A Fé Revolucionária - James H. Billington

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JAMES H.

BILLINGTON
A FÉ REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA
JAMES H. BILLINGTON nasceu na
Pensilvânia em 1929, formou-se
pela Universidade de Princeton e
obteve seu doutorado pela Uni­
versidade de Oxford. Foi profes­
sor de história nas universidades
de Harvard e Princeton, e recebeu
numerosas honrarias internacio­
nais, incluindo mais de 40 dou­
torados honorários do mundo
inteiro. Nomeado pelo Presidente
Ronald Reagan, com aprovação
unânime do Senado, foi o 13° bi­
bliotecário do Congresso, perma­
necendo no cargo por 28 anos.
Levou o tesouro do conhecimento
da nação à era digital, colocando
milhões de livros, filmes e artefa­
tos culturais nos acervos histó­
ricos. Faleceu no dia 20 de no­
vembro de 2018, em Washington,
com 89 anos.
, JAMES H. BILLINGTON
A FE REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA

VIDE EDITORIAL
, JAMES H. BILLINGTON
A FE REVOLUCIONÁRIA
SUA ORIGEM E HISTÓRIA
Tradução de Ronald Robson
A fé revolucionária: sua origem e história
James H. Billington
Ia edição — março de 2020 — CED ET
Título original: Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith
Copyright © 1980 by James H. Billington

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET — Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Rua Armando Strazzacappa, 490
CEP: 13087-605 — Campinas, SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail: Iivros@cedet.com.br

Editor:
Thomaz Perroni

Assistente editorial:
Verônica van Wijk Rezende

Tradução:
Ronald Robson

Revisão:
Jonathas de Castro

Preparação de texto:
João Mallet

Dtagramação:
Virgínia Morais

Capa:
Vicente Pessoa

Conselho editorial:
Addice Godoy
César Kyn d’Àvila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÀFICA
Billington, James H.
A fé revolucionária: sua origem e história /
James H. Billington; tradução de Ronald Robson — Campinas, SP: Vide Editorial, 2020.
ISBN: 978-85-9507-110-0
Título original: Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith
1. Revoluções
I. Título II. Autor
CDD — 303.64
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Revoluções — 303.64

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou
forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão
expressa do editor.
SUMÁRIO

ABREVIAÇÕES.................................................................................................. 9

NOTA EXPLICATIVA......................................................................................... 11

AGRADECIMENTOS......................................................................................... 13

INTRODUÇÃO..................................................................................................... 15

LIVRO I
Fundamentos da fé revolucionária:
fim do século xvni e início do xix

CAPÍTULO 1 : Encarnação............................................................................... 37
A idéia de revolução...................................................................................... 37
O fato da revolução...................................................................................... 44
CAPÍTULO 2: Uma instância de legitimidade............................................ 49
Os cafés do Palais-Royal............................................................................... 51
Nicholas Bonneville e o jornalismo profético............................................. 62
Os campos de celebração.............................................................................. 81

CAPÍTULO 3: Os objetos de fé...................................................................... 97


Liberdade: o ideal republicano..................................................................... 98
Fraternidade: o surgimento do nacionalismo.............................................. 101
Igualdade: a visão da comunidade.............................................................. 125
CAPÍTULO 4: A estrutura das organizações revolucionárias e suas
origens ocultistas ............................................................................................... 153
Buonarroti: o primeiro apóstolo................................................................. 154
A paixão pitagòrica....................................................................................... 176
A fantasia dos filadelfos............................................................................... 189

LIVROU
O predomínio dos revolucionários nacionais:
meados do século xix

CAPÍTULO 5: Os conspiradores constitucionalistas (1815-1825)...... 223


A Fraternidade da Floresta........................................................................... 226
Ecos internacionais..................................................................................... 232
Reprise russa............................................................................................... 243
A diaspora mediterrânea............................................................................ 250
CAPÍTULO 6: Revolução nacional vs. revolução social (1830-1848). 253
O predomínio dos nacionalistas......................................................... 256
Os revolucionários sociais rivais................................................................ 300

CAPÍTULO 7: A alternativa evolucionária................................................. 329


Lafayette e os liberais perdidos................................................................... 329
Fazy e o triunfo suíço.................................................................................. 336
Sociedades sem revolucionários.................................................................. 346
CAPÍTULO 8: Profecia: o surgimento daintelligentsia........................... 353
Os saint-simonianos.................................................................................... 356
Os hegelianos............................................................................................... 379
O choque de “ismos” em 1848.................................................................. 394
CAPÍTULO 9: A igreja primitiva (a década de 1840)............................. 407
Credo: comunismo...................................................................................... 407
Ecclesia: um novo partido........................................................................... 441
CAPÍTULO 10: O cisma: Marx vs. Proudhon.......................................... 485
O embate entre os homens.......................................................................... 487
Questões permanentes................................................................................ 500
CAPÍTULO 11: Um meio de comunicação mágico: o jornalismo....... 515
O despertar francês..................................................................................... 52G
O jornalismo ideológico na Alemanha e na Rússia................................... 532
CAPÍTULO 12: A decadência do nacionalismo revolucionário............ 543
Os últimos heróis........................................................................................ 544
O jornalismo de massa................................................................................ 560
Napoleão m e o “imperialismo”................................................................. 569
A Comuna de Paris..................................................................................... 578
Marx vs. Bakunin583
O romance perdido..................................................................................... 593

LIVRO ni
A ascensão dos revolucionários sociais:
fim do século xix e início do século xx
CAPÍTULO 13: A máquina: a social-democracia alemã......................... 607
Origens lassalleanas.................................................................................... 613
Ortodoxia kautskiana................................................................................. 622
A luta contra o revisionismo...................................................................... 627
CAPÍTULO 14: A bomba: a violência russa............................................... 635
Os slogans da década de 1860................................................................... 639
As bandeiras dos anos 1870........................................................................ 660
O legado permanente.................................................................................. 672
CAPÍTULO 15: O sindicalismo revolucionário........................................ 689
A “Greve Geral”.......................................................................................... 692
A mutação fascista....................................................................................... 704
A fronteira ocidental.................................................................................... 712

CAPÍTULO 16: O caminho até o poder: Lênin........................................ 729


O Legado Alemão........................................................................................ 730
Raízes russas................................................................................................. 740
O Mestre de Obras...................................................................................... 759
A simbiose dos extremos.............................................................................. 772
CAPÍTULO 17: O papel das mulheres......................................................... 793
As francesas.................................................................................................. 795
As russas........................................................................................................ 810
As alemãs....................................................................................................... 816
Rosa Luxemburgo....................................................................................... 819
EPÍLOGO: Além da Europa............................................................................ 831
ABREVIAÇÕES

omo muitos dos livros impressos utilizados nas referências são ex­

C tremamente raros, identifiquei a localização atual de cópias suas por


meio das seguintes abreviações:
BA Bibliothèque de 1’Arsenal, Paris
BH Bibliothèque Historique de la Ville de Paris, Paris
BM British Museum, Londres
BN Bibliothèque Nationale, Paris
BO Bodleian Library, Oxford
CA Cambridge University Library, Cambridge, Inglaterra
CO Columbia University Library, Nova York
EU Emory University Library, Atlanta, Geòrgia
GL Goldsmith’s Library, University of London
HU Widener Library, Harvard University
IA International Institute of Social History, Amsterdã, Holanda
IF Istituto Giangiacomo Feltrinelli, Milão, Italia
LC Library of Congress
LL Lenin Library, Moscou, União SoviéticaNP New York Public Library,
Nova York
PU Firestone Library, Princeton University
YU Sterling Library, Yale University
NOTA EXPLICATIVA

local de publicação não será indicado para obras em francês pu­

O blicadas em Paris, obras em alemão publicadas em Berlim, obras


em russo publicadas em Moscou, obras em italiano publicadas em
Roma ou obras em polonês publicadas em Varsóvia. No caso das obras em
inglês, L = Londres e NY = Nova York.
O título completo de jornais será sempre fornecido, à exceção dos fre-
qüentemente citados Annales Historiques de la Révolution Française, que
será Annales Historiques; e dos Annali del’Istituto Giangiacomo Feltrinelli,
que será Annali. Para as Gesamtausgabe [Obras Completas] de Marx e En­
gels, Berlim, 1927 (e anos seguintes), utilizei a abreviação padrão, MEGA.
O nome de qualquer figura cuja importância seja substancial enquanto
agente no desenvolvimento da tradição revolucionária é registrado por inteiro;
o daqueles que são citados apenas como autoridades ou autores é registrado
com o primeiro nome abreviado.
AGRADECIMENTOS

não menos um dever que um prazer registrar meu débito para com

E as duas instituições que me ampararam durante a longa elaboração


deste trabalho. O Centro de Estudos Internacionais da Universidade
de Princeton e dois de seus diretores, Klaus Knorr e Cyril Black, deram o
apoio e encorajamento iniciais. As exigências administrativas ininterruptas do
Centro Internacional para Acadêmicos Woodrow Wilson, cuja direção assumi
a partir do outono de 1973, sob um certo aspecto atrasaram a conclusão
deste livro. Mas, em um sentido mais profundo, o Centro Wilson enriqueceu
enormemente esta atividade extra-expediente ao proporcionar contato con­
tínuo com um grupo internacional e diversificado de pesquisadores — e ao
me desafiar a fazer o que eu encorajava outros a fazer: concluir um trabalho
de pesquisa sobre alguma coisa que tivesse real importância.
Fui agraciado durante a elaboração deste trabalho com várias formas
de auxílio proporcionadas pela Universidade de Princeton (incluindo a
posição de pesquisador financiado pela McCosh Faculty Fellowship), pelo
International Research and Exchanges Board, pela Fundação Rockefeller
(inclusa a propriedade Villa Serbelloni) e pelo Aspen Institute of Humanistic
Studies, bem corno pela Maison des Sciences de 1’Homme e pela Ecole Pratique
des Hautes Études. Tenho especial dívida com as duas principais bibliotecas
que utilizei, a Firestone Library de Princeton, durante as primeiras etapas
de trabalho, e a Livraria do Congresso, nos últimos anos. Aos seus solícitos
funcionários — assim como aos das outras livrarias mencionadas na lista que
abre a seção de notas ao fim do livro —, os meus sinceros agradecimentos.
14 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

De algum modo, também acabaram contribuindo para esta obra minhas


atividades paralelas de articulista na revista Life^ no fim da década de 1960,
e de membro e presidente do Conselho de Bolsas Internacionais de Estudo
(programa Fullbright), na primeira metade dos anos 1970.
Dentre as muitas pessoas que me ajudaram na elaboração deste livro,
gostaria de referir especialmente Zdenek David, curador de livros eslavos
em Princeton e, à época, bibliotecário do Centro Wilson; Mernie Weathers,
incomparável assistente no Centro Wilson; e Midge Decter, uma editora ex­
traordinária. Gostaria também de agradecer àqueles que me proporcionaram
úteis indicações bibliográficas, comentários ou críticas nos estágios iniciais do
trabalho: Isaiah Berlin, John Talbott, Jerry Seigel, Fred Starr, Robert Tucker,
Jacques Godechot, Timur Timofeev, Armando Saitta, Sidney Hook, Rondo
Cameron, Leo Valiani, Albert Soboul, Eóin MacWhite, Alan Spitzer, Orest
Pelech, Peter Thon, Arthur Lehning e, especialmente, Robert Palmer, Andrzej
Walicki, e Joseph Strayer. A nenhuma dessas pessoas, é claro, se pode de
maneira alguma atribuir os meus métodos e interpretações.
Beneficiei-me, tanto na Universidade de Princeton quanto no Centro
Wilson, da operosidade de uma sucessão de pesquisadores assistentes, dos
quais devem ser especialmente mencionados Joe Coble, Tom Robertson,
Neil Hahl, Chris Brown, Wayne Lord e George Sevich. Também estou em
débito com datilógrafos de ambas as instituições, agradecendo em especial
a Virginia Kianka, Mary Leksa e Virginia Benson.
Durante a ocupação freqüentemente solitária de escrever um livro como
este, a família torna-se um auxílio de incalculável importância. Sou mui­
to agradecido não só à minha amada esposa, Marjorie, mas também aos
nossos filhos, Susan, Anne, Jim e Tom, os quais com bom humor, por mais
de uma década, tiveram de se haver com este trabalho ao longo de todas
as nossas viagens e em muito de nosso tempo livre juntos. A eles, os meus
mais profundos agradecimentos — assim como aos amigos que apoiaram
nossa família com seu constante estímulo. Desse último grupo, expresso meu
especial apreço e gratidão à família Cadles: a Inge, Caron e Don, aos quais
este livro é dedicado.
INTRODUÇÃO

ste livro tem por meta rastrear as origens de uma fé — talvez a fé de

E nossa época. Revolucionários modernos são crentes, cujo comprome­


timento e intensidade nada deixam a desejar a cristãos e muçulmanos
de épocas passadas. A novidade está na crença de que uma ordem secular
perfeita emergirá da derrubada violenta da autoridade tradicional. Essa idéia
inerentemente desarrazoada deu dinamismo à Europa no século xix e se
tornou o mais bem-sucedido produto ideológico de exportação do Ocidente
para o resto do mundo no século xx.
Esta é uma história não de como revoluções são feitas, mas de que são
feitos os revolucionários: os criativos forjadores de uma nova tradição. A
moldura histórica é aquele século e meio que vai dos estertores da Revolução
Francesa no fim do século xvni até os primórdios da Revolução Russa no
início do século xx. O teatro é a Europa da era industrial; o palco principal,
as redações de jornal das maiores cidades européias. O diálogo entre símbolos
imaginários e debates teóricos produziu considerável parcela da linguagem
política moderna.
No centro do palco está o típico revolucionário europeu do século xix:
um pensador entusiasmado por idéias, não um operário ou camponês de­
primido pela fadiga. Ele fazia parte de uma pequena elite, cuja história deve
ser contada “desde cima”, por mais que isso possa desagradar aqueles que
acreditam que a história em geral (e a história revolucionária em particular)
é basicamente feita mediante pressões socioeconômicas “vindas de baixo”. O
foco na “elite” não implica indiferença pela massa, pelo sofrimento humano
16 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

que perpassa toda a era dessa narrativa. Reflete apenas a necessidade espe­
cial de concentrar-se aqui mais na sede espiritual dos que pensam do que
na fome material dos que trabalham. Pois foram intelectuais apaixonados
que criaram e desenvolveram a fé revolucionária. Esta obra buscar explorar
concretamente a tradição dos revolucionários, não explicar abstratamente
o processo da revolução. Minha abordagem foi antes intuitiva que deduti­
va, antes perscrutadora que definitiva: uma tentativa mais de abrir que de
“encerrar” o assunto.
Minhas conclusões gerais podem ser enunciadas de maneira simples logo
no início — e, por assim dizer, de maneira mais abrupta do que aparecem
no texto que se segue.
A fé revolucionária foi moldada não tanto pelo racionalismo crítico
do Iluminismo francês (como em geral se pensa) quanto pelo ocultismo e
proto-romantismo da Alemanha. Essa fé foi incubada na França durante
o período revolucionário junto a uma pequena subcultura de literatos que
estavam imersos no jornalismo, em sociedades secretas e que logo depois se
deslumbraram com “ideologias” enquanto sucedâneos seculares da crença
religiosa.
Os revolucionários profissionais que primeiro apareceram durante a
Revolução Francesa estavam em busca principalmente de uma simplicidade
radical. Seus mais profundos conflitos giravam em torno das palavras sim­
ples do seu principal slogan: liberdade, igualdade e fraternidade. Liberdade
fora o grito de guerra de revoluções anteriores (na Holanda do século xvi,
na Inglaterra do século xvn, nos Estados Unidos do século xvm) que pro­
duziram estruturas políticas complexas para limitar a tirania (separação de
poderes, constituição de direitos, legitimação da federação). A princípio, a
Revolução Francesa também invocou idéias similares, mas os novos e mais
coletivistas ideais de fraternidade e igualdade emergiram para rivalizar com
o conceito mais antigo de liberdade. As palavras nacionalismo e comunismo
foram inventadas na década de 1790 para definir os ideais mais simples,
mais sublimes, aparentemente menos egoístas da fraternidade e da igualdade,
respectivamente. A luta básica que depois emergiria em meio aos revolucio­
nários mais empenhados foi entre os advogados da revolução nacional em
nome de um novo tipo de fraternidade e os advogados da revolução social
em nome de um novo tipo de igualdade.
O exemplo nacional francês e o ideal republicano dominaram a imagina­
ção revolucionária ao longo da primeira metade do século xix. Intelectuais
INTRODUÇÃO 17

francófonos exilados, de origem polonesa e italiana, elaboraram em grande


medida o conceito dominante de nacionalismo revolucionário — inventando
a maior parte das idéias modernas sobre enfrentamento de guerrilha e guerras
de libertação nacional, a expressar melhor o seu ideal essencialmente emocio­
nal por meio de histórias míticas, poesia vernácula e ópera melodramática.
Os revolucionários sociais rivais começaram a desafiar os nacionalistas
românticos depois das revoluções de 1830; e essa tradição socialista se tor­
nou cada vez mais dominante após a formação da Primeira Internacional em
1864 e a delegação da causa revolucionária, da França à liderança alemã e
russa. Revolucionários sociais expressavam melhor seu ideal essencialmente
racionalista em prosa panfletária e organizações prosaicas. Seu modelo se­
creto era antes a máquina impessoal e dinâmica da indústria fabril do que
a loja de ambiente personalizado, porém estático, da aristocracia maçônica.
Não menos fatal que o cisma entre revolucionários nacionais e revolucio­
nários sociais foi o conflito, no seio dos revolucionários sociais, entre Marx
e Proudhon, iniciado em 1840. O foco do primeiro na destruição do sistema
econômico capitalista entrou em confronto com a guerra do segundo contra
o estado centralizado, burocrático. Esse conflito prosseguiu entre os herdeiros
de Marx (principalmente na Alemanha e na Rússia) e os de Proudhon (junto
a anarquistas, populistas e sindicalistas latinos e eslavos).
A palavra intelligentsia e a sede por ideologia migraram, rumo ao leste,
da Polônia para a Rússia (e de uma causa nacional para uma causa social)
através dos estudantes radicais russos da década de 1860, os quais desen­
volveram um novo tipo de terrorismo ascético. Lênin se baseou tanto nessa
tradição russa de violência quanto nos conceitos alemães de organização
para criar o bolchevismo, que, por fim, guiou a tradição revolucionária do
deserto até o poder.
A fé revolucionária se desenvolveu na Europa oitocentista somente na­
quelas sociedades que não tinham antes ( 1 ) legitimado a idéia de divergência
ideológica por meio da ruptura com as formas medievais de autoridade reli­
giosa e (2) modificado o poder monárquico mediante a aceitação de alguma
forma de oposição política organizada. No norte da Europa e na América
do Norte, onde se depararam com essas condições as tradições protestantes
e parlamentares, a fé revolucionária quase não atraiu adeptos nativos. As­
sim, a tradição revolucionária pode ser vista como uma forma de oposição
politico-ideologica que assomou primeiro contra o catolicismo autoritário
(na França, na Itália e na Polônia) e depois contra autocracias fundamentadas
18 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

religiosamente (na Prússia luterana, na Rússia ortodoxa). Os revolucionários


sociais mais devotados e profissionais — de Maréchal a Blanqui, Marx, e de
Bakunin a Lênin — originaram-se nessas sociedades e tenderam a se tornar a
mais excepcional forma de crente convicto: o militante ateista. Eles e outros
revolucionários pioneiros eram intelectuais do sexo masculino, pertencentes
em sua maioria à classe média e com relativamente poucos laços familiares.
Movimentos revolucionários tendem a se tornar mais internacionalistas e
visionários sempre que mulheres desempenham papel de destaque; mais
provincianos e pragmáticos sempre que operários estão no comando.
Antes de tentar relatar o drama, os dogmas e as disputas dessa nascente
religião secular, é importante se debruçar sobre o mistério e a grandiosidade
da fé em si mesma.
O coração da fé revolucionária, como de qualquer outra fé, é feito de
fogo: materiais ordinários transfundidos em forma extraordinária, picos de
calor a alterar subitamente a qualidade da substância. Se não sabemos o que
o fogo é, sabemos o que faz. Ele queima. Ele destrói vida; mas também se
firma como fonte de calor, luz e — acima de tudo — fascinação. O homem,
que trabalha o fogo na condição de homo fabery também está condenado
em sua liberdade a brincar com ele na condição de homo ludens.
O capítulo em que nos localizamos na história se desenrola num momento
de transformação física da Europa que foi quase tão extraordinária quanto
deve ter sido a primeira descoberta do fogo nas brumas do mundo antigo.
A revolução industrial permitiu que os homens atrelassem fogo às máqui­
nas — e descarregassem poder de fogo uns nos outros — com uma força
jamais sonhada em épocas passadas. Em meio a esses fogos surgiu a chama
mais elusiva que Dostoiévski descreveu na mais penetrante obra de ficção já
escrita sobre o movimento revolucionário: Os demônios.
Ele descreveu uma cidade provinciana estagnada (tranqüila?) que foi
subitamente inspirada (infectada?) por novas idéias. Pouco depois de uma
noite literária turbulenta, irrompeu um misterioso incêndio; e o oficial da
localidade gritou em meio à confusão noturna: “O fogo está nas mentes dos
homens, não nos topos dos prédios”. Dostoiévski escrevia sob o impacto
de dois grandes incêndios que o perturbaram profundamente e auguraram
a transferência da liderança revolucionária da França para a Rússia. Esses
incêndios ocorreram na São Petersburgo imperial da primavera de 1861
(onde a emancipação dos servos pareceu ter antes inflamado que acalmado
INTRODUÇÃO 19

as paixões) e na Paris imperial dez anos depois (onde a derrota cintilante da


Comuna de Paris encerrou para sempre a era das ilusões românticas).
A chama da fé começara suas migrações um século antes, quando alguns
aristocratas europeus transferiram suas velas acesas de altares cristãos para
lojas maçônicas. A chama de alquimistas ocultistas, que prometera trans­
formar detritos em ouro, reapareceu no centro de novos “círculos” que
buscavam recriar uma era de ouro: iluministas bávaros conspirando contra
jesuítas, filadelfos franceses contra Napoleão, carbonários italianos contra
os Habsburgos.
Quando a mais importante conspiração anti-napoleônica foi ridiculari­
zada por tentar “usar como alavanca algo que não passa de um fósforo”,
seu líder respondeu: “Tendo-se um fósforo, não é necessário uma alavanca;
não se ergue o mundo, toca-se fogo nele”.1
O principal responsável por levar a conspiração até a Itália logo observou
que a “chama italiana” havia levado “o fogo da liberdade até a friíssima terra
de São Petersburgo”.2 Lá, a primeira revolução russa ocorreu em dezembro de
1825. Seu lema, “da faísca nasce a chama!”, foi criado pelo primeiro homem
a vaticinar uma revolução social igualitária no século xvm (Sylvain Maréchal)
e revitalizado pelo primeiro homem a realizar uma revolução como essa no
século XX (Lênin, que o utilizava como epígrafe de seu jornal, A Faísca).
Um modelo mítico recorrente para revolucionários — os primeiros
românticos, o jovem Marx, os russos da época de Lênin — era Prometeu,
que roubou o fogo aos deuses para dá-lo aos homens. A fé prometeica dos
revolucionários lembrava, sob muitos aspectos, a crença moderna comum
de que a ciência conduziría os homens para fora da escuridão e rumo à luz.
Mas havia a concepção mais específica, milenarista, de que, no novo dia que
estava a raiar, o sol jamais iria se pôr. Logo no começo do levante francês
nasceu o “mito solar da revolução”, a sugerir que o sol se levantava numa
nova era na qual a escuridão desaparecería para sempre. Essa imagem veio
a se alojar “num nível tal de consciência, que simultaneamente interpretava
algo de real e produzia uma nova realidade”.3A nova realidade que buscavam

1 General Claude-François Malet, citado em C. Nodier, Souvenirs et portraits de la révolution. 1841,


3a ed., p. 308. A metáfora rejeitada da organização revolucionária como uma alavanca arquimediana
capaz de erguer o mundo foi também bastante disseminada no início do século xix e mais tarde
adotada por Lênin.
2 Luigi Angeloni, citado em G. Beri, Rossiia i ital’ianskie gosudarstva v period risordzhimenta. 1959,
p. 432.
3 J. Starobinski, “Le mythe solaire de la révolution”, in “Sur quelques symboles de la révolution
20 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

era radicalmente secular e estridentemente simples. O ideal não era a comple­


xidade equilibrada da nova federação americana, mas a simplicidade oculta
de seu grande selo: um olho que tudo vê no topo de uma pirâmide sobre as
palavras Novus Ordo Seclorum. Em busca de verdades primais, naturais,
revolucionários voltaram-se para a antigüidade pré-cristã — adotando nomes
pagãos como “Anaxagoras” Chaumette e “Anacársis” Cloots, idealizando
sobretudo o semimítico Pitágoras como protótipo do intelectual tornado
revolucionário e a crença pitagorica nos números primos, nas formas geo­
métricas e nas altas harmonias da música. Muitos dos mesmos músicos de
Estrasburgo que tocaram pela primeira vez A Marselhesa em 1792 tinham
apresentado A flauta mágica de Mozart para platéias francesas na mesma
cidade poucos meses antes; e a mensagem iluminista de Mozart parecia ex­
plicar todo o sentido do jour de gloire [dia de glória] que o hino de Rouget
de Lisle proclamava:

Os raios do sol dissiparam a noite,


Os poderes das trevas deram lugar à luz.4

O sol nascente trouxe calor bem como luz, pois o fogo era geralmente
aceso não ao meio-dia com sol a pino sobre alguma tàbula rasa por algum
rei-filósofo, e sim por algum convidado desconhecido que chega à meia-noite
em meio aos excessos do banquete de Don Giovanni. “Comunismo”, o ró­
tulo que Lênin finalmente adotou, foi inventado não pelo grande Rousseau,
mas por um Rousseau du ruisseau (um Rousseau degradado): o transeunte
noturno, entregue a fetichismos na Paris pré-revolucionária, Restii de la
Bretonne. Então o rótulo revolucionário que hoje controla o destino de mais
de um bilhão de pessoas no mundo contemporâneo adveio da imaginação
erótica de um escritor excêntrico. Assim como outras palavras-chave da
tradição revolucionária, primeiro apareceu como rude ideograma de uma
língua ainda em elaboração: um sinal de trânsito apontando para o futuro.
Este estudo se empenha em identificar alguns desses sinais ao longo do
caminho que vai de Restii até Lênin. Segue faíscas através de fronteiras
nacionais, transportadas por pequenos grupos e indivíduos idiossincráticos
française”, La Nouvelle Revue Française, 1968, agosto, pp. 56-57.
4 “Dir Strahlen der Sonne vertraiben die Nacht, Zernichten der Heuchler erschlichene Macht”. Estas
últimas palavras de Die zauberflöte [Ä flauta mágica] são pronunciadas diante do Templo do Sol,
que — ao fim da era revolucionária — era representado por um sol circular dentro de um triângulo
gigantesco (v. J. Baltrusaitis, La Quête d'Isis. Introduction à l’Egyptomanie. 1967, p. 57), desse modo
ligando o mito solar a símbolos geométricos ocultistas que depois seriam de importância central
para os articuladores revolucionários profissionais.
INTRODUÇÃO 21

que criaram um legado incendiário de idéias. Diremos relativamente pouca


coisa tanto sobre os conhecidos antecedentes formais e organizacionais do
comunismo contemporâneo (as três Internacionais, o partido social-democrata
russo) quanto sobre as conflagrações revolucionárias do período tomadas em
si mesmas. Excluiremos inteiramente o período contemporâneo, no qual o
palco se moveu da Europa para o mundo e os revolucionários, do vaticinio
para o exercício do poder.
Teremos de repetidamente nos haver com a criatividade linguistica dos
revolucionários, que empregaram velhas palavras (democracia, nação, revo­
lução e liberal) com novos sentidos e criaram do zero novas palavras como
socialista e comunista. Seu envolvente novo vocabulário foi apropriado pelo
uso não-revolucionário — como na adoção de republicano e democrático
para designar partidos políticos adversários na América pós-revolucionária,
ou na cooptação de nação.* liberal e até radical na Europa de fins do século
XIX. Revolucionários também cunharam outros termos centrais utilizados por
teóricos sociais não-revolucionários em nosso século: cibernética^ intelligentsia.
Mesmo a especulação sobre “o ano 2000” teve início não com a futurologia
dos anos 1960, mas com uma peça de teatro escrita na década de 1780 pela
mesma figura que inventou a palavra “comunista”.5As origens de palavras
e símbolos revolucionários possuem mais que interesse antiquàrio; pois no
mundo contemporâneo, onde constituições e eleições livres estão desapare­
cendo quase tão rapidamente quanto os monarcas, a retórica revolucionária
provê a legitimação formal da maior parte da autoridade política.

5 Restii de la Bretonne, L’anée 2000, publicado como suplemento a Le thesmographe, ou idées d'un
honnête-homme sur un projet de règlement, proposé à toutes les nations de l'Europe, pour opérer
une reforme générale des loix: avec des notes historiques. Havre, 1789, pp. 515—556. O único estudo
recente importante sobre as idéias revolucionárias de Restii data a finalização dessa obra em 1788.
Foi republicada em 1790. V. A. Ioannisian, Kommunisticheskie idei v gody velikoi frantsuzskoi
revoliutsii. 1966, pp. 187, 211.
Uma segunda íantasia sobre o mesmo assunto íoi publicada por um comunista alemão para uso na
França no início dos anos 1840, Paris en Pan 2000, a qual descreve um historiador a dar aula naquele
ano na Catedral de Notre Dame para uma platéia incrédula sobre os horrores das eras passadas
de guerra e luta de classes. V. A. Saitta, Sinistra hegeliana e problema italiano negli scritti de A. L.
Mazzini. 1968, pp. 394, 402. Uma terceira íantasia utopica é a obra, que teve bem mais leitores,
de Edward Bellamy, Looking backward, 2000-1887, de 1888, acerca da qual se pode consultar S.
Bowman, The year 2000, Nova York, 1958. Veja-se também o ingresso soviético nesse campo: V.
Kosolapov, Mankind in the year 2000, Brooklyn Hights, Nova York, 1976; bem corno H. Kahn e
A. Wiener, Year two thousand, Nova York, 1967. M. Abensour se teiere a Paris en Pan 2000 (com
base em urn veterano da Comuna de Paris que íoi executado, o Dr. Tony Moilin, obra indisponível
na maior parte das bibliotecas) em “L’Histoire de l’utopie et le destin de sa critique”, Textures, 1973,
n. 6-7, p. 24, nota 2.
22 A FÊ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O trajeto do historiador até as origens freqüentemente leva, contudo, a


labirintos lúgubres; e requer uma disposição a acompanhar figuras centrais
em seus saltos de fantasia até épocas remotas e longas incursões por espa­
ços distantes.6 Revolucionários (nisso não menos que profetas da linhagem
judaico-cristã-muçulmana) buscam sua “transcendência” no tempo histórico.
Tendem a se tornar mais extremistas no presente quanto mais idealizam um
passado cada vez mais distante. Aqueles que glorificaram os druidas pré-
-cristãos tenderam a superar em fanatismo aqueles que se voltavam apenas
para os primeiros cristãos.7
Revolucionários também se empenharam numa busca geográfica por al­
gum lugar ideal onde o “transcendente” pudesse estar inteiramente presente.
Ativistas freqüentemente buscaram alguma pequena e circunscrita área na
qual a perfeição pudesse ser atingida. As primeiras utopias da imaginação
e os lares desconcertantes de muitos revolucionários de maior destaque no
século XIX eram ilhas. Em sua busca por um espaço sagrado, os primeiros
revolucionários elaboraram seus juízos mediante uma deificação da orienta­
ção espacial: “direita” versus “esquerda” ou “montanha” versus “planície”
na Assembléia Nacional Francesa, um “círculo” restrito dos mais devotados
dentro de uma “circunferência” mais ampla dos afiliados em suas organiza­
ções revolucionárias. O que Cloots chamou de “mapa-múndi da revolução”
foi explorado e pormenorizado por uma nova leva de artistas e escritores
politizados. Bandeiras e canções serviram de semáforo para a salvação. O
Terceiro Estado burguês celebrou no vestuário sua libertação do Segundo
Estado aristocrático ao despir-se de seus culotes e se tornar sans-cullottes
— isto só para vestir os apertados novos uniformes prescritos pelo estado-
-cidade revolucionário.
A fé revolucionária foi construída mais por inovadores ideológicos do que
por líderes políticos. Quem detinha poder durante a Revolução Francesa era
geralmente “uma figura improvisada [...] o produto de uma circunstância
6 A tendência de legitimar a ação revolucionária por meio de um passado imaginário é analisada
pelo marxista polonês Kazimierz Kelles-Krauz em seu “The law of revolutionary retrospection as a
consequence of economic materialism”, A teneum, 1987; discutido em L. Kolakowski, Main currents
of marxism, n, The Golden Age, Oxford, 1978, pp. 211-212. Mas um exemplo das dimensões
cósmicas de pensamento negligenciadas em um revolucionário obstinado e de central importância
é A. Blanqui, L’Eternité par les astres. Hypothèse astronomique, 1872. As especulações copiosas
posteriores de Blanqui nessa área têm sido pesquisadas por M. Abensour a partir de manuscritos
intocados presentes em BN.
7 Veja-se, por exemplo, a rica análise do papel radicalizador desempenhado pela evocação do paganismo
irlandês entre os apoiadores literários da revolução irlandesa: W. Thompson, The imagination of an
insurrection: Dublin, Easter 1916: A study of an ideological mouvement. Nova York, 1967.
INTRODUÇÃO 23

extraordinària [...] não um profissional da Revolução”.8 O profissionalis­


mo se iniciou mais tarde, com um novo tipo de homem: um intelectual sem
experiência política, mas que via na revolução um objeto de fé e uma fonte
de vocação, um canal para a emoção sublimada e para a ambição sublime.
Se a religião tradicional deve ser descrita como “o ópio do povo”, a nova
fé revolucionária bem pode ser chamada de a anfetamina dos intelectuais.
Mas essas caracterizações não são justas para com o crente nem úteis
ao historiador. As fontes dessa fé são profundas, e alimentaram homens e
mulheres no caminho para o cadafalso do carrasco e para a plataforma do
poder. Os jovens intelectuais que eram os profetas e sacerdotes dessa nova
religião secular estavam em grande medida pregando no deserto ao longo de
todo o século XIX, lutando contra grandes dificuldades em prol de revoluções
que eles viam adventícias mais com os olhos da fé. Não foi autocomiseração
que levou um dos mais militantes e originais dos primeiros revolucionários a
comparar sua vida nômade de exilado a um purgatório eterno de “sofrimento
sem fim nem esperança”: “Não tenho mais nenhum amigo [...] nem parentes,
nem antigos colegas [...] ninguém me escreve ou pensa ainda em mim [...]
Tornei-me um estrangeiro em meu próprio país, e sou um estrangeiro em
meio a estrangeiros. A própria terra se recusa a me receber”.9
Revolucionários eram geralmente animados em meio a essa solidão e
desespero — e protegidos do ridículo e da indiferença — por versões oito-
centistas secularizadas da velha crença judaico-cristã da ação providencial na
história. Num nível profundo e subconsciente, a fé revolucionária foi moldada
pela fé cristã que ela tentava substituir. A maioria dos revolucionários via a
história profeticamente como uma espécie de auto medieval em plena ence­
nação. O presente era o inferno, e a revolução um purgatório coletivo que
levava ao futuro paraíso terrestre. A Revolução Francesa era a encarnação
da esperança, mas foi traída pelos Judas que integravam a ala revolucionária
e crucificada pelo Pilatos que estava no poder. A futura revolução seria uma
espécie de Segunda Vinda na qual o justo seria vingado. A própria história
providenciaria o juízo final; e uma nova comunidade para além de todos os
reinos se materializaria na terra como jamais poderia fazê-lo no céu.

8 R. Cobb, “Quelques aspects de la mentalité révolutionaire”, Revue d’histoire moderne et


contemporaine, 1959, abr-jun, p. 119.
9 Carlo Bianco, carta de 8 de maio de 1837, citado em L. Carpi, Il Risorgimento italiano, Milão, 1886,
cap. in, p. 179.
24 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Uma manifestação clássica e contemporânea dessa crença está dada no


documento de fundação do movimento revolucionário de Fidel Castro, A
História Me Absolverá. Ele representou o seu próprio assalto aos quartéis de
Moncado como um tipo de Encarnação. A tortura e martírio subseqüente de
seus companheiros revolucionários eram a Paixão e Crucificação; e o julga­
mento de Castro por Batista era Cristo diante de Pilatos. Ao povo cubano era
prometida uma ressurreição em corpo, e aos seus apóstolos revolucionários
o poder de Pentecostes. A revolução vindoura cumpriría toda a Lei (as cinco
“leis revolucionárias” dos sitiantes de Moncado) e os Profetas (José Marti).10
Essa confiança total na salvação secular é especificamente moderna: criação
sublime da era de religião política propiciada pelas revoluções americana
e francesa.11 Levantes políticos anteriores — mesmo quando chamados de
revoluções — geralmente almejavam um novo líder e não uma nova ordem.
A norma era revolta e não revolução — fosse a “rebelião primitiva” de
“bandidos sociais”12 ou a “busca da salvação” [pursuit of the millenium}
por profetas religiosos interessados em passar da natureza para um estado
de graça.13 Nunca antes a palavra revolução fora relacionada com a criação
de uma ordem inteiramente nova e forjada pelo homem. Com a Revolução
Francesa, militante e secular, “inicia-se uma nova era, a dos inícios que não
têm retorno”.14
Particularmente depois da revolução ter se tornado terror em 1793 e
ter recuado em 1794, muitos se aperceberam de que o processo revolucio­
nário não traria automaticamente libertação e harmonia social. Uma nova
espécie de homem, o revolucionário profissional, surgiu durante a “reação
termidoriana” para manter o sonho vivo. Ele argumentava que a Revolução
Francesa estava incompleta e que a história precisava de uma segunda e úl­

10 History will absolve me, L, 1968, pp. 43—45, 77—78, 101—104. Fidel Castro se valeu do Inferno de
Dante para referenciar seu extenso relato das atrocidades de Batista (pp. 62-63).
11 V. R. Palmer, The Age of the Democratic Revolution, Princeton, 1959-1964,2 v.; J. Godechot, France
and the Atlantic Revolution of the Eighteenth Century, 1770-1799, Nova York, 1965; e também
deste ultimo a exposição mais completa e a bibliografia transnacional: Les Révolutions (1770-1799),
2a ed., 1965.
12 E. Hobsbawn, Social Bandits and Primitive Rebels. Nova York, 1959.
13 N. Cohn, The Pursuit of the Millennium, L, 1957, para o periodo medieval; e, para o mais importante
exemplo da Reforma, E. Bloch, Thomas Münzer als Theologe der Revolution, Munique, 1921;
disponível também em francês. G. Lewy, Religion and Revolution, Oxford, 1974, tem bibliografia
valiosa e estabelece a relação entre religião e revolução numa ampla gama de épocas e lugares.
Mas suas sugestões de similaridade e continuidade entre os primeiros movimentos religiosos e as
revoluções seculares modernas não são sustentadas por nenhuma análise séria destas últimas.
14 M. de Certeau, “La Revolution fondatrice, ou le risque d’exister”, Études, 1968, jun.-jul., p. 88.
INTRODUÇÃO 25

tima revolução e de um novo tipo de homem comprometido a trabalhar por


ela. A profissão de revolucionário em tempo integral iniciou-se não com os
políticos governantes, mas com os intelectuais ativistas da “Conspiração dos
Iguais” de Babeuf, os quais tinham algo em comum com os revolucionários
anteriores, “com exceção da mentalidade de polícia”.15
De todo modo, a tradição que se desenvolveu a partir do “povo de Babeuf”
não pode ser inteiramente divorciada da “mentalidade de polícia”. Pois
forças revolucionárias e contra-revolucionárias freqüentemente estabelecem
uma espécie de relação simbiotica. O escritor que profetizou pela primeira
vez uma nova sociedade revolucionária para a França ao fim da década de
176016 foi o mesmo que, no início da década de 1780, cunhou a profética
frase les extrêmes se touchent17 [“os extremos se tocam”]. Em diversos mo­
mentos teremos ocasião de verificar a interação e às vezes os empréstimos
inconscientes entre os extremos da direita e da esquerda.
Uma obra de história é, claro, um produto de seu próprio tempo como
também a descrição de outro tempo. Este estudo surgiu do ensino em pós-
graduação ao longo dos anos 1960, quando alguns intelectuais ocidentais
começaram a se considerar revolucionários. Suas vozes eram freqüentemente
estridentes e raramente cautelosas. A maioria das pessoas no Ocidente perma­
necia ligada ou às suas posses materiais ou à sua herança espiritual. Contudo,
dentro de universidades superdesenvolvidas, bem mais que em economias
subdesenvolvidas, com freqüência havia um fascínio — composto às vezes de
medo e/ou um prazer encoberto — pela reaparição de uma espécie política
que há muito se pensava perto da extinção.
No entanto, revolucionários, anti-revolucionários e diletantes pareciam
estranhamente carecer de perspectiva histórica. Ativistas pareciam ter pouco
interesse na robusta literatura acadêmica já acumulada em meados dos anos
1960; e a nova produção parecia extraordinariamente tacanha ou polemi­
camente preocupada com questões imediatas. Parecia também haver razões
ideológicas, culturais e até profissionais mais profundas para a permanente
ignorância histórica da tradição revolucionária.

15 Cobb, “Aspects”, p. 120.


16 Louis-Sébastien Mercier, L’an deux mille quatre cent quarante. Rêve s’il en fut jamais, 1768-1771,
reimpresso com uma importante introdução de R. Trousson, 1971. Assim como o seu amigo Restii,
o dramaturgo Mercier foi visto como um divulgador subversivo de Rousseau e apelidado le singe
[o macaco] de Jean-Jacques.
17 Título de um capítulo de Mercier, Tableau de Paris, 1782, cap. IV.
26 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Ideologicamente, a compreensão histórica foi turvada no pós-guerra pela


retórica política de superpotências. Os estados americano e soviético eram
cada um produto de uma revolução: os primeiros a proclamar, respectiva­
mente, uma nova ordem política e uma nova ordem social.18
A Revolução Americana de 1776 foi um protesto clássico em defesa de
liberdade política assegurada por um edifício constitucional. Mas a simpatia
americana pela mais elementar causa nacionalista alhures (incluindo no impé­
rio soviético) freqüentemente confundiu a capacidade dos líderes americanos
de distinguir revoluções que buscam liberdades limitadas e revoluções que
buscam as mais ilimitadas gratificações da fraternidade nacionalista.
A Revolução Russa de 1917 foi a clássica revolução por igualdade social.
Mas os líderes soviéticos adotaram também a linguagem dos revolucionários
liberais e nacionais — e esvaziaram todo o vocabulário revolucionário ao
utilizarem-no para racionalizar o despotismo imperial. Ao rejeitar o mar­
xismo como o progenitor do stalinismo, o Ocidente liberal mostrou-se, em
sua era tecnocràtica, quase igualmente hostil à alternativa antiautoritária e
proudhoniana ao marxismo, a qual é intestina à tradição revolucionária social.
Culturalmente, a compreensão histórica se tornou ainda mais difícil nos
Estados Unidos em razão do uso abusivo da palavra “revolucionário” em
uma sociedade em geral não-revolucionária. A palavra foi descaracterizada
não só por anunciantes ao divulgar as mais triviais inovações em matéria de
gosto e tecnologia, mas também por comentaristas sociais entusiasmados ao
defender que ocorria uma “revolução” na América conservadora no início dos
anos 1970. Os revolucionários foram identificados com hippies itinerantes,19
com os inovadores tecnológicos que estes rejeitavam20 e com os capitalistas
humanistas que provavelmente nada tinham em comum com aqueles dois
grupos.21 Foi só um pouco mais absurdo que um nômade excêntrico chamado
Rasputin caracterizasse como “revolucionária” a sua comunidade sexual e
religiosamente livre de jovens ricos — e que inventasse o verbo “revolucio­

18 Como quase toda generalização sobre revoluções, esta está sujeita a debate — uma vez que a revolta
holandesa contra a Espanha no século xvi criou uma nova república, e uma vez que a revolução
constitucional mexicana de 1917 proclamou objetivos tanto sociais como políticos. Mas nenhum
desses eventos teve o impacto ecumênico das mudanças nos Estados Unidos e na União Soviética.
19 “Vem por aí uma revolução. Não será como as revoluções do passado [...] a revolução de uma nova
geração”. C. Reich, The Greening of America. Nova York, 1970, p. 4.
20 J. Rével, Nz Marx ni Jésus; de la seconde révolution américaine à la seconde révolution mondiale,
1970, traduzido como Without Marx or Jesus. Nova York, 1971.
21 J. D. Rockefeller, The Second American Revolution, Nova York, 1973; e, a ser tornado à parte, J.
Beré, “The Second American Revolution”, Vital Speeches, 1978,15 de janeiro de 1978, pp. 208-211.
INTRODUÇÃO 27

nar”: “Deixem que façam o que quiserem [...] deixem-nos revolucionando.


Revolução, mudando constantemente, indo rumo ao que há de vir [...]”.22
Tudo isso precedeu o barulhento dilúvio de mensagens bicentenárias sobre
a importância permanente da Revolução Americana, interpretada de maneiras
diversas. No dia seguinte ao aniversário de duzentos anos da assinatura da
Declaração de Independência, o principal diário da capital americana noti­
ciou “a nova revolução americana”. Mas esse “novo maoismo americano”
para uma “era pós-copernicana” parecia não ser muito mais que as sobras
de confete intelectual da Era de Aquário.23
Essa confusão advém em parte da tendência geral moderna de atribuir “um
sentido mágico, necessário e único à palavra ‘revolução’”,24 numa época em
que “a palavra ‘revolução’ é sempre empregada com significado positivo”.25
Ainda que a palavra tivesse sido “esvaziada de todo o seu sentido pelo seu
uso reiterado”, disso não se segue necessariamente que vá “em breve deixar
de ser empregada comumente”.26
Profissionalmente, historiadores acadêmicos americanos podem ter
contribuído — irônica e involuntariamente — para a erosão da memória
histórica a respeito da tradição revolucionária. Ao devotarem uma energia
excessiva fosse à sua “relevância” política (nos anos 1960) ou ao seu “rigor”
metodológico (nos anos 1970), muitos negligenciaram sua obrigação per­
manente de imersão imparcial no legado do passado. Tanto historiadores
dedicados à cliometria quanto à reivindicação de direitos podem ter se
mostrado confiantes demais de possuírem no presente um método ou uma
mensagem para o futuro — e, como resultado, estamos mais propensos
a ver o passado como um instrumento a ser utilizado do que como um
registro a ser averiguado.

22 Citado em J. Johnson, “The Children of God”, Potomac, 12 de abril de 1975, p. 15.


23 T. Wertime, “The New American Revolution”, The Washington Post, 5 de julho de 1976, p. A23,
oculta sua reivindicação essencialmente proudhoniana das virtudes rurais e da descentralização
numa barafunda pop-hegeliana: “[...] os trabalhos de parto da Grande Mãe Americana foram
quase contínuos [...] Um tigre de mudança está sobre nós [...] nascido em algum lugar do útero da
fronteira americana [...]”.
24 R. de Felice, Interpretations of Fascism. Cambridge, Massachusetts, 1977, p. 191.
25 J. Monnerot, Sociologie de la révolution. 1969, p. 7.
26 Tal como sugerido por J. Pocock, Politics, Language and Time, Nova York, 1971, p. 3. J. Ellul
também se queixa longamente do uso do termo (Autopsy of Revolution, Nova York, 1971, p. 100
ss., p. 177 ss., p. 197 ss.), mas acaba por contribuir para a confusão com um título que sugere
que revoluções estão chegando ao fim, ao passo que o término do livro sugere que a sua própria
“revolução necessária” pode estar apenas começando.
28 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Na condição de historiador universitário durante os primeiros anos deste


estudo, meu “método” foi ignorar os debates com meus pares e dispender
meu tempo com velhos livros e novos alunos. A experiência me equipou com
um imprevisto senso de “relevância”. Eu era atingido, repetidamente, nas
profundezas das livrarias, por tudo aquilo que era considerado novidade nos
telhados do lado de fora.
Vim a conhecer figuras como Thomas (Ismael) Urbain, um muçulmano
negro dos anos 1830 desconhecido hoje em dia. Ele adotou o Islã e o nacio­
nalismo argeliano um século antes que o mesmo padrão fosse seguido por
outros revolucionários negros advindos das mesmas índias Ocidentais. Flora
Tristan, a fundadora franco-peruana da primeira organização internacional
proletária, prenunciou o feminismo radical de hoje em dia ao invadir a in­
teiramente masculina Casa dos Lordes londrina do fim da década de 1830
e retirar seu disfarce de homem turco a fim de encenar sua causa. A luta
entre velha e nova esquerda retomou muito do conflito Marx-Proudhon.
Até mesmo fatos marginais do esquerdismo, como os seqüestros ideológicos
de aviões, têm precedentes no seqüestro revolucionário de navios por Cario
Pisacane nos anos 1850.
O conceito de revolução em termos geracionais já tinha sido inteiramente
desenvolvido no livro Gerontocracia, de 1828, pelo futuro líder revolucionário
suíço, James Frazy. A Alemanha tinha produzido em data até mais recuada
o prototípico universitário contracultural “moderno”: vestuário devasso,
cabelos compridos, entorpecentes e languidez sexual. Dessa cultura nasceram
demandas violentas por uma “propaganda mediante atos” muito antes dos
terroristas contemporâneos. O teatro musical anti-tradicional do início do
século XIX inspirou revoluções reais de uma maneira que só festivais de rock
recentes declararam fazer.
Mas essas eram apenas descobertas laterais de antecedentes ao longo do
caminho que levava à construção de um relato das origens que pudesse lançar
alguma luz de nova pesquisa histórica sobre a obra substancial que já existe
sobre a tradição revolucionária moderna.27 Este estudo irá, espera-se, ampliar
a base de investigação na medida em que levantar questões controversas como
considerar Bonneville e Nodier, bem como Babeuf, entre os pais fundadores;
Dézamy e Barmby, bem como Marx, entre os comunistas pioneiros; meios

27 Excepcional enquanto discussão filosófico-política é H. Arendt, On Revolution, Nova York, 1963;


para um quadro geral das origens intelectuais do bolchevismo, cf. E. Wilson, To the Finland Station,
Nova York, 1940.
INTRODUÇÃO 29

de comunicação bem como meios de organização; e Radchenko assim como


Lênin entre os criadores do bolchevismo.
Este estudo aborda necessariamente só uma pequena parte de uma rica
história. Não apresentará os traços tradicionais nem da história política
totalizante nem de biografias individuais exaustivas. Mais ainda, os leito­
res devem ficar especialmente avisados de que não sigo nenhuma das três
abordagens usuais da tradição revolucionária: a hagiográfica, a sociológica
ou a psicológica.
Hagiografia é a justificação retroativa de uma revolução que está no poder:
o retrato dos precursores no passado tendo em vista os propósitos doutri­
nários do presente. Nessa abordagem, santos e pecadores, heróis e hereges
são criados e catalogados para apoiar os julgamentos políticos atuais da
sucessão revolucionária legitimada. Dessa tradição extremamente partidária,
é claro, nasceu a massa de produção historiográfica sobre revolucionários.
O historiador crítico pode achar aqui não só inestimável fonte material,
mas também vislumbres da análise histórica marxista, particularmente do
período anterior a Stálin, quando ainda era permitida uma relativa liberdade
de especulação na União Soviética.
Robusta obra da nova história soviética, O movimento operário inter­
nacional irá fornecer uma codificação oficial da ortodoxia pós-stalinista.
Os primeiros dois volumes cobrem o mesmo período que este livro, previ-
sivelmente destacando a ação de operários e das doutrinas de Marx. Mas
a nova periodização, a perspectiva internacional e a atribuição de seções
específicas a diferentes autores — tudo isso dá a esse livro um interesse
em grande medida faltante em versões anteriores do gênero hagiográfico.28
Uma bem diversa linhagem de santos e demônios é estabelecida na história
filosoficamente rica do marxismo escrita pelo brilhante revisionista e crítico
polonês Leszek Kolakowski.29

28 Mezhdunarodnoe rabochee dvizhenie, 1976-1978, 3v. O grupo editorial de 21 pessoas está sob
a direção do ideólogo veterano do Comitê Central, Boris Ponomarev: o primeiro volume trata
do “nascimento do proletariado e de sua formação como classe revolucionária”; o segundo, de
1871-1904; o terceiro, de 1905-1917.
29 Main Currents of Marxism. Its Rise, Growth and Dissolution, Oxford, 1978,3v. O primeiro volume,
The founders, trata das origens filosóficas do marxismo; o segundo (e na minha opinião, o melhor),
The Golden Age, trata do desenvolvimento diversificado do pensamento marxista no período da
Segunda Internacional (1889-1914); e o terceiro, The breakdown, trata do período stalinista e
posterior. Uma história de vários volumes do marxismo projetada pelo Partido Comunista Italiano
pode vir a se mostrar mais interessante que a maior parte das publicações oficiais, coletivas, já que
está programado que se incluam contribuições de não-comunistas e de dissidentes comunistas.
30 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A abordagem sociológica predomina entre os historiadores sociais do


Ocidente,30 assim como entre marxistas não hagiográficos.31 Que a tradição
revolucionária esteve intimamente relacionada com as forças do desenvolvi-

30 Para uma introdução crítica à imensa literatura sobre a natureza da revolução, v. I. Kramnick,
“Reflections on Revolution: Definition and Explanation in Recent Scholarship”, History and Theory,
1972, n° 1, pp. 26-63; vejam-se também as discussões de dois historiadores da revolução puritana:
L. Stone, “Theories of Revolution”, World Politics, 1966, jan., pp. 159-176; e P. Zagorin, “Theories
of Revolution in Contemporary Historiography”, Political Science Quarterly, 1973, mar., pp. 23-52;
bem como E. Hermassi, “Toward a Comparative Study of Revolutions”, Comparative studies in
society and history, 1976, abr., pp. 211-235; e M. Hagopian, The phenomenon of Revolution, Nova
York, 1975.
Cf. ainda P. Calvert, “The Study of Revolution: A Progress Report”, International Journal, 1973,
verão; S. Wolin, “The Politics of the Study of Revolution”, Comparative Politics, 1973, abr., pp.
343-358; e a discussão ignorada de teorias revolucionárias propostas pelos próprios revolucionários:
R. Larrson, Theories of Revolution. From Marx to the first russian Revolution, Kristianstad, 1970.
Para um exame da “natureza mutável do ‘ideal revolucionário’” durante os últimos 200 anos, cf. R.
Blackey e C. Paynton, Revolution and the Revolutionary Ideal, Cambridge, Massachusetts, 1976; e
também a antologia feita por eles, Why Revolution?, Cambridge, Massachusetts, 1971; e, de Blackey,
Modem revolutions and revolutionists. A bibliography, Santa Barbara, Oxford, 1976. Os métodos do
marxismo e da sociologia política moderna são combinados em uma análise histórica comparativa
de três revoluções modernas por T. Skocpol, States and social revolutions. A comparative analysis of
France, Russia, and China, Cambridge, 1979, com útil bibliografia às pp. 295-303, notas 7, 18, 20,
97, e pp. 380-390. Outras sínteses sociológicas não incluídas em Skocpol são: A. Decouflé, Sociologie
des révolutions, 1968; e W. Overholt, “An Organizational Conflict Theory of Revolution”, American
behavioral scientist, 1977, mar.-abr., pp. 493-552. A substanciosa literatura alemã é negligenciada
por Skocpol e quase todos os outros estudos mencionados aqui. Para um exemplo inteligente com
amplas referências, v. H. Wassmund, Revolutionstheorien, Munique, 1978. Para uma perspectiva
extra-européia, cf. K. Kumar, Revolution — the theory and practice of an european idea, L, 1971.
Uma discussão soviética recente (M. Barg, “Sravnitel’no-istoricheskoe izuchenie burzhuaznykh
revoliutsii xvi-xviii vv”, Voprosy Istorii, 1975, n° 9, pp. 69-88) propõe uma comparação passo a
passo das três maiores “revoluções burguesas” (as guerras dos componeses alemães do século xvi,
a Revolução Puritana no século xvn e a Revolução Francesa no século xvm) como um antídoto ao
mencionado caos da historiografia ocidental. Tanto a simplicidade polêmica desse estudo quanto
sua hostilidade doutrinai à abordagem sincronica estão em franco contraste com o melhor estudo
individual do processo revolucionário na Europa do início da modernidade: B. Porshnev, Frantsiia,
Angliiskaia Revoliutsiia i evropeiskaia politika v scredine xvii veka, 1970, que trata de toda a Europa
de 1630 a 1655. Outras importantes discussões do processo revolucionário durante o período anterior
à Revolução Francesa e o desenvolvimento da tradição revolucionária tal como descrito neste livro
são J. Elliott, “Revolution and Continuity in Early Modern Europe”, Past and present, 1969, fev.,
pp. 35-56; e P. Zagorin, “Prolegomena to the Comparative History of Revolution in Early Modern
Europe”, Comparative studies in society and history, 1976, abr., pp. 151-174.
Um amplo esforço soviético de reconciliar as pretensões marxistas de desenvolver uma teoria científica
da revolução com as exigências soviéticas de defesa das políticas em desenvolvimento de um estado
supostamente governado por essa ciência é realizado por M. Seleznev, SotsiaTnaia revoliutsiia, 1971,
útil sobretudo por seus relatos de discussões soviéticas internas dos anos 1960.
31 Um importante e subestimado “modelo sociológico do processo revolucionário” veio do breve período
tcheco de reforma e inclui gráficos comparativos das revoluções inglesa, francesa e tcheca (a última
circunscrita a 1414-1450). V. J. Krejèí, “Sociologickÿ model revoluõního procesu”, Sociologicky
casopis, 1968, n° 2, pp. 159-173. Uma tentativa recente de introduzir novas distinções nas categorias
marxistas tradicionais é J. Topolski, “Rewolucje w dziejach nowozytnych i najnowszych (xvn-xx
wiek)”, Kivartalnik historyczny, lxxxiii, 1976, pp. 251-67. Ele distingue (pp. 264-266) seis tipos
de revolução: pré-capitalista, proto-burguesa, burguesa, burguês-democrática, protoproletària e
socialista.
INTRODUÇÃO 31

mento industrial, do conflito social e da mudança social no mundo moderno


é coisa incontestável. Mas disso não se segue — como muitos historiadores
sociológicos afirmam ou pressupõem — que a tradição revolucionária seja
simplesmente produzida ou “causada” por esses processos. Essa explicação
pode ser tomada como uma hipótese ou afirmada como um ato de fé. Mas
dificilmente pode ser chamada de fato científico — e pode, a bem da verdade,
servir para racionalizar a restrição do espectro de pesquisa, o qual o método
experimental sem barreiras deve sempre procurar expandir.
Micro-historiadores da escola sociológica se tornaram mais e mais críticos
daquelas histórias vastas da era revolucionária que se centram na difusão
do poder francês até as elites locais.32 E evidente a necessidade de compre­
ender melhor as experiências regionais e sociais radicalmente diferentes de
um continente complexo — e, a esse respeito, compreender a diversidade
humana contida no termo francês “jacobino”.
Já que nosso assunto não é a política da era revolucionária, mas o nas­
cimento e difusão da tradição revolucionária, trata-se necessariamente da
história de umas poucas idéias e de algumas pessoas centrais. Muitas delas
foram negligenciadas ou esquecidas, de maneira que parece tarefa suficiente
ampliar o inventário e oferecer um quadro histórico para rastrear o desen­
volvimento dessa pequena, mas incalculavelmente importante, subcultura
da Europa oitocentista.
Aqui se fará o esforço de preservar uma espécie de agnosticismo quanto
às causas primeiras enquanto se dá atenção a alguns dados relativamente
negligenciados e se propõe algumas novas hipóteses. Naquelas partes em
que a história intelectual pode se aproximar da precisão científica, contudo,
este trabalho tentará traçar as origens de palavras, símbolos, idéias e formas
organizacionais de importância fundamental.
O método psicológico é atualmente muito bem aceito como um meio
de explicar dados sobre homens e idéias. Uma vez que revolucionários são
pessoas enérgicas em guerra contra as normas sociais aceitas, tornaram-se
assunto favorito desse tipo de análise — particularmente nos Estados Uni­
dos.33 Resta a suspeita, contudo, de que a análise freudiana, até mais que a
32 Essas queixas são feitas repetidamente por R. Cobb, por exemplo, em sua resenha de uma boa
história recente confinada a uma região específica (S. Schama, Patriots and Liberators. Revolution
in the Netherlands, 1780-1813, NY / L, 1977) no Times Literary Supplement, 29 de julho de 1977,
pp. 906-907.
33 A investida sistemática de E. Wolfenstein nessa área (The revolutionary personality: Lenin, Trotsky,
Ghandi, Princeton, 1967) mostra-se mais persuasiva no que diz respeito a Ghandi do que a
32 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

marxista, pode ela mesma ser uma espécie de técnica datada — às vezes mais
apropriada à época do historiador que à época histórica.
Além das reconhecidas dificuldades da psicanálise retroativa, é fato que
a maior parte dos primeiros revolucionários pareciam surpreendentemente
desprovidos de características pessoais extraordinárias. Um dos melhores
estudos sobre a faceta emocional dos revolucionários franceses observa que
“os futuros revolucionários eram quase todos eles dóceis pupilos de jesuí­
tas e oratorianos”.34 Como a maior parte das crianças francesas da época,
eram apegados às suas mães, ao seu torrão natal e à literatura apolitica de
sentimentalidade amena.
Os revolucionários da posterior época romântica só raramente eram
tão idiossincráticos e anti-sociais quanto os artistas e poetas, e eram menos
dedicados à violência do que em geral se pensa. As escolas de pensamento
que tiveram importância mais decisiva no desenvolvimento da tradição re­
volucionária viam-se a si mesmas como propiciadoras da racionalidade que
poria um fim à violência. Os iluministas politizados prometiam renovação
moral interior; os saint-simonianos revolucionários, uma ordem orgânica para
acabar com a perturbação revolucionária; os jovens hegelianos, a pacífica
conclusão das reformas prussianas.
O fato mais fascinante é que a maioria dos revolucionários buscava os
objetivos simples, quase banais, do homem secular moderno comum. O que
tinham de único eram sua energia e comprometimento em alcançá-los. Essa
fé e dedicação transformaram os revolucionários em desbravadores maiores
revolucionários de tipo mais tradicional. J. Seigel aperfeiçoa pesquisas anteriores (como a de A.
Künzli, Karl Marx. Eine psychographie, Viena, 1966) ao estender esse método a Marx: “Marx’s
Early Development: Vocation, Rebellion and Realism”, Journal of Interdisciplinary History, 1973,
Inverno, pp. 475-508; e, no contexto de sua carreira como um todo, Marx's fate. The shape of a
life, Princeton, 1978.
W. Blanchard, Rousseau and the Spirit of Revolt: A Psychological Study, Ann Harbour, 1967, é obra
de um psicólogo profissional que fala do “masoquismo moral” de Rousseau. B. Mazlish, um dos
melhores historiadores psicológicos, discute a secularização do ideal ascético da Revolução Francesa,
mas concentra sua atenção principalmente em Lênin e Mao em The revolutionary ascetic: evolution
of a political type, Nova York, 1975. Análise sociológica e análise psicológica são combinadas com
particular eficiência e aplicadas aos casos de Rousseau e Robespierre em F. Weinstein e G. Platt, The
wish to be free: society, psyche and value change, Berkeley / Los Angeles, 1969.
Ocupa lugar à parte o retrato dos revolucionários russos pioneiros como uma combinação de
ascetismo e teatralidade feito por Yu. Lotman, “Dekabrist v povsednevnoi zhizni (Bytovoe povedenie
kak istoriko-psikhologicheskaia kategoriia)”, in Literaturnoe nasledie dekabristov, Leningrado,
1975, pp. 25-74. Apesar de alguma opacidade terminológica, este artigo deixa entrever de maneira
promissora a perspicácia analítica que a notável escola soviética de semiótica poderia sem dúvida
trazer para assuntos contemporâneos, caso não estivesse restrita a escrever sobre tempos e lugares
distantes.
34 M. Trahard, La sensibilité révolutionnaire (1789-1794), 1936, p. 28, e também pp. 35-37.
INTRODUÇÃO 33

que a vida — e em figuras profundamente controversas. Os seus sucessos


representavam, para alguns, a humanidade que abandonava com suas asas o
casulo; para outros, uma malevolência que atacava a civilização em si mesma.
A maior parte dos comunistas e muitos líderes do Terceiro Mundo ainda
professam a crença na salvação por meio da revolução; outros temem que
essa crença ainda tenha o poder de imobilizar os intelectuais ocidentais
que desconhecem “a experiência de viver numa sociedade onde esse mito
foi elevado politicamente à condição de doutrina oficial”.35 Outros vêem a
dissolução dessa fé secular à medida que a “sociedade pós-industrial” vai
“além da ideologia” na direção de uma era “tecnocràtica”.36 Outros podem
sugerir que a crença na revolução foi apenas um fogo instantâneo na era da
energia — agora a se consumir na periferia, enquanto a metrópole ingressa
no crepúsculo da entropia.37
O presente autor tende a crer que pode estar próximo o fim da religião
política que viu na revolução a aurora de uma sociedade perfeita. Estou
ainda disposto a considerar se esse credo secular, que nasceu na cultura
judaico-cristã, pode, no fim das contas, revelar-se não apenas um estágio
na metamorfose contínua de velhas formas de fé38 e especular que a crença
na revolução secular, que legitimou tanto autoritarismo no século xx, pode
dialeticamente prefigurar alguma redescoberta da evolução religiosa que
revalide a democracia no século xxi.
Mas a história dos revolucionários no século xix vale a pena ser contada
em razão de si mesma — bem distante de quaisquer preocupações de hoje
ou especulações sobre o amanhã. Este registro heróico e inovador de revo­
lucionários desprovidos de poder é um capítulo impressionante da história
das aspirações humanas. Este estudo tentará fazer com que os mortos falem
por si mesmos sem descurar das preocupações permanentes dos vivos. E um

35 P. Berger, “The Socialist Myth”, The Public Interest, 1976, Verão, p. 15.
36 D. Bell, The end of ideology; or the Exhaustion of political ideas in the fifties, Glencoe, 1960; Z.
Brzezinski, Between two ages: America's role in the technetronic era, Nova York, 1970; and Bell,
The coming of the post-industrial society: a venture in social forecasting, Nova York, 1974.
37 Essa linha de pensamento tem origem, embora não seja por ele sugerida, em N. Georgescu-Roegen,
The entropy law and the economic process, Cambridge, Massachusetts, 1971.
38 V. o chamado a uma “segunda Reforma Protestante” pelos ex-patrocinadores da Comissão Bicentenal
do Povo de 1976, J. Rifkin e T. Howard, The emerging order: God in the Age of Scarcity, Nova
York, 1979.
Esses advogados da revolução social de outrora sugeriram que o cristianismo evangélico podería ser a
ponta de lança de uma revolução vindoura, isso no mesmo ano de 1979 que viu o Islã fundamentalista
dominar uma inesperada revolução no Irã e um papa relativamente tradicionalista reunir em vários
países massas populares muito maiores que aquelas comandadas por quaisquer líderes políticos.
34 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

trabalho de história humanista: o registro daquilo que um homem que não


é um revolucionário achou de interessante e importante sobre um punhado
de irmãos seus que o foram.
LIVRO I
Fundamentos da fé revolucionária:
firn do século xvm e início do xix

cidade é o calvàrio da revolução moderna. A tradição revolucionária,

A considerada no que tem de mais imediato, é uma narrativa de insurreição


urbana sucessivamente administrada por Paris e por São Petersburgo.
Paris derrubou a mais poderosa monarquia da cristandade em 1789-1792,
deflagrou novas ondas de revolução em 1830 e 1848 e forjou um novo mo­
delo de revolução social na Comuna de Paris de 1871. A essa altura, surgira
em São Petersburgo um novo tipo de revolucionário que convulsionaria o
maior império agrário do mundo com o terror no fim do século xix e com
a insurreição no início do xx. Três revoluções russas — em 1905, em março
de 1917 e em novembro de 1917 — tiraram a tradição revolucionária do
deserto e a puseram no poder.
Outras cidades também desempenharam papéis decisivos: Estrasburgo, por
onde as idéias alemãs penetraram na França e o ideal nacional-revolucionário
irrompeu em canção nos anos 1790; Lyon, onde a luta de classes fomentou, pela
primeira vez, a tradição social-revolucionária rival nos anos 1830; e Berlim,
onde Marx originalmente se radicalizou e onde uma revolução marxista falhou
em 1918-1919 — condenando a causa comunista ao confinamento na Rússia
pelos próximos trinta anos. A legitimidade não provinha da revolucionária
São Petersburgo, que tomaria do líder vitorioso o nome de “Leningrado”;
provinha do Kremlin medieval dentro da conservadora Moscou.
36 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Vista agora desde longe, a tradição revolucionária é a história de líderes


intelectuais, pertencentes a uma elite: uma estreitíssima linhagem de sucessão
apostólica de Buonarroti até Lênin. O primeiro foi o principal sobrevivente
e historiador da primeira organização de uma revolução social, secular: a
conspiração de Babeuf dos anos 1796-1797. Assim como São Pedro entre
os romanos, Filippo Buonarroti foi a pedra sobre a qual revoluções pos­
teriores foram construídas. À época de sua morte, em 1837, a liderança
social-revolucionária havia passado ao seu admirador, Louis Auguste Blanqui,
que deteve autoridade especial ao longo de toda a era do reinado parisiense.
A liderança passou de Paris para São Petersburgo por meio do colabo­
rador russo de Blanqui, Peter Tkachev; seus compatriotas assassinaram o
tsar russo em São Petersburgo em 1881, ano no qual Blanqui morreu em
Paris. Quando o irmão mais velho de Lênin foi enforcado seis anos depois
por conspirar para matar o próximo tsar, o jovem Lênin se tornou veículo
de reivindicações e de vingança.
O caminho de Lênin desde uma cela subterrânea até o pódio do poder teve
início num lugar específico de São Petersburgo: no salão de jantar, cruzado
por alunos para lá e para cá, e na biblioteca do Instituto Tecnológico de São
Petersburgo. A semente revolucionária primeiro estendeu raízes no início
dos anos 1890 nesse ponto, onde o jovem Lênin teve seu primeiro contato
com os principais clássicos marxistas e com operários industriais de verdade.
Dentro desse pequeno espaço de liberdade, estudantes sonhavam não apenas
com uma alternativa tecnologicamente pujante ao tsarismo, mas também se
valiam de seus talentos técnicos para formar a primeira organização russa
de marxistas revolucionários.
A estrada que levaria do Instituto Tecnológico até a Estação Finlândia
originou-se, contudo, em momento anterior e em outro lugar. A primeira área
verde que fertilizou a semente revolucionária ao transformar intelectuais em
revolucionários foi o Palais-Royal de fins dos anos 1780. Esse privilegiado
santuário parisiense da reformista Casa de Orléans serviu de incubadora
àqueles que tomaram o poder do palácio real de Versalhes em 1789 e das
Tulherias em 1792, muito antes que os leninistas ocupassem o Palácio de
Inverno em 1917. Daí que nossa história se inicie com os “anti-Versalhes”
no coração de Paris, palco da primeira revolução moderna. Ela nos leva a
Buonarroti, o anti-napoleônico que concebeu a primeira organização revo­
lucionária moderna.
CAPÍTULO 1
Encarnação

tradição revolucionária moderna se inicia tanto com palavras quanto

A com atos: profecia e encarnação. Primeiro houve o desenvolvimento


lento da idéia de revolução secular no início da Europa moderna.
Depois veio o fato de um tipo totalmente novo de insurreição na maior cidade
da mais poderosa potência européia.

A idéia de revolução

Muito antes da Segunda Vinda de 1917 — e mesmo antes da Encarna­


ção de 1789 —, homens cismavam acerca da natureza e sentido da palavra
revolução. O termo vem do substantivo latino revolutio, desconhecido no
latim clássico, mas utilizado no início da Idade Média por Santo Agostinho
e outros escritores cristãos.1 Traduzida para o italiano como rivoluzione no
começo do Renascimento e para o francês e o inglês como revolution [em
francês com acento: révolution], o termo a princípio designou o retorno de
um objeto móvel ao seu lugar de origem — particularmente o movimento de
corpos celestes ao redor da terra. Copernicanos o utilizaram cada vez mais
nos séculos xvi e xvil para descrever seu inquietante novo conceito de que
a Terra — em seu eixo e em sua órbita — girava ao redor do Sol. O erudito
francês Jacques Amyot sugeriu que na França do século xvi uma compre­

1 V. a exaustiva e inédita tese de doutorado de E Seidler, “Die Geschichte des Wortes Revolution. Ein
Beitrag zur Revolutionsforschung”, Munique, 1955, pp. 20-23 (LC).
38 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ensão desses maravilhosos movimentos na natureza era também necessária


para que um político alcançasse sucesso: “Il y a une certaine révolution et
préfixion de temps oultre lequel l’homme sage ne se doibt plus entremettre
des affaires de la chose politique” [Existe uma revolução e prefixação de
tempos para além das quais o homem sábio não deverá exercer a política].2
Mas mudança “revolucionária” ainda era usualmente vista como um
retorno a uma norma anterior temporariamente violada: uma revolução
de volta a uma ordem mais natural.3 Até os extremistas dos séculos xvn e
xviii que ajudaram a preparar as revoluções tendiam a pensar em restaurar
direitos e tradições de outrora. Idéias judaico-cristãs inspiraram o que muitos
consideram a primeira revolução moderna: a rebelião puritana na Inglater­
ra do século xvn; e idéias de não-conformismo religioso desempenharam
grande papel na preparação da revolução americana.4 Ideologias religiosas
fanáticas predominaram nas guerras civis do século xvi entre duas grandes
potências continentais, o Império Habsburgo e o Reino francês. Ambos os
lados desses conflitos foram recentemente saudados como revolucionários
pioneiros. A revolta holandesa contra a autoritária Espanha foi chamada
de primeira revolução moderna e “mais antiga expressão moderna de idéias
democráticas”.5 Comentários similares foram feitos a respeito de uma revolta
anterior na qual os papéis estavam invertidos, com os espanhóis urbanos
se rebelando contra a comitiva predominantemente holandesa de Carlos v.6

2 Citado em Seidler, p. 167.


3 V. V. Snow, “The Concept of Revolution in Seventeenth Century England”, The Historical Journal,
v. 5, 1962, n° 2, pp. 167-174; Seidler, pp. 108 ss., esp. p. 114.
4 V. M. Walzer, The revolution of the saints: a study in the origins of radical politics, Cambridge,
Massachusetts, 1965; B. Bailyn, The ideological origins of the american revolution, Cambridge,
Massachusetts, 1967.
Sobre a importância de idéias religiosas em particular para o fermento revolucionário americano,
v. A. Heimert, Religion and the american mind: from the Great Awakening to the Revolution,
Cambridge, Massachusetts, 1966; W. McLoughlin, “The American Revolution as a Religious Revival:
‘The Millennium in One Country’”, New England Quarterly, v. 40, 1967, pp. 99-110; e H. Stout,
“Religion, Communications and the Ideological Origins of the American Revolution”, William and
Mary Quarterly, 1977, out., pp. 519-541. O livro Anatomy of revolution, NY, 1938, de C. Brinton,
estabeleceu o padrão seguido por estudos comparativos posteriores segundo o qual a Revolução
Puritana foi a primeira das revoluções modernas. Uma análise anterior negligenciada vê a insurreição
inglesa como a primeira revolução “universal”: A. Onu, “Sotsiologicheskaia priroda revoliutsii”,
em Sbornik statei posviashchennykh Pavlu Nikolaevichu Miliukovu, Praga, 1929.
5 G. Griffiths, “Democratic Ideas in the Revolt of the Netherlands”, Achiv für Reformationsgeschichte,
1959, p. 50; e também seu “The Revolutionary Character of the Revolt of the Netherlands”,
Comparative Studies in Society and History, 1960, jul., pp. 452-472, o qual encontra, presentes
na Holanda de todo esse período, as principais características da revolução segundo a definição de
Brinton.
6 J. Maravall, Las comunidades de Castilla. Una primera revolución moderna, Madri, 1963, vê a
LIVRO I, CAPÍTULO 1: ENCARNAÇÃO 39

Um calvinista proeminente da França do século xvi foi “um dos primeiros


revolucionários modernos”,7 assim como foi sua bête noire,, a Liga Católica,
que instalou “o primeiro reino revolucionário do terror experimentado por
Paris”.89Esses católicos parisienses foram provavelmente os mais autênti­
cos precursores dos revolucionários modernos. Eles introduziram o termo
“Comitê de Segurança Pública”, o uso de barricadas e um programa que
era “verdadeiramente revolucionário no sentido de que dava corpo a anta-
• • * * 55 Q
gonismos sociais conscientes .
Mas esses meios revolucionários ainda serviam a fins reacionários. Práticas
políticas inovadoras continuavam a requerer ideologias agressivamente cristãs.
Os fundamentos para uma nova abordagem foram lançados pelo cansaço de
conflitos religiosos e pelo entusiasmo com o método científico que produziu
a “crise da consciência européia” no fim do século xvu.10 No subseqüente
Iluminismo do século xvm, um espírito crítico começou a ver a antigüidade
greco-romana como uma espécie de alternativa secular à cristandade.11
Grande parte do crescente volume de escritos políticos seculares na
época do Iluminismo trata do problema da revolução. Um trabalho italia­
no pioneiro de 1629 sobre causas e prevenção de revoluções identificou
reinos particularmente vulneráveis a processos revolucionários em razão
do mau comportamento de seus monarcas.12 Um tratado anti-hispânico,
As Revoluções em Nápoles, apareceu em 1647 às vésperas de uma insur­
reição napolitana liderada pelo pescador Masaniello contra os Habsbur-
gos.13 Este evento fomentou o já bem desenvolvido debate italiano sobre

revolução urbana espanhola de 1521 contra os Habsburgos como “uma das primeiras explosões”
de revolução tanto nacionalista quanto social (p. 65).
7 D. Kelley caracteriza desse modo o notável herói de seu François Hotman, A revolutionary ordeal.,
Princeton, 1973.
8 H. Koenigsberger, em New Cambridge Modem History, Cambridge, 1971, v. 3, p. 302; e também
seu “Early Modem Revolutions”, Journal of Modem History, 1974, mar., pp. 99-110.
9 J. Salmon, “The Paris Sixteen, 1584-1594; The Social Analysis of a Revolutionary Movement”, The
Journal of Modern History, 1972, dez., p. 540.
10 P. Hazard, La crise de la conscience européenne, 1680-1715, 1967, é a obra clássica sobre essas
mudanças revolucionárias.
11 P. Gay, The enlightenment: an interpretation. The rise of modem paganism, NY, 1966, esp. o L. I,
“The Appeal to Antiquity”.
12 Ottavio Sammarco, A treatise concerning revolutions in kingdoms, L, 1731, esp. pp. 51-52. A edição
italiana original foi publicada em Turim em 1629. Para compreensão do cenário no qual ocorreu a
revolta de Masaniello, ver R. Villari, La rivolta antispagnola a Napoli: le origini (1585-1647), Bari, 1967.
13 Le rivoluzioni di Napoli. Descritte dal signor Alessandro Giraffi, Veneza, 1647, com muitas edições
subseqüentes.
40 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

revolução política.14 Polemistas ingleses durante a Revolução Puritana se


alimentaram de escritos italianos. Um trabalhador inglês na insurreição de
Nápoles cunhou a metáfora revolucionária clássica do “fogo” que nasce
de uma pequena “faísca”.15
O poeta Robert Heath parece ter sido o primeiro a associar revolução polí­
tica com mudança social,16 ao falar de uma “estranha Vertigem ou Delírio no
Cérebro” a arrastar a Inglaterra para uma revolução que ia além da política:

Não deve o Estado apenas nas Rodas da Fortuna


Apoiar-se, Ai, nossa Sólida Religião cambaleia.

Ele então sugere que a esperança do céu na terra deve substituir a espe­
rança do céu lá no alto:

Em meio a estas mudanças, já reconforta


Que o céu não fuja de nós, e sim nós dele.

E por fim vem a fantasia em sua forma acabada:

Nada menos que belos Mundos Utópicos na Lua


Deverão ser criados pela Revolução.17

O interesse pela revolta que restaurou a monarquia moderada na Ingla­


terra em 1688 levou a uma proliferação de estudos históricos anônimos
nos quais o termo “revolução gloriosa” foi introduzido no continente.18 No

14 A revolta de Masaniello também inspiraria revolucionários do século xix por meio de influentes
recriações literárias e operísticas. Ver M. Lasky, “The Novelty of Revolution”, Encounter, 1971,
nov., pp. 37-39, esp. nota 24.
15 James Howell, Pathernopoeia, or The history of the most noble and renowned kingdom of Naples,
1654, discutido em Lasky, “The Birth of a Metaphor: On the Origins of Utopia and Revolution”,
Encounter, 1970, mar., p. 32. Para maiores detalhes, ver Lasky, Utopia and Revolution, Chicago,
1976; para urn magistral levantamento de 2.500 anos de pensamento utópico feito com a preocupação
de que “o espírito criativo utópico” possa ser “suplantado pelo rugir de sociedades existentes que
se autoproclamaram ideais”, ou de que possa ser barrado pela “algaravia de efeitos especiais” da
televisão e pela prática da “pseudociência da predição”, ver F. Manuel, Utopian Thought in the
Western World, Cambridge, Massachusetts, 1979, e a resenha feita por R. Nisbet, The New Republic,
10 de novembro de 1979, pp. 30-34.
16 De acordo com Lasky, “Birth”, Encounter, 1970, fev., p. 35. A discussão de Lasky complementa os
materiais citados aqui com copiosos exemplos ingleses e debates espanhóis do fim do século xvi
sobre as possibilidades da revolução na Inglaterra.
17 Ibid., p. 36.
18 Um conjunto de publicações parisienses, de Révolutions d’Anglaterre (1670) a Histoire de la
révolution dTrlande (1692), além de sete panfletos ingleses com “revolução” em seu título datados
de 1689 a 1693, estão disponíveis em BO. K. Griewank {Der neuzeitliche Revolutionsbegriff.
Entstehung und Entwincklung, Weimar, 1955, pp. 182-189) identifica Histoires des révolutions sobre
praticamente qualquer país do passado ou do presente publicadas ao firn do século xvii e início do
LIVRO I, CAPÍTULO 1 : ENCARNAÇÃO 41

Novo Mundo como no Velho, revolução se tornou pela primeira vez um


ideal político positivo.
O mais dinâmico dos “déspotas esclarecidos”, Frederico, o Grande, via
as revoluções como parte do destino das nações, particularmente das novas.
Em 1751, ele escreveu que “fragilidade e instabilidade são inseparáveis das
obras humanas; as revoluções que monarquias e repúblicas experimentam
acham suas causas nas leis imutáveis da Natureza”.19
Frederico usou geralmente a palavra “revolução” no sentido antigo de
retorno ao que as nações eram antes. Mas com ele também se iniciou o
costume entre pensadores alemães de aplicar a palavra a mudanças tanto
políticas quanto espirituais. Ele disse da Reforma Luterana: “Uma revolução
tão grande e tão única, que alterou quase todo o Sistema Europeu, merece
ser examinada com olhar filosófico”.20
Alemães posteriores, como Hegel e Marx, viriam, claro, a usar precisa-
mente esse “olhar filosófico” para ver as reformas libertadoras de Lutero
e de Frederico como antecedentes da tradição revolucionária moderna de
orientação ideológica.
O interesse de Frederico, o Grande pela revolução como um evento espiri­
tual e político influenciou sutilmente os alemães da época. Ele criou na Prússia

XVIII; e havia muitos outros títulos, como o de R. Vertot, Histoire des révolutions arrivées dans le
gouvernement de la République romaine, 1719, 3v., que foi traduzido para o polonês (J. Sapieha,
Varsóvia, 1736) e recebeu muitas outras edições.
A palavra apareceu como título de uma peça (Catharine Cockburn, The revolution in Sweden, L,
1706), corno pseudònimo de um panfletário (William Revolution, The real crisis or, the necessity
of giving immediate and powerful succour to the Emperor against France and her present allies,
L, 1735) e como um adjetivo para descrever um novo tipo de política: Revolution politicks: being
a compleat collection of all the reports, lyes and stories wich were the fore-runners of the great
revolution in 1688, L, 1733. (V. a esse respeito H. Horwitz, Revolution politicks: The career of
Daniel Finch, Second Earl of Nottingham, 1674-1730, Cambridge, 1968).
A colonização inglesa foi mencionada como “nossa última e fortunada Revolução” e como “gloriosa”:
The Revolution and Anti-Revolution Principles Stated and Compar'd, the Constitution Explained
and Vindicated, and the Justice and Necessity of Excluding the Pretender maintain'd, etc., L, 1724,
2a ed., p. 5 (LC).
Um extenso atlas mundial de 1763, que retratava todas as mudanças políticas da humanidade de
Noè até Luís xv (com exceção das “révolutions intérieures” [revoluções interiores]), recebeu por
título Les révolutions de l'univers, 1763 (CA).
O jesuíta Pierre-Joseph Dorléans foi o primeiro a tratar da história das revoluções como único objeto
de sua Histoire des révolutions d'Anglaterre depuis le commencement de la monarchie, 1693, 3 v.,
que descreveu 1688 como “la révolution qui met encore l’Europe en feu” [a revolução que ainda
arrasta a Europa em chamas]. Ver K. H. Bender, Die Entstehung des politischen Revolutionsbegriffes
in Frankreich zwischen Mittalter und Aufklärung, Munique, 1977, p. 40 (nota 1), 132. Para urna
bibliografia e lista cronològica de histórias de revoluções nos séculos xvi e xviii, cf. pp. 184-201.
19 Frederico, o Grande, Oeuvres, v. 2, p. 325, citado em Seidler, p. 91, nota b.
20 Oeuvres, v. 2, p. 325, em Seidler, p. 236, nota a.
42 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRI A

uma consciência das novas possibilidades prometeicas. Sua impaciência com a


tradição nos negócios de estado foi ecoada na república das letras pelos poetas
rebeldes do Sturm und Drang. Iluministas bávaros radicais reivindicavam no
início da década de 1780 que essas reformas secularizantes fossem levadas
ainda mais longe através de uma “revolução iminente da mente humana”.21
Os seus oponentes, por sua vez, já viam em um tal programa, em 1786, a
ameaça de uma “iminente revolução universal”.22
Daí que a Alemanha — e não a França — tenha dado à luz a difundida
idéia moderna da revolução como uma revolta secular mais universal em
alcance e mais transformadora em seus objetivos do que qualquer mudança
puramente política. Esse conceito foi transportado até Paris pelo Conde
Mirabeau, um ex-embaixador francês em Berlim; isso o ajudou a se tornar
um dos principais personagens nos primeiros acontecimentos da Revolução
Francesa em 1789. Seu estudo de Frederico, o Grande, de 1788, tinha procla­
mado a Prússia o lugar provável de uma revolução adventícia, e os iluministas
alemães os seus prováveis líderes.23 Os discursos e escritos de Mirabeau no
ano seguinte transferiram essas esperanças de profunda transformação da
Alemanha para a França. Ele se tornou tanto o líder da transformação do
Terceiro Estado dos Estados-Gerais em uma nova Assembléia Nacional quanto
“a primeira pessoa a obter sucesso em lançar um jornal sem autorização do
governo”.24 Sua reputação de ser o melhor orador da Assembléia se relaciona
diretamente com o seu papel pioneiro de convencer os franceses de que sua
revolução, embora política na forma, era redentora no conteúdo. Mirabeau
popularizou o termo iluminista “revolução da mente”, criou a expressão
“grande revolução”25 e, ao que parece, inventou as palavras “revolucionário”,26
“contra-revolução” e “contra-revolucionário”.27 Mirabeau foi pioneiro na

21 A. Weishaupt, Nachtrag von Weitern Originalschriften, Munique, 1787, p. 80.


22 E von Baader em 14 de agosto de 1786, citado em H. Grassi, Aufbruch zur Romantik; Bayerns
Beitrag zur deutschen Geistesgeschichten 1765-1785, Munique, 1968, p. 431.
23 Mirabeau, De la Monarchie prussienne, sous Frédéric le Grand, L, 1788, v. 5, p. 406 ss.; discussão
em Griewank, p. 231.
24 De acordo com J. Godechot, ed., La pensée révolutionnaire 1780-1799, 1964, p. 25.
25 Griewank, pp. 230-232; v. Seidler, p. 183.
26 De acordo com uma tese inédita de T. Ranft, “Der Einfluss der französichen Revolution auf dem
Wortschatz der französichen Sprache”, Giessen, 1905, p. 123; e Seidler, p. 185, nota 1. Mirabeau
empregou a palavra “revolucionário” pela primeira vez em 19 de abril de 1789, a qual no outono
já havia se tornado de uso geral.
27 E Brunot, Histoire de la langue française des origines à nos jours, 1967, v. 9, p. 618, notas 7, 8. A
primeira nota levanta a possibilidade de que a palavra possa ter se originado com A. Rivarol, o qual
depois se tornaria ele mesmo um contra-revolucionário.
LIVRO I, CAPÍTULO 1: ENCARNAÇÃO 43

aplicação da linguagem evocativa da religião tradicional às novas instituições


políticas da França revolucionária. Em data tão recuada como 10 de maio de
1789, ele escreveu aos constituintes que o elegeram para o Terceiro Estado
que o propósito dos Estados-Gerais não era fazer uma reforma, mas sim
“regenerar” a nação.28 Posteriormente ele chamaria a Assembléia Nacional
de “inviolável sacerdócio da política nacional”, a Declaração dos Direitos do
Homem de “um evangelho político” e a Constituição de 1791 de uma nova
religião “pela qual o povo está disposto a morrer ”.2930 A introdução da até
então pouco utilizada palavra revolução na língua alemã selou o seu novo e
quase religioso uso. Escritores e lexicógrafos se jactavam ou queixavam, ao
sabor de suas opiniões políticas, de que “nós, alemães, desejamos com tanto
fervor mantê-la (a revolução) distante, a ponto de não termos sequer uma
palavra com que designá-la em nosso vocabulário”; e a palavra francesa foi
introduzida na língua alemã precisamente “para transmitir em sua natureza
um impossível movimento com velocidade e prontidão” — para inspirar
admiração e sugerir uma novidade para além da palavra tradicionalmente
aplicada a levantes políticos, Umwälzung.™
Devemos nos voltar para essa fé na revolução como coisa inteiramente
nova, secular e regeneradora — e para as raízes alemãs ocultistas dessa idéia.
Mas primeiro devemos considerar brevemente os acontecimentos da Revo­
lução Francesa em si mesmos. Pois as convulsões que têm início em Paris
em 1789 representaram uma sucessão de novidades sem precedentes, o que
tornou crível a nova concepção de revolução de Mirabeau. Com crescente
intensidade e sem qualquer plano claro ou liderança contínua, a França veio
a criar um novo léxico político centrado na palavra “democracia”31 e numa
28 Godechot, Pensée, p. 127.
29 Citado em J. Thompson, The French Revolution, Oxford, 1966, p. 27; Brunot, v. 9, pp. 623-624,
respectivamente.
30 Citado a partir de J. von Campe, Über dir Reinigung und Bereicherung der Deutschen Sprache, 1794,
em Seidler, p. 205. V. também toda a seção “Verdeutschungen des Wortes Revolution*’, p. 204 ss.
Em 1783, um erudito cortesão prussiano sugeriu que o mundo alemão havia passado só por
révolutions passagères, particulières et intestines, e seria assim um bastião na Europa contra a
révolution totale. Os alemães iriam se opor naturalmente a toute révolution trop grande et dangereuse
à la surêté et à la liberté générale [toda revolução desmedida e perigosa à segurança e à liberdade].
Ewald Friedrich von Hertzberg, Dissertation sur les révolutions des états et particulièrement sur
celles de PAllemagne, Berlim, 1787, pp. 122-126, citado em Bender, p. 142.
31 R. Palmer; “Notes on the Use of the Word ‘Democracy’, 1789-1799”, Political Science Quarterly,
1953, jun., pp. 203-226. Para uma quantificação do uso dos termos: M. Tournier et al., “Le
Vocabulaire de Révolution”, Annales Historiques, 1969, jan.-mar., pp. 109-124; e os materiais
mencionados às pp. 111-112.
G. von Proschwitz (“Le Vocabulaire politique au xviiie siècle avant et après la Révolution. Scission
ou continuité?”, Le Français Moderne, 1966, abr., pp. 87-102) argumenta no sentido da continuidade
44 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nova compreensão da revolução como fonte sobre-humana de um novo


dinamismo para a história humana.32

O fato da revolução
No verão de 1789, a monarquia absoluta e a autoridade aristocrática foram
derrubadas para sempre no mais poderoso reino da cristandade. Foi isto a
Revolução Francesa em sua essência: o fato bruto que originou a crença
moderna de que a revolução secular é historicamente possível. Essa trans­
formação política não planejada ocorreu no curso de um período de cinco
meses — entre 5 de maio, quando o Rei Luís xvi abriu em Versalhes a primeira
reunião dos Estados-Gerais em 175 anos, em 5 de outubro, quando o rei foi
trazido de volta para Paris como virtual prisioneiro das massas.
O acontecimento decisivo desses cinco meses foi ter o Terceiro Estado
(que representava todos os cidadãos, com exceção do clero e da nobreza, e
era dominado por bem-articulados advogados de classe média) se autopro-
clamado Assembléia Nacional. Membros dos outros dois estados se juntaram
ao Terceiro Estado; este resolveu, no “juramento do jogo da péla” de 20 de
junho, manter-se ativo “até que a constituição esteja estabelecida e consolidada
sobre firmes alicerces”. Após a violência em Paris que conduziu à tomada
da Bastilha de 14 de julho, um “grande medo” se espalhou pelo campo.
Incêndios destruíram muitos registros e símbolos do sistema senhorial. Ao
longo de agosto, a Assembléia aboliu a servidão e o privilégio aristocrático e

do vocabulário, mas prova apenas que os termos básicos da política parlamentar não-revolucionária
(a “maioria”, “constitucional”, “oposição” etc.) haviam sido tomados de empréstimo da Inglaterra
desde bem antes da revolução. O uso político polêmico desses termos data pelo menos da revolução
dos Países Baixos. Um panfleto de 1583 se iniciava com a afirmação de que “não existe povo algum
mais feliz que o suíço, porque Democratici — isto é, um honesto e bem constituído governo burguês
(borgerlijcke) — está estabelecido aqui”. Texto presente em Griffiths, “Democratic Ideas”, pp. 62-63.
O termo foi empregado ampla e variamente ao tempo da Revolução Americana (v. R. Shoemaker,
“Democracy and ‘Republic’ as Understood in Late Eighteenth Century America”, American
Speech, 1960, maio, p. 83). James Wilson, um dos autores da Constituição dos Estados Unidos,
via-a como promotora do “princípio democrático”. (Citado em ibid., p. 89). Mas a maioria das
pessoas identificava a democracia com o caos próprio a pequenos estados. Eles defendiam antes
o republicanismo, concordando com Madison, segundo o qual “as democracias sempre foram
espetáculos de turbulência e discórdia (...) e têm sido tão curtas em sua existência quanto violentas
em suas mortes”. The Federalist, n° 10; citações também em Shoemaker, p. 88.
32 Uma interpretação defendida tanto por contra-revolucionários como Joseph de Maistre e entusiastas
da revolução como Georg Foster. Ver K. Julku, “La conception de la révolution chez Georg Foster”,
Annales Historiques, 1968, abr.-jun., pp. 227-251. Julku pode exagerar ao sugerir (p. 251) que, em
comparação, o uso da palavra no século xviii parece quase “pastoral”. Já no século xvn se verifica
um entendimento dinâmico e político do termo “revolução”. Ver, além de Seidler e Griewank, J.
Goulemot, “Le mot Révolution politique (fin xvm siècle)”, Annales Historiques, 1967, out.-dez.,
pp. 417-444.
LIVRO I, CAPÍTULO 1: ENCARNAÇÃO 45

proclamou o “natural e imprescindível” direito de todo cidadão à liberdade,


igualdade, propriedade e segurança.
A notícia de um ato político — a demissão pelo rei do seu reformista
Ministro das Finanças, Necker — desencadeou a agitação em Paris. Nove
dias após a queda da Bastilha, a plebe enforcou o sucessor de Necker e a
autoridade política foi restabelecida pelo Marquês de Lafayette. Ele chegou
montado em um cavalo branco — literal e simbolicamente — e assumiu o
comando militar de Paris no dia 15 de julho, assim emprestando legitimi­
dade ao levante e servindo, junto a Mirabeau, de pai fundador da tradição
revolucionária.
Ferido aos dezenove anos de idade lutando pela independência america­
na na Batalha de Brandywine, Lafayette retornara à França na esperança
de que a Revolução Americana “pudesse servir de lição aos opressores e de
exemplo aos oprimidos” no Velho Mundo.33 Ele presenteou Washington com
uma chave da Bastilha, valeu-se de retórica americana ao ajudar na redação
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão34 e, na condição de
líder da nova guarda nacional, deu respeitabilidade à fatídica marcha sobre
Versalhes em 5 de outubro.
Mesmo assim, esse aparente fiador de contínua ordem em meio à mudança
revolucionária foi logo cedo denunciado não apenas pela direita, mas também
pela esquerda. O ataque conservador de Burke à Revolução Francesa listava
o “Fayettismo” como o mais destacado em meio à “multidão de sistemas”.35
Do lado revolucionário, “Gracchus” Babeuf, apenas um ano após a queda da
Bastilha, censurou Lafayette como um presunçoso e antidemocrático freio
do processo revolucionário.36 Revolucionários posteriores, como veremos,
diversas vezes se encolerizaram com ele.
Mirabeau, também um marquês, ainda que menos elegante que Lafayette,
desempenhou papel mais central nos primeiros acontecimentos revolucio­
nários. Rejeitado pelos seus colegas aristocratas na eleição para os Estados-
-Gerais, o bexigoso Mirabeau aceitou a eleição pelo Terceiro Estado; ele lhe
infundiu la passion politique.

33 Citado em Thompson, Revolution, pp. 41—42.


34 L. Gottschalk, Lafayette in the French Revolution, through the October Days, Chicago, 1969, p.
225.
35 “Remarks on the Policy of the Allies with respect to France”, Works, L, 1803, v. 2, p. 138.
36 V. Dalin, Grakkh Babef; nakanune i vo vremia velikoi frantsuzskoi revoliutsii, 1785-1794, 1963,
pp. 265-266.
46 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A monarquia constitucional favorecida por Lafayette e Mirabeau não so­


brevivería à tentativa do rei de fugir de Paris no verão de 1791 e à irrupção de
guerra estrangeira na primavera de 1792. A França revolucionária proclamou
formalmente uma república em agosto de 1792; massacrou 1.100 supostos
inimigos internos em Paris no mês de setembro e guilhotinou publicamente o
Rei Luís XVI em janeiro de 1793. Violência interna e externa polarizou cada
vez mais a política e dividiu a Assembléia Nacional nas originais “direita”
e “esquerda”.37 A posterior associação da esquerda com o que é virtuoso
representou a desobediência revolucionária da tradição cristã, que sempre
representara aqueles à direita de Deus como salvos e aqueles à sua esquerda
como condenados.38
Nessa época, as massas armadas em Paris se inclinavam crescentemente
a rejeitar a política da Assembléia, alegando que

O lado direito [Cóíé Droit] está sempre errado [gauche]


E o esquerdo [gauche] jamais está direito [droit].39

A plebe que invadira o Palácio das Tulherias para prender o rei em 10 de


agosto de 1792 irrompeu na Assembléia em 31 de maio de 1793, e no verão
se mobilizou no levée en masse [levantamento em massa] para resistir aos
inimigos contra-revolucionários no campo e nas fronteiras.
A história posterior da revolução armada revela uma tendência aparente­
mente irresistível em direção a um poder executivo central, forte. O Comitê
de Salvação Pública (1793-1794) de Robespierre, composto de doze homens,
foi sucedido por um diretório (1795-1799) de cinco homens, por um con­
sulado de três homens, pela nomeação de Napoleão como Primeiro Cônsul
em 1799 e, por fim, pela coroação de Napoleão como imperador em 1804.
Depois de 1792, abriu-se uma divisão crescente entre os ideais proclamados
da república revolucionária e sua implementação prática. Marxistas repre­

37 Cf. Brunot, v.9, pp. 769-771, para empregos anteriores, segundo a localização dos diferentes partidos
dentro da Assembléia Nacional.
38 J. Laponce observa que em todas as línguas de cultura, com exceção do chinês, a noção de esquerda
era associada com oposição secular aos hábitos religiosos e sociais tradicionais: “Spatial Archetypes
and Political Perceptions”, American Political Science Review., 17 de março de 1975; também R.
Hertz, “The Pre-Eminence of the Right Hand: A Study in Religious Polarity”, in R. Needham (ed.),
Right and Left: Essays on Dual Symbolic Classifications, Chicago, 1973. Usos anteriores da dualidade
esquerda-direita por pitagóricos e maniqueus são discutidos (junto à genealogia da esquerda moderna
estabelecida por E. Bloch em Avicenna und die Aristoteliche Linke) em V. Fritsch, Left and Right in
Science and Life, L, 1968, p. 139.
39 Brunot, v. 9, p. 769.
LIVRO I, CAPÍTULO 1 : ENCARNAÇÃO 47

sentaram esse conflito como o choque inevitável da busca “proletária” por


uma revolução social e o desejo “burguês” de consolidar os recém-adquiridos
direitos de propriedade e poder político. Mas a consciência social da época
estava voltada para o ódio comum aos estrangeiros e aristocratas; e na Paris
pré-industrial a distinção entre classe operária e classe média ainda não era
clara. A divisão mais significativa se dava entre a consciência política de
advogados bem-articulados e líderes da França revolucionária e as reivin­
dicações simples e apolíticas das massas urbanas por comida, segurança e
algo em que acreditar.
Os líderes falharam repetidamente em satisfazer as multidões parisienses.
Lafayette, que em abril de 1792 preferira a guerra a fim de agrupar a França
sob a monarquia constitucional, foi logo suplantado pelo mais belicoso e
radical Brissot. Os brissotistas, ou girondinos, foram por sua vez postos de
lado pelos ainda mais radicais jacobinos ao fim da primavera de 1793. O
jacobinismo relativamente moderado de Danton foi então suplantado por
Robespierre; seu reino do terror fez cerca de 40.000 vítimas internas em
1793-1794. No entanto, nenhum desses personagens conseguiu garantir
estabilidade.
Robespierre, o mais radical líder político da era revolucionária, foi tam­
bém o primeiro a se voltar decididamente contra a plebe de Paris. Ele inva­
diu suas assembléias locais no outono de 1793 e executou os extremistas
enragés ou hébertistas na primavera de 1794 — pouco antes de ele próprio
ser guilhotinado em julho. A retração que se seguiu, a assim chamada reação
termidoriana, reprimiu uma aparentemente inexorável guinada à esquerda.
A nova Constituição republicana de 1795 foi bem menos radical que a
escrita em 1793 (mas nunca levada a efeito). Dois anos depois, a tentativa
da conspiração de Babeuf de organizar um novo levante revolucionário foi
esmagada sem maior dificuldade pelo diretório. Embora Napoleão tenha
chegado ao poder por meio do exército revolucionário e tenha se valido de
idéias revolucionárias para expandir o poder francês, ele (assim como os
monarcas constitucionais cujo poder foi restaurado depois dele) foi em geral
visto não como um herdeiro da revolução, mas como alguém que a renegava.
A tradição revolucionária alcançou a maturidade quando o combate
irrompeu de novo nas ruas de Paris contra os restabelecidos Bourbons em
julho de 1830. Lafayette, a essa altura um homem idoso, surgiu para legitimar
um retorno à monarquia constitucional e ajudou a estabelecer no poder Luís
Filipe da Casa de Orléans. O vínculo era profundamente apropriado. Pois
48 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

em certo sentido se pode dizer que a revolução original de 1789 liderada por
Lafayette teve início no deleitoso palácio parisiense do pai de Luís Filipe,
Filipe de Orléans: o Palais-Royal. Lá, à sombra do Palácio das Tulherias,
Filipe decidira aceitar a revolução e ser rebatizado com o nome de Égalité
a permanecer fiel ao seu primo, o Rei Luís xvi. Foi Filipe que renomeou os
grandes jardins públicos do Palais-Royal — onde se reuniu a massa que in­
vadiu a Bastilha — como “o jardim da igualdade”. E é nesse revolucionário
Jardim do Éden, nessa inesperada Belém, que a história propriamente dita
da fé revolucionária tem propriamente início.
CAPÍTULO 2

Uma instância de legitimidade

endo Paris derrubado o velho regime, seus cidadãos sentiram uma

T necessidade quase desesperada de uma nova fonte de autoridade.


Costuma-se contar a história dessa necessidade em termos de forças
políticas e sociais, mas também pode ser contada em termos de uma busca
ideológica e geográfica por legitimidade.
Se fosse preciso escolher uma única palavra para descrever o que os re­
volucionários franceses originais realmente buscavam, esta bem poderia ser
um termo decisivo depois utilizado pelos russos: oprostifsia, simplificar. O
desejo de simplificação radical (até a simplificação de si mesmo, como suge­
rido pelo verbo reflexivo russo) impeliu intelectuais na esteira de Rousseau a
rejeitar ambição pessoal e convenção social. Um esforço similar de alcançar
simplicidade estimulou políticos — que viriam a dar em Robespierre — a
se basearem cada vez mais em liqüidação bem como em improvisação. No
centro de tudo isso estava o desejo apaixonado de que as pessoas encontras­
sem uma única norma simples e unificadora para a sociedade, tal qual a lei
da gravidade que Newton havia descoberto para a natureza.
Em sua inclinação para a simplicidade revolucionária, os franceses fundiram
vários estados em um único estado; desfizeram-se de inumeráveis títulos em
favor dos uniformemente empregados “cidadão”, “irmão” e “tu”; suplantaram
a intricada arte rococò com um severo neoclassicismo; rejeitaram as comple­
xas tradições católicas em nome da Mãe Natureza ou de um Ser Supremo;
50 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

substituíram argumentação fundamentada por propaganda encantatória.


A reivindicação revolucionária inicial de “um rei, uma lei, um peso, uma
medida” prenunciou o empenho evangélico francês posterior para difundir
o uso de novos sistemas métrico e decimal.1 Ao longo de toda a inventiva
era revolucionária, novos símbolos e sociedades pareciam estar buscando le
point parfait: “o ponto perfeito” dentro de um “círculo de amigos”. Estes
eram dois nomes estranhamente apropriados para duas importantes lojas
maçônicas que se desenvolveram durante o Reino do Terror.2
Mas onde estava o “ponto perfeito” sobre o qual assentar uma nova fé
secular? Para muitos, a progressiva simplificação do processo político oferecia
um novo tipo de resposta ao reduzir a instância de soberania popular da
Assembléia Nacional a um grupo executivo de doze homens, cinco, três, e
por fim um único homem. Justamente sob o domínio de Napoleão, contudo,
inicia-se a tradição revolucionária profissional. A aparição de conspirações
dentro dos exércitos de Napoleão no auge de seu poder revelou uma ainda
não satisfeita sede revolucionária por algo além do poder puro e simples.
A violência fazia parte daquilo que os revolucionários buscavam — e em
vários sentidos era sua forma mais acabada de simplificação radical. Milha­
res de anseios e ódios poderiam ser comprimidos num único ato de ritual
sangrento, assim transformando philosophes em révolutionnaires. Segredo
mais sombrio da fé revolucionária, a violência foi discutida inicialmente
sobretudo por oponentes reacionários, os quais viam nos revolucionários
uma apropriação da promessa de antigas religiões de proporcionar salut par
le sang [salvação por meio do sangue].3 A violência revolucionária foi mais
bem descrita metaforicamente como uma erupção vulcânica ou as dores de
parto de uma nova ordem. Como os revolucionários sempre acreditaram que
sua violência poria fim a toda violência, ela também pode ser descrita como
o estrondo sônico que indica que os motores devem ser invertidos, o vórtice
de um redemoinho no qual um objeto que descende irreversivelmente pode,
de repente, ser arremessado acima rumo à liberdade.

1 O livro magistral de W. Kula, Miary i ludzie, 1970, pp. 429-573, mostra que a reivindicação por
padrões de peso e de medida unificados era coisa generalizada (e inteiramente desconcertante
aos contemporâneos) até nos cahiers de doléance [“cadernos de queixas”, nos quais, através das
assembléias locais, a população podia registrar suas demandas] mesmo antes da revolução.
2 P. Chevalier, Histoire de la Franc-Maçonnerie française. I, La Maçonnerie: École de l’Égalité
1725-1799, 1974, pp. 360-364. A loja Le Point Parfait [O Ponto Perfeito] foi na verdade fundada
durante o período do Terror, tornando-se “a última a receber sua constituição da Grande-Oriente”,
p. 363.
3 Joseph de Maistre, Oeuvres complètes, Lyon, 1884, v. 5, pp. 125-126.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 51

A marca de sangue distingue uma revolução real de um melodrama mítico


sobre a tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno. O drama se assemelha
mais a um auto medieval da Paixão — no qual, contudo, é mais o ato da
crucificação que da ressurreição que proporciona le point parfait para um
novo começo. A crença em uma salvação puramente secular leva o revolucio­
nário moderno a buscar libertação por meio da destruição humana, e não da
redenção divina. Temos de traçar o curso da violência revolucionária desde
uma fase ítalo-polonesa, romântica, no século xix, até a forma ascética russa
de fins desse século e início do xx.
Contudo, a mesma lava que destruiría uma decadente Pompéia também
fertilizaria um novo Éden. A busca primordial por legitimidade revolucionária
envolveu não apenas a destruição da Bastilha e a decapitação de um rei, mas
também a busca por um espaço sagrado no qual a perfeição pudesse surgir
e os oráculos pudessem falar. A história pode ser reconstituída tanto através
de pessoas como de lugares. Começa nos cafés do Palais-Royal e leva à figura
ignorada de Nicholas Bonneville.

