
436 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Após a prisão de Weitling, August Becker (seu principal colaborador, filho de um pastor luterano
e ex-estudante de teologia) deu força à idéia de um comunismo cristianizado em seu bastante
reimpresso Kommunisten-Vaterunser e em Gebet des Armen, de 1843, assim como em seu novo
jornal publicado em Lausanne em 1845: Die frölische Botschaft von der religiösen und sozialen
Bewegung. V. também G. Bravo, “Il comunismo tedesco in Svizzera. August Becker 1843-1846*’.
em Annali, voi. vi, 1963, bibliografia às pp. 613, 616; artigo às pp. 521-608.
Em 1845 a polícia parisiense distinguia o comunismo materialista francês do comunismo alemão,
que supostamente se relacionava com “as tradições desfiguradas do cristianismo” iniciadas com
os anabatistas e que pregavam que “Jesus Cristo era o chefe de uma sociedade comunista secreta
fundada na Galiléia sob o reinado de Tibério”. “Renseignements”, pp. 14, 17.
138 V. J. Droz, “Religious Aspects of the Revolutions of 1848 in Europe”, em D. Acombe e M. Brown
Jr. (eds.), French Society and Culture Since the Old Regime, NY, 1966, pp. 134-149; e suas obras
mais especializadas, cujas referências são dadas à p. 149, nota 8.
139 Isambert (De la Charbonnerie, p. 187), tratando da conversão de Bûchez do saint-simonismo para
um socialismo explicitamente católico, tal qual o que se manifestava no jornal proletário Atelier.
140 V. a obra coletiva L’Individualisme et le communisme par les citoyens Lefeul, Lamennais, Duval,
Lamartine et Cabet, 1848, pp. 3—4, 33. Publicada em maio uma terceira edição de 20 mil exemplares,
esse talvez tenha sido o livro “comunista” mais lido no ano revolucionário em Paris.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 437
141 Vejam-se as objeções ponderadas de Barmby a comunistas que eram “mais politicamente sociais do
que religiosa e socialmente políticos”. Communist Chronicle, vol. I, n° 6, p. 86.
142 M. Nettlau, “Londoner deutsche kommunistische Discussionen 1845”, em Archiv für die Geschichte
des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, vol. x, 1922, p. 382. Observe-se também o efeito que
teve a tradução de panfletos anticlericais escritos por comunistas franceses sobre os discípulos de
Weitling na Suíça, o que é discutido em Schieder, pp. 296-300.
143 Andrea Mazzini, citado em Saitta, Sinistra, p. 62.
438 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
144 Lehning, “Discussions”, pp. 94, 97. V. também Zévaès, “Agitation”, pp. 37-39.
145 Lehning, “La réponse de Cabet à Schapper”, em Bulletin of the International Institute of Social
History, vol. vm, 1953, pp. 7-8,15. V. também a crítica presumivelmente escrita por Karl Schapper,
“Nouveau journal allemand à Londres”, Populaire, 3 e 10 de outubro de 1847; reimpresso e discutido
em Lehning, “Réponse”, pp. 9—15.
As previsões de Cabet não eram inteiramente fantasiosas, já que o seu revivido Populaire, destinado
exclusivamente aos trabalhadores, havia alcançado alta popularidade, a ponto de, à altura do
seu oitavo número, precisar de impressão de 27 mil cópias. Garaudy, Sources, p. 166. Sobre o
desenvolvimento complexo de um grande público partidário de Cabet na França, passando de
“movimento a seita” durante os anos 1840, v. Johnson, Communism, esp. p. 207 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 439
viam sido fundados nos Estados Unidos. De fato, planejou viajar em 1847 à
Inglaterra para visitar Owen, “o venerável patriarca do comunismo inglês”,
a fim de garantir uma espécie de bênção para o projeto.
O projeto de Cabet foi, contudo, criticado pelos alemães em Londres, os
quais insistiam que o comunismo deveria, ao contrário, ser estabelecido na
Europa.146 Faziam-no repetindo a dura denúncia que, no ano anterior, Marx
havia feito de Hermann Kriege, o principal editor revolucionário alemão dos
Estados Unidos, por sugerir que o proletariado poderia encontrar um novo
começo estabelecendo-se nos ermos dos Estados Unidos. A posição de Marx
foi apoiada por todo o Comitê de Correspondência Comunista de Bruxelas,
com exceção de Weitling, que já havia partido para juntar-se a Kriege nos
Estados Unidos.147
Ao defender que se fizesse a revolução na Europa, ao invés de fugir para os
Estados Unidos, os comunistas alemães instalados em Londres ecoavam, com
volume amplificado, uma posição buonarrotiana dos anos 1830 que havia
passado quase despercebida fora de estreitos círculos conspiratórios. Os buo-
narrotianos em Paris se opuseram à fuga dos saint-simonianos para o Oriente
como um escapismo; e, quase solitários entre os revolucionários europeus
ativos no período, permaneceram hostis ao experimento norte-americano.
Essa atitude foi expressa através de ataques sem precedentes a dois dos mais
admirados participantes europeus da Revolução Americana, os quais tinham
se tornado personagens semilendários: Kosciuszko e Lafayette.148
De todo modo, o fato é que os Estados Unidos do século xix mais ab
sorveram que rearmaram os muitos revolucionários que vieram bater às
suas praias. (Seu número aumentou acentuadamente após as revoluções
de 1848 terem fracassado na Europa). Os comunistas icarianos de Cabet
estabeleceram-se primeiro no Texas, em seguida em Nauvoo, Illinois; logo
brigaram entre si; misturaram-se à sociedade, como antes ocorrera a outros
146 No novo jornal Kommunistische Zeitschrift, fundado em setembro de 1847. Lehning, “Réponse”,
p. 10; texto alemão original em Lehning, “Discussions”, pp. 107-109.
147 A “Circular contra Kriege” de Marx (discutida em Cahiers de /’Institut Maurice Thorez, vol. i, 1966,
pp. 56-58) denunciava não só o Volkstribun de Kriege em Nova Iorque como também a abordagem
reformista e sentimentalista da nova organização “Jovem América”. Marx, contudo, sentiu-se
encorajado pela preocupação para com a comunidade revelada por baixo de sua “religião irracional”.
V. H. Desroche, “Messianismes et utopies, note sur les origines du socialisme occidental”, em Archives
de Sociologie des Religions, 1959, jul.-dez., p. 42, além de p. 32. Texto do artigo “Beschreibung der
in neuerer Zeit entstandenen und noch bestehenden kommunistischen Ansiedlungen”, em Deutsche
Bürgerbuch, 1845, em Werke, vol. n, pp. 521—535.
148 Sobre críticas polonesas a Koéciuszko, v. Walicki, “Problem”, p. 15; sobre Lafayette, v. Gigault, Vie
politique, 1833. Para discussão a respeito, Saitta, “L’idea de Europa”, pp. 420-421.
440 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
149 Também chamada de Irmandade Revolucionária Irlandesa e, nos Estados Unidos, de Irmãos Fenianos.
V. W. D’Arcy, The Fenian Movement in the United States, 1858—1886, Washington, D.C., 1947; T.
Brown, Irish American Nationalism, 1870—1890, Filadélfia, 1966.
150 Sobre o emprego do termo “spirit of party” na primeira história abrangente da Revolução Americana
de 1788 e de “party spirit” num relato de viagem datado de 1799, v. H. Jones, Revolution and
Romanticism, Cambridge, Massachusetts, 1974, pp. 208, 222.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 441
151 Citado do primeiro panfleto de Adams sobre política de 1774 ( Works, vol. rv, p, 193) em A. Ranney,
“‘The Divine Science’: Political Engineering in American Culture**, em The American Political Science
Review, 1976, mar., p. 142.
152 Cabet afirmou que “o partido do movimento ‘deve vencer ou perecer’”, em Révolution, p. 382.
442 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Democracia renovada
153 Em 1839, Cabet incluiu na sua própria definição de democracia a “melhoria material, intelectual e
moral das condições das classes menos afortunadas [...] melhoria progressiva, contínua e incessante,
sem outro limite que não o do possível”. Da introdução de sua Histoire populaire, citado em Angrand,
“Notes”, p. 40.
A. Ledru-Rollin, o líder dinâmico do novo partido “radical” na assembléia francesa, falou em nome
da “democracia revolucionária” no seu Manifesto to the Workers de 1844 (discutido em Kayser,
“Batailles”, p. 26, nota a).
154 Argumentando que “a palavra democracia ainda não foi corrompida” e que ela detinha “poder
incomparável”, Considérant foi além do seu ainda popular Manifesto da Escola Societária de 1841
com o seu Manifesto da Democracia Pacífica no primeiro número do seu jornal de Io de agosto de
1843. Originalmente intitulado Manifeste Politique et sociale, foi republicado duas vezes em 1847
com o nome de Principes de socialisme. Manifeste de la démocratie au xixe siècle, logo se tornando
um modelo e um desafio para Marx. V. M. Dommanget, Victor Considérant. Sa vie, son oeuvre,
1929, pp. 24,22, e sua descrição de Considérant como um anti-revolucionário que não era, contudo,
um contra-revolucionário, pp. 131-136.
155 B. Nikolaevsky, “Towards a History of ‘the Communist League’, 1847-1852”, em International
Review of Social History, vol. i, parte 2, 1956, pp. 241-242. O relatório das atividades da Liga em
Londres no início de 1848, que vai apenso a esse artigo, revela que em Londres havia 84 membros;
já a Associação dos Trabalhadores dentro da qual ela operava tinha 179, ibid., p. 241.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 443
165 Conservadores que se opuseram aos primeiros escritos anti-religiosos dos jovens hegelianos os
chamaram, muito antes que eles próprios assim se chamassem, de “esse partido” e de “uma nova
edição” dos “heróis da Revolução Francesa”. H. Leo, Die Hegelingen, Halle, 1838; citado em
McLellan, Hegelians, pp. 13-14 e (sem atribuição precisa da fonte) p. 24.
166 M. Hess, Aufsätze, pp. 199-202, citado em McLellan, p. 148.
167 Dalin, “Historiographie”, p. 75.
168 Sugerido no livro A reorganização da comunidade européia de Saint-Simon, de 1814 (Markham,
pp. 63-68), e desenvolvido no programa de O Globo, que falava de urna tripla aliança da ciência
alemã, da indústria inglesa e da moralidade francesa (Weill, L’École, pp. 68-69).
169 Hess associava Hegel a Saint-Simon e Fichte a Proudhon.
170 Depois publicado em 21 Bogen aus der Schweiz', reimpresso em Hess, Aufsätze; e discutido em
McLellan, p. 147 ss. Sob alguns aspectos, a “filosofìa da ação” (ou “dos fatos”) parecia ter sido
advogada pelo próprio Hegel por um breve período após a conclusão da Fenomenologia, enquanto
atuava como editor de Die Bamberger Zeitung. V. W. Beyer, Zwischen Phänomenologie und Logik.
Hegel als Redakteur der Bamberger Zeitung, Frankfurt/Main, 1955, pp. 86-108.
171 Belinsky, Polnoe sobranie, 1959, vol. xn, p. 13, citado em Volodin, p. 139. Belinsky estava comparando
Heine a Schiller, o poeta laureado perpétuo dos revolucionários eslavos.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 445
para ser banido da Saxônia (e ver o Rheinische Zeitung ser fechado) no iní
cio de 1843. Depois se mudou para Zurique e em seguida (depois de pensar
em ir para Estrasburgo ou Bruxelas) para Paris, onde junto com Karl Marx
fundou em 1844 o efêmero Deutsche-Französiche Jahrbücher. Animado como
a maioria dos alemães com a atmosfera parisiense, Ruge argumentava que
os jovens hegelianos iriam na nova era da práxis estabelecer a organização
política e a educação crítica de uma vindoura revolução social.
O homem que chegou mais perto de realizar essa tarefa foi um jovem
jornalista apadrinhado por Ruge, Karl Marx. As obras decisivas nas quais
isso se realizou foram a extensa crítica de Marx à Filosofia do direito de
Hegel, escrita no verão de 1843, e sua introdução, datada do ano seguinte,
a essa mesma obra. Ao criticar a última e mais política obra de Hegel, Marx
aplicou pela primeira vez o seu assim chamado método transformativo —
invertendo a relação entre matéria e espírito — à política. Em sua introdução,
empregou “proletariado” e “comunista” pela primeira vez como rótulos de
libertação.176
Hegel defendera que acima da “sociedade civil” subjetiva existe um objetivo
social mais elevado e mais universal: o Estado. A identificação do Estado como
“a marcha de Deus ao longo da história” pode representar um entusiasmo
excessivo do ouvinte cujas notas sobre o curso de Hegel foram postumamente
transformadas em Filosofia do direito. Hegel estava falando de um ideal, em
vez de um Estado alemão existente. Seja como for, Hegel de fato divisava uma
missão de libertação universal para o Estado e para sua empenhada “classe
universal” {der allgemeine Stand)-, a burocracia desinteressada.
Marx virou de cabeça para baixo essa análise ao começar a tratar dos esta
dos tais quais eles realmente existiam em 1843. Hegel tinha visto a sociedade
civil como a antecipação imperfeita de um estado ideal. Marx descreveu o
estado como expressão degradada de interesses materiais dirigentes da “so
ciedade civil” — o termo bürgerliche Gesellschaft agora a adquirir algumas
das ressonâncias de sociedade “burguesa” e “civil”. A burocracia estatal era
antes o agente de interesses venais do que de qualquer missão universal.
176 Esta interpretação se baseia em boa parte em S. Avineri, The Social and Political Thought of Karl
Marx, Cambridge, 1968, pp. 45-64. V. também a discussão em Kolakowski, Main Currents, vol.
I, pp. 81-181, que só veio a ser publicado em data avançada demais para que eu ainda o pudesse
utilizar nesta §, mas cobre o assunto com ainda maior detalhe e da perspectiva analítica distinta de
um filósofo marxista revisionista; também pp. 9—80 sobre a pré-história do conceito de dialética.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 447
de governo — tinha de ser superado. Foi principalmente Moses Hess que deu
conteúdo social a essa visão escatologica. Através do refinamento que Hess
imprimiu a Proudhon, Marx primeiro compreendeu a propriedade privada
como causa básica da degradação do homem e da ineficácia de reformas
políticas na sociedade burguesa.179180
Foi também Hess que apresentou Marx em 1843 ao seu colaborador de
toda a vida, Friedrich Engels, o qual chamou Hess de “o primeiro comunista
do partido” e “o primeiro a chegar ao comunismo por uma via filosòfica”.^
Junto a Engels, Hess desenvolveu precisamente o conceito filosófico de um
partido comunista. Desdobrando a idéia de Hess de uma “triarquia européia”
em uma série de artigos de 1843, Engels insistia que um movimento comu
nista alemão surgiría não da classe trabalhadora “relativamente pequena”,
mas “entre as classes instruídas”.181
Hess e Engels começaram a desnacionalizar o ideal revolucionário acres
centando perspectivas francesas e inglesas às dos hegelianos berlinenses. Hess
tentou lhe emprestar um ar transnacional ao publicar em 1844, no jornal
parisiense Vorwärts 9 o primeiro de uma série de catecismos comunistas.182
A contribuição especial do jovem Marx no período de 1844-1845 foi
identificar a concepção ainda idealista de partido comunista com as pretensões
da ciência e o destino do proletariado. A idéia de um socialismo “científico”
baseado no materialismo histórico e uma rígida teoria de classes foram “única
e exclusivamente”183 obra de Marx — assim insistiu Engels mais tarde.
A primeira etapa de realização dessa obra deu-se com o rompimento de
Marx com Ruge acerca do sentido de uma derrotada revolta de tecelões na
Silésia em 1844. Ruge, o doyen dos jornalistas radicais hegelianos, defendia
uma melhor organização política e a educação dos trabalhadores. Marx, ao
contrário, incitava ao estudo mais profundo das causas da pobreza e a uma
maior fé na missão universal do proletariado alemão. Os membros do prole
179 Ibid., pp. 146, 152.
180 Werke, vol. i, p. 494; McLellan, Hegelians, p. 147; L. Schwarzschild, The Red Prussian. The Life
and Legend of Karl Marx, NY, 1947, pp. 70—74; e G. Mayer, Friedrich Engels in seiner Frühzeit.
1820 bis 1851, 1920, pp. 104-123, e ainda referências a outros materiais, pp. 410,414-416.
181 Citado em Riazanov, Ocherki, pp. 105—106. V. também todo o artigo “Yunosheskie raboty Engel’as*’,
pp. 99-106. M. Rubel faz remontar a idéia moderna de um partido comunista (à época chamado
“partido de Marx”) aos escritos de Hess sobre a controvérsia de Marx e Weitling de 1846. “La
charte de la première internationale”, em Mouvement Social, 1965, maio-jun., p. 4, nota 2.
182 Kommunistisches Bekenntnis in Fragen und Antworten, reimpresso a partir de uma reedição de
1846 em Philosophische und sozialistische Schriften, 1837-1850, 1961, pp. 359-368.
183 Riazanov, p. 105.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 449
192 Sugeriu feijões como um substitutivo “viril”, revolucionário. V. L. Feuerbach, Sämtliche Werke, vol.
X, p. 23, citado em R. Binkley, Realism and Nationalism 1852-1871, NY, 1935, pp. 22-23.
193 McLellah, p. 106 ss.
452 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
que a alienação deveria ser resolvida não por forças espirituais, e sim por
forças materiais. Tanto a fonte quanto a cura residem na economia política;
sua força dirigente não vinha de idéias, e sim de classes sociais. A classe do
futuro — a classe para acabar com todas as classes — era o proletariado,
surgido inevitavelmente do conflito entre a ordem burguesa e a ordem me
dieval. Toda alienação será superada — e cessará toda necessidade de deuses,
a qual mascara a repressão — quando o proletariado superar sua alienação
dos meios de produção que não lhe pertencem.
Assim, a revolução social tão ampiamente discutida na década de 1840
— o confisco forçado de todos os meios de produção — se tornou na análise
de Marx o ato inevitável, necessário e culminante de toda a história. Marx
tornou-se o primeiro a defender de maneira coerente que a revolução social
deveria ser feita não só para o proletariado, mas também pelo proletariado.
O intelectual em busca de “relevância” só pode atingi-la por meio da classe
trabalhadora.
Marx enxertou algumas das principais crenças saint-simonianas em sua
visão hegeliana da história: o potencial libertador da Revolução Industrial,
a necessidade de uma análise “científica” da sociedade de classes, o destino
histórico “da classe mais pobre e mais numerosa”. Os escritores alemães com
os quais ele e seus amigos aprenderam sobre a Revolução Francesa — Hess
ao fim dos anos 1830, Stein no início dos 1840 — tinham ambos dado es
pecial importância ao saint-simonismo. Mais ainda, a cidade natal de Marx,
Trier, tinha sido um centro dos novos ensinamentos dos saint-simonianos.198
O pequeno grupo de emigrados alemães a que Marx buscou transmitir sua
ideologia representava uma autêntica intelligentsia revolucionária — eram mais
coerentes que os saint-simonianos de uma década anterior, e mais explicitamente
revolucionários. O método dialético oferecia segurança contra a desilusão; o
materialismo garantia relevância em um período de tensão socioeconomica;
e, mais importante que tudo, Marx era um líder ideológico incansável.
Karl Marx permaneceu basicamente um intelectual hegeliano — sempre
relacionando partes individuais de sua análise com um contexto mais amplo,
escrevendo com interesse voraz, mas com sobriedade emocional, sobre uma
variedade impressionante de assuntos. A mescla de idéias saint-simonianas
com outras teorias sociais anglo-francesas ajudou Marx a trazer Hegel de
volta “do céu azul para a cozinha”.199
198 Fakkar, esp. pp. 98-103; G. Gurvitch, “Saint-Simon et Karl Marx”, em Revue Internationale de
Philosophie, xix, 1960, n° 53-54, p. 399 ss.
199 Carta de Belinsky a Stankevich, 2 de outubro de 1839; em Belinsky, Polnoe sobranie, vol. xi, p. 387.
454 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
Fundando o Movimento
Desde 1840 esse grupo (embora menor que o braço parisiense da liga)
colocara-se à frente de duas associações educacionais de trabalhadores alemães
com cerca de quinhentos membros, entre emigrados franceses, escandinavos e
holandeses. A liga londrina estabeleceu contato formal com o comitê de Marx
em Bruxelas no dia 6 de junho de 1846, fazendo-o por meio de uma longa
carta de Schapper, Joseph Moll e sete outros “dos mais destacados dirigentes
comunistas locais”.211 Descreveram uma vida coletiva vigorosa: três encontros
por semana dos seus 250 membros (quase metade deles sendo não alemães),
reuniões bissemanais com o grupo de Harney (chamado de Democratas
Fraternos) e um programa educacional que incluía ensino de música e de
dança e uma pequena biblioteca com títulos em diversas línguas.212 Embora
preferisse o conceito de Marx de uma “revolução total [tüchtig]” baseada
em uma “revolução intelectual [geistige]” às “inanidades” não científicas de
Weitling, Schapper confessou ter antes temido que Marx alimentasse “o mal
superado ódio entre intelectuais e trabalhadores” e instalasse alguma nova
“aristocracia dos instruídos [Gelehrten-Aristokratie] para governar o povo
a partir de seu novo trono”.213214
Em outubro de 1846, Engels definiu “o objetivo dos comunistas” como
apoiar o proletariado contra a burguesia por meio de uma “revolução demo
crática violenta” que acabaria com a propriedade privada e estabelecería uma
“comunidade de bens” (gutergenmeinschaft).114 A repressão policial ao braço
parisiense da liga forçou o grupo londrino a assumir a liderança internacio
nal desse esforço. Em novembro de 1846, seus membros defenderam que se
formasse em Londres um “partido forte” em torno de um “credo comunista
simples, que pudesse servir de regra de conduta para todos”. Um congresso
da liga foi convocado para Io de maio de 1847, a fim de preparar para o ano
seguinte um congresso internacional dos “apoiadores do novo pensamento
[neue Lehre] oriundos de todas as regiões do mundo”.215
Esse chamado distinguiu três problemas urgentes a serem resolvidos no
congresso: (1) alianças com grupos burgueses radicais, (2) atitude em relação
211 Texto da carta com a grafia de Schapper, publicada pela primeira vez em Bund der Kommunisten.,
p. 347.
212 Ibid., pp. 348-349.
213 Ibid., p. 347.
214 B. Andréas, Gründungsdokumente des Bundes der Kommunisten (Juni bis September 1847),
Hamburg, 1969, p. 14. A valiosa discussão no prefácio a esses documentos recém-descobertos
infelizmente não oferece referências precisas.
215 Ibid., p. 18.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 457
216 Ibid.
217 Misère, pp. 487-489.
218 Ibid., p. 492.
219 Resposta à questão 22 no texto de Entwurf des Kommunistischen Glaubensbekenntnisses, em
458 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Gründungsdokumente, p. 58.
220 Werke, vol. iv, pp. 640, 237. Para o texto de Grundsätze des Kommunismus, de Engels, ibid., pp.
363-380. Ao que parece, o “Kommunistisches Glaubensbekenntnis” [credo comunista] de Schapper,
Moll e Bauer nunca foi publicado. A origem desse gênero provavelmente está no texto de Moses Hess
de 1844, Kommunistisches Bekenntnis. Entre os documentos recém-descobertos de Andréas, está um
texto de 22 perguntas e respostas para um Kommunistisches Glaubensbekenntnis, aparentemente
esboçado para o encontro do mês de junho da Liga (Gründungsdokumente, pp. 53-58). O corpo do
texto está escrito com a grafia litografada de Engels, mas está assinado pelo presidente do congresso,
Carl Schill, e pelo secretário, Heide. Ver, como acréscimo a Andréas, a discussão de Seleznev, “Novye
dokumenty”, pp. 27-29.
221 Gründungsdokumente, p. 22. Não é dada nenhuma referência. Para o texto, v. Werke, vol. iv, p.
596; para comentários a respeito, v. Lehning, “Association”, p. 198; Andler, Manifeste, pp. 39-42.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 459
Em segundo lugar, o comunismo foi cada vez mais associado a uma visão
de mundo científica e materialista, em contraste com o socialismo moralista e
idealista. Com uma intensidade crescente de Cabet a Dézamy, e deste a Marx,
os comunistas viam a futura ordem a emergir por uma necessidade objetiva
da verdade científica, e não em razão de qualquer apelo subjetivo a idéias
morais. A dedicação ao ideal comunal requeria o distanciamento de tudo o
mais: um desgosto, a beirar a repulsão, pela sentimentalidade romântica (a
forma degenerada do idealismo moral) e uma oposição militante à crença
em Deus (a fonte última do idealismo moral).230
Em terceiro lugar, o comunismo era ampiamente associado à violência
política, associação que raramente se fazia no caso do socialismo. Essa identi
ficação estava presente desde o começo. Em 1840, quando um dos primeiros
comunistas tentou matar o rei, o julgamento relacionou os communistes
immédiats a meios violentos.231 Lammenais sustentou em 1841 que os comu
nistas, diferentemente dos socialistas, tinham de realizar a “igualdade rigorosa
e absoluta”, e assim seriam forçados “de uma forma ou outra” a fazer “uso
da força, do despotismo e da ditadura para estabelecê-la e mantê-la”.232
George Sand observou que os socialistas, à diferença dos comunistas,
não “se preocupam talvez o suficiente com a luta aqui e agora”.233 Cabet, ao
relatar a história do comunismo em 1842, admitiu que suas origens estavam
menos no utopismo não violento que ele próprio proclamava do que na
tradição babeuvista de revolução “imediata e violenta”.234
A crença dos comunistas na inevitabilidade da ordem igualitária legitimava
a violência, se é que não conduzia a ela.235 Os comunistas argumentavam que
230 Lorenz von Stein via o “comunismo” como algo que, de algum modo, era objetivamente mais real:
“a condição da qual o socialismo é apenas um sintoma”. The History of the Social Movement in
France, 1789-1850 (ed. Mengelberg), Totowa, Nova Jérsei, 1964, p. 286. Trata-se de tradução da
terceira edição (1850) de uma obra publicada pela primeira vez em 1842. A § “Communism and
Its Relationship to Socialism” (pp. 282-287) diferencia os dois.
231 Johnson, Communism, pp. 74-75.
232 Lamennais, Du passé, citado em Saitta, p. 265.
233 “La politique et le socialisme”, em Éclaireur de l’Indre, 1844, nov., citado em Saitta, p. 255.
234 Cabet, Douze Lettres d’un communiste à un réformiste sur la communauté, 1842. Conservadores
como Saint-Marc Girardin viam os comunistas como “os bárbaros dentro” da civilização européia
(Souvenirs et reflections politiques d’un journaliste, 1858, pp. 143-144). V. “Les ‘barbares de
rintérieur’”, em O. Hammen, “1848 et le ‘Spectre du Communisme’”, em Contrat Social, 1958,
jul., pp. 191-200; v. também a manifestação explosiva de Gottfried Keller em julho de 1843: Legge,
Rhyme, p. 145.
235 C. Bouglé vê o comprometimento com o igualitarismo como a raiz das diferenças entre comunistas
e socialistas nos anos 1840 (Le Sociologie de Proudhon, 1911, pp. 35-36).
462 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
247 “Liberto de todos os limites locais e nacionais”: v. Die Deutsche Ideologie, 1953, pp. 60, 32; e os
comentários em K. Papaisannou, “Marx et la politique internationale, Marx et l’unité du monde”,
em Contrat Social, 1967, maio-jun., pp. 157-160.
248 Papaisannou, “Marx et la politique internationale, est et ouest”, em Contrat Social, 1967, set.-out.,
pp. 304-307.
249 “Revolution in China and in Europe”, em New York Daily Tribune, 14 de junho de 1853, em H.
Christmas (ed.), The American Journalism of Marx and Engels, NY, 1966, p. 90.
250 Papaisannou, “Marx et la politique”, pp. 300-301.
251 Willington, Mikhailovsky, p. 195.
466 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
“O proletariado”
Mais uma vez, a palavra se torna elemento crucial. Boa parte da repen
tina passagem de um número insignificante de comunistas a uma posição
de proeminência pode ser atribuída à habilidade deles para encenar sua
proximidade com algo que foram os primeiros a chamar sistematicamente
de “proletariado”.
Existe, é claro, algo de bastante tangível por trás da denominação. A difu
são de maquinàrio industrial e do sistema fabril pela Europa ocidental criou
à altura da década de 1840 um conjunto crescente de operários manuais a
trabalhar por salários incertos em novos cenários urbanos. As condições nas
minas e usinas eram freqüentemente brutais; e o novo trabalhador industrial
não tinha nada do orgulho pelo seu produto e da auto-estima dos artesãos
tradicionais. Ele tendia a se tornar uma estatística menor em registros de
investimento e contabilidade, e compartilhava experiências e queixas similares
às de outros trabalhadores em outros países.
Mesmo assim, havia bem pouca comunicação interna — que dirá uma
identidade compartilhada — entre os trabalhadores. Tendiam a brigar mais
entre si do que com quaisquer outras pessoas — e a exacerbar, em vez de
suplantar, todos os velhos conflitos étnicos, religiosos e nacionais da huma
nidade. O número de trabalhadores fabris ainda era insignificante fora da
Inglaterra, e menor ainda era o senso de importância coletiva.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 467
Tedesco era maior, uma vez que ele era pessoalmente próximo de Marx e de
Wilhelm Wolff, o organizador da Liga dos Trabalhadores Alemães, fundada
em Bruxelas em 1847.266 Wolff acompanhou Engels até a primeira reunião
da Liga Comunista em Londres em junho de 1847; e Tedesco acompanhou
Marx até a segunda reunião em dezembro. Os círculos de radicais de Bru
xelas tinham, senão outra coisa, pelo menos mais consciência de classe do
que aqueles de Paris.267 Marx também foi influenciado pelo livro de Lorenz
de Stein, Socialismo e comunismo na França Contemporânea^ o primeiro a
popularizar o ideal comunista na Alemanha ao explicar que
266 J. Kuypers, “La Contribution de Victor Tedesco à l’élaboration du manifeste communiste de 1848”,
em Socialisme, vol. lxi, 1964, esp. p. 80, nota 1. V. também Kuypers, “Wilhelm Wolff und der
Deutsche Arbeiterverein (1847-1848) in Brüssel”, em Archiv für Sozialgeschichte, vol. in, 1963,
pp. 103-107. Embora Tedesco não fosse membro desse grupo, o seu Catecismo do Proletariado
foi quase de imediato traduzido para o alemão por Ferdinand Freiligrath, poeta e colaborador de
Marx no Neue Rheinische Zeitung, e distribuído na Inglaterra e nos Estados Unidos. V. Kuypers,
“Marx en Belgique”, p. 416.
267 A influência buonarrotiana era mais forte na Bélgica do que na França. Além das obras e personagens
cujas referências estão dadas em Kuypers, Bertrand discute (v. i, p. 174 ss.) as opiniões firmadas
uma década antes de Tedesco pelos irmãos Delhasse: Félix Defilasse, Le prolétariat veut être quelque
chose; e Alexandre Delhasse, Catéchisme démocratique.
268 Stein, History, p. 286; também p. 255 ss. A introdução de Kaethe Mengelberg (pp. 20-33) discute a
influência de Stein sobre Marx, no sentido da passagem do “idealismo dialético” para o materialismo
dialético. V. J. Weiss, “Dialectical Idealism and the work of Lorenz von Stein”, em International
Review of Social History, 1963, vol. vm, parte 1, pp. 75-93. A obra de Stein teve papel decisivo no
percurso de Bakunin, que parte da filosofia alemã, passa pelo pensamento social francês e chega à
atividade revolucionária. V. Polonsky, Materialy dlia biografa M. Bakunina, 1923, vol. i, pp. 105-106.
269 Marx, Selected Works, vol. i, p. 204.
470 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Ditadura
277 V. a tese de W. Dohl, Die Deutsche Nationalversammlung von 1848 im Spiegel der ‘Neuen Rheinischen
Zeitung, Bonn, 1930; também A. Molok, Karl Marx i iiun’skoe vosstanie 1848 goda v Parizhe, MJ
Leningrado, 1934, p. 6, nota 6; p. 27, nota 1.
278 Citado de Deutsche Zeitung, 18 de agosto de 1848, em Noyes, p. 122.
279 De dois membros da União dos Trabalhadores de Colônia, “em nome de muitos camaradas”, citado
em Noyes, pp. 286-287.
280 Noyes, pp. 286-289, 366. Texto em Marx e Engels, Selected Works, vol. ii, pp. 154-168.
281 Sochineniia, vol. vn, pp. 573-574, nota.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 473
Os povos que mal começaram a sua luta por independência nacional foram li
bertos dos governos da Rússia, da Áustria e da Prússia. Mas, ao mesmo tempo, o
destino dessas revoluções nacionais tornou-se dependente do destino da revolução
dos trabalhadores. Sua aparente auto-suficiência e independência para com uma
grande insurreição social desapareceram.282
A geração atual recorda aqueles judeus que Moisés conduziu pelo deserto. Ela
deve não só conquistar um novo mundo, mas também sair de cena para dar lugar
a um povo maduro para o novo mundo.287
290 O modo como esses revolucionários vieram a ficar absorvidos pela política reformista do Novo
Mundo é descrito por H. Schlüter, Der Anfang der deutschen Arbeiterbewegung in Amerika, Stuttgart,
1907.
291 Mayer, Engels, vol. i, p. 396; R. Stadelmann, Social and Political History of the German 1848
Revolution, Athens, Ohio, 1975, p. 177.
476 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
292 Texto do memorando de associação em Unter dem Banner des Marxismus, 1928, mar., pp. 144-145. V.
contraste com a passagem paralela no memorando da Liga Comunista, p. 141; também os comentários
de Lehning sobre o documento original de associação, “Buonarroti”, p. 285; “Association”, p. 199.
293 Marx e Engels, Sochineniia, vol. vin, p. 651; Lehning, “Buonarroti”, pp. 282-285.
294 H. Draper, “Marx and the dictatorship of the proletariat”, em Cahiers de 1’Institut de Science
Economique Apliquée, 1962, set., p. 6 ss.
295 Ibid., pp. 19-20.
296 Nettlau, “Discussionen”, p. 380, e empregos anteriores por Weitling em Draper, p. 14.
297 “Die Krisis und die Konterrevolution”, 14 de setembro de 1848, citado em Draper, p. 28.
298 Ibid., p. 27.
LIVRO II, CAPÍTULO 9; A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 477
Contemporaines, vol. lxv, 1951, p. 120; Werke, vol. vu, p. 615; McLellan, Marx, p. 235; Draper,
pp. 35-36.
305 Sochineniia, vol. vu, p. 51.
306 Ibid., p. 91.
307 Ibid., pp. 92-93.
308 Ibid., p. 91.
309 Draper, pp. 15-18,34 ss. Draper sugere (p. 32), mas não persuade, que Marx simplesmente inventou
o lema e o atribuiu retroativamente a 1848. A possibilidade de influência blanquinista sobre Marx
não pode ser descartada e jamais foi investigada com sistematicidade. Marx manteve contato
com blanquinistas durante sua visita a Paris em junho de 1849 (Dommanget, Idées, p. 377); e a
admiração de Marx por Blanqui era particularmente intensa em fevereiro de 1850, logo antes do
restabelecimento da Liga (Mikhailov, Istoriia, pp. 388-389).
Outro possível canal francês (não mencionado por Dommanget) é Jules Gay, cujo jornal Le
Communiste teve um único número, em março de 1849 [Babeuf et les problèmes, p. 276). Marx havia
elogiado Gay, ao lado de Dézamy, como os “comunistas franceses mais científicos”, os quais “estão
desenvolvendo a doutrina do materialismo no sentido de uma doutrina de verdadeiro humanismo
e como embasamento lógico do Comunismo” [A sagrada família, citado em Garaudy, Sources, p.
191). O salto na correspondência de Marx e Engels entre 23 de agosto de 1849 e 19 de novembro
de 1850 priva os historiadores de um testemunho direto acerca das influências de Marx durante
esse período decisivo, num momento em que a influência de Blanqui havia chegado ao seu ponto
máximo.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 479
contudo, esse emprego apenas indica uma ligação ainda mais profunda. Pois
Marx tendia a denunciar o ismo por trás de um indivíduo no ato mesmo de
apropriar-se de sua idéia — do mesmo modo como rivalizava com a persona de
um líder rival quando procurava afastá-lo. A adoção de uma idéia de Blanqui
criou a necessidade compensatória de denunciar o “blanquismo”.
A influência de Blanqui sobre Marx durante esse período é ainda ilustrada
pela apropriação por Marx de outro termo que se tornaria importante para
a história revolucionária: revolução permanente. Marx tinha rejeitado esse
conceito quando proposto por líderes trabalhadores em Colônia durante
1848-1849;310 mas abraçou a “revolução em caráter permanente” (“revolution
in permanence”) como “grito de guerra” da reordenada Liga Comunista em
março de 1850.311 Ele via a revolução permanente como condição necessária
de qualquer futura “ditadura do proletariado”, caso esta viesse a diferir em
algo da “ditadura da burguesia”.
As circulares enviadas do Comitê Central londrino para os membros
alemães da Liga Comunista em março indicavam que o tipo clássico de
conspiração à maneira dos Iluminados-buonarrotianos-blanquistas tinha
se enraizado profundamente entre os alemães. Emissários mandados de
Londres eram instruídos a recrutar pessoas para a liga junto a organizações
revolucionárias já em funcionamento. Lá havia duas espécies de associa
ção; um círculo externo de grupos locais e provincianos que nada sabiam
sobre o círculo mais interno; só estes eram informados das “conseqüências
comunistas do presente movimento”. O movimento secreto e hierárquico
deveria ser inteiramente manipulado pelo Comitê Central londrino, o qual
aprovaria o emprego seletivo de terror contra “indivíduos odiados ou prédios
públicos associados com memórias detestadas”.312 A liderança sugeriu que a
310 Noyes, pp. 286-287, 366-367. Os alemães há muito tempo haviam alimentado uma fascinação,
freqüentemente ancorada em medo, pela idéia de que a revolução poderia se tornar uma condição
permanente bem como global — desde uma queixa de 1814 sobre “der allgemeinen Weltrevolution
unserer Zeit” [“a revolução mundial total de nossa época”] (Malinkrodt, “Was tun bei Deutschlands
und Europas Wiedergeburt?”, citado em Seidler, p. 297) até um ensaio retrospectivo sobre os
acontecimentos de 1848—1851, no qual se falava da “grundsätzliche permanente Erhebung des
Volkes über alle gegebene Obrigkeit” [“permanente e fundamental elevação do povo acima de toda
autoridade estabelecida”] (E Stahl, Was ist Revolution?, 1852, em Seidler, p. 291, nota a).
Tal como em muitos outros casos, esse conceito parece a princípio ter sido derivado do vocabulário
dos Iluminados. O ocultista bávaro Franz von Baader já observava em seu diário, em 14 de agosto
de 1789, sintomas “einer uns allgemein bevorstehenden Revolution (“de uma revolução geral
próxima a nós”] (Grassi, “Zum Bedeutungswandel des Wortes ‘Revolution’”, em Aufbruch, pp.