Os cafés do Palais-Royal
Lugar nenhum — significado literal de utopia — se tornou pela primeira
vez algum lugar em Palais-Royal. Nos cafés que rodeavam os jardins desse
grande cercamento real no centro de Paris, a “cidade celeste dos filósofos do
século XVIII ” encontrou suas raízes terrenas; altos ideais foram transportados
para conversas prosaicas; sofisticação de salão se tornou bravata burguesa;
reforma passou de revolta a revolução.
O Palais-Royal tinha origens políticas, na medida em que fora criação
do Cardeal Armand de Richelieu, o pai da raison d’état na França moderna.
O palácio foi transformado em um complexo fechado de galerias, salões de
exibição e centros de entretenimento no início da década de 1780 — e foi
aberto ao público pelo reformista Filipe de Orléans. Sua avareza rapidamente
transformou o espaço em um lucrativo centro de prazer onde “todos os desejos
podem ser satisfeitos tão logo concebidos”.4 Ao fim da primavera de 1787,
Filipe construiu Le Cirque — um amplo recinto fechado com cem metros de
comprimento localizado no meio do jardim — para que nele tivessem lugar
reuniões de grande público e eventos esportivos.
4 A. Ducoin, Études révolutionnaires. Philippe D’Orléans-Égalité, 1845, p. 22. Sobre o Palais-Royal
durante o período revolucionário, cf. S. Lacroix, Actes de la Commune de Paris pendant la révolution,
1896, v. 7, primeira série, apêndice iv, p. 596, para informações mais precisas; R. Heron de Villefosse,
UAnti-Versailies ou le Palais-Royal de Philippe Égalité, 1974, p. 201, para uma discussão estimulante,
embora não documentada.
52 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os cafés nas arcadas e o “circo” no centro no Palais-Royal serviram de


incubadora à oposição intelectual que ia além do reformismo brando, whig,
dos cafés londrinos que a Casa de Orléans a princípio tentara imitar. O
Palais-Royal se tornou “uma espécie de Hyde Park da capital francesa”, “o
lugar onde a opinião pública é formada”, “a ágora da cidade efervescente”,
“o fórum da Revolução Francesa”.5
Caso se possa dizer que a Revolução Francesa teve início em um único
ponto num dado momento, bem se pode apontar os jardins do Palais-Royal,
por volta das três e meia da tarde de um domingo, 12 de julho de 1789, quan­
do Camille Desmoulins subiu numa mesa e gritou Aux armes! [Às armas!]
à multidão caótica. Ele estava sugerindo uma resposta parisiense coletiva à
notícia que acabara de chegar de Versalhes sobre a demissão de Necker pelo
rei. Meia hora depois do seu discurso, a multidão começou a ganhar as ruas
com bustos de Necker e do Duque de Orléans.6
O momento era dramático — no sentido mais intenso e literal da pala­
vra. O Palais-Royal havia atraído um público inesperado. Um compositor
menor de óperas havia arrumado o palco, ajudando Desmoulins a subir no
que chamou la table magique [a mesa mágica] trazida do Café Foy. Um laço
de fita verde preso ao chapéu de Desmoulins (segundo alguns relatos, uma
folha verde arrancada de uma árvore) deu a ver o novo traje: uma insígnia da
natureza e da esperança a ser brandida contra os emblemas antinaturais de
uma incorrigível aristocracia. O herói urbano era (como em seguida seriam
Saint-Just e Babeuf) um jornalista intelectual original da picardia rural. Em
5 C. Rogers, The Spirit of the Revolution in 1799, NY, 1949, p. 108; E Fosca (pseudonimo de G. de
Traz), Histoire des Cafés de Paris, 1934, p. 74. S. Bradshaw, Cafe Society. Bohemian Life from Swift
do Bob Dylan, L, 1978, p. 31.
6 Este relato é baseado em informação detalhada e cuidadosa reconstrução feita por R. Farge, “Un
Épisode de la journée du 12 juillet 1789. Camille Desmoulins au Jardin du Palais-Royal", Annales
Révolutionnaires, 1914, v. 7, pp. 646-674. Materiais e versões suplementares (Traz, p. 75 ss.; Heron
de Villefosse, pp. 235-236; J. Morton, The Bastille Falls, L, 1936, pp. 12-14) não contradizem
concretamente o relato de Farge. O estudo de G. Rudé desse acontecimento derruba de cima a
baixo a imagem romântica de um movimento de massa, mostrando que entre 800 a 900 pessoas
assaltaram a Bastilha (embora houvesse 250 mil ou mais em armas em Paris) e que só uns poucos
desempregados, e até cobradores de impostos, estiveram envolvidos. V. The Crowd in the French
Revolution, Oxford, 1959, pp. 56 ss., 180-181; The Crowd in History, NY, 1964, pp. 99 ss., 126,
250.
Nem o argumento de Farge de que os acontecimentos não foram uma simples reação à liderança
de Desmoulins nem a demonstração de Rudé de que a multidão não foi simplesmente empurrada
pela fome ou por queixas diretas (como o foi quando atacou as alfândegas) indicam o importante
papel mobilizador desempenhado pela clientela do Palais-Royal. Nesse respeito, como em muitos
outros, as considerações tradicionais e semi-legendárias, embora refutadas em detalhe por ambos
esses autores, podem se aproximar da verdade ao fornecer (o que Farge e Rudé nunca fazem) uma
consideração geral do acontecimento.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 53

resposta à sua arenga, o elenco de apoio, na casa das centenas, espraiou-se


pelas ruas. Seu propósito imediato era o diabolicamente oportuno de forçar
todos os teatros de Paris a cancelar seus espetáculos da noite — como se para
eliminar da cidade qualquer drama que pudesse rivalizar com o deles. Tendo
fechado os teatros, as massas populares convergiram para a maior praça aberta
da Europa, a Praça Luís xv, que ajudaram a transformar em teatro da revolução.
Sob a estátua eqüestre do pai do rei, a multidão afluiu em torno dos bustos
do ministro demitido e de seu suspeito primo. O primeiro ato da revolução/
drama teve início às oito da noite na praça, quando tiros de dispersão vindos
das tropas reais fizeram os primeiros mártires da revolução e as massas res­
ponderam saqueando arsenais nas redondezas. O drama retornaria repetidas
vezes a esse grande teatro a céu aberto para as suas cenas de clímax: a exe­
cução do rei em 1793 (o cenário tendo sido renomeado Praça da Revolução)
e a liturgia de Páscoa celebrada pelo Tsar Alexandre para todo o exército
russo após a derrota final de Napoleão em 1815 (novamente renomeado
Praça da Concórdia).
Em julho de 1789, contudo, a grande praça era apenas um ponto de pas­
sagem para a multidão parisiense à medida que esta ia expressar no centro de
Paris a destruição que antes começara na periferia com o assalto a quarenta
aduanas. O último destino da multidão que primeiro ganhara identidade
em 12 de julho foi, claro, a escassamente habitada prisão-arsenal conhecida
como Bastilha; mas seu ponto de reunião original fora o Palais-Royal. Loca­
lizado a meio caminho entre a Praça Luís xv e a Praça da Bastilha, o Palais
continuou a desempenhar papel central na coreografia do conflito durante
os primeiros anos da revolução.
Os freqüentadores do Palais foram, de certo modo, o “povo” originário
da retórica revolucionária; e a plebe que se reunia lá periodicamente, o mo­
delo da mobilização revolucionária. No início de agosto, a polícia vinha de
outras áreas da cidade para lidar com as desordens que tomavam conta do
Palais-Royal e dos perigos que poderíam ser daí ocasionados.7 Se o Palais-
-Royal ainda não estava unificado sob o republicanismo de Desmoulins, pelo
menos reproduzia a anglofilia do Duque de Orléans ao saudar os aconteci­
mentos na França como “cette glorieuse Révolution”.8 Petições contra um
veto real foram levadas à assembléia em Versalhes em nome dos “cidadãos

7 Lacroix, Actes, primeira série, 1894, v. i, pp. 97-98.


8 Ibid., p. 114.
54 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

reunidos em Palais-Royal”,9 os quais se constituíam como uma espécie de


voz informal da autoridade revolucionária na cidade. Canções em louvor de
soldados que teriam se recusado a atirar no povo eram improvisadas “em
nome dos cidadãos do Palais-Royal”.10 “Sem um rei, Paris encontrara um
chefe no Palais-Royal”.11
A instância de legitimidade era a questão delicada, e os protagonistas deci­
sivos eram a corte do rei em Versalhes, por um lado, e o não-chefiado “fórum
do povo” no Palais-Royal de Paris, por outro lado. Entre um lado e outro,
contudo, no verão de 1789, ficaram a recém-criada Assembléia Nacional,
ainda sob a sombra do rei em Versalhes, e o governo formal de Paris, ainda
no Hotel de Ville, na Rue de Rivoli, a meio caminho entre o Palais-Royal e
a Bastilha. Em 30 de agosto, uma massa de mil e quinhentas pessoas saiu
do Palais-Royal em direção ao Hotel de Ville para fazer o primeiro de dois
malsucedidos pedidos de apoio oficial a uma marcha sobre Versalhes.12 Por
fim, no domingo de 4 de outubro de 1789, um grande grupo se apinhou
no Palais-Royal; somaram-se a ele outros parisienses para marchar sobre
Versalhes no dia seguinte, e de lá trouxeram tanto o rei como a Assembléia
Nacional de volta para Paris.
Doravante, Paris se tornara o campo de batalha. O rei ficava no Palá­
cio das Tulherias; a autoridade popular, no Palais-Royal logo após a Rue
Saint-Honoré. A Assembléia Nacional foi realocada próxima a ambos em
um prédio aberto ao vento frio da antiga academia real de cavalaria, com
vista para os jardins das Tulherias.
A terminologia utilizada para caracterizar facções na assembléia revelava
uma ânsia pela santificação espacial de ideais imateriais. A legitimidade foi
identificada com uma localização física: “esquerda” ou “direita”, “monta­
nha” ou “planície”. A posição no meio entre os extremos ficou conhecida
como “pântano” (le marais): o charco ocupado por aqueles inaptos tanto
para a terra como para o mar. Um dos primeiros historiadores da revolução
caracterizou le marais em termos polarizados que prenunciavam a denúncia
que depois os revolucionários fariam do “centro” como “sem princípios”,
“oportunista” e falto de convicção fosse na esquerda ou na direita: “Entre
esses dois extremos, estacionavam homens de voto secreto e silenciosa co­

9 Ibid., pp. 423-424.


10 Rogers, pp. 207-209.
11 Ducoin, p. 68.
12 P. Dominique, Paris enleve le roi, 1973, pp. 59-60.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 55

vardia, sempre devotados ao partido mais forte e servindo aos poderes de


ocasião. O lugar ocupado por esses eunucos na Convenção foi o Pântano^ é
o que nas assembléias modernas se chama de Centro”.13
Assim, com a divisão de Paris em 48 seções em 22 de junho de 1790, o
Hotel de Ville foi de fato suplantado por uma nova forma de governo popular:
as seções da Comuna de Paris; e a Seção do Palais-Royal (depois chamada
Seção de la Montagne) se tornou o maior governo seccional no centro da
cidade.14 Notícias de discordâncias e debates na Assembléia Nacional fre-
qüentemente vinham primeiro de relatos obtidos nos cafés do Palais-Royal.
De lá vieram os rumores de que o rei planejava fugir da França usando de
algum disfarce ou por meio de um canal secreto até Saint Cloud.15
O Palais-Royal teve papel central na Paris revolucionária por três motivos.
Em primeiro lugar, porque oferecia um refúgio privilegiado para intelectuais que
ali podiam passar da especulação à organização. Segundo, o seu proprietário
e patrocinador, o Duque de Orléans, representava o ponto através do qual
novas idéias chegaram até a elite empossada do velho regime. Por fim, o Palais
fornecia um elo vivo entre o submundo de Paris e as novas forças sociais que
precisavam ser mobilizadas para se alcançar qualquer vitória revolucionária.
O fato de pertencer à realeza assegurava imunidade quanto a prisões
dentro do Palais-Royal; e de 1788 a 1792, uma série de novas organizações
foram formadas e reuniões decisivas realizadas ali. Entre os fermentos de
1789, talento literário e artístico foi canalizado para a revolução por clubes
pioneiros, ainda que de vida curta: o Lycée de Paris, o Lycée des Arts, o
Musée Français, o Athénaum e o Clube de 1789.16 O teatro revolucionário
encontrou guarida primeiro no Théâtre des Variétés, que fora aberto em
1785, e depois no novo Théâtre de la République, para o qual se mudaram,
em 1792, muitos atores de destaque, incluindo o lendário Talma.
A massa que irrompeu do Palais-Royal em julho de 1789 carregava o
busto de Filipe de Orléans junto ao de Necker, e a multidão que foi a Ver­
salhes em outubro também aclamou o primo do rei. Como proprietário do
Palais-Royal, Filipe era visto como um patrono da causa revolucionária
13 Ducoin, p. 196.
14 E. Mellié, Les Sections de Paris pendant la révolution française, 1898, pp. 22-25. Havia 2.400
cidadãos ativos na Seção do Palais-Royal, em contraste com 1.700 nas Tulherias, 1.200 no Vendôme,
900 em Champs-Elysées etc.
15 Traz, pp. 74-75.
16 Lacroix, Actes, primeira série, 1897, v. 6, pp. 340-350; segunda série, v. 1, pp. 232-233. V. também
Athenaeum ou idées d'un citoyen sur... le Palais Royal, 1789, uma obra de 63 páginas (BH).
56 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

inserido na elite real. Sua viagem a Londres um pouco depois, em 1789, foi
vista por alguns como parte da manobra de um anglofilo para levar a França
a se aproximar do modelo monárquico constitucional. Filipe escrevera a sua
própria Regra de Convivência para o Palais-Royal em fevereiro de 1789; entre
outras coisas, propunha uma tertúlia formal de vinte e cinco pensadores às
noites de quarta-feira.1
Seu patrocínio pessoal do Musée Française em seu apartamento e de
várias publicações, bem como de dramas ao ar livre nos jardins do Palais,
levou muitos conservadores a achar que o tumulto revolucionário foi em
certo sentido o resultado de uma conspiração orleanista.
Pouco depois da proclamação da República em 17 de setembro de 1792,
Filipe de Orléans se apresentou ao novo governo comunal de Paris com o
pedido de que fosse rebatizado com o nome Égalité e de que o jardim do Palais
fosse chamado “Jardim da Igualdade”.17 18 Ele reconheceu que sua experiência
de maçom lhe deu “uma espécie de imagem da igualdade”, mas se disse grato
por ter agora “deixado para trás um fantasma em prol da realidade”.19
O rebatizado chefe da Casa de Orléans foi então eleito membro da
Convenção — sob oposição de Robespierre. Dois meses depois, um decre­
to da Convenção desafiou a sinceridade da conversão de Filipe, sugerindo
que ele “tratava da revolução como se de uma de suas piadas” e que havia
simplesmente agido tendo em vista o que fosse “mais conveniente aos seus
interesses”.20 Jean Paul Marat lançou ainda mais dúvida sobre a “dedicação
cívica” (civisme') de Filipe. Quando um líder revolucionário foi assassinado no
Palais-Royal em 20 de janeiro, as suspeitas em torno de Filipe se agravaram,
e a Convenção lançou uma espécie de unidade de assalto, os assim chama­
dos defensores da república, sobre o reduto orleanista.21 Quando o filho de
Filipe, o futuro Rei Luís Filipe, desertou para o lado contra-revolucionário
junto com o General Charles François Dumouriez no início da primavera,
Filipe-Egalité foi preso — e afinal guilhotinado em 6 de novembro de 1793.
17 G. Du Boscq de Beaumont e M. Bernos, La Famille d'Orléans pendant la révolution d'après sa
correspondance inédite, 1913, 3a ed., pp. 214-216. O Règlement de vie pour le Palais-Royal, datado
de 20 de fevereiro de 1789, era o guia para “um novo gênero de vida”. Mais detalhes sobre a Casa
de Orléans durante a revolução talvez possam ser fornecidos por uma obra anunciada no Journal
of Modem History, dez., 1979, mas não acessível durante a realização deste estudo: G. Kelly, “The
Machine of the Duc d’Orléans and the New Politics”.
18 Moniteur, 17 de setembro de 1792; Ducoin, Études, p. 184.
19 Du Boscq de Beaumont, p. 272.
20 Ducoin, pp. 225, 192-193.
21 Ibid., pp. 245, 209; Rose, Babeuf, p. 131.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 57

O Palais-Royal era o centro de Paris não apenas com relação à alta po­
lítica e aos altos ideais, mas também em relação ao prazer barato. Junto à
“efervescência política” alimentada por “agitadores cuja existência misteriosa
parece mais apropriada a um romance do que à realidade”, apareceram
publicações rumorosas que misturavam política e pornografia, a exemplo
de O bordel nacional sob patrocínio da Rainha, para uso dos confederados
provinciais.11 Mais uma vez, Filipe-Egalité mostrou o rumo a seguir. Sua
amante de longa data, Madame de Genlis (posteriormente Cidadã Brûlart),
era uma espécie de princesa entre as prostitutas do Palais, além de uma “edu­
cadora dos príncipes”. O novo secretário pessoal que levou consigo para o
Palais em 1788, Choderlos de Laclos, era o autor de As ligações perigosas
e um pioneiro da pornografia explícita que se difundiu durante o período
revolucionário.2223 Amigo de Laclos, o Marquês de Sade abriu uma livraria
no Palais durante o tumulto para vender suas sombrias obras-primas; toda
forma de satisfação sexual que ele descrevia estava disponível nos cafés e
apartamentos do complexo do Palais. Os jardins eram o lugar de encontro
das prostitutas, e mulheres respeitáveis não o freqüentavam depois das onze
da manhã.24 Já antes da revolução, o Palais-Royal tinha degenerado numa
contra-moralidade toda sua. Uma desafiadora prostituta que se negara a se
entregar ao Conde d’Artois se tornou uma heroína popular, e um café, La
Vénus, foi assim chamado em sua homenagem.25 A esplanada de butiques e
galerias no centro do Palais, onde se costumava firmar contratos e assinaturas
(a assim chamada Gallerie de Bois [Galeria de Madeira] ou Camp des Tartares
[Acampamento dos Tártaros]), tinha como sua escultura central “la belle
Zulima”,26 uma estátua de cera de uma mulher nua com cor de pele realista.
Os cafés eram o coração e a alma do Palais-Royal. Cerca de duas dúzias
deles o rodeavam e acenavam aos errantes que vinham dos jardins em di­
reção aos pontos de prazer sob as arcadas que eram — tanto literal quanto
figurativamente — o submundo de Paris. Assim como o Circo no meio dos

22 A. Tuetey, Repertoire general des sources manuscrits de l'histoire de Paris pendant la révolution
française, v. 2,1892, pp. in, xm-xiv, xviii; H. Cros, Claude Rauchet 1744-1793. Les Idées politiques,
économiques, et sociales, 1912, pp. 27-28.
23 Du Boscq de Beaumont, pp. 8-9; Ducoin, p. 87 ss.; Heron de Villefosse, p. 224 ss.
24 Ibid., p. 22, esp. nota 1.
25 Traz, p. 73.
26 Heron de Villefosse, p. 215. Para conhecer o traçado exato do Palais-Royal, bem como ter acesso a
um comentário sobre as modificações subseqüentes desse monumento parisiense notavelmente bem
preservado e surpreendentemente negligenciado, v. J. Hillairet, Connaissance du vieux Paris, 1956,
pp. 185-200.
58 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

jardins (do qual cinco oitavos estavam construídos abaixo do nível do solo),
os cafés iam às profundezas. Alguns dos nomes mais importantes — Café du
Caveau [Café da Caverna], Café des Aveugles [Café dos Cegos] e Café du
Sauvage [Café do Selvagem] — sugerem o ar fétido, a escuridão misteriosa e
o abandono permissivo que caracterizavam os abrigos subterrâneos. O Café
des Aveugles oferecia vinte “cavernas” separadas para as delícias sexuais e
narcóticas de seus clientes, que em geral desciam até lá após preliminares
alcoólicas mais brandas no Café Italien localizado logo acima.27 Para aqueles
que permaneciam ou retornavam ao Café Italien (também conhecido como
Corazza), as paixões se tornaram políticas e a política se tornou internacional
em virtude de sua grande clientela italiana.
O verbo politiquer [falar de política] talvez tenha tido origem na linguagem
dos cafés do Palais.28 Um tipo especial de política surgiu nesse ambiente. A
irreverência divertida e a especulação utópica eram preferidas à consideração
imediata de coisas práticas. Não se tratava da política daqueles responsáveis
por exercer o poder na Assembléia Nacional ou nas seccionais parisienses.
Era a política do desejo forjada em meio a drinks que provocavam uma de-
leitosa amnésia, caso do non-lo-sapraye (italiano truncado para “você não
ficará sabendo”), e depois de doces feitos sob medida para glutões (como os
sorvetes do Café Tortoni).29
Os cafés do Palais-Royal também estavam repletos de objetos votivos da
nascente nova fé nas ciências aplicadas. No Café Mécanique [Café Mecâni­
co], “o ancestral de nossos bares automáticos”,30 as bebidas vinham através
de alçapões, os quais faziam parte de um complexo conjunto de alavancas e
outros dispositivos que ilustravam os princípios da física de Newton. A ilusão
se tornou realidade no Café des Milles Colonnes [Café das Mil Colunas],
onde espelhos faziam umas poucas colunas se tornarem milhares. O forno
que aquecia o Café Italien era moldado na forma do balão pioneiro no qual
voou Joseph Montgolfier, ele próprio um freqüentador do café.31
Esse complexo de cafés fez o Palais-Royal parecer, aos olhos do mais
acurado observador de Paris à beira da revolução, “a capital de Paris, uma
suntuosa cidadezinha dentro de outra maior; o templo da voluptuosidade”.32

27 Traz, pp. 32-37.


28 Ibid., p. 37.
29 Ibid., pp. 75,129.
30 Ibid., p. 47.
31 Ibid., pp. 49, 83.
32 Mercier, Tableau de Paris, Amsterdã, 1789, p. 132; e toda a seção sobre o Palais-Royal, pp. 132-146.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 59

O santuário desse templo era o Café Foy, diante do qual Desmoulins fez
sua famosa conclamação às armas em 12 de julho de 1789. O Foy era o único
café com o privilégio de dispor mesas dentro do jardim e de controlar uma
passagem que levava dele até a Rue de Richelieu. Assim, tornou-se um “pór­
tico da Revolução”,33 o ponto preciso no qual os seguidores de Desmoulins
passaram do discurso à ação nas ruas: “Durante esses meses de entusiasmo,
o Café Foy era para o Palais-Royal o que o Palais-Royal era para Paris: uma
pequena capital de agitação dentro do reino da agitação”.34
O Foy mereceu a palma do martírio quando foi fechado por um curto período
pelo rei um pouco mais tarde em 1789, e os cafés do Palais-Royal continuaram
a politizar a plebe de Paris de maneiras emocionalmente satisfatórias que nem
a Assembléia Nacional nem os governos seccionais eram capazes de reproduzir.
Como escreveu um observador relativamente neutro em 1791:

Quando uma posteridade mais reflexiva e esclarecida que a geração presente estudar
de maneira desapaixonada a Revolução Francesa, poderá acreditar que os cafés
tinham se tornado os supremos tribunais numa cidade situada no centro de um
estado livre. O Café de Foy e o Café du Caveau [...] são hoje duas repúblicas nas
quais a mais extremada intolerância assume o nome de patriotismo.35

Nessa época “os cafés cresceram e formaram clubes; suas mesas se tor­
naram tribunais; seus freqüentadores, oradores; seu barulho, movimento”.36
À medida que as discussões entre os revolucionários ficavam mais inten­
sas, cada facção tendeu a ter o seu próprio café dentro do Palais — a servir
tanto de posto avançado como de quartel. O Café du Caveau era o lugar de
encontro dos girondinos que prepararam as manifestações de 10 de agosto de
1792, as quais derrubaram a monarquia e estabeleceram a Primeira Repúbli­
ca. O Café Italien era o ponto de reunião dos mais radicais, os jacobinos, os
quais depois vieram a ocupar a Assembléia Nacional e a instaurar a ditadura
revolucionária no início do verão de 1793.37
Mas os jacobinos operavam principalmente fora do Palais, tendo derivado
o nome de sua organização de alcance nacional do mosteiro jacobino no qual

33 Irmãos Goncourt, citados em Traz, p. 79.


34 Ibid.
35 B. de Reigny, Almanach général de tous les spectacles, 1791; Traz, p. 37.
36 Irmãos Goncourt, em Traz, pp. 79-80.
37 Ibid., pp. 81-83. Sobre a importância do Palais-Royal na insurreição que resultou na República, v.
J. Peltier, The Late Picture of Paris; or a faithful narrative of the Revolution of Tenth of August, L,
1792, vol. 1, pp. 219-220, 231, além da p. 31.
60 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

os líderes parisienses se encontraram pela primeira vez. Os políticos jacobinos


tinham grande desconfiança do Palais-Royal em razão de sua óbvia falta de
disciplina e, ao mesmo tempo, em razão do medo oposto de que ele viesse
a ser submetido à disciplina de um potencial reclamante do trono: Filipe
de Orléans. Eles temiam não só os defensores do poder real, que também
controlavam cafés dentro do Palais, mas também os amigos estrangeiros da
Revolução que gozavam da hospitalidade do Palais-Royal. Assim, durante
a mobilização nacionalista de 1793, quando toda a Paris se tornou teatro
de um conflito político, a ditadura jacobina de Robespierre cerceou a liber­
dade do Palais-Royal. Os cafés quartéis-general dos jacobinos e babeufistas
ficavam um pouco mais além da margem direita. Assim, muito antes que
o Circo fosse incendiado em 1798 e os cafés despejados por Napoleão em
1802, o Palais-Royal perdeu sua centralidade.
Mas como pôde o Palais-Royal mobilizar as emoções das massas com tanta
eficiência durante os primeiros anos, antes que o aparato estatal e o estado
de exceção militar pudessem ser invocados contra ele? A verdade parece estar
em que os cafés ofereciam não só um lugar seguro para encontros políticos,
mas também o clima inebriante de uma utopia terrena. Distinções de status
inexistiam, e os homens eram livres para exercer liberdade sexual bem como
política. Em uma única visita, era possível sorver libações libertadoras como
as de um novo licor de três cores, saborear pratos estrangeiros em boîtes
perfumadas, ver a laterna magica traçar a história do mundo no apartamento
de Filipe-Égalité, visitar um quase pornográfico museu de cera nas arcadas,
assistir no Circo a um melodrama que incluía música e acrobacia, e por fim
descer ao subsolo para encontrar diversão que ia de ventriloquia executada
por um anão a sexo com uma prostituta prussiana de dois metros e dezoito
centímetros de altura, a Mademoiselle LaPierre.38
Numa tal atmosfera, ilusão e fantasia se mesclavam à recompensa mate­
rial e faziam parecer crível e desejável o ideal de completa felicidade secular.
O despertar hedonista se combinou à discussão política e intelectual numa
atmosfera de igualdade social e franqueza comunicativa que fora desconhe­
cida às convenções aristocráticas do antigo regime. Todas as raças estavam
representadas entre os atendentes, artistas e lojistas do Palais. Dois negros
(conhecidos como Aladim e Cipião) eram reverenciados como se fossem
“bobos” da corte do período renascentista, e eram até mesmo chamados

38 Traz, p. 75; “La Lanterne Magique au Palais-Royal”, em Du Boscq, pp. 19-25, além da p. 216.
Hillairet, Connaissance, p. 190.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 61

para dirimir conflitos.39 A forma de comunicação era o igualitarismo. A


linguagem freqüentemente escatologica dos cafés foi incorporada às peças
teatrais produzidas pelo Duque de Orléans no seu “Jardim da Igualdade”. O
seu chamado genre Poissard criou formas expressivas que logo iriam achar
lugar no jornalismo revolucionário.
O Palais-Royal era um local fortemente verbal, a infectar Paris e toda a
França com retórica revolucionária e discurso iconoclasta. Como notava um
panfleto já em 1790: “O Palais-Royal é um teatro, o qual imprime um grande
movimento à capital e a todas as províncias do reino francês!”.40
O escritor anônimo estava descrevendo um incidente no qual Mirabeau foi
desafiado pela multidão no Palais; e a conclusão era que a legitimidade não
estava mais com o orador da Assembléia, o qual se esconde “sob a máscara
do interesse nacional”, e sim com o povo espontâneo no Palais.41 O Palais
se tornara não só “o templo do patriotismo e da sabedoria”, mas também
um ponto de combustão para la révolution sentimentale: aquela “imensa e
quase universal explosão de sensibilidade” que se iniciara com Rousseau
e ajudara a transformar uma crise política numa revolta emocionalmente
intensa. “De maio a outubro de 1789, não existe uma cena sequer [...] que
não termine em lágrimas e abraços”. E muitas dessas cenas começavam no
Palais-Royal: “Um templo sagrado no qual os sons sublimes ressoam em
comemoração dessa revolução que é tão feliz para a nação francesa e tào
bom augùrio para todo o universo”.42
Dentro do café, um pequeno grupo de amigos fiéis se reunia numa mesa
e gradualmente formava uma nova unidade fundamental da atividade re­
volucionária: o “círculo”. Mercier observou que mesmo antes do início da

39 Du Boscq, p. 68.
40 Grande Aventure arrivée hier au soir au ci-devant vicomte de Mirabeau, au Palais-Royal, sem lugar
nem data, mas de 1790, p. 21 (BH). Alguns elementos sobre a nova linguagem empregada no Palais
se encontram em Rogers, pp. 66-70.
41 Aventure, p. 19.
42 Ibid., p. 18.
V. o livro de André Monglond imerecidamente ignorado, Le Préromantisme français, Grenoble, 1930,
2v.,para um tratamento da “explosão de sensibilidade [...] sem fingimento [... | que não terminava em
lágrimas e abraços” (v. 2, pp. 406, 408) e a teoria geral de que a Revolução Francesa se desenvolveu
em parte de uma anterior révolution sentimentale (v. 1, p. 276, e “Les origines sentimentales de la
révolution”, v. 2, p. 79 ss.).
A intensidade do culto revolucionário da sensibilidade é ilustrada pelas denúncias do “vício da
insensibilité” e pela proliferação de neologismos criados para descrever aqueles que produzem
as distorções da sensiblerie, sensiblomanie ou sentimanie [diferentes designações para a “moda
sentimentalista”] (v. 2, pp. 444-446).
62 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

revolução em 1789 “o gosto por círculos, desconhecido de nossos pais e


copiado dos ingleses, começara a se naturalizar”.43
Diferentemente dos ingleses, os franceses no Palais-Royal ficavam “sérios
e solenes uma vez reunidos em um círculo”.44 Um pequeno grupo poderia
ir além do convívio superficial do café e aprofundar a dedicação ao círculo:
unidos pela busca da verdade, pelo compartilhamento de idéias reservadas
e pela “força da igualdade uniforme”.45
O mais importante desses grupos a aparecer no Palais-Royal durantes
os turbulentos e criativos primeiros anos da revolução foi o Círculo Social
(Cercle Social), que de algum modo foi o protótipo das organizações revolu­
cionárias vindouras. Seu fundador, Nicholas Bonneville, foi tão importante e
inovador em sua época quanto vem sendo ignorado desde então. Devemos
voltar nossa atenção agora para esse memorável personagem.

Nicholas Bonneville e o jornalismo profético


Redações de jornal eram, não menos que os cafés, terreno fértil para a nova fé
revolucionária. De fato, em praticamente todo momento crucial da Revolução
Francesa jornalistas estiveram no centro — ou talvez na centro-esquerda,
com líderes políticos ativos tendendo ligeiramente para a direita.
O Abade Sieyès, residente do Palais-Royal46 e destacado líder do Tercei­
ro Estado em 1789, sugeriu que o Quarto Estado do jornalismo pode ter
sido até mais importante que o Terceiro: “A imprensa mudou o destino da
Europa; ela mudará o destino do mundo [..JA imprensa é para os imensos
espaços de hoje em dia o que a voz do orador era para a praça pública em
Atenas e Roma”.47
Sob muitos aspectos, o Quarto Estado substituiu o Primeiro, a Igreja.
Na França revolucionária, o jornalismo rapidamente reivindicou para si o
antigo papel da Igreja como propagador de valores, modelos e símbolos para
a sociedade em geral. De fato, o surgimento de dedicados revolucionários
ideológicos numa sociedade tradicional (na Rússia da década de 1860 não
menos que na França da década de 1790) se devia em grande medida à trans-
43 Mercier, Tableau, v. 10, p. 133.
44 Ibid.
45 Ibid., p. 136.
46 P. Bastide, Sieyès et sa pensée, 1970, pp. 51-54.
47 Discurso na Assembléia Nacional de 20 de janeiro de 1790; citação estendida se encontra em Paris
révolutionnaire, 1848, p. 326.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 63

formação de padres e seminaristas letrados em jornalistas revolucionários.


Assim como as relações estado-igreja numa época anterior, as relações entre
jornalistas e políticos da revolução envolveram uma profunda interdepen­
dência e periódicos conflitos.
A nova classe de jornalistas intelectuais da Revolução Francesa criou tanto
o senso fundamental de legitimidade como as formas de expressão da tradi­
ção revolucionária moderna. O jornalismo foi a única profissão remunerada
praticada por Marx, Lênin e muitos outros revolucionários proeminentes
durante seus longos anos de impotência e exílio.
A história da ligação entre jornalismo e revolução — à qual retornaremos
várias vezes — começa com o repentino estabelecimento, no início da revolu­
ção, de duas novas condições aos jornalistas: uma nunca vista concessão de
liberdades civis e uma atribuição de novas incumbências na mobilização civil.
A idéia de que os acontecimentos na França eram parte de um processo
mais grandioso que a soma de suas partes foi popularizada pelos novos jor­
nais que assomaram em 1789, como o Révolutions de France et de Brabant
e o Révolutions de Paris. Quando este último parou de ser publicado, em
fevereiro de 1894, proclamou que o povo agora estava no poder e que la
révolution est faite49, [“a revolução está concluída”]. Mas, à época, o Reino
do Terror estava em seu auge e uma nova espécie de jornalista-agitador havia
educado as massas para acreditar que a revolução não estava completa: eram
gente como o médico suíço-sardenho Jean Paul Marat e o libertino noman­
do Jacques-René Hébert, que começara sua carreira de jornalista como um
vendedor de bilhetes do Théâtre des Variétés no Palais-Royal.
Marat quebrou o tabu de usar a imprensa para pregar abertamente vio­
lência contra seus companheiros franceses.4849 Ele institucionalizou a denúncia
perpétua de traidores — freqüentemente escrevendo escondido ou do exílio
o seu L'Ami du Peuple [O Amigo do Povo]. Ele em muitos sentidos prenun­
ciou e legitimou as principais idéias da ditadura jacobina — ao atacar tanto
os girondinos quanto o Palais-Royal. Quando assassinado em sua banheira

48 L. Prudhomme, Histoire des journaux et des journalistes de la révolution française, 1789-1796,


1846, v. 2, pp. 230-232. O termo “jornalismo” ainda não estava em uso no período revolucionário
(Brunot, v. 9, p. 808), e seu emprego retroativo tende a banalizar uma profissão que à época recebia
rótulos mais inflamados.
49 Acredito que isto seja mais exato do que a sugestão de Aulard de que Marat, sozinho, propôs uma
teoria da violência nesse período: A. Aulard, “La théorie de la violence et la révolution française”,
Études et leçons sur la révolution française, 1924, nona série, esp. pp. 12-16. As exortações de Marat
não chegavam tão perto de compor uma “teoria” quanto as de outros, como John Oswald.
64 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,FM F HISTORIA

na véspera do Dia da Bastilha, em 1793, tornou-se um mártir da revolução


incompleta e foi imediatamente transfigurado num ícone pelo famoso quadro
de David. Outros cinco jornais apareceram para dar prosseguimento ao de
Marat; dois outros se chamaram Véritables Amis du Peuple [Verdadeiros
Amigos do Povo].50
Hébert, mais simples, deu ao povo não um amigo, mas um porta-voz: o
rude, mas sincero, “Pai Duchêne”, um personagem folclórico muito conhe­
cido nos vaudevilles de Paris e nos cafés do Palais-Royal. Hébert compunha
seus editoriais na linguagem grosseira dessa personalidade mítica, a qual se
tornou uma espécie de João Ninguém para a plebe parisiense e emprestou
seu nome ao jornal de Hébert, Père Duchêne; inspirou mais imitadores até
do que Marat.51 Hébert popularizou a técnica revolucionária de anatematizar
pessoas não enquanto indivíduos, e sim pelos pecados que elas supostamente
personificavam: Brissotisme^ Buzotisme e assim por diante.52
Père Duchêne por breves períodos chegou a ultrapassar o reino do comen­
tário e mesmo da agitação para exercer diretamente liderança revolucionária.
Hébert tinha descoberto o segredo de como despertar os instintos animais
das massas através do poder da página impressa. A ressonância de Père
Duchêne53 foi tão grande que ele reapareceu em toda revolução da França
ao longo do século xix junto com Mère Duchêne [Mãe Duchêne], Les Fils
du Père Duchêne [Os Filhos do Pai Duchêne] e assim por diante.
Essa personificação rústica da revolução era mais que um mero herói de
moralidade54 ou que um porta-voz da esquerda revolucionária. Ela representa­
va uma profanação ritual da autoridade, algo tão importante para a revolução
cultural quanto fora a mudança legal da autoridade para a revolução política.
A celebrada mundanidade do jornal de Hébert não apenas atraía as massas,
como também as encorajava a pôr abaixo a secreta tirania de linguagem
exercida pela França aristocrática e suas complexas convenções de clássico
comedimento. As palavras proibidas de Hébert anunciaram e legitimaram
50 L. Hatin, Histoire du journal en France, 1631-1853,1853, pp. 61-62. O título do primeiro panfleto
revolucionário de Hébert, produto de um esforço coletivo em data tão recuada como 1790, mostra
a importância que tinham para ele tanto a forma de entretenimento favorita no Palais-Royal quanto
seu prazer quase indulgente de flagelar a aristocracia: La Lanterne magique, ou Fléau des aristocrates.
51 G. Walter, Hébert et le Père Duchêne, 1946, pp. 38 ss.; sobre a lista de imitadores e sucessores, p. 357.
52 Walter, pp. 365-366, e todo o seu inestimável apêndice: “lexique de la langue d’Hébert”, pp. 359-399.
53 V. a introdução de A. Soboul à reedição fac-similar de Père Duchêne, 1968.
54 Moralidades: gênero teatral alegórico e didático muito praticado ao fim da Idade Média, chegando a
alcançar a Inglaterra do século xvi. Nele se costumava personificar aspectos abstratos da existência
humana: o Orgulho, a Inveja, o Destino, a Doença, a Alma, a Beleza etc. — NT.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 65

os atos proibidos cometidos durante o Reino do Terror. Muitos apoiadores


mais antigos e aristocráticos da revolução tiveram suas línguas silenciadas
por Hébert antes que suas cabeças fossem removidas pelos leitores de Hébert.
Junto à captura do poder, veio a “captura do discurso”, prise de parole. De
fato, os gritos de quatro letras55 dos jovens manifestantes do fim da década
de 1960 refletiam a tática do choque político de Hébert, o qual

[...] nunca começava um número do Père Duchêne sem empregar um foutre [“fo-
der”] ou um bougre [“imbecil”, “filho da mãe”]. Essa vulgaridade grosseira não
queria dizer nada, mas apontava [...] para uma situação inteiramente revolucionária
[por meio da linguagem] [...] a fim de impor algo que ia além da linguagem e que
é tanto a história quanto o papel que cada um deve desempenhar nela.56

Em uma cultura intensamente verbal, o choque lingüístico era essencial


para sustentar o espírito revolucionário. O efeito intimidador do discurso
aristocrático ou acadêmico tinha de ser abalado “através da apropriação da
palavra proibida, aquela que a ordem estabelecida proíbe porque destrói
sua legitimidade. A palavra que é escondida e proibida; a palavra que foi
soterrada sob camadas superpostas de sedimentada respeitabilidade”.57
Hébert atravessou essas camadas com uma vulgaridade que alimentou a
ira do populacho parisiense quando as reservas de comida se esgotaram ao
fim do inverno de 1793-1794. Ao exigir controle social e distribuição eco­
nômica, o jornalista excedeu os limites do que os políticos poderiam tolerar.
Martirizado por Robespierre, Hébert foi redescoberto nos anos 1840 como
herói esquecido da revolução e como novo modelo para jornalistas militantes
revolucionários que estavam desiludidos com a cultura burguesa e ansiosos
mais por mudança social que por mudança política.
Mas, entre todos os pioneiros do jornalismo revolucionário, Nicholas
Bonneville foi talvez o mais original. Ele foi o primeiro a publicar o famoso
grito da Marselhesa*. “Aux armes, citoyens!”, antes até que fosse utilizado
para levar a multidão à Bastilha.58 De maio a julho de 1789, o novo jornal de

55 Fuck — NT.
56 R. Barthes, Degré zéro de Récriture, 1953, p. 7. Para um comentário sobre o emprego dessa tática
no maio de 68 pelos estudantes revolucionários em Paris, v. M. de Certeau, La prise de la parole,
1968.
57 A. Decouflé, “La révolution et son double”, Cahiers Internationaux de Sociologie, 1969, jan.-jun.,
pp. 33-34.
58 Em um discurso aos eleitores de Paris em 25 de junho de 1789, reimpresso em La Chronique du
Mois, maio de 1792, pp. 95,101 (LC). Esse período inicial da atividade revolucionária é discutido na
tese inédita apresentada à Sorbonne por C. Delacroix, Recherches sur le Cercle Social (1790-1791 ),
66 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA GRIGI.\ I F HISTÓRIA

Bonneville, Le Tribun du Peuple, voltou a atenção da revolução que ocorria


para “a revolução que está sendo preparada”.59 Ele buscava a libertação
não de uma república política qualquer, mas da “república das letras”:60 um
agrupamento de intelectuais para guiar a humanidade.
Bonneville via o seu novo jornal como um “círculo de luz”, cujos escritores
transformariam o mundo ao se fazerem “ao mesmo tempo um centro de luz
e um corpo de resistência”.61 Deveríam ser “legisladores do universo”,62 a
preparar “um grande plano de regeneração universal”63 e a se opor àqueles
“seres pusilânimes que a multidão indiferente chama de moderados”.64 A
autoridade suprema não deveria ser algum funcionário público eleito, mas
um “tribuno”: uma versão moderna do comandante tribal idealizado dos
incorruptíveis primeiros romanos. A revolução por vir deveria ser condu­
zida por um “tribuno do povo”, uma reencarnação dos líderes especiais
originalmente escolhidos pelas legiões plebéias em 494 a.C., a fim de que as
defendessem contra os patrícios romanos.
Na véspera do primeiro aniversário da tomada da Bastilha, Bonneville se
tornou o primeiro a utilizar a mais elementar arma no assalto revolucionário
à linguagem. Ele substituiu o formal e aristocrático vous, ao se dirigir ao rei
da França, pela forma plebéia e familiar de tratamento, “tu”.65
Embora Bonneville tenha sido eleito secretário da assembléia representa­
tiva da Comuna de Paris que se reuniu em junho de 1790, foi basicamente
através do seu jornal que ele veio a exercer seu “tribunat dans la République

1975, gentilmente disponibilizada por A. Soboul. O único estudo significativo publicado é o de P.


Harivel, Nicholas de Bonneville, Pré-romantique et révolutionnaire 1760-1828, 1923, o qual tem
abordagem literária e faz pouca menção à atividade revolucionária. Rudé (Crowd in Revolution,
p. 59) vê em Bonneville “O fundador da milice bourgeoise". Materiais importantes sobre as suas
atividades revolucionárias posteriores, mas não constantes desses outros estudos, encontram-se em
P. Caron, “La Mission de Loyseau et de Bonneville à Rouen (setembro de 1792)”, La Révolution
Française, 1932, pp. 85,236-258,326-344; e também, para informação bibliográfica sobre a família
de Bonneville, pp. 345-349. O incêndio no Palais-Royal em 1798 destruiu os papéis de Bonneville
desse período, o que torna a reconstituição de seu papel coisa particularmente difícil.
59 “La révolution qui se prépare”, Tribun, p. 47.
60 Tribun, pp. 104, 114,148-149 (BN). V. Delacroix, p. 10.
61 Le Tribun, p. 114.
62 Ibid., p. 104.
63 Ibid., p. 44.
64 Ibid., p. 37 ss.
65 A. Aulard, “Le tutoiement pendant la Revolution”, Études et leçons sur la révolution française, 1914,
terceira série, p. 28, nota 1. Aulard, seguindo a prática de outros grandes historiadores da revolução,
menoscaba o emprego pioneiro por Bonneville como puramente “poético” e ignora sistematicamente
sua importância mesmo quando se refere às suas inovações.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 67

des lettres”66 [“seu tribunato na República das letras”]. No décimo sétimo e


último número do seu Tribun, falou de sua intenção de dar à revolução “uma
boca de ferro [...] uma espécie de tribuna que sempre estará disponível”.67
Ele publicou um Bulletin de la Bouche de Fer [Boletim da Boca de Ferro] no
verão68 e em outubro fez circular o primeiro número de La Bouche de Per,
que eie via corno urna nova espécie de oráculo público:

C’est la force magique


Et sa bouche de fer sauve la République.

[É uma força mágica


E sua boca de ferro salva a República].69

O primeiro número chamava La Bouche de “um poder superior, diferente”,


um “quarto poder”70 — um poder posto em separado e acima dos três ramos
de governo que a Revolução Americana havia ensinado os reformadores
europeus a admirar. Esse “poder superior” tinha o direito e a obrigação de
conduzir a censura e a denúncia em defesa da revolução. Sua missão era a
“vigilância universal” em prol “daquela massa de bons cidadãos ainda não
suficientemente esclarecidos para saber o que desejam”.71
Repórteres do jornal de Bonneville eram “tribunos do povo” que combatiam
tendências despóticas não apenas de monarcas, mas também de assembléias
patrícias. Esses tribunos deveríam não só representar sua região, mas também
conhecer e reportar “o coração de seu povo”.72
66 Carta de Bonneville a uns “Amigos da Liberdade” não identificados, em junho de 1790; Lacroix,
Actes, primeira série, 1898, v. 7, p. 572.
67 Delacroix, p. 10. Essa obra trata, pela primeira vez em pormenores, das substanciais atividades
revolucionárias de Bonneville, que ajudaram a garantir provisões para Paris e Rouen. Mesmo depois
de ser secretário da assembléia comunal de junho de 1790, continuou a se dirigir tanto ao prefeito
quanto aos presidentes dos distritos seccionais de Paris na condição de Représentant de la commune
(Lacroix, Actes, primeira série, 1898, v. 7, pp. 565-571).
Uma valiosa tese de doutorado, a qual chegou tarde demais ao meu conhecimento para que pudesse
utilizá-la de modo mais amplo neste trabalho (G. Kates, “The Cercle Social: French Intellectuals
in the French Revolution”, Chicago, 1978), argumenta que o Círculo Social teve origem na luta
da Comuna de Paris contra o prefeito (p. 16 ss.) e depois contra Assembléia Nacional (p. 101 ss.).
Kates consegue identificar 121 membros da Confederação, dos quais aparentemente apenas dois
eram trabalhadores manuais (pp. 51-52).
68 Dalin, Babeuf, p. 317.
69 Lacroix, Actes, v. 7, p. 578.
70 Delacroix, p. 21.
71 Ibid., p. 36.
72 La Bouche de Fer, v. 1, 1790, p. 54, além de p. 50 ss. O programa é proposto em Du cercle social
qui en a conçu le dessin... et de tous les cercles de francs-frères qui lui sont affiliés, 1790, o quai é
discutido em R. Rose, “Socialism and the French Revolution: the Cercle Social and the Enragés”,
Bulletin of the John Rylands Library, 1958, set., p. 144.
68 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Todas as nações e línguas deveríam mandar mensagens para a caixa de


correio de Bonneville, a qual tinha a forma de uma boca de ferro. Essa “boca”
iria engolir e digerir as palavras com que foi alimentada e então anunciar o seu
conselho aos “amigos da verdade” de todo o mundo. Se as “bocas de ouro”
falavam de guerra, a “boca de ferro” anunciava a chegada da paz universal.73
Realmente, sua distribuição nas ruas era anunciada por trombeteiros.74 Ainda
que o jornal de Bonneville tenha deixado de ser publicado em 28 de julho
de 1791, os ecos de suas trombetas não desapareceram.
Nos primeiros anos da revolução, Bonneville e outros jornalistas literários
realmente inventaram uma nova e pós-aristocrática forma da língua francesa,
rica em neologismos, a qual fora saudada como la langue universelle de la
République.75 Essa linguagem foi imposta às províncias prenhes de dialetos
como um meio de destruir as lealdades locais em uma época de risco na­
cional. Depois de 1792, os documentos do governo central deixaram de ser
traduzidos para os dialetos provinciais; em alguns sentidos, um “corpo de
linguagem” substituiu o corpo do rei como símbolo da unidade francesa.76
Essa nova linguagem era derivada da língua viva da própria revolução.
A França revolucionária destruiu muitas tradições orais das províncias e do
campo no processo de irradiação de sua própria música e discurso desde
Paris. Nas mãos de companheiros de Bonneville, homens como Anacharsis
Cloots, o “orador da raça humana”, a língua falada tendia a recapturar sua
função primitiva de encantamento comunitário. O amigo mais próximo de
Bonneville, Claude Fauchet, foi um cura que participou do assalto à Bas­
tilha e depois tomou de assalto o púlpito com um novo gênero de sermão
revolucionário. Na própria cidadela da França católica, a Catedral de Notre
Dame, Fauchet empregou palavras que anteciparam Lincoln ao reivindicar
uma nova forma de governo: “pour le peuple, par le peuple, au peuple [do
povo, pelo povo, para o povo]”.77
73 Contraste feito por Bouchet, discutido em A. Mathiez, “Sur le titre du journal ‘La Bouche de Fer’”,
Annales Révolutionnaires, v. 19, 1917, p. 690. Delacroix (p. 13) atribui sem aduzir fonte o título à
Eneida de Virgílio; mas parece antes se originar nas Geórgicas, n, 43-44: mihi si linguae centum sint,
oraque centum, Ferrea vox [na tradução de Odorico Mendes, e inserido no contexto do verso que o
precede: “A matéria abranger não posso em metro, / Nem com voz férrea, bocas cem, cem línguas”].
74 Ibid., p. 687.
75 Carta de Io de dezembro de 1792 do Diretor do Departamento de Corrèze ao Ministro da Justiça,
citada em M. de Certeau, D. Julia e J. Revel, “Une Ethnographie de la langue”, Annales, 1975, jan.-
fev., p. 27. V. também dos mesmos autores, com informações mais completas, Une politique de la
langue. La révolution française et les patois, 1975; e J.-R. Armogathe, “Néologie et Idéologie dans
la langue française au 18 e siècle”, Dix-Huitième Siècle, 1973, n° 5, pp. 27-28.
76 Sugestão de Certeau durante conversa com o autor, em julho de 1975, como um desenvolvimento
de sua discussão em “Ethnographie”, p. 28.
77 Ainda em 1791, citado por Delacroix, pp. 53, 70.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 69

Muitos líderes revolucionários tinham sido educados em retórica pelos


jesuítas e em oratória na condição de advogados de acusação ou de párocos
pregadores. Filósofos do período pré-revolucionário tinham cada vez mais
buscado “menos provar que comover, menos demonstrar que sensibilizar”.78
Jovem advogado, Robespierre sonhara estimular “nos corações esse doce
tremor por meio do qual as almas sensíveis respondem à voz do defensor da
humanidade”.79
“Vous frémissez, messieurs!” [“Vós tremeis, senhores!”]. Foi o que disse
Danton à Assembléia Nacional quando esta se preparava para fundar a
primeira República Francesa em 1792. Esse “voluptuoso tremor” parecia
ser um “símbolo do contágio pela palavra”.80 Refletia também a transfor­
mação decisiva que o próprio Danton, o “Mirabeau da plebe”, realizara
na retórica revolucionária: o abandono de metáforas clássicas e de formas
aristocráticas em benefício de um discurso prosaico voltado para as mas­
sas.81 A oratória desse novo idioma alimentou a febre de 1792-1794 e
prevaleceu nos novos rituais cívicos.
Os jornalistas revolucionários freqüentemente pareciam ecoar, senão
mesmo reproduzir, a palavra falada. Acreditava-se que o discurso espontâ­
neo se aproximava da própria linguagem da natureza. Existia uma repulsa
quase física a qualquer coisa escrita que não fosse inspirada por idéias
revolucionárias. Saint-Just denunciou o “demônio da escrita” que conduziu
à “tirania das redações”.82 Cloots preveniu contra “os homens de letras que
não eram homens de idéias”.83 Chegava a ser quase audível a reclamação
de Bonneville contra a “mania de decretos”: “Point de décrétomanie ou
nous perdons les moeurs et la liberté [Chega da decretomania que nos põe
a perder os costumes e a liberdade!]”.8485
Bonneville insistia em que a autoridade dos intelectuais revolucionários
deveria suplantar de uma vez por todas a dos políticos autoritários. Ele fora
um dos poucos a insultar Necker antes da revolução, a denunciar Lafayette
como um potencial “César” e a advertir a respeito das ambições jacobinas
com o lema point de société dominatrice35 [basta de sociedade dominadora].
78 Trahard, Sensibilité révolutionnaire, p. 41, e toda a seção “Le recours à l’éloquence”.
79 Citado em ibid., p. 189.
80 Ibid., p. 185.
81 A. Aulard, Les Orateurs de la révolution, 1907, v. 2, pp. 198-199 e ss.
82 Saint-Juste, Oeuvres (ed. Gratien), p. 184.
83 Cloots, La République universelle ou adresse aus tyrannicides par Anacharsis Cloots, orateur du
genre humain, 1793, p. 82.
84 Bonneville, Le Nouveau Code Conjugal, établi sur les bases de la Constitution..., 1792, p. 25 (LC).
85 La Bouche de Fer, 3 de abril de 1791, citado em Delacroix, p. 83.
70 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM F. HISTÓRIA

A aparição dos intelectuais revolucionários no mundo moderno é inseparável


de sua adoração pelo le peuple-Dieu [povo-Deus]. Para Bonneville, o único an­
tídoto para o comodismo aristocrático das “sociedades falantes” era a imersão
na linguagem do “povo”. Bonneville tinha em mente, é óbvio, não a linguagem
efetivamente falada pelas pessoas comuns, mas aquilo que ele imaginava ser a
linguagem secreta dos seus verdadeiros desejos, a expressão de bondade que
preservavam ao viverem naturalmente como “irmãos e amigos”.86 Bem antes
da revolução, Bonneville tinha incentivado o aristocrático Condorcet a falar de
maneira mais simples. Se os escritores são incapazes de inspirar o povo, o qual
“por sua própria natureza é sempre de uma sentimentalidade arrebatadora”, a
culpa está na perda de contato do aristocrático philosophe com a “linguagem
de fogo”, “a linguagem universal: suspiros e lágrimas”.87
Em sua busca proto-romântica por origens puras e simplicidade radical,
Bonneville sugeriu que tanto a linguagem quanto os cultos de adoração se
originaram no momento em que pela primeira vez o homem fez o fogo tocar a
água e ouviu o sibilante som is-is. Ele defendeu que a Catedral de Notre Dame
tinha sido construída sobre o culto anterior e mais universal de Notre-Isis.88
Os mitos legitimadores da revolução ficaram indissociavelmente ligados
a palavras-chave tiradas da linguagem dos “suspiros e lágrimas” e foram
utilizados mais como encantamento que como esclarecimento. O discurso
racional dos filósofos foi engolfado por uma torrente de termos criados
pelos intelectuais para a plebe, que eram repetidos a gritos ritmados e
destacados com itálico ou negrito em panfletos e cartazes. Reformadores
literários duma geração anterior denunciaram amargamente a nova “dis­
posição de vencer as discussões” com idées forces*9 de se valer do “poder
de palavras mal definidas” e de ocultar denúncias mediante o uso de “on
dit que...” [diz-se que], em vez de empregar “um sujeito pessoal preciso”.90

86 Sobre a justaposição que Bonneville faz de associations parlières com sociétés des frères et d’amis,
cf. Chronique du Mois, julho de 1792, p. 82.
87 Lettre de Nicolas de Bonneville, avocat au Parlement de Paris à M. le Marquis de Condocert, L, 1787,
p. 41 (BN).“Hino à verdade”, La Poésie de Nicolas Bonneville, 1793, p. 155 (BA); e a tradução por
Bonneville de Jules de Tarante, citada em Harivel, p. 92.
88 Baltrusaitis, Quête, pp. 28, 30-31, 65-66; Poésie de Bonneville, p. 123 ss.
89 “Idéias-chave”, porém aqui empregado com o sentido mais específico de idéias prontas — NT.
90 Citações da tese de doutorado ainda inédita de D. Gordon, A Philosphe views the French Revolution:
the Abbé Morellet (1727-1819), Princeton, 1957, pp. 257-260. V. também Morrelet, “Remarques
philosophiques et dramatico-morales sur la particle ON”, Mélanges de littérature et de philosophie,
1818, v. 6, pp. 219-230.
Argumentos similares foram utilizados antes: ( 1 ) por literatos defensores do poder real que criticavam
os revolucionários americanos por abusarem da palavra liberdade “cujo próprio som transporta
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 71

Mas eles reconheciam que os novos jornalistas haviam descoberto o segredo


de como sublevar as massas:

O povo, sobrecarregado pelo seu trabalho diário, não tem capacidade, tempo nem
vontade de 1er. Essa enorme massa de pessoas jamais poderia ter sido levada a esse
terrível movimento nos últimos três anos mediante obras metafísicas, filosóficas
ou eloqüentes. Faziam-se necessárias outras bases [...] não livros, mas palavras:
liberdade, tirania, despotismo [...].91

Na Paris revolucionária, no auge do terror de 1794, palavras tinham se


tornado armas. Robespierre silenciara Hébert em março, e em maio justi­
ficou a censura mediante um estudo especial da linguagem, o qual descre­
via as palavras como “os elos da sociedade e as guardiãs de todo o nosso
conhecimento ” ,92
Contudo, do indisciplinado Palais-Royal veio uma convocação à tradu­
ção direta de palavras em atos em um panfleto adequadamente intitulado
L’Explosion, escrito por Jean-François Varlet, um apadrinhado de Hébert e
Bonneville, que advertia que o “despotismo tinha passado dos reis para os
comitês”.93

um charme fascinante” e por deflagrar “um entusiasmo com a política, tal qual aquele que noções
religiosas inspiram, o qual dirige os homens com uma impetuosidade incomum, que desorienta e
confunde todos os cálculos baseados em princípios racionais” (citado em Stout, “Religion”, p. 534),
e também por (2) constitucionalistas moderados na Revolução Francesa, os quais alertavam, já em
1789, para “o poder e perigo das palavras” quando usadas por líderes que “nos oprimiríam com
grilhões ao mesmo tempo em que falassem de liberdade” (Révolutions de Paris, 1789, 7 a 14 de
nov., p. 3) e para “o nome da liberdade que matava a própria liberdade” (M. J. Chenier, irmão do
poeta que foi guilhotinado, citado em Gordon, Philosophe, p. 254). Para mais elementos sobre a
oposição de importantes philosophes à revolução, cf. A. Kors, D’Holbach’s Coterie. An Enlightenment
in Paris, Princeton, 1976; também R. Mortier, “Les Héritiers des ‘philosophes’ devant l’expérience
révolutionnaire”, e S. Moravia, “La Société d’Auteuil et la révolution”, Dix-Huitième Siècle, v. 6,
pp. 45-57, 181-191.
Ao relacionar o processo de popularização política nos Estados Unidos a uma tradição anterior
de revivalismo religioso, Stout ajuda a explicar por que a Revolução Americana não foi
terminologicamente tão inovadora se comparada à inventividade institucional e prática dos franceses.
G. Wood (“Rhetoric and Reality in the American Revolution”, William and Mary Quarterly, janeiro
de 1966, p. 26) afirma a importância geral da “retorica alucinada” durante o levante americano,
mas não oferece exemplo algum de novos termos.
91 Morellet, “Apologie de la philosophie contre ceux qui l’accusent des maux de la révolution” (1796),
Mélanges, v. 4, p. 329.
92 Relato do Abade Grégoire, citado em M. Mormile, La “Neologie ” révolutionnaire de Louis-Sebastien
Mercier, Roma, 1973, p. 199.
93 Varlet, L’Explosion, p. 7 (BM). No auge de sua guerra contra a burocracia e a tradição herdada, a
revolução cultural da China estimulou a rejeição até do lema inicial da revolução: “Tire a Máscara
Burguesa da ‘Liberdade, Igualdade e Fraternidade”’, Peking Review, 10 de junho de 1966, esp. p.
13.
72 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM E HISTÓRIA

Se as palavras governavam o mundo, era de se crer que o poder decisi­


vo fosse inseparável da compilação do dicionário decisivo. Esforços nesse
sentido foram realizados por dois companheiros literários de Bonneville,
também amigos entre si, Restii de la Bretonne e Louis-Sébastien Mercier.
Cada um deles escreveu descrições detalhadas da vida comum em Paris e no
Palais-Royal no início da sublevação.94 A linguagem “universal” que cada
um buscou criar era a linguagem dos sonhos na cidade que ambos amavam
e da imaginação nos bairros que cada um conhecia melhor.
Restii tentou compilar um Glossographe para uma nova linguagem univer­
sal que libertaria o francês da mera condição de “dialeto do latim”.95 Mercier
empregou a maior parte de sua energia durante o período revolucionário em
uma obra-prima que só aparecería em 1801: Neologia ou Vocabulário das
palavras que são novas ou devem ser renovadas. Mercier comparou o seu feito
à conquista de território por Bonaparte para a república, descrevendo-se a si
mesmo como le premier livrier de la France [o principal livreiro da França] —
uma posição, ao que parece, comparável na república das letras ao primeiro
consulado de Napoleão na república da política.96 Depois de se desavir com
Napoleão, Mercier continuou trabalhando no seu parcialmente censurado
e nunca terminado Dicionário universal da língua.97
Assim como Restii e Bonneville, Mercier morreu esquecido e continua
a ser negligenciado por historiadores da revolução. Mas, à diferença dos
outros dois, sua importância para o desdobramento posterior da tradição
revolucionária não merece atenção especial; Mercier é com justiça lembrado
em primeiro lugar por prenunciar a Revolução Francesa. Sua notável obra
utópica de 1768-1781, O ano 2440., previu a destruição da Bastilha98 e uma
futura forma republicana de governo para a França. A república deveria
ser fundada não sobre mecanismos institucionais, mas sobre a linguagem
democratizada que teria “reinstaurado igual dignidade para homens e pa­
lavras. Nenhuma palavra seria vil”,99 e pessoas ao redor do mundo seriam
94 Mercier, Tableau, v. 10, pp. 132-146; Le Palais-Royal, 1790, 3v. A amizade entre Mercier e Restii é
mencionada, mas não analisada, por R. Trousson em Mercier, L’An, pp. 21-22. Mercier herdou os
papéis de Restii quando de sua morte: M. Chadourne, Restif de la Bretonne ou le siècle prophétique,
1958, p. 350, nota 2.
95 Mormile, pp. 25-26; também Restii, Mes inscriptions, journal intime, 1889, prefácio.
96 Mormile, pp. 157-158, p. 164, nota 24. O termo foi provavelmente derivado do livriste de Bonneville.
97 Ibid., pp. 201-202. Sobre o débito de Mercier para com os inovadores da terminologia revolucionária,
especialmente Mirabeau, Bonneville e Restif, ci. ibid., pp. 230-231, 306, 337-338, 347-348.
98 L’An (ed. Trousson), pp. 63-64.
99 L’An (ed. 1786), v. 3, p. 160, tal como citado em Mormile, p. 170.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 73

alimentadas por palavras de jornais “duas vezes mais longos que as gazetas
inglesas”.100 Quando a conflagração revolucionária se realizou, Mercier fez
suas origens remontarem a Rousseau101 e percebeu que ela se espalhava
mediante palavras que “crepitavam” no uso contemporâneo. A introdução
da edição alemã de O ano 2440 considerou “inflamado”,102 “full of fire”,
o cenário que ele traçara, e Mercier se valeu dessa mesma metáfora quatro
anos depois, ao sugerir profeticamente o elo entre idéias e revolução: “A
flama da filosofia [...] foi acesa e domina a Europa: o vento do despotismo,
ao inibir a flama, apenas a atiça ainda mais e a ergue em irrupções maiores
e mais brilhantes”.103
O zelador decisivo dessa chama foi o mais secreto grupo do Palais-Royal:
o “Círculo Social” de Bonneville. Essa organização combinava o ideal ma-
çônico de um círculo secreto purificado com o ideal de Rousseau de um
contrato não apenas político, mas também social. Pode ser que tenha havido,
aí, continuidade em relação ao pré-revolucionário Clube do Contrato Social
ou Clube Social dirigido por Filipe de Orléans, ao qual Bonneville tinha per­
tencido.104 Ele parece ter idealizado pela primeira vez essa nova organização
em outubro ou novembro de 1789, e primeiramente tê-la formado no verão
de 1790 a partir dos encontros editoriais às quintas-feiras do seu Tribuna
do Povo — inicialmente como um órgão de vigilância e censura a serviço de
La Bouche de Fer.105
Bonneville distinguiu sua nova organização de todos os outros clubes
revolucionários. “O Círculo Social, que não almeja nem mestres nem discí­
pulos^ simplesmente não é um clube”, ele insistiu no primeiro número de La
Bouche.106 Os membros tinham cartões secretos e novos nomes lhes eram
atribuídos. Eles compreendiam um grupo central dentro de um mais amplo

100 L’An (ed. Trousson), p. 388. Vejam-se os extratos imaginários de gazetas de 22 diferentes partes do
mundo, pp. 388-415.
101 Mercier; J.-J. Rousseau considéré comme l’un des premiers auteurs de la révolution, 1791; também
Mormile, p. 155.
102 Citado em Trousson, p. 68.
103 Éloges et discours philosophiques, p. xv, citado em Trousson, p. 22. Assim como muitos outros
philosophes, Mercier se sentia tentado a visitar a Rússia para realizar os seus planos utópicos, tendo
antes tentado sem sucesso ir ao reino de Catarina a Grande. V. a tese de doutorado inédita de T.
Zanadvorova, Lui-Sebast’ian Mers’e i ego utopichesky roman “2440-i god”, Leningrado, 1947, p.
16.
104 Cros, Fauchet, p. 29; e comentários sobre o Círculo Social, no qual ele era o principal colaborador
de Bonneville, pp. 25-41.
105 Lacroix, Actes, primeira série, 1898, vol. 7, pp. 577, 567, 564, 585-590.
106 La Bouche de Fer, 1790, vol. 1, p. 3.
74 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

“círculo patriótico de amigos da verdade”,107 e La Bouche servia de intérprete


“hierofânico” da verdade para aqueles que estavam fora.
Bonneville tentou organizar no circo do Palais-Royal uma “Confederação
Universal de Amigos da Verdade” e atraiu algo em torno de seis mil membros
para a sua sessão de abertura em outubro de 1790.108 Bonneville, ao que
parece, a via como um parlamento ideologicamente rival à Assembléia Na­
cional, organizado por “velhos amigos unidos por princípios e pelo coração
muito antes do nascimento da Assembléia Nacional”.109
A constituição da federação, publicada em novembro de 1790, a descrevia
como servidora do Círculo Social “e de todos os círculos de irmãos livres
(franc-frères) associados a ele”.110 Pode ter havido “círculos de irmãos livres”
em Utrecht, Genebra, Gênova e Filadélfia — todos eles possuíam centros
de correspondência com o Círculo Social.111 Outro grande canal parece ter
sido Londres, onde Bonneville viveu e escreveu no período imediatamente
anterior à revolução, e onde uma editora e filial formal do Círculo Social
tinha sido fundada sob a direção de “um dos nossos irmãos livres ingleses”
— John Oswald.112
Oswald era um mercenário escocês desenraizado que tinha lutado na
América e na índia, trabalhado como joalheiro e veterinário e adquirido
proficiência em um número impressionante de línguas, incluindo o árabe, o
grego e o português.113 Um dos primeiros estrangeiros a saudar a Revolu­
ção Francesa, Oswald se tornou, na prática, o correspondente londrino de
Bonneville. Ele traduzia as publicações de Bonneville, contribuía com elas e
as transmitia aos “irmãos escoceses”, aos “irmãos irlandeses” e aos “irmãos
ingleses”.
Os amigos ingleses de Bonneville denunciaram a constituição inglesa, há
muito admirada pelos reformistas franceses, como um despotismo parlamen­
tar. Ela representa os pobres do mesmo modo como os “lobos representam

107 Ibid., segunda paginação, pp. 1-4, para acesso ao “Prospectus pour le Cercle Patriotique”; e pp.
5-12, para o “Portrait du Cercle Social”.
108 Estimativas dadas em Rose, p. 146, as quais diferem ligeiramente daquelas em Lacroix, Actes,
primeira série, vol. 7, p. 597.
109 Ibid., p. 585.
110 Delacroix, pp. 33-34.
111 Rose, p. 144.
112 lonnisian, Idei, pp. 39-40, 43.
113 Ibid., pp. 35-38, complementa o relato ainda fundamental de A. Lichtenberg, “John Oswald, écossais,
jacobin et socialiste”, La Révolution Française, vol. 32, 1897, pp. 481^495.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 75

as ovelhas”.114 Oswald tomou parte pessoalmente no confronto militar da


República Francesa contra a coalização liderada pela Inglaterra. Em Paris,
no ano de 1793, logo antes de partir com seus dois filhos para morrer na
Batalha da Vendeia, publicou O Governo do povo; ou Esboço de uma Cons­
tituição para a comunidade universal. Escrito por John Oswald, irmão livre
inglês, comandante do Primeiro Batalhão de Pikes, a serviço da República
da França.115 Só uma “Constituição para a Comunidade Universal” podia
ser digna da “Confederação Universal dos Amigos da Verdade”.
Em sua principal obra dedicada à Confederação Universal dos Amigos da
Verdade, Bonneville concebia a justiça social como algo a emanar do “centro
do círculo social” e a verdade como geradora da “eletricidade” da conduta
virtuosa.116 Ele elaborou uma das primeiras justificações para o governo de
uma elite intelectual: “Na organização intelectual, a verdade é o centro em
torno do qual tudo gravita”.117 A própria dedicação à verdade pode, contudo,
exigir o ocultamento tático de algumas verdades “não por uma crueldade sem
sentido, mas para assegurar pouco a pouco, universalmente, os inumeráveis
passos que devem ser dados em nossa caminhada ascendente”.118
“Todos os partidos” deveríam respeitar La Bouche de Fer, já que este
“não serve a nenhum deles”,119 mas somente à Verdade.
Os Amigos da Verdade de Bonneville almejavam o governo universal da
“república das letras”, não o controle limitado de uma república política
qualquer. A autoridade deveria vir não desde baixo, por meio da reunião dos
états généraux [estados gerais], mas desde cima, por meio da confédération
des écrivains généraux [confederação dos escritores em geral].120

114 John Oswald, Review of the Constitution of Great Britain, 3a ed. aumentada (Paris, 1792), “vendida
no Círculo Social”, o que é citado em Ioannisian, Idei, p. 47. Desempenhou também importante
papel nessa campanha o padre inglês David Williams, cujas Lessons to a Young Prince by an Old
Statesman on the Present Disposition in Europe to General Revolution (1791) foram traduzidas e
republicadas em La Bouche', ele influenciou Bonneville antes mesmo de emigrar para a França como
“cidadão” honorário da república. Idei, pp. 41-42.
115 Uma tradução francesa foi publicada no mesmo ano: ibid., pp. 49-50 ss.
116 De VEsprit des religions. Ouvrage promis et nécessaire à la confédération universelle des amis de la
vérité, 1792, pp. 88, 249 (LC).
117 Ibid., p. 88.
118 Ibid, (apêndices da segunda edição), p. 118.
119 Ibid, (apêndices), p. 132.
120 Citado a partir de uma obra do Círculo Social não identificada segundo menção feita no Mercure
de France, 18 de dezembro de 1790, p. 96.
76 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O grupo de Bonneville era uma elite intelectual auto-proclamada, auto-


-consciente. Eram les intelligences supérieures capazes de encontrar une lumière
vive [...] dans les sphères très-élevées de la maçonnerie [uma viva luz [...] nas
elevadíssimas esferas da maçonaria].121 A esperança da humanidade está, pois,
na purificação da elite intelectual, não em impor estorvos ao seu poder. A prin­
cipal razão para o medo era externa: a persistência de uma irracional violence
par les imaginations mal réglées [violência das imaginações mal ajustadas].122
O conceito de Bonneville de governo pelas “inteligências superiores” re­
presenta a primeira equação revolucionária de inteligência abstrata com um
povo concreto reivindicante de autoridade política. Assim, Bonneville lançou
a idéia de um “círculo” intelectual secreto como unidade controladora de um
movimento internacional secreto. Ele parece ter até previsto a futura migração
dessa idéia para o leste, através da palavra alemã kreis e da polonesa kola^
até chegar à russa kruzhok, ao ter escrito isto ainda antes da revolução: “Na
França, na Itália, na Alemanha, sobretudo na Rússia, eles acalentam a espe­
rança de um dia serem admitidos aos milagrosos segredos pelos superiores
munificentes que velam por todos os membros da sociedade”.123
Bonneville previu tanto a idéia de uma intelligentsia quanto a especial
receptividade dos russos a esse conceito. Parece congruente que o fundador
(Conde Dmitriev-Mamonov) do grupo pioneiro (a Ordem dos Cavaleiros
Russos) do primeiro movimento revolucionário russo (os Dezembristas dos
anos 1820) tenha não só lido Bonneville, como ainda declarado: “Para o
delineamento básico de um plano, não conheço livro mais adequado que La
Bouche de Fer de Bonneville”.124
Em um capítulo dessa obra endereçada aos Amigos da Verdade intitulado
Da teoria das insurreições^ Bonneville descrevia como um “magistrado muito
querido” comparecería diante do seu povo na nova ordem para conduzir
uma versão naturalista da Sagrada Comunhão: “Amigos, este é o corpo do
sol que amadurece a colheita. Este é o corpo do pão que os ricos devem aos
pobres!”.125

121 Citado a partir de Fauchet, ibid., p. 108.


122 Ibid.
123 Les jésuites chassés de la franc-maçonnarie et leur poignard brisé par les maçons, L, 1788, vol. 1,
p. 27.
124 Citado a partir de V. Semevsky, Politicheskie i obshchestvennye idei dekabristov, São Petersburgo,
1910, p. 402. Cf. também M. Kalushin (ed.), Pushkin i ego vremia, Leningrado, 1962, pp. 165-166,
nota 3.
125 Bonneville, Esprit, pp. 129-130.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 77

Ele se dirigia aos seus leitores não como maçons-livres {franc-maçons}, mas
como francs-cosmopolites [cosmopolitas-livres] — uma classe inteiramente
nova que combinava a ordem natural dos antigos francos e a “fraternidade
universal” do Iluminismo. Depois de um Hino à Verdade que invocava a
necessidade de “conquistar a luz”,126 Bonneville entoava: “cercle du peuple
franc [círculo do povo livre], derramai com mão segura os vossos raios
luminosos nas atmosferas sombrias”.127
Um apêndice notável falava de “círculos mágicos” e reduzia os principais
sistemas políticos a representações gráficas circulares de como as partes se
relacionam com o centro de poder. A impressão criada pelos seus cercles
constitutionels foi a de que tanto a constituição original da Inglaterra sob
o domínio de Alfred quanto a constituição da França revolucionária repre­
sentavam sistemas simples, simétricos, se comparados com a constituição
da Inglaterra durante e após a Revolução Puritana.128 Contudo, mesmo o
mais puro dos círculos políticos parecia implicitamente inferior ao círculo
social, o qual realizaria “a perfectibilidade de todos os governos”129 ao criar
uma sociedade igualitária: o círculo perfeito no qual todos os pontos estão
eqüidistantes do centro, a Verdade.
A Confederação Universal dos Amigos da Verdade representou um dos
primeiros esforços de um pequeno círculo de intelectuais de divulgar siste­
maticamente idéias sociais radicais para uma audiência de massa. A Confe­
deração advogava uma grande communion sociale que proveria benefícios
sociais, imposto progressivo e universal e a ampliação da igualdade civil a
mulheres e negros.
“Dos clubes políticos de Paris, o Cercle Social foi o primeiro a advogar
o feminismo”.130 Ele defendia que círculos de mulheres acompanhassem os
dos “irmãos livres”,131 e em 15 de fevereiro de 1791 formou, no Circo do

126 Ibid, (apêndices), pp. 326, 322, 343, 333.


127 Ibid, (apêndices), p. 334. De acordo com o relato hostil do Mercure de France (19 de dezembro de
1790, p. 98), Bonneville dirigiu essas palavras ao sol fazendo a invocação: ÉCLAIRÉ, le monde
sera éclairé [ILUMINADO, o mundo será iluminado].
128 Ilustrações e termos-chave, ibid., pp. 236-243. Muito disso foi tomado de empréstimo de David
Williams. Cf. Ioannisian, “Dzhon Osval’d i ‘Sotisal’ny Kruzhok’”, Navaia i Noveishaia Istorila,
1962, n° 3, pp. 66-67.
129 Esprit, p. 250.
130 J. Abray, “Feminism in the French Revolution”, American Historical Review, 1975, fev., p. 49,
endossando o argumento de Aulard, citado à p. 50.
131 Bouche, vol. 1 > p. 3; Etta Palm, Appel aux françaises sur la régénération des moeurs, et nécessité de
Pinfluence des femmes dans un gouvernement libre, 1971, p. 25.
78 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Palais-Royal, uma Sociedade de Amigas da Verdade, tendo por presidente a


holandesa Etta Palm (nascida D’Aelders).132
O Círculo Social era também relativamente simpático à causa dos ne­
gros. Entre as muitas gravuras e emblemas que François, artista confrade de
Bonneville, produziu para o Círculo Social, duas das melhores representa­
vam em estilo clássico um negro e uma negra, cada um com estas legendas,
respectivamente:

Sou vosso igual. A cor não é nada, o coração é tudo, não é mesmo, meu irmão?
Livre, como vós: Assim o quis a República Francesa em cumprimento da natureza:
não sou vossa irmã?133

Desde o começo, a ênfase que Bonneville dava à igualdade social, em vez


de à disciplina política, e à determinação de ser “universal” e hospitaleiro aos
estrangeiros tornaram a sua organização suspeita aos olhos dos jacobinos.
Eles acusaram Bonneville de criar um “novo vulcão” explosivo nos cafés
subterrâneos cuja cratera era a “boca do inferno”. (La bouche d'enfer era
um jogo de palavras com o nome do jornal de Bonneville).134
Em fevereiro de 1791, Bonneville respondeu às acusações dos jacobinos
de que seu programa era “incendiário” dizendo que, na verdade, estava
tentando criar “o entusiasmo da fraternidade universal”.135 Seu material in­
flamável com freqüência era de procedência estrangeira. Em 1791, Thomas
Payne deixou sua parceria em Londres com um ex-secretário de Mirabeau e
foi morar com Bonneville e sua esposa, tornando-se seu amigo mais íntimo.
Tendo acabado de escrever sua famosa defesa da Revolução Francesa, Os
Direitos do Homem, Payne ajudou, junto a outro norte-americano residente
em Paris, Joel Barlow, a difundir a impressão de uma sucessão apostólica
que ligava a América Republicana à França revolucionária.136

132 Além do seu Appel aux françaises, v. também Discours de Mme. Palm d’Aelders, hollandaise, lu à la
confédération des amis de la vérité, Caen, s/d.; e, sobre a Société des Amis de la Vérité, A. Mathiez,
La Révolution et les Étrangers, 1928, p. 96.
133 E. Hamy, “Note sur diverses gravures de Bonneville représentant des nègres (1794-1803)”,
Anthropologie (1899), vol. 10, pp. 42-46. John Oswald, associado de Bonneville, insistia em que
os “direitos do homem” fossem estendidos não só às mulheres e escravos, mas também aos animais.
V. o seu The Cry of Nature, or an Appeal to Mercy and Justice on behalf of the persecuted animals,
L, 1791 (BN).
134 Aleksev-Popov, Sbornik... Volgina, p. 329.
135 Lacroix, Actes, primeira série, vol. 7, p. 601.
136 M. Conway, “Thomas Payne et la révolution des deux mondes”, La Revue Hebdomadaire, vol. 26,
26 de maio de 1900, p. 478; vol. 27,2 de junho de 1900, pp. 74-75. Estudos recentes de Payne não
oferecem material importante sobre sua estada em Paris e, em geral, passam ao largo do estudo de
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 79

Bonneville criticou a sugestão de Marat de que se implantasse uma dita­


dura revolucionária após o rei tentar fugir para o exterior em 1791: “Chega
de rei! Chega de ditador! Reúnam o povo e encarem o sol. Proclamem que
somente a lei será soberana”.137
A confiança em uma ordem inteiramente legal fez com que Bonneville e
Payne se opusessem a duas importantes decisões políticas da Primeira Repú­
blica francesa: a execução do rei e a instauração da ditadura de Robespierre.
Os jacobinos rejeitaram o argumento de Payne de que os revolucionários
deveríam se posicionar acima da pena de morte, e Marat denunciou Bonneville
como um “bajulador barato” a soldo de Lafayette.138
O assassinato de Marat fez crescer o medo de subversão estrangeira — e
a suspeita de que o cosmopolita Palais-Royal era o seu terreno fértil. Os
principais colaboradores de Bonneville no Chronique du Mois (o jornal
que fundou depois de La Bouche de Fer) — Brissot e Condorcet — foram
mortos, e outros amigos estrangeiros de Payne e Bonneville foram presos. A
arma que Charlotte Corday tinha usado para matar Marat fora comprada
no Palais-Royal.139 A suspeita recaiu sobre estrangeiros: o belga Proli (que
tinha editado desde 1791 o jornal Le Cosmopolite em escritórios luxuosos
localizados acima do Café Corazza); o espanhol Guzman (sobre cuja casa
de jogo pairava a suspeita de ser utilizada para contrabandear dinheiro); os
ingleses, irlandeses e norte-americanos de um hotel próximo, vistos como
orleanistas; e holandeses, alemães e italianos envolvidos com comandos
militares estrangeiros de curta existência.140
O próprio Bonneville escapou de ser preso, e assim continuou a publicar
trabalhos que eram identificados como tendo sido elaborados pela “impren­
sa”, pela “imprensa e livraria” ou pelos “diretores” do “Círculo Social”,
ainda que a organização tivesse deixado de atuar em 1791. Na verdade,
a imprensa sempre fora o coração e a alma do Círculo Social. Enquanto

Conway, o qual caracteriza (vol. 27, p. 75, nota 2) a Declaration of the Volunteers of Belfast (1791)
de Payne como o primeiro manifesto público de apoio à Revolução Francesa feito desde fora da
França. Barlow também escreveria depois uma Letter Adressed to the People of Piedmont: cf. J.
Woodress, A Yankee's Odyssey. The Life of Joel Barlow, Filadélfia / NY, 1958, p. 134.
137 Citado e comentado por Conway, p. 479; sobre o incòmodo dos jacobinos com o círculo, pp.
480-482.
138 Marat, Izbranrrye proizvedeniia, 1956, vol. 3, p. 126; Dalin, Babeuf, p. 324.
139 Morton, Bastille, p. 205.
140 Mathiez, Étrangers, pp. 37,105-111. Também os suíços tinham o seu “escritório de correspondência”
situado perto do Palais-Royal (p. 34). Sobre a furiosa campanha anti-estrangeiros ao fim de 1793
v. p. 138 ss.
so A FF R EVO I UCIOX’ARÎA: SUA ORIGF.M F HISTÓRIA

este operou, o conceito de uma transformação igualitária internacional da


sociedade foi se difundindo e aprofundando. Quando, em 1792, estava em
missão revolucionária para a nova república, Bonneville enviou um relatório
próprio destinado aos “Cidadãos Livres, diretores da imprensa do Círculo
Social, Paris”.141 Daí em diante, Varlet, o principal adversário da ditadura
de Robespierre, escreveu panfletos para a imprensa do Círculo Social. Na
condição de presidente do Comitê Central Revolucionário das seccionais de
Paris, ele pregava “insurreição permanente” como meio lógico de apoiar a
democracia “direta”.142
Varlet depois tomou parte na proto-comunista Conspiração dos Iguais
de Babeuf e continuou — junto a Sylvain Maréchal, autor do manifesto da
conspiração — a publicar na imprensa de Bonneville. O romance de Restii,
que apresentou a palavra “comunista” ao público geral, e muitas outras peças
de Mercier, amigo de Bonneville, surgiram sob o imprimatur deste último.
Até Babeuf, que se ligara em época anterior à confederação de Bonneville,
arquitetou a sua conspiração de 1796 em torno de um jornal profético que
tinha por nome o título que Bonneville criara seis anos antes: A Tribuna do
Povo.
Mas a república estava em guerra em 1792, de modo que era inevitável que
a instância de legitimidade passasse do Palais-Royal para outro lugar. Uma
nação que se levanta em armas em nome do “povo” não pode mais tolerar
uma elite de profetas de confederações cosmopolitas e da Verdade universal.
Desde o início de 1793, paramilitares “defensores da república” passa­
ram a fazer incursões sistemáticas no Palais-Royal para prender supostos
simpatizantes dos estrangeiros e da aristocracia. Em meado do ano, a França
estava em meio a guerra civil e guerra externa. Paris sofria, por um lado,
com escassez de pão e combustível e, por outro, com a abundância de jornais
patrióticos incendiários. O centro de poder passara da assembléia girondina
para a ditadura jacobina. A instância de legitimidade se movia de lugares
fechados para lugares abertos, das redações de jornal para as celebrações
públicas, do Café de Vénus para o Campo de Marte, a grande área de desfile
militar situada à margem esquerda do Sena.

141 Texto presente em Caron, “Mission”, pp. 334-335.


142 Rose, pp. 153-166; Ya. Zakher, “Zhan Varlet vo vremia iakobinskoi diktatury”, Novaia i Noueishaia
Istorila, 1959, n° 2, pp. 113-126.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 81

Os campos de celebração
E quase certo que não existia nenhuma conspiração séria dentro do Palais-
-Royal. Filipe de Orléans era fraco demais para ser uma ameaça política,
e nenhuma organização reunida em torno dos cafés possuía a estrutura de
apoio necessária para rivalizar fosse com a rede nacional de clubes jacobinos,
fosse com os governos seccionais de Paris.
Mesmo assim, o que Nicholas Bonneville havia criado no ambiente permis­
sivo do Palais-Royal era nada menos que o protótipo da organização revo­
lucionária moderna. Possuía ambições políticas globais (“uma confederação
universal”) baseadas em convicções ideológicas (“amigos da verdade”) sob
a disciplina de um grupo central secreto (o Círculo Social), o qual pretendia
transformar a vontade geral de Rousseau em estratégia revolucionária por
meio de um jornal profético (A Boca de Ferro).
Do ponto de vista físico, a organização de Bonneville pode ser vista
como uma série de círculos concêntricos. A circunferência mais exterior
era o quadrângulo de altas colunadas do Palais-Royal; o segundo círculo,
o Circo fechado onde a Confederação Universal de Amigos da Verdade
se reuniu em 1790-1791; e o círculo mais ao centro era onde o grupo de
Bonneville se reunia, em um café situado mais baixo ainda no subsolo do
que o subterrâneo Circo.
Bonneville perseguia a legitimidade, não o poder, e assim ele é subestimado
por historiadores modernos para os quais a luta entre facções políticas é, de
algum modo, mais real que a disputa de símbolos políticos. Contudo, não é
menos importante delinear a busca por legitimidade do que as políticas do
poder se quisermos penetrar nas mentes dos revolucionários, e não apenas
descrever aspectos exteriores do processo revolucionário. Bonneville fez o
mais cabal esforço de substituir o círculo da corte de Versalhes por um novo
círculo de autoridade em Paris. Mas “o povo” ainda precisava de algo em
torno do qual se reunir, um ponto de referência em comum, senão mesmo
de reverência, precisava de novos rituais que substituíssem os de Versalhes
e de Notre Dame.
A busca por autoridade em uma paisagem recém-despida das balizas
familiares levou muitos a olhar para além da linguagem à procura de certe­
za imediata. Homens e mulheres desorientados abandonaram os símbolos
“orientadores” costumeiros da comunicação convencional e se voltaram para
símbolos de “condensação” que pudessem representar diretamente a própria
82 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

verdade.143 Se o círculo mais secreto era um símbolo condensado da perfeição


e da igualdade (oposto aos símbolos lineares, hierárquicos do antigo regime),
ele precisava ter um centro: algum ponto de referência comum para unificar
e equilibrar todos os pontos da circunferência.
O ponto de união da autoridade dentro do círculo de Bonneville era a
imprensa. Era o totem dentro do Círculo Social, a laringe por trás da boca de
ferro. A imprensa se tornou e permaneceu o elemento central da autoridade
revolucionária que contesta a tirania política moderna. O cheiro de tinta de
impressão é o incenso da organização revolucionária moderna.
Mas, a despeito de toda a sua importância, a imprensa não era capaz de
prover a autoridade unificadora da sociedade, ou mesmo um símbolo de
condensação para a fé revolucionária. Em primeiro lugar, a imprensa era uma
máquina complexa, e não uma simples expressão da natureza. A autoridade
revolucionária superpunha o simples e natural ao complexo e tradicional.
Se o círculo era o microcosmo de uma natureza purificada, qualquer sím­
bolo central dele deveria ser um extrato da Natureza. Em segundo lugar, a
função da imprensa era produzir símbolos de referência escritos, não con­
densações diretas ou representações das coisas. A Paris revolucionária não
estava preparada para acompanhar qualquer desfile de palavras ou cortejo
de pensamentos. Essas criações da complexidade aristocrática só levariam
à discordância e divisão, e não a uma unidade de sentimento e propósito.
Se as palavras tiveram um papel unificador nos primeiros anos da revolu­
ção, foi mais por meio de slogans de oradores como Mirabeau e Danton do
que através de estruturas de argumentos. O quadro do assassinato de Marat
e uma gravura de Père Duchêne eram mais conhecidos que qualquer artigo
de Marat ou Hébert. Slogans e imagens’mudavam com as paixões que os
inspiravam; eram pontos de referência móveis para uma plebe inconstante.
Mas havia também símbolos sólidos que atingiam uma fidelidade mais
ampla; forneceram pontos de convergência para os rituais populares de
unidade durante os primeiros anos da Revolução Francesa. O primeiro,
claro, foi a própria Bastilha. A corporificação arquitetônica da autoridade
inflexível proporcionava um símbolo condensador para o velho regime e, ao
fim de junho e início de julho, um alvo para o até então disperso levante de
143 Sobre a diferença entre símbolos de referência, que expressam idéias lingüisticamente, e símbolos de
condensação, que de algum modo comunicam seu objeto diretamente ou se assemelham a ele, cf. E.
Sapir, Language: An Introduction to the Study of Speech, NY, 1921; e também os comentários em
Laponce, “Archetypes”, vol. 2, n° 1.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 83

Paris. A França encontrou pela primeira vez sua identidade revolucionária


não apenas ao tomar a Bastilha, mas também ao demoli-la completamente,
assim criando no centro de Paris um campo de natureza onde antes se er­
guiam torres de tradição. Com as pedras da fortaleza posta abaixo foram
construídas oitenta e três pequenas réplicas da Bastilha, as quais foram
enviadas a todos os departamentos da França “para perpetuar a memória
do horror do despotismo”.144 O terreno onde ficava a Bastilha se tornou
espaço vazio: uma tàbula rasa. Surgiram muitas propostas de preenchê-lo
com símbolos de uma nova ordem, mas a primeira a ser realizada foi a
enorme estátua da Natureza, à maneira de uma esfinge, lá erguida para a
Festa da Unidade e da Indivisibilidade de 1793, no primeiro aniversário da
derrubada da monarquia. Modelada pelo cunhado de David, a estátua viria
a ser o ponto de encontro de uma reunião, antes do sol nascer, para o canto
do “Hino à Natureza” de Gossec, para ouvir o poeta Hérault de Sechelles
1er uma invocação à natureza e para, em seguida, participar de um ritual
que consistia em nada menos que uma fusão secular dos sacramentos do
batismo e da comunhão sob uma “fonte da regeneração que representa a
natureza”: “De seus férteis seios (que ela pressionará com as mãos) jorrará
uma abundância de água pura e saudável. Dela deverá beber, cada um por
sua vez, os oitenta e seis comissários enviados pelas assembléias primárias
[...] uma única taça deverá bastar para todos”.145
O equivalente à consagração da hóstia foi o ato do presidente da Conven­
ção de encher a primeira taça e derramá-la sobre o solo, enquanto andava
ao redor da estátua da Natureza, “regando o solo da liberdade” e traçando
o círculo dentro do qual os crentes deveríam compartilhar a taça.146
A Mãe Natureza era a autoridade adversária não só do rei, mas também
da Igreja. Na véspera do primeiro aniversário da tomada da Bastilha, a
Catedral de Notre Dame celebrou não uma missa cristã, mas um musical
“hiérodrame” [hierodrama] da revolução chamado La Prise de la Bastille.147
Três anos depois, na época da Festa da Unidade e Indivisibilidade, o altar-mor
de Notre Dame foi substituído por uma “montanha” de terra desde a qual
uma atriz vestida de branco entoou o Hino da Liberdade de Gossec, como

144 Hillairet, p. 12.


145 Descrição do programa esboçado por David na Chronique de Paris, 18 de julho de 1793; tradução
presente em Henderson, pp. 357-358; ilustração da fonte, p. 356.
146 J. Tiersot, Les Fêtes et les chants de la révolution française, 1908, p. 95 ss.
147 Tiersot, pp. 27-30.
84 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

se fosse uma sacerdotisa druida. Ela invocou uma espécie de anti-trindade


secular: a Mãe (natureza), a Filha (liberdade) e o Espírito Santo (a soberania
popular):

Descenda, ó Liberdade,
Pilha da Natureza

Partindo de marcos negativos como o de enviar miniaturas da Bastilha a


todos os departamentos da França, a imaginação revolucionária logo passaria
a se valer de símbolos positivos, como o de plantar uma árvore da liberdade.
Uma árvore tinha a vantagem incalculável de ser um produto orgânico da
natureza: um símbolo de regeneração enraizado na terra, mas se erguendo
em direção ao céu. Dali a pouco festividades populares seriam realizadas em
pequenas comunidades em torno do ritual de plantar uma dessas árvores.
Havia uma natural igualdade no círculo daqueles que se reuniam para esse
evento coletivo a céu aberto, e havia nisso continuidade com a tradição apo­
litica de plantar e decorar uma árvore de mastro. Mas a árvore da liberdade
era um totem vivo: uma nova e aceitável forma de verticalidade em meio aos
impulsos horizontalizantes da era revolucionária. A árvore era de preferência
um carvalho jovem, o qual simbolizava a força e a juventude e não deitava
sombra. As atividades coletivas deveríam ser realizadas em local sobre o qual
incidisse a luz do sol, em rejeição dos tiranos esquivos que, nas palavras de
um orador, nunca se sentiam “obrigados a expor todos os seus atos à luz do
dia. Eles abandonaram as árvores e preferiram o interior de suas casas onde
forjavam os grilhões com que subjugavam a posteridade”.148 149
As árvores da liberdade com freqüência eram fertilizadas com as cinzas de
patriotas mortos em batalha e, em áreas públicas, tomavam os lugares antes
ocupados por cruzes; eram veneradas por sua pedagogia muda de “silenciosos

148 Ibid., p. 107:


Descends, ô Liberté, fille de la Nature:
Le peuple a reconquis son pouvoir immortel;
Sur les pompeux debris de Cantique imposture,
Ses mains relevant ton autel. [Tiersot, p. 107.]

[Desça até nós, ó Liberdade, filha da Natureza:


O povo reconquistou seu poder imortal;
Sobre os escombros pomposos da antiga mentira,
Suas mãos se erguem ao teu altan]
149 Cidadão Guiboust, em discurso à sociedade popular da Seção da República, citado em M. Ozouf, La
Fête Révolutionnaire 1789—1799,1976, pp. 301—302; v. também Abade Grégoire, Essai historique
et patriotique sur les arbres de la liberté.
LIVRO 1, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 85

professores da comunidade”.150 Nas festividades em comemoração à execução


do Rei Luís xvi, plantar uma árvore era o ritual mais importante, obrigatório.151
Dizia-se agora que a árvore da liberdade devia ser fertilizada com o sangue
dos reis — sangue que vinha do terceiro e mais famoso foco do ritual revolu­
cionário: a guilhotina. A guilhotina foi utilizada pela primeira vez em Paris no
dia 25 de abril de 1792 para executar um assassino que tinha sido preso três
meses antes no Palais-Royal. Vistos desde o ar livre que atravessava as árvores
da liberdade, os recessos subterrâneos do Palais pareciam particularmente
suspeitos. Já em 1790 a polícia observava essa “cloaca escura”, e o dispositivo
extraordinário revelado ao público para vingar o assassinato lá ocorrido era
uma máquina de decapitação idealizada por um membro “esclarecido” da
Assembléia Nacional, o Dr. Guillotin, para assim democratizar e humanizar a
pena capital. A execução não ocorreu antes que a nova máquina fosse testada
tanto com animais quanto com cadáveres humanos; e se deu em público com
um efeito eletrizante — inspirando repulsa bem como fascínio.
Se os rituais em torno das árvores da liberdade eram essencialmente danças,
aqueles em torno da guilhotina eram dramas da mais alta ordem. A guilhotina
era uma atração hipnótica nas grandes praças de Paris; tornou-se o principal
ator desses teatros a céu aberto. Depois de sua estréia na Place des Grèves, a
guilhotina foi, em agosto de 1792, para a Place du Carousel, bem em frente
ao palácio real. Em abril de 1793, foi deixada permanentemente à mostra do
público e transferida, em maio, para a Place Louis xv, onde ficou até o fim do
Reino do Terror. Cada gesto de cada pessoa eminente a caminho do andaime
ganhava significado especial, e lendas eram criadas em torno das supostas
palavras finais de muitos dos que pereceram nesse altar sacrificial.
A guilhotina transformou a revolução em uma peça teatral que todos podiam
compreender Era o Iluminismo posto à vista de todos, a punir todos igualmente
sem causar sofrimento desnecessário. La sainte guillotine era a assombrosa
heroína de uma peça de teatro de moralidade; o fim já era conhecido, mas sem­
pre havia a possibilidade de pequenas variações nas performances individuais.
Essa missa para as massas oferecia a certeza de um sacrifício sangrento e a
promessa de redenção coletiva. Ao fim do Terror, crianças eram presenteadas
com guilhotinas de brinquedo e pardais para que praticassem execuções.152

150 Ozouf, pp. 302, 313,315-316.


151 Ibid., p. 310.
152 J. Crocker, “The Guillotine”, Essays on the Early Period of the French Revolution, L, 1857, pp.
519-571.
86 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Esse ritual coletivo nos espaços públicos de Paris fez com que qual­
quer palco fechado perdesse a graça em comparação. O espetáculo era
gratuito e (para citar a propaganda que os teatros tinham adotado do
círculo Bonneville-Fauchet) par et pour le peuple. Talma e seus colegas do
pró-revolucionário Théâtre de la République no Palais-Royal eram especta­
dores freqüentes do drama maior que se encenava publicamente. Evreinov,
o homem que dirigiu o maior espetáculo revolucionário a céu aberto do
século XX — a recriação, pela cidade de São Petersburgo, da tomada de
poder pelos bolcheviques — talvez tenha sido quem melhor descreveu a
peça revolucionária que se encenou em Paris:

Na França do século xvm, a competição entre vida real e vida no palco havia che­
gado a tal ponto que ninguém sabia mais dizer qual era a mais teatral. Em ambas
havia frases pomposas, ensaiadas demais, um refinamento afetado de deferências,
sorrisos e gesticulações; em ambas, trajes vistosos [...] pátios [...] pó de arroz,
batom, pintas, monóculos e bem poucos rostos “naturàis”. [...]

E então tem início uma reação. [...] O primeiro a “se dar conta” no palco da
vida foi Jean-Jacques Rousseau; o primeiro no palco teatral foi Talma. Ambos, adu­
ladores na juventude, queriam que os senhores da vida retomassem a naturalidade.

Era necessário mais que uma revolução política para exibir “a enfatuação
teatral do sistema hierárquico de sua vida”.

A primeira revolução alterou apenas o mise-en-scène e os papéis [...]. Estabelecida


uma igualdade apenas teatral, a primeira coisa a merecer atenção foi o figurino:
o pintor David esboçou o traje do “cidadão livre”, o ator Talma o experimentou
no teatro e o povo o aprovou e adotou. As perucas eram queimadas, os cabelos
eram cortados rente à nuca, e as pessoas começaram a se cumprimentar com um
aceno espasmódico da cabeça, imitando os guilhotinados.153

A “paixão por teatralidade” da revolução se estendia até os corpos deca­


pitados das vítimas, já que “as pessoas brincavam com eles, cantavam para
eles, dançavam, riam, divertiam-se imensamente com a aparência esquisita
desses atores que interpretavam para elas tão desgraçadamente os seus papéis
‘engraçados’”.

Numa palavra, a Grande Revolução foi tão teatral quanto política. Só obtinham
sucesso aqueles dotados de temperamento artístico e intuição do momento certo.

153 N. Evreinov, “Teatralizatsiia zhizni”, in Teatr kak takovoi, Berlim, 1923, pp. 50-51. Para uma discussão
das teorias de Evreinov e seu impacto na encenação que ele realizou da tomada do Palácio de Inverno
(depois em grande medida incorporado ao filme Outubro, de Eisenstein), veja-se a tese de doutorado
defendida em Princeton por P. Thon, a ser publicada em breve, autor ao qual devo esta citação.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 87

Atores incorrigíveis, completamente infelizes por não terem um diretor, as pesso­


as logo encontraram um na pessoa de Napoleão: um ator que ousava ensinar o
próprio Talma.154

Mas a busca por legitimidade abrangia mais que a dança ao redor da ár­
vore da liberdade e o drama da guilhotina. Abrangia uma tentativa festiva de
realizar a utopia não no fechado Palais-Royal, mas ao ar livre: transformar
a velha Paris em uma nova Jerusalém; passar do reino do medo da guilho­
tina para uma república de júbilo na qual a Mãe Natureza era a Rainha.
Um revolucionário que propunha mudanças nos nomes das ruas de Paris
perguntou: “Não é natural que da Praça da Revolução se pegue a Rua da
Constituição em direção à da Felicidade?”.155
A própria geografia de Paris ganhou significado moral, e a única questão
pertinente para um revolucionário fiel era onde em Paris fica a Praça da
Felicidade e como se chega até ela.
A Paris revolucionária proclamou, na prática, que a felicidade se localiza
a céu aberto para ser alcançada mediante uma procissão festiva. O ponto de
destino para as primeiras e as últimas das grandes festividades revolucionárias
foi o mais amplo espaço aberto em Paris, o anfiteatro decisivo para o drama
da redenção revolucionária: o Campo de Marte.
Cerca de cem mil parisienses cavaram esse imenso campo de revista militar
e criaram uma arena de chão batido para a Festa da Federação de 14 de julho
de 1790, o primeiro Dia da Bastilha. Mais de trezentos mil franceses de todo
o país marcharam em procissão sob forte chuva para ouvir um grandioso
coro consagrar a nação francesa unida ao Sol: “fogo puro, olho eterno,
alma e fonte de todo o mundo”.156 O Campo de Marte se tornou “o centro
metafísico de Paris”;157 e os coreógrafos revolucionários decidiram que dali
em diante “as festividades nacionais não terão confinamento algum senão
o arco do céu, pois a soberania, isto é, o povo, jamais pode ser trancafiada
em um local delimitado”.158
A constituição foi distribuída ao povo, em 10 de setembro de 1791, por
um balão que desse céu aberto jogava exemplares sobre um campo aberto.
154 Ibid., p. 51. Para outra descrição alentada da Revolução Francesa como teatro (“de um pitoresco
bizarro [...] perfeição latina da forma”), v. E. Friedell, A Cultural History of the Modern Age, NY,
1954, vol. 2, pp. 380-385.
155 Cidadão Grégoire, Systèmes de dénominations topographiques ( 1793), citado em B. Baczko, Lumières
de l’utopie, 1978, p. 369.
156 Tiersot, p. 40.
157 Ozouf, Fête, p. 177.
158 Declaração feita por Sarrette, citada em Ozouf, p. 152.
88 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Enquanto os mortos veneráveis estavam sendo transferidos de cemitérios


cristãos para panteões pagãos fechados, os revolucionários vivos estavam se
mudando das catedrais cristãs para os parques pagãos — movidos por uma
espécie de claustrofobia cósmica.159
Uma procissão que partia das ruínas da Bastilha foi combinada com a
assembléia popular no Campo de Marte no segundo Dia da Bastilha em 1791.
À época da Festa da Indivisibilidade em agosto de 1793, a procissão foi de
fato organizada como uma espécie de drama da redenção revolucionária em
cinco atos. Paradas ao longo do caminho lembravam os passos da cruz. A
reunião antes do sol nascer assistiu ao astro se erguer acima da estátua da
Natureza na Praça da Bastilha. O grupo engrossava à medida que ondeava
por Paris, que foi “afogada num mar de flores”.160 O cortejo afluiu para as
Tulherias (le Jardin National) onde, aos duzentos e quarenta delegados das
quarenta e oito seções de Paris, juntaram-se toda a Convenção Nacional e
cinqüenta membros do Clube Jacobino (la société mère [a matriz]), todos
fundidos na procissão até o Campo de Marte. Eram tantas as flores, frutas
e até vegetais que se levava, que o festival foi chamado de “metamorfose
vegetal de Paris”.161 Um carro alegórico no centro da procissão era puxado
por oito bois de chifres pintados em cor dourada que traziam uma prensa
tipográfica e um arado — cada um sob uma árvore da liberdade. O Campo
de Marte tinha recebido recentemente novas árvores e os espectadores de
festivais anteriores se tornaram desta vez participantes sobre a gigantesca
“montanha” elevada como altar à Natureza, com cem mil pessoas a cantar
respostas recitativas ao sinal de trombetas e canhões.
Ao mesmo tempo em que as festividades deixavam a forma de assembléia
para assumir a de procissão, a instância de legitimidade passava do espaço
para o tempo: da natureza para a história. Com a adoção formal de um novo
calendário revolucionário pela Convenção no outono de 1793, a utopia se
tornou temporal. O lugar nenhum se tornou um determinado tempo — e o
próprio tempo apenas iniciava uma nova marcha, que seria “nova, imponente
e simples como a igualdade”.162 A própria natureza abençoou o início de
uma nova era no dia do equinócio de outono: 22 de setembro de 1792. No

159 Ozouf, p. 157.


160 Michelet, citado em Tiersot, p. 157.
161 Ozouf, p. 178; para um relato detalhado, cf. Tiersot, pp. 156—167; Baczko, Lumières, pp. 263-271.
162 Relato feito pelo principal autor do calendário, G. Romme, citado em Baczko, “Le temps ouvre un
nouveau livre à l’histoire. L’utopie et le calendrier révolutionnaire”, Lumières, p. 214. V. também A.
Galante Garrone, Gilbert Romme, Storia di um rivoluzionario, 1959; e, sobre a pouco conhecida
influência de Romme sobre o seu pupilo russo, Conde Paul Stroganov, leia-se Dalin, Liudi, pp. 9-21.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 89

exato momento em que a “igualdade era assinalada nos céus entre o dia e a
noite” e “o sol passava de um hemisfério ao outro”, a autoridade na terra
“passava do governo monárquico ao republicano”.163
O novo calendário refletia “a racionalidade e simplicidade da natureza”
e oferecia uma “nomenclatura eloqüente” de neologismos que sugere “uma
vaga ideologia ‘rural e agrícola’”.164 O calendário estava dividido em quatro
estações, com novos nomes para os meses, a fim de sugerir o estado de es­
pírito de cada um: terminações pesarosas em ôse para os meses de inverno
(Pluviôse [Chuvoso], Ventôse [Ventoso]), nomes primaveris terminados em
al sugerindo uma nova floração (Germinal, Floréal). A semana — baseada na
idéia dos sete dias da criação — foi inteiramente eliminada. Domingos e dias
de santos eram substituídos por festejos que santificavam objetos naturais
(em sua maioria ligados à agricultura): árvores, frutos, animais domésticos.
Estes últimos, escreveu um dos autores do calendário, deveriam ser “muito
mais preciosos à luz da razão do que esqueletos beatificados arrastados de
dentro das catacumbas de Roma”.165
Ele comemorava que o cultivo tivesse substituído o culto na França, ao
invocar a natureza em ambos os sentidos — como lei mais alta e como a sim­
ples área rural provinciana — como a suprema autoridade da nova ordem. Ao
anunciar a necessidade de completar a revolução “física” com uma revolução
na ordem moral, Robespierre proclamara “a religião universal da Natureza”.166
Varlet classificou 1793 de “o primeiro ano da verdade” e consignou uma nova
Declaração dos Direitos do Homem “em estado de sociedade” ao “povo da
natureza”.167 Uma nova versão de La Marseillaise se iniciava com

Voici le jour où la Nature


Reprend ses droits sur l’univers...

[Eis o dia em que a Natureza


Retoma seus direitos sobre o universo...]168

A última grande festividade no Campo de Marte (a Festa do Ser Supremo, em


8 de junho de 1794) foi a maior (quinhentos mil participantes), a mais simples
163 Romme, citado em Baczko, Lumières, p. 215.
164 Ibid., pp. 217, 223, 224.
165 Fabre d’Eglantine, citado em Henderson, pp. 399-402.
166 Mathiez, “Robespierre et le culte”, p. 224.
167 Déclaration solenelle des droits de l’homme dans l’état social, 1793 (reimpressão de 1967), p. 4.
168 Texto presente em Dommanget, “La Fête et le culte de la raison”, Annales Révolutionnaires, vol. 9,
1917, p. 355.
90 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

e a mais profundamente pastoral. Animais de guerra foram excluídos, só sendo


permitidas no cortejo pacíficas vacas e pombas. O dístico à aurora incitava os
participantes a começar o dia “no campo” tête-à-tête avec une fleur [em íntima
conversa com uma flor]; e a “exuberância vegetal” sob os céus iluminados fez
muitos acreditarem numa espécie de reverdecer em torno da guilhotina.169
“O instrumento de morte tinha desaparecido sob flores e ornamentos”.170
O calendário revolucionário parecia augurar uma nova “vida de festas”.171
Mas, em poucas semanas, tendo o próprio Robespierre sido guilhotinado, a
esperança utópica se abrandou, e o Campo de Marte voltou novamente a ser
um lugar de exercícios militares. O único festival inovador a acontecer ali no
período revolucionário posterior foi a exposição industrial nacional para os
trabalhadores em 1798, a primeira exposição desse tipo na França moderna.172
O Campo de Marte se tornou área para a exibição de metal, e o grande totem
de metal, a Torre Eiffel, por fim se erguería e dominaria os próprios campos
sobre os quais os festivais da Natureza um dia foram realizados.
Um orador depois veria em retrospectiva os grandes festivais a representar
“na navegação da vida aquilo que as ilhas eram no meio do mar: lugares
de repouso e descanso”.173 E uma imagem ainda mais poderosa do que essa
testemunha podia ter imaginado, pois muitos dos revolucionários mais
aguerridos sentiram a necessidade de, em algum momento, se retirarem da
barafunda para ilhas reais ou imaginárias.
A primeira grande festividade após a desgraça de Robespierre foi a sua
apoteose em 11 de outubro de 1794, quando uma ilha especial foi criada
para os seus restos mortais em um lago nas Tulherias. A cerimônia foi
uma espécie de repúdio rural do sepultamento fechado no Pantheon, uma
tradição que predominou do enterro de Voltaire em 1791 ao de Marat em
uma data tão recente como 21 de setembro de 1794. No cortejo fúnebre
de Robespierre, logo atrás de músicos vestidos de maneira rústica, vinham
botânicos segurando o letreiro: “O estudo da Natureza o consolou da
injustiça dos homens”174.

169 Ozouf, pp. 136—137; A. Mathiez, A wtowr de Robespierre, 1925, pp. 117-120; e também pp. 123-124.
170 C. Nodier, citado em Ozouf, p. 130.
171 Ibid., p. 131.
172 A importância dessa exibição é enfatizada por Walter Benjamin, “Paris, capitale du xixe siècle”,
Oeuvres, 1971, vol. 2, p. 129.
173 Citado em Ozouf, p. 205, nota 1.
174 Tiersot, Fêtes, pp. 202-204.
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 91

O acontecimento foi uma volta ao passado — uma imitação do enterro


de Rousseau numa ilha no lago de Ermenonville — e, ao mesmo tempo, um
prenúncio simbólico do que estava por vir. Da mesma maneira que Rousseau
tinha buscado “relevância política” escrevendo uma proposta de constituição
para a Ilha de Córsega, assim também os revolucionários pioneiros tende­
ram a encontrar esperança ou consolo no isolamento miniaturizado da ilha
“natural” — desde o vulgarizador pioneiro do comunismo nos anos 1840,
Goodwyn Barmby, o qual repetidas vezes buscou as ilhas de Sark, Man e
Wight para o seu primeiro “comunistério”, até o líder da tradição rival do
nacionalismo revolucionário, Giuseppi Garibaldi, o qual diversas vezes, tal
como Anteu, retornou à pequena Ilha de Caprera para nela renovar suas forças.
Todos aqueles que viriam a liderar a conspiração de Babeuf à época do
Diretório tinham, durante algum tempo, sob o comando ainda de Robespierre,
se retirado para uma ou outra ilha. Buonarroti, um dos conspiradores de
quem ainda falaremos bastante, tentou pôr em prática os ideais igualitários
primeiro em Córsega e depois numa pequena ilha próxima da Sardenha.
Babeuf encontrou seu retiro ainda dentro de Paris na relativa tranqüilidade
da Ile de la Cité para elaborar seu ideal agrário na relativa obscuridade da
administração alimentar. Restii voltou várias vezes à ainda mais calma île
Saint-Louis, na qual deixou inscrições comoventes e à qual se refere até em
seu próprio epitáfio.175
A Utopia original de More situava-se numa ilha;176 e a primeira utopia

175 M. Thibaut, “Restii à Carnavalet”, La Revue de Paris, 15 de janeiro 1935, p. 439. “Apprends ô ma
chère île/ Que je puis mourir/ J’ai fini mon grand ouvrage” [“Saiba, ó minha querida Ilha, / Que já
posso morrer, / Que terminei minha grande obra”]. O mais completo retrato pré-revolucionário de
uma utopia comunista feito por Restii é aquele de uma ilha imaginária em La Découverte australe
par un homme-volant, ou le Dédale français; Nouvel très philosophique. Suivie de la lettre d’un
singe, Leipzig, 1781; obra discutida em maiores detalhes por Ioannisian, “Utopiia Retifa”, p. 181
ss. J. Pinset, ao citar várias versões do hino de louvor de Restii à sua amada ilha, compreende a
ilha não tanto como o lugar de uma utopia social, e sim mais como o foco psicológico “da grande
peregrinação romântica e egocêntrica”. “Les Origines instinctives de la révolution française”, Revue
d’Histoire Economique et Sociale, 1961, n° 2, p. 201.
O entusiasmo por ilhas como refúgios protegidos contra as convenções sociais artificiais pode
também remontar a Rousseau. V. E. Wagner; L’île de Saint-Pierre ou Pile de Rousseau dans le lac de
Bienne, Berna, s/d.; Monglond, Préromantisme, vol. 2, p. 4 ss. Estímulo adicional veio da série de
livros de Charles Garnier: Voyages imaginaires, songes, visions, et romans cabalistiques, Amsterdã
/ Paris, 1787-1795, esp. vol. 8,1787: L’île inconnue.
176 A literatura utópica tornou-se imensa e cada vez mais repetitiva nos últimos anos. More criou a
palavra grega que significa “lugar nenhum”, Utopia, em seu retrato de um viajante imaginário que
descobre uma sociedade ideal: De optima reipublicae statu, deque nova insula Utopia, Louvain,
1516; e alguns tratados da Reforma que seriam publicados depois na Antuérpia eram listados como
tendo origem em Utopia. M. Kronenberg, “Forged Adresses in Low Country Books in the Period
of the Reformation”, The library, 1947, set.-dez., pp. 81-83. Surgiram fantasias similares de urna
92 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖRIA

moderna, o Código da Natureza de Morelly, surgiu de sua fantasia utópica


anterior sobre “ilhas flutuantes” e serviu de inspiração aos experimentos de
Buonarroti com ilhas.177 As idéias radicalmente utópicas de Morelly sobre

ordem ideal, como as de Andreas e Campanella, ao romper das guerras de religião do início do
século XVII (do mesmo modo como a República de Platão havia surgido depois do sofrimento e
divisão originados da Guerra do Peloponeso); mas o utopismo secular tem início com o despertar
da imaginação geografica e da crítica social na literatura do Iluminismo.
As primeiras utopias seculares — assim como muitas das mais recentes — falavam de homens que
superavam as distinções sexuais e sociais. Les Aventures de Jacques Sadeur (1676), de Gabriel Foigny,
e Histoire des Sévérambles (1677), de Varrasse d’Alais, descreviam, respectivamente, uma sociedade
de hermafroditas e uma vida comunal com oito horas de prazer por dia (Reybaud, Étude, pp. 37-40,
54,60). Mas a literatura secular logo começaria a caracterizar lugares reais com qualidades utópicas
de perfeição. A tendência de idealizar os experimentos europeus (a cidade jesuítica da Patagônia,
no Paraguai) seria logo substituída pelo louvor mais radical dos próprios índios intocados pelo
europeu, a começar por peças como Dialogues or Encounters between a Savage and the Baron de
la Houta, 1704. Ao longo do século xviii, as utopias “heróicas” que inspiram os homens a agir
prevaleceram cada vez mais sobre as utopias “escapistas” que acalentam os homens sugerindo-lhes
o sossego. Esse processo, tal como visto por J. Scacki, Utopia, Varsóvia, 1968, é similar àquele que
C. Rihs descreve como uma passagem das utopias “sentimentais” para as “revolucionárias” em Les
philosophes utopistes; le mythe de la cité communautaire en France au xvin^ siècle, 1970, bem corno
similar à distinção que E. Bloch faz entre “ucronias”, as quais olharam para trás em busca de um
passado heróico, e “utopias”, as quais, voltadas para o futuro, são fontes de otimismo militante e
revolução secular. V. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, 1955, vol. 2; e Geist der Utopie, Frankfurt am
Main, 1964; cf. também P. Furter, “Les fonctions de Putopie”, L’Imagination créatrice, la violence
et le changement social, Cuernavaca, 1968, pp. 3, 11—13, 41. B. Baczko, “Lumières et Utopie.
Problèmes des Recherches”, Annales, 1971, mar.-abr., pp. 355—386, está antes inclinado a crer que
idéias de utopia levam mais ao reformismo que à revolução. L. Sargent, “Utopia — The Problem
of Definition”, Extrapolation, 1975, maio, pp. 137-148, não discute nenhuma das obras citadas
anteriormente e lida com problemas estruturais e literários mais delimitados. Para uma série de
breves artigos e discussões — de qualidade irregular, mas sempre estimulantes — sobre idéias sociais
em utopias, cf. Le discours utopique. Colloque de Cerissy, 1978.
O pensamento utopico ajudou a lançar a busca revolucionária por uma “geografia simbólica”
(Certeau, “La révolution fondatrice”, p. 81 ss.): a busca por um local secular, tangível, onde realizar
uma sociedade alternativa. O potencial destrutivo desse tipo de especulação foi intensificado quando
combinado à tendência “polêmica, irreligiosa e socialmente revolucionária” de justapor a lei natural
à tradição cristã. R. Lenoble, Esquisse d’une histoire de l’idée de nature, 1969, p. 365. A somar-se
a esse penetrante estudo das tentativas, desde a antigüidade clássica, de “construir, contra os mitos
de uma determinada época, uma Natureza coerente submetida a leis” (p. 927), vejam-se também as
obras de G. Atkinson, esp. Le Sentiment de la nature et le retour à vie simple (1690-1740), Genebra,
1960, e de G. Chinard, esp. L’Amérique et le rêve exotique dans la littérature française ao xvne siècle,
1963, 2v.; também L. Crocker, Nature and Culture: Ethical Thought in the French Enlightenment,
1963; e P. van Tieghern, Le Sentiment de la nature dans le préromantisme européen, 1960.
177 O ainda misterioso escrito de Morelly, Code de la nature, ou le véritable esprit de ses loix, de tout
temps negligé ou méconnu, teve cinco edições entre 1757 e 1773, seguindo-se ao seu Naufrage des
isles flottantes, ou Basiliade, Messina, 1753, que alegava se tratar da tradução de uma obra indiana.
V. R. Coë, “A la recherche de Morelly”, Revue d’Histoire Littéraire de la France, 1957, jul.-set., pp.
326-328.
O projeto de Babeuf de redistribuição econômica e bem-estar social se baseava tão substancialmente
no Code de la nature de Morelly que eie pròprio chegou a ser chamado de “Morelly transformado
em um homem de ação”. H. Baudrillat, Dictionnaire d’économie politique, 1852, vol. 1, p. 427;
citado por M. Dommanget, Babeuf et les problèmes du Babouvisme, p. 32. V. também R. Coë, “Le
théorie morellienne et la pratique babouviste” e a discussão anexa entre Dautry, Saitta e Coë, Annales
Historiques, 1958, jan.-mar., pp. 38-64; sobre as ligações de Morelly com o suposto movimento
LIVRO I, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 93

igualdade material e redistribuição de propriedade ajudaram a conduzir


Babeuf e Buonarroti para a Conspiração dos Iguais. Em busca de orienta­
ção ideológica fundamental, voltaram-se para um divulgador de Morelly e
coreógrafo de festividades revolucionárias: Sylvain Maréchal.
Maréchal foi levado ao utopismo revolucionário — que veio a incluir
anarquismo e ateísmo radical — tanto por Rousseau quanto pelos poetas
alemães pré-românticos. Valeu-se das formas pastorais destes últimos para
escrever em 1799 uma longa elegia, A tumba de J. J. Rousseau, retornando
regularmente à ilha de seu enterro e publicando uma segunda edição na
própria Ermenonville ao romper da revolução. Chamando-se a si mesmo de
Shepherd [Pastor] Sylvain, compôs uma imagem de perfeição pastoral em A
Era de Ouro, em 1782, e já em 1785 empregava a expressão “comunidade
178
de bens” para descrever seu ideal igualitário.*
Nos primeiros anos da revolução escreveu A Mãe Natureza na tribuna
da Assembléia Nacional e o seu próprio Código da natureza.179 Em 1793
publicou na imprensa de Bonneville o projeto para uma nova era de ouro que
conclamava à reorganização da sociedade em pequenas “famílias” reguladas
a partir de unidades agrárias comunais na Auvérnia e no Franco-Condado.180
Bem antes do seu Manifesto dos iguais, Maréchal advertia que “a revolução
não está completa” e que ainda haveria “uma nova e mais igualitária distri­
buição de bens”.181
À época do Diretório, Maréchal retirou-se do Campo de Marte para as
ilhas privadas de sua imaginação. Ele e seus amigos retornaram aos cafés
subterrâneos — mas não mais sob o esplendor das arcadas do Palais-Royal,
o qual tinha sido em grande medida transformado em local de restaurantes
elegantes para a jeunesse dorée [nobre juventude] (onde se originaram a lagosta
à Thermidor e o sorvete Tortoni).182 Os mais radicais entre os revolucioná­

de “comunismo literário” do século xvm, cf. Coe, Morelly: Ein Rationalist auf dem Wege zum
Sozialismus, 1961, p. 9; e, para conhecer o testemunho do próprio Babeuf sobre essas ligações, p. 296.
178 G. Likhotkin, Sil'ven Mareshal' i “zaveshchanie Ekateriny n”, Leningrado, 1974, pp. 18-20. Le
Tombeau de J.-J. Rousseau, 1779; L'Age d'or, recueil des contes pastoreaux par le Berger Sylvain,
1782. A principal influência foi veio do poeta-pintor suíço de expressão alemã S. Gessner.
179 Parece que nenhum exemplar sobreviveu. Ver O. Karmin, “Sylvain Maréchal et le Manifeste des
Egaux”, Revue Historique de la Révolution Française, 1910, vol. 1, p. 513.
180 Corretifà la Révolution, 1793, discutido em Ioannisian, Idei, pp. 149-159. Esta obra chegou a ser
chamada de tratado fundador do anarquismo moderno por um dos principais historiadores deste
movimento: M. Nettlau, Der Vorfrühling der Anarchie, 1924, vol. 1.
181 Citado em Karmin, “Maréchal”, p. 511; também Dommanget, Maréchal, p. 455.
182 G. Pariset, Études d’histoire révolutionnaire et contemporaine, 1929, pp. 129-130.
94 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

rios devotados agora se reuniam em cafés mais plebeus: o Café Manoury,


na margem esquerda do Sena, e o Café des Bains-Chinois, no Montmartre,
onde Maréchal compôs canções para a sua amante ruiva:

Tu nous créas pour être égaux,


Nature, ô bienfaisante mère.