429-432), e ele ainda parece ter voltado a desenvolver a idéia em um ensaio que escreveu em 1834,
Revolutionismus (Seidler, p. 291, nota a).
311 Sochineniia, vol. vu, p. 267.
312 De cópia da diretiva secreta do comitê editada em Londres, 1850, man, tal como apreendida pela
480 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Liga Comunista deveria preparar os alemães para lutar ainda mais contra os
medíocres democratas burgueses do que com os reacionários na fase seguinte
da guerra revolucionária.
Após a derrota da insurreição dos trabalhadores em Paris no mês de julho
de 1850, Marx decidiu que alguma outra revolução era coisa improvável; e
já em agosto rompeu com Willich, o qual veio a duelar com um discípulo de
Marx no início de setembro. Ao reescrever os estatutos da Liga Comunista,
Marx denunciou Willich e seus discípulos no dia 15 de setembro por se con
fiarem na “vontade dos revolucionários como único motor da revolução”313 e
por encher o movimento de elementos burgueses mesquinhos, a ponto de “a
palavra ‘proletariado’ [ser] agora usada como uma palavra vazia, do mesmo
modo que a palavra ‘povo’, usada pelos democratas”.314 Mas os planos de
Marx para a reorganização da liga não forçaram uma cisão com o “blanquis
ta” Willich. Marx tomou a decisão atípica de apoiar dois grupos separados
em Londres, enquanto transferia a sede da liga para a Colônia.
Embora com menos membros do que nunca, a liga sediada na Alemanha
ganhou nova vida ao fim de 1850 por meio de seus elos com uma organiza
ção de trabalhadores muito maior, embora não revolucionária: a Irmandade
(Verbrüderung) de Stephen Born. Marx foi bastante repelido na liga, mas
continuou a ser representado por muitos revolucionários mais jovens.315
Tampouco os laços com os blanquistas franceses foram afetados pelo
alheamento de Marx ao grupo de Willich em Londres. Marx e Engels tra
duziram para o alemão e o inglês a denúncia que Blanqui fez dos socialistas
moderados enviada por ele da prisão para o Banquete dos Iguais organizado
em Londres no dia 24 de fevereiro de 1851. Blanqui disse, entre outras coisas,
que no futuro “serão traidores todos os governos que, erguidos pelos ombros
do proletariado, não realizem imediatamente (1) o desarmamento geral das
tropas burguesas e (2) o armamento e organização dos trabalhadores em
milícias nacionais”.316
polícia saxônica, enviada a governos alemães amigos e citada a partir dos Arquivos Wurtemberg
por Stadelmann, pp. 164-165.
313 M. Kovalevsky, “Souvenirs sur Karl Marx”, em Contrat Social, 1967, nov.-dez., pp. 357-358.
314 B. Nikolaevsky, “Toward a History”, p. 249. Para outros artigos sobre o conflito de Marx com
outros colaboradores “esquerdistas” em 1850—1851, v. N. Belousova, Iosif Moli’, sbornik statei,
1961; S. Na’aman, “Zur Geschichte des Bundes der Kommunisten in Deutschland in der zweiten
Phase seines Bestehens”, em Archiv für Sozialgeschichte, vol. v, 1965, pp. 5-82; e L. Easton, “August
Willich, Marx and Left Hegelian Socialism”, em Études de Marxologie, 1965.
315 O então com 22 anos Johannes Miguel, ex-ministro de finanças da Prússia. V. Draper, pp. 41—42.
316 Do texto francês presente em Dommanget, em Auguste Blanqui à Belle-Île (1850-1857), 1935, pp.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 481
65-66; também comentários às pp. 63-87, além de outros materiais, com referências indicadas,
em Lehning, “Association”, p. 204, nota í. A tradução de Marx e Engels (Sochineniia, vol. vu, pp.
569-570) teve uma tiragem alemã de 30 mil cópias (ibid,, p. 615) e foi anunciada numa carta inédita
de Engels ao Times (texto em ibid., pp. 493-494).
317 No livro em que se dedica a defender os acusados (Enthüllugen über den Kommunistenprozess zu
Köln, Basiléia, 1853; tradução com introdução de R. Livingstone, The Cologne Communist Trial,
VNY, 1971), Marx atacou o grupo de Willich por seus excessos conspiratórios e sugeriu que a
missão dele próprio era construir “o partido de oposição do futuro” com uma nova e diferente base
(Werke, vol. vin, p. 461; McLellan, p. 252). Marx tentou articular o que seria o germe de um tal
partido reunindo 60 alemães em uma Associação dos Trabalhadores que realizou dois encontros
por semana no fim de 1851, antes que se desfizesse quando seus principais membros se juntaram ao
mais numeroso grupo de Willich ao fim do verão de 1852.V. G. Becker, “Die neue Arbeiter-Verein
in London 1852”, em Zeitschrift für Geisteswissenchaft, 1966.
318 Argumento de Stadelmann, History.
319 Dommanget, Belle-Île, p. 66; texto em Unter dem Banner des Marxismus, 1928, mar., p. 145.
320 A importância desse levante negligenciado é enfatizada por C. Tilly (o qual nota que só 7 mil dos 26
482 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
mil presos eram trabalhadores rurais), “The Changing Place of Collective Violence”, em M. Richter
(ed.), Essays in Social and Political History, Cambridge, Massachusetts, 1970.
321 Draper, p. 46.
322 Apareceu de maneira seriada e está republicado em Selected Works, pp. 311-426.
323 Ibid., p. 323.
324 Sochineniia, voi. vni, p. 126.
325 Willich e Weydemeyer eram ex-oficiais prussianos que depois se tornaram líderes militares dos
exércitos nortistas na Guerra Civil norte-americana: o primeiro, um major-general que marchou junto
a Sherman sobre a Geórgia; o segundo, o comandante militar de Saint-Louis. Ambos continuaram
a ter Marx em alta conta, apesar de discussões anteriores. Weydemayer chegou aos Estados Unidos
no dia 7 de novembro de 1851; publicou seu artigo no terceiro número de Turn-Zeitung, NY, Io de
janeiro de 1852; e também incluiu uma reimpressão da primeira versão de A Guerra Camponesa
na Alemanha de Engels (Draper, p. 44).
326 Marx e Engels, Selected Correspondence, Moscou, s/d., p. 86.
327 In Itogi i perspektivy, escrito na prisão no início de 1906; publicado em Nasha revoliutsiia, São
Petersburgo, 1906, pp. 224-286; discutido em E. Carr, The Bolshevik Revolution, L, 1950, vol. I, pp.
56-58, 61. Trótski tomou a idéia de Alexander Helphand (Parvus), tanto quanto Marx a tomou de
Blanqui. V. Z. Zeman e W. Scharlau, The Merchant of Revolution, Oxford, 1965, pp. 36,110-111.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 483
328 P. Fonei; “Statuten des Kommunisten Klubs in New York”, em Science and Society, 1977, outono,
pp. 334-337.
329 V. o seu Rom und Jerusalem, die letze Nationalitätsfrage, Leipzig, 1862.
330 Carta de 29 de fevereiro de 1860 a E Freiligrath presente em Marx, Sochineniia, vol. xxx, pp. 400
406; também Mikhailov, Istoriia, p. 14. '
CAPÍTULO 10
O caminho ficou mais livre para que impusesse seu programa aos emigrados
alemães depois que Weitling foi para os Estados Unidos no início de 1847
ajudar Kriege e resgatar seus discípulos do desvio nacionalista que haviam
feito no ano anterior em defesa da guerra contra o México. Mas o Tribuno
1 P. Annenkov, Reminiscences of Marx and Engels, p. 270 ss., citado em McLellan, Marx, pp. 156-157.
2 Moses Hess, Briefwechsel, p. 157, McLellan, p. 158.
3 Werke, vol. iv, p. 10.
4 Herr Vogt, em Werke, vol. xiv, p. 439, McLellan, pp. 158-159.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 487
do Povo de Kriege não demorou a fenecer, e Marx passou por cima do dis
tante Weitling assumindo a liderança internacional do movimento comunista.
O conflito de Marx com Weitling revelou uma mistura característica de
desprezo pelo homem e respeito pelo seu papel. Marx não viu nada de pessoal
em seus ataques a Weitling. De fato, Marx reconheceu a função anterior que
Weitling tivera de lançar uma crítica social revolucionária da ordem existente.
Mas, à altura de meados dos anos 1840, Weitling representava para Marx o
mais impeditivo dos anacronismos: um líder histórico cuja hora havia pas
sado. Weitling não conseguiu realizar a posição histórica de uma liderança
proletária e igualitária que ele mesmo havia criado. Para ocupar essa posição
ele próprio, Marx foi além do mundo de expressão alemã para articular um
ataque similar e simultâneo contra Proudhon: o principal proletário revolu
cionário dentro da cidadela francesa da fé revolucionária. O choque entre
Marx e Proudhon se revelou o mais importante entre revolucionários sociais
da época — e pode ser que também seja para a nossa.
Por duas décadas após o seu primeiro confronto em 1845, Marx e Proudhon
lutaram com acerba rivalidade pela liderança do novo movimento proletário.
Levaram números crescentes de discípulos a se envolver em disputas cada
vez mais amplas. Nos anos 1860 (após a morte de Proudhon), as filhas de
Marx insultavam o proudhonismo até quando dançavam nos festivais da
Primeira Internacional.5 Nos anos 1960 (após a “morte da ideologia”), os
herdeiros de Proudhon responderam aos marxistas, com efeito, com os fes
tivais da “nova esquerda”.
O conflito Marx-Proudhon pode ser analisado em dois níveis bem diver
sos: como um choque pessoal-político entre revolucionários oitocentistas
rivais e como um conflito ideológico mais abrangente entre ideais radicais
conflitantes, porém duradouros.
5 A. Babel, “La première Internationale, ses débuts et son activité à Génève de 1864 à 1870*, em
Mélanges d'études économiques et sociales offerts à William E. Rappard, Genebra, 1944, p. 239.
488 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
6 Citações em P. Haubtmann, Marx et Proudhon, 1947, pp. 31-32. Ainda não existe nenhum tratamento
acadêmico abrangente desse conflito. Talvez o melhor levantamento de elementos seja E. Thier,
"Marx und Proudhon”, em I. Fetscher (ed.), Marxismusstudien, Tübingen, 1957, pp. 120-150.
J. Jackson, Marx, Proudhon and European Socialism, NY, 1962, é uma introdução útil, à qual falta
documentação ou bibliografia adequada. Entre os melhores relatos interpretativos estão E. Dolléans,
“La recontre de Proudhon et de Marx”, em Revue d’Histoire Moderne, vol. xi, 1936, pp. 5-30; M.
Bourguin, “Des rapports entre Proudhon et Karl Marx”, em Le Contrat Social, vol. ix, 1965, pp.
95-107; G. Gurvitch, “Proudon et Marx”, em Cahiers Internationaux de Sociologie, 1966, jan.-jun.,
pp. 7-16; A. Cuvillier, “Marx et Proudhon”, em Cercle de la Russie neuve, Paris. A la lumière de
Marxisme, 1937, vol. n, pp. 151-238; W. Pickles, “Marx and Proudhon”, em Politica, 1938, set.,
pp. 236-260; E. Drumont, “Proudhon et Karl Marx”, em Les trétaux du succès; figures de bronze
ou statues de neige, 1902, pp. 315—332; J. Dessaint, “Proudhon ou Karl Marx”, em Nouvelle Revue,
vol. XLiii, 1919, pp. 97-106; G. Adler, Die Grundlagen der Karl Marx’schen Kritik der bestehenden
Volksivirtschaft, Tübingen, 1887, pp. 169-202; G. Pirou, “Proudhonisme et Marxisme”, em Revue
des Mois, vol. xx, 1919, pp. 237-256; e V. Zastenker, “Proudhon et proudhonisme de 1846 à 1848”,
em Recherches soviétiques, 1956, maio-jun., pp. 151-194.
Para urna biografia relativamente favorável de Proudhon escrita por um homem prestes a se
tornar marxista, v. M. Tugan-Baranovsky, Prudon, ego zhizn’ i obshchestvennaia deiatel'nost, São
Petersburgo, 1891. O leninismo-marxismo moderno segue o padrão violento estabelecido por Yu.
Steklov em seu ataque polêmico logo após os soviéticos tomarem o poder: Prudon otets anarkhii,
Retrogrado, 1918. As opiniões do próprio Marx são resumidas e desenvolvidas com maior sobriedade
em “Marx über Proudhon”, em Die Neue Zeit, vol. xxxi, 1913, pp. 821-830.
Para trabalhos mais recentes sobre Proudhon, ver os ensaios e comentários reimpressos a partir de
um colóquio por ocasião do centenário de sua morte: L'actualité de Proudhon, Bruxelas, 1967; e A.
Ritter, The Political Thought of Pierre-Joseph Proudhon, Princeton, 1969. A discussão bibliográfica
conduzida por Ritter (pp. 3-25) contrabalança a discussão anterior e mais hostil feita por E. Carr,
Studies in Revolution, L, 1950, pp. 38-55.
7 Uma extensa § de A sagrada família, de Marx, escrito ao fim de 1844, contrasta favoravelmente
Proudhon aos alemães. Citação e comentários a respeito em Dolléans, “Rencontre”, p. 11.
8 Citação e comentários a respeito em Haubtmann, p. 33. Marx prossegue dizendo, com um toque de
490 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
inveja, que “Proudhon não se limita a ser alguém que escreve a favor do proletariado, ele próprio
é um proletário, um trabalhador” (p. 34). A promessa de Proudhon de descobrir as formas futuras
corretas da sociedade “por meio da observação das causas e efeitos da propriedade privada”
representava uma boa declaração da missão que o próprio Marx havia assumido. Essa promessa
também foi chamada de novo imperativo e louvada como uma “tarefa comunista” por Barmby em
The Communist Chronicle, vol. I, n° 6, p. 36.
9 Premier mémoires sur la propriété, citado em Haubtmann, p. 35.
10 Argumentação presente em Haubtmann, pp. 34-39.
11 Bourguin, p. 98 ss.
12 “On the Jewish Question” e “Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right”, em
Marx, Early Writings, L, 1963, pp. 1-59.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 491
não tivesse ainda se erguido acima da queda dos alemães para o “dogmatismo
aprioristico”: “Não caiamos na contradição de seu compatriota Lutero, que,
tendo derrubado a teologia católica, imediatamente passou às suas próprias
excomunhões e anátemas, para fundar uma teologia protestante”.16
Desse modo, Proudhon temia autoritarismo da parte de Marx mesmo
quando este lhe oferecia uma parcela maior de autoridade.
Já que estamos à frente de um movimento, não nos tornemos chefes de uma nova
intolerância, não nos coloquemos como apóstolos de uma nova religião, mesmo
que esta seja a religião da lógica e da razão.17
Prefiro que o regime de propriedade (propriété) queime a fogo lento do que lhe
dar nova força com um [a noite de] São Bartolomeu dos proprietários [...] nossos
proletários têm tamanha sede de ciência, que lhes dar nada além de sangue não
lhes seria bem-vindo.18
Discípulos de Proudhon
28 S. Stybe, Frederik Dreier, hans liv, hans samtid og hans sociale taenkning, Copenhague, 1959, pp.
41-43, 48, esp. pp. 151 ss. e 297-298. O seu anti-nacionalismo de caráter bem proudhonista é
ilustrado por Folkenes Fremtid e particularmente por Fremtidens Folkeopdragelse, ambos de 1848. V.
discussão em Stybe, pp. 295-296; B. Malon, “Le Socialisme en Danemark”, em La Revue Socialiste,
voi. ix, 1889, p. 394 ss.
29 C. Jacket; The Black Flag of Anarchy: Antistatism in the United States, NY, 1968, pp. 86-88. A
influência proudhonista sobre outros americanos radicais, a exemplo de Benjamin Tuckei; é enfatizada
por R. Rocket; Pioneers of American Freedom, Los Angeles, 1949.
30 Braunthal, pp. 79-80.
496 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA
Questões permanentes
Por trás da paixão pessoal de Marx e Proudhon e das polêmicas políticas
de seus partidários jaz um conflito mais profundo de idéias, o qual tem
importância duradoura para aqueles que buscam mudança social radical.
À primeira vista, a intensidade da luta entre ambos surpreende. Conser
vadores, liberais e os primeiros socialistas românticos, todos viam muitas
similaridades entre os dois. Tomados em conjunto, Marx e Proudhon re
presentaram o ponto de transição — um ponto, de fato, sem retorno — da
teorização sentimental pré-1848 para a rigidez realista dos movimentos
revolucionários de massa modernos.
Ambos tinham uma visão confiante da história que dava importância cen
tral à realização das esperanças abortadas das revoluções francesas de 1789
e 1848. Na verdade, essa fé básica se tornou ainda mais intensa na esteira de
1848, uma vez que ambos se dedicaram inteiramente a solidificá-la por meio
de extensos escritos teóricos quando do desenlace desanimador da revolução
derrotada. Ambos acreditavam que a revolução social podería resolver as
contradições econômicas e sociais do mundo real. Foram os primeiros revo
lucionários continentais importantes a estudar cuidadosamente a economia
clássica inglesa (mesmo antes de 1848) e a ver a classe trabalhadora como o
instrumento escolhido para a libertação derradeira de toda a humanidade.
Ambos acreditavam que todos os socialismos anteriores eram utópicos e,
na expressão de Proudhon, rêveries fantastiques [delírios fantásticos]: expe
rimentos pessoais em vez de meios adequados para a transformação total da
sociedade. Ambos rejeitavam as instituições tradicionais do liberalismo burguês
mais sistematicamente que seus antecessores, e se opunham profundamente
ao nacionalismo e ao ideal de libertação nacional (embora cada um dos dois
refletissem alguns preconceitos próprios às suas respectivas nações). Ambos
eram crias do novo estilo feuilleton [folhetim] de escrita do início dos anos
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 501
49 Poverty, p. 125. Uma análise mais completa dos modos pelos quais Proudhon se exercita numa
espécie de dialética está em Chen Kui-Si, La Dialectique dans l'oeuvre de Proudhon, 1936. Sobre
o moralismo básico de Proudhon, D. Brogan escreveu que “Proudhon nunca se perguntava Isto é
verdade?*, mas sempre Tsto é certo?'** (Proudhon, L, 1934, p. 37).
50 De la Justice dans la Révolution et dans l’Église, 1858, vol. i, p. 42; v. a S “Adoration of Justice** em
Lubac, pp. 276-286.
51 “A vontade toma o homem um tirano antes que a riqueza o faça; o coração do proletário é o mesmo
que o do rico, uma fossa de sensualidade fervilhante, um centro de indecência e trapaça”. Philosophie
de la misère, citado em Lubac, p. 61.
52 Philosophie, como citado em Lubac, p. 296, nota 35.
504 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
56 “Sou um anarquista em toda a extensão do termo”. Qu'est que la propriété, 1840, em Oeuvres
complètes, 1866, vol. i, p. 212. Às vezes ele emprega a forma an-archique (Carnets de P. J, Proudhon,
1960, vol. I, p. 203).
57 F. Rudé, “Le movement ouvrier à Lyon”, em Revue de Psychologie des Peuples, vol. xm, 1958,
pp. 231-235. P. Ansart, Naissance de l'anarchisme. Esquisse d'une explication sociologique du
proudhonisme, 1970, p. 165 ss.
506 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
58 Proudhon se opôs aos ateliês sociais organizados pelo Estado, defendidos por Louis Blanc, como
parte da “centralização artificial” (Solution du problème social, Oeuvres, voi. vi, p. 13) que os
parisienses estavam impondo ao resto da França, e defendeu que as “classes trabalhadoras” (que
não eram, em sua linguagem, um “proletariado” unitário) eram melhor servidas não em “capturar,
e sim em derrotar tanto o poder quanto o monopólio” (Confessions, p. 166, citado em Allen, p. 5).
59 A unificação da Itália e da Alemanha nos anos 1860 é vista não só como a vitória do nacionalismo
moderno, mas também como a derrota de uma predileção européia anterior pelos “experimentos
federativos”, em Binkley, Realism, p. 181 ss.
60 De la Capacité, 1924, p. 198 (v. também p. 404); e Idea of Revolution, p. 74. Para a evolução
das idéias de Proudhon, v. A. Bethod, “La théorie de l’état et du gouvernement dans l’oeuvre du
Proudhon. De l’anarchie au fédéralisme”, em Revue d’Histoire Économique et Sociale, vol. xi, 1923,
pp. 270-304; também Ansart, Sociologie de Proudhon, 1967, pp. 131-142.
61 V. seu Du Principe fédératif, 1863; e L. Abensour, “P. J. Proudhon et la Pologne”, em Grande Revue,
vol. CHI, 1920, pp. 3-15.
62 La Fédération et l’unité de l’Italie, 1862, pp. 27-28. V. discussão em Sairta, “L’idea di Europa”,
especialmente de Giuseppe Ferrari, o simpatizante italiano de Proudhon que temia que o advento
de grandes Estados destruísse de todo o domínio europeu em favor dos Estados Unidos, da Rússia
e, talvez, da China (Ferrari, La Chine et l’Europe, 1867, p. 598). Ferrari, embora ele próprio fosse
um professor, também compartilhava do temor que Proudhon tinha de intelectuais no poder. V. seu
Les philosophes salariés occupés à organiser une réaction occulte, 1849. V. o estudo de Ferrari sobre
Proudhon (1875) publicado em C. Saint-Beuve, P. J. Proudhon, sa vie et sa correspondance 1838-
1848, Milão, 1947, pp. 375—424; também C. Lovett, Giuseppe Ferrari and the Italian Revolution,
Chapel Hill, 1979.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON S07
63 Jackson, Marx, Proudhon, p. 23. Contudo, Proudhon rejeitava a descentralização que fosse
meramente política em sua natureza, como aquela propagandeada pelo adversário alemão de Marx,
Moritz Rittinghausen, o qual defendia um tipo suíço de legislação local direta, Para Proudhon, isso
era ainda pior do que eleger representantes para uma assembléia distante, pois a legislação direta
impEca que o povo passe leis uniformes e restritivas, ao passo que legisladores eleitos ainda podem
manter a flexibilidade e representar a diversidade. Rittinghausen, Le Législation directe par le
peuple ou la véritable démocratie, 1850, é criticado em Proudhon, Idea, pp. 143-153; defendido por
Rittinghausen em La Législation directe par le peuple et ses adversaires, Bruxelas, 1852 (tradução
inglesa, introdução A. Harvey, Direct Legislation by the People, NY, 1897).
64 Carta de Marx a Engels, 20 de junho de 1866, citado em S. Bloom, “The World of Nations. A
Study of the National Implications in the Work of Karl Marx”, NY, 1941, pp. 28-29, um estudo
em geral negligenciado que se baseia —- e o refina (a partir da descoberta de novos manuscritos de
Marx e Engels sobre a questão polonesa) — em um artigo inédito de A. WaÜcki, “Marx, Engels and
Romantic Polish Nationalism”, 1977, ao qual devo esta análise.
65 Bloom, p. 36.
66 Citado em K. Marx, E Engels, The russian menace to Europe, Glencoe, 1952, pp. 99-100,
508 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
72 Essa famosa expressão, tirada da “Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, é citada
junto a outras passagens similares em Lewy, em Religion and Revolution, p. 542.
73 Jackson, Marx, Proudhon, pp. 16-18.
74 Citado em Lubac, pp. 81-83.
510 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
75 A raison d’église dos fariseus, “os jesuítas de Jerusalém”, foi uma insidiosa precursora da raison
d’état dos “novos jesuítas”, os líderes políticos do moderno Estado jacobino. Ao combater tanto
a igreja como o Estado, Proudhon encontrou consolo no exemplo de Cristo (“Eu luto contra os
fortes; eu não esmago os fracos” — citado em Lubac, p. 65) e nas imagens do apocalipse cristão
(prevendo, em seu “Manifesto Revolucionário”, uma época iminente “quando a civilização nos
parecerá um perpétuo apocalipse [...] quando, por meio da reforma da sociedade, o cristianismo
terá recobrado sua força” [Le Peuple, 2 de setembro de 1848; em Dolléans, Proudhon, p. 149]). Na
sua última obra, caracterizou as classes operárias francesas como “esse Paráclito por cuja vinda os
apóstolos aguardam” (De la Capacité, pp. 129-130). Deixou o manuscrito de uma obra inacabada,
Cesarismo e Cristianismo, o qual em parte era uma reposta ao retrato de Cristo como um místico
sonhador feito por Renan em sua Vida de Jesus.
76 E. Simmons, Leo Tolstoy, Boston, 1946, pp. 649-650.
77 V. particularmente Proudhon, “Toast à la révolution”, em Le Peuple, 17 de outubro de 1848, em
Dolléans, Proudhon, pp. 150,215; “il n'y a pas eu plusieurs revolutions, il n'y a eu qu'une revolution.
La Révolution, il y a dix-huit siècles, s'appelait /’Évangile, la bonne nouvelle. [...] Ces chrétiens, ces
révolutionnaires firent la première et la plus grande des revolutions [...] la Révolution est en permanence
[...] il n’y a eu qu’une seule et même et perpétuelle révolution" [“não houve muitas revoluções, não
houve senão uma única revolução. A Revolução, já faz dezenove séculos, se chama Evangelho, a boa
nova... Esses cristãos, esses revolucionários fizeram a primeira e maior das revoluções... a Revolução
é permanente... não existe senão uma única e mesma e perpétua revolução”].
78 A dívida de Tolstói para com Proudhon ainda não foi estudada inteiramente. Algo nesse sentido foi
feito em S. Lafitte, “Tolstoi, Herzen et Proudhon”, em Studi in onore di Ettore Lo Gatto e Giovanni
Maver, Florença, 1962, pp. 381-393. Proudhon não só influenciou a oposição de Tolstoi à guerra e
ao poder do Estado que a cria, após encontrá-lo em Bruxelas um ano antes de publicar La Guerre
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 511
et la Paix; influenciou também o emigrado russo Barão E Fircks (Schedo-Ferroti), o qual, em 1864,
publicou em Bruxelas Le Program du congrès européen. Tratava-se do projeto proudhonista de
negar aos capitalistas o direito de fabricar armas e aos governos o direito de declarar guerra. V.
Dommanget, Blanqui et Popposition révolutionnaire à la fin du second empire, 1960, p. 15 ss.
79 M. Buber, Paths in Utopia, L, 1949, pp. 24-37, 86, 88,146-149. J. Bancal desenvolveu a idéia de
Buber fazendo uma distinção entre o “socialismo tópico” proudhoniano (com enraizamento orgânico
em alguma parte, por diminuta que seja) e o “socialismo utópico” dos intelectuais (localizado
somente na mente megalomaníaca). V. Proudhon pluralisme et autogestion, 1970, vol. U, p. 155.
Bancal chama Proudhon de “profeta do século xxi” (v. n, pp. 232-234) ao advogar autonomia do
trabalhador (autogestion), personalismo (v. n, pp. 219-220) e um pluralismo radical compatível
com o “pluralismo funcional da ciência moderna” (v. I, p. 181).
80 Espécie de cooperativa da Rússia pré-revolucionária na qual os trabalhadores viviam e trabalhavam
comumente, compartilhando os lucros, em geral, em partes iguais — nt.
81 G. Pirou, Proudhonisme et le syndicalisme révolutionnaire, 1910. A única monografia importante
que documenta a influência de Proudhon sobre algum russo é R. Labry, Herzen et Proudhon, 1928,
a qual foi em grande parte modificada e suplementada por M. Mervand, “Herzen et Proudhon”,
em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1971, jan.-jun., pp. 110-188. Ainda não existe nenhuma
pesquisa extensa da influência de Proudhon nem na Rússia nem no leste europeu.
512 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
sugestão de síntese futura das idéias marxistas e proudhonistas — o que foi proposto por Gurvitch e
também no resumo de um colóquio por ocasião do centenário de Proudhon: Actualité de Proudhon,
p. 251.
CAPÍTULO 11
Um meio de comunicação mágico: o jornalismo
17 Bertrand, p. 440.
18 H. Förder; Marx und Engels am Vorabend der Revolution; die Ausarbeitung der politischen Richtlinien
für die deutschen Kommunisten (1846-1848), 1960, pp. 75-95.
19 Cornu, Marx et Engels, vol. i, p. 253 ss.
20 Gründungsdokument, pp. 14-16; McLellan, Marx, pp. 152-153.
520 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O despertar francês
O surgimento de esperanças revolucionárias na França se ligava de perto às
mudanças nos meios de comunicação. Foi nesse campo específico que a nova
tecnologia da Revolução Industrial inglesa se uniu pela primeira vez às novas
idéias da revolução política francesa no início do século xix. Os resultados
foram tão explosivos para a política européia quanto a simultânea primeira
fusão de nitrogênio e glicerina no material bruto da nova dinamite.
A descoberta quase simultânea de métodos práticos para produção de
papel por meio de máquinas e para a aceleração da impressão por meio de
motor a vapor produziu, nos anos 1820, as primeiras grandes mudanças na
imprensa dos últimos dois séculos.21
22 O resultante advento do jornalismo de
massa moderno produziu mudanças de pensamento não menos abrangentes
21 As abordagens existentes da carreira de Marx como jornalista passam longe de esgotar o assunto:
L. Bittel, Karl Marx als Journalist, 1953; A. Hutt, “Karl Marx as a Journalist”, em Marxism Today,
1960, maio; e, com uma bibliografia mais completa, K. Seleznev, Rol’ K. Marksa i E Engel’sa v
sozdanii rabochei pechati, 1965.
22 G. Weill, Le Journal. Origines, évolution et rôle de la presse périodique, 1934, p. 195 ss. para um
relato sucinto das mudanças. V. também L. Radiguer, Maîtres imprimeurs et ouvriers typographes,
1903, p. 167 ss. sobre a tecnologia e a sociologia das mudanças.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 521
23 W. Ong, The Presence of the Word, New Haven, 1967, usa esses dois termos para designar os dois
estágios que sucedem e suplantam uma cultura oral anterior. De modo mais geral, ainda que com
menos sistematicidade, v. M. McLuhan, Understanding Media; the Extensions ofMan, NY, 1964; e a
obra de Innes, que muito o inspirou. Uma bibliografia útil sobre a revolução tipográfica se encontra
em E. Eisenstein, “Some Conjectures about the Impact of Printing on Western Society and Thought:
A Preliminary Report”, em Journal of Modern History, 1968, mar., pp. 1-56.
24 J. Kirchner, em Die Grundlagen des deutschens Zeitschriftenwesens, Leipzig, 1928, parte I, pp.
126-127, acompanha a origem do termo do plural arabico mahâzin até o italiano magazino (arsenal),
e daí passando à Inglaterra e desta à Alemanha em 1747. Essa história alemã (assim como as histórias
soviéticas) do jornalismo é rica em detalhes, mas não integra o seu tema especializado ao contexto
histórico geral.
25 L Faucher; “La Presse en Anglaterre”, em Revue des Deux Mondes, 15 de setembro de 1826, p.
692. A data e as páginas de referências desse artigo proveitoso são citadas de modo incorreto
em L. O’Boyle, “Ilie Image of the Journalist in France, Germany and England, 1815-1848”, em
Comparative Studies in Society and History, 1968, abr., p. 314.
26 Marrast em Paris révolutionnaire, p. 306.
27 Citado em C. Ledré, Histoire de la presse, 1958, p. 158.
522 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
28 Ibid.
29 E. Hamburger, “Episodes de la lute entre Napoléon 1er et la presse anglaise”, em Cahiers de la
Presse, 1938, out.-dez., pp. 617-623. O autor enfatiza a negligência dos historiadores para com
esse assunto, mas eie pròprio deixa de considerar H. Klein, Napoleon und die Presse. Napoleons
Kampf gegen die Presse, Bonn, 1918; também A. Periner, Napoléon journaliste, 1919.
30 Duchesse d’Abrantes, Mémoires, citado em Ledré, Histoire, p. 160.
31 G. Bourgin, “Note sur Robert Babeuf, fils de Gracchus et journaliste”, em Cahiers de la Presse, 1938,
abr.-jun., pp. 223-229; jul.-set., pp. 386-395.
32 Ibid., p. 394.
LIVRO II, CAPÌTOLO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 523
[...] jovem e livre de qualquer compromisso com o passado [...] uma nova geração
[...] ligada à liberdade, sedenta de glória, sobretudo jovem. Com a fé ingênua da
juventude, com ilusões generosas e esperança ilimitada, vangloriavam-se de poder
evitar as armadilhas de seus pais e abraçar as conquistas da revolução, ao mesmo
tempo repudiando seus crimes.37
36 C. Sainte-Foy, Souvenirs, p. 146, citado em Louis, Histoire, p. 438. Lamennais ajudou a levar o
impulso revolucionário além dos intelectuais anticlericais ao insistir nas características cristãs das
insurreições polonesa e belga. V. em particular C. de Coux, “Des Sociétés secrètes en Italie”, em
L’Avenir, 23 de abril, 1831.
37 Dubois, um editor anterior, citado em A. Lavi, ‘“Le Globe’ Sa fondation — sa redaction — son
influence d’après des documents inédits”, em Séances et Travaux de l’Académie des Sciences Morales
et Politiques, vol. clxi, 1904, pp. 588-590.
38 Evans, Socialisme, p. 34. A partir de 18 de julho de 1831, O Globo passou a trazer formalmente o
subtítulo de “Jornal da Doutrina de Saint-Simon”. V. G. Weill, L’École Saint-Simonienne, 1896, p.
65 ss.
39 Citado de O Globo, 9 de setembro de 1831, em J. Vidalenc, “Les techniques de la propagande
Saint-Simonienne à la fin de 1831”, em Archives de Sociologie des Religions, 1960, jul.-dez., p. 8.
40 Vidalenc, pp. 8, 14; também p. 12 para “a originalidade e amplitude dessa propaganda”.
41 Ibid., p. 13 ss. V. na p. 19 um mapa das igrejas e correspondentes saint-simonianos por toda a França.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 525
58 Ibid., p. 202.
59 Edouard Alletz, De la démocratie nouvelle, 1838, vol. ii, pp. 65—66.
60 Ibid., p. 64.
61 Descrição de Charles Philipon, fundador de La Caricature, citado em O. Larkin, Daumier: Man of
His Time, NY, 1966, p. 14. Sobre a história posterior e a importância social do cartunismo politico
no mundo moderno, v. a bibliografia em L. Streicher, “David Low and the Sociology of Caricature”,
em Comparative Studies in Society and History, vol. vin, 1965-1966, n° 1, pp. 1-2; e vários outros
artigos sobre o assunto nas edições posteriores do mesmo periódico, em especial W. Coupe, “The
German Cartoon and the Revolution of 1848”, vol. ix, 1967, n° 2, pp. 137-167.
LIVRO IL CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 529
62 Lamennais, Correspondance, vol. n, p. 321, citado em Hatin, Histoire, p. 146; também p. 144 ss.;
e Ledré, La Presse, p. 142 ss.
63 Joseph Pennell, citado em Larkin, Daumier, p. 15. V. também A. Blum, “La Caricature politique sous
la monarchie de juillet*’, em Gazette des Beaux-Arts, 1920, mar.-abr., pp. 257-277. Os revolucionários
não empregam, claro, a litografia apenas em ilustrações. Louis Kossuth a utilizou como um jovem
delegado da Dieta Húngara em 1834 para publicar o procès-verbal daquela organização até então
secreta. V. Weill, Journal, pp. 188-189. A caricatura também floresceu por um breve período na
Rússia entre a revogação da censura sobre a litografia em maio de 1842 e a renovada política de
repressão de fevereiro de 1843. V. K. Koszyk, Deutsche Presse bn 19, Jahrhundert, 1966, p. 88.
530 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
64 V. Progress of British Newspapers in the Nineteenth Century, L, s/d., p. 45 (um compêndio feito
pela Swan Eletric Engineering Company no início do século).
65 Illustrated London News, vol. i (1842, 14 de maio — 31 de dezembro), p. iv.
66 A. Chesnier du Chesne, “L’Agence Havas”, em Cahiers de la Presse, 1938, jan.-mar., p. 106.
67 Weill, Journal, p, 199.
68 Koszyk, Deutsche Presse, pp. 212-213.
LIVRO IL CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 531
69 E Mather, “The Railways, the Eletric Telegraph and Public Order during the Chartist Period,
1837-1848”, em History, 1953, fev., esp. pp. 48-51.
70 W. Schröder, “Politische Ansichten und Aktionen der ‘Unbedingten’ in der Burschenschaft”, em
Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität Jena, vol. xv, 1966, n° 2, p. 236.
71 Ibid., p. 235.
72 Freie Stimmen frischer Jugend, 1819, discutido em Schröder, p. 237.
532 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
73 Citado em G. Bravo, “II comunismo tedesco in Svizzera. August Becker 1843-1846”, em Annali, vol.
vi, p. 540, nota 63. V. também outros exemplos e elementos (com fontes citadas) à p. 538 ss., esp.
a publicação anônima de Ludwig Seeger e August Becker, Politisch-soziale Gedichte von Heinz und
Kunz, Berna, 1844; W. Schieder, “Wilhelm Weitling und die Deutsche politische Handwerkerlyrik
im Vormärz”, em International Review of Social History, vol. v, 1960, n° 2, pp. 265-290. A obra-
prima de Cieszkowski, “Pai-Nosso”, buscava extrair toda uma filosofia da ação social com base na
oração. V. A. Chrzanowski, Ojcze Nasz Augusta Cieszkowskiego, Poznán, 1918.
74 Gabriel Pari, citado por R. Callas, “Le rôle considérable de notre presse dans la propagation des
idées communistes”, em Cahiers du Communisme, 1958, fev., p. 241.
75 Citado em J. Hamburger, Intellectuals in Politics. J. S. Mill and the Philosophie Radicals, New Haven,
1965, p. 127.
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 533
A fogueira revolucionária queimou com mais brilho nos jornais dos emi
grados em cidades como Paris, Bruxelas e Londres (cidades para as quais,
uma após a outra, Marx fugiria), e ainda na Suíça e nos Estados Unidos.
Nesses lugares, o jornal se tornou o ponto de encontro e o centro organi
zacional para um eleitorado desesperado e alienado. Filho de um pastor
turíngio, Julius Frõbel se mudou para a Suíça em 1835 e estabeleceu uma
nova editora, que ele descreveu como o “arsenal do partido do futuro”;85
esse “arsenal” ajudou Weitling a forjar as armas ideológicas das primeiras
organizações comunistas.
Os revolucionários que deixaram a Europa em grandes levas depois de
1848-1850 e embarcaram numa nova vida nos Estados Unidos raramente
mandaram de volta, aos seus ex-camaradas do Velho Mundo, quaisquer
armas ou idéias significativas.86 Marx, claro, também tinha em certo sentido
fugido para os Estados Unidos — no sentido de utilizar o Tribune de Charles
Dana, em Nova York, como seu canal jornalístico. No seu jornalismo da
década de 1850, ele ampliou a perspectiva global que já havia introduzido
no Neue Rheinische Zeitung^ em Colônia, durante os tumultos de 1848. A
União dos Trabalhadores de Colônia era a única da Alemanha a possuir um
jornal próprio;87 daí que Marx estivesse livre da responsabilidade de lidar
com questões locais no seu periódico, e assim se lançou a áreas remotas no
espaço e no tempo em busca de material que pudesse ser instrutivo para os
revolucionários. O mais recente estudioso desse período defende que se deve
falar de um partido do “Neue Rheinische Zeitung” durante esse período, em
vez de “Partido da Liga Comunista”.88 Em Londres, Marx se atirou ainda
mais profundamente no jornalismo, enriquecendo suas matérias com dados
colhidos no Museu Britânico e na imprensa diária, que era alimentada pela
Agência de Notícias de Reuters. Suas análises jornalísticas ajudam a justificar
o fracasso em concluir sua obra-prima, Das kapital.
85 Koszyk, p. 84. Para mais exemplos e detalhes, v. H. Keller, Dir politischen Verlagsanstalten und
Druckereien in der Schweiz 1840-1848, Berna, 1935.
86 Uma exceção foi o movimento feniano irlandês, que mandou de volta para a Irlanda armas e panfletos
destinados a várias gerações de revolucionários, e até lançou um ataque militar aos ingleses no
Canadá no fim da Guerra Civil Americana. Da parte dos nacionalistas revolucionários, a imprensa
polonesa dos exilados pela Europa continuou a influenciar um amplo espectro de revolucionários.
V J. Borejsza, W kregu wielkich wygnanców 1848-1895, Varsóvia, 1963.
87 G. Becker “Journaux de l’union ouvrière de Cologne”, em Presse ouvrière, pp. 264-283.
88 S. Na’aman, “In der Partei der Neuen Rheinischen Zeitung”, em Lassalle, Hanover; 1970, pp.
125-178, esp. p. 127.
536 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
89 E Balser, “Une presse à rédaction ouvrière, 1848-1851”, em Presse ouvrière, p. 238 ss.; e p. 286 ss.,
309 ss.
90 O sexto estudo de Corberon, De la Justice, discutido em M. Collinet, “Les débuts du machinisme
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 537
devant les contemporaines (1760-1840)”, em Le Contrat Social, 1965, mai.-jun., esp. p. 195.
91 Noyes, Organization, esp. pp. 131-143, bem como outros elementos cujas referências aí são dadas.
92 Radiguer, Maîtres Imprimeurs, pp. 252-253, 272.
93 Um delegado de Lyon proclamou: “O que existe entre os tipógrafos de Paris deveria existir entre
todos os tipógrafos, não apenas da França, mas da Europa, do universo inteiro” (Radiguet, pp.
254-255). O jornal profissional deles, Typographia, declarou, em edição de 25 de março de 1848,
que Vouvrier-imprimeur represente, pour parler franchement, ïétat supérieur du prolétariat [tto
operário-tipógrafo representa, para dizer francamente, o estado superior do proletariado”]. Citado
por J. Droz e P. Aycoberry, “Structures sociales et courants idéologiques dans l’Allemagne pré
révolutionnaire, 1835-1847”, em Annali, vol. vi, p. 187.
538 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
98 Citado em V. Kuleshov, “ Otechestvennye zapiski” i literatura 40-kh godov xix veka, 1959, p. 4.
99 Ibid., pp. 357-359, nota 78.
100 Relatório de Bulgarin à terceira §, citado sem documentação precisa em ibid., p. 102. Se, como
parece, o relatório data de 1842, esse pode ter sido o mais antigo emprego da palavra “comunista”
na Rússia.
Sobre a importância especial das obras de Sand publicadas nesse jornal (e sobre a formação da literatura
de conteúdo social na Rússia), v. p. 105, e ainda o tratamento mais completo de K. Sanine, Les Annales
de la patrie et la diffusion de la pensée française en Russie (1868-1884), 1955, p. 60 ss.
101 Escrito em Nice e publicado pela primeira vez, de forma abreviada, em UAvènement du Peuple,
Paris, 19 de novembro de 1851, e na integra em Le Peuple russe et le socialisme. Lettre à Monsieur
J. Michelet, Professeur au Collège de France, 1852; e, em inglês, em From the Other Shore, L, 1956,
pp. 165-208.
102 Poliamaia Zvezda, assim como Kolokol, está agora reproduzido na íntegra em fac-símile, 1966. Sobre
540 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
o Estrela Polar anterior dos dezembristas, v. V. Berezina, Russkaia zhurnalistika pervoi chetverti xix
veka, Leningrado, 1965, p. 74 ss.
103 Um estudo recente revelou essa rede como um meio importante de união de indivíduos aristocráticos
e não-aristocráticos (revelou ainda que ela incluía figuras das quais não se sabia de nenhuma
relação com revolucionários, como é o caso do etnògrafo A. N. Afanas’ev). V. N. Eidel’man, Tainye
korrespondenty ‘poliarnoi zvezdy', 1966, e a resenha que fez deste livro A. Turkov, Prometei, 1967,
n° 2, pp. 314-315.
104 S. Svatikov, “Studenticheskaia pechat’s 1755 po 1915 g.”, em Put’ studenchestva, 1916, p. 218, que
consta nas referências da tese de doutorado inédita de T. Hegarty, “Student Movements in Russian
Universities, 1855-1861”, Harvard, 1964. Para outro jornal, Ekho, publicado em data posterior
em Vilnius, v. Bol’shevistkaia pechat’ v dooktiabr’sky period, 1959, pp. 11-12.
105 Citado em Venturi, Roots, p. 285.
106 Ibid., p. 286.
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 541
112 N. Valentinov, Encounters with Lenin, L, 1968, esp. pp. 63-68, enfatiza a importância do exemplo
de Chernyshevsky para Lênin. V. também W. Woehrlin, Chernyshevskii. The Man and the Journalist,
Cambridge, Massachusetts, 1971.
113 Sobre esse jornal, publicado de julho de 1862 a maio de 1863 por Kastus Kalinovsky, v. E. Golomb
e E. Fingerit, Rasprostranenie pechati v dorevoliutsionnoi Rossii i v Sovetskom Soiuze, 1959, pp.
11-12.
CAPÍTULO 12
A decadência do nacionalismo revolucionário
Os últimos heróis
Apesar do fracasso de 1848, permaneceram firmes as esperanças de mais
revoluções nacionais na década de 1850. Revolucionários de toda parte se
animaram com a derrota sofrida na Guerra da Criméia pela Rússia, o pilar da
reação européia, a qual havia extinguido a nação revolucionária da Polônia em
1831 e da Hungria em 1849. Os revolucionários nacionais foram ainda enco
rajados pelo apoio de Napoleão in a movimentos de autodeterminação contra
os impérios conservadores e antinacionalistas dos Romanov e dos Habsburgo.
A causa polonesa preservava os seus atrativos perante toda a Europa,
apesar da morte de seus líderes simbólicos: Chopin durante a agitação
revolucionária de 1848—1849, Mickiewicz em meio à Guerra da Criméia
em 1855. Este último vinha reunindo legiões nacionais não apenas pelos
poloneses, mas também por outras nacionalidades oprimidas, incluindo os
judeus. Morreu em Constantinopla nos braços de seu amigo judeu Armand
Lévy, o qual, por sua vez, organizou uma companhia legionària de judeus, “a
primeira unidade militar judaica do período moderno”.1 Lévy depois se tornou
1 Milosz, History, p. 199, também p. 231. A melhor obra polonesa sobre Lévy é J. Borejsza, Sekretarz
Adama Mickiewicza, 1969.
LIVRO IL CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 545
uma necessidade absoluta [...] “união” é a palavra de ordem do dia, “ação” será
a do amanhã.16
24 M. St. John Packe, Orsini. The story of a conspiracy, Boston, 1957, p. 221. Embora Orsini a essa
altura já tivesse rompido com Mazzini, a extensão do estímulo do próprio Mazzini a atividades
terroristas é enfatizada por Nikolaevsky em “Societies”, pp. 43-45, e A. Luzio, Carlo Alberto e
Giuseppe Mazzini, Turim, 1923.
25 Nikolaevsky, “Societies”, p. 44.
26 Ibid., p. 38 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 551
31 A. Lehning, “Bakunin’s Conceptions of Revolutionary Organizations and their Role: A Study of his
‘Secret Societies’”, em C. Abramsky (ed.), Essays in Honour of E. H. Carr, L, 1974, pp. 61-65 ss.,
contém novos elementos documentais. Ver, mais ainda, M. Nettlau, Ocherki po istorii anarkhicheskikh
idei stat’i po raznym sotsiaVnym voprosam, Detroit, 1951, pp. 82-84 ss.; C. Marti, Orígenes de
anarquismo en Barcelona, Barcelona, 1959, p. 70, nota 77.
Ao enfatizar de modo correto a natureza revolucionária social e transnacional de seus projetos
durante esses últimos anos, Lehning talvez vá longe demais ao afirmar que “depois do fracasso da
insurreição polonesa de 1863, Bakunin deixou de acreditar em movimentos de libertação nacional
como uma força social e revolucionária” (p. 57).
32 As obras fundamentais sobre esse período são de M. Nettlau, Bakunin e VInternazionale in Italia del
1864 al 1872, Genebra, 1928; e Bakunin and the International in Spain (há edição alemã anterior
daquela primeira obra em Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, vol.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 553
II, 1911-1912; e edição em espanhol daquela última obra, Buenos Aires, 1925). Sobre a Suíça e a
federação de Jura, v. a coleção anotada pelo principal partidário suíço de Bakunin, James Guillaume,
L'Internationale: documents et souvenirs (1864—1878), 1905-1910, 4 vol.; e novos elementos na
obra monumental de A. Lehning, Archives Bakounine, Leiden, 1961 em diante, 5 vol. saídos até o
momento.
Discussões de outros elementos e perspectivas estão (no que respeita à Suíça) em J. Freymond (ed.),
Études et documents sur la première internationale en Suisse, Genebra, 1964, e (no que respeita à
Itália) em L. Valiani, L'Historiographie de l'Italie contemporaine, Genebra, 1968, pp. 101-113.
33 Sobre a rica subcultura de conspirações na Espanha, v. C. Lidi, La Révolution de 1868, NY, 1970;
sobre a Itália, v. o estudo clássico de N. Rosselli com nova introdução de L. Valiani: Mazzini e
Bakunin, Turim, 1967.
34 Citações em J. Joli, The Anarchists, L, 1964, p. 92, e ainda pp. 111-113.
35 Bakunin, L'Empire knouto-germanique et la révolution sociale (1871) em Oeuvres, vol. II; e sua
continuação inconclusa (nov.-dez., 1872) publicada em Lehning (ed.), Michel Bakounine et les conflits
dans l'internationale 1872. La question germaine-slave, le communisme d'état, Leiden, 1965, pp.
169-219.
36 Bakunin, Ai miei amici d'Italia, citado a partir de Nettlau em Joli, Anarchists, p. 108.
554 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
40 Há uma breve descrição em B. King, A History of Italian Unity, NY, 1967, vol. n, pp. 38-40;
informação completa em L. Cassese, La Spedizioni di sapri, Bari, 1969; e N. Rosselli, Carlo Pisacane
nel risorgimento, com um prefácio à nova edição (Milão, 1958) escrito por W. Maturi, o qual
acrescenta mais referências e comentários em seu Interpretazioni del risorgimento, Turim, 1962,
pp. 465-471. Hales, Mazzini, p. 127, discute um plano anterior de Mazzini para fazer algo similar.
41 Cassese, p. 40 (esp. nota 15), discute a “alucinação coletiva” implicada pela grande variedade de
testemunhos incoerentes de que Pisacane utilizou uma bandeira vermelha. A. Salomone, “The‘Great
Fear’ of 1860. Garibaldi and the Risorgimento”, em Italian Quarterly, 1971, primavera, pp. 77-127,
discute o medo de revolução social que assombrava Garibaldi mesmo quando já vitorioso.
42 T. Coogan, The IRA, L, 1970, p. 14.
556 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
43 Ele também lançou uma espécie de manifesto defendendo uma confederação européia, o seu
Memorandum alle potenze dell’Europa, de 22 de outubro de 1860. V. A. Tambora, “Garibaldi e
l’Europa”, em Atti del 39 congresso di storia del risorgimento italiano, 1961, p. 515. Sobre seus
laços com os húngaros, v. L. Lajos, Garibaldi e l’emigrazione ungherese 1860-1862, Modena, 1965.
44 K. Morawski, “Garibaldi e la Polonia”, em Atti del 39 congresso, p. 336.
45 Nikolaevsky parece dar um passo além do que os documentos disponíveis autorizam ao sugerir
(“Sociétés”, p. 46) que na década de 1860 “Mazzini, Garibaldi e os filadelfos formaram um bioco
que substituiu a Associação Internacional de 1855-1859”.
46 A primeira execução pública do texto de Boito e da música de Verdi foi em Londres no dia 24
de maio de 1962. Sua primeira reverberação internacional veio com o encontro de trabalhadores
franceses e ingleses em Londres em 5 de agosto (encontro preparativo à Primeira Internacional). V.
P. Masini, “I Canti della Prima Internazionale in Italia”, em Movimento Operaio e Socialista, 1969,
LIVRO n, CAPÍTULO 12; A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 557
50 Cardápio do jantar com seis pratos de 17 de abril, entre outros materiais sobre os contatos russo-
italianos coletados por V. Never; em Atti del XLiii congresso di storia del risorgimento italiano, 1968,
p. 47.
51 La France libre et Garibaldi, L, 1864.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 559
O jornalismo de massa
Foi então, nas décadas de 1860 e 1870, que as velhas esperanças do na
cionalismo revolucionário e os velhos hábitos conspiratórios passaram do
centro de industrialização da Europa para a sua periferia rural. Paralelo a
esse fenômeno, deu-se ainda outro que minou qualquer possibilidade de
manter vivo o sonho da revolução nas mentes da massa: um novo tipo de
jornalismo. O jornalismo revolucionário de uma vanguarda intelectual, que
teve, como vimos, importância central no período de 1830 a 1848, veio a
ser desbancado em matéria de audiência popular por uma nova imprensa de
massa — uma imprensa que era não-revolucionária ou anti-revolucionária.
Foram duas as fontes de rivalidade com o jornalismo ideológico da tradi
ção revolucionária: (1) os jornais simplórios e quase sem política alguma dos
53 Dedijer, Road, p. 178. O juramento revolucionário de Mazzini foi reimpresso em Zora, 1912 (p.
479, notas).
54 Tambora, “Garibaldi”, p. 462; e sobre a influência de Garibaldi sobre os russos, p. 476 ss. Para
uma bibliografia exaustiva sobre o impacto de Garibaldi, v. A. Campanella, Giuseppe Garibaldi e
la tradizione garibaldina, Genebra, 1971, 2 voi.
55 V. a discussão e referências em Billington, Mikhailovsky, p. 191, nota 1. Para a vaga de insurreições
nacionalistas da Bósnia e Herzegovina no verão de 1875 à Romênia e Bulgária às vésperas da guerra
russo-turca de 1877-1878, v. V. Trajkov, “L’Insurrection d’avril 1876 en Bulgarie et les peuples
balkaniques”, em Études Balkaniques, 1876, n° 1, pp. 16-41.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 561
60 V. J. Wiener, The War of the Unstamped: The Movement to Repeal the British Newspaper Tax,
1830-1836, Cornell, 1969; A Descriptive Finding List of Unstamped British Periodicals, 1830-1836,
L, 1970; e P. Hollis, The Pauper Press: A Study in Working-Class Radicalism of the 1830’s, Oxford,
1970.
61 Sobre o papel de John Doherty como fundador de The Voice of the People, Workmen’s Expositor
e outros jornais em Manchester, e sobre o papel de Bronterre O’Brien ao dar um sabor mais
revolucionário ao Poor Man’s Guardian antes de se juntar por um período a Feargus O’Connor
em seu novo Northern Star (fundado em 1838), v. M. Brooke, “Naissance de la presse ouvrière à
Manchester”, e D. Thompson, “Création d’O’Brien et d’O’Connor”, em Presse ouvrière, p. 10 ss. e
21-23.
62 S. Gruner, “The Revolution of July 1830 and the expression ‘Bourgeoisie’”, em Historical Journal,
vol. xi, 1968, n° 3, p. 469; R. Gossez, “Presse parisienne à destination des ouvriers 1848-1851”, em
Presse ouvrière, pp. 130-131. V. também G. Weill, “Les journaux ouvriers à Paris de 1830 à 1870”,
em Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, 1907, nov.
63 Cuvillier, Hommes, pp. 91-93. Já que sua listagem de esforços anteriores (pp. 87-91) está, contudo,
incompleta, especialmente no que diz respeito a Lyon, sua conclusão de que a publicação de jornais
desse tipo se inicia só em 1839-1840 é equivocada.
64 Ibid., pp. 99-154, e Cuvillier, Un Journal d’ouvriers, 1914, sobre as querelas importantes que o
jornal manteve com outras publicações radicais.
65 Cuvillier, Hommes, p. 124.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 563
A distração chauvinista
72 Citações de O. Anderson, A Liberal State at War, NY, 1967, pp. 3, 85. Sobre o apoio da imprensa
reformista na provinciana Sheffield, v. A. Briggs, “John Arthur Roebuck and the Crimean War”, em
Victorian People, L, 1954, pp. 60-94.
73 Para a mais rica documentação dessa atitude, incluindo material não presente em edições soviéticas
posteriores, v. D. Riazanov, Anglo-russkiia otnosbeniia v otsenke K. Marksa (Istoriko-kritischesky
etiud), Retrogrado (izdanie petrogradskago soveta rabochikh i krasnoarmeiskikh deputatovi, 1918,
LL.
74 Citado em Anderson, p. 3.
75 O poeta laureado Alfred Tennyson cantou os 300 homens da Brigada Pesada que haviam feito uma
incursão suicida até o topo de uma colina não menos do que cantou os “nobres seiscentos” que
Brigada Ligeira que havia feito incursão “no vale da morte” (The Poetic and Dramatic Works of
Alfred, Lord Tennyson, Boston, 1899, pp. 640-641, 292). Em outra parte ele repreendeu de forma
direta os reformadores: “Melhor uma vila decadente do que uma frota decadente (The Times,
9 de maio de 1859, citado em S. Maccoby, English Radicalism 1853-1886, L, 1938, p. 67).
76 Weill, Journal, p. 242.
77 Anderson, p. 71. Weill não toma a diferença como tão grande.
78 The Saturday Review, citado em Weill, p. 240.
566 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Je suis français
Je suis Chauvin
79 Oxford English Dictionary, vol. v, segunda paginação, p. 585, para esses empregos, aparentemente
os primeiros, de “jingo” com o novo sentido. Ibid., vol. il, p. 304, para La Cocarde de 1831 e o
primeiro emprego de “chauvinismo” em 1870.
80 Kolokol, 1864, n° 44-45; citado em Russkaia periodicheskaia péchât’ (1702-1894), 1959, p. 25.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 567
81 Citado em M. Lemke, Ocherki po istorii russkoi tsenzury i zhumalistiki xzx stoletiia, São Petersburgo,
1904, p. 279.
82 Ibid., p. 279; essa cifra é de 4.000 a mais do que seu concorrente mais próximo (ibid., p. 358).
83 Citado em Brokgauz-Efron, Entsiklopedichesky slovar\ vol. xiv, p. 732. V. também S. Nevedensky,
Katkov i ego vrernia, São Petersburgo, 1888.
84 Até 1917, chamava-se de governador militar o oficial incumbido pelo tzar de controlar uma
província, cidade ou região. Em tempos de guerra, o governador militar geral tinha prerrogativas
de comandante em chefe — nt.
85 Yarmolinsky, Road, p. 130.
86 Citado em Brokgauz-Efron, vol. xiv, p. 732.
87 Ibid.
568 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Napoleão m e o “imperialismo”
0 drama da desradicalização das massas através de um novo tipo de jorna
lismo se desenrolou com mais vivacidade na França de Napoleão m. Lan
çando mão de meios que os contemporâneos jamais compreenderam — e
que os historiadores mal começaram a investigar —, Napoleão transformou
o nacionalismo revolucionário externo em uma ferramenta de repressão
política interna, e transformou as idéias sociais saint-simonianas nativas em
um instrumento de expansão no estrangeiro.
Não se pode falar do terceiro Napoleão sem se falar do primeiro; pois o
novo Napoleão chegou ao poder em boa medida graças à reputação do velho.
Napoleão m foi eleito presidente da Segunda República Francesa com uma
votação estrondosa em dezembro de 1848, e recebeu poderes ditatoriais três
anos depois com uma votação ainda mais desconcertante. A lenda napoleonica
continuara a encantar muitos intelectuais revolucionários.
A primeira Revolução Francesa trouxe Napoleão i ao podei; e os primeiros
revolucionários profissionais do início do século xix se uniram principalmente
para derrubá-lo. O pensamento revolucionário sobre o poder foi, portanto,
570 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
influenciado desde o começo por esse supremo homem de poder. Ele estabe
leceu a agenda de toda uma geração ao abalar todas as velhas legitimidades
políticas: ao politizar o ideal iluminista de racionalidade universal (o sistema
métrico, o código napoleonico) e ao impô-lo a um mundo retrógrado. Acima
de tudo, alimentou a imaginação romântica com uma fascinação estética
pelo poder — e com as possibilidades de mudar o mapa e a vida da Europa.
Viessem dos exércitos que lutaram com Napoleão (os filadelfos franceses,
os filômatas poloneses e, em especial, os carbonários italianos) ou viessem
dos exércitos que lutaram contra ele (os dezembristas russos, os comuneros
espanhóis e os Tugendbund alemães), os primeiros revolucionários eram
soldados joviais que falavam francês e pensavam à grande maneira napo
leonica. Existia, portanto, um modelo oculto ou “superego” dos primeiros
revolucionários. Bonaparte era Prometeu liberto, um novo-rico que chegou
ao poder; e o jovem revolucionário era quase sempre tanto um incansável
indivíduo prometèico quanto um forasteiro em busca de poder.
As mais importantes ideologias revolucionárias do período da Restauração
— o saint-simonismo e o hegelianismo — nasceram sob o signo napoleo
nico. Elas continuavam a atrair intelectuais que buscassem dar um sentido
ao poder (e assim ter acesso a ele). Essa politização do intelecto havia se
intensificado sob Napoleão. Saint-Simon tinha começado a escrever com o
propósito específico de aperfeiçoar e completar as reformas napoleônicas.
Suas muitas e não atendidas tentativas de tratar diretamente com Napoleão
lhe fizeram se dedicar com predileção a encontrar um poder capaz de tornar
obrigatórias suas idéias. Hegel ficou encantado com a conquista da Alema
nha por Napoleão, e viu a mão da providência no fato de que concluísse
sua Fenomenologia no período em que era travada a Batalha de Jena. Sua
visão política final parece ter sido uma síntese de reforma prussiana com
universalidade napoleonica.
A reintegração racional da sociedade pregada por Hegel e Saint-Simon seria
inconcebível sem a estranha combinação que Napoleão havia introduzido
no mundo: um déspota que governa em nome da liberdade. Não importa
quão pouco napoleônicas possam ter sido as esperanças que Saint-Simon
depositou na classe trabalhadora e Hegel no Estado prussiano, o fato é que
o impulso de buscar alguma transformação secular universal da sociedade
se originou, na mesma medida, do fato concreto da existência de Napoleão
e da retórica abstrata da revolução.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 571
esgotam as possibilidades. Obras mais recentes com freqüência seguem a moldura estabelecida por
Zeldin, The Political System of Napoleon in, 1958, e sugerem que a imagem de primeiro mestre
da manipulação da política de massas talvez seja mais apropriada. Ver, por exemplo, uma obra
não incluída em Gooch ou Osgood: T. Corley, Democratic Despot. A Life of Napoleon in, 1961.
105 R. Koebner, “The Emergence of the Concept of Imperialism”, em Cambridge Journal, vol. v, 1952,
pp. 726—741; e, com tratamento mais completo, seu Imperialism: the story and significance of a
political word, 1840-1960, Cambridge, 1964.
Koebner acompanha a origem do termo da crítica inglesa da Napoleão in até a autocrítica inglesa da
década de 1870; mas houve um emprego francês de 1869 com o sentido moderno — ao contrastar
“l’esprit impérialiste” às “nos institutions libérales” — em J. Amigues, La Politique d’un honnête
homme, p. 98, citado em meio a várias outros empregos do período da Guerra Franco-Prussiana
em J. Dubois, Le Vocabulaire politique et social en France de 1869 à 1872, 1962, p. 319.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 575
os grupos”?13 Esse plano era fantasioso, mas a sua proposta foi bastante
imitada. Estudantes da longínqua São Petersburgo (incluso, aí, o principal
correspondente russo de Marx, Nicholas Danielson) tentaram criar um jornal
com o mesmo título e o mesmo propósito.
Dentro da França, Rochefort era atraente a ponto de precisar ser com
batido não só com repressão, mas também com atrações concorrentes.
Girardin se mexeu para preencher o vácuo e, como vimos, tornou-se nos
últimos anos do reinado de Napoleão um destacado trovador do naciona
lismo e da guerra externa. Assumindo o comando do moribundo La Liberté
ao fim dos anos 1860, elevou sua circulação de 500 exemplares para 60
mil através de uma revolução jornalística que foi “talvez tão significante
quanto aquela de 1836 da qual esta era, de todo modo, a conseqüência e o
prolongamento naturais”.113114 O novo público de massa que esse jornal criou
não se empolgava mais com Os três mosqueteiros ou com as colunas de
fofoca de La Presse, e sim com imagens de combates verídicos no mundo
real — despachos telegráficos sobre aventuras militares distantes, boletins
de mercados de ações em alta ou em baixa, além das competições atléticas
que La Liberté foi o primeiro a cobrir de maneira regular em sua nova
seção, “Le monde sp or tique”.
O próprio Rochefort acabaria seduzido pelo novo chauvinismo — em
que pese ele ter cumprido dez anos de pena na Nova Caledonia por seu
apoio à Comuna de Paris e ter fundado um novo jornal de oposição revo
lucionária aos republicanos moderados (nomeado, com muita propriedade,
O Intransigente) no Dia da Bastilha de 1880. Deslocou-se à direita no fim
da década para apoiar o General Boulanger, foi ainda mais à direita uma
década depois quando do caso Dreyfus e, em 1907, deixou de vez O In
transigente para passar os seus seis últimos anos de vida escrevendo para
o conservador e nacionalista La Patrie.
Não é necessário acompanhar em sua totalidade a história da imprensa
chauvinista e de como ela cresceu no fim do século xix. Muitas das inovações
empregadas para dar uma feição sensacionalista às notícias se originaram
nos Estados Unidos: ilustração fotográfica de assuntos políticos (no New
York Daily Telegraph, em 1873), linotipo (na imprensa germânico-ameri-
113 Zévaès, Rochefort, p. 78.
114 De acordo com Reclus, Girardin, p. 210, que também fornece cifras das tiragens e outras informações
sobre Girardin. Já ao fim da década de 1860, o tom antiprussiano de Girardin “ultrapassava
qualquer coisa que fosse permitida ao tumulto desorganizado dos deputados de direita”. Segundo
seu contemporâneo Ollivier, citado em Koszyk, Presse, p. 214.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 577
115 Weill, Journal, pp. 285-291. Sobre o papel da imprensa do continente no desenvolvimento do
sentimento chauvinista depois de 1871, v. H. Pross, Literatur und Politik, Geschichte und Programme
der politische-literarischen Zeitschriften im deutschen Sprachgebiet seit 1870, Otin/Freiburg, 1963; R.
Manévy, La Presse de la troisième république, 1955; e elementos citados com fontes em W. Haacke,
“The Austrian and Viennese Press”, em Gazette, vol. xiv, 1968, n° 3, pp. 195-216.
116 Citado em F. Mott, American journalism, a history: 1690-1960, NY, 3a ed., 1962, p. 529.
578 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A Comuna de Paris
A Comuna de Paris de 1871 foi a maior insurreição urbana do século xix
— e precipitou a mais sangrenta repressão. Foi um marco na história revo
lucionária: a última das revoluções com origem em Paris, a qual deu cabo
da dominação francesa da tradição revolucionária.
Essa insurreição parisiense foi o primeiro exemplo de desafio lançado pelas
massas ao novo Estado militar-industrial da Europa moderna. A Comuna
criou — ainda que só por um breve período — uma abordagem revolucionária
alternativa à organização da autoridade na sociedade moderna. As revoluções
posteriores bem-sucedidas na Europa seguiram o exemplo dos communards
de só fazer revolução no momento em que se iniciarem guerras. Enquanto
as revoluções de 1789, 1830 e 1848 ocorreram em tempos de paz, as que
abalaram a Rússia em 1905 e em 1917, bem como as que levaram outros
regimes comunistas ao poder na China, na Iugoslávia e no Vietnã nos anos
1940, foram desenvolvimentos diretos de guerras estrangeiras.
A Comuna deixou um legado de lendas e de lições. Proporcionou à Re
volução Russa santas relíquias (Lênin foi sepultado com uma bandeira de
communard, e a nave espacial Voskhod foi, passados quarenta anos, equipada
com uma insígnia tirada de um estandarte da Comuna) e imagens sagradas (a
imagem iconica da luta de classes no filme Outubro de Eisenstein — mulheres
burguesas estocando com seus guarda-sóis pontiagudos os trabalhadores
caídos no chão — foi tirada de um mural do museu da Comuna em Paris).
Abundaram mitos da Comuna entre os anarquistas e os social-democratas
no período anterior à Primeira Guerra Mundial;117 entre os revolucionários
culturais chineses dos anos I960118 não menos que entre os revolucionários
117 G. Grüzner, Die Pariser Kommune, Colônia/Opladen, 1963, oferece uma história exaustiva do mito,
em particular de seu efeito intimidador sobre os social-democratas alemães.
118 Cheng Chih-Szu, “The Great Lessons of the Paris Commune”, em Peking Review, Io de abril de
1966, pp. 23-26; 8 de abril, p. 25; 15 de abril, pp. 23-29.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 579
123 S. Edwards, The Communards of Paris, 1871, L, 1973, pp. 20, 53-54.
124 Williams, p. 152.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 581
125 A. Decouflé, La Commune de Paris (1871). Révolution populaire et pouvoir révolutionnaire, 1969,
pp. 217-247.
126 Ibid.,p. 248-249.0 braço parisiense da Internacional assumiu um tom de marcado anti-nacionalismo,
proclamando em abril que “país” se tornou uma “palavra vazia” e que “a França está morta”. V.
Jules Nostag, “Country — Humanity”, em La Révolution politique et sociale, n° 3, em Postgate,
Revolution, p. 298.
127 Caracterização feita por Sartre, citada em Decouflé, p. 18.
128 Jules Vallès em Le Cri du Peuple, 30 de março, citado em Edwards, Communards, p. 75.
129 Citado de um editorial em Vengeur, 30 de março, em Dubois, Vocabulaire, p. 50.
130 Villiers de ITsle-Adam, “Paris as a Festival”, reimpresso em Edwards, p. 140.
131 M. Waldman, “The Revolutionary as Criminal in 19th Century France: A Study of the Communards
and Deportees”, em Science and Society, 1973, primavera, pp. 31-55; e pp. 37-38, n° 26, para varias
estimativas de mortes.
582 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
132 Borejsza, “Portrait”, pp. 153-154. Tão grande era o asco por toda a Europa pela Comuna, que os
dois filhos de Dabrowski foram levados ao suicídio, e seu irmão a cometer crimes no exílio. Sobre
a grande participação polonesa na Comuna, v. K. Wyczanska, Polacy w Komunie paryskiej, 1971.
133 Sobre essa figura notável, v. Borejsza, “Legend and Truth”, em Poland, 1973, dez., pp. 22-25.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 583
Blanqui com Proudhon e seus discípulos, e pp. 138—153 para sua influência sobre Marx e Lênin).
Outro datiloscrito inédito de Paz (“Inventaire sommaire des papiers d'Auguste Blanqui”, 1972, BN,
pp. 18-26) enfatiza mais os paralelos do que os laços entre Blanqui e Marx.
162 Citado em D. Stafford, From anarchism to reformism, Toronto, 1971, pp. 10-11.
163 Citado em ibid., p. 15. V. também Paul Brousse, Le Marxisme dans P internationale, 1882; M. Rubel,
“La Charte de la primière internationale. Essai sur le “marxisme” dans l’association internationale
des travailleurs”, em Mouvement Social, 1965, abr.-jun., esp. pp. 3—6; e M. Mande, “A propos du
concept de ‘marxisme’”, em Cahiers de l’institut de science economique appliqué, vol. vin, 1974,
pp. 1397-1430.
164 Freymond, Études, p. 142.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 591
165 O estudo da origem e disseminação desse termo de C. Weill (“A propos du terme ‘bolchévisme’”,
em Cahiers du Monde Russe et Soviétique^ 1975, jul.-dez., pp. 353-364) vê um paralelo com o
blanquismo (p. 355), mas nunca considera os precedentes blanquistas ou quaisquer outros do termo
leninista.
166 Em 1873, no auge de sua luta contra Marx, Bakunin explicou que ele havia mudado o nome de
sua Aliança Italiana da Social-democracia de 1864 para Aliança dos Revolucionários Socialistas
“como resultado de os comunistas estatistas alemães darem ao termo ‘social-democracia* um sentido
comprometedor, doutrinário e estatista” (Istoricheskoe razvitie intematsionala, Zurique, 1873, parte
I, citado em Lehning, “Conception”, p. 62).
167 Lehning, “Conception”, pp. 73-74.
592 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,FM E HISTÓRIA
168 Da importante obra do principal partidário suíço de Bakunin, J. Guillaume, Karl Marx pangermaniste
et l’association internationale des travailleurs de 1864 à 1870, 1915, p. 1.
169 Os federalistas militantes de Jura depois da Comuna, citado em Stafford, From Anarchism, p. 76.
170 Bakunin, Writings, pp. 263-264; e pp. 232-270, para o pouco conhecido lado de Bakunin nessa
controvérsia, sugerindo que Marx representa a forma futura do “culto do Estado” de Bismarck.
LIVRO H, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 593
O romance perdido
A mentalidade heróica, romântica, morreu com a Comuna de Paris. Tanto o
nacionalismo revolucionário como a liderança francesa foram minados, e o
171 Citado em Lehning, “Théorie”, p. 462. Esse uso é anterior à suposta origem do termo com os
bakunistas na Espanha 1873 e/ou com a explicação que Malatesta deu em 1876 para o levante na
Bolonha de dois anos antes (Stafford, From Anarchism, p. 79).
594 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
Modernização da violência
172 Publicado em Vpered, 23 de março de 1905, discutido em B. Itenberg, Rossiia i parizhskaia kommuna,
1971, p. 179 ss.
173 “La Guerre des rues”, de Cluseret, Mémoires, 1887, vol. ii, pp. 273-289; reproduzido em P. Kessel
(ed.), 1871. La Commune et la question militaire (Cluseret-Rossel), 1971, p. 337.
596 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
As transformações da ópera
177 Carta de 21 de junho de 1868, citada em T. Marix-Spire, Les Romantiques et la musique. Le cas
George Sand 1804-1836,1954, p. 592, nota 8; também p. 591, nota 6, e a $ “musique et philosophie”,
pp. 419-457.
178 M. Reclus, Émile de Girardin, 1934, p. 215.
598 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
179 Em alguns casos, como na Cuba espanhola, os textos revolucionários eram habilmente cooptados para
propósitos reacionários, a exemplo de quando o General Concha substituiu a palavra “liberdade”
por “lealdade” no dueto do segundo ato da ópera Puritani de Bellini (saltando de pé com frieza para
liderar os aplausos, quando o barítono, indiferente, cantou Viva la libertà}, e de quando desarmou
a cena da revolta de A Menina Muda de Portici ao fazê-la anteceder de uma tarantela, que assim
transformou o melodrama em uma opera-bouffe (Maretzek, Revelations, pp. 29-30).
180 V. a crítica seminal do populista russo N. Mikhailovsky, “Darvinizm i operetki Offenbakha”, em
Otechestvennye Zapiski, 1871, out.; discutida em Billington, Mikhailovsky, pp. 76-77.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 599
ópera que este compôs durante seu período de mandato no novo parlamen
to italiano, de 1861 a 1865. À estréia mundial dessa ópera, La Forza del
Destino, em São Petersburgo, em novembro de 1862, seguiu-se, em fevereiro
de 1863, a chegada do adversário alemão de Verdi, Richard Wagner, como
regente convidado em São Petersburgo. A “música do futuro” de Wagner
empolgou a emergente sensibilidade russa e inspirou imitação imediata na
ópera de Serov de 1863, Judite. Wagner contrastou o calor da reação russa
à frieza da recepção francesa à sua “música do futuro” ao sugerir que “os
russos agora vivem no futuro”.181
A maior parte dos russos temia a atração sedutora de Wagner, mesmo
quando saudava sua rejeição dos modelos franco-italianos. Um grupo de
talentosos e jovens compositores russos abandonou o Conservatório de
São Petersburgo para formar uma nova Escola de Música Livre dedicada a
descobrir um estilo musical autenticamente russo, liberto de toda influência
estrangeira. O gênio do grupo, Mussorgsky, produziu no fim dos anos 1860
e nos anos 1870 uma ópera nacional russa para rivalizar com a realização
alemã concorrente de Wagner. Tomadas em conjunto, as realizações desses
compositores marcam o fim do elo entre nacionalismo e revolução que havia
sido a marca distintiva da ópera romântica franco-italiana.
Sob um ponto de vista só artístico, Wagner e Mussorgsky eram muito mais
antitradicionais (e, nessa acepção bem ampla, revolucionários) do que Verdi e
outros gigantes da ópera franco-italiana. Cada um deles buscou transcender
a linguagem romântica — e até mesmo toda a tradição musical do Ocidente.
Cada um deles buscou extrair uma nova linguagem musical diretamente do
“povo” e novos assuntos do subconsciente coletivo do folclore vernáculo.
As diferenças radicais entre os dois gigantes nos dizem algo sobre as bem
diferentes aspirações interiores do nacionalismo pós-romântico na Alema
nha e na Rússia, respectivamente. Wagner e Mussorgsky desempenharam
papéis importantes no desenvolvimento de uma consciência nacional em seus
respectivos países. Com efeito, a música deles proporciona uma espécie de
presságio profético dos dois mais fatídicos levantes revolucionários do século
XX: o do nacional-socialismo da Alemanha de Hitler e o do nacionalismo
socialista da Rússia de Stálin.
Wagner desferiu — de maneira bastante literal — o golpe fatal sobre o
tema lírico do amor romântico que tinha sido central nas óperas do nacio
181 Citado em N. Findeizen, “Vagner v Rossii”, em Russkaia muzykal’naia gazeta, 1903, n° 35, p. 767.
600 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Wagner criou uma “arte sagrada alemã” por meio de sua monumental
obra O Anel dos Nibelungos^ que, concluída em 1874, teve a sua primei
ra montagem integral em 1876 no teatro-santuàrio recém-construído em
Bayreuth para as produções do compositor.