[Tu nos criaste para sermos iguais,


Ó beneficente Mãe Natureza.]183

O retorno repetido dos revolucionários aos cafés sugere que a Mãe Natureza
não era apenas uma casta estátua clássica que representa a ordem racional e
a simplicidade pastoral. Ela era também uma sedutora feiticeira que oferece
a satisfação emocional de mãe e de amante. A Mãe Natureza era uma deusa
de duas faces: um Janus que, voltado para trás, olhava o “racionalismo” do
século XVIII, e que, voltado para frente, olhava o “romantismo” de início do
século XIX. O revolucionário moderno, nascido da conjunção dessas duas
eras, cultuava ambas as imagens. Fundamentava-se intelectualmente na
crença de que a Natureza representa alguma ordem mais alta de perfeição,
e emocionalmente na crença de que a Natureza provê formas terrenas de
satisfação. Depois teremos de retornar à concepção filosófica anterior de
Natureza quando examinarmos as surpreendentes fontes das idéias revo­
lucionárias sobre organização. Aqui, temos de nos deter um pouco sobre o
elemento psico-sexual da compreensão revolucionária da natureza.
Deve-se mencionar de passagem a importância de Laclos e Marquês de
Sade no clima do Palais-Royal, o fato de que muitos pensadores revolucio­
nários originais, de Mirabeau a Maréchal, eram grandes colecionadores e
autores de pornografia literária, e o não atípico ménage à trois de Bonneville,
sua esposa e Payne (o primeiro chegando a dar o nome deste último ao seu
segundo filho e a permitir que sua esposa fosse definitivamente embora com
Payne para os Estados Unidos).
O amigo mais próximo de Payne em Paris, Joel Barrow, acreditava que
existiam origens sexuais “naturais” para os símbolos revolucionários de
festividade. Fazia as árvores da liberdade remontarem ao símbolo fálico do
culto egípcio de Osíris — levado daí para a Grécia e Roma, onde “Baco era
conhecido pelo epiteto de Liber, de modo que Falo tornou-se o emblema de

183 Citado em Thompson, Babeuf, p. 28; também pp. 27-29, e Ioannisian, Idei, p. 223.
LIVRO 1, CAPÍTULO 2: UMA INSTÂNCIA DE LEGITIMIDADE 95

Libertas [liberdade]”.184 Barlow acreditava que o barrete “frigio” e vermelho


da liberdade se originava do símbolo romano para a cabeça do falo,185 e des­
mereceu solenemente que se tenha colocado a festa do mastro e a celebração
do Io de maio no lugar da mais antiga e rica festividade do Liber Deus no
equinócio de primavera: “Os homens se esqueceram do objeto original da
instituição, o Falo perdeu os seus testículos e foi por muitos séculos reduzido
a um simples mastro”.186
Restii, criador da palavra “comunista”, primeiro irrompeu na cena literária
européia com uma vivida descrição de podolatria em seu romance de 1769,
Le pied de fanchette, ou L'orpheline française [O pé de Franchette, ou A órfã
francesa]; prosseguiu criando quase uma enciclopédia de atos e fantasias se­
xuais, encontrando seu ápice em sua defesa das prostitutas, Le pornographe,
de 1779, e em seus incontáveis relatos sobre a noite de Paris.187 O próprio
ato de escrever sua obra comunista, Monsieur Nicolas, foi descrito como
“uma sublimação assombrosamente clara dos impulsos eróticos de Restii”.188
Como o próprio Restii explicou: “À falta da satisfação física desejada tão
ardentemente, a minha imaginação se empanturrou com idéias [.--]”-189
Mas o comunismo revolucionário não foi o principal destino da já
desperta imaginação romântica, que se empanturrava mais da tradição do

184 Barlow, “Genealogy of the Tree of Liberty”, inédito, manuscrito sem data, Houghton Library,
Harvard, BMS Am 1448 (13), p. 22.
Pode ser que este seja um dos poucos rituais revolucionários franceses que tenham se originado
diretamente de algum precedente revolucionário americano, a estar correta a sugestão de Arthur
Schlesinger de que Thomas Payne introduziu na França a prática de louvar árvores da liberdade:
“Liberty Tree: A Genealogy”, New England Quarterly, 1952, dez., p. 453. Mas o erudito estudo de
Schlesinger trata apenas do lado americano. Ele parece desconhecer que essa prática se desenvolvera
na França muito antes da chegada de Payne, mostrando-se curiosamente partidário em sua sugestão
de que Barlow estava apenas escrevendo “para a sua própria diversão” (p. 436, nota 1).
185 Cf. a folha solta acrescida a Barlow, “Genealogy”, p. 25, sobre o barrete frigio, que supostamente
foi adotado pelos romanos como símbolo do dom da liberdade dado a um escravo.
186 Ibid., p. 23. Os aspectos eróticos dos símbolos revolucionários serão tratados, ao que parece, em uma
obra polonesa ainda a ser publicada de M. Janion, que já escreveu sobre “as febres do romantismo”:
Goraczka romantyczna, 1975.
187 Le Pied foi traduzido no ano seguinte para o alemão e, em 1774, para o russo em São Petersburgo,
onde as obras de Restii em geral encontravam cálida recepção. V. G. Buachidze, Restif de la Bretonn
v Rossii, Tblisi, 1972, esp. pp. 102-109. Para uma oportuna bibliografia em francês sobre trabalhos
russos a respeito de Restii ignorados no Ocidente, v. pp. 328—340. Le pomographe ou idées d’un
honnête-homme sur un projet de règlement pour les prostituées, L / Le Havre, 1779; veja-se discussão
em Poster Restif, pp. 33-50, e as referências listadas à p. 97, nota 1, sobre a possível podolatria do
próprio Restif.
188 Poster; p. 99.
189 Ibid., e Monsieur Nicolas, vol. 1, p. 359. Como quase todos os escritores ocidentais que tratam de
Restif, Poster parece inadvertido da importância de sua obra “comunista” — e assim relaciona os
impulsos eróticos antes a formas literárias, e não a uma substância social ou revolucionária.
96 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nacionalismo revolucionário, que varreu a França em 1793 e sobrepujou


qualquer concorrência ideológica.
Para compreender essa força poderosa, visceral, devemos dar atenção a
novos meios de expressão, novos impulsos psicossexuais, novos cenários.
Devemos olhar para a segunda cidade da Revolução Francesa, Estrasburgo;
para o gênio sombrio que viria a governá-la, Saint-Just; e para o fato apa­
rentemente improvável das influências alemãs sobre o nacionalismo francês.
Deve-se ter em conta também a mais imaterial, ainda que emocional, das
formas de expressão: a música.
CAPÍTULO 3

Os objetos de fé

nquanto buscavam legitimar sua revolução através da santificação

E de um lugar, de um processo ou mesmo de uma imagem, os franceses


não deixavam também de tentar precisar em palavras as suas crenças.
Havia uma tendência, contudo, à simplificação radical, na medida em que
tentavam cada vez mais substituir argumentos por rótulos. Ao tentar decla­
rar com simplicidade qual o propósito de uma sociedade secular submetida
à soberania popular, descobriram três respostas básicas. Cada uma delas
era expressa por meio de uma das palavras do mais importante lema desse
período: liberdade, igualdade e fraternidade.
Cada um desses três ideais tinha raízes antiqüíssimas, mas cada um ad­
quiriu nessa época uma nova aura mística. No começo da revolução foram
mesclados em uma unidade trinitària. Mas havia diferenças intrínsecas e
profundas entre os três conceitos, e grande parte da história subseqüente da
tradição revolucionária se desenvolveu reincidindo e intensificando o conflito
entre os três ideais rivais.
Primeiro houve o ideal político de assegurar a liberdade por meio de
uma república constitucional. Essa foi a causa revolucionária original da
liberdade — definida em termos de direitos constitucionais e de legislaturas
populares. Tanto a propriedade quanto os indivíduos tinham de ser libertados
do jugo tradicional da autoridade improdutiva — uma idéia que tornou o
ideal republicano atrativo a empreendedores de toda espécie.
98 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Em segundo lugar, houve o ideal emocional de experimentar o compa­


nheirismo em um novo tipo de nação, Era essa a visão romântica da frater­
nidade-. a descoberta, em meio à luta contra os outros, de que o próximo é
um irmão — lingüística, cultural e geograficamente —, filho como nós de
uma mesma pátria.
Por fim, veio o ideal intelectual de criar uma comunidade sócio-econômica
não hierárquica. Era este o conceito racionalista de igualdade: a partilha
coletiva de bens numa comunidade livre de todas as distinções sociais e
econômicas.
Em termos gerais, o primeiro ideal pode ser identificado com o reformis-
mo iluminista do século xvm; o segundo, com o nacionalismo romântico
do século XIX; o terceiro, com o comunismo autoritário do xx. A história
da tradição revolucionária pós-1789 viria a atestar a difusão gradual e
quase universal do primeiro desses ideais — ao que se seguiría um conflito
crescente entre os outros dois ideais. Embora a aspiração por “libertação”
política tivesse se difundido a partir da França do século xvm para a Europa
como um todo no xix, e daí para o mundo inteiro no xx, a ruptura entre
os ideais rivais de revolução nacional e de revolução social se ampliou e
se aprofundou.
Ao tomar em consideração esses ideais, portanto, não daremos tanta aten­
ção ao primeiro deles, o qual surgiu nos debates relativamente conhecidos
que culminariam na Primeira República Francesa em 1792. Devemos nos
concentrar nos menos compreendidos ideais rivais de revolução nacional e de
revolução social que surgiríam a serviço dos objetivos mais inapreensíveis da
camaradagem e da igualdade. O nacionalismo fraterno dominou o período
de guerra e terror de 1792 a 1794; o comunismo igualitário surgiu durante
o período seguinte de aparente estagnação sob o Diretório.

Liberdade: o ideal republicano


A substituição da monarquia por uma república foi a maior realização do
período inicial da revolução. Ao longo de 1793, o ideal republicano foi selado
com sangue pela execução do rei, com tinta pelo esboço de uma constituição
radical e com tempo pela adoção de um calendário revolucionário.
La république representava o ideal iluminista de uma ordem política
racional; substituía as antigas distinções de privilégios pela categoria única
de “cidadão”, o governo dos reis pelo governo da lei: loyaume em lugar de
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 99

royaume.12A humanidade era assim libertada da autoridade arbitrária do


passado em favor de uma perfectibilidade racional no futuro — através de
leis estabelecidas por assembléias populares e da virtude instilada nas escolas
seculares.
“Republicano” e “republicanismo” foram transformados de termos de
opróbrio em rótulos dignos de orgulho pela Revolução Americana — par­
ticularmente durante os seis meses de intenso debate que precederam a
Declaração de Independência em 4 de julho de 1776? O livro de Thomas
Payne, O Senso Comum, publicado em janeiro de 1776, desempenhou papel
decisivo com sua insistência secular e milenarista de que “está em nosso po­
der começar o mundo de novo” por meio do estabelecimento de uma nova
união constitucional.3
Mesmo assim, “republicano” ainda não era palavra de ordem aglutina-
dora nos Estados Unidos durante os debates que levaram à Constituição de
1787, e a experiência americana de governo republicano não pareceu muito
atraente aos europeus na década de 1780.4 Nos debates a respeito da pri­
meira constituição revolucionária para a França durante o verão de 1789, a
sugestão do Abade Sieyès de governo popular direto exercido por meio de
uma câmara legislativa única prevaleceu sobre a idéia concorrente de um
governo equilibrado de feitio norte-americano com legislatura bicameral e
veto executivo (isto é, veto real).5
O movimento em prol de um governo republicano na França e a discus­
são de qual constituição lhe seria mais apropriada de fato gerou, contudo,

1 Brunot, vol. ix, p. 641.


2 W. Adams, “Republicanism in Political Rhetoric before 1776”, Political Science Quarterly, 1970,
set., pp. 397—421. Sobre a disseminada associação antes feita de formas republicanas com aspectos
negativos da Commonwealth na Inglaterra, consultar P. Maier, “The Beginnings of American
Republicanism 1765-1777”, em The development of a revolutionary mentality, Washington, 1972,
pp. 99-117. V. também C. Robbins, “European Republicanism in the Century and a Half before
1776”, ibid., pp. 31-35.
3 Citado e comentado em G. Dutcher, “The Rise of Republican Government in the United States”,
Political Science Quarterly, 1940, jun., p. 209. Ele também atribui a John Adams ter simultaneamente
transformando a palavra em um sinal de mérito e ter sido autor de uma constituição republicana
modelar para Massachusetts (a qual, única entre todas as levadas a efeito antes de 1776, permanece
em vigor). Ibid., pp. 209-211.
4 G. Ghelfi, “European Opinions of American Republicanism during the ‘Critical Period’, 1781-
1789”, tese de doutorado inédita, Claremont, 1968. Escritores Americanos da década de 1780 que
consideravam incompleta sua revolução buscavam o seu cumprimento em uma constituição formal,
e não em alguma outra mudança social. Cf. D. Higginbotham, “The Relevance of the American
Revolution”, Anglican Theological Review, 1973, jul., pp. 33-34.
5 Palmer; Age, vol. i, pp. 489-502.
100 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E H1STÓRLX

verdadeira empolgação — que o diga a defesa que Thomas Payne fez da


Revolução Francesa contra Edmund Burke em 1791: “Aquelas que antes se
chamavam de revoluções eram pouco mais que uma troca de pessoas ou uma
alteração de circunstâncias locais [...] o que vemos agora no mundo [...] é
uma renovação da ordem natural das coisas, um sistema de princípios tão
universal quanto a verdade. [...]”.6
Quando a Primeira República foi formalmente estabelecida, Paine se
mudou para Paris, recebeu cidadania francesa, fundou a primeira sociedade
“republicana” em Paris, editou um jornal de curta vida, O Republicano^ e
atraiu a ira até mesmo dos jacobinos em razão de um uso quase devocional
da palavra “republicano”.7
Paine foi apenas um dos muitos estrangeiros a descobrir uma nova iden­
tidade como cidadão da república revolucionária; Babeuf, apenas um dos
muitos franceses a se referir a “republicano” como “essa palavra sublime”.8
O contínuo debate sobre uma constituição (mesmo após a adoção de uma
em 1791) também emprestou uma aura a mais à palavra. No primeiro nú­
mero de um jornal revolucionário de 1792, Bonneville insistiu em que “esta
palavra tonificante^ esta sagrada palavra constituição! [...] deve exercer
uma influência prodigiosa sobre os destinos da raça humana.9
O fascínio aumentou ao fim de 1792 e no início de 1793 à medida que a
Convenção elaborava a Constituição ainda mais radical de 1793. Embora
nunca levado à prática, esse texto foi carregado como uma relíquia da Bas­
tilha até o Campo de Marte no grande festejo de 10 de agosto de 1793;10
permaneceu sendo um modelo venerado por muitos revolucionários políticos
já em data bem avançada do século xix.11

6 The life and works of Thomas Payne, New Rochelle, 1925, vol. vi, p. 206.
7 Républicain ou le défenseur du gouvernement représentatif teve apenas quatro números. Dalin,
Babef, pp. 407-408. Paine vislumbrava “uma nova era que iria extirpar o despotismo da face da
terra” para quando o republicanismo revolucionário alcançasse “abrangência universal”. V. sua
Lettre de Thomas Paine au peuple français, 25 de setembro de 1792, pp. 3, 7 (EU).
8 Dalin, p. 405.
9 “Constitution”, em La Chronique du Mois, 3 de janeiro de 1792. Esse jornal, assim como Républicain,
foi editado por um grupo que incluía Bonneville, Paine, Condorcet e Brissot. Bonneville estabelece
ligação entre a constituição do estado e as constituições da natureza e do corpo humano — com “o
povo”, o seu “sangue” (p. 4).
10 A. Mathiez, “La Constitution de 1793”, La Revue de Paris, 5 de julho de 1928, esp. p. 318 ss.
11 Momentos posteriores dessa tradição, que se tornou essencialmente não-revolucionária, são descritos
em G. Weill, Histoire du parti républicain en France de 1814-1870, 1928, e J. Scott, Republican
Ideas and the Liberal Tradition in France, 1870-1914, NY, 1951.
A palavra “republicano” foi usada já em 1770 na França como possível sinônimo de revolucionário.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 101

Um dos poucos resultados palpáveis das duas maiores insurreições na


França nesse século — a Revolução de 1848 e a Comuna de Paris de 1871
— foi o restabelecimento de governos constitucionais e republicanos: a Se­
gunda e a Terceira Repúblicas, respectivamente. A maior (embora efêmera)
expressão no estrangeiro do ideal revolucionário francês foi a fundação de
repúblicas-satélite: a baiava, a cisalpina, a suíça, e assim por diante. Como
veremos, a tradição revolucionária européia se iniciou como uma série de
conspirações republicanas e constitucionais contra um Napoleão imperial e
a restauração monárquica que o sucedeu.
Mas, em 1793, a França revolucionária estava pronta para rejeitar mui­
tos republicanos, incluindo Payne e outros estrangeiros reunidos em Paris
em torno de jornais como Le Cosmopolite e que falavam ecumenicamente
sobre “a grande república humana”.12 A essa altura, os franceses estavam
inventando o nacionalismo moderno — e o culto de seu grande e exclusivo
ideal, la grande nation.

Fraternidade: o surgimento do nacionalismo


O segundo novo ideal a surgir na Revolução Francesa foi o de la nation: uma
nova fraternidade na qual pequenas lealdades e inimizades mesquinhas eram
preteridas pela exultação de todos renascerem como enfants de la patrie:
filhos de uma mesma pátria. A nação foi um ideal de militância descoberto
no jour de gloire de batalhas e melhor expresso no levée en masse de 1793:
o protótipo de um moderno recrutamento em massa em escala “nacional”.
A Revolução Americana havia criado o conceito de independência como
um ideal antes político que filosófico — criando na prática uma nova nação
por meio da revolução. Mas os Estados Unidos não chamaram a si mes­
mos de “nação” na Declaração de Independência ou se constituíram como
uma nação no sentido moderno. Não havia nenhuma nova linguagem a
ser afirmada, nenhuma antigüidade mitificada a ser inventada, nenhuma
ameaça externa contínua contra as fronteiras da nova entidade territorial.
A designação oficial “Estados Unidos” era apenas o nome formal de um
grande país que, antes da União Soviética, não possuía designação étnica
J. Godechot, “Pour un vocabulaire politique et social de la révolution française”, Actes du 89
congrès national des sociétés savantes. Section d’histoire moderne et contemporaine, vol. i, 1964,
pp. 371-374. O conceito de cidadão também adquiriu um sentido radical antes da revolução (A.
Dubuc, “Le Journal de Normandie avant et durant les états-généraux”, in ibid., p. 387, nota 7) e
veio a ter para alguns uma ressonância aristocrática durante a revolução (Godechot, ibid., p. 373).
12 Lettre de Paine, pp. 3, 7; Palmer, Age, vol. ii, pp. 113-123.
102 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ou nacional alguma. Lá, um “senso de nacionalidade veio a ser o filho, não


o pai da Revolução”.13
Na Revolução Francesa, ao contrário, o conceito de “nação” foi central,
a despeito de não se ter criado nenhum novo país. A palavra nação logo pre­
dominou sobre o termo mais antigo e mais paternalista patrie.1415Bandeiras,
festas e canções eram chamadas de “nacionais”, e Bonneville, ao organizar a
milícia de Paris no verão de 1789, advertiu sobre os ennemis de la nation}5
Cidadãos do antigo regime eram forçados a se comunicar em francês, que
até então não tinha sido a língua básica de muitos dos que viviam sob a
coroa francesa.
A palavra nation havia sido usada no período romano para descrever
uma comunidade nativa menor que um povo, porém maior que uma família
— e na Idade Média tardia para descrever grupos regionais de estudantes
dentro das universidades e diferentes grupos dentro de concílios da Igreja.
A França pré-revolucionária empregou o termo para designar um grupo
representativo de aristocratas. Ao escolher o nome assemblée nationale (em

13 W. Nelson, “The Revolutionary Character of the American Revolution”, em C. McFarland


(ed.), Readings in Intellectual History. The American Tradition, NY, 1970, p. 159. Os conceitos
americanos de independência e de nacionalidade provavelmente exerceram sua maior influência
sobre as revoluções latino-americanas iniciadas em 1808. V. J. Lynch, The Spanish American
Revolutions. 1808-1826, uma síntese apreciável, mas fraca quanto à discussão das idéias. O conceito
de independência receberá atenção num estudo vindouro de Germán Arciniegas; e o esplendor
histórico desse termo provavelmente explica o intenso uso recente do seu oposto (dependência)
pelos nacionalistas latino-americanos para descrever o contínuo domínio cultural e econômico que
os Estados Unidos, de forma indireta, exerce sobre eles.
A primeira Declaração de Independência na Europa após o romper da revolução na França (na
adjacente província belga Brabant, em outubro de 1789) reiteradas vezes se refere à “nação” e
ao “corpo da nação” e insiste em que “a vontade da nação é sempre a lei suprema”. Godechot,
Pensée, p. 67-69. A palavra “nação” ingressou no vocabulário da política americana com o sentido
ideológico moderno, principalmente depois do início da Revolução Francesa, por meio de ideólogos
idiossincráticos como James Wilson, à época o juiz auxiliar da Suprema Corte que perguntou
retoricamente durante o processo Chisholm contra Georgia, em 1793: “O povo dos Estados
Unidos realmente forma uma nação?” (G. Dennison, “The ‘Revolution Principle’: Ideology and
Constitutionalism in the Thought of James Wilson”, Review of Politics, 1977, abr., p. 187). O primeiro
curso universitário sobre a Revolução Americana (em Harvard, em 1839) utilizou uma narrativa
histórica escrita em 1809 por um nacionalista italiano, que se tornara um ativista revolucionário
francês, para disseminar um nacionalismo inteiramente romântico para o qual não existiam livros
americanos. Carlo Botta, History of the War of the Independence of the United States of America,
Filadélfia, 1821,2v.; discutido por M. Kämmen, A Season of Youth, NY, 1978, pp. 282-283, nota 83.
D. Donald argumenta que presidentes anteriores a Lincoln “geralmente evitavam o termo” (nação)
e que a Guerra Civil levou à adoção geral da palavra européia e a encerrar a tendência de se referir
“aos Estados Unidos no plural” [Coisa que não ocorre, como se vê, na língua portuguesa — nt].
Liberty and Union, Boston / Toronto, 1978, p. 215.
14 J. Godechot, “Nation, patrie, nationalisme et patriotisme en France au xvme siècle”, Annales
Historiques, 1971, out.-dez., pp. 494-A96.
15 Delacroix, p. 9.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 103

vez de représentants du peuple français}, o revolucionário Terceiro Estado


buscou afinal reivindicar uma condição aristocrática.16
O termo nation não foi a princípio compreendido por todos. Campone­
ses obrigaram um homem bem-vestido a gritar “Vive la nation!” bem no
início da revolução, e em seguida lhe suplicaram: “Explique-nos o que é a
Nação”.17 Mas o rótulo não demorou a ser compreendido como um novo
tipo de soberania popular mais absoluto que a autoridade monárquica. O
próprio Deus surge renascido nos primeiros folhetos revolucionários como
“Salvador das Nações”,18 “o augusta e sublime Areopago nacional”;19 e
orações eram endereçadas ao “corpo da Nação”.20
O conceito de nation forneceu uma definição tangível, além de uma mais
elevada legitimidade, à revolução.21 A revolução ganhou dimensões espaciais
e foi assim corporificada não em complexas instituições republicanas, mas
em simples círculos concêntricos. As fronteiras da França eram um torrão
ideológico, mais externo; Paris era a cidadela central; a Assembléia Nacional,
o “ponto perfeito” de autoridade dentro da própria Paris. A nação revolucio­
nária foi proclamada “indivisível” e suas fronteiras, expansíveis. O arquiini-
migo da Revolução Francesa, o Abade Barruel, criou o termo “nacionalismo”
para denegrir a nova forma de egoísmo provinciano e secular que ele sentia
estar substituindo o amor cristão universal na condição de ideal humano.22
O nacionalismo militante alcançou as massas européias em grande medida
por meio de Napoleão: “o primeiro governante a basear um regime político
exclusivamente na nação [...] o mais poderoso símbolo puramente nacional
que qualquer nação jamais teve”.23 Alguns foram inspirados positivamente
pelo seu exemplo de nacionalismo (os poloneses e italianos); outros foram

16 G. Zernatti, “Nation: The History of a Word”, Review of Politics, 1944, jul., pp. 352-358, 36 1-365.
17 Relato de abril de 1790 feito por Nicholas Karamzin, citado por Brunot, vol. ix, p. 638.
18 Le magnificat du tiers-état, 1789 (ELI).
19 Symboles des patriotes françois, ou Credo des anti-aristocrates, 1790, p. 7 (EU).
20 Litanies du tiers-état, 1790, 2a ed., pp. 10-11 (EU).
21 Essa linha de interpretação é sugerida, embora não desenvolvida, por um novo e estimulante estudo
de autoria do separatista bretão J. Y. Guiomar, L’Idéologie national: nation représentation propriété,
1974, pp. 91-94. G. Gottmann acredita que urna nova concepção de soberania territorial emerge
da Revolução Francesa como característica básica de uma nação: The significance of territory,
Charlottesville, 1973, pp. 74-76.
22 Mémoires pour server à l’histoire du jacobinisme, Hamburgo, 1798-1799, vol. in, p. 184; citado
em Godechot, “Nation”, p. 500.
23 L. Krieger, “Nationalism and the Nation-State System: 1789-1870”, em Chapters in Western
Civilization, NY, 1962, 3a ed., vol. n, p. 113.
104 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

estimulados negativamente a criar movimentos nacionais contra ele (os espa­


nhóis e prussianos). Ao fim de sua carreira, o grande armée [grande exército]
de Napoleão tinha com efeito suplantado a grande nation revolucionária.
Esse exército tinha dois terços seus compostos por estrangeiros à época de
sua derrota decisiva na “Batalha das Nações”, em 1813, para uma coalizão
de nacionalismos que ele despertara pela Europa.
O nacionalismo permaneceu o principal ideal revolucionário até o quartel
final do século xix. Seu misterioso poder e suas contínuas mutações tornam
essencial que se olhe mais de perto as suas origens. O nascimento desse novo
ideal foi ao mesmo tempo sublime e sangrento, englobando as alturas da
música e as profundidades do terror. O nascimento de uma nação nos leva,
para além da Paris de Robespierre, até a Estrasburgo de Saint-Just.

A Canção de Estrasburgo

Estrasburgo, a maior cidade situada no Baixo Reno, era o maior elo da


França com a Europa — com um catolicismo que era algo mais que galicano
(o bispo devia obediência política ao Santo Imperador Romano); com uma
religião que era algo mais que católica (um terço de Estrasburgo era composto
de protestantes); e com uma cultura que era algo mais que francesa (a maior
parte da cidade falava alemão). Estrasburgo tinha sido a mais importante
conquista continental na França durante o século e meio que precedeu a
revolução. Quando veio a insurreição, esse fronte exposto se sentiu particu­
larmente vulnerável. O patrimônio do bispo foi confiscado, a universidade
de expressão alemã foi fechada e a grande fortaleza pentagonal construída
por Vauban foi tomada por um especial “exército do Reno”.
Estrasburgo não apenas aceitou como ainda ampliou e transformou o
nascente nacionalismo francês — internalizando idéias alemãs mesmo quan­
do combatia a ameaça externa das armas alemãs. Diferentemente de Paris,
Estrasburgo não se viu distraída em razão de facções rivais e múltiplas ins­
tituições políticas. Sua estrutura municipal quase medieval lhe dava relativa
unidade interna e solidariedade com o campo alsaciano circundante. Mesmo
a cultura de seus cafés era a de uma sólida atividade desprovida da licencio-
sidade parisiense e irradiava Gemütlichkeit [conforto].24 O protestante duas
vezes eleito prefeito da Estrasburgo revolucionária, Frédéric Dietrich, uniu

24 Z.-E. Harsany, La vie à Strasbourg sous la révolution, Estrasburgo, 1963, p. 99, lista 73 cabarés,
86 restaurantes a céu aberto e 33 cervejarias em 1789, bem corno se dedica a descrever (pp. 89-99)
essa “era de ouro dos cafés”.
LJVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 105

a cidade como uma família que tivesse ramos franceses e alemães (Didier e
Dietrich), uma esposa suíça multilingue e uma sala de visitas bilíngue onde
velhos antagonismos tendiam a se dissolver.
Nos primeiros meses sitiados de 1792, uma consciência nacional foi inten­
sificada pela percepção crescente de que o inimigo estava próximo e de que
a guerra era provável. A população normal de cinqüenta mil pessoas tinha
se inchado com os amigos da revolução que vinham fugidos da Áustria e da
Prússia e com voluntários oriundos de toda a França, que chegavam para
fortalecer a cidade que servia de guarnição no Reno. A notícia de que ambos
os monarcas germânicos tinham declarado guerra à França revolucionária
chegou primeiro a Estrasburgo que a Paris; e, na noite de 24 de abril de
1792, Dietrich encarregou um jovem capitão de engenharia que frequen­
tava sua casa, Claude-Joseph Rouget de Lisle, de escrever uma canção que
incitaria o exército poliglota a resistir ao previsto ataque dos Habsburgo.
Na inspiração febril de uma noite, ele escreveu uma canção que uniu um
povo como não se via desde Ein feste burg [Um castelo forte] de Lutero.25
Originalmente chamada Chant de guerre de l’armée du Rhin, seus versos
surpreendentemente sanguinários eram cantados com especial zelo pelos
voluntários recém-chegados do estrangeiro. O contingente de marselheses
deu à canção de Estrasburgo seu nome permanente: La Marseillaise.
A origem de A Marselhesa em Estrasburgo não foi acidental, pois fora a
partir dessa cidade que a rica cultura musical da Alemanha havia entrado na
25 Os aspectos básicos do retrato aqui feito são aqueles estabelecidos por J. Tiersot, Histoire de la
Marseillaise, 1915, pp. 27-29, os quais podem ser suplementados por A. Dietrich, La création de la
Marseillaise: Rouget de Lisle et Frédéric de Dietrich, 1917, e confirmados por P. Martin, '‘Propos
autour d’um tableau historique: Rouget de Lisle chantant la Marseillaise”, Saison d’Alsace, 1964,
Winter, pp. 108-111.
Por muito tempo se defendeu que a melodia não poderia ter sido criada tão rapidamente e teria
sido tirada de alguma esquecida obra operistica da época — a qual teria sido ou Sargines ou 1’élève
de l’amour de Dalayrac, ou La caravane de Caire de Grétry, ou ainda uma composição perdida de
Méhul, a quem Rouget de Lisle dedicou a sua coleção de composições publicada em 1796. Tiersot
refuta cuidadosamente essas alegações e insiste em que Rouget era o único autor tanto da letra
como da música: Histoire, pp. 410-422. Especulações mais recentes têm dado atenção aos possíveis
empréstimos que Rouget teria tomado de um oratório baseado na Esther de Racine, composto por
um mestre de música da Catedral de Saint-Omer, onde Rouget passara um período anteriormente.
V. M. Vogelais, Quellen und Bausteine zu einer Geschichte der Musik und des Theatres in Elsass,
Estrasburgo, 1911. A. Gastoué, “L’air de la Marseillaise, naquit-il à Saint-Omer?” [“Terá a melodia
da Marselhesa nascido em Saint-Omer?”], Echanges et Recherches, Roubaix, 1939, jan., pp.
148-153, responde à questão com um decisivo não, insistindo em que a composição era original. Ao
mesmo tempo, ele observa que Rouget tomou algumas expressões centrais da terminologia militar
local (“enfants de la patrie” [filhos da pátria] e “aux armes, citoyens” [às armas, cidadãos]) e de
Sargines (“entendez-vous le bruit de guerre... Marchons, marchons” [“escutai o rumor da guerra...
Marchamos, marchamos”]). V. também mais referências e comentários em J. Mouchon, La Musique
en Alsace, Estrasburgo, 1970, p. 136.
106 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

França. Tinha coros de catedral franceses bem como alemães, casas de ópera
francesas e alemãs e as melhores orquestras da França pré-revolucionária
situadas fora de Paris e Versalhes. Estrasburgo fabricava tanto instrumentos
quanto melodias. O grande fabricante de pianos Ignace Pleyel se tornou
kapelmeister [mestre de capela] da Catedral de Estrasburgo em 1789. Tendo
por fontes tanto o fausto católico quanto a fonografia protestante, Estrasburgo
produziu um repertório revolucionário original, introduzindo composições
musicais sofisticadas em festividades revolucionárias a céu aberto por meio
do Hino à Liberdade de Rouget, de Lisle.26 Executado pela primeira vez em
25 de setembro de 1791, utilizou toda a audiência como coro pela primeira
vez na história, uma técnica só posteriormente levada a Paris. As palavras
austeras de Rouget de renúncia ao “vão delírio da felicidade profana” e à
“voluptuosidade branda” sugeriam o puritanismo revolucionário que es­
preitava no futuro.2728Desde o princípio, La Marseillaise foi uma espécie de
produção coletiva. Quando Rouget mostrou o esboço da melodia ao prefeito
na sala de visitas deste, Dietrich, que era um tenor, tornou-se o primeiro a
cantá-la, e sua esposa violinista, a primeira a orquestrá-la. La Marseillaise
eletrizou uma nação que ia para a guerra. Os dois principais compositores
da Opéra Comique, Dalayrac e Gossec, compuseram Oferta à liberdade,
Cena religiosa na Marselhesa.1* Essa “cena religiosa” foi levada de dentro
dos teatros para os campos do exército. Coros de mulheres se ajoelhavam
diante da estátua da liberdade, cantando “amour sacre de la patrie [...]”
corno se fosse serena oração, para então se erguerem cantando o verso final
com um acompanhamento de percussão que “faria o pavimento das ruas
acorrer às fronteiras”.2930O principal compositor do período, André Gretry,
parabenizou Rouget por criar “musique à coups decanonniQ [música a tiros
de canhão], e o seu Guillaume Tell,31 talvez a mais popular nova ópera da

26 Harsany, pp. 109-110 ss.; R. Reuss, La Cathédrale de Strasbourg pendant la Révolution, 1888. “Ein
feste Burg” foi ela própria adaptada para a revolução: M.-J. Bopp, “La Poésie politique pendant la
révolution”, Deux Siècles d’Alsace française, Estrasburgo / Paris, 1948, p. 184.
27 Bopp, pp. 195-196.
28 Tiersot, Histoire, pp. 68-71. Essa Offrande de la liberté. Scène religieuse sur le chant des Marseillaises
foi representada pela primeira vez em 30 de setembro de 1792.
29 Ibid., p. 71. V. também ibid., pp. 63-67; e L. Fiaux, La Marseillaise: Son Histoire dans l'histoire
des français depuis 1792, 1918, pp. 148, 346-347; também B. Shafer, Faces of Nationalism: New
Realities and Old Myths, NY, 1972, esp. p. 136; e, sob ponto de vista mais geral, J. Leith, “Music as
an Ideological Weapon in the French Revolution”, The Cannadian Historiai Association: Historiai
Papers Presented at the Annual Meeting, 1966, pp. 126-140.
30 Fiaux, p. 32.
31 J. Chailley, “La Marseillaise et ses transformations jusqu’à nos jours”, Actes du 89 congrès national
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 107

era revolucionária, iniciou a prática popular de inserir um hino diretamente


nas partituras operísticas.
A maré de paixão estimulada pela música logo foi engolfada pelos seus
primeiros patronos. Em 1792, Dietrich foi removido de seu cargo na condição
de um moderado acusado de afinidades com Lafayette. A militância musical se
intensificou na celebração realizada em Estrasburgo do primeiro aniversário
de fundação da república em 10 de agosto de 1793, quando Pleyel e Rouget
de Lisle encenaram seu memorável O alegórico sino de alarma.
Descrito como “uma batalha musical”, o espetáculo ocorreu na catedral
recém-transformada sob sete sinos suspensos na cúpula. Os sinos (assim como
o enorme coro e elenco) tinham sido trazidos de toda a Alsácia; eles deveríam
ser fundidos na fabricação de um canhão logo após o término da produção.
A primeira parte era puramente orquestral (o despertar do povo). Quando os
sinos de alarma tocaram, o segundo movimento (a batalha) começou. Somente
após todo o combate ter se concluído foi que vozes humanas rebentaram pela
primeira vez — num coro triunfal de la victoire est à nous [a vitória é nossa].32
Tão grande era a crença estrasburguesa no poder unificador da música,
que seus artesãos criaram um novo sistema para imprimir as notas da música
nacional. Tão grande era o medo de melodia mobilizadora, que os padres, os
quais depois restauraram a autoridade católica na catedral, decretaram que
apenas o sombrio cantochão e o zunir do órgão seriam doravante permitidos
no culto ordinário.33
A música experimentou um crescendo especial em Estrasburgo precisamente
durante o Terror. Parece apropriado que a primeira guilhotina tenha sido
feita por um fabricante de pianos em Estrasburgo chamado Schmidt e trazida
pela primeira vez a Paris para ser usada em uma pessoa em 25 de abril de
1792, quase no mesmo momento em que Rouget finalizava La Marseillaise.34
Estrasburgo trouxe para a França o entusiasmo não só da tradição musical
alemã, mas também do teatro alemão. Os dramas antitradicionais e anti-
-Habsburgo de Friedrich Schiller eram em geral introduzidos na França por
meio de representações em Estrasburgo, e as principais traduções de Schiller

des sociétés savantes, 1964, vol. i, p. 16.


32 Para uma descrição de La Révolution du 10 août ou le tocsin allégorique e a avaliação de que esta
foi a mais importante festa realizada fora de Paris no ano de 1793, v.Tiersot, Les fêtes, pp. 117-119.
33 La Musique en Alsace, p. 136.
34 Croker Essays, pp. 549-551, corrige a ainda bastante disseminada crença de que a primeira dessas
máquinas foi feita em Paris ou pelo cientista Guillotin ou pelo cirurgião Louis.
108 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

para o francês foram feitas por Nicholas Bonneville quando ele estudava
em Estrasburgo na década de 1780. Os primeiros românticos alemães ins­
piraram o tipo inteiramente novo de peça que Bonneville escreveu em 1789
para comemorar a queda da Bastilha. Foi a Tragédie nationale dedicada
aos peuples-germains... peuples-fères [povos germânicos... povos irmãos]
dignos de ingressar numa nova société fraternelle,35 Bonneville solicitou a
Camille Desmoulins que se institucionalizasse esse gênero “nacional” como
uma espécie de censura aos “lacaios de Corte” que preferiam entretenimento
ameno desprovido de propósito moral.36
Estrasburgo se tornou o principal centro de correspondência no continente
para o Círculo Social de Bonneville, além de o local para tradução e publi­
cação de suas obras para distribuição no mundo alemão.37 Charles Nodier,
mais tarde um pioneiro das organizações revolucionárias secretas e o inventor
do gênero antitradicional e parcialmente musical do melodrama, descobriu
a literatura alemã por meio das traduções de Bonneville, e dedicou a este
seus Ensaios de um jovem poeta. Inspirado por Schiller/Bonneville e pelo
“romantismo” (uma palavra primeiro empregada no círculo de Bonneville),38
Nodier transmitiu seus enredos inverossímeis e seus heróis iconoclastas ao
seu famoso pupilo literário, Victor Hugo.
O principal professor de Nodier em Estrasburgo foi Eulogius Schneider,
o mais original e imaginativo — e o mais violento — dos muitos alemães
que emigraram para a Estrasburgo revolucionária. Schneider, um ex-monge
capuchinho, tornou-se um Iluminista em Neuwied e um professor popular
em Bonn até ser demitido acusado de heresia em junho de 1791.39 Ele liderou

35 Bonneville, L’Anée mdcclxxxix ou Les Tribuns du Peuple, s/d., vol. 5, p. 80 (BA).


36 V. Assemblée des représentants de la Commune de Paris. Extrait du procès-verbal, 17 de junho de
1790, e a carta manuscrita anexa de Bonneville para Camille Desmoulins, documentos os quais nào
estavam catalogados, mas localizados perto de uma cópia de L’Anée-. Rf 17044 (BA).
37 Documento e comentário de Mathiez presentes em Annales Révolutionnaires, vol. 6, 1913, pp.
101-102, e vol. 8,1916, p. 437.
38 Harivel argumenta (Bonneville, p. 141) que Letourneur, amigo de Bonneville, foi quem usou pela
primeira vez a palavra “romântico” no sentido moderno; mas seu exemplo não datado certamente
era derivado de empregos alemães anteriores discutidos em A. Lovejoy, que faz remontar o primeiro
uso a Schlegel, mas também destaca a importância de Schiller: Essays in the History of Ideas, NY,
1955, pp. 183-207.
39 V. a tese de doutorado subestimada de E. Nacken, Eulogius Schneider in Deutschland (1758-1791),
Bonn, 1931, publicada apenas parcialmente como Studien über Eulogius Schneider in Deutschland,
Bonn, 1931. Os estudos fundamentais são E Heitz, Notes sur la vie et les écrits d’Euloge Schneider,
Estrasburgo, 1862; L. Erhard, Euloge Schneider. Sein Leben und seine Schriften, Estrasburgo,
1894; E. Muhlenbeck, Euloge Schneider, Estrasburgo, 1896; e a série de artigos de R. Jaquel em
Annales Historiques, vol. 8, 1931, pp. 399-417; vol. 9, 1932, pp. 1-27, 103-115, 336-342; vol.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 109

a derrubada republicana radical do prefeito Dietrich, realizou a primeira


tradução alemã de La Marseillaise, editou dois jornais extremistas, fundou
uma unidade especial de doutrinação revolucionária popular em toda a Al-
sácia, chamada La Propagande^ e serviu como procurador-chefe no tribunal
revolucionário de Estrasburgo.*40
Nodier depois recordaria, com assombro estético, uma execução na qual
os “propagandistas” de Schneider, usando boinas vermelhas e cinturões tri­
colores, portando um grande número de facas de caça, fizeram um sermão
aos espectadores. Depois de se ajoelharem diante do patíbulo, o principal
orador “fez um panegírico à guilhotina em nome da liberdade [...] senti um
suor frio em minha testa descer pelas minhas pálpebras”.41
O Reino do Terror chegou primeiro a Estrasburgo, durante o longo cer­
co iniciado em agosto de 1793. Schneider fez do teatro alemão da cidade
o seu quartel-general e popularizou a palavra “denúncia” no vocabulário
revolucionário.42 O prefeito de Estrasburgo insistia em que a palavra “inn”
deveria substituir o termo feudal “hotel” em toda a cidade,43 e os alemães que
escreviam no jornal de Schneider introduziram uma nova leva de metáforas
rústicas no nacionalismo revolucionário francês. Em sua cruzada patriótica,
o prussiano Anacharsis Cloots falou do direito histórico da nação francesa de
controlar o Reno: “As fozes do Reno, a antiga fronteira da Gália, cantarão
o hino da liberdade à sombra do pendão vitorioso [...] acorramos em massa
às margens do grande rio, e nunca mais o povo alemão ingressará no solo
da renascida França”.44
10, 1933, pp. 61-73; vol. 12, 1935, pp. 218-248. A educação que Nordier e outros receberam em
Estrasburgo de Schneider e a transmissão de idéias proto-românticas são discutidas em T. Fach,
“Die Naturschilderung bei Charles Nodier”, Beiträge zur Geschichte der romanischen Sprachen
und Literaturen vol. 4, 1912, p. 5
40 V. E L’Huilliei; “Les grands courants de l’opinion publique”, Deux siècles d'Alsace, pp. 244—250;
Tiersot, Histoire, p. 73; Annales Historiques, vol. 9, 1932, pp. 21-27, 103; e Harsany, Vie, pp.
257-259.
R. Palmer considera Schneider o único revolucionário a utilizar o termo contra-revolucionário
“Propaganda”, Twelve Who Ruled: The Committee ofPublic Safety in the Trench Revolution, Princeton,
1941, pp. 187-190. A melhor fonte sobre essa instituição insuficientemente estudada parece ser a
história escrita na prisão por colaboradores próximos de Schneider: Histoire de la propagande et des
miracles qu’elle a faits a Strasbourg.mencionada em R. Jaquel, “Un terroriste alsacien: Le cordonnier
Jung”, La Bourgeoisie Alsacienne, Estrasburgo, 1967 (reimp. 1954), p. 253, nota 86.
41 Nodier; Souvenirs, p. 21; e a seção sobre Schneider, pp. 13-33.
42 Harsany, p. 107; Schneider, “Über die Denunziationen”, Argos, vol. 3,26 de setembro de 1793, pp.
297-301.
43 Harsany, p. 101.
44 “Patriotischer Kreuzzug”, Argos, 31 de agosto e 3 de setembro de 1793, citado em Deux siècles, p.
260.
110 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRLX

Cloots vira a primeira festividade no Campo de Marte como uma volta


do povo francês à condição de “todos germânicos e todos irmãos”. Outra
testemunha alemã a comparou ao antigo ritual bárbaro no qual “os francos,
uma união livre de germânicos, reuniam-se anualmente para declarar ao rei
a soberana vontade do povo”.45
As antigas tribos germânicas se tornaram um protótipo mítico para o
“povo” soberano numa “nação” revolucionária. A alternativa de Bonneville
à indulgência e ao egoísmo da civilização moderna era um comunalismo viril
e pré-cristão do “homem livre” (homme francò tal como Tácito o descreveu
entre os primeiros germânicos. Bonneville elogiou o tribalismo franco em
seu Manifesto dos amigos da verdade em 1789;46 mais tarde, elogiou os bár­
baros em contraste com os opressores “civilizados” em sua “Profecia de um
Velho Druida contra os Romanos”.47 Bonneville concebia a nação moderna
a fazer seu aprendizado na “universidade da natureza”, com um “druida”
moderno, como ele próprio, auxiliando-a na redescoberta da linguagem
perdida da natureza:

La nature est un livre immense à dévorer,


La langue en est perdue, il faut la recouvrer.

[A natureza é um imenso livro a ser devorado,


Sua linguagem foi perdida e deve ser recuperada].48

Essa linguagem era bastante alemã — não apenas os “suspiros e lágrimas”


dos primeiros românticos tão conhecidos de Bonneville, mas também as
palavras compostas a partir de justaposições abstratas, como Peuple-Dieu
[Povo-Deus], que ele importou a atacado para a língua francesa. Havia mui­
tos outros colaboradores nesse processo além de Bonneville, Cloots e seus
amigos: J.-G. Saiffert, o médico de Filipe d’Orléans que liderou a efêmera
legião alemã em Paris e foi chamado de “o vândalo”;49 A. G. F. Rebmann,

45 G. Foster, Ein Lesebuch für unsere Zeit, Weimar, 1952, p. 346.


46 Texto presente em Harivel, p. 153.
47 Bonneville, L’Hymne des combats, 1797, p. 5; também em seu Les “Franc-Germains” nos ancêtres,
comentado em Brunot, vol. 9, p. 633.
48 “La Druide”, La Chronique du Mois, 7 de maio de 1792. O artigo de Fauchet “Sobre a Universidade
da Natureza” (Bouche de Fer, 1790, n° 25, pp. 385-397) é comentado por Alekseev-Popov, Sbomik
Volgina, p. 305.
49 Mathiez, Étrangers, p. 67. Nodier enfatiza mais ainda a sua função em Paris: Souvenirs de la
Révolution et de l’Empire, 3a ed., 1864, voi. i, pp. 245-246; voi. n, p. 24 ss.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 111

o principal editor de jornais alemães em Paris;50 e os irmãos Frey, judeus de


expressão alemã nascidos em Estrasburgo, um dos quais escreveu uma defesa
do emprego do terror por uma minoria: Philosophie Sociale,51
Ao tentar eliminar “a verborragia da defunta Academia Francesa”52 e
“criar uma língua, formar uma religião”53 para la nation, Bonneville se base-
ava largamente em germanismos e seguia o hábito estrasburguês de publicar
panfletos bilíngües.54 “Povo” (assim como “nação” e outros substantivos
simbólicos) recebia uma inicial maiúscula segundo a maneira alemã em
novas expressões francesas como Peuple-Roi, Peuple-Dieu e Peuple-Sauveur
[Povo-Salvador]. O juramento de lealdade de Cloots a la nation tinha de
estar repleto de maiúsculas: “Minha profissão de fé é tão reconfortante para
o patriota quanto terrível para o traidor: eu acredito na infalibilidade
do povo”.55

Em parte, uma criação devida às influências alemãs na França, o termo


nacionalismo foi empregado pela primeira vez com esse sentido por um francês
exilado na Alemanha, o Abade Barruel. É verdade que Herder, o verdadeiro
amante romântico das espécies orgânicas, empregara as palavras Nationalismus
e Nationalism com um sentido cultural na data recuada de 1774.56 A imagem
criada por Herder de uma nacionalidade alemã rústica, virtuosa e musical foi
recebida com admiração por pensadores radicais franceses em busca de uma
definição para a sua própria identidade “nacional”. Muito antes do livro de
Madame de Staël de 1810, Da Alemanha, o discípulo de Schneider, Nodier,
falou extasiado daquela “maravilhosa Alemanha, o último país da poesia e

50 N. von Wrasky, A. G.E Rebmann. Leben und Werke eines Publizisten zur Zeit der grossen französichen
Revolution, Heidelberg, 1907.
51 Mathiez, Étrangers, pp. 112-117,142,153-157. Palmer observou corretamente (Age, vol. ii, p. 117)
que “os revolucionários estrangeiros [...] permanecem um dos mistérios da Revolução Francesa”.
Nenhum aspecto desse mistério foi menos estudado que o impacto, na França, da maior nação entre
as suas vizinhas, a alemã. Um dos poucos estudos que pelo menos aponta o problema é o de S. Stern,
Ana charsis Cloots der Redner des Menschengeschlechts. Ein Beitrag zur Geschichte der Deutschen
in der französichen Revolution, 1914.
52 Cloots, La République, p. 190.
53 Bonneville, Les Vieux Tribun et sa Bouche de Fer, p. 27; citado em Brunot, vol. ix, p. 633, nota 2.
54 Assim como o seu incendiário “Prise des armes”, La Chronique, 1972, maio, pp. 94-101.
55 Appel au genre humain, par Anacharsis Cloots, représentant du people sauveur, s/d., p. 20. Essas
palavras em caixa alta encerram o panfleto.
56 Herdei; Sämtliche Werke, 1891, vol. 5, p. 510; R. Ergang, Herder and the Foundations of German
Nationalism, NY, 1931, pp. 110-111. A possibilidade de que Barruel possa ter de fato tomado a
expressão de algum emprego anterior por Herder ou outro alemão é robustecida pela análise que
Palmer faz de sua obra como quase que exclusivamente baseada em fontes e autoridades alemãs:
Age, voi. li, pp. 251-254.
112 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

da crença no Ocidente, o futuro berço de uma sociedade vindoura — se é


que resta alguma sociedade para ser criada na Europa”.5758
Para a imaginação política romântica, o âmbito de legitimidade não estava
mais na cidade, e sim na nação; essa “nação” que às vezes parecia falar com
sotaque alemão.

O Santo da Picardia

No início do outono de 1793, Estrasburgo estava desalentada com o ter­


ror interno e com a ameaça externa de ocupação alemã. A cidade alsaciana
era um desprotegido posto avançado da nação revolucionária — o ponto
para o qual pareciam convergir as tropas prussianas e austríacas — em um
momento em que Lyon, a segunda mais importante cidade francesa, já havia
caído diante de contra-revolucionários e de uma revolta camponesa ocorrida
na Vendéia. No dia 17 de outubro, Paris enviou um proconsul especial da
nation para reunir o povo e angariar provisões para o exército no Reno. Em
pouco mais de dois meses em Estrasburgo, ele refreou os excessos dos ex­
tremistas, inflamou as massas inertes e liderou os soldados, os quais fizeram
o inimigo recuar em uma série espantosa de vitórias. O homem que liderou
essa salvação da nação revolucionária foi o tipo quintessencial do jovem
revolucionário, Louis-Antoine de Saint-Just.
Saint-Just deu legitimidade ao ideal revolucionário. Ele era com folga o
mais jovem membro dos doze que compunham o Comitê de Salvação Pú­
blica que exercia a autoridade executiva em Paris. Mas, como o comitê na
maior parte das vezes se reunia em segredo no Palácio das Tulherias e não
se comunicava regularmente com o povo, sua autoridade dependia sensivel­
mente dos feitos e exemplos daqueles que ele enviava em nome da nação.5S
À diferença dos demais membros, Saint-Just não tinha nenhuma experiên­
cia prática anterior como advogado, engenheiro, padre, jornalista ou ator.
Jovem demais para ser qualquer coisa além de um filho da revolução, ele a
corporificou em 1793-1794.
A legitimidade não estava mais em um lugar, símbolo ou canção; estava
em um apóstolo revolucionário dos doze. O centro de frieza ascética nesse
grupo acalorado era o jovem rapaz da Picardia cujo nome mesmo evocava

57 Declaração de 1803, citada em Harivel, Bonneville, Cf. pp. 77-118a respeito das influências literárias
alemãs na França desde o início da década de 1780.
58 Palmer, Twelve, pp. 3-6; sobre Saint-Just, pp. 9-10, 73-77; e, sobre sua missão a Estrasburgo, pp.
177-201.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 113

imagem de santidade. A instância de legitimidade estava se estreitando em


um ponto: “aquele local ideal onde as forças criativas e divinas encontram
sua maior e mais poderosa concentração”.59 O drama secular e revolucio­
nário estava convergindo, como a Divina comédia de Dante, para “o ponto
no qual todo o tempo é presente”.60 E esse ponto era não simplesmente o
próprio Saint-Just, mas o nervo central dentro de sua cabeça. Seu amigo
Camille Desmoulins escreveu que Saint-Just “vê a sua própria cabeça como
a pedra angular da revolução e a carrega sobre seus ombros com o respeito
de quem porta o Santíssimo Sacramento”.61
Outro contemporâneo fascinado estava convicto de que algum “segredo”
se escondia por trás de sua “sombra de ansiedade generalizada, sua feição
sombria de preocupação e provocação, uma frieza extrema no tom e nas
maneiras” de sua grande cabeça. O papel de liderança de Saint-Just não pode
ser explicado como resultante das características hoje freqüentemente apon­
tadas como próprias de líderes revolucionários. Ele não era “carismático” —
faltava-lhe o dom de Robespierre para a teatralidade e inspiração. Tampouco
era particularmente “violento” — ele expurgou Schneider e acabou com as
execuções públicas em Estrasburgo. Não cultivava nem a retórica sangui­
nolenta de um Marat nem a teoria da violência de um Oswald. Saint-Just
não era um moralista e não estava essencialmente interessado em poder no
sentido político do termo. Ele cedeu cargos formais de autoridade a outros e
nunca tomou parte no jogo prático das decisões políticas em tempos de paz.
Saint-Just foi descrito como “uma idéia movida a paixão”;62; também
pode ser descrito como uma paixão disciplinada por uma idéia. Sua paixão
era a energia sensual bruta de uma sensibilidade romântica emancipada.
Jovem provinciano de dezesseis anos, ele começou a escrever um livro sobre
um castelo medieval de seu entorno e seduziu a filha de um aristocrata em
um de seus quartos. Forçado a fugir para Paris, ele vivia pelo Palais-Royal

59 Laponce, “Archetypes”, p. 12.


60 “Il punto, cui tutti li tempi son presenti”, Paradiso, xvn, 18.
61 Citado em A. Ollivier, Saint-Just et la force des choses, 1954, p. 32. Essa obra fundamental (escrita
por um amigo de Camus, com uma introdução de Malraux) infelizmente não possui documentação
precisa acerca de vários elementos de central importância. Esse livro pode ser vantajosamente
complementado por M. Abensour, “La Philosophie politique de Saint-Just”, Annales Historiques,
1966, jan.-mar., pp. 1-32, jun.-set., pp. 341-358; pelos artigos e bibliografia presentes em J.-P. Gross,
Actes du Colloque Saint-Just, 1968; e por E. Walter, “Politics of Violence: From Montesquieu to the
Terrorists”, em K. Wolff e B. Moore (ed.), The Critical Spirit. Essays in Honor of Herbert Marcuse,
Boston, 1967, pp. 121-149.
62 Palmer, Twelve, p. 74.
114 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

no auge da revolução e compôs, em “espírito de vertigem”, um extenso


poema pornográfico com a intenção de mostrar “a analogia geral entre o
comportamento normal e a loucura”.63 O quadro que compôs, que incluía
uma representação deformada do Palais-Royal, não fazia nenhuma distinção
clara entre céu e inferno, bom e mau, humanos e animais.64 Com o rebentar
da revolução, escreveu uma peça na qual ilusão e confusão mais uma vez
dão livre vazão ao desejo. O protagonista busca experimentar tudo quanto
existe a fim de ser

...original, original...
Je veux vivre à mon sens désormais
Narguer, flatter, parler, me taire, rire
Aimer, haïr!

[...original, original...
Quero doravante viver do meu jeito
Desafiar, cortejar, falar, me calar, rir
Amar, odiar!].65

Mas as paixões raramente eram satisfeitas nos primeiros escritos de


Saint-Just; eram na verdade cada vez mais sublimadas em um vago anseio
por um novo tipo de grandeza terrena:

L'amour n'est rien qu'un frivole besoin


Et d'un grand coeur il doit être loin.

[O amor não é nada além de uma necessidade frívola


E de um grande coração ele deve estar longe].66

O desafio para um “grande coração” em 1789-1790 estava em bater


junto com a revolução; suas paixões logo foram absorvidas pelos dois lados
dela — o organizacional e o ideológico — que os líderes políticos tendiam
a negligenciar.
Do ponto de vista organizacional, ele formou uma guarda nacional na
cidadezinha de Blérancourt e liderou os soldados em rituais públicos, como o

63 Ollivier, pp. 38-41.


64 Ibid., esp. p. 57 ss. Ollivier vê a subestimada peça Organt como a chave para compreender a evolução
de Saint-Just, e alude (p. 55) a outra obra subseqüente que se perdeu, Dialogue entre et
l’auteur d'“Organt".
65 Citado em Arlequin Diogène, em ibid., p. 57.
66 Ibid.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 115

da queima de livros contra-revolucionários. Já do ponto de vista ideológico,


ele se pôs a escrever (em três mesas a céu aberto) seu Espírito da revolução
e seu incompleto e inédito Natureza.67 Afinal, Saint-Just abandonou as mes­
quinharias e rivalidades da velha ordem moribunda para desenvolver as
crenças centrais da nova ordem.
Ele desconfiava de movimentos de massa, e considerou a tomada da
Bastilha não mais que “embriaguez de escravos” e as grandes celebrações,
tão só palcos para demagogos.68 Tampouco estava interessado nos direitos
do homem ou nas fórmulas das constituições. Estas seriam ocupações de
“mesquinhos ladrões de santuários”.69 Foi além do contrato social (contrat
social) de Rousseau em sua reivindicação de uma nova ordem social (état
social) “fundada sólida e unicamente na natureza”.70
Sem visão alguma do futuro, quase nenhum conhecimento do passado e
surpreendentemente pouca preocupação com o presente, Saint-Just se tornou
o primeiro asceta da revolução, apartando-se do povo para servir integral­
mente ao “povo”: “Devo falar de todos os povos, de todas as religiões, de
todas as leis, como se eu mesmo não aderisse a nenhuma [...] Aparto-me de
tudo para ligar-me a tudo”.71
Rousseau havia apontado o caminho que ia da total solidão até envol­
vimentos totais. Sua retirada da sociedade de sua época foi o pré-requisito
psicológico indispensável à sua concepção revolucionária da natureza como
“uma totalidade saturada de conteúdo moral [...] ao mesmo tempo “paraíso
perdido” e a permanente possibilidade de fazer novas todas as coisas”.72
Saint-Just, contudo, faz a primeira sugestão do desligamento total das
relações normais mais tarde reivindicado pelo Catecismo revolucionário de

67 Ibid., pp. 71,117,94 sobre UEsprit de la révolution, concluído ao fim de 1791; sobre De la Nature,
de l’état civil, de la cité ou la règle de l’indépendence, que Abensour data de algum momento entre
setembro de 1791 e setembro de 1792, v. a edição bilíngue realizada por A. Soboul: Saint-Just,
Frammenti sulle Intituzioni republicane, Turim, 1952.
68 Olliviei; pp. 69-70.
69 Ibid., pp. 228-229.
70 Frammenti, p. 133.
71 Ibid., p. 174. Destaque em itálico feito por nós.
72 B. Baczko, Rousseau: solitude et communauté, Paris/La Hague, 1974, pp. 141-142. A primeira parte
desse rico estudo defende de modo bastante persuasivo a aplicação retroativa do abusivamente
empregado termo “alienação” a Rousseau; e a segunda parte defende a centralidade de um conceito
duplo de natureza como a negação daquilo que é e a afirmação do que podería ser. V. também E.
Reiche, Rousseau und das Naturrecht, 1935; e a respeito do impacto sobre Saint-Just, S. Kritschewsky,
J.-J. Rousseau und Saint-Just: Ein Beitrag zur Entwicklungsgeschichte der sozialpolitischen Ideen
der Montagnards, Berna, 1895, esp. pp. 30-31.
116 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Nachaev, que urgia os revolucionários para que cortassem “todos os laços


com a ordem civil, com o mundo educado e com todas as leis”.73
Argumentando que “tudo no mundo é relativo” e que “só a verdade é
absoluta”, Saint-Just vislumbrou a única esperança de acabar com “o ciclo de
corrupção” em um retorno à “virtude original” — uma inversão secularizada
do pecado original.74 “Virtude original” implicava uma renovada comunhão
com a simplicidade primitiva da natureza.
Eleito representante da Convenção em setembro de 1792, Saint-Just retor­
nou a Paris logo após a fundação da República e afirmou ser a Convenção
“o ponto no qual tudo está comprimido”.75 O legislador que se dirige a esse
local sagrado não pode ser um sofista que lida com palavras, mas um “orá­
culo” ou um pontifex no sentido romano original de uma ponte humana
entre a verdade mais alta e a humanidade confusa.76 Atribuindo a si próprio
esse papel sobre-humano no centro do poder, Saint-Just comodamente se
tornou, em outubro, secretário do escritório principal da Convenção e o mais
poderoso advogado do regicidio na Assembléia. Seu argumento em defesa
da morte do rei era inteiramente impessoal e desapaixonado. O monarca
não era de modo algum considerado um ser humano, mas uma abstração
universal, “o Rei dos Reinos”. Ele era o contraponto ao novo ponto de po­
der soberano na Convenção; e Saint-Just impeliu esse corpo político até um
ponto revolucionário sem volta, argumentando contra “uma compaixão que
involuntariamente corrompe a força de alguém”.77
A sua simplificação radical proporcionaria, por fim, uma metáfora con­
vincente para que a nação francesa substituísse a do corpo do rei logo que
este fosse decapitado. Ele reviveu a velha imagem do corpo humano, que
personalizava a agonia e as aflições da nação de um modo que as metáforas
mecanicistas do século xvm eram incapazes. “Os inimigos da república estão
em seu intestino”. Seus líderes eram sobretudo “vermes”. A maior esperança
estava no “grande coração” e nos “grandes nervos” bem como na “audácia da
virtude magnânima”.78 Saint-Just expressou o desprezo revolucionário modelar
pelas boas ações individuais em uma sociedade “doente”: “O bem particular

73 Texto presente em B. Dmytryshyn, Imperial Russia, NY, 1967, p. 241.


74 Ollivier, p. 75, 78-79.
75 Ibid., p. 88.
76 Ibid., pp. 88-89.
77 Ibid., pp. 173, 187.
78 Ibid., pp. 168,252,110.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 117

que uma pessoa faz é um paliativo. Deve-se esperar por uma doença geral
grande o suficiente para que a opinião geral sinta a necessidade de medidas
capazes de fazer algum bem. O que produz o bem geral é sempre terrível” 79
A imagem que criou da nação como um corpo único tornou qualquer
perda de território coisa tão dolorosa quanto uma amputação. No início
da primavera de 1793, ele viu a nação ameaçada de morte “caso a divisão
se instalasse no território”,80 e assim partiu para a primeira de três missões
especiais com o objetivo de organizar a resistência nas províncias vulnerá­
veis. Ao trabalhar no Comitê Constitucional da Convenção, fracassou em
sua campanha para criar um governo executivo de 48 membros colhidos no
nervo central de cada departamento; mas saiu vitorioso ao conseguir inserir
na Constituição de 1793 uma previsão contra jamais se firmar paz com um
poder estrangeiro que esteja ocupando algum território francês.81
No seu grande discurso de 10 de outubro de 1793 em defesa de uma di­
tadura revolucionária, Saint-Just denunciou todo governo tradicional como
um “mundo de papel”:

A prolixidade das comunicações e ordens governamentais é uma marca de inércia;


é impossível governar sem laconismo [...]
Os escritórios substituíram a monarquia; o demônio da escrita nos faz guerra e
não conseguimos governar.82

Com o Comitê de Salvação Pública agora “colocado no centro”, a causa de


todo infortúnio da nação foi atribuída à “vicissitude das paixões”.83 A única
paixão capaz de prover constância à nação em período prévio à instilação
da virtude era o terror, que ele via não como um meio de punir o crime, e
sim de atiçar a audácia e energia populares.
Embora a defesa que Saint-Just fazia do terror fosse relutante, e o uso que
dele fez na Alsácia tenha sido limitado, o fato de tê-lo legitimado encorajou
uma nova onda de violência pedagógica que se iniciou com a execução pú­
blica de Maria Antonieta em 16 de outubro. Saint-Just partiu para Estras­
burgo no dia seguinte; e no dia posterior uma nova peça estreou em Paris,
a qual acrescentou a metáfora do vulcão à imagem até então tranquila da

79 Oeuvres de Saint-Just (ed. J. Gratien), 1946, pp. 296-297. Destaque do autor.


80 OUiviei; p. 232.
81 Ibid., pp. 233-239.
82 Ibid., p. 296, Oeuvres (ed. Gratien), p. 184.
83 Ollivier, p. 297.
118 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ilha utópica. Apesar da imensa carência de explosivos no fronte de guerra,


o Comitê de Salvação Pública autorizou a entrega de quase dez quilos de
nitrato de potássio e pólvora ao Teatro da República para que se produzisse
a encenação de uma erupção vulcânica, a qual arremessou pedras e carvão
em brasa sobre o público no encerramento de O Último Juízo dos Reis, de
Sylvain Maréchal.84
Foi exatamente essa a imagem que Saint-Just usara muito antes da revolu­
ção relacionada à sua primeira reflexão sobre o “terror”85; e a extremamente
bem-sucedida peça de Maréchal colocara uma nova imagem “natural”, como
foco de espanto e terror, no lugar da guilhotina, cujo emprego nas execuções
públicas em Estrasburgo Saint-Just tinha sempre evitado. Havia uma sugestão
de orgasmo na imagem da erupção criada por Saint-Just/Maréchal — assim
como havia algo de nudez na ópera posterior de Maréchal que descrevia um
padre deixando cair suas vestes “para renunciar à minha impostura [...] aos
olhos da natureza”.86
Também Saint-Just se voltara para o poder emotivo da música. A caminho
de Estrasburgo, ele cantava músicas italianas,87 e deixou em Paris uma ópera
perdida na qual tinha trabalhado com um compositor italiano para uma
estréia poucos dias após O Juízo Final de Maréchal. Essa sua composição,
Sélico ou Les nègres, aparentemente girava em torno da intensa amizade
entre dois irmãos envolvidos no assassinato de um tirano; esse senso de
camaradagem masculina bélica permitiu que Saint-Just identificasse nação
e fraternidade em um sentido quase físico.88

84 D. Hamiche, Le Théâtre et la Révolution, 1973, p. 174; para o texto, pp. 269-305. Sobre as
representações provincianas e imitações, v. M. Dommanget, Sylvain Maréchal. L'égalitaire, “l'homtne
sans dieu”. Sa vie, son oeuvre (1750-1803), 1950, pp. 258—273, esp. pp. 260-261.
A imagem da “palavra revolução” como “tromberà do Juízo Final” a ressoar “nos quatro cantos
da Europa” já havia sido usada em maio de 1791 no Révolutions de Paris para o qual Maréchal
escrevia (A. Aulard, The French Revolution. A Political History, NY, 1910, vol. 1, p. 257). De
maneira independente, em 1793 o radical alemão Georg Foster escreveu que “a lava da revolução
está fluindo e já nada poupa”. Julku, “Conception”, p. 251.
85 Seção de Organi que descreve o “santo arrepio” de contemplar a lava dentro do Monte Etna, “onde
o Terror mora”, capaz de pôr fim ao “sono dos tiranos”. Ollivier, p. 52.
86 “Dans le temple de la Raison, / Aux yeux de la nature, / Je viens me mettre à l’union, / Abjurer
l’imposture”. La fête de la raison. Opéra en um acte, 1794, p. 20. Copias dessa e de outra ópera
pouco conhecida de Maréchal-Grétry, Denis le Tyran. Opéra en um acte, 1794, estão presentes em
IA.
87 Ollivier, pp. 36-37.
88 O conhecimento que se tem dessa obra advém apenas da resenha de uma apresentação publicada na
Gazette Nationale ou le Moniteur Universel, 22 de outubro de 1793 (reimp. 1847, vol. 18, p. 171),
na qual o autor é identificado apenas como “cidadão Saint-Just” e o compositor, como “Mengozzi”.
Este último é sem dúvida Bernardo Mengozzi; e o primeiro, provavelmente o líder revolucionário,
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 119

Educado só pela mãe e pelas irmãs, Saint-Just descobriu la fraternité junto


com la nation, Na sua primeira missão de mobilização das províncias em
1793, escreveu que a nação “não é de modo algum o sol, é a comunidade de
sentimentos”.89 Sua visão só postumamente publicada de uma sociedade ideal
promove seu conceito de camaradas-em-armas como um laço semi-erótico.
Propõe que todo jovem de 21 anos declare suas amizades publicamente no
templo e repita o ritual ao fim de todo inverno. Se um homem abandona
um amigo, deve prestar contas de seus motivos ao povo; e “é banido caso
se recuse [...] (ou se) diz que não tem amigos, ou se renuncia à sua fé na
amizade”. Amigos devem lutar juntos em batalhas; cada um é responsável
pelos crimes dos outros; e “aqueles que permanecerem unidos por toda a
vida devem ser enterrados juntos”.90
O venerável companheiro de Saint-Just na missão a Estrasburgo, Le Bas,
sentia o mesmo tipo de lealdade fraterna que o próprio Saint-Just, por sua
vez, sentia para com Robespierre. Saint-Just nunca se distanciou de Ro­
bespierre no fim, como poderia facilmente ter feito. Nunca se casou, e seu
relacionamento com a irmã de Le Bas parece ter sido principalmente uma
prova de sua amizade ao companheiro na Alsácia.
A fraternidade militante a serviço da nação não deixava espaço para o
convívio das mulheres — na verdade, para nenhuma confraternização com
mulheres. Saint-Just e Le Bas fulminaram Schneider em Estrasburgo por in­
correr não apenas em sexo distrativo e em violência excessiva, mas também
por ter se casado com uma alemã, Sarah Stamm, no auge das batalhas contra
os invasores em dezembro. Schneider ameaçara a integridade tanto étnica
quanto sexual das legiões francesas; sua esposa foi executada junto com ele
em abril de 1794.91 Uma ameaça externa foi de novo associada com a tentação
feminina no caso de Etta Palm d’Aelders, a feminista radical pertencente à
Confederação de Bonneville que foi denunciada por seus laços estrangeiros.92
No fim de 1793, a nação estabelecera padrões de lealdade mais excludentes,

tal qual A. Soboul defendeu ao chamar minha atenção para essa notícia. Outro Saint-Just, contudo, o
cunhado de Cherubini, depois escreveu óperas de teor mais ameno com colaboradores franceses: v. A.
Pougin, L’Opéra-comique pendant la révolution de 1788 à 1 SOI, Genebra, 1973, pp. 207,213,247.
89 Ollivier, p. 233; Oeuvres (Gratien), p. 292.
90 Oeuvres (Gratien), p. 306.
91 Schneider foi preso no dia seguinte ao seu casamento, tendo Les Bas desempenhado um papel
invulgar: Harsany, Vie, p. 310, nota 628; Mathiez, Étrangers, p. 174.
92 Mathiez, Étrangers, pp. 94—98. Eia parece ter sido vítima da aplicação retroativa de um conceito
até então desconhecido, segundo o qual a “cidadania” de um país era vista como incompatível com
a comunicação com representantes de outro país.
120 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

espartanos e homófilos do que poderia imaginar qualquer pessoa educada


no cosmopolitismo iluminista.
Também no meio popular uma súbita onda de engajamento feminino
nas atividades revolucionárias foi permanentemente reprimida durante a
mobilização nacionalista de 1793. De curta duração, uma “unidade de ama­
zonas” de quatro mil moças havia surgido em Bordeaux e umas “Amigas
da Liberdade e da Igualdade” em Lyon.93 Em Paris, as mulheres “estiveram
à frente das iniciativas mais violentas e ultrapassaram em grande medida a
fúria masculina”94 nos debates de 31 de maio de 1793, os quais levaram o
poder de dentro da Assembléia para as ruas. Toda essa movimentação femi­
nina desapareceu junto com a Sociedade Republicana Revolucionária, uma
associação parisiense de mulheres sans-culottes que se tornou “o primeiro
alvo do assalto jacobino ao movimento popular”95 no outono de 1793. A
exigência dessa associação de que as mulheres utilizassem as boinas verme­
lhas masculinas provocou a ira dos principais revolucionários. No dia 31 de
outubro, a Convenção decretou a clandestinidade de todas as associações e
clubes femininos.
E quase certo que o sentimento anti-feminino que varreu Paris se relacio­
nava ao processo paralelo de mobilização dos homens para o serviço militar.
O nunca visto levée en masse envolveu a separação de milhares de homens
de suas mães e o estabelecimento de um elo entre eles através da mística do
nacionalismo militante. As identidades feminina e estrangeira estavam se
fundindo. A palavra “austríaco” era pronunciada sob forma feminina, apesar
de a gramática francesa exigir uma terminação masculina.96 Não importa se
o barrete vermelho era ou não um símbolo fálico, como o queria Joel Barlow,
o fato é que o seu uso por mulheres em Paris parecia ameaçar a liderança
masculina. Fabre d’Eglantine, um dos principais coreógrafos das cerimônias
revolucionárias, apelou a uma espécie de teoria efeito-dominó a respeito das
prováveis anexações femininas do poderio/sexualidade dos homens. Depois
do bonnet rouge, as mulheres se apropriariam do coldre e em seguida da
93 Clara Zetkin, Zur Geschichte der proletarischen Frauenbewegung Deutschlands, 1958, pp. 16-17,
a respeito desses grupos negligenciados — cujas dimensões podem ser um tanto exageradas pelo
entusiasmo revolucionário da autora. Para outros exemplos provincianos, v. Abray, “Feminism”, p.
50, nota 40.
94 Jules Michelet, Les femmes de la révolution, 1898, p. 115.
95 M. George, “The ‘World Historical Defeat’ of the Républicaines-Révolutionnaires”, Science and
Society, 1976-1977, Winter, p. 412; v. também pp. 432-437 sobre o desenlace final “masculino e
chauvinista”.
96 Censer, Prelude, pp. 97-98.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 121

própria arma, ele advertia.97 O relatório oficial à Convenção sobre o papel


das mulheres alertava contra qualquer participação na política de um sexo
que está congenitamente “exposto ao erro e à sedução”: “As mulheres, em
razão de sua constituição, estão sujeitas a uma exaltação que pode ser ame­
açadora para a vida pública. Os interesses do estado seriam logo sacrificados
a todo tipo de perturbação e desordem que a histeria é capaz de produzir”.98
A histeria tinha forte presença na mente dos homens que votaram — com
um único voto contrário em toda a Convenção — a favor da proscrição de
qualquer associação de mulheres. Nessa atmosfera, Maria Antonieta, que
tinha sido alvo de insultos relativamente pouco lembrados nos primeiros anos
da revolução,99 tornou-se alvo dè um ódio selvagem que às vezes beirava
o sadismo. Sua execução, no dia 16 de outubro, deu início à decapitação
pública, em espaço de tempo curto, das mulheres de maior importância sim­
bólica. Charlotte Corday, a assassina de Marat, Olympe de Gouges, autora
de uma Declaração dos Direitos das Mulheres, e por firn a líder girondina
Madame Roland no dia 8 de novembro — todas proporcionaram execuções
espetaculares para as massas parisienses. A imaginação popular, que já tinha
substituído os caros desenhos entalhados por gravuras em águas-fortes bara­
tas,100 acolheu o seu ícone ginefóbico por meio de um esboço a lápis feito por
David de uma Maria Antonieta disforme, porém ainda arrogante, a caminho
de seu fim humilhante. Faz contraste chocante, tanto em seus métodos quanto
em sua mensagem, aos guerreiros neo-clássicos nus e idealizados que domi­
nariam as grandes pinturas a óleo de David em glorificação da grand nation.
Um medo subconsciente de vingança talvez explique a estranha preocupação
de Robespierre e Saint-Just quanto a serem assassinados por mulheres.101
Personificação da fraternité masculina e militante, Saint-Just escreveu da
Alsácia a Robespierre que “havia leis demais — muito poucos exemplos”.102
Em seus últimos meses de vida, Saint-Just cumpriu “a mais estrita austeri­

97 Abray, p. 56.
98 Citado de um relatório de A. Amar em nome do Comitê de Segurança Geral em Abray, p. 57.
99 Censer, pp. 96-97.
100 Sobre as gravuras em água-forte (com temas cotidianos e distribuídas rapidamente) como resposta
popular aos aristocráticos desenhos entalhados do período revolucionário, v. H. Mitchell, “Arte and
the French Revolution: An Exhibition at the Musée Carnavalet”, History Workshop, 1978, inv., esp.
pp. 127-129.
101 Thompson, Revolution, p. 553.
102 14 de dezembro de 1793, em Oeuvres completes äe Saint-Just (ed. c. Vellay), 1908, voi. n, p. 161,
a ecoar sua reclamação de que “as leis são revolucionárias, aqueles que as aplicam não o são”.
Relatório para a Convenção em 10 de outubro de 1793, em Oeuvres (Gratien), p. 174.
122 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

dade de hábito”, evitou todo contato com mulheres103 e liderou a batalha


contra a indiferença e o sectarismo.104 No fim de abril de 1794, ele seguiu
para o fronte com Le Bas uma última vez para compartilhar a grande vitória
em Fleurus, ao fim de junho. Quando os austríacos subjugados em frente a
Charleroi lhe trouxeram um envelope com os termos de rendição em 25 de
junho e começaram a lhe falar a respeito dos decentes arranjos, Saint-Just
os interrompeu para dizer que não o abriria e que exigia rendição incondi­
cional: “Não podemos honrá-los ou desonrá-los aqui, assim como não está
em seu poder desonrar ou honrar a nação francesa. Entre nós não existe
nada em comum”.105
Ironicamente, a vitória que assegurou a sobrevivência da nação afastou
a necessidade do terror e do estado de emergência que haviam justificado
que um corpo governamental tivesse, pela primeira vez na história, descrito
oficialmente a si mesmo como “revolucionário”. Robespierre e Saint-Just
foram ambos executados e o Comitê de Salvação Pública dissolvido um mês
depois da vitória.
Como é coisa bem apropriada ao claro-escuro político do apocalipse,
houve uma última e fabulosa festa da fraternidade pouco antes da queda de
Robespierre. Se a Festa da Federação em 1790 havia representado “o primeiro
dia do sonho sublime da fraternidade”,106 a espetacular Festa do Ser Supremo
realizada por Robespierre, em 8 de junho de 1794, sugeriu o início de seu verão
eterno. O inverno, os exércitos estrangeiros e a guilhotina pareciam ser passado;
e a última etapa do processo de simplificação revolucionária ocorrera com a
eleição de Robespierre para presidente da Convenção e com a proclamação
de uma nova religião de máxima simplicidade: “O Culto do Ser Supremo”.
Pensado para ser a primeira de uma série de festas nacionais regulares,
a Festa do Ser Supremo transformou o vulcão em uma pacífica montanha
de beleza floral e coro uníssono no Campo de Marte. As mulheres foram
aceitas, tendo recebido igual espaço, ainda que separado, ao dos homens,
nos rituais que até então englobavam um só sexo. Até o ascético Saint-Just

103 De acordo com E. Hamel, o primeiro biógrafo de Saint-Just e um dos mais dispostos a encontrar
companhias femininas para ele a todo momento, em Ollivier, p. 505.
104 Relatório para a Convenção sobre facções, 13 de março de 1794, em Saint-Just, Discours et Rapports
(ed. A. Soboul), 1957, p. 171; e o início de sua famosa última defesa de Robespierre: “Je ne suis
d’aucune faction; je les combattrai toutes” [Não faço parte de nenhuma facção; combaterei todas
elas]. Ollivier, p. 614.
105 Ibid., p. 510.
106 Tiersot, Fêtes, p. 41.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 123

viu nos atos o início de um programa pedagógico capaz de verdadeiramente


inculcar a virtude em um mundo corrupto. Aqui, afinal, chegou-se a uma
Esparta com música. Paris fora transformada não em uma cidade baseada
em alguma concepção pré-existente, mas num “eterno modelo de união,
simplicidade e alegria”.107 Ao saudar o Ser Supremo, Robespierre proclamou
que seu “verdadeiro sacerdote” é a “natureza”: “Seu templo, o universo; seu
culto, a virtude; seus festejos, a alegria de um grande povo [...] renovando
os doces elos da fraternidade universal”.108
A euforia durou pouco, embora muito da nova simplicidade secular tenha
sobrevivido, junto a vários dos festivais nacionais, no Culto da Teofilantropia
à época do Diretório. As “refeições fraternas” das últimas semanas do go­
e o “abraço fraterno” que encerrou o festival foram
verno de Robespierre109110
seguidos de uma última e fratricida irrupção de terror e sectarismo, a qual
pôs abaixo o governo de exceção.
Saint-Just exemplificava na esfera da liderança o fenômeno geral na massa
de soldados jovens e dedicados que atrelaram sua paixão à causa nacional.
Ele foi o protótipo do futuro revolucionário ascético. Através dele, o âmbito
da legitimidade passou de lugar físico e fórmula política a exemplo vivo. Esse
exemplo avultou em assombro com a calma gélida, o sang-froid^ que ele
manteve ao longo de toda a luta e violência de seus últimos dias. Saint-Just
tinha a serenidade de quem muito antes da morte havia se entregado a um
ideal transcendente, ao “espírito da revolução”, e atingido o objetivo da
“regeneração” humana.
A paixão de Saint-Just era mais fria que quente. Mas implodia em inte­
ligência que explodia em indulgência. Essa inteligência traçou um curso de
constância e severidade nas turbulentas semanas finais de governo do Comitê
de Salvação Pública. Ele resistiu tanto aos gestos aparentes de Robespierre no
sentido de selar a paz com inimigos externos quanto à sua própria inclinação
para tornar coisa pessoal a luta contra os moderados. Ao mesmo tempo,
Saint-Just parece ter sido muito mais ousado que Robespierre ao tentar,
sem passar pelas lideranças da Convenção, apelar diretamente ao exército
revolucionário em um esforço final de prevenir a virada conservadora.

107 “Um modele eternel de rassemblement, de simplicité et d’allégresse”, Ozouf, p. 332.


108 Tïersot, Fêtes, p. 128.
109 Thompson, Revolution, pp. 551-552, sobre as repas fraternels [refeições fraternas].
110 A palavra é invocada em uma descrição por um colega seu no Comitê de Salvação Pública, Bertrand
Barère: Ollivieç p. 654.
124 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Seja qual tenha sido o seu papel, é certo que Saint-Just manteve até o fim
um frio desprezo pelo “pó” da vida comum, pela “moleza” e preguiça daque­
les que se entregam ao processo de corrupção, e não ao de regeneração.1’1
O “espírito da revolução” foi barrado não só pela “força das coisas” — da
qual ele com freqüência reclamava com impaciência; faltou também força
entre os próprios revolucionários — retrocesso do esprit de la révolution
para o bon esprit das salas de visita aristocráticas: “l’esprit é um sofista que
conduz todas as virtudes ao patíbulo”.111112
Dentro da orgulhosa cabeça de Saint-Just, à medida que se dirigia para la
sainte guillotine^ pode ter repousado a mais sublime de todas as contradições
do pensamento revolucionário: a necessidade de uma tirania da virtude para
prevenir o regresso de uma tirania cercada de vícios. Sua aparente tentativa
de passar por cima da Convenção usando o exército, sua revelação de que
César Augusto era o seu herói preferido da antigüidade, suas misteriosas
referências a Oliver Cromwell e a associação final que Robespierre fez entre
eie e Charles ix, autor do Massacre da Noite de São Bartolomeu113 — tudo
indica que esse reto santo, que não buscava poder pessoal algum, bem pode
ter se sentido impelido a legitimar o poder absoluto.
A idéia nacional de fraternidade alcançou seu ápice na execução de
Saint-Just logo após o suicídio de seu “irmão” revolucionário mais novo,
Le Bas. A idéia rival de igualdade comunitária surgiu durante a reação
termidoriana seguinte. Seu líder, Babeuf, era, tal qual Saint-Just, natural da
Picardia e dotado de uma nostalgia similar pela simplicidade agrária e pela
antiga virtude em um mundo corrupto.114 Sua expressão cultural suprema
não foi a festa musical da fraternidade de Robespierre, mas sim o Manifesto
dos iguais em prosa de Sylvain Maréchal. Se Maréchal tirou a sua imagem
da revolução-como-vulcão de Saint-Just, absorveu de Robespierre a idéia
mais importante ainda de uma revolucionária Segunda Vinda. O conceito
de Maréchal da insurreição política de 1789—1794 como o prenuncio de
uma segunda revolução, desta feita social, emerge diretamente das palavras

111 Ollivier, pp. 597-598, 649.


112 Ibid., pp. 652-653.
113 Ibid., pp. 651-652, 655. Uma biografia de Cromwell foi encontrada em seu quarto após sua
execução, p. 650, nota 1. Essas atitudes contrastam com a crítica anteriormente feita a Cromwell
e ao cristianismo por sua subordinação a Constantino. A. Malraux descreve Saint-Just ao fim da
vida como “apaixonadamente totalitário”: Ollivier, p. 17.
114 V. M. Dommanget, “Saint-Just et la question agraire (en rapport avec ses origines paternelles et la
terre picarde)”, Annales Historiques, 1966, jan.-mar., pp. 33-60.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 125

de despedida de Robespierre na Festa do Ser Supremo: “Um novo mundo


surgiu além dos limites do mundo. Tudo mudou na ordem física; tudo deve
mudar na ordem moral e política. Metade da revolução mundial está feita,
resta rematar a outra metade [...]”.115

Igualdade: a visão da comunidade


O terceiro novo ideal a nascer com a Revolução Francesa foi o da communauté-.
um novo tipo de comunidade social e econômica baseada na igualdade.
Embora este fosse o ideal menos sistematizado na época (e o politicamente
menos importante ao longo do século xix), tem raízes importantes na era
revolucionária. O igualitarismo revolucionário de Babeuf, Maréchal e Restii
de la Bretonne é o progenitor do comunismo moderno — e do socialismo
revolucionário, o ideal adversário do nacionalismo revolucionário.
O novo comunalismo se originava da defesa feita por Rousseau de um
contrato social que rejeitaria a desigualdade entre os homens e legitimaria
a autoridade ao permitir que a “vontade geral” unificasse a sociedade sobre
novas bases. O contrato de Rousseau era em geral interpretado em termos
puramente políticos durante a Revolução Francesa, mas também emergiram
os germes da interpretação socioeconòmica de duas outras fontes: a retórica
da Revolução Americana e a realidade do campesinato francês.
A Declaração Americana de Independência alegou, como primeira justi­
ficativa de separação da Inglaterra, a afirmação ideológica de que “todos os
homens são criados iguais”. Ao dizer que isso é “auto-evidente”, a Declaração
também deu início à tendência dos publicistas revolucionários de proclamar
a obviedade de verdades nunca antes concebidas senão por umas poucas
pessoas. A mais secular Declaração de Direitos francesa de 1789 proclamou
que os homens eram iguais somente “com respeito aos seus direitos”; mas
revolucionários posteriores também pensaram na “busca da felicidade” pro­
clamada pelos americanos — e a Constituição radical de 1793 afirmava (de
um modo como os americanos jamais fizeram) que a “felicidade comum”
(le bonheur commun) era o objetivo da sociedade e que “a opressão contra
o corpo da sociedade” (corps social) justificaria a insurreição.116
A idéia protocomunista de que a “felicidade comum” poderia ser alcançada
às custas da propriedade privada começou a aparecer relativamente cedo
115 Citado em A. Mathiez, “Robespierre et le culte de l’être suprème”, Annales Révolutionnaires, 1910,
vol. 3, p. 219.
116 Mathiez, “Constitution de 1793”, pp. 314-315.
126 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nos círculos cosmopolitas parisienses que por fim se revelaram um anátema


para os líderes nacionalistas jacobinos. Uma petição sobre as “leis agrárias”
de autoria do anglo-irlandês James Rutledge, que denominava a si mesmo
“cidadão do universo”, defendia em 1790 o estabelecimento de uma ordem
social (état social) “sem nenhum senhorio de propriedade”.117 Essa idéia de
uma lex agraria, uma distribuição de terras mais ou menos à maneira de
Tibério e Caio Graco durante a República romana, foi ao mesmo tempo
disseminada sistematicamente pelo principal colaborador de Bonneville no
Círculo Social, o Abade Fauchet.118 A idéia se tornou especialmente predileta
do clero provincial, que se identificava com suas paróquias rurais. O Abade
Cournand foi ainda mais longe ao declarar que, “no estado de Natureza, o
domínio do homem é toda a terra” e ao defender que todos os proprietários
de terra deveríam possuir terrenos de igual tamanho, não hereditários e in­
transferíveis.119 Outros “curas vermelhos” se viram tomados de um entusiasmo
quase religioso ao se identificarem com as massas e elaborarem um ideal so­
cial que ia além da política parisiense para sugerir a salvação secular. Assim,
Pierre Dolivier beirou a santidade negando-se a si mesmo quando solicitou
ingresso na Confederação Universal de Bonneville-Fauchet. “Eu sou”, disse
ele, “o mais humildes dos homens”: “Simples e até mesmo simplíssimo, sem
calções e sem lareira (sans culottes et sans feu), mas não sem paixão pela
obra de trazer à existência o reino da justiça universal”.120
Esse ideal universal encontrou fundamentos locais nas queixas oriun­
das do campo francês. Estas foram levadas a Paris em maio de 1790 por
François-Noël Babeuf, um jovem prisioneiro natural da Picardia que havia
liderado uma revolta local contra o constante aumento de impostos pela As­
sembléia Nacional. Babeuf fora criado no campo, instruído como comissário
de escrituras agrárias e estudara utilização de terra, mas com relativamente
pouco interesse em política. Em Paris, ele descobriu o conceito de lei agrária
ao estabelecer relação primeiro com Rutledge e depois com a Confederação
117 As “Questions sur les loix agraires” [Questões sobre as leis agrárias], aparentemente publicadas em
Londres, reproduzidas em Saitta, Buonarroti, vol. 1, p. 285, o qual atribui sua autoria a Rutledge,
à época residente em Paris.
118 Rose, Babeuf, p. 101.
119 L. Bernstein, “Un plan socialiste sous la révolution française”, International Review of Social History,
1937, vol. 2, p. 209. V. Abade Antoine de Cournand, De la propriété, ou la cause du pauvre, 1791
(mas escrito em 1789, de acordo com Ioannisian, Idei, p. 13); também Dalin, Babef, pp. 427-435.
120 Citado em Ioannisian, Idei, p. 55. O texto de sua solicitação de ingresso nos Amigos da Verdade
(citado à p. 54) é reproduzido como anexo em Delacroix.
Uma obra de Dolivier foi encontrada em posse de Babeuf à época de sua prisão: Essai sur la justice
primitive pour servir de príncipe générateur au seul ordre social, 1793. V. Ioannisian, Idei, pp. 58—59.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 127

Universal,121 a qual proporcionou uma moldura ideológica para as suas idéias


rudimentares sobre “concessão coletiva” {ferme collective) e redistribuição
das terras confiscadas da igreja entre os pobres.122 Sua oposição à revolução
política moderada foi explicitada dramaticamente com seu ataque a Lafayette
no verão de 1790. Essa Carta de um representante da Picardia foi distribuída
no Palais-Royal,123 onde Babeuf fez planos para divulgar uma feminista e
radical Confédération des Dames, talvez ligada à Confederação Universal.124
Ele atrelou o governo comunal de Paris à autoridade local rural, numa
oposição comum ao governo nacional parasitário. Eleito administrador do
departamento de Somme em setembro de 1792, voltou a Paris na primavera
de 1793 para adotar o nome de “Graco” em sua busca por “real igualdade
econômica” {égalité de fait) e por algum novo tipo de “felicidade geral des­
conhecida das eras passadas”.125 Devemos concentrar atenção agora nessa
busca revolucionária.

A conspiração de Babeuf

As origens da tradição revolucionária social — não menos que da tradição


revolucionária nacional — estão na mobilização militar de 1793. Revolu­
cionários sociais como Babeuf — à diferença da maioria dos nacionalistas
tipificada por outro natural da Picardia, Saint-Just — tinham uma afinidade
especial com as unidades militares internacionais efemeramente constituídas
em 1793. Babeuf conhecera Rutledge ainda antes da revolução, e ao fim de
1789 ele se assinou como correspondente regular da provinciana Roye para
o internacional Courrier de l’Europe,, publicado em Londres.126 Ao chegar a
Paris em fevereiro de 1793, Babeuf tomou parte da sublevada “legião de liber­
tadores do povo”, servindo de secretário ao franco-haitiano Claude Fournier,
o qual havia guiado a massa do Palais-Royal até o assalto à Bastilha e era

121 Rose, Babeuf, pp. 73, 101-102.


122 Ibid., p. 39, refuta a sugestão esperançosa de Dalin de que o conceito de Babeuf de uma ferme
collective já apresentava em 1796 os elementos básicos da “fazenda coletiva” soviética.
Sobre essa difícil questão, cf. G. Lefebvre, “Les origines du communisme de Babeuf’, IXe Congrès
international des sciences historiques. Rapports, vol. 1, pp. 561-671; discussão em vol. 2, pp.
237—243; também Godechot, “Travaux récents”, in Babeuf Buonarroti, pp. 12—14; e R. Legrand,
“Babeuf en Picardie”, pp. 22-34.
123 Sobre a Lettre d’un depute de Picardie e a abundância de copias descobertas pela polícia em uma
batida no Palais-Royal no mes de agosto, v. Rose, pp. 78, 365, nota 10.
124 Ibid., p. 78.
125 Ibid., p. 141.
126 Ibid., pp. 44, 62.
128 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

chamado de “o Americano”.127 Em seguida, foi por breve período secretário


de um oficial holandês à frente da legião batava128 antes de se retirar para a
administração de mantimentos na Comuna de Paris.
Quando Fournier não foi escolhido para liderar a ofensiva revolucionária
contra o levante conservador na Vendéia, Babeuf parece ter desistido de en­
contrar um papel relevante nos acontecimentos estimulantes de 1793. Num
momento em que os exércitos nacionalistas mais cantavam La Marseillaise do
que liam panfletos protosocialistas, Babeuf escreveu ao seu protetor, Sylvain
Maréchal, que invejava a capacidade de Rousseau de prover-se a si próprio
escrevendo música: “Não tenho esse talento, e portanto sou mais infeliz. Mas
aprenderei a fazer composições por meio da tipografia”.129
Ele se tornou um mestre da composição no gênero escolhido. Tanto den­
tro como fora da prisão durante o período do Terror, Babeuf várias vezes
se dedicou à tipografia e ao jornalismo. Seu permanente protetor Maréchal
o encaminhou primeiro para a imprensa de Bonneville no Círculo Social
em abril e depois para o seu próprio Révolutions de Paris em dezembro de
1793.130 Depois da derrubada de Robespierre, os jornais se tornaram “mais
uma arma de guerra que uma fonte de informação”;131 e Babeuf fundou em
setembro de 1794 a sua própria arma, Jornal da Liberdade de Imprensa,
saudando o jornalismo como o meio de manter vivo o espírito revolucioná­
rio e de lutar pela implementação da Constituição de 1793. Suas idéias não
demoraram a ir além do republicanismo radical e da denúncia da tirania de
Robespierre. Após a morte deste, começou a descobrir nele “o gênio no qual
residiam verdadeiras idéias de regeneração”;132 e, em 1795, ele fundou seu

127 Fournier se considerava o primeiro a ter transformado l'esprit publique em l'esprit militaire ao
incitar o Palais-Royal em 30 de junho de 1789; e, em seu projeto de um cercle d'éducation, sugeriu
as bases de uma escola militar revolucionária: Mémoires secrets de Fournier l'américain, 1890,
pp. 5, 42^44; também A. Espinas, La Philosophie sociale du xvm siècle et la révolution, 1898, pp.
219-223; e Dalin, Babef, pp. 508-514, que corrige algumas datações da introdução de Aulard às
memórias de Fournier.
128 Sobre os laços de Babeuf com Noë Makketros, Rose (Babeuf, pp. 138-139) corrige Dalin.
129 Citado em Dalin, p. 516.
130 Espinas, p. 225; Dalin, p. 516; Rose, pp. 138, 151.
131 Aulard, Paris pendant la réaction thermidorienne et sous le diréctoire, 1869, vol. 1, art. 2 da
introdução, p. x. Material recentemente descoberto sugere que Babeuf favorecia a liberdade de
imprensa ilimitada: R. Legrand, “Les manuscrits de Babeuf conservés à la Bibliothèque Historique
de la Ville de Paris”, Annales Historiques, 1973, out.-dez., esp. p. 573.
132 Carta a Joseph Bodson, 28 de fevereiro de 1796, em Dommanget (ed.), Pages choisies de Babeuf,
1935, p. 285. Ver também pp. 165-166.
Pesquisas mais recentes que atualizam as discussões sobre Babeuf feitas por Dommanget e Rose
são Dalin, “L’historiographie de Babeuf”, La Pensée, 1966, agos., pp. 68-101; e “The Most Recent
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 129

Tribuna do Povo: o primeiro jornal da história a ser o braço legai de uma


conspiração revolucionária extralegal.
A Tribuna de Babeuf era um órgão estratégico, não apenas um canal para
a retórica. Sua crítica dos outros jornais revolucionários e seu esforço para
estabelecer uma linha coerente a tornam o antecessor remoto dos jornais
de Lênin Iskra e Pravda; e seu prospecto estabelecia um objetivo social bem
como uma missão moral. No cabeçalho de cada número vinha uma frase em
itálico: “O objetivo da sociedade é a felicidade da comunidade”.133 Babeuf
rejeitava o “direito à propriedade” garantido pela Declaração dos Direitos
do Homem em favor de “um estado de comunidade”,134 para tanto alegando
que a sociedade deveria proporcionar a “felicidade comum” por meio da
“perfeita igualdade”.135
Junto à proclamação jornalística de um novo ideal social veio um novo
tipo de organização revolucionária. A rede nacional de clubes jacobinos,
em grande medida destruída com a queda de Robespierre, não era mais to­
mada como modelo. Em um longo manifesto de novembro de 1794, “sobre
a necessidade e os meios de organizar uma verdadeira sociedade popular”,
ele comparou a relação entre os anteriores “clubistas” e as massas àquela
“entre o pregador cristão e a congregação benevolente”. Ele defendia uma
sociedade militante que acabasse com toda a subserviência à “aristocracia
dos ricos” e iniciasse “o reino das virtudes republicanas”.136
Preso em março de 1795, Babeuf aproveitou seu encarceramento de seis
meses em Arras para aperfeiçoar suas idéias de uma verdadeira “sociedade
popular”. Todos deveríam ser iguais e estar dedicados a desenvolver coletiva­
mente o comércio, a agricultura e (como um elemento adicional surpreendente

Foreign Literature on Babeuf”, Soviet Studies in History, 1973, primavera, pp. 353-370. A obra
Babef, de Dalin, aborda apenas o período prévio à conspiração. O primeiro volume (de quatro), que
trata dos escritos de Babeuf até 1789 {Sochineniia, 1975, vol. i), também foi publicado em francês
e inclui materiais ainda não publicados na União Soviética.
133 Prospecto em Pages, p. 228; para a justificação do novo título, pp. 169—171. A edição recentemente
reproduzida (1966) mostra que o novo lema começou a aparecer regularmente a partir do n° 19 do
Journal de la liberté de la presse; o novo nome, Le tribun du peuple ou le défenseur des droits de
l'homme, começou a ser adotado a partir do n° 23 corn urna nota explicativa de cinco paginas.
134 Resposta a Pierre-Antoine Antonelle datada de 1796, Pages, pp. 268-270.
135 Manifeste des plébéiens de 1796 publicado no Tribun du peuple, em Pages, pp. 250-264. Essas
expressões são repetidamente destacadas em itálico. O prospecto não datado do Tribun está em
Pages, pp. 228-231.
136 Citado de um texto de G. Lecocq, Un Manifeste de Gracchus Babeuf, 1885, em Pages, pp. 172-173.
Sobre o eclipse dos clubes jacobinos, v. J.-A. Faucher; Les Clubs politiques em France, 1965, esp. p.
23.
130 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

para a época) a indústria. Essa sociedade seria realizada mediante uma nova
base geogràfica e urna nova organização militante. Numa importante carta de
28 de julho, Babeuf elaborou aquele que talvez tenha sido o primeiro esboço
de um programa para completar a revolução, e antecipou a idéia posterior de
um espaço basilar protegido para agentes revolucionários.137 Ele fala alterna­
tivamente de “nossa Vendéia”,138 “Montanha Sagrada” e “Vendéia plebéia”.139
“Avançando etapa por etapa, consolidando-nos à medida que ganhamos
território, podemos conseguir nos organizar”.140 Os “inimigos da raça hu­
mana” temem a militância de “numerosas falanges” revolucionárias141 que
abriríam mão de suas ocupações tradicionais para fazer a batalha avançar.
Babeuf se evadiu para o passado em matéria de tempo e para o futuro
em matéria de consciência revolucionária ao trocar o ideal da legião romana
pelo da falange grega como modelo de luta revolucionária. Seus esforços para
criar uma “falange de sans-culottes” na primavera de 1793 fracassaram, mas
a imagem reapareceu na defesa que em outubro Saint-Just fez de novas for­
mas de apoio sociomilitares ao governo revolucionário. Anacharsis Cloots,
o desenraizado “orador da raça humana”, viu o exército revolucionário da
França não como um corpo nacional, mas sim como novos gregos a lutar
por toda a civilização como “falanges de intérpretes, de tradutores da lei
universal”.142
Babeuf empregava o termo phalange para se referir às organizações
necessárias para a realização da disciplina social bem como militar de sua
nova communauté; e o termo viria a ter venerável história na linguagem
revolucionária subseqüente.143
137 C. Mazauric {Babeuf et la conspiration pour l’égalité, 1962, p. 116, nota 1 ) considera essa passagem
como situada no princípio de uma linha de pensamento sobre áreas fundamentais para a guerra
revolucionária que atravessaria Blanqui e chegaria até Mao.
138 Carta de 28 de julho a Charles Germain, Pages, pp. 219-220.
139 Pages, pp. 257, 264.
140 Ibid., pp. 219-220.
141 Ibid., p. 215.
142 Citado em H. Baulig, “Anacharsis Cloots conventionel”, La Révolution Française, 41, 1901, dez.,
p. 435.
143 Charles Fourrier, no início do século xtx, propôs que phalanges de cerca de 16.000 pessoas se
retirassem da sociedade para formar phalanstères, o equivalente socialista dos monastères. (A.
Bestor, Jr., “The Evolution of the Socialist Vocabulary”, Journal of the History of Ideas, 1948, jun.,
pp. 270-271.) Essas falanges defenderíam um idealismo social pacífico desde a primeira tentativa
realizada por um jornalista romeno na Bulgária (F. Manuel, The Prophets of Paris, Cambridge,
Massachusetts, 1962, pp. 208-209) até o confinamento de intelectuais da Nova Inglaterra em Brook
Farm. O mesmo termo foi resgatado pelos fascistas um século depois: das Falanga dos fascistas
poloneses que mais tarde se tornariam estalinistas (A. Bromke, “From ‘Falanga’ to ‘Pax’”, Survey,
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 131

A primeira falange à procura de urna nova sociedade surgiu diretamente


do jornalismo revolucionário. Ao fim de 1795, o Clube do Panteão começou
a realizar encontros à luz de tochas na cripta da Abadia de Sainte Géneviève
(“a Caverna dos Salteadores”) para discutir o programa da Tribuna de Babeuf.
Babeuf, que retornara a Paris em setembro de 1795, assumiu a liderança
do clube, que alegava ter dois mil membros. Acusado de fomentar a guerra
civil, Babeuf criou a clássica contradita revolucionária de que essa guerra
já existia: a guerra dos ricos contra os pobres.144 Ele aceitou com orgulho a
acusação feita pelos adversários de que seus amigos eram “anarquistas [...]
homens que querem estar sempre fazendo revolução”.145
Em novembro, Babeuf publicou o primeiro do novo gênero de manifestos
sociais que culminaria no Manifesto comunista de Marx em 1848. O Ma­
nifesto plebeu de Babeuf era ao mesmo tempo um inventário político (um
manifesto do que era necessário para implementar a “igualdade de fato” e
o “bem comum”) e um chamado à insurreição popular (uma manifestação^
“maior, mais solene, mais geral do que jamais se fizera”).146

1961, dez., pp. 29—40) às unidades de elite (falanges) da bem-sucedida revolução militar de Franco
contra a República Espanhola.
Mas a principal linha de continuidade no emprego do termo — e que era mais fiel a Babeuf
— se encontra em Filippo Buonarroti, o discípulo e futuro biógrafo de Babeuf, ele próprio um
revolucionário, sobre o qual teremos muito a dizer mais à frente. Os seguidores de Buonarroti iriam
tão longe, a ponto de estabelecer a flamenga Phalange flamande Anneessens da década de 1830. (A.
Galante Garrone, “Buonarroti en Belgique et la Propagande Égalitaire”, em Babeuf et les problèmes
du Babouvisme, 1963, esp. pp. 221-225; fundamentando-se bastante em J. Kuypers, Les Égalitaires
en Belgique, Buonarroti et ses sociétés secrètes, d’après des documents inédits, 1824-1836, Bruxelas,
1960.) Auguste Blanqui defendia uma phalange homogênea de ativistas capazes de prover liderança
militante, de agir como “fórceps da revolução” (Marx e Engels, Sochineniia, voi. ii, p. 596), ao
passo que o líder comunista alemão Wilhelm Weitling mobilizava, no início da década de 1840,
uma “falange fraterna” em prol de igualdade entre os emigrados em Londres.
Bakunin, em sua correspondência de 1870 com Nechaev, dizia que os estudantes revolucionários
russos da década de 1860 eram “uma verdadeira juventude [...] sem status nem lar”, os quais
poderiam viabilizar a necessária “falange” para a “revolução do povo”. (Carta de Bakunin a
Nechaev em 2 de junho de 1870, primeiro publicada por M. Confino em Cahiers du Monde Russe
et Soviétique, 1966, out.-dez., p. 626.)
A recorrência desse termo bebeuvista-buonarrotiano pode ser mero acaso; e as genealogias
revolucionárias são sabidamente falhas. Mas há na “falange” original de Babeuf — em especial tal
como retrospectivamente idealizada por Buonarroti — uma interessante antecipação da paixão por
pureza — e por expurgo — do revolucionário profissional moderno.
144 Babeuf, Pages, pp. 249-250. A cifra de 2.000 membros é dada apenas por Buonarroti. Para uma
discussão crítica e concisa, v. D. Thompson, The Babeuf Plot, L, 1947, p. 21 ss.
145 Pages, pp. 265-267.
146 “Manifeste des Plébéiens”, em Pages, p. 256, e para o texto, pp. 250-264. O Manifeste des enragés
de 1793, escrito pelo padre revolucionário Jacques Roux, não era a princípio intitulado assim e não
tinha a estrutura sistemática da obra de Babeuf. V. Dommanget, Jacques Roux, Le curé rouge, s/d.,
p. 53, e texto as pp. 83—91.
132 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Quando uma batida policial chefiada pelo jovem Napoleão Bonaparte


fechou o Clube do Panteão em 18 de fevereiro de 1796, Babeuf e seus com­
panheiros passaram a agir discretamente em sua “Conspiração dos Iguais”.
Agora querendo não rivalizar com os métodos ditatoriais de Robespierre,
e assim revivê-los, constituíram-se no dia 30 de março como o Diretório
Secreto de Salvação Pública.
Decisões do diretório eram estabelecidas coletivamente e divulgadas anoni­
mamente.147 No lugar de assinaturas individuais em folhetos e cartas, constava
a designação de “salvação pública” ou as palavras da trindade revolucionária
dispostas em triângulo — com “felicidade comum” a substituir “fraternida­
de”.148 Cada membro do comitê central insurrecional deveria estar ativo em
outras áreas acerca das quais ele poderia se reportar ao círculo interno. O
centro secreto deveria se comunicar com o exterior através de uma rede de
doze “instrutores” confiáveis, cada um responsável por mobilizar uma força
insurrecional mais ampla em cada um dos doze arrondissements de Paris. O
diretório secreto se reunia quase toda noite. Fazia impressões com tiragem de
pelo menos dois mil exemplares não apenas do teorètico Tribun du Peuple,
como também de um folheto, L'Éclaireur du Peuple [O Batedor'49 do Povo],
destinado ao trabalhador comum.150 Métodos de mobilização incluíam o alis­
tamento constante de afiliados em pequenos grupos de ativistas ou groupistes,
os quais se reuniam em torno de novos pôsteres revolucionários exibidos
com grande destaque. O número de pessoas recrutadas dessa maneira mais
ou menos informal chegou a setenta mil,151 e a conspiração cada vez mais
via o exército como o setor de recrutamento crucial para a insurreição. A
decisão de colocar um comitê militar da conspiração em contato direto com
o diretório secreto permitiu que um informante descobrisse o círculo interno
e o denunciasse à polícia.152

147 Mazauric, pp. 138-140. Ele concorda com a refutação feita por A. Saitta das sugestões de que tenha
havido discordância séria dentro da conspiração. Saitta demonstra que pelo menos seis dos sete
membros estavam de acordo quanto ao essencial do programa de Babeuf. “Autour de la conjuration
de Babeuf, Discussion sur le communisme (1796)”, Annales Historiques, 1960, n° 4, p. 426.
148 V. P. Bessand-Massenet, Babeuf et le parti communiste en 1796, 1926, p. 28; também Mazauric, p.
139.
149 Batedor no sentido militar da palavra: o soldado que vai à frente da tropa — nt.
150 O título completo era L’Éclaireur du peuple, ou le défenseur de 24 millions d’opprimés. V. Mazauric,
Babeuf, pp. 190-191.
151 M. Dommanget, “La Structure et les méthodes de la conjuration des égaux”, Annales Révolutionnaires,
XIV, 1922, p. 282. Os fatos sobre a conspiração estão às pp. 177-196, 281-297.
152 De acordo com o relato detalhado, mas freqüentemente desprovido de fontes, em K. Bergmann,
Babeuf: Gleich und Ungleich, Colonia, 1965, pp. 346-351.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 133

Os conspiradores eram os guardiões não só da esperança revolucionária


por igualdade social, mas também da visão de Saint-Just de que a verdadeira
revolução levaria os homens para além da política. Todo governo — e não
apenas alguns governos — seriam de alguma forma destruídos por uma
autêntica revolução. “Fazer política” (politiquer) era um verbo mencionado
com desprezo por Babeuf, cujo Manifesto plebeu terminava com um chamado
à “rebelião total” (bouleversement total). “Que tudo retorne ao caos, e que
do caos emerja um novo e regenerado mundo”.153 A conspiração pretendia
estabelecer uma “grande comunidade nacional” na qual todos os bens fos­
sem de posse comum e compartilhados igualmente. Essa “comunidade” por
fim suplantaria — fosse por meio de exemplo persuasivo, fosse por meio
de coerção — todos os outros sistemas de autoridade política e econômica.
Imperceptivelmente, da conspiração de Babeuf nasceu o mito da revolução
inconclusa: a idéia de que o levante político na França tinha sido apenas o
prenúncio de uma segunda e mais imponente revolução social. O jornal de
Babeuf invocava, em 1795, antes a realidade que a aparência da revolução:

Ce n'est plus dans les esprits qu'il faut


faire la revolution... c'est dans les choses...

[Não é mais dentro dos espíritos que é necessário


Fazer a revolução... é nas próprias coisas...]154

Alguns meses depois, em 1796, Babeuf explicava que “a época dessas


grandes revoluções” criara uma situação: “[...] na qual uma insurreição
geral dentro do sistema de propriedade privada é inevitável; na qual uma
revolta dos pobres contra os ricos é uma necessidade que coisa alguma é
capaz de impedir”.155
Já no seu Manifesto plebeu Babeuf começara a desenvolver um senso
messiânico de missão, invocando os nomes de Moisés, Josué e Jesus, assim
como os de Rousseau, Robespierre e Saint-Just. Invocou Cristo como seu
“correligionário” e escreveu na prisão Uma nova história da vida de Jesus
Cristo.156 A maior parte dos conspiradores partilhava dessa crença de que,

153 Pages, p. 264.


154 Tribun du peuple, n° 35, 30 de novembro de 1795, p. 97. Destacado em itálico no original (e entre
aspas).
155 Pages, p. 272.
156 M. Dommanget, “Tempérament et formation de Babeuf**, Babeuf et le babouvisme, pp. 32-33.
Dommanget conduz com sua costumeira meticulosidade uma análise das implicações de uma
134 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

no fundo de seu coração, Cristo era um sans-culotte, senão um profeta da


revolução. A força dos curas vermelhos no campo social revolucionário tor­
nou premente a necessidade de impedir que idéias cristãs enfraquecessem a
dedicação à revolução. Anacharsis Cloots ajudou a dividir o Círculo Social
de Bonneville ao atacar o Abade Fauchet por enaltecer os igualitaristas da
Revolução Puritana. Cloots sobrepunha a convicção na Natureza (“sempre
viva, sempre jovem, sempre a mesma”) às ambigüidades e contradições
dos Evangelhos.157 O ideal antigo que os babeuvistas adotaram como uma
alternativa ao cristianismo foi o dos espartanos — militantes, ascéticos,
enraizados na terra e profundamente hostis à vida artificialmente cerebral
e grosseiramente comercial dos novos “atenienses”: a Paris burguesa sob o
governo do Diretório.158
Mas o único antídoto infalível ao apelo residual das idéias cristãs está no
ateísmo, que foi a contribuição especial de Sylvain Maréchal — o homem
que chamava a si mesmo de l’HSD, l'homme sans dieu [o homem sem deus]
— para a Conspiração de Babeuf, que criou, no movimento revolucionário,
uma versão inteiramente secular da idéia messiânica de Segunda Vinda.
Maréchal várias vezes afirmou que “a revolução não estará completa até que
os homens partilhem os frutos da terra do mesmo modo como partilham
os raios do sol”.159 O seu ignorado Corretivo para a Revolução, escrito no
auge da agitação revolucionária de 1793, insistia em que: “A Revolução não
está completa [...] A revolução ainda está limitada a palavras e teoria. Ainda
não existe de fato”.160
Maréchal disse que a revolução ainda não era real porque os homens não
tinham ficado mais felizes; jamais encontrariam a felicidade sem princípios
mais altos; e nunca conseguiríam descobrir esses princípios sob condições de
desigualdade social: “Tant qu’il y aura des valets et des maîtres, des pauvres

tendência de pensamento que eie — assim como a maior parte dos admiradores dos primeiros
revolucionários — aparentemente acha ou desagradável ou embaraçosa. A invocação de Cristo
também ocorre no importante documento que pela primeira vez propõe sua Lei Agrária, a carta
de 10 de setembro de 1791 (Pages, p. 122); mas Dommanget exclui outras obras de Babeuf que
discutem esse tema.
157 G. Avenel, Anacharsis Cloots. L'Orateur du genre humain, 1865, vol. i, pp. 220-269; as idéias
religiosas de Fauchet estão em seu De la religion nationale, 1789.
158 Os jacobinos espartanos foram antes contrastados com os girondinos atenienses. V. Ozouf, Fêtes,
pp. 327 ss.; e E. Rawson, The Spartan Tradition in European Thought, Oxford, 1969.
159 Citado com múltiplas fontes em Dommanget, Maréchal, p. 308.
160 Correctifà la Révolution, 1793, p. 306. A obra foi publicada anonimamente, mas um poema assinado
com as iniciais S.M. está impresso no verso da folha de rosto (BN).
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 135

et de riches... La Révolution n’est point faite” [Enquanto existirem criados


e mestres, pobres e ricos... A Revolução não estará realizada].161
Em outro estudo de 1795, Maréchal acrescentou um elemento de urgência,
ao sugerir que a revolução puramente política antes feita podia ter tornado
a vida ainda pior. “Comerciantes tornaram-se aristocratas, mil vezes mais
terríveis que a nobreza feudal”.162
Com isso dava um pequeno passo na direção da profecia do Manifesto
dos iguais que Maréchal escreveu para o grupo de Babeuf: “A Revolução
Francesa não é mais que a precursora de outra revolução, muito maior, muito
mais solene, que será a última”.163
Babeuf foi preso e a conspiração desfeita em 10 de maio de 1796. Em sua
defesa no tribunal e em suas últimas cartas, ele parecia mais convicto acerca
do seu papel do que acerca de suas idéias — tratando o governo amiúde
como se ele próprio fosse um outro governo. Ele se via como o precursor de
algo novo, e deu adeus à sua família em uma tocante última carta, enquanto
se preparava para um “sono perfeitamente virtuoso”.164
A conspiração pareceu uma reprise de muitos temas da fé revolucionária.
O mito solar da revolução se fundiu ao solo fértil de ativismo dos cafés no
Chant des Égaux [Canto dos Iguais] entoado no Café des Bains-Chinois:

Sortez de la nuit profonde.


...Le soleil luit pour tout le monde!

[Deixai a noite profunda.