Para a nova geração imperial de nacionalistas alemães do fim do século xix,
o Reno haveria de se tornar não só o complexo industrial de mais acelerado
desenvolvimento no mundo, mas também a fonte misteriosa de um anel de
ouro capaz de proporcionar o domínio do mundo e a derrubada dos deuses.
Aceite-se ou não a crítica freudiana de Wagner, segundo a qual este prometia
uma libertação fálica por meio da espada de Siegfried e da lança de Parsifal,
o fato é que havia claramente uma manipulação de emoções subliminares
na música de Wagner. O jovem Adolf Hitler era um wagneriano ávido, que
retornava de tempos em tempos à casa de ópera de Linz para assistir à en
trada do cavaleiro de armadura reluzente em Lohengrin e que proclamava
Meistersinger sua ópera favorita, e que protagonizou o seu próprio triunfo
teatral em Nuremberg na reunião popular monumental de 1934.
Muito diferentes eram a música e a mensagem dos “dramas musicais
populares” de Mussorgsky na Rússia — mas igualmente destrutivos do li
rismo romântico e do nacionalismo revolucionário da escola franco-italiana.
Em sua busca de um idioma nacional singular, Mussorgsky se esforçou
para descobrir sua nova linguagem musical nos sons intocados das pessoas
simples, chegando mesmo a tentar extrair música diretamente dos sons de
aglomerações balbuciantes na feira de Nizhni-Novgorod.
Desejoso de fazer a música expressar uma verdade que fosse ao mesmo
tempo realista e moral, Mussorgsky buscou primeiro inspiração nos textos
em prosa de Nikolai Gogol, e depois na história russa e no maior texto dra
mático do maior poeta da Rússia: Boris Godunov^ de Pushkin. Ele passou
os anos de 1868 a 1874 — o exato período em que Wagner concluía o seu
Anel — escrevendo Boris, a única ópera que chegou a terminar. A maior das
óperas nacionais russas trata de um período de insurreições intestinas e de
modernização incerta que muito se assemelhava à Rússia de Alexandre ii:
602 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
chama), não mais capaz nem de profetizar nem de rezar, mas só de lamentar.
0 povo não era mais o narod idealizado dos revolucionários populistas, mas
um faminto liudy sem comida nem esperança. O desolado realismo tinha triun
fado sobre o romantismo revolucionário; e a mesma desolação prevaleceria no
esforço seguinte de Mussorgsky para escrever uma trilogia nacional de escala
wagneriana em sua última e incompleta ópera, Khovanshchina.
No ápice da agitação revolucionária de 1877, ele por um breve período
considerou a possibilidade de fazer uma ópera que tivesse por tema Pugachev,
o rebelde camponês do século xvni; mas recuou ainda mais, até o fim do
século XVII, tomando por tema os Velhos Crentes que haviam auxiliado os
Khovanskie na resistência às inovações ocidentalizantes de Pedro, o Grande.
A Khovanshchina de Mussorgasky termina, tal como O Anel de Wagner,
com as principais personagens consumidas por um imenso incêndio no pal
co. Mussorgsky concluía com a voz de baixo de um padre velho crente que
pede a todos, em tom de desolada resignação, que se atirem à pira. Wagner
concluía com uma espécie de transfiguração, na medida em que Brunilda
sobe ao fogo para alegremente saudar seu marido. Mussorgsky sugeria que
o povo russo ansiava por mudança política, mas que era pouco provável
que encontrasse a libertação seguindo por esse caminho. Tão instigante era
para a imaginação a “cena revolucionária” de Boris, que, quando Lênin foi
por um breve período forçado, em meio à crise revolucionária de 1917, a
se esconder fora de São Petersburgo, teria assim respondido à pergunta de
para onde ia: “para Kromi”.
Desse modo, ao fim do século xix a ópera tinha se transformado em di
versão rotineira dos reacionários, em vez de entusiasmo inspirador para os
revolucionários. A revolução social na era do industrialismo e do imperialismo
tinha se tornado algo de perigoso e desinteressante.
Os pretensos realizadores da revolução social tinham, contudo, encontra
do outra canção para substituir La Marseillaise y que havia perdido algo de
seu esplendor revolucionário quando sua fixação final como hino nacional
da Terceira República foi supervisionada por ninguém menos que o flagelo
chauvinista da República, o General Boulanger.183 O hino rival endossado
pelos revolucionários sociais começaria a ser empregado na abertura do dé
cimo quarto congresso do Partido dos Trabalhadores francês em 20 de julho
de 1896. Realizado em um momento de crescente rivalidade nacional e com
183 Sobre a comissão de 1886-1887 lançada por Boulanger como ministro da guerra, v. Chailley “La
Marseillaise”, p. 14.
604 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
184 A. Zévaès, Eugene Pottier et iTnternationale, 1936, pp. 46-53, para o material contido aqui.
185 Sobre Pierre Degeyter e o coro “La Lyre des travailleurs”, ibid., pp. 35-37.
186 Ibid., p. 53.
187 M. Howard, The Franco-Prussian War, NY, 1962, p. 276, também p. 274.
LIVRO III
A ascensão dos revolucionários sociais:
fim do século xix e início do século xx
Afe«« em Aranca inieneioftai
CAPÍTULO 13
5 V. D. Billington, “Structures and Machines: The Two Sides of Technology”, em Soundings, 1974,
outono, pp. 275-288.
610 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Origens lassalleanas
O extravagante fundador da Social-democracia Alemã, Ferdinand Lassalle,
parecia um tipo improvável na nova era da organização mecânica. Quando
jovem, ele havia sonhado com liderar o povo alemão na batalha; e, em vários
pontos de sua breve carreira adulta, assumiu a postura de um poeta ou filó
sofo e o comportamento pessoal de um amante meditabundo e de um orador
demagogo. Sua aparência cortês e sua admiração por Garibaldi o tomaram
uma personalidade incompatível com Marx, que certa vez o chamou (para
embaraço dos hagiógrafos marxistas) de uma “união de judeu e alemão com
uma base de negro”.14
9 Sobre a pouco conhecida história do emprego desse termo pelo secretário de Lenin, Vladimir Bonch-
Bruevich, em 1903, bem como sobre empregos finlandeses, iugoslavos e outros posteriores no leste
europeu em meados da década de 1940 como uma alternativa ao modelo stalinista de “ditadura do
proletariado”, v. Billington, Icon, p. 774, nota 40.
10 Sobre a origem desse termo com Paimiro Togliatti em 1936 durante a Guerra Civil Espanhola e sua
adoção posterior por Mao durante a Era Yan’an e por outros como alternativa ao modelo soviético,
v. a tese de doutorado inédita de J. Urban, “Moscow and the Italian Communist Party: 1926-1945”,
Harvard, 1967; resumida no seu “Contemporary Soviet Perspectives on Revolution in the West”,
em Orbis, 1976, inverno, pp. 1372-1373.
11 W. Shinn, “The ‘National Democratic State*: A Communist Program for Less-Developed Areas ”, em
World Politics, 1963, abr., pp. 377-389. A expressão “Estado nacional-demoçrático” foi divulgada
publicamente na conferência internacional dos partidos comunistas em Moscou em novembro de
1960 (p. 376) e, ao que parece, originou-se na tese de doutorado da década de 1930 do africanista
soviético I. Potekhin (p. 384, nota 10).
12 Os muitos empregos desse período estão documentados em Müllei; “Die Wortfamilie Sozialdemokrat”,
em Ursprung, pp. 156-159. O emprego rival pelos proudhonistas se voltava para o termo “nova
democracia”, que apareceu no subtítulo do último livro de Proudhon, De la Capacité politique des
classes ouvrières.
13 Ursprung, p. 161.
1^ Werke, vol. xxx, p. 259; citado em McLellan, Marx, p. 322.
614 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
15 Na’aman, p. 132.
16 Ibid., p. 132.
17 Ibid., pp. 133,154-155.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 615
Lassalle se voltou para o proletariado não por afeição, mas pela convic
ção de que a classe média alemã era incapaz de lutar pelo governo popular.
Os liberais alemães formaram um novo partido Progressista em 1861, mas
Lassalle os via como paralisados pelo “medo do povo”:
Nossa burguesia liberal não consegue esmagar o Estado militar, não consegue
conquistar a liberdade política.20
de nascença”, fato é que ela era desde o berço assombrada pela presença de
Otto von Bismarck. Seu longo domínio sobre a vida política alemã se iniciou
quando ele foi convocado a se tornar ministro-presidente da Prússia durante
a crise constitucional de setembro de 1862. Ao ver o movimento da classe
trabalhadora como um aliado tático em sua luta contra os liberais, Bismarck
procurou Lassalle para discutir a proposta deste último de sufrágio universal
como um possível meio de fortalecimento da monarquia. Bismarck também
encarregou um jornalista conservador de examinar a questão dos benefícios
para trabalhadores levantada pelo programa de Lassalle — seguridade social
para idosos e regulamentação estatal das condições fabris — e elaborar uma
proposta de legislação social para os trabalhadores (a qual foi vetada pelos
liberais).25
De sua parte, Lassalle viu oportunidades para a classe trabalhadora alemã
na luta de Bismarck com as classes abastadas liberais. A classe trabalhadora
poderia se valer de maneira tática do poder do Estado de Bismarck para
desarmar os liberais e estabelecer cooperativas de produção. Estas últimas
forneceríam uma base econômica (e o sufrágio universal fornecería o ve
ículo político) para uma eventual tomada do Estado central pelo partido
organizado da classe trabalhadora. Marx, que nesse momento objetou ao
conceito de Lassalle de cooperação interina com o Estado prussiano, foi ele
próprio mais tarde acusado de “Bismarxismo”.26 Assim, a história inicial
da Social-democracia Alemã se liga de perto aos esforços do Chanceler de
Ferro para alternadamente manipular, cooptar ou suprimir sua crescente
oposição na esquerda.
Lassalle não viveu o suficiente para ver o processo dar seus frutos. Mor
reu num duelo em razão da honra de uma mulher aristocrata em agosto de
1864, apenas algumas semanas antes da fundação da Primeira Internacional.
Morreu como uma figura romântica de uma era já desaparecida — mas, sob
alguns aspectos, havia falado como o profeta de um futuro distante. Seus
discursos demagógicos para as massas (“o poder extremamente destrutivo
do discurso humano”)27 e sua admiração por Bismarck (“um homem” muito
distinto das “velhas damas” que eram os políticos liberais)28 prefiguraram,
de algum modo, o fascínio posterior dos alemães pela voz radiofônica e pela
25 K. Kupisch, “Bismarck und Lassalle”, em Vom Pietismus zum Kommunismus^ 1953, esp. pp. 132-133,
26 R. Hilferding, citado em Roth, p. 169.
27 Uma declaração da infância de Lassalle, citado em Reichard, p. 149.
23 Citado em ibid., p. 157.
618 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
mais apadrinhou em Londres nos anos 1850, tornou-se o seu mais eficiente
apoiador na Alemanha após seu retorno para lá em 1862. Ele colaborou de
perto com o carpinteiro e orador August Bebel. Ambos foram eleitos para a
Confederação da Alemanha do Norte de 1867, reafirmando a necessidade
de aliança tática com o que sobrou da oposição liberal a Bismarck.
Liebknecht e Bebel ganharam uma aura de heroísmo ao resistirem à
Guerra Franco-Prussiana, fazendo de plataformas de propaganda primeiro
seus assentos no Reichstag e depois suas posições de réus no julgamento de
Leipzig de 1872. Somente os eisenachers estavam ligados formalmente à
Primeira Internacional; e eles desenvolveram vários procedimentos que se
tornaram padrão em organizações revolucionárias de massa: um ritual de
expulsão formal e (depois do seu congresso de 1873) a insistência de que
membros do partido não poderiam ao mesmo tempo ocupar posições em
outra organização política.33
Assim, a despeito de sua inferioridade numérica em relação aos lassalleanos,
os eisenachers trouxeram uma força desproporcional à fusão dos dois grupos
organizada em Gotha em 1875. A aparente vitória dos lassalleanos naquele
momento, sinalizada pela aceitação do programa de unificação do Estado
prussiano como a moldura para o desenvolvimento socialista e das cooperati
vas de produção como meio de distribuição de riqueza entre os trabalhadores,
levou Marx a fazer uma dura denúncia. Ele escreveu o seu último grande
tratado sobre a relação entre comunismo e revolução: a Crítica do Programa
de Gotha. Reprovou o “socialismo vulgar” envolvido na busca de qualquer
justiça distributiva que se baseie em qualquer mecanismo estatal existente. Pela
segunda (e última) vez em seus escritos, teorizou sobre a necessidade de uma
“ditadura do proletariado”. O Estado burguês existente, lembrou aos seus
leitores alemães, deveria ser inteiramente destruído, e os meios de produção
tomados pelo proletariado. Somente após esse acontecimento — quando uma
nova forma provisória de ditadura de classe se terá estabelecido — se podería
alcançar a justiça social, e o poder político opressor começaria a “definhar”.
A ditadura passaria por não ter quaisquer raízes na opressão de classe.
Como expressão da classe universal que se apropria dos meios de produ
ção, a ditadura do proletariado seria efêmera: uma fase de transição para a
sociedade comunista (à qual teóricos marxistas posteriores chamariam de
“socialismo”). Marx adiava toda esperança de justiça distributiva para essa
33 Roth, pp.49-55; v. também a história semi-oficial de W. Schröder; Geschichte der sozialdemokratischen
Parteiorganisationen in Deutschland^ Dresden, 1912, p. 18 ss.
620 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Ortodoxia kautskiana
Visto em retrospecto, é difícil compreender como Karl Kautsky conseguiu
exercer a autoridade notável que estabeleceu no Congresso de Erfurt e man
teve por um quarto de século. Ele nunca ocupou posição formal fosse no
partido, fosse no parlamento, e sua prosa empolada era incompreensível para
muitos trabalhadores simples. Sua tendência de buscar orientação em Marx
para praticamente qualquer coisa era tão obtusa, que um colega seu disse:
“Kautsky sempre se sentiria obrigado a demonstrar que Marx até urinou
nas fraldas de maneira ortodoxa”.39
Seu longo aprendizado com Engels em Londres e sua função de curador
literário dos papéis de Marx e Engels sugeriram que ele fosse uma espécie de
sucessor apostólico dos fundadores. O seu novo jornal, Die Neue Zeit^ de 1883,
foi fundado em Suttgart sob as bênçãos de Liebknecht e Bebel. Ele combinava
o velho conceito de orientação revolucionária a partir de um jornal central com
a nova função de definir as posições marxistas frente a questões filosóficas,
culturais e políticas. Kautsky trazia para sua função uma base verdadeiramente
internacional: pai tcheco e mãe alemã, ambos com ancestrais italianos e eslavos,
uma educação vienense, longa residência na Inglaterra. Ele solidificou o seu
partido com a garantia marxista de que a revolução proletária era inevitável
37 M. Johnstone, “Marx and Engels and the Concept of the Party”, em The Socialist Register, 1967, pp.
121-122. O autor distingue quatro outros tipos de organização partidária reconhecidos por Marx
como implementações legítimas de suas idéias: o pequeno corpo revolucionário internacional da
década de 1840; partidos que representavam de modo autêntico o trabalhismo, mas aos quais faltava
organização nas décadas de 1850 e 1860; a federação universal de organizações dos trabalhadores
(a Primeira Internacional); e os amplos partidos trabalhistas nacionais segundo o modelo cartista
não-revolucionário que surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos por volta dos anos 1880.
38 C. Schorske, German Social Democracy, 1905-1917, Cambridge, Massachusetts, 1955, p. 3.
39 O pintor Friedrich Zundel, marido de Clara Zetkin, citado por Rosa Luxemburgo numa carta de
25 de janeiro de 1902, em Lettres à Léon Jogichès, 1971, vol. ii, p. 80.
LIVRO ni, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEM OCRACIA ALEMÃ 623
48 Joli, p. 105.
49 Joll,p. 133;Roth,p. 91.
50 A. Hall, “The War of Words: Anti-socialist Offensives and Counter-propaganda in Wilhelmine
Germany 1890-1914”, em Journal of Contemporary History, 13 de julho de 1976.
626 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Mas essa hora nunca chegou. De fato, a onda alemã talvez tenha atingido
sua altura máxima no Congresso de Stuttgart em 1907. A atividade organi
zacional interna depois ganhou vida e lógica próprias. Os preâmbulos aos
relatórios executivos nas reuniões do partido começaram a lembrar pronun
ciamentos estatais; as declarações sobre assuntos financeiros adquiriram a
solenidade de orçamentos governamentais; e os congressos anuais exigiam
semanas de preparação, prolongando-se agora por quatro dias.56 O impulso
revolucionário simplesmente se afogou num oceano de burocracia.
Os social-democratas também absorveram parte do etos nacionalista
da Alemanha imperial. Eles haviam ajudado a assegurar, em 1907, a opo
sição proletária internacional a guerras nacionais (fosse “por meio de ação
parlamentar ou por meio de ação social”). Mas começaram a refletir uma
depreciação tipicamente alemã da Inglaterra e da Rússia e uma tendência a
absorver o movimento polonês, em vez de fomentar sua independência. Em
agosto de 1914, aceitaram a crença nacionalista dos alemães comuns de que
estavam defendendo a civilização contra a Rússia, e de maneira relutante,
mas unânime, votaram pela ampliação do crédito que ajudou a iniciar a
guerra e a condenar a Segunda Internacional.57
no Reichstag (p. 263). Para outra perspectiva acerca do atrativo internacional do modelo alemão, v.
G. Niemeyer; “The Second International: 1889-1914”, em Drachlkovich, Internationals^ pp. 106-107.
^6 Netti, “Party”, pp. 76—78.
57 V. o discurso fundamental de Hugo Haase no Reichstag (Joli, p. 175), que antes tinha ajudado os
social-democratas alemães a se oporem a ajudar a Áustria (pp. 159-164).
628 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
58 O termo “revisionismo” se originou da demanda, no sul da Alemanha, por “ação política reformista
e prática” voltada para “sucessos práticos parciais”, coisa invocada por Georg von Vollmar, Über
die nächsten aufgaben der deutschen Sozialdemokratie, Munique, 1891, p. 19, citado em Joli, p. 91.
59 O texto do programa de Millerand está em R. Ensor, Modern Socialism, L, 1904, pp. 48—55; discussão
em A. Kriegei e M. Perrot, Le Socialisme français et le pouvoir, 1966, pp. 65—83.
60 Citações de Lafargue, Le socialisme et le conquête des pouvoirs publics, Lille, 1899, em Kriegel e
Perrot, pp. 69-70.
LIVRO in, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 629
61 Para discussão desse movimento internacional negligenciado, que funcionou à parte da Segunda
Internacional,v. Lorwin, pp. 100-114.
62 Lorwin, p. 103.
63 O líder e fundador fabiano Herbert Bland, citado em A. McBriai; Fabian Socialism and english
politics, 1884-1918, Cambridge, 1962, p. 18.
630 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
64 Ibid., p. 66.
65 Citado de Democratic Socialism, em Braunthal, p. 264. Um importante grupo de novos livros alemães
que recapturam a complexidade, a riqueza e as raízes genuínas do pensamento de Bernstein no
marxismo é oportunamente pormenorizado e discutido em D. Morgan, “The Father of Revisionism
Revisited: Eduard Bernstein”, em Journal of Modern History, 1979, set., pp. 525-532.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 631
O Islã foi invencível enquanto acreditou em si mesmo. [...] Mas no momento em que
começou a ceder [...] deixou de ser uma força conquistadora. [...] Tampouco pode
o socialismo conquistar ou salvar o mundo se deixar de acreditar em si mesmo.66
66 Protokoll über die Verhandlungen des Parteitages, Hanöver, 1899, p. 149, citado em Braunthal, p.
271.
632 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
foi preso, deu-se enorme atenção à análise dos dezessete quilos de dinamite
descobertos com ele. Os especialistas concluíram melancolicamente que o
explosivo era um composto original de alta qualidade fabricado dentro da
Rússia e fácil de ser replicado.6
Quando de seus planos finais para o bem-sucedido assassinato do tzar
em Io de março de 1881, a Vontade do Povo concentrou especial atenção na
bomba, mesmo reconhecendo que o emprego de uma arma de fogo teria sido
mais barato e de sucesso mais certo: não teria causado tanta impressão. Teria
sido visto como um assassinato ordinário, e desse modo não teria expressado
a nova etapa do movimento revolucionário.7
A tradição russa de fato expressava uma “nova etapa do movimento revo
lucionário”. A armação de bombas se tornou uma força de união comunal não
menos importante do que a impressão de panfletos na célula revolucionária. A
oficina (masterskaià) de dinamite que a Vontade do Povo formou pela primeira
vez no fim dos anos 1870 reapareceu no grupo de estudantes do irmão mais
velho de Lênin no fim dos anos 1880 — e ainda novamente no “escritório
técnico” do partido bolchevique do próprio Lênin e em outros grupos que se
proliferavam pela Rússia na virada do século.8
A tradição russa tomou forma distinta pela primeira vez na década de
1860 em meio às grandes expectativas do período reformista de Alexandre n.
Como sabemos, Herzen, líder da primeira organização revolucionária russa,
Terra e Liberdade, manteve por quase uma década relações próximas com
revolucionários nacionais como Lelewel, Worcell, Mazzini e Fazy em Genebra.
Durante o período do reino de Alexandre, Herzen cultivara até a esperança
ítalo-polonesa de implantar uma monarquia constitucional através de uma
“reforma feita a partir de cima”.
Mas, mal havia Herzen começado a organizar de Londres uma conspiração
para atingir esse objetivo, sua liderança foi rejeitada por Chernyschevsky e os
Niilismo
início do século xix eram jovens oficiais e estudantes cuja imaginação havia
sido inflamada por Napoleão; e ele continuou a inspirar rebeldes românticos
ao longo de todo o século.
A Jovem Itália e a Jovem Europa, organizações de Mazzini, forjaram no
início da década de 1830 a noção romântica de que a juventude deveria se
rebelar contra aquilo que Fazy chamou de “gerontocracia”. Mais uma vez,
esperanças foram suscitadas (pela Revolução de 1830) só para serem desfei
tas com o fracasso da revolução em se espalhar e com o subseqüente retorno
de novos monarcas “revolucionários”, na Bélgica e na França, às práticas
conservadoras. A idéia vitalista de que a geração mais jovem deveria concluir
um programa reformista detido artificialmente manteve vivo o entusiasmo
revolucionário entre os poloneses e italianos durante a “primavera das nações”
que levou a 1848.
Mas a afirmação da identidade geracional entre os jovens russos da década
de 1860 trazia um novo elemento ideológico.9 Eles não tinham interesse algum
em completar o programa de reformas concretas iniciado por Alexandre n.
Rejeitavam a sociedade tradicional em sua totalidade — com efeito, rejeitavam
tudo que não fosse a sua recém-descoberta fé evangélica no método científico.
A negação total nasceu em parte do desgosto com a incompetência da velha
Rússia, que levou à derrota humilhante na Guerra da Criméia, em parte um
ressentimento desde há muito reprimido contra a pretensão e o irracionalismo
da Rússia dos Romanov. A singularidade da Rússia tinha sido afirmada com
um orgulho extravagante na doutrina da nacionalidade oficial em 1833 e iden
tificada com conservadorismo social, na medida em que o império esmagou
as revoluções na Polônia, em 1831, e na Hungria, em 1849. Após a derrota
na Criméia, os jovens queriam dar fim a essa atitude de aceitação, e o termo
niilista foi inventado e popularizado por Turguêniev em seu romance Pais e
filhos^ de 1862, para descrever o novo negativismo que proclamava “dois mais
dois são quatro e nada além disso faz sentido”.10
9 Um historiador russo, que depois cairia nas graças de Stálin, foi um dos primeiros a apontar o papel
fundamental dos estudantes na Revolução de 1848 no Ocidente: v. E. Tarie, Rol’ studenchestva v
revoliutsionnom dvizhenii v Europe v 1848 g., São Petersburgo, 1906. Para estatísticas sobre a
população estudantil à época de Alexandre n (cujo contingente aristocrata decaiu de 65,3% para
43,1 % em 1875), v. G. Shchetinina, “Universi tety i obshchestvennoe dvizhenie v rossii v poreformenny
period”, em Istoricheskie Zapiskí, vol. lxxxiv, 1969, pp. 164—215, esp. p. 166.
A. Spitzer provê um levantamento abrangente e cético da vasta literatura recente do conceito de
revolta geracional em “The Historical Problem of Generations”, em American Historical Review,
1973, dez., pp. 1353-1385.
10 Sobre a questão complexa de se o jornalista reacionário Katkov deu origem ao termo um pouco
antes ou apenas o tomou de uma leitura do manuscrito de Turguêniev antes de sua publicação, v.
LIVRO UI, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 641
o resumo e as referências dadas em Billington, “Intelligentsia”, pp. 810-811, nota 9. Com base
numa conversa posterior com o professor Bialy de Leningrado, estou propenso a crer na segunda
possibilidade.
Referências de empregos filosóficos anteriores do termo são dadas em Benoít-Hepner,
p. 193. Os usos políticos anteriores durante a Revolução Francesa são completamente ignorados
nos estudos citados. O primeiro uso parece ter sido feito por um francês enviado à Bélgica para
preparar sua unificação com a França (Antifédéraliste, 14 de outubro de 1793, comentado em A.
Mathiez, “Publica Chaussard, inventeur du nihiliste”, em Annales Révolutionnaires, vol. x, 1918,
pp. 409-410). O primeiro emprego como uma marca de orgulho foi feito por Anacharsis Cloots
em 27 de dezembro de 1793; “A República dos Direitos do Homem não é, propriamente dita, nem
teísta nem ateista; é niilista” (M. Frey, Les Transformations du vocabulaire français à 1*époque de la
révolution (1789-1800), 1925, p. 165). O primeiro emprego para designar um grupo foi feito num
sentido negativo similar ao uso de Chaussard no Courier français, Io de outubro de 1795: “Houve
mesmo na época de Robespierre uma facção designada pelo nome de indifférentistes ou nihilistes”
(A. Aulard, Paris pendant la réaction thermidorienne et sous le directoire, 1897, vol. n, p. 285).
Il A importância deles para o despertar da consciência estudantil é enfatizada por A. Gleason, Yowng
Russia; The Genesis of Russian Radicalism in the 1860*s, NY, 1980. V. também D. Brower, Training
the Nihilists, Education and Radicalism in Tsarist Russia, Ithaca» 1975, p. 122 ss»; e Hegarty,
“Movements”.
642 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
12 K. Griewank, Deutsche Studenten und Universitäten in der Revolution von 1848, Weimar, 1949, esp.
p. 55 ss. sobre a “universidade livre” em cuja faculdade se incluía Kinkel; Droz, Les Révolutions
allemandes de 1848, 1957, pp. 618-620, sobre a fuga de Kinkel; p. 609, sobre a singular reunião
do exército para a revolução em Baden.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 643
13 Sigo aqui a modificação feita por R. Brym (“A Note on the Raznochintsy”, em Journal of Social
History, 1977, mar., pp. 354-359) sobre as atenuações de Brower (Training, esp. p. 114) acerca
da importância do papel social das “várias categorias” (raznochintsy) para explicar a virada
revolucionária da juventude na década de 1860. Sobre o termo em si mesmo, v. C. Becker,
“Raznochintsy: The Development of the Word and of the Concept”, em American Slavic and East
European Review, 1959, fev., pp. 63-74.
14 Brower, p. 144.
15 Ibid., p. 118.
16 Ibid., pp. 476-1026; ibid., p. 121.
17 Ibid., p. 137.
18 Ibid., p. 137.
644 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
23 Descrição feita pelo filósofo religioso Vladimir Soloviev, Sobranie sochinenii, 1911, voi. vi, p. 270.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 647
24 Koz’min, iz istorii, p. 261. Algumas pessoas sugeriram que proprietários de terra estavam incendiando
São Petersburgo para retaliar a emancipação dos servos — e até que os tártaros estavam atacando. V.
S. Chelishev, “Krestianskoe volnenie po povodu slukhov ozhigariakh”, em Biblioteka dlia chtenüa,
1863, n° 1, pp. 274, 280, 283.
25 Jovem Rússia, como citado em Venturi, p. 295.
26 Ibid., pp. 295-296.
648 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
27 Ibid., p. 290. Zaichnesky identifica esse programa com Barbès, o principal colaborador associado
de Blanqui da década de 1830.
28 Ibid., p. 285. O relato de Venturi deve ser complementado com o relato póstumo de B. Koz’min, Iz
isto rii, pp. 127-345.
29 M. Lemke, Politicheskie protsessy v Rossii 1860-kh gg., 1923, p. 19.
30 Além das referências anteriores sobre o assunto, v. B. Goldman (Gorev), “Rol* Prudona v istorii
russkogo melkoburzhuaznogo sotsializma”, em Krasnaia Nov’, 1935, n° 1, pp. 160-173 e outras obras
arroladas em Itenberg, Dvizhenie, pp. 116,137. Sobre a influência de Proudhon sobre o colaborador
de Chernyshevsky, Dobriulov, V. Bazanov, Russkie revoliutsionnye demokraty i narodoznanie,
Leningrado, 1974, p. 134.
31 O número de “cerca de 20” dado por Venturi (p. 286) é diminuído por Koz’min, Is istori/, p. 134,
que, em compensação, pormenoriza um número maior de indivíduos em contato com o grupo, o
qual pode ter alcançado, mas não ultrapassado, a cifra de 15 a 20 (p. 146).
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 649
37 Como se daria com freqüência no novo chauvinismo, o chamado veio não do centro do poder
imperial, mas da periferia: o tratado de um obscuro eslovaco, Eudovít Stúr, que defendia a unificação
dos eslavos sob a liderança da Rússia, tendo por capital Moscou, por língua o russo e por religião,
a ortodoxia. Ver discussão da obra de Stúr “A Eslavidade e o Mundo do Futuro”, M. Petrovich, em
Journal of Central European Affairs, 1952, abr., pp. 1-19; e do Congresso de Moscou em Petrovich,
The emergence of Russian Panslavism, 1856-1870, NY, 1956, pp. 241-254.
38 A datação feita por Venturi de 1865-1866 é revisada à luz de novos dados por R. Filippov,
Organizatsiia Ishutina, p. 50 ss.
39 Chernyshevsky rompeu com Herzen ao visitá-lo em Londres em 1859. Para um exemplo de uma visão
ainda mais negativa de I. Khudiakov, que se encontrou com Herzen como emissário da organização
Inferno em Genebra, em 1865, e o denunciou por “viver como um nobre e não pôr em prática na
sua própria vida aquelas idéias de que ele tanto falava”, v. Filippov, p. 126.
40 Um líder do grupo colocou Chernyshevsky ao lado de Cristo e São Paulo como um dos três grandes
homens da história mundial: “Delo Karakozova”, em Krasny Arkhiv, 1926, n° 4, p. 93.0 tratado que
Khudiakov escreveu em 1866 em Genebra foi dedicado “aos verdadeiros cristãos” (Dlia istinnykh
khristian).
LIVRO Ili, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 651
Para ele, escapar para a vida estudantil moscovita foi uma espécie de
libertação. Absorveu com avidez a mitologia dos círculos estudantis de fim
dos anos 1860, a qual tendia a fundir e confundir numa única tradição
heróica o cientificismo ascético de Chernyshevsky, o chamado à violência
de Zaichnevsky e a tentativa de tzaricídio de Karakozov.43 Reprovou as
impropriedades de todos os revolucionários anteriores e, ao mesmo tempo,
valeu-se de sua origem numa classe baixa como uma espécie de certificado de
especial mérito. Só ele tinha sofrido no passado — e defendería a aceitação
de bom grado do sofrimento e do sacrifício pela “causa comum”. Um líder
estudantil romeno de Moscou, Zemfiry Ralli, havia iniciado com pioneirismo
a profissionalização da organização revolucionária tomando por modelo uma
sociedade secreta baseada diretamente na Conspiração de Buonarroti.44 Ralli
foi então para o exterior, a fim de se tornar o principal editor de Bakunin;
e Nechaev logo o acompanhou, indo a Genebra e lá sendo acreditado pela
“União Revolucionária Mundial”, organização mítica de Bakunin. Enquanto
estava no estrangeiro, Nechaev escreveu e publicou seu famoso Catecismo
de um Revolucionário: guia sombrio para a criação de uma personalidade
inteiramente revolucionária e para a manipulação calculista dos outros em
prol da causa revolucionária.4546
Esse não foi o primeiro Catecismo Revolucionário**6 e foi, sob muitos
aspectos, uma continuação dos esforços de Bakunin para adotar rituais ma-
43 P. Pomper, “Nechaev and Tsaricide: The Conspiracy within Conspiracy”, em The Russian Review,
1973, abr., p. 130.
44 Venturi, p. 359; e Ralli, “Sergei Genad’evich Nechaev”, em Byloe, 1906, vol. vu, p. 137.
45 Tradução do texto para o inglês em B. Dmytryshyn, Imperial Russia: a source book, 1700-1917, NY,
1967, pp. 241-247. Discussão e análise em Venturi, Roots, p. 359 ss., devem ser complementadas pela
diferenciação mais clara entre Nechaev e Bakunin em M. Confino, “Bakunin et Nechaev. Les débuts
de la rupture. Introduction à deux lettre inédites de Michel Bakunin — 2 et 9 Juin 1870”, em Cahiers
du monde russe et soviétique, 1966, out.-dez., pp. 581-699. Varias tentativas de imputar a Bakunin
uma grande parte da autoria do Catecismo (e também, em menor medida, a Ogarev, Tkachev e/ou
Enisherlov) são revisadas e refutadas por A. Ivanov (“Kto avtor ‘Katekhizisa revoliutsionera’?”, em
Novy Zhurnal, vol. Cxxiii, 1976, pp. 212-230). Ele conclui que a obra “pertence em seu conceito
e em sua composição a Nechaev e a mais ninguém” (p. 230). P. Pomper não leva em consideração o
artigo de Nechaev, mas insiste (para mim, de modo inconvincente) na autoria compartilhada com
Bakunin: “Bakunin, Nechaev, and the ‘Catechism of a Revolutionary’: The Case for Joint Autorship”,
em Canadian-American Slavic Studies, 1976, inverno, pp. 535-546.
46 V. a obra volumosa de um autor identificado apenas como P. H., The Revolutionary Catechism in
four languages (inglês, francês, galês e irlandês), Bath/L, 1849 (BO): “P[ergunta]. Qual é o objetivo
da Revolução? Riesposta]. A destruição das coisas existentes. P. Qual é o simulacro da revolução? R.
A substituição de coisas impossíveis de existir [...]” A seção sulista e mais radical dos dezembristas
empregava a forma de catecismo em 1825 (Ivanov, p. 224). Para as origens alemãs setecentistas do
polêmico uso de catecismos, v. J. Schmidt, Der kampf um den katechismus in der Aufklärungsperiode
Deutschlands, Munique, 1935.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 653
“inteiramente e com total abnegação” a essa “idéia”, que era, claro, a idéia
de revolução social na Rússia.
Nechaev foi quem proporcionou essa determinação obstinada. Esse foi
o seu único atributo elogiado até por seus detratores, e foi precisamente o
atributo necessário para liderar intelectuais brigões. Com efeito, Nechaev
se designou diretor executivo do movimento estudantil, que até então havia
desempenhado apenas funções legislativas e judiciais, econômicas e educa
cionais. Ao que parece, ele se via como uma autoridade executiva rival à do
tzar. Adotou uma série de apelidos que sugeriam autoridade: o rei, o barão,
Liders (a partir da palavra inglesa “leader”), Barsov (em referência ao lorde
russo), Nachalov (em referência ao comandante russo), a águia e Volkov (a
partir de “lobo” em russo). Começou a empregar o plural maiestàtico, e pode
ser que tenha tido contato com um grupo extremista que planejou explodir
o trem do tzar perto de Elizavetgrad ao fim do verão de 1869.51
Nechaev tentou instilar no movimento estudantil um novo modelo de
dedicação revolucionária forjado nos tempos difíceis dos anos 1860. Invo
cava a linguagem rude dos camponeses — e concentrou seu recrutamento
no Instituto Agrícola de Moscou, onde esse idioma tinha um efeito intimi-
dador. Parecia ter especial afinidade com os revolucionários dos Bálcãs, com
sua tradição de brigas e vinganças sangrentas. De sua antiga amizade com
o romeno Ralli em Moscou à sua visita ao líder búlgaro Khristo Botev em
seu caminho de volta à Rússia em 1869, chegando à sua admiração pelos
assassinos sérvios do Rei Michael Obrenovich e à sua própria adoção de
cidadania sérvia, Nechaev prefigurou a ligação próxima que se desenvolvería
entre revolucionários balcânicos e revolucionários russos do novo tipo.52
Para ele, “o revolucionário é um homem condenado” que “cortou todos os
laços com a ordem civil, com o mundo educado [...] se continua a habitá-lo,
é só para destruí-lo com maior eficiência”.53 O catecismo ensinou ao novo
tipo de revolucionário como utilizar diferentes categorias da sociedade que
ele havia jurado destruir. Os indivíduos importantes e inteligentes deve
ríam ser mortos; os importantes e não inteligentes deveríam ser deixados
de lado, já que sua estupidez levaria os descomprometidos à revolta. Uma
51 V. o artigo inédito de P. Pomper, “Nechaev, Lenin, and Stalin: The Psychology of Leadership”, pp.
17, 18, 38, nota 34. Pomper se inclina a crer que Nechaev já fazia experimentos com explosivos
antes de viajar para o exterior.
52 Pomper; “Tsaricide”, p. 126; G. Bakalov, “Khristo Botev I Sergei Nechaev”, em Letopisi Marksizma,
1929, vol. ix-x; e discussão em Venturi, pp. 773-774, nota 29.
53 Do texto do Catecismo presente em Dmytryshyn, Imperial Russia, p. 241.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 655
para afiar a lealdade e coesão daqueles implicados no crime. Seja como for,
o tzaricídio parece ter sido parte do plano para deflagrar a revolução social
no dia 19 de fevereiro, o qual incluía também o recrutamento de operários
das fábricas de munição de Tula.
Nechaev, que fugiu para o estrangeiro em meados de dezembro depois
de ter sido descoberto o corpo de Ivanov, tornou-se objeto de uma maciça
caçada humana em Londres, Paris e Suíça. De fato, foi julgado três vezes
pelo assassinato: primeiro por meio da versão ficcionalizada em Os demônios
de Dostoiévski, que começou a ser publicado em série no Arauto Russo de
Katkov em 1871; pela segunda vez quando de seu julgamento formal depois
de ser preso na Suíça no dia 14 de agosto de 1872 e ser extraditado para o
governo russo; e, por fim, pela terceira vez quando o próprio tzar o julgou.
Ao ouvir os clamores desafiadores de Nechaev por vingança revolucionária
em sua cerimônia de execução encenada, Alexandre n mudou sua pena de
vinte anos de trabalhos forçados para “prisão para sempre” sublinhando
pessoalmente essas palavras.
Mesmo em total isolamento na Fortaleza de Pedro e Paulo, Nechaev
exerceu certo impacto hipnótico sobre seus captores. Acabou até por ensi
nar alguns deles a escrever em código; e, à medida que outros prisioneiros
políticos começaram a encher a fortaleza no fim dos anos 1870, instruiu
alguns deles em “desinformação”: a disseminação de manifestos falsos para
confundir o populacho e aterrorizar o oficialismo. Quando, no fim dessa dé
cada, descobriu-se que ele ainda estava em São Petersburgo e não na Sibéria,
planos para libertá-lo começaram a substituir o projeto anterior de libertar
Chernyshevsky. Após o assassinato do tzar no dia Io de março de 1881, 69
soldados foram presos sob suspeita de colaborar com um plano de fuga de
Nechaev, o qual foi posto em um isolamento ainda mais profundo na prisão.
Morreu misteriosamente no dia 21 de novembro de 1882, talvez escolhendo
58
o aniversário do assassinato de Ivanov para o seu próprio suicídio.57
Intelligentsia
59 O uso mais antigo do termo como um substantivo coletivo por P. Lavrosky, de Kharkov, é reproduzido
e discutido no estudo exaustivo de O. Müller, Intelligencija, Untersuchugen zur Geschichte eines
politischen Schlagwortes, Frankfurt, 1971, p. 27. Seu trabalho negligencia, contudo, a riqueza e
prioridade dos empregos poloneses mesmo antes do uso por Libelt (de Wójcik) que ele menciona,
p. 395.
60 Müller, Intelligencija, p. 105 ss. V. especialmente a idéia de Chaadev, em 1835, sobre as vantagens
do atraso para ultrapassar o Ocidente em matéria de inteligência nacional (pp. 109-110).
61 Ibid., p. 141 ss. V. também A. Pollard, “The Russian Intelligentsia: The Mind of Russia”, em California
Slavic Studies, vol. in, 1964, p. 7, nota 19, pp. ll-15b
62 A. Nikitenko, citado em Müllet; pp. 124-125; v. também o emprego por Aksakov, p. 147.
63 Shelgunov, Vospominaniia, Moscou/Peters burgo, 1923, p. 33. Shelgunov foi o primeiro a identificar
o termo com racionalismo e consciência (Pollarda, pp. 15-16).
64 Müller; Intelligencija, p. 293, nota 126.
658 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
65 Pisarev, citado sem atribuição precisa em Bol'shaia Sovetskaia Ensiklopediia, Ia ed., vol. xxvin, p.
609.
66 Sobre o artigo fundamental de Pisarev de 1865, “Idéias Históricas de Auguste Comte” (Sochineniia,
São Petersburgo, 1897, vol. iv, pp. 313—464), e outros materiais que apresentaram Comte à Rússia
no fim da década de 1860 e início da de 1870, v. Billington, “Intelligentsia”, p. 812 ss.
67 P. Lavrov, Istoricheskie Pis’ma, São Petersburgo, 1906, p. 358.
68 Uma variedade desconcertante de filósofos da história passou por exame (e, em particular, foi rejeitado
o darwinismo social como uma racionalização do conflito perpétuo e do chauvinismo reacionário);
v. Billington, Mikhailovsky, pp. 27—41.
69 V. o artigo escrito em 1889 e escolhido por Mikhailovsky para ser a introdução de sua obra reunida,
Sochineniia N. K. Mikhailovskago, São Petersburgo, 1896, vol. i, p. 5. Ele celebra a “maravilhosa
beleza íntima” dos dois significados da palavra pravdai e define sua própria missão como a de
encontrar “um ponto de vista segundo o qual pravdaistinai e pravda-spravedlivost'i [...] sigam lado
a lado, uma enriquecendo a outra”.
Mikhailovsky também empregou o termo “intelligentsia russa”, popularizando-o em sua coluna
“Cartas sobre a Intelligentsia Russa”. V. Billington, Intelligentsia, p. 812.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 659
70 Pollard, p. 17.
71 Citado sem referência precisa em Pollard, p. 18. Frase similar se encontra em Tkachev, Izbrannye
Sochineniia, 1932, vol. i, p. 282.
72 Citação de Tkachev sem referência precisa em Pollard, p. 19.
73 Tkachev, Izbrannye, vol. i, p. 193, vol. in, p. 91; originalmente publicado como Offener Brief an
Herrn F. Engels, Zurique, 1874.
74 Tkachev morreu após uma longa doença, cinco anos depois da morte de Blanqui. A ênfase na violência,
na disciplina elitista e na execução de traidores que dava em seu jornal Nabat (1875-1877) foi
atribuída à influência de um rico polonês que era seu patrocinador e colaborador, Gaspar-Mikhail
Turski: D. Hardy, “The Lonely Emigré Petr Tkachev and the Russian Colony in Switzerland”, em
Russian Review, 1976, out., pp. 400-416.
75 Partiinaia chestnost*, citado da confissão de G. Enisherlov presente em Pirumova, “Bakunin ili
Nechaev”, p. 178. A sugestão de Pirumova de que Enisherlov inspirou o Catecismo de Nechaev
660 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Populismo
O populismo nunca foi uma doutrina fixa, mas antes um vago ideal social
comum a muitas sociedades agrárias que estejam passando por um processo
de modernização ágil, porém desigual. Os dois maiores movimentos a desig
narem a si próprios de populistas no fim do século xix ocorreram na periferia
rural da civilização européia: na Rússia e nos Estados Unidos. Era comum
a ambos (e a movimentos populistas posteriores) uma sede por regeneração
social que idealizava as relações humanas mais antigas e de base agrária e
que, por uma ironia, preparou o caminho para a posterior consolidação de
poder político e econômico centralizados.
O populismo se tornou um modo de pensamento — e não só uma certa
disposição geral — quando uma elite educada se pôs a defender os costumes
de uma região atrasada ou de um setor econômico confrontado pelo avanço
do capitalismo e da economia de mercado. Foi cultivado por pessoas cuja
educação as havia alienado de raízes e valores nativos e que, ainda assim,
buscavam uma compensação simbólica e psíquica na idéia de que “o povo”
produziría “algum tipo de sociedade integrada”,77 a qual evitaria o elitismo
despersonalizado do capitalismo. Assim, o populismo tendia a reviver a fé
romântica ou numa cultura (os primeiros eslavófilos russos) ou numa região
(os populistas norte-americanos que vieram depois) que estivesse ameaçada.
Na medida em que a Rússia passava por uma maciça europeização, sua
elite intelectual descobriu de repente o narod^ fazendo do camponês russo
parece duvidosa a Pomper (“Tsaricide”, pp. 127-128), a B. Suvarin (carta a Novy Zhurnal, 1975,
dez., pp. 281-283) e a Ivanov, “Kto”, p. 68.
76 Sobre a genealogia desse termo, v. Billington, Intelligentsia, pp. 816-817.
77 Do resumo que Isaiah Berlin faz de sua London Conference de 1967, “To Define Populism”, em
Government and Opposition, vol. in, 1968, n° 2, p. 173. Baseei-me particularmente nas contribuições
de Walicki e Berlin a essa discussão, pp. 137-179. V. também a versão impressa mais completa
editada por G. lonescu e E. Gellner, Populism: Its Meaning and National Characteristics, 1969; e a
resenha que dela faz T. Di Tella, Government and Opposition, vol. iv, 1969, n° 4, pp. 526-533.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 661
82 Itenberg, Dvizhenie, pp. 92-100, sobre o impacto dessa obra escrita por um funcionário do governo
ligeiramente mais velho e que havia sido influenciado por seus contatos anteriores com o círculo de
Petrashevsky.
83 Testemunho de um participante citado em M. Miller “Ideological Conflicts in Russian Populism:
The Revolutionary Manifestoes of the Chaikovsky Circle, 1869-1874”, em Slavic Review, 1970,
mar., p. 13; v. também Itenberg, pp. 186-193.
84 Do manifesto “Devemos nos Ocupar de um Exame da Ordem Futura” escrito por Kropotkin por
volta de novembro de 1873 e citado por Miller; p. 16.
85 Ibid., p. 17.
86 R. Zelnik, “Populists and Workers. The First Encounter between Populist Students and Industrial
Workers in St. Petersburg, 1871-1874”, em Soviet Studies, 1972, out., p. 258.
664 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
87 Itenberg, pp. 338-339 e ss. sobre o caso notável do estudante que se tornou ele próprio um
transportador, D. M. Rogachev. Outros acreditavam que o espírito rebelde de Razin e Pugachev
poderiam ser conjurados no Volga e revivido: V. Debagory-Mokrievich, Ot Buntarstva k terrorizmu,
Moscou/Leningrado, 1930, vol. I, p. 159; e V, Ginev, Narodicheskoe dvizhente v srednem povolzh’e,
1966, pp. 21, 64 ss.
88 Detalhes em M. Miller, Kropotkin, Chicago, 1976, pp. 114-129.
89 O padre pensou que o “Nikolai” a receber a honra era o neto do tzar, o futuro Nikolai il. V. P. Kann,
“Revoliutsionny fórum Peterburga”, em Voprosy Istorii, 1976, n° 12, p. 198.
LIVRO HI, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 665
Terrorismo
96 Volk, p. 69.
97 Ibid., pp. 69-70.
98 Alexander Solovev, citado em Venturi, p. 632.
99 Estimativa de Volk, p. 277.
100 Ibid., pp- 254-255, para uma pesquisa cuidadosa da derivação da maior parte do estatuto da Palavra
do Povo a partir do estatuto da segunda Terra e Liberdade.
668 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
108 V. o depoimento de Ivan Emel’ianov em Krasny Arkhiv, vol. xl, 1930, p. 184.
109 Cf. a obra de seu parente distante, o posterior revolucionário anarquista Victor Serge, Memoirs of
a Revolutionist, L, 1967 (edição corrigida), p. 2.
110 Citado em Volk, p. 128.
111 Ibid., p. 81.
112 Citado em Volk, “Programmnye dokumenty”, p. 423.
LIVRO 111, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 671
113 J. Waciorski, Le Terrorisme politique, 1939 (uma excelente abordagem da história e do vocabulário
do terrorismo feita por um jurista polonês que tem sido ignorado por estudos recentes), atribui
ao Comitê de Salvação Pública a crença de que “o terror é um meio legítimo de defesa da ordem
social estabelecida pela revolução; terrorismo é um meio de ação criminoso” (p. 30). Os termos
“terrorismo”, “terrorista” e “antiterrorismo” se tornaram de uso geral somente após a desgraça de
Robespierre. V. Brunot, vol. ix, pp. 871, 654; Frey, Transformation, pp. 188-189.
Para se guiar na vasta literatura recente sobre terrorismo, v. as obras de dois escritores sobre guerra
de guerrilha: J. Bell, “Trends in Terror: The Analysis of Political Violence”, em World Politics, 1977,
abr., pp. 476-488; e W. Laquer, “Interpretation of Terrorism: Fact, Fiction, and Political Science”, em
Journal of Contemporary History, 1977, jan., pp. 1-42. Este último inclui mais material histórico
e trata da rica ficção sobre o assunto — como faz W. May, “Terrorism as Strategy and Ecstasy”,
em Journal of the New School for Social Research, 1974, verão, pp. 277-298. O ignorado estudo
teológico de May explora o atrativo peculiar de viver perto da morte, libertando “a violência latente
em todas as coisas” e ajudando a criar uma compensação para a “deficiente vida rotineira” do mundo
moderno. V. também M. Hutchinson, “The Concepto f Revolutionary Terrorism”, em The Journal
of Conflict Resolution, 1972, set., pp. 383-396; e o número especial sobre terrorismo do Stanford
Journal of International Studies, 1977, primavera.
O assunto pouco abordado da manipulação terrorista da mídia com propósitos políticos é discutido
em Y. Alexander, “Terrorism, the Media, and the Police”, R. Kupperman e D. Trent, em Terrorism,
Threat, Reality, Response, Stanford, 1979, pp. 331-348.
114 “Sieg der Kontrerevolution zu Wien”, 1848, nov., Werke, vol. v, p. 457. Acrescentamos itálico.
115 E. Waltet; Terror and Resistance. A Study of Political Violence, NY/Oxford, 1969, p. 9. Esse valioso
estudo desenvolve idéias gerais a partir do exame de algumas comunidades políticas primitivas da
Africa.
116 Nechaev, em seus escritos da prisão do fim dos anos 1870, propôs que um tribunal revolucionário
672 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O legado permanente
120 Como é sugerido em S. Valk, “G.G. Romanenko”, em Katorga i Ssylka, 1928, n° 11, p. 47. Parece
que depois disso não se escreveu sequer um estudo sobre Romanenko; e a questão geral do legado
da Vontade do Povo nunca recebeu tratamento adequado. É surpreendentemente ignorado no
Ocidente, onde um livro atrás do outro (Ulam é o mais recente e o que menos traz elementos originais)
termina com o assassinato de Alexandre n. Entre os estudiosos soviéticos, V.Tvardovskaia enriquece
substancialmente o retrato, insistindo de modo um tanto ousado (contra Volk e as posições soviéticas
convencionais) que a postura final e o legado da Vontade do Povo foram essencialmente blanquistas,
mas que o próprio Blanqui não era “blanquista”, segundo a conotação caricaturada que o termo
assumiu nas polêmicas leninistas (Sotsialisticheskaia mysl’ Rossii na rubezhe 1870-1880kh godov,
1969, pp. 226-234). Uma das poucas boas abordagens ocidentais das atividades revolucionárias
da negligenciada década de 1880 é V. Zilli, La Rivoluzione russa dei 1905. La formazione dei
partiti politici (1881-1904), Nápoles, 1963, pp. 57-79. Um excelente estudo que vai às fontes de
dois grupos menores que sucederam a Vontade do Povo é N. Naimark, “The Worker’s Section and
the Challenge of the ‘Young’: Narodnaia Volia, 1881-1884”, em Russian Review, 1978, jul., pp.
273-297. Novos elementos das atas de tribunais estão em N. Troitsky, “Narodnaia Volia9 perde
tsarkim sudom, 1550-1591, Saratov, 1971.
674 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
142 Boletim de polícia de 2 de janeiro de 1887, em Ivansky, p. 275; também Istorichesky Arkiv, 1960,
n° 2, p. 204, sobre os quase certamente apolíticos kubantsy i dontsy.
143 A história básica desse grupo negligenciado é “Istoricheskaia zapiska o tainom obshchestve
‘zagovorshchikov’”, em Katorga y Ssylka, 1928, n° 12, pp. 49-58, esp. o programa às pp.
51-52. Havia a já familiar estrutura de três graus de associação, o círculo “amorfo” (amorfay), o
“preparatório” e o “político”, este último sob a estrita disciplina dos “constituidores” (ucbrediteli),
que também controlavam todo o processo de cooptação, do grau mais baixo ao mais elevado.
680 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
146 Citado em P. Hutton, “The Role of the Blanquist Party in Left-Wing Politics in France, 1879-1890”,
em Journal of Modem History, 1974, jun., p. 293.
147 G. Haupt, “Rôle de Pexil dans la diffusion de l’image de l’intelligentsia révolutionnaire”, em Cahiers
du Monde Russe et Soviétique, 1978, jul.-set., pp. 236, 245, 247.
682 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
uma escala humana sociável e a uma justiça distributiva, e não uma guerra
romântica e violenta contra a autoridade estatal.159
A visão de Kropotkin dominou o movimento anarquista desde a época
em que o congresso anarquista reuniu os seus 45 delegados em Londres no
Dia da Bastilha de 1881. Não aconteceria nenhum outro autêntico congresso
anarquista até a reunião, que durou uma semana, de 80 delegados em Ams
terdã no verão de 1907. Ao longo de todo o período interveniente, o espectro
de uma Internacional Negra assombrou a Europa. Os escritos prolíficos de
Kropotkin deram respeitabilidade à proposição de que “fora da anarquia não
existe revolução alguma”.160 Concorde com Tolstói, segundo o qual “a única
revolução é aquela que nunca cessa”, ele via a luta humana por liberdade
como a libertação progressiva e racional do jugo de toda autoridade restritiva.
Os anarquistas fizeram avançar essa intransigente fé antipolitica com bem
mais sucesso nos anos 1890 do que em geral se admite. Ganharam algum
volume de correligionários, entre os quais mais de 100 mil franceses,161 que
em sua maioria seguiam o ideal pacífico de Kropotkin e não o chamado da
“Dama Dinamite”. Dominaram, sob vários aspectos, os primeiros congressos
da Segunda Internacional até serem expulsos dela, devido à pressão feita
nesse sentido pelos estatistas social-democratas alemães no Congresso de
Londres, em 1896. Opuseram-se não só aos social-democratas, que eram
manifestamente favoráveis à política e cada vez mais burocráticos; começa
ram a desafiar aqueles que lhes eram mais próximos, isto é, os sindicalistas,
por ousarem criar suas próprias estruturas políticas.162
No Congresso de Amsterdã, em 1907, os anarquistas demonstraram que
nem mesmo a solidariedade limitada de um congresso poderia ser garantida.
O anarquismo se fragmentou mais uma vez, e no período prévio à Primeira
Guerra Mundial funcionou mais como um catalizador dentro de outros
movimentos revolucionários do que como uma força unitária. Como disse
um delegado de suas inumeráveis e briguentas reuniões: “Estamos unidos
porque estamos divididos”.163
159 Prenúncios de Paul Goodman, Louis Mumford e outros críticos sociais na obra de Kropotkin são
pormenorizados em Miller, pp. 195-196.
160 Citado de “Le Gouvernement révolutionnaire”, em Paroles d’un revolte, 1885, em Miller, p. 192.
161 Estimativa feita por J. Joli, Times Literary Supplement, 10 de setembro de 1976, tendo por base o
estudo magistral de J. Maitrom, Le Mouvement anarchiste en France, 1976, vol. i.
162 V. o enfrentamento de Malatesta ao sindicalista francês Pierre Monatte no Congresso de Amsterdã
de 1907: Woodcock, Anarchism, p. 267. V. também Malatesta, Anarchy, L, 1949.
163 De um delegado à conferência de Genebra de 1882, citado em Woodcock, p. 260. Até que se fundasse
686 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
O sindicalismo revolucionário
1 D. Dangerfield, The strange death of liberal England, 1910-1914, NY, 1961, lista várias formas de
violência — algumas delas até hoje sem receber estudo apropriado — que irromperam na Inglaterra
durante esse período “pacífico”; e a tese sugerida pelo título do livro pode ser estendida também a
outras nações “liberais”.
2 Este assunto foi abordado em “When Peace Was the Establishment”, uma palestra de R. Stromberg
no Woodrow Wilson International Center for Scholar no dia 5 de agosto de 1974. Amostras da
grande obra que no momento ele elabora sobre o tema são “The Intellectuals and the Coming of
the War in 1914”, em The Journal of European Studies, vol. in, 1973, pp. 109-122; “Socialism and
War in 1914”, em Midwest Quarterly, vol. xvm, 1977, primavera, pp. 268-297; “1910: An Essay
in Psychohistory”, em Psychoanlytic Review, vol. lxiii, 1976, verão, pp. 235-248; e, em especial,
“Redemption by War: The Intellectuals and 1914”, em Midwest Quarterly, 1979, primavera, pp.
211-227.
LIVRO in, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 691
3 K. Deutsch e N. Wiener; “The Lonely Nationalism of Rudyard Kipling**, em Ya/e Reviewy 1963,
jun., p. 501. Deutsch e Wiener (p. 502) caracterizam Kipling como o supremo porta-voz da crença
geral no “caráter de tudo ou nada na lealdade ao grupo”, que ele atribuía a animais, bem como a
soldados e crianças na escola.
4 William Booth, in darkest England and the way out, L, 1980.
5 G. B. Shaw, Major Barbara, L, 1905.
692 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A “Greve Geral”
Os sindicatos modernos a princípio não eram revolucionários — e nunca,
até então, haviam tido esse direcionamento como fundamental. Tampouco
eram violentos os sindicatos que aos poucos se desenvolveram entre os traba
lhadores mais especializados. Esses sindicatos se concentravam em questões
materiais imediatas capazes de render pelo menos vantagens parciais; rara
mente adotavam uma perspectiva ideológica ou estratégica. Era incomum que
protestos e greves tivessem objetivos políticos, e essa violência “moderna” ou
“associacional”, quando ocorria, era menos destrutiva do que as irrupções
das formas anteriores “comunais” ou “reacionárias” de violência.7
A depressão econômica de meados dos anos 1870 deu origem a um tipo
mais militante de organização sindical, que se desenvolveu na Inglaterra e,
em seguida, na França, uma vez que sindicatos haviam se tornado legais
nesses países em 1876 e 1884, respectivamente.8 Esse “novo sindicalismo”
de trabalhadores sem formação alguma ou apenas semi-instruídos, que se
9 Marechal, Premières leçons du fils aîné d'un roi. Pra une député présomptif aux futurs États-
Généraux, Leçon XXXII, citado em M. Dommanget, “L’Idée de greve générale en France au xviue
siècle et pendant da Révolution”, em Revue d’Histoire Économique et Sociale, vol. xu, 1963, n° 1,
p. 40. Dommanget é menos convincente ao tentar localizar essa idéia na obra ainda mais antiga do
padre radical Jean Meslier, pp. 35—38.
10 Citado em Dommanget, p. 51; também pp. 48-53, e F. Braesch (ed.), Papiers de Chaumette, 1908.
Seguindo uma praxe revolucionária, particularmente sensível em militantes anti-clericais como
Chaumette, ele trocou seu nome cristão pelo de um herói da antiguidade: Anaxagoras, que foi levado
a julgamento pelas autoridades políticas em Atenas em razão de sua audácia científica e de seu não
conformismo.
694 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
tros de manufatura das Terras Médias e da Escócia; ela pode ser chamada
de “primeiro movimento político independente da classe trabalhadora da
história”.11 Em 1795, quando muitos de seus líderes foram presos, a socie
dade tinha 80 mil membros. E, em outubro de 1795, conseguiu reunir 150
mil trabalhadores para protestar contra Pitt e sua guerra contra a França
revolucionária; em seguida, a tradição se espalhou, chegando até os Irlandeses
Unidos, que fizeram planos para uma invasão em massa da Irlanda a fim de
libertá-la com a ajuda de forças revolucionárias francesas.
Parte da classe trabalhadora se voltou diretamente contra as máquinas
do novo sistema fabril durante os últimos dias das guerras napoleônicas.
O movimento ludista, com sua quebra generalizada das novas máquinas
têxteis, disseminou-se rapidamente, tendo se originado em Nottingham ao
fim de 1811. Sua repressão ocasionou mais violência organizada por parte
de artesãos sem lugar no novo contexto tecnológico. Já no início de 1817
se falava na Grã-Bretanha de uma greve geral. O termo foi popularizado
pela primeira vez por um pintor irlandês em Manchester12 e foi tema de um
notável tratado teórico escrito por um ministro não-conformista que tinha
se tornado proprietário de uma cafeteria londrina.13 A primeira tentativa de
realizar uma greve dessas proporções em uma nação industrial ocorreu em
1842, na Inglaterra; foi liderada por um homem que, em sua infância, havia
assistido ao “massacre de Peterloo”, na qual foram mortos trabalhadores numa
manifestação pacífica. Em seguida, despediu-se da fábrica onde trabalhava e
trocou o tear de potência pelo tear manual que havia pertencido ao seu pai.14
11 Braunthal, p. 14; e uma breve história às pp. 14-19. Sobre sua relação com o radicalismo britânico
da época, v. Bernstein, Essays, pp. 48-56; e obras cujas referências são dadas às pp. 204-205.
12 John Doherty, um fiandeiro que se tornou impressor. V. W. Crook, The General Strike. A Study of
Labor's Tragic Weapon in Theory and Practice, Chapel Hill, 1931, pp. 3-4.
13 William Benbow, Grand National Holiday and Congress of the Productive Classes, L, 1932.
Defendeu que todos os “companheiros espoliados e sofredores” parassem totalmente com o processo
produtivo por um mês inteiro, durante o verão, momento em que então um Congresso das Classes
Trabalhadoras elaboraria um projeto social para o futuro. Preparativos minuciosos garantiriam
que a participação “fosse não parcial, mas total”; e delegações de trabalhadores iriam “agredir com
palavras, mas não com atos”, a fim de persuadir os proprietários a apoiar essa versão moderna do
ano sabàtico dos judeus e do ano do jubileu. Embora não houvesse nenhuma intenção de alcançar
poder político, as determinações de Benbow para que se ampliasse gradativamente o tamanho das
delegações (de 20 para 100, de 100 para 1.000), a englobar representantes récalcitrantes da “minoria
gananciosa e vampiresca”, e seu anúncio num panfleto de fundar um jornal “puramente político”
com um título tirado de Babeuf — tudo apontava para uma concepção quase completa de greve
geral revolucionária. V. citações do texto reimpresso em E. Dolléans, “Le Naissance du Chartisme
(1830-1837)”, em Revue d'Histoire des Doctrines Économiques et Sociales, 1909, vol. u, pp. 1-12,
412; também comentários em Crook, pp. 9-10.
14 Richard Pilling, discutido em Crook, pp. 17-27.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 695
15 C. Jaurez, “Juillet 1855: La première grève générale en Espagne”, em Cahiers Internationaux, 1955,
jul.-ago., pp. 69-74. R. Bezucha defende que a parada de 25 teares por 8 dias em Lyon, em fevereiro
de 1834, foi na verdade uma greve geral (The lyon uprising of 1834, Cambridge, Massachusetts,
1974, pp. 122-134).
A. Saldiere observa que os primeiros comentários tendiam a perceber “mais a generalização de
uma greve do que uma greve geral” (La Grève générale de Robert Owen à la doctrine syndicaliste,
Bordaux, 1913, p. 17).
16 Somente na Espanha houve uma tradição anarco-sindicalista desde a época da Primeira Internacional,
de acordo com Rocker; Anarcho-Syndicalism, p. 131. Um ensaio interpretativo refinado é J. Romero-
Maura, “The Spanish Case”, em Government and Opposition, 1970, outono, pp. 456-479; sobre os
anarquistas que estavam no poder durante a Guerra Civil Espanhola, v. a tese de doutorado inédita
(Oxford) de J. Brademas, “Revolution and social revolution: a contribution to the history of the
anarcho-syndicalist movement in Spain, 1930-1937”, 1954.
O primeiro estudo acadêmico de greves foi feito em Portugal por Caetano d’Andrade Albuquerque,
Direitos dos operários (estudos sobre as greves), uma tese de habilitação de 234 páginas, Coimbra,
1870, obra não incluída em nenhum dos estudos mencionados anteriormente neste capítulo.
17 Crook, pp. 28-29; e, com tratamento mais completo, E. Georgi, Theorie und Praxis des Generalstreiks
in der modernen Arbeiterbewegung, Breslau, 1908, pp. 38-39. V. também Proudhon, De la Capacité
politique des classes ouvrières, sua última grande obra, em edição de M. Leroy, 1924.
18 Relato de Eugene Hins, citado em Rocker, Anarcho-Syndicalism, p. 72; também comentários à p.
70 ss.
696 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
por área. Estas proporcionariam as bases do poder territorial que teria “um
papel educacional no presente”, enquanto se preparavam para assumir “um
papel dirigente na vindoura sociedade revolucionária”.24 Bases análogas de
força geográfica começaram a aparecer na Itália (camere del lavoro) e par
ticularmente na França (bourses du travail), que logo se tornou o centro do
movimento sindicalista.
Os sindicalistas franceses ficaram impressionados com as greves
norte-americanas em protesto contra os anarquistas executados depois da
Revolta de Haymarket em 1886. Em 1887, formou-se a primeira bourse
du travail [conselho trabalhista] em Paris. O Congresso de Bordeaux dos
sindicatos franceses em 1888 endossou a tática de greve geral e a identificou
com revolução social. A greve geral revolucionária se tornou um ponto de
convergência na consolidação formal da Confederação Geral de Trabalho
(cgt) francesa durante o fim dos anos 1880. No Congresso da Marselha
em 1892, Aristide Briand sugeriu que uma “greve geral” representava uma
“força legal”, em vez de uma “força violenta”.25 À medida que a atividade
grevista se intensificava, maturou a idéia de que uma greve geral poderia
surgir espontaneamente de algum incidente e, intensificando-se, tornar-se
uma revolução. Um delegado dos trabalhadores ferroviários no Congresso da
cgt de 1896 insistiu: “A greve geral será a revolução, seja ou não pacífica”.26
de 1892, defendia a ação direta para que se realizassem esses dois elementos,
assim criando um novo etos e uma nova sociedade.
As Bourses du Travail proporcionaram uma nova forma de autogoverno
dos trabalhadores, a qual desempenhava funções pedagógicas imediatas e
potenciais funções políticas, como era o caso das organizações trabalhistas
consolidadas territorialmente na Catalunha. Pelloutier tentou expandi-las e
transformá-las de meras provedoras de ajuda e informação numa espécie de
contra-governo estabelecido territorialmente pelos e para os trabalhadores.
Talvez só 1,25% dos trabalhadores franceses estivesse envolvido de forma
direta com as Bourses;*29 mas conseguiram, contudo, dominar a imaginação
proletária na França na medida em que mantinham viva a visão de uma or
dem social alternativa. Com a morte de Pelloutier em 1901, o sindicalismo
revolucionário perdeu seu líder mais dinâmico; mas suas idéias ganharam
mais disseminada influência com a absorção da Fédération pela cgt.
O uso de greves se espalhou em grandíssima proporção por toda a Europa
industrial na virada do século. A Bélgica ofereceu um exemplo dramático
— sensível que era aos três grandes movimentos trabalhistas europeus: a
tendência alemã à organização partidária, a preocupação britânica com re
formas práticas e a sede francesa por ação heróica direta. Concentrando-se
em objetivos políticos, os belgas produziram três grandes greves — cada uma
mais abrangente e organizada que a anterior — em décadas sucessivas (1893,
1902 e 1912-1913). Seu exemplo inspirou imitação na vizinha Holanda,30
onde um pastor protestante, Domela Nieuwenhuis, requisitou repetidamente à
Segunda Internacional que aceitasse o ideal de uma greve geral transnacional
como medida preventiva à guerra.
A Segunda Internacional em geral enfatizou mais a organização política
segundo o modelo social-democrata do que as greves sindicalistas. Mas estas
últimas inspiravam especial medo, pois a ação direta lançava uma ameaça
direta às classes privilegiadas, as quais sentiam que devem “achar um meio
de defesa ou então ser conquistadas e esmagadas”.31
A Suécia, até então uma tranqüila nação nortenha, realizou uma bem-
37 Citado em C. de Goustine, Pouget. Les Matins noirs du syndicalisme, 1972, p. 174. Sobre “L’ABC de
la révolution” de Pouget, v. p. 20; o Comment nos ferons la révolution de Pouget teve por coautor
Émile Pataud; originalmente não datado quando escrito (1907), foi publicado em 1909. Tirou o
título do seu La Voix du Peuple diretamente de Proudhon.
38 Comment, p. 226. V. pp. 158-170 sobre le congress fédéral', pp. 288-295 sobre la libération de la
femme.
39 O número de grevistas na região de Paris era menos do que a metade dos grevistas da região nortenha
no período de 1900-1905 (cerca de 91 mil contra 196 mil), mas se tornou duas vezes maior que a
do norte no período de 1906-1911 (cerca de 382 mil contra 169 mil) (Dalin, p. 9).
Gustave Hervé (La Guerre Sociale, n° 37, 1913, citado em Dalin, pp. 213-214) insiste que a
cgt tinha de fato se transformado num partido político capaz de derrubar o capitalismo. Dalin
acompanha a passagem da liderança do movimento grevista na França dos trabalhadores têxteis
para os trabalhadores de metalurgia e transportes no início do século (p. 8), o que supostamente
teria levado ao emprego de táticas mais sofisticadas. Ele atribui o declínio do entusiasmo no
período imediatamente anterior à Primeira Guerra ao crescente predomínio em Paris da bête noire
do marxismo, a “aristocracia trabalhista” dos sindicatos das indústrias de construção e de energia
(p. 172). V. também M. Reberroux, “Les Tendences hostiles à l’état dans la sfio (1905-1914)”, em
Mouvement Social, 1968, out.-dez., pp. 21-37.
40 Sorel foi influenciado pelo líder e estrategista da cgt, Victor Griffuelhes (v. JJ. Stanley (ed.), From
Georges Sorel, NY, 1976, p. 297, nota 135; e o prefácio de Sorel à obra de Griffuelhes e L. Niel,
Les Objectifs de nos luttes de classe, 1909). Mas, mesmo quando Griffuelhes negou ter lido Sorel,
fazendo-o com sua famosa frase “Eu li Alexandre Dumas” (Avrich, Anarchists, p. 99; Kriegel, Pain,
LIVRO UT, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 701
46 Trechos do panegírico que faz Sorel da figura sublime do pessimista (que ele diferenciava do “otimista
sem coração” geralmente caracterizado como um pessimista) em Reflections on Violence, NY, 1961,
pp. 30-37. Essa edição inglesa (capa dura, 1950; Ia ed. francesa, 1908) inclui materiais suplementares
de edições posteriores e introdução de E. Shils.
47 Frase de Renan admirada por Sorel, citada em Carr, “Sorel: Philosopher of Syndicalism”, em Studies
in Revolution, pp. 153-154.
48 Sorel diferencia mitos, que expressam “uma determinação de agir”, de “utopias”, que são sempre
criadas por intelectuais covardes com a finalidade de “dirigir a mente do homem para reformas que
podem ser alcançadas por meio de simples remendos no sistema existente” (Reflections, pp. 50, além
de 41-53).
49 Talmon, “Legacy”, p. 54.
50 Reflections, p. 177.
51 Reflections começa com uma longa seção sobre “guerra de classe” que pretende recuperar a
belicosidade original do “vocabulário marxista” (p. 64 ss.).
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 703
52 V. as seções “The Proletarian Strike” e “The Political General Strike”, em Reflections* pp. 119-179.
53 Ibid., p. 91, com itálicos no original. A violência é contrastada com a “força” burguesa, que é ardilosa,
não reconhecida e altamente degradante — quase sempre camuflada pela “esperteza, pela ciência
social ou por sentimentos elevadíssimos”.
54 Ibid., p. 92 e p. 89.0 sindicalismo revolucionário violento alcançou um clímax na Espanha durante
a “semana trágica” de insurreição centrada em Barcelona, em julho de 1909 (J. Romero-Ma ura,
“Terrorism in Barcelona and Its Impact on Spanish Politics 1904-1909”, em Past and Present,
1968, dez., pp. 130-183; J. Ullman, Tragic Week: A Study of Anticlericalism in Spain, 1875-1912,
Cambridge, Massachusetts. 1968); teve seu clímax na Inglaterra com as greves industriais de
1911-1912 lideradas em grande parte pelo sindicalista australiano Tom Mann, as quais incitaram
as associações trabalhistas a se organização segundo um modelo sindicalista revolucionário de
indústrias nacionais capazes de coordenar greves de grande escala. V. G. Cole e R. Postgate, The
British Common People, 1746-1946, L, 1947, p. 416.
704 A FE REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
A mutação fascista
A Itália desempenhou um papel especial na época em que se espalhavam pela
Europa as guerras trabalhistas. Lá havia veneráveis tradições de violência;
e os anarquistas, que haviam lançado sua primeira defesa da revolucioná
ria “propaganda por meio de atos” em 1876 na Itália,55 ajudaram mais do
que em outros países a organizar a greve geral de 1904. Foi a maior feita
até então;56 mais de um milhão de trabalhadores participaram dela. Já que
praxes parlamentares e partidos políticos não inspiravam lealdade profunda
na Itália, o chamamento sindicalista à ação direta fora da arena política teve
especial atrativo. A greve geral italiana de 1911 contra a invasão de Tripoli
55 J. Guillaume (ed.), L’Internationale. Documents et souvenirs 1864-1887, vol. iv, 1910, p. 114,
citado em Ivansky, p. 45. Para detalhes, v. R. Hostetter, The Italian Socialist Movement I: Origins
(1860-1884), Princeton/Toronto/L, 1958, pp. 321-381.
56 Crook, p. 185.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 705
colocou em prática a idéia sindicalista original dos anos 1890: uma greve
interna para se opor a uma guerra externa. O último congresso da Segunda
Internacional (Basiléia, 1913) registrou muitos compromissos de ação pro
letária internacional contra qualquer guerra vindoura. Os italianos deram a
mais séria resposta prática ao realizarem em junho de 1914 a última grande
greve geral antes do conflito.57 Embora se limitando a uma semana turbulenta
de duração, a greve impediu que a Itália, única entre as principais potências
européias, entrasse na guerra imediatamente após esta ter se iniciado em
julho de 1914.
As manifestações pedindo a intervenção italiana se iniciaram precisamente
entre os sindicalistas revolucionários, que temiam que a França revolucionária
pudesse ser derrotada e a reacionária Áustria encorajada a invadir a Itália. A
paixão sindicalista pelo mito heróico e pela ação direta ligou decisivamente
a velha esquerda à nova direita. Ao protestarem pedindo a intervenção ita
liana, os sindicalistas ajudaram a formar “bandos [fasci] para a ação revo
lucionária”. Pintavam a guerra como um processo enobrecedor que livraria
a Itália do governo monárquico e da forma parlamentar. Repercutiam os
esforços paralelos de Sorel na França, nos anos imediatamente anteriores
à guerra, para combinar as forças nacionalista e sindicalista em oposição à
democracia burguesa.58
Mussolini foi literalmente batizado dentro da tradição revolucionária. O
seu pai, um ferreiro de inclinação radical, deu-lhe o nome do revolucionário
nacionalista mexicano Benito Juarez. O jovem Mussolini se tornou um revo
lucionário socialista, e na condição de marxista praticante passou parte de
sua juventude refugiado na Suíça. Em 1908, aos 25 anos, tornou-se editor de
um jornal do Partido Socialista, La Lotta di Classe. Em 1911 passou cinco
meses encarcerado por participar de protestos contra a conquista italiana da
57 L. Lotti, La settimana rossa, Florença, 1965.
58 Sorel se tornou um colaborador regular do nacionalista L'Indépendance e um patrocinador do
Cercle Proudhon, o qual (de acordo com seu líder, Edouard Berth) “chegou perto de criar o fascismo
avant la lettre” (citado em Talmon, p. 58, nota 15). Sobre a influência soreliana na Itália, v. R. Paris,
“Georges Sorel en Italie”, em Mouvement Social, 1965, jan.-mar., pp. 131-138; J. Roth, “The Roots
of Italian Fascism: Sorel and Sorelismo”, em Journal of Modern History, 1967, mar., pp. 30-45.
Destacado estudioso do fascismo comparado, E. Nolte tende, contudo, a enfatizar mais a influência de
Nietzsche do que a de Sorel no que diz respeito aos elementos não-marxistas da crítica de Mussolini
à democracia liberal: “Marx und Nietzsche um Sozialismus des jungen Mussolini”, em Historische
Zeitschrift, vol. cxci, 1960, pp. 249-335. Stanley (pp. 2-5) repele com energia a associação de Sorel
com o fascismo.
Para uma discussão mais geral da simbiose dos extremos da esquerda e da direita em sua oposição
comum ao Estado liberal na França, v. Z. Sternhall, La Droite révolutionnaire. Les origines françaises
du fascisme, 1885-1914, 1978.