...O sol resplandece sobre todo o mundo!].165

Essa canção era o concorrente revolucionário do Reveil du peuple [Des­


pertar do povo], criado após o período termidoriano como rival reacionário
de La Marseillaise.
Assim como os maiores teólogos cristãos haviam definido Deus como “a
oposição dos opostos”, assim também Babeuf levou a nova fé na revolução
às alturas do paradoxo sublime. A justificativa para deflagrar uma nova
161 Ibid., p. 307.
162 Citado de Maréchal, Tableau historique des événements révolutionnaires, 1795, p. 160, em
Kucherenko, p. 168.
163 R. Postgate (ed.), Revolution from 1789 to 1906, NY, 1962, p. 54; ver, contudo, o documento mais
tíbio efetivamente adotado pelo diretório secreto da conspiração: pp. 56-57.
164 Pages, pp. 311-313.
165 Espinas, p. 248. Esse era o refrão.
136 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

revolução era “concluir a revolução”;166 o meio de dar fim ao “espirito de


dominação” era obedecer a uma elite hierárquica; e o caminho para evitar
a tirania das “facções” era aceitar um único líder. A miraculosa passagem
à verdadeira soberania popular ocorrería num primaveril “dia do povo”
em que cerca de setenta mil apoiadores diretos167 se rebelariam em Paris
ao sinal de sinos e trombetas. Esse ato político apocalíptico acabaria com a
política.168 Nascida da visão de utopias insulares, essa implantação instan­
tânea da igualdade planejava banir imediatamente os oponentes para ilhas
pré-selecionadas do Atlântico e do Mediterrâneo.169
Poucos aceitavam o ideal igualitário de Babeuf; mas muitos eram assom­
brados pelo seu exemplo. Havia, além disso, alguns indícios que justificavam
o temor de que a conspiração tivesse ligações estrangeiras. Representantes
da radical república baiava (o regime revolucionário instaurado em meio
ao permanente caos nos Países Baixos em 1795 — e o primeiro em todo o
mundo a adotar oficialmente o lema revolucionário de liberdade, igualdade
e fraternidade) mantinha algum contato com os conspiradores franceses.
Babeuf servira antes na legião baiava, e um grande levante de canhoneiros
da guarda nacional ocorreu em Amsterdã no mesmo dia em que Babeuf foi
preso em Paris.170 Ecos da conspiração de Babeuf alcançaram dois países que,
sob muitos aspectos, tinham sido dominados por ideais revolucionários no
início do século xix: a Itália e a Polônia.
Os colaboradores italianos de Babeuf tentaram, no início de 1796, per­
suadir o Diretório instituído em Paris a apoiar um levante de “movimentos
populares” na Itália que levaria a uma “revolução geral” e a um estado
unificado alinhado à França. Guglielmo Cerise, ex-secretário de Babeuf,
e Buonarroti, seu futuro historiador, tentaram organizar e promover uma
revolução no Piemonte que confrontaria as autoridades francesas com um
166 Ibid., p. 285.
167 Sobre o desarranjo da listagem feita por Buonarroti, v. Rose, p. 264.
168 Ibid., pp. 244-258; Espinas, pp. 282-284. A descrição feita por este último toma a insurreição como
uma espécie de fète [festa].
O pedido fundamental de Charles Germain a Babeuf para que assumisse a liderança invocou pela
primeira vez a metáfora da elite revolucionária como o motor de uma máquina: “Reunamos nossas
forças num centro comum. O partido que almeja o governo da igualdade será apenas uma facção,
a menos que você se declare seu líder; você deve ser seu motor [...]”. Espinas, p. 241, nota 1.
169 Ibid., p. 361.
170 Palmer, Age, vol. ii, p. 180, e pp. 195-197, minimiza a probabilidade de que houvesse laços entre
a conspiração holandesa e a conspiração de Babeuf. W. Fishman, The Insurrectionists, L, 1970, p.
42, supõe que tenha havido coordenação direta, mas data erroneamente o levante holandês e não
oferece prova alguma.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 137

fato bruto — e assim pressionaria o Diretório a se aproximar da posição de


Babeuf. Buonarroti argumentou com eloqüência contra o controle militar
francês da Itália, incitando, em vez disso, à “pronta formação de autoridades
populares” pela plebe local.171 Mas sua visão revolucionária foi ridicularizada
por líderes militares franceses172 que, sob o comando de Napoleão, iniciaram
uma invasão militar convencional em abril. A entrada das tropas francesas
nas vilas italianas foi celebrada, contudo, não com insurreições locais, mas
com missas — levando um amigo de Buonarroti a se queixar amargamente:
“Não se funda uma democracia com um magnificat. Em vez de iluminar
igrejas, teria sido melhor tocar fogo em castelos feudais”.173
Frustrados no Piemonte, ativistas babeuvistas seguiram para Milão, onde
durante um breve período ajudaram a organizar a milícia local e, antes da
chegada de Napoleão, lá introduziram a bandeira tricolor italiana. Os babeu­
vistas ajudaram a criar a organização revolucionária hierárquica Sociedade
das Luzes (ou Liga Negra), fundada por Cerise e outros na Bolonha ao fim de
1798. Embora essa organização tenha fracassado ao tentar materializar o que
Godechot chamara de a melhor oportunidade de unificar a Itália antes de 1860,
ela de fato deixou um legado de experiência com organização revolucionária
secreta de alcance nacional, o que mais tarde viria a beneficiar os carbonários.174
O eco do babeuvismo emanado da Polônia ocupada soava mais distante
e abafado. Um grupo conspiratório campesino, liderado por um veterano
tanto da guerra revolucionária americana como da francesa, proclamou,
em 1796-1797, o lema “Igualdade ou Morte”, e pode ser que tenha sido
influenciado pela conspiração babeuvista.175
Na França, havia centelhas de ressurgimento entre os babeuvistas sobre­
viventes — em especial no mês de julho de 1799, quando se reuniram para

171 J. Godechot, “Le Babouvisme et l’unité italienne (1796-1799)”, Revue des Études Italiennes, 1938,
out.-dez., pp. 265, 270 ss. Algum material adicional se encontra em Onnis, Buonarroti, p. 38 ss., o
qual inexplicavelmente parece não fazer nenhum uso do artigo de Godechot.
172 Godechot, p. 268, para o texto de uma diatribe contra Buonarroti endereçada do exército ao
ministro de relações exteriores em 9 de abril de 1796: “ele não sabe nada das coisas do mundo [...]
ele persegue uma missão cuja grandiosa meta é inteiramente indeterminada”.
173 Ibid., p. 272. O amigo de Buonarroti era o “comissário revolucionário” do exército napoleònico.
Tanto o seu posto quanto sua queixa lembram os comissários políticos de exércitos comunistas em
nossa época contra as perspectivas limitadamente pragmáticas dos soldados profissionais.
174 Ibid., pp. 273-283.
175 M. Kuziel sugere uma possível influência babeuvista em Próby powstancze po trzecim rozbiorze.
1795-1797, Cracóvia / Varsóvia, 1912, p. 253. I. Miller enfatiza as raízes nativas polonesas:
“Vozzvanie Frantsishka Gozhkovskogo”, in Iz istorii sotsial’nopoliticheskikh idei. Sbornik. statei k
semidesiatipiatiletiiu Volgina, 1955, pp. 365-375.
138 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

criar uma Sociedade de Amigos da Igualdade e da Liberdade. Essa mobilização


foi exterminada com a chegada posterior de Napoleão nesse mesmo ano.176
De todo modo, não havia morrido a esperança de que a revolução ainda
não estivesse completa e que pudesse ainda gerar uma nova moralidade, senão
mesmo um novo tipo de homem. A revolução vindoura seria o bouleversement
total de Babeuf. Essas esperanças eram intensificadas por críticos conserva­
dores, como o tradutor alemão de Burke (e futuro secretário de Metternich),
o qual popularizou a expressão “revolução total”.177
Qual era a natureza da revolução que ainda estava por vir? Havia uma
diferença — e às vezes conflito aberto — entre o ideal Saint-Just-Robespierre
de uma revolução moral numa nação e a crença babeuvista numa revolução
social “universal”. Mas laços humanos eram estabelecidos entre as duas idéias
por meio dos dois conspiradores mais importantes ainda vivos: Buonarroti e
Maréchal. Pois para ambos a revolução social e moral eram uma e a mesma
coisa. Suas carreiras sombrias apontam, como veremos, para algumas sur­
preendentes raízes filosóficas e organizacionais de ambos os ideais.

O comunismo de Restii

O conceito revolucionário de communauté pode ter surgido menos da


alta cultura do Iluminismo que da baixa cultura do jornalismo popular.
Babeuf tinha sido influenciado por O ano 2440, a obra utópica profética
de um grande cronista da vida parisiense, Sebastien Mercier.178 A palavra
“comunismo” foi trazida ao mundo por um amigo e companheiro de jorna­
lismo de Mercier em Paris, Restii de la Bretonne: o “Rousseau da sarjeta”,
o “Jean-Jacques des Halles”.179
A criação verbal de Restii se originou de urna vida que era — literalmente
— fantástica. Sua produção literária preencheu 250 volumes com fantasias

176 Bergmann, Babeuf, pp. 487-489.


177 Friedrich von Gentz, Über die Moralität in den Staatsrevolutionen, 1797, citado em Griewank, p.
248.
178 Rose, pp. 32, 98.
179 G. de Nerval, Les illuminés. Récits et Portraits, 1929, p. 113. Esta é uma das mais criativas discussões
das idéias de Babeuf. Para uma análise mais minuciosa dos textos a partir de um ponto de vista
diferente, veja-se a obra igualmente negligenciada de Ioannisian, “Utopiia Retifa de lia Bretonna”,
Izvestiia akademii nauk SSSR, otd. obshch. nauk, 1931, vn seriia, n° 2, pp. 171-200, n° 7, pp.
833-856.
R. Darnton enfatizou a importância do que denomina radicais do “submundo literário” em “The
High Enlightenment and the Low-Life of Literature in Pre-Revolutionary France”, Past and Present,
n° 51,1971, pp. 81-115.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 139

cósmicas, sociais e sexuais que ninguém até agora conseguiu catalogar in­
teiramente. Seus escritos prenunciaram tudo que vai entre viagens interpla­
netárias e energia atômica, e abrangeram praticamente qualquer fetiche ou
perversão sexual imaginável.180
Incansável, a energia erótica o tornou tão compulsivo quanto criativo. Vivia
possuído pela mística do novo meio de comunicação jornalístico — inventan­
do centenas de novas palavras e uma variedade desorientadora de formatos
tipográficos. Sua ligação com a imprensa era quase fisiológica. Trabalhou
por muitos anos como compositor tipográfico e freqüentemente compunha
ele próprio suas obras diretamente em sua prensa caseira sem manuscrito
algum.181 Todo e qualquer aspecto da produção formal de uma obra literária
contribuía para a sua mensagem total. Sua escolha de tipografia, o uso de
itálicos, o abuso de maiúsculas (freqüentemente no meio das palavras), seu
emprego errôneo de acentos e uma infindável invenção de pseudônimos e
neologismos182 — tudo isso refletia um fascínio quase religioso pela produção
da palavra impressa.
Para os partidários da comunidade igualitária, a legitimidade advinha da
imprensa. A única atividade política de Restii durante o período revolucionário
foi sua tentativa, a partir de 1789, de organizar uma associação profissional
para pintores e tipógrafos.183 Suas obras oferecem um panorama inigualável
da vida das classes baixas. Distinções entre fato, ficção e fantasia eram postas
de lado pelo seu transbordante fluxo de consciência. Restii permaneceu o
mais puro tipo de intelectual autocentrado desde os seus dias de juventude na
Borgonha rural até os seus anos finais de andarilho noturno em Paris. Fosse
quem ele fosse, Restii viveu apenas no mundo de palavras que ele mesmo
criou, o seu labirinto de monólogo.
Em 1785, Restif publicou uma resenha de um livro descrevendo um
experimento comunal na Marselha. Citou uma carta de 1782 do autor do
livro, que descrevia a si mesmo como um auteur communiste — a primeira

180 Esse aspecto profético de Restif é discutido em detalhes (embora às vezes com exageros) em
Chadourne, Restif.
181 Ioannisian, Idei, p. 181.
182 Nerval, pp. 111-112.
183 Proposto pela primeira vez em Le Thesmographe, The Hague, 1789,2a parte, pp. 511-514; discutido
em Ioannisian, “Utopiia”, pp. 180-181; e depois em Idei, pp. 219-222, com valiosos novos
detalhes servidos juntos à pregação ideológica desnecessária de que a obra tipográfica de Restif (ele
era uma espécie de artesão extremamente habilidoso) lhe teria dado uma espécie de perspectiva
protoproletària.
140 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

aparição conhecida dessa palavra sob forma impressa.184 O autor, o teóri­


co educacional Joseph-Alexandre-Victor Hupay de Fuvea, posteriormente
apresentou um vasto e utópico plano educacional ao seu amigo em Aix,
Mirabeau, quando ele iniciou seus trabalhos nos Estados-Gerais em 1789.
Chegou a escrever um Corão republicano durante a revolução185 e a propor
que todos os cidadãos trajassem uniformes verdes com enfeites cor-de-rosa
enquanto caminhassem para o trabalho, em seu dia-a-dia, numa grande
promenade de la communauté.™6 Mas sua obra mais notável foi o Projeto
de uma comunidade filosófica, de 1779, que pode ser considerado o primeiro
plano impresso acabado de uma sociedade secular e comunista.187
Hupay fez, em 1778, um “anúncio moral e literário” de que estava rea­
lizando uma subscrição para implantar o seu idealista “plano para a vida
social e política” perto de Marselha.188 Seu plano era um pot-pourri de idéias
utópicas: o ideal comunal dos Irmãos Morávios mesclado às idéias legislativas
de Mably; as teorias sociais do “novo mundo e da Nova Heloísa” (isto é, os
índios puros e o homem natural da Nouvelle-Héloïse de Rousseau).189 Todos
falariam francês, “a língua da razão e da natureza”, e as crianças seriam edu­
cadas comunalmente até os cinco anos de idade para garantir que ficassem
livres de preconceitos.190 Rígidas “tábuas de estudo e de exercícios” eram pres­
critas para a educação posterior e, para a comunidade, foi elaborado um plan
géométral [planta geometral] que continha duas grandes estátuas: “o divino

184 Les Contemporaines communes, ou aventures des belles marchandes, ouvrières, etc., de l'âge présent,
Leipzig, 1785, 2a ed., vol. xix, segunda paginação não numerada depois do parágrafo n° 69 (BM).
185 V. seu Règlement d'éducation nationale, 1789, pp. 3, 6-14(BN). Ele também enviou o projeto
para Volney, que o rejeitou. Baseava-se em um projeto anterior seu (pp. 6-7), e foi reafirmado e
aperfeiçoado no seu Généralif, maison patriarchale et champêtre, Aix, 1790 (BN). V. também seu
Alcoran républicain ou institutions fondamentales du gouvernement populaire ou légitime pour
l’administration, l'éducation, le mariage et la religion... par l'auteur de la communauté philosophe,
1794. J.-M. Quérard, La France littéraire, vol. 6, p. 167, descreve Hupay corno “um ardente discípulo
de Swedenborg”, mas isso não é nada evidente em seus escritos seculares, rousseuanianos.
186 Material presente em Ioannisian, Idei, p. 99.
187 Maison de réunion pour la communauté philosophe dans la terre de l'auteur de ce projet. Plan d'ordre
propre aux personnes des deux sexes, de tout âge et de diverses professions, pour leur faire passer
dans des communautés semblables la vie la plus agréable, la plus sainte et la plus vertueuse, Eufrates
(Aix) e Utrecht, 1779. Cópia em Houghton Library, Harvard. Ioannisian (Idei, p. 97) considera essa
obra como inteiramente perdida. P. Jacob (pseudônimo de Lacroix) reproduz o título com maior
correção, embora menos completo, do que Restii e Ioannisian: Bibliographie et iconographie de
tous les ouvrages de Restif de la Bretonne, 1875, pp. 209-210.
188 Maison, pp. 3, 34. Deveria se dar em um clima agradável bem distante do “tumulto” da cidade.
189 Ibid., p. 3, prospecto no verso da folha de rosto, e particularmente pp. 32 ss., 158-170, sobre os
morávios, que aparentemente ajudaram a publicar a obra em Utrecht.
190 Ibid., pp. 11-12, 87-88.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 141

platão, Príncipe dos Legisladores, Inventor da Vida Comunal (Communauté


de vie)”, e “j. j. rousseau, Cidadão de Genebra, Investigador dos Princípios
da Educação Humana”.191 Indicava-se uma saída privilegiada dessa “casa de
reunião” comunitária que levava até uma área especial destinada às “comu­
nidades formadas por crianças casadas com a Comunidade Filosófica”.192
Tratava-se provavelmente de uma espécie de raça filosófica dominante vivendo
em “igualdade e união” e na “mais perfeita sociabilidade”.193

[...] um povo espartano, o verdadeiro berçário de uma raça de homens melhor


que a nossa.194

Mas de onde viria a nova raça espartana? Existia alguém que pudesse
realmente aspirar estabelecer a “comunidade de governo moral-econômico”
baseado numa “comunidade de bens” igualitária?195 Não existe registro de
nenhuma tentativa séria nas proximidades de Marselha; mas há no texto
indícios fortes e verdadeiramente proféticos de que ele achasse que ela poderia
ser realizada com maior facilidade na Rússia.
Hupay — assim como muitos philosophes — foi inspirado pelos am­
biciosos planos reformistas de Catarina, a Grande, protótipo de “déspota
esclarecida”. Os primeiros e pretenciosos escritos dela o levaram a crer que
fosse possível “pôr em prática as belas leis da República de Platão”, criar
“toda uma cidade de filósofos” que “seria chamada de Platonópolis”.196 Uma
comunidade ideal como essa poderia ser estabelecida com mais facilidade na
Rússia do que no Ocidente em razão de aquela ser uma sociedade autoritária
com poder de coerção, “na qual cada lorde poderia mais facilmente se tornar
pai e benfeitor de seus servos”.197
Hupay, contudo, era uma figura que recebia pouca atenção. Sua carta a
Restii de 1782 fora instigada pela leitura da obra deste último, Le Paysan
perverti, ou les dangers de la ville [O Camponês pervertido, ou os perigos
da cidade]. No quarto volume de sua obra, Restii anunciou a intenção de

191 Ibid., pianta da Maison, verso da p. 8, na qual esses dois nomes são os únicos em itálico.
192 Ibid., verso da p. 8.
193 Ibid., pp. 6, 26.
194 Ibid. p. 45.
195 Ibid., pp. 6, 221. Esse é o mais antigo uso da expressão communauté des biens.
196 Ibid., pp. 144-145.
197 Ibid., p. 146. Sobre o fascínio geral dos intelectuais ocidentais pela possibilidade de realizar reformas
radicais em solo russo no século xvm, consultar A. Lortholary, Le Mirage russe en France au xvnie
siècle, 1951.
142 A FÉ REVOLUCIONÁRIA; SUA ORIGEM E HISTÓRIA

propor um “novo Emílio” que enriquecería as idéias pedagógicas do Emílio


original de Rousseau com um programa social inspirado no Discurso sobre
a Desigualdade, igualmente de Rousseau. Essa seção da obra de Restii era
encerrada com um estatuto modelar para um bourg commun no qual a
propriedade privada era limitada às necessidades imediatas de vestimentas
e mobílias.198 Para Restii, o nobre camponês havia sido “pervertido” pela
civilização. Ele podería ser devolvido à sua inteireza somente por meio do
estabelecimento de uma nova “comunidade filosófica” baseada nos “senti­
mentos dos melhores autores e princípios [...] do Novo Mundo”.199
Em 1781, Restii escreveu uma fantasia literária que descrevia uma socie­
dade igualitária, onde existia uma única lei.

Tudo deve ser compartilhado entre os iguais. Cada um deve trabalhar pelo bem
comum. Todos devem tomar idêntica parte no trabalho.200

Sob muitos aspectos, essa foi a ilha utópica mais sofisticada a aparecer
na literatura pré-revolucionária. Descrevia não apenas a bondade inata dos
habitantes da Ilha de Cristina, mas também a compatibilidade de seu igua-
litarismo sem mácula com idéias avançadas levadas de “Megapatagonia”
(uma versão idealizada da França) para lá. Assim, o “Dèdalo francês” tentou
não apenas fugir voando da decadente França para a ilha paradisíaca, e sim
proteger uma sociedade igualitária do “povo da noite”, governando-a por
meio de um “Códice dos Megapatagônios”, de dezoito artigos, que decretava
a posse coletiva de toda propriedade e as obrigações uniformes de trabalho
que os habitantes oprimidos em segredo desejavam.201
Uma obra ainda mais ambiciosa do ano seguinte criou a expressão “co­
munidade de bens” e sugeriu a “maneira como estabelecer a igualdade” em
“todas as nações da Europa”.202 Assim, Restii pôde fazer referência, em
correspondência com o autoproclamado “autor comunista”, a obras de sua

198 V. J. Childs, Restifde la Bretonne — témoignage et jugements. Bibliographie, s/d.; E Prigault, “Restii
de la Bretonne communiste”, Mercure de France, 16 de dezembro de 1913, pp. 732-739.
199 Contemporaines, vol. xix, segunda paginação não numerada, p. 3.
200 Citado em Ioannisian, Idei, p. 190, de La Découverte australe par un homme-volant ou le dédale
français. Nouvelle très philosophique, Leipzig, 1781, 3v.
201 Ioannisian, “Utopiia”, p. 184 ss. Nerval insinua (Illuminés, p. 267) que essa obra — bem como
suas idéias posteriores de viagens inter-planetárias — pode ter sido inspirada pela amizade com o
balconista Montgolfier.
202 L’Andrographe ou idées d’un honnête-homme, sur un projet de règlement, proposé à toutes les nations
de l’Europe, pour opérer une reforme générale des moeurs, et par elle, le bonheur du genre-humain,
The Hague, 1782, p. 82.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 143

autoria que já tinham levado suas idéias comunistas além do esboço presente
em Le Paysan perverti.
O comunismo pode em parte ser uma das novas idéias sopradas de volta
sobre o Atlântico pelo “vento da América” originalmente revolucionário.203
Tanto o “projeto” de Hupay quanto Le Paysan de Restii foram concebidos
em 1776. Em seu comentário à carta de Hupay, Restii argumentava que “o
povo dos irmãos da Filadélfia” tinha aberto a possibilidade para que houves­
se “aquela união e aquela comunidade de governo moral e econômico [...]
que exclui toda distinção vã e externa”. Restii falava do futuro surgimento
de uma comunidade supranacional que poria fim à “rivalidade pueril que
confunde os estados e arrasta todos eles para a ruína e o crime”.204
Ainda mais crucial para o comunismo de Restii foi a sua intensa identifi­
cação com o campesinato; os camponeses foram pervertidos pelas cidades,
mas retinham ainda a força moral para construir o comunismo. Às vésperas
da revolução, Restii escreveu um panfleto defendendo que os camponeses
fossem aceitos como um quarto estado nos Estados-Gerais;205 e, no primei­
ro aniversário da queda da Bastilha, escreveu outro panfleto chamando a
atenção dos franceses campesinos que vinham a Paris por ocasião da Festa
da Federação para os males da cidade.206
Embora Restii se orgulhasse de não pertencer a nenhum partido ou clube,
seus escritos de início do período revolucionário parecem vislumbrar um
outro levante {soulèvement général) para apoiar seu amplo projeto de justiça
social: “Mettez toute la nation en communautés... faites une insurrection
générale, partagez” [Colocai toda a nação em comunidades... realizada uma
insurreição geral, compartilhai].207208
Após seu apelo ao comunalismo agrário feito aos Estados-Gerais em
1789, voltou-se ao fim de 1792 e início de 1793 para a Convenção com um
apelo em nome do que agora denominava plan de communauté général2^3

203 Sobre outros aspectos, v. o compêndio de C. Mancéron, The Wind from America, NY, 1978; P. Sagnac,
“Les origines de la revolution française: l’influence américaine”, Reune des Études Napoléoniennes,
1924, jan.-fev., pp. 27—45.
204 Contemporaines, v. xix, segunda paginação não numerada, p. 3.
205 Le plus fort des pamphlets. L’ordre des paysans aux États-généraux, 26 de fevereiro de 1789,
publicado sob o pseudônimo de Noilliac (BN).
206 Avis aux confédérés des lxxxiii départemens, sur les vantages et les dangers du séjour à Paris, 1790
(BN).
207 Citações de Le Thesrnographe em Ioannisian, Idei, pp. 214-215.
208 Ibid., p. 230.
144 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Em fevereiro de 1793, Restii empregou o termo communism como de


sua própria autoria pela primeira vez, a fim de descrever a mudança funda­
mental do regime de propriedade que removería a necessidade de qualquer
redistribuição posterior de bens e propriedade.209210
Sua detalhada exposição
do comunismo (e seu emprego regular da palavra) se iniciou no ano seguinte
com uma “regulação [...] para o estabelecimento de uma comunidade geral da
raça humana” em seu Monsieur Nicolas ou O coração humano revelado.1U)
Nessa obra, Restii insistia em que a eliminação absoluta da propriedade
privada aboliría as necessidades humanas, mas não a iniciativa individual.
Ele via o comunismo como uma causa de união para o exército francês mais
eficaz que a “república incompleta” do Diretório. O republicanismo dos Es­
tados Unidos pós-revolucionários também foi atacado por garantir igualdade
apenas “nominal”.211 Na sociedade comunista, todos os cidadãos aceitariam
a obrigação de trabalhar — e de declarar publicamente suas metas anuais
de produção no início de cada ano. Nem posses nem profissões poderíam
ser passadas de pai para filho.212
O comunismo era a melhor de oito formas possíveis de governo213 e da­
ria à luz um novo sistema político, “o único digno de homens sensatos”.214
Somente uma ordem comunista poderia acabar com a sedução do dinheiro
e da corrupção e vícios concomitantes.215 As regulamentações de Restii para
a raça humana propunham a propriedade comunal, a alimentação comunal
e uma nova monnaie communismale [moeda comunal] para substituir as
formas tradicionais de troca.216
209 Emprego datado de 26-27 de fevereiro de 1793 em Les nuits de Paris, ou Le spectateur nocturne,
seu diário da revolução, partes 8-17, 1794, pp. 460—461, discutido em loannisian, “Iz istorii”, p.
116, o qual, contudo, não discute a origem do termo.
210 Monsieur Nicolas, ou Le coeur humain dévoilé, 1794-1797, na nova edição, 1959, vol. vi, esp. pp.
309, 311. Restii dava grande importância a nomes e escolheu o de Nicolas para o seu romance
revolucionário porque acreditava que era composto de duas palavras gregas, assim significando
“vitória do povo”. Buachidze, p. 159.
Monglond toma Monsieur Nicolas como o ápice do processo rousseuniano de exteriorização de
emoções e de alegação de sinceridade através do gênero confessional {Préromantisme, vol. ii, pp.
322 ss.) e analisa a “volúpia nostálgica com que ele retorna à infância rural” (vol. ii, p. 326).
211 loannisian, “Iz istorii”, p. 120.
212 Ibid., p. 121.
213 Discutido em loannisian, Idei, p. 236 ss.
214 Monsieur Nicolas, ni, p. 257. Há um uso isolado e sem fonte indicada de communiste por Mirabeau
em 1769 (no sentido de co-proprietário) listado em A. Dauzat et al., Nouveau Dictionnaire
étymologique et historique, 1964, p. 182; e outro emprego isolado já no período revolucionário
mencionado em Brunot, ix, p. 1123.
215 Monsieur Nicolas, vi, p. 311.
216 Ibid., p. 313 ss. V. M. Poster, The utopian thought of Restif de la Bretonne, NY, 1971, para outros
aspectos de seu pensamento.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 145

À medida que a revolução avançava, Restif intensificava o seu comprome­


timento com o comunismo ideal, que ele fazia remontar ao seu Andrographe
de 1782. Mas era uma visão solitária; e Restif tinha de imprimir ele próprio
muitos de seus livros em pequenas edições feitas em seu porão, que bem
podem ter sido perdidas. Imprimiu Monsieur Nicolas numa edição de 200
exemplares com papel de qualidade tão inferior que o livro permaneceu
praticamente desconhecido por quase um século.217 Suas Cartas póstumas,
também escritas em 1796, não puderam ser publicadas antes de 1802; fo­
ram então imediatamente recolhidas pela censura napoleonica. Comparava
a sociedade comunista ideal do futuro com outras sociedades por meio da
descrição de uma série de visitas interplanetárias. Apropriadamente, tendo
em vista seus interesses e preocupações de ordem erótica, Vénus foi escolhi­
do para lugar de sua sociedade comunista do futuro. O manuscrito de sua
última fantasia comunista, A gaiola e os pássaros, foi inteiramente perdido.
Tudo o que sabemos a respeito está na linha dedicada aos “pássaros” em suas
Cartas póstumas: “Mais le Communisme les retenait dans l’égalité” [Mas o
comunismo os retinha na igualdade].218
Outros além de Restif desaprovavam que não houvesse “comunismo” algum
na Revolução Francesa e que todos os revolucionários aceitassem a santida­
de da propriedade privada.219 Jean-Claude Chappuis, que viveu no mesmo
prédio que Restif durante o fim da década de 1790, atacou a Declaração dos
Direitos do Homem em razão de sua defesa dos direitos de propriedade, assim
antecipando Proudhon em quase meio século ao qualificar a propriedade de
“roubo”.220 Outra proposta de 1795 exigia la communauté des biens-fonds,
communauté d'industrie [a comunidade de terras, comunidade da indústria]
e incitava à formação de pequenas comunas territoriais.221
A obra em três volumes de Restiff, Philosophie de Monsieu Nicolas, de
1796, conclamava a uma communauté universelle e falava sobre “os comunis­
tas” como se fossem ativos e numerosos no mundo real.222 A questão de saber
217 Ioannisian, Idei, p. 232.
218 Les Posthumes, 1802, iv, p. 314; Ioannisian, Idei, pp. 240-245.
219 L. Gottschalk, “Communism during the French Revolution, 1789-1793”, Political Science Quarterly,
1925, set., pp. 438-450.
220 Ioannisian, Idei, pp. 132-136, 117.
221 A. Lichtenberger, “Un projet communiste en 1795”, La Révolution Française, xxix, 1895, pp. 490,
492.
222 Ioannisian, Idei, pp. 240-241. Variam enormemente as especulações sobre onde se poderia
encontrar exemplos na terra. Restif defendia que somente os índios americanos e os Irmãos
Morávios se constituíam em exemplos dignos no Novo Mundo (onde se costumava procurar os
146 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F. HISTÓRIA

se Restii estava aludindo à conspiração simultânea de Babeuf ou se estava


de alguma maneira ligado a ela nos conduz aos escuros labirintos de Paris
nos quais teve início o movimento revolucionário moderno. Mas vale a pena
primeiro dar uma olhada, cruzando o continente, nos espaços abertos de São
Petersburgo, onde comunistas reais por fim chegariam ao poder. O primeiro
de muitos russos a comentar de modo substancial Restii foi o fundador de
uma tradição tipicamente russa de intelligentsia revolucionária: Alexander
Radishchev. Escrevendo sua famosa Viagem de Petersburgo a Moscou no
primeiro ano da Revolução Francesa, Radishchev exprobou o excesso liber­
tário e a permissividade sexual do comunismo de Restii223 — dando assim
um vislumbre da versão mais ascética e puritana que estava por surgir.

A conexão Bonneville

A possibilidade de terem existido elos entre o comunismo verbal de Restii


e a efetiva conspiração de Babeuf nunca foi analisada com seriedade — em
parte porque historiadores da revolução têm sido lentos em reconhecer a
importância de Restii, mas talvez mais ainda porque as vias de investigação
levam aos corredores escuros da imaginação humana que os positivistas
ocidentais, não menos que os marxistas orientais, preferem ignorar. Mas,
antes de mergulhar para explorar em toda a seriedade as origens ocultistas
do movimento revolucionário, pode ser bom resumir os indícios que apontam
para a possibilidade de ligação entre essas duas figuras seminais nas quais
encontramos tantas afinidades ideológicas.
Embora não se tenha sugerido publicamente elo algum entre Babeuf e
Restii no julgamento público do primeiro, as autoridades, enquanto instruíam
o caso, aparentemente acreditavam que esse elo existia.224 Ffistoriadores hoje

exemplos contemporâneos); Idei, p. 237; mas Gaspar Beaurieu, amigo de Restii, insistia com total
irresponsabilidade em 1794 (na nova edição de L’Elève de la nature de 1766, citação em Idei, p.
82) em que os “habitantes da Virgínia” davam exemplo admirável de trabalho colaborativo sem
propriedade privada.
223 A. Radischev, Puteshestvie iz Peterburga u Moskvu, Moscou/Leningrado, 1935, pp. 202-203;
discussão presente em Buachidze, pp. 62-64, em que se avança a hipótese de uma oculta simpatia
por Restii. O papel fundamental de Radishchev é afirmado não apenas por críticos soviéticos, mas
também por N. Berdiaev em seu Origins of russian communism, obra que caracteriza Radishchev
como o primeiro “fidalgo arrependido” a elevar a consciência moral à intensidade revolucionária.
Assim como muitos dos franceses, Radishchev foi profundamente influenciado por idéias proto-
românticas alemãs durante o período pré-revolucionário.
224 loannisian, “Utopiia”, p. 854, nota 2. A convocação feita em 1931 por loannisian para que se
realizasse uma investigação arquivística do problema permaneceu sem resposta até do próprio
loannisian.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 147

em dia dificilmente podem ter esperança de encontrar prova mais conclusiva


do que puderam os promotores da época reunir, antes de se decidirem por
não levar essa conexão ao tribunal. Mas Babeuf usou diversas vezes a palavra
communauté (e invenções como communautistes) à maneira revolucionária
de Restii;225 e Restii conclui de maneira perturbadora Monsieur Nicolas,
sua obra-prima, na qual pela primeira vez apregoou à toda força o seu ideal
comunista,226 fazendo uma referência a Babeuf seguida de três pontos. Podia
assim estar sugerindo que as determinações que divulgava se encaminhavam
para o movimento babeuvista, que apenas se iniciava.
Um ponto de ligação quase certo é Maréchal, o protetor jornalístico e
patrocinador da carreira inicial de Babeuf que conhecera Restii bem antes da
revolução e antes de conhecer Babeuf. O papel até hoje obscuro de Maréchal
na conspiração — assim como Restii, ele escapou inteiramente da acusação,
apesar de seu envolvimento direto — leva, por sua vez, de volta aos elos que
Babeuf, Restii e Maréchal tinham com o Círculo Social de Bonneville.
Bonneville foi talvez o amigo mais próximo de Restii, vendo-o “quase
diariamente” em meados e ao fim da década de 1790.227 O mais radical
companheiro revolucionário de Bonneville, Jean-François Varlet, vivia no
mesmo prédio que Restii à época em que iniciou sua colaboração com
Babeuf.228 Bonneville imprimiu em sua própria casa, em segredo, o tratado
comunista básico de Restii, Monsieur Nicolas, junto com o tratado seguinte,
La philosophie de Monsieur Nicolas, e o Explosion de Varlet.229
Babeuf conheceu de perto (se é que não mantinha contato direto com ele)
o Clube Social de 1790, colocando o Bouche de Fer no início de sua lista
pessoal de jornais;230 e, em dezembro de 1790, assinando seu nome “Babeuf
de la société de la confédération universelle des amis de la vérité”.231 Pode
ser que tenha mantido contato contínuo com a Confederação na Picardia,
onde existia um entusiasmo provinciano especial pela Confederação.232 Pode

225 Dalin, Babef, p. 589.


226 Journal intime de Restif de la Bretonne, 1889, pp. 81, 123, 305, 309; citado em loannisian, “Iz
istorii”, p. 123.
227 loannisian, Idei, pp. 33-34.
228 Ibid., p. 117; Rose, “Cercle”, pp. 154, 165-166; também Zakher, “Varlet”, pp. 113-126.
229 B. Guegan, “Restif de la Bretonne apprenti, prore et imprimeur”, Arts et Métiers graphiques, 1934,
dez., p. 35; Poster, p. 144.
230 Dalin, Babef, p. 317.
231 Ibid., p. 319.
232 Dalin, “Babeuf et le Cercle Social”, Recherches internationales à la lumière du Marxisme, 1970, n°
62, pp. 65—66.
148 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ser que tenha tido contato pessoal com Bonneville em Paris em dezembro
de 1790, ou ainda em abril de 1793, quando Maréchal sugeriu que Babeuf
aceitasse emprego de tipógrafo na imprensa do Círculo Social.
Exatamente ao mesmo tempo, Maréchal estava dedicado a um projeto
intenso de publicação na imprensa de Bonneville; e ambas as suas principais
obras de 1793, Correctif à la révolution e Almanach des républicains^ trazhm
a misteriosa indicação de “à Paris chez les Directeurs de l’Imprimerie du
Cercle Social” [“impressa em Paris pelos Diretores da Imprensa do Círculo
Social”]. Parecia assim que o próprio Maréchal era um dos “diretores” dessa
imprensa; e que esta, que continuava a publicar as obras de Maréchal e outros
babeuvistas, ligava de algum modo o círculo de Bonneville à conspiração
de Babeuf.233
Mais indícios importantes dessa ligação podem ser encontrados no igno­
rado panfleto de Varlet, que apareceu em 1792 como o primeiro documento
a conter o imprimatur dos “diretores da imprensa do Círculo Social”. Seu
Projeto de um mandato especial e imperativo para aqueles deputados pelo
povo na Convenção Nacional alegava ter sido “impresso às custas dos
sans-culotes [sic]” e parecia defender pouco menos que uma revolução social.
Era uma advertência sobre os perigos da “tirania legislativa” em qualquer
assembléia central em uma nova república, na qual “carreiristas” podem
alegar “representar” o povo, ao passo que fracassam em satisfazer as suas
necessidades sociais e econômicas concretas. Para não trair aquilo que Varlet
foi o primeiro a chamar de “segunda revolução”, ele indicava sem rodeios
àqueles “deputados pelo Povo”: “Vocês cimentarão o pacto social [...] Lan­
çarão as bases, até agora tão negligenciadas, da felicidade social”.234

233 Ibid., pp. 66-67. Babeuf começou a trabalhar de perto com Maréchal no início de 1793 e foi por
ele influenciado ao 1er suas obras na prisão no ano seguinte: Ioannisian, Idei, pp. 159-160; G.
Kucherenko, Sud’ba “Zaveshchaniia” Zhana Mel’e v xvm veke, 1968, pp. 141 ss., 165 ss.
234 Jean Varlet, Projet d’un mandat spécial et impératif, aux mandataires du people à la convention
nationale, 1792, pp. 22, 7, 9, 13, 15. Varlet não previu, contudo, a necessidade de medidas
igualitaristas radicais tanto quanto “o desaparecimento graduai da desigualdade excessiva” tão logo
fosse garantida a responsabilidade de legislaturas de grande importância perante as assembléias de
base: pp. 11—14.
A natureza e o alcance das atividades da imprensa do Círculo Social talvez nunca possam ser
aferidos em razão do incêndio que destruiu os arquivos do Palais-Royal; mas a imprensa durou
pelo menos até 1800 por meio do jornal Le Bien-Informé, editado por Bonneville e Mercier no
período 1797-1800 com o imprimatur de l’imprimerie-librairie du Cercle Social. Esse jornal (BN)
comparou Napoleão a Cromwell (v. a biografìa de Bonneville em Biographie Universelle, 1843, vol.
5, p. 38) e representa uma continuação da íntima colaboração que Mercier claramente mantinha
com a imprensa (ali publicando uma série de escritos, desde suas Fictions morales de 1792 até seu
Le libérateur de 1797).
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 149

Assim, Maréchal parece ter tomado o conceito de uma segunda e necessária


revolução social de seu companheiro “diretor” da imprensa de Bonneville.
A participação posterior de Maréchal na conspiração de Babeuf foi man­
tida em segredo até que Buonarroti a revelasse em 1828 na sua História^ a
qual explicava que materiais sobre a "legislação definitiva da igualdade” de
Maréchal estavam escondidos em um lugar inacessível à polícia. Quaisquer
que sejam, esses materiais devem ter também permanecido escondidos dos
estudiosos, de modo que a natureza exata dos elos de Babeuf com Maréchal e
os "diretores” então ainda vivos do Círculo Social não pode ser estabelecida
com clareza.
Contudo, há fortes razões para crer que Babeuf tenha se baseado bastante
no Bonneville que admirara nos anos 1789—1790 ao conceber a sua conspi­
ração de 1795—1796.235 Babeuf tomou o título e a função do seu principal
jornal da Tribuna do Povo antes publicada por Bonneville. Ele adotou esse
novo nome precisamente quando o seu jornalismo assumiu as funções de
profecia e militância que o jornal de Bonneville reivindicara para si durante
a insurreição parisiense de 1789. Cartazes distribuídos pelos babeuvistas
aludiam aos precedentes de 1789 (em vez de aos de 1792) não apenas para
atrair uma maior massa de apoio, mas também para sugerir um levante para
além da política daquele tipo primeiro vislumbrado em Paris por Bonneville.
Babeuf reviveu a fantasia favorita de Bonneville de usar trombetas nas ruas
para fazer anúncios, a sua ênfase nas metas sociais e no bonheur commun^

235 Ibid., pp. 71-72. Dalin, o único estudioso a já ter ao menos levado em conta uma possível relação
Bonneville-Babeuf, conclui (em uma análise estranhamente superficial) que “não há dúvida de que
o Círculo Social não exerceu influência alguma sobre a formação da concepção revolucionária
comunista de Babeuf” (Babef, p. 325; repetido verbatim em “Cercle”, p. 73). Mas as investigações
de Dalin não embasam essa conclusão, nunca lidando com a natureza daquela concepção (ou, na
verdade, sequer com idéias, formas de organização ou dinâmica revolucionária). Ele geralmente ignora
o papel de Maréchal e Varlet, para não mencionar o de Restif; mostra pouca curiosidade com relação
à sobrevivência da Imprensa do Círculo Social; e parece ideologicamente inclinado a afastar Babeuf
sob todos os aspectos das opiniões menos radicais em matéria de sociedade de Fauchet e Bonneville.
Se, como é óbvio, a influência fosse de natureza organizacional e conspiratória, a completa ausência
de referências escritas a Bonneville (de quem Dalin admite que Babeuf era muito próximo: Babef,
p. 325) poderia ser um sinal de ocultação deliberada. Os papéis de Babeuf eram reconhecidamente
omissos do ponto de vista conspiratório.
Babeuf atacou Bonneville como “um falso tribuno do povo” depois que Bonneville fundou seu
Velha Tribuna do Povo em 1796 como um concorrente do novo Tribuna de Babeuf. Babeuf associou
Bonneville ao tribuno traidor Rufus Manlius, o qual “vendeu-se covardemente ao partido dos ricos
em Roma” para destruir o verdadeiro tribuno, Graco. Babeuf distinguia o breve período do autêntico
tribunado de Bonneville em 1789 de sua posterior decadência rumo à “intriga ministerial” e à
“dependência eslava” para com “Mirabeau e outros patrícios”. A excessiva raiva e o ato de Babeuf
de abolir sua assinatura como “Babeuf da Confederação dos Amigos da Verdade” podem denunciar
a técnica clássica de exprobrar um rival revolucionário durante o processo de apropriação de suas
idéias.
150 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

bem como sua delegação de papéis de liderança a mulheres.236 Pode ser


que Babeuf tenha adotado de Bonneville a idéia mais geral de uma rede de
olheiros-apoiadores e de um círculo interno secreto dirigindo uma confede­
ração pública de maior amplitude.
O Círculo Social de Bonneville tinha um programa muito mais abrangente
do que em geral se imagina nos dois anos que 'antecederam a ditadura de
Além disso, o Círculo Social era mais radical
Robespierre no verão de 1793.237238
quanto à política social do que seus rivais jacobinos — tendo estabelecido
uma organização militante em prol de assalariados e artesãos em 1791, o
Point central des artes et métiers™ tendo escrito tratados pioneiros sobre
insurreição239 e tendo defendido ‘‘igualdade acima de tudo, igualdade entre os
homens, igualdade entre os departamentos, entre Paris e o resto da França”.240
Esses ideais igualitários militantes atraíram novo interesse após a queda
da ditadura jacobina e o simultâneo aprofundamento da crise econômica
em Paris. Embora a natureza e a dimensão da atuação de Bonneville depois
do Termidor ainda sejam obscuras, o fato é que ele se tornou ainda mais
ligado a Restif e Mercier — e permaneceu ativo e influente até 1800, quando
Napoleão fechou o último jornal do Círculo Social, Le Bien-Informé, depois
de Bonneville ter comparado Napoleão a Cromwell.241

236 Espinas, pp. 282-284, também p. 247, nota 1.


237 Kates, “The Cercle Social**, mapeia pela primeira vez as vastas dimensões do programa de publicações
que o círculo manteve após interromper suas atividades públicas no verão de 1791. V. esp. pp.
158-237 acerca dos jornais e pp. 272-285 acerca dos 193 livros publicados. Em seu auge nos anos
de 1792 e 1793, o império editorial constituía um grupo de opinadores gabaritados subsidiado pelo
governo girondino, extremamente crítico do centralismo jacobino, a publicar regularmente uma
revista cultural (Chronique du Mois}, um jornal barato de informes urbanos (Sentinelle), um jornal
diário (Bulletin des Amis de la Vérité) e dois jornais assumidos de outrem: La Feuille Villageoise para
o campesinato francês e Le Créole Patriote para as índias Ocidentais colonizadas. Kates, contudo, vê
o grupo em sua totalidade como uma simples continuação do Iluminismo; e seu estudo não investiga
seriamente nem as conexões com ocultismo nem o legado pós-termidoriano do Círculo.
238 Kates, pp. 110-112.
239 V. particularmente a obra do amigo de Bonneville e seu companheiro de traduções,}., Dusaulx, De
l’insurrection parisienne et de la prise de la Bastille, 1790; T. Mardar, Des Insurrections, ouvrage
philosophique et politique sur les rapports des insurrections avec la prospérité des empires, 1793,e
a obra de J. Oswald discutida mais adiante.
240 Citado em Kates, p. 210.0 Círculo Social igualava Robespierre aos realistas em razão de tendências
autoritárias notadas nele mesmo antes de sua ascensão ao poder. V. J.-B. Louvet, Ä Maximilien
Robespierre et ses royalistes, 1792; Kates, p. 211.
241 Monglond enfatizou os elos de Mercier corn Bonneville (vol. il, pp. 173, 323, nota 2). Também
indicou as impropriedades da única monografia já escrita sobre Bonneville (sua negligência em relação
tanto aos laços parisienses com escritores alemães quanto ao papel de Bonneville na revolução).
Infelizmente, nem a resenha feito por Monglond (“Nicolas de Bonneville. A propos du livre de M.
Philippe Harivel”, Revue d'Histoire Littéraire de la France, 1926, jul.-set., pp. 408-414) nem seu
Préromantisme discutem seriamente qual teria sido o verdadeiro papel de Bonneville.
LIVRO I, CAPÍTULO 3: OS OBJETOS DE FÉ 151

A despeito de quais tenham sido os reais elos entre Babeuf e Bonneville,


de ambos com Maréchal e de todos eles com Buonarroti, é certo que uma
força em comum os moldou: o ocultismo romântico. Devemos agora nos
concentrar nesse mundo estranho, porém incontornável, num esforço de
mapear mistérios e de arriscar respostas à questão das origens.

Independentemente de qual fosse seu relacionamento pessoal, Babeuf claramente ecoava a linguagem
simbólica de Bonneville ao definir o propósito de sua organização. Babeuf se concentrou no impulso de
simplificação radical em um projeto político unidimensional quando sugeriu o conceito mais inclusivo
de um ponto “central” ou “perfeito” que poderia propiciar uma nova legitimação. Sua conspiração
convergiria para um point unique com localização precisa de espaço (o círculo dos conspiradores),
de tempo (a transformação social vindoura) e de sentimento (a permanente busca de satisfação
humana). O propósito declarado da conspiração de Babeuf era “assinalar antecipadamente um
ponto único, para o qual vocês deverão se dirigir sem divisão, modificações, restrições nem nuances;
ponto que será circunscrito por um círculo estreito de homens virtuosos, isolados de todos os que
poderíam opor opiniões divergentes e contraditórias — de tudo o que não pudesse ser fundido no
único e perfeito sentimento do mais alto grau de bondade”. Citado em J. Talmon, The origins of
totalitarian democracy, NY, 1970, p. 186.
CAPÍTULO 4

A estrutura das organizações revolucionárias


e suas origens ocultistas

pós a queda de Robespierre, e especialmente após o julgamento de

A Babeuf, em certo sentido a Revolução Francesa chegou ao fim. Aqueles


que almejavam manter vivas as altas esperanças do início da revolu­
ção não mais depositavam sua fé no processo em andamento de renovação
da sociedade como um todo; preferiram se retirar para o núcleo protegido
de uma sociedade secreta na qual a convicção profunda não precisasse ser
confrontada pelas exigências difusas da política prática.
Seu mito da revolução inconclusa emprestou a essas sociedades secretas
a aura especial de um eleito que prenuncia a Segunda Vinda. O manto da
legitimidade revolucionária passou dos governantes da França a pequenos
grupos conspiratórios da Europa. Esses grupos ecoavam mais o sigilo e o
utopismo do círculo de Bonneville e da conspiração de Babeuf do que a ati­
vidade política pública dos clubes jacobinos e das assembléias parlamentares.
Além disso, a eficácia da polícia política fez com que as sociedades se­
cretas recuassem mais ainda para a marginalidade. Assim, sob o governo
de Napoleão, sociedades de conspiradores com disciplina hierárquica se
tornaram a principal forma de organização revolucionária e, na década de
1820, sob a restauração conservadora, produziram uma onda de revoluções
por toda a Europa.
154 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os historiadores nunca conseguiram deslindar os fios emaranhados desse


tapete — e em época recente praticamente desistiram de tentar. O estudo
recente mais importante se limita a traçar a história do que as pessoas pen­
saram sobre sociedades secretas, e não do que as sociedades secretas foram
de fato.1 Mas o problema não desaparecerá apenas porque nos falta docu­
mentação sobre os números e a natureza — e às vezes até sobre a própria
existência — dessas organizações.
O fato é que em meados da década de 1810 havia não uma ou duas, mas
vintenas de organizações revolucionárias secretas na Europa — estendendo-se
até a América Latina e o Oriente Médio. Esses grupos, embora em sua maioria
sem relação alguma, internacionalizaram a tradição revolucionária moderna
e criaram o fórum original para o debate geral sobre as finalidades do poder
político em uma sociedade pós-tradicional. E foram eles que, no processo
de modernização, prenunciaram um fenômeno hoje familiar: jovens impa­
cientes formando suas próprias organizações para combater a autoridade
monárquico-religiosa.
A história das sociedades secretas talvez jamais possa ser inteiramente
reconstituída, mas tem sido infelizmente negligenciada — até mesmo evita­
da, é de se suspeitar — em razão de os indícios disponíveis freqüentemente
conduzirem a território igualmente desagradável a historiadores modernos
tanto do Ocidente quanto do Oriente.
A seguir, tentarei mostrar que a tradição revolucionária moderna, tal
qual veio a se internacionalizar à época de Napoleão e da Restauração,
nasceu do ocultismo da maçonaria; que as primeiras idéias do movimento
se originaram mais do misticismo pitagorico do que da experiência prática;
e que os verdadeiros inovadores não eram tanto os ativistas políticos, e sim
os literatos, sobre os quais o pensamento romântico alemão em geral — e o
Iluminismo bávaro em particular — exerceu grande influência.

Buonarroti: o primeiro apóstolo


A história contínua da organização revolucionária internacional começa com
uma figura solitária no exílio, Filippo Giuseppe Maria Ludovico Buonarroti.
Quase desconhecido até 1828, aos dezesseis anos publicou sua História da

1 J. Roberts, The mythology of the secret societies, NY, 1972, oferece uma discussão inteligente (pp.
9-16) das razões para esse descuido em relação ao assunto. Por outro lado, a sua própria abordagem
pode levar o leitor desinformado a crer que o mito, em si mesmo, era a realidade principal, e não o
fenômeno.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 155

conspiração de Babeufs assim se tornando o patriarca de uma nova geração


de revolucionários até a sua morte, em 1837. Hoje em dia, ele é lembrado
principalmente como uma espécie de Platão do Sócrates de Babeuf — re­
gistrando os ensinamentos e o martírio do mestre para a posteridade. Mas
ele também foi o primeiro apóstolo2 de uma nova religião: o primeiro a se
tornar realmente um revolucionário em tempo integral, no sentido moderno
de se empenhar inteiramente na criação à força de uma nova ordem secular.
Buonarroti, o mais velho de cinco irmãos de uma família fiorentina nobre,
era descendente direto de Michelangelo. Mostrou vocação precoce para a
língua francesa e para a música: as duas linguagens utilizadas pelos italianos
para expressar esperanças mais altas que aquelas que encontram em seu pró­
prio vernáculo. O francês era a linguagem da filosofia e do progresso para o
Iluminismo aristocrático da Toscana tanto quanto em qualquer outra parte,
e a música, é claro, era a linguagem do desejo.
Essas linguagens da reforma racional e da esperança lírica eram importantes
para o jovem Buonarroti. Sua família estava bastante empobrecida; à época
em que foi eleito para a nobre ordem de Santo Estêvão, em 1778, o fioren­
tino de 17 anos e boa aparência havia adquirido um senso de importância
pessoal que ele não tinha como manter. Aristocrata pobre em uma cidade
economicamente estagnada, buscou satisfação na vida mental. Tornou-se
assim o protótipo do intelectual radical: bem-dotado, auto-indulgente e
incansável — com uma queda por política.
Buonarroti foi enviado pelo seu pai para estudar Direito em Pisa,3 e suas
primeiras idéias sobre mudança social radical podem ter lhe ocorrido du­
rante sua primeira viagem da Toscana a Marselha no verão de 1780. Ficou
chocado ao descobrir a pobreza urbana4 — e talvez também estimulado
pela atmosfera cosmopolita do porto francês mediterrâneo. Ao voltar para
os estudos em Pisa, encantou-se com os seguidores italianos de Rousseau e
Morelly que dominavam a faculdade.5

2 Buonarroti foi chamado de “primeiro apóstolo do Comunismo moderno” em um valiosíssimo


relato histórico feito por um certo socialista suíço, G. Kuhlmann (que, baseado em informações de
A. Becker; foi enviado para Metternich em 1847 pelo seu chefe de inteligência em Mainz). Barnikol,
Geschichtet p. 14.
3 O seu professor notou, em 1780, o “raro talento” e a imaginação “romântica” (romanzesco) de
Buonarroti: “Tudo nele está direcionado apenas para o momento presente. A dispersão logo se segue
ao estudo”. V. M. Morelli, “Note biographiche su Filippo Buonarroti”, Critica Storia, vol. iv, 1965,
p. 536; e, para elementos adicionais sobre seus primeiros anos, v. pp. 521-564.
4 Ibid., p. 536.
5 O relato básico de D. Cantimori acerca da influência dos italianos francófilos sobre Buonarroti
156 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Ao fim de 1786, Buonarroti optou pela carreira pública típica de quase


todos os revolucionários: o jornalismo. Fundou um efêmero jornal semanal
em Florença que objetivava ao mesmo tempo combater a superstição religiosa
na Toscana e despertar a consciência política. Publicado em francês, a língua
do Iluminismo, seu Journal Politique foi concebido “dans le goût des Gazettes
Angloises” [segundo o modelo das Gazetas inglesas] e surgiu no início de
1787 como “[...] uma coleção de fatos transpirando dos quatro cantos do
mundo, e sobretudo da Europa, a fim de instilar interesse e fazer com que se
observe a marcha das Nações rumo à sua grandeza ou decadência”.*67
Ao almejar “falar de política (politiquer) com aqueles que desejarão nos
ouvir”,- a Itália encontraria seu caminho para o progresso. O jornal de
Buonarroti saudava tanto a constituição americana por suas garantias de
liberdade de culto e de imprensa quanto as lutas religiosas dos jansenistas e
dos republicanos holandeses contra as forças da tradição.8 Durante os pri­
meiros dias da Revolução Francesa, Buonarroti disseminou com entusiasmo
as novas idéias na condição de editor e livreiro em Leghorn, e se exilou na
Ilha de Córsega no início de 1790.
Na década seguinte, ele remoldou à feição moderna os dois mitos centrais
da tradição revolucionária: a crença numa revolução inconclusa e a fé em
uma alternativa perfeita radicada na natureza. Estabeleceu o primeiro mito
através do cultivo da memória de Babeuf e ao propor de modo pioneiro
uma nova abordagem à organização revolucionária. E remoldou o mito da
natureza ao levá-lo, para além do sentimentalismo, à prática revolucionária.
Esta última contribuição, não reconhecida até mesmo por estudiosos de
Buonarroti, inicia-se com sua estadia na Córsega, de 1790 a 1792. Durante
esses anos, os mesmos durantes os quais Babeuf formulou pela primeira
vez a sua “lei agrária” radical na Picardia, Buonarroti descobriu um esta­
do de natureza idealizado na rural Córsega (com visitas ocasionais à Ilha
da Sardenha e outras vizinhas).9 O seu Jornal Patriótico da Córsega, de

(Utopisti e Riformatori italini, 1794-1847, Florença, 1943, pp. 128-1 77) deve ser complementado
por P. Onnis Rosa, Filippo Buonarroti e altri studi, 1971, esp. p. 161 ss.
6 L. Basso, “Il Prospetto a stampa del ‘Journal Politique’”, Critica storica, voi. vi, 1967, p. 863.
7 Ibid.
8 L. Modona, “Un Numero del ‘Journal Politique*”, Critica storica, voi. vi, 1967, p. 866; e p. 868 ss.
9 E. Michel, “Le Vicende de Filippo Buonarroti in Corsica (1789-1794)”, Archivio Storico de Corsica,
voi. ix, 1933. A obra fundamental sobre esse período ainda é A. Galante Garrone, Buonarroti e
Babeuf, Turim, 1948. E. Eisenstein, The first professional revolutionist: Philippo Michele Buonarroti
(1761-1837), A biographical essay, Cambridge, Massachusetts, 1959, pp. 161-190, oferece um
valioso ensaio bibliográfico e uma boa narrativa geral. Investigações e publicações posteriores estão
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 157

1790,10 defendeu a Revolução Francesa em termos rousseaunianos, argu­


mentando que a “felicidade geral” só podia ser alcançada “no estado de
natureza”, o único no qual nos damos conta da “faculdade de agir de acordo
com a determinação de nossa vontade”.11
Seu batismo de fogo ocorreu durante os anos na Córsega quando se
juntou à campanha da França revolucionária contra a Sardenha em 1792.
Tornou-se um propagandista-legislador da única parte bem-sucedida da
expedição: a ocupação da pequena Ilha de San Pietro. Descrevendo sua
função naquela área idílica como a de quem ensina a “doce doutrina da
natureza”,12 esboçou para a ilha uma constituição republicana, que chamou
de O Código da Natureza.
Confrontado com o fracasso geral da expedição sardenha, Buonarroti
partiu para Paris ao fim de 1792. Foi um dos estrangeiros constituídos ci­
dadãos da Primeira República francesa. Em 29 de abril de 1793, Buonarroti
defendeu com sucesso diante da Convenção de Paris a incorporação de sua
ilha utópica à república francesa com o nome de Isola della Libertà,13 A
primeira chegada de Buonarroti a Paris deu início a um entusiasmo para
toda a vida. A cidade revolucionária lhe parecia magicamente capaz de
elevar as pessoas de suas miudezas pessoais ao entusiasmo compartilhado:
Admirei aquela metamorfose mediante a qual interesses pessoais há muito
dominantes eram fundidos num interesse comum que se tornou a paixão
de todos.14
Considerou que a principal coisa a temer era a traição que viesse de dentro.
No único tratado que Buonarroti escreveu durante sua primeira estada em
Paris, A Conspiração Corsica Inteiramente Desmascarada^ advertiu o povo
francês a respeito da lenta contra-revolução dos “ricos egoístas” que eram

adequadamente resumidas em Dizionario biografico degli italiani, 1972, vol. xx, pp. 148-161.
10 Os primeiros 32 números desse jornal raro (de 3 de abril a 27 de novembro de 1790) foram
reimpressos acompanhados de algumas informações biográficas em Bulletin de la société des
sciences historiques et naturelles de la Corse, Bastia, 1919, 1921, n° 389-392, 421-424. As páginas
têm numeração contínua e possuem um índice, que lhes foi apenso às pp. 221-268. A numeraçao
provavelmente seguiu até pelo menos as edições 36-37. V. nota à p. 219.
11 Carta aberta de Buonarroti em Giornale, 12 de junho de 1790 (reimpressa em Bulletin, pp. 112-113),
em resposta a um bispo que tinha escrito que os apoiadores do confisco de terras da igreja “fedem
a heresia social” (“da ogni parte puzzate di eresia sociale... ”) e ameaçam atirar os homens de volta
ao caos (“nello stato de natura”). Ibid., pp. 112, 119.
12 Citado em Onnis, Buonarroti, p. 213.
13 Discurso presente em Moniteur Universel, 30 de abril, comentado em Onnis, p. 213.
14 Citado em Onnis, p. 167.
158 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

na verdade “inimigos da igualdade”.15 “Grandes traições” surgiam em meio


àqueles aos quais faltava o “santo entusiasmo” para criar um novo tipo
de comunidade. Esse panfleto de 1794 era uma denúncia feroz da alegada
traição à revolução Corsica por parte de seu suposto líder e herói, General
Paoli. Após dirigir a primeira rebelião contra o tirano genovês, Paoli tinha
retornado à Córsega depois de um longo exílio e se aliado com os ingleses
na oposição aos republicanos apoiados pelos franceses. Paoli simbolizava
o revolucionário tornado oportunista. Buonarroti o denunciou como um
tipo e defendeu o surgimento de uma nova espécie de homem para termi­
nar a revolução. Para evitar que aparecessem futuros Paolis na França, ele
sugeria — numa passagem profética em relação à história revolucionária
posterior — existir “uma grande necessidade de um grande expurgo”.16
Como o Reino do Terror se instalasse em Paris, Buonarroti retornou para
os frontes de avanço revolucionário na Itália. Juntou-se com o irmão mais
novo de Robespierre, Augustine, e com o jovem Napoleão Bonaparte aos
exércitos franceses na Riviera Italiana no início de 1794. No dia 9 de abril,
ficou encarregado do governo revolucionário na cidade ligure de Oneglia.
Deu início à “organização da paz”, estabelecendo um sistema centralizado
de “agentes revolucionários” destinados a mobilizar a população contra os
“agentes da tirania” que ainda serviam à aristocracia italiana e ao clero.17
O discurso de Buonarroti ao povo de Oneglia no dia 9 de maio pode ser
considerado a primeira declaração de igualitarismo apocalíptico. Insistiu em
que todos os homens foram criados “iguais, livres e destinados a ser felizes”
e que qualquer distinção, seja de que natureza for, é uma clara violação da
lei da natureza.18 Em Oneglia, o jovem aristocrata conheceu um sentimento
entusiasmante de identificação com as pessoas simples. Usava a toda hora o
termo sans culottes e fingiu passar penúria ao insistir, quando foi preso, que
possuía apenas uma troca de roupa: “Nunca me liguei a nenhum poderoso.
15 La conjuration de Corse entièrement dévoilée, 1794, p. 3. Para estabelecer sua autoria, baseio-me
em um acréscimo anterior, feito à tinta, do nome de Buonarroti na cópia publicada anonimamente
que se encontra em BM. Não referida nos livros fundamentais de Saitta e Garrone sobre Buonarroti,
esse texto apresenta os traços estilísticos e terminológicos próprios dele. Sua oposição a Paoli é
discutida por Arnault-Jay-Jouy em Biographie nouvelle de contemporains, 1827, pp. 572-573.
Entre os muitos revolucionários italianos com que Buonarroti manteve contato em Oneglia e Paris
estavam córsicos como Salliceti, que depois foi uma espécie de comissário político do exército de
Napoleão na Itália.
16 Grand besoin d’une grande purgation, ibid., p. 14.
17 Onnis, “Filippo Buonarroti Comissário Revoluzionario a Oneglia nel 1794-1795”, in Buonarroti,
pp. 62-65. V. também outros trabalhos citados em J. Godechot, “Travaux récents”, pp. 5-6.
18 Onnis, Buonarroti, p. 68, também p. 169.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 159

Sempre vivi modestamente, às vezes na pobreza. [...] Ninguém ousará dizer


que já amei o dinheiro 19
Até o fim da vida, manteve consigo, como uma espécie de talismã, um
certificado de que havia sido aceito para La Società Popolare “após passar
por escrutínio minucioso”.20
Depois de ajudar a montar um novo sistema de educação pública e uma
versão local da Festa do Ser Supremo e da Natureza, Buonarroti veio a ser
preso em 5 de março de 1795. Defendeu, perante o tribunal em Paris, o uso
que fez do terror em Oneglia contra “os inimigos e emigrados que nos in­
festam”, mas enfatizou a essência pedagógica do seu governo: “[...] minha
maneira de aterrorizar consistia em pregar nossos princípios e interesses aos
habitantes; em colocar em suas mãos proclamações e livros escritos na sua
língua e com estilo familiar e compreensível [...]”.21
Em sua bem-sucedida defesa, enfatizou que “nunca pertenci a partido
algum”.22 Prenunciou assim a postura do autêntico revolucionário que diz
servir à verdade universal para além das facções mesquinhas e adversárias
do momento.
Em 1796, Buonarroti já havia se afastado inteiramente de sua compreensão
sentimental da natureza e se aproximado de um conceito revolucionário de
lei e obrigação. “A lei da natureza difere essencialmente do que é chamado
de estado de natureza. A primeira é resultado de experiência e reflexão; a
segunda, de primeira impressão e ignorância”.23
Ele então buscava “conduzir os homens de volta à natureza”24 não seguin­
do o caminho musgoso do “nativo que vive sozinho nas florestas”,25 e sim
criando uma comunidade igualitária na própria Paris. Depois de sua absol­
vição em 1795, Buonarroti se reuniu à conspiração de Babeuf num esforço
de realizar “essa doce comunidade”.26 Foi novamente preso com Babeuf e os

19 Ibid., p. 138.
20 Ibid., pp. 87-88.
21 Discurso de defesa de Buonarroti, reimpresso em Onnis, p. 137.
22 Ibid.
23 Saitta, Buonarroti, vol. i, pp. 117-118.
24 Ibid., vol. i, p. 118, citando o principal memorando de Buonarroti sobre a organização revolucionária,
reimpresso em vol. il, pp. 91-116.
25 Ibid., vol. il, p. 93.
26 Ibid., vol. il, p. 140, para os comentários de Buonarroti sobre cette douce communauté como “algo
que não é impossível” de realizar e como um objetivo ao qual só “a leviandade, a depravação ou a
fraqueza” poderiam levar alguém a se opor.
160 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

outros conspiradores em 1797, confinado em Cherbourg e depois enviado sob


intensa vigia para a Ilha de Ré, antes que Napoleão lhe permitisse mudar-se
para Genebra em julho de 1806.27
Buonarroti permaneceu em Genebra pelos próximos dezessete anos, exce­
tuados quatro meses que passou em Grenoble durante 1813-1814. Tornou-se
o primeiro de uma longa linha de revolucionários — alcançando Lênin — a
utilizar a Suíça, que ele chamava “a terra de Jean-Jacques”,28 como base
segura para a atividade revolucionária.
A história exata das atividades de Buonarroti durante esse período pro­
vavelmente jamais será conhecida com precisão. Ele concebeu duas organi­
zações secretas que se sucederam na finalidade de comandar o movimento
revolucionário internacional: uma foi a Sublimes Mestres Perfeitos, e a outra,
a Monde. Nenhuma das duas parece ter tido muita relevância, mas os inces­
santes esforços de Buonarroti inspiraram e às vezes guiaram a resistência a
Napoleão. Alguns de seus companheiros babeuvistas estavam metidos em
tramas dos Filadelfos, as quais culminaram na primeira tentativa republicana
séria de derrubar Napoleão, liderada pelo general Claude-François Malet em
1808, e Buonarroti teve contato direto com a segunda e mais impressionan­
te conspiração de Malet, em 1812.29 O papel de Buonarroti foi ainda mais
significativo nas conspirações revolucionárias que proliferaram durante a
Restauração que se seguiu à derrota final de Napoleão.
Embora Buonarroti nunca tivesse obtido muito sucesso no recrutamento
de partidários, as suas idéias influenciaram muitos jovens soldados e estu­
dantes que haviam despertado politicamente com as guerras napoleônicas.
Com efeito, o próprio Buonarroti acabou por dar um toque napoleonico aos
seus próprios planos para a revolução. Assim como Bonaparte, começara
sua carreira política como um obscuro franco-italiano na Ilha de Córsega;
e fora um dos primeiros agentes da expansão revolucionária francesa na
Itália. No fim, em Santa Helena, Napoleão prestou homenagem relutante à
sua nêmese revolucionária:

Ele poderia me ter sido muito útil na organização do Reino da Itália. Poderia
ter sido um excelente professor. Era um homem de talento extraordinário: um

27 Detalhes sobre esse longo período (que encontrou algum consolo apenas no breve caso que teve
com Teresa Poggi) podem ser encontrados em Onnis, pp. 303-311.
28 M. Pianzola, “Filippo Buonarroti in Svizzera”, Movimento Operaio, 1955, jan.-fev., p. 123.
29 O relato mais completo sobre esses contatos é, no momento, D. Tugan-Baranovsky, “General Male,
‘obshchestvo filadel’fov’ i Napoleon”, Frantsuzsky ezhegodnik, 1973, 1975, esp. pp. 184-188.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 161

descendente de Michelangelo, um poeta italiano como Ariosto, que escrevia em


francês melhor do que eu, desenhava como David e tocava piano como Paesiello.30

Buonarroti, contudo, não devolveu o elogio. Escreveu ao filho de Babeuf


que Bonaparte “deu o coup de grâce [golpe de misericórdia] na revolução”.31 À
medida que ele e seus contemporâneos lutavam para manter viva a atividade
revolucionária sob o governo de Napoleão, Buonarroti foi ficando cada vez
mais profundamente imbuído de ocultismo romântico. Essa inclinação mesma
para o ocultismo se devia em grande medida, paradoxalmente, a Napoleão.
Já que Napoleão dizia personificar o Iluminismo, sua oposição revolucioná­
ria cultivava idéias antiiluministas. Já que Napoleão posava de sustentáculo
do racionalismo universal — impondo às claras o Código Napoleonico, o
sistema métrico e os métodos administrativos franceses por onde passava
—, seus opositores foram se abrigar em irmandades exóticas para lá nutrir
seu protesto. Já que, ademais, a oposição a Napoleão incluía monarquistas
extremistas bem como republicanos extremistas, freqüentemente conceitos
da direita se imiscuíam nos programas da esquerda.
As lojas maçônicas de Genebra propiciavam o ambiente no qual Buonarroti
formulou em 1811o seu primeiro projeto de uma nova sociedade de repu­
blicanos revolucionários: os Sublimes Mestres Perfeitos.32 Não só o nome da
sociedade, mas também os três níveis hierárquicos de associação propostos
tinham sido tomados de empréstimo da maçonaria. De fato, Buonarroti tentou
trabalhar se valendo de lojas maçônicas já existentes: para recrutar dentro
delas, influenciá-las, utilizá-las como disfarce e (se necessário) sabotá-las.
Seu objetivo final era o objetivo babeuvista original de colocar em prática,
em escala continental, a Constituição republicana de 1793.33 O seu pitoresco
projeto para tanto — rico em simbolismo maçônico — criava o protótipo da
organização revolucionária moderna. A sociedade era secreta e hierárquica.
Apenas aqueles do círculo mais interno ficavam cientes de que a organiza­
ção almejava transformação social radical e uma constituição republicana.

30 Citado em V. Dalin, “Napoléon et les Babouvistes”, Annales Historiques, 1970, jul.-set., pp. 417—418.
31 Ibid., p. 413.
32 O crescente temor da polícia em relação a Buonarroti e suas ligações maçônicas em Genebra
é documentado por M. Pianzola, “La mystérieuse expulsion de Philippe Buonarroti”, Cahiers
Internationaux, 1954, dez., p. 61; também “Svizzera”, p. 124.
33 A discussão básica de Saitta, Buonarroti, vol. I, pp. 79-119, é complementada por A. Lehning,
“Buonarroti and His International Secret Societies”, International Review of Social History, vol. I,
1956, pp. 112-140, esp. pp. 119-120; estudos mais recentes são indicados por Godechot, “Travaux
récents”, p. 1, notas 25-30.
162 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Complexas precauções relativas ao segredo eram cada vez mais alimentadas.


Papéis impressos que simbolizavam o grau do associado deveríam ser quei­
mados — se necessário, engolidos — em caso de prisão ou perigo.
A organização de Buonarroti propunha uma moralidade própria; uma
espécie de maniqueísmo interno ao círculo dos eleitos revolucionários. Eram
os agentes do bem contra o mal, da liberdade contra a tirania, da igualdade
contra o egoísmo. Seu círculo mais interno, o “grande firmamento” da na­
tureza, era uma autoridade política claramente superior a Napoleão, para
não falar de governantes menores.

O ambiente da maçonaria

Embora a organização revolucionária de Buonarroti fosse muito além de


qualquer modelo maçônico, ela foi claramente influenciada pelo período de
cinco anos de imersão em lojas maçônicas que ele passou em Genebra. Tão
grande, na verdade, foi o impacto da maçonaria no período revolucionário,
que alguma compreensão do ambiente social maçônico parece um ponto de
partida essencial para qualquer investigação séria das raízes ocultistas da
tradição revolucionária.
A maçonaria transmitiu à tradição revolucionária já em sua nascença a
metáfora essencial de que os revolucionários se valeram para compreender
a sua própria missão em meados do século xix: a metáfora de um arquiteto
construindo uma nova e melhor estrutura para a sociedade humana. Os
maçons acreditavam estar recriando em suas sociedades fraternas a condição
“natural” de cooperação que prevalecera em meio aos pedreiros34 artesãos
do passado que moldaram as pedras de uma construção comum.
A evolução de cada “irmão”, desde o estágio de aprendiz, passando pelo
de companheiro e, por fim, alcançando o de mestre, requeria realizações mais
filosóficas e filantrópicas do que reputação social. A “franco-maçonaria”
era, pois, matéria de meritocracia moral — coisa implicitamente subversiva
em qualquer sociedade estática baseada em hierarquia tradicional. Homens
inteligentes e ambiciosos do século xvm freqüentemente vivenciaram dentro
de lojas maçônicas uma espécie de irmandade entre iguais que não se poderia
encontrar na sociedade aristocrática externa.

34 Segundo a etimologia implicitamente adotada pelo autor, o uso da palavra “mason” para designar
“maçom” provém de um uso mais antigo, que designava “pedreiro”. — ne
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 163

Os rituais que davam acesso a cada novo grau de associação não eram,
como às vezes se sugere, iniciações infantis. Eram impressionantes ritos de
passagem a novos tipos de associação, com a promessa de acesso a verdades
mais elevadas da Natureza tão logo a venda fosse removida dos olhos no
cômodo interior da loja. Cada noviço deveria buscar se tornar um pedreiro
“livre” e “aperfeiçoado” capaz de 1er os planos do “Divino Arquiteto” para
“reconstruir o templo de Salomão” e de remoldar a ordem secular mediante
a força moral.
Era mais acessível a mobilidade ascendente propiciada pela fraternidade
ritualizada da maçonaria do que aquela que se encontraria no restante da
sociedade. O título maçom de “irmão” materializava na França parte da mescla
de burguesia e aristocracia sugerida na Inglaterra pelo uso do invejado termo
“cavalheiro”.35 Nos meios maçônicos, pessoas normalmente conservadoras
poderíam cultivar seriamente a possibilidade de uma Utopia36 — ou pelo
menos de uma alternativa ao ancien régime. Filipe de Orléans era o chefe
titular da maçonaria francesa (a Grande Oriente); e muitos dos freqüentadores
pró-revolucionários dos cafés do Palais-Royal eram seus “irmãos” maçons.
Nos primeiros dias da revolução, a maçonaria proporcionou grande parte
dos principais simbolismos e rituais — a começar com a recepção maçônica
sob uma “abóbada de espadas” feita ao rei no Hotel de Ville três dias antes da
queda da Bastilha.37 Compreenda-se, contudo, que a maior parte dos maçons
franceses antes da revolução “não tinham sido revolucionários, nem mesmo
reformistas, nem mesmo descontentes”;38 e, mesmo durante a revolução, a
própria maçonaria permaneceu politicamente polimorfa: “Qualquer elemento
social e qualquer tendência política poderia ‘se tornar maçônico’ caso assim
quisesse”.39 Mas a maçonaria propiciava um refúgio rico e relativamente não
tradicional para os novos símbolos nacionais (moedas, canções, cartazes,

35 V. a valiosa pesquisa de D. Ligou, “Un source important de l’histoire du xvme siècle. Le fond
maçonnique de la Bibliothèque Nationale”, Actes du 89 Congrès National des Sociétés Savantes
(Section d’histoire), 1965, p. 38.
36 J. Servier; “Utopie et franc-maçonnerie au xvm siècle”, Annales Historiques, 1969, jul.-set., pp.
409-413; também outros artigos nesse número tratam da questão dos laços da maçonaria com a
revolução.
37 Sobre o uso do voûte d’acier no 17 de julho, v. J. Palou, La franc-maçonnerie, 1972, p.187.
38 D. Mornet, Les origines intelectuelles de la révolution française (1715-1787), 1954, p. 375; vejam-se
comentários às pp. 357-387; bibliografia às pp. 523-525; e, fora da França, veja-se Billington, Icon,
pp. 712-714. A. Mellor; Les mythes maçonniques (1974), também minimiza a influência maçônica,
embora reconhecendo vagamente a influência do renascimento ocultista no movimento revolucio­
nário.
39 Ligou, “Source”, p. 46, também p. 49.
164 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

selos), as novas formas de tratamento (ím, frère, vivat!) e os novos modelos


de organização civil, particularmente fora de Paris.40
Mais relevante para a nossa história, fato é que a maçonaria foi proposital­
mente utilizada por revolucionários no início do século xix como um modelo
e como um espaço para recrutamento para os seus primeiros experimentos
conspiratórios de organização política. Buonarroti agia de maneira típica ao
adotar os nomes de duas lojas maçônicas, “perfeita igualdade” e “perfeita
união”, para os seus dois primeiros grupos revolucionários em Genebra. Essas
lojas tinham surgido na década de 1760 em oposição, respectivamente, à
monarquia absoluta e aos privilégios aristocráticos.41 Buonarroti elaborou o
seu primeiro projeto dos “sublimes mestres perfeitos” em 1806-1813, quando
era membro ativo na loja da “perfeita igualdade” em Genebra42, tendo defi­
nido a “perfeita igualdade” como seu objetivo. As lojas da “perfeita união”
influenciaram a organização revolucionária União, fundada em 1813-1814
em Grenoble por Joseph Rey, um futuro colaborador de Buonarroti, que
nesse período visitava a cidade.

40 O assunto nunca foi estudado em maior profundidade. Para as melhores discussões, porém em
termos gerais, veja-se O. Karmin, “L’influence du symbolisme maçonnique sur le symbolisme
révolutionnaire”, Revue Historique de la Révolution Française., 1910, vol. i, pp. 183-188
(particularmente sobre numismàtica); J. Brengues, “La Franc-Maçonnerie et la fête révolutionnaire".
Humanisme, 1974, jul.-ago., pp. 31-37; Palou, pp. 181-215; R. Cotte, “De la Musique des loges
maçonniques à celles des fêtes révolutionnaires”, Les Fêtes de la Révolution, 1977, pp. 565-574; e a
avaliação mais exata de Ligou, “Structures et symbolisme maçonniques sous la révolution”, Annales
Historiques, 1969, jul.-set., pp. 511-523.
Sobre a grande influência das estruturas maçônicas sobre os rituais provinciais civis, ver, por exemplo,
F. Vermale, “La Franc-maçonnerie savoisienne au début de la révolution et les dames de Bellegarde”,
Annales Révolutionnaires, vol. ni, 1910, pp. 375-394; e especialmente a obra monumental, referente
ao departamento de Sarthe, a qual eleva o nível de pesquisa muito acima de tudo que já se fez
referente a Paris: A. Bouton, Les Franc-maçons manceaux et la révolution française, 1741-1815,
Le Mans, 1958. Veja-se seu volume posterior Les Luttes ardentes des franc-maçons manceaux pour
l’établissement de la république 1815-1914, Le Mans, 1966.
No Novo Mundo, onde os elos entre as organizações maçônicas e as revolucionárias eram
particularmente fortes, partidos revolucionários adversários às vezes adotavam nomes de ritos
adversários. No México, por exemplo, escoceses (“centralistas” pró-ingleses oriundos de lojas do
rito escocês) combatiam os yorquinos (federalistas oriundos do rito de York, criado pelo primeiro
embaixador norte-americano, Joel Poinsett).
V. A. Bonner, “Mexican Pamphlets in the Bodlein Library”, The Bodleian Library Record, 1970,
abr., pp. 207-208.
41 Ligou, “Source”, pp. 42-43, 46-47. La Parfaite Égalité surgiu em Franche Comté e, em geral, dava
apoio aos magistrados do Parlamento, opondo-se às lojas da “Sinceridade” dos intendentes da
realeza.
Devido ao extremo segredo que cercava esses grupos e à preocupação da polícia apenas com o
próprio Buonarroti, sabemos muito pouco acerca dos demais participantes; mas, ao que parece,
havia antigos amigos seus de Oneglia e exilados franceses como Jean Marat (relojeiro, irmão do
jornalista martirizado), com os quais Buonarroti vivia em Genebra. V. Onnis, Buonarroti, p. 225,
esp. nota 13.
42 O. Karmin, “Notes sur la loge et le chapitre, La Perfaite Égalité de Genève”, Revue Historique de
la Révolution Française, vol. xn, 1917, jul.-dez., pp. 314-324.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 165

O modelo iluminista

Se a maçonaria proporcionava um meio de convívio e um vocabulário


simbólico para o movimento revolucionário, era o Iluminismo, por outro
lado, que proporcionava seu modelo estrutural básico. O plano organizacio­
nal de Buonarroti, baseado em duas décadas de experiência revolucionária
em Genebra (e ao qual ele basicamente permaneceu fiel pelo resto da sua
vida), foi simplesmente plagiado da Ordem dos Iluminados da Baviera.43
Esse movimento ocultista secular e radical era organizado em três níveis de
hierarquia secreta: igreja, sinodo e areopagita. A versão revolucionária de
Buonarroti dessa estrutura definia a “igreja” como a célula local chefiada
por um “sábio”, o único a manter contato com o “sínodo” regional. Os
membros de cada sínodo (“os sublimes eleitos”) eram chefiados por um
“diàcono territorial”, o qual supervisava as atividades de todas as “igrejas”
na região. O mais alto grau de “areopagita” (também chamado “o Grande
Firmamento”) enviava os seus próprios “diáconos móveis” para controlar
os sínodos e supervisar a propaganda e as mobilizações.44
Pode-se traçar com algum detalhe a natureza e o impacto desse descon­
certante movimento, pois sua influência passou longe de ser negligenciável,
e tem sido ultimamente tão negligenciada quanto foi exagerada em épocas
anteriores.
A Ordem dos Iluminados foi fundada em Io de maio de 1776 por um
professor de direito canônico da Universidade de Ingolstadt na Bavária, Adam
Weishaupt, e mais quatro companheiros. A ordem era secreta e hierárquica,
organizada à maneira dos jesuítas (cujo longo domínio sobre a educação
bávara cessara com a sua supressão pelo papado em 1773) e comprometida
com a visão rousseauniana de Weishaupt de guiar a humanidade até uma
nova perfeição moral liberta de toda religião estabelecida e de toda autori­
dade política.
Weishaupt não agiu tanto como quem convida intelectuais a se juntarem
à sua nova elite pedagógica, e sim mais como quem os provocava a tanto.
Ele transbordava desprezo por iluministas que “vão ao êxtase por causa das
coisas antigas, mas são eles próprios incapazes de fazer algo”45 e enfatizava
43 Esse grupo é mais conhecido como “Illuminati”. — ne
44 Lehning, “Buonarroti”, pp. 116, 121 e ss. Essa terminologia viria depois a assumir forma mais
secular, de feição maçônica mais tradicional: igreja se tornou liceu; sínodo, academia; eleitos sublimes,
maçons perfeitos; sublimes mestres perfeitos, verdadeiros arquitetos. Saitta, vol. i, p. 86.
45 Citado em S. Landa, “Konspiracje oéwieceniowe i tajne organizacje polityczne”, Przeglad Historyczny,
166 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

que “o que falta é a força para colocar em prática o que há muito já foi
afirmado pelas nossas mentes”.46
Essa força deveria vir de um tipo inteiramente novo de sociedade secreta,
a qual teria “muito mais das características de uma milícia em ação do que
de uma ordem com iniciações”.47 A finalidade de ascender na hierarquia dos
Iluminados não era tanto alcançar sabedoria quanto ser refeito como um
servo completamente leal a uma missão universal. “Não podemos usar as
pessoas tal como elas são, mas podemos criá-las”.48 O complicado processo de
recrutamento criado por Weishaupt envolvia a criação, nos neófitos, de uma
dependência psicológica em relação ao processo que os estava transformando.
“Insinuadores” (aqueles que trouxeram novos membros) deveríam proceder
“pouco a pouco em seus rodeios”: “[...] Primeiro suscitando desejos vagos
e imprecisos, para então, enquanto o candidato os saboreia, mostrar-lhe o
objeto que ele próprio irá agarrar com suas duas mãos”.49
O “objeto” era um cartão de deferência ao desejo do novo membro de
ser admitido ao próximo nível da ordem. Nesse momento de ansiedade, o
“insinuador” se tornava o “superior” e dificultava a ascensão do novato ao
próximo círculo. O “postulante” podería de fato passar por intenso escrutínio
durante um “noviciado” de dois anos, e um questionário de trinta páginas
lhe era aplicado sobre absolutamente tudo, desde seu gosto em matéria de
roupas até a sua posição de dormir. Esse processo de demolição psicológica

1967, n° 2, p. 247. O que existe de mais similar a um estudo moderno e acadêmico desse movimento
em geral ignorado é, provavelmente, L. Wolfram, Die Illuminaten in Bayern und ihre Verfolgung,
Erlangen, 1899-1900, duas partes.
R. von Dülmen, Geheimbund der Illuminaten. Darstellung, Analyse, Dokumentation, Stuttgart,
1975, oferece a mais completa lista de livros publicados sobre os Iluminados durante o período
revolucionário — um total de 88 títulos de 1784 a 1800: pp. 423-429. Rogalla von Bieberstein, Die
These von der Verschwörung 1776-1945, Bern/Frankfurt, 1976, faz o melhor relato das sucessivas
etapas percorridas até que se chegasse à padronização de uma teoria da conspiração dos Iluminados
(pp. 95-137) e mostra que, a partir do período napoleònico, começou-se a atribuí-la aos judeus (pp.
161-163). Uma tese de doutorado que me é inacessível é W. Hofter, “Das System des Illuminatenordens
und seine soziologische Bedeutung”, Heildelberg, 1956.
46 Weishaupt, Pythagoras oder Betrachtung über die geheime Welt und Regierungskunst, Frankfurt,
1795 (publicação original em 1790), p. 385; citado em Le Forestier, Les Illuminés de Bavière et la
Franc-maçonnerie allemande, 1914, p. 596.
47 J. B. Baylot, Le Voie substituée. Recherche sur la déviation de la franc-maçonnerie en France et en
Europe, Liège, 1968, p. 64. As obras pouco notadas de Landa e Baylot (valendo-se de materiais
maçônicos dos Países Baixos e de países eslavos, respectivamente) são os primeiros estudos, desde
Le Forestier, a ampliar tanto material quanto conceitualmente os horizontes deste problema.
48 Carta de Weishaupt a K. Zwack (seu colaborador original mais importante), 10 de março de 1778,
citado em Landa, p. 246.
49 Carta de Weishaupt a Zwack (é quase certo que a data de 21 de março de 1772 está errada), citada
em Baylot, p. 38.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 167

tinha o objetivo de estimular uma nova elite cujo propósito era “não con­
quistar territórios nem impor autoridade, nem tampouco reunir os mais
ricos [...] [e sim] a conquista mais difícil dos indivíduos. A sua indiferença,
a sua submissão passiva ou obediente não é o suficiente. Deve-se ganhar a
sua inteira confiança, sem reservas, o seu entusiasmo”.50
A visão de mundo primitiva dos revolucionários como uma luta dualista
entre as forças das trevas e da luz pode ter se originado na concepção dos
seguidores de Weishaupt de que seu grupo de eleitos, de “iluminados”, travava
uma batalha contra “os filhos das trevas”, o nome categórico que davam ao
mundo exterior. O nome da ordem, no princípio, foi aparentemente indeter­
minado (Perfectibilistas chegou a ser usado e Abelhas, a ser considerado);51
mas o nome Iluministas foi escolhido, ao que parece, com base na imagem do
sol que ilumina os círculos exteriores. No centro do círculo dos Areopagitas
ficava acesa uma vela simbolizando a fonte solar de toda iluminação. Esse
culto zoroastrista-maniqueu do fogo era de importância central para o em
geral eclético simbolismo dos Iluminados; o seu calendário era baseado no
calendário persa, e não nos modelos clássico ou cristão.52
Pseudônimos e símbolos, cujo sentido esotérico era preciso nas lojas
maçônicas, tornaram-se instrumentos deliberados de camuflagem para os
Iluminados. Ingolstadt era ao mesmo tempo Elêusis e Éfeso; Munique era
Atena; Viena, Roma. O nome do próprio Weishaupt na Ordem dos Ilumina­
dos, Espártaco, o líder de uma revolta de escravos na Roma antiga, serve de
indicativo do seu comprometimento revolucionário; mas os seus principais
colaboradores originais tomaram para si os nomes do grego Ájax e do egípcio
Dánao, e outros nomes iam de Tamerlão a Confúcio.53
Os Iluminados tentaram utilizar a agitação e a confusão da maçonaria
para os seus próprios objetivos. Weishaupt ingressou para uma loja maçônica
de Munique em 1777; e tentou recrutar “comandos” (grupos de seguidores)
dentro de lojas da capital bávara. Ao fim de 1780, a campanha de Weishaupt
se espalhou por toda a Alemanha e às falsas ordens de cavalaria mais altas
da maçonaria com a entrada de Weishaupt para o círculo próximo do Barão
Adolph Knigge. Ele era natural de Hanôver e líder ocultista em Frankfurt,

50 Ibid., p. 38.
51 Ibid., p. 37; Wolfram, Illuminateti, parte i, pp. 16, 22.
52 Baylot, pp. 39—40, para esses e outros detalhes de terminologia, baseando-se em novas fontes.
53 Weishaupt, Einige Originalschriften des Illuminatenordens, Munique, 1787, pp. 1-2; Baylot, pp.
40-42.
168 A FÉ REVOLUCIONÁRIA. SUA ORIGEM E HISTÓRIA

cidade que não demorou a substituir Munique como principal “colônia” do


movimento. Durante cinco intensos anos (até que Knigge deixasse a ordem
em julho de 1785), os Iluminados recrutaram em grande parte junto ao gru­
po daqueles que haviam pertencido à mais popular das ordens maçônicas
superiores, a Estrita Observância. A técnica dos Iluminados consistia, em
primeiro lugar, em desacreditar a ordem adversária mais conservadora por
meios tanto honestos (ajudando a organizar a conferência de líderes ocul-
tistas na cidade de Wilhelmsbad, em 1782, para estabelecer que as lojas da
Estrita Observância não descendia de fato da Ordem dos Templários) quanto
desonestos (afirmando que as lojas Estrita Observância eram controladas
em segredo por “superiores desconhecidos” que eram, na verdade, jesuítas
disfarçados).5455
Os Iluminados cooptaram a estrutura organizacional de seu rival maçônico
conservador; no curso desse processo, adquiriram algo do charme misterioso
que antes não possuíam em sua árida seita de intelectuais racionalistas. O
Iluminismo também se tornou muito mais político.
Weishaupt parece ter começado a ver a maçonaria como uma espécie de
terreno intermediário de treino para os Iluminados — depois de terem entrado
na ordem, mas antes que ingressassem nos círculos secretos mais internos?3
Assim, sob a liderança de Knigge, ele desenvolveu um sistema de três “classes”
sucessivas que incorporava todos os “graus” existentes na maçonaria como
etapa preliminar a graus de uma classe superior dos Iluminados. As primeiras
duas classes (a preparatória e a intermediária) incorporavam os três graus
tradicionais e os graus simbólicos mais altos da maçonaria, respectivamente.
A terceira classe, a classe “administrativa”, era a mais original — e indicava,
só pelo seu nome, as implicações políticas do projeto de Weishaupt para uma
renovação moral da humanidade. Os seus primeiros dois graus, aqueles dos
“pequenos mistérios” e dos “grandes mistérios” respectivamente, levavam a
um terceiro e mais alto grau: o dos Areopagitas, onde todos os afinal irrele­
vantes simbolismos eram abandonados em prol do puro reino da liberdade
e da igualdade. Nesse grau último — totalmente secreto para os demais
—, a “nobreza dos motivos”56 era total, o contrato social era restaurado e
54 Baylot, pp. 44^18, 56-57; Le Forestier, L'Occultisme et la franc-maçonnerie écossaise, 2a ed., 1928,
p. 311; J. Droz, L'Allemagne et la révolution française, 1949, pp. 404^409. De acordo com E.
Lindner, o pròprio Duque de Brunswick se tornou membro da Ordem dos Iluminados em 1783:
Die königliche Kunst im Bild. Baiträge zur Ikonographie der Freimaurerie, Graz, 1976, p. 200.
55 Baylot descreve a maçonaria como “imprensada” entre dois estágios do Iluminismo: Ibid., p. 43.
56 Weishaupt, Pythagoras, p. 308; citada em Le Forestier, Illuminés, p. 596.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 169

uma nova “política interior” proporcionaria o núcleo e o modelo para um


mundo transformado. Essas divisões dentro da hierarquia iluminista eram
descritas popularmente em termos eclesiásticos. As primeiras duas classes,
que abrangiam todos os estágios maçônicos anteriores, eram a “Igreja”; os
primeiros dois graus da classe administrativa, o “Sinodo”; e o último grau,
o Areopagita, representava o homem liberto de toda a autoridade para viver
em harmonia igualitária.
Essa promessa de total libertação terrificou o mundo de fala alemã, e a
ordem foi ridicularizada, perseguida e obrigada a se dissolver formalmente
em 1785-1787. Weishaupt foi banido para Gotha e mantido sob vigilância.
Mas a diàspora de uma ordem que chegara a ter 2.500 membros57 no seu
auge no começo da década de 1780 gerou um impacto póstumo que foi
muito maior, por toda a Europa, do que ordem alguma jamais conseguira
durante sua efêmera vida como um movimento de intelectuais alemães. Na
França, a publicação, pela polícia bávara, da correspondência de Weishaupt
e de outros documentos, em 1787, provocou mais admiração que medo. O
“Ensaio sobre a seita dos Iluminados”, publicado no ano seguinte pelo irmão
de um ex-funcionário da corte prussiana, provocou mais perplexidade que
horror. Nem mesmo a imaginação erótica do Palais-Royal teria sido capaz
de aperfeiçoar a descrição de um suposto rito de iniciação dos Iluminados:
marcas eram feitas sobre o corpo nu do candidato deitado. Seus testículos
eram amarrados com uma fita cor de rosa e carmesim; e ele renunciava a
quaisquer outros laços humanos antes que cinco fantasmas de capuz bran­
co, com estandartes ensangüentados e postados à frente de uma “imagem
colossal”, aparecessem numa fogueira. Por fim, as amarras e marcas eram
removidas, e ele era aceito à ordem superior ao beber sangue diante de sete
velas pretas.58
O livro que teve papel decisivo na popularização do ideal dos Iluminados
foi A monarquia prussiana sob o governo de Frederico, o Grande, do Conde
de Mirabeau, publicado em 1788. Com boa extensão sua escrita por um
ex-membro dos Iluminados, Jakob Mauvillon, a obra de Mirabeau distinguia
os Iluminados racionalistas dos ocultistas “místicos”, saudando os primeiros
como líderes de um movimento cujo “grande objetivo” era “a melhoria do

57 Estimativa feita por Methiez em Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916, p. 433.
58 J. P. L. de la Roche, Marquês de Luchet, Essai sur la secte des illuminés, 1789, 2a ed., pp. 73-76.
A primeira e a segunda edições foram publicadas em 1789, ao passo que uma terceira, aumentada
por Mirabeau, foi publicada em 1792. V. Chevallier; Franc-maçonnerie, vol. I, p. 317.
170 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

atual sistema de governos e legislações”.59 Mirabeau tirou muito de seu novo


e abrangente conceito de “revolução” diretamente dos Iluminados; é quase
certo que transmitiu algo desse ideal aos seus influentes protegidos, Camille
Desmoulins e Étienne Dumont (o amigo e protetor de Thomas Paine em
Londres), o qual depois foi seu secretário pessoal.
Nicholas Bonneville, contudo, é que foi o canal decisivo de influência dos
Iluminados. Foi convertido às idéias dos Iluminados durante a primeira de
suas duas viagens a Paris (em junho de 1787) por um destacado colaborador
de Weishaupt na última fase política do Iluminismo, Christian Bode. Amigo de
Lessing e alguém bem-sucedido na tarefa de sustar a inclinação dos franceses
ao ocultismo conservador, Bode aparentemente converteu o falante de alemão
Bonneville (à época trabalhando como advogado no Parlamento) a uma fé
que combinava símbolos dos Iluminados e idéias radicais de soberania popu­
lar.60 Bonneville iniciou imediatamente a sua fracassada tentativa de converter
Condorcet a essa mais vigorosa fé, saudando a iminente chegada do “Povo-
-Deus”, da libertadora “chama do mundo” prevista pelo “sábio” Rousseau.61
Bonneville via a libertação popular como uma espécie de ingresso em
massa, de olhos vendados, num santuário dos Iluminados: “Retirem a venda
que cobre os olhos do Povo [...]. Ponham a mão do Povo sobre o véu [...]
ele em breve será rasgado”.62
59 De la monarchie, vol. v, pp. 99-100; citado por Mathiez, Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916.
pp. 434—435; também Chevallier, pp. 320-321, sobre o papel que teve Mauvillon. D. Ligou é cético
a respeito da ligação de Mirabeau com a maçonaria (“Mirabeau, a-t-il été Franc-maçon?", in Les
Mira b eaux et leur temps, 1968, pp. 118-123), mas no geral tem pouco conhecimento dos Iluminados
e trai sua ignorância ao se referir a Weishaupt corno “Weiskaupf”.
60 Sabe-se menos sobre Bode e sua missão do que a respeito de outros aspectos dos Iluminados durante
o período posterior à sua supressão oficial. Parece que seu nome verdadeiro era Theodor Heinrich
Bode. Um patronato principesco foi da maior importância ao lhe permitir (e a outros) difundir as
idéias dos Iluminados fora da Baviera, levando-as a toda a Alemanha (Grassi, pp. 220-221). Sua
atividade proteica é discutida em maior detalhe em Fragmente zur biographie des verstorbenen
Geheimen Rats Bode in Weimar, Roma, 1795. V. Harivel, pp. 23-25; Frost, vol. i, pp. 41-42; e para
a influência de Bode em Bonneville, v. Grassi, pp. 269-271.
Aparentemente, Knigge teve na Alemanha uma influência direta sobre os revolucionários similar à
exercida por Bode na França, com sua disseminação das idéias dos Iluminados. Veja-se o louvor dos
jacobinos alemães a Knigge por ocasião de sua morte em 1796: H. Vögt, Die deutsche jakobinische
literatur und Publizistik 1789-1800, 1955, pp. 150-153.
Ninguém se deu ainda ao trabalho de colher fatos em meio à propaganda contra-revolucionária em
Fragmente. Ao que parece, antes de sua morte, em 1793, Bode era um compositor de música militar
(E. Lennhoff e O. Posner, Internationales Freimaurerlexikon, Zurique/Viena, 1966, pp. 196-198); e era
alguém que compartilhava dos interesses literários de Bonneville como tradutor de literatura inglesa
proto-romântica (J. W^n, Johann Joachim Christoph Bode als Vermittler englischer Geisteswerke
in Deutschland, Praga, 1906).
61 Lettre à Condorcet, pp. 12, 29, 31.
62 Ibid., p. 37.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 171

Acusado por contemporâneos de tornar “o título de cidadão um grau de


iniciação dos Iluminados”,63 Bonneville respondeu, à maneira dos Iluminados,
que “o homem integral é Deus” e que do centro do círculo social “emanará
um círculo de luz que nos revelará o que jaz escondido no caos simbólico
das inovações maçônicas”.64
Em seu extenso estudo de 1788, A expulsão dos jesuítas da maçonaria^
Bonneville desenvolveu a idéia básica de Weishaupt e Bode de que a maçonaria
tinha sido infiltrada pelos jesuítas, os quais deveríam ser expulsos por uma
nova ordem que se opusesse aos tiranos e aos padres. A versão de Bonneville
do ideal dos Iluminados interessou a figuras tão diversas quanto Saint-Just e
Desmoulins na Picardia, Dietrich e Schneider em Estrasburgo.65 O substancial
influxo de alemães a Paris incluía ex-membros dos Iluminados, como o médico
saxão de Filipe de Orléans, Jean-Geoffrey Saifferì, os Irmãos Fey e o jornalista
Rebmann.66 Influências ocultistas — possivelmente dos Iluminados — podem

63 Crítica feita pelo Mercure de France, 18 de dezembro de 1790, p. 121 (com referência dada errada
em Harivel, p. 155).
64 Les jésuites, vol. i, p. 26; também De l’Esprit des religions, pp. 88, 249.
65 Les jésuites foi quase imediatamente publicado em tradução alemã de Bode, o qual, por sua vez,
impressionara Friedrich Schiller com a história de uma conspiração jesuítica contra o Iluminismo (v. a
carta de Schiller de 10 de setembro de 1787, “Die jetzige Anarchie der Aufklärung wäre hauptsächlich
der Jesuiten Werk”, Grassi, p. 290). Desse modo, Bode influenciou tanto o dramaturgo alemão
como o seu amigo tradutor, Bonneville, o qual logo publicou outros dois trabalhos, ampliando o
argumento dos Iluminados ao denunciar os maçons de Rito Escocês e os jesuítas: La maçonnerie
écossaise comparée avec les trois professions et le secret des templiers e Les jésuites retrouvés dans les
ténèbres, discutido em Mathiez, Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916, p. 435, nota 2. Darnton
sugere que Restif, bem corno Mirabeau e Bonneville, podem ter sido o canal para a introdução de
idéias dos Iluminados na França: Mesmer, pp. 132-133. Elementos novos, mas não devidamente
apreciados, que sugerem o empréstimo de idéias dos Iluminados e ampla influência de Bonneville,
estão em Bayot, Voie, pp. 103-107.
Ollivier (Saint-Just, pp. 96-116, 149-150) nota influências alemãs na loja dos Amis Réunis à qual
Saint-Just pertencera antes da revolução, aponta para comunicação entre Saint-Just e Bonneville ainda
na Picardia, em 1791, e observa a ajuda prestada por um grupo ocultista à eleição de Saint-Just para
a Assembléia no ano seguinte. Desmoulins provavelmente absorveu idéias dos Iluminados enquanto
serviu como secretário de Mirabeau; e Bonneville dedicou a Desmoulins uma peça comemorativa
da queda da Bastilha se valendo de um fortmato romântico e maçom: v. BA, Rf 17043, pp. 1-4; Rf
17044.
Dietrich traduziu obras do Círculo Social de Bonneville para o alemão e possuía um interesse por
ocultismo que em nada deixava a desejar ao de seu rival na Estrasburgo revolucionária, Schneidet;
que fora um Iluminado ativo. O trabalho fundamental de Mathiez (Annales Révolutionnaires, vol.
vi, 1913, pp. 102-103; voi. vili, 1916, p. 437) pode ser complementado por P. Leuillot, “Bourgeoise
d’Alsace et franc-maçonnerie aux xviiie et xixe siècles”, Bourgeoisie alsacienne, pp. 343-376.
66 Não se fez nenhuma investigação séria sobre esses personagens desde Mathiez, Révolution et les
étrangers, pp. 61,117-118, 142. A sugestão de que Rebmann tenha servido de canal para as idéias
dos Iluminados não encontra embasamento na obra à qual Mathiez se refere: N. von Wrasky, A.
G. R Rebmann. Leben und Werke eines Publizisten zur Zeite der grossen französischen Revolution,
Heidelberg, 1907, embora a verdade seja que nunca se estudaram apropriadamente os muitos
aspectos desse e de outros ativistas alemães em Paris.
172 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ser detectadas na primeira afirmação clara de Babeuf dos objetivos comunistas


no início de 1795 — a convidar um amigo a “se iniciar nos sagrados misté­
rios do agrarianismo” e a aceitar a fidelidade de um Chevalier de l'ordre des
égaux.67 O primeiro esboço posterior de uma conspiração feito por Babeuf
falava de um “círculo de adeptos” que “avançam por graus” desde les pays
limitrophes [os países vizinhos] para transformar o mundo.68 A organização
secreta e hierárquica de Babeuf lembrava a dos Iluminados e de Bonneville. A
estranha ausência de referências de Babeuf e outros ao homem que formulou
os seus objetivos decisivos, Sylvain Maréchal, poderia ser explicada pela exis­
tência de um segredo à maneira dos Iluminados sobre os trabalhos do círculo
mais interno.69 Os conspiradores poderíam ver Maréchal como a “chama”
no centro do “círculo”. Enquanto tal, ele teria de ser protegido pelo círculo
mais externo de sua revelação aos profanos de fora. O misterioso nome que
tinha em Paris de “Atheopolis” e o modo como se referia a si próprio, 1'HSD
(l'homme sans dieu\ representavam precisamente o ideal de Weishaupt de
Areopagitas internos: o homem tornado um ser perfeito como deus-sem-Deus.
Quanto a Buonarroti (que estabeleceu a lenda de Babeuf e revelou pela
primeira vez a função de Marechal), ele fora fascinado pelos Iluminados desde
já antes da revolução. Já em 1787, ele se apropriou de idéias de Mirabeau e
apontou para a luta entre os Iluminados e o catolicismo na Bavária.70 Uma pista
no sentido de que Buonarroti possa ter se comprometido com o Iluminados
está em um esquecido jornal de 1789 feito por um grupo de italianos que
tinham sido influenciados pelos Iluminados quando estudantes na Bavária.
Empolgados com as notícias políticas da França, esses estudantes fizeram
planos em Innsbruck (“Samos”) de fundar um jornal capaz de promover a
transformação total da humanidade proposta pelo ideal dos Iluminados. Ao
fim de 1789, publicaram em Sondrio, no lado italiano dos Alpes, um jornal
67 Dalin, Babef, p. 435, também p. 15, para a carta de Babeuf a Charles Germain; Espinas, p. 214, para
a sua resposta. Rose (Babef, p. 189) descreve Germain com todas as características de um ocultista,
sem, contudo, afirmar que ele o fosse.
68 Dommanget, Pages choisies, pp. 219-220.
69 A discussão conduzida por Dommanget, Maréchal, pp. 297-322, destina-se em boa parte a
argumentar contra a idéia de que Maréchal possa ter sido poupado da prisão em razão de contatos
que possuísse em altas esferas — e em momento algum considera a possibilidade de ter havido
influência dos Iluminados ou governos baseados em segredo. A sugestão de que Marechal possa
ter chegado até a colaborar com a polícia, denunciando a conspiração (é o que diz G. Pariset,
Babouvisme et maçonnerie, Estrasburgo, 1924), é refutada com rigor por Baylot (Voie, p. 96 ss.),
cuja descoberta da participação de Maréchal na loja ocultista La Celeste Amitié e de seu desprezo
pelas “lojas maçônicas comuns” seria inteiramente compatível com imitação, senão uma continuação,
do ideário dos Iluminados.
70 Modena, “Número”, pp. 868-872.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 173

que bem pode ter sido o primeiro órgão revolucionário dos tempos modernos:
Apêndice Político a Todas as Gazetas e Demais Folhas...
O jornal se propunha a ir além da política ao proporcionar uma espécie
de guia pedagógico de leitura de todas as outras publicações. Os editores
insistiam: “O Apêndice não é uma gazeta, e sim um bem-pensado curso de
Direito, de Governo, de Economia Política, aplicado às atuais revoluções da
Europa”.71
Seu ideal era a “igualdade feliz”72 tal qual “pregada pelo cidadão de Gene­
bra”73 e corporificada em uma “constituição social”.74 Esse ideal claramente
ia além da leitura puramente política de Rousseau cultivada pelos políticos
franceses do período revolucionário. O ideal social mais radical havia libe­
rado sobre a Europa “a energia dos ventos, que ora sopram violentamente
contra a opressão”.75
O primeiro número elogiava o conceito de Weishaupt-Mirabeau de uma
“revolução da mente” como o objetivo apropriado ao “século dos Ilumina­
dos”.76 Identificava esse tipo de revolução com os Iluminados da Baviera (“a
organização que o Conde Mirabeau comparou aos Sacerdotes de Elêusis”)77
e diferenciava o ideal deles de suas distorções espiritualistas. O editor seguia
a praxe dos Iluminados de adotar um pseudônimo pretensioso, “Lazzaro
Jona” (fazendo referência talvez a Lázaro, Jonas e o retorno dos mortos), e
cumprimentava, como um amigo, a “Abraham Levi Salomon”, o “compi­
lador” {estensore) do Jornal Patriótico da Córsega.7* Uma nota de rodapé
identificava esse personagem como “o cavaleiro Buonarroti”, um “homem
de espírito”.79 Uma vez que se trata do único italiano contemporâneo men­
cionado nominalmente no jornal, Buonarroti parece ter tido alguma relação
especial com o Apêndice bem como com o Jornal Patriótico, “o primeiro jornal
revolucionário em italiano”,80 que ele lançou logo após ter sido banido para

71 Appendice politica a tutte le gazzette e altri foglietti di novità o sia la spezieria de Sondrio, voi. il,
1790, p. 1. Museu do Risorgimento, Milão.
72 Ibid., p. 101.
73 Ibid., p. 4.
74 Ibid., p. 101.
75 Ibid.
76 Ibid., vol. I, 1789, pp. 78-79.
77 Ibid., p. 79.
78 Ibid., vol. II, p. 45; vol. i, pp. 134-135.
79 Ibid., vol. I, p. 135.
80 De acordo com Onnis, Buonarroti, p. 165. C. Francovich (Albori socialisti nel Risorgimento;
174 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a Córsega em outubro de 1789. Certamente existe continuidade de estilo e


conteúdo entre o Journal Politique de Buonarroti, de 1787, e os efêmeros
Apêndice e Jornal Patriótico. O segundo e último número do Apêndice fala­
va de um futuro número especial que proporcionaria “um curso de política
sobre a Revolução na França e as questões de outras potências”.81 Mas esse
número nunca apareceu, e Buonarroti em breve mergulharia em atividade
revolucionária na França.
Gioacchino Prati, um jovem estudante de Trentino que depois se tornaria
um dos colaboradores mais próximos de Buonarroti, apontou para indícios de
relação com os Iluminados ao afirmar que a primeira organização revolucionária
de Buonarroti, os Sublimes Mestres Perfeitos, “foi instituída durante a primeira
Revolução Francesa” e era “composta por quatro círculos concêntricos” —
cada um com sua secreta profissão de fé.82 O círculo mais externo se destinava
contributo allo studio delle società segrete (1776-1835), Florença, 1962, p. 85) defende que o
jornal era uma imitação da publicação maçônica Café politique d’Amsterdam. O herói político do
jovem Buonarroti, Leopoldo da Toscana, é louvado no Apêndice (vol. i, p. 33 ss.) por tentar colocar
em prática o “contrato social” de Rousseau {patto sociale)-, mas não consegui localizar referência
alguma no Appendice ao suplemento intitulado “O Século de José u” supostamente escrito por um
pensador italiano a idealizar o déspota esclarecido que “abriu o caminho para a grande revolução”,
tal como o diz Francovich, p. 85.
81 Appendice, vol. li, p. 160, nota.
82 Embora Prati fosse jovem demais para ter chegado a participar das primeiras conspirações
buonarrotianas (o que é sugerido por Francovich, Albori, p. 87), pode-se, no entanto, depreender
do depoimento necessariamente acautelado de Prati sobre sua relação com Buonarroti que se tratou
de um elo duradouro. Prati o chama “meu maior amigo [...] a maior figura política que encontrei
em minha vida [...] a mente mais amigável, talentosa, vigorosa e elevada que a Itália produziu em
séculos [...] Em épocas melhores, e em nações menos débeis, Buonarroti teria sido para o continente
o que Licurgo e Sólon foram para Esparta e Atenas”. Penny Satirist, 21 de abril 1838, p. 2; 28 de
abril, p. 1; também 16 de março de 1839, p. 1. V. também P. Pedrotti, Notte autobiografiche del
conspiratore trentino Gioacchino Pratti, Rovereto, 1926; e, para outro exemplo, M. Rigatti, Un
iluminista trentino del secolo xvm, C. A. Pilati, Florença, 1923.
Sobre o papel de intermediários estrangeiros na introdução de idéias dos Iluminados na Itália, cf.
G. Berti, 1 democratici e l’iniziativa meridionale nel risorgimento, Milão, 1962, esp. pp. 146-147,
p. 156 ss.; e Aus den Tagebüchern Friedrich Münters. Wander und Lehrjahre eines dänischen
Gelehrten, Copenhague/Leipzig, 1937; discutido em A. Faivre, Eckartshausen et la théosophie
chrétienne, 1969, pp. 83-84,652-654. Ao que parece, idéias dos Iluminados podem ter influenciado
a propaganda revolucionária pioneira no sul da Alemanha durante 1796, em prol da unificação
alemã (v. K. Obser, “Der Marquis von Poterai und die revolutionäre Propaganda am Oberrhein
im Jahre 1796”, Zeitschrift für die Geschichte des Oberrheins, voi. vii, 1892, n° 3, pp. 385-413;
Godechot, “Unité”, p. 259); talvez tenha também influenciado o levante camponês no Tirol em
1809 (aparentemente sugerido por A. Fischer em um manuscrito confiscado pela Gestapo durante
a Segunda Guerra Mundial). H. Koplening, “Revendications agraires dans l’insurrection tyrolienne
de 1809: Élitairisme paysan ou influence Buonarrotiste?”; Babeuf et les problèmes, pp. 205-214;
também Pedrotti, pp. 27-28. E é ainda mais provável que tenha influenciado a mais aristocrática
“Liga da Virtude” {Tugendbund) ao norte da Alemanha em 1808-1809 (Pedrotti, pp. 25, nota 1; 37,
nota 1; 69-72, nota 2; também o relatório de polícia na obra de N. Webster, pouco confiável quanto
a tudo mais, Secret Societies and Subversive Movements, L, 1924, p. 265, além de pp. 258-265, e
E Brokgauz e I. Efron (ed.), Entsiklopedichesky slovar’, vol. xxxiv, 1902, pp. 31-32).
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 175

a atrair “a grande massa de liberais, os quais, como os Radicais, lutavam pelo


sufrágio universal e por instituições populares”. Dentro estava um segundo
círculo secreto composto de “democratas convictos”. O círculo final, o mais
interno, era desconhecido dos demais e professava um igualitarismo absoluto.
Independentemente de se Buonarroti estava mesmo ou não disseminando
um programa dos Iluminados durante suas atividades pré-revolucionárias da
década de 1790, fato é que ele tinha claramente internalizado várias idéias
dos Iluminados bem antes de se apropriar do programa revolucionário em
1810-1811. Adotara dos Iluminados a pretensão de recuperar uma religião
natural que só era conhecida pela seita dos “iluminados” do passado. Via a
si mesmo a “reintegrar”, “em suas formas ancestrais, a religião da natureza,
da razão”,83 ao reavivar o legado de uma genealogia estapafúrdia: “os persas
de Ciro, os mestres dos sacerdotes egípcios, a santa Hermandad da Espanha,
os Apóstolos de Jesus, os anabatistas e, sobretudo, a ordem dos jesuítas”.84
Procedia como Weishaupt e Bonneville ao dar especial importância aos jesu­
ítas, os quais ele tentava tanto imitar como aniquilar. Seu ideal secreto era,
desde o começo, de acordo com Prati, o ideal igualitário dos Iluminados de
romper com todos os “sinais da propriedade privada”.

Que a República seja o único proprietário; como uma mãe, proverá a cada um de
seus membros igual educação, alimento e trabalho.

Essa é a única regeneração objetivada pelos filósofos. Essa é a única recons­


trução de Jerusalém [...]85

Esses empréstimos de idéias dos Iluminados parecem substanciais o sufi­


ciente para desafiar o julgamento há muito aceito do principal estudioso do
assunto, segundo o qual, depois de 1790, a doutrina dos Iluminados, “tendo

83 Definição dada por Knigge em 1782, citada em C. Francovich, “Gli Illuminati di Weishaupt e l’idea
egualitaria in alcune società segrete del Risorgimento”, Movimento Operaio, 1952, jul.-ago., p. 562,
também pp. 556, 559.
84 Saitta, voi. n, p. 105; também discussão em vol. i, pp. 114-119. Novos documentos de período um
pouco posterior levaram M. Vuilleumier, em sua discussão de ligações maçônicas de ordem mais
geral, a supor que os Sublimes Mestres Perfeitos tivessem origem nos Iluminados: “Buonarroti et
ses sociétés secretes à Genève”, Annales Historiques, 1970, jul.-set., pp. 475—476, 494-497.
85 Citações do relato feito por Prati (Penny Satirist, 10 de março de 1938) reproduzidas com comentários
em Saitta, “Una conferma irrefutabile: il terzo grado Buonarrotiano”, Critica Storica, voi. vili, 1969,
pp. 709-710. Não existe nenhum testemunho direto além das afirmações gerais de Prati de que o
igualitarismo sócio-revolucionário de Buonarroti date de antes de seu envolvimento na Conspiração
de Babeuf. A datação dos escritos fragmentários de Buonarroti é coisa sabidamente incerta; e os
elementos de clara influência dos Iluminados em suas formulações podem tanto anteceder como
suceder a conspiração.
176 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

desaparecido da história [...] viveu apenas como lenda”.86 Parece haver boas
razões para crer que a influência dos Iluminados não era tanto uma “lenda”
quanto uma realidade percebida de maneira imperfeita.87 A observação per­
plexa do mesmo historiador de que “a lenda policial” sobre os Iluminados
começou a “se desenvolver com maior amplitude e originalidade” no perí­
odo napoleonico88 aponta para uma surpreendente fonte de influência dos
Iluminados. Suas idéias influenciaram os revolucionários não só através de
simpatizantes de esquerda, mas também por meio de oponentes de direita.
À medida que os medos da direita se tornavam um objeto de fascínio para a
esquerda, o iluminismo veio a ter uma paradoxal influência póstuma muito
maior do que exercera quando era um movimento vivo.

A paixão pitagòrica
Como vimos, uma imensa série de nomes e imagens foi tirada da antigüidade
clássica para legitimar a nova fé revolucionária. Dois nomes relativamente
negligenciados tiveram importância central para o desenvolvimento de uma
identidade ideal em meio aos intelectuais revolucionários: a imagem do re­
volucionário como um Pitágoras moderno e de seu ideal social como uma
Filadélfia. Esses dois tópicos ilustravam o alcance proto-romàntico de um
distante ideal grego como uma alternativa majestosa às imagens romanas de
poder e conquista que haviam dominado a França à medida que esta, assim
como a Roma antiga, passava da república para o império sob o governo
de Napoleão. Pitágoras e Filadélfia representavam uma destilação dos altos
ideais fraternos comuns tanto às irmandades ocultistas da maçonaria e do
iluminismo quanto à mobilização idealista de jovens para defender a revolu­
ção de 1792-1794. Esses dois tópicos reaparecem como leitmotifs em maio
à cacofonia de ideais e grupos mutáveis durante a recessão das esperanças
revolucionárias ao fim do século xvm e começo do xix.