706 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
59 P. Monelli, Mussolini, NY, 1950, pp. 62-63; também R. De Felice, Mussolini il rivoluzionario
1883-1920,Turim, 1965, pp. 136-176, esp. pp. 182-183. O livro de De Felice é de longe o mais rico
estudo já feito sobre a formação política de Mussolini. Sua conclusão fundamental de que Mussolini
era produto da tradição revolucionária francesa e da esquerda provocou intensa crítica na Itália,
ao que De Felice respondeu com vigor numa entrevista a M. Ledeen, Intervista sul fascismo, Bari,
1975. D. Smith resumiu o ataque em uma resenha do quarto volume da biografia em andamento de
Mussolini (“A Monument for the Duce”, em Times Literary Supplement, 31 de outubro de 1975,
pp. 1278-1290); Ledeen respondeu; e suas avaliações conflitantes foram publicadas (1976) como
Un monumento al ducei Contributo al dibattito sul fascismo. A controversia é discutida de modo
sumário na introdução de C. Delzell à edição em inglês de uma obra interpretativa publicada pela
primeira vez em 1969: De Felice, Interpretations of Fascism, Cambridge, Massachusetts, 1977. De
Felice também estabeleceu relações entre o sindicalismo revolucionário e o ainda mais romântico
nacionalista de direita que contribuiu para o crescimento do fascismo, Gabriele D’Annunzio:
Sindicalismo rivoluzionario e fiumanesimo nel carteggio de Ambris-D’Annunzio, 1919-1922, Brescia,
1966. Uma introdução à vasta literatura recente sobre o fascismo escrita com especial simpatia
pela nova história social é C. Maier, “Some Recent Studies on Fascism”, em The Journal of Modern
History, 1976, set., pp. 506-521.
LIVRO ni, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 707
nas ruas no dia da batalha”. Havia chegado a hora de “gritar alto” algo que
“eu jamais teria pronunciado em tempos normais”, aquela “palavra temível e
fascinante: Guerra!”.60 Sua descrição da guerra como o “milagre” que acabaria
com a velha ordem e criaria condições para a nova prenunciou o totalitarismo
que estava por vir, mas também reverberou o romantismo original das eras
revolucionária e napoleònica com sua “política do milagroso”.
A frágil democracia liberal que surgiu na Itália depois da guerra enfrentou
desafios revolucionários advindos da ocupação das fábricas pelos sindica
listas e do novo partido revolucionário de Mussolini, que transformou os
fasci di azione rivoluzionaria dos sindicalistas nos novos fasci italiani di
combattimento. Os símbolos fundamentais invocados por ele foram quase
todos tomados da tradição nacionalista romântica do Risorgimento. Il Popolo
d’Italia se aproveitou de reminiscências do L’Italia del Popolo de Mazzini;61
sua retorica revivia as esperanças mazzinianas de uma “terceira Roma” — não
de imperadores nem de papas, mas do “povo”; e seu hino de autocelebração,
“Juventude” (Giovinezza), era uma reprise da imagem que Mazzini fazia da
Jovem Itália. Valendo-se da mise en scène clássica da tradição revolucionária
nacional, Mussolini e seus correligionários realizaram na casa de ópera La
Scala, em Milão, a “primeira violência planejada da Itália pós-guerra”,62 um
protesto nacionalista baderneiro em janeiro de 1919. Até as camisas pretas
dos partidários de Mussolini combinavam a cor anarco-sindicalista com o
traje garibaldiano clássico. A fusão que Mussolini fez de violência e mito
lhe valeu a admiração de Sorel, que o descreveu como “não um socialista
comum [...] e sim um condottiere”.63
O fascismo de Mussolini era, portanto, um resgate do nacionalismo revo
lucionário64 e uma adaptação do sindicalismo revolucionário. O rompimento
60 Citado de Popolo d'Italia, 3 de dezembro de 1914, em H. Finei; Mussolini's Italy, NY, 1935; v. também
pp. 90-105. E. Saltarelli crê que Mussolini soube de maneira hábil se apropriar do entusiasmo que
uma nova geração de jornalistas italianos havia provocado durante a campanha na Líbia em 1911:
“Le Socialisme National en Italie: précédents et origines”, em Mouvement Social, 1965, jan.-mar.,
p. 50 ss., esp. p. 59.
61 Seis jornais sucessivos perpetuaram o nome do jomal originai de Mazzini fundado em maio de 1848.
V. Ravinna, Giornalismo, pp. 13-14.
62 C. Seton-Watson, Italy from Liberalism to Fascism, L, 1967, p. 518.
63 Horowitz, p. 182.
64 O monopólio de elementos patrióticos atrativos e a popularização deles como armas contra a esquerda
são enfatizados em De Felice, Il Fascismo e i partiti politici italiani: Testimonianze del 1921-1923,
Bolonha, 1966. O emprego de “fasci” com um sentido vagamente socialista se iniciou, senão antes,
pelo menos em 1871. V. E. Wiskemann, Fascism in Italy: its development and influence, NY, 1969,
p. 9; também Tilly, Century, p. 120.
708 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
67 Respectivamente o primeiro título e o título que por fim se deu ao periódico cultural socialista que
proporcionou o nome (Ordine Nuovo) em geral usado para descrever o grupo Gramsci-Togliatti,
o qual acabaria por dominar o Partido Comunista Italiano.
68 Tanto a palavra quanto o conceito de “hegemonia” geraram uma literatura enorme que beirou o
misticismo com o advento do “euromunismo” e o esforço dos comunistas italianos, em particular
para se diferenciarem dos comunistas soviéticos. O conceito é discutido (ainda que sem que se
estabeleça de modo adequado sua relação com o legado sindicalista) em S. White, “Gramsci and
the Italian Communist Party”, em Government and Opposition, 1972, primavera, esp. p. 191; G.
Williams, “Gramsci’s Concept of‘Egemonia’”, em Journal of the History of Ideas, 1960, out.-dez.,
pp. 586-599; e especialmente T. Bates, “Gramsci and the Theory of Hegemony”, em Journal of
the History of Ideas, 1975, abr.-jun., pp. 351-366. Este ultimo observa (p. 352) que o conceito se
originou da ênfase que Axelrod e Plekhanov davam ao consentimento do proletariado. Mas Lênin
e os leninistas (em especial os intelectuais) também usaram o termo no período soviético inicial
como possível sinônimo de ditadura do proletariado. V. Adoratsky (“Idéia gegeonii proletariats”
e “Politieskaia deiatel’nost Lenina i ego lozungi”, em Melodaia Gvardiia, 1924, nQ 2-3, p. 488 ss.)
localiza o termo entre os primeiros “slogans” de Lênin. Mais recentemente, o termo foi devolvido
a Lênin como um conceito rígido central, empregado para refutar quase todas as políticas nâo
soviéticas no mundo contemporâneo, a incluir os reclamantes gramscianos do conceito (I. Aluf,
“Leninskoe uchenie o gegemonii proletariata i sovremennost”, em Voprosy Istorii KPSS, 1969, n°
1, pp. 14-29).
69 Wiskemann, p. 22; Finei; p. 101; Tilly, pp. 187-188. Novas provas da influência anterior e direta
de Blanqui sobre Clemenceau estão em M. Paz, “Clemenceau, Blanqui’s Heir”, em The Historical
Journal, vol. xvi, 1973, n° 3, pp. 604-615.
710 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
70 “Neutralità attiva e operante”, em II Grido del Popolo, 31 de outubro de 1914; discutido em Clark,
p. 49, e com maior detalhe em R. Paris, “La primière Expérience politique de Gramsci (1914-1915)”,
em Mouvement Social, 1963, jan.-mar., pp. 31-57. A. del Noce fez observações no sentido de urna
maior influência do teòrico fascista italiano Giovanni Gentile sobre Gramsci: Il Suicidio della
rivoluzione, Milão, 1978.
LIVRO HL CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 711
A fronteira ocidental
Como um fogo de campina que queima com mais intensidade na periferia,
a violência revolucionária se tornou mais intensa nas regiões mais remotas
da Europa no fim do século xix. Os Bálcãs, a Irlanda e até a Austrália se
tornaram grandes centros de manifestações violentas. A fronteira oriental
produziu a Revolução Russa; mas incêndios esquecidos também queimaram
na fronteira ocidental. No mesmo ano em que os russos realizaram a primeira
A inquietação étnica
O novo ingrediente vital nos Estados Unidos, aquele que ligou a violência
às idéias revolucionárias, foi o fluxo de imigração iniciado em meados do
século xix. À medida que o país adquiria mais mão de obra européia para
construir ferrovias e túneis de minas e encher fábricas, também adquiria uma
novíssima infusão de idéias. Num primeiro momento, essas idéias advieram
principalmente de nacionalistas revolucionários católicos, os quais com
freqüência se tornaram revolucionários sociais numa América predominan
temente protestante.
A Irlanda desempenhou papel de particular importância, responsável
que foi por 44% dos 3,5 milhões de imigrantes que chegaram aos Estados
Unidos entre 1840 e 1854.77 Os irlandeses trouxeram consigo uma rica
tradição revolucionária de organização secreta e provocação à autoridade.
Foram imigrantes irlandeses que lideraram a rebelião de mineradores de
ouro na Paliçada de Eureka (nome de um subúrbio) na fronteira com a
Austrália, em 1854;78 também foram os que mais se destacaram na agita
ção mais prolongada dos mineradores de carvão da Pensilvânia entre as
décadas de 1860 e 1870.
Depois da supressão da Sociedade da Insígnia no fim da década de 1830
e dos anos de escassez de meados da década de 1840, os revolucionários da
Irlanda se tornaram mais extremos e engenhosos. Algumas novas socieda
des secretas reviveram a velha tradição agrária dos homens se travestirem
de mulheres (caso dos “Lady Rocks” e dos “Lady Ciares”);79 e o interior da
88 Jacket; p. 138.
89 R. Drinnon, Rebel in Paradise: a biography of Emma Goldman* Chicago, 1961, pp. 69-77. V. também
a bibliografia crítica, pp. 315-333.
90 Jacket; pp. 128-141.
718 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
91 Sobre os anarquistas judeus russos, v. R. Rocker, The London Years, 1956; sobre a influência deles
dentro da Rússia, v. Avrich, pp. 39-40. V. ainda o tratamento transnacional de Rocker, Anarcho-
Syndicalism, L, 1938.
92 V. o prefácio biográfico que o tradutor R. Chase fez a Rocker, Nationalism and Culture, NY, 1937,
p. 16.
93 V. o ainda valioso panfleto de Rocker, The Tragedy of Spain, NY, 1937.
94 V. Rocker, Pioneers of American Freedom, Los Angeles, 1949, em especial sua análise de por que o
anarquismo norte-americano nunca encontrou raízes no radicalismo europeu (pp. 145-154).
95 Goldman ficou devastada em seus últimos dias de vida em razão do esmagamento do anarquismo
na Catalunha durante a Guerra Civil Espanhola: “É como se você tivesse desejado um filho durante
toda a sua vida, e quando já está prestes a perder as esperanças, o filho lhe é dado — só para morrer
pouco depois de nascer” (E. Mannin, Women and the Revolution, NY, 1939, p. 137; Drinnon, p.
311). Ela seguiu a tradição de muitos radicais americanos da época de pedir que seu corpo fosse
transportado de volta para os Estados Unidos, a fim de ser sepultado perto dos mártires do motim
da Haymarket.
96 Drinnon, pp. 3-27.
97 A princípio, o que a atraiu nele foi sua glutonia no restaurante, não suas idéias. V. Goldman, Living
my Life, NY, 1931, vol. i, p. 5; Jacket, p. 129.
98 Jacket; p. 131.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 719
depois do renovado interesse por esses assuntos no fim dos anos 1960. As citações aqui feitas são
do resumo ampliado que se arrolou como prova nos julgamentos da Revolta de Haymarkt e que foi
reimpresso em J. Lawson (ed.), American State Trials: A Collection of the Important and Interesting
Criminal Trials wich have taken place in the United States, from the beginning of our Government to
the Present Day, St. Louis, 1919, vol. xn, pp. 111-121. V. também L. Adamic, Dynamite. The Story of
Class Violence in America, NY, 1934, pp. 41-48; Jacket, pp. 94-96; Dedijer, Sarajevo, pp. 167-168.
103 Lawson, p. 118.
104 Ibid., p. 116.
105 V. o depoimento precedente nesse mesmo julgamento em Lawson, p. 110.
106 Citado em Drinnon, p. 35.
107 C. Wittke, Against the current: the life of Karl Heinzen, Chicago, 1945.
108 Rocker, pp. 403, 413; Goldman, p. 166.
109 Wittke, nota 8.
110 Heinzen, “Mord contra Mord”, em Freiheit, 7 de setembro de 1901, p. 2. Perceba-se corno esse
artigo (que foi publicado pela primeira vez em Johann Becker, Die Evolution, jan.-fev., 1849) já
prenunciava na esquerda o slogan de direita que Bismarck adotaria mais tarde: “sangue e ferro”.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 721
Bem antes de morrer em 1906, Most foi esquecido e não se deu mais
atenção a essas reverberações americanas do romantismo revolucionário
europeu. Uma ameaça mais organizada ao status quo surgira sob a forma
de uma associação trabalhista revolucionária que, sob alguns aspectos, ultra
passou a tradição sindicalista francesa — a iww, criada no ano da primeira
revolução russa.
A “Internacional” sindicalista
Mais memorável ainda do que os rituais da greve foi sua reencenação sim
bólica num Memorial da Greve de Paterson diante de uma Madison Square
Garden lotada no dia 7 de junho de 1913. Patrocinado pela rica Mabel Dodge
e produzido por jornalistas e artistas reunidos na casa dela na Fifth Avenue, o
espetáculo contou com mais de mil grevistas de verdade. Eles foram treinados
para encenar e trazidos a Nova York num desfile até a torre da Garden, que
luzia com um símbolo de três metros de altura da iww em luzes vermelhas.
Do lado de dentro, encenaram os principais momentos da greve numa expo
sição deslumbrante de teatro ao vivo e multimídia. A certa altura, encenou-se
o funeral de um grevista de Paterson que havia sido morto. À medida que a
procissão de mil trabalhadores descia pela nave levando o caixão até a viúva,
houve quem sentisse que a arena esportiva havia se transformado numa espécie
de templo consagrado à revolução. Como Mabel Dodge se lembraria depois,
“eu jamais havia sentido uma vibração de pulsação tão alta em nenhuma
reunião, fosse antes ou depois”.123
Essa “vibração de pulsação tão alta” não se esgotou de todo, apesar das
perdas financeiras do memorial, do fracasso da greve de Paterson e do rápido
declínio da iw, que foi de seus cerca de 100 membros em 1912 ao colapso
quase total após sua oposição aos esforços de guerra norte-americanos depois
de 1917.0 homem que concebeu e escreveu em boa parte o memorial em Nova
York, John Reed, prosseguiu com a glorificação da Revolução Mexicana em
seu México Insurgente, de 1914, e em seguida escreveu o relato mais influente
da Revolução Bolchevique de 1917: Os Dez Dias que Abalaram o Mundo.
Poeta romântico do Oregon, correspondente do jornal radical As Massas e
amante ocasional de Mabel Dodge, Reed era um entusiasta em busca de urna
causa. Era um típico americano aficionado por esportes, ao qual seu amigo
e colega de classe Walter Lippmann chamou de “o mais inspirado líder de
torcida” de Harvard.124
127 De acordo com John Reed, citado em A. Peterson, Daniel De Leon: Socialist Architect^ NY, 1941;
Renshaw, p. 26.
LIVRO IH, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 727
iww, mas o tema principal de uma dúzia de anos de feroz conflito de classe
nos Estados Unidos”.132 Se a iw nunca teve uma chance, pelo menos sem
pre teve uma canção — milhares delas. Nisso obtendo maior sucesso do que
quaisquer outros revolucionários sociais, a iw quebrou o monopólio que
os revolucionários nacionais exerciam sobre o uso da música para mobilizar
as massas; e o mais bem-lembrado herói desse sindicalismo era, de manei
ra muito apropriada, um compositor andarilho da fronteira americana, o
imigrante sueco Joe Hill. Sua execução por um pelotão de fuzilamento em
Utah, em 1915, o transformou numa “figura arturiana do proletariado, a
qual retornará do túmulo para ajudar os trabalhadores de toda parte”,133
enquanto isso os inspirando a cantar: “Sonhei que vi Joe Hill ontem à noite,
vivo como você e eu [...]”.
132 D. Montgomery, “The ‘New Unionism’ and the Transformation of Workers’ Consciousness in
America, 1909-1922”, em Journal of Social History, vol. xvn, 1974, p. 517.
133 Renshaw, pp. 146-147; também pp. 143-160 sobre questões aborrecidas em torno da lenda de
Hill, além de materiais suplementares em Kornbluh, “Joe Hill: Wobbly Bard”, em Voices, pp.
127—157; G. Smith, Joe Hill: The Man and the Myth, Utah, 1967; e O Cancioneiro da iww e o
Cancioneirozinho vermelho. Quando se formou em 1935 o Congresso de Organizações Industriais
— dando continuidade a associações trabalhistas depois do período da recessão —, a entidade tomou
para sua canção oficial uma pertencente à iww (cantada com a melodia de John Brown's Body e a
terminar com a afirmação vibrante de que “a união nos torna fortes”).
CAPÍTULO 16
O caminho até o poder: Lênin
O Legado Alemão
Ao dar uma feição russa à doutrina alemã, Lênin estava de certo modo
fundindo os dois lados de sua ancestralidade. Seu pai era em parte um russo
tártaro e sua mãe uma alemã; ele parecia combinar a familiaridade com a
violência e a brutalidade de um russo do Volga com a disciplina organiza
cional de um alemão.
A parte alemã de sua herança era menos importante, mas talvez tenha sido
negligenciada demais nos últimos anos. Os modelos e a ajuda dos alemães
foram tão importantes para os revolucionários sociais russos dessa época
quanto os modelos e a ajuda dos franceses tinham sido para os revolucionários
nacionais poloneses que, na época precedente, dominaram a história revolu
cionária no leste europeu. O veículo político de Lênin para chegar ao poder
era uma variante do Partido Social-democrata Alemão. Sua ativa liderança
começou com a fundação do seu jornal Iskra (A Fagulha) na Alemanha, em
1900; e seu movimento final rumo ao poder se iniciou quando os alemães
lhe permitiram viajar da Zurique de expressão alemã até São Petersburgo,
em abril de 1917. Os laços alemães com o bolchevismo eram sutis e opor
tunistas de ambos os lados, e de modo algum eram os simples laços de uma
relação financeira. Havia uma base de interesses comuns não só entre os
social-democratas de ambos os países, mas também entre o governo alemão
e o movimento revolucionário russo. Compartilhavam a oposição ao poder
tzarista desde quando foi firmada, em 1894, a aliança franco-russa contra
LIVRO TII, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 731
1 Estudos recentes (tal como os coligiu M. Falkus, “Aspects of Foreign Investment in Tsarist Russia”,
em The Journal of European Economic History, 1979, primavera, pp. 5-36, esp. os gráficos às pp.
25, 31) sugerem que o investimento francês total na Rússia imperial era de cerca de 12 bilhões de
francos franceses em 1914.
2 Esse movimento se iniciou com uma reverência votiva a Das kapital, do qual não se tinha maior
compreensão. O inimigo anarquista de Marx, Bakunin, foi o primeiro a tentar traduzi-lo para o russo
no fim dos anos 1860. Adversários populistas do marxismo, Mikhailovsky e Nicholas Danielson
se tornaram, no começo dos anos 1870, os primeiros russos respectivamente a elogiá-lo de modo
extravagante na imprensa legal e a concluir uma tradução. Um professor liberal de Kiev, Nicholas
Siebei; foi um dos primeiros a incluir o livro de Marx num curso universitário, também ainda na
década de 1870. O próprio Marx, já em 1868, falava da “ironia do destino de que os russos, com os
quais lutei por 25 anos”, venham a ser “a primeira nação estrangeira a traduzir O capital” (Letters to
Dr. Krugebnann, L, 1934, p. 77; também Billington, Mikhailovsky, pp. 65-70; e A. Reuel, 'Rapitala’
Karla Marksa v rossii 1870kh godov, 1939, esp. pp. 68-118).
732 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
6 Sobre os diferentes aspectos desse assunto complexo, v. E. Mendelsohn, Class Struggle in the Pale:
The Formative Years of the Jewish Workers’ Movement in Tsarist Russia* Cambridge, 1970; N. Levin,
While Messiah Terried, Jewish Socialist Movements, 1871-1917, NY, 1977; a tese de doutorado
inédita de H. Shukman, “The Relations between the Jewish Bund and the rsdrp”, Oxford, 1960;
e H. Tobias, em The Jewish Bund in Russia form Its Origins to 1905, Stanford» 1972.
734 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
7 Uma organização de ação, a “União dos Operários Poloneses”, ganhou 6 mil membros durante
a turbulência industrial de 1890-1891 (E. Yaroslavsky, Istoriia velikoi kommunisticheskoi partii
[bol’shevikov], Moscou/Leningrado, 1926, Tomo i,p. 126); e Machajski foi preso em 1892 ao tentar
trazer um manifesto dos emigrados na Suíça para o proletariado que realizava um levante de grandes
proporções em Lodz. V. Nomad, em Aspects, pp. 98-99.
8 Embora esse argumento se dirigisse ao leste europeu, Machajski o afirmou em termos de desafio
à aceitação de intelectuais como potenciais aliados de uma revolução proletária, aceitação essa
que era expressa, como se fosse coisa rigorosamente marxista, por Karl Kautsky: Kautsky, “Die
Intelligenz und die Sozialdemokratie”, em Die Neue Zeit, 1894-1895, n° 27, pp. 10-16; n° 28, pp.
43-49; n° 29, pp. 74-80. Machajski afirmava que os intelectuais do movimento social-democrata
eram “funcionários privilegiados do capitalismo” empenhados numa disputa familiar em prol da
“burguesia educada” e contra a “aristocracia burguesa”, com o propósito de assegurar a forma
especial de “propriedade” deles (a educação que receberam) e utilizá-la como uma arma de controle
sobre os operários, dotados de menor nível de consciência.
9 O trabalhador intelectual, hectografado em 1898, foi publicado em 1905 (Umstvenny rabochy,
Genebra). V. também o seu Burzhuaznaia revoliutsiia i rabochee delo, 1905. Para comentários a
respeito, v. Nomad, Aspects, pp. 96-117; Avrich, Anarchists, pp. 102-106; e “Anarchism and Anti-
intellectualism in Russia”, em Journal of the History of Ideas, 1966, jul.-set., pp. 381-390; L. Feuer,
“The Political Linguistics of‘Intellectual’: 1898-1918”, em Survey, 1971, inverno, pp. 156-183;
e a tese inédita (Universidade de Columbia) de M. Schatz, “Anti-Intellectualism in the Russian
Intelligentsia: Michael Bakunin, Peter Kropotkin, and Jan Waclaw Machajski”, 1963.
As referências anteriores podem ser complementadas com proveito por uma discussão particularmente
rica no emprego de materiais poloneses sobre Machajski (bem como rica em escritos dele): A.
D’Agostino, “Machaevism: Intelligentsia Socialism and the Socialization of Intelligence”, em Marxism
and the Russian Anarchists, São Francisco, 1977, pp. 110—155.
O papel desproporcional dos intelectuais no leste europeu comunista continua a estimular emigrados
daquela região a publicar estudos importantes sobre o assunto. V. em particular A. Gella, The
Intelligentsia and the intellectuals. Theory, method and case study, Oxford, 1976; e G. Konrad
e I. Szélenyi, The intellectuals on the road to class power: a sociological study of the role of the
Intelligentsia in socialism, NY, 1979.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 735
Raízes russas
Numa nova introdução ao livro de Marx Lutas de classes na França^ publi
cado no início de 1895 pouco antes que morresse, Engels saudou os social-
-democratas alemães como o “partido da subversão” que havia emergido
incólume de sua existência clandestina e se destinava a ser a nova religião
estatal do próprio império que o havia perseguido.25 Se fizermos a simples
substituição do Império Alemão pelo Império Russo, pode-se atribuir a En
gels a predição de coisas futuras. No mesmo momento da década de 1890
em que os social-democratas alemães se envolviam demais com o sistema
existente para que ainda pudessem ser chamados de “partido da subversão”,
os russos se tornavam distantes demais do seu próprio sistema para almejar
algo que não fosse a subversão.
O notável renascimento da tradição revolucionária russa depois da déca
da de 1880 nasceu em parte do próprio interior profundo da Rússia, onde
Lênin passou os seus primeiros 23 anos de vida. Assim como Stenka Razin,
líder do maior de todos os levantes camponeses russos, ele tinha nascido em
Simbirsk (atual Ulyanovsk) e passado todos os seus anos de formação na
região do Volga, na fronteira entre a Europa e a Ásia. Lá a autoridade da
distante e ocidentalizante São Petersburgo nunca foi inteiramente legitima
da — do mesmo modo como nunca cessou de haver os perigos da violência
na fronteira. De seus muitos pseudônimos revolucionários, Lênin por fim
escolhería de modo definitivo aquele que advinha do mais frio e mais oriental
dos grandes rios siberianos, o Lena.
Se, como Anteu, Lênin extraiu sua força do exílio siberiano no fim dos
anos 1890, suas idéias sobre organização ele as tirou, por outro lado, das
tradições de ascese e auto-sacrificio do movimento revolucionário russo. Sua
dedicação a essa tradição lhe permitiu passar em geral incólume ao exílio
ocidental depois de 1900 e mudar a religião estatal do Império Russo do
cristianismo ortodoxo para o seu tipo de marxismo ortodoxo em meros seis
meses após seu retorno, em abril de 1917. Deve-se, portanto, atentar às pe
culiaridades da tradição russa que Marx subestimava, a fim de compreender
a revolução que o deificou.
26 Citações de Lênin que atestam uma profunda identificação com o seu irmão como fonte vocacional
se encontram em L. Fischer; The life of Lenin, NY, 1964, p. 17.
27 A influência decisiva de Chernyshevsky sobre Lênin é confirmada em N. Valentinov, Encounters with
Lenin, L, 1968, pp. 63-72; e enfatizada em A. Ulam, The Bolsheviks, NY, 1965, pp. 19, 54-70.
28 Maria Yasneva (Golubeva), esposa do colaborador mais próximo de Zaichnevsky, e um partidário
de Tkachev que depois se juntou aos bolcheviques, como citado em V i. Lenin v Samare 1889-1893.
Sbomik vospominaniia, 1933, p. 69. V. também Szamuely, The russian tradition, NY, 1974, p. 318;
Valentinov, Encounters, pp. 73—75.
Quando Lênin foi pela primeira vez a Genebra, apontou as obras de Tkachev como “mais próximas
do que quaisquer outras do nosso ponto de vista”, em conversa com seu futuro secretário pessoal V.
Bonch-Bruevich (ver; deste último, Izbrannye Sochineniia, 1962, vol. n, pp. 314-316). V. Adoratsky,
amigo íntimo de Lênin durante aquele período e futuro editor de suas obras, também atesta a contínua
importância da tradição elitista e violenta da Vontade do Povo para Lênin durante seu período em
Samara. V. Fischer; Lenin, pp. 19-20. Ulam repudia Yasneva, de maneira um tanto cavalheiresca,
como uma “bruxa” (Bolsheviks, pp. 106—107).
742 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
fora o Palais-Royal em Paris. Assim como a casa real dos Orléans havia, sem
querer, proporcionado abrigo aos intelectuais proto-revolucionários do fim
dos anos 1780, também o Instituto Tecnológico, que gozava do favor imperial,
ofereceu, um século depois, uma estufa segura para o novo desenvolvimento
revolucionário na fria São Petersburgo.
O Instituto Tecnológico
34 De acordo com o valioso fragmento da obra projetada por Leonid Krasin, uma “história
revolucionária do Instituto Tecnológico”, em M. Liadova e S. Pozner (ed.), Leonid Borisovich Krasin
(“Nikitich”). Gody podpol’ia, Moscou/Leningrado, 1928, p. 52. Ao que parece, esse projetado livro
nunca foi concluído, mas foi publicado no ano seguinte, com efeito, o seguinte artigo: M. Rappeport,
“Revoliutsionnaia istorila tekhnologicheskogo instituta”, no volume comemorativo do centenário
Tekhnologichisky institut imeni leningradskogo soveta rabochikh, krestianskikh i krasnoarmeiskikh
deputatov, Leningrado, 1928, vol. i, p. 271 ss. (LL). Tomo fatos de grande importância desse volume
rico e ilustrado, esp. pp. 97-99, 115, 266, 273-277, além da foto do predio estudantil à p. 294. O
número de matriculados foi fixado em 500 para o ano de 1887 (p. 105), mas foi ampliado para 630
em 1891 epara 841 em 1897 (p. 113). D. Brower, “Student Political Attitudes and Social Origins: The
Technological Institute of Saint Petersburg”, em Journal of Social History, vol. vi, 1972-1973, apenas
resume um questionário de 1909 que mostra que 56% dos estudantes do instituto se consideravam
parte da esquerda radical (p. 204); nota ainda que essa ala aumentou à medida que o número de
matrículas dobrou entre o fim dos anos 1890 e 1908 (p. 202).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 745
35 N. Krupskaia, “O Krasine”, em Krasin, p. 137. De Lelewel (em geral omitido das versões soviéticas dos
fatos) só se diz aqui, como suposição, que se tratava de um polonês. V. ibid., pp. 52-57; Rappeport,
p. 279; e (sobre a visita de Yakov Notkin e Arkady Kremer de 1885) Levin, Messiah, p. 232.
Krasin foi atraído para o Instituto por um aluno (que era também um veterano da Vontade do Povo)
e pelo seu professor de química em Tiumen, na Sibéria (Krasin, p. 50). Valentinov, Krzhizhanovsky
e outros eram protegidos dentro do Instituto por outro professor de química e sua esposa, os quais
eram membros clandestinos do movimento social-democrata (Valentinov, Encounters, pp. 3-5).
36 O chefe de um círculo empregou essas palavras ao convidar Krasin para se juntar a ele, em outubro
de 1890; v. Krasin, “Dela davno minuvshikh dnei, 1889-1892”, em Proletarskaia reuoliutsiia, 1923,
n° 3, p. 10; também pp. 7-15.
746 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
40 V. as importantes memórias de V. Karelina sobre esse grupo negligenciado em Krasin, pp. 86-92.
41 Krasin, pp. 35-40.
42 Testemunho autobiográfico em G leb Maksimovich Krzhizhanovsky. Zhinzn i deiatePnost’, 1974,
p. 186.
748 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
43 A. Mel’nikov, Khranitel’ partiinykh tain, 1975, pp. 13—14 (HU). As fontes básicas sobre a vida e
atividades de Radchenko permanecem o seu irmão, 1.1. Radchenko (Stary Bol’shevik, 1933, mar.-abr.,
pp. 177-186), e o seu colaborador proximo G. B. Krasin (ibid.,pp. 186-189). Modestas melhorias de
informação, mas sem maior interpretação ou originalidade, advêm destes outros relatos que encontrei
após muita pesquisa: D. Kuntsentov, Deiateli Petersburgskogo “Soiuza bor’by za osvobozhdenie
rabochego klassa”, 1962, pp. 115-122; A. Mel’nikov, “Leninets Stepan Radchenko”, em Voprosy
[storti, 1970, n°. 4, pp. 191-206; e E. S. Radchenko, “Odin iz pervykh soratnikov 11’icha”, em Voprosy
[storti KPSS, 1969, n°. 7, pp. 88-93. A memória posterior de sua filha, Evgeniia Stepanova, é um
trabalho escrito de maneira puramente acadêmica no qual não se nota nenhum traço da relação
familiar.
LIVRO IH, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 749
44 Sobre o seu papel na organização de reuniões, v. M. Sil’vin, Lenin v period zarozbdeniia partii,
Leningrado, 1958, pp. 48-49,103,158-159. V. Akimov sugere que Radchenko de fato estabeleceu
uma escola clandestina em São Petersburgo entre 1892 e 1894 (The dilemmas of Russian Marxism
1895-1903, Cambridge, 1969, p. 235).
45 Mel’nikov, “Radchenko”, p. 196, Khranitel’, p. 98.0 codinome “engenheiro” parece ter sido utilizado
por seus contatos de Kiev. V. “Iz Vospominanii S.V. Parazich (S.V. Pomerants)”,em Krasnaia Letopis’,
1923, n° 7, p. 257.
46 Outro pseudônimo, embora empregado com menor frequência, era Leibovich, um patronimico
sintético que sugeria a forma russificada tanto da palavra alemã para “salva-vidas” (leibgvardiia}
quanto da palavra inglesa para “labradorite” (leiborist). V. Perepiska VJ. Lenina i redaktsü gazety
“Iskra" s sotsial-demokraticbeskimi organizatsiiami v Rossii, 1900-1903, 1970, vol. m, p. 711.
Embora sob vigilância policial desde 1891 (E. Radchenko, p. 89 ss.), Radchenko parece não ter
sido efetivamente detectado antes do outono de 1894. V. Mel’nikov, Khranitel3, p. 16.
750 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
49 Sil’vin, p. 35. Outras informações tiradas de I Radchenko, pp. 177-178; G. Krasin, pp. 186-187.
É de se supor que haja mais detalhes sobre as atividades e conexões ucranianas de Radchenko e
seus irmãos num estudo escrito em ucraniano ao qual não consegui ter acesso: E. Malenko, Brafia
Radchenki, Kharkov, 1970.
50 Yu. Martov, Zapiski sotsial-demokrata, Berlim, 1922, p. 214, que cita com base na “carta penetrante”
que escreveu aos seus camaradas de São Petersburgo. Martov, assim como todos mais, intriga ao
fazer só um breve elogio de Radchenko.
51 Sobre esses outros aspectos do legado de Martov, v. I. Getzler, Martov, p. 9 ss.; também A. Patkin,
The origins of the russian-jewish Labour Movement, Melbourne, 1947.
52 Martov afirma ter sido o primeiro a usar para fazer denúncias (Zapiski, p. 214).
53 O pai de Stepan morreu quando ele era jovem, o que o obrigou a arcar com o negócio da família
de abastecer de madeira a ferrovia local, de modo que desde cedo imergiu no mundo dos artesãos,
operários ferroviários e assim por diante, figuras geralmente desconhecidas aos intelectuais de São
Petersburgo. V. I. Radchenko, pp. 177-178.
54 A recordação memorável que Vera Karelina faz dessa reunião (Krasnaia Letopis’, 1924, n° 1, pp.
10-11) é em geral ignorada em escritos soviéticos posteriores. O único autor que a cita (Mel’nikov,
“Radchenko”, p. 195) apresenta a reunião como se tivesse ocorrido em 1893 esegue a prática usual
de exagerar a influência de Lênin já em data tão recuada. Ao que parece, foi só em uma reunião
posterior (na qual Radchenko também estava presente) que Lênin foi apresentado pela primeira vez
a círculos revolucionários maiores como “irmão do bem-conhecido revolucionário A. L Ulyanov”,
752 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
64 Dan, p. 229.
65 Lenin, What is to be done?, Oxford, 1963 (originalmente de 1902), pp. 182-183.
66 Citado na introdução de S. Utechin a ibid., pp. 109-110. Krupskaia cita Lênin a afirmar
categoricamente que “Iskra criou o Partido Operário Social-democrata da Rússia” (V. Stepanov,
Lenin i russkaia organizatsiia “Iskry” 1900-1903, 1968, p. 397). Embora os escritórios editoriais
ficassem em Munique e a prensa em Suttgart, ela insistia que “seu centro de gravidade se encontra
dentro da Rússia” (ibid., p. 7).
LIVRO ni, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 755
67 Citado em A. Waldman, “Lenin’s Battle with Kustamichestvo: the Iskra Organization in Russia”,
em Slavic Review, 1964, set., p. 486.
68 What is to be done?, pp. 187-188.
69 G. Deich, “Voprosy kospirativnoi tekhniki *Iskry* v pis’makh V. I. Lenina 1900-1903 godov”, em
Voprosy Istorii, 1969, n° 9, esp. p. 51, 60—61, ss.
70 Stepanov, Lenin, p. 7; Deich,“Voprosy”, pp. 63-66; e, para detalhes sobre suas propostas originais
para Iskra e Zaria e sobre sua fundamental organização de apoio perto da fronteira de Pskov, v. B.
Novikov, VI. Lenin i pskovskie iskrovtsy, 1968; também BoLshevistskaia péchât*. Sbornik materialov,
1959—1961, 4 vol.; e os ensaios editados por A. Kostin quando do septuagésimo aniversário de
fundação do Iskra: Leninskaia “Iskra”, 197.
71 SiTvin, pp. 140-238.
756 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
familiar para estender uma rede de apoiadores por toda a Rússia. É quase
certo que Lênin precisou que os Radchenko fizessem arranjos antes de 1900
para que ele realizasse sua parada em Pskov, no caminho entre a Sibéria e
o exílio ocidental.72 A esposa de Radchenko (conhecida como “Pasha” e
direktorsha^ “a diretora”) ajudou a organizar seguidamente os dois mais
importantes centros ucranianos do Iskra e a rota de transporte ao sul para o
contrabando do jornal de fora para dentro do país.73 O irmão mais novo de
Radchenko, Ivan (conhecido como “Arkady” e “Kas’ian”) estabeleceu uma
prensa secreta em Kishinev, a qual começou a reimprimir o Iskra em solo
russo.74 O próprio Stepan Radchenko se tornou o principal agente em São
Petersburgo, e em abril Lênin lhe pediu que fizesse uma espécie de seção de
relatório bibliográfica para o Iskra das obras publicadas dentro da Rússia.
Lênin primeiro pediu que listasse para a rede do Iskra os jovens intelectuais
que formaram o grupo extremista Sotsialist e, em seguida, despachou um
emissário para, com o auxílio de Radchenko, estabelecer uma organização
permanente em São Petersburgo, a qual ligaria o Iskra aos remanescentes
da União de Luta.75 No fim do verão de 1901, o “diretor” foi renomeado
“general” pelo submundo revolucionário, numa espécie de promoção de
Radchenko no campo de batalha.76 Até a sua prisão e verdadeiro fim da
sua carreira em 4 de dezembro de 1901, exerceu papel fundamental no
“serviço postal socialista” utilizado para distribuir o jornal — as arcas com
fundos falsos, os endereços falsos {iavki}^ a redação de mensagens em tinta
invisível entre as linhas de publicações inócuas (as assim chamadas lastochki
ou “andorinhas”).77 Quando à sua prisão se seguiu a de sua esposa, o seu
irmão Ivan assumiu a liderança do escritório do Iskra de São Petersburgo e
72 Conclusão a ser tirada de materiais em I. Radchenko, pp. 183-184 (Perepiska Lenina i redaktsii
“Iskra”, vol. in, p. 711); e do testemunho de E. Radchenko de que Lênin visitava o apartamento
bem localizado, e ainda assim secreto, de Radchenko em Pskov “quase todo dia” (p. 91).
73 A correspondência que lhe enviava o Iskra deixa claro que ela ficava em Kharkov bem como em
Poltava (Perepiska, vol. i, pp. 57-58, 70).
74 Wildman, p. 489; Perepiska, vol. ni, p. 711; e A. Mel’nikov, “Organizator sovetskoi torfianoi
promyshlennosti. K 90-letiiu so dnia rozhdeniia 1.1. Radchenko”, em Torfianaia Promyshlennosf,
1964, n° 8, p. 25.
75 Mel’nikov, “Leninets”, p. 205; E. Radchenko, p. 92.
76 Não resta dúvida de que esse nome era a princípio desconhecido por Lênin e Krupskaia, corno
manifesta a pergunta desta última no dia 23 de setembro a um correspondente de São Petersburgo:
“Quem é esse que você chama de Generai?” (Perepiska, vol. i, p. 232, também pp. 226, 245).
77 Para detalhes sobre esse sistema, v. V. Novikov, “Nepremenno vysylaite Tskru’”, em Voprosy Istorii,
1977, n° 4, pp. 118-126, esp. p. 119; Leninsky sbornik, vol. vin, p. 260; e S. Rozenoir, Nelegal’ny
transport, 1932. A data da prisão (em correção a I. Radchenko, p. 184, e outros) é dada em Perepiska,
vol. in, p. 711.
LIVRO 111, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 757
78 R. Obolenskaia, “Propaganda i agitatsiia v period staroi Tskry*”, em Stary Bol’shevik, 1928, mai.-
jun., esp. pp. 123-132.
79 “Doklad organizatsii ‘Iskry* n s’ezdu RSDRP v 1903 g”, em Proletarskaia Revoliutsna, 1928, n° 1,
pp. 147-167, esp. pp. 148,154.
758 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA
80 Designou-se “N. Lenin” pela primeira vez em um artigo escrito para o seu jornal teórico Zaria:
“Gg. ‘Kritiki’ V agrarnom voprose”, n° 2, 3, em Sobranie, vol. v, 1967, pp. 99-156 (concluído no
momento em que terminava O Que Fazer?).
81 Lênin diferenciava “artigo” dos “pensamentos e esboços” sem foco dos jornalistas burgueses. V. P.
Karasev, “Iz nabliudenii nad kompozitsiei leninskikh statei”, em Problemy zhanrov v zhurnalistike,
Leningrado, 1968, pp. 5-6. Quando depois questionado a respeito, Lênin listou sua ocupação como
a de “jornalista” ou “literato”, sendo que este último termo, em sua forma russa literator, remetia
desde Belinsky a “jornalismo ideológico”. Conferir V. Karpinski, “Lénine rédacteur”, em Lénine tel
qu’il fut. Souvenirs de contemporains, Moscou, 1958, p. 382.
82 What is to be done?, p. 188.
83 Mel’nikov, “Leninets”, pp. 205-206; E. Radchenko, p. 92.
84 Krzhizhanovsky, pp. 14-15; What is to be done?, p. 13.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER; LÊNIN 759
O Mestre de Obras
A característica mais distintiva de Lênin era a sua determinação obstinada
de alcançar o poder político.88 Como vimos, ele já era um revolucionário
85 Krzhizhanovsky, pp. 16-17; Krasin, pp. 195, 200, 261, 271-272. e (sobre a fase alemã) 233.
86 Krasin, p. 257.
87 Krzhizhanovsky se tornou o diretor fundador tanto da Comissão Bolchevique para Eletrificação
(GOELRO) quanto da organização que a sucedeu, a Comissão de Planejamento Estatal (GOSPLAN).
Krasin se tornou Comissário do Povo para Indústria e Comércio e depois do Transporte. Ivan
Radchenko, que tinha trabalhado com Klasson para montar a primeira estação de energia elétrica
à base de lignito em Noginsk, em 1912, tornou-se chefe do Diretório de Lignito. V. Mel’nikov,
“Organizator”, pp. 25-26.
Embora tenha passado na prisão ou no exílio a maior parte da década que vai até sua morte em
1911, Stepan Radchenko se valeu de um breve período de anistia durante a Revolução de 1905 para
dar um revólver ao seu irmão Leonty em Moscou e para trazer outro irmão, Yury, para Vologda, a
fim de que aprendesse técnica revolucionária com os que estavam lá exilados. Depois da morte de
Stepan, Yury foi preso quando um longo estudo marxista de Stepan foi descoberto no compartimento
secreto de uma arca que havia sido leiloada para pagar dívidas. Esse escrito se perdeu, de modo que
o primeiro apparatchik não deixou nenhum legado escrito. V. I. Radchenko, pp. 183-186.
88 Por mais estranho que pareça, ainda não existe nenhuma biografia ampla e rigorosa de Lênin. As
volumosas pesquisas soviéticas sobre o assunto proporcionam vasta informação, mas são sobretudo
hagiográficas e destituídas de tratamento interpretativo, que dirá crítico. A “pesquisa erudita” sobre
Lênin na União Soviética está mais ou menos no mesmo estado que a pesquisa erudita cristã sobre
Jesus antes que a crítica bíblica moderna levantasse questões básicas de texto e de interpretação.
A “busca pelo Lênin histórico” ainda não é aceitável para aqueles que controlam o acesso aos
documentos. Um resenhista ocidental recente do principal hagiógrafo soviético vê Lênin tratado
não como um agente histórico, mas como uma figura, a validar a relação entre uns acontecimentos
e outros, e a todo momento representando “um objetivo iminente no curso dos acontecimentos” (A.
Kimball, *1.1. Mints and the Representation of Reality in History”, em Slavic Review, 1976, dez.,
p. 716).
Materiais antes pouco utilizados são incorporados em Fischer, Lenin, a melhor biografia geral;
mas esta deve ser complementada (especialmente quanto ao período inicial da carreira) com Ulam,
760 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Bolsheviks, Shukman, Lenin, e D. Treadgolg, Lenin and His Rivals, NY, 1955. V. também R. Theen,
Lenin: genesis and development of a revolutionary, Filadélfia, 1973; B. Wolfe, Three who made a
revolution, NY, 1948; e An Ideology in power, NY, 1969; L. Schapiro e P. Reddaway (ed.), Lenin:
The Man, the Theorist, the Leader: A Reappraisal, NY, 1967; e a bibliografia de materiais em línguas
ocidentais em G. Heltai, Books on Lenin, s/1., 1969.
Urna nova e ambiciosa tentativa de sugerir que a ideologia era a característica essencial do leninismo
(a realização de uma tradição revolucionária inerentemente “gnostica”) està em A. Besançon, Les
origines intellectuelles du léninisme, 1977. “Lênin não sabe aquilo em que acredita. Ele acredita que
sabe” (p. 15).
89 Citado em Utechin, O que fazer?, p. 20.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 761
um mestre de obras que “dispõe uma linha [...] visível a todos”, de maneira
que cada fileira de tijolos terá uma linha a seguir — com cada indivíduo
dispondo tijolos separados, mas sabendo que existe “um objetivo final do
trabalho feito em conjunto”.90 Lênin não estava menos definindo uma linha
geral do que delineando um caminho específico. Quando tentava orquestrar
os sons que vinham da Rússia, notava duas formas principais de dissonância.
Seu gênio especial está em demonstrar que a dissonância da “direita” e da
“esquerda” tinha uma mesma fonte básica: a “espontaneidade”.
A contra-força necessária a essa dissonância era a “consciência”, a fonte
de disciplina num movimento que, de outro modo, seria amorfo. Mas a
consciência deve ser uma fonte de disciplina, não de dissipação. Daí que
o tratado de Lênin se inicie com um ataque à “liberdade de crítica” como
um slogan perigoso que levaria de modo inevitável à diluição da militância
revolucionária em reformismo democrático.91 A liberdade de crítica dava
origem ao “oportunismo”, “economicismo” e “sindicalismo” que ofuscavam
a crença marxista básica na luta de classes como a força que move a história.
Sem o auxílio da “consciência” mais elevada de uma ideologia revolucioná
ria, em toda parte a classe operária corria o risco de se limitar ao impulso
“espontâneo” de satisfazer seus desejos imediatos. Os trabalhadores ficavam,
assim, vulneráveis ao suborno da burguesia, que se tornou ideologicamente
respeitável através da ideologia do “economicismo”.
Mas também os terroristas da esquerda incorriam no pecado da espon
taneidade. Intelectuais burgueses que eram, não podiam transcender suas
origens de classe. Como resultado, a classe operária se infectava com a “es
pontaneidade da mais ardorosa indignação dos intelectuais” que produzia
violência aleatória, e não um efeito acumulativo.92
Desse modo, Lênin criou a técnica do claro-escuro das polêmicas comunistas
modernas: o realce de uma nova linha de ação por meio do obscurecimento
de rivais que haviam se desviado à “esquerda” ou à “direita” — terrorismo e
economicismo, “aventureirismo” e “atavismo”, “exterminadores” de direita
e de esquerda após o fracasso da revolução de 1905 e, por fim, na época
pós-revolucionária, a “doença infantil” do “esquerdismo” e a “lambeção de
botas”, isto é, o “capitulacionismo” do “renegado Kautsky”.93 Stálin ritu-
90 Ibid., p. 177.
91 “What does ‘Freedom of Criticism’ mean?”, em What is to be done?, pp. 40-44, também 58-60.
92 Ibid., pp. 100,140,191.
93 Os dois mais importantes escritos prescritivos de Lênin, com significância programática geral para
762 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Por meio de uma longa série de lutas táticas com os mencheviques, en
volvendo muitas alianças inconstantes, Lênin se recusou continuamente a
comprometer seu conceito de centralismo democrático em prol de algum
consenso democrático. Ele condenava as “formas falsificadas” de democracia
usadas pelos políticos liberais. Temia que qualquer campanha geral por direitos
eleitorais no Império Russo poderia simplesmente levar a outro “plebiscito
imperial” que expressasse a ligação das massas camponesas com o tzar, assim
como as massas francesas tinham votado em Napoleão m." Preferia uma
“assembléia constituinte”, que nascera na Revolução Francesa como uma
expressão de entusiasmo revolucionário, e não uma legislatura popular que
poderia desviar esse entusiasmo para canais reformistas.99 100
Muitas vezes denunciado como “ultracentralizador” e “blanquista”, Lênin
agiu continuamente como se sua facção bolchevique fosse mesmo o órgão
da consciência do proletariado. Depois de criar o seu novo tipo de partido,
sua maior realização foi a adaptação da ideologia marxista ao mundo menos
desenvolvido que o Império Russo, em parte asiático, rural em sua maior
parte, representava.
O primeiro passo foi a acomodação da burguesia intelectual dentro da
vanguarda proletária. Assim como se pensava que ocorria uma misteriosa
transformação da identidade pessoal quando se entrava no círculo interno
dos Iluminados da Bavária, de igual modo, ao se entrar no partido de Lênin,
“qualquer distinção entre operários e intelectuais deve ser completamente
destruída”.101 A função de classe desse partido era, com efeito, rebatizar
intelectuais como Lênin, fazendo-os completos proletários. Esse ritual era
essencial porque os intelectuais eram necessários em qualquer elite revo
lucionária.102 A sanção explícita a uma liderança intelectual burguesa era
fundamental em países de todo dependentes da orientação de uma pequena
elite educada. Logo após o Congresso Partidário de 1903, Lênin conclamou
de modo enérgico os “estudantes revolucionários” a elevarem sua “consci
ência”, aceitando a liderança que ele lhes proporcionava.103
de seu total fracasso) na tese inédita de R. Call, “The Revolutionary Activities of the Kologol Group
among the Raskolniks”, Bloomington, 1964.
112 “Sotsializm i religiia”, em Novaia Zhizn\ 3 de dezembro de 1905; B. Bociurkiw, p. 116.
113 Sobre a luta de Lênin contra o principal defensor de urna cultura proletária e de uma espécie de
religião proletária, v. D. Grille, Lenins Rivale: Bogdanov und seine Philosophie* Colônia, 1966, e
A. Yassour, “Bogdanov et son oeuvre”, em Cahiers du Monde russe et soviétique* 1969, out.-dez.,
para uma volumosa bibliografìa. Amostras do grande estudo em andamento de J. Scherrer sobre o
enfrentamento geral dos “bolcheviques de esquerda” de Bogdanov a Lênin (e àquilo que eles foram
os primeiros a chamar de leninismo) se encontram em “Gor’kij, Bogdanov, Lenin. Neue Quellen zur
ideologischen Krise in der bolschewistischen Fraktion (1908-1910)”, em Cahiers du monde russe
et soviétique* 1978, out.-dez., pp. 321-334.
114 M. Holdsworth, “Lenin and the Nationalities Question”, em Schapiro e Reddaways (ed.), Lenin*
pp. 270-272, observa que a autonomiia não implicava para Lênin a independência total que essa
palavra sugere para o leitor moderno de língua inglesa.
115 “Goriuchy material’ v mirovoi politike”, em Profetarli* 23 de julho de 1908; Polnoe Sobranie, vol.
XVII, pp. 174-183.
768 A FÉ REVOLUCIONÁRIA. SUA ORIGEM E HISTÓRIA
mingar e a inflação em 800%, a Rússia foi atingida por três ondas de cho
que sucessivas. Primeiro veio a revolta “de cima” com origem nos liberais
moderados, o assim chamado bloco “progressista” da Duma. Em janeiro
de 1917 eles mataram Rasputin, o símbolo da decadência imperial, e bus
caram estabelecer uma regência sob o comando do Grão-Duque Miguel
que garantiria um governo constitucional responsável, com direitos civis
e autonomia local. A segunda insurgência veio “de baixo” no dia 8 de
março de 1917, quando protestos nas ruas de São Petersburgo levaram a
um confronto com mil mortos e à substituição do regime tzarista por um
Governo Provisório comprometido com a convocação de uma Assembléia
Constituinte. Ao mesmo tempo, o comitê executivo dos sovietes de São Pe
tersburgo criou uma autoridade operária independente, que se desenvolveu
de modo contínuo e paralelo ao poder do governo democrático provisório
e criou contrapartes em outras cidades no breve período entre a queda do
regime tzarista, em março de 1917, e o triunfo do bolchevismo em novembro.
A terceira onda de choque foi o golpe de estado bolchevique, planejado
e executado por Lênin depois do seu retorno da Suíça a São Petersburgo
em abril. Ele trouxe consigo a aura de uma autêntica alternativa à Rússia
que sofria e brigava transtornada pela guerra; e ele se pôs à prova nos
estonteantes seis meses que terminaram com a sua própria revolução,
revelando-se um mestre estratégico a beirar a genialidade.
O seu primeiro e mais decisivo passo foi se identificar, em uma época de
generalizada confusão, com a mais utópica das posições revolucionárias: a
visão anarquista do fim iminente de toda autoridade. Lênin percebeu que,
numa época em que os laços tradicionais haviam se rompido, a posição
mais extrema poderia de repente se tornar a mais prática para a mobili
zação das massas. Assim, logo após a queda do tzar e antes de retornar
à Rússia, Lênin pediu que lhe enviassem os escritos de Bakunin sobre a
Comuna de Paris. Logo escreveu o seu grande e influente tratado de 1917,
Estado e Revolução. Era uma obra de fantasia anarquista — note-se que
uma fantasia que em dado momento Marx compartilhou com Bakunin,
quando ambos estavam entusiasmados com o potencial criativo das novas
formas de autogoverno operário reveladas na Comuna de Paris.
Com a paixão de um anarquista, Lênin rejeitou os órgãos parlamentares
da burguesia, considerados elementos que frenavam a revolução. Ele via
aquele momento como um daqueles períodos em que a história se move como
770 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Isso será feito pelo próprio povo armado, com a simplicidade e a agilidade com
que qualquer agrupamento de pessoas civilizadas, mesmo na época moderna,
interfere para fazer cessar um tumulto ou impedir que uma mulher seja violada.120
118 Matáforas fundamentais empregadas por Lênin durante a Revolução de 1905 e discutidas em
Znamensky, pp. 67-69.
119 Gosudarstvo i reuoliutsiia, Polnoe Sobranie, vol. xxxm, p. 48.
120 Ibid., p. 91.
121 M. Perrie mostra que a expressão e o conceito de “revolução permanente [permanentnaia]” em
Revoliutsionnaia Rossiia, Io de julho de 1905, foram na verdade utilizados pelo líder socialista
revolucionário M. Gots antes até do que Trótski e Parvus: “The Socialist Révolutionnaires on
‘Permanent Revolution’”, em Soviet Studies^ 1973, jan., pp. 411-413.
LIVRO HI, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 771
122 Radek é o herói do romance Syzyfowe Prace de Stefan Zeromski, amigo de toda vida de Machajski;
v. D’Agostino, Marxism, p. 114; para uma bibliografia, v. W. Lerner, Karl Radek. The Last
Internationalist, Stanford, 1970.
123 I. Deutscher, The prophet armed, NY/L, 1954, pp. 254-262.
772 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
124 E. Bramstedt, Dictatorship and political police. The techniques of control by fear, NY, 1945, p. 10 ss.,
enfatiza a importância fundadora de Joseph Fouché — tal como faz P. Wilkinson, Political terrorism,
L, 1974, pp. 51-53. Este último segue a abordagem de R. Cobb (Terreur et subsistences, 1793-1795,
1964, p. 207), ao ver a técnica de repressão preventiva a categorias suspeitas de potencial oposição
à revolução como uma grande inovação da era revolucionária — e ao atribuí-la, em grande medida,
a Fouché.
A polícia secreta prussiana, que depois proporcionou modelos para a direita, também se formou
como parte do movimento reformista prussiano de esquerda — seu pioneiro, Justus Brunner, a reagir
simbioticamente a Fouché. V. W. Obenaus, Die Entwicklung des preussichen Sicherheitspolizei bis
zum Ende der Reaktionszeit, 1940.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 773
125 Sobre a estrutura básica, v. E Zuckerman, “Vladimir Burtsev and the Tsarist Political Police in
Conflict, 1907-1914”, em Journal of Contemporary History, 1977, jan., p. 215, nota 11. Sobre sua
história e vários outros detalhes, v. os dois primeiros capítulos de sua tese de doutorado inédita: “The
Russian Political Police at Home and Abroad (1880-1917): Its Structure, Functions and Methods
e Its Struggle with the Organized Opposition”, Universidade de Nova York, 1973, pp. 1-92 — no
qual é utilizado o valioso arquivo da agentura estrangeira de Paris, hoje no Hoover Institution em
Stanford. Outra obra inédita identificada por L. Gerson (The secret police in Lenin’s Russia, Filadélfia,
1976,p. 325) como “Esboço de uma Tese de Doutoramento” em Columbia, 1957,é E. Hollis, “Police
Systems of Imperial and Soviet Russia”. Para um relato impresso em edição disponível, v. R. Hingley,
The Russian Secret Police: Muscovite, Imperial Russian and Soviet Political Security Operations
1565-1970, pp. 69-116. V. também a tese de doutorado em andamento (Universidade de Tel Aviv)
de N. Schleifmann, “The Role and Influence of Agents Provocateurs in the Russian Revolutionary
Movement: 1902-1917”.
126 Zuckerman, Police, pp. 5, 8,19, 25, 39,44-46; também “Burtsev”, p. 215, nota 11.
774 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
130 V. o relato de Leonid Men’shchikov, líder da Okhrana de Moscou, que tinha antes se envolvido com
o movimento revolucionário e que alegou, depois da Revolução de Outubro, ter sempre trabalhado
em segredo por ela: “Parizhskie ‘Bombisty’”, em Okhrana i revoliutsiia, 1925, cap. 1, pp. 89-93.
Os papéis de Men’shchikov estão na coleção Nikolaevsky do Hoover Institution, Stanfod; e suas
notas e complementos a uma cópia da história de V. Agafonov do escritório da Okhrana em Paris
(Zagranichnaia okhranka, Retrogrado, 1918) està na Biblioteca da Universidade de Wisconsin. Cf.
nota de A. Senn em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1978, out.-dez., p. 444.
Sobre o contexto político mais amplo no qual a emigração revolucionária operava em Paris
durantes os anos 1880 e 1890, v. a tese de doutorado inédita de M. Millard, “Russian Revolutionary
Emigration. Terrorism and Political Struggle”, Rochester, 1973.
131 Zuckerman, Police, p. 80 ss. sobre esse e outros codinomes que os revolucionários depois adotaram
com freqüência como meio de sátira ou bravata. Em meio à torrente de jornais radicais que surgiram
durante a Revolução de 1905, havia o Skorpion — assim como o Vampir (Vampiro), Pulemet
(Matralhadora), Yad (Veneno) etc. Todos esses estão na Biblioteca da Universidade de Wisconsin
(Senn, p. 447).
776 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
132 Degaev fugiu e começou uma nova vida de amigável professor, com o nome de Alexander Pell,
passando por uma série de universidades norte-americanas de Dakota do Sul a Bryn Mawr; v.
Yarmolinsky, Road, pp. 317-323.
133 R. Gaucher, The terrorists from Tsarist Russia to O.A.S., L, 1968, p. 36, que se baseia em Victor
Serge, Les Coulisses d’une sûreté générale. Ce que toute révolutionnaire devait savoir sur la répression,
1925, pp. 49-50 (relançado em 1970 tendo por título o que era originalmente o seu subtítulo).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 777
[...] descobrir uma prensa secreta — era esse o sonho de todo “uniforme azul”,
do mais jovem recruta ao mais encanecido general [...] “extermínio da tipogra
fia” — era esse o presente que abria caminho para a comemoração, a promoção,
a condecoração.136
134 Zuckerman, Police, pp. 62—63, além de p. 85, sobre a maneira como várias linhas, círculos e cartões
são reunidos em cartões sinópticos individuais.
135 Gaucher, p. 43, e toda a seção “Okhrana vs. Terrorism”, pp. 28-56.
136 Men’shchikov, Okhrana, cap. 3, 1932, p. 40; sobre diferentes tipos de agente, v. p. 34 ss., além de 56.
Os mamochki okhrankoi também eram chamados de babushki provokatsii, p. 118 ss. Os últimos
dois volumes da obra inestimável de Men’shchikov (NY) enriquecem de modo substancial o retrato
dado em Zuckerman, que incorre no erro de dizer que nada foi publicado além da primeira parte
da obra, impressa em 1914 (Police, p. 69, nota 103).
137 Men’shchikov, Okhrana, cap. Ill, p. 58, sobre Gregory Kivo e os jornais DaPny Vostok e Vladivostok.
Quando sete residentes inocentes foram executados porque o líder local da Okhrana, o tenente-
coronel Zavarnitsky, simulou uma conspiração revolucionária, houve apenas uma leve reprovação
(ibid., p. 47).
778 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
138 Men’shchikov, “Okhranniki v Finliandii”, em Okhrana, cap. I, pp. 219-226, esp. p. 221. Men’shchikov
é pouco sincero ao assumir o seu próprio papel de liderança.
139 Burtsev foi o principal cronista emigrado da tradição revolucionária até 1905. Zuckerman (Police,
pp. 48-49) concorda com Bramsed ao sugerir que o primeiro escritório da polícia revolucionária
a proteger grupos subversivos foi o de Raoul Rigault à época de Napoleão in (“Burtsev”, p. 214,
nota 1).
LIVRO in, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 779
140 Men’shchikov, Okhrana., cap. 1, pp. 20—25. Sobre dois diferentes aspectos do memorável movimento
de Zubatov, v. D. Pospielovsky, Russian Police Trade Unionism, Experiment ou Provocation?, L,
1971; e J. Schneiderman, Sergei Zubatov and Revolutionary Marxism. The Struggle for the Working
Class in Tsarist Russia, Ithaca/L, 1976.
141 Schneiderman, p. 105 ss.; Pospielovsky, p. 98 ss. Sobre um assunto tão delicado como Zubatov e
o “socialismo policial”, mesmo hoje só se pode aprender algo de modo muito indireto a partir das
pesquisas soviéticas. V. V. Sviatlovsky, Istorila professionaPnogo dvizheniia v Rossii, Leningrado,
1925; V. Novikov, “Leninskaia Tskra’ v bor’be s zubatovshchinoi”, em Voprosy Istorii, 1974, n° 8,
pp. 24-35; e I. Ionov, “Zubatovshchina i Moskovskie rabochie v 1905 g.”,em Vestnik Moskovskogo
Universiteta, 1976, n° 3, pp. 54-68. As atividades de Zubatov nos anos 1890, negligenciadas nesses
relatos, são descritas pelo seu sucessor na Okhrana de Moscou, Men’shchikov, Okhrana, cap. 1, pp.
199-200, 339-348,428, nota 8.
780 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
149 Material até agora inédito sobre M. Afanas’ev presente em Ionov, p. 60.
150 Novikov, pp. 25-27.
151 Ionov, pp. 64—66, de fato aceita essa versão e, em essência, confirma a conclusão de S. Schwartz,
The Russian Revolution of 1905: The Workers* Movement and the Formation of Boshevism and
Menshevism, Chicago, 1967 (alhures ridicularizado por Shipulina e outros pesquisadores soviéticos)
de que exigências puramente econômicas dominaram todas as organizações operárias de massa até
outubro de 1905.
152 Shipulina, p. 65 ss.
153 Citado de um panfleto escrito por um “grupo do comitê nortenho do Partido Operário Social-
-democrata Russo”, Samoilov, pp. 42, 93.
154 Deutscher, Prophet, p. 125 ss. Antes conhecido como “comissão grevista” ou “comitê dos
trabalhadores”, o grupo de São Petersburgo talvez tenha sido o primeiro a formalmente se declarar
um soviete (v. L. Petrova, “Peterburgsky sovet rabochikh deputatov”, em Voprosy Istorii, 1955, n° 11,
p. 26). A insistência de Shipulina e outras fontes soviéticas na paternidade de Ivanovo pode refletir
o fato de uma maior participação bolchevique. Outras obras que dão por pressuposta a origem em
São Petersburgo são L. Kleinbort, Pervy sovet rabochikh deputatov, Retrogrado, 1917; e a obra de
1925 de L. Gorin, referida e criticada em Samoilov e em Shipulina.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 783
157 As provas em E. Smith, The young Stalin, NY, 1967, indicam a possibilidade dessas conexões — pelo
menos desde a época de sua misteriosa sobrevivência às incursões da Okhrana emTiblissi, em 1901 —,
ainda que suas hipóteses mais particulares sobre a extensão dessas conexões pareçam indevidamente
conjeturais. Antes, já Isaac Don Levine, George Kennan e outros haviam sugerido um elo entre Stálin
e a Okhrana; e um destacado historiador soviético me confirmou, durante a era Khrushchov, que as
descobertas desses autores eram “corretas em essência, mas não em seus detalhes”. Roy Medvedev,
Let history judge: the origins and consequences of Stalinism, NY, 1971, pp. 315-324, oferece uma
discussão fascinante, ainda que cética, dessas teorias e de outros rumores na União Soviética sobre
as possíveis relações de Stálin com a polícia secreta tzarista. Parte significativa do material que ele
próprio apresenta e a comparação que estabelece entre Stálin e Azev põem em dúvida sua conclusão
de que “Stalin não trabalhou para a polícia secreta tzarista” (p. 323); e ele parece menos convicto
ainda em seu estudo mais recente “New Pages of Political Biography of Stalin”, R. Tucker (ed.), em
Stalinism, NY, 1977, pp. 199-201. Tucker mostra que nenhuma conexão foi provada e se revela
cético quanto ao argumento de Smith, ainda que não feche questão a respeito (Stalin as Revolutionary
1874-1929, NY, 1973, pp. 108-114).
158 Zuckerman, Police, p. 88.
159 Ibid., pp. 614-615.
160 Fischer, Lenin, pp. 81-84, lista as muitas perguntas sem resposta sobre as relações de Lênin com
Malinovsky. V. também D. Anin, “Lenin and Malinovsky”, em Survey, 1975, outono, pp. 145-156;
e R. Elwood, Roman Malinovsky: a life without a cause, Newtonville, 1977.
161 Como se sugere, por exemplo, no artigo anti-semita e pouco convincente publicado sob o pseudônimo
de Salústio, “Lénine Agent de l’Okhrana”, em Revue de Paris, 5 de dezembro de 1927, pp. 806-826.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 785
dos estudantes por ideinoe ob’edinenie e sua resistência ao liberalismo moderado de kul’turniki, v.
Kirov e Dalin, p. 55 ss.
168 Zuckerman, Police, p. 88. Materiais básicos sobre Azev se encontram em Gaucher, pp. 57-70;
Men’shchikov, Okhrana, cap. 3, pp. 5—33; e B. Nikolaevsky, Aseff, the Spy — Russian Terrorist and
Police Stool, NY, 1934.
169 Nikolaevsky, Aseff, pp. 29-30.
170 Avrich, Anarchists, pp. 40-71, sobre essa notável profusão de terror, atentados a bombas e violência
suicida deflagrada pelos beznachal’tsy e bezmotivniki-, e pp. 105-106, sobre o neprimimirmye.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 787
177 Morozov, Otkrovenie v groze I bure; istoriia vozniknoveniia apokalipsica, São Petersburgo, 1907;
tradução resumida de M. Kissell em Popular Astronomy, 1940, dez.; 1941, jan.; reimpresso como
The Revelation of Thunder and Storm, Northfield, Minnesota, 1941. V. também Morozov, Proroki;
istoriia vovniknoveniia bibleiskikh prorochestv, 1914 (todos esses títulos estão disponíveis em LC).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 789
187 Sobre as origens dos campos de concentração e do sistema de trabalho forçado, ver, além do livro
de Alexander Soljenítsin, Gulag Archipelago, 1975, NY: D. Dalin e B. Nikolaevsky, Forced Labor in
Soviet Russia, New Haven, 1947; e S. Wolin e R. Slusser (ed.), The Soviet Secret Police, NY, 1957.
188 Zuckerman, p. 88.
792 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
As francesas
Como no caso de muitas outras coisas que abordamos, a história das revo
lucionárias começa na barafunda da Revolução Francesa. Os pensadores
do Iluminismo se preocuparam em grande medida com a questão exígua
de como a educação poderia melhorar o destino das mulheres.1 Rousseau,
proto-revolucionário sob outros aspectos, foi o primeiro de uma longa série
de antifeministas convictos da esquerda francesa. As mulheres tiveram pouca
importância na Revolução Americana e nas etapas iniciais da Revolução Fran
cesa. Um pequeno grupo de revolucionárias feministas, contudo, logo surgiu
na França. Olympe de Gouges, “a alta sacerdotisa do feminismo”,2 esboçou
uma Declaração dos Direitos das Mulheres (para a qual tentou conseguir o
endosso de Maria Antonieta) que complementasse a Declaração dos Direitos
do Homem. Mary Wollstonecraft censurou Burke por rejeitar a Revolução
Francesa, escreveu uma Reivindicação dos Direitos das Mulheres e viajou
deslumbrada para a Paris republicana de 1892. Esposa do libertário anarquista
William Godwin e mãe da esposa do poeta romântico e ateu Shelley, ela foi
uma espécie de matriarca da tradição revolucionária feminina, a despeito
de sua falta de influência na Inglaterra, sua terra natal, ou na Escandinávia,
para onde se dirigiu depois de deixar a França revolucionária.3
O Círculo Social de Bonneville estava quase só na reivindicação de
igualdade radical para as mulheres, em grande parte através de sua notável
porta-voz feminista, a baronesa holandesa Etta Palm d’Aelders.4 O único
pensador a ligar uma visão social radical a idéias revolucionárias sobre o
papel das mulheres (e a fazer uma especulação sobre as possibilidades po
19 Fahmy-Bey, pp. 57-67; E. Sullerot, La Presse feminine, 1966, pp. 19-20; também S. Voilquin,
Souvenirs d’une fille du people ou les saint-simoniennes en Egypte, 1966. Para urna bibliografìa, v.
Walch, p. 42.
20 Charléty, p. 212, nota 2; Parris, Lion, pp. 5-12,20-29, que se orienta por novas pesquisas, dá grande
importância à viagem de Garibaldi até Clorinda com os saint-simonianos. Vê a influência deles, de
um modo geral, como wa chave de compreensão para toda a vida e conduta dele* (p. 22), mas não
discute o conceito de messias mulher, que era à época a principal preocupação dos saint-simonianos.
21 Parris, p. 54 ss.
800 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
45 Waterman, p. 65.
46 Perkins, pp. 54-84.
47 De acordo com Perkins, p. 208. V. também pp. 127,175-176,193-194, sobre os principais elementos
de seus experimentos utópicos; e Waterman, pp. 94-97, sobre os panfletos desse período.
48 Perkins, pp. 248-254.
LIVRO 111, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 805
49 Ver suas palestras sobre “A Natureza e História da Civilização Humana”, discutidas em Waterman,
pp. 246-254; e England the Civilizer — Her History Developed in Its Principles, L, 1848.
50 Perkins, pp. 110, 372.
51 Perkins, p. 363; resoluções da conferência em O’Neill, pp. 108-111. Elizabeth Cady Stanton, à
qual, em razão de seu sexo, foi negado um assento na conferência anterior; tornou-se uma líder
radical da reunião seguinte. Sua “Declaração de Sentimentos” se baseou em parte na Declaração de
Independência; e o jornal que cofundou com Susan B. Anthony depois da Guerra Civil se chamou
Revolução. V. O’Neill, “Feminism as a Radical Ideology”, A. Young (ed.), em Dissent: explorations
in the history of American Radicalism, DeKalb, 1968, p. 279.
806 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
60 E. Dolléans, Féminisme et mouvement ouvrier: George Sand, 1951, p. 44. E. Thomas vê essa atitude
como uma justificação precursora do “‘realismo socialista’, que não é nem realista nem socialista,
mas descreve o homem modelar, o modo como se gostaria que ele fosse”. Sand, p. 59.
61 E. Thomas, The Women Incendiaries, L, 1967, p. 14. Thomas reconhece que deve haver alguma
verdade nas alegações, pp. 64-65.
62 Thomas enfatiza o papel de Elizabeth Dmitrieff, amiga e emissária de Marx e líder da união, que
era a seção feminina da Internacional francesa; e também o papel de Anna Korvin-Krukovskaya,
esposa do líder blanquista Victor Jaclard, no comitê (pp. 59-62, 74-76).
A atuação dessas duas mulheres (e de uma terceira e importante russa, E. Barteneva) é discutida
em maior detalhe por I. Knizhnik-Vetrov, Russkie deiatel’nitsy pervogo internatsionala i parizhskoi
kommuny, Moscou/Leningrado, 1964. V. também W. McClellan, Revolutionary exiles: the russians
in the First International and the Paris Commune, L, 1978.
63 E. Thomas, Louise Michel ou la velléda de l’anarchie, 1971, pp. 10, 447, e a epígrafe introdutória
de M. Barrés, Mês Cahiers, 1929, vol. vi, p. 91.
64 Thomas, Michel, p. 432.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 809
Michel era uma dessas líderes que não pertencia a nenhum partido,
“mas à Revolução como um todo”.65 Na virada do século, era talvez a
mais apaixonada e sincera inimiga do militarismo na Europa. Ao ter seu
visto negado pelos Estados Unidos e ao ser expulsa da Bélgica, a simples
sugestão de que ela deveria ir para o exterior desencadeou uma onda de
protestos e apelos ao Quai d’Orsay.66
Ela falava com brilho sobre questões que os revolucionários costumam
evitar. Depois de quase morrer no início de 1904, esboçou uma atitude
revolucionária para com a morte perante uma grande platéia em Paris.
Emprestou beleza ao ateísmo revolucionário, descrevendo a morte como
uma mera “anexação aos elementos”, uma irradiação de cheiros e cores
do corpo, um retorno à simplicidade de que ela se recordava na Nova
Caledonia depois de um tufão. As complexidades da linguagem humana
simplesmente desapareceríam; e uma simples canção “composta por um
niilista” preenchería o ar e permitiría que se descesse ao “buraco das som
bras [...] os braços tocando de novo os muros de um abismo”.67
Como se numa paródia da pureza dessa fé, as várias facções revolucio
nárias disputaram acerbamente pelo direito de carregar o seu corpo quando
ela morreu em Marselha no dia 9 de janeiro de 1905. Os anarquistas dispu
taram os seus restos mortais com Rochefort, o jornalista ex-revolucionário
que a tinha mantido financeiramente mesmo depois de sua virada para o
nacionalismo reacionário. O funeral dela foi a maior procissão popular da
França desde o enterro de Victor Hugo vinte anos antes.68 À medida que
se descendia seu corpo na sepultura, gritava-se “Vida longa à revolução
russa! Vida longa à anarquia!”.69 No mesmo dia do seu enterro, irrompera
a revolução russa de 1905. Era a revolução que ela predissera logo antes de
morrer,70 e ela foi liderada por um movimento no qual as mulheres tinham
papel mais central do que jamais tiveram na França.
As russas
O exemplo de George Sand ajudou a implantar na Rússia a consciência
revolucionária que preparou o caminho para 1905 e 1917. Os dois grandes
escritores que participaram dos círculos socialistas pioneiros da Rússia na
década de 1840, Dostoiévski e Saltykov, consideravam Sand um dos princi
pais fatores que concorreram para o despertar de sua consciência e uma das
supremas personalidades do século.71 Tivesse vivido além da morte prematura
em 1842 e Elena Hahn, romancista e uma das primeiras defensoras dos direi
tos das mulheres, poderia ter sido a George Sand russa.72 Não tivesse a rede
revolucionária de Konarski na Rússia ocidental sido destruída em 1839 e a
organizadora dos seus círculos especiais de mulheres, Ewa Felinska, poderia
ter sido a Flora Tristan russa.73 Não tivesse a Rússia de Nikolai i se tornado
repressiva nos seus últimos anos e a nação poderia ter absorvido o feminismo
revolucionário de Suzanne Voilquin e outras saint-simonianas que tinham
se mudado do Egito para a Rússia no fim da década de 1830, levando com
elas a vaga idéia de que Nefertiti e Cleopatra poderíam servir de modelos
para o novo feminismo.74 No fim dos anos 1840, a maior influência veio do
romance que Herzen escreveu à maneira de George Sand sobre uma menina
russa, uma filha ilegítima, na qual a causa da libertação feminina se ligava
à da libertação dos servos.75
Com o governo mais liberal de Alexander n, o papel das mulheres e a
questão feminina se tornaram de central importância para a tradição revolu
cionária russa. Os jovens se apropriaram do problema dos direitos femininos
em parte por causa da posição subordinada bastante incomum que coube
historicamente às mulheres na sociedade moscovita. Tratava-se também de
uma questão que afetava de modo direto e emocional os próprios estudantes
universitários, recém-libertos das constrições sociais e doutrinais de uma
escola secundária com perfil de seminário e ansiosos para romper com o
domínio matriarcal e a disciplina patriarcal da família tradicional russa. A
71 V. Saltykov, Za Rubezhom, em Izbrannye sochineniia, Moscou/Leningrado, 1940, p. 30; citações de
Dostoiévski em Thomas, Sand., pp. 126-127.
72 V. referências dadas em Billington, Icon, p. 739. Ela foi a mãe da futura teosofista Helena Blavatsky.
73 Polski Sloumik Biograficzny, 1968, vol. xiii/3, p. 478.
74 V. A. Abdel-Malek, Idéologie er renaissance nationale. L'Egypte moderne, 1969, pp. 306-314;
também “La fin du rêve”, em Fahmy-Bey, esp. pp. 205-208.