86 Le Forestier, Illuminés, p. 715; ver também os proveitosos comentários em Francovich, “Illuminati”,


pp.553-597.
87 Um estudioso recente e cuidadoso (Spitzer, Old Hatreds, pp. 9-16) considera boletins de polícia
relativamente confiáveis por serem obra de oficiais aos quais faltava tempo ou talento para criar
lendas. Mais de 60 anos antes, Mathiez escreveu acertadamente que “se é ridículo explicar a Revolução
como uma conspiração dos Iluminados, não é menos ridículo supor que os amigos e as idéias dos
Iluminados não tenham desempenhado papel algum nela” (Resenha do livro de Le Forestier em
Annales Révolutionnaires, vol. vin, 1916, p. 437). As falhas em Le Forestier são ilustradas pelo seu
fracasso mesmo em discutir o Círculo Social, ignorância tornada patente por sua indicação de “sic”
após a sua única menção do termo: Illuminés, p. 669.
88 Ibid., p. 702 ss.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 177

Justamente nesse período negro nasceu a tradição revolucionária moder­


na — a ecoar a crença romântica napoleonica de que tudo era possível, mas
a olhar para um perdido ideal helênico, e não para o recuperado império
romano do novo César.
Pitágoras, o semi-lendário filósofo grego, servia de modelo para o
intelectual-transformado-em-revolucionário. Tornou-se uma espécie de
santo padroeiro dos revolucionários românticos, que precisavam de novos
símbolos de santidade secular.
De acordo com a tradição, no século vi a.C. o grande geometra da anti-
güidade deixou a cidade de Samos, na Grécia, e foi para Crotona, no sul da
Itália, onde supostamente fundou uma irmandade religiosa-filosòfica para
transformar a sociedade. Reformadores intelectuais radicais, ao longo de
toda a antigüidade, reviveram e embelezaram essa tradição. Neopitagóricos
surgiram na Alexandria no século n a.C.; e um grupo posterior de pitagóricos
produziu Apolônio de Tiana no século n, um sábio taumaturgo que foi, na
sua época, um grande rival de Cristo. Embora grupos organizados tenham
desaparecido, as idéias pitagóricas vieram a reaparecer na cristandade me­
dieval, que por certo tempo representou Pitágoras como um elo judeu oculto
entre Moisés e Platão.
Uma corrente subterrânea de fascínio pelo pensamento pitagorico no
Renascimento e no Iluminismo assomou durante a Revolução Francesa.
O projeto final de Weishaupt de um iluminismo politizado, escrito durante
o primeiro ano da Revolução, era intitulado Pitágoras; e, à medida que os
extremistas procuravam princípios simples, porém sólidos, com base nos
quais reconstruir a sociedade, cada vez mais passaram a buscar orientação
nas crenças pitagóricas em números primos e formas geométricas. Antes,
revolucionários românticos buscaram atalhos ocultistas para as verdades
íntimas da natureza, e assim diversas vezes deram importância aos princi­
pais números primos do misticismo pitagorico: um, três, sete, e sobretudo
cinco. Panfletários de direita sugeriram que os números primos propiciavam
um código organizacional secreto para os revolucionários; uma elaboração
particularmente engenhosa de 1797 derivava do número dezessete toda a
estrutura da história revolucionária. Bonneville iniciara a moda na esquerda,
sugerindo já antes da revolução que o número dezessete guardava a chave
para a compreensão do assalto jesuíta à maçonaria.89
89 Em Les jésuites, Bonneville enxerga nas principais datas só dígitos cuja soma resulta em 17: 287
(a suposta data de fundação da loja por Santo Albão), 926 (o reinado de Etelstano da Inglaterra),
178 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM F. HISTÓRIA

Por mais esquisita que possa parecer a revolucionários e historiadores


posteriores, essa paixão pitagorica influenciou seriamente as atividades
organizacionais dos primeiros revolucionários. Vimos como os Iluminados
fizeram os primeiros e hesitantes esforços de usar sistematicamente formas
da maçonaria ocultista em conspirações ulteriores — abrindo caminho para
Bonneville, Buonarroti e os primeiros revolucionários profissionais. Mas a
incontrolável profusão de símbolos exóticos e ordens superiores também
alimentou um impulso muito mais amplo e mais aberto: a busca por formas
simples de natureza para que sirvam de critério de verdade diante da autori­
dade esfacelada da tradição. A cada vez mais obsessiva busca por harmonias
simples e geométricas dentro da maçonaria nas décadas de 1770 e 1780 revela
a sede radical por simplificação revolucionária em seu estado mais puro.
Essa busca de uma simplicidade legitimadora ultrapassou os limites das
lojas e chegou às assembléias em 1780. Ocultistas se tornaram políticos e
fizeram especial emprego de dois dos mais importantes símbolos geométri­
cos pitagóricos — o círculo e o triângulo — ao dramatizarem seu desafio ao
poder estabelecido. Essas duas formas se tornaram símbolos da divindade
no cristianismo medieval.90 Passaram a progressivamente dominar os hie­
róglifos das ordens maçônicas mais altas91 — e também a imaginação de
arquitetos utópicos pré-revolucionários que, com freqüência, buscavam fazer
edificações só com base em “figuras geométricas do triângulo ao círculo”.92
Como muitos dos primeiros líderes da revolução viam a si mesmos como
maçons-arquitetos, sentiram alguma afinidade com a campanha então em
andamento de combate ao estilo rococò aristocrático com o “poder da geo­
metria”. Assegurados pela lei da gravidade de Newton quanto à harmonia
circular do universo, sentiram que o domínio das leis matemáticas tornava
o homem “possuidor do segredo do universo solar” destinado a organizar
a sociedade humana racionalmente.93 Ao mesmo tempo, a filosofia proto-
-romântica do ocultismo alemão levou muitos a verem o homem não como
uma engrenagem, mas como um dinâmico “ponto vivo destinado a se tor­
1646 (fundação de uma loja por Carlos i) e 1692 (fundação de um colégio jesuíta por Jaime n). V.
Harivel, p. 23. A última data, como é evidente, totaliza 18.
90 G. Poulet, Les Metamorphoses du cercle, 1961, pp.28-29, nota 33.
91 Ver, por exemplo, na seção sobre os graus mais altos, ilustrações em Linder, Kunst, pp. 84,119,123,
161.
92 Abade Laugier, Essai sur l’architecture, 1755, 2a ed., p. 206; citado em D. Kaufman, “Three
Revolutionary Architects: Boullée, Ledoux, and Lequeu”, Transactions of the American Philosophical
Society, 1952, p. 44.
93 Poulet, p. 88.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 179

nar um círculo”94 com um “campo de visão comparável a um círculo cuja


circunferência cresce sem fim”.95
Mas, antes que as fronteiras pudessem se expandir, monumentos preci­
savam ser construídos em seu centro. Os planos arquitetônicos para Paris
nos primeiros meses da revolução revelam um especial fascínio pelas formas
tridimensionais do triângulo e do círculo: a pirâmide e a esfera. Dois dos mais
importantes monumentos propostos em 1791 — em louvor à nação francesa
na tomada da Bastilha e à memória de Mirabeau — foram, sem relação um
com outro, projetados como pirâmides gigantescas.96 A forma piramidal se
tornou ainda mais popular após o retorno de Napoleão do Egito, embora
tenha sido logo ultrapassada em locais públicos pelos mais alongados obe­
liscos. Mesmo antes da revolução, arquitetos utópicos se sentiram atraídos
pela “sublime magnificência da esfera”. Essa forma pura reapareceu no
esboço de um Memorial de Newton (uma esfera tendo dentro de si apenas
um pequeno túmulo iluminado por um único raio de sol) e de um proposto
Templo da Igualdade (uma imensa esfera erguida sobre colunas, contendo
uma esfera menor em seu interior).97

O círculo

Os pitagóricos tinham sido a primeira escola da antigüidade clássica a


sustentar sistematicamente que a Terra e o universo eram esféricos em sua
forma e finitos em sua extensão. Os números e a música expressavam as
harmonias ocultas de uma derradeira e esférica perfeição natural. A reali­
dade central da vida humana era a transmigração de almas humanas de um

94 Ibid., p. 141. Poulet relaciona essa imagem à filosofia de Fichte da oposição entre “o eu e o não-eu”,
na qual a palavra se torna, afinal, o lugar para “a imposição do eu sobre o não-eu” e a tendência
do homem para a expansão do seu ego se torna “não apenas psicológica. Ela é ontològica”. Na
cosmologia resultante do romantismo, o homem é simultaneamente “centro em razão do princípio
ativo do seu pensamento, círculo em razão de sua extensão infinita”. Ibid., pp. 141, 145, 147.
95 Ibid., pp. 185-186.
96 M. Tourneux, Répertoire général des sources manuscrites de l'histoire de Paris pendant la Révolution
française, V, 1899, p. 5; e veja-se o modelo de planta feito por Mirabeau em exibição no Museu
Carnavalet.
97 Projetos respectiva mente de Étienne-Louis Boullée, Claude-Nicolas Ledoux e Jean-Jacques Lequeu,
ilustrados e comentados respectivamente em Kaufman, pp. 461—462, 523, 553. Outras citações e
títulos que servem aqui de embasamento podem ser encontrados às pp. 471, 483, 521.
Pierre Patte (não discutido em Kaufman) criou a mais extensa argumentação pré-revolucionária a
favor da moralidade das formas circulares como essencialmente mais igualitárias e comunais: Essai
sur l'architecture théâtrale (1782), p. 40 ss. Ver também D. Rabreau, “Architecture et fêtes dans Ia
Nouvelle Rome”, em Les Fêtes de la révolution. Colloque de Clermont-Ferrand (juin 1974), 1977,
esp. p. 364 ss.
180 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

corpo para o outro — tudo a se mover em ciclos como o próprio universo.


Pitagóricos do século xvm ficaram especialmente entusiasmados com a idéia
dos Iluminados de uma progressiva purificação humana desde círculos mais
baixos da natureza animal até as esferas celestiais da pura inteligência. A
hierarquia de círculos dos Iluminados — movendo-se adentro desde a “igreja”
para o “sinodo” e, por fim, para o centro areopagita — sugeria os círculos
concêntricos do próprio universo. A chama ao centro do último e mais interno
círculo era tomada como uma imagem do fogo interno do universo ao redor
do qual a Terra e todos os outros planetas giravam.
Ocultistas podem até não ter acreditado sempre nisso, mas geralmente
sentiam jazer em algum secreto círculo interno a promessa tanto de redenção
pessoal como de compreensão cósmica. Acrescia-se a essa crença tradicional
numa sabedoria esotérica superior a nova promessa de libertação que vinha
do romantismo alemão. O conceito de um círculo interno encantado deu
dimensão espacial ao desejo romântico de liberdade. A vida “do círculo”
era uma vida de libertação — libertando-se até das limitações corporais nas
esferas celestes, libertando a sociedade das amarras da tradição herdada.
Ao que parece, Weishaupt foi o primeiro a utilizar o termo “círculo” para
descrever um novo tipo de organização política que fazia reivindicações
tanto de ordem moral quanto de ordem ideológica universal. Weishaupt
descreveu o recrutamento de Iluminados no interior de lojas maçônicas em
Munique como “o progresso do (^)” na área política. Ele introduziu va­
riantes destacadas em itálico da palavra latina (circuì^ circi) em seus escritos
alemães para explicar a politização do movimento, que ele divulgava através
de “circulares” e “circulação”.98
A idéia de círculo foi fundamental para a caricatura do Iluminismo feita
pelo Marquês de Luchet, não menos do que o foi para a imitação que dela
fez Bonneville. Em dois capítulos de fundamental importância em sua expo­
sição, Luchet descrevia o “círculo” como a principal célula da conspiração
constituída por nove homens: o “comitê administrativo” para um tipo intei-
ramente novo de sociedade humana, no qual “cada membro de um círculo
pertence igualmente a todos os outros” e “rompeu com todos os laços que
o ligavam à sociedade”.99 Os conservadores rosacruzes, que dominavam a

98 Weishaupt, Einige, p. 8, além de p. 7; Nachtrag, p. 136, e também p. 158; e “Circulare an die Logen”,
em ibid., p. 133 ss.
99 Luchet, Essai, pp. 54, 67, 91; e os capítulos “Circles” e “Proofs used to Concentrate an Illuminist
member of a Circle”.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 181

corte prussiana após a ascensão de Frederico William n em 1786, criaram o


seu próprio conceito rival de um Zirkel composto de nove homens. Dissemi-
nadores do ideal dos Iluministas tentaram repetidamente atacar os “círculos
de corrupção” dos rosacruzes100 e/ou incorporá-los em seus próprios planos
de “circulação” ocultista.101
Já vimos como Bonneville tinha por meta uma transformação global se­
gundo o modelo dos Iluminados a ser feita através de “círculos mágicos” que
irradiariam as idéias do seu “círculo social” ao centro para todo o Cercle
du peuple franc. Com o recesso das expectativas revolucionárias ao fim
da década de 1790, Bonneville (e companheiros seus como Thomas Paine
e Sylvain Maréchal) se apoiou — como, antes dele, Weishaupt no exílio —
na imagem de si mesmo como um Pitágoras: um intelectual exilado mas
“relevante”, a construir uma nova irmandade de libertação para o futuro.
Já antes da revolução, Bonneville fizera o ideal dos Iluminados remontar
a Pitágoras, o qual “trouxe do Oriente o seu sistema de verdadeiros ensi­
namentos maçons para iluminar o Ocidente”.102 Após o fracasso de sua
tentativa de “multiplicar o círculo social”103 por meio de suas organizações
do início dos anos 1790, Bonneville escreveu versos sobre “os números de
Pitágoras”,104 proclamando que “o homem é Deus” e “se tornará angélico”
ao ampliar o círculo da irmandade universal:

O Cercle Social!
Espoir toujours plus doux, d’un pacte général,
Des peuples opprimés ta ligue fraternelle
Jura la délivrance, entière, universelle.

100 K. Epstein, The genesis of german conservantism, Princeton, 1966, esp. pp. 107 ss.; sobre o Zirkel
der Verderbnisse enquanto distinto do Circuì dos Iluminados, v. J. Popp, Weltanschauung und
hauptwerke des Freiherrn Adolph Knigge, Leipzig, 1930, pp. 82, 88.
101 Bonneville, Les jésuites, vol. i, p. 27, ilustra a cooptação radical do rosacrucianismo.
102 Les jésuites, vol. i, p. 17. Benjamin Franklin ganhou de Maréchal e outros o título distintivo de
“Pitágoras do Novo Mundo” depois de ter servido como “Venerável” na loja maçônica ocultista
das Noves Irmãs na Paris pré-revolucionária, junto a Bonneville, Sieyès, Desmoulins, Cloots, Danton
e Maréchal. (Citado a partir de Maréchal, Dictionnaire des athées anciens et modernes, 1800, em
A. Aldrich, Franklin and his french contemporaries, NY, 1957, p. 192; e, para citações francesas
anteriores que tomam Franklin como Pitágoras, v. pp. 225,232). “The True Light”, a mais notável
tentativa durante os primeiros anos da revolução de utilizar a estrutura típica de lojas da maçonaria
ocultista diretamente com propósitos revolucionários, também invocava o nome de Pitágoras: “A
maçonaria na França, a despeito de todo o brilhante mecanismo de seus graus, está muito longe da
moralidade da Escola de Pitágoras”. Carta circular de “La Vraie Lumière” de 5 de março de 1792,
defendendo a democratização da Grande Oriente: Chevallier, vol. i, p. 355.
103 Alekseev-Popov, p. 303.
104 “Les Nombres de Pythagore”, La Poésie de Nicolas Bonneville, 1793, pp. 199 ss. (BA).
182 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORKÆM E HISTÓRIA

[Ó Círculo Social!
Esperança sempre mais doce de um pacto geral,
Tua irmandade de povos oprimidos
Jurou libertação total, universal].

À medida que a hipérbole romântica vai se intensificando, Bonneville se


imola metaforicamente no altar da primitiva pureza alemã e do mito solar
da revolução. Ao “povo” idealizado se tornou

Libre et pur comme Pair, et dans ma république,


Tout est fraternité, parenté germanique,..

Soleil d'un autre monde, et dans ta Majesté


D’un nouvel Univers sois la Divinité...
Je brûle...

[Livre e puro como o ar, e em minha república,


Tudo é fraternidade, paternidade alemã...

Sol de um outro mundo, e em tua Majestade


Sois a Divindade de um novo Universo...
Eu queimo...].105

Thomas Paine, que viveu num ménage à trois corn Bonneville e sua esposa
de 1797 a 1802, acreditava que os druidas e os pitagóricos tinham se unido
para oferecer uma alternativa ideológica ocultista ao cristianismo. Seu “Um
ensaio sobre a origem da maçonaria”, escrito após seu retorno aos Estados
Unidos (com a esposa de Bonneville) e imediatamente traduzido para o
francês por Bonneville, insistia em que a adoração natural do sol cultivada
pelos druidas não havia desaparecido, mas apenas passado para dentro da
maçonaria.
No apogeu de sua influência em 1782, o Círculo Social começou a publicar
novas obras cripto-revolucionárias do sumo-sacerdote do misticismo de Lyon,
Louis-Claude de Saint-Martin. Esse inimigo de longa data do Iluminismo
havia subitamente descoberto no misterioso caos da revolução a possibilidade
de construir uma nova Jerusalém através de formas e números pitagóricos.
“Um radiante sol se desprendeu do firmamento e veio se instalar sobre Paris,
desde onde espalha sua luz universal”. O “novo homem” pode perceber essa
luz ao contemplar os círculos concêntricos que convergem sobre um ponto
dentro da chama de uma vela acesa, assim a se “reintegrar” com os elementos

105 “Cercle Social”. Ibid., pp. 143-146.


LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 183

primais do ar, da terra e da água. À medida que o homem se encaminhar


para o puro espírito, a democracia revolucionária se tornará “deocracia”.106
A imagem de Pitágoras como modelo heróico para todos os revolucioná­
rios foi desenvolvida em toda sua intensidade na grande obra de despedida de
Sylvain Marechal: suas monumentais, em seis volumes, Viagens de Pitágoras,
de 1799.107
O Pitágoras de Maréchal incitava ao levante armado (“não com palavras,
[mas com] arco e flecha”),108 invocando uma metáfora que viria a se tornar
clássica na retórica revolucionária:
É preciso apanhar o momento propício [...] com a menor das centelhas se pode
iniciar um grande incêndio [...]109

O ideal dos herdeiros de Pitágoras é:

Compartilhar a posse de tudo, nada para você mesmo [...] a igualdade da natureza
[...] a república dos iguais.110

O volume final das Viagens, ao listar supostas 3506 “leis de Pitágoras”,


advertia em “Revolução” que

[...] a história de todo um povo muito freqüentemente se encontra na vida de um


punhado de homens.111

Esse “punhado de homens”, que permitiu à tradição revolucionária sobrevi­


ver à opressão napoleonica, era bem diferente das dramatis personae da maior
106 T. Paine, An Essay on the Origin of Free Masonry, L, 1818, p. 5; v. também pp. 5-7,14. Foi publicado
postumamente, NY, 1810, e traduzido para o francês por Bonneville em 1813: Harivel, Bonneville, p.
15.
Os materiais aqui utilizados e citados de Saint-Martin se originam de seu fantástico Le Crocodile, ou
la guerre du bien et du mal, arrivée sous le règne de Louis xv, poème épiquo-magique en 102 chants
(originalmente de 1799), 1962, esp. pp. 32,188; o firn de seu Traité de la réintégration, em R. Amadou,
Trésor martiniste, 1969, pp. 48-50; e N. Chaquin, “Le Citoyan Louis-Claude de Saint-Martin, théosophe
révolutionnaire”, Dix-Huitième Siècle, vol. vi, 1974, pp. 213,223. As principais obras de Saint-Martin
de 1792 (Ecce Homo e L’Homme nouvel) foram ambas publicadas pelo Círculo Social. Chaquin refuta
a ainda muito disseminada falsa associação de Saint-Martin com uma teocracia contra-revolucionária,
desenvolvendo linha de pensamento sugerida pelas novas informações reunidas em M. Serecka, Louis-
Claude de Saint-Martin. Le Philosophe inconnu. L’Homme et oeuvre, Breslávia, 1968. Ver também a
análise semântica de uma suposta “ideologia revolucionária” realizada por G. Gayot e M. Pecheux,
“Recherches sur le discours illuministe au xvme siècle”, Annales, mai.-ago., esp. pp. 698-701. Para
urna bibliografia, v. Amadou, Trésor, pp. 231-237.
107 Voyages de Pythagore... suivis de ses lois politiques et morales, 1799, 6v.
108 Voyages, vol. v, p. 354.
109 Referências da edição russa de Voyages em Kucherenko, p. 183 ss.
110 Ibid., pp. 329,332,333.
111 Voyages, vol. vi, p. 33.
184 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGF.M F HISTÓRIA

parte dos livros de história. Eles não eram — como vimos — líderes militares,
mas jornalistas-intelectuais; eram influenciados não tanto pelo racionalismo
do Iluminismo francês, e sim mais pelo ocultismo do nascente romantismo
alemão. A obra de Maréchal era ampiamente distribuída no mundo de fala
alemã;112 mas, profeticamente, era mais prezada no distante Império Russo,
na atmosfera de vaga religiosidade e disperso reformismo sob o governo do
Tzar Alexandre i. A começar em 1804, as Viagens de Maréchal passaram a
aparecer em jornais governamentais oficiais em tradução russa ao ritmo de
um volume por ano. Outro jornal russo publicou, paralelamente, 150 “regras
de Pitágoras” tiradas do sexto volume de Maréchal.113 O agente russo de
Maréchal era o protegido de Nicholas Novikov, um ocultista encarcerado,
cujo pseudônimo era “amante da verdade” e cujas reuniões secretas ao fim
do século XVIII tinham dado início à kruzhkovsh china (mania de círculos)
da tradição radical moderna na Rússia.114
O sonho de uma organização pitagorica revolucionária animou o primei­
ro fluxo de atividade política juvenil no Império Russo depois da derrota
de Napoleão. Um grupo de estudantes de Vilnius se reunia em encontros
noturnos em locais de beleza natural para ouvir a sabedoria ocultista de um
visitante “arquiiluminado” vindo de um círculo mais interno; e a tradição
de “pitagóricos livres” se espraiou pelas regiões do Império onde havia
influência polonesa.115 Na Ucrânia ocidental, três jovens russos formaram
uma “sociedade de Pitágoras” em maio de 1818 e estabeleceram as “regras
da seita pitagorica”.116 Propuseram os três clássicos círculos concêntricos,

112 Primeiro Maréchal enviou Voyages ao mesmo editor de Hamburgo que publicara a obra de denúncia
do Abade Barruel; e, embora afinal publicado em Paris, foi logo distribuído em Basel, na Breslávia,
em Metz, em Estrasburgo e em Viena — todos esses sendo lugares dentro ou perto do mundo de
fala alemã: Dommanget, Maréchal, p. 349.
113 Yu. Oksman, “Tifagorovy zakony’ i Travila soedinennykh slavian”’, em N. Druzhinin (ed.), Ocherki
po istorii dvizheniia dekabristov, 1954, pp. 485-487, 490. Outro estudo de Oksman (Vosstanie
chernigoskogo pekhotnogo polka, Leningrado, 1929, pp. 2, 35—36) discute a possibilidade de que
a “seita pitagòrica” na Rússia e seu desenvolvimento posterior tenham origem em Maréchal, assim
como o discute em sua resenha em Katorga i Ssylka, 1928, n° 2, pp. 174-175.
114 Sobre Novikov como pravda-liubov’ e a euforia da época de Alexandre, v. Billington, Icon, pp.
242-259. Sobre o protegido de Novikov, D. Dimitrevsky, o qual lançou a tradução russa serial em
seis volumes (Moscou, 1804-1810), v. Druzhinin, Ocherki, p. 485 ss. V. também G. Likhotin, Sil’vem
Mareshal’ i ‘Zaveshchanie Ekateriny II’, Leningrado, 1974, o qual confessa (p. 50) que o tema da
influência de Maréchal na Rússia “ainda aguarda um pesquisador”.
115 S. Landa, “U istokov ‘ody k iunosti’”, Literatura slavianskikh narodov, vol. i, 1956, pp. 29-33; e
discussão da transformação que corria paralela da sociedade secreta dos filômatas em Vilnius (à
qual Mickiewicz pertencia), p. 9 ss. Landa discute os ecos russos em “Konspiracje”, pp. 243-265.
116 Oksman, em Druzhinin, Ocherki, pp. 475, 502 ss. Sua argumentação no sentido de existir uma
tradição contínua é fortalecida pelas provas fornecidas e por sua relutância em sugerir elos poucos
substanciais.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 185

o terceiro a representar a República de Platão. Desse grupo viria a surgir


a Sociedade dos Eslavos Unidos, que objetivava realizar seu ideal helênico
por todo o mundo eslavo e dera feição russa aos três graus de associação:
“irmãos, homens e boiardo”.117
Os primeiros radicais russos com freqüência argumentavam em termos de
leis de Pitágoras que concorriam entre si — alguns enfatizando as “duas leis
de Pitágoras” que proibiam a propriedade privada e exigiam a posse comum;
outros enfatizando a “regra” segundo a qual as armas e a amizade podiam
tudo conquistar; outros insistindo na primazia da perfeição moral sobre a
reforma legal: “Não criem leis para o povo; criem um povo para as leis”.118
Um dos primeiros grupos a alimentar a Revolta Dezembrista de 1825 foi
o ainda misterioso Lâmpada Verde. Um de seus líderes escreveu para sua
organização um retrato utópico de São Petersburgo trezentos anos no futuro,
quando o tzarismo e a ortodoxia teriam, afinal, sido substituídos por formas
pitagóricas. Há um templo circular com um altar plano e branco, feito de
mármore, e um arco ao ar livre. A música é a única arte permitida. Uma
fênix segurando um ramo de oliveira substituiu a decapitada águia de duas
cabeças (as duas cabeças do selo imperial, que supostamente representavam
o despotismo e a superstição).119 Alexander Puchkin, o maior poeta russo,
referia-se à Lâmpada Verde como um círculo no qual a “amada igualdade
se sentava à mesa redonda trajando um barrete frigio”.120 Embora não tão
envolvido com círculos revolucionários ocultistas quanto o seu congênere
polonês, Adam Mickiewicz, Puchkin compartilhava com ele o fascínio pela
dedicação e sacrifício que pareciam poder ser encontrados somente em
um círculo mágico de jovens revolucionários. O “círculo” era, em suma, o
símbolo supremo do que uma canção maçônica russa da época chamava de

Aquelas verdades da santa lei


A ti dadas pela Geometria,121

117 G. Luciani, La Société des slaves units, 1823-1825, Bordeaux, 1963, p. 60. Essa obra complementa
o pouco imaginativo M. Nechkina, Obshchestvo soedinennykh slavian, 1927,
118 Druzhinin, Ocherki, p. 508, além de pp. 502, 509 ss.
119 A. Ulybyshev, Son (1819), escrito em francês, traduzido e publicado por B. Modzalevsky, “K istorii
‘zelenoi lampy’”, em Dekabristy i ikh uremia, 1927, vol. i, pp. 53-56; v. também pp. 41-42. Para um
estudo recente e bem detalhado, que diferencia esse escrito de outras utopias russas sem, no entanto,
avaliar suas fontes pitagóricas, ver a tese de doutorado inédita de D. Neuenschwander; “Themes
in russian utopian fiction: a study of the utopian works of M. M. Shcherbatov, A. Ulybyshev, F. V.
Bulgarin e V. F. Odoevskij”, Siracusa, 1974. V. também Lotman, “Dekabrist”, Nasledie, pp. 56-60.
120 Citado em Nechkina, Dvizhenie, vol. I, p. 246.
121 T. Sokolovskaia, “Masonskie kovry”, More, vol. vi, 1907, abr., p. 424. A maçonaria russa desenvolveu
no mínimo dois conjuntos de símbolos geométricos como equivalentes às letras do alfabeto. V.
186 A FÉ REVOl UCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O triângulo

Necessitados de alguma forma segura de recrutar aqueles que se situavam


fora dos círculos internos, os revolucionários se inspiraram em outro símbolo
pitagorico de grande importância: o triângulo. Se o círculo sugeria o objetivo
— a perfeição igualitária da natureza —, o triângulo sugeria o caminho para
alcançá-lo.
O triângulo, símbolo fundamental para todos os maçons, tinha para os
pitagóricos o sentido especial de ser o meio mais simples de encerrar uma su­
perfície com linhas retas. O triângulo expressava relações harmônicas (como a
do teorema de Pitágoras) e se tornaria um símbolo importante na iconografia
revolucionária. A tríada revolucionária (Liberdade, Igualdade, Fraternidade)
e a forma tricolor (vermelho, branco e azul) adornavam cada um dos lados
do onipresente triângulo em selos e estampas.
O ocultismo pitagorico acrescentou importância ao símbolo. O influente
livro de Franz von Baader de 1798, Sobre o quadrado pitagòrico na natureza,
sugeria que os três elementos da natureza — fogo, água e terra — tinham sido
energizados pelo “princípio que tudo anima” ou “ponto da aurora”, represen­
tado como um ponto no centro de um triângulo equilàtero y^.122 Qualquer
letra, símbolo ou máxima a que um grupo revolucionário quisesse prestar
especial veneração recebia esse lugar de autoridade oculta em um inevitável
selo triangular.123
Maréchal divulgou a idéia ocultista de harmonias triangulares em sua “carta
da raça humana” de 1793, anunciando o dever tripartite do homem de ser pai,
filho e marido como “estabelecido pela Natureza no homem”: “um triângulo

Sokolovskaia, “Masonskaia tainopis”, Russky Arkhiv, voi. ii, 1906, pp. 399-400.
122 E von Baader, Über das pythagoräische Quadrat in der Natur oder die vier Weltgegenden, Tübigen,
1798, em Sämtliche Werke, Aalen, 1963, vol. in, pp. 266-267; também p. 249. A influência de
Baader deu-se principalmente sobre a idéia conservadora de uma “Santa Aliança”, um triângulo de
poder no qual “três reis do Oriente” (um russo ortodoxo, um prussiano protestante e um austríaco
católico) eram unificados pelo Espírito Santo para proporcionar o “ponto de aurora” na Europa
pós-napoleônica. O livro de Baader, Über das durch die französische Revolution herbeigeführte
Bedürfniss einer neuern und innigem Verbindung der Religion mit der Politik, foi divulgado junto
aos três monarcas em 1814 e publicado em Nuremberga, em 1815. V. H. Schäder, Die dritte Koalition
und die Heilige Allianz, 1934, pp. 65-70; F. Büchler, Die geistige Wurzeln der Heiligen Allianz,
Freiburg, 1929, pp. 53-60, para essas e outras influências ocultistas alemãs.
123 Só em Le Mans, encontram-se selos triangulares de lojas que trazem a estrela do “triplo laço social”,
o olho da vigilância, o “E” de Elêusis e as palavras “Age d’Or” [Era de Ouro], que estão ilustrados
em A. Bouton, Les Francs-maçons manceaux et la révolution française, 1741-1815, Le Mans, 1958,
pp. 100, 252, 275,286.
S. Hutin discute o simbolismo revolucionário do triângulo equilàtero como um “delta luminoso”, com
cada um de seus lados a representar passado, presente e futuro: Les sociétés secrètes, 1970, p. 71.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 187

para além do qual ele não se atreverá a ir impunemente”.124 Essa idéia aparen­
temente tradicional é revalidada para o liberto “homem sem Deus” ao vê-lo
como uma espécie de trindade secular: três pessoas em uma única substância.
Maréchal freqüentemente colocava sua alcunha HSD dentro de um triângulo.
Os primeiros revolucionários, ao estabelecer suas organizações nucleares,
revelaram uma mania por triângulos. A idéia original dos Iluminados de um
círculo interno de nove homens foi logo descartada como suscetível demais à
penetração policial, de modo que projetos posteriores de reorganização reparti­
ram o círculo em três “triângulos” de três homens.125 Um homem de um grupo
interno recrutaria dois de um grupo externo para serem aprendizes; e assim
uma cadeia indefinida de organizações interconectadas podería ser formada.
Qualquer membro só precisava conhecer outros dois — de algum outro grupo
situado acima ou abaixo dele hierarquicamente — fora de sua célula de três.
Pode ser que esse processo de triangulação não tenha sido implementado
pelos Iluminados — ou sequer concebido por eles. Os projetos atribuídos aos
Iluminados foram publicados pelo governo da Baviera como parte de um re­
latório, e talvez tenham sido editados para parecerem mais incriminadores.126
Mas, tenha a direita inventado essa tática da esquerda ou apenas a divulgado,
ela foi logo adotada pelos círculos revolucionários. Essa forma triangular de
organização, íntima e relativamente segura, reapareceu nos tempos modernos:
no Vietnã, na Argélia e até na União Soviética.127 Pouco após sua chegada a

124 Maréchal, Correctif, pp. 313-314. Maréchal também insistia em que, nos casamentos republicanos,
se abençoasse a natalidade cantando em resposta à Marselhesa: “Aux armes, couple heureux,
comblez votre destinî/Neuf mois, neuf mois;/Et donnez nous un fier Républicain!’*. Recueil d'hymnes
républicains et de chansons guerrières et patriotiques, s/1., s/d., p. 19 (BH).
125 “Tenho diretamente sob mim dois nos quais sopro toda a minha alma, e esses dois têm cada um
outros dois, e assim por diante. Assim posso, de maneira muito simples, pôr milhares de pessoas em
movimento e em chamas. Assim a Ordem deve ser organizada e operar politicamente’*. Weishaupt,
Originalschriften des Illuminatenordens, Munique, 1787, voi. n, p. 32. O esquema que acompanha
o seu comentário é reproduzido, com uma discussão despropositada e sem referência alguma, em
Webster, Secret Societies, p. 224. Sobre a longa história do triângulo como símbolo religioso, v. G.
Stuhlfauth, Das dreieck. Die geschickte eines religiösen symbols, Stuttgart, 1937.
126 Como sugere R. Eckart, “Aus den Papieren eines Illuminaten”, em Forschungen zur kultur-und
literaturgeschichte Bayerns, vol. in, 1895, p. 208. O fascínio pelos múltiplos triângulos interligados na
maçonaria ocultista chegou a gerar debates especiosos, por exemplo sobre se o “G” dentro do triângulo
central de um símbolo (que incluía seis outros triângulos triplos) fazia referência ao Grande Arquiteto
do Universo (Deus [God]), à mais alta ciência da Geometria, ao deus hermafrodita dos gnósticos ou
a uma usurpação da maçonaria pelo superior [geral] da Ordem dos Jesuítas (a posição defendida por
Bonneville). V. E. Lesueur, La franc-maçonnerie artésienne au xviiie siècle, 1914, p. 205.
127 O modelo de célula de três homens é particularmente prezado pelos revolucionários que, assim como
os primeiros revolucionários europeus de início do século xix, viam-se como veículos da educação
bem como da mobilização de um povo. Esse modelo se tornou fundamental para o comunismo
vietnamita; e, levado para a Argélia, foi ilustrado em imagens com o filme A Batalha de Argel. O
188 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖR1A

Genebra em 1806, Buonarroti e seus amigos seguiram a dica. Seu programa


de 1808-1809 para os Sublimes Mestres Perfeitos estava repleto de símbolos
triangulares. O símbolo para cada célula era (^/?);128 e ° altar no santuário
para o qual cada novo membro era levado consistia apenas em um ponto no
vértice de um triângulo de relicários. Os outros dois pontos representavam o
oceano (da nova vida, o elemento água) e o vulcão (ou revolução, o elemento
terra).129 Na direção do leste, por trás do triângulo altar-oceano-vulcão, três
velas ficavam acesas num candelabro com o formato de um triângulo equilàtero
sob um semicírculo que significava o equador (que, por sua vez, significava o
giro circular do globo terrestre inteiro e a perfeição da eternidade).130
Os três homens que se viam diante dessa figura simbólica do universo
podem ter servido de modelo para a organização de Buonarroti em triunvi-
ratos. No centro desse triângulo humano que fitava os triângulos simbólicos
estava a Estrela Polar, líder das duas outras Grandes Estrelas. A Estrela Polar
era claramente aquela que guiava, e assim se tornou uma marca favorita dos
jornais revolucionários.
Adotando o nome de Camille, Buonarroti se juntou à loja maçônica mo­
deradamente republicana dos Amigos Sinceros, em Genebra, para recrutar
revolucionários. Ele estava, contudo, sob vigilância, e a loja foi infiltrada pela
polícia e fechada em 1811. Ele então tentou continuar a realizar seus encontros
em segredo, aparentemente reorganizando a loja, com participação expandida
de militares, sob o novo nome de Triângulo.131 Nada mais se sabe sobre essa
organização, mas o nome escolhido e as circunstâncias de perseguição política
podem indicar o início de organização triangular.
Esse sistema de células secretas interligadas aparentemente foi utilizado
pelo maior compio para matar um rei na Europa pós-napoleônica: a Conspi­
ração do Triângulo na Espanha em 1816.132 Assim como os companheiros de

sistema de células de três homens desconhecidos entre si reapareceu em meio a grupos de dissidentes
da União Soviética ao fim da década de 1960: P. Sormani, “Dissidence in Moscow”, Survey, 1971,
primavera, pp. 18-19.
128 Saitta, vol. n, pp. 79-80.
129 Esboço de reconstrução do interior do santuário em Radice, p. 76.
130 Saitta, vol. n, pp. 78-79.
131 Lehning, pp. 119-120, complementado por E Ruchon, Histoire de la franc-maçonnerie à Genève de
1736 à 1900, Genebra, 1935, pp. 99-120. G. Weill, valendo-se de um boletim policial, identificou
Buonarroti, Vilard e Terray de Lyon como o “triângulo” original: Revue Historique, vol. LXXVi,
1901, mai.-ago., p. 261.
132 Sobre a ainda misteriosa Conspiración del triângulo, v. E. Astur, Riego, Oviedo, 1933, p. 102. V. de
la Fuente, Historia de las sociedades secretas antiguas y modernas en Espana, Barcelona, 1933, pp.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 189

Buonarroti, os incansáveis jovens espanhóis estavam realizando a passagem


das conspirações contra Napoleão para um conceito mais amplo de combate
a monarcas de toda espécie. Os Sublimes Mestres Perfeitos devem ter visto
com simpatia, se é que não participaram dela, a tentativa de matar o rei res­
taurado Fernando vii, o qual havia rejeitado a Constituição liberal de 1812 e
reinstituído a inquisição.
Esse método triangular de organização permaneceu um meio básico de
garantir a segurança de conspirações ao longo da década de 1830; e foi levado
de volta para a Alemanha nos estatutos de 1836 da primeira organização re­
volucionária de emigrados alemães em Paris: a Liga dos Fora-da-Lei. Das suas
“tendas” locais até a “fogueira” central, essa progenitora da primeira Liga dos
Comunistas manteve vários níveis de organização ignorantes uns dos outros.
Cada homem de um vasto grupo formava um triângulo com um representante
secreto de outro grupo do seu mesmo nível e com um terceiro representante,
que se ligava a ambos e pertencia a um nível superior.133

A fantasia dos filadelfos


O novo revolucionário secular, em suma, encontrou um modelo em Pitágoras
(o intelectual voltado para a ação), um terreno no círculo (o microcosmo de
perfeição) e uma ferramenta de construção no triângulo (a unidade básica da
organização). Mas o que ele estava construindo? Qual o macrocosmo que a
próxima e última revolução revelaria?
A resposta era, de modo bem simples, a comunidade universal do amor
fraterno, que os revolucionários designavam pelo seu nome grego, Filadélfia.
O Círculo dos Filadelfos, concebido em 1797 e organizado alguns anos depois,
foi a primeira organização revolucionária importante a surgir na França após
o desbarate da conspiração de Babeuf. Resumia as conspirações ocultistas da
era napoleonica e antecipava os movimentos revolucionários mais amplos dos
anos 1810 e 1820.
O nome Filadélfia provia tanto a sanção de uma revelação como a promessa
de uma revolução. Duas cidades da antigüidade desaparecidas tinham se cha­
mado Filadélfia: uma na Terra Santa, perto de onde hoje fica Amã, a outra na
270-276, esp. p. 270 sobre a influência dos Iluminados; também M. LaFuente e J. Valera, Historia
general de Espana, Barcelona, 1889, vol. xviii, pp. 203-204; e F. Suárez, La crisis política dei antiguo
régimen en Espana (1800-1840), Madri, 1950, 2a ed., pp. 60—61.
133 Esse princípio pode ser deduzido dos estatutos descobertos nos arquivos de Merseberg na Alemanha
Oriental e reimpressos em Bund der Kommunisten, 1970, vol. il, pp. 975-982, esp. artigos 14, 52b,
23 e 33a, para os elos entre os graus ascendentes: Zelt/Lager/Kreislager/Brennpunkt.
190 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Ásia Menor, mencionada no livro do Apocalipse. Mas a palavra também sugeria


a idealizada “cidade interiorana verde” de William Penn na Pensilvânia, onde
se iniciou a revolução que fundou os Estados Unidos da América em 1776.
Nos anos que culminaram na Revolução Francesa, a palavra adquiriu outros
sentidos evocativos do profundo ocultismo do Velho Mundo e da contínua
agitação do Novo.
A palavra Filadélfia entrou na maçonaria francesa durante uma voga de
ocultismo de procedência alemã com a fundação do Rito Primitivo dos Fila-
delfos em Narbonne, em 1780.134 A ordem alemã da Estrita Observância, com
sua imagística cavalheiresca e seus ensinamentos herméticos, havia varrido a
França de Estrasburgo a Bordéus ao fim da década de 1770; e o Rito Escocês
Retificado, apadrinhado por alemães, estabeleceu-se em Lyon como a ordem
ocultista líder na França,135 fazendo com que os contemporâneos descrevessem os
lyonenses como “nossos alemães”, aos quais “a obscuridade não incomoda”.136
A tentativa do grupo de Narbonne de proclamar um rito primitivo foi leva­
da ainda mais longe, em Paris, na memorável loja proto-romântica das Nove

134 Lantoine, Histoire, p. 220; R. Gould, “Military Mansory”, Ars Quatuor Coronatorum, vol. xix,
1901, p. 45. Um grupo anterior de “filadelfos”, de procedência independente, também havia surgido
em meio a ocultistas alemães: seguidores de Jacob Böhme em Londres. V. N. Thune, The Behmenists
and the Philadelphians, Uppsala, 1948.
135 O Rito Escocês Retificado foi estabelecido na França por meio de duas conferências (em Lyon, em
1778, com o auxílio do clero luterano, e em Wihelmsbad, em 1782, com o patronato do Duque
de Brunswick), sob a liderança do místico Jean-Baptiste Willermoz. V. B. Guillemain, “La Franc-
maçonnerie comme utopie: J. B. Willermoz”, em Le Discours utopique, pp. 259-268; A. Joly, Un
mystique lyonnais et les secrets de la franc-maçonnerie. 1730—1824, Mâcon, 1938.
A melhor história do surgimento do ocultismo dentro da maçonaria francesa antes da Revolução
está em Chevallier, Histoire, vol. i, pp. 211-256. O ponto de partida decisivo foi a fundação, em
Paris, da Grande Oriente em 1773 e o decréscimo da dependência dos franceses frente à maçonaria
mais casual e filantrópica de origem inglesa e que foi limitada a três graus. A proliferação dos graus
mais altos se iniciou com o sistema rival da maçonaria “escocesa”. O influxo na França de ocultismo
alemão — um assunto surpreendentemente negligenciado na literatura histórica francocêntrica —
com freqüência se deu dentro dos 33 graus do Rito Escocês.
136 E. Faguet, citado em J. Triomphe, Joseph de Maistre. Étude sur la vie et sur la doctrine d’un matérialiste
mystique, Genebra, 1968, p. 494, nota 22. Essa biografia vai além de todos os outros estudos sobre o
futuro reacionário ultramontanista que começou como um partidário da maçonaria de Rito Escocês,
quando este foi importado da Alemanha para a França, e que escreveu uma história da maçonaria
para o Duque de Brunswick, à época do congresso em Wihelmsbad: reimpressa em E. Dermanghem
(ed.), La franc-maçonnerie. Mémoire inédit au duc de Brunswick (1782), 1925. Sobre a difusão, de
maneira mais geral, de idéias místicas em Lyon, v. J. Buche, L'École mystique de Lyon. 1776-1847,
1935.
Um epiteto bastante apreciado em meio ao lyonenses era o de “amigo da verdade”; um grupo mais
secular de ocultistas em Avignon usava de sua forma grega, Philalèthes', e estes últimos podem ter
originado os filadelfos de Narbonne. Veja-se o esquecido estudo sobre o chefe dos Philalèthes, o polonês
Conde de Grabianka, escrito por J. Ujejski, Król nowego Izraela, Varsóvia, 1924; e a abordagem mais
geral e de âmbito europeu do grupo como uma “internacional mística” em C. Garrett, Respectable
folly, millenarians and the French Revolution in France and England, Baltimore, 1975.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 191

Irmãs. As influências alemãs também predominavam no fundador da loja, um


pastor protestante suíço, Court de Gébelin. De sua primeira ida de Berna a
Paris, em 1763, até sua morte numa tina de banho magnético em 1784, Court
precedeu Herder na glorificação da língua alemã e na busca dos segredos da
natureza nos sons da língua primitiva.137 Em 1773, ele publicou o primeiro de
nove volumes de um inventário megalômano de sons, sinais e símbolos: Monde
primitif analysé et comparé avec le monde moderne. Pela altura do terceiro
volume, eie passa a se deslocar do lamento sobre a felicidade humana perdida
à afirmação de que a unidade “entre as nações” poderia ser redescoberta por
meio de uma linguagem primordial na qual vogais são sensações; consoantes,
idéias; e toda a escrita, hieroglífica.138 No dia 5 de julho de 1776, ele fundou a
loja radical e ocultista das Nove Irmãs, que se tornou uma espécie de “unesco
do século xviii”, em dois anos atraindo 180 membros, dos quais 40 eram
estrangeiros.139 Ler o Monde primitif de Court se tornou parte do seu ritual;
e já no oitavo volume Court advogava “uma ordem política única [...] uma
gramática única de física e moralidade [...] uma religião eterna e imutável que
cria a perfeição no homem”. Ele preferia as “coisas” às “palavras” — isto é,
reforma social radical.140
O ocultismo do Velho Mundo se mesclou com o revolucionarismo do Novo
através de dois dos mais próximos colaboradores de Court em Paris: Benjamin
Franklin e M. L. E. Moreau de Saint-Mery. Franklin, que chegou a Paris vinda
da Filadélfia real logo antes do Natal no ano revolucionário de 1776, foi inicia­
do por Court na Nove Irmãs, tornou-se seu Venerável Mestre141 e colaborou,
junto a Court, na coleção de miscelânea política da loja, a qual se estendia por
quinze volumes. A Nove Irmãs posteriormente fez imprimir as constituições de

137 P. Schmidt, Court de Gébelin à Paris (1763—1784), Genebra, 1908, de forma alguma esgota o assunto.
Court foi um partidário parisiense da Reforma alemã, que ele considerava a primeira interrupção do
regime tirânico desde Nabucodonosor; e foi o primeiro francês a discutir as idéias artísticas proto-
românticas de Johann Winckelmann (Monde primitif analysé et comparé avec le monde moderne,
1775, vol. ni, p. 18). O fascínio de Court pela linguagem precedeu a busca similar de Herder pela
Ursprache [proto-lingua] do homem primitivo, o qual também foi influenciado pelo ocultismo: v.
R. Unger, Herder und der Palingenesiegedanke, Frankfurt, 1922.
138 Court de Gébelin, Monde, vol. in, pp. 284-285,450. Havia acréscimos extensos nos títulos de cada
um dos nove volumes que foram publicados em 1773-1784. A segunda edição de 1787-1789 foi a
maior, e foi geralmente esta que se estudou durante a revolução.
139 N. Hans, “Unesco of the Eighteenth Century. La Loge des Neufs Soeurs and Its Venerable Mastei;
Benjamin Franklin”, Proceedings of the American Philosophical Society, vol. xcvn, 30 de outubro
1953, pp. 515—516. Hans estima que no periodo de 1776—1792 o número de membros subia a 400.
Os registros da organização foram destruídos pela Gestapo na Segunda Guerra Mundial.
140 Monde, vol. vin, pp. 17-20.
141 Schmdt, Court, p. 153.
192 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

todos os trinta estados norte-americanos e se tornou, com efeito, “a primeira


escola de constitucionalismo que jamais existira na Europa”.142
Moreau de Saint-Mery, que foi secretário do braço educacional da Nove
Irmãs, cruzou o Atlântico para transmitir ao Cabo Haitiano a fé mágica no
poder transformador da ciência que rivalizava com a fé no vodu dos nativos
oprimidos. Em 1784, Moreau e seu cunhado fundaram o Círculo dos Filadel-
fos, louvando a cidade de Franklin (“destinada a se tornar a metrópole de um
grande Império”) e desatrelando o seu círculo de todas as sociedades literárias
tradicionais ou acadêmicas. Utilizavam-se da linguagem da maçonaria ocultista
ao se referir ao “último grau de perfeição” e à restauração da “antiga cavala­
ria” (chevalerie) “para revelar a verdade”.143 Os Filadelfos reivindicavam uma
identidade secular radical como uma “pequena sociedade ideal, a imagem de
uma futura grande sociedade” com “perfeita igualdade [...] sem hierarquia,
sem precedência” e um comprometimento com a educação cívica e o avanço
dos crioulos nativos.144
Nos círculos ocultistas dessa colônia exuberante era fácil defender, com
algum ar de superioridade, que “a França precisa de uma revolução, mas
[...] ela deve vir envolvida em mistério”.145 Os Filadelfos se tornaram líderes
revolucionários no Cabo Haitiano no período de 1789 a 1791, antes que
os negros se insurgissem em julho de 1791 e outros colonialistas brancos se
voltassem contra eles. Depois se lembrariam que “bebemos da taça inebriante
da novidade sem nos apercebermos de que esta continha o veneno que nos
destruiría os intestinos”.146
142 D. Hill, “A Missing Chapter of Franco-American History”, American Historical Review, v. xxi,
1916, jul., p. 714. V. também Affaires de l’Anglaterre et de l’Amérique, 1776-1778, 15 v.
143 B. Maurel, “Une société de pensée à Saint-Domingue. Le cercle des philadelphes de Cap-Français”,
Franco-American Review, 1938, inverno, pp. 143-167. M. Arthaud, Discours prononcé à l’ouverture
de la première séance publique du cercle des philadelphes, tenue ao Cap-François la 11 mai 1785,
1785, pp. 2-3,9. YU, Coleção Franklin. Ver também o esboço bibliográfico de Moreau de Saint-Mery
na introdução de seu Description... de la partie française del’lsle Saint-Domingue, 1958, pp. 6-36.
Moreau e Arthaud eram casados com duas irmãs francesas oriundas da Luisiana. Não consegui
encontrar em livraria alguma dos Estados Unidos, da Europa ocidental ou das índias Ocidentais
uma obra mencionada em L. Pingaud: A. Salles, Le Cercle des philadelphes du Cap-Français, Santo
Domingo, 1784. Outro canal direto entre a “Nove Irmãs” e outras ordens ocultistas e os filadelfos
era Bacon de la Chevalerie. V. Maurel, Saint-Domingue et la Révolution Française, 1943, pp. 27-32.
144 Maurel, “Société”, p. 156; Arthaud, pp. 18—19, 43 ss. Pode-se perceber uma possível influência dos
Iluminados no seu desejo de regular toda a conduta social através da “vontade geral do círculo” e
no seu uso de uma colméia com abelhas a enxamear ao redor como um símbolo. Maurel, p. 149.
O Cabo Haitiano também foi o centro da maçonaria de Rito Escocês e proporcionou a Paris não
apenas organizadores militantes, como Fournier l’Américain, mas também o primeiro teórico dos
atos revolucionários de denúncia e expurgo, François Boissel, autor de Catecismo da raça humana,
de 1789. Ioannisian, Idei, pp. 250-251.
145 Maurel, “Société”, pp. 250-251.
146 Maurel, p. 167; também pp. 163-164, e C. James, The black jacobins, 2a ed., NY, 1963, p. 85 ss.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 193

Brissot, que em Paris era próximo do crioulo Miranda e de outros ligados


aos Filadelfos no Haiti, foi acusado de “tentar transformar Paris em uma
nova Filadélfia”;147 o hotel perto do Palais-Royal onde os líderes parisienses
se encontravam com ingleses, irlandeses e norte-americanos amigos da Revo­
lução Francesa, foi apelidado de Hotel de Philadephie; e tanto na Alemanha
como na Polônia a palavra mágica foi utilizada para sugerir internacionalismo
subversivo.148
Cloots, o colaborador mais próximo de Court, tinha já em 1781 previsto
que a Nove Irmãs criaria “cidadãos do mundo” através da formação de “um
imenso círculo cujo centro está em Paris, mas cujos raios penetram em toda
parte”.149 Em sua última obra, de 1793, ele previu um futuro no qual a França
terá se tornado “uma cidade fraterna, a cidade de Filadélfia, cuja circunferên­
cia necessariamente abarca o universo inteiro, toda a família humana {famille
antropique). A unidade nacional e soberana será expressada por uma única
palavra: Filadélfia”.
Assim, Filadélfia se tornou o nome de uma república verdadeiramente
universal cujo centro está em Paris. Assim como a Assembléia Nacional se
tornara “o sumário do mapa-múndi (mappemonde) dos filantropos”, assim
também “a comuna de Paris será o ponto de encontro e a chaminé central da
comunidade universal”.

A Europa, a África, a Ásia e a América irão se consagrar à vasta e afortunada cidade


da FILADÉLFIA.150

O ideal romântico de Court de recuperar o monde primitif encontrou sua


expressão revolucionária final nas Viagens de Pitágoras de Maréchal. Já em
1779, Maréchal idealizara a ilha de sepultamento de Rousseau como l’habitat
de Philadelphie.151 Agora, vinte anos depois, esse protegido de Court invocava
a palavra monde, sem que fosse precedida de artigo, para descrever não apenas
um microcosmo de perfeição pastoral, e sim uma fraternidade especial para
perpetuar o legado de Pitágoras e revolucionar o mundo. Ao fim de suas via­
gens, o moribundo Pitágoras de Maréchal incita seus seguidores: “Acordemos
entre nós chamar monde, isto é, uma obra-prima de harmonia e perfeição,
147 E. Philips, “Pennsylvanie, l’âge d’or”, American Historical Review, 1930, out., p. 13, além de p. 2;
e Mathiez, Étrangers, p. 62.
148 Ibid., p. 37; Stettiner, Tugendbund, p. 5; Landa, “Konspiracje”, p. 250, e “Istokov”, p. 26.
149 H. Baulig, “Anacharsis Cloots avant la revolution”, La Révolution Française, 1901, ago,, p. 154.
150 Cloots, La République universelle ou adresse aux tyrannicides, 1793, pp. 162-163.
151 Maréchal, Tombeau, p. 4.
194 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORKÆM E HISTÓRIA

o que outros homens chamam universo, céu, globo. Que nossa escola, nossa
família adotiva, seja para nós um pequeno mundo (monde) tão harmonioso
quanto o grande mundo!”.152
Maréchal pode ter sido a fonte do termo monde, que Buonarroti por fim
estabeleceu para a sua própria organização.153 Mas os Filadelfos foram os
primeiros a realizar a visão de Maréchal; e sua história é melhor contada
através da figura excêntrica do seu fundador, Charles Nodier: o último dos
ocultistas germanófilos e literários a desempenhar papel pioneiro na forma da
organização revolucionária.

O pentágono de Nodier

Mais um modelo geométrico para a organização revolucionária foi sugerido


pelo símbolo ocultista do amor universal da humanidade: o pentágono. Esse
objeto de cinco lados proporcionou a imagem de células de cinco homens à
primeira organização de oposição a surgir dentro do exército de Napoleão —
o que afinal eram os filadelfos.
Seu projeto de organização foi concebido em 1797 por Nodier, exilado da
Paris da época do Diretório em sua cidade natal, Besançon, que ele renomeou
“Filadélfia”. Seu projeto levava às raias da mania o fascínio pitagorico pelo
número 5. Cinco é um número situado ao meio entre um e nove, e é ainda
a figura mística que surge quando esses e os números ímpares intervenientes
entre um extremo e outro são somados e divididos pelo número de dígitos.154
O número adquiriu significância revolucionária no novo calendário, que tinha
cinco dias especiais (os sansculottides) colocados à parte dos doze meses para
que, durante eles, se fizessem celebrações, e especialmente sob o novo Diretório
de cinco homens, que substituira os “apostólicos” doze homens do Comitê de
Salvação Pública como braço executivo da revolução.
No projeto de Nodier, os filadelfos figuram como guardiões da pureza festiva
para os sansculottides e como um potencial anti-diretório. O pentágono era

152 Marechal, Voyages, vol. v, p. 354. Sua bibliografia se inicia (p. 367) enfatizando que philosophie et
monde, são duas “felizes expressões” que Pitágoras legou à humanidade.
153 O termo é empregado em uma proclamação de Isambert datada de 1820 {Charbonnerie,p. 94; texto
em Saitta, vol. ii, p. 138), embora a maior parte das autoridades no assunto acompanhem Saitta ao
datar a designação formal da organização buonarrotiana central como monde em torno de 1828.
Ninguém jamais propôs qualquer teoria, em toda a rica literatura sobre essas organizações, sobre
a origem do termo — que dirá então discutir possíveis empréstimos do monde de Maréchal ou do
monde primitif de Court.
154 Delatte, Constitution, pp. 15-17.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 195

o seu signo de amizade e reconhecimento; o seu selo era uma estrela de cinco
pontas com o número cinco gravado nela. As iniciações deviam acontecer às
cinco horas da tarde no quinto dia do mês, quando então os membros deveriam
encarar o sol poente — não importa onde estivessem — por cinco minutos,
a fim de renovar seus votos de fidelidade à irmandade. O poder de revisar os
estatutos era confiado aos “cinco irmãos mais velhos”.155
O modelo de célula com cinco membros surgiu, ao longo de período breve,
ao mesmo tempo na Irlanda,156 na Itália157 e na Polônia,158 e se tornou o tipo
de unidade revolucionária mais comum na França, a começar por um comitê
diretor e uma rede de brigadas de cinco homens que vieram a ser formados

155 Texto do seu Règlement de la Société des Philadelphes, 25 de novembro de 1797, presente em
Pingaud, Jeunesse, pp. 231-234, esp. artigos 5, 13-16, 22-23, 25. A estrela de cinco pontas foi
símbolo também das “Brigadas Vermelhas”, grupo terrorista italiano da década de 1970.
156 Os Irlandeses Unidos, organização fundada em 1791 para estabelecer contatos com a Revolução
Francesa, reunia católicos e protestantes submetidos a um centro secreto composto de cinco
homens, o qual buscava agir por meio de análogos comitês subordinados. A biografia clássica do
seu líder supõe “uma conexão próxima entre a maçonaria e os Irlandeses Unidos”, afirmando que
“um grande número de lojas maçônicas eram na prática comitês revolucionários” (F. MacDermot,
Theobald Wolfe Tone, 1, 1938, p. 89). Frost insiste em que “sempre houve bem poucos elementos
maçônicos” nos Irlandeses Unidos, mas que sua reorganização em 1795 criou um “sistema que
muito se assemelhava ao dos Illuminatti” (Societies, vol. i, pp. 62, 60). Segundo um ex-oficial de
polícia da Irlanda, houve extenso impacto dos Iluminados na organização (afirmação em grande
medida baseada em um panfleto de R. Clifford a que se dá pouca atenção, The Application of
Barruel’s Memoirs of Jacobinism to the Secret Societies of Ireland and Great Britain, L/Dublin,
1798), conforme relatado em H. Pollard, The Secret Societies of Ireland. Their Rise and Progress,
L, 1922. Veja-se especialmente o Apêndice A, “Illuminism and the United Irishmen”, pp. 257-263.
Nenhum desses estudos oferece documentação alguma.
Após a supressão dos Irlandeses Unidos em 1797-1798 e o ato de União com a Inglaterra em 1801,
os revolucionários irlandeses gradualmente se reorganizaram sob uma mais centrada Sociedade
Católica da Fita [Catholic Ribbon Society], cuja hierarquia em 1805 revelou haver um mestre
com cinco seguidores próximos, cada um dos quais com doze irmãos subordinados (E. Lennhof,
Histoire des sociétés secretes au xixe et xxe siècles, 1934, pp. 139-142). Esse modelo “apostólico”
de unidades de doze homens tendeu a prevalecer na Irlanda católica sobre o modelo pitagòrico.
Com efeito, os Irlandeses Unidos também se valeram de unidades de doze (T. Williams (ed.), Secret
Societies in Ireland, NY/Dublin, 1973, p. 63).
Ao que parece, técnicas irlandesas influenciaram outras comunidades religiosas de zona rural da
Sicilia, da Península Ibérica e da América Latina, onde soldados irlandeses às vezes se estabeleciam
(amiúde depois de servirem nos exércitos anti-napoleônicos patrocinados pela Inglaterra). Esse
assunto nunca foi objeto de estudo detalhado. Ver a respeito, contudo, F. Melgar, O’Donnell, Madri,
1946, pp. 7-20; S. Clissold, Bernardo O’Higgins and the Independence of Chile, NY/Washington,
1969, pp. 11-16, 63.
157 O grupo babeuvista da “Liga Negra”, ativo na Itália durante 1798-1799, estruturava-se em comitês
de cinco homens “dos mais puros” em cada grande cidade, mas também possuía um comitê executivo
composto de quatro e um comitê superior composto de oito homens, os quais somados totalizavam
apostólicos doze membros: Godechot, “Unité”, p. 278 ss.
158 Cf. a figura geométrica que toma ambos os lados de um panfleto que anunciava uma organização
conspiradora na Polônia quando do governo de Gorzkowski em 1796-1797, em especial a figura
que descreve um quadrado de 25 pequenos círculos que encerravam conjuntos de números primos
organizados na forma de círculos similares, figura tal qual reimpressa em Miller, “ Vozzvanie”, verso
da p. 370. V. comentários às pp. 369-375.
196 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

pela organização estudantil Amigos da Verdade,159 de 1819. A unidade se-


mimilitar de cinco homens prevaleceu nas organizações conspiratórias de
Blanqui e no primeiro grupo que chamou a si próprio de “comunista”, o
Travailleurs-Égalitaires [Trabalhadores-Igualitários] de Paris, em 1840.160
A unidade quintupla se revestiu ainda de maior mística no Oriente. Os
Dezembristas russos reivindicariam comitês dirigentes de cinco membros
tanto no executivo quanto no legislativo de um governo pós-revolucioná-
rio,161 e acrescentaram um sentido martirológico ao número quando os seus
cinco líderes foram executados no início de 1826. O conceito de uma rede
de extensão nacional de células de cinco indivíduos, controlada por um
“cinco” central, seria resgatado pela organização Terra e Liberdade do início
da década de I860162 e uma década depois dramatizado em Os demônios.
de Dostoiévski. A idéia era alcançar os eslavos do oeste e do sul por meio
de uma série de organizações que viam os usuais quatro membros de cada
célula como os “dedos” de uma única mão, com um único líder (“o pole­
gar”) a servir de elo exclusivo com o nível superior seguinte.163 Essa imagem
compareceria no nome da “Mão Negra”, organização revolucionária de
eslavos sulistas, que, ao perpetrar o assassinato do Arquiduque Habsburgo
em 1914, deflagraria Primeira Guerra Mundial, que por sua vez faria nascer
a Revolução de Outubro na Rússia.

159 B. Pance, “Les Étudiants sous la restauration”, em Paris révolutionnaire, 1848, esp. pp. 267-268.
160 C. Johnson, Utopian communism in France. Cabet and the Icarians, 1839-1851, Ithaca/L, 1974,
pp. 74-75.
161 Segundo o piano de P. Pestel’, líder de um grupo mais extremista, a Sociedade Sulista, e profundo
estudioso de saberes maçônicos e pitagóricos: Vosstanie dekabristov, vol. v, p. 32.
162 Land e Liberty propuseram uma rede controlada por um “5” que incluía Chernyshevsky (v. Ya.
Linkov, Revoliutsionnaia bor’ba A. I. Gertsena i N. P. Ogareva i tainoe obshchestvo "zemlia i volta”
1860-kh godov, 1964, p. 242; E. Vilenskaia, Revoliutsionnoe podpoPe v Rossii [60-e xix v.], 1965,
p. 149; e A. Yarmolinsky, Road to Revolution, NY, 1959, p. 125).
A idéia de grupos de 5 provavelmente se originou junto a grupos de emigrados russos em Londres,
que por sua vez provavelmente a tinham tomado de empréstimo de Mazzini (F. Venturi, Roots of
Revolution, NY, 1960, pp. 267, 760-761, notas 37-39). A única fonte possível para essa transmissão
é A. Sleptsov, o principal canal de transmissão de idéias entre Londres e São Petersburgo (v. memórias
de Sleptsov em N. G. Chernyshevsky, issledovaniia i materialy, Saratov, 1962, esp. pp. 266-268).
Linkov (pp. 166-167, 242) segue a prática soviética usual de minimizar influência estrangeiras.
163 Os revolucionários eslavos do sul formaram a organização anti-turca Omladina com uma rede de
células que tinha por eixo uma junta diretora “honorária” de cinco homens (Garibaldi, Mazzini,
Cobden, Herzen e Chernyshevsky), e o revolucionário russo Ivan Bochkarev estabeleceu conexões ao
organizar os estudantes sérvios em São Petersburgo, em seguida viajando a Belgrado para participar
de um encontro da Omladina (Venturi, pp. 352-353). Uma organização posterior de mesmo nome
(a efêmera Omladina tcheca dos anos 1890) desenvolveu a metáfora da mão. V. A. Vesely, Omladina
a pokrokové hnutí, Praga, 1902, pp. 167-173; G. Simmel, “The Sociology of Secrecy and of Secret
Societies”, American journal of Sociology, 1906, jan., pp. 478-479.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 197

Os filadelfos originais jamais alcançaram tamanha proeminência, e a visão


de Nodier de um exército secretamente transformado, desde dentro, em uma
irmandade revolucionária de células quintuplas nunca chegou a se desenvolver.
Mas uma organização emergiu gradualmente, com efeito, e se envolveu em
planos anti-napoleônicos por meio da figura excêntrica de Charles Nodier. Sua
carreira se estendeu de cafés parisienses a exércitos revolucionários, e destes
à arena popular — e daí ao jornalismo em Liubliana, chegando a visitar a
Rússia no momento mesmo em que as primeiras sociedades revolucionárias
se formavam lá.164 Tendo tido ou não alguma influência no Oriente, ele, de
todo modo, antecipou o tipo oriental de intelectual revolucionário alienado.
A vivida imaginação de Nodier foi moldada pela revolução da época, em
1790, quando, criança de dez anos de idade, liderou uma delegação de “enfants
de la patrie” na saudação aos delegados que retornavam à sua nativa Besançon,
de retorno da Festa da Federação em Paris. Nessa ocasião, o jovem Charles
segurou uma faixa que mostrava uma águia com uma bandeira tricolor em seu
bico,165 à frente de 200 criancinhas vestidas de branco. Assim como Robespier­
re, ele foi muito influenciado pelo pai maçom, que era o principal orador da
loja de Besançon “União Perfeita”.166 Ele foi com o pai para Paris; e, aos doze
anos, no dia de Ano Novo de 1793, leu um poema que conclamava à “punição
dos traidores por meio do punhal republicano”.167 Escreveu paródias do Pai
Nosso (“Pai Nosso que estais no Inferno...”) e do Credo: “Creio em Sieyès,
pai todo-poderoso, e em Robespierre, seu amado filho, que sofreu no dia nove
do Termidor, foi guilhotinado, morto e sepultado [...]”.168
Encantou-se com a literatura romântica alemã e com Eulogius Schneider,
seu tutor em Estrasburgo, onde foi preso por Saint-Just em 1794.169 Ao
164 Sua visita a Odessa nunca recebeu estudo além dos breves comentários em Pingaud, Jeunesse, p.
122 ss. A substancial literatura sobre Nodier (assim como o único estudo sobre Bonneville feito por
Harivel) se preocupa mais com assuntos estritamente literários, como sua invenção do melodrama e
sua influência sobre Victor Hugo e os primeiros românticos. V. J. Larat, La tradition et l’exoticisme
dans l'oeuvre de Charles Nodier (1780-1844). Étude sur les origines du romantisme français, 1923;
e A. Olivet, Charles Nodier, Pilot of Romanticism, Siracusa, 1964. Existem estudos bibliográficos
feitos por Larat (1923), E. Bender (Lafayette, Indiana, 1969) e S. Bell (Chapel Hill, 1971). É frustrante
que haja muito pouco sobre sua atividade de jornalista em Ljubljana em R. Maixner, Charles Nodier
et l'Illyrie, 1960. M. Salomon, Charles Nodier et le groupe romantique, 1908, ainda é um estudo
estimulante, assim como o é M. Hamenachem, Charles Nodier. Essai sur l'imagination mythique,
1972. Ver especialmente “les attraits du cercle”, pp. 65-81.
165 Pingaud, Jeunesse, pp. 15-19.
166 Hamenachem, Nodier, p. 76, nota 8.
167 Texto presente em Annales Révolutionnaires, vol. ix, 1916, p. 117.
168 Citado em P. Minet, Souvenirs de la révolution et de l'empire de Charles Nodier, 13 e 14 de julho
de 1966 (manuscritos de uma transmissão de rádio, em BA, Fol. z.1478).
169 Salomon, pp. 16-18.
198 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

retornar a Paris, à medida que a revolução se encaminhava para a direita,


abrigou-se na escrita de fantasias, freqüentemente sob influência do ópio,
em relacionamentos eróticos com homens jovens e na contemplação do sui­
cídio.170 Passou a dar atenção à revolução quando assistiu ao julgamento do
grupo babeuvista iniciado em fevereiro de 1797. O dramaturgo que havia
nele ficou particularmente tocado pela figura de Buonarroti, calmo durante
o interrogatório e com a esposa fiel ao seu lado.171
Com seus 18 anos, o jovem Nodier, com as fronteiras entre fato e fantasia
inteiramente apagadas em sua mente, retornou em 1797 para sua Besançon
natal e lá elaborou as suas Regas dos Filadelfos. É quase certo que lá iniciou
sua colaboração com outro líder dos filadelfos, Jacques Rigomer-Bazin, um
jornalista radical de Le Mans que participara da conspiração de Babeuf e
fora exilado em Jura quase ao mesmo tempo que Nodier.172
O grupo de discussão de Nodier no Café Marrulier, em Besançon, e sua
sociedade posterior de Méditateurs trajados de túnicas brancas, que se reu­
niam num monastério abandonado perto de Passy, eram grupos literários
ocultistas em que predominava a influência de Bonneville e do romantismo
alemão.173 Influenciados pelas traduções de Schiller feitas por Bonneville,
Nodier e Bazin inventaram um novo gênero dramático — o melodrama —
e lentamente puseram em prática o projeto de organização ocultista dos
filadelfos. Nodier foi preso em 1799; Bazin, posto sob vigilância depois da
primeira tentativa de assassinato de Napoleão, em 1800; e Nodier novamente
preso em 1803 quando um jornal inglês o revelou como autor de um poema
anti-napoleônico, La Napoléone.

170 Mathiez, “Charles Nodier opiomane et épileptique”, Annales Révolutionnaires, vol. x, 1918, pp.
403-405; Biographie des suicides, 1808; Pingaud, p. 49.
Sobre seu amor pelo “teatro de fantasmas” e a sugestão de que este realiza a ressurreição de Mirabeau,
V. P. de la Vassière, “Charles Nodier conspirateur”, Le corréspondant, 25 de outubro de 1896, pp.
291-294, baseado em urna carta à sua irmã, ao que parece datada de 1802.
171 P. Shchegolev, “Filipp Buonarroti i ego kniga ‘Zagovor ravnykh’”, Leningradsky Universitet. Uchenye
zapiski. seriia istoricheskikh nauk, vol. lu, 1940, pp. 239-240.
172 Assim como Nodier, Bazin primeiro achou inspiração ao participar da Festa da Federação em 1790.
A única discussão séria sobre essa prolífica e esquecida figura está em A. Bouton, Francs-maçons,
pp. 212, 267-274.
173 Vassière, p. 295; Minet, p. 14; Viatte, Sources, vol. ii, p. 161; e A. Lebois, “Un Bréviaire du
compagnonnage: Le Fée aux Miettes de Charles Nodier”, Archives des lettres modernes, 1961, n°
40, p. 226. Nodier saudou Bonneville como seu “Colombo”, “o coração mais simples e exaltado
que jamais conheci em minha vida”, “o Isaias da Maçonaria”. Roberts, Mythology, p. 272, nota
60; Cros, Fauchet, p. 26; também Salomon, pp. 264-265; Hamenachem, p. 10.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 199

A primeira organização real parece ter sido a Conspiração da Aliança,


formada em oposição à coroação de Napoleão como imperador pelo papa
na Catedral de Notre Dame, em 2 de dezembro de 1804. O grupo chegara a
cogitar um seqüestro de Napoleão quando ele passasse por Jura, a caminho
de Milão, para receber a coroa da Itália em março de 1805.174
Algo do projeto filadelfo original de Nodier — pelo menos o seu núcleo
básico de cinco membros mais internos — foi posto em prática em Besançon,
ou em suas redondezas, à época do império. O ingrediente principal era a
participação de dois líderes militares de Jura: General Malet e Coronel Oudet.
Malet se tornou o principal ativista anti-napoleônico dentro do exército
francês até sua execução após o levante de 1812. Oudet foi o herói romântico
do primeiro desses levantes malogrados, antes de morrer sob circunstâncias
misteriosas logo após a Batalha de Wagram em 1809.
Oudet era o líder carismático pelo qual há muito ansiava o grupo he­
terogêneo que Nodier formara de intelectuais auto-indulgentes, mas ima­
ginativos.175 Ele lhes atraía com sua bela figura de jovem homem de ação.
Conservador por temperamento e cheio de cicatrizes deixadas pelos duelos
de sua juventude, Oudet fascinou Nodier e Bazin como uma versão real
dos heróis que eles haviam criado em seus melodramas. Nodier relacionou
Oudet com o herói da Conspiração de Fiesco de Schiller;176 e via Oudet como
uma espécie de anti-napoleão — uma figura que, assim como Napoleão, era
maior que a própria vida e movido mais pela nobreza da luta do que por
clareza de convicções. Oudet foi aparentemente convertido em conspirador
revolucionário no período de 1801-1802, quando servia como comandante
militar nas ilhas de Ré e Oléron, onde Buonarroti e outros estavam presos.

174 Salomon, pp. 60-61.


175 Nodier descreveu o grupo como composto de “românticos da época, uma espécie de pária literário
sem nenhum bandeira, nenhum chefe, nenhum jornal”; Souvenirs etportrais de la révolution* 1841,
3a ed., pp. 322-325. Um projeto de uma organização de frères voyageurs foi encontrado na casa de
Bazin quando o prenderam: Baylot, Voie* p. 77, nota 9.
176 V. Lombard de Langrès, Histoire des sociétés secrètes de l'armée et des conspirations militaires qui
ont eu pour objet la destruction du gouvernement de Bonaparte* 1815, p. 25. Bouton liga essa obra,
que às vezes é atribuída a Nodier ou Bazin, a Lombard. V. Francs-maçons* p. 267, nota 9.
As conspirações modernas advém de um fascínio pela conspiração republicana genovesa de Fiesco
contra Carlos v. Esse compio anti-Habsburgo do século xvi foi em parte auxiliado pela França,
e depois veio a inspirar um tratado teórico do então com 18 anos Cardeal de Retz (Conjuration
de Fiesque, 1632) e um melodrama pioneiro do jovem Schiller (Die Verschwörung des Fiesco*
1782-1783). O ímpeto de luta está dado já no título da obra de Bazin, Jacqueline d’Olzebourg.
Mélodrama en 3 actes* orné de pantomime, danses et combats, 1803; e ele morreu em um duelo
defendendo sua honra após uma representação da peça.
200 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Tenha ou não sido doutrinado pelos seus prisioneiros,177 juntou-se à causa


do General Malet, achando inspiração para sua atividade republicana re­
volucionária contra Napoleão, no levante contra-revolucionário prévio na
Vendéia. Eles “professavam uma admiração levada às raias do entusiasmo
pelos vendeienses”, contrastando sua fidelidade enraizada na terra à fuga
covarde dos aristocratas emigrados. Malet parecia até invejar os “Felizes
Bourbons”, cuja dinastia tinha sido mais uma vez legitimada pela “devoção
da Vendéia”.178 Nodier observou uma afinidade de espírito entre os extremos
da esquerda e da direita: “Durante a revolução, o jacobinismo e a Vendéia
proporcionaram toda a elevação moral que existia na França”.179
Para a imaginação romântica, “elevação moral” era mais importante que
um objetivo político claro. O que havia de mais detestável era o juste milieu
[meio-termo]: a política venal, parcial, baseada em interesses mesquinhos,
não em nobres metas.
Um único herói de melodrama que liderasse uma organização simples —
essa, a fantasia dos filadelfos: a simplificação radical e sublime que levaria
à revolução. A tarefa de Nodier era descobrir uma linguagem perdida para
o reino vindouro do amor fraternal: uma forma de linguagem digna de Ou-
det, o líder que o deixara sem palavras.180 Assim, ao mesmo tempo em que
a conspiração dos filadelfos tomava forma, em 1808, Nodier divulgava os
“idiomas primitivos” do homem natural em seu Dicionário de onomatopéias
e em sua Teoria das linguagens primitivas-^ e ainda extraía 283 pensamentos
das Viagens de Maréchal em sua Apoteose de Pitágoras, Admoestações de
Pitágoras^ em edição limitada com inscrições pseudo-antigas.181 A cidade de
publicação, sua nativa Besançon, não era mais referida como Filadélfia, mas
como Crotona, a cidade onde a ativa irmandade de Pitágoras fora fundada.

177 Essa possibilidade é sugerida pela discussão presente em Tugan-Baranovsky, “General Male”, p.
184.
178 Nodier, Souvenirs, p. 309; e toda a seção “Malet ou Oudet”, pp. 303-339.
179 Citado em Pingaud, Jeunesse, p. 204.
180 Nodier elogiou Oudet por ter recapturado a perdida “ligação com o divino” na linguagem humana,
quando “palavras já não mais estavam presas na ponta de uma pena e afogadas num tinteiro”.
Souvernirs, pp. 328, 331.
181 Apothéoses de Pythagore. Imprécations de Pythagore, Crotona (Besançon), 1808. V. Salomon, pp.
64-65, sobre o seu Dicionnaire raisonné des onomatopées françaises, produzido para livrarias e liceus
de Paris; e p. 68 sobre sua Théorie des langues primitives, que ao que parece ou não foi concluída ou
não foi publicada. Ao mesmo tempo, Bazin publicava periodicamente brochuras (Lettres françaises
e Lettres philosophiques) que parecem ter sido órgãos de propaganda mais direta dos filadelfos:
Bouton, p. 272; Baylot, p. 134.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 201

Malet planejou em 1808 derrubar Napoleão enquanto este, ausente,


ocupava-se da Espanha, e estabelecer uma ditadura temporária em nome
do Senado francês que prepararia uma nova constituição republicana para
a França. O compio foi descoberto e 500 pessoas foram presas. Mas, em
1809, Malet resgatou o ideal primeiro de Nodier para os filadelfos como o
de uma fusão dos jacobinos e dos inimigos realistas de Napoleão, formando
uma conspiração que “afinal não falava nem a língua dos realistas nem a
dos republicanos”.182 Malet planejava em 1809 anunciar a derrubada de
Napoleão na Catedral de Notre Dame, para assim tranqüilizar a direita.183
Incluiu dois aristocratas realistas no governo que propunha formar após o
golpe a ser dado em outubro de 1812, quando Napoleão estivesse na Rússia.
Endereçou-se aos realistas em sua mensagem ao exército: “Mostrem à França
e à Europa que vocês não são mais soldados de Napoleão, assim como não
são soldados de Robespierre”.184
A insurreição da Malet na aurora de 23 de outubro quase foi bem-sucedida.
Ele tomou o banco, o tesouro e outros prédios municipais de fundamental
importância em Paris e conseguiu o apoio de dois batalhões após o anún­
cio de que Napoleão morrera na Rússia. Mas ele não chegou a desarmar a
polícia; seus seguidores se desarticularam; e cerca de 1.500 pessoas foram
presas. Antes de ser executado, Malet deu uma resposta no tribunal à per­
gunta do promotor sobre quem eram seus colaboradores, a qual era digna
dos melodramas de Nodier: “Vós mesmos, senhor, e a França inteira se eu
tivesse alcançado sucesso”.185
Por essa época, Nodier estava em exílio na distante Liubliana, suspeito de
atividade contra-revolucionária, mas intrépido em suas fantasias românticas.
Os recém-descobertos eslavos agora representavam a pureza primitiva e na-

182 Citado em Pingaud, p. 242.


183 Tugan-Baranosky, “General”, p. 182; também Lombard, Histoire, p. 17 ss.; Pingaud, pp. 160-182;
Gould, pp. 42-48; Frost, vol. I, p. 171.
184 D. Tugan-Baranosky, “Vtoroi zagovor generala Male”, Voprosy Istorti, 1974, n° 8, p. 101; também
Frost, vol. I, p. 149 ss.; Lehning, “Buonarroti”, pp. 119-122; e obras referenciadas em Saitta, vol.
I, pp. 81-82, nota 12. E. Guillon, Les complots militaires sous le consulat et l'empire, 1894, ainda
complementa de maneira bastante útil trabalhos mais recentes em matéria de detalhe: mas Guillon,
assim como De la Vassière, pode despistar os estudiosos modernos com sua extrema cautela ao
afirmar que Nodier apenas imaginou os filadelfos. O. Pontet, VAccada, 1905, p. 190, chegou a
defender que até a existência de Oudet é uma invenção. Para um relato cuidadoso que incorpora
descobertas recentes e reconhece a influência dos filadelfos, sem, contudo, exagerá-la, v. Bay lot, “Des
Philadelphes de ce que l’on en imagine et de ce qui en procède”, Voie, pp. 73-92.
185 Citado em L. Vîllefosse e J. Bouissonouse, ^Opposition à Napoléon, 1969, p. 307; também Tugan-
Banarovsky, “Vtoroi”, p. 106.
202 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

turai, a Esparta dos seus sonhos, o “último e comovente abrigo dos costumes
antigos”.186 A intensidade ideológica do seu ideal filadelfo original não foi
além de 1809, quando Oudet foi morto e Bazin preso, onde permaneceu
pelo resto do período napoleonico. Doravante, a atividade anti-napoleônica
entre os franceses se concentraria em cabalas militares vigilantes quanto ao
momento oportuno de insurreição.

O mundo de Buonarroti

O ideal majestoso de uma irmandade revolucionária ocultista foi levado


adiante com intensidade ainda maior pela versão italiana dos filadelfos, os
adelfos.187 Formada o mais tardar em 1807 entre exilados em Paris sob a
liderança de Luigi Angeloni, um amigo de Buonarroti, os adelfos parecem
ter se considerado, de maneira mais consciente que os filadelfos, uma orga­
nização discreta de controle dentro de um movimento revolucionário mais
amplo. Os italianos também usavam pseudônimos (incluindo o “Espártaco”
de Weishaupt) e palavras-código (“segredo” era “revolução”, “dinheiro” era
“armas”),188 ao mesmo tempo em que legitimavam a violência através de
símbolos ocultistas. Falava-se agora que círculos internos representavam a
letra “O” — assim fazendo menção ao martirizado Oudet, ao verbo matar
(occide) e aos olimpianos de uma antigüidade fantasiada.189 Existia até uma
edição italiana dos melodramas de Nodier e Rigomer, pois a imaginação
revolucionária dos italianos na França era moldada pelas peças heróicas e
pelas fantasias maçônicas da revolta romântica de Francesco Salii contra a
“imaginação lânguida” de seus complacentes patrícios do campo.190
Buonarroti reestabeleceu laços com movimentos revolucionários de
maior alcance por meio de Angeloni e os adelfos, cujos estatutos de 1811

186 Salomon, p. 88.


187 Soriga,Società, p. 110. Saitta considera as duas organizações idênticas, vol. i, p. 81. Tugan-Baranovsky
fornece outra literatura sobre as duas sociedades (“Vtoroi”, pp. 107-108). O estudo maçônico
subestimado de E Radice sugere que Buonarroti pode ter sido um conselheiro dos adelfos, os quais,
por sua vez, podem ter tido uma existência independente anterior: “Les Philadelphes et les Adelphes”,
Ars Quatuor Coronatorum, vol. lv, 1944, esp. pp. 71, 89-92.
188 Radice, pp. 69-71; Gould, pp. 44-45; e J. Dautry, “Babuvistskaia traditsiia posle smerti Babefa i do
revoliutsii 1830 g”., Frantsuzsky ezhegodnik, 1960, 1961, p. 181.
189 Radice, pp. 76-77; Frost, vol. i, p. 165 ss.
190 C. Nardi, La vita e le opere di Francesco Saverio Salfì (1759-1832), Gênova, 1925, p. 105; também
a seção sobre seus escritos maçônicos, pp. 189-198, e sobre “I melodrammi”, pp. 105-120. Embora
o termo que empregasse para melodrama fosse melogogo, Salii utilizou tanto o termo geral francês
como ainda apontou para o pioneirismo do Pygmalion de Rousseau, de 1762, quanto ao tipo de
drama de combate emocional de Nodier.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 203

se alinhavam e até se assemelhavam ao seu próprio projeto para os Subli­


mes Mestres Perfeitos.191 No dia 22 de julho de 1812, lançou, “abaixo da
linha do Equador”, o primeiro “decreto do Grande Firmamento”, incor­
porando tanto os filadelfos como os adelfos numa nova ordem. Cabia a
um conselho de três membros propor cada novo membro.192 Embora não
exista nenhuma prova de qualquer espécie de resposta a esse seu chama­
do, o ambiente em que Buonarroti circulava estava frouxamente ligado à
conspiração final de Malet.
Durante a Restauração, ele refinou seu conceito, ao insistir em que “ins­
truções sobre a falsidade da revelação cristã” fossem dadas antes que se
conferisse o título de Tieboar (“Tyrannum interfice, Bona omnia antiqua
recupera”)193 e ao escrever uma Profession de foi em latim tanto para os
círculos externos de cinco homens (“o Sínodo dos (Q)”) quanto para os
internos, de três homens (“a Igreja dos f^)”)-194 Ele expandiu seus contatos
com os franceses, mas cada vez mais depositou suas esperanças na Itália e
utilizou o termo iluminado alemão Weise para designar a figura central do
círculo interno dos Sublimes Mestres Perfeitos.195 À medida que a maré da
revolução parecia subir, Buonarroti mergulhou novamente no mundo do
ocultismo com seu segundo e último projeto para uma organização revolu­
cionária mundial: Monde ou “Mundo”.

191 Aceito a data de 1811 sugerida pelo transcritor de documentos dos adelfos no Escritório de Registros
Públicos de Londres (Radice, p. 88), e 1812 como o momento de sua fundição com os filadelfos
(Radice, p. 79), apesar das possibilidades que ele levanta, sem nada concluir, de uma datação
posterior para ambos os casos. Os inestimáveis documentos dos adelfos reproduzidos em Ars
Quatuor Coronatorum, vol. LV, 1944, pp. 89-117, são — assim como a maior parte dos materiais
reproduzidos em publicações maçônicas — considerados muito superficialmente e deixados de lado
por todos os historiadores desses movimentos. V. também Saitta, vol. ii, p. 61.
192 Archives Nationales, F7 6684, p. 283. Existem dois conjuntos de cópias feitas pela polícia dos
decretos e estatutos do Grande Firmamento dos Sublimes Mestres Perfeitos. O arquivo foi explorado
apenas de maneira bem parcial e estava desorganizado quando o consultei. Reuni e utilizei o mais
completo dos dois conjuntos.
193 Archives Nationales, F7 6684, p. 286. “Extrait du rituel à l’ouverture de chaque Eglise”, não datado.
194 Archives Nationales, F7 6684, p. 284. “Profession de foi du Synode de (TT)» ou rassemblement des
Sublimes Maîtres Parfaits”, não datado; e “Profession de foi de ou rasse^^ement des Sublimes
Maîtres Parfaits”. V. também D.Tugan-Baranovsky, “Buonarroti i missiia Andriana”, Voprosy Istorii,
1977, n° 1, esp. p. 124.
195 Archives Nationales, F7 6684, p. 299. “Livre des Statuts des Sublimes Maitres Parfaits”, não
datado. No texto paralelo também não datado “Livre des Status des Sublimes-Elus”, o grupo “Les
Illuminés” na Alemanha aparece como uma das cinco “sociedades secretas já formadas” de que os
revolucionários desse segundo grau poderíam se valer: p. 289.
204 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Ele concebia o microcosmo revolucionário, Monde^ como algo que unifi­


cava e libertava o macrocosmo, realizando (nas palavras de uma senha para o
grau mais alto) a felicitas-consensus do mundo inteiro. Buonarroti assumiu o
novo pseudônimo de Policarpo,196 assim se chamando com o nome do antigo
evangelista cristão que preencheu o vácuo entre os primeiros apóstolos e a
igreja institucional. Queria assim representar um papel histórico análogo ao
ligar os apóstolos da era revolucionária e os movimentos institucionalizados
do período da Restauração. Empenhou-se em estabelecer contato com outros
movimentos por meio de “diáconos móveis” e solidificar a autoridade por
meio de títulos como “arconte”, atribuído a Angeloni.197 Os documentos
também falam de frères intimes,, que deveriam estar alertas à presença de
espiões e testar a lealdade de membros novos, e de um novo conjunto de
quatro graus: adolescente, homem, teólogo e filósofo.198
Suas estruturas ocultistas eram todas muito magramente supridas de
pessoal, e freqüentemente representavam mais um produto da imagina­
ção do que de fato uma organização. Mas elas capturavam a imaginação
mesmo quando a polícia as capturava — a imaginação romântica que co­
meçava a ser despertada nos jovens, em uma busca incansável do “milagre
que libertará cada um deles da mediocridade”.199 Os filadelfos na França,
os adelfos na Itália e o “mundo” de Buonarroti em Genebra — todos
se viam como o “partido dos derrotados”200 dedicados a um vago ideal
republicano-constitucional no qual todos depositavam suas esperanças
1% Tugan-Banarovsky, “Buonarroti”, p. 127.
197 Ibid., p. 129.
198 Archives Nationales, F7 6684, p. 295. “Règlement des Eglises et des Synodes”, nào datado.
199 Característica da “nova mentalidade” criada pelos românticos alemães na década de 1790, segundo o
importante estudo de H. Brunschwig, Enlightenment and romanticism in eighteenth century Prussia,
Chicago, 1974, pp. 181-182.
Duas outras obras que sugerem o ressurgimento da crença em milagres durante a era romântica, e
que o relacionam com o desenvolvimento da revolução, são M. Abrams, Natural supernaturalism:
Tradition and revolution in romantic literature, NY, 1971 (defende que a fé no apocalipse por meio
da revelação foi substituída pela fé no apocalipse por meio da revolução) e R. Winegarten, Writers
and revolution: the fatal lure of action, NY, 1974 (critica o “revolucionismo romântico” que trocou
a religião por “absolutos fictícios”). O poeta polonês Cyprian Norwid chamou as revoluções de
“milagres terrestres”: Dziela ivszystkie, vol. ui, p. 390.
A palavra “milagre” aparece repetidamente em testemunhos em primeira pessoa dos eventos
revolucionários. “Tudo era miraculoso naquele encontro [...] algo mais bonito que toda a harmonia
da ópera”, escreveu um observador da Assembléia Nacional logo após a irrupção da guerra em
abril de 1792; a principal vitória militar foi “o milagre de Valmy”; Fauchet, a esperar pela morte na
Conciergerie, irradiava, segundo um seu companheiro de cela, le goût du merveilleux. Monglond,
Préromantisme, vol. n, pp. 18, 131, 409-410.
200 F. Wey, Vie de Charles Nodier de l’académie française, 1844, p. 12; citado em Fach, “Naturschilderung”,
p.9.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 205

pessoais de uma alternativa a Napoleão. A Constituição republicana radical


de 1793 era em geral aceita como ideal precisamente porque não tinha sido
posta em prática. A nova geração, tendo suas esperanças alimentadas na
década de 1790 e desfeitas nos primeiros anos do século xix, tinha mais
clareza acerca daquilo a que se opunha (Napoleão) do que daquilo que
de fato desejava. Como Nodier recordaria: “A república foi para a minha
geração um talismã verbal (un mot talismanique) de inacreditável poder
[...] o nome de um governo que poderia ser qualquer coisa que se quisesse,
menos aquilo que na realidade existe”.201
O romantismo político acreditava na juventude que derrotava a idade — e
no céu trazido à terra:

Não em Utopia, em locais subterrâneos,


Ou em alguma ilha secreta, sabe lá Deus onde!
Mas no próprio mundo, que é o mundo
De nós todos — o lugar onde, por fim,
Encontramos nossa felicidade, ou não encontramos nenhuma!202

É um pensamento tão familiar para a mente secular moderna que pode


acabar soando mais banal que revolucionário. No entanto, representava na
sua época uma forma de fé extraordinária, sem precedentes — uma fé tanto
mais intensa (como a de Marx depois) em razão de seu repúdio das imagens
herdadas (e da própria palavra) da utopia. “O romantismo não é nem da
Direita nem da Esquerda [...] O que é característico da política romântica é
que seja uma política do miraculoso”.203
Soluções extremas atraíam os jovens crentes românticos com sua “política
do miraculoso”. “Ow n’arrive point au sublime par degrés” (Não se chega
ao sublime dando passos graduais), escreveu Madame de Staël, uma líder
espiritual da oposição mais moderada a Napoleão e uma popularizadora
do romantismo alemão.204
O homem que validou na vida real a “política do miraculoso” foi o pró­
prio Napoleão. Ele tinha retornado da terra das pirâmides para libertar a
França da mediocridade e toda a Europa do hábito encrustado, inspirando
lojas maçônicas a cantar:

201 Fragmens sur les institutions républicaines. Ouvrage posthume de Saint-Just précédé d'une notice
par Ch. Nodier, 1831, pp. 10-11 (PU).
202 W. Wordsworth, The prelude, vol. xi, pp. 140-144 (ed. Original de 1850).
203 Brunschwig, p. 183.
204 Corinne, ou ITtalie, 1820, vol. 1, p. 117 (ed. original de 1807).
206 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

Poursuis, Napoléon, fais encore um miracle,


Étonne l'univers par un nouveau spectacle,
...les Français ne reverraint-ils pas Corneille et Racine reparaître?
Tu peux ce que tu veux; comande, ils vont renaître.

[Persiga-os, Napoleão, faça mais um milagre,


Ilumina o universo com um novo espetáculo,
...não podem os franceses ver Carneille e Racine reaparecerem?
Podes o que queres; ordena, que eles renascerão].205

A nova geração de revolucionários olhava para o sol do Iluminismo sob as


sombras de Napoleão. Eles internalizavam seu prometeísmo mesmo quando
se opunham a ele. A primeira tentativa de uma cosmologia socialista secular
(a de Fourier) e as primeiras ideologias autenticamente revolucionárias (as de
Hegel e Saint-Simon) foram concebidas durante o reino de Napoleão e sob
seu impacto. Buonarroti era uma espécie de imagem reflexa do imperador,
trazendo algo como uma qualidade napoleonica aos seus próprios planos
de revolução.206
A questão mundana sobre como Buonarroti pôde se manter durante os seus
anos de solidão como um revolucionário exilado nos leva àquela que, para os
pitagóricos, é a mais sublime das regiões: a música. Napoleão não foi o único
a admirar o talento musical de Buonarroti, que pôde subsistir ao longo de sua
extensa carreira por meio de aulas de piano e de canto — freqüentemente se
afastando de todo convívio humano para longas sessões solo. Um francês que
visitou Genebra em 1811 descreveu como a “portentosa e inspirada cabeça”
de Buonarroti se erguia sobre o piano: “Ele estava sonhando, improvisando,
e então se controlando para produzir fogos de artifício no instrumento com
seus longos, ágeis e poderosos dedos, irrompendo em canções sem palavras
que pareciam ser a explosão de pensamentos misteriosos [...]”.207
“Canções sem palavras” eram, para os pitagóricos, a forma derradeira
pela qual o cosmos conversava consigo mesmo. A “música das esferas” era a
mais alta forma de discurso, expressando “a harmonia da criação, ou antes o
mundo como deveria ser”.208 O ocultista Antoine Frabre d’Olivet, que compôs

205 Bouton, Francs-maçons, p. 280.


206 Em Santa Helena, Napoleão não só homenageou Buonarroti como ainda leu Jean Sbogar (1818), de
Nodier, sobre um bandido da Dalmácia que o escritor pôs na liderança dos seus imaginários frères
du bien commun. Salomon, p. 89; Hamenachem, p. 42.
207 Pianzola, “Svizzera”, p. 128.
208 Faivre, Eckartshausen, p. 544, também p. 443 ss.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 207

todo tipo de obra durante o período revolucionário, a culminar em seus Versos


áureos de Pitágoras^9 deixou uma obra póstuma que proclamava a música
como “a ciência das relações harmônicas do universo”.209 210 Afirmava que na
própria palavra “música” haviam se mesclado em um nome grego raízes egípcia
e celta211 “quando Pitágoras apareceu na Grécia, rico de toda a iluminação
da África e da Ásia, cerca de nove séculos depois de Orfeu”, e que ele deixara
para trás uma seita “mesmo hoje ainda não inteiramente extinta”.212
O fascínio pela música como a linguagem perdida da libertação levou
Luigi Angeloni, o amigo de Buonarroti, a publicar em Paris uma dissertação
sobre as origens medievais da notação musical, no mesmo momento em que
organizava os revolucionários adelfos.213 Para a mente romântica, a música
era o reino da liberdade: a mais espiritual das artes, dando vazão à emoção
e, ainda assim, criando ordem na dimensão temporal. A música libertava
o homem de limitações espaciais e materiais para que adquirisse um novo
senso de esperança ilimitada. A música era a expressão do homem moderno,
“fáustico”, para o qual a luta infinita havia substituído o conhecimento das
formas clássicas,214 era a linguagem da esperança que estava especialmente
“aberta para o futuro”.215
A música na vida de Buonarroti e Angeloni, a melodia nos melodramas
de Nodier, Bazin e Salii — tudo era expressão mais de aspiração que de
inspiração, de emoção mais que de intelecto. O texto para a “canção sem
palavras” de Buonarroti viria a ser fornecido pelo líder da última organi­
zação revolucionária importante que ele fundara diretamente: a Sociedade
Flamenga da Irmandade, de Jacob Kats, na década de 1830.216 Kats, que

209 Les vers dorés de Pythagore, 1813. Extratos em A. Tanner (ed.), Gnostiques de la révolution. Fabre
d’Olivet, 1946, pp. 103-153. Esse personagem notável descendia de uma família de huguenotes
perseguidos e foi influenciado por Court e ocultistas alemães. Escreveu grandes pièces d’occasion
para a Festa da Federação (Le Quatorze Juillet, um drama poético de 1790), para a vitória de
Toulon (Toulon soumis, ópera histórica de 1794) e para a coroação de Napoleão como imperador
(Oratorio, 1804). Tanney pp. 279-286.
210 Fabre d’Olivet, La musique expliquée comme science et comme art et considérée dans ses rapports
analogiques avec les mystères religieux, la mythologie ancienne et l’histoire de la terre, 1896, vol. I.
211 Ibid., pp. 46-47.
212 Ibid., pp. 81-82.
213 L. Angeloni, Sopra la vita, le opera ed il sapere di Guido d’Arezzo, Paris, 1811.
214 O. Spengler; The Decline of the West, NY, 1939, vol. i, p. 282; também p. 183 ss. para sua distinção
geral entre o homem “fáustico” e o “apolineo”.
215 E. Bloch, Das Prinzip Hoffnung, tal como parafraseado em Furter, LTmagination, p. 12; e ainda,
para a visão de Bloch da música como uma forma de arte coletiva e revolucionária, pp. 10-13.
216 Kuypers, Les égalitaires, pp. 80-81.
208 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

viveu sob a influência dos emigrados alemães em Bruxelas que se reuniram


em torno de Karl Marx para fundar a Liga Comunista, escolheu Pitágoras
como seu pseudônimo revolucionário e projetou o ideal pitagòrico em seu
revolucionário drama de mistério, O paraíso terrestre. Ele encheu sua peça
de música — e mais tarde fez o mesmo, de modo mais amplo, com as classes
flamengas mais baixas, criando o primeiro teatro popular de música flamenga,
em Bruxelas, durante a Revolução de 1848.217
Essa, como veremos, era a tendência do futuro. Pois a música havia se
tornado serva mais de consciência étnica que de consciência de classe, mais
de fraternidade que de igualdade. A arte musical encontrou sua mensagem,
durante o período romântico, no palco de ópera a serviço da revolução na­
cional, e não social. Mas a crença no poder libertador da música se originava
do fascínio ocultista dos pitagóricos pioneiros da tradição revolucionária
pela idéia de descoberta de uma perdida harmonia da natureza. Buscavam
uma linguagem que ultrapassasse as palavras em direção ao som — uma
legitimidade que ultrapassasse o espaço em direção ao tempo.

A interação dos extremos

Bem antes da revolução, Mercier, que era amigo de Bonneville, Restii e


Nodier, pôs a expressão les extrêmes se touchent no título de um capítulo
do seus Tableaux de Paris. Previa, assim, um elemento fatídico a respeito
dos primeiros revolucionários e uma realidade recorrente da dinâmica re­
volucionária: a afinidade e os constantes empréstimos entre os extremos da
direita e da esquerda.
A interação entre os extremos afetou a tradição revolucionária de duas
formas: dialética e simbioticamente. Dialeticamente, os Iluminados radicais
e seculares à esquerda desenvolveram seu senso de uma missão pedagógica
e universal e de um método secreto e hierárquico a partir da conservadora
ordem jesuítica à direita. O esforço dos Iluminados representava o núcleo
ideológico duro da fé revolucionária que se desenvolveu desde Bonneville
até Babeuf, e deste até Buonarroti.
Simbioticamente, o espectro mais amplo de líderes e funcionários revolu­
cionários oportunistas atraiu, nos primeiros anos da Revolução Francesa, um
espectro igualmente grande de ordens reacionárias e pseudo-cavalheirescas

217 Sobre o “Toonel der Volksbechaving” de Kats, v. Kuypers, “Les liens d’amitié de Karl Marx en
Belgique (1845-1848)”, Socialisme, vol. lviii, 1963, p. 412, e obras lá referenciadas.
LIVRO I, CAPÌTOLO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 209

da maçonaria. A simbiose se tornou ainda mais íntima durante a era na­


poleonica, quando monarquistas e republicanos muitas vezes tomaram de
empréstimo elementos uns dos outros, enquanto colaboravam na oposição
comum a Bonaparte.
A dialética da interação esquerda-direita se iniciou, como vimos — e
tal qual muitas outras coisas da Revolução “Francesa” —, na Alemanha
bem antes de 1789. Adam Weishaupt tirou o seu conceito de organiza­
ção hierárquica comprometida com uma missão global diretamente dos
jesuítas,218 e Knigge descreveu o programa dos Iluminados como sendo
o de usar métodos jesuítas para combater os objetivos dos jesuítas, “uma
contra-conspiração de forças progressistas e esclarecidas”.219 A propaganda
posterior dos Iluminados alegava existir uma conspiração jesuíta secreta, e
que a ordem nominalmente abolida tinha estabelecido elos secretos entre os
jesuítas da Baviera e os rosacruzes de Berlim.220 À medida que se alastrava a
mania conspiratória, o próprio Weishaupt foi acusado de ser um jesuíta em
segredo.221 Os Iluminados se tornaram ainda mais revolucionários ao longo
da década de 1780, precisamente em razão do esforço de recrutamento nas
lojas maçônicas conservadoras da Estrita Observância.
A campanha antiiluminados dos conservadores alemães na década de 1790
foi, sob muitos aspectos, simplesmente um eco da campanha antijesuítica
que os próprios radicais Iluminados tinham lançado na década anterior. Os
revolucionários começaram a levar a sério as idéias dos Iluminados (bem
depois de os Iluminados, como movimento, terem morrido) em razão do
pânico que a pecha de Iluminado parecia produzir em meio aos conser­
vadores. Buonarroti parece ter sido o primeiro a descobrir os Iluminados
por meio de um relatório de teor negativo feito pelo arquiconservador
Eleitor da Baviera.222 O “grande medo” de uma “conspiração aristocráti­
ca” no verão de 1789 na França ajudou a criar essa mesma conspiração; e
temores conservadores durante a década de 1790 de uma “cabala infernal”

218 V. “Der‘Jesuitismus’ als persönliches Ordensprinzip Weishaupts”, em Grassi, Aufbruch, pp. 184-187.
219 Ibid., p. 238.
220 Esse tema originado com Knigge, Über jesuiten, freymaurer und deutsche rosenkreuzer, Leipzig,
1781, ganha maior dimensão em E Nicolai, Beschreibung einer reise durch Deutschland und die
Schweiz im jahre 1781, Berlim/Stettin, 1785. O ponto alto dessa paranóia parece ter sido atingido
por Weishaupt em Apologie der illuminaten, Frankíurt/Leipzig, 1786. Para discussão dessa e de
outras obras, v. Grassi, pp. 236-259.
221 E. von Göchhausen, Enthüllung des Systems der Weltbürgerrepublik., Leipzig, 1786; Grassi, pp.
266-267.
222 Modena, “Numero”, pp. 869-870.
210 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de revolucionários podem ter ajudado a delinear os primeiros planos de


Buonarroti para a formação de uma cabala como essa.223
O mito dos Iluminados “cristalizou as forças anti-revolucionárias da Eu­
ropa central”224 e — paradoxalmente — reacendeu as esperanças de alguns
revolucionários. O caso da Hungria ilustra como os temores da direita viriam
a se tomar o fascínio da esquerda. Ignatius Martinovics, um padre católico
e professor de física, foi contratado pela polícia húngara para descrever o
suposto perigo dos Iluminados em Budapeste. Contudo, ele se entusiasmou
com o assunto e logo elaborou planos para prover aos radicais húngaros uma
organização hierárquica à maneira dos Iluminados. Martinovics escreveu
catecismos diferentes, em maio de 1794, para a Associação de Reformadores,
uma organização pública, e para a Associação da Liberdade e Igualdade,
uma organização secreta mais interna.225 A primeira organização realizaria
uma revolução política pela independência nacional; a segunda, uma revolta
social em defesa dos servos. Martinovics, o autoproclamado Democrito da
Montanha, foi logo preso com muitos dos duzentos ou trezentos conspirado­
res. (Apesar de uma virada final pela qual voltou a colaborar com a polícia,
Martinovics foi decapitado em maio de 1795).226
223 Onnis, Buonarroti, pp. 208-209.
224 J. Droz, “Le légende du complot illuministe en Allemagne”, Revue Historique, 1961, out.-dez., p.
316. A melhor descrição geral dessa epidemia de medo está em Roberts, Mythology, pp. 118-145.
A mais bem-informada tentativa de rastrear uma conspiração “cosmo-politica” foi realizada pelo
farmacêutico escocês J. Robison, “The Illuminarti”, em Proofs of a conspiracy against all the religions
and gouvernments of Europe, l, 1798,4a ed., pp. 100-271, e todas as notas acrescidas a essa edição,
pois resumem o restante da literatura de denúncia.
O Abade Barruel popularizou a idéia de um compio internacional em expansão, liderado pelos
Iluminados através de três estágios sucessivos: “Condorcet se recusou a obedecer a Deus, Brissot se
recusou a obedecer a reis e Babeuf se recusou a obedecer à República ou a quaisquer magistrados
ou a quaisquer instâncias de governo”. Mémoires, citado em Palmer, Age, vol. ii, p. 252. J. Starck
e outros depois corrigiriam Barruel ao distinguir com maior clareza os Iluminados e a maçonaria.
O medo dos Iluminados tendia a variar na proporção inversa de sua proximidade; e alcançou talvez
intensidade extrema na distante América do Norte, onde não havia verdadeiros Iluminados e o
entusiasmo revolucionário estava morrendo ao fim da década de 1790: v. V. Stauffer, New England
and the bavarian illuminists, NY, 1918, esp. pp. 238, 291 ss.; R. Buel Jr., Securing the revolution.
Ideology in american politics, 1789-1815, Ithaca, 1972, p. 167 ss.; D. Davis (ed.), The fear of
conspiracy, Ithaca, 1971, pp. 35-65. Sobre a posterior absorção desse tema na política federalista
Americana, v. A. Briceland, “The Philadelphia Aurora, the New England Illuminati, and the Election
of 1800”, The Pennsylvania Magazine of History and Biography, 1976, jan., pp. 3-36.
225 G. Barany, Stephen Széchenyi and the awakening of hugarian nationalism, 1791-1841, Princeton,
1968, p. 20 ss., sobre Martinovics. Comentários de M. Kajtai (“German Illuminati in Hungary”,em
L. Miklos e E Szenczi (ed.), Studies in eighteenth century literature, Budapeste, 1974, pp. 325-346,
esp. p. 333 ss.) sugerem que os Iluminados da Hungria eram mais próximos da maçonaria e eram,
mais que em qualquer outro lugar, um desenvolvimento direto do movimento alemão original.
Um membro renegado dos Iluminados na capital habsburga de Viena, Leopold Hoffman, primeiro
identificou revolução com doutrina dos Iluminados. Grassi, pp. 267-269.
226 A narrativa de Benda, “Die ungarischen Jakobiner”, em W. Markov (ed.), Maximilien Robespierre,
LIVRO 1, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 211

A interação dialética de direita e esquerda também foi um fator de po­


larização de Rousseau e Court de Gébelin dentro da França. Claro, o culto
literário de Rousseau na década de 1780 levou, em alguns casos, diretamente
ao culto político de 1790-1794. Mas a própria obra rousseauniana de Gébelin,
Deveres do príncipe e do cidadão,217 provavelmente teve menos influência
sobre os radicais do que o impacto dialético de ataques reacionários como
o do Abade Le Gros, Análise das obras de Rousseau e Court de Gébelin. Le
Gros reacendeu involuntariamente o interesse pelo pensamento ocultista do
falecido Court ao sugerir, já em 1786, que este apenas codificara as idéias
subversivas de Rousseau, com o desejo de “realizar no universo a maior das
revoluções” *22S*227
228
Os empréstimos mútuos entre monarquistas e republicanos, por ocasião
de sua oposição comum a Napoleão, iniciou-se logo com os primeiros atos de
resistência à ditadura em 1800. A “máquina infernal” (uma carroça carregada
com pólvora) detonada na Rue Nicaise em Paris pelos realistas parece ter imitado
uma máquina anterior projetada pelos jacobinos.229 O grupo de discussões que
ao mesmo tempo se formou na Rue des Marins juntou elementos de ambos os
extremos e deu origem aos filadelfos, os quais também misturavam realistas
e republicanos. Os filadelfos também se assemelharam aos babeuvistas ao
idealizar, no espectro da esquerda, o heroísmo de direita na Vendéia.
A oposição à moderação compartilhada pelos extremistas era mais intensa
que sua oposição entre si. Essa atitude era um legado da era revolucionária
e sua orientação básica no sentido da simplificação radical. Moderação
política tendia a tornar complexos os cálculos políticos — e inspiravam es­
pecial desprezo em ativistas de ambos os lados. Robespierre cunhou o termo
desdenhoso modérantisme, que “está para a moderação como a impotência
1750-1794,1958, pp. 441-472, é complementada por E. Wangermann, From Joseph ii to the Jacobin
Trials, L, 1969, o qual cortege a data da execução, p. 170, nota 6. V. também C. Kecskemeti, “Les
Jacobins hongrois (1794—1795)”, Annales Historiques, 1973, abr.-jun., esp pp. 224-226,232-233.
227 Devoirs du prince et du citoyen, ouvrage posthume de M. Court de Gébelin, pour servir de suite
à la déclaration des droits de l'homme, 1789. Court é inteiramente deixado de fora (assim como
recebem pouca atenção os seus colaboradores e companheiros de admiração por Rousseau, Cloots
e Marechal) em G. McNeil, “The Cult of Rousseau and the French Revolution”, Journal of the
History of Ideas, 1945, abr., pp. 197-212.
A imensa bibliografia posterior sobre esse assunto e controvérsias em torno dele é brilhantemente
resumida em R. Barny, “Jean-Jacques Rousseau dans la révolution”, Dix-Huitième Siècle, vol. vi,
1974, pp. 59-98, sem menção, contudo, a essa linha de influência que leva até Maréchal.
228 Abade Charles François Le Gros, Analyse des ouvrages de J. J. Rousseau de Genève et de M, Court
de Gébelin, auteur de Monde Primitif, Genebra/Paris, 1786, p. 24.
229 H. Gaubert, Conspirateurs au temps de Napoléon i, 1962, discute essa e outras conspirações
posteriores.
212 A FÉ REVOLUCIONÁRIA. SUA ORIGEM E HISTORIA

para a castidade”.230 Fosse a esquerda fosse a direita, a “montanha” ou a


“planície”, qualquer coisa era preferível ao “pântano” ou centro moderado
da Assembléia Nacional.
Os mútuos empréstimos entre os extremos eram particularmente impres­
sionantes em regiões agrárias atrasadas da periferia da Europa: as penínsulas
ibérica e itálica e a Rússia. Esses centros de resistência à autoridade de Na-
poleâo estiveram entre os primeiros a produzir movimentos revolucionários
depois de sua derrota. O Tzar Alexandre i nutria em si impulsos revolucionários
e reacionários. Tanto Metternich como o seu maior inimigo na esquerda (os
Carbonários italianos) acreditavam que o tzar apoiava os revolucionários
italianos.231 Na Polônia, onde uma rede maçônica nacional se transformou
em uma nova organização revolucionária (a Sociedade Nacional Polonesa
de Maçons) em 1819-1821, o principal líder revolucionário era ao mesmo
tempo diretor da polícia secreta.232 A Sociedade Polonófila dos Eslavos Unidos,
o mais revolucionário grupo do período, prometia um ideal de solidariedade
pan-eslava, o qual depois se tornaria a alternativa reacionária à ideologia
revolucionária na Rússia.
A liderança britânica na luta anti-napoleônica encorajou a mescla de direita
e esquerda por todo o sul da Europa — a começar na Grécia, passando pelo
sul da Itália e pela Sicilia, chegando à Espanha e Portugal. O canal britânico
através do qual se podia mobilizar politicamente as elites era, com freqüência,
as ordens escocesas da maçonaria;233 mas a principal mensagem britânica
(limitação constitucional do poder real) era a concepção revolucionária nessas
terras de absolutismo. Já em junho de 1803 a inteligência britânica advertia
“que os republicanos e realistas eram muito numerosos e, se fosse possível
fazê-los confiar uns nos outros [...] poder-se-ia fazer uma revolução”.234
230 Relatório à Convenção sobre os Princípios do Governo Revolucionário em Godechot, Pensée, p.
193.
231 S. Askenazy, Eukasihski, Varsóvia, 1929, vol. i, p. 400; Berti, Rossiia, pp. 420-421, que observa que
Buonarroti, ao não nutrir essa ilusão, distinguia-se em meio aos demais revolucionários italianos.
P. Robiquet, que às vezes exagera a extensão da participação de Buonarroti, sugere que o próprio
Buonarroti possa ter colaborado com a direita em um período anterior. V. “Buonarroti, une émeute
cléricale à Bastia en juin 1791”, La Révolution Française, vol. liv, 1908, pp. 502-504.
232 Sobre A. Rozniecki, v. Askenazy, Tsartvo pol’skoe 1850-1830 gg, 1915, pp. 73-77. Walerian
Eukasinski, o principal mártir da sociedade, inspirou gerações de prisioneiros políticos poloneses e
russos que o viram ou o conheceram durante o seu longo encarceramento de mais de 40 anos.
233 Sòriga, Società, pp. 80-92, também 115 ss. para a influência dos filadelfos. Napoleão tinha organizado
as suas próprias sociedades de feição maçônica dentro do exército para combater a influência escocesa.
Cf. E Rousseau, “Les Sociétés secrètes en Espagne au xvine siècle et sous Joseph Bonaparte”, Revue
des études historiques, 1914, mar.-abr., p. 184.
234 Lorde Pelham ao Conde de Malmesbury, do diário deste último, 10 de junho de 1803, em Diaries
and correspondence of James Harris, First Earl of Malmesbury, 1845, 2a ed., vol. ix, p. 271. Essa
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 213

Embora essa confiança nunca tenha sido alcançada, a colaboração


direita-esquerda se tornou um lugar-comum nos movimentos de resistência
nacional a Napoleão. Em Portugal, por exemplo, os filadelfos republicanos
colaboraram com o Duque de Wellington, comandante conservador inglês.235
A Espanha é talvez o caso mais chocante. O prédio que antes servira de
sede à Inquisição se tornou o ponto de reunião para as sociedades revolucio­
nárias, estabelecidas em 1809, que tinham por base o exército. Os membros
dessas sociedades eram constantemente atacados pela dúvida acerca do que
almejavam: um rei ainda mais conservador que Napoleão ou uma revolução
ainda mais radical que a francesa. A confusão entre direita e esquerda se
estendeu até os obstinados bascos, que emprestaram importante liderança
à resistência da Espanha, então um protetorado, contra Napoleão. Eles se
tornaram (e permaneceram) criativos praticantes da guerra irregular que
esgotou as forças francesas. O mais importante líder guerrilheiro, Francisco
Espoz y Mina de Navarra, que mais tarde lideraria o exército revolucio­
nário na batalha contra os carlistas de direita, não deixou de ele mesmo
passar por uma fase de monarquista radical em 1814, quando executou
formalmente, com um pelotão de fuzilamento, uma cópia da Constituição
de 1812. Outro importante líder da guerrilha, Jerónimo Merino de Burgos,
foi na direção contrária, tornando-se um líder dos carlistas. E, no entanto,
outro guerrilheiro, Eugenio Aviraneta, natural de Irún e tenente de Me­
rino, acabou por ser o principal apóstolo da conspiração revolucionária
contínua no mundo hispânico. Ele fundou no norte da Espanha uma célula
revolucionária diretora composta por cinco homens (El Aventino), buscou
apoio internacional para estabelecer uma república em Zaragoza no início
da década de 1820 e permaneceu ativo em conspirações republicanas até
meados do século, tendo até realizado viagens a lugares distantes como o
México e as Filipinas.236

passagem é citada sem referência em Frost, Societies, vol. i, pp. 151-152. A história em dois volumes
de Frost oferece um tratamento surpreendentemente sofisticado e injustamente negligenciado, escrito
por um jornalista veterano e um cronista que testemunhou o movimento carlista, obra que se ressente
apenas de documentação inapropriada.
235 E Rousseau, “Sociétés”, p. 189. V. também referências em M. Kukiel, “Lelewel, Mickiewicz and the
Underground Movements of European Revolution (1816-1833)”, Polish Review, 1960, verão, p.
62, nota 5.
236 Sua carreira memorável é traçada pelo grande romancista basco Pio Baroja, Aviraneta o la vida de
un conspirador, Madri/Barcelona, 1931, esp. pp. 15,29-32,84; e (sobre seus laços com Merino) pp.
41-50, 54. Os anos mexicanos de Aviraneta são discutidos em Mis memórias íntimas, 1825-1829,
México, 1906. Dos seus muitos escritos sobre guerra de guerrilha, ver especialmente Las guerrillas
espanolas o ias partidas de brigantes de la guerra de la independencia, Madri, 1870.
214 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A simbiose entre os extremos da direita e da esquerda é evidente na car­


reira do homem que se tornou o principal contra-revolucionário do período:
Joseph de Maistre. Jovem, magistrado ambicioso, De Maistre se tornou
maçom em 1773 e, no panegírico de alto teor político que fez do Rei da Sar-
denha em 1775, conclamou a uma revolução americana antes mesmo que os
americanos o fizessem: A Liberdade, insultada na Europa, fugiu para outro
hemisfério. “Ela costeia as geleiras do Canadá, arma os pacíficos pensilvanos
e, do coração da Filadélfia, grita aos britânicos [...]”.237
De Maistre depois confessaria que só mesmo uma conversão radical
nele operada pelos jesuítas o impediu “de me tornar um orador na Assem­
bléia Constituinte”.238 De Maistre encontrou o seu próprio ideal positivo
no retrato negativo do catolicismo conservador feito pelo revolucionário
Mirabeau.239
O manifesto contra-revolucionário de De Maistre, Considerações sobre
a França (1796), traía um fascínio hipnótico pela revolução, mais extremo
que o demonstrado por anti-revolucionários anteriores. De Maistre foi mais
longe que os próprios revolucionários ao insistir na novidade absoluta da
revolução. Era um ato direto e misterioso da Providência, um “milagre” do
mal a exigir um contra-milagre: o estabelecimento de uma teocracia papal.240
Longe de ser um retorno ao catolicismo medieval, o que De Maistre pro­
punha possuía um toque moderno, o qual se devia à sua longa exposição ao
pensamento romântico alemão quando no exílio.241 Sua longa residência em
São Petersburgo o levou a prever que insurreições nesse país seriam doravante,
não levantes camponeses, como o de Pugachev contra Catarina, a Grande,
mas sim levantes feitos por “Pugachevs de universidades”.242
Falando desde a direita, De Maistre propunha medidas violentas para
restaurar o governo autoritário do papa. Falando desde a esquerda, Maréchal
propunha, em um memorando a Napoleão em 1798, uma ditadura militante

De maneira mais ampla, sobre a confusão de fidelidades, v. E Rousseau, “Les Sociétés secretes et la
révolution espagnole en 1820”, Revue des Études Historiques, 1916, jan.-fev., pp. 1-33.
237 Eloge de Victor-Amédée iti, Chambéry, 1775, citado em Triomphe, Maistre, p. 98.
238 De Maistre, Oeuvres complètes, Lyon, 1886, vol. xm, p. 204.
239 Triomphe, p. 498.
240 R. de Felice, Note e Ricerche sugli “illuminati” e il misticismo rivoluzionaria (1789-1800), 1960,
p.59.
241 Em Lyon antes da Revolução, em Lausanne e em São Petersburgo como um emigrado. V. “Joseph
de Maistre et l’Allemagne”, em Triomphe, pp. 498-576.
242 De Maistre, Quatres Chapitres inédits sur la Russie, 1859, p. 27.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 215

similar. Assim como De Maistre, notou as virtudes da guerra e os perigos


de degeneração inerentes a qualquer paz negociada antes que o processo de
“regeneração” estivesse em andamento.243244 Pediu em vão a Napoleão que li­
derasse a malfadada revolução, e o fez em termos similares àqueles utilizados
por De Maistre para implorar ao papa que liderasse uma contra-revolução.
Napoleão era aconselhado a se tornar “ditador não só da república fran­
cesa, mas de todas as outras potências da Europa [...] o Fundador de uma
República universal e federativa”.144
Maréchal repetia assim o temor de Buonarroti frente a uma paz alcançada
por mera acomodação e intermediada pela Inglaterra, à semelhança do que
o companheiro córsico de Napoleão, Paoli, havia aceitado.245 O modelo de
libertação foi a campanha italiana de Napoleão: “Primeiro revoluciona a Itália,
depois prega prudência e calma”.246 De Maistre, que se tornou embaixador da
Sardenha em São Petersburgo, passou a tomar a Rússia como um poder primai
e não corrompido que poderia, de algum modo, salvar a Europa. Maréchal
parece ter considerado, senão mesmo esposado, essa idéia ao fim de sua notável
História da Rússia, de 1802. A obra tem o propósito explícito de desacreditar
todo governo autocrático, vendo a história russa como uma série ininterrupta
de crimes e atacando aqueles que, como Voltaire, queriam lá achar alguma
esperança. Ao insistir que “a verdade é sempre brutal”,247 Maréchal parece às
vezes estar atacando também Napoleão. Mas, em uma conclusão sombriamente
brilhante a essa obra que, no mais, é algo engessada, o revolucionário veterano
apresentou o seu projeto para a supressão dos movimentos revolucionários:
O Bom e Último Conselho de Catarina 11 a Paulo i.
Maréchal concebia o seu projeto como uma nova versão de O príncipe
de Maquiavel; e é de fato um clássico político, o que aprofunda o mistério
em torno dos últimos dias de Maréchal e sua aparente imunidade a prisões
mesmo durante períodos de extrema reação. O livro é também revelador ou

243 Correctif à la gloire de Bonaparte ou lettre à ce général, Veneza, 1798, pp. 15, também 22-23. Está
assinado “P. S. M. PH. S. D” (l'homme sans Dieu).
244 Ibid., pp. 8-9,28.
245 Ibid., p. 29. Maréchal também nutria o fascínio geral dos revolucionários pelos jesuítas, e sua
principal obra literária da década de 1890 adotou o lema dessa ordem, só com a simples substituição
de “Deus” por “virtude”. Ad majoram gloriam virtutus, epígrafe a Le Lucrèce français; fragments
d'un poème, ano vi (BH).
246 Correctif, pp. 25-26.
247 Histoire de la Russie réduite aux seuls faits importans, L/Paris, 1802, p. 323, nota 1, com destaque
em itálico e indicação de serem palavras “de um famoso personagem”. A segunda edição de 1807
atribuiu a autoria da obra com “par l’auteur du Voyage de Pythagore”.
216 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

da penetração extraordinária que a extrema esquerda teve no pensamento


da extrema direita ou, possivelmente, até de algum último movimento de
Marechal de um extremo para o outro.
A Catarina de Maréchal instrui o seu filho sobre como evitar “a distante
revolução política que nos sucedería caso se permita que continue a dar seus
passos gigantescos, como o fez durante sete anos”.248 “Aprenda comigo — ela
aconselha — a abrandar as tempestades populares. Evite-as fazendo guerra
em terras distantes: tudo então lhe será permitido enquanto suas armas forem
vitoriosas”.249 O perigo do futuro está no crescimento da imprensa livre, pois
“não se pode fazer o que se quer com um povo capaz de ponderação”;250
e nos incansáveis novos intelectuais que podem “formar um Estado dentro
do Estado”.

Se o fraco e desafortunado Luís xvi [...] não tivesse cometido a óbvia imprudên­
cia de recorrer ao conselho de sábios e publicistas sobre o deplorável estado das
finanças, o infeliz príncipe ainda estaria reinando.251

Um príncipe moderno deve acolher os conselhos deles, mas não permitir


que os publiquem para um público mais amplo. O público não deve ser
cortejado com benesses, e sim cegado “pela magia do trono” e levado a ficar
“sem fôlego” em razão de tanta atividade: guerras, desfiles e festividades.

Não dês ao povo tempo para pensar [...] O comum dos homens ama a movimen­
tação. [...] Águas estagnadas se tornam sujas e geram doenças.252

O governo dos príncipes é ameaçado ou pelas “confederações armadas”,


como a Polônia, ou pelas “confederações desarmadas, que são chamadas clubs
na Inglaterra e que, sob o nome de sociedades e de círculos sociais, trouxeram
um dilúvio de crimes e calamidades para a França”.253 O verdadeiro monarca
deve ter “sangue frio durante as grandes crises políticas” e indiferença pelo

248 Da seção Les bons et derniers avis de Cathérine U à Paul 1er trouvés parmi les papiers de bimpératrice
de Russie, après sa mort, em Histoire, pp. 362-363.
A análise de Likhotin mostra que o testamento foi aceito como autêntico por estudiosos conservadores
simpáticos a ele no século xix. Um relato parcialmente ficcional sobre os primeiros radicais maçons
exilados em Smolensk à época de Catarina os retrata como gratos ao documento, já que este daria
fim às ilusões de intelectuais sobre aqueles que exercem o poder. N. Rylenkova, Na staroi smolenskoi
doroge, Smolensk, 1961, pp. 11-12; Likhotin, p. 66, nota 21.
249 Histoire, p. 363.
250 Ibid., p. 364.
251 Ibid., p. 365.
252 Ibid., pp. 366, 373-374.
253 Ibid., p. 377.
LIVRO I, CAPÍTULO 4: A ESTRUTURA DAS ORGANIZAÇÕES REVOLUCIONÁRIAS 217

destino das pessoas individualmente consideradas, pois ele é “um ser abaixo
apenas de Deus, mas acima de todos os homens”.254

Desde a altura em que nos encontramos, meu filho, devemos nos importar apenas
com o conjunto; e também nisso devemos nos conformar à natureza, a qual parece
abandonar ao seu próprio destino aqueles seres de que ela não mais necessita.255

Maréchal parece ver no seu próprio igualitarismo o mais perigoso desa­


fio à velha ordem. Catarina denuncia “esses vis magistrados do povo” que
“escrevem desafiadoramente a palavra igualdade no cabeçalho dos seus de­
cretos”.256 Ela aconselha a seu filho que nada se pode fazer com o “punhado
de parvenus”que conduziu a França àquele “covil de ladrões” conhecido
como democracia, senão ultrapassá-lo em sabedoria e pureza.
Essa polarização política entre as posturas reacionária e revolucionária
— cada uma compreendendo melhor a outra do que seria capaz qualquer
posição mais ao centro — tornou-se coisa característica do período da
Restauração. Paul Didier, líder da primeira e mais fundamental conspiração
revolucionária daquele período, tinha sido um arqui-realista durante as
épocas revolucionária e napoleonica. Ele defendeu, em Espírito e promessa
dos franceses (1799) e Retorno à religião (1802), que uma fé total e unitária
deveria ser o elo essencial da sociedade.257 Logo, ele preferia passar de vez para
o campo revolucionário a apoiar a solução conciliatória de uma monarquia
constitucional depois de 1815. A malograda conspiração que ele articulou
logo ao norte de Grenoble foi denunciada por realistas perplexos como ato
planejado por “alguém que traiu todos os governos da França ao longo dos
últimos vinte anos”.258 Didier se defendeu dizendo que “não quero desafiar
nem leis nem homens; quero desafiar apenas a irreligião”.259

254 Ibid., pp. 383, 375.


255 Ibid., p. 383.
256 Ibid., p. 381.
257 L’Esprit et le voeu des français e Du retour à la religion, discutido em A. Ducoin, Paul Didier. Histoire
de la conspiration de 1816,1844, pp. 9-13. A primeira daquelas obras (cuja autoria era desconhecida
até que fosse estabelecida no julgamento do autor) diz: “A revolução é uma roda que o gênio do mal
gira a seu bel-prazer. Estamos todos presos a ela, e aquele que se vangloriar de ter chegado ao seu
cume, logo será derrubado por um pequeno empurrão”. Ducoin, pp. 10-11, nota 1.
258 Ibid., p. 96.
259 Ibid., p. 164.
Estudioso de intrigas policiais, L. Grasilier sugeriu (Rétif de la Bretonne inconnu, 1927) que
Restii serviu de informante policial a sucessivos governos de orientações diversas — uma hipótese
rejeitada por E Funck-Brentano (Rétif de la Bretonne, 1928, p. 312). O resumo que Monglord faz da
controvérsia (Préromantìsme, vol. ii, p. 324, nota 2) conclui que Restii estava acoplado à condição
de tradutor de espanhol no “gabinete negro” da polícia francesa em abril de 1798.
218 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O temperamento romântico exigia heroísmo em nome da fé e tendia


a descartar posicionamentos de mediania. O termo “ultra”, utilizado na
França para descrever a extrema direita teocràtica, foi invocado na Itália por
revolucionários da extrema esquerda. Defensores moderados do arranjo de
ocasião feito em 1815 receberam o rótulo menos amável de “doutrinário”.
Aqueles que talvez tenham sido os dois novos revolucionários mais in­
fluentes do período tinham ambos escapado das paixões revolucionárias e
ocultistas da época imediatamente anterior. Karl Eckhartshausen, o principal
divulgador do misticismo anti-revolucionário da “Santa Aliança”, era o bá­
varo que havia aderido por breve período à Ordem dos Iluminados, a qual
ele depois estudaria profundamente.260 Joseph de Maistre, o mais influente
da leva ultramontana de reacionários, tinha sido um líder da maçonaria
ocultista e radical na França pré-revolucionária.
As duas figuras de maior importância para a sistematização da repressão
policial das forças revolucionárias na França eram ambos ex-revolucionários
extremistas. Joseph Fouché, que organizou a polícia política de Napoleão,
construiu sua reputação como organizador da Festa da Igualdade de 1794 em
Lyon, depois de ter liderado lá aquele que talvez tenha sido o mais sangrento
episódio de repressão aos contra-revolucionários em todo o Reino do Ter­
ror.261 Simon Duplay, que compilou para Napoleão o “livro verde” de todas
as conspirações políticas conhecidas desde 1792, perdera uma perna lutando
pela revolução em Valmy e, depois, serviu como secretário de Robespierre.
Em uma das últimas cartas que De Maistre recebeu logo antes de sua
morte em 1821, Lamennais (que, indo na direção contrária, passava do
ultramontanismo a uma fé ultrademocràtica nas massas) escreveu profeti­
camente: “Não existirá mais meio-termo entre fé e nada. [...] Hoje em dia,
tudo é extremo; não há mais local meão onde habitar”.262

260 Faivre, Eckhartshausen, pp. 75, também 72-84, 619-638, complementando outros elementos
fornecidos em Billington, Icon, p. 279 ss.
261 Brengues, “Apport”, em Les Fêtes, p. 589; H. Buisson, Fouché, duc d’Otrante, Bienne, 1968.
262 Texto em De Maistre, Oeuvres complètes, xiv, pp. 371-372.
LIVROU
O predomínio dos revolucionários nacionais:
meados do século xix

o período pós-napoleônico, a tradição revolucionária se libertou

N do casulo da conspiração para ganhar asas com o nacionalismo.


Os novos nacionalistas, por mais que rejeitassem a retórica univer­
salista da era revolucionária francesa, não deixavam de seguir seu exemplo
de mobilização militante e musical das massas contra os inimigos externos,
como ocorreu em 1792-1794. A Itália e a Polônia, que, dentre todos os po­
vos, foram os que responderam de maneira mais entusiasmada à Revolução
Francesa, continuaram a ser os líderes do nacionalismo europeu e os teóricos
mais criativos da violência revolucionária.
Até a Revolução de 1830, a causa revolucionária nacional foi em toda
parte identificada com o constitucionalismo liberal. Daí em diante, contudo,
os revolucionários separaram cada vez mais o ideal nacionalista de fraternité
da liberte dos liberais — especialmente na Europa central e oriental. E na
Europa ocidental o liberalismo constitucional perdeu parte dos elos que antes
mantinha com o nacionalismo revolucionário — tomando-se uma alternativa
gradualista e experimental à via revolucionária, cuja ênfase em ideologia e
violência era cada vez maior. Na década de 1840 uma nova geração de re­
volucionários preferiu o ideal socialista ao ideal nacionalista — revivendo o
lema da égalité como concorrente da fraternité dos revolucionários nacionais.
Assim teve início o duradouro conflito entre as duas principais vertentes da
220 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

fé revolucionária. Paris continuou a ser a Meca dessa fé; mas a predominân­


cia do nacionalismo começou a decair depois da derrota das revoluções de
1848; e a última revolução parisiense — a Comuna de 1871 — tornou-se
uma lenda e modelo para os revolucionários sociais do futuro.
Todo esse período francocêntrico de agitação revolucionária foi infundi­
do de um adornado romantismo que almejava empolgar a imaginação por
meio de imagética naturalista. Numa época de industrialização e urbaniza­
ção aceleradas, parecia haver uma necessidade compensatória de identificar
o movimento revolucionário com simplicidade pastoral. A Mãe Natureza,
antes matemática, agora se mostrava orgânica. Seu servo não era mais um
maçom que constrói um templo sobre pedra, e sim um democrático “car-
voeiro” que retorna à floresta primai.1 Por trás do folclore esquecido e do
linguajar popular que em toda parte os revolucionários nacionalistas tanto
valorizavam, jazia uma idade de ouro imaginária.2 Nas revoluções latino-a­
mericanas, esse estado de natureza idealizado era associado com uma época
anterior à dominação estrangeira: um retorno ao idílio asteca depois de “um
sono de três séculos” na revolução mexicana de 1808-18 IO;3 a uma pastoral
Araucânia do século xvi na posterior revolução chilena (o que, até certo
ponto, se pode dizer também das revoluções argentina e peruana).4 Na área
1 J. Brengues, La franc-maçonnerie du bois, 1973, enfatiza a importância dessa transformação de pedra
morta em madeira viva, a qual foi já na época considerada presságio de uma “revolução verde”
(p. 292). Um exemplo pouco lembrado em outra área é o de Bernardo Porta, compositor italiano
de óperas durante o período revolucionário em Paris, que deu preferência a instrumentos de sopro
por motivos ideológicos — em especial à crença de que instrumentos feitos da madeira de árvores
medicinais curariam o povo por meio da música. T. Fleischman, Napoléon et la musique, Bruxelas/
Paris, 1965, pp. 105-106.
2 Sobre a história inicial dessa idéia, cf. W. Veit, Studien zur Geschichte des Topos der Goldenen Zeit
vor der Antike bis zum 18. Jahrhundert, Colonha, 1961. Para a transformação romântica dessa
idéia nas mãos de um poeta paradigmático ao fim do século xvm, v. H.-J. Mähl, Die Idee goldener
Zeitalters im Werk der Novalis, Heidelberg, 1965.
Para urna importante análise marxista de como o olhar retrospectivo para uma era de ouro se tornou
“genuinamente revolucionário”, em especial com Rousseau e quanto mais remota no tempo fosse a
época imaginada, v. K. Kelles-Krauz, Pisma wybrane, Varsóvia, 1962, vol. i, pp. 202-203, também
pp. 188-225; e seu “La Loi de la rétrospection révolutionnaire”, Annales de Sociologie, vol. li, 1895,
pp. 315-338.
3 “Un sueno de très siglos”, discutido em L. Villoro, El Proceso ideologico de la revolution de
independencia, México, 1967, pp. 146-153.
4 S. Collier, Ideas and politics of Chilean independence, 1808-1833, Cambridge, 1967, p. 212 ss. Uma
peça de 1819 sobre o líder Bernardo O’Higgins, O triunfo do nativo, retrata o último descendente
dos índios araucanos que embarca numa fragata e profetiza que a perfeição da natureza será
recuperada navegando adiante sob o comando de O’Higgins (p. 215, nota 2). Lautaro, o líder da
oposição araucana, emprestou o seu nome à primeira Loja Maçônica (fundada por Miranda em
Londres, em 1796) que se expandiría gerando uma cadeia de lojas no Chile, na Argentina e no
Peru, envolvendo O’Higgins e outros na preparação de revoluções nacionais. V. o estudo maçônico
de A. Zuniga, La logia “Lautaro” y la independencia de America, Buenos Aires, 1922, pp. 33—43;
LIVRO II: O PREDOMÍNIO DOS REVOLUCIONÁRIOS NACIONAIS: MEADOS DO SÉCULO XIX 221

latina também da América do Norte, o primeiro dos levantes de canadenses


franceses contra o domínio anglo-saxão, em 1837, foi liderado por “uma
organização secreta de caçadores”.5
Não menos que os revolucionários nacionais que predominavam então,
os revolucionários sociais queriam iniciar a construção de um novo mundo
mediante a recuperação de esquecidos sentimentos de perfeição e de laços
familiares identificados a áreas rurais. Os Verdadeiros Italianos de Buonarroti,
que, em Paris, eram rivais dos Carbonários, chamavam a si próprios de Fa­
mílias — do mesmo modo como a Sociedade das Famílias, a organização
revolucionária social pioneira de Blanqui, de 1834. Blanqui substituiría
suas Famílias por uma organização com pretensão ainda maior de recriar
as harmonias da natureza: a Sociedade das Estações, organizada com uma
hierarquia de semanas, meses e estações. A agremiação comunista pioneira
em Lyon, em 1836, a Sociedade das Flores, dava a cada artesão membro o
nome de uma flor ou planta e realizava suas reuniões de manhã cedo em
belas áreas verdes, com vista para o Rio Saône.6 A Liga dos Fora-da-Lei,
grupo revolucionário alemão pioneiro da Paris da mesma época, cultivava
a pose de bandidos do campo e se organizava em cabanas, montanhas e ca­
banas nacionais, depois em tendas, fogueiras e fogueiras de acampamento.7
Na Suíça, sem relação alguma com aquele grupo, os revolucionários sociais
de fala francesa se identificavam como Sociedade do Cisne,8 nisso seguidos
de perto por um grupo de expressão alemã que se organizava em folhas,
brotos, flores e frutos — com uma semente ao centro.9 E, na Inglaterra, as
idéias socialistas desbravadoras de Robert Owen foram popularizadas por
uma teoria revolucionária da história supostamente extraída do estudo de

e discussão bibliográfica e comparação com a carbonária em J. Eyzaguirre, La logia Lautarina y


outros estúdios sobre la independencia, Buenos Aires/Santiago, 1973, pp. 1-14.
5 Sobre os “frères chasseurs”, J. Bernard, Les Rouges. Libéralisme, nationalisme et anticléricalisme
au milieu du xixe siècle, Quebec, 1971, p. 20; e, sobre o movimento como um todo, O. Tiffany, The
Canadian Rebellion of 1837-8, Bufalo, 1905 (reimp. Toronto, 1972), p. 61 ss.
6 V. o notável testamento do chef d’atelier de Lyon que liderou esse movimento, Joseph Benoît,
Confessions d’un prolétaire, 1968, p. 59; também M. Buffenoir, “Le Communisme à Lyon de 1834
à 1848”, Revue d’Histoire de Lyon, vol. vin, 1909, p. 348.
7 Silbernagl, “Die geheimen politischen Verbindungen der Deutschen in der ersten Hälfte des
neunzehnten Jahrhunderts”, Historisches Jahrbuch, vol. xix, 1893, esp. pp. 803—806. As traduções
dos sucessivos nomes da sede (Nationalhüte e Brennpunkt} como “abrigo nacional” e “ponto focal”
perdem as ressonâncias naturalistas do original alemão.
8 Sobre la société du cygne em Vaud, v. E. Barnikol (ed.), Geschichte des religiösen und atheistischen
Frühsozialismus, Kiel, 1932, p. 18.
9 O sistema de Blatt, Knospe, Blute e Kem de W. Weitling é proposto em seu Das Evangelium des
Armen Sünders, Berna, 1845, Cap. x: “Die Organization der Propaganda”.
222 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

colméias. À humanidade cabia não mais que acompanhar as abelhas ao longo


de cinco revoluções sucessivas: um nobre estado selvagem, ocupações pasto­
rais, a agricultura e a indústria, seguida da criação, por fim, da comunidade
de bens pela sábia abelha.10
O principal resultado do retorno romântico à natureza não foi, contudo,
alternativas socialistas ideais, mas movimentos nacionalistas reais. A imagem
da nação como um organismo natural e vital legitimou o nacionalismo re­
volucionário que predominou durante o período francocêntrico. Já que esse
ideal nacional suprapessoal continua a desorientar o homem moderno, com
a mesma força com que também o empolga, merece então maior escrutínio:
de suas canções e símbolos, do seu “povo” e de sua violência. A “primavera
das nações” foi semeada pelos carvoeiros italianos (Carbonari) e sua colheita
ainda não terminou.

10 A importância do livro The Revolt of the Bees de John Minter Morgan (serializado em Co-operative
Magazine, 1826) na popularização das idéias de Owen é discutida em W. Ar my tage, Heavens Below.
Utopian Experiments in England 1560-1960, L, 1961, p. 131. O primeiro emprego do termo “co-
munionista”,como urn termo social e não religioso, deu-se na Co-operative Magazine, 1827, nov., p.
509 (Bestor, “Evolution”, p. 278), e ao fim da década de 1830 os owenistas radicais se designavam
a si mesmos “comunionistas” e estabeleceram The Working Bee como seu semanário.
Já em 1840, o primeiro historiador do socialismo, L. Reybaud, nata va que o impulso por trás
dos experimentos utópicos de Owen e Fourier era “mais um retorno à natureza que um chamado
à purificação da civilização” (Étude, p. 25). Fourier foi ainda mais longe em matéria de fantasia
pastoral com seu famoso “falanstèrio”, com seu contraste entre as formas de associação “naturais e
atraentes” e as falsas e repelentes, com sua visão cósmica da harmonia natural e dos laços eróticos
entre os astros celestes.
CAPÍTULO 5
Os conspiradores constitucionalistas (1815-1825)

medida que os exércitos das monarquias européias entravam em Paris

A em março de 1814, todas as esperanças revolucionárias pareciam


chegar ao fim. O filho de Babeuf cometeu suicídio; e Simon Duplay
atirou ao fogo o seu “livro verde”, o qual, por si só, poderia ter fornecido
a história definitiva das primeiras conspirações de revolucionários. Mas
não passou muito tempo após ter destruído esse ingente inventário dos que
tinham “perturbado a paz da França” desde 1791, até que se visse obrigado
a iniciar outro. Trabalhando para os Bourbons restaurados de 1815 até sua
morte em 1827, compilou cerca de quinze mil dossiês sobre organizações reais
muito mais fantasiosas que os filadelfos de Nodier ou os Sublimes Mestres
Perfeitos de Buonarroti. Segundo ele, a mais fundamental das organizações
revolucionárias foi a de Didier; e o principal papel no desenvolvimento de
um movimento revolucionário por toda a França foi desempenhado pela
Associação Maçônica de Misraim, supostamente o Rito Egípcio original
com 90 graus de iniciação.1
O reaparecimento de atividade revolucionária durante a Restauração
foi muito além de conspirações ocultistas na França. Na verdade, a década

1 V. citação do texto de “Mémoire sur les sociétés secrètes et les conspirations sous la restauration
par Simon Duplay”, Revue internationale des Sociétés Secrètes, vol. n, 5 de março de 1913, pp.
547-550, bem como o prefácio bibliográfico de L. Grasilier, esp. pp. 513-515, 518, e ainda texto
suplementar, pp. 526-547. V. também Leo Spitzei; Old Hatreds, pp. 190-193; Baylot, “L’Affaire de
Misraïm”, Voie, pp. 223-231.
224 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

1815-1825 conheceu uma nova geração de revolucionários liberais e cons­


titucionais que, pela primeira vez, mobilizaram as massas sob bandeiras
mais nacionais que universais. As conspirações que desafiaram o “mundo
restaurado” através do Congresso de Viena2 representavam, afinal, o pri­
meiro movimento de juventude política nos tempos modernos. Os liberais
revolucionários, um produto típico por toda a parte da Europa no início do
século XIX, prenunciaram um importante fenômeno extra-europeu no início
do século XX: a conspiração secreta de jovens funcionários e intelectuais com
o objetivo de garantir maior acesso ao poder político em uma sociedade
tradicional e estagnada.
Um líder político capaz de abalar as tradições e suscitar esperanças se
torna indispensável para um movimento politizado de jovens. Assim como
Frederico, o Grande para a primeira geração Sturm und Drang dos anos
1770 na Prússia ou os Kennedys para o movimento de jovens nos Estados
Unidos da década de 1960, Napoleão Bonaparte foi o modelo inescapável
para uma geração incansável que jamais conhecera outro líder. Napoleão era
menos uma figura de pai do que uma figura idealizada de irmão mais velho,
a guiar a juventude na batalha contra a autoridade patriarcal. Ao mesmo
tempo, Napoleão era maior que a própria vida, tendo se elevado “acima do
pensamento mundano de fundar uma dinastia”, antes preferindo “a missão
providencial [...] destruir o isolamento dos povos, levar a civilização a lugares
distantes, abalar os diademas”.3
Ele tentara realizar, em suma, aquilo com que os outros apenas sonharam:
a transformação política do mundo.
A reaparição messiânica de Napoleão vindo de Elba para os “cem dias”
que antecederam sua derrota final em Waterloo restaurou sua imagem,
colocando-a mais na condição de revolucionário do que de tirano. Ele havia
empunhado a bandeira constitucional das liberdades civis e de uma distri­
buição federativa do poder. Trouxera para o seu lado, por fim, o Marquês
de Lafayette, símbolo da revolução constitucional tanto nos Estados Unidos
como na França.
Lutando contra ou a favor de Napoleão, os jovens europeus receberam
dele a sede de heroísmo e até de martírio. Ele expandiu horizontes, inten­
sificou os apetites e infectou de paixões políticas a Europa jovem. As três
2 H. Kissinger, A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-1822,
Boston, 1957.
3 Trelat, “La Charbonnerie”, Paris révolutionnaire, pp. 220-221.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 225

nações que estiveram à frente da tradição revolucionária no início do século


XIX — França, Itália e Polônia — foram precisamente aquelas em que o culto
de Napoleão era mais intenso.
Os novos revolucionários despertos durante o período napoleonico não
almejavam mudanças sociais drásticas, mas claramente desejavam algo além
de mera independência política e reforma constitucional. Mickiewicz falou,
com grande inverossimilhança, numa combinação de Cristo e Napoleão;
Piasecki se referiu vagamente à “criação de um novo povo”.4
Mas perguntar o que eles realmente queriam equivale a propor a mais
irrespondível — senão a mais importante — questão sobre a vocação revo­
lucionária. Mapear utopia pode conduzir mais à fantasia que à revolução.
Qualquer lista minuciosa de demandas pode levar a excruciantes discussões
e divisões entre os revolucionários — e fornece aos poderes existentes a
oportunidade de cooptação seletiva.
Assim, o sucesso alcançado pelos primeiros conspiradores ao levantar
grandes porções da Europa contra a autoridade existente não se devia a
nenhuma visão bem delineada da sociedade que buscavam. Tampouco pode
o seu dinamismo ser explicado como uma conseqüência da burguesia per­
petuamente em ascensão. A principal força da Revolução Industrial ainda
não havia alcançado o continente; e o movimento revolucionário era mais
forte — na Península Ibérica, na Grécia e na Rússia — nos lugares onde a
burguesia era mais fraca e a liderança política, de feitio aristocrático.
O principal objetivo declarado do movimento revolucionário — limitar a
monarquia por meio de uma “constituição” formal — era talvez o seu aspecto
menos compreendido. O embaixador francês em Nápoles perguntou a um
camponês da Apúlia no começo de 1818: “Mas que constituição é essa que
vocês desejam?”, e recebeu por resposta: “Não sei nada disso, mas é melhor
que nos dêem uma”.5
4 Citado em Landa, Dukh, p. 274.
5 Citado em Baylot, Voie, p. 168.
Sobre a suposta confusão que o comum dos espanhóis feria feito entre constitution e constipation,
v. E Radice, “An Introduction to the History of the Carbonari”, Ars Quatuor Coronatorum, vol.
Lin, 1942, p. 105. Essa história (serializada em voi. li, pp. 37—90; vol. LU, pp. 63-163; voi. lui,
pp. 48-140; voi. lv, pp. 35-66) é urna grande obra negligenciada nesse campo de estudos, rica em
informações, ainda que irregular em suas interpretações, e escrita desde um ponto de vista maçônico.
Testemunhos desencontrados sobre a muito acreditada história da confusão, na Rússia, de
Konstitutsiia com o nome da esposa do Grão-Duque Constantino são abordados em Nechkina,
Dvizbente, vol. n, pp. 323-324; e J. Michelet, Legendes démocratiques du nord, 1968, p. 164, nota
147. Nechkina defende que se trata apenas de uma anedota posterior projetada sobre o evento
passado como uma “versão do governo”.
226 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM F HISTÓRIA

A visão de mundo romântica dos jovens revolucionários foi moldada não


só pelo feitiço de Napoleão, mas também pela experiência de camaradagem
de seus pequenos grupos. Essas fraternidades exclusivamente masculinas su­
blimaram o impulso erótico sob a forma de aspiração — assim propiciando
a jovens deslocados em uma era turbulenta uma comunidade simples de fé
que remetia a uma época anterior, menos complicada. O grupelho fraterno
servia de modelo; a “política do miraculoso” era seu motor; uma segunda
vinda revolucionária era o destino.
O mais importante movimento desse período foi o dos carbonários ita­
lianos: o primeiro a mobilizar as massas em torno de uma causa nacional
através de uma organização secreta. Tendo atraído em pouco tempo uma
quantidade de membros sem precedentes, chegando a no mínimo 300 mil,67
eles representavam um perigo à Restauração conservadora que se projetava
para bem além da Itália. Constituíam um desafio direto tanto à estabilidade
como à legitimidade do governo dos Habsburgos, o eixo central da era pós-
-napoleônica. Os carbonários ameaçavam os dois pilares gêmeos da ordem de
Metternich, as fronteiras tradicionais e a autoridade monárquica, justamente
onde sua base era fraca: a dividida península itálica.

A Fraternidade da Floresta
Quando o principal colaborador de Buonarroti se referiu ao movimento re­
volucionário durante o período da Restauração como “esse partido de Jura”'
deu a ver a genealogia, assim como a geografia, da tradição revolucionária.
Os filadelfos originais da década de 1790 procederam da região verde e re­
lativamente intocada de Jura, situada entre Besançon e Genebra; Buonarroti
e seus amigos lá operaram até que ele se mudasse para Bruxelas em 1824;8
6 Essa estimativa do General Pepe é a mais baixa das várias reunidas em Radice, Ars, vol. lui, p. 92.
Para outras estimativas contemporâneas duas ou três vezes maiores, v. Landa, “Konspiracje”, p.
256.
7 Andryane, Souvenirs, vol. il, p. 173.
8 O próprio Buonarroti visitava freqüentemente a região de Genebra (e de Grenoble, onde ele
morou intermitentemente de 1812 a 1815) e restaurava a sua “estamina” revolucionária mediante
“devaneio metafísico” ao longo de extensas caminhadas pelo campo, o que lhe possibilitava 1er o
“hieróglifo” contido na “linguagem misteriosa da natureza universal”. Andryane, vol. il, p. 157;
Prati, “Autobiography”, The Penny Satirist, 17 de junho e 26 de agosto de 1837.
Mais tarde Buonarroti leu uma brochura, e pode ser que tenha sido influenciado por ela, assinada
por “J.B. (de Jura)”, The Age of Gold unveiled, or a plan of civil, political and religious organization
(Saitta, vol. I, p. 168, nota 112), e depois compartilhou essa visão com seus seguidores belgas,
conforme se evidencia na peça The earthly paradise (J. Kats, Het Aerdsch Paradys of den Zegeprael
der Broederliefde, Antuérpia, 1836, BM, comentado em Kuypers, Égalitaires, pp. 80-81 ), a alcançar o
piano de 736 páginas de uma reorganização igualitária da Europa de autoria do cervejeiro flamengo
LIVRO n, CAPÍTULO 5; OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 227

e sua idéia romântica de recuperar uma idade de ouro perdida continuou a


florescer ali até a formação da aliança final de Bakunin com os revolucionários
românticos, a Fédération Jurasienne do início da década de 1870. Dostoiévski
situou sua caricatura anti-revolucionária de Bakunin, o Nicholas Stavroguin
de Os demônios^ como alguém que se suicida em Jura, mas mesmo assim não
deixou de prestar sua homenagem ao sonho revolucionário, “a idéia de Ge­
nebra”: “A era de ouro é o mais inverossímil de todos os sonhos. Mas a ele os
homens dedicaram sua vida e sua força; por ele, profetas morreram e foram
assassinados; sem ele, o povo não viverá e não pode morrer”.9
Foi de Jura, no início do século xix, que vieram os primeiros abastecedores
do sonho, a fim de levantar as massas: a Sociedade dos Bons Primos, os carbo-
nários.10 A mutação rural da maçonaria de Besançon foi transplantada pelos
exércitos napoleônicos para o sul da Itália, onde foi politizada e popularizada
em todo o Reino de Nápoles ao longo do governo do errático cunhado de
Napoleão, Joaquim Murat (1808-1815). Teve papel de destaque um veterano
do grupo de Besançon, Jean-Pierre Briot, cujo fascínio por um novo tipo de
fraternidade das florestas foi, ao que parece, alimentado pela experiência de
escapar do cativeiro austríaco penetrando a Floresta Negra e pela experiência
política de comissário revolucionário para a Ilha de Elba em 1801-1802, antes
de ir para Nápoles e fundar o primeiro grupo de carbonários em 1807.11
Essa nova ordem ritual se baseava no mesmo tipo de família estendida e
lealdade protetiva que depois produziríam a màfia.12 Ela atraiu aristocratas
de menor envergadura e profissionais sem títulos que não tinham se envolvido

Napoleon de Keyset Het Natuer-Regt, Bruxelas, 1854, em Kuypers, p. 131.


9 Esse sonho de Versilov {A Raw Youth, 1874) amplia a primeira declaração dessa idéia num capítulo
suprimido do romance anterior de Dostoiévski (a “confissão” de Stavrogin em Os demônios,
1870-1872).
10 Os estudos fundamentais sobre o grupo de Jura são C. Godard, Les bons cousins charbonniers,
Besançon, 1896; e Le catéchisme des Bons Cousins charbonniers, Besançon, 1903; e a hipótese mais
plausível da derivação dos “bons primos” napolitanos a partir dos de Besançon é de A. Mathiez,
“L’Origine franc-comtoise de la charbonnerie italienne”, Annales Historiques, vol. v, 1928, nov.-dez.,
pp. 551-561. Essa hipótese de que tenha havido um elo é corroborada de maneira convincente por
Spitzer (embora se mostre seletivamente cético a respeito de algumas das provas invocadas, Old
Hatreds, p. 232, nota 60); por F.-A. Isambert, De la Charbonnerie au Saint-Simonisme. Étude sur la
jeunesse de Bûchez, 1966, p. 99, nota 3; e indiretamente pelos empréstimos terminológicos citados
em Radice, Ars, voi. li, 1940, p. 60.
11 J. Godechot, The Napoleonic Era in Europe, NY, 1971, p. 155; Brengues, Eranc-maçonnerie du
bois, pp. 190-191. Importantes detalhes suplementares sobre Briot (que é, contudo, incorretamente
chamado de Pierre-Joseph) podem ser encontrados em Baylot, Voie, pp. 167-175, 230-231, onde
se documenta seu envolvimento posterior com o movimento de Misraim na França.
12 V. Hobsbawn, Bandits, Cap. in.
228 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tanto com lojas maçônicas tradicionais como os seus pares do norte da


Itália.13 Os carbonários se apoiaram cada vez mais em um populacho até
então adormecido quanto à atividade cívica e representaram uma ameaça
imediata ao Rei Fernando i, um Bourbon tradicionalista, quando teve seu
trono restaurado em 1815.
O rito carbonário do Sul era muito mais eficiente na mobilização das
massas do que o rito maçônico tradicional do Norte. Símbolos da natureza
e da família substituíram a linguagem ocultista e matemática da maçonaria.
Os carbonários eram uma fraternidade de artesãos na floresta, não uma or­
dem esotérica em um templo; reuniam-se em lojas populares (o significado
literal de vendita^ o termo que designava suas células locais), não em uma
aristocrática loja maçônica; e mandavam seus membros adotar um santo
padroeiro (São Teobaldo, o qual supostamente teria renunciado à civiliza­
ção para levar a vida simples de carvoeiro), em vez de mandá-los perseguir
os segredos esotéricos de Salomão, Pitágoras e similares. Mais importante
ainda, os carbonários utilizavam símbolos religiosos populares nessa região
fortemente católica.
Para se tornar membro da carbonária, o indivíduo tinha de passar pela
iniciação numa fraternidade católica de grau mais elevado. O postulante ao
segundo grau de associação recebia uma coroa de espinhos análoga à da
paixão do próprio Cristo. Mais tarde, à medida que a sociedade adotava
inclinação mais política, a iniciação acabou por incluir um caminho do
Calvário diante de Caifás, Herodes e Pilatos. Ia implícita aí a mensagem de
que Cristo apontara o caminho da resistência ao poder civil, à Igreja e ao
rei. O quarto e último grau de iniciação envolvia se curvar diante da cruz e
receber os estigmas, antes de ser resgatado e aceito como um grão-mestre,
um grande eleito que jurou combater a tirania.14
O caminho da carbonária, desde a filantropia até a ambição política,
nunca foi claramente estabelecido. Mas aí, mais uma vez, parece que as
fantasias dos reacionários acabaram por desempenhar um papel na determi­
nação das identidades dos revolucionários. A versão dos carbonários sobre
a origem do grupo parece ter sido tirada da narrativa constante na obra

13 G. Leti, Carboneria e massoneria nel Risorgimento italiano, Bolonha, 1915, p. 69 ss. V. também J.
Rath, “The Carbonari: Their Origins, Initiation Rites, and Aims”, American Historical Review, 1964,
jan., pp. 353-370; também sobre a importância da liderança no sul da Itália, v. Berti, Democratici,
p. 148 ss.; e sobre as primeiras preocupações (e fantasias, como sugerir um elo com os Iluminados)
nutridas pelos Habsburgos, v. Lennhoff, pp. 17-19.
14 Lennhof, pp. 25-28; Radice, Ars, vol. Liv, 1943, pp. 143-144.
LIVRO n, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 229

contra-revolucionária de denúncia escrita pelo Abade Barruel, segundo a


qual fugitivos escoceses tinham buscado liberdade nas florestas, tornando-se
carvoeiros. O Rei Francisco i da França teria sido ajudado por eles ao se
perder durante uma missão de captura, iniciado em seus ritos e se tornado
seu protetor.15
Por volta de 1812, a carbonária tinha adquirido sua estrutura característica
de células locais secretas comandada por uma mais elevada: a Alta Vendita.
A carbonária se tornou, com efeito, um contragoverno piramidal no Reino
de Nápoles, inclusive com o mandato auto-imposto de reunir um corpo le­
gislativo composto pelas outras tribos (as subdivisões étnico-territoriais da
carbonária). As organizações dos carbonários não demoraram a se expan­
dir por estados papais e outras províncias italianas, fundindo o novo ideal
constitucional com o velho sonho de uma Itália unificada.
A carbonária combinava todas as três fés que vimos ser cruciais para a
tradição revolucionária: fé em uma revolução incompleta, na autoridade da
natureza contra a tradição e em uma organização secreta, hierárquica.
A fé em uma revolução incompleta estava particularmente disseminada
na Itália, a qual forneceu alguns dos mais dramáticos ecos e mais notáveis
apoiadores estrangeiros da primeira Revolução Francesa e das reformas
napoleônicas. A classe média italiana estava irada com o retorno de uma
monarquia conservadora que não tinha sequer a garantia parcial de liberdades
constitucionais oferecida pela Carta francesa de 1815.
A carbonária via a si mesma como herdeira de uma rica linhagem de sei­
tas e sociedades que mantiveram viva a “linguagem intocada da natureza” e
como aquela que poderia guiar o homem “até a contemplação da natureza
sempre a mesma, até o amor do homem tomado coletivamente”.16 Embora
“o doce nome de irmão tenha sido preterido” por uma humanidade que se
tornara presa da violência e da intriga,17 era pelo menos possível a cada um
se tornar um “bom primo” através da carbonária.
O espaço em torno do local de encontro era a floresta na qual o bem
havia sido preservado pelos carvoeiros. Cada aprendiz carregava consigo
um pedacinho de madeira — na esperança de que este se transformasse em

15 V. as anônimas Memoirs of the secret societies of the South of Italy, particularly the Carbonari, L,
1821 (uma obra rica em documentos e citações de trechos seus), esp. pp. 4-8 (BO).
16 Dos papéis dos conspiradores de Macerata, 1817, impressos nas minutas do julgamento em Roma,
1818, em Memoirs, p. 31.
17 Ibid., pp. 26-27.
230 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

uma forma superior de carvão e o próprio aprendiz, em um carvoeiro. O


grão-mestre usava um machado como seu martelo de juiz sobre um bloco
de madeira, o tronco simbólico da árvore à qual todos os galhos da socie­
dade estavam organicamente ligados. Esses galhos compartilhavam raízes
comuns na terra e faziam parte de uma grande árvore comum, cujas folhas
lembravam à fraternidade secreta “que assim como os nosso primeiros pais,
depois de perderem sua inocência, cobriram suas vergonhas com folhas, [as­
sim também] os Bons Primos devem ocultar os defeitos de seus seguidores,
e em particular aqueles da Sociedade”.18
O segredo se tornou um estilo de vida para a carbonária, com seus en­
contros vedados à vista pública, seus apertos de mão secretos, suas senhas e
sinalizações. Disciplina hierárquica também era importante. O grão-mestre
tinha poder total sobre a agenda. Nenhum bom primo falava numa reunião
sem permissão de quem estivesse à cabeceira da fileira em que estivesse
sentado; e eram prescritas punições para aqueles que cometessem erros em
matéria de moral pessoal ou de ritual carbonário.
A escada de madeira — símbolo da ascensão do homem à perfeição — estava
sempre sobre a mesa do mestre da loja; e um sinal fundamental tanto para os
aprendizes como para os mestres era conhecido como “escada”.19 Seu ritual de
reconhecimento — os dois braços esticados verticalmente para baixo com as
mãos fechadas — talvez seja um ancestral distante da futura saudação revo­
lucionária: uma mão erguida com o punho fechado. Feixes {fasci) de gravetos
também ficavam sobre a mesa do mestre — um símbolo que ia dar na Roma
antiga e que seria revivido na Roma de Mussolini. Para os carbonários, os
feixes significavam “os membros de nossa respeitável ordem, unidos em paz”.20
Para que cada pedaço de madeira fosse transformado em uma forma mais
pura e útil de carvão, cada encontro era concebido como uma purificação
ritual através do fogo nas fornalhas de uma gruta secreta na floresta.21 Aqueles
que progrediam até o grau de grande eleito enfrentavam a mais impressio­

18 Ibid., p. 28, também pp. 27-30.


19 M. Saint-Edme, Constitution et organisation des carbonari, 1821, pp. 90-91. Esse trabalho de
junho de 1821 contém os estatutos básicos, os quais por sua vez correspondem ao primeiro grau,
ao lado de outro conjunto de documentos, em O. Dito, Massoneria, carboneria, ed altre società
segrete, Turim, 1905. A validade dos documentos de Saint-Edme tem sido em geral defendida por
estudiosos mais recentes como Isambert, o qual, contudo, sugere (Charbonnerie, p. 97, nota 1) que
os documentos provêm de data posterior à de 1807 sugerida por Saint-Edme, cujo nome correto
era Edme Théodore Bourg.
20 Memoirs, p. 29, nota 9.
21 Ibid., p. 86, descreve os membros como “feixes para nossas fornalhas”.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 231

nante dessas provações pelo fogo. O grande mestre entrava pela única porta
secreta que vinha do Ocidente.

Dois guardas chamados de “chamas” ficavam um em cada lado da porta, segurando


dois sabres feito chamas de fogo.22

Os membros sentavam sobre linhas dispostas triangularmente em uma


sala triangular sob três velas dependuradas que simbolizavam as três fontes
de esclarecimento no grande firmamento (o sol, a lua e a estrela polar). A
reunião era aberta com o grão-mestre dando sete batidas solenes do machado
no tronco cerimonial voltado para o Oriente, cerimônia agora decorada não
só com fogo simbólico, mas também com “numerosas chamas amarelas”.23
Aqueles considerados indignos de admissão poderiam ser excluídos des­
de que “circulados em preto”, com carvão, em um livro negro. Existia uma
obrigação literalmente incendiária de atender às exigências da sociedade
de manter segredo para com os de fora e total transparência para com os
de dentro. Os nomes de membros que caíam em erro repetidamente eram
queimados das listas de associados em reuniões públicas.24
A carbonária oferecia um ponto de convergência ideal para aqueles que
tinham sido politizados pela era revolucionária e partilhavam de sua vaga
determinação de “esconder a floresta de seus lobos”.25 Em 1817, a sociedade
estava imprimindo panfletos que recomendavam a sonegação de impostos
até que o rei garantisse uma constituição escrita.26 As atividades políticas
foram se intensificando até que a carbonária pôde liderar o bem-sucedido
levante napolitano de julho de 1820. Em seguida, quando vieram tropas
austríacas para reprimi-lo, os carbonários lideraram uma revolução similar
no Piemonte rumo ao norte.27

22 Saint-Edme, pp. 94-95.


23 Ibid., pp. 94-96.
24 “Regulation of the vendita”, em Saint-Edme, p. 47.
25 Lennhoff, pp. 18-19.
26 Memoirs, p. 82.
27 No norte da Itália, grande parte da preparação para a revolução foi realizada por lojas maçônicas
que haviam sido politizadas com o influxo de oficiais pró-franceses antes de sua dissolução forçada
em 1814 (R. Sòriga, 11 primo Grande Oriente d’Italia, Pavia, 1917). Esse processo aconteceu na
Espanha só depois de 1814, mas se desenvolveu com grande velocidade (De la Fuente, Sociedades,
vol. I, pp. 209-313). Também afetou Portugal, mas em grande medida através do Brasil, onde o
efêmero levante republicano de 1817 tinha origem em parte maçônica (V. Chacon, História das
idéias socialistas no Brasil, Rio de Janeiro, 1965, pp. 13-16). Para maiores detalhes sobre a origem
dessa rica tradição de sociedade secreta no Brasil, v. Buarque de Holanda, História, vol. ii (O Brasil
monárquico, vol. i), pp. 194-216.
232 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Essas insurreições italianas espetaculares, ainda que efêmeras, foram os


eventos do período da Restauração de importância decisiva para a tradição
revolucionária. São o principal elo numa cadeia de revoluções constitucionais
que se iniciara cinco anos antes, muito longe do Ocidente, com rebeliões
coloniais contra a Espanha, e terminaria cinco anos depois, com a derrota,
já do Oriente, dos dezembristas russos. A insurreição italiana foi inspirada
pela bem-sucedida revolução na Espanha em janeiro de 1820;28 e os italianos,
por sua vez, ajudaram a inspirar os russos.

Ecos internacionais
O primeiro — e o único a chegar a bom termo — eco dos carbonários se
iniciou com um conclave secreto de revolucionários no verão de 1820, ao
mesmo tempo que as potências contra-revolucionárias estavam reunidas no
Congresso de Troppau. Um grupo de europeus orientais reunido em Izmail,
à foz do Danúbio, ouviu falar de planos para um levante vindouro na Gré­
cia que fora projetado por uma organização notavelmente parecida com a
carbonária: a Philiki Hetairia ou Associação Fraterna. Formada por gregos
nas redondezas de Odessa em 1814,29 lembrava a organização italiana em
seus rituais de iniciação e em seus juramentos, em sua mistura de símbolos
maçônicos e cristãos. Havia quatro graus em sua hierarquia, depois com­
plementados por três graus superiores especialmente recrutados sob um
diretório de sete homens. Essa estrutura complexa e secreta se desenvolveu
rapidamente, em especial dentro da comunidade comerciante grega do
Mediterrâneo. Seus afiliados se espalharam de Gibraltar aos portos do Mar
Negro. Ela proporcionava uma causa capaz de unir indivíduos e um refúgio
para veteranos dos Bálcãs descontentes com uma década de luta intermitente
contra os turcos.
A Hetairia tinha quatro vantagens sobre a carbonária: um importante
padrinho posicionado na estrutura de poder continental (o General Alexander
Ypsilanti, ajudante-de-campo do Tzar Alexandre i); um inimigo não-euro-
peu (os muçulmanos turcos); um foco mais explicitamente político (suas
ordens alta e baixa eram as de cidadão e administrador, respectivamente);
e, sobretudo, uma canção. Pois o movimento nacionalista grego havia sido
28 G. Spini, Mito e realtà della Spagna nelle rivoluzioni italiane del 1820-1821, 1950. Também houve
empréstimos da constituição que os ingleses tinham ajudado a introduzir na Sicilia em 1812.
29 G. Arsh, Eteristkoe dvizhenie v Rossii, 1970, esp. p. 167 ss. Para uma discussão do movimento
grego em seu contexto europeu e quanto à sua interação com outros movimentos nos Bálcãs, v. D.
Djordjevic, Révolutions nationales des peuples balkaniques 1804-1914, Belgrado, 1965, pp. 31-56.
LIVRO n, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 233

deflagrado por um hino militante anti-turco, o Thourios, o qual incendiou


o povo grego com uma velocidade “talvez única na história”, mesmo antes
que seu autor-poeta, Rhigas Velestinlis, fosse preso em 1798 com sua flauta
e dois instrumentos de madeira e entregue pelos Habsburgos aos turcos para
que fosse executado. Se a organização rudimentar de “bons primos” que
fundou em Viena com ramificações em Belgrado e Bucareste foi, sob alguns
aspectos, uma precursora da Hetairia, seu hino, por sua vez, prenunciou o
papel evocativo que veremos a música exercer repetidamente nas revoluções
nacionalistas do século xix.30
Como a canção de Rhigas se dirigia a todos os povos balcânicos, e como
a Hetairia de Ypsilanti (de quem Rhigas chegou a ser secretário) era forte
por todos os Bálcãs, surgiu a esperança de uma insurreição geral apoiada
pelas forças russas contra os turcos. Mas o assassinato, em 1817, do militan­
te Karageorge, o ex-chefe eleito da Sérvia constitucional, privou a Hetairia
de seu aliado mais poderoso. O fracasso de um levante na Moldávia e na
Valáquia no início de 1821 fez enfraquecer as visões de uma libertação ao
longo do Danúbio ou para além dos Bálcãs.31
Ainda assim, a insurreição iniciada na Grécia em março de 1821 deu
novo alento à revolução por toda parte, estimulando a imaginação romântica
com o ideal de libertação de santuários da antigüidade clássica e falando até
aos conservadores, como uma espécie de cruzada de solidariedade cristã. A
independência grega foi por fim alcançada só após as potências terem esta­
belecido uma monarquia conservadora; e toda a luta grega se tornou, sob
muitos aspectos, a válvula de segurança para os impulsos revolucionários
do período. Até monarcas conservadores apoiaram a causa “revolucionária”
da luta contra o sultão turco.
Mas os românticos radicais também se imaginavam a renovar os laços com
o berço da democracia, e a revolução nacional grega assumiu importância

30 A. Dascalakis, Rhigas Velestinlis. La Révolution française et les préludes de l'indépendance hellénique,


1937, pp. 71, 78, 90; também pp. 83-94 sobre o impacto da canção e pp. 61-82 sobre a clara
separação entre a organização embrionária de Rhigas da posterior Hetairia. A consciência nacional
do movimento iliriano também recebeu seus primeiros estímulos de canções revolucionárias escritas
por colaboradores eslovenos e croatas dos revolucionários húngaros de Martinovics. V. V. Bogdanov,
“Hrvatska revolucionarna pjesma iz godine 1794 i uéesée hrvata i srba u zavjeri Martinoviéevih
jakobinaca”, Starine, vol. xlvi, 1956; I. Leshchilovskaia, Illirizm, 1968, pp. 46—47.
31 N. Botzaris, Visions balkaniques dans la préparation de la révolution grecque (1789-1821), Genebra,
1962; M. Lascaris, Le role des grecs dans Vinsurrection serbe sous Karageorges, 1933, pp. 2-21; S.
Samoilov, “Narodno-osvoboditernoe vosstanie 1821 g. v Valakhii”, Voprosy Istorii, 1955, n° 10,
pp. 94-105, e sobre o interesse da Seção Sulista dos dezembristas russos pela revolta grega de 1821,
v. I. Iowa, Yuzhnye dekabristy i grecheskoe natsional’no-osvoboditel’noe dvizhenie, Chisinau, 1963.
234 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

histórica permanente para a tradição revolucionária. Elevou o prestígio da


revolução constitucional por toda a Europa no momento mesmo em que
essa causa parecia estar completamente arruinada. Deu força imaginativa
à causa da revolução nacional — como algo distinto da revolução social; e
mobilizou politicamente escritores românticos influentes.32 Shelley escreveu
o seu último drama, Hellas, para louvá-la; e seus simpatizantes literários
ajudaram a popularizar a nova designação de “liberais” para aqueles que
buscavam limitar o poder do rei e do clero por meio de constituições e ga­
rantias de liberdades civis. Lorde Byron ajudou a fundar a revista Liberal e
publicou seu Verse and prose from the South em 1822, por fim assegurando
seu posto de herói romântico da época ao morrer dois anos depois na Grécia
como revolucionário voluntário.
A idéia liberal de fato veio do Sul. Se, depois da Itália, a Grécia se tor­
nou a causa escolhida pelos revolucionários europeus da década de 1820,
na década anterior fora na Espanha que a palavra “liberal” veio a ser pela
primeira vez inscrita na bandeira da revolução nacional.33 O nascimento do
termo “liberal” na Espanha — empregado em oposição ao termo “servil”
— assinala a aparição consciente da terminologia maniquéia de combate em
meio aos revolucionários.34 O estabelecimento de um governo constitucional
nos anos seguintes envolvería, aos olhos dos revolucionários, bem mais que
a mera vitória dos “democratas” sobre os “aristocratas” (o dualismo mais
destacado do período revolucionário francês). A nova revolução “liberal”
marcou o nascimento de um novo tipo de homem “liberal”, liberto afinal
da herança servil.
Quem introduziu a palavra na Casa dos Comuns, no início de 1816, foi
Lorde Castlereagh, ao denunciar os “liberales” espanhóis como um “partido

32 Essa notável paixão literária, talvez sem paralelo até que a Guerra Civil Espanhola provocasse
reação similar na década de 1930, é discutida em W. St. Clair, That Greece might still be free: the
Philhellenes in the War of Independence, NY, 1972.
33 Em 1810, os espanhóis começaram a utilizar o termo partido libre para designar aqueles que
defendiam uma imprensa livre e reformas constitucionais, vindo a utilizar, com o mesmo sentido, o
termo partido liberal em 1813. M. Cruz Seoane, El primer linguaje constitucional espanof Madri,
1968, p. 158.
34 Uma “guerra político-literária entre liberais e servis” foi anunciada em um artigo com esse título
em El Semanario patriótico, 29 de agosto de 1811, o que é discutido em Seoane, pp. 158-159. O
contraste foi reforçado por meio da hifenização do termo “servil”, a fim de acentuar suas partes
componentes, ser-vil (p. 157). A neutralidade era impossível no clima moral polarizado: “No seas
neutral / O servil o liberal” (p. 166).
Para outra discussão da súbita politização de um termo com múltiplos empregos espanhóis anteriores,
ver. J. Marichal, “Espana y las raíces semânticas dei liberalismo”, Cuadernos, 1955, mar.-abr., esp.
pp. 57-60.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUC ION ALISTAS (1815-1825) 235

perfeitamente jacobino”.35 A essa altura, o novo ideal já tinha alcançado a


França durante os cem dias de esperanças renovadas que se seguiram ao
dramático retorno de Napoleão de Elba em março de 1815. Em Grenoble,
onde Napoleão encontrou uma das recepções mais tumultuadas de sua vida,
Joseph Rey lhe disse que a era das “idéias liberais” e das “constituições li­
berais” havia raiado,36 e que Napoleão deveria guiar o novo movimento na
condição de “filho adotivo predileto da mais liberal das revoluções”.37
Após a derrota de Napoleão em Waterloo e o exílio final, muitas figuras
mais velhas, como Lafayette e Cousin, que haviam sidos atraídos por ele
durante seu período “liberal”, ficaram impressionadas com a carta constitu­
cional sob a qual o restaurado Rei Luís xvm prometera governar. Lafayette
confessou a Jefferson sua intenção de “nos unir com o trono constitucional
dos Bourbon, ao mesmo tempo que lutamos para torná-lo tão nacional e
liberal quanto possível”.38
Mas, para uma geração mais nova, o lema “nacional e liberal” surgia
conspurcado quase desde nascença. Napoleão alimentara grandes esperanças
em seus últimos cem dias. Muitos jovens soldados e estudantes, que jamais
tinham conhecido outro modelo, não poderíam aceitar um Bourbon restaura­
do: “Juraram que a França iria se soerguer novamente de seus dias de luto”.39
Em fevereiro de 1816, Rey fundou em sua cidade natal, Grenoble, a
primeira sociedade secreta francesa do período da Restauração: a Union
libérale.40 Parece ter tido inspiração e ambições internacionais, disfarçando
35 Esse é o mais remoto uso sugerido na mais completa migração do termo a partir da Espanha (E.
Halévy, A History of the English People 1815-1830, NY, 1923, p. 81, nota 1). Os empregos aí
citados não estão incluídos no Oxford English Dictionary, 1933, vol. vi, pp. 237-238, que lista
uma venerável tradição de significados não-políticos: artes liberais (enquanto distintas das artes
mecânicas), liberdade de opinião e de ação e liberdade de preconceito filosófico. O único exemplo
lá citado de uso moderno anterior a 1812 é de Helen Maria Williams, em 1801, que usa o termo de
maneira bastante geral com o sentido de inimigo moderado do despotismo. (Sketches of the State
of Manners and Opinions in the French Republic, L, 1801, vol. I, p. 113. V. também p. 63.).
36 Adresse à l’Empeurer par Joseph Rey de Grenoble, président du tribunal civil de Rumilly, 2a ed., 4
de abril de 1815, pp. 7-8 (BM).
37 Ibid., p. 9.
38 Citação sem referência em P. Thureau-Dangin, Le parti libéral sous la restauration, 1876, p. 9,
nota 1. Os empregos ligeiramente posteriores que se iniciam com o uso negativo de 1817 estão
documentados em G. de Bertier de Sauvigny, “Liberalism, Nationalism, Socialism: The Birth of Three
Words”, Review of Politics, 1970, abr., pp. 153-154. V. também E. Harpaz, L’École libérale sous la
restauration, Le “Mercure” et la “Minerve” 1817-1820, Genebra, 1968.
39 Trelat em Paris révolutionnaire, p. 227. V. também E de Corcelle, Documents pour servir à l’histoire
des conspirations, des partis et des sectes, 1831, e I. Tchernoff, Le parti républicain sous la monarchie
de juillet, 1901, pp. 34 ss.
40 P. Onnis Rosa, “Propaganda e Rapporti di Società Segrete intorno al 1817 (Rey, Blanc, Buonarroti)*1,
236 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORKiEM F HISTÓRIA

seus estatutos como um extrato da Boston Gazette de 1796.41 Recrutou exi­


lados políticos na Alemanha, na Suíça e na Bélgica,42 e seguiu a tradição de
Buonarroti de acrescentar um terceiro grau de associação sobre dois graus
mais baixos, de tipo maçônico. Rey foi inspirado por seus contatos próximos
com a Alemanha, e mais tarde veio a se tornar na Suíça um agente ativo dos
planos de Buonarroti para uma organização revolucionária internacional.43
A Union firmou elos com revolucionários respeitados, os quais compu­
seram a espinha dorsal do que logo seria chamado de carbonária francesa:
Lafayette, Voyer d’Argenson, Dupont de l’Eure e Victor Cousin. Ao mesmo
tempo, a inchada população estudantil do pós-guerra começou, de maneira
independente, a utilizar as lojas maçônicas para fazer agitação republicana.
Uma organização, fundada logo após setembro de 1818 com o nome, típico
dos Iluminados, de Amigos da Verdade, tornou-se um centro para estudantes
radicais e alcançou mais de mil membros.44
A proliferação de organizações e manifestações na França durante 1819 e
1820 não revela nenhuma força ou programa único. Ainda assim, os círculos
de estudantes do período da Restauração compartilharam com os espiões
disfarçados que os perseguiam a crença implausível de que a agitação de uns
poucos produziría, de algum modo, a convulsão de muitos. Os estudantes
sentiam — a despeito de tudo o que pesava no sentido contrário — que o
destino da França moderna estava na inovação alcançada mediante súbita
mudança política. Conseqüentemente, sua missão era apenas se livrar do go­
verno dos Bourbon imposto desde fora. O partido antimonarquista conhecido

Rassegna Storica del Risorgimento, voi. li, 1964, out.-dez., p. 481.


41 Ibid., p. 483.
42 Esses detalhes fornecidos por Spitzer, Old hatreds, esp. pp 212-215, aparentemente se baseiam no
relato de Rey em La patriote des Alpes, Io de outubro de 1841.
43 Sobre Rey e Union, v. Isambert, p. 82, bem como as referências dadas, p. 82, nota 4; e Lehning, p.
125. Sobre o que se sabe de Buonarroti em Grenoble, v. Pianzola, pp. 127-128. O termo “união”
pode ter se originado ou da Loja da “União dos Corações” em Genebra (Pianzola, p. 124, nota 7)
ou da própria Loja da “Perfeita União” em Grenoble, a respeito do que se leia E Vermale, “Joseph
de Maistre, Franc-Maçon”, Annales Révolutionnaires, vol. n, 1909, esp. pp. 367-368. A sociedade
“Les amis de L’Union Parfaite”, formada em Leghorn em 1796, também parece ter adotado formas
maçônicas com propósitos revolucionários sob a influência de Iluminados italianos. V. Francovich,
Albori, pp. 89-90. Rey visitava com freqüência a Alemanha (G. Weill, “Les Mémoires de Joseph
Rey”, Revue Historique, 1928, jan.-abr., esp. pp. 293-296, 302-303) e é quase certo que estivesse
imitando Tugendbund (Onnis, “Propaganda”, p. 482).
44 As origens do grupo são descritas vividamente em J. Flotard, “Une nuit d’étudiant sous la Restauration
(du 19 ao 20 août 1820)”, Paris révolutionnaire, pp. 197-215. A atmosfera geral e a organização
da geração estudantil são discutidas em Isambert, pp. 45-84, o qual data (p. 70) a existência formal
dessa loja de junho de 1820.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONST1TUCIONALISTAS (1815-1825) 237

como Independentes foi, assim, infiltrado por estudantes que substituíram


o rótulo subversivo espanhol de “liberal” pelo termo italiano ainda mais
amedrontador de “carbonária”, assim designando sua organização.
Utilizando-se, por meio dos Amigos da Verdade, de organizações maçônicas
para fazer mobilização revolucionária, os estudantes converteram, em 1819, o
jornal O Aristarco Francês em um porta-voz legal das idéias revolucionárias.
O mesmo grupo tentou organizar um “comitê dirigente” revolucionário e
uma rede conspiratória clássica de células de cinco homens (“brigadas”).45
Poucas ordens eram dadas, e essas brigadas freqüentemente acabaram se
voltando para uma violência incontrolada; mas elas representaram na França
a primeira utilização eficaz e em larga escala desse tipo de organização por
grupos externos ao exército.
Os estudantes franceses de 1820 criaram a típica justificação moderna
da violência revolucionária como uma medida preventiva de defesa contra
a debilitação forçada de seus direitos constitucionais: “São legítimos todos
os esforços do povo para reconquistar a constituição que a violência ou as
intrigas lhe tomaram”.46
As inumeráveis mini-revoltas dos carbonários franceses47 nasciam da
crença de que tornar manifesto o que era secreto iria de algum modo defla­
grar a mudança revolucionária. Havia uma fé exagerada no poder de um
protesto público (manifestation) ou de uma proclamação (manifeste). Essa fé
se relacionava diretamente com a crença de que algum novo poder espiritual
estava sendo gestado dentro da sociedade secreta.
Os jovens revolucionários às vezes comparavam seus poderes ao do mag­
netismo e da eletricidade — essas duas forças da natureza recém-descobertas
que pareciam revelar novos poderes para além daqueles descritos pela me­
cânica newtoniana.48 Prati fez uma peregrinação para visitar Mesmer antes

45 Paris révolutionnaire, esp. pp. 267-268. Para detalhes sobre os subgrupos de cinco homens» veja-se
o estudo hostil e anônimo The Carbonari; or, the Spanish War assigned to its Real Cause, 1823, p.
8 (BO). Cada departamento, contudo, deveria ter um comitê supervisor de 9 membros, enquanto
“os comitês de vigilância” responsáveis pela segurança deveriam ser grupos de três que respondiam
a censores eleitos a cada três meses (ibid., pp. 8, 18-20).
46 “Des conspirations et des coups d’état”, em L’Aristarque français, 14 de março de 1820, citado
em Isambert, p. 81, que a chama “uma das mais explícitas declarações de guerra ao regime dos
Bourbon”.
47 Com discriminação e descrição detalhadas em Spitzer, Old Hatreds, pp. 77-141,189-209.
48 V. a seção final sobre magnetismo em J. Witt, Les sociétés secretes de France et d’Italie, 1830, p.
140 ss.; também o primeiro capítulo sobre magnetismo em A. Viatte, Victor Hugo et les illuminés,
Montreal, 1942, pp. 13-32; e, com abordagem mais ampla, o seu Sources occultes.
238 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de se juntar a Buonarroti seguindo carreira de revolucionário,49 e Buonarroti


tinha um interesse igualmente tipico por Swedenborg.50 Barbès, um dos
principais personagens das sociedades secretas revolucionárias da década
de 1830, relacionou revolução diretamente a espiritismo.51 Robert Owen,
que influenciou tanto Rey como Buonarroti, acabou por se tornar espírita.52
Nessa atmosfera, os revolucionários buscavam Buonarroti como “um
poder oculto cujos tentáculos sombrios se estendiam por toda a Europa”.53
Buonarroti tentou usar as organizações da carbonária da mesma maneira
que fizera antes com as organizações maçônicas, e provavelmente colabo­
rou com a delegação republicana francesa que foi a Nápoles em meados da
década de 1820 para fazer contato com a carbonária.54 Os seus principais
amigos e protetores em Genebra, os irmãos Fazy, eram um elo básico entre
os movimentos italiano e francês.55 James Fazy tinha especial fascínio pelo
potencial revolucionário da juventude, tendo logo escrito aquela que é talvez
a primeira declaração programática de guerra geracional na modernidade.
Seu Gerontocracia, de 1828, via a luta revolucionária como uma resposta
necessária a um sistema político que negava participação às pessoas com
menos de 40 anos e a uma ideologia que frustrava o entusiasmo juvenil
pela ciência aplicada como um meio de libertação da criatividade humana.56
O próprio Buonarroti chegou a entrar na Sabóia, vindo de seu local de
freqüentes encontros com revolucionários em Nyon, logo após a fronteira

49 Prati, “Autobiography”, Penny Satirist, 21 de janeiro e 3 de fevereiro de 1838. Mesmer foi contra
a revolução, como a maioria dos espíritas. Sobre o interesse revolucionário prévio em torno de
Mesmer; v. Darnton, Mesmerism.
50 Saitta, vol. i, pp. 115, 170; também Viatte, Hugo, pp. 33-53, sobre o renovado interesse geral por
Swedenborg depois de 1830.
51 Tchernoff, p. 39.
52 Sua biografia foi escrita pelo principal historiador e popularizador do espiritismo, Frank Podmore:
Robert Owen, A Biography, L, 1906, 2 voi.
53 Andryane, Souvenirs, p. 134, que também relaciona as palavras de Buonarroti aos “oráculos das
sibilas”.
54 Segundo argumenta Isambert, pp. 95-96.
55 Jean-Louis Fazy era próximo tanto de Buonarroti como do movimento italiano (Vuilleumier,
“Buonarroti”, pp. 485-488). O seu irmão James, mais famoso, comandou as atividades da carbonária
francesa nas regiões próximas de Genebra. V. H. Fazy, James Fazy, Genebra, 1887, pp. 16-23; também
A. Calmette, “Les Carbonari en France sous la restauration”, Revue de la Révolution de 1848, vol.
ix, 1912-1913, pp. 412-414, sobre a infiltração de carbonários na França, independentemente de
intermediários buonarrotianos.
56 De la Gérontocratie ou abus de la sagesse des vieillards dans le gouvernement de la France, 1828.
Para uma discussão desse assunto, com a conclusão de que não se deve “pedir da noção de idade
o que só a noção de classe é capaz de proporcionar”, v. L. Maxoyer, “Catégories d’âge et groupes
sociaux: Les jeunes générations françaises de 1830”, Annales, 1938, set., pp. 385-423.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 239

suíça, assim iniciando franceses no primeiro grau da carbonária.57 Prati, cola­


borador bem próximo dele, estabeleceu uma vente carbonária em Lausanne58
e se tornou ponto de contato entre o diretório da carbonária francesa e a
Alta Vendita em Nápoles. Prati tinha se tornado membro da Sociedade da
Bíblia, oriunda da Suíça, e escreveu um tratado louvando os reformadores
suíços que foi publicado em várias línguas (inclusive romanche) na cidade
suíça de Chur59 — ponto de encontro freqüente de revolucionários de fala
alemã. Dentro da Itália, articuladores carbonários às vezes também viajavam
na condição de agentes da Sociedade da Bíblia60 — dando algum crédito
ao medo generalizado de que essa nova organização, de perfil missionário,
fosse potencialmente subversiva, senão mesmo revolucionária sob disfarce.61
Depois da prisão de carbonários no Piemonte, parece que os revolucionários
buscaram estabelecer conexão com o Grande Firmamento de Buonarroti.62
Prati discutiu com Joseph Rey, então em exílio em Berna, a possibilidade
de uma “União Européia” baseada na Union de Rey, em Grenoble. Prati
tentou coordenar um ataque anti-Habsburgo no Tirol com os movimentos
das tropas habsburgas contra Nápoles, bem como se esforçou para recrutar
soldados “para agir junto ao General Berton”, o mais importante insurgente
provincial na França.63
Os ex-colaboradores de Buonarroti formaram um triunvirato na Suíça
oriental em abril de 1820 com o objetivo de recrutar doze homens de diferen­
tes países para serem líderes da revolução republicana vindoura e organizar

57 V. a confirmação feita por membro de importância secundária que tomou parte de uma iniciação
como essa na Sabóia em 1821 e de encontros na casa do ^-conventionnel e líder maçônico, François
Gentil; consultar M. Vuilleumier, “Deux documents inédits sur le saint-simonisme, l’influence de
Lamennais et Buonarroti en Savoie (1821—1831)”, Cahiers d’Histoire, vol. vu, 1963, n° 2, esp. pp.
220-222. Sobre encontros em Lyon durante esse período, v. Andryane, Souvenirs, vol. u, pp. 153-156.
58 “An Autobiography”, Penny Satirist, 3 de março de 1838, p. 1.
59 V. Breve esposizione storica della Riforma avvenuta già trecent’ anni nella Svizzera e nei Grigtoni.
Scritta nell’idioma tedesco... da G.G. degli Orelli, volgarizzata dal di lui amico D.G. dei Prati
membro della società bibblica, Coira, 1819. Essa e outras traduções estão em BM, bem como obras
posteriores em favor da pedagogia de Pestalozzi. V. em especial On the Principles and Practice of
Education, L, 1829. Orelli era professor da escolar cantonal de Coirà, que depois serviu de emprego
a Carl Folien e de abrigo para outros radicais emigrados.
60 Radice, “Philadelphes”, p. 83, para um importante exemplo de 1820.
61 Esses temores alcançavam a maior intensidade na Rússia, onde sua influência era máxima. V. A. Pypin,
Religioznyia dvizheniia pri Aleksandre i, Petrogrado, 1916; v. também J. Clarke, “The Russian Bible
Society and the Bulgarians”, Harvard Slavic Studies, vol. in, 1957, pp. 67-103, sobre sua conexão
com acontecimentos políticos nos Bálcãs.
62 Prai, Penny Satirist, 10 de março de 1838.
63 Ibid., 3 de março, 4 de maio. Spitzer, Old Hatreds, p. 269, nota 175, e cartas (com fontes assinaladas)
de Prati e Folien para Joseph Rey escritas em linguagem aparentemente esópica, p. 268, nota 174.
240 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGF.M F FUSTÓRIA

urna rede de sociedades secretas apoiadoras em meio a soldados, artesãos e


estudantes. A inclusão de estudantes, em especial, deveu-se principalmente
ao mais memorável membro do triunvirato, Karl Folien, oriundo de Giessen:
“o primeiro líder estudantil dos tempos modernos [...] o protótipo de todos
os líderes estudantis do próximo século e meio”.64 Folien, um líder extre­
mista em meio aos novos grêmios estudantis alemães (Burschenschaften},
logo se juntou a outros jovens emigrados no exílio suíço para formar uma
revolucionária Liga dos Jovens (Bund der Jungend}, que também almejava
estabelecer contato com a car bonària.
As Burschenschaften eram sociedades declaradamente masculinas e
francófobas que surgiram durante a luta nacional contra Napoleão. Da­
vam grande importância à prática vigorosa de ginástica; e em 1818, no
primeiro aniversário de seu festival a céu aberto em Wartburg, cerca de mil
e quinhentos estudantes de cabelos compridos e blusas de linha cru e gola
folgada proclamaram uma “união universal dos estudantes” — “a primeira
afirmação inequívoca e autoconsciente da elite intelectual como uma força
política no mundo moderno”.65
Na condição de líder da ala esquerda da União, que admirava a Revolução
Francesa tanto quanto a antigüidade germânica, Folien havia formado, já em
1814, uma sociedade alemã de leitura que depois se tornaria uma sociedade
de cultura e amizade alemã, mas ficou mais conhecida pela denominação
posterior — os pretos — que ganharia em razão da cor da farda de veludo
adotada pelos membros. Almejando uma constituição republicana para uma
Alemanha unificada baseada no modelo de 1793 da Revolução Francesa,66
Folien logo ficaria obcecado com a questão de como passar de discussões
sem fim a ações concretas. “Vida sem ciência”, concluiría, “é melhor que
ciência sem vida”.67 Em uma série de encontros dominicais com amigos de
confiança, formou um bando de ativistas revolucionários, os “absolutos”, os
quais flertaram com a idéia de assassinato político seletivo. Defenderam que
o perjúrio e o assassinato, quando empregados “contra os grandes ladrões e
assassinos da liberdade popular”, podem ser um dever. Os membros estavam
“absolutamente” obrigados a seguir as diretrizes do grupo, e “se as coisas
64 Feuer, Conflict, p. 59.
65 Ibid., p. 58.
66 Seu esboço de constituição, Grundzüge für eine künftige Deutsche Reichsverfassung, é discutida
em W. Schröder; “Politische Ansichten und Aktionen der ‘Unbedingten’ in der Burschenschaft”,
Wissenschaftliche Zeitschrift der Friedrich-Schiller Universität Jena, vol. xv, 1966, n° 2, pp. 228-229.
67 Ibid., p. 227.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 241

degringolarem, todos os que estiverem inseguros de suas opiniões devem ser


sacrificados”.68 Mudando-se de Giessen depois que sua associação de estu­
dantes foi fechada em 1818, Folien se tornou palestrante e conselheiro de
estudantes radicais na atmosfera permissiva de Jena. Um estudante colocou
suas idéias em prática no dia 23 de março de 1819, ao esfaquear fatalmente
Kotzebue, um famoso dramaturgo que se pensava ser agente da Santa Aliança.
Esse assassinato, que forçou Folien a deixar a Alemanha, teve um efeito
elétrico sobre revolucionários hesitantes. Prati — que em breve se juntaria
a Folien como um dos triúnviros do Grande Firmamento buonarrotiano —
mais tarde recordaria os seus sentimentos ao receber as primeiras notícias
sobre o acontecido em um hotel suíço: “Parecia uma espécie de sinal para
um combate generalizado [...] daquele momento em diante, toda a minha
mente se tornou como que incendiada de luta política; daquele momento
em diante, mergulhei de cabeça numa série ininterrupta de conspirações e
comoções revolucionárias”.69
Refletindo sobre esse ponto de viragem anos mais tarde, tendo deixado de
ser um revolucionário ativo, Prati observou o efeito inspirador da violência
motivada politicamente:

[...] é tamanho o poder do fanatismo político, e do espírito de partido, que o


homicídio cometido com fria premeditação contra um cavalheiro de grande re­
nome literário [...] em vez de provocar quaisquer manifestações de compaixão
pela vítima na nação mais moral e inofensiva do mundo, [antes] provocou a mais
entusiasmada simpatia pelo assassino.70

Junto a Prati e Buonarroti, Folien fez planos em Chur, no ano de 1821,


para uma organização revolucionária secreta com composição alemã em
grande medida, porém mais universal em seus objetivos do que qualquer grupo
carbonário anterior. Essa Liga dos Jovens era, supostamente, o braço ativista
de uma ultra-secreta Liga dos Homens, que já estaria dispersa pela sociedade
e pronta para constituir, após a revolução, um novo governo republicano.
Preparativos para a revolução eram incumbidos à organização de jovens, que
iniciou o recrutamento na Alemanha durante o verão de 1821 por meio de
um estudante de Jena que fora à Itália para participar da revolta carbonária
68 Ibid., p. 61. V. também sobre os “negros” e outras questões não discutidas em Feuer, G. Spindler, Karl
Folien: a biographical study, Chicago, 1916, pp. 17-23. Sobre o impacto das idéias revolucionárias
francesas, v. ibid., pp. 29—47, esp. pp. 31-32; também R. Pregizer, “Die politischen Ideen des Karl
Folien”, in Beiträge zur Parteigeschichte, Tübingen, vol. iv, 1912, p. 22 ss.
69 Penny Satirist, 20 de janeiro de 1838, p. 2.
70 Ibid.
242 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

pouco antes naquele mesmo ano.71 A idéia de uma Männerbund-fünghngsbund


[Liga dos Homens-Liga dos Jovens] não possui nenhum antecedente exato
na Alemanha e bem pode ter sido a concretização dos dois primeiros graus
do Monde de Buonarroti: homens e adolescentes.72
O movimento republicano alemão foi, contudo, varrido de vista com uma
onda intensa de repressão. Os principais ministros do mundo de expressão
germânica, ao se reunirem em Carlsbad ao longo de agosto de 1819, aboliram
a Burschenschaften e criaram a censura de uniformes e a supervisão política
das universidades. A maior parte dos membros da Liga dos Jovens foi presa;
e, ao fim de 1824, Folien foi obrigado a deixar a Suíça. Ele sonhava fundar
um estado alemão na América como uma base segura para a articulação de
uma agitação revolucionária posterior na Alemanha e por toda a Europa,
mas logo se resolveu a se tornar um ministro do unitarismo e o primeiro
professor de literatura alemã da Universidade de Harvard.
A onda de insurreições contra monarcas foi interrompida em 1823 quando
um exército realista francês invadiu a Espanha e resgatou o rei, com relativa
facilidade, das obrigações constitucionais que assumira em 1820. Republicanos
franceses e de outros países formaram uma Legião da Liberdade Européia
para lutar pelos liberais espanhóis, mas ela se revelou tão inútil quanto os
esforços da Brigada Internacional em defesa da República Espanhola na dé­
cada de 1930. Em ambos os casos, tratavam-se de épocas que tendiam para
a direita. Os temores chegavam a lugares tão distantes quanto os Estados
Unidos — sentia-os o presidente Monroe, na década de 1820, mais aguda­
mente do que o presidente Roosevelt sentina na de 1930. Em dezembro de
1823, Monroe propôs sua doutrina que condenava a intervenção no Novo
Mundo, temendo que a Santa Aliança pudesse tentar reaver o controle da
recém-independente América Hispânica.

71 Adolf Karl Christian von Sprewitz, um jovem teólogo de Rostock cuja notável carreira é narrada
no estudo não devidamente apreciado de Silbernagl, “Verbindungen”, p. 786 ss. Conexões com a
Itália por meio da Suíça são discutidas em detalhe e com melhor documentação por M. Barazzoni,
“Le società segrete germaniche ed i loro rapporti con i conspiratori Lombardi del 1821”, Rassegna
Storica del Risorgimento, voi. xix, 1932, pp. 89-138.
72 Os comentários concisos feitos por Lehning, pp. 125-126, em grande medida baseados na
autobiografia de Prati, não estabelecem essa conexão. Prati se refere às organizações como
Maennerband e Ingendband (Penny Satirist, 10 de fevereiro de 1838). Para maiores detalhes sobre
a Jünglingsbund (um termo que antes possuía emprego com sentido diverso), v. H. Haupt, Karl
Folien und die giessener Schwarzen, Giessen, 1907. Quem teve papel central na Liga dos Jovens foi o
terceiro dos triúnviros de Buonarroti, Wilhelm Snell, que desde 1814 planejara unir os revolucionários
alemães em uma única liga com três níveis de associação. V. Silbernagl, pp. 776, 787 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 243

Na Europa, a onda conservadora vitoriosa produziu uma nova safra de


teorias imaginosas sobre a “Hidra da Revolução”.73 Escritores denunciavam
não só o republicanismo, como também a maçonaria e símbolos pitagóricos. O
novo reitor da Universidade de Kazan, Michael Magnitsky, foi longe a ponto
de insistir em que o teorema de Pitágoras não deveria ser mais ensinado nas
escolas, senão como prova teológica da Trindade. Os dois lados do ângulo reto
eram o Pai e o Filho; e a hipotenusa, cujo quadrado tão harmoniosamente se
igualava ao dos outros dois lados, representava o amor de Deus descendendo
ao homem através do Espírito Santo.74 Um estudo anônimo de 1823 sugeria
que os aristocratas que apoiassem a revolução deveríam primeiro abdicar
de seus títulos (Lafayette deveria se designar fazendeiro e não marquês nem
general; Voyer D’Argenson, “ferreiro” e não visconde, e assim por diante);
também apresentava uma visão arquetipicamente conservadora do efeito
subversivo de um sistema educacional que se expandia: “O homem, por 1er
e escrever, imagina-se em situação de igualdade com seus superiores, e, em
vez de ganhar seu pão por meio de trabalho honesto, passa a meditar sobre
questões de estado, e se torna um político, e em seu coração um traidor”.75
A reação parecia chegar ao seu ápice em 1824 com a ascensão ao trono
francês, com toda a pompa medieval, do ultraconservador Carlos x. A ma­
çonaria e a carbonária foram postas na ilegalidade pelos reis e condenadas
pelo papa. Organizações de debates se tornaram suspeitas e as liberdades
civis regrediram por todo o continente.

Reprise russa
O último eco das rebeliões constitucionais se deu na distante Rússia, com a
revolta dezembrista ao fim de 1825, na qual os principais temas das rebeliões
anteriores no leste e no sul da Europa foram reprisados.
Uma coalização mal coordenada de várias organizações secretas tentou
forçar a Rússia a aceitar alguma forma de limitação constitucional do poder
tzarista após a morte de Alexandre i. Seus líderes eram jovens oficiais e até
73 V. The Carbonari; or The Spanish War, p. 4: “A Hidra [...] ergueu sua cabeça em Nápoles e no
Piemonte [...] refugiou-se na Espanha [..♦] mais uma vez ergueu sua crista ensanguentada”.
74 N. Bulich, Ocherki po istorii russkoi literatury i prosveshcheniia s nachala xix veka, São Petersburg©,
1905, voi. il, p. 271. Talvez haja uma espécie de vingança sutil contra Pitágoras e os gregos — por
terem inspirado tantos românticos revolucionários — no fato de que a geometria moderna, não-
euclidiana, tenha sido descoberta por um amigo e protegido de Magnitsky em Kazan, Nicholas
Lobachevsky.
75 The Carbonari; or, The Spanish War, p. 10. O autor identificou em oficiais inferiores e estudantes
sem vocação os principais fomentadores da revolução.
244 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

estudantes ainda mais jovens que conseguiram nutrir grandes esperanças a


partir da experiência do período napoleonico. Primeiro, a Rússia compartilhara
com Napoleão o sonho de partilhar o mundo civilizado, e por fim liderou a
luta que o derrotou. Aqueles jovens oficiais que entraram triunfalmente em
Paris no início da Semana Santa de 1814 e celebraram em massa a liturgia
de Páscoa na praça onde Luís xvi fora guilhotinado (agora rebatizada Praça
da Concórdia) não poderia se reajustar facilmente às perspectivas estreitas
da vida provincial russa. Os irmãos Turgenev, os primeiros a elaborar planos
para uma sociedade secreta, deram testemunho do impacto da experiência
de guerra sobre a sua consciência política:

As circunstâncias da última guerra solidificaram a força material do soldado por


meio da força moral, da força da opinião. Eles tinham lutado pela pátria, pela
liberdade, pela independência. E eis que de repente se propunha que esses gigantes
voltassem a ser soldados mantidos a pão de gengibre! E quem propunha? Pigmeus
políticos.76

Os Turgenev seguiram a praxe revolucionária de derivar as idéias para


a sua organização não diretamente de um grupo revolucionário anterior, e
sim dos ataques de conservadores a uma sociedade secreta prévia (a alemã
Tugendbund).77
Mais à semelhança dos quase religiosos carbonários italianos do que do
movimento secular francês, os jovens russos sonhavam trazer um renascimento
espiritual à Europa consumando o casamento de Alexandre i de “religião e
liberdade”. Empenharam-se em usar lojas maçônicas, a começar com a loja
Astrea — cujo nome remete à Deusa da Justiça, que fora a última a deixar
os Campos Eliseos antes do fim da Era de Ouro.
Assim como a carbonária a princípio gozara do apadrinhamento de
Murat, do mesmo modo os dezembristas russos receberam encorajamento
inicial do próprio tzar Alexandre. Ele efetivamente se tornara membro da
Loja Astrea e sugerira, de modo algo vago, que o parlamento mantido pelos
poloneses dentro de seu império expandido poderia servir de modelo para
os demais povos eslavos.

76 S. Turgenev, carta de Io de novembro de 1820, citada em Landa, Dukh, p. 229. Para o testemunho
igualmente eloquente de N. Turgenev, v. Yu. Oksman, Dekabristy. Otryvki iz istochnikov, 1823-1825,
1926, pp. 2, 76-82.
77 Landa, (Dukh, pp. 48-58) discute a influência que exerceu sobre o grupo deles o livro de H.
Schmalz, Über politische Vereine, 1815, bem como a influência de outras críticas mais moderadas
à Tugendbund, inclusive a do famoso historiador B. Niebuhr, da qual se originou, ao que parece, a
expressão “estado dentro do estado” (p. 51).
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCION A LISTAS (1815-1825) 245

O movimento característico rumo ao crescente segredo e radicalismo se


iniciou com a transformação, em 1818, da Sociedade para a Salvação da
Pátria na União do Bem-Estar, que em seguida desenvolveu uma estrutura
proto-governamental. Uma reunião secreta em Moscou, em 1821, estabele­
ceu uma “Duma constituinte” e conselhos regionais da União. O racha entre
monarquistas constitucionais e republicanos radicais — coisa igualmente
característica dos movimentos italiano, francês e espanhol — produziu-se
na Rússia com o conflito entre as idéias federalistas da Sociedade Nortenha
e a versão jacobina de uma república unitária da Sociedade Sulista. Como
em toda parte, havia defensores do regicidio: um pequeno grupo de jovens
que já em 1816-1817 sonhavam com uma fraternidade de doze homens
que, à noite, mataria a família imperial na estrada que vai a Tsarskoe Selo.78
O movimento dezembrista foi o último capítulo da luta já centenária dos
reformadores aristocratas russos e, ao mesmo tempo, o ponto de partida da
tradição revolucionária moderna na Rússia. Se a revolta foi também parte
da reação em cadeia, em escala européia, de levantes constitucionais contra
monarquias tradicionais, fato é que os líderes já exibiam muitos dos elemen­
tos característicos dos revolucionários russos posteriores — um ascetismo
estóico, desprovido de humor, combinado a um culto da camaradagem e a
uma teatralidade schilleriana.79
Em dezembro de 1825, a facção mais revolucionária do movimento, a
assim chamada Sociedade Sulista, arquitetou uma insurreição fracassada no
Regimento de Chergnigov. O principal teórico desse grupo, Paul Pestel, foi
um dos mais criativos pensadores revolucionários dessa época em qualquer
parte da Europa. Ele foi um dos poucos a defender um estado revolucionário
centralizado e autoritário que conscientemente criaria uma única nacionali­
dade e exercería pressão em prol de reformas sociais igualitárias.80 Seguiu o
hábito revolucionário de fazer amplo uso de lojas e símbolos maçônicos81 e
78 Materialy po istorii vosstaniia dekabristov, 1927, vol. iv, pp. 134-138, 159, 176; vol. x, p. 283. I.
Gorbachevsky, Zapiski, pis’ma, 1963, p. 313, nota 17.
79 Lotman, “Dekabrist”, Nasledie, pp. 55, 61-62, 65-66, 70-71, e esp. pp. 43-47 sobre o culto a
Schiller.
80 O esboço de Pestel para a futura organização da sociedade foi elaborado entre 1820 e 1825 e
publicado postumamente com o título de “The Russian Law” (Russkaia Pravda — também com o
sentido de “A Verdade Russa”). Para acesso ao texto, v. P. Shchegolov, Russkaia Pravda P.I. Pestelia,
São Petersburgo, 1906; para comentários, v. I. Lubin, Zur Charakteristik und zur Quellenanalyse
von Pestel’s Russkaia Pravda, Hamburgo, 1930; e J. Schwarz-Sochor, “P.L Pestel, The Beginnings
of Jacobin Thought in Russia”, International Review of Social History, vol. in, parte 1, 1958, pp.
71-96.
81 N. Druzhinin, “Masonskie znaki P.L Pestelia”, em Muzei revoliutsii SSSR, vtoroi sbornik statei,
246 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEaM E HISTÓRIA

antecedeu a Buonarroti na defesa de um governo provisório imediato logo


após a revolução.82
Filho de um ex-governador da Sibéria e veterano das guerras napoleônicas,
Pestel viajara bastante. As suas perspectivas pan-européias e até mundiais
beiravam a megalomania, mas refletiam a realidade do poder russo. Após
1815, a incorporação à Rússia de regiões ocidentais — províncias dos Bálcãs
e a Polônia — acresceu não-russos à ânsia de reforma política.83
Nesse ínterim, em São Petersburgo, ministros e burocratas conservadores
(em grande parte alemães) ficaram atônitos com a nova onda de agitação
estudantil em 1816-1818 e desenvolveram uma espécie de teoria do dominó
aplicada à revolução, a qual se espalharia a partir da Alemanha, atravessando
a Polônia, alcançando a Rússia. Então chegaram notícias de conspirações
advindas de ainda mais ao Oriente, com veteranos que, ao retornar da guerra,
estabeleceram pequenas sociedades secretas em lugares como Orenburg e
Astrakhan. O vírus parecia ter alcançado até o Ártico, quando o secretário
do governador de Olonetsk criou, em Petrozavodsk, uma sociedade secreta
chamada Parlamento Francês.84 O bombardeio de relatos de revoluções vindos
desde longe criou o senso vertiginoso, entre os russos jovens, de “mais um
correio, mais uma revolução”.85

1929, pp. 12-49; v. também V. Semevsky, “Dekabristy Masony”, Minuvshie Gody, 1908, fev., pp.
1-50, mar., pp. 127-170.
82 M. Dovnar-Zapolsky, Tainoe Obshchestvo dekabristov, 1906, p. 305.
83 Para conexões com a Polônia e a Lituânia, v. P. Ol’scansky, Dekabristy i pol’skoe natsional’no-
osvoboditel’noe dvizhenie, 1959; sobre conexões com as províncias dos Bálcãs, v. Yu. Lotman, Unsi
materiale dekabristide voitlusest baiti aadli vas tu, Tartu, 1955.
84 Dois relatórios particularmente influentes preparados para a corte russa foram Alexander Sturdza,
Mémoire sur l’état actuel de l’Allemagne, 1818, que trata principalmente sobre educação; e o
que foi escrito pelo Conde Benckendorf sobre sociedades secretas, reimpresso em M. Kovalevsky,
Khrestomatie po russkoi istorii, 1923.
A sociedade de Orenburg falou em recrutar os basquires para ajudar a libertar os tártaros na Ásia
Central e, em seguida (em caso de sucesso), pressionar para que se estabelecesse uma república na
índia. V. Petrov, “Tainoe obshshestvo oktrytoe v Astrakhani v 1822 godu”, em Tainye obshchestva
v nachale xix stoletiia, 1926, p. 19; além de pp. 9-31.
A sociedade Petrozavodsk exemplifica quão inofensivas eram muitas dessas organizações
ostensivamente políticas. Ela objetivava apenas estimular o estudo de coisas estrangeiras naquele
centro provincial do norte; e o nome escolhido pelo seu líder foi Matvei Fadeevich Don Kichot
Lamanchsky, uma clara alusão ao herói eminentemente não revolucionário do romance de Cervantes.
V. “Frantsuzsky parlament v Petrozavodske”, Katorga i Ssylka, vol. xiii, 1924, pp. 132-134.
85 Chto pochta, to revoliutsiia. N. Turgenev, citado em N. Nechkina, “Dekabristy vo vsemirno-
istorischeskom protsesse”, Voprosy Istorii, 1975, n° 12,13. Esse é um esforço tardio, mas bem-vindo,
de um estudioso de longa data do movimento para relacioná-lo a outras revoluções contemporâneas.
Inclui perspectivas não contempladas aqui (acontecimentos contemporâneos na Escandinávia,
os relatos de um marinheiro russo que voltara do Brasil), mas em momento algum considera a
dependência russa para com nada de ocidental.
UVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTTTUCIONALISTAS ( 1815-1825) 247

Para Pestel, a experiência do início da década de 1820 na Espanha, em


Portugal e em Nápoles tinha demonstrado a trincheira em que se encontra­
vam os reis e a inutilidade da monarquia constitucional. Mesmo na França
e na Inglaterra as constituições não passavam de máscaras do despotismo
monárquico. Uma revolução na Rússia poderia levar à guerra internacional.
Após a experiência de Napoleão, ninguém ousaria invadir a Rússia, de modo
que lá a revolução “se disseminará em segurança e de imediato para outros
países cujos povos estão ainda mais inclinados à revolução”.86
A natureza européia do contágio revolucionário é exemplificada pela
afinidade que os dezembristas sentiam pelos revolucionários constituciona-
listas na ponta oposta do continente: na Espanha. A “guerrinha” {guerrilla)
empregada originalmente pelos espanhóis como meio de resistência popular a
Napoleão em 1808-1809 prenunciou e influenciou a “guerra de combatente”
dos russos contra ele em 1812-1813. Jovens oficiais russos partilharam com
os distantes espanhóis um sentimento comum de vitória e — coisa única na
Europa — de contato com as massas desorganizadas que tornaram a nova
tática de guerrilha possível. Os dezembristas tomaram a constituição da mo­
narquia liberal espanhola de 1812 como seu principal modelo, assim como
tomaram a incruenta Revolução Espanhola de 1820 como possível modelo
de sua insurreição ainda por vir.87
86 Do julgamento de Pestel, em Vosstaniia, vol. iv, pp. 90-91, 112. Pestel acreditava que a revolução
se espalharia até “àquelas opostas Inglaterra e Turquia” (ibid., p. 105). Anteriormente, em 1821, ele
havia defendido guerra contra a Turquia para libertar a Grécia em parte como meio de precipitar
mudanças sociais na Rússia: Schwarz, pp. 93-94.
87 Gorbachevsky, p. 26; Nechkina, “Dekabristy”, pp. 10-11, 16, e Dvizhenie, vol. i, pp. 305-306;
e A. Mazour, The first Russian Revolution, 1825, Berkeley, 1937, p. 97 (embora sua referência a
Vosstaniia, vol. v, p. 31, seja imprecisa). V. também Mazour, p. 97, nota 35; Billington, Icon, pp.
652-653, notas 67,68; e, sobre a história da legião espanhola que desertou do exército de Napoleão
na Rússia em 1812 e de seus laços cordiais com os russos, v. E. Marliani, Espagne et ses révolutions,
1833, pp. 90-92.
A influência espanhola também foi importante para o poeta russo Denis Davydov, que foi o
primeiro a desenvolver uma teoria de “guerra de partisan” e a popularizar a expressão “guerra
do povo” (E. Tarie, Sochineniia, 1959, vol. vii, p. 686). Cinco dias antes da Batalha de Borodino,
Davydov juntou 50 hussardos e 80 cossacos, oriundos de unidades regulares, para com eles assediar
Napoleão empregando técnicas de combate não convencionais e recrutar camponeses usando uma
mistura de métodos asiáticos e europeus, de modo que os líderes eram apontados dentre aqueles
que haviam mostrado seu valor em combate, “e não dentre funcionários de departamentos” (Qpyt
teorii partizanskogo deistviia, 1819, pp. 76-77, além de p. 42). Ele parou de falar francês e de vestir
roupas aristocráticas, e argumentava que “em uma guerra do povo não só se deve falar a língua das
massas (iazykom cherni), como também adotar seus costumes e vestimentas” (Dnevnik partizanskikh
deistvii 1812 goda, em Voennye zapiski, 1940, p. 208. Essa obra, iniciada em 1825, tarde demais,
portanto, para influenciar os amigos dezembristas, foi concluída em 1838 e só publicada na íntegra
em 1860: ibid., pp. 437-438).
Talvez o mais notável praticante de guerra de guerrilha contra Napoleão tinha sido o líder nortenho
do Haiti, Sans Souci, o qual era temido até pelo líder nativo Jean Christophe, que o assassinou no
248 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

Talvez os dezembristas tenham mantido contato mais próximo com outros


movimentos revolucionários europeus do que até agora se reconhece. A União
de Salvação original foi formada em 1816 entre oficiais russos que estavam
a ir e vir da França precisamente no mesmo momento em que Rey fundou
sua modelar Union. Mais uma vez, os russos elaboraram planos similares
de utilizar as lojas maçônicas com uma hierarquia secreta de três graus.88
F. N. Glinka, o principal fundador da União de Salvação, ao que parece foi
influenciado por uma obra francesa duas vezes traduzidas que descrevia
“o instituto de Pitágoras”.89 A carta da organização sucessora, a União do
Bem-Estar, baseava-se direta e abundantemente na da Union francesa;90
seu objetivo declarado de estabelecer o “bem comum” com “propriedade
social” remetia à tradição babeuvista; e seu título sem explicação, “o livro
verde”, repetia o do dicionário de conspirações de Duplay. Pode ser que
ela contemplasse um grupo interno secreto à maneira dos Iluminados e de

início de 1803 (H. Trouillot, “Le Vodou dans la guerre de l’indépendence”, Revista de História de
America, 1972, jul.-dez., pp. 87-90). Ao fim de 1813, o próprio Napoleão fez planos, em resposta
a uma esperada invasão da França, de um movimento de resistência nacional que envolvesse corps
de partisans lutando com utensílios agrários em uma guerra total e sem regras {point de règles) e
com a promessa de patentes de partisan que garantissem ampliação de direitos aos líderes locais
(Vermale, Conspirateur, pp. 84-85). Mas todos esses precedentes eram praticamente desconhecidos.
A maior influência do período era o general conservador prussiano Karl von Clausewitz, cujo
ensinamento sobre o ato de “armar o povo” para uma “guerra do povo” propiciava um tratado
sistemático de guerra de guerrilha defensiva: Vom Krieg, Bonn, 1952, pp. 697-704, e p. 618 para
o uso do termo “partisan”. Sua influência se daria muito depois, contudo, principalmente sobre
Lênin; e as principais influências ao longo da maior parte do século xix foram escritores italianos
e poloneses que ainda serão discutidos.
88 Nechkina, depois de apontar para a falta de estudo desse grupo fundamental e de rastrear suas
formas puramente maçônicas, lamentavelmente falha em considerar possíveis influências estrangeiras
sobre “a primeira organização revolucionária russa”: Dvizhenie, vol. i, pp. 141-147.
89 Druzhinin, Ocherki, pp. 477-478, vê a idealização de Pitágoras remontar à “Entretien sur l’institut
de Pythagore” de Jean-Jacques Barthélemy, presente em sua muita aguardada e muito reimpressa
obra em quatro volumes Voyage de jeune anacharsis em Grèce, publicada pela primeira vez em
1789.
90 Demonstrado por A. Pypin (nas notas a Obshchestvennoe dvizhenie v Rossii pri Aleksandre i, São
Petersburgo, 1900, pp. 547-576) e não adequadamente refutado por Nechkina {Dvizhenie, vol.
I, p. 185 ss.). Oskman, Dekabristy, pp. 78, 82, vê influência da Tugendbund; já Semevsky, Idei,
pp. 311-313, vê influência da carbonária napolitana. O principal colaborador de Rey, Hugues
Blanc, também foi à Rússia em 1817. V. Onnis, “Propaganda”, p. 498. Para maiores detalhes, v.
M. Wischnitzer, Die Universität Göttingen und die Entwicklung der liberalen Ideen in Russland in
ersten Viertel des 19. Jahrhunderts, 1965, pp. 139-179; e S. Landa, “O nekotorykh osobennostiakh
formirovaniia revoliutsionnoi ideologii v rossii 1816-1821 gg”, em M. Kalushin (ed.), Pushkin i
ego vrernia, Leningrado, 1962, pp. 86-98.
Assim como a carbonária francesa, a organização russa agiu por meio de uma loja maçônica de
amigos da verdade e utilizou um concílio-raiz para controlar os galhos regionais, que tinham o
tipo de forma de associação tipicamente francesa de 10 a 20 membros. G. Perreux, Au Temps des
sociétés secretes, 1931, p. 65, observa que esse número era usado “para respeitar e ao mesmo tempo
contornar o artigo 291 do código penal”. Compare-se com Nechkina, Dvizhenie, vol. i, p. 207.
LIVRO II, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTITUCIONALISTAS (1815-1825) 249

Buonarroti. Alusões a um líder não nomeado e a um vigia entre os cinco


membros do conselho de base sugerem o ultra-secreto e novo quarto grau
de observadores que Buonarroti estava, àquela época, introduzindo em seus
planos organizacionais.91
O conspirador que Buonarroti enviou de Genebra à Itália em 1822 para
organizar internacionalmente os revolucionários mais tarde escreveu que
“numerosos e bem-treinados emissários estavam naquele tempo sendo en­
viados para a Alemanha, para a Polônia e até para a Rússia”.92 Já em 1819,
um observador francês falou de bom ânimo sobre um grupo revolucionário
ultra-secreto da Itália, o consistório.

[...] é principalmente na Rússia que os conspiradores depositam suas esperanças


[...] justamente porque lá existe algo de vago e indeterminado em seu propósito,
o que anima todas as esperanças. Deve-se também acrescentar que os homens do
consistório são solicitamente procurados pelos russos — acreditados ou não —
que passam pela Itália.93

Fossem quais fossem as conexões, é inegável o fascínio geral dos jovens


russos pelos movimentos revolucionários ocidentais, sobretudo pela carbo­
nária. Russos tiveram muitos contatos com revolucionários italianos, e já em
1819 haviam tentado estabelecer elos.94 O Grão-Duque Michael viajou pela
Itália nesse mesmo ano com o seu tutor (e também do tzar), Laharpe, que
havia se tornado o líder da carbonária suíça com contatos bem próximos do
movimento italiano.95 Em maio, um periódico russo de destaque publicou
um artigo elogiando a Seita dos Pitagóricos, a começar pelo seu catecismo
com questões supostamente propostas pelo próprio Pitágoras: “O que é

91 Sobre bliustiteV, v. Nechkina, Dvizhenie, vol. i, p. 205; sobre os gradi di osservazione, Saitta, vol. i,
pp. 104-105. (Observe-se também o uso buonarrotiano das misteriosas letras W, AA, que Saitta
lê corno Veri Amici, p. 104, nota 68.) Buonarroti, por sua vez, talvez tenha chegado à idéia de um
observador por meio do Círculo Social de Bonneville, no qual se menciona a posição “observateur
du Cercle Social” já no primeiro número de La Bouche de Fer, vol. i, 1790, p. 229. O pseudônimo
“Observador” ainda é utilizado nos principais jornais comunistas para pronunciamentos ideológicos
de alta relevância.
92 Andryane, citado em Semevsky, pp. 376-377.
93 Carta de Roma de 27 de outubro de 1819, em Saint-Edme, p. 211.
94 V. a carta anônima de Roma de 12 de julho de 1819, em Saint-Edme, p. 202; também Semevsky, Idei,
pp. 365-367. Para um rico detalhamento de contatos de 1815 a 1820, v. M. Koval’skaia, Dvizhenie
karbonariev v Italii 1808-1821, 1971, pp. 175-202.
95 Lennhof, pp. 44-45. Ele subestima o temor de Metternich de que diplomatas russos na Itália pudessem
utilizar a carbonária contra os Habsburgos. A respeito do impacto da carbonária sobre personalidades
literárias da época, v. p. 74 ss. e Landa, “Konspiracje”, p. 256, o qual valoriza exemplos da Grécia
e da Itália.
250 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

universal? Ordem. O que é amizade? Igualdade” 96 O credo, se possível, ia


além de Buonarroti:

Não possuindo qualquer propriedade privada, desconhecendo orgulho e vangloria,


distantes das coisas ordinárias que freqüentemente são motivo de divisão, eles
competem uns com os outros apenas na prática do bem. [...] Aprenderam a utilizar
tudo de modo partilhado e se esqueceram da propriedade privada.97

Porém, um breve levante em 1820 no Regimento de Semenovsky, um fa­


vorito do tzar, levou à repressão na Rússia e, assim, ao predomínio polonês
da atividade revolucionária no leste europeu. Os poloneses tinham laços
mais profundos com o movimento italiano tanto em razão da colaboração
com Napoleão como também em razão da cultura católica.
A comissão especial que investigou os dezembristas durante a primeira
metade de 1826, depois de seu levante fracassado, sugeriu que sua organiza­
ção regional era moldada a partir de cinco ventes regionais dos carbonários
franceses.98 Mais ainda, os italianos estavam tão bem informados sobre os
planos do movimento russo e tão otimistas quanto ao seu potencial que
continuaram a aguardar um segundo e conclusivo levante dos dezembristas
na primavera de 1826: a data secreta original escolhida antes do levante
abortivo de dezembro.99
Mas os dezembristas não se levantaram novamente. Cinco líderes foram
enforcados e os outros enviados para a Sibéria. Xingamentos e lama eram
atirados neles ao longo do caminho pelo populacho que (assim como o da
Espanha dois anos antes) mostrava que não compartilhava o interesse elitista
pela revolução.

A diàspora mediterrânea
Chegara ao fim uma década de agitação constitucional contra a restauração
conservadora. A imagem do movimento revolucionário em 1826 era de total

96 O artigo anônimo, “Sekta pifagoreitsev”, Vestnik Europy, 1819, maio, n° 9, p. 36. Oksman atribui
esses artigos a LI. Davydov: Druzhinin, Ocherki, p. 505.
97 Ibid., p. 38. O artigo possui, com efeito, uma continuação, “Dukh sekty sokratovoi”, no mesmo
jornal, 1819, maio, n° 10, pp. 110-120.
98 Vosstaniia, vol. iv, pp. 141-142. Isso permanece coisa plausível, a despeito de Pestel negá-lo, p. 157.
Em momento anterior do interrogatório, Pestel admitiu conexões com a Alemanha e a Hungria,
além da Itália, p. 107. Também Oksman, p. 212.
99 Semevsky, Idei, pp. 364-367, 374-375. Semevsky, que dá mais atenção às influências estrangeiras
do que estudiosos posteriores, insiste (p. 377) em que “as relações de revolucionários russos com
sociedades secretas da Europa Ocidental ainda pedem muitas investigações”.
LIVRO H, CAPÍTULO 5: OS CONSPIRADORES CONSTÎTUCIONALISTAS (1815-1825) 251

desordem. Restaram apenas a aura de heroísmo romântico e uns poucos


mártires. Mas fora um período de aguda experimentação revolucionária e
de tutela política — e não o foi menos para um dos mais jovens membros da
carbonária francesa, Auguste Blanqui. Mesmo sendo só um rapaz de 21 anos,
ao fim de 1825 Blanqui buscara inspiração nos dezembristas: “cinco mártires
da liberdade [...] ilustres vítimas que a democracia européia inscreveu em
seu martirológio” por terem aberto “para a Rússia a era do progresso e da
liberdade”.100 Caberia a ele manter vivo o espírito conspiratório ao longo
de todo o século xix e o retransmitir de volta a uma Rússia mais receptiva
na década de 1870.
Dentro da própria Rússia, uma tradição revolucionária diversa em vários
sentidos se iniciou no topo da Colina dos Pardais (ainda hoje conhecida como
Colina Lênin), tendo à frente a vista de Moscou, quando os jovens Herzen
e Ogarev fizeram juntos o seu “juramento de Aníbal” de “sacrificar nossas
vidas” pela luta que os dezembristas haviam iniciado.101 Muitas das idéias
da tradição revolucionária russa se originariam com Herzen,102 e algumas
de suas formas de organização com Ogarev.103 A Rússia, como vimos, foi a
última nação a adotar a idéia de revolução após a crise de autoridade que
se seguiu às guerras napoleônicas. Um século mais tarde, após a próxima
grande guerra continental, a Rússia viria a ser a primeira.
Mas, em razão de todas as suas repercussões internacionais e de seus
prenúncios proféticos, a década pós-Restauração de atividade revolucioná­
ria pertence em grande medida aos italianos. A carbonária fora a primeira
organização secreta a liderar uma revolução de grande escala na Europa
moderna. Apesar do seu fracasso e desmantelamento, a carbonária despertou
o entusiasmo por uma Itália unificada; e assim serviu de modelo a ser seguido
por outros. Seus membros sobreviventes se recolheram a uma subcultura de
grupos locais — às vezes adotando o nome da vendita local, às vezes criando
novos nomes, às vezes se dissolvendo em outros grupos.

100 Citado em M. Dommanget, Les idées politiques et sociales d’Auguste Blanqui, 1957, p. 341.
101 A. Herzen, “Nik i Vorob’evy Gory”, Polnoe sobranie sochinenii i pisem’, São Petersburgo, 1919, vol.
XII, p. 74. Os dois depois voltariam cada um sozinho “uma ou duas vezes por ano” a esse “local de
peregrinação”.
102 Venturi, Roots, cap. 1, esp. pp. 1-2; também M. Malia, Alexander Herzen and the Birth of Russian
Socialism, 1812-1855, Cambridge, Massachusetts, 1961, esp. a última frase da seção 2, p. 425.
103 S. Utechin, “Who Taught Lenin?”, Twentieth Century, 1960, juL, pp. 8-16; P. Scheibert, Von
Bakunin zu Lenin: geschickte der russischen revolutionären Ideologien, 1840-1895, Leiden, 1956,
pp. 222-231.
252 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,EM E HISTÓRIA

A diàspora dos carbonários produziu uma variedade desnorteante de


grupos atomizados de protesto. Células revolucionárias clássicas surgiram
com nomes sugestivos como “cinco em família” e “os sete adormecidos”.
O treino militar apressado enxertado na carbonária durante os levantes da
década de 1820 deixou um legado de militância que se intensificou com a
execução de cerca de 800 líderes carbonários depois que a insurreição foi
sufocada. Veteranos dos confrontos formaram novos grupos militantes, como
os Filhos de Marte, ainda na década de 1820, e os Caçadores Americanos
(Cacciatori Americani), que se reuniam para treinar nas florestas de pinhos
perto de Ravenna. Havia os Barrigas Negras (Pancie Nere) de Roma, os Sem
Camisa (scamiciati) e os Vampiros (Vampiri) de Nápoles, os imitadores de
Sand (o jovem assassino) na Sicilia. Grupos reacionários, como os Perfura­
dores (Bucatori) da Toscana, podem ter estabelecido laços com os “bandidos
sociais”, assim mantendo vivas as tradições de resistência local à autoridade
central.104 Às vezes, alguns grupos extremistas parecem ter tido relações mais
amplas por toda a Itália, como é o caso dos Destruidores (Stermatori), e
mesmo no exterior, como os demônios de Londres e os gregos do silêncio.
A era da carbonária deixou um legado de conspiração e frustração que
levaria italianos e poloneses a desenvolver novas teorias da violência revo­
lucionária às quais ainda retornaremos. Também ofereceu um precedente
e uma lenda para a área mediterrânea que solapou as bases do fatalismo
autoritário e influenciou um conjunto de insurreições posteriores, dos bons
primos da floresta de Oran, na Argélia,105 em 1848, aos Jovens Turcos de
meio século mais tarde.106

104 Todos esses grupos — e muitos outros — estão listados em Radice, “History”.
105 M. Emerit, “Une société secrète: Les bons cousins de la foret d’Oran”, em La révolution de 1848
en Algérie, 1949, esp. pp. 76-86.
106 Ibrahim Temo, o fundador de origem albanesa, em 1889, da “sociedade patriótica secreta” em
Istambul que levou ao movimento dos Jovens Turcos, foi profundamente influenciado, durante
visitas a Brindisi e Nápoles, pelo papel que os carbonários desempenharam na história italiana. V.
E. Ramsaur, The Young Turks. Prelude to the Revolution of 1908, Princeton, 1957, pp. 15-16. V.
também C. Buxton, Turkey in Revolution, L, 1909, pp. 44-48, sobre os ritos de iniciação de tipo
carbonário.
CAPÍTULO 6
Revolução nacional vs. revolução social (1830-1848)

período entre 1830 e 1848 testemunhou o mais fundamental conflito

O interno à tradição revolucionária moderna, aquele entre revolução


nacional e revolução social. Foi aí que se começou a confrontar uma
questão que ainda hoje surge: deve a revolução vindoura criar uma nova
nação de camaradagem cultural que destrói as divisões entre as classes? Ou
deve ela criar uma nova sociedade sem classes que abole todas as fronteiras
nacionais? Devem os revolucionários se basear no apelo emocional do na­
cionalismo ou no apelo intelectual da igualdade social?
Essa questão duradoura foi proposta implicitamente em meados da década
de 1790. À medida que o otimismo inicial se desfazia, os revolucionários fran­
ceses começaram a se perguntar se a realização de sua atravancada revolução
residia na fraternité ou na égalité' se na construção de uma grande nation,
como queria Napoleão, ou de uma nova communauté social, como desejava
Babeuf. A idéia mais popular era — e assim permaneceu — aquela da nação,
que os espanhóis foram os primeiros a chamar de “revolução nacional”.1
Após as revoluções da década de 1830, o nacionalismo romântico perdeu
a sua associação automática com o liberalismo constitucional. À medida que
1 P. Villar, “Patrie et nation dans le vocabulaire de la guerre d’indépendance espagnole”, em Annales
Historiques, 1971, out.-dez., p. 529; e com abordagem mais completa em Seoane, “El nuevo concepto
de nación”, em El primer lenguaje, pp. 63-81.
Os poloneses muito a propósito preferiam a palavra “nation” a “patrie”, mas em geral tendiam a
não empregar a palavra “revolução”. V. J. Borejsza, “Portrait du révolutionnaire polonais”, em Acta
Poloniae Historia, Vol. xxx, pp. 125-127,135.
254 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM F HISTÓRIA

o nacionalismo desenvolvia, por si mesmo, uma nova intensidade revolucio­


nária, começou a confrontar o ressurgente babeuvismo do qual se originara
a tradição de revolução social rival.
A Revolução de 1830 fomentou mais esperanças do que a simples remoção
do último Bourbon da França poderia satisfazer. Uma nova geração estava
arrebatada pelos “três dias gloriosos” de julho, quando homens, mais uma
vez, estiveram dispostos a enfrentar e tombar de um lado ou de outro das
barricadas. O poeta Alfred de Vigny, quase sem fôlego, escreveu, quando do
romper da insurreição em Paris em julho de 1830: “Estão lutando desde a
manhã. Os trabalhadores têm toda a bravura dos vendeienses; os soldados, a
coragem da guarda imperial; franceses por toda parte. Paixão e inteligência de
um lado, honra do outro. [...] Pobre povo, grande povo, todos guerreiros”.2
O amor romântico do heroísmo — fosse vendeiense ou revolucionário —
tornava difícil se acomodar ao juste mileu de Luís Filipe. A França parecia
ter renascido de um puro entusiasmo; um mês depois, uma nova nação de
fato nascería da insurreição espontânea que ocorrería na Bélgica; e esta, por
sua vez, inspirou uma heróica revolução nacional na Polônia. A imagem
de nações se levantando em armas contra um poder externo deu renovada
esperança tanto a revolucionários nacionais como a revolucionários sociais.
Mas os nacionalistas eram muito mais numerosos, e os italianos tomavam a
dianteira. Tendo criado, com a carbonária, o modelo anterior a ser seguido,
a Itália agora elaborava o protótipo de uma organização revolucionária
nacional por meio da Jovem Itália de Giuseppe Mazzini.
O chamado a uma revolução social, e não nacional, veio quase ao mesmo
tempo que o chamado de Mazzini. Em 1831, justamente quando a Jovem Itália
se formava entre jovens emigrados em Marselha, subindo um pouco mais o
Ródano, em Lyon, artesãos franceses transformaram um motim em uma insur­
reição, inspirando uma nova linguagem para a luta de classes. Poetas franceses
falaram, em 1831, numa “insurreição universal” e de um vulcão revolucionário
expelindo “lava de novos Espártacos” para diminuir a desigualdade e garantir
que “não mais existam crianças bastardas em nossa terra natal”.3
Foi também em Lyon que Mazzini empregou a mesma metáfora enquanto
recrutava homens para uma invasão armada da Sabóia, que ele esperava

2 Journal d’un poète, 1935, vol. i, p. 101, citado em Leroy, Histoire, pp. 382-383.
3 Barthélémy e Méry, cujos L’Émeute universelle e Nemesis (dos quais são oferecidos esses trechos)
são discutidos em F. Rudé, L’Insurrection lyonnaise de novembre 1831. Le mouvement ouvrier à
Lyon de 1827-1832,1969, pp. 677-679.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 255

fosse detonar uma reação em cadeia de revoluções nacionais. “Se agirmos


com determinação, se exibirmos uma centelha de fogo de verdade, a Itália se
tornará um vulcão”.4 Pouco depois dessa tentativa abortada e da dissolução
da legião no início de 1834, um segundo e mais amplo levante social convul-
sionou Lyon, levando alguns a falar da “grande revolta final do proletariado”.5
Se novos e dramáticos modelos de revolução agora se originavam em Lyon,
nem por isso a liderança deixava de vir de Paris. Aqui, a imaginação romântica
desperta foi obrigada a confrontar a realidade prosaica da monarquia burguesa
de Luís Filipe. Cada vez mais desesperados, os parisienses foram buscar amparo
no velho rival italiano de Mazzini, Buonarroti, que por firn retornara a Paris
em 1830 para là passar os sete últimos anos de sua vida. Ele e um francês
mais jovem de ascendência italiana, Auguste Blanqui, criaram ali, na década de
1830, a fé moderna em uma vindoura revolução social. Ao contràrio, Mazzini
articulou uma série de organizações nacionalistas revolucionárias — Jovem
Itália e Jovem Europa— precisamente para se opor ao “princípio parisiense”:
a dependência de todo um continente a uma única cidade francesa.
O conflito entre revolucionários nacionais e revolucionários sociais era,
em essência, um conflito entre romantismo e racionalismo: o amor emocional
dos nacionalistas pelo único e orgânico contra a atenção intelectual dos so­
cialistas voltada para leis gerais e análise mecanicista. Os nacionalistas viam
a revolução como um “ressurgimento” (o risorgimento italiano) ou até como
uma ressurreição (a zmartwychwstanie polonesa) de uma nação individual. Os
revolucionários sociais a viam como uma extensão do universalismo científico
do Iluminismo. Se nacionalistas revolucionários amiúde eram poetas, como
Petofi na Hungria ou Mickiewicz na Polônia, a celebrar a singularidade de
seu idioma vernáculo, revolucionários sociais como Blanqui tendiam, por
sua vez, a ver a si próprios como teóricos educadores a ensinar princípios
universais.6 Se revolucionários nacionais tendiam a exaltar o vitalismo da
juventude e a “primavera” de sua nação, revolucionários sociais tendiam a se

4 Citado e datado como de julho de 1833 por S. Barr, Mazzini: Portrait of an Exile, NY, 1935, p. 59.
5 A expressão la grande revolte finale du prolétariat prenuncia a abertura da Internationale escrita
em 1871, e é citada a partir do anônimo Aperçu sur la question du prolétariat a que se faz menção
no prefácio ao romance La revolte de Lyon en 1834 ou la fille du prolétariat, 1835, de acordo com
Rude, Insurrection, p. 719, o qual sugere (p. 716) que o autor “L.S.” possa ser o ex-saint-simoniano
Léon Simon.
6 Blanqui via a educação como “a força que governa o mundo” e “o único e verdadeiro agente
revolucionário”. A. Spitzer; The revolutionary theories of Louis Auguste Blanqui, NY, 1957, pp,
53-54. Spitzer dá destaque a essa preocupação pouco lembrada do famoso insurgente, esp. pp.
47-64.
256 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

concentrar em símbolos outonais da sabedoria amadurecida: o sexagenário


Buonarroti na década de 1830, o Blanqui prematuramente envelhecido pela
prisão ao fim da década de 1840, e Karl Marx já distante e respeitável no
Museu Britânico após a década de 1850.
A incapacidade de cada uma dessas tradições de compreender a outra
pode ser ilustrada pelo elogio inacreditavelmente inexato do nacionalismo
feito por Marx no Manifesto Comunista, escrito às vésperas das insurreições
nacionalistas de 1848: “Os operários não possuem país algum [...] Diferenças
nacionais e antagonismos entre os povos vão dia-a-dia desaparecendo
O nacionalismo, e não o socialismo, permaneceu o ideal revolucionário
predominante mesmo após os fracassos de 1848—1850. A Primeira Interna­
cional, que se chamava explicitamente Associação Internacional dos Traba­
lhadores, buscou liderança primeiro em Mazzini, só depois se voltando para
Marx quando de sua fundação em 1864.