75 O esquecido romance Quem é o culpado? de Herzen, ainda sem tradução em inglês, é relacionado
ao “georgesandismo” por Malia, Herzen, cap. ix, e ao ainda incipiente movimento russo por R.
McNeal, “Women in the Russian Radical Movement”, em Journal of Social History, 1971-1972,
inverno, p. 147.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 811
76 Um antigo e esquecido admirador ocidental acreditava que Chernyshevsky sugerira uma nova
doutrina de “sexualismo” que pudesse levar a humanidade muito além do socialismo* da mesma
forma que este último tinha ido além do “individualismo masculino”. V. P. Bonnier, "Tchemychewski
et l’évolution sexuelle”, em Revue Socialiste, 1885, vol. U, pp. 734, 837; e, numa abordagem mais
geral, pp. 598-611,731-738,832-837; v. também Sagnol, "L’Égalité des sexes”, em Revue Socialiste,
1889, vol. ix, pp. 685-687; 1889, pp. 82-98.
77 Citando um arquimandrita de Irkutsk não identificado, em A. Shilov, introd, a M. Mikhailov, Zapiski
(1861-1862), Retrogrado, 1922, p. 3.
78 Zapiski, pp. 5-6. V. também R. Stites, “M. L. Mikhailov and the Emergence of the Woman Question
in Russia”, em Canadian Slavic Studies, 1969, verão, pp. 178-199; e The Woman's Liberation
Movement in Russia: Feminism, Nihilism, Bolshevism, 1860-1930, Princeton, 1977; também V.
Broido, Apostles into Terrorists. Women and the Revolutionary Movement in the Russia ofAlexander
II, NY, 1977.
Para urna biografia definitiva baseada em novos materiais, v. P. Fateev, Mikhail Mikhailov —
revoliutsioner, pisateï, publitsist, 1969. Para uma boa discussão de quatro outros livros menos
importantes sobre esse assunto tão abordado, v. R. Stites, “Wives, Sisters, Daughters and Workers:
A Review Article”, em Russian History, 1976, vol. m, pp. 2,237-244.
79 V. Billington, Mikhailovsky, p. 17, referências na nota 3; e citações de E. Kolosov em Mikhailovsky,
Polnoe sobranie sochinenii, São Petersburgo, 1913, vol. x, p. lxi.
812 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
São Petersburgo, foi o último e mais radical dos jornais feministas russos da
década de 1860, atraiu contribuições de escritores influentes com Lavrov e
do romancista Gleb Uspensky, o qual viria a ser uma figura dominante no
período populista.
Em 1869-1870, a Rússia seguiu o exemplo da Inglaterra, com um intervalo
de poucos meses, ao admitir pioneiramente mulheres em cursos avançados
de suas principais universidades.80 As estudantes vieram a ter grande impor
tância na agitação estudantil que se intensificou no início da década de 1870.
Em Zurique, grande centro de estudo para russos no exterior, 103 dos 153
estudantes universitários eram mulheres.81 Os novos grupos de mulheres
tinham tamanha relevância no nascente movimento revolucionário (do clube
de mulheres de prática oratória ao “grupo de Fritschi”, assim chamado em
razão da perplexa hospedeira suíça que recebia as moças),82 que o governo
russo, alarmado, ordenou em dezembro de 1873 que todas as estudantes em
Zurique retornassem à Rússia no fim do ano. A minoria masculina expres
sou sua solidariedade pelas estudantes também retornando; e as mulheres,
por sua vez, responderam participando tanto do movimento popular em
1874 quando da virada posterior para o terrorismo. Quase todo momento
dramático da década de 1870 produziu algum exemplo de mulher heróica.
Vera Zasulich, uma tipografa de São Petersburgo, inaugurou a campanha de
terror político atirando no chefe de polícia de São Petersburgo em janeiro de
1878. Quando se familiarizou com a oratória dos tribunais, deu um exemplo
modelar de como transformar o julgamento criminal de uma quase assassina
no julgamento político da pretendida vítima.
Os preparativos finais para o assassinato do Tzar Alexander li no dia Io
de março de 1881 foram supervisionados por uma frágil loira de vinte e seis
anos, Sophia Petrovskaia. Outra conspiradora, Gesya Helfman, provou-se
o maior interesse humano do julgamento (e ganhou o único adiamento da
forca ali obtido) quando se descobriu que estava grávida.
Um revolucionário observou que “as mulheres são mais cruéis do que
80 Cf. A. Yanovsky, “Zhenskoe obrazovanie”, em Borkgauz-Efron, Entsikopedichesky slovar, vol. xxn,
esp. pp. 869—871. A profundidade dos artigos sobre o assunto nessa enciclopédia russa do fim do
século XIX contrasta acentuadamente com a maior parte das enciclopédias ocidentais da época e
posteriores.
81 Em maio de 1873, J. Meijer, Knowledge and Revolution: The Russian Colony in Zurich (1870-1873),
Assen, 1955, p. 47. V. também A. Amfiteatrov, Zhenshchina v obshchestvenennykh dvizheniiakh
Rossii, Genebra, 1905; e sobre o início do século xx, Zhenshchiny russkoi revoliutsii, 1968.
82 Meijer, pp. 69-72. V. também A. Knight, “The Fritschi: A Study of Female Radicals in the Russian
Populist Movement”, em Canadian-American Slavic Studies, 1975, primavera, pp. 1-17.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 813
88 Termo de Panteleev citado em Vilenskaia, p. 145, que parece desconhecer o sentido sectário do
termo.
89 Tat’iana Lebedeva e Vera Zasulich (v. comentários em McNeal, “Women”, p. 149); a figura de
“Natasha” é discutida por N. Burenin, Liudi bol’shevistskogo podpol’ia, 1958, pp. 35-38. Sobre
o papel das mulheres como transportadoras de munição, v. P. Gusiatnikov, Revoliutsionnoe
studencheskoe dvizhenie v Rossii, 1971, p. 188.
90 McNeal, pp. 153-154.
91 21 das 43 sentenças. O terrorismo era quase sempre punido com essa sentença. McNeal, p. 155.
92 A. Knight, “Female Terrorists in the Russian Socialist Revolutionary Party”, em Russian Review,
1979, abr., p. 146, estima que pelo menos 25 do número total de 76 membros eram mulheres. Esse
importante artigo se baseia em um capítulo da tese de doutorado que o autor defendeu em 1977
na London School of Economics: “The Participation of Women in the Revolutionary Movement in
Russia: 1890-1914”.
93 Expressão de A. Kelly (“Revolutionary Women”, em New York Review of Books, 27 de julho de
1975, p. 22), empregada para caracterizar a especificidade, bem como a importância, do papel
desempenhado pelas russas. Maria Spiridonova, que Knight acredita (p. 150) representar “melhor
do que qualquer outra figura o tipo da terrorista russa”, definiu posteriormente a função do seu
Partido Socialista Revolucionário como a de “purificar a atmosfera moral” (Knight, p. 159).
94 Zenzinov, citado em Knight, p. 147.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 815
o busto.101 Depois que ela foi executada três dias mais tarde, começaram
a surgir novas Joanas D’Arc nas províncias, emprestando uma autoridade
moral estimulante à crença na revolução social naquele que foi o mais som
brio período da reação. Moças sinceras repetidas vezes enfrentaram velhos
juizes depois de seus ataques exclusivamente voltados contra homens. E
mesmo assim continuaram a fazer a batalha pelos corações e mentes tanto
de homens como de mulheres, não só através do testemunho que davam nos
tribunais, mas também ao caminharem alegremente para a morte “como se
vai a uma festividade de feriado”.102 Uma camponesinha terrorista mostrou
algo de característico das outras moças e de profético quando proclamou,
num tribunal de Kien em 1908, pouco antes de se matar, que “nossa morte,
como uma chama ardente, irá inflamar muitos corações”.103
As alemãs
Ao passar das mártires às líderes, passa-se de mulheres russas, em sua maioria
nobres que sob vários aspectos eram a encarnação da intelligentsia russa,104
às mulheres alemãs mais cerebrais que deram disciplina organizacional e
ideológica ao campo revolucionário através do movimento social-democrata.
Marx deu relativamente pouca atenção ao papel revolucionário das mu
lheres, para não falar da causa feminista.105 Ele previra o desaparecimento
da família autoritária antes de 1848 e rejeitara o intenso antifeminismo de
Proudhon. Mas ele próprio levava uma vida familiar vitoriana; e Engels falou
101 McNeal, p. 154; Knight, p. 154. Ambos esses tratamentos secundários grafam erroneamente o nome
dela. O último sugere que ela não detonou a dinamite por medo de machucar transeuntes inocentes;
mas não há nenhuma prova disso na única fonte primária existente, A. Friedberg, “E. Rogozinnikova
(vospominaniia)”, em Katorga i Ssylka, 1929, n° 1, pp. 154-177.
102 Descrição de Konopliannikova, citada em Knight, p. 150.
103 O discurso teve um impacto poderoso até sobre anarquistas de expressão russa nos Estados Unidos
quando foi publicado lá: Rech’ Matreny Prisiazhniuka v Kievskom voenno-okruzhnom sude 19-go
iiulia 1908 goda, NY, 1916; citado em Avrich, p. 66.
104 A análise de McNeal (pp. 150-151) da compilação mais abrangente de biografias de revolucionárias
russas pré-1905 (Deiateli revoliutsionnogo dvizheniia v Rossii: bio-bibliografichesky slovar’, 1927-
1933, a levar em conta, contudo, apenas as letras A até G) conclui que 60% das 317 mulheres (entre
as décadas de 1860 e 1880) vinham de grupos privilegiados (nobreza e comerciantes). Ele sugere que
essa porcentagem é provavelmente menor no caso dos homens. A análise de Knight (pp. 144-145)
das biografias de mulheres terroristas do Partido Socialista Revolucionário na década que vai de
1902 a 1911 mostra que a porcentagem de mulheres oriundas de classes abastadas diminuiu só
um pouco (e era manifestamente maior do que no caso dos homens) e que quase todas elas haviam
recebido educação refinada — 20 das 27 mulheres oficialmente identificadas como terroristas pelo
partido eram designadas como intelligentki.
105 V. A. Meyer, “Marxism and the Woman’s Movement”, D. Atkinson et al. (ed.), em Women in Russia,
Stanford, 1977, esp. pp. 90-101; também C. Guettel, Marxism and Feminism, Toronto, 1974.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 817
por ambos quando disse que o esforço dos comunistas alemães para emancipar
as mulheres durante a Revolução de 1848 havia produzido apenas “algumas
sabichonas, um pouco de histeria, uma boa porção de brigas familiares na
Alemanha — mas não produziu sequer um bastardo”.106
Embora as revolucionárias alemãs nunca tenham sequer chegado perto
da intensidade das russas (pelo menos não até as terroristas da década de
I960),107 elas com efeito foram pioneiras na fundação de associações de
mulheres108109e a primeira de uma série de organizações social-democratas
femininas em meados dos anos 1870. August Bebel, cofundador do partido
alemão, produziu sua obra teórica A mulher e o socialismo em 1879, cinco
anos antes do livro menos influente e mais teórico de Engels, A origem da
família.™9
O movimento alemão recebeu uma injeção de intensidade russa quando
seu mais destacado membro feminino, Clara Zetkin, visitou São Petersburgo
106 Citado sem autoria exata em Gustav Scheidtmann, Der Kommunismus und das Proletariat, Leipzig,
1848, p. 53; citado sem menção a Engels em Noyes, Organization, p. 46, nota 1.
Engels desprezou os esforços não-revolucionários de Louise Otto-Peters de melhorar as oportunidades
profissionais e educacionais para as mulheres; e social-democratas posteriores com freqüência
ecoaram essa atitude ao analisar seu “Discurso de uma Donzela” aos ministros da Saxônia, em
maio de 1848, e seu trabalho como editora do primeiro jornal de mulheres alemãs, Frauen-Zeitung
(1849-1852). V. Zetkin, Zur Geschichte, pp. 25,46-59, que expressava retroativamente a derradeira
insistência dela de que as organizações das social-democratas deveriam evitar todo contato com os
movimentos de mulheres burguesas (Cf. Meyer, “Movement”, p. 111).
Em paralelo aos esforços pioneiros de Peters, havia a organização feminina (mais esquecida ainda)
que se formou em Bruxelas em resposta à defesa do fourierista Considérant dos direitos das mulheres
durante a Revolução de 1848. Liderado por Desirée Veret Gay, viúva do primeiro discípulo francês
de Robert Owen e inimiga declarada do “socialismo autoritário” (cf. Dommanget, Considérant, p.
189; Zetkin, pp. 32-33; e a obra injustamente esquecida de Jules Gay, Le Socialisme rationnel et
le socialisme autoritaire, Genebra, 1868), esse grupo acabou por estabelecer laços com a Primeira
Internacional. Defensores pioneiros de centros diários de atenção infantil, Gay e seu marido viam
a igualdade de sexos como um grande contrapeso às tendências paternalistas e autoritárias que se
desenvolviam dentro do movimento socialista. O tratamento compassivo das crianças seria a principal
característica de uma nova moralidade; e eles criaram o primeiro jornal voltado expressamente
para as crianças. V. Gans, “Owen à Paris”, p. 45; e Desirée Gay, Education rationelle de la première
enfance: Manuel à l’usage des jeunes mères, 1868.
107 10 dos 16 principais membros do grupo terrorista Baader-Meinhof eram mulheres. V. M. Getier,
“Women Play Growing Role in Slayings by West German Terrorist Groups”, em Washington Post,
6 de agosto de 1977, p. A-15. As semelhanças desse grupo com uma seita religiosa medieval são
sugeridas por M. Lasky, “Ulrike Meinhof and the Baader-Meinhof Gang”, em Encounter, 1975, n°
6, pp. 9-23.
108 Uma associação de trabalhadores têxteis fundada em 1869, na Saxônia, foi “a primeira a tratar as
operárias e as viúvas de operários como iguais” e a organizá-las “contra a classe capitalista inimiga”,
de acordo com Zetkin, Zur Geschichte, pp. 7—8.
109 A extraordinária popularidade da obra de Bebel pode ser constatada pelo fato de que a sua tradução
para o inglês feita pelo marxista norte-americano Daniel de Leon se baseou na 33a edição: Woman
under Socialism, NY, 1904.
818 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Rosa Luxemburgo
Não há dúvida de que a maior revolucionária do início do século xx foi uma
amiga de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo. Ela acrescentou às componentes
russa e alemã a paixão da tradição revolucionária própria da sua Polônia
natal e a intensidade profética da sua ascendência judaica. Opôs-se tanto
ao elitismo bolchevique como à social-democracia reformista. Representou
por um breve momento, após o fim da Primeira Guerra Mundial, a visão de
uma revolução grande o suficiente para unir alemães e russos, para resolver
as questões polonesa, judaica e feminina de uma vez só e por todas. Com
sua morte em 1919, foi-se também a visão de uma revolução que fosse in
transigentemente internacional e democrática.
Nascida numa família de comerciantes na Polônia russa, Luxemburgo
se impressionou, então menina de quinze anos, com a agitação operária em
Varsóvia no inverno de 1885, muito antes de haver protestos comparáveis em
São Petersburgo. Associou-se por pouco tempo às maiores organizações de
socialistas revolucionários na Polônia, a “Proletariado” e a “Segundo Prole
tariado”, antes de fugir para Zurique em 1888.116 Nesse centro de emigração
para marxistas russos e poloneses, conheceu seu companheiro revolucionário
de toda a vida e futuro marido, Leo Jogiches (Tyszka), pouco antes de ele
também ter de fugir para o exterior em 1890. Ele tinha sido um líder revolu
cionário em Vilnius, onde mulheres judias desempenharam importante papel
vol. ni/2, esp. p. 175. O título advinha da única obra importante de feminismo revolucionário russo
anterior à revolução de 1905, Zhenshchina-Rabotnitsa, primeiro livro de Krupskaia, que o escreveu
na Sibéria, em 1899, e o publicou ilegalmente pelo Iskra na Suíça em 1900 (embora no livro conste
a data de 1901) e o republicou, com uma nota explicativa, em Moscou/Leningrado, 1926 (LC). V.
também J. Fréville, Inessa Armand: une grande figure de la dévolution Russe, 1957; B. Wolfe, “Lenin
and Inessa Armand”, em American Slavic and East European Review, 1963, mar., pp. 96-114; e
a publicação anterior de Kollontai através da Primeira Internacional: Rabotnitsa i krest'ianka v
Sovetskoi Rossii, Retrogrado, 1921.
114 L. Bryant, Mirrors of Moscow, NY, 1923, pp. 121-122; citado em Stites, “Zhenotdel”, p. 180.
115 G. Masseti, The Surrogate Proletariat, moslem women and revolutionary strategies in Soviet Central
Asia: 1919-1929, Princeton, 1974.
116 Acerca desses anos iniciais, é útil o trabalho de R. Evzerov e I. Yazhborovskaia, Roza Liuksemburg,
1974, p. 20 ss.
820 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
117 Sobre a importância fundamental de Anyuta Leibovich como a “alma” do Círculo de Jovens Judeus
em Vilnius (1885-1887) e sobre Liuba Axelrod (sem relação alguma com Pavel Axelrod) no novo
grupo de 1886, v. Levin, Messiah, pp. 228-229; e sobre o papel “lendário” Jogiches como um elo
com o mundo externo, cf. ibid., p. 233.
Novas pesquisas feitas por L. Gerson para uma biografia de Dzerzhinsky indicam que o primeiro
amor desse fundador polonês-russo da polícia secreta soviética foi Julia Goldman, judia irmã de
um dos fundadores do Bund. As mulheres judias continuaram a ter função desproporcionalmente
grande naqueles aspectos da atividade revolucionária que requeressem abnegação e risco. Quase
30% das terroristas do Partido Socialista Revolucionário eram judias, embora bem poucos homens
judeus estivessem envolvidos (Knight, p. 146).
Sobre a questão mais ampla do papel e da motivação dos judeus para tomar parte da tradição
revolucionária, v. R. Wistrich, Revolutionary Jews from Marx to Trotsky, L, 1976, que tende a
enfatizar o ódio a si próprio como motivo recorrente numa variedade de personagens examinadas,
além da abordagem mais equilibrada de L. Schapiro, “Jews in the Russian Revolutionary Movement”,
em Slavonic and East European Review, 1961, dez., pp. 148-167.
118 Evzerov, pp. 34-36.
119 Przeglad Socjaldemokratyczny, que seguia o modelo do Neue Zeit de Kautsky, era o jornal teórico;
Czerwony Sztandar (Bandeira Vermelha) era o jornal diário do partido — assim se aplicando à
Polônia a mesma divisão da imprensa partidária que Lênin havia instituído na Rússia. V. J. Netti,
Rosa Luxemburg, L, 1988, vol. i, pp. 251-295, esp. pp. 267-270. Esse valioso e fundamental estudo
pode ser complementado em alguns pontos por Badia, Rosa Luxemburg.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 821
A ênfase que ela dava à liderança “espontânea” das massas no processo re
volucionário a indispunha com Lênin. Foi uma das primeiras a criticar a ênfase
deste último no papel de vanguarda do partido como um “ultracentralismo”,
“o espírito estéril de vigia noturno”, a ditadura sobre as massas ao invés de
ditadura das massas.124 Via Lênin como culpado do mesmo “subjetivismo”
e “blanquismo” que haviam assombrado o populismo russo; e rejeitou com
firmeza a disposição de Lênin de dar um papel progressista aos movimentos
revolucionários nacionais na vindoura revolução social. No estudo inaca
bado que fez da Revolução Bolchevique (escrito enquanto estava na prisão
na Breslávia), ela insistia que as formas democráticas fossem aplicadas ime
diatamente sob a ditadura do proletariado. Censurava o emprego do terror
e a dissolução da Assembléia Constituinte pelos bolcheviques, traduzindo a
palavra democracia como “hegemonia do povo” (Volksherrschaft} no esforço
de encontrar um vocabulário adequado às suas idéias.125 Sua crítica ao terror
em 1918 era no fim das contas a mesma que havia feito ao elitismo em 1903:
que ele levava à atrofia de toda iniciativa espontânea e a um crescimento
do próprio governo burocrático que as revoluções deveríam suplantar.126 A
revolucionária mais reverenciada na Rússia, Vera Zasulich, que havia passado
do populismo ao marxismo, deu à crítica paralela ao elitismo de Lênin uma
aura especial de pureza desinteressada.127
Apesar de suas profundas diferenças e críticas mútuas, Luxemburgo se
pareceu muito com Lênin no modo como liderou uma oposição de esquerda
dentro do Partido Social-democrata do pré-guerra, no desenvolvimento de
uma visão global que proporcionava coragem externa e serenidade interna,
no elo que estabelecia entre capitalismo, por um lado, e imperialismo e guer
ra, por outro, e na crença de que a guerra nacional levaria inevitavelmente à
revolução social.
124 As críticas que ela fazia (listadas em Badia, p. 306 ss. e em Y. Bourdet, “Le Marxisme anti-autoritaire
de Rosa Luxemburg”, em Autogestion, 1977, out., p. 50) de fato tinham precedência na crítica de
Parvu ao “ultracentralismo” de Lênin (Badia, p. 327, nota 306).O texto clássico de Luxemburgo, “As
Questões Organizacionais da Social-democracia Russa”, foi publicado tanto no Iskra quanto no Die
Neue Zeit em julho de 1904 e está traduzido (com uma introdução de B. Wolfe) em R. Luxemburg,
“The Russian Revolution” and “Leninism or Marxism?”, Ann Arbor, 1961, pp. 81-108.
A profundidade da oposição dela ao autoritarismo leninista é minimizada por Badia, mas enfatizada
por Bourdet e particularmente por D. Guérin, Rosa Luxemburg et la spontanéité révolutionnaire, 1966.
125 Badia, pp. 354—355, nota 120.
126 Ibid., pp. 303-304.
127 Zasulich acusou Lênin em 1904 de substituir o conceito hierárquico de “organização” pelo conceito
massificado de “partido” e condenou, em 1918, pouco antes de morrer, o repúdio bolchevique à
democracia. V. J. Bergman, “The Political Thought of Vera Zasulich”, em Slavic Review, 1979, jun.,
pp. 243-258.
LIVRO in, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 823
128 Luxemburgo ensinou na escola partidária alemã a partir de 1907 e foi convidada por Bogdanov
e Gorki a ensinar na escola partidária russa em Capri, que tinha o propósito de formar “quadros
permanentes de diretores do partido” (J. Scherrer, “Les Écoles du parti de Capri et de Bologne: La
Formation de l’intelligentsia du parti”, em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1978, jul.-set.,
pp. 261,266). Parece provável que a tradição leninista tomou o conceito de “quadros do partido”
de Bogdanov (o qual os via como portadores de uma nova consciência coletiva e de um senso de
“habilidade organizacional”, organizovannost’, organizatsionnost*'. Scherrer, pp. 266-267), o qual
por sua vez o extraiu dos social-democratas alemães.
Entre o conceito de Bogdanov de uma “intelligentsia dos trabalhadores”, a enfatizar o caráter de
classe e a consciência proletária daqueles a serem treinados, e a ênfase de Lênin na “intelligentsia
partidária”, mais preocupada com a ortodoxia marxista dos intelectuais e a consciência destes da
luta de classes (as duas posições antípodas, como as formula Scherrer), Luxemburgo estava mais
próxima desta última opção. Badia sugere, em geral, que a relação entre Lênin e Luxemburgo era
antes a de “adversários privilegiados” do que de oponentes que discordam quanto aos princípios
(p. 325).
129 A primeira parte dessa brochura (publicada pela primeira vez em Zurique, 1916, como Die krise
der Sozialdemokratie) está traduzida em Writings of Luxemburg, pp. 322-335. Um conjunto mais
completo e representativo de textos está traduzido por Badia em Luxemburg, Textes, 1969, pp.
190-213.
824 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
133 Depois de participar da Oposição Operária, a carreira posterior dela foi em posições diplomáticas
no exterior, a começar pela embaixada da Noruega em 1923, tendo sido a primeira mulher a ser
acreditada num país estrangeiro. Sobre o seu utopismo prévio e erótico, v. “The Path of Eros with
Wings”, em Molodaia Gvardiia, 1923, n° 3; outros materiais em Billington, Icon, p. 766, nota 100;
B. Clements, Bolshevik feminist, the life ofAleksandra Kollontai, Bloomington, 1979; “Emancipation
through Communism: The Ideology of A. M. Kollontai”, em Slavic Review, 1973, jun., pp. 323-338;
e J. Stora-Sandor, Alexandra Kollontai, Marxisme et révolution sexuelle, 1973.
134 Para uma série de visões diferentes sobre esse assunto, cf. a conferência ocidental editada por D.
Brown, The Role and Status of Women in the Soviet Union, NY, 1968; e a conferência do bioco
oriental sintetizada por M. Pavlova, em Literatumaia gazeta, T7 de maio de 1970. Para uma discussão
simpática do movimento feminino na China desde a abolição dos “pés-de-lótus” durante a revolução
de 1911 até os últimos dias do governo de Mao, v. H. Snow, Women in Modern China, Haia, 1967
826 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
135 Badia, pp. 148-149, 597-598. A tentativa mais inspirada de fazer de Luxemburgo uma amiga
póstuma, senão uma advogada, do sistema soviético está no ataque de Clara Zetkin a Paul Levi:
Roza Liuksemburg i russkaia revoliutsiia, Moscou/Petrogrado, 1924.
136 Badia, pp. 796-797.
137 Já no seu último grande artigo sobre greve em massa (no Leipziger Volkszeitung, 26-28 de junho
de 1913), Rosa Luxemburgo observava que o proletariado alemão, apesar de sua organização
incomparável, era um caso quase único por nunca ter produzido uma greve em massa; e o chamado
dela à luta, “acabe em vitória ou em derrota”, deixa claro que acreditava neste último resultado. V.
Textes, pp. 160, 169.
LIVRO ni, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 827
138 “Se fosse preciso descrever em uma única palavra a atividade de Rosa Luxemburgo — nào apenas
sua profissão, mas sua vocação —, seria o caso de dizer que foi em primeiro lugar e acima de tudo
uma jornalista, e mais precisamente uma jornalista política”. Badia, p. 593, e a excelente seção
analítica, “La Journaliste”, pp. 593-643.
139 Luxemburgo, Briefe aus dem Gafängnes, 1920, pp. 17-18; e discussão dessa passagem de sua
correspondência publicada postumamente: Badia, esp. pp. 712-713.
140 Luxemburgo, Briefe, p. 18.
141 Citado de “A ordem reina em Berlim” {Die Rote Fahne, 14 de janeiro de 1919), presente em Howard,
p. 415. Suas palavras confundem versos de dois poemas revolucionários de um amigo de Marx, F.
Freiligrath.
828 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Uma vida tão apaixonada e uma morte tão trágica deixaram não só
uma lenda, mas também uma espécie de presença assustadora. Quando os
revolucionários sociais finalmente chegaram ao poder na Alemanha, não
com espontaneidade depois da Primeira Guerra, e sim através do exército
russo depois da Segunda Guerra Mundial, o regime stalinista na Alemanha
Oriental tentou em vão se mostrar uma expressão das esperanças de Rosa
Luxemburgo.142 Pouco antes de morrer, ela tinha escrito que a verdadeira
vitória está “não no início, mas no fim da revolução”.143 Cresceu a suspeita
de que a vitória — e a revolução dela — ainda estivesse talvez por vir.
Alguns viram uma defesa póstuma das posições dela na invocação de
seu nome no fim da década de 1960 e início da de 1970: por estudantes
radicais franceses e italianos, por terroristas alemãs ou por admiradores de
movimentos antiimperialistas no terceiro mundo e da revolução cultural de
Mao na China.144 Mas Rosa Luxemburgo era uma crente eurocèntrica na
liderança espontânea do proletariado industrial moderno. Talvez tenha en
contrado a sua mais autêntica reencarnação no proletariado de sua Polônia
natal. Somente lá sua memória foi profunda e continuamente honrada num
Partido Comunista dominado pelos soviéticos. Em dezembro de 1970, as
classes operárias polonesas se insurgiram numa greve em massa contra o
despotismo burocrático sem qualquer liderança política interna ou guiamento
por uma elite intelectual, uma ação que surpreendeu Ocidente e Oriente. A
greve produziu na Polônia a primeira mudança forçada de liderança política
na Europa por meio de ação proletária direta desde 1917.
A inesperada queda de Gomulka pareceu uma reabilitação poética de
Rosa Luxemburgo. A greve começou em Estetino, na área fronteiriça entre
os mundos polonês e alemão, onde ela havia passado boa parte da vida. Pôs
abaixo o homem que tinha acabado de expulsar quase o último dos judeus
142 Bertolt Brecht escreveu um poema sobre a morte dela em 1919, mas fracassou depois em seus dias
de maior conforto como dramaturgo oficial do regime alemão-oriental em ir além do prólogo de
sua projetada Vida e morte de Rosa Luxemburgo. V. Badia, pp. 798-800.
143 “O que quer a Liga Espartaquista?”, em Die rote Fahne, 14 de dezembro de 1918, citado em
Bourdet, p. 55. V. também Badia, Le Spartakisme: Les dernières annés de Karl Liebknecht et de
Rosa Luxemburg 1914-1919, 1967; e Les Spartakistes 1918: L’Allemagne en révolution, 1966.
144 De todas as tentativas gauchistes de se basear em Luxemburgo para desenvolver um programa político
para os partidos comunistas desburocratizados do fim da década de 1960, a mais séria foi a do
chefe do psiup na Itália, Lelio Basso. Além de uma importante edição das obras dela que organizou
{Scritti politici, 1967), v. de Basso “Socialismo e rivoluzione in Rosa Luxemburg”, em Problemi del
Socialismo, 1971, jan.-fev., pp. 40-63; e as atas da conferência que organizou em Reggio Emilia em
setembro de 1973 sobre “A Contribuição de Rosa Luxemburgo ao desenvolvimento do pensamento
marxista”.
LIVRO m, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 829
1 Em especial pelo entusiasmado H. Brailsford: Macedonia: its races and their Future, L, 1926.
2 Citado em Gaucher, p. 155. A discussão feita aqui se baseia em sua abordagem, pp. 155-173, e
também na abordagem mais detalhada e com um ponto de vista grego — que identifica a orim com a
Bulgaria — de D. Dakin, The greek struggle in Macedonia, 1897-1913,Tessalônica, 1954, p. 5, nota
1. As influências ideológicas russas que, por meio da Bulgária, chegaram à orim são enfatizadas por
V. Zuev, “Gotse Delchev — vydaiushchiisia deiatel’ makedonskogo osvoboditel’nogo dvizheniia”,
em Institut slavianovedeniia: kratkie soobshcheniia, 1954, n° 12.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 833
3 Gaucher, p. 155.
834 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
4 P. Gusiatnokov, “Studencheskoe dvizhenie v 1905 godu”, em Voprosy Istorii, 1955, n° 10, p. 75.
5 Esse confronto terrível, que durou vários dias atraiu grande atenção popular, é descrito em sua
totalidade em Rappeport, Institut., p. 284 ss. V. também A. Mil’shtein, Tekhnologichesky institut v
1905 godu, Leningrado, 1955.
6 Krzhizhanovsky, Sochineniia, 1933, vol. i, p. 61. Pôs em epígrafe a essa brochura fundamental
sobre a eletrificação da Rússia: “O século do motor a vapor foi o século da burguesia; o século da
eletricidade é o século do socialismo”. Krzhizhanovsky. Zhizn\ p. 22.
7 Lênin empregou essa formulação pela primeira vez no 8o Congresso dos Sovietes no Teatro Bolshoi
em Moscou no dia 2 de dezembro de 1920 (Krzhizhanovsky. Zhizn’, pp. 33-34). O principal rival
socialista revolucionário de Lênin e Trótski em 1917 depois se queixou das “cargas elétricas de força
de vontade” que esses líderes bolcheviques deram aos acontecimentos daquele ano: V. Chernov, The
Great Russian Revolution, New Haven, 1936, p. 445.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 835
8 I. Spector, The First Russian Revolution: its impact on Asia, Englewood Cliffs, 1962, pp. 40,44,50;
comentários de Iran, pp. 38-50; e material complementar em B. Aizin, “Mezhdunarodnoe znachenie
revoliutsii 1905-1907 godov v Rossii”, em Novaia i Noveishaia Istoriia, 1975, n° 6, pp. 21—41.
9 Spector, pp. 80-83. Pouco depois, os pioneiros estudantes revolucionários do Japão também imitaram
os russos, chamando seu jornal de Narod: H. Smith li, Japan’s First Student Radicals, Cambridge,
Massachusetts, 1972, p. 5, além de pp. 63, 74-75.
10 Spector pp. 105-109; também novos elementos em P. Sinha, The Indian National Liberation
Movement and Russia, 1905-1917, Nova Deli, 1975 (versão revista de uma tese defendida na
Universidade de Moscou).
11 Ramsaur, Young Turks, p. 127; C. Buxton, Turkey in Revolution, NY/L, 1909, p. 43 ss.
836 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA
nário chinês prévio a 1911, por exemplo, foi tão dependente de jornalistas
ideológicos emigrados (Sun-Yat Sem no Havaí e no Japão, grande parte da
futura liderança comunista na França) quanto antes fora o movimento rus
so.12 A mesma orientação dada por emigrados foi essencial para a Revolução
Vietnamita, com Ho Chi Minh a viver sucessivamente em Paris, Moscou e
Cantão. A interação esquerda-direita também é evidente no treinamento
soviético do filho e sucessor de Chiang Kai-shek, líder do regime naciona
lista em Taiwan; e no estranho modelo de transmissão de idéias terroristas
oriundas do Vietnã. Alguns terroristas franceses de direita, a Organisation
Armée Secrète (oAs), parecem ter aprendido suas técnicas enquanto eram
mantidos presos pelos terroristas de esquerda no Vietnã. A direita francesa,
por sua vez, proporcionou um ensino similar à esquerda argelina, o Front
de Libération Nationale (fln), cujos eficientes métodos terroristas homena
geavam a simbiose que ocorre quando les extrêmes se touchent.
Os revolucionários asiáticos ecoaram idéias européias no século xx, ao
passo que os revolucionários europeus tinham ocasionalmente ecoado idéias
asiáticas no século xix. O mais sofisticado teórico da insurreição nacional
entre os sempre proféticos poloneses foi ainda mais longe em sua busca por
modelos de inspiração: da resistência relativamente familiar dos espanhóis e
russos a Napoleão à resistência dos sérvios e albanos aos turcos, dos argelinos
aos franceses, dos povos caucasianos à Rússia — e do Afeganistão à Inglaterra
durante a guerra de 1832-1842. Quando as tropas russas acorriam àquela
terra montanhosa nos últimos dias da década de 1970, era coisa sinistra
1er um exilado polonês dos anos 1840 recomendar o estudo detalhado da
resistência afegã a um invasor imperialista do passado, “pois aí será possível
descobrir a fonte para a reconstrução da Polônia”.13
À medida que a África acompanhava a Ásia em seu despertar, um novo
teórico da violência revolucionária viajava, como fizera Ismail Urbain um
século antes, das índias Ocidentais para a França, e daí para a Argélia.
12 A. Kriegel, “Aux Origines Françaises du Communisme Chinois”, em Preuves, 1968, ago.-set., pp.
24-41.
13 Citação de Ludwik Bystrzonowski presente em Halic, 'Warfare, p. 144. A imensa variedade de suas
experiências na emigração (de ativo papel no movimento argelino de resistência a adido militar
turco em Paris) é descrita em Hallicz, pp. 120—155. Sua inédita “Mémoire sur Afghanistan” está no
Museu Czartoryski, Cracovia, ni, ms. 5555.
Ao firn do século, a ânsia desesperada por regeneração nacional levou os revolucionários poloneses
a glorificar distantes e dispersos movimentos de protesto (os irlandeses contra os britânicos) e
nacionalismos não-revolucionárias (os japoneses contra os russos). “Na época, estávamos enamorados
dos hindus, dos habitantes do Cáucaso, dos albanos, dos bascos [...]”, relembrou Ignacy Daszynski,
Pamietniki, 1957, vol. i, p. 23; Borejska, “Portrait”, p. 147.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 837
Frantz Fannon reverberou muitos dos temas dos primeiros apóstolos ítalo-
-poloneses da violência heróica. “Só a violência”, insistia, “torna possível às
massas a compreensão das verdades sociais”; ela seria “uma força de limpe
za” que “liberta o nativo do seu complexo de inferioridade e do desespero
da inação”.14 “Abater a tiros um europeu é matar dois coelhos com uma
cajadada só, é ao mesmo tempo destruir um opressor e um homem que é o
seu oposto”.15 Mas essa mensagem era menos original do que ele supunha.
0 seu estilo refletia mais a sua formação ocidental de psicólogo do que o
pensamento real do terceiro mundo. Talvez só na Cuba de Fidel Castro te
nha havido alguma resposta ao ato de Fanon de despertar a África para a
violência revolucionária; e essa resposta veio em dependência do benfeitor
imperial de Cuba, a União Soviética. Os próprios revolucionários cubanos
— desde Marti, com seus longos anos de jornalista revolucionário a editar
A Era de Ouro em Nova York, no fim do século xix,16 ao longo exílio de
Castro no México e nas brenhas — repetiram muitos dos temas da tradição
revolucionária nacional. Quando a revolução nacional cubana entrou em
conflito com o poder imperial da primeira nação a nascer de uma revolução
nacional, os Estados Unidos, ela atraiu considerável simpatia — porém mais
entre os bem-alimentados estudantes do Ocidente superdesenvolvido do que
no mundo faminto e subdesenvolvido. Para muitos intelectuais, a utopia tinha
novamente retornado a uma ilha tropical do Novo Mundo — justamente
onde os intelectuais da nascente Europa moderna a tinham imaginado.
14 F. Fanon, The wretched of the Earth * Middlesex, Inglaterra, 1970, pp. 74-118; D. Caute, Fanon, L,
p. 85. Caute indica mais Sartre e Merleau-Ponty do que Sorel como fonte das idéias de Fanon sobre
violência (pp. 92-94).
15 Fanon, Wretched, p. 19.
16 G. de Zendegni, “Marti in New York”, em Américans, 1973, jan., pp. 7-12. Seus jornais se destinavam
a outros países além de Cuba, e La Edad de Oro era endereçado às crianças, ainda não corrompidas
pelo preconceito social.
Este livro foi impresso pela Gráfica Santuário.
Os papéis usados para compor este livro
foram chambril avena 80g para o miolo,
e para a capa, cartão triplex 250g.
“A fé revolucionária foi construída
mais por inovadores ideológicos
do que por líderes políticos. [...] O
profissionalismo se iniciou mais tarde,
com um novo tipo de homem: um
intelectual sem experiência política,
mas que via na revolução um objeto
de fé e uma fonte de vocação, um
canal para a emoção sublimada e
para a ambição sublime. Se a religião
tradicional deve ser descrita como co
ópio do povo’, a nova fé revolucionária
bem pode ser chamada de a anfetamina
dos intelectuais”.
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