O predomínio dos nacionalistas


O nacionalismo revolucionário atraía uma grande variedade de grupos so­
ciais cujo padrão de vida tinha sido desarranjado pelas primeiras etapas da
Revolução Industrial. Os novos nacionalistas radicais não vinham nem de
um proletariado centrado na fábrica (o qual mal existia no continente nos
anos 1830) nem, em sua maior parte, da burguesia comercial ou industrial.
Parece haver três características gerais compartilhadas por aqueles que nesse
período identificavam nacionalismo com revolução — pouco importa se
fossem aristocratas do leste europeu, funcionários de baixo escalão franco-
-italianos, estudantes alemães ou artesãos bem-educados.
Politicamente, os revolucionários nacionais queriam para si — e para os
outros — uma parcela de poder político maior do que os monarcas estavam
dispostos a ceder. O desejo de poder açambarcou a nova idéia de soberania
popular e colocou em segundo plano a preocupação iluminista prévia com
formas constitucionais e equilíbrio racional.
Socialmente, os novos nacionalistas eram quase sempre pessoas deslocadas.
Independentemente de quais fossem suas classes sociais, eles tinham em geral
perdido o senso de expectativas ordenadas que as sociedades tradicionais
tinham até então proporcionado. Se as revoluções da década de 1820 ocor­
reram em sociedades tradicionais (Espanha, sul da Itália, Grécia e Rússia),

7 Texto presente em T. Tucker (ed.), The Marx-Engels reader, NY, 1972, p. 350.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 257

as revoluções da década de 1830 afetaram regiões onde os efeitos de uma


economia de mercado já se revelavam relativamente avançados: Bélgica, a
Alemanha renana, o norte da Itália, Paris e Polônia.
Revolucionários exilados, fossem derrotados ou frustrados, reuniram-se
depois de 1830 nas vitoriosas Paris e Bruxelas, ou até em centros urbanos
economicamente mais sofisticados como Londres e Genebra. Aí, a combina­
ção de exílio involuntário e anomia urbana com freqüência provocou uma
saudade compensatória de estruturas de tipo familiar e de imagens rurais,
coisas que se tornaram características de nacionalistas revolucionários. A
percepção de uma mecanização e uniformidade amedrontadoras criou às
vezes o desejo maníaco de afirmar a peculiaridade e a humanidade — até
mesmo a divindade — de uma determinada tradição. Nisso não menos que
os reacionários do período romântico, os revolucionários começaram a se
voltar nostalgicamente para a Idade Média precisamente no mesmo momento
em que confrontaram pela primeira vez a era industrial moderna.
Profissionalmente, os revolucionários nacionais tendiam a trabalhar com
meios de comunicação. A despeito de quais fossem suas origens, os novos
revolucionários vinham a se encontrar não apenas em reuniões à maneira
maçônica ou em conspirações militares, mas em redações de jornal e teatros.
Com espírito quase missionário, eles criaram, debateram e disseminaram
idéias e identidades para porções da população européia até então inertes.
A sua maior aventura espiritual parecia estar em definir a missão deste ou
daquele “povo” que havia sido suprimida, no século xvm, pelas convenções
artificiais das aristocracias e pela tirania sutil da cultura francesa.
Os revolucionários sociais também eram, é claro, atingidos pela ambição
política, pelo exílio e pelos novos meios de comunicação. Mas, durante esse
estágio relativamente incipiente da industrialização, identidades de classe
ainda não eram percebidas tão claramente quanto identidades nacionais.
Assim, os nacionalistas obtinham maior sucesso na mobilização popular. No
início da década de 1830, eles renovaram seus esforços para levantar os povos
da Europa contra o poder monárquico do que o poeta polonês Mickiewicz
chamou de “Trindade Satânica” da Rússia, Prússia e Áustria.

A Internacional Mazzini

O homem que mais trabalhou para espicaçar os povos da Europa contra


os seus reis foi o genovês Giuseppe Mazzini. Veterano da carbonária que
258 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

fora preso durante a Revolução de 1830, Mazzini via sua vida como um
“apostolado” que forneceria mártires bem como ensinamentos para um novo
tipo de sociedade. No exílio em 1831, fundou uma sociedade que serviria de
modelo às organizações revolucionárias nacionalistas: a Jovem Itália. Durante
algum tempo, colaborou com a nova Sociedade dos Verdadeiros Italianos, de
Buonarroti, mas não demorou a rejeitar a dependência deste último para com
lideranças francesas e seu hierárquico “espírito de casta”, e a desafiar a idéia
de que um povo com a riqueza cultural dos italianos pudesse confiar, ainda
que provisoriamente, poder ditatorial a um pequeno grupo de conspiradores
desenraizados.8 Ele teimava em dizer que um movimento autenticamente
italiano não poderia tolerar nem o terror nem o governo de um homem só,
que ele notava emergirem da abordagem própria a Buonarroti. (Buonarroti,
por sua vez, denunciava os elos de Mazzini com os ricos da Lombardia,
posicionando-se contra qualquer tentativa de invasão do Piemonte que não
contasse com o auxílio da França).9
Mazzini abdicou de sua profissão de advogado e com freqüência criticou
a ênfase dos franceses mais em direitos legais que em deveres morais. Pro­
fessores jansenistas o tinham cumulado de uma religiosidade moralista; e a
literatura romântica o infectara com uma compulsão de produzir escritos
inspiradores. Mais de cem volumes de suas obras reunidas não deram conta
de abarcar toda a sua produção em prosa. Em particular, excelia no mais
pessoal dos gêneros: cartas a amigos, e sua rede de contatos e influência se
estendia por toda a Europa.
Filosoficamente, Mazzini oferecia uma fundamentação universal, e não
meramente italiana e provinciana, para um movimento nacionalista. Ele falou
de um senhor (Deus), uma lei (o progresso) e um intérprete terreno (o povo).
Nenhum “povo” está completo até que se torne uma nação. “O indivíduo
é demasiado fraco e a humanidade demasiado vasta”.10 Verdadeiras nações
não vivem em conflito, são unidades orgânicas de pleno direito — geográfi­
ca, lingüística e culturalmente — de uma harmoniosa ordem internacional.
Simbolicamente, a causa italiana assumira o papel que a luta pela inde­
pendência grega havia desempenhado no período anterior. Ela incendiou a

8 Sobre esse conflito, v. Garrone, Buonarroti, pp. 342-385; também E Della Feruta, “Mazzini e la
Giovine Europa”, em Annali, vol. v, 1962, pp. 11-147; e E. Hales, Mazzini and the Secret Societies,
L, 1956, esp. pp. 59, 80.
9 Weill, “Buonarroti”, pp. 272-273.
10 The duties of man and other essays, L, 1907, p. 52.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 259

imaginação romântica por toda a Europa com a imagem de um local banhado


de sol e beleza a ansiar por um renascimento, obrigando todos a se unirem
contra um opressor comum: os Habsburgos, que substituíram os turcos.
Politicamente, o movimento nacionalista italiano parecia se ancorar nas
mais realistas previsões de sucesso. Os nacionalistas alemães eram sufocados
pelas monarquias prussiana e austríaca; os poloneses tinham sido esmagados
pelos russos; e outros movimentos estavam apenas se iniciando. Os italianos,
por outro lado, tinham trunfos internacionais, bem como uma poderosa
tradição revolucionária nativa. A Itália se situava bastante longe do centro
do império habsburgo e era acessível a possíveis fontes estrangeiras de apoio:
França, Suíça, e mesmo a marítima Inglaterra. Mazzini conseguiu mobilizar
na França e na Suíça uma legião internacional de franceses, alemães, suíços
e poloneses sob um comandante polonês, que se juntaria aos italianos numa
tentativa abortada, em janeiro de 1834, de invadir a Sabóia e deflagrar a
revolução na Itália.11
Estrategicamente, o movimento italiano se tornou formalmente o centro
do movimento europeu no dia 15 de abril de 1834, quando Mazzini tentou
manter o caráter internacional da legião fundando a Jovem Europa, em
Berna, na Suíça. Organizada sob a direção de um comitê de sete italianos,
cinco alemães e cinco poloneses, a Jovem Europa logo ganhou uma filial, a
Jovem Suíça, e grupos menores na França, Espanha, Hungria e Escandinávia.
A alternativa de Mazzini ao centralismo buonarrotiano de uma “monarquia
universal controlada a partir de Paris”12 era uma federação de movimentos
nacionalistas. À altura do verão de 1835, existiam 86 clubes da Jovem Itália
(74 deles dentro da própria Itália e com 693 membros), 62 clubes suíços com
480 membros, 50 clubes poloneses, além de 14 da Jovem Alemanha e outros
14 da Jovem França.13 Infiltrada por espiões e dividida por disputas entre
os italianos e os alemães, a organização foi expulsa da Suíça em agosto de
1836; e, após a mudança de Mazzini para Londres em janeiro de 1837, ela
praticamente deixou de existir. Mas o exemplo de colaboração transnacional
pela causa do nacionalismo estava dado e seguramente identificado com

11 O número total (quase certamente menos que os 780 alegados por Mazzini) incluía 200 poloneses e
150 alemães e suíços. Só cerca de 300 chegaram a alcançar a fronteira da Sabóia. V. Hales, Mazzini,
pp. 118-119; Barr; Mazzini, p. 64.
12 Circular de 19 de abril de 1834, citado em Della Feruta, pp. 19-20.
13 Esses personagens (em H. Keller; Das “Junge Europa“, 1834-1836, Zurique/Leipzig, 1938, p. 53)
provavelmente não constituíam o cume. Schieder (Anfänge, p. 120) indica que a Jovem Alemanha
cresceu de 172 membros em meados de 1835 para 268 no início de 1836.
260 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a Itália. A Internacional nacionalista de Mazzini foi a primeira de muitas


tentativas ao longo de todo o século xix de reunir os revolucionários nacio­
nalistas numa luta comum contra as monarquias tradicionais. A importância
internacional da causa italiana se expandiu para além da Europa ao fim da
década de 1830 e início da década de 1840. Giuseppe Garibaldi, que tinha
sido doutrinado por Mazzini e condenado junto com ele pela tentativa de
sublevação das forças armadas piemontesas em 1833, levou a causa da revo­
lução nacionalista em sua forma mais pura até a América Latina. Juntou-se
à luta em defesa da nova nação uruguaia contra as incursões dos gigantes
vizinhos, o Brasil e a Argentina.
Com um navio nomeado Mazzini e uma legião italiana sob seu comando
para “servir à causa das nações”, Garibaldi seguiu para a batalha sob uma
bandeira preta com um vulcão em seu centro (simbolizando, respectivamente,
o luto da Itália e sua futura revolução). Sua legião adquiriu seu uniforme
de “camisas vermelhas” ao expropriar, em Montevidéu, aventais que seriam
exportados para açougues na Argentina.14 Estes aventais, as “camisas verme­
lhas” originais, destinavam-se assim a camuflar o sangue de homens, não de
gado. Esse uniforme revolucionário caracteristicamente italiano seria levado
de volta do Novo Mundo para o Velho quando Garibaldi voltou à Itália com
sua legião em um navio chamado Speranza.
Sobre o convés a céu aberto desse navio de “esperança”, Garibaldi e seus
seguidores se reuniam em círculo à noite, em pleno Atlântico, para entoar
canções patrióticas. Esses rituais — sugestivos como as vésperas cristãs
ou encantamentos pagãos — eram expressão característica das aspirações
comunais revolucionárias da era romântica. Quando o Speranza finalmente
aportou na Espanha em 1848, Garibaldi soube que a revolução já tinha re­
bentado na Itália. Era como se, enquanto a esperança velejava de volta para
casa, a própria vida tivesse ecoado os refrãos entoados.
Garibaldi saltou sobre o palco em Nice como um tenor heróico e excitou a
platéia com suas aparições dramáticas por toda a Itália. Seu apoio em seguida
à Roma republicana sitiada, resistindo a ataques vindos de todos os lados, a
morte trágica de sua bela esposa brasileira e companheira de armas, Anita,
e sua partida final para os Estados Unidos em junho de 1850, à bordo do
Waterloo — tudo isso lembra uma ópera italiana transcorrendo sobre o palco
da história. Parece apropriado, assim, que no exílio Garibaldi preparasse o

14 C. Hibbert, Garibaldi and His Enemies, Boston/Toronto, 1965, esp. pp. 21-22.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 261

seu glorioso retorno revolucionário à cena italiana em uma casa em Staten


Island compartilhada com o maior tenor de ópera da época, Lopenzo Salvi.15
Com efeito, talvez seja útil refletir sobre a maneira, algo surpreendente,
como a própria ópera, a mais italiana das artes, interagiu — e até ajudou
a moldar — o nacionalismo revolucionário na Europa em geral e na Itália
em particular. Pois a notável, ainda que elusiva, interação entre teatro e
vida, que era evidente durante a Revolução Francesa, tornou-se ainda mais
impressionante no caso da ópera e da revolução no século xix.

O estímulo da ópera

A conexão entre revolução e teatro musical foi reconhecida por um revo­


lucionário durante seu julgamento no verão de 1832: “As pessoas trocaram as
igrejas pelos teatros [...] a ópera é um espetáculo para despertar e estimular
os sentidos [...] um grande reservatório de poderosos estímulos sensuais”.16
A ópera até então tinha sido escrita apenas para umas poucas pessoas
ricas, mas no futuro deverá “despertar e estimular” as massas no sentido
de transformações sociais — tirando vantagem das grandes platéias para
disseminar idéias por meio de agitadores conhecidos como chefs d'attaque17
em uma época na qual reuniões políticas eram proibidas.
Os “líderes do ataque” à ordem existente no início do século xix eram os
revolucionários nacionais;18 e o poder emocional do nacionalismo romântico
era amplificado em razão de seus íntimos laços com a ópera.
Claro, o nacionalismo lançou o seu feitiço por meio de várias artes. De
David a Delacroix, criaram-se ícones pictóricos. O chamado revolucionário
soou nos dramas de Schiller e Hugo — e foi respondido por poetas nacio­
nais que se tornaram líderes revolucionários em 1848: Lamartine na França,

15 M. Maretzek, Revelations of an Opera Manager in 19th-Century America, NY, 1968, pp. 10-11.
16 Duveyrier, cujos co-réus eram Rogé do Opéra Comique, Urbain e Cayol: Religion saint-simonienne.
Procès en la cour d’assises de la Seine les 27 et 28 août 1832,1832, pp. 183-184 (Fundação Einaudi,
Turim). Os saint-simonianos, que depois discutiremos, sonhavam incluir uma casa de ópera e um
palácio de indústria em seus templos da humanidade, e fizeram experimentos operísticos berrantes
na missão ao Oriente que empreenderam após esse julgamento. V. P. Gradenwitz, “Félicien David
(1810-1870) e o Orientalismo Romântico Francês”, em The Musical Quarterly, 1976, out., pp.
471-506.
17 Vinçard aîné, Mémoires épisodiques d’un vieux chansonnier saint-simonien, 1878, pp. 77,115-116.
18 Os revolucionários nacionais, como é óbvio, com frequência extraíam as suas práticas dos socialistas
universalistas. Pode ser que Garibaldi, por exemplo, tenha adquirido o seu hábito de cantar em
círculos a bordo de navios (Hibbert, pp. 29-30) de experiências anteriores com esse hábito dos
saint-simonianos (Vinçard, p. 80, nota) durante a viagem que fizera com eles até o Oriente Próximo.
262 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Petofi na Hungria, Mickiewicz na Polônia, Herwegh na Alemanha. Mas o


nacionalismo revolucionário era uma idéia visceral que se projetou para
além de quadros e poemas rumo ao meio de comunicação mais imaterial
— e emocionalmente mais evocativo — do período romântico: a música.
Mazzini, à época em que organizava sua Jovem Europa, saudou o potencial
revolucionário da música como uma forma de comunicação humana “que
começa onde a poesia termina [...] a álgebra do espírito [...] o perfume do
universo inteiro [...] que o materialismo de nossa época escondeu, mas não
exilou do mundo”.19
A conexão mais profunda se dava com a ópera melodramática. Ao unir
música com poesia vernácula e folclore local, a ópera se tornou o veículo da
consciência nacional — unificando públicos fragmentados, freqüentemente
iletrados. O sonho de atingir a felicidade humana total por meio da criação
de uma nova nação requeria extraordinários saltos de fé. A crença numa re­
volução nacional era de algum modo mais fácil para aqueles que já estavam
imersos no mundo irreal da ópera, onde satisfações sociais, espirituais e até
sexuais eram alcançadas ao mesmo tempo mediante a mágica da música.20
A ligação entre palco de ópera e causa revolucionária nacional passou
por três fases. A primeira, na década de 1760, deu-se com o nascimento da
ópera comique^ que tirou da cultura pequeno-burguesa sua combinação
de “cançõezinhas” (chamadas vaudevilles) e diálogo falado para expressar
sentimentos cotidianos e provocar reações emocionais diretas no público.
Abandonava-se, assim, o ideal de disciplinar, em vez de provocar, as paixões
— assim como a subordinação da melodia a um texto retórico.
Em segundo lugar, deu-se o rápido desenvolvimento, durante os primeiros
dias da Revolução Francesa, de uma mensagem de propaganda revolucio­
nária para a ópera comique. Óperas revolucionárias requeriam tramas cada
19 G. Mazzini, “Philosophy of Music” (1833) em Selected Writings (ed. N. Gangulee), L, 1945, pp.
250-251. O seu homônimo Andrea Mazzini deu urn toque italiano característico à esquerda
hegeliana com a sua “Filosofia da História da Música”, em abril de 1840, afirmando que o canto
era a linguagem da libertação que reconcilia “o infinito com o finito”. Saitta, Sinistra, p. 21.
20 D. Fernandez sugere que a ópera era um meio de ordenar a realidade primordial especialmente para
os italianos, fazendo-a mais compreensiva e menos estritamente cerebral do que o teatro — este
último a expressar moi, ao passo que a ópera expressaria ça [isto é, o que está à frente do indivíduo]:
“L’Opéra, révélateur de la société italienne”, em Annales du Centre Universitaire Méditerranéen,
vol. XXIV, 1971, pp. 14-15.
Escritores mais recentes que se ocuparam de ópera e revolução trataram principalmente das
produções autoconscientes da Alemanha weimariana: A. Porter (The New Yorker, 6 de janeiro de
1973, pp. 59-62) se ocupa de Brecht/Weill; W. Panofsky (Protest in der Oper, Munique, 1966), da
reencenação revolucionária de óperas clássicas, incluindo obras pré-revolucionárias de Handel: pp.
37-38, 43-44, 83, além de comentários às pp. 68-73.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 263

vez mais simples, cenários espalhafatosos e orquestras maiores acomodadas


à acústica da execução ao ar livre e da enfatuada música militar. Metais
substituíam cordas, da mesma forma que “Apoio se desfez de sua lira, vestiu
um barrete frigio e empunhou uma trombeta”.21 Atores que interpretavam
reis eram com freqüência agredidos fisicamente, ao passo que heróis e coros
republicanos tinham de repetir refrãos revolucionários ou enxertar canções
populares no curso da ação.
Guillaume Tell — um marco na história da ópera, com composição de
duas das principais figuras da ópera comique, o libretista Michel Sedaine e
o compositor André Gretry — transformou a lenda de um suíço do século
XIV inimigo dos Habsburgos em uma turbulenta exortação revolucionária.
Maréchal também glorificava William Tell22 e colaborou com Gretry em
óperas ideológicas durante o Reino do Terror. Em O banquete da razão, um
sans-culotte é coroado com um barrete da liberdade, enquanto um padre
celebra os efeitos libertadores de se livrar publicamente de suas vestes. Ou­
tra ópera de Maréchal e Gretry, Denis, o Tirano, celebrava a necessidade de
“inculcar nas crianças [...] a sacralidade da igualdade”.23 O convite à luta
21 P. Lang, “French Opera and the Spirit of the Revolution, em H. Pagliaro (ed.), em Irrationalism in
the Eighteenth Century, Cleveland/L, 1972, p. 108.
Deu-se pouca atenção às composições operísticas e às teorias sobre encenação musical de figuras pré-
revolucionárias como Rousseau e Beaumarchais. As peças deste último inspiraram óperas posteriores
e ajudaram a incitar a Revolução Francesa original. Napoleão depois comentaria: “Fosse eu então o
rei, um homem como ele teria sido preso [...] As Bodas de Figaro já é a revolução em andamento”.
Citado em F. Grendel, Beaumarchais, L, 1977, p. 220.
Por outro lado, deu-se atenção demais às supostas mensagens revolucionárias de Mozart. O argumento
de R. Koch a respeito da influência dos Iluminados sobre a última ópera de Mozart é recebido
com ceticismo por J. Chailley, The Magic Flute: Masonic Opera, NY, 1971, pp. 62-65; e C. Rosen
indica as razões puramente musicais que tornaram determinadas passagens empolgantes para os
revolucionários (como o acompanhamento inflamado à “Viva la libertà” de Dom Giovanni), The
Classical Style, NY, 1971, pp. 94-95.
Starobinski, contudo, sugere haver laços mais profundos entre as últimas óperas de Mozart e a
chegada da revolução, afirmando que o compositor descreve a confusão de papéis sociais numa
ordem moribunda (“essa vertigem sem futuro nem passado [...] na qual as categorias sociais estão
perdidas, e amargura, prazer; ilusão de travestismo, culpa e perdão, tudo se confunde”). Ele considera
as paixões voluptuosas de Don Giovanni (para quem “a única religião é a liberdade” e “os limites
existem para ser transgredidos”) proféticas da primeira fase aristocrática da revolução, na qual a
energia erótica da “figura heróica e escandalosa de Mirabeau” universalizou as aspirações libertárias.
A Flauta Mágica defende o ideal da reconciliação revolucionária e “o mito solar da revolução”
com sua proclamação final de que “os raios do sol dissiparam a noite”. V. “Mozart Nocturne” em
Symboles, pp. 51-55.
22 O projeto de Maréchal para a educação pública na revolução (Almanach des républicains, 1793,
pp. 1-5) se inicia com uma longa seção sobre Tell, a quem atribui a invenção da boina vermelha.
A mais antiga ópera norte-americana cuja música sobreviveu foi escrita em 1796 e trata de Tell. V.
análise de The Archers, or Mountaineers of Switzerland, de Benjamin Cari; e outras obras sobre Tell
em H. Weinstock, Rossini, NY, 1968, pp. 446-447.
23 “Aux yeux de la nature, / Abjurer l’imposture” [Diante da natureza, / abdicar da impostura]. La
264 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

contra a tirania pode ter sido ainda mais intenso em uma ópera perdida
escrita nessa mesma época por Saint-Just, Selico ou Les nègres.24
A terceira e última etapa da ligação entre ópera e revolução nacional se
deu durante as guerras napoleônicas. “O orgulho revolucionário foi trans­
ferido para os exércitos franceses, que eram vistos como libertadores dos
países oprimidos”. Um novo gênero de “óperas de resgate” glorificava “a
libertação de povos ou pessoas estrangeiras que estivessem sofrendo sob
o absolutismo”.25 A mais famosa delas foi a obra de 1798 de um chefe de
polícia da França revolucionária: Leonora ou o Amor desposado: um drama
histórico espanhol em dois atos, que serviu de base para a única ópera de
Beethoven, Fidélio, a maior de todas as obras de libertação heróica. A ópera
foi, no entanto, banida durante sua primeira década de existência, com sua
estréia adiada por censores austríacos e pela invasão de Viena pelos france­
ses em 1805. Foi só com sua versão revista de 1814, em meio às esperanças
incertas que se seguiram à derrota de Napoleão, que Fidélio se imprimiu
sobre a imaginação européia. O cenário da cena final, na qual os prisioneiros
reaparecem, foi transposto de uma caverna para céu aberto — da mesma
maneira que a sede de libertação estava prestes a transbordar do teatro de
ópera para a revolução nacional real.
A música ajudou a manter vivo algum sentimento de unidade na Polônia
dividida e humilhada.26 Em 1811, o diretor do Teatro de Ópera Nacional
da Polônia, Karol Kurpinski, apresentou em Varsóvia a sua nova ópera
Kalmora, que tratava de um tema até então inédito em palcos de ópera de
quaisquer partes do mundo: a Revolução Americana. Kalmora, uma garota
norte-americana, não consegue se casar com um soldado britânico até que
os revolucionários derrotem a Inglaterra e o convençam da superioridade da

Fête de la Raison, ópera en un acte, 1794, p. 20. Denis le Tyran. Ópera en un acte, 1794, p. 11.0
texto data sua primeira apresentação de 23 de agosto de 1794 (depois da queda de Robespierre).
Copias em IA.
Em La Fête, o padre promete ir a Roma e pregar sua nova fé a um “papa sans-culotte'". Mas o prefeito
- com o cuidado austero de quem está incumbido de supervisionar a reeducação revolucionária -
adverte que o padre deve primeiro se provar digno “par une conduite civique” [demonstrando ter
uma conduta civil], Ibid., p. 22.
24 O conhecimento que se tem dessa obra se deve apenas a uma resenha de representação dela impressa
na Gazzete Nationale ou le Moniteur Universel, 22 de outubro de 1793. A reimpressão (1847, vol.
XVIII, p. 171, para a qual A. Soboul chamou minha atenção) identifica o libertista apenas como
“citoyen Saint-Just” e o compositor como “Mengozzi”.
25 Lang, p. 111.
26 Z. Lissa, “Muzyka jako czynnik integracji narodowej”, em Kwartalnik Historyczny, vol. lxxvi,
1969, n° 2, pp. 367-73.
LIVRO IL CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 265

república à monarquia.27 Em 1816, depois das guerras napoleônicas, Kurpinski


tentou identificar ópera e luta nacional no seu Cracovianos e Montanhistas.
Resgatando conscientemente o título de uma obra anterior escrita pouco
antes da primeira divisão da Polônia, Kurpinski transformou danças folcló­
ricas — a polonesa e a mazurca — em símbolos da nacionalidade suprimida.
Kurpinski tentou em vão convencer o seu mais talentoso pupilo, Frederick
Chopin, a desenvolver uma tradição operistica na Polônia.28 Mas a música para
piano de Chopin transformou as mesmas polonesa e mazurca em símbolos não
apenas do orgulho polonês, mas de nacionalidade inviabilizada em qualquer
parte do mundo. Schumann descreveu as mazurcas de Chopin como “canhões
enterrados em flores”,29 e os concertos beneficentes do pianista pela Europa
entre as décadas 1830 e 1848 eram eles mesmos acontecimentos dramáticos,
suscitando sentimentos de revolução nacional. Os concertos virtuosísticos de
Franz Liszt do mesmo período desempenharam papel similar. Dedicou seu
Lyon a Lammenais e propôs que a música recapturasse “o poder político,
filosófico e religioso” que supostamente teve “no período pagão”. Ele trans­
formou uma melodia do violino cigano húngaro na marcha de Rákóczi, e a
executou como “a Marselhesa húngara”.30 Berlioz inseriu em sua Danação de
Fausto uma forma orquestral dessa marcha com bumbos a sugerir canhões
de libertação, o que foi saudado como um símbolo revolucionário em suas
estréias de 1846 em Budapeste e Paris. Esse romântico francês escreveu todo
um conjunto de obras idiossincráticas em louvor da revolução nacional.31
Com as suas profundas tradições musicais e sua liderança na composição
de dramas desde Schiller, os alemães desenvolveram uma escola nacional de
ópera particularmente importante. Em 1817, Carl Maria von Weber descre­

T7 Esse texto, recentemente redescoberto em partes separadas (o texto propriamente dito em Varsóvia,
a partitura na Cracóvia), foi restaurado pelo diretor da Ópera de Câmara de Varsóvia, S. Sutkowski,
a quem devo esta notícia.
28 H. Opienski, “Les premiers opéras polonais considérés dans leurs rapports avec la musique de
Chopin”, em Revue de Musicologie, 1929, maio, pp. 92-98.
A ópera de Kurpiùski (Krakotviacy i Górale) às vezes é chamada de Novos Cracovianos para
distingui-la da anterior. A maior parte das obras de referência insiste misteriosamente em datar
o aparecimento de uma escola nacional de ópera polonesa apenas a partir da Halka de 1848. A
mazurca foi usada em óperas nacionais russas como símbolo da arrogância ocidental, a começar
por A Vida pelo Tzar (Ivan Susanin) de Glinka, 1836.
29 R. Schumann, Gesammelte Schriften über Musik und Musiker, Leipzig, 1954, vol. i, p. 279.
30 Citado em A. Laster, “Musique et peuple dans les annés 1830”, em Romantisme, 1975, n° 9, p. 77;
E. Haraszti, “Berlioz, Liszt and the Rákóczi March”, em Musical Quarterly, 1940, abr., p. 212.
31 Ibid., pp. 216-218 (também p. 214 sobre outras marchas proto-revolucionárias desse período); e
S. Katonova, Muzyka rozhdennaia revoliutsiei, Leningrado, 1968, pp. 16-25, sobre o entusiasmo
musical de Berlioz para com diversas revoluções.
266 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

veu pela primeira vez “o tipo de ópera que todos os alemães querem: uma
obra de arte autônoma na qual todos os elementos artísticos colaboram,
desaparecem e reaparecem para criar um novo mundo”.32
Cinco anos depois, ele aplicou esse conceito a Der Freischütz [O
Franco-Atirador]. Concentrando-se em um mito do folclore alemão, ele
ampliou a orquestra e misturou a localização dos instrumentos, produzindo
um novo tipo de dependência da execução para com o regente e preparando
o caminho para o regente-compositor que realizaria o seu sonho de uma
Gesamtkunstwerk [obra de arte total] singularmente alemã: Richard Wagner.
O Wagner da maturidade entrelaçou mito pagão e um sedutor novo idioma
musical, criando um veículo singular do nacionalismo moderno alemão. Mas
a sua primeira virada na juventude para a política revolucionária pré-1848
ilustra as formas românticas mais gerais que ele depois desprezaria. Cola
Rienzi, o último dos tribunos, sua primeira ópera e a politicamente mais
explícita, foi concluída em Paris em 1840 para celebrar o revolucionário
romano do século xiv.33 Nesse mesmo ano, então com 21 anos, Friedrich
Engels escreveu uma peça celebrando o mesmo Rienzi.34
A primeira conspiração da esquerda contra Napoleão consistiu em um
plano de assassinato a ser cometido num momento de clímax do coro de
uma ópera quando de sua estréia em 10 de outubro de 1800. Menos de dois
meses depois, a primeira conspiração da direita matou ou feriu oito pessoas
durante uma tentativa fracassada de matar Napoleão quando se dirigia a
uma ópera.35 Em ambas as ocasiões, Napoleão deu mostra de seu sang-froid
[sangue-frio] ao prosseguir ainda para a ópera e assistir à apresentação como
se nada tivesse acontecido — tornando-se assim, à sua maneira, uma espécie
de herói de ópera.
A estabilidade da Restauração pós-napoleônica foi abalada pelo assassinato
do Duque de Berry em uma casa de ópera em Paris no dia 12 de fevereiro
de 1820. E uma apresentação de ópera no Teatro d’Angennes de Turim, em
12 de janeiro de 1821, ajudou a precipitar a revolução que rebentou no

32 Resenha da Undine de Hoffmann, citada em Weber, Sämtliche Schriften, Berlim/Leipzig, 1908, p.


129.
33 J. Deathridge, Wagner’s “Rienzi”, Oxford, 1977, pp. 25-28 revela a influência que exerceram sobre
Wagner o saint-simoniano Heinrich Laube e a idéia da arte como propaganda de uma nova era
“orgânica”.
34 “Engels: Volkswut mit Liebe”, em Der Spiegel, Io de julho de 1974, pp. 88-89.
35 Gaubert, Conspirateurs, pp. 47, 57; Fleischman, Napoléon, pp. 105-115.
LIVRO II, CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 267

Piemonte.36 Esse acontecimento esquecido, ocorrido no coração da região


que afinal lideraria a luta pela unificação da Itália, foi o começo do claro e
direto elo entre ópera romântica e revolução nacional. Em si mesma, a ópera
produzida por um dos compositores politicamente mais conservadores do
período parecia até apolitica: La Gazza Ladra [A Pega37 Ladra], de Gioacchino
Rossini. Determinado a superar os alemães na ópera escrita para uma Milão
sob controle austríaco, Rossini aumentou tanto o tamanho como o volume
de sua orquestra e iniciou o processo de forja de novos sons na partitura,
a fim de que se acomodassem às novas idéias do libreto. Os italianos leram
com olhos revolucionários o conflito entre um classicista e um romântico
em torno de uma criada que, ainda menina, é vítima de uma acusação falsa,
público que já tivera suas emoções despertadas por Moisés no Egito, ópera
anterior de Rossini sobre o povo escolhido a buscar liberdade. A mensagem
potencialmente revolucionária recebeu maior ênfase com o sucesso parisiense
da nova versão francesa da ópera, em 1827. Assim, Rossini, que tinha sido
convidado de Metternich no Congresso de Verona e compositor favorito do
ultraconservador Carlos x da França, viu-se na situação de ter um público
que identificava os patrões do compositor com os seus vilões de ópera.
Ele inclusive ajudou involuntariamente a incitar a agitação revolucionária
crescente com o seu William Tell, que estreou em Paris em 1829 e serviu de
modelo musical para lutas de libertação nacional.
A euforia da famosa abertura, a duração total da obra (quase seis horas)
e a ênfase em grandes conjuntos de coros — tudo isso concorria para dar
um ar de solenidade à ópera. A abertura de William Tell deveria ser execu­
tada no último encontro do círculo radical de que o jovem Dostoiévski fazia
parte em 1849. A espetacular tentativa de Orsini de assassinar Napoleão m
uma década depois ocorreu nas imediações da Ópera de Paris no momento
em que a orquestra executava o prelúdio à libertação. Duas décadas mais
tarde, um revolucionário francês afirmou durante seu julgamento na Suíça
que seu modelo era Tell, cuja “flecha assobia a música de Rossini”.38 O
tenor que interpretou o protagonista na primeira produção da ópera expe­
36 E. Giglio-Tos, Albori de Libertà. Gli studenti di Torino nel 1821, Turim/Genova/Milào, 1906, p. 27
ss.
37 “Pega”, aqui, está empregado como substantivo: é pássaro europeu da família dos corvos, também
conhecido como “pega-rabuda” ou “pega-rabilonga” — nt.
38 Assim disse Paul Brousse (à época um anarquista, mais tarde um líder “possibilista” moderado do
socialismo francês) em um julgamento após dois atentados à vida do imperador alemão em 1878,
citado em J. Joli, The Second International, 1889-1914, NY, 1966, p. 15, nota 2. Sobre Dostoiévski
e o círculo de Palm-Durov, Russkaia starina, vol. xxx, 1881, p. 698.
268 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

rimentou permanentemente o radicalismo na vida real — ao puxar o canto


da Marselhesa, empunhando uma espada, de cima das barricadas durante a
Revolução de 1830 e ao entreter, daí em diante, a visão de um mundo onde
“uma insurreição será algo tão prosaico quanto um concerto”.39
As revoluções na França e na Bélgica da década de 1830 foram altamente
teatrais: as súbitas saídas e entradas de reis, o cortejo e o fausto de exércitos
aliados e o espírito festivo de Paris e Bruxelas.
A revolução parecia se deslocar do palco para a rua — ou talvez a rua
estivesse apenas reclamando de volta o que antes dera ao palco. Os melo­
dramas extravagantes do pupilo de Nodier, Victor Hugo, anteciparam sob
muitos aspectos a revolução. A estréia de Hernani em 25 de fevereiro de
1830 foi, de fato, o protesto político inaugural do ano. O público estudantil
foi excitado pela história de um bandido a lutar pelo amor e pela liberdade,
contra o destino, o ódio e o poder estabelecido dos Habsburgos. Os coletes
vermelhos concebidos ousadamente pelos apoiadores de Hugo prenunciaram
a bandeira vermelha que em breve seria erguida no teatro a céu aberto de
Paris; e o acento antitradicional da poesia de Hugo acabou naturalmente
indo parar em inumeráveis adaptações operísticas de suas peças.40
Em Bruxelas, o catalisador teatral foi também outra ópera anti-Habsburgo:
A Muda de Portici^ de Daniel-François Auber. Nessa história de uma insurreição
napolitana do século xvn, cenas de coros de mendigos e lojistas se sucedem em
torno da figura impressionante (construída a partir de pantomima popular)
de uma heroína calada. O melodrama fora proibido em Bruxelas depois da
Revolução de Julho em Paris; mas os belgas, provocadores, exigiram que fosse
restituído ao repertório pouco após lhes ter sido exigido honrar o aniversário
do rei holandês no dia 24 de agosto. Depois de extensa discussão acerca de
cortes, aprovou-se de má vontade uma apresentação para o dia 25 — bem
como se expediram ordens secretas para que tropas ficassem de prontidão.

39 Laster, pp. 79-80; e W. Crosten, French grand opera. An art and a business., NY, 1948, p. 39; o tenor
Adolphe Nourrit viu Rossini como “uma das perdas de 1830” quando ele se retirou do ativismoe
parou de escrever óperas (Crosten, p. 115). Rossini, contudo, improvisou uma composição fúnebre
(que não sobreviveu) para o líder carbonário Silvio Pellico quando de sua morte em 1854; Weinstock,
Rossini, pp. 251, 464.
40 G. Franceschetti, La Fortuna di Hugo nel melodrama italiani dell’ottocento, Milão, 1961, p. 191,
mostra que a adaptação de Hernani feita por Verdi foi apenas uma entre muitas, e assim discute
outras adaptações de compositores esquecidos, as quais traziam títulos provocativos, como II Bandito
e II Proscritto.
LIVRO 11, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1 848) 269

Durante a apresentação, o chefe de polícia de Bruxelas enviou um menino


em meio à massa que se reuniu do lado de fora, a fim de fazer reconhecimento.
O informante retornou falando de rumores de que se planejava matar o chefe
de polícia no seu camarote.41 Ao fim do quarto ato, um grande número de
pessoas deixou o teatro, como se saísse em busca do seu próprio desfecho
para o melodrama revolucionário. Quando acabou a ópera, com a erupção
pirotécnica do Monte Vesúvio sobre o palco (fazendo uso espetacular de
novos sons e efeitos de cores), a lava da revolução já estava correndo pelas
ruas de Bruxelas. As pessoas abastadas da platéia não conseguiram deixar
o prédio para entrar em suas carruagens. Os soldados e a polícia não con­
seguiram se igualar (que dirá controlar) os movimentos do populacho em
busca de símbolos de autoridade para queimar e destruir.
Assim, um espetáculo de ópera deflagrou a revolução que levou à inde­
pendência belga em 1830. Insurreições populares posteriores na Bélgica se
formaram à luz do conhecimento desse fato esquisitíssimo. Em 1834, houve
levantes que exigiam a reabilitação da ópera de Auber, ao passo que perturba­
ções depois ocorridas em Ghent foram deflagradas por uma apresentação de
gala de William Tell, na qual os estudantes presentes confrontaram o Duque
e a Duquesa de Brabant.42
O plano para impedir que a revolução se alastrasse pela Alemanha
na década de 1830 incluía a proibição de apresentações de A Muda e de
William Tell em cidades próximas das fronteiras francesa e belga.43 Mas
os temores daqueles que estavam no poder se tornaram o fascínio dos que
não estavam. Os esforços para restringir, em toda o continente, os direitos
de reunião com propósitos políticos, depois de 1830, fez com que se inten­
sificasse o conteúdo político velado das apresentações teatrais. Insurreições
nacionais se tornaram um tema recorrente na nova grande ópera criada
em Paris depois de 1830: druidas contra romanos na Norma de Bellini
(Milão, 1831), conspiradores que matam um rei no Gustavo m de Auber
(Paris, 1833), protestantes perseguidos contra aristocratas realistas tanto
no Puritanos de Bellini (Paris, 1835) quanto no Huguenotes de Meyerbeer
41 Boletim do diretor de polícia de Bruxelas ao ministro da justiça em Haia, em C. Buffon, Mémoires
et documents inédits sur la révolution belge, Bruxelas, 1912, pp. 564—576. Com abordagem mais
ampla, v. Crosten, p. 112; e para o entusiasmo especial despertado pelo dueto “Amour sacré de la
Patrie”, v. T. Juste, La Révolution belge de 1830 d’après des documents inédits, Bruxelas, 1872, pp.
11-12.
42 E van Kalken, Commotions populares en Belgique (1834-1902), Bruxelas, 1936, pp. 16-17, 23,
40-41.
43 V. por exemplo em J. Legge, Rhyme and revolution in Germany, L, 1918, p. 103.
270 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

(Paris, 1836); judeus contra cristãos em A Judia de Meyerbeer (Paris, 1835)


e contra babilônios no Nabuco de Verdi.
A estréia desta última ópera em Milão, no dia 9 de março de 1842, colocou
Giuseppe Verdi no centro do drama real da unificação italiana. Verdi, cujo
proprio nome viria a se tornar um acronimo para o nacionalismo italiano
(Vittorio Emmanuele Re d'Italia), tocou num profundo veio anti-austríaco
com esse conto operistico sobre a escravidão a Nabucodonosor. O alvoroço
ao fim do primeiro ato surpreendeu e amedrontou o compositor, que estava
sentado junto à orquestra. A demorada ovação de pé que recebeu ao últi­
mo descer da cortina — vindo tanto da orquestra como do público — não
deixou dúvidas de que ele tinha de repente se tornado um herói cultural do
risorgimento, O coro de judeus cativos no terceiro ato de Va Pensiero, “voem
com asas de ouro, meus pensamentos, até a pátria”, teve de ser imediatamente
cantado de novo na estréia. Uma massa de gente de luto no funeral público
de Verdi em Milão, quase sessenta anos depois, espontaneamente a cantaria
mais uma vez. Tornar-se-ia uma espécie de hino nacional informal, com sua
exuberante e persistente melodia a pedir a libertação de “minha bela, porém
perdida pátria”.
Depois de Nabuco veio, em 1843, a segunda ópera patriótica, Os Lom­
bardos na Primeira Cruzada, com outro coro de libertação, “hoje a Terra
Santa será nossa!”, o qual também teve de ser cantado uma segunda vez
na estréia.44 Verdi em seguida se empenhou em fazer uma versão operistica
de Hernani, A pena de Verdi resultou em seqüência, nos anos seguintes que
desembocaram na Revolução de 1848, em uma série de óperas melodramá­
ticas de conflito: Joana D'Arc (1845), Attila (1846), Os Bandidos (1847) e,
por fim, A Batalha de Legnano, representada pela primeira vez em janeiro
de 1849, em meio a grandes agitações, só doze dias após o primeiro esta­
belecimento da efêmera República de Roma.45 Verdi depois voltou a Victor
Hugo, produzindo o seu Rigoletto de 1851 (baseado em Le Roi S'Amuse
[O Rei se Diverte]); e chegou ao ponto da quase revolução no palco com
Vésperas Sicilianas (Paris, 1855). A censura política exigiu uma mudança no
título para que fosse liberada sua primeira representação no ano seguinte;
e uma revolução popular contra o doge de Veneza toma grande porção de
44 T. Ybarra, Verdi: miracle man of opera, NY, 1955, p. 61; com modificações em F. Walker, The man
Verdi, NY, 1962, pp. 150-152. Essa ópera produziu uma nova onda de entusiasmo quando de sua
primeira representação em Paris, em 1847, com o novo título de Jerusalém.
45 O impacto dessa ópera é particularmente enfatizado por R. Bosworth, “Verdi and the Risorgimento”,
em Italian Quarterly, 1971, primavera, pp. 3-16.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 271

Simone Boccanegra, que estreou em Veneza em 1857. A reescrita que fez da


ópera regicida de Auber, Gustavo m, chamando-a Um Baile de Máscaras,
foi bastante censurada e primeiro montada em Roma (depois que o cenário
da história foi retirado da Europa e levado para a distante Boston) em 1859,
às vésperas da guerra de libertação decisiva contra a Áustria.
Em um ponto crucial da história italiana, até as óperas apolíticas de Ver­
di pareciam receber uma finalidade militante. Cavour entrou na principal
batalha contra os Habsburgos em abril de 1859 cantarolando a famosa ária
de tenor de II Trovatore: “Di Quella Pira”.46 A imagem básica que os revo­
lucionários nacionais encontraram em Verdi foi a daquele enviado romano
que, no primeiro ato de Attila, diz ao conquistador huno: “Tome para si o
universo, mas me deixe a Itália”.47
Tanto nos revolucionários nacionais quanto nos sociais era possível
encontrar ecos de ópera. Ao longo de toda a sua carreira Buonarroti deu
aulas de canto e Luigi Angeloni, seu colaborador em atividades musicais e
revolucionárias, após sua tese de doutorado sobre as origens da notação
musical, passou a escrever sobre ópera.48 O pupilo flamengo de Buonarroti,
Jacob Kats, tomou a canção de batalha da ópera Robert le Diable, de
Meyerbeer, e a inseriu em seu drama revolucionário O Paraíso Terrestre,49
além de ter criado o primeiro teatro popular para música e drama em Bru­
xelas.50 Aquele símbolo supremo da revolução social internacional, Mikhail
Bakunin, despediu-se de seus companheiros usando o coro de assassinados de
Huguenotes51 e se inspirou no texto do quarto movimento da Nona Sinfonia
46 F. Toye, Giuseppe Verdi: his life and Works, NY, 1931, p. 112. Para o papel de inspiração direta que
teve o coro “Guerra, Guerra” de Norma em Milão, em momento anterior daquele mesmo ano, v. P.
Olivier, “Les Grandes Heures de La Scala”, em Diapason, 1978, jul., p. 51; e, para a relação entre
a vitória revolucionária de Juarez na batalha contra os Habsburgo no México no ano seguinte e a
representação de Huguenotes, v. R. Roeder, Juarez and His Mexico, NY, 1947, vol. I, p. 264.
47 Isaiah Berlin defende a interpretação de urn Verdi essencialmente apolitico ao longo de dois artigos
intitulados “The Naiveté of Verdi”, em Hudson Review, 1968, primavera, pp. 138-147; e The New
Republic, 6 de outubro de 1979, pp. 30-34.
48 L. Angeloni, In lode d’una maravigliosa non meno italica cantate che tragica ed anche comica attrice
(Giuditta Pasta), canzone, etc., L, 1833; e Alla valente ed animosa gioventù d'Italia esortazioni patrie,
cosi di prosa corno di verso, L, 1837.
49 Het Aerdsch Paradys, p. 49. Para um exemplo entre os alemães, v. o texto para uma ópera do jovem
hegeliano Arnold Huge inspirada pela visita à estátua de Espártaco nas Tulherias após a Revolução
de Julho: Spartacus, oper in drei acten, em Sämtliche Werke, Mannheim, 1848, vol. v, pp. 235-284.
Ele esclarece que sua intenção é fortalecer uma mensagem radical com “a mágica da música”, p.
234.
50 J. Kuypers, “Les liens d’amitié de Karl Marx en Belgique (1845-1848)”, em Socialisme, vol. LVin,
1963, p. 412.
51 Yu. Steklov, Mikhail Aleksandrovich Bakunin. Ego zhin’ i deiatel’nost, 1926, vol. I, p. 125.
Til A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de Beethoven (a O de à Alegria de Schiller) ao chamar seus seguidores de “be­


los filhos da centelha divina”. Durante a celebração do Domingo de Ramos
de 1849, em Dresden, ele se precipitou a anunciar, após ouvir a regência de
Wagner, que aquele movimento seria poupado da destruição na insurreição
revolucionária vindoura.52 Tenha ou não Bakunin servido de modelo para
o Siegfried de Wagner, esse russo com aparência de urso sugeriu a muitos
que um geral “crepúsculo dos deuses” era iminente tanto na vida como na
imaginação operistica.

Músicas e bandeiras

A militância musical irrompeu das casas de ópera depois de 1830 numa


torrente de músicas e versos. Essa “trombeta que de repente levanta um imenso
campo de nações em armas”53 levou a uma profusão de hinos e bandeiras que
imitavam a Marselhesa e a bandeira tricolor original da Revolução Francesa.
Luís Filipe adotou e conduziu com pompa o canto da Marselhesa como
um meio de solidificar a sua precária posse de poder.54 O tenor Nourrit e
o compositor Berlioz puxaram o canto dela nas barricadas de Paris tendo
por batuta, respectivamente, uma espada e uma pistola.55 Rouget de Lisle,
o quase esquecido autor do grande hino, saudou Berlioz como “o vulcão
da revolução”56 e foi livrado da prisão por doações do compositor radical
Jean-Pierre Béranger, que descreveu a música de protesto daquele como um
“tambour social à ouvir la marche et marquer le pas” [tambor social que
inaugura a marcha e marca seu passo].57

52 R. Wagner, My life, NY, 1911, vol. il, p. 466 ss. E. Istel, Revolution und Oper, Regenburg, 1919,
enfatiza a influência de Bakunin sobre Wagner e contrasta os centros de festivais de Wagner e de
Mozart como representativos, respectivamente, da arte revolucionária e da pré-revolucionária. V.
“Bayreuth oder Salzburg?”, p. 62.
53 Gottfried Keller (ao descrever o poeta revolucionário Georg Herwegh, o qual colaborou com Liszt
na escrita de letras revolucionárias), citado em Legge, Rhyme, p. 203. Para a relação entre violência
e música, v. pp. 203-219; também a coleção de K. Kuhnke, “Die alten bösen Lieder’', em Lieder
und Gedichte der Revolution von 1848, Ahrensburg/Paris, 1970.
54 Relato feito por Etienne Arago em Paris révolutionnaire, p. 408, além de nota 1.
55 Katonova, Muzyka, p. 17; J. Halévy, Derniers souvenirs et portraits, 1863, pp. 156-157.
56 Katonova, p. 17.
57 Citado em J. Lucas-Dubreton, Béranger, pp. 107-108/; e também p. 143. A discussão às pp. 109-152
sugere que Béranger talvez tenha sido o mais importante “ideólogo” do período pré-1830. J. Puech
mostra o quão profundamente ele tinha imprimido sua marca já no período revolucionário anterior,
“Les Chansons de Béranger poursuivies en 1821”, em La Révolution de 1848, jun.-jul.-ago., pp.
313-327.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 273

A nova Marselhesa de 1830 foi a “Parisiense”, que Lafayette cantou


no palco com Nourrit ao fim da performance teatral pública que se seguiu
à apresentação do novo rei às massas de Paris no Hotel de Ville.58 O seu
compositor, Casimir Delavigne, contribuira com um melodrama, As Vés­
peras Sicilianas, para a agitação de 1819-1820; e logo acrescentou a essa
entusiástica nova marcha pela vitória de Paris palavras de uma ária marcial
de Kurpinski pelos poloneses martirizados, a “Varsoviense”, que por muitos
modos logo se tornou a Marselhesa de todas as nacionalidades derrotadas.
A Revolução Belga de 1830 produziu a “Brabantina”, que se tornou hino
nacional; e a crise franco-alemã de 1839-1840 gerou uma proliferação de
árias nacionalistas, como “Sentinela no Reno” e “Deutschland, Deutschland
über alles” [“Alemanha, Alemanha acima de tudo”], que, adaptada a partir
de música de Haydn, viria a se tornar o hino nacional alemão.59
A canção nacional vinha, claro, com sua respectiva bandeira. Em alguns
casos, a canção era sobre a bandeira (a “Tricolor” romena, “A Bandeira Estre­
lada” dos norte-americanos).60 Em outros, simplesmente se identificava com

58 Life of Lafayette including an account of the memorable revolution of the three days of 1830,
Boston, 1835, pp. 240-246; também M. Leroy, Histoire des idées sociales en France. De Babeuf à
Tocqueville, 1962, p. 382; e a valiosa discussão geral às pp. 377-428.
59 O jovem autor transitou, de maneira bastante típica, da posição de membro de uma sociedade
estudantil idealista chamada “universalidade” [Allgemeinheit), após uma visita infeliz a Paris, para
a posição nacionalista. Vol. v. Fleury, “L’Auteur du ‘Deutschland, Deutschland über alles’”, em La
Révolution de 1848,1936-1937, dez.-jan.-fev., pp. 193-201. A crise também produziu a “Marselhesa
da Paz” para se opor à onda nacionalista. V. Jules Gay, Le Socialisme rationnel et le socialisme
autoritaire, Genebra, 1869, pp. 129-130, nota.
60 Para a transposição e desaceleração da marcha de uma antiga canção anglo-irlandesa de bebedeira,
“Anachreon in Heaven”, e sua relação com o poema de Francis Scott Key escrito durante a defesa
do Forte McHenry em 1812, que se tornaria formalmente o hino nacional norte-americano somente
em 1931, vol. v. Weybright, Spangled Banner. The story of Francis Scott Key, NY, 1935, pp. 119-168.
O circulo de 13 estrelas sobre uma área azul oficialmente adotado como bandeira dos Estados Unidos
em 14 de junho de 1777 adveio provavelmente de simbolismo maçônico (a proclamação oficial de
uma “nova constelação” no firmamento), embora isso não seja sugerido no estudo clássico de G.
Preble, History of the flag of the United States of America, Boston, 1880,2a ed. rev., esp. pp. 259 ss.
No início do século xix, os alemães e os poloneses, assim como os norte-americanos, valiam-se de
versões adaptadas do hino nacional inglês: em vez de “God Save the Queen!”, os alemães adotavam
“O Povo em Armas!” (Volk in Gewehr!) e os norte-americanos, “Que ressoe a liberdade!” (Let
freedom ring!). Preziger, Parteigeschichte, vol. iv, p. 56, além de pp. 86-90; e Askenazy, tukasinski,
vol. I, p. 145.
Os conservadores se sentiam obrigados a se defender com os seus próprios hinos nacionais — os
Habsburgo adaptando uma melodia de Haydn, os Romanov adotando um hino antes empregado nos
refeitórios do exército prussiano. Vol. v. Tapié, The rise and fall of the Hapsburg Monarchy, NY, 1971,
p. 246; e “Kto kompozitor nashego nyneshniago narodnago gimma”, em Russkaia muzykal’naia
gazeta, 1903, n° 52, pp. 1313-1314. Para a penetração da Marselhesa até na Sibéria como um
contra-hino de protesto, é provável que se encontre algo a respeito em E. Kuklina, “Marsel’eza ” v
Sibiri, Novosibirsk, 1975, um trabalho anunciado em Sovetskie Knigi, 1975, n° 1, chast’ i, p. 14,
mas indisponível em todas as grandes bibliotecas.
274 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a bandeira: a Marselhesa com a bandeira tricolor, que se tornou a bandeira


oficial da França depois de 1830.
Para o então com 14 anos Eugene Pottier, o futuro autor do hino da
Internacional, a bandeira tricolor, quando erguida sobre Paris em julho de
1830, era o “emblema da felicidade”.6162 Cada nação parecia de repente sentir
a necessidade de um símbolo similar. Achava-se agora que uma verdadeira
nação precisava de uma bandeira tricolor — liberta de todas as cruzes, coroas
e reminiscências heráldicas da autoridade tradicional e da desigualdade civil.
O primeiro ato criativo dos revolucionários belgas, depois que saíram da casa
de ópera de Bruxelas, foi a elaboração rudimentar de uma bandeira feita com
as cortinas do revirado escritório do editor execrado de Le National.61 As
três listras verticais em preto, amarelo e vermelho de Brabant foram chama­
das “Brabantina” e imediatamente erguidas no Hotel de Ville de Bruxelas.63
Assim como a bandeira tricolor belga, a italiana (verde, branco, vermelho)
surgira na era revolucionária. A legião revolucionária na Lombardia italiana
estampou em sua bandeira os dizeres “igualdade ou morte” e “vitória ou
morte”.64 O movimento nacional húngaro começou a se unir na década
de 1840 em torno de sua própria bandeira tricolor de vermelho, branco e
verde.65 Nacionalistas romenos ergueram uma bandeira de azul, amarelo e

61 De “Vive la liberté”, que, como a maioria das primeiras composições de Pottier, possui algo de
Béranger. Texto presente em Eugène Pottier, Oeuvres completes, 1966, p. 33; v. também seu “Les
trois couleurs”, p. 36. O editor das obras de Pottier, P. Brochon, escreveu vários trabalhos sobre
a emergência e a importância social da música de protesto. V. especialmente Chanson sociale de
Béranger à Brassens, 1961; também V. Skerlitch, U Opinion publique en France d’après la poésie
politique et sociale de 1830 à 1848, Lausanne, 1901.
Esses materiais podem ser complementados com artigos de Puech (em La Révolution de 1848)
sobre as canções dos saint-simonianos (vol. xxx, 1933, mar.-abr.-maio, pp. 21-29), sobre a Polonia
(vol. XXXVI, 1939, mar.-abr.-maio, pp. 19-35) e sobre a própria revolução de 1848 (vol. xxxm,
1936, jun.-jul.-ago., pp. 82-97). Em Proletarskie pesni SSSR, 1932, estão presentes músicas e textos
multilingues (em francês, alemão, polonês e inglês) das versões soviéticas de algumas dessas canções.
62 Uma folha impressa por uma testemunha descreve o saque do escritório de Libry Bagnano e a
elaboração da nova bandeira, observando que, “assim como em Paris, a luta sanguária (sic) [síZwgMj/y]
não foi manchada pela pilhagem”. V. Revolution in the Netherlands, Insurrection at Brussels, s/p.,
s/d., (L, 27 de agosto de 1830). Cópia na coleção de livros raros, LC.
63 Ibid.
64 E. Ghisi, Il tricolore italiano (1796-1870), Milão, 1831, estuda à exaustão a origem da bandeira
tricolor italiana com base na francesa em função de contatos estabelecidos na região da Lombardia na
década de 1790. V. também o relato da introdução de cachecóis tricolores (verde, branco, vermelho)
no norte da Itália nos anos 1790 em Prati, Penny Satirist, 8 de julho de 1837.
65 As bandeiras alemã e húngara eram as únicas tricolores não verticais. Ambas ganharam relevo
somente durante as revoluções de 1848. As cores húngaras eram uma inversão consciente das
de Maria Theresa; as cores alemãs, uma rejeição do azul-vermelho-verde vertical adotada pelas
Burschenschaften. V. P. Wentzcke, Quellen und Darstellungen zur Geschichte der Burschenschaft
und der deutschen Einheitsbewegung, Heidelberg, 1939, vol. xvi, pp. 217-223 (e pp. 199-259
LIVRO 11, CAPÍTULO 6: REVOL UÇÃO NACIONAL. VS. REVOITJÇÃO SOCIAL (1830-1848) 27$

vermelho, que depois seria oficializada e inspiraria o Hino “Tricolor” quando


a Romênia tomou parte das revoltas de 1848.
A bandeira preta, vermelha e dourada foi um símbolo central do Festival
de Hambacher de maio de 1832. O entusiasmo dos jovens os fazia preterir
as cores locais por insígnias e faixas de três cores trazendo a lenda da “Res­
surreição da Alemanha”.66
Muito de acordo com o impulso de simplificação radical, alguns mani­
festantes chegaram a propor “uma única cor”.67 A idéia, contudo, de uma
única cor unificadora foi melhor desenvolvida por revolucionários sociais
em busca de uma bandeira que rivalizasse com as tricolores dos revolucio­
nários nacionais. “Nossa bandeira não pode mais ser limitada pelo céu da
França”, cantaram os profetas visionários da mudança social universal, os
saint-simonianos.68 A sua missão era “desfraldar na brisa o estandarte de
batalha dos trabalhadores [...] servir ao universo como uma tocha”.69
Os próprios trabalhadores começaram a oferecer uma bandeira tangível
para essa fantasia saint-simoniana. Tendo alcançado alguns benefícios tan­
gíveis com as revoluções de 1830, trouxeram as suas próprias cores para as
manifestações urbanas. Em Reims, a bandeira negra (que depois se tornaria
a bandeira do anarquismo) fez sua estréia moderna quando, em 15 de janeiro
de 1831, lixeiros desempregados carregaram pelas ruas uma bandeira de luto
com o lema “trabalho ou morte!”.70
A futura bandeira da revolução internacional, a bandeira vermelha, fez
sua estréia moderna em Paris durante os motins e manifestações que se
seguiram ao funeral de um general popular, Maximilien Lamarque, no dia
5 de junho de 1832.71 Em uma cena noturna digna dos seus próprios melo-
para a mania que as organizações estudantis alemães alimentavam por cores). As cores italianas
representavam uma rejeição do vermelho, verde e preto da carbonária.
66 V. Valentin, Das hambacher Nationalfest, 1932, pp. 32-37.
67 “Die vielen Farben sind Deutschlands Not, / [...] Nur eine Färb’ und ein Vaterland!” [“As cores
variadas são a aflição da Alemanha, /[...] Agora uma única coi; e uma única pátria!”], ibid., p. 37.
68 “Notre drapeau n’a plus assez du ciel de France, / Des minarets d’Egypte il faut qu’il se balance”,
de “Les Chants du travailleur”, em Recueil de chansons et poésies sociales avec 37 airs notes en
musique publié par Vinçard aîné, 1869, p. 171.
69 “[...] déroulons à la brise / L’oriflamme des travailleurs, / [...] qui marchent en avant vers la terre
promise!”, ibid., “[...] déployez votre immense drapeau, / [...] Qu’à l’univers il serve de flambeau”,
ibid., p. 67. Outros exemplos de metáforas envolvendo bandeira estão em ibid., pp. 1-2, 99.
70 M. Dommanget, Histoire du drapeau rouge des origins à la guerre de 1939, 1967, pp. 45, 48-49.
Asa Briggs indicou para mim que uma bandeira negra apareceu quando do massacre de Peterloo em
1819. A bandeira negra apareceu em Lyon cerca de um mês após ter aparecido em Reims (p. 47).
71 O que está cuidadosamente fundamentado, ibid., p. 51.
276 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

dramas, naquela noite Victor Hugo desfraldou a bandeira vermelha sobre as


barricadas na Rue de Chanverie e acendeu uma tocha ao lado dela, a qual,
em suas próprias palavras, deu “ao escarlate da bandeira não sei que quali­
dade de púrpura sinistra”.72 A manifestação de 5 de junho foi chamada de
“o primeiro distúrbio que foi ao mesmo tempo republicano e social”.73 Foi
organizada por agitadores republicanos quando do início do julgamento dos
“quinze” — Blanqui e seus parceiros. A bandeira vermelha, que tinha sido
empregada como um sinal de lei marcial e como um sinal de alarme durante
a Revolução Francesa original, foi então revivida por um novo conjunto de
republicanos em meio a uma epidemia de cólera em 1832.
Lafayette, que havia sacramentado a autoridade de Luís Filipe durante a
Revolução de 1830 ao lhe entregar em mãos a bandeira tricolor, fugiu em
estado de choque do funeral de Lamarque por encontrar, sobre o caixão desse
seu velho companheiro de armas, a bandeira vermelha rival.74
Aqueles que contiveram as manifestações de junho de 1832 se viram na
situação de defender a bandeira tricolor “contra a bandeira branca da Vendéia,
a bandeira vermelha de Paris ou contra as cores dos estrangeiros junto às
nossas fronteiras”.75 Só a partir da Revolução de 1848 a bandeira vermelha
suplantaria, para algum conjunto minimamente significante de franceses, a
bandeira tricolor como um símbolo de protesto proletário.76 E, mesmo nes­

72 Ibid, p. 55.
73 Tchernoff, p. 271. Há quem considere isso já característico dos protestos de 1831. V. Leroy, Histoire,
p. 399.
74 A. Bardoux, Les dernières Années de Lafayette, 1792-1834,1893, pp. 422-423. Em geral vista pelos
moderados como uma rememoração do Terror, até aqueles que a empunhavam viriam a culpá-la
pelo fracasso de sua insurreição: Dommanget, pp. 55-56, 59-60.
75 Dommanget, p. 58.
76 Ibid., pp. 50, 69 ss. Dommanget sugere que o uso da bandeira vermelha na Paris de 1848 não era
de forma alguma tão disseminado quanto a historiografia revolucionária posterior geralmente
supõe. Entre outros estudos, E Wendel, Die rote Fahne, Hamburgo, 1927, fornece detalhes sobre
o uso internacional da bandeira, mas sem oferecer documentação, e J. Slayton, The old red flag,
Pittsburgh, s/d., pp. 12-13 (PU), faz o uso moderno retroceder às legiões de Pulaski durante a
Revolução Americana e inclui derivações ingênuas e imaginosas da antiguidade clássica. A. Schoyen,
“From Green Flag to Red” (The Chartist Challenge, L, 1958, pp. 171-198), mostra que a bandeira
vermelha encontrou algum curso no vácuo deixado em 1848 pelo descrédito do estandarte verde
dos cartistas.
Um ensaio inédito de E. Gombrich (que o autor gentilmente me franqueou) rastreia um prenúncio da
substituição de vermelho por tricolor na troca do bonnet rouge (o barrete frigio) pelo cocarde tricolor
(insígnia tricolor) durante a Revolução Francesa. A boina vermelha tinha ressonâncias mais sociais
que políticas, uma vez que se originava de um regimento suíço cujos membros haviam se rebelado
contra os oficiais aristocratas em agosto de 1790, em seguida sendo condenados como escravos de
galés, para posteriormente, quando anistiados em novembro de 1791, serem ovacionados em Paris
como heróis populares: “The Dream of Reason. Propaganda Symbolism in the French Revolution”,
LIVRO TL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL. VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 2T7

se caso, revolucionários sociais se contentavam com mover a cor vermelha


para o centro de uma bandeira tricolor assim revisada.77 A bandeira tricolor
permaneceu “o arco-íris dos livres” mesmo para revoluções sociais:78 uma
bandeira desprovida dos “brasões bárbaros” das “nações que representam
a força bruta por meio de seus abutres e águias de três cabeças” e dotada de
cores tão puras quando o próprio “povo”.7980

O mito do “povo”

O nacionalismo romântico foi saudado em toda parte como a causa do


“povo” — um termo tão vago quanto atrativo, que parecia necessitar de
uma linguagem especial de sons e símbolos para expressar o seu significado.
Canções e bandeiras ajudaram a mobilizar as emoções e a politizar os iletra-
dos. Enquanto nenhuma ideologia sistemática fazia parte do nacionalismo
revolucionário, o conceito de “povo”, por outro lado, lhe era de importância
central.
Oposta ao racionalismo, a evocação do “povo” remontava no mínimo
à desavença de Rousseau com os philosophes elitistas de Paris. Em 1787,
Bonneville alertara o aristocrático Condorcet sobre a chegada do Peuple-
-Roi*0 e chegou a escrever canções sobre o peuple-frère,*1 ao passo que Cloots
proclamou “A infalibilidade do povo”.82
À altura de 1830, revolucionários românticos já tinham estabelecido quase
uma rotina de falar do povo, the people, le peuple, das Volk, il popolo, narod
ou lud, como de uma espécie de força regeneradora da história humana. Os

em British Journal for Eighteenth Century Studies, pp. 13-16. A publicação feita pelo governo
bávaro de documentos supostamente pertencentes aos Iluminados, durante a revolução, atribuía
a boina vermelha àquela seita: Die neusten Arbeiten des Spartacus und Philo in dem Illuminaten­
orden, Munique, 1794, p. 71.
77 Goodwyn Barmby, o primeiro popularizador inglês da palavra comunista, “Letters from Paris”, n°
1, Howitt’s Journal, vol. in, 25 de março de 1848, p. 207.
78 Ibid., n° 7, 6 de maio de 1848, p. 301. Barmby contrasta essa “iris celestial que floresce como sinal
de esperança” à bandeira norte-americana, que “pode ter estrelas para os seus estados, mas também
tem açoites para os seus escravos”.
79 Ibid. Garibaldi já tinha excluído a cruz da Sabóia do estandarte tricolor de sua legião italiana no
Brasil em 1836: Parris, Lion of Caprera, p. 47. Era crença comum a de que as cores simbolizavam
as virtudes morais de cada povo — e assim o verde, o branco e o vermelho da bandeira italiana
supostamente representariam a fé, a esperança e a caridade.
80 Lettre...à...Condorcet, p. 31.
81 Hymne des combats, pp. 5 ss.
82 Conclusão a que chegou Cloots, La République universelle, p. 20. O destaque em caixa alta consta
no original.
278 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

novos monarcas assuntos ao poder depois das revoluções de 1830, Luís Filipe
e Leopoldo i procuraram receber a sanção do “povo” como rei dos “france­
ses” e dos “belgas”, em vez de da França e da Bélgica. Até o reacionário tzar
Nicolas I, três anos depois de sufocar a insurreição polonesa de 1830-1831,
proclamou que sua autoridade se baseava na “nacionalidade” (bem como na
autocracia e na ortodoxia) — e sua palavra narodnost\ que também significa
“espírito do povo”, foi derivada da palavra polonesa narodowosc.
“Povo” significava uma coisa para os nacionalistas revolucionários e ou­
tra para os liberais evolucionistas (que pensavam em grupos específicos de
pessoas detentoras de propriedades e às quais se poderiam estender o direito
de voto e as liberdades civis), e outra ainda para os revolucionários sociais
(que pensavam em um proletariado industrial que poderia proporcionar um
novo combustível para a revolução). Para os nacionalistas românticos, o
“povo” era simplesmente a fonte de legitimidade para o exercício do poder
soberano no estado-nação moderno. Sua sanção era alcançada não por meio
do apoio de parcelas do parlamento e das classes sociais, e sim por meio da
invocação poética de uma esquecida unidade interna.
O nacionalismo revolucionário foi fortalecido no período de 1830 a 1848
por uma visão romântica da história que contrastava a criatividade do povo
não apenas com os reis e bispos que dominaram a França até 1789, mas
também com os banqueiros e políticos que passaram a predominar depois
de 1830. Jules Michelet foi o sumo-sacerdote dessa nova religião do “povo”.
Deslumbrado com a ação espontânea das massas na Revolução de 1830
em Paris, publicou uma Introdução à história universal em 1831 como um
prelúdio ao seu extenso épico, História da França^ na qual ele trabalharia
na maior parte dos quarenta anos seguintes.
Para Michelet, a França era “não apenas uma nação, mas um grande
princípio político”,83 vago o suficiente para incluir “nossas duas grandes
redenções, uma pela Virgem de Orleães [Joana D’Arc] e outra pela Revolu­
ção”.84 A revolução abrira uma “segunda temporada” da presença de Deus
na terra. “Sua encarnação de 1789”85 na França levaria à ressurreição de
todos os povos. A libertação das massas durante o mês de julho prenunciou
o “julho eterno” ainda por vir. O desenvolvimento espontâneo da unidade
popular e das instituições populares de julho de 1789 a julho de 1790 tor-
83 Michelet, The People, L, 1846, p. 26.
84 Ibid., p. 161.
85 Ibid., p. 137.
LIVRO IL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 279

nou a festa popular da unidade federal, quando do primeiro aniversário da


queda da Bastilha, mais importante que o próprio acontecimento celebrado.
De “amigos do povo” (a principal sociedade republicana de 1830 a 1832),
os radicais logo buscaram se tornar seus servos. “Em presença da soberania
dos povos, todos vocês devem se ajoelhar, fazendo suas testas tocar o chão”,
disse Voyer D’Argenson à Câmara de Deputados durante uma discussão
sobre símbolos de autoridade com o Guardião dos Selos, em 1834.86 Nesse
mesmo ano, um dos principais advogados de uma revivescência católica sob
a direção do papa, Lamennais, celebrou o que viria a ser o seu rompimento
final com Roma. Retirou-se para a Inglaterra, desfez-se de sua gola clerical
e publicou seu apaixonado e apocalíptico testamento de servo sofredor de
Deus ao povo simples da Europa: Palavras de um crente. Esse tratado, que
de imediato se mostrou extremamente influente, inspirou de maneira direta
A fé e o futuro, que Mazzini publicou em 1835 e que ele considerava sua
melhor obra.87 O livro do povo (1837) de Lamennais foi ainda mais longe
na glorificação do “povo” como “os pobres, fracos, oprimidos”.88 Atraiu
imitadores que escreveram Marselhesa do povo, Reino do povo e Evangelho
do povo*9 Parecia uma banalidade dizer — nas palavras de uma canção da
época — que “o povo [...] é Deus”.90
Para Michelet o povo era tanto plebs como populos, tanto os humildes
trabalhadores como a unidade espiritual da nação.91 Do seu ponto de vista,
a Inglaterra era um grande império, mas um povo fraco. Somente povos po­
dem se tornar nações; com efeito, “uma nação é um povo que se tornou uma
pessoa”.92 Os ingleses eram uma espécie de anti-povo, dedicado ao poder e

86 Essa observação, em uma reunião de 6 de janeiro de 1834, ocasionou “movimento e agitação” na


câmara. M. Voyer D’Argenson, Discours et opinions, 1846, vol. n, p. 414.
87 G. Salvemini, Mazzini, L, 1956, p. 35, nota 1; Hales, Mazzini, pp. 139-142, 205-206.
88 Livre du people, p. 185, citado em Leroy, p. 445.
89 Os dois hinos anteriores foram compostos por Adolphe Louis Constant, um ex-padre e futuro
fundador do moderno ocultismo francês utilizando o nome de Eliphas Lévi (v. P. Chacornac, Eliphas
Lévi. Rénovateur de l’occultisme en France, 1926, p. 112); o Evangile du Peuple de 1840 foi escrito
por Alphonse Esquiros, que foi preso por identificar Cristo como “libertador e revolucionário”,
mas nem por isso deixou de fazer democracia corresponder ao Reino de Deus em sua Histoire des
montagnards, 1847,2 vol. v. A. Zévaès, “L’Agitation communiste de 1840 à 1848”, em La Révolution
de 1848,1926, dez., pp. 1036-1039.
90 Canção de Vinçard, citada em Leroy, p. 408.
91 P. Viallaneix, La Voie royale. Essai sur l’idée de peuple dans l’oeuvre de Michelet, 1959, pp. 292-306.
V. também pp. 241-248 sobre o impacto de 1830, e pp. 439-471 sobre a filosofia da natureza à
qual se subordinava a sua idéia de povo.
92 Paráfrase do ideal de Michelet feita por Viallaneix, em Voie, p. 538. Compare-se (Salvemini, Mazzini,
p. 51) com a idéia que Mazzini fazia das nações como “os indivíduos da humanidade”.
280 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

à prosperidade e desprovido de amor e amizade; eram necrófagos que “lu­


craram com o entreato entre duas religiões (a católica e a revolucionária)”.93
Par além da França, Michelet buscava vingança para a Polônia, e assim
convidou ao Collège de France, na condição de conferencista, aquele que
talvez tenha sido o maior de todos os profetas poéticos do nacionalismo
revolucionário: Adam Mickiewicz. O esmagamento da revolução polonesa
foi para o poeta a crucificação do “Cristo das nações”. Em sua última con­
ferência no Collège, em 1842, defendeu que a missão messiânica tinha sido
confiada a três povos: os antigos israelitas, os franceses e, agora, os eslavos.
Mickiewicz testemunhou ao longo de sua vida, por duas vezes, a destruição
temporária da Polônia como uma espécie de oferenda sacrificial pelos pecados
dos outros, necessária à salvação dos povos do mundo. Ao se submeter à
divisão territorial durante a Revolução Francesa, a Polônia salvara a França
revolucionária da ação coordenada dos monarcas de toda a Europa. Assim
como o levante polonês de 1830, inspirado por um senso de fraternidade
para com os acontecimentos da França e da Bélgica, impediu — mesmo com
sua derrota —que Nicolas i restaurasse o poder do tio de sua esposa, Rei
William dos Países Baixos.
Inebriado com o romper de uma terceira onda revolucionária em 1848,
Mickiewicz tentou organizar uma legião polonesa para liderar a libertação
final da Polônia e de toda a humanidade. Assim como Lamartine na França e
Petofi na Hungria, ele era um grande poeta nacional destinado a subir sobre
as barricadas em meio ao tumulto popular. A transferência da causa revolucio­
nária de conspiradores franco-italianos para uma fraternidade internacional
de nacionalistas românticos é ilustrada pela versão plural que Mickiewicz
elaborou do velho título babeuvista, Tribun des peuples^ de 1849.94

93 Citado em G. Monod, La Vie et la pensée de Jules Michelet, 1923, vol. n, p. 231.


94 V. M. Kridl, Mickiewicz i Lamennais; studyum porównawcze, Varsóvia, 1909; e “Two Champions of
a New Christianity: Lamennais e Mickiewicz”, em Comparative Literature, 1952, verão, pp. 239-267;
J. Bourilly, “Mickiewicz and France”, em W. Lednicki (ed.), Adam Mickiewicz in World Literature,
Berkeley/Los Angeles, 1956, pp. 243—276; e L. Mickiewicz, “Michelet et Adam Mickiewicz”, em
Revue des Deux Mondes, vol. xx, 1924, pp. 168-187. E. Krakowski, Adam Mickiewicz, philosophe
mystique. Les sociétés secrètes et le messianisme européen après la révolution de 1830,1935, deixa a
desejar quanto à sua documentação e não tem a abrangência que seu título promete; mas indica as
origens ocultistas da profecia de Mickiewicz — um tema muito mais desenvolvido em W. Weintraub,
Literature as prophecy, scholarship and martinist poetics in Mickiewicz’s Parisian lectures, Haia,
1959. Para acesso às próprias aulas, v. Les Slaves. Cours professé au Collège de France (1840-1841),
1849, 5 vol.; para acesso ao jornal, v. Trybuna Ludów, Cracovia, 1935. O jornal oficial do Partido
Comunista Polonês atual voltou a adotar o título babeuvista, Trybuna Ludu.
Para um levantamento geral do costumeiramente subestimado impacto da tradição revolucionária
polonesa sobre a Europa como um todo, v. H. Jablonski, Miedzynarodowe znaczenie polskich walk
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 281

Já na década de 1830 os poloneses haviam assumido alguma liderança na


internacionalização do nacionalismo revolucionário. Chegados em grande
número a Paris após o fracasso da revolução polonesa de 1831, eles organi­
zaram inúmeras reuniões de protesto e petições contra a repressão empregada
pelos governos alemão e russo.95 Mickiewicz e outros nutriram esperanças,
entre 1832 e 1833, de que ocorresse uma revolução alemã que pudesse levar
à insurreição de guerrilhas e à libertação da Polônia.96 No dia 3 de novembro
de 1832, muitos poloneses assinaram uma declaração de solidariedade para
com os judeus como outra nação perseguida no exílio.97 Mickiewicz morreu
em Istambul em novembro de 1855 nos braços de um amigo judeu, que de
sua parte nutria o sonho proto-sionista de libertação de Jerusalém.
Pelo fim de 1832, os poloneses radicais em Paris já somavam 1.500 a 2.000
pessoas (grupo mais tarde conhecido como Sociedade Democrática)98 com o
propósito de organizar a revolução popular, não só na Polônia como também
nas regiões adjacentes onde aspirações nacionais vinham sendo reprimidas
pelos Habsburgos e pelos Romanov. A Jovem Polônia se tornou uma das
maiores seccionais da Jovem Europa de Mazzini. Quando se intensificaram as
restrições em Paris depois de 1834, os poloneses correram estrada, em mais
uma migração revolucionária, desta vez para Bruxelas e em seguida para
Londres (o mesmo rastro seguido por Marx). Dos 4.380 refugiados políticos
que estiveram em Londres em 1853, 2.500 eram poloneses.99
A figura de maior relevo entre os emigrados poloneses era o ex-professor
de história de Mickiewicz, Joachim Lelewel. Diretor da Sociedade Patriótica
Revolucionária durante a insurreição de novembro de 1830 em Varsóvia,
Lelewel falou no dia 27 de julho de 1831, no primeiro de uma longa série

narodouryzwolenczych xvm i xix w, 1966.


95 De la Hodde, Histoire, pp. 89-90.
96 Kukiel, “Lelewel, Mickiewicz**, pp. 74-76, e referências.
97 Raphaël, “Les rapports polono-israëlites et l’insurrection de 1830-1831”, em La Révolution de
1848,1926, abr.-dez., pp. 788-793.
98 B. Hepner, Bakounine et le panslavisme révolutionnaire, 1950, pp. 223-224, e esp. “Le messianisme
polonais”, pp. 215-235.
99 Estatísticas da polícia inglesa em A. Lehning, “The International Association (1855-1859)”, em
International Review of Social History, vol. m, 1938, p. 201. Borejska (“Portrait”, p. 136) estima
que 8 a 9 mil poloneses se estabeleceram na Europa ocidental durante a “grande emigração” que
se seguiu a 1831. A literatura que estabelece elos entre os revolucionários poloneses e os novos
carbonários e outros grupos mais próximos de Buonarroti do que de Mazzini é revisada com
ceticismo convincente por W. Zajewski, “Pradzynski, Lelewel i mit o Karbonarskim podziemiu”,
em Kwartalnik Historyczny, vol. lxxi, 1964, n° 4, pp. 977-985.
282 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de reuniões em Paris para comemorar o levante polonês.100 Assim como para


Michelet, para Lelewel o potencial revolucionário do povo oprimido não se
encontra em sua penúria material, mas na riqueza espiritual de seus senti­
mentos comunitários. “As classes que chamamos de inferiores e que mantêm
maior proximidade com os instintos”, disse Michelet, “são por essa razão
eminentemente capazes de ação, estão sempre prontas a agir”.101 Lelewel aos
poucos passou a crer na capacidade das massas de camponeses eslavos de
realizar o que nem o império russo nem a aristocracia polonesa realizariam:
libertar as nações eslavas escravizadas. Sua História da Polônia foi traduzida
dos francês para o polonês, bem como para o russo, o tcheco e o alemão; e
seu ideal se disseminou ampiamente desde sua primeira organização clan­
destina de libertação criada em 1831 em Paris, a Vingança do Povo, até seu
fatídico encontro de 1844, em Bruxelas, com Mikhail Bakunin, o qual daria
maior desenvolvimento à visão de Lelewel do potencial revolucionário dos
povos eslavos intocados.102
Havia um pouco de pura nostalgia rural na concepção de povo de Michelet
e Lelewel. Ambos se sentiam redimidos pelo contato histórico que tinham com
o povo comum do passado; ambos compararam sua profissão de historiadores
com o duro, mas saudável ofício do trabalhador comum; ambos defendiam
que os ricos e sábios deveriam realizar “casamentos mistos” com as pessoas

100 Falou-se da “revolução nacional” na Polônia como sendo também dos lituanos e dos russos. V. a
brochura (incluindo o discurso de Lelewel, pp. 22-23) Les Polonais, les lithuaniens et les russiens
celebrent les premiers anniversaires de leur révolution nationale du 29 novembre et du 25 mars
1831, 1832. Também houve uma sociedade nacionalista lituana e bielorrussa fundada no dia 10
de dezembro de 1831 em Paris, apenas cinco dias antes do comitê polonês de Lelewel. Consulte-se
A. Barszczewska, “Société lituanienne et des territoires biélorusses et ruthènes à Paris 1831—1836”.
em Acta Baltico-Slavica, vol. vi, 1969, pp. 75-102.
101 The People, p. 87.
102 A tese de que a idéia do potencial socialista da comuna campesina foi colhida por Bakunin e Herzen em
Lelewel (B. Nikolaevsky, “‘Za vashu i nashu volnost’ — stranitsi iz istorii russko-polkish otnoshenii”,
em Novy zhurnal, 1944, n° 7, pp. 252-276) é vista com ceticismo por Malia (Herzen, p. 473) e por
A. Walicki (em um seminário de que tomou parte junto com Nikolaevsky em Harvard, em 1959). A
celebração do comunalismo eslavo antigo era disseminada junto à emigração polonesa, e pode ter
surgido com vários outros personagens que não Lelewel. V., por exemplo, P. Brock sobre a principal
figura do Lud Polski, “Zeno Swiçtoslawski, a polish forerunner of the Russian Narodniki”, em
American Slavic and East European Review, vol. xm, 1954, n° 4, pp. 566-587; e, com tratamento
mais completo, o seu Revolutionary Populism in Poland, Toronto, 1977, no qual defende que a Polonia
de fato produziu um movimento populista agrário pienamente desenvolvido entre as revoluções de
1830 e 1863, assim prenunciando as principais características do bem-conhecido movimento russo
que surgiria depois.
Sobre a transformação da “utopia conservadora” envolvida na idealização eslavófila da comuna
camponesa em um utopismo revolucionário dos populistas, v. A. Walicki, “Slavophilism and Populism:
Alexander Herzen’s ‘Russian Socialism’”, em The Slavophile Controversy. History of a Conservative
Utopia in Nineteenth-Century Russian Thought, Oxford, 1975, pp. 580-601.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 283

pobres e simples para unir a nação.103 Michelet celebrou os pescadores da


Normandia por comporem uma “união moral” que ia além do interesse
econômico e ajudava a guiar os homens “da associação natural da família
[...] até a grande associação do país natal”.104 Lelewel viu nas instituições
agrárias e comunais dos primeiros eslavos função similar.
A revolta de 1846 na Cracóvia inspirou a Sociedade Democrática Polonesa
a planejar rapidamente (para não dizer inutilmente) uma levée en masse ge­
neralizada para todo o campesinato polonês. A insurreição polonesa inspirou
até a classe trabalhadora inglesa105 e deu a primeira amostra dos levantes
nacionais que viriam a se tornar epidêmicos em 1848.
A resposta dos eslavos aos congressos nacionais de 1848, um realizado
pelos alemães em Frankfurt e outro realizado pelos húngaros em Budapeste,
foi o congresso pan-eslavo de Praga no Museu Boêmio Nacional convocado
pelo historiador romântico tcheco Frantisek Palacky. Como tantos outros
congressos nacionalistas realizados naquele período, o congresso de Praga
proporcionou o precedente e os símbolos para o chauvinismo conservador
de uma geração futura de políticos imperiais.106 Ao mesmo tempo, contudo,
as atividades de Bakunin, o principal representante russo, revelaram que a fé
revolucionária no poder libertador do “povo” rumava cada vez mais para a
esquerda à medida que rumava para o Oriente. Tendo feito, já em janeiro de
1845, em um jornal francês, uma clara declaração de fé no potencial revolu­

103 M. Serejski, Joachim Lelewel 1786-1861. Sa vie et son oeuvre, Breslávia/Varsóvia/Cracóvia, 1961,
p. 56.
104 The People, p. 132, e a § “Association of Fisherman of Normandy”, pp. 131-137.
105 H. Weisser, “The British Working Class and the Cracow Uprising of 1846”, em Polish Review, 1968,
inverno, pp. 3-18, esp. 9-10.
106 Enquanto Bakunin e um bispo vétero-católico oriundo do Imperio Habsburgo foram os únicos russos
entre os 340 delegados no Congresso Eslavo de Praga de 1848, por outro lado os representantes
russos e as declarações pró-russas dominaram inteiramente o Congresso Eslavo de Moscou de 1867.
Sobre a passagem do pan-eslavismo de causa radical a doutrina reacionária russa, v. M. Petrovich,
The Emergence of Russian Panslavism, 1865-1870, NY, 1956.
Sobre as pouco estudadas atividades conspiratórias desse período na Lituânia e a na Bielorrússia, v.
D. Fajnhauz, Ruch konspiracyjny na Litwie i Bialorusi 1846-1848, Varsóvia, 1965. Sobre os Bálcãs
nos anos 1840, v. Djorjevic, Revolutions, pp. 66-85.
A idéia revolucionária de um levante camponês eslavo contra os proprietários de terra teve origens
conservadoras na agitação realizada na década de 1840, perto de Lublin, pelo padre católico Piotr
Sciegienny, o qual se valeu de um apelo falsificado, em nome do Papa Gregório xvi, para organizar
um movimento clandestino com o objetivo de banir os proprietários e se unir com o campesinato
oprimido russo. Voi. r. Narsky, “Razvitie revoliutsionno-demokraticheskoi filosofskoi mysli v Pol’she
30-40-kh godov xix veka”, em Moskovsky universitet, uchenye zapiski, n° 169,1954, pp. 87-91.
Essa técnica foi repetida na Ucrânia trinta anos depois com um apelo falsificado, em nome do tzai;
para que se fizesse uma insurreição contra as classes abastadas. V. Venturi, pp. 582-583.
284 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

cionário do campesinato russo,107 em dezembro de 1848 Bakunin publicou


um “Apelo aos Eslavos” defendendo a aliança com a Hungria e a Alemanha
revolucionárias numa “federação geral de repúblicas européias”.108
O populismo revolucionário — não menos que o pan-eslavismo reacionário
imperial — nasceu da fantasia intelectual de um povo não corrompido que
ansiava por ser libertado e que, por sua vez, oferecia libertação moral em
seu meio. No início de 1848, o populismo se desenvolvia lentamente a partir
dos escritos de Alexander Herzen e Bakunin, os dois principais participantes
russos dos acontecimentos daquele ano na Europa ocidental.
Mas foi Michelet quem fortaleceu o nacionalismo radical com uma espécie
de humanismo anti-religioso que os revolucionários russos considerariam
essencial.109 Seu O povo., de 1848, era um elogio revolucionário da França
plebéia. Quando a revolução francesa de 1848 fracassou, Michelet novamente
olhou na direção do Oriente, para a Polônia, em busca da revolução popu­
lar, escrevendo assim seu Polônia e Rússia, de 1851. Em resposta, Herzen
escreveu sua famosa “Carta Aberta a Michelet”, argumentando que o povo
russo, com seu sistema de posse e atribuição comunal de terras, carregava
consigo o germe da regeneração revolucionária da Europa.110 Michelet dirigiu
um olhar mais simpático à Rússia no seu Lendas democráticas do Norte, de
1854, embora depositasse maiores esperanças na Revolução do Danúbio na
Hungria e na Romênia.111

107 Grandes porções do texto (de La Réforme} estão em Venturi, Rooís, pp. 47—49. Venturi (p. 48)
considera essa “a primeira vez [...] que as forças e problemas do que depois se tornará o populismo
russo foram apontados e descritos publicamente”.
108 Citado em Venturi, Roots, p. 56. V. também Carr, Bakunin, pp. 163-189, para discussão do Apelo. 0
texto, que traz ainda outros materiais relevantes sobre as atividades de Bakunin durante esse período,
está em J. Pfitzner, Bakuninstudien, Praga, 1932, pp. 78-106.
A identificação dos eslavos com paz e democracia retrocede a Herder, e foi desenvolvida energicamente
nos anos 1820 pelo poeta eslovaco romântico Ján Kollár. V. H. Kohn, Pan-Slavism, Notre Dame, 1953,
p. 16; T. Masaryk, Meaning of Czech History, Chapel Hill, 1974, pp. 55-56.
Embora não tenha havido dentro do Império Russo nenhum tipo de versão nacional das revoluções
de 1848, a Sociedade Ucraniana de Cirilo e Metódio contrastava o mundo eslavo ao moscovitismo, do
mesmo modo como o revolucionário “Catecismo do Povo Russo” em Paris contrastava uma Rússia “do
Povo” à Rússia “tzarista”. V. o importante documento Zakon bozhii, reimpresso em P. Zaionchkovsky,
Kirillo-mefodievskoe obshchestvo, 1959, pp. 156-160; e “Katekhizis russkogo naroda” de I. Golovin,
em“Pervaia revoliutsionnaia broshiura russkoi emigratsii”, Zven’ia, 1932, pp. 195-217.
109 Viallaneix, Voie, pp. 471-479, contrasta a compreensão terminantemente não-revolucionária e cristã
de “povo” de Lamennais à versão mais revolucionária do Michelet maduro.
110 O texto da carta de setembro de 1851 — depois intitulada “The Russian People and Socialism” —
está em Herzen, From the other shore and the Russian people and socialism (introd. Isaiah Berlin),
L, 1956, pp. 165-208; discussão em Malia, Herzen, pp. 395-409.
111 Expressão empregada por Michelet em Légendes, p. 239. Para acesso aos seus textos sobre a Romênia
na década de 1850, consultar pp. 209-259.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 285

A Romênia veio a ser, em 1859, a primeira nova nação a surgir de uma


luta revolucionária na Europa desde a Bélgica em 1830. O seu movimento
revolucionário representou a convergência de influências italianas, polonesas
e francesas. Em primeiro lugar, havia o mesmo eco de Mazzini que também
tinha sido ouvido na década de 1840 em paragens européias tão distantes
quanto a Irlanda e a Noruega. A “Jovem Dàcia” e a “Jovem Romênia”112
surgiram na região do Danúbio onde três impérios multinacionais — o
otomano, o austríaco e o russo — convergiam. Os portadores solitários da
cultura latina na Europa oriental viriam a desenvolver uma nova consciência
histórica de si mesmos como herdeiros da Dàcia, antiga província romana.
O historiador Nicolae Bãlcescu foi estudar com Michelet em Paris113 e orga­
nizou a mais importante de muitas associações revolucionárias nacionais:
a Fratia (Irmandade).114 Editou um jornal semanal sem título e organizou
células secretas de dez homens sob a direção de um diretório de três. A es­
trutura militante exigia do membro total obediência ao diàcono ou padre
que o catequizou. Uma estratégia militante para uma revolta nacional foi
sugerida no extenso estudo histórico publicado por Bãlcescu em 1844: Poder
armado e arte militar desde o estabelecimento do principado da Valáquia
até nossos dias, “Justiça e Irmandade” era o seu lema e sua imagem do que
uma luta nacional contra potências estrangeiras deveria alcançar. Em 1846,
traduções de O povo de Michelet e o romper do levante polonês na Craco­
via começaram a dar dentro da Romênia realidade revolucionária ao ideal
mazziniano. Bãlcescu se saiu com o lema “pátria, irmandade e liberdade”
e priorizou “a unidade de idéias e sentimentos que, no momento propício,
concretizará a unificação política”.115
Durante a fracassada revolução nacional de 1848-1849, Bãlcescu publi­
cou um novo jornal, O povo soberano, depois fugindo para Paris e Londres,
onde representou a Romênia no Comitê Democrático Europeu Central de

112 C. Bodea, The Romanian's struggle for unification — 1834-1849, Bucareste, 1970, p. 130 ss.
113 Ibid., p. 117 ss. V. também I. Breazu, Michelet si românii, Cluj, 1935; e a tese de doutorado inédita
que J. Campbell defendeu em Harvard, “French Influence and the Rise of Rumanian Nationalism.
The Generation of 1848”, 1940.
114 Detalhes tirados do livro comemorativo do centenário de sua morte em 1852: Nicolae Bãlcescu. a
fighter for freedom, Bucareste, 1853, o qual indica (pp. 67-68) que os estatutos redigidos em código
da Irmandade nào foram preservados.
115 Bodea, p. 120. Sobre a influência de Mickiewicz sobre Bãlcescu, v. A. Zub, “Les Rapports roumano-
polonais à la veille de la révolution de 1848”, em Revue Roumaine d'Histoire, 1975, n° 4, pp.
623-624.
286 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mazzini.116 O estandarte tricolor proclamado para a Romênia revolucionária


em junho de 1848 (vermelho, amarelo e azul, com o lema “Justiça — Frater­
nidade”) se tornou a bandeira nacional de uma nova nação quando as duas
principais províncias, a Moldávia e a Valáquia, uniram-se formalmente para
formar a Romênia independente em janeiro de 1859.
A idéia de “povo” penetrou no imenso Império russo de uma maneira que
ilustra a ambigüidade desse conceito romântico. Nicolas i se valeu do termo
narodnosf mais em seu sentido estrito de “nacionalidade” do que no sentido
amplo de “espírito do povo”. Ao combater o Império Otomano, coisa que ele
fez desde a guerra de 1828-1829 até a Guerra da Criméia de 1853, Nicolas
I encontrou um “povo” oprimido para libertar: os eslavos ortodoxos sob o
domínio dos turcos muçulmanos.
O narodnost’ dos populistas radicais, por outro lado, era o incorrupto
“espírito do povo”; e o seu “povo” era o próprio campesinato russo. Os
populistas russos tentaram redescobrir com os camponeses um senso de
comunidade, ao mesmo tempo que tentavam libertá-los da opressão feudal
e da exploração burguesa.117 Por fim, para muitas nacionalidades dentro
do Império Russo, o “povo” era uma minoria oprimida a buscar libertação
tanto nacional como social por meio das palavras de poetas nacionais que
apareceram ao longo da década de 1840, de Taras Shevchenko na Ucrânia
a Johan Runeberg na Finlândia.
Mas a imprecisão da fé no “povo” e o perigo de conflito entre um povo
e outro não atenuou o idealismo e as altas esperanças dos revolucionários
nacionais. Apesar das derrotas de 1848-1849, o nacionalismo romântico per­
maneceu a principal fé revolucionária ao longo da década de 1850. Michelet
permaneceu o profeta, a Polônia a esperança e Mazzini o coração e a alma.
Assim como para Michelet e Lelewel, o “povo” era para Mazzini uma
força espiritual — não algo a ser dividido em interesses ou classes. No seu
primeiro jornal voltado para a classe operária, Apostolado do Povo (o se­
manal da Associação dos Trabalhadores que ele fundou em 1840), Mazzini

116 A. Otetea (ed.), The history of the romanian people, Bucareste, 1970, pp. 359, 372. Como em toda
parte no período romântico, apresentações teatrais desempenharam importante papel quanto ao
estímulo dos revolucionários nacionais. Assim como os gregos em Bucareste tinham sido incentivados
a entrar em ação pela representação do Brutus de Voltaire, assim também Bãlcescu foi inspirado
pelos protestos juvenis deflagrados, em janeiro de 1848, por uma representação do Júlio César
de Shakespeare em Bucareste. O ponto decisivo veio quando Brutus gritou “Morte aos tiranos!”.
Consulte-se o relato parcialmente ficcional de C. Petrescu, Un Om íntre oameni, Bucareste, 1956.
117 Sobre o desenvolvimento dessa idéia entre os populistas, v. “The first myth: belief in ‘the people’”,
emJ. Billington, Mikhailovsky and Russian Populism, Oxford, 1956, pp. 86-98.
LIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 287

publicou a primeira das quatro partes de sua obra mais famosa, Os deveres
do homem. A ênfase na obrigação moral também era evidente no cabeçalho
de um jornal que publicou mais tarde dirigido aos trabalhadores italianos:
“Moralidade, Pátria, Trabalho”.118
Ele sonhou ao longo da década de 1840 com um “conselho da huma­
nidade” que pudesse emitir uma declaração de princípios que suplantasse
as declarações similares de direitos produzidas pelos franceses.119 Essa con­
centração antes em imperativos éticos que materiais é visível em sua última
tentativa de uma Internacional nacionalista: a Associação Internacional
de 1855-1859. Mazzini organizou esse projeto em Londres, aonde tinha
retornado após participar do triunvirato governante da efêmera República
Romana de 1849. Buscou assim fortalecer sua velha fé em uma “Terceira
Roma” do “povo” que substituísse as Romas anteriores dos imperadores e
papas. Agora argumentava que uma mais ampla “aliança dos povos” estava
prestes a ser formada pelos três grandes “povos” da Europa (os eslavos, os
germanos e os “gálico-romanos”), a fim de renovar sua luta comum.120
Mas a década de 1860 destruiu o sonho para sempre. A Itália foi unifi­
cada não apenas pela paixão de Mazzini como também pela realpolitik de
Cavour, “a tradução em prosa do seu poema”.121 A Polônia se sublevou e foi
novamente esmagada em 1863; e a Alemanha optou pela Einheit [unidade]
em vez da Freiheit [liberdade] ao alcançar sua unificação sob o governo de
“sangue e aço” de Bismarck.
Tudo isso foi acompanhado de guerra e derramamento de sangue jamais
previstos pelos nacionalistas românticos, que sonhavam com uma família de
nações infensa a conflitos. Os poetas e historiadores nacionais, “ideólogos”
do nacionalismo, sempre pressupuseram que a única guerra nacional seria
de povos contra reis.

118 L. Ravenna, Il giornalismo mazziniano, Florença, 1967, pp, 72, nota 2, 282,
119 Salvemini, Mazzini, pp. 35-38.
120 V. a resposta de Mazzini ao convite do comitê internacional no cabeçalho do “Rapport annuel
du comité international à toutes les nationalités” de março de 1856, reimpresso em Lehning,
“Association”, p. 251,
121 Como Herzen caracterizou em sua carta a Turgenev de 20 de julho de 1862, em My past and
thoughts, L, 1927, vol. vi, p. 20. Sobre seus laços com Mazzini, V. W. Giusti, “A. I. Herzen e i suoi
rapporti con Mazzini e l’Italia”, em L'Europa Orientale, 1935. Giusti, em Mazzini e gli slavi, Milão,
1940, deixa clara a importância permanente da causa nacional polonesa para Mazzini, mas também
revela (pp. 237-255) um crescente interesse dele pela Rùssia depois de 1848. O herói romântico
dos acontecimentos de 1848-1849 na Itália, Giuseppe Garibaldi, também nutria fortes sentimentos
pelos poloneses. V. A. Lewak, Corrispondenza polacca de G. Garibaldi, Cracovia, 1932,
288 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A fé na revolução nacional permaneceu dominante durante a década de


1850. Mas a ascensão da tradição rival de revolução social já tinha sido
prenunciada pela aparição de profunda e consciente luta de classes durante
as revoluções de 1848. Paralela ao alteamento da bandeira vermelha como
rival da bandeira tricolor, deu-se em Paris durante os meses de maio e junho
de 1848 a substituição da palavra peuple por ouvriers [trabalhadores]. Se
a nova terminologia de classe era mais evidente nas declarações e canções
que atingiam diretamente as massas, as novas idéias de revolução social,
por outro lado, foram desenvolvidas por uma pequena cadeia de sucessão
apostólica de uma elite de intelectuais, os quais levaram adiante a tocha que
lhes passou o já idoso Buonarroti.

Violência revolucionária: a contribuição ítalo-polonesa

Antes de passar à tradição revolucionária social, é necessário meditar


sobre a introdução da violência na prática dos revolucionários nacionais.
Uma compreensão notoriamente nova da violência já tinha se manifestado
nas revoluções americana122 e francesa.123 Em um sentido mais amplo, como

122 Um empréstimo bem oportuno dos norte-americanos nativos pode ter se mesclado à mobilização
ideológica para dar à milícia durante a Revolução Americana algumas características de um exército
moderno de “libertação nacional”: J. Shy, “The Military Conflict as a Revolutionary War”, em S.
Kurtz e J. Hutson (ed.), Essays on the American Revolution, Chapel Hill, 1973; também E Pogue,
The Revolutionary Transformation of the Art of War, Washington, D. C., 1974.
Contudo, o mais notável antecedente de guerra revolucionária irregular na América do Norte
colonial é a figura esquecida de James Smith, do Kentuchy, que foi capturado e adotado por índios
aos 18 anos, em 1755, e que veio a aplicar os métodos indígenas de guerra de fronteira depois
de fugir em 1759. Os integrantes de sua milícia no oeste da Pensilvânia, os Blackboys, vestiam
tangas e perneiras, e pintavam o rosto; em 1767, eles assaltaram o Forte Bedford, que se tornou “o
primeiro forte britânico na América a ser tomado pelos que chamavam de rebeldes”. An account
of the remarkable occurrences in the life and travels of Col. James Smith, apêndice e notas de W.
Darlington, Cincinnati, 1907, p. 123.
Smith tentou sem sucesso obter o apoio do governo dos Estados Unidos para a condução de guerra
irregular em 1777 e mais uma vez em 1799. Ele queria evitar o erro britânico de tentar o emprego
de guerra convencional no Novo Mundo, incitando seus companheiros americanos a emular a
proximidade dos nativos com a natureza, sua ênfase no mérito demonstrado e sua habilidade de
enfrentar largos contingentes inimigos por meio de camuflagem, emboscada e surpresa. O seu
primeiro Remarkable occurrences (Lexington, Kentuchy, 1799) foi expandido e revisto pouco antes
de sua morte, tornando-se A treatise on the mode and manner of Indian War. Their tactics, discipline
and encampments, the various methods they practice in order to obtain the advantage, by ambush,
surprise, surrounding, etc., Paris/Kentuchy, 1812.
123 A obra que chegou mais perto de sugerir novas formas de guerra para um regime revolucionário
foi a quase despercebida brochura escrita por um amigo de Bonneville, o mercenário escocês John
Oswald. Ele escreveu, baseando-se em sua experiência anterior com o exército britânico na índia
e na América, Le tactique du peuple ou nouveau principe pour les évolutions militaires, par lequel
le peuple peut facilement apprendre à combattre par lui-même et pour lui-même, sans le secours
dangereux des troupes réglées (BN), que Ioannisian data do firn de 1792 ou início de 1793, Idei, p.
38.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 289

vimos, a tradição revolucionária nacional nasceu em um período de guerra


quase contínua, desde o vigoroso ataque dos monarquistas à França em 1792
até a derrota final de Napoleão por uma coalizão de movimentos de resistência
nacional. Os franceses deram o precedente; os ingleses, apoio distante; e os
alemães, idéias. Mas os empenhados quadros da tradição que combinaram
teoria e prática se originaram principalmente na Itália e na Polônia.
O período ítalo-polonês de violência revolucionária se prolongou até a
unificação da Itália e a derrota da última rebelião polonesa no início da década
de 1860. Em seguida, nasceu uma tradição de violência revolucionária bem
diversa — em especial na Rússia e em meio a revolucionários sociais. Os dois
tipos de violência viriam naturalmente a se opor um ao outro, e no início
do século XX convergiríam para os Bálcãs, essa terra de ninguém da política
européia. O assassinato do Arquiduque habsburgo Francisco Ferdinando em
Sarajevo, em julho de 1814, abriu caminho para a Primeira Guerra Mundial
e para uma era de guerra total e paz totalitária. O fatídico assassinato seria
obra de um movimento inspirado por revolucionários italianos e russos.
A diferença estava em que a violência ítalo-polonesa, provinciana em seus
objetivos, era de estilo heróico. A violência russa, universal em seus objeti­
vos, era de estilo racionalista e ascético. A história russa é bem conhecida.
Por outro lado, o percurso da violência revolucionária ítalo-polonesa tem
sido em geral negligenciado. Quase todas as idéias sobre tática de guerrilha
ou de guerras de “libertação nacional” encontram precedentes, senão suas
próprias origens, em escritos esquecidos de revolucionários nacionais dessas
duas nações. A originalidade da Itália e da Polônia se radicava, paradoxal­
mente, em sua dedicação fanática à imitação e perpetuação do exemplo
revolucionário da França.
Foi em 1794, quando o terror chegava ao seu clímax em Paris, que a teoria
moderna da violência revolucionária começou a surgir em lugares distantes
daquela capital. Naquele ano, o jovem Buonarroti estabeleceu, durante seu
governo revolucionário em Oneglia, uma escola especial para ensinar “a
teoria da revolução”. Ao mesmo tempo, em Varsóvia, houve um levante
de grandes dimensões contra a divisão final da Polônia, do qual tomaram
parte, entre outros, camponeses que empunhavam foices. Sobreviventes da
insurreição formaram uma legião de libertação na Itália, a qual em um ano

A inclinação fundamental dos revolucionários para a simplificação radical é evidente na determinação


expressa de Oswald de “descobrir um princípio de movimento que seja simples, fácil e natural”,
mas que é apenas esboçado no panfleto de 12 páginas.
290 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

chegou a 10.000 membros e deu início ao longo elo entre as duas tradições
revolucionárias nacionais. Lutando contra os franceses na Itália, os polone­
ses sonhavam com um retorno derradeiro “da Itália para a Polônia”; e sua
canção se tornou depois o hino nacional polonês.124
O líder ferido do derrotado levante polonês, Tadeusz Kosciuszko, acreditava
que a libertação da Polônia iniciaria uma “época de pacificação geral” que
daria fim a todos os conflitos humanos.125126 No exílio, desenvolveu a crença
bastante característica de que a violência revolucionária acabaria com todas
as outras violências. Em 1800, publicou Poderão os poloneses recuperar sua
independência por meio de ação armada?116 e, ao responder afirmativamente,
disse que “um povo que aspira à independência não pode deixar de ter fé
nas suas próprias armas”.127 A combinação de militância e autoconfiança
impostas aos poloneses pela história garante, com efeito, que um novo tipo
de homem e nação emergirá.
Kosciuszko se baseava em oito anos de experiência na Revolução Ame­
ricana e também na tradição polonesa nativa, influenciada pelos cossacos,
de resistência a incursões de suecos e russos em épocas passadas.128 Ele dava
atenção à principal pergunta não respondida que se originara da experiência
polonesa de 1794: como pode um exército popular enfrentar forças milita­
res convencionais que lhe são superiores? Os poloneses tinham enfrentado
simultaneamente os exércitos das três potências conservadoras mais podero­
sas da Europa: Rússia, Prússia e Áustria. Impressionara-lhe o fato de que, a
despeito da impossibilidade de vitória, se tivesse conseguido uma duradoura

124 A. Gieysztor et al., History of Poland, Varsóvia, 1968, p. 407.


125 Kosciuszko au peuple français, Paris, s/d., p. 35. As copias em LC e BM estão catalogadas com as
datas de 1792 e 1796, respectivamente. O texto parece ser um apelo feito depois do levante de 1794.
126 Czy Polacy wybic sie mogg na ntepodleglosc?, primeiro publicado anonimamente em Paris (com a
designação de um local fictício, “Perekop na Donu”), 1800, reimpresso com introdução de E. Halicz,
Varsóvia, 1967, e atribuído ao próprio secretário de Kosciuszko, Józef Pawlikowski. M. Kikiel
atribui a obra ao próprio Kosciuszko: “Les origines de la stratégie et de la tactique des insurrections
polonaises au xvme et au xixe siècle”, Revue internationale d'histoire militaire, 1952, n° 12, pp.
326-345.
A obra, inspirada e provavelmente ditada por Kosciuszko, teve um impacto fundamental, ainda
que atrasado, sobre a tradição revolucionária polonesa. V. Kukiel, “Military Aspects of the Polish
Insurrection of 1863-1864”; Antemurale, 1963, vol. vii-vm, p. 363-396; e artigos emW. Bieganski
et al. (ed.), Histoire militaire de la Pologne, Varsóvia, 1970, pp. 114-192.
127 Czy Polacy, p. 69, citado em Histoire militaire, p. 132.
128 Sobre a tradição polonesa de arrière-ban, que data pelo menos da resistência à invasão sueca de
1655, v. J. Kowecki, Pospolite ruszenie w insuekcji 1794, 1963, e Histoire militaire, p. 133 ss. E.
Halicz, Partisan warfare in nineteenth century Poland. The development of a concept, Odense, 1975,
enxerga especial importância nesse sistema de Kosciuszko mais para a Europa como um todo do
que para a tradição polonesa.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 291

resistência em massa. O moral havia sido um fator, mas, mesmo em termos


puramente militares, um pequeno exército insurrecional poderia neutralizar
uma força convencional muito maior por meio do simples expediente de se
recusar a lutar segundo padrões tradicionais.
Koáciuszko talvez tenha sido a primeira pessoa a empregar a expressão
“guerrinha”, isto é, guerrilha;129 mas suas importantes contribuições para o
exército americano se deram em áreas relativamente convencionais, como
ao projetar fortificações para West Point e ao escrever o primeiro manual
militar de artilharia a cavalo.130 Na Europa, ele universalizou a luta pela
nacionalidade na medida em que denunciou Napoleão como o inimigo de
“toda grande nacionalidade e, mais ainda, do espírito de independência”.131
Mas a recordação do movimento de resistência que ele havia liderado per­
maneceu dominante na imaginação polonesa; e, quatro anos após sua morte
em 1817, formou-se a Sociedade Patriótica Polonesa com o nome secreto de
Liga dos Foiceiros.132
Os mais importantes escritos sobre violência revolucionária da década de
1820 se devem a italianos, como resultado de suas insurreições fracassadas.
Na vanguarda estavam os membros dos Apofasimèni, ou soldados desespe­
rados, entre os quais havia veteranos de levantes espanhóis, italiano e gregos.
Eles deram continuidade à organização secreta e hierárquica da carbonária,
porém descrevendo suas unidades locais com o termo militar “alojamento”
(tende) em lugar de “loja”.133 As cerimônias de iniciação davam uma ênfase
quase masoquista à violência. Depois de um centurião ter lavado o passado
servil do novo membro com duas aspersões rituais de água e o ter batizado

129 V. Histoire militaire, pp. 132,160. Esse, obviamente, é o sentido literal da palavra espanhola guerrilla.
130 Ibid., pp. 124-127; também o seu manual Manoeuvres of horse artillery adapted to the service of
the United States, NY, 1812; e E. Brink, “Koáciuszko — Antepassado da Artilharia Americana”,
Field Artillery Journal, vol. xxn, 1932, mai.-jun., pp. 303-313.
131 Citado em E. Alexander; “Jefferson and Koáciuszko”, Pennsylvania Magazine of History and
Biography, 1968, jan., p. 99. A força de vontade extraordinária de Koáciuszko fez com que Jefferson
empregasse toda sua herança na compra da liberdade ou educação dos negros: ibid., pp. 92-93.
132 Para M. Kukiel, essa organização representou a primeira adaptação inequívoca de formas carbonárias
ao leste europeu: “Lelewel, Mickiewicz and the Underground Movements of European Revolution
(1816—1833)”, Polish Review, 1960, verão, p. 63.
133 Radice (Ars, vol. LIV, p. 162) data a fundação de 1821; C. Francovich (Idee social e organizzazione
operaia nella prima metà dell’800, 1815-1847, Milão, 1959, p. 49) propende para a data de 1823.
Garrone, pp. 335-336, nota 2, discute o nome grego e a origem da sociedade, inclinando-se para
uma datação posterior de suas origens. Os líderes tomavam ritualmente para si os nomes de heróis
romanos antigos (particularmente os militares). V. A. Ghisalberti, Cospirazioni del risorgimento,
Palermo, 1938, p. 39, também pp. 31-58.
292 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

como “terror dos tiranos”,134 o neófito — de joelhos com a mão esquerda


no coração e a direita a segurar um punhal — pedia que o punissem caso
viesse a trair seus votos:

Quero que meus olhos sejam arrancados de minha cabeça, que minha língua seja
cortada de minha boca, que meu corpo seja cortado e despedaço pouco a pouco;
que meus intestinos sejam eviscerados; que um veneno corrosivo possa comer-me
dolorosamente — com espasmos do peito, pulmão e estômago gerando dor ainda
pior. [...]135

E, depois desse processo, o traidor dos Apofasimèni deveria ser esquar­


tejado e seus restos postos em exibição com o aviso: “Assim foi com justiça
punido o infame”.136
Entre os italianos, as primeiras reflexões teóricas sobre violência revo­
lucionária se deram à medida que a agitação não-violenta da carbonária
recrudesceu em confronto militar fracassado com o poder dos Habsburgo
em 1820-1821. Os colaboradores de Buonarroti seguiram o exemplo. Prati
sugeriu em 1821 a organização de uma guerrilha que tivesse Gênova por
base ou “foco de ação para os liberais da Itália”.137 A Constituição espanhola
de 1812, assim como o movimento espanhol de resistência, foi vista como
meio de se opor nacionalmente a um opressor estrangeiro.138
Como o movimento italiano fracassasse, Luigi Angeloni escreveu uma série
de cartas sobre o problema da violência que mais tarde seria publicada em
Londres com o título Sobre o uso da força em questões políticas. Afirmando
que “tudo é força no universo”, citava a visão sombria de Hobbes sobre a
natureza humana (uma autoridade incomum em meio aos revolucionários),139
e depositava esperanças apenas na luta que se aproximava entre força “ar­
tificial” e força “natural”.140 A primeira, expressa politicamente através de

134 N. Naldoni, “Sulla setta degli Apofasimèni”, Aiti del xxvii Congresso per la Storia del Risorgimento,
Milão, 1948, pp. 465—472.
135 Ibid., p. 467.
136 Ibid. Muitos italianos (incluindo Bianco) em algum momento lutaram contra os franceses na Argélia.
Cf. E. Michel, Esuli italiani in Algeria (1815-1861), Bolonha, 1935.
137 Prati, Penny Satirist, 31 de março de 1838.
138 Ibid., 17 de março, p. 2.
139 Della forza nelle cose politiche ragionamenti quattro di Luigi Angeloni Frusinate dedicati all’italica
nazione, L, 1826, Parte n, p. 151 ss., além de p. 166. Angeloni denuncia as potências da Europa por
renunciarem à sua promessa de libertar e unir a Italia (pp. 203—204) e considera o Generai Malet,
que “serviu tanto à França quanto à Itália”, o único líder admirável daquela época (pp. 206-207,
também 211).
140 Ibid., o terceiro “ragionamente”, p. 1 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 293

privilégios hereditários, deveria afinal sucumbir àquela última, a qual se


baseia em soberania popular enraizada no governo da maioria.
Depois das derrotas de 1820-1821 (assim como os poloneses depois de
seus reveses em 1830-1831), os italianos tenderam a substituir o modelo
desdourado da França pelo distante exemplo da Revolução Americana,
conquanto pouco compreendida. Angeloni se referiu à Revolução Americana
como o mais puro exemplo de “força natural”, e viu a Doutrina Monroe
como indicativo de que essa força natural pudesse estar passando de “força
menor” a “força maior” no mundo.141
A obra de Angeloni impressionou o seu velho colega Buonarroti enquan­
to este se preparava para publicar sua História sobre a quase esquecida
conspiração de Babeuf; e também chamou a atenção de outros italianos
exilados com Buonarroti na Bélgica.142 Tanto Angeloni quanto Buonarroti
influenciaram, por sua vez, o mais extenso e original tratado já publicado
sobre guerra revolucionária irregular: Da Guerra de Insurreição Nacional
conduzida através de Grupos de Combate aplicada à Itália, em dois volumes,
do Conde Cario Bianco di Saint-Jorioz.143
Bianco fora ativo nas lutas revolucionárias no Piemonte ao longo da década
de 1820, e tinha viajado a Paris numa tentativa malsucedida de coordenar a
batalha italiana com outros movimentos europeus. Voltando de mãos vazias,
foi capturado e escapou por pouco da pena de morte em Turim, em 1821.
Em seguida, liderou os “lanceiros italianos” na Espanha, lá continuou a lutar
contra as tropas realistas francesas em 1822-1823, combateu por um breve
período pela independência grega e desempenhou papel de destaque nos
Apofasimèni antes de iniciar uma vida de permanente exílio em Gibraltar,

141 Ibid., pp. 61-88. Angeloni se descreve como “um dos primeiros promotores (promovitore) na França
daquela verdadeira forma americana de liberdade (quella vera libertà americana)”, p. 207. Antes
disso, em sua primeira obra política, de 1814, ele vira tanto a federação americana quanto a suíça
como modelos para a unificação italiana. Sopra l’ordinamento che aver dovrebbono igoverni d’Italia,
ragionamento di Luigi Angeloni, Frusinate, Paris, 1814, pp. 12-13. V. também o seu Dell’Italia
uscente il settembre del 1818, ragionamenti iv di Luigi Angeloni, frusinate, dedicati all’italica
nazione, Paris, 1818, 2 voi. Não existe nenhum bom estudo de Angeloni, o qual veio a acabar num
asilo de mendicidade londrino em 1842, morrendo no ano seguinte. (V. L. Fasso, Lettere di esuli,
Lucca, 1915, pp. 126-127). O melhor trabalho ainda é o de G. Romano-Catania, Luigi Angeloni e
Federico Gonfalonieri, Milão, 1898.
142 M. Battistini, Esuli italiani in Belgio (1815-1861), Florença, 1968, p. 205.
143 Della Guerra nazionale d’insurrezione per bande, applicata all’Italia. Tratatato dedicalo ai buoni
Italiani da un amico del paese, Italia, 1830, 2 voi. (duas cópias desse livro raro, ao que parece
publicado em Malta, se encontram em Brera, Milão).
294 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Malta, Córsega, Argélia, Londres e Bruxelas.144 Assim, seu tratado de 1830 era
um apanhado e síntese de uma década de experiência direta — e ao mesmo
tempo, um prenúncio da torrente derradeira de violência revolucionária que
ele estava prestes a desencadear em Lyon, em fevereiro de 1831, e dos esforços
de Mazzini para invadir a Sabóia e lá inspirar revolução em 1831 e 1834.145
O tratado de Bianco incitava a Itália a rejeitar os tímidos filósofos polí­
ticos, “mais estrangeiros que italianos”, em favor de uma mobilização po-
lítico-militar “forte, robusta e ardente” em prol da “insurreição nacional”,
do mesmo modo como ocorrera nos Estados Unidos após sua “estupenda e
rápida revolução”.146 Defendia a formação de uma rede nacional de grupos
de guerrilha que evitariam combate direto e, em vez disso, assaltariam arse­
nais, camuflar-se-iam e sabotariam todos os meios locais de subsistência dos
Habsburgos.147 Aos poucos, áreas seriam libertadas, “grupos de guerrilha” se
fundiríam em “colunas móveis” e depois em formações militares regulares com
cores, uniformes e títulos romanos (decurião, centurião, cônsul, tribuno).148
A insurreição deveria produzir um modelo de organização política mediante
sua estrutura de comando militar (quatro províncias, doze congregações ou
cantões e duzentas unidades menores).149
O segredo do sucesso numa guerra de povos, e não de reis, está na mobi­
lização política e moral de todo o país. Argumentando, de modo implícito,
contra o predomínio do pensamento parisiense na tradição revolucionária,
144 L. Carpi, Il risorgimento italiano, Milão, 1887, vol. ui, p. 176; Battistini, Esuli, pp. 376-378; e a
curta, porém bibliograficamente rica biografia escrita por Della Feruta para o Dizionario biografico
degli Italiani, 1968, vol. x, pp. 226-229. Não existe nenhum estudo decente — nenhuma biografia
integral, aliás — dessa figura memorável. Sobre a relação entre seu livro e a rica história da insurreição
italiana, v. P. Pieri, “Carlo Bianco conte di Saint Jorioz ed il suo trattata sulla guerra partigiana”,
Bollettino Storico-Bibliografico Sub-Alpino, vol. LV, 1957, pp. 373—424; vol. LVI, 1958, pp. 77-104;
bibliografia às pp. 375-376.
145 V. Parmentola, “Carlo Bianco, Giuseppe Mazzini e la teoria dell’insurrezione”, Bollettino Domus
Mazziniana, voi. v, 1959, n° 2, pp. 5-40; também Garrone, pp. 333-342, sobre as relações, em meio
às comoções de 1830-1831, entre Buonarroti e Mazzini. Embora a colaboração entre revolucionários
nacionais e sociais não tenha sobrevivido ao desastre na Sabóia, a influência de Bianco sobre Mazzini
lhe permitiu exercer impacto permanente, ainda que não muito reconhecido, sobre a tradição
revolucionária. V. Pieri, pp. 95-104. Existem alusões a uma versão revista dessa obra, Manuale
pratico del rivoluzionario italiano desunto del trattato sulla guerra d'insurrezione per bande, que, ao
que parece, era um manuscrito inacabado que fora composto tendo em vista os preparativos para
a segunda expedição à Sabóia em 1833, embora Pieri se refira a eie corno se tivesse sido publicado,
“(Italia, 1833)”, pp. 374-375.
146 Della guerra, voi. i, pp. 12, 51, 70.
147 Ibid., p. 170 ss.
148 Ibid., p. 198 ss.; v. também Pieri, p. 79, além de pp. 290-292, para títulos superiores e cargos
complexos, indicados por nomes como “Grande Celiarca” e “Topógrafo-Geral”.
149 Pieri, p. 77.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1 848) 295

Bianco defendia que a posse de uma grande cidade — até mesmo uma capital
— não é importante nos primeiros estágios de uma insurreição nacional. A
verdadeira guerra nacional contra o invasor na Espanha e na Rússia começou
depois que Madri e Moscou tinham caído.150 A conquista de uma capital —
assim como o uso de uniformes e bandeiras específicos — deveria vir depois.
Era importante se prevenir para que as cidades grandes não corrompessem o
movimento durante os estágios embrionários da revolução. A própria Roma
era uma “cloaca” de desonestidade; e grandes cidades, de um modo geral,
privilegiavam “uma vida luxuriante e afeminada”.151
O movimento insurrecional foi então visto como uma espécie de revi-
vescência moral da nação a partir do campo. Os sete tipos de movimento
militar recomendavam uma espécie de calistenia corporativa para um povo
que já afundava em la dolce vita. Havia uma sensação de aventura atlética na
preferência de Bianco por armas leves, as quais valorizavam as habilidades
individuais e a intimidade entre homem e instrumento: estacas e forcados, a
faca espanhola e o pugnole italiano.152
Para Bianco, a violência (assim como a “força artificial” para Angeloni) só
era própria de estados reacionários. Bianco (tal qual os apóstolos posteriores
da violência revolucionária) via a si próprio como um relutante combatente
empenhado na causa da libertação nacional, a enfrentar os mercenários de um
império degenerado. Estes últimos lutavam apenas per violenza.153 Mazzini
tentou pôr em prática a sua teoria insurrecional,154 mas veio a depender mais
de exortação dos emigrados do que de ação revolucionária após os fracassos
do início da década de 1830. Garibaldi faria reviver a noção de confrontos
de guerrilha em meados da década de 1840; e as derrotas revolucionárias de
1848-1849 na Itália inspirariam um retorno à violência nos anos 1850 —
em especial no notável levante liderado por Cario Pisacane em 1857, feito a
partir de um navio que ele havia seqüestrado em alto mar.
Antes disso, Pisacane havia escrito um longo estudo da Revolução Italiana
de 1848-1849. Oficial militar de carreira, deu especial ênfase à necessidade de
motivação ideológica para a guerra revolucionária. Estabelecia-se diferença
150 Della guerra, vol. i, p. 25 ss.
151 Ibid., p. 18 ss., e Pieri, p. 382.
152 Sobre o que Bianco pensa de armas e vestes, v. Della guerra, voi. i, p. 176 ss.
153 Della guerra, voi. i, p. 301.
154 Sobre a natureza e o impacto da tradição insurrecional italiana antes de 1848, v. Francovich, “L’azione
rivoluzionaria”, em Idee; também S. Mastellone, Mazzini e la “Giovine Italia“, Pisa, 1960. A teoria
bàsica de Mazzini està em seu Della guerra d’insurrezione conveniente all’Italia, Marselha, 1833.
296 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

entre a palavra concetto (conceito) e as “doutrinas estéreis”, e se fazia daquela


primeira quase um sinônimo de “movimento revolucionário”.155 Defendia a
“revolução de idéias que deve sempre preceder a revolução material”; queria
um movimento insurrecional que se propagaria “de um extremo a outro
da Itália com a rapidez do pensamento”;156 e vislumbrava um novo tipo
de militante distinto do velho tipo de soldado: militi tutti, soldato nessuno
[militantes todos, soldados nenhum].157 O nacionalismo era “suficiente para
a insurreição, mas não para a vitória”; de modo que se tinha de alterar os
lemas “de ‘guerra ao estrangeiro’ para ‘guerra ao governante’”.158 Ele planejou
uma mescla de táticas de guerrilha anti-napoleônicas de origem espanhola
e russa com a nova luta de classes dos operários de Lyon.159 Fatores morais
podem derrotar a força bruta; e a “poesia” prevalecería sobre a “gramática”
à medida que a revolução se espraiasse do campo para as cidades, rumo à
vitória final.160
Os poloneses se tornaram ainda mais criativos que os italianos em matéria
de emprego de violência revolucionária. Basearam-se na importância quase
mítica que Kosciuszko dera ao elo entre camponês e foice na insurreição de
1794,161 e posteriormente especularam sobre usar qualquer coisa, de paus de
cerca a facas de mesa, e mesmo água fervente, como armas de insurgência
contra exércitos tradicionais.162 Esperavam, após o levante fracassado de
1830-1831, que uma reação em cadeia de revoluções por toda parte re­
vertería a supressão de liberdades imposta pelos russos aos poloneses. Mas

155 Segundo a introdução de E di Tondo à nova edição de Pisacane, Guerra combattuta in Italia negli
anni 1848-1849,Turim, s/d., p. 3. A obra, originalmente concluída em Lugano no dia 25 de outubro
de 1850, foi primeiro publicada lá em 1851.
156 Ibid.,pp. 187,200-201.
157 Ibid., p. 190.
158 Ibid., pp. 195,202.
159 Ibid., pp. 191-193, 206.
160 L. Cassese, La spedizione de Sapri, Bari, 1969, pp. 12—15.
161 Kosciuszko escreveu, em sua análise dos fatos de 1800 (Czy Polacy, p. 90, citado em Histoire militaire,
p. 132), que “não existe arma capaz de resistir à foice nem exército algum da Europa que não se
possa derrotar com foices”. Sobre o mito da foice, v. Halicz, pp. 44-45, 175, 183.
162 Histoire militaire, pp. 176—177, para muitos exemplos e referências. O fascínio polonês por armas
leves e portáteis talvez deva algo às duas pistolas (nas quais está gravado E pluribus unum) que
Kosciuszko recebeu de George Washington como presente de despedida (ibid., p. 125).
Kukiel sugere uma possível influência de Kosciuszko sobre Bianco ( “Military Aspects”, pp. 368-369),
embora essa especulação pareça questionável em vista do fato de identificar erroneamente Bianco
em outras passagens (“Problèmes des guerres d’insurrection au xix siècle”, Antemurale, 1955, p.
80). A obra de Bianco é atribuída equivocadamente a Mazzini em Histoire militaire, p. 181. Halicz
mostra que Bianco foi influenciado por Kosciuszko (p. 21) e influenciou poloneses importantes (pp.
77-79), bem como a Mazzini (pp. 45, 92-93).
LIVRO H, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 297

nem a agitação francesa de 1832 nem a alemã de 1833, nem tampouco a


campanha italiana contra a Sabóia em 1834 lograram sucesso. Um dos líde­
res relativamente moderados da insurreição militar polonesa de 1830-1831
escreveu em Paris, em 1835, um extenso e radical chamado às armas, Da
Guerra de Guerrilha;163 e, no mesmo ano, uma expressiva minoria da ampla
população emigrada polonesa se desligou da Sociedade Democrática para
criar a organização Povo Polonês, que propôs teorias ainda mais abrangentes
de justificação da violência revolucionária.
Membro da Sociedade Democrática e o mais influente defensor da violência,
Ludwik Mieroslawski nasceu dentro de um vagão militar — coisa bastante
apropriada — em 1814. Havia liderado levantes na Sicilia e em Baden, bem
como na Polônia, e por volta da década de 1830 defendia que, “em estado de
revolução, todo o país é transformado em uma única propriedade comunal
nas mãos do governo revolucionário”.164 Advogava um terrorismo “salutar” e
a mobilização do campesinato para atos de violência, mas ainda pensava em
termos de guerra tradicional contra potências invasoras — concentrando-se
em especial na Rússia. Suas idéias encontraram apoio em outro tratado po­
lonês trazido a lume em Paris no mesmo ano: Guerra de guerrilha como o
tipo mais conveniente a nações insurgentes 165
Os poloneses emprestaram parte de sua militância a outras revoluções
nacionais em 1848. Józef Bem, autor do primeiro tratado moderno sobre
lançamento de foguetes, tornou-se comandante em chefe das forças militares
do exército nacional húngaro.166 Mas assistiu à Revolução Húngara ser esma­
gada pelo baluarte do anti-nacionalismo reacionário, com tropas da mesma

163 Wojciech Chrzanowski, O wojnie partyzanckiej, 2a ed., Paris, 1835. Ele enfatizou a importância de
ataques repentinos e emboscadas (pp. 78-79) e defendeu (p. 77) que se preferisse como arma de
fogo de mão preferencial a “carabina curta”, mais potente, à pistola. Até mesmo um monarquista
extremo como Ludwik Bystrzonowski, contribuiu com a discussão sobre rebeliões de partisan. V.
Histoire militaire, pp. 173-174 e nota 16.
164 P. Brock, “The Political Program of the Polish Democratic Society”, Polish Review, 1969, verão, p.
1; Kukiel, “Military Aspects”, pp. 370-372.
165 Escrito por um amigo de Mazzini, Karol Stolzman, Partyzantka; czyli, Wojna dia ludów powstajacych
najwlasciwsza, Paris, 1844. V. também H. Kamienski (pseudônimo Filaret Prawdowski), O prawdach
zywotnych narodu polskiego, Bruxelas, 1844. Lelewel insistia, no mesmo ano, em que a “insurreição
nacional” era “o meio mais seguro de chegar à independência nacional”. Histoire de Pologne racontée
par un oncle à ses neveux, Paris/Lille, 1844, vol. i, p. 328.
166 O notável tratado, Notes sur les fusées incendiaires, foi preparado pelo comandante-em-chefe
liberal da Polonia (e herói dos dezembristas), o Grâ-Duque Constantino. Foi litografado em 1819
e publicado em alemão, em Weimar, no ano de 1820. Ele também publicaria mais tarde um tratado
sobre o uso militar de “máquinas a vapor”. V. L. Komuda, “Constructor and Hero”, Poland, 1973,
dez., pp. 31-32.
298 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Rússia que o havia sitiado em Danzigue, em 1817, e destruído a insurreição


polonesa de que ele havia participado em 1830-1831.
O fracasso do levante de 1846 na Polônia e a insurreição final de 1863
fizeram chegar ao fim o período ítalo-polonês de lições de insurreição heróica.
Foi deixado à posteridade, contudo, o legado bastante negligenciado do mais
original e profético dos teóricos ítalo-poloneses da violência revolucionária,
Henryk Kamienski. Ele deu força ao mito do “povo” ao insistir em que a
revolução nacional era inseparável da revolução social, “pois aquele que
quer atingir seus objetivos deve desejar os meios para tanto”.167 Os meios
de atingir uma verdadeira independência e dignidade nacional residiam em
seu conceito, espantosamente moderno, de “guerra popular”. Esse conceito
foi proposto pela primeira vez como o título da terceira parte de um tratado
publicado em Bruxelas, em 1844, em parte exemplificado com o levante da
Cracóvia que ele ajudara a liderar em 1846, e depois aperfeiçoado no seu
Guerra popular publicado postumamente, em 1866, após seu longo encar­
ceramento e exílio.
Uma “guerra popular” se diferenciava da guerra de partisan, que Kamienski
via como não mais que um instrumento tático de luta por “objetivos secun­
dários”. Uma guerra popular era a luta inteiramente justa de um povo opri­
mido, como o polonês, a envolver uma mobilização total “na qual o número
de combatentes se iguala ao número de habitantes do país”.168 A pequena
nobreza, que desde muito vinha liderando os movimentos de libertação dos
poloneses, deveria ou renunciar a todo privilégio social e se juntar à luta ou
enfrentar punição, inclusive a morte. O fortalecimento do moral era mais
importante que as armas; e, como a idéia de “guerra popular” era inteiramente
nova, seus líderes deveríam de preferência ser forjados entre os camponeses
mais ligados ao solo. Eles devem ser “apóstolos” de uma transformação social
igualitária, além de líderes militares com treinamento tático.
A imagem da centelha revolucionária ganhou um toque ligeiramente mais
moderno com um homem viajado como Kamienski (que viveu em Paris e

167 Katechizm demokratyczny, Paris, 1845, p. 49; citado em Halicz, p. 168. Consultar a seção “Henryk
Kamienski’s ‘People War’” para tratamento detalhado (pp. 156-189).
168 Wojna ludowa przez X. Y. Z., Bendlikon, 1866; citado em Halicz, p. 159. Esse tratado, pioneiro em
seu conceito de independência total e mobilização em massa para a insurreição, foi traduzido para
o francês, para uso da resistência clandestina à ocupação nazista, com o título Insurrection est un
art, trad. J. Tepicht, 1943. V. Walicki, “Problem of Revolution”, p. 36. Kamienski acreditava tanto
na mobilização ideológica como na militar, e logo antes de concluir o seu Guerra Popular, em 1863,
fundou e editou um jornal aperiòdico em Genebra, o qual tinha um nome que depois seria adotado
pelos russos: Prawda (Verdade).
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 299

Bruxelas depois de 1830, e depois de 1846 como exilado na Rússia e como


emigrado na França e na Argélia). A revolução social, insistia, era a “centelha
elétrica que percorre toda a Polônia, deflagrada por um poder mágico”,169 a
qual animaria as massas a derrotar quaisquer meios tradicionais de emprego
da força (e que no futuro libertaria os movimentos nacionais de sua depen­
dência para com ajuda externa ou liderança de emigrados). Com grande
detalhamento — e constante ênfase nos fatores políticos e morais, para além
dos militares —, Kamienski contemplou dois diferentes quadros gerais em seu
conceito de uma guerra popular em quatro etapas. Primeiramente, os levantes
pulverizados iniciais solidificariam sua confiança e sua organização, evitan­
do batalhas campais contra unidades regulares. Em seguida, destacamentos
móveis iniciariam sua ação, aos poucos se fundindo em unidades maiores.
A tática de Kamienski incluía respostas flexíveis correspondentes às formas
que a oposição pudesse assumir, de modo que o poder invasor (e a nobreza
hesitante) jamais pudesse gozar de segurança duradoura. Praticamente não
há tática de guerra de guerrilha moderna, disciplinada ideologicamente (que
incluía até solidariedade transnacional para com o povo pobre da Rússia),
que não tivesse achado lugar no tratado de Kamienski, que em sua forma
final foi escrito tendo em mente os líderes do levante de 1863 — sem jamais,
contudo, chegar até eles.
O único novo escrito teórico de importância do período imediatamente
prévio a 1863 foi Instruções aos insurgentes (1862), de Mieroslawski, que
encorajava os poloneses a pensar em termos anti-russos mais tradicionais,
apesar de idéias novas como a do uso de carros blindados.170 Mieroslawski
era um nacionalista de corte mais tradicional que lutara com Garibaldi e
compartilhara das grandes esperanças depositadas pelos italianos em Na­
poleão ui.
As lições ítalo-polonesas sobre violência sempre trazem influência do pe­
ríodo francês da história revolucionária. O modelo era o da levée en masse
revolucionária de 1793, do qual nasceu uma nova nação. O interesse de
italianos e poloneses por ação bélica era produto direto do treino militar e
dos anseios trazidos pelas eras revolucionária e napoleònica. A Itália ao sul
da Europa e a Polônia ao leste proveram o apoio mais sólido à França revo­
lucionária e à napoleonica. Essas nações continuavam a entreter esperanças
românticas em torno de ajuda material ou espiritual dos franceses.
169 Citado em Halicz, p. 160.
170 Instrukcja powstancza^ Paris, 1862, discutido em Kukiel, “Military Aspects”, pp. 371-373.
300 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Insurreições eram vistas como respostas necessárias àquilo que Angeloni,


no rescaldo de 1820, chamou de “força artificial” e àquilo que Cabet, no
rescaldo de 1830, chamou de “sistema da violência”171 da Santa Aliança.
O sonho ítalo-polonês de insurreição nacional se baseava, em geral, na
expectativa de que a França revolucionária assumiria a liderança. A im­
pressão de que Napoleão havia abdicado dessa liderança foi o que levou,
em 1800, um córsico e um italiano a atacarem-no, no que constituiu a
primeira conspiração revolucionária do período.172 O contínuo descon­
tentamento dos italianos com o fato de franceses rejeitarem o seu próprio
legado revolucionário ocasionou violência periódica em Paris, a culminar
na mais macabra tentativa de assassinato do início do século xix, levada a
efeito por um veterano córsico-italiano da campanha russa de Napoleão,
Giuseppi Fieschi. Em julho de 1835 (no quinto aniversário da Revolução
de 1830), sua versão aperfeiçoada da “máquina infernal” anti-napoleônica
disparou 25 armas simultaneamente contra o Rei Luís Filipe, matando 18
espectadores inocentes e ferindo dezenas de outros, ao mesmo tempo que
errava inteiramente seu alvo.173
A esperança de uma nova revolução na França minguou durante o Se­
gundo Império de Napoleão ui; e a inevitável expressão italiana de amor
revolucionário não correspondido viria, como veremos, com Orsini e sua
tentativa de assassinar o governante francês em 1858. Por fim, quando a
unificação ocorreu em 1859-1861 através de guerra e diplomacia, e não
de uma revolução heróica, o sonho revolucionário morreu na Itália. As
esperanças revolucionárias polonesas foram definitivamente esmagadas
pela pesada repressão russa, em 1863, contra a última de uma longa lista
de insurreições polonesas. A era ítalo-polonesa de violência heróica chegara
ao fim; e a nova e muito diversa tradição russa estava prestes a começar.

Os revolucionários sociais rivais


A tradição rival de revolução social, como dissemos, obteve durante 1830-
1840 menos sucesso do que a tradição de revolução nacional. Líderes
revolucionários sociais eram geralmente intelectuais emigrados e solitários

171 Cabet, Révolution de 1830 et situation présente, 1832, p. 176.


172 Gaubert, Conspirateurs, esp. pp. 47, 57; N. Forssell, Fouché the man Napoleon feared, NY, 1970,
p. 122 ss. O primeiro compio jacobino foi imediatamente seguido pelo primeiro (e mais destrutivo)
compio realista, com a detonação da primeira “máquina infernal”.
173 R. Burnand, L'attentat de fieschi, 1930.
LÎVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 301

divorciados das massas. Fora de Paris e Lyon, mesmo entre os operários ur­
banos havia pouca luta de classe organizada, que dirá consciência proletária.
Ainda assim, uma sensação de revolução social iminente assombrou boa
parte da Europa ao longo da década de 1830. O conservador Tocqueville, no
prefácio de seu A democracia na América, de 1835, empregou a expressão
“revolução social” e dela disse ser “irresistível [...] um fato consumado, ou
em vias de se consumar”.
Houve dois estágios principais no nascimento da tradição revolucionária
social, isto é, na transição das conspirações republicanas do início da década
de 1820 para o comunismo marxista do fim da década de 1840. Primeiro se
deu o aperfeiçoamento da idéia de ditadura revolucionária com Buonarroti
em sua última década de vida, de 1828 a 1837. Durante esse período, o ideal
babeuvista de igualdade e a luta de classes proletária foram ligados um ao
outro por alguns discípulos de Buonarroti — e também pelo seu sucessor
como principal organizador e símbolo da conspiração revolucionária, Au­
guste Blanqui.
A segunda fase, que vai da década de 1830 até 1848, foi dominada por
emigrados, os quais, por um lado, internacionalizaram o impulso rumo à
revolução social e, por outro, estabeleceram seu elo com a classe trabalhadora.
Essa passagem dos revolucionários sociais da conspiração para a ideologia
se deu em Paris, Londres, Bruxelas e Genebra. Nessas cidades, havia relati­
vamente pouca liberdade de expressão, de modo que o intelecto crítico era
forçado a confrontar a realidade de uma nova ordem industrial.

O legado de Buonarroti

O ponto de partida de uma tradição própria e contínua de revolução social


foi a publicação, em 1828 — no nadir das esperanças revolucionárias —, da
extensa obra de Buonarroti dedicada à memória de Babeuf: A conspiração
pela igualdade. Ao divulgar os quase esquecidos babeuvistas,174 forneceu
afinal uma ancestralidade e um modelo para a revolução igualitária. O livro
foi estudado na Bélgica tanto por emigrados quanto por naturais, ambos os

174 A tradução para o inglês feita por Bronterre O’Brien, History of Babeufs conspiracy for equality,
L, 1836, foi em seguida bastante reimpressa e extratada. Diz-se que vendeu 50 mil copias em pouco
tempo (B. Barète, Mémoires, 1844, vol. iv, p. 92). A sugestão de Dommanget de que havia uma
primeira edição inglesa de 1828 (Pages, pp. 12-13), a qual é repetida por Saitta, é refutada por
Garrone, Buonarroti, p. 413, nota 1. A melhor edição da obra original francesa (cujo título completo
é Conspiration pour Pégalité dite de Babeuf, suivie du procès auquel elle donna lieu, et des pièces
justificatives, etc., etc., par Ph. Buonarroti) está editada com prefácio de G. Lefebvre, 1957,2 vol.
302 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

grupos encorajados por Buonarroti a ver em uma organização revolucionária


social a “alavanca arquimediana” com que transtornar o mundo.175
O fracasso de todas as revoluções desde 1789 teve por causa, segundo
percebia Buonarroti, a falta de líderes fortes preparados previamente para
dar poder ao “governo revolucionário dos sábios”.176 Ele repisou a idéia
de Babeuf de delegar autoridade imediatamente a “comissários gerais”
(commisaires généraux) treinados em “seminários” revolucionários e insistiu
na necessidade de uma “autoridade provisória encarregada de completar a
revolução e de governar até que as instituições populares entrem em plena
atividade”.177
Buonarroti defendia que o regime revolucionário não se submetesse às
eleições populares enquanto as mudanças revolucionárias iniciais estivessem
sendo realizadas; deveria, isto sim, ter três funções: (1) “dirigir toda a força
da nação contra os inimigos internos e externos”; (2) “criar e estabelecer
as instituições mediante as quais o povo será imperceptivelmente levado a
exercer real soberania”; e (3) “preparar a Constituição popular que consu­
maria e encerraria a revolução”.178
O objetivo final da revolução era o retorno rousseuniano do homem ao
seu estado “natural” de liberdade, no qual a “vontade geral” prevalece. Assim,
o poder revolucionário deve ser de imediato confiado a uma “inamovível
vontade forte, constante e esclarecida”, a qual “deve dirigir a emancipação

175 Memorando de Buonarroti em comemoração ao Dia da Bastilha, 1828, escrito logo antes da
publicação de seu Conspiração. Saitta, vol. ii, p. 92. Essa metáfora, depois invocada por Lênin, foi
utilizada por Nodier em 1815 (Histoire, p. 28) e por Jean Witt, outro historiador de sociedades
secretas na década de 1830 (Sociétés, p. 6, nota 1).
176 Saitta, vol. ii, pp. 136-139. Buonarroti não inclui a Rússia em sua lista de revoluções fracassadas,
talvez devido ao fato de os dezembristas terem desenvolvido diversas idéias sobre esse assunto (v. M.
Murav’ev, “Idéia vremennogo pravitel’stva u dekabristov i ikh kandidaty”, em Tainye obshchestva,
pp. 68-87). O principal grupo pedia um governo de três meses com poder provisório, durante o qual
a autoridade total seria transferida para a nova assembléia nacional (p. 84); mas alguns dezembristas
contemplavam um governo provisório que realizasse reformas sociais radicais (p. 70).
Não existe certeza alguma de que Buonarroti tenha mantido qualquer tipo de contato com os
dezembristas antes de meados dos anos 1830 através dos irmãos N. e A. Turgenev em Paris (v.,
deste último, “Parizh”, Sovremennik, 1836, n° 1, p. 275), embora Semevsky sugira a possibilidade
de contatos mais amplos (Idei, p. 536).
177 Mazauric, Babeuf, pp. 173-174. O autor revela a sensibilidade comum em leninistas que vivem em
democracias ocidentais para com a relutância que governos revolucionários “provisórios” têm de “se
desfazer”. Ele reprocha ao editor da obra de Babeuf, Lefebvre, por “não distinguir suficientemente a
organização de uma ditadura política e social provisória [...] do período posterior no qual se antevê,
como diz Buonarroti, a crescente participação de todos os cidadãos no sentido de estabelecimento
do estado comunista”, p. 173, nota 1.
178 Saitta, voi. ii, p. 139.
LIVRO II, CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1 848) 303

e preparar a liberdade”.179 “A experiência demonstrou” que os privilegia­


dos são “péssimos dirigentes de revoluções populares” e que “os povos são
incapazes tanto de se regenerar por si próprios quanto de apontar aqueles
que deveríam guiar a regeneração”.180
Buonarroti propiciou um mandato para a existência permanente de uma
ditadura da elite revolucionária e uma licença implícita para que uma po­
lícia secreta exercesse vigilância sobre o futuro. Na versão retrospectiva da
conspiração de Babeuf, o “diretório secreto” tomou a decisão de que “uma
vez que a revolução esteja completa, que não cesse o seu trabalho e que vigie
a conduta da nova assembléia”.181
É quase certo que Buonarroti foi influenciado pela guinada mais autoritá­
ria dos emigrados italianos após o fracasso das revoluções liberais de início
da década de 1820. O teórico da violência Carlo Bianco, cuja visão trazia
muitos dos elementos do pensamento de Buonarroti presentes nesse período,
afirmou que o colapso dos regimes constitucionais do início daquela década
foi facilitado pelas próprias liberdades que eles garantiam. Ambos insistiam
que os revolucionários deveriam estabelecer uma forte autoridade provisória
e que ninguém pudesse “determinar de antemão sua duração”. Em uma lin­
guagem que lembra bastante o hino de louvor de Sorel a Mussolini, Bianco
afirmou preferir um ditador individual: “um condottiero com um coração
que é duro e inacessível a qualquer grito por piedade”.182
A História de Buonarroti era um modelo de polêmica revolucionária
moderna, com sua simplificação maniqueísta de uma história complexa,
tornando-a uma clara batalha cósmica do mal contra o bem: “egoísmo” contra

179 Saitta, vol. i, p. 125. Uma boa discussão geral da origem dessa idéia está em Garrone, “La dittatura
rivoluzionaria”, em Buonarroti, pp. 310-322.
180 Saitta, vol. n, p. 138.
181 Conspiration, vol. i, pp. 114—115.
182 Citado em Garrone, p. 338. Buonarroti defendia “a sabedoria de investir um homem da têmpera
de Robespierre na ditadura”. Conspiration, vol. i, p. 114, nota 1.
Para acesso aos escritos de Bianco sobre a necessidade de um governo provisório forte para governar
a Itália entre o desaparecimento do poder habsburgo e a “perfeita libertação”, v. Pieri, p. 77; e
Bianco, Della Guerra, vol. i, pp. 256-257, bem como outras frases em vol. i, p. 198 ss., e a seção
Dei governo provisionale fino alla perfetta liberazione d’Italia, vol. il, pp. 207-244. Ele argumenta
que a experiência trágica da Espanha depunha contra a dispersão da autoridade pelas assembléias
e contra receber prematuramente embaixadores estrangeiros. Daí a necessidade de um Condottiero
Supremo já no governo provisório: ibid., vol. n, pp. 229-231, 239 ss.
Saitta lança a hipótese de que os Veri Italiani de Buonarroti fossem os mesmos que os Apofasimèni
de Bianco {Buonarroti, vol. i, p. 203, o que é apoiado por E. Regioneri, Belfagor, vol. vi, n° 1,1951,
jan., pp. 112-113). Bianco inclui os Adelfi, os Filadelfi e os Sublimes Mestres Perfeitos de Buonarroti
em sua lista de antecessores especialmente reverenciados: Della Guerra, vol. i, p. 55.
304 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

“igualdade”. Ele desde logo relegou ao campo do egoísmo praticamente todos


aqueles que até então tinham escrito sobre revolução. Em seguida, observava
que “entre os partidos [...] existe um sobre o qual o homem sábio deveria
fixar seu olhar”;183 e esse partido é apresentado como uma espécie de ordem
maçônica superior, “os amigos sinceros da igualdade”.184
Buonarroti fora para Bruxelas em 1824, porque a metade belga do recém-
-criado reino dos Países Baixos era praticamente a única área francofona da
Europa que ainda tolerava extremistas políticos exilados. Muitos revolucio­
nários franceses idosos assentaram residência lá; foi principalmente junto a
revolucionários veteranos, mais velhos, que Buonarroti reuniu o círculo mais
interno de sua organização Monde.
Quando Carlos x abdicou após um conflito com os deputados que acabou
indo parar nas ruas, o monarca constitucional Luís Filipe o sucedeu com
o apoio daquele patrono e símbolo da revolução moderada, o Marquês de
Lafayette. Por mais que fosse chocante, para os reis já entronizados, ver
um monarca ser levado ao trono pelas massas, o espetáculo não era menos
desconcertante para extremistas de esquerda como o ex-ajudante-de-campo
e colaborador de Lafayette na carbonária francesa, Voyer D’Argenson. De
igual modo, a decisão de Jean-Baptiste Teste, um ex-refugiado na Bélgica, de
se tornar ministro do novo rei desagradou seu irmão, o editor Charles Teste.
Assim, D’Argenson e Teste formaram, junto com Buonarroti, nos últimos
anos deste último, uma espécie de triunvirato revolucionário185 — o mais
alto triângulo dos Iluminados, talvez, ou o último círculo interno do Monde.
Aos olhos deles, a frustração da tentativa de instituir uma república — para
não falar em comunidade igualitária — condenava o novo regime francês ao
fracasso já bem antes de sua subserviência ao capitalismo burguês o tornar
um objeto corriqueiro de crítica e sátira.
Quando depois rebentou a revolta, em agosto de 1830, os republicanos
franceses foram encorajados a crer que a onda revolucionária ainda não havia
chegado ao seu cume. Franceses foram à Bélgica defender a revolta; e Charles
Rogier, que tinha muitos contatos com revolucionários franceses, liderou as
183 Conspiration, vol. i, p. 23.
184 Ibid., pp. 30, 38-39. O partido do egoísmo “suspira pelos ricos, pelas vanidades e pela fama de
Atenas”, ao passo que o partido da igualdade “quer a frugalidade, a simplicidade e a modéstia dos
belos dias de Esparta” (p. 25). Admoestações reiteradas acerca dos “falsos amigos da igualdade”
deixam implícita a necessidade de purificação entre os eleitos, caso se vá recriar a “perfeita
unanimidade” (p. 100) do modelo conspiratório de Babeuf.
185 Para uma boa caracterização desse trio, v. Eisenstein, pp. 104-116. O seu livro é algo magro no
que diz respeito aos amigos e atividades de Buonarroti na Bélgica e deve ser complementado pelos
trabalhos posteriores de Kuypers e Garrone.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. RF.VOLUÇÃO SOCIAL (1 830-1848) 305

tropas que partiram de Liège, tornando-se o presidente de um governo pro­


visório. Buonarroti permaneceu em Paris, mas os seus amigos tomaram parte
da agitação que levou à formação de um governo revolucionário provisório
no dia 25 de setembro. Buonarroti e Teste exerciam influência direta, e às
vezes até mesmo controle, sobre Rogier; sobre o ainda mais radical Louis De
Potter, que por pouco tempo ficou à frente do governo; e sobre Felix Bayet,
que era o agente secreto de Buonarroti em Bruxelas.186 Buonarroti incitava
os belgas a dar o “grande exemplo” que a França falhara em dar à Europa
revolucionária:187 a formar “frontes” para a liderança revolucionária por
meio de associações e jornais populares que propagariam as virtudes de um
regime republicano radical188 e a “adiar as eleições [...] se necessário, sejam
ditadores pelo bem do país”.189 Bayet se tornou secretário de uma assembléia
central comprometida a terminar a revolução, e trabalhou com De Potter, o
qual tentou criar um Comitê de Salvação Pública.190
Depois de vários meses de um caos infernal e de diplomacia externa, a Bél­
gica se tornou independente, porém através de uma monarquia constitucional
conservadora, tendo na burguesia empreendedora a sua principal força. O
novo rei, Leopoldo i, era um alemão que havia se casado dentro da família real
inglesa, da mesma forma como — no extremo oposto da sociedade — muitos
operários vinham da Alemanha para trabalhar nas indústrias de tipo inglês da
monarquia burguesa. O legado buonarrotiano de jornais republicanos radicais
e de sociedades secretas afetou a Bélgica ao longo de toda a década de 1830.191
E Bruxelas se tornou o lugar de residência de Karl Marx durante 1845-1847,
quando ele elaborava as idéias do Manifesto comunista, e local de muitos dos
encontros que levaram à formação da Liga Comunista.192
186 A centralidade da influência de Buonarroti é enfatizada por Garrone, “Buonarroti en Belgique et la
propagande égalitaire”, Babeuf et les problèmes, p. 218; importantes cartas de Teste para Rogier
estão em Garrone, Buonarroti, p. 463; Kuypers, Égalitaires, p. 33; Kuypers excele sobre Saitta e
Garrone ao identificar (p. 32) Bayet como o misterioso “bom Henry” a trabalho de Buonarroti.
Lehning dá sua opinião em “Buonarroti et la révolution belge de 1830. Un article inconnu”, Annales
Historiques, 1960, out.-dez., p. 531, nota 9.
187 No raro artigo que Buonarroti publicou anonimamente em Paris no dia 3 de novembro. É reimpressa
em ibid., com uma introdução de Lehning (pp. 530-536) que reforça, mais do que o texto parece
indicai; a natureza reprimida da mensagem.
188 Carta de Buonarroti a Teste de 28 de outubro, em Saitta, voi. ii, p. 115.
189 Citado de L’Emancipation, 2 de novembro, o jornal fundado por Bayet em Bruxelas, em Garrone,
Babeuf, p. 219 (que acresce itálicos sem, no entanto, indicar que o faz); texto original em Kuypers,
p. 29.
190 Garrone, Babeuf, p. 218.
191 Detalhado em Kuypers, pp. 35-66.
192 Garrone em Babeuf, pp. 224-225; C. Andler, Le Manifeste Communiste de Karl Marx et E Engels.
Introduction historique et commentaire, s/d., p. 35 ss.
306 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Após as revoluções na França e na Bélgica, os partidários de Buonarroti


em Paris condenaram não só o fracasso dos novos regimes em proclamar
repúblicas, mas também seu fracasso em se comprometer com reformas
igualitárias imediatas. A idéia de Babeuf e Maréchal de uma vanguarda de
elite que deveria rematar a revolução inconclusa foi revivida por meio de
uma desforra. Sobre a revolução ainda a ser feita, panfleto de De Potter de
1831, predisse que “a primeira revolução realmente social e popular irá de
fato e de uma vez por todas preencher o abismo das revoluções”.193 Teste
insistia em que “a autoridade extraordinária de homens fortes, sábios e
comprometidos” deveria dispor de um poder total interino após qualquer
revolução que ainda viesse a ser feita, a fim de que ajam em prol “do partido
mais avançado, magnético, energético e prudente que houver na sociedade”.194
Quanto ao próprio Buonarroti, ele se voltou para a Itália, onde a revolução
ainda parecia possível. Em 1832, formou uma Sociedade dos Verdadeiros
Italianos com um comitê central {giunta) e “famílias” locais destinadas a dis­
seminar “a virtude social de um povo livre”195 e ao mesmo tempo abastecer
de tropas de choque o alto comando revolucionário. No ano seguinte, esse
grupo se aliou aos Carbonários Reformados (republicanos radicais veteranos
da carbonária francesa original) na Carbonária Democrática Universal: o
último esforço para realizar o sonho de Buonarroti de uma organização revo­
lucionária internacional. Ela mantinha relações discretas com os movimentos
belga, suíço e alemão (e possivelmente com o espanhol e o português), bem
como com a França e a Itália.196 O objetivo era realizar a igualdade “não só
nominalmente, mas de fato”.197
A conspiração revolucionária deu às suas lojas nomes como Jean-Jacques
e Saint-Just, adotou o termo babeuvista phalanx em lugar do termo carbo-
nário vente e pseudônimos, códigos e medidas de segurança que foram se

193 De la Révolution à faire d'après l'expérience des révolutions avortées (também traduzido para o
italiano), citado em Saitta, vol. i, p. 147. Ele se opunha a quaisquer tipos de assembléia, que só
serviríam “para por freios à carruagem da revolução, para matar o impulso do povo” (p. 148).
194 Projet de constitution républicaine et declaration des principes fondamentaux de la société, 1833, em
Saitta, vol. I, p. 151. V. também a carta de De Potter a Teste de 10 de março de 1832, em Saitta, vol.
il, pp. 155-157. O jovem Étienne Cabet também defendeu, em setembro de 1832, um gouvernement
provisoire para fortalecer a segurança após uma revolução e conduzir as eleições depois de “unia
prorrogação suficiente [...] a fim de que os eleitores possam chegar a uma opinião pienamente
esclarecida sobre as qualidades que importa buscar nos deputados”. Révolution de 1830, pp. 93-94.
Mas Cabet, diferentemente dos buonarrotianos, tolerava a monarquia constitucional, pp. 97-98.
195 Dos estatutos da Famiglia em Garrone, Buonarroti, p. 351, nota 2.
196 Kuypers, p. 35 e ss. para estudo detalhado de suas operações na Bélgica; Garrone, Buonarroti, p.
349 ss. para os laços complexos entre essa e outras organizações.
197 Kuypers, p. 44.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 307

tornando mais complexos com a crescente repressão policial. O plano para


uma organização carbonária reformada envolvia dois graus, a floresta e a
montanha — o primeiro a lembrar a carbonária original, o segundo a lembrar
a Montanha radical na assembléia da Revolução Francesa, que agora era
celebrada em razão da crescente admiração por Robespierre em meios aos
colaboradores de Buonarroti. Mas, à altura de meados da década de 1830,
tanto os seus contatos estrangeiros quanto sua organização “universal” já
haviam desaparecido. Vivendo praticamente como um exilado na casa de
Voyer D’Argenson em Paris até a sua morte, em 16 de setembro de 1837,
Buonarroti terminou sua vida — literalmente — mais com as siglas que com
a realidade de uma organização revolucionária.198
Buonarroti viveu o bastante para se tornar uma lenda viva e atrair a ad­
miração dos moços, os quais haviam se desiludido com Luís Filipe da mesma
maneira que Buonarroti havia se desiludido com o Diretório. Muitos líderes
radicais do socialismo na década de 1840 — Cabet, Blanc e Bûchez — ao
que parece mantinham contatos com a venerável “Jean-Jacques” em meados
da década de 1830.199
Buonarroti também influenciou uma nova geração de artistas revolucio­
nários — em especial o pintor revolucionário Philippe-Auguste Jeanron: o
primeiro a representar com realismo o proletariado em cenas revolucioná­
rias.200 Ele, que viria a ilustrar a História de dez anos de Blanc e a dirigir o
Louvre durante os anos revolucionários de 1848-1850, nos anos 1830 atacou
não só a arte oficial do instituto (“a Bastilha dos artistas”), mas também os
imitadores neoclássicos de David (“o velho regime na arte”). Jeanron fez,
em meados dos anos 1830, um retrato assombroso de Buonarroti,201 o qual,
por sua vez, inspirou a declaração de Jeanron, em 1834, de que “Após a
benfazeja tempestade, a igualdade surgirá na terra”.202
O destino de Buonarroti, ao fim, ainda se cruzou com o fantasma e a lenda
de Napoleão. O mais interessante dos novos colaboradores que manteve ao

198 G. Isambert. “Les Anagrammes de Buonarroti”, Le Révolution Française, vol. xxxvn, 1899, pp.
455-462.
199 M. Rousseau, “Filippo Buonarroti et les artistes français sous la monarchie de juillet”, Revue des
études italiennes, 1938, abr.-set., pp. 162-163.
200 Ibid., pp. 163-166; v. também Egbert, Radicalism and the arts, pp. 191-194.
201 Reproduzido em Rousseau, “Buonarroti”, verso da p. 160. V. também, no verso da p. 163, a medalha
de bronze com o perfil de Buonarroti feita pelo escultor (e futuro prefeito do segundo arrondissement
da Paris revolucionária) David D’Angers.
202 De Espérance, 1834, citado em Rousseau, “Buonarroti”, p. 165.
308 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

fim da vida, Jean-Jacques Delorme, era um elo com os bonapartistas sobrevi­


ventes. Jovem provinciano de Loir-et-cher, Delorme sentira o atrativo do que
a lenda napoleonica tinha de mais ligada às tradições locais, e até o fim da
década de 1820 manteve relações simpáticas com círculos que “preferiríam
um Napoleão a um Bourbon, caso não houvesse outra alternativa”.203 O vi­
vido relato que fez de seus contatos com Buonarroti serve de fonte bastante
especial para a compreensão das perspectivas revolucionárias do patriarca
das revoluções.
Delorme viajou a Paris para uma iniciação à maneira dos carbonários, a
qual era selada com o beijo de irmandade de Buonarroti perante 30 membros.
Depois, no início da década de 1830, dedicou-se em grande parte a organizar
“comitês democráticos” nas províncias. O triunvirato de Buonarroti,Teste e
Voyer D’Argenson o aconselhou a ver na adversidade um teste para o com­
prometimento revolucionário: “Que nos consolemos por meio do cultivo da
virtude”, recomendou Buonarroti.204 Concentre o trabalho organizacional na
juventude, onde “não se precisa fazer mais que preservá-la da corrupção”.205
Sobretudo, mantenha a pureza de convicção nos quadros da organização,
ainda que ao custo de reduzir o número total deles.
Ao questionar a hostilidade dos seus mentores revolucionários para com
a transigência, Delorme ouviu de Voyer D’Argenson (depois de um banquete
cerimonial no Montmartre ao fim de 1833) que “as convicções profundas
são intolerantes” e que revolucionários devem manter 66la sévérité de l’esprit
exclusif”.206 Precursor do conceito leninista posterior de oposição “de prin­
cípios”, Buonarroti insistia na separação entre disputas revolucionárias e
disputas pessoais. O senso de dedicação desinteressada daí resultante servia,
por sua vez, para intensificar o desprezo pelos rivais na arena política. “0
puro amor da igualdade”, Buonarroti escreveu em 1834, é o “fio” de Ariadne
que mostrará “o caminho para fora do labirinto”. “Votos sinceros” de com­
prometimento pela igualdade deveríam preceder qualquer atividade política.
Caso contrário, os ativistas revolucionários se tornarão “inimigos do povoe

203 Citado em R. Bouis, “Filippo Buonarroti nei ricordi di un democràtico francese”, Movimento operato,
1955, nov.-dez., p. 889. Esse valioso artigo (não utilizado por Saitta, Garrone e Eisenstein) inclui
longos excertos e discussão das Mémoires d'un prolétaire de Delorme, iniciadas em 1846, mas, ao
que parece, em sua maior parte concluídas antes de 1848, embora nunca publicadas na íntegra. V.
também, à p. 907, laços de buonarrotianos posteriores com agentes bonapartistas.
204 Bouis, p. 895.
205 Ibid., p. 896.
206 Ibid., pp. 897-898.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-1848) 309

da humanidade” e “todas as mudanças políticas serão desilusões e todas as


revoluções, incompletas e viciosas”.207 Agora, até os realistas e bonapartistas
“dizem ser republicanos para enganar os fracos”, escreveu Buonarroti,208
enquanto ele próprio adotava o seu último pseudônimo de “Maximilien”
para manifestar sua admiração por Robespierre. Buonarroti também alertou
para a tentação de se perder em meras discussões. Os revolucionários não
possuem “maiores inimigos que os pretensos eruditos (les prétendus savantes):
essas pessoas, petrificadas pela vaidade, são a aristocracia encarnada”.209
O mais importante dos novos grupos de seguidores de Buonarroti da dé­
cada de 1830 foi a organização revolucionária polonesa fundada na Ilha de
Jersey em 30 de outubro de 1835: a Povo Polonês (Lud Polski). Esse grupo
defendia a abolição da propriedade privada, subdividia-se em comunas e
publicou inúmeros manifestos e denúncias contra reformistas moderados.
Eles se diziam “discípulos de Buonarroti” e foram “os primeiros [...] a acei­
tar publicamente como seus os ensinamentos dele”.210 Tomaram por lema a
expressão ïégalité des conditions sociales de Voyer D’Argenson e defende­
ram uma “ditadura do povo” provisória para, após a revolução, educar as
pessoas por meio “do terrorismo, do uso da espada para dar realidade ao
princípio, da intolerância para com tudo que agora ou em qualquer época
fira esse princípio ou possa prejudicar nossos objetivos”.211
O movimento no sentido de idéias revolucionárias sociais nos anos 1830
pode ser ilustrado vividamente por meio da breve carreira de Simon Konarski,
o qual, de maneira independente dos buonarrotianos, levou a mentalidade
revolucionária polonesa ainda mais longe ao leste e ainda mais fundo no
povo.212 Estudante talentoso pertencente a uma família aristocrática de calvi-

207 Ibid., p. 901.


208 Ibid., p. 896.
209 Ibid., p. 911.
210 Citado a partir de documentos fundamentais (H. Temkinowa (ed.), Lud Polski: Wybór dokumentów,
Varsóvia, 1957, p. 227) em P. Brock, “The Socialists of the Polish ‘Great Emigration’”, A. Briggs
e J. Saville (ed.), Essays in Labour History, L, 1960, p. 146. Esse artigo (pp. 140-173) contém
documentação inestimável de materiais em inglês e polonês sobre as influências revolucionárias
ocidentais na emigração polonesa. Elementos suplementares são fornecidos em L. Zielinski, Emigracja
polska w Anglii w latach 1831-1846, Gdansk, 1964.
211 Citado em Brock, “The Socialists”, p. 148. V. também seu “The Political Program of the Polish
Democratic Society”, The Polish Review, 1969, verão, p. 8; e Populism, p. 99, nota 2.
212 O estudo fundamental de S. Kieniewicz, Konspiracje galicyjskie, 1950, é convenientemente resumido
e acrescido de bibliografia suplementar em artigo do mesmo autor publicado em Polski Slownik
biograficzny, 1968, voi. xiii/3, pp. 477—479, no qual esse relato se baseia. O nome do jomal, Meia-
Noite (Pólnoc), também pode ser traduzido como Horte,
310 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nistas poloneses que havia empobrecido, Konarski lutara jovem na Revolução


Polonesa de 1830-1831. Após um breve período de prisão, emigrou para a
França e a Bélgica, onde se tornou um protegido de Lelewel e um membro
da Jovem Polônia. E assim se tornou desde logo um revolucionário nacional
prototípico — acorrendo à Suíça para participar da malfadada invasão da
Sabóia intentada por Mazzini, sempre tendo consigo sua pistola e uma flauta
para tocar canções patrióticas.
Mas só a causa nacional não era suficiente para satisfazer seus desejos
revolucionários; assim, no outono de 1834 — nada menos que um ano antes
da formação da Povo Polonês — ele desenvolveu a sua própria forma de
revolução social. No seu jornal parisiense bissemanal, Meia-Noite, defendeu
não só a derrubada do tzarismo, como ainda a expropriação dos donos de
terra, com doação de terrenos aos camponeses, assim os libertando, e com
igualdade de classes. Também seguiu a nova praxe buonarrotiana de planejar
um governo revolucionário provisório em seu texto “O Estado de Transição
e a Organização Final da Sociedade”.
Em 1835, retornou em segredo à Polônia e estabeleceu uma organização
revolucionária na Cracovia, a Sociedade do Povo Polonês (Stowarzyszenie
Ludu Polskiego), em seguida foi para o Oriente a fim de organizar células
revolucionárias na Lituânia, na Bielorrússia e na Ucrânia. Pela vasta área que
ia do Mar Bàltico ao Mar Negro, Konarski estendeu uma teia conspiratória
que se estimava ter cerca de três mil participantes — e que logo se tornou
talvez a primeira organização puramente revolucionária a criar um círculo
especial e separado de mulheres.
Preso em Vilnius em maio de 1838, Konarski se mostrou resistente à
tortura, converteu seus guardas russos e teria provavelmente escapado se
não tivesse insistido em que todos os outros prisioneiros fossem libertados.
Em um verso de despedida escrito na prisão para a sua noiva, logo antes de
ser executado por um pelotão de fuzilamento em 25 de fevereiro de 1839,
Konarski escreveu: “Não quero ir para o céu enquanto meu povo fica na
escravidão”.
Esse revolucionário por excelência encarou, assim, uma desesperança
que ia deste mundo ao próximo. Ele tinha criado — entre outras coisas — o
primeiro movimento revolucionário de estudantes a deitar raízes dentro da
Rússia. Tamanho era o medo que se tinha do círculo de estudantes que o
seguiam que a Universidade de Kiev foi fechada por um ano inteiro. A Rússia
LLVRO TL CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1 «30-1 848) 311

Imperial de 1839 — como notou de maneira eloqüente o famoso livro de


Gustine daquele mesmo ano, Rùssia213 — revelou-se o coração da repressão
européia. Seria, claro, nessa mesma Rússia que a verdadeira revolução social,
confusamente pressagiada pelo movimento de Konarski, viria a se realizar.

Blanqui

Se Buonarroti tinha se tornado o venerável ancião da revolução social na


França nos anos 1830, fato é que a causa se identificava mais profundamente
com o jovem Auguste Blanqui. Blanqui concebia o movimento revolucioná­
rio como uma força de educação das massas, e não de purificação dos seus
membros; ele estava em melhores condições de dar emprego revolucionário
às novas possibilidades de agitação política sob a nova monarquia constitu­
cional. Mantendo viva a tradição buonarrotiana de organização hierárquica
secreta, deu conteúdo social ainda mais concreto ao ideal igualitarista.
Blanqui descendia de uma família do norte da Itália (Bianchi-Blanchi-
-Blanqui), e se juntou à versão francesa da carbonária em sua época de
declínio.214 Seu interesse por questões econômicas foi despertado pelo seu
irmão mais velho, o economista Adolphe Blanqui, e é possível que também
pelo economista-ideologo pioneiro Jean-Baptiste Say, cuja utopia socialista
de 1799, Olbie, previa o banimento de todos os tiranos, parasitas e padres.215
Ferido três vezes nos protestos das eleições de 1827, Blanqui partiu a pé
com uma bolsa para o então quase obrigatório “rendez-vous de amor” pela
Grécia.216
Suas caminhadas românticas, contudo, levaram-no no máximo até as
conservadoras Itália e Espanha, onde intensificou seu ódio por monarcas e
padres. Retornou a Paris a tempo da Revolução de Julho, que marcou sua
imaginação: “Ninguém poderia esquecer a velocidade maravilhosa com que
a cena mudou nas ruas de Paris, como se num coup de théâtre^ como roupas
comuns substituíram vestes formais num piscar de olhos, como se uma vari­
nha de condão fizesse aquelas desaparecem e surgirem estas outras [...]”.217

213 Marquês de Gustine, Russia, L, 1854 (publicado originalmente em Paris, 1839).


214 M. Dommanget, Auguste Blanqui des origins à la révolution de 1848, Paris/Haia, 1969, pp. 11-12,
37-38.
215 Ibid., pp. 32-33.
216 Ibid., p. 43.
217 Ibid., p. 63.
312 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Depois dos “três dias gloriosos”, a única tarefa revolucionária restante


era “recolher o butim”. O fracasso da liderança revolucionária nacional em
fazê-lo deu a Blanqui um senso de missão permanente: prover liderança a
uma revolução social popular. Estava determinado a impedir a “usurpaçào
indigna” das revoluções por oportunistas políticos, a vitória de les hommes
du comptoir [os homens do escritório] sobre les hommes des ateliers [os
homens da oficina].218
Desde o começo, Blanqui sentiu uma profunda impaciência com a ver­
borragia. Passou a atuar junto aos republicanos radicais dos Amigos do
Povo, que se formara durante a Revolução de 1830, “para garantir ao povo
os direitos que acabaram de conquistar”. Pregou o sufrágio universal e a
promulgação, em sua íntegra, da Constituição jacobina radical de 1793.219
No seu julgamento, em 15 de janeiro de 1832 (foi absolvido), Blanqui deu
início à tradição revolucionária moderna de usar o tribunal como um pódio
para a profession de foi revolucionária. À pergunta “Qual é o seu estado
[état]?”, ele respondeu “proletário”. Quando o presidente da corte insistiu
em dizer que isto não era um estado, Blanqui retrucou: “Como pode não
sê-lo? É o estado ao qual pertencem trinta milhões de franceses que vivem
de seu trabalho e estão destituídos de direitos políticos”.220
Após a absolvição de Blanqui no verão de 1832, aumentaram os protestos
dos Amigos do Povo em defesa de igualdade social bem como civil. Tendo
por pano de fundo um levante proletário em Lyon e inquietação por toda
parte, Blanqui elaborou não só uma teoria da revolução social baseada na
luta de classes, como ainda a justificação da liderança de uma elite intelectual.
Blanqui insistia em que inteligência mental e trabalho físico eram necessidades
inter-relacionadas, a fim de que uma revolução obtivesse sucesso: “O trabalho
é o povo; a inteligência é o homem devotado que o guia. Como poderia a
violência brutal do privilégio prevalecer contra essa coalizão invencível [...]”?
Eis aqui, em essência, o chamado a uma intelligentsia revolucionária: a
“inteligência” não é só uma força mental, e sim um grupo de pessoas que
juraram obediência à justiça social.221
218 Ibid. As memórias inéditas do seu sobrinho Lacambre (ibid., p. 61) contrapõem Blanqui aos
“oportunistas”.
219 Tchernoff, Le parti, p. 237 e ss.
220 Ibid., pp. 270-271, publicado originalmente em Procès des quinze, 1832, pp. 77-86.
221 Dommanget, Blanqui des origines, p. 138. A passagem aparentemente foi escrita no início de
1834 (pp. 129-130). Blanqui, em “L’intelligence, ce sont des hommes de dévouement...”, define
“intelligence” corno as pessoas dedicadas ao pensamento e à revolução. O uso pejorativo alemão
LIVRO IT, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 313

À altura de 1834, a maior parte dos revolucionários transferira suas


atividades para a Sociedade dos Direitos do Homem. Essa organização era
de amplitude nacional, com livre associação sob um comitê central e com
seções de dez a vinte membros eleitos por voto majoritário. A sociedade
reunia grupos locais que lutavam por liberdades civis e republicanismo; essas
filiais locais assumiam nomes tão respeitáveis como Washington e Estoicis-
mo e tão perturbadores como Poder Revolucionário, Morte aos Tiranos e
Buonarroti.222 Foi a primeira sociedade nacional a estender suas atividades
educacionais até a classe trabalhadora.
Foi principalmente contra a força crescente dessa organização amorfa que
Luís Filipe, no início de 1834, dirigiu novas leis restringindo os direitos de as­
sociação e de imprensa. Esse ato fez com que os revolucionários republicanos
adotassem postura mais vigorosa e precipitou novas perturbações. A polarização
entre os extremos prosseguiu com uma nova onda de prisões. No ano seguinte,
um bandoleiro córsico veterano de guerra praticou, junto a dois membros da
Sociedade dos Direitos do Homem, uma tentativa sangrenta, mas fracassada,
de assassinar Luís Filipe e seus filhos usando sua “máquina infernal”.
A repressão que se seguiu levou os republicanos a passar de novo de so­
ciedades abertas a sociedades secretas; e as prisões de Luís Filipe se tornaram
centros de recrutamento para uma nova onda de organização revolucionária
liderada por Blanqui.
Blanqui dirigiu, sucessivamente, duas organizações conspiratórias, a
Sociedade das Famílias e a Sociedade das Estações, nas quais nasceu, sob
muitos aspectos, a moderna tradição revolucionária e social. O nome “famí­
lia” advinha provavelmente da sociedade secreta italiana de Buonarroti;223
e sua estrutura de cinco membros vinha dos círculos estudantis franceses de
início da década de 1820 onde Blanqui fizera seu aprendizado revolucionário.

Intelligenz-Intelligenzen durante a Revolução de 1848-1849 soa mais próximo do russo intelligent-


intelligentsia (R. Pipes, “‘Intelligentsia’ from the German ‘Intelligenz’? A Note”, Slavic Review, 1971,
set., pp. 616—617), mas o uso positivo de Blanqui está mais próximo em significado do emprego
revolucionário russo dos anos 1860.
222 Tchernoff, pp. 289-292, e Eisenstein, p. 121 ss., reúnem argumentos no sentido de que Buonarroti
tentou agir por meio dessa organização. V. a sua “Elegia à Igualdade” especialmente destinada à
sociedade em Saitta, vol. ii, pp. 157-160.
223 Tchernoff em geral parece subvalorizar Buonarroti como influência e, por outro lado, supervalorizar
Saint-Simon. Dommanget (Blanqui. Des origines, pp. 151-154) realiza a mais completa discussão do
impacto elusivo, porém inquestionável de Buonarroti sobre os blanquinistas, mas não contempla a
possibilidade de inspiração quanto à idéia de “família”. S. Bernstein (Auguste Blanqui and the art of
insurrection, L, 1971, pp. 45-46) se arrisca mais que Dommanget quanto ao alcance da influência
buonarrotiana.
314 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Fundadas no verão de 1834, as famílias alcançaram 1.200 simpatizantes —


muitos deles trabalhadores pertencentes às “legiões revolucionárias” que
haviam jurado manter vivas as tradições insurrecionais de 1834.224 A orga­
nização hierárquica secreta com freqüência constituía uma célula familiar
central de doze membros. Em cada seção havia cinco ou seis famílias; e duas
ou três seções constituíam um quartel, cujos líderes estabeleciam elo com um
comitê central secreto por meio de um agente revolucionário. Um júri de três
homens investia de autoridade especial os membros ocultos; e o catecismo
para novos membros reiterava a mensagem buonarrotiana de que o egoísmo
era “o principal vício da sociedade” presente e a “igualdade” o “princípio
básico da sociedade” como deveria ser. Os “novos aristocratas” governavam
através da força e do dinheiro; mas os revolucionários encontraram novos
aliados no "proletariado”, cujo contingente era agora “similar ao dos servos
e negros”. A última das quinze perguntas e respostas para o pretendente a
membro da família era: “E preciso fazer uma revolução política ou uma
revolução social? — E preciso fazer uma revolução social”.225
A Sociedade das Famílias foi esmagada por meio de infiltração policial em
1836. Quando foi solto da prisão em 1837, Blanqui a reorganizou como a
Sociedade das Estações com uma composição mais proletária e um tipo mais
ornamental de estruturação, que evocava a idéia dos revolucionários como
agentes misteriosos de uma ordem natural mais alta. A célula básica era uma
semana composta de seis homens e um chefe chamado Domingo. No nível
superior seguinte, quatro semanas compunham um mês de 29 homens e um
chefe chamado Julho; três meses constituíam uma estação com um chefe
chamado Primavera. Quatro estações perfaziam um ano com um chefe que
era o agente supremo da revolução numa dada área. Acima das Estações, que
em seu topo incluía cerca de 900 membros, ficava um triunvirato de líderes:
Blanqui, Armand Barbès e Martin Bernard.226

224 Essas estimativas, mas não as relações estabelecidas e as conclusões tiradas, são feitas por Tchernoff
(pp. 89-90, 374, 380 e ss.
225 O texto com as perguntas e respostas está em Dommanget, Blanqui. Des origines, p. 149; v. também
discussão, p. 147 ss.
226 Esses últimos dois elementos exemplificavam algo que viria a caracterizar os movimentos
revolucionários sociais no século xx: o pária racial e o intelectual alienado. Barbès era um crioulo
extravagante originário de Guadalupe que pôs o seu treinamento militar em Paris a serviço da
insurreição revolucionária. Martin Bernard se entusiasmou sucessivamente com a Revolução Grega,
o saint-simonismo e o fourierismo antes de se tornar um tipógrafo a trabalhar diretamente para a
organização de Blanqui.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 315

Esse triumvirato tentou não só liderar a luta revolucionária como também


um governo revolucionário provisório.227 Em uma insurreição iniciada no dia
12 de maio de 1839, um domingo, as Estações prenunciaram a idéia bolche­
vique de atacar diretamente os centros de poder: transporte e comunicações.
Com plano premeditado, tomaram o Hotel de Ville e o Palais de Justice;
mas a falta de grande apoio popular (o “silêncio das ruas”) tornou efêmera
a vitória. Com seus líderes condenados à prisão no Monte Saint-Michel, a
tradição de conspiração revolucionária chegou praticamente ao fim em Paris.
Contudo, essa tradição secreta continuou a se desenvolver em regiões à
margem da lei. Naquele mesmo ano de 1839, grande parte da Irlanda viveu
o terror dos Filhos Irlandeses da Liberdade e dos Filhos de Shamrock ou
Sociedade do Laço. Esta última organização revolucionária secreta tentara
impor disciplina profissional a uma velha e venerável tradição irlandesa de
violência agrária, ao estabelecer irmandades regionais nas quais um mestre
exercia poder sobre três membros, os quais por sua vez comandavam doze
irmãos.228 Senhas, sinais de reconhecimento e insígnias mudavam a cada
estação; e espancamentos cuidadosamente selecionados (“descomposturas”)
eram realizados por líderes como Edward Kennedy, que depois se tornaria o
principal delator no processo deles em Dublin.229 Havia um comitê central em
Dublin230 que, aparentemente, nutria alguma esperança de formar alianças
com os escoceses e até com os ingleses.231
O lacismo era temido não só como uma espécie de contra-governo na
Irlanda, mas também como um instrumento de luta de classes dentro do
Reino da Grã-Bretanha. Ao condenar o principal líder em 1840, o juiz falou
da “proteção da classe trabalhadora contra ser ludibriada no assentimento
a crimes que jamais teve em mente”.232
Diferentemente da Sociedade das Estações de Blanqui, a Sociedade do
Laço não intentou nenhum golpe político. Sucedeu-a, nos anos 1840, a Jo­
vem Irlanda, que, como vimos, estava ligada diretamente a Mazzini e a outra

227 Bernstein, pp. 81-83.


228 Lennhof, pp. 141 ss. Esses aspectos estruturais e organizacionais são negligenciados em um estudo
recente de J. Lee, “The Ribbonmen”, em T. Williams (ed.), Secret societies in Ireland, Dublin, 1973,
pp. 26-35.
229 V. M. Martyn, Ribbonism in Ireland: An authentic report of the trial of Richard Jones, Dublin, 1840,
pp. 50 ss. PU.
230 Ibid., p. 16.
231 Ibid., pp. 15-19.
232 Ibid., pp. 139-140.
316 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tradição revolucionária, o nacionalismo romântico; e depois, na década de


1850, veio a Irmandade Republicana Irlandesa (chamados de fenianos, em
remissão aos guerreiros pré-cristãos), que em grande medida foi estruturada
a partir do modelo carbonário rival de conspiração republicana.233 Assim,
dentro de sua própria e ininterrupta tradição revolucionária, a Irlanda expe­
rimentou uma típica alternância entre revolução nacional e revolução social,
entre os modelos mazziniano e buonarrotiano de guerra política contra a
ordem estabelecida.

Emigrados alemães

Uma década após a morte de Buonarroti em 1837 e oito anos depois do


eclipse de Blanqui, a tradição revolucionária social deu à luz a Liga Comu­
nista. Um pequeno grupo de jovens alemães emigrados criou essa efêmera,
mas histórica organização. Eles deram prosseguimento à luta, dentro da
emigração alemã, “entre republicanos nacionais e republicanos comunistas”234
e forjaram em Karl Marx um líder para esta última ala. Marx fortaleceu
toda a ala revolucionária social da Europa lhe dando um arsenal ideológico
e uma perspectiva estratégica que jamais possuira antes.
Os palcos para esse drama alemão foram os centros metropolitanos li­
berais do mundo não-germânico: Paris e Londres — e, em menor medida,
Bruxelas e Genebra. Nesses lugares a liberdade de expressão e de reunião era
mais ampla que em qualquer outra parte, e a situação precária do crescente
proletariado industrial, a mais inescapável. Esses centros cosmopolitas e
plurilíngües do capitalismo burguês serviram de solo fértil para o obstinado
secularismo que afinal prevaleceria no Manifesto de Marx. A primeira etapa
de estabelecimento de elos entre os intelectuais emigrados e os trabalhadores
nativos, contudo, deu-se com a nova onda de religiosidade romântica que
perpassou os próprios intelectuais ao fim dos anos 1830 e início dos anos 1840.
O entusiasmo com idéias religiosas ajudou a certificar os revolucionários
sociais de que uma transformação total da sociedade ainda era possível mes­
mo numa época de repressão e desilusão com os experimentos dos primeiros
fourierianos e saint-simonianos. Ao mesmo tempo, as imagens religiosas
permitiam aos revolucionários se comunicar de uma nova maneira com as

233 Lennhof, pp. 146-147.


234 Descrição feita por uma fonte contemporânea excepcional, Karl Ewerbeck, chefe da seção parisiense
da Liga dos Justos e principal popularizador alemão de Cabet: L'Allemagne et les allemands, 1851.
p. 589.
LIVRO TI, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 317

massas ainda pias. Isso foi importante para a construção de uma base para as
organizações revolucionárias de maior envergadura. Também foi importante
psicologicamente por prover laços humanos a intelectuais desenraizados em
uma cidade impessoal. A solidariedade entre pequenos grupos — relações
humanas face a face — era uma necessidade profunda para líderes sensí­
veis e solitários. Respondeu a essa necessidade, particularmente na Itália, o
pequeno bando revolucionário, como um substituto da família, com rituais
quase religiosos.
Alguns dos novos exilados políticos estavam, contudo, atrelados fortemente
a idéias, desligados de fidelidades locais e tomados por uma visão revolucio­
nária que era — para usar a palavra favorita daquela década — universal.
No início dos anos 1840, Flora Tristan, a autora franco-peruana e totalmente
desenraizada das Peregrinações de uma Pária, elaborou em Londres o primei­
ro plano para uma aliança proletária de toda a Europa, a Union Ouvrière
[União Trabalhadora].235 No início dos anos 1850, emigrados continentais
em Londres que se designavam “os fora-da-lei” (proscrits) estabeleceram uma
aliança com nacionalistas revolucionários para constituir uma “república
universal”. Essas foram as primeiras de uma série de tentativas de exilados
políticos de construir uma organização ecumênica, o que por fim conduziría
à Primeira Internacional.236
Um certo gosto pela desordem começou a infetar os intelectuais. Flora
Tristan, por exemplo, defendeu uma “união [puramente] intelectual” dos
trabalhadores, mas queria que esta fosse movida pelo “fogo no coração”, de
modo que pudesse se constituir num “tição dentro do sistema”. À sugestão
de que alguém deveria acender esse tição, ela respondeu: “Não antes que
se tenha certeza de que o fogo será inapagável”.237 Quanto maior fosse o
sonho de irmandade, maior era, com freqüência, a necessidade pessoal de
uma “família” protetora ou de — para citar outra imagem de Flora Tristan
— uma “rede”.
Foi principalmente em meio aos alemães que ocorreu a passagem da
perspectiva nacional para a perspectiva social “universal”. Desiludidos com
a virada reacionária do seu próprio novo líder nacional, Frederico Guilherme
235 J. Puech, La vie et 1’ouevre de Flora Tristan. 1803-1844 (l’union ouvrière), 1943, p. 423.
236 V. o jornal que publicaram, Proscrit: Journal de la république universelle, e discussão feita em A.
Zévaès,uLes proscrits français en 1848 et en 1851 à Londres”, La Révolution 1848,1924, jan.-fev.,
p. 358 ss.
237 Do relato inestimável, baseado nos discursos dela em uma reunião no verão de 1843, publicado em
A. Ruge, Zwei Jahre in Paris, Leipzig, 1846, pp. 94-95.
318 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

IV da Prússia, os alemães estavam de qualquer modo inclinados a alargar suas


vistas em razão de suas tradições de especulação teológica e filosófica — e
também pela ausência de uma subcultura nacionalista de emigrados, como
a tinham os poloneses e italianos em Paris e Londres.
Certamente, o movimento revolucionário em meio aos emigrados alemães,
assim como em toda parte, principiara nacionalista, com a formação em 1832
de uma União do Povo Alemão em Paris e, no ano seguinte, em Genebra, de
uma Jovem Alemanha filiada à Jovem Europa de Mazzini. Muitos eram vete­
ranos das malfadadas revoluções alemãs de 1830; outros tinham se juntado
aos nacionalistas poloneses emigrados no Festival de Hambach de 1832 antes
de se estabelecerem com eles nos arredores de Paris ou Genebra. Na Suíça,
aonde por razões lingüísticas tendia a ir a maioria dos primeiros emigrados
alemães, a religiosidade de Lamennais e Mazzini tendeu a ser dominante.
Aqueles que foram para Paris, contudo, eram em sua maioria intelectuais
seculares vindos da Renânia atraídos pelo exemplo da revolução vitoriosa
na França e prontos a imitar as novas organizações que se espalhavam por
Paris “como cogumelos depois da chuva”. Após as medidas repressivas de
1834, os radicais alemães em Paris acompanharam os seus pares franceses
no movimento rumo a organizações mais extremistas, assim fundando em
julho de 1834 a Liga dos Fora-da-lei (Bund der Geächteten). O seu líder,
Theodore Schuster, era menos explicitamente revolucionário que a sua con­
traparte francesa, Blanqui, mas ao que parece se inspirou diretamente na
última fantasia de Buonarroti de uma Carbonária Democrática Universal.238
A estrutura hierárquica de Schuster tinha “tendas” ou fundadores, os quais
iam subindo por acampamentos provincianos até chegar ao foco central ou
ponto em chamas.239
A Confissão de Fé de um Fora-da-lei de Schuster, de 1834,240 foi talvez
o primeiro exemplo de um retrato da revolução vindoura como algo a ser

238 W. Schieder, Anfänge der deutschen arbeiterbewegung (Die Auslandsvereine im Jahrzehnt nach der
Julirevolution von 1830), Stuttgart, 1963, esp. pp. 22-24.
239 Andler, Manifeste, p. 8 ss. Também C. Wittke, The utopian communist, a biography of Wilhelm
Weitling, Baton Rouge, 1950, p. 21, sobre Zelte ou Hütten, Kreislager e Brennpunkt. Os estatutos
dos Geächteten estão em L. Ilse, Geschichte der politischen Untersuchungen welche... in den Jahren
1819 bis 1827 und 1833 bis 1842 geführt sind, Frankfurt/Main, 1860, pp. 571-579.
240 Glaubensbekenntnis eines Geächteten, Paris, 1834. Esse panfleto raro de 12 páginas foi reimpresso
em W. Kowalski, Vorgeschichte und Entstehung des Bundes der Gerechten, 1962, p. 183 ss. Sobre
laços internacionais e influências, v. Garrone, Buonarroti, pp. 230-427; Mikhailov, Istorila, pp-
37-40; e (sobre o papel de um maçom de Heidelberg que, aparentemente, conhecia Buonarroti) W.
Koppen, Jacob Venedy, Frankfurt/Main, 1922.
LIVRO lí, CAPÌTOLO 6: REVOLUÇÃO NACIONAI VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 319

criado necessariamente pelos renegados da sociedade. Ele sugeriu que os


exilados rejeitados e os fora-da-lei proveríam o poder básico da revolução.
Bakunin se apropriou dessa idéia no início da década de 1840,241 e depois a
vulgarizou entre os revolucionários populistas russos.
Schuster, contudo, estava a prenunciar mais o conceito marxista de uma
revolução proletária do que a idéia romântica de um motim de bandoleiros.
No seu jornal, Os Fora-da-lei, que seguiu sendo publicado até a abolição de
sua irmandade em 1836, Schuster falou não só de igualdade social buonar-
rotiana, mas também de uma inevitável luta de classes. Defendeu a criação
de cooperativas de produtores como meio de proteger os pobres e fortalecer
sua solidariedade.242 Ele e seus colaboradores viram com ceticismo os ideais
de republicanismo e liberdade civil dos franceses. O fato de tenderem a ter
origem na classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, possuírem nível educacional
relativamente elevado predispôs os alemães a uma abordagem mais concreta
e econômica dos problemas de sua época. Vendo que esses problemas eram
comuns tanto à França como à Alemanha, afirmaram que as mais profundas
divisões na Europa eram agora entre classes sociais.243 Schuster defendeu a
intervenção do governo, por meio de uma “república cooperativa”, para
inviabilizar o mando dos capitalistas sobre os trabalhadores.244
Os Fora-da-lei foram a primeira organização internacional de revolu­
cionários sociais. Com cerca de cem membros em Paris e pelo menos 70
ou 80 na área de Frankfurt-am-Main,245 logo desenvolveram seu casulo
conspiratório. Schuster conduziu um grupo de volta ao campo revolu­
cionário nacional através de uma nova Liga dos Alemães;246 mas a maior
organização a vir a seguir foi a Liga dos Justos, que elaborou seus estatutos

241 Steklov, Bakunin, vol. i, p. 144. Essa idéia pré-marxista da revolução como motim de presos se
originou em Weitling e viria a reaparecer brevemente nos anos 1960 com a versão pós-marxista e
radical da “revolução das ruas” a ser dirigida pelo Lumpenproletariat fora-da-lei, visão essa nutrida
por um Elridge Cleaver e um Franz Fanon. V. E. Cleaver, “On the Ideology of the Black Panther
Party”, The Black Panther, 6 de junho de 1970, p. 15; implicações deduzidas a partir de Wretched
of the earth, de Fanon, são discutidas em ibid., pp. 12—14; desenvolvimentos em B. Franklin, “The
Lumpenproletariat and the Revolutionary Youth Movement”, Monthly Review, 1970, jan., esp. pp.
19-20.
242 V. H. Schmidt, “Ein Beitrag zur Geschichte des Bundes der Geächteten”, Die Neue Zeit, vol. xvi,
1898, vol. I, p. 150 ss.; sobre o Nationalwerkstätte, v. Schieder, p. 196 ss.
243 Andler, p. 12 ss.; Schieder; pp. 223-224.
244 Em razão de todo seu radicalismo social, Schuster poderia ter colaborado com qualquer um dos
três governos (ou mesmo com todos eles). V. Mikhailov, ïstoriia, pp. 37-40.
245 Silbernagl, “Verbindungen”, pp. 808-809.
246 Ibid., p. 811 ss.
320 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

em Paris no momento em que os Fora-da-lei se desarticulavam ao fim de


1837 e início de 1838.
A nova organização possuía estrutura menos hierárquica e respondia mais
diretamente aos interesses da classe trabalhadora do que os Fora-da-lei. Em­
bora sua organização federativa e suas demandas sociais lembrassem as da
Sociedade das Estações de Blanqui, surgia ali uma nova cepa de democracia
interna. Os oficiais eram agora eleitos localmente, em vez de designados pelo
centro dirigente, e ordens que violassem a consciência pessoal podiam ser
ignoradas.247 Dez membros formavam uma comuna, dez comunas formavam
um condado. Os delegados de todos os condados constituíam um saguão
(halle), o qual deveria eleger tanto um comitê executivo encarregado da
direção política quanto um comitê de assistência encarregado de dar apoio
material e aconselhamento dentro da sociedade de mil homens.
Não mais satisfeitos com os direitos políticos abstratos da tradição re­
publicana francesa, a Liga dos Justos alemã insistiu, como a Sociedade das
Estações, no “direito de existência” e de educação, assim como no direito ao
voto. Eles deram ainda mais força à defesa buonarrotiana de uma ditadura
revolucionária provisória, valendo-se de uma metáfora médica: “Uma vez
que a sociedade se gangrenou, o povo precisará — para chegar a um estado
saudável — de poder revolucionário durante algum tempo”.248
Aí fica dada a pista para as futuras amputações a serem feitas na sociedade
por cirurgiões autonomeados. A imagem orgânica de sociedade desafiava
implicitamente o conceito livre e contratual da política caro aos revolucio­
nários republicanos. Logo se foi abrindo uma fissura entre os defensores da
agitação política e os partidários de uma revolução social que criasse uma
“comunidade de bens”. O primeiro grupo (cujos integrantes eram chama­
dos de marceneiros ou carpinteiros em razão das ligações de alguns de seus
líderes com corporações de ofício) se opunha à facção mais revolucionária
(chamados de alfaiates ou sapateiros). A divisão entre reformistas políticos
e revolucionários sociais surgia parelho ao cisma, na França, entre republi­
canos radicais, os quais almejavam ganhos para os trabalhadores através
do sistema político, e revolucionários sociais como Blanqui, que desejavam
simplesmente derrubar esse sistema.
247 V. particularmente artigos 11 e 25 dos Estatutos da Liga (com mais freqüência designada “Liga da
Justiça, Gerechtigkeit”, do que “dos Justos, Gerechten”, como a história os registra) a partir do texto
presente em H. Förder et al. (ed.), Bund der kornmunisten, 1970, vol. i, pp. 92-98, e comentários,
pp. 993-995.
248 Citado em Andler, p. 22.
IIVRO n, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 321

Um membro de central importância da facção mais extremista dos alfaiates,


pertencente tanto aos Fora-da-lei como aos Justos, era Johann Hoeckerig,
que foi um protegido e hóspede de Buonarroti nos últimos dias de vida deste.
Hoeckerig fundara um jornal radical franco-alemão em 1836 e, posteriormente,
levaria um número considerável de alemães para a atividade revolucionária
e maçônica em Paris — e, nisso indo além de Buonarroti, que acreditava em
um Grande Arquiteto (mas não em um Deus Criador), encaminhou-se para
o ateísmo puro.249
Mas a maior parte da minoria revolucionária, entre os aproximados 88 mil
alemães em Paris na década de 1830, preservava um traço distintivo de religio­
sidade. Os trabalhadores e artesãos alemães estavam mais próximos de uma
vida religiosa comunitária do que os intelectuais francófilos cosmopolitas; e os
alemães se mostraram receptivos à sugestão de Lamennais de que a alternativa
à exploração burguesa seria um novo tipo de cristianismo social.250 Assim como
os intelectuais católicos da Itália e da Polônia encontraram esperança de uma
revolução nacional nas Palavras de um Crente de Lamennais, assim também
os trabalhadores protestantes desenraizados da Alemanha viram os contornos
de uma revolução social vindoura no retrato que Lamennais faz do “povo”
como servo sofredor de Deus com um destino messiânico.
Karl Schapper, líder da seção parisiense da Liga dos Justos, passara da
fidelidade a Mazzini ao socialismo igualitário.251 Dirigindo-se aos seus se­
guidores como “Irmãos em Cristo”, descreveu a revolução social vindoura
como “o grande dia da ressurreição do povo” que varrerá da face da terra
não só a “aristocracia do dinheiro”, mas também a “aristocracia da men­
te”. Os revolucionários deveriam estar atentos, contudo, aos intelectuais,
os quais “pensam pouco no povo e acreditam que cabeças cheias de lições
livrescas os tornam melhores que outras pessoas (e qualificados) para fazer
leis e governar [...]”.252
249 Johann Hoeckerig, Souvenirs d’un révolutionnaire allemand, 1942 (publicado em Paris com uma
introdução de J. Bossu com a falsa data de 1937, BN).
250 V. “Religiöser Radicalisme: der Einfluss Félicité de Lamennais”, em Schider, pp. 227-239. Existem
nada menos que três traduções alemãs de Paroles d’un croyant de 1834, o mesmo ano de sua
publicação originai. Para uma estimativa dos alemães em Paris, v. E. Schraepler; “Der Bund der
Gerechten; Seine Tätigkeit in London 1840-1847”, Achiv für Sozialgeschichte, vol. II, 1962, p. 5.
251 Bund der Kommunisten, vol. i, p. 63. O manuscrito de sua proposta de 1838 de estabelecer uma
“Comunidade de Bens” (Gütergemeinschaft) é discutido em Schieder, p. 242 ss., e aí publicado pela
primeira vez, pp. 319-327, também presente em Bund, vol. i, pp. 98-107. Schapper concluía os seus
discursos dizendo “amém” (Schieder, p. 244). Para maiores detalhes, cf. a tese de doutorado inédita
de A. Fehling, “Karl Schapper und dir Anfänge der Arbeiterbewegung bis zur Revolution von 1848:
Ein Beitrag zur Geschichte der Handwerkerkommunismus”, Rostock, 1922.
252 Bund,, vol. i, p. 99 ss. sobre os Geistesaristokraten.
322 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A religiosidade antiintelectual de Schapper foi intensificada e popularizada


pelo alfaiate Wilhelm Weitling, que escreveu o principal manifesto da Liga: Â
humanidade como ela é e como deveria ser. Influenciado pelo Livro do povo
de Lamennais, que havia traduzido,253 Weitling se proclamou um “Lutero
social”. O seu A Humanidade, impresso clandestinamente, transmitia em
tons de simplicidade rasteira o anseio por uma comunidade religiosa que se
manifestava dentro da nova e desenraizada classe trabalhadora industrial.
Seu diagnóstico era primitivo e sua prescrição, utópica. Mas simplicidade e
franqueza eram coisas que alcançavam a nova audiência das massas. As duas
mil cópias do livro foram ampiamente distribuídas e discutidas, e A Humani­
dade se tornou um modelo para os próximos manifestos por revolução social.
A desigualdade, dizia Weitling, estava se ampliando, e não diminuindo,
em face da industrialização. Toda exploração e corrupção remontavam a um
único transmissor da doença: o dinheiro. Todos os bens criados por traba­
lhadores honestos, assim como suas esposas, suas famílias e suas próprias
almas, tudo isso tinha sido posto à venda: tudo sujeito ao mando do dinheiro.
Contra o mundo artificial desse falso meio, Weitling opunha uma alterna­
tiva utópica baseada na fusão da “lei da natureza” com a “lei da caridade”
— uma mescla de Buonarroti e Lamennais, de iluminismo secular radical e
sensibilidade cristã visionária. Toda propriedade privada e o direito de herança
deveríam ser abolidos. O valor de todos os produtos deveria doravante ser
calculado em termos não de dinheiro, e sim de horas de trabalho. Conflitos
deveríam ser arbitrados e direitos garantidos não por formas políticas repu­
blicanas, e sim por duas autoridades sociais inteiramente novas: a “ordem
das famílias” e a “ordem da produção”.
E provável que a ordem das famílias tenha tirado o seu nome e a sua
estrutura federativa da Sociedade das Famílias de Blanqui. A pirâmide subia
desde assembléias locais eleitas por sufrágio universal até um senado supremo,
o qual deveria designar um diretor executivo para determinar prioridades
sociais para cada milhão de habitantes. A unidade social natural e não pla­
nejada, a família — em vez de qualquer entidade econômica artificial —, era
a base de toda autoridade social mais alta.
A ordem de produção dividia a sociedade em quatro estados separados:
o rural, o operário, o intelectual e o industrial. Os três primeiros eram des­
centralizados. Mas o estado industrial — a lidar com assuntos de relevância

253 W. Seidel-Höppner, Wilhelm Weitling, 1961, p. 203, nota 5.


LIVRO TI, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL ( 1830-í 848) 323

pública e manufatura pesada — necessitava de um “exército industrial”


centralizado, para o qual todos com idade entre 15 e 18 anos deveríam ser
recrutados. A única troca comercial permitida era aquela baseada em produto
oriundo de trabalho voluntário suplementar (durante as assim chamadas
“horas comerciais”) em fábricas especiais, nas quais só “objetos de luxo ou
fantasia” podiam ser produzidos.254
A princípio, Weitling não tinha pretensão alguma de materializar esse pro­
jeto por meio de violência. Apenas de suas muitas relações com a Sociedade
das Estações, a Liga dos Justos pouco fez para ajudar a insurreição daquela
primeira em maio de 1839 em Paris. Quando, contudo, muitos membros
foram presos na repressão geral e os sobreviventes forçados a emigrar uma
segunda vez, os alemães começaram a experimentar vias mais revolucionárias.
A maior parte dessa nova emigração se direcionou para Londres e ajudou a
formar, em fevereiro de 1840, uma Sociedade Educacional dos Trabalhadores
Alemães.255 Três líderes advindos da Liga dos Justos parisiense (Schapper,
Bauer e Moll) tomaram para si a tarefa de organizar essa sociedade mais
ampla, ao mesmo tempo que mantinham viva uma parte de sua organização
menor e mais antiga.256

O cartismo como catalisador

A influência semicristã de Weitling era mais fraca em Londres do que na


Suíça, para onde ele tinha emigrado primeiro. A vida comercial efervescen­
te, as desigualdades flagrantes e a atmosfera cosmopolita da capital inglesa
encorajaram os alemães a dar maior atenção a questões sociais e à crítica
secularista. Mais importante ainda, Londres era o lar do mais amplo e mais
internacional movimento cartista, que era visto por muitos como o mais
promissor movimento democrático dos anos 1840.
Em retrospecto, o cartismo foi visto mais como um movimento reformista
que revolucionário: manifestações abertas em defesa de direitos, e não or­
ganização clandestina empenhada em sublevação. A Lei de Reforma inglesa
de 1832 deu mais atenção à transformação política do que à transformação

254 Die Menscheit wie sie ist und wie sie sein sollte, primeira edição publicada anonimamente, Paris,
1838,2a ed. em Berna, 1846; texto reproduzido em edição a cargo de E. Fuchs, Munique, 1895, e
discutido em Andler, pp. 24—29. Em 1840 também apareceram traduções húngara e norueguesa.
255 Sobre o Deutsche Bildungsverein für Arbeiter, que continuou existindo (embora sob nova roupagem)
até 1914, v. Lehning, “Association”, p. 194 ss.
256 E. Kandel*, Marks i Engel’s — organozatory soiuza kommunistov, 1952, pp. 106-107.
324 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖRIA

social. O establishment vitoriano — é o que de praxe se pensa — proporcio­


nou no topo da chaminé só a luz suficiente para persuadir os despossuidos
a continuar subindo em meio à sua fuligem, em vez de considerarem a pos­
sibilidade de pôr a casa abaixo.
Mas o cartismo teve um impacto de dimensões européias sobre os revolu­
cionários. Esse movimento de larga escala foi lançado nos anos 1830 como
oposição à autoridade do parlamento abastado, trazendo a idéia mais revo­
lucionária de soberania popular total: eleições anuais com sufrágio universal.
A proposta radical de uma “constituição do povo”, em 1838, fez com que
uma “convenção nacional” se reunisse no verão seguinte, em desafio direto
ao Parlamento, convocada com a finalidade de apresentar uma petição com
um milhão e duzentas e cinqüenta mil assinaturas à Causa dos Comuns.
Assim como se daria com as petições de 1842 e 1848, também esta foi
rejeitada. Boa parte do projeto cartista viria a ser adotado, com modifica­
ções, em reformas posteriores. Mas a ala radical do movimento cartista
continuava a entreter a possibilidade de ação violenta direta por parte da
classe trabalhadora; e sua cada vez mais desesperada busca por aliados os
levou a colaborar com os emigrados alemães que partiram da França após
o fracasso simultâneo da insurreição blanquista de 1839.
Os cartistas radicais foram os primeiros no mundo moderno a sugerir
(em 1832)257 e a tentar (em 1842) uma greve geral nacional como meio
de dar poder à classe trabalhadora. A Associação dos Trabalhadores de
Londres, criada por cartistas radicais em junho de 1836, internacionalizou
poucos meses depois sua demanda por ação revolucionária ao lançar um
Manifesto de Solidariedade às Classes Trabalhadoras da Bélgica em defesa
do buonarrotiano Jacob Kats, que fora preso.258 Esse panfleto foi distribu­
ído na Alemanha pela Liga dos Justos e usado como meio de arrecadação
de dinheiro. Os laços dos alemães com os cartistas se tornaram ainda mais
próximos em 1837, quando dois dos cartistas mais radicais, George Julian
Harney e Bronterre O’Brien, deixaram o movimento para criar uma ainda
mais militante Associação Democrática. Esses dois indivíduos tiveram papel
de alta importância na tradição revolucionária social e internacional.
Já em 1833 O’Brien argumentava que a classe operária deveria ter “com­
pleto domínio sobre os frutos de seu próprio labor”.
257 William Benbow, Grand National Holiday and Congress of the Productive Classes, L, 1832.
258 J. Kuypers, Jacob Kats Agitator, Bruxelas, 1930, pp. 206-208; texto em The Constitutional, 12 de
novembro de 1836; discussão e referências em Lehning, “Association”, pp. 189-191.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 325

Uma mudança total na sociedade — uma mudança que significaria uma completa
subversão da atual “ordem do mundo” — é vislumbrada pelas classes trabalha­
doras. Elas aspiram a estar no topo da sociedade, e não em sua base — ou, antes,
aspiram a que não existam topo nem base alguma.259

O’Brien, um irlandês desenraizado que muito se impressionara com sua


estada em Paris, voltou-se para a cosmopolita Londres e para a ajuda es­
trangeira a fim de conter a corrente, dominante no cartismo, de reformismo
moderado.260 O papel de Harney como secretário da Associação Democrática
foi ainda mais importante. O jornal que ele assumiu em 1843, Northern Star,
viria a se tornar um modelo para revolucionários sociais: para o North Star,
o semanário anti-escravocrata fundado em 1847 pelo pioneiro jornalista
americano negro Frederick Douglass; para o Poliarnaia Zvezda, a primeira
publicação ilegal feita por emigrados russos, o qual Alexander Herzen lançou
em 1855; e para o Nordstern, o primeiro órgão jornalístico do partido dos
trabalhadores alemães, que assumiu esse título em Hamburgo no ano de
1862 — todas essas publicações utilizaram variantes do nome que Harney
deu ao seu jornal.261
Weitling chegou a Londres no verão de 1844 com uma aura de martírio
após dois anos de prisão por atividades revolucionárias na Suíça. No dia 22
de setembro de 1844, os cartistas organizaram o primeiro encontro verdadei­
ramente internacional de revolucionários sociais em Londres: o aniversário
de fundação da primeira República Francesa. Saudado como “um mártir da
causa do Comunismo”,262 Weitling propôs um brinde “àquela organização
social que conduz, através da república, à comunidade”.263 Um orador in­
glês se seguiu a ele com um discurso que, de maneira ainda mais explícita,
ia além da política, no rumo de uma sociedade comunista. Afirmou que os
revolucionários franceses tinham “tentado convenção, diretório, consulado e
império, e descobriram que as meras mudanças políticas eram insuficientes”.

259 Poor Man’s Guardian, 19 de outubro 1833, pp. 333—334, em Thompson, The Making of the English
Working Class, p. 803, o qual atribui essa passagem a O’Brien. V. também A. Plummer, “The Place
of Bronterre O’Brien in the working class movement”, The Economic History Review, 1929, jan.
260 O papel fundamental dos irlandeses no cartismo proporcionou não apenas ímpeto em direção ao
extremismo por meio de O’Brien, mas também uma tendência (através de Fergus O’Connor) a
idealizar a vida agrária e ver no operário um ex-campônio. V. R. Higgins, “The Irish Influence in
the Chartist Movement”, Past and Present, 1965, nov., pp. 83-96.
261 B. Quarles, Frederick Douglass, NY, 1969, p. 81; K. Koszyk, Deutsche Presse im 19. Jahrhundert,
1966, vol. U, p. 188.
262 Braunthal, History, p. 51.
263 Relato presente na seção “Communist Intelligence” de Goodwyn Barm by, Communist Chronicle,
vol. I, n° 12, p. 133.
326 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Então Babeuf e Buonarroti se levantaram para declarar que sem reforma, sem
trabalho compartilhado e sem alegria não se alcança o objetivo da revolução.264

Propunha um grande projeto de publicações “comunistas” em francês,


alemão e italiano para que “o mundo seja revolucionado”.265
Aqueles que ansiavam por uma revolução social internacional tendiam
a desdenhar não apenas da questão nacional, como também de quaisquer
questões políticas. A Liga dos Justos declarou aos tecelões rebeldes da Silésia
em outubro de 1844 que a emancipação vindoura do proletariado tornou a
forma de governo praticamente irrelevante: “Tanto se nos dá se o Estado é
monarquista, constitucional ou republicano, desde que esteja fundado sobre
a justiça”.266
Entusiasmada com a causa proletária internacional, a Sociedade Edu­
cacional Alemã em Londres começou a aceitar membros de outras nacio­
nalidades. De parcos 30 membros em 1844, passaram em junho de 1846 a
250 membros, dos quais 40 eram escandinavos, 30 alemães e 20 húngaros,
enquanto os demais representavam países latinos e eslavos, bem como ou­
tros Países Baixos.267 Os alemães formalizaram a cooperação com exilados
políticos franceses e poloneses por meio de uma sociedade internacional
informal fundada em 1844, os Amigos Democráticos de Todas as Nações.
O seu nome e seu modo de estruturação se inspiraram na Associação Demo­
crática de Harney. No dia 22 de setembro de 1845, as relações dos alemães
com os cartistas foram formalizadas em outro encontro comemorativo da
fundação da primeira República Francesa. Esse Festival das Nações, um
evento realmente internacional, levou à criação da Associação Democrática
Internacional sob a direção de Harney, o qual insistiu no banquete que a
palavra “estrangeiro” fosse expurgada dos dicionários. Em março de 1846,
Harney fundou outro grupo internacional ainda mais amplo, os Democratas
Fraternos, cujo secretariado incluía representantes da Polônia, Alemanha,
França, Inglaterra, Hungria, Suíça e Escandinávia.
Harney lançou um manifesto endereçado aos trabalhadores dos Estados
Unidos e da Inglaterra durante a crise bélica de 1846 entre os dois países,

264 Ibid. O orador era Barmby, que, de acordo com o texto, pronunciou erradamente o nome de Babeuf.
265 “Arrivel of Weitling in England”, Communist Chronicle^ vol. I, n° 12, pp. 132-133.
266 Citado em Schraepler, “Der Bund”, p. 20.
267 Segundo Schapper, numa carta de Marx de 6 de junho de 1846, em Kandel, p. 112; o cálculo anterior
do número de membros é apresentado sem comprovações em Kandel, p. 106. Schraepler (“Der
Bund”, p. 8) estimou o número de membros para 1847 em acima de mil.
LIVRO II, CAPÍTULO 6: REVOLUÇÃO NACIONAL VS. REVOLUÇÃO SOCIAL (1830-1848) 327

incitando o proletariado a não se distrair das questões sociais em virtude


das guerras nacionais. A Liga dos Justos adotou, ao longo de 1846, o lema
dos Democratas Fraternos, “Todos os homens são irmãos”, e transformou
Londres formalmente na sede da Liga.268
Na Suíça, ao fim de 1844 uma conclamação similar à unidade transnacio-
nal pela “abolição da propriedade privada” foi lançada, através do panfleto
O que Querem os Comunistas? pelo principal sobrevivente da organização
comunista original de Weitling: “Se falamos da libertação da humanidade,
queremos dizer que a liberdade em que depositamos nossas esperanças não
é a liberdade alemã ou francesa ou norte-americana, e sim a verdadeira
liberdade do homem”.269
A mensagem de revolução social também estava sendo levada para o
Novo Mundo. Em novembro de 1845, membros secretos da Liga dos Justos
ajudaram um congresso industrial em Nova York a centrar atenção na dispa­
ridade entre a linguagem igualitarista da Declaração de Independência e as
desigualdades da ordem industrial. Designando-se a si próprios “a Comuna
Alemã da Jovem América”, eles levaram a comunidade alemã em nova York
a formar uma Associação de Reforma Social dentro da Associação Nacional
de Reformas.270 O jornal em alemão que publicavam em Nova York, que
surgiu em janeiro de 1846 com o título babeuvista de Tribuna do Povo.,
destinava-se “aos pobres, aos suplicantes, aos oprimidos”.271 Tanto o jornal
como a associação chamaram atenção entre os imigrantes alemães das grandes
cidades, de Boston a Saint-Louis, passando por Milwaukee.
No dia 4 de julho de 1846, o movimento alemão na Inglaterra saiu à frente
dos “Democratas Fraternos” de Harney com um apelo aos “Trabalhadores
da América”, por ocasião do septuagésimo aniversário da Declaração de
Independência, para que “coroem a perfeição de suas instituições com a
abolição da escravidão dos brancos bem como dos negros — da escravidão
pelo salário bem como pelo chicote; expulsem de suas assembléias legislati­

268 Schraepler, “Der Bund”, pp. 20, 24.


269 August Becker, Was Wollen dir Kommunisten? Eine Rede, im Auszug vorgetragen, vor einer am 4ten
August 1844, im Lokal des s.g. Kommunisten-Vereins zu Lausanne, von Mitgliedern verschiedener
Arbeiter-Vereine abgehaltenen Versammlung, Lausanne, 1844, pp. 42—44, tal qual citado em Bravo,
“Il comunismo”, Annali, voi. vi, p. 545; e discutido às pp. 542-546.
270 K. Oberman, “Germano-Américains et presse ouvrière 1845-1854”, emJ. Godechot (ed.), La presse
ouvrière 1819-1850,1966, p. 70 ss.; e, para maior detalhe, H. Schlüter, “Die Anfänge der deutschen
Arbeiterbewegung in New York und ihre Presse”, em Netv Yorker Volkzzeitung, 21 de fevereiro de
1903.
271 Citação tomada do primeiro número, 5 de janeiro de 1846, em Schlüteç p. 8.
328 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

vas os proprietários de terras, os usurários, os advogados, os mercenários e


outros charlatães e parasitas”.272
Não seria nem dos trabalhadores emigrados alemães nem dos democratas
ingleses, contudo, que viriam as lideranças duradouras dos revolucionários
sociais. As figuras que fundiram o comunismo proletário com o internaciona-
lismo democrático foram dois intelectuais alemães residentes em Bruxelas: Karl
Marx, o filho erudito de um consagrado jurista de Trier, e Frederick Engels,
o filho muito lido e muito viajado de um rico industrial de Wuppertal. Eles
cada vez mais dominariam o campo revolucionário social após iniciarem a
sua colaboração, que duraria por toda a vida, no fim do verão de 1844. Eles
uniram a causa proletária e a ideologia secular de uma maneira que trazia
ao mesmo tempo autoridade e autoritarismo.
A primeira tarefa deles foi fortalecer sua credibilidade na provação do
jornalismo radical, fazendo-o por meio de ataques precisamente àqueles
que eram reconhecidos como líderes de cada uma das duas forças que eles
queriam fundir. Sistemática e simultaneamente, atacaram os trabalhadores
vistos como os principais porta-vozes do proletariado (Weitling e Proudhon)
e, ao mesmo tempo, os intelectuais então vistos como os mais revolucionários
(os hegelianos de esquerda). Assim procedendo, deram um rumo ao ideal
revolucionário social e criaram o comunismo moderno. A história do nas­
cimento do comunismo lida com forças cerebrais numa era em que a força
romântica do nacionalismo revolucionário tinha enfraquecido. Essa história
demandará abordagem pormenorizada mais à frente em nossa narrativa,
não tanto em razão da importância do comunismo no século xix, e sim por
conta de seu legado para o século xx.

272 Texto em Demokratisches Taschenbuch für 1848, Leipzig, 1847, citado em Obermann, p. 72.
CAPÍTULO 7
A alternativa evolucionária

s revolucionários nacionais proporcionaram à imaginação romântica

O um novo senso de fraternidade. Os revolucionários sociais propor­


cionaram à nascente era industrial um novo chamado à igualdade.
Mas ainda havia aqueles que se preocupavam essencialmente com a liberdade:
a terceira parte da Trindade revolucionária.
O ideal da liberdade — expresso em liberdades civis, constituições escritas
e formas republicanas de governo — continuava a ter seus devotos, apesar das
derrotas revolucionárias de 1815-1825. Depois que se implantaram regimes
constitucionais na França e na Bélgica em 1830, os liberais políticos conti­
nuaram a se proliferar — e a ser ampiamente vistos como revolucionários.
Mas o constitucionalismo de corte tradicional perdera seu brilho aos olhos
de muitos revolucionários mais jovens. Parecia estritamente político demais,
demasiado voltado para a forma, e não para a textura de uma nova socieda­
de. Pode-se ilustrar o geral declínio e o sucesso lateral dos revolucionários
liberal-constitucionais depois de 1830 acompanhando, respectivamente, os
últimos dias do Marquês de Lafayette e o início da carreira de um admirador
suíço seu, James Fazy.

Lafayette e os liberais perdidos


Como a maré revolucionária baixasse depois de 1830 e revolucionários de
uma nova geração expressassem sua desilusão, estes últimos começaram
330 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a denunciar o patrono e patriarca da monarquia de julho, o Marquês de


Lafayette.
A torrente de canções populares, litografia e panfletos deflagrada pela
revolução afiou o gosto por uma alternativa inteiramente diversa de so­
ciedade. A moderação alimenta a caricatura; e, em seus últimos anos, o
idoso Lafayette não pôde escapar dela. Ele, que havia tipificado o ideal
constitucional moderado em meio aos revolucionários — um impetuoso
combatente da liberdade entre os norte-americanos, o primeiro embaixador
francês nos Estados Unidos e talvez o mais celebrado visitante estrangeiro
da nascente América quando de seu retorno em 1824-1825 —, provara-se
na França um fracasso político tão grande quanto fora um sucesso nos
Estados Unidos. O seu deismo tolerante, a sua crença em direitos naturais
e na propriedade constitucional, coisas que haviam lhe granjeado tanta
admiração no Novo Mundo, trouxeram-lhe mais inimigos que amigos na
França. Ele foi reiteradamente pego pelas lâminas de tesoura da direita e
da esquerda, na medida em que o cruzavam ao entrarem em confronto.
Ambas as monarquias constitucionais que ele apoiara, a de 1791 e a de
1830, foram minadas pela direita e pela esquerda praticamente no momento
de sua promulgação.
Lafayette se ligara a Washington quando de sua chegada aos Estados
Unidos, rapaz de dezessete anos em 1777. Mas na França ele nem encon­
trou um líder como esse nem se tornou ele próprio um. As esperanças que
depositou em Luís xvi se mostraram descabidas; e ao fim de 1830 sua fé em
Luís Filipe fenecera. O senso de rivalidade, que o fez desdenhar Napoleão,
situou-o fora da área de influência de sua época. Ele se juntara a Napoleão
somente quando dos últimos e malfadados Cem Dias, e em nome de um
esforço fracassado (como vice-presidente da câmara de deputados) de es­
tabelecer o filho de Napoleão como governante da França numa regência.
Caso se dê crédito à brilhante descrição feita pelo seu grande sobrinho
e editor póstumo, Charles Rémusat, Lafayette não pode simplesmente ser
desmerecido como “uma estátua a olhar desde o seu pedestal”,1 na expres­
são de Lafitte, nem, como diz Mirabeau, como um estadista que avait bien
sauté pour reculer [soube bater em retirada].2 Nem tampouco foi Lafayette
simplesmente um moderado ineficaz, como muitos girondinos e orléanistas,
acostumado à transigência tímida ou ao oportunismo interesseiro. A despeito
1 Citado em T. Horton na Gazette of the American Friends of Lafayette, n° 15, 4 de abril de 1952.
2 Citado em ibid., p. 3.
LIVRO n, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 331

das semelhanças superficiais e das alianças ocasionais, Lafayette não gostava


da maioria desses moderados, e até os combatera.
Il n’y a pas de milieu [Não existe meio-termo], Rémusat insistiu deses­
peradamente a Lafayette durante o caos revolucionário inicial de 1830.3
Mas Lafayette rejeitou as alternativas extremistas tanto da república sob
seu comando quanto da monarquia sob os Bourbon. Em vez disso, propôs
uma monarquia constitucional sob o governo da nova casa dos Orléans. O
oposto de liberal era “doctrinaire”,4 e seu estilo político era moderado, mas
não destituído de princípios.
“A moderação”, escreveu no seu último ano de vida, “nunca foi para mim
o ponto médio entre quaisquer duas opiniões”.5 Era antes o comprometi­
mento ativo “com a causa da liberdade” garantida pelo império da lei e por
instituições representativas; e uma oposição igualmente firme “aos adversá­
rios da causa, assumam a forma que assumirem: despóticos, aristocráticos,
anárquicos”. Em seu testamento político, Lafayette identificou a moderação
com a defesa militante da “sagrada causa da liberdade das heresias que a
desnaturam, dos excessos que a atrasam, dos crimes que a profanam e dos
substitutivos que ainda a poderiam derrotar — não tivesse ela encontrado
refúgio nas memórias puras e nos sentimentos sublimes que caracterizam a
grande obra do povo”.6
Essa “grande obra do povo” deveria ser o estabelecimento da liberdade
política e da liberdade civil por meio da primeira Revolução Francesa de
1789-1891. A contrapelo de suas firmes raízes sociais na aristocracia e de sua
grande riqueza pessoal, Lafayette acreditava que ainda havia revoluções a ser
feitas. Mas deveríam ser revoluções constitucionais e limitadas, destinadas a
principiar a soberania popular e a libertar a iniciativa individual.
Quando a reação recrudesceu vingativa na França em 1824, Lafayette
reformulou sua imagem, fazendo-se um ancião revolucionário mediante uma
extensa e ampiamente vitoriosa viagem aos Estados Unidos. Ele retornou
em 1825 para ser cumprimentado por agitadores estudantis inseguros, que
o buscavam para entreter longas discussões.

3 Citado em Bardoux, Les dernières Années, p. 367. Esta ainda é a única grande obra de síntese sobre
os anos finais de Lafayette.
4 Ibid., p. 350.
5 Ibid., pp. 424-425.
6 13 de junho de 1833, em ibid., p. 419.
332 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

É difícil determinar com exatidão quão íntima e abrangente foi de fato sua
colaboração com os muitos grupos revolucionários com os quais manteve
contato ao longo dos anos 1820. As investigações policiais se mostravam
relutantes de se atirar com afinco num rastro que levasse a uma figura tão
poderosa e respeitada.7 A ascendência que tinha sobre a imaginação dos jo­
vens representava uma transferência de esperanças messiânicas após a morte
de Napoleão em 1821. Ele se mostrava tanto o sucessor como a antítese da
“falsa libertação de Napoleão”. Em contraste, parecia injetar pensamentos
positivos em um projeto de racionalidade liberal. Sua distância aristocrática
frente à participação ativa em conspirações o tornou ainda mais vulnerável,
na condição de herói, quando as conspirações fracassaram.
De todo modo, mais importante que os detalhes de como Lafayette
colaborou com a nova geração de revolucionários europeus é a questão
de por que o fez. A resposta muito nos diz do poder permanente do ideal
revolucionário. Em 1787, antes da Revolução na França, ele defendeu diante
de uma assembléia de notáveis tanto a tolerância para com os protestantes
como a instauração de uma assembléia nacional. Ele dava primazia à idéia,
portanto, de reconhecer legitimidade na oposição ideológica e política, um
passo que poderia ter ajudado a França a seguir o caminho da Inglaterra e
da Suíça e a se prevenir contra o desenvolvimento de uma tradição revolu­
cionária. E ele defendeu com não menos paixão a soberania popular total no
seu último grande discurso perante a Câmara dos Deputados, pouco antes
de sua morte em 1834.
Assim como o seu amigo Thomas Jefferson, Lafayette continuava a acreditar
na renovação por meio de perpétuo reexame e revolução periódica. Mas, ao
passo que os jeffersonianos contemplavam essas revoluções a se dar dentro
do sistema, os jovens radicais franceses que assistiam a Lafayette durante a
Restauração não estavam, de sua parte, tão certos assim. Lafayette sempre
acreditou estar agindo desde dentro do sistema, mesmo quando cooperava
com grupos revolucionários clandestinos. Assim como muitos reformadores
em épocas posteriores, ele pensava ser capaz de elevar e educar os jovens
extremistas — e de talvez recuperar algo de sua própria juventude em meio

7 Bardoux não é convincente com sua ampla generalização de que as conspirações do período
“começaram e terminaram com ele” (p. 284); mas não existe nenhum outro estudo imporrante do
problema. O perspicaz relatório político de Rémusat aponta para a dificuldade de investigar um
personagem que, cedo na vida, “adquirira o hábito de fazer segredo não de suas opiniões, mas de
seus planos”, que evitava mentiras, “mas não o silêncio”. Mémoires de ma vie, 1959, vol. li, pp-
24Ó-247.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÄRIA 333

a um exército de libertadores-Adonis. Em razão de sua sinceridade e desinte­


resse, Lafayette se deixou seduzir por essas qualidades ao vê-las nos outros.
Como poderia resistir a uma nova geração “tão irreprochável e interessada
que se reunia em torno dele e cujo desinteresse, devoção e ardor requeriam
que saísse em sua defesa”?8 Ele não conseguia compreender que os jovens
conspiradores da Restauração buscavam não tanto liberdade segundo sua
compreensão setecentista quanto os novos objetivos românticos da igualdade
e da fraternidade. Para ele, constituíam a nova versão do seu velho regimento.
Seu sentimento de dever para com os jovens talvez trouxesse algo de culpa
para com o seu próprio filho. Como muitos pais liberais indulgentes de filhos
revolucionários hoje em dia, Lafayette negligenciara o cuidado e a educação
de seu filho George em razão de suas preocupações com a alta política e
os negócios públicos. O garoto, por sua vez, tornou-se um revolucionário
canhestro e introvertido, que idolatrava as opiniões do pai, mas rejeitava a
incongruência entre seu estilo de vida aristocrático e seu discurso. Dentro
da casa de Lafayette cresceu “um desses fanáticos desinteressados, modestos
e exigentes que se encontra em novas religiões, com uma santa aversão a
homens de saber e uma pronunciada preferência por pessoas comuns”.9 A
constante acusação de hipocrisia que o jovem fez contra Lafayette talvez
tenha surtido efeito. Seja como for, é possível que a decisão de Lafayette
de se tornar uma figura paternal para os revolucionários mais novos tenha
sido em parte um esforço atrasado de se tornar pai de seu próprio filho. Ele,
com efeito, conseguiu trazer de volta o seu filho a um caminho que o levaria
posteriormente a uma carreira política mais moderada. Mas as opiniões do
velho amante da liberdade nunca coincidiram com as dos novos crentes da
igualdade.
Lafayette escapou do jovem manifestante que, no funeral do General
Lamarque, em 1832, havia dito: “Se matássemos o General Lafayette, essa
boa morte não serviria de chamado às armas?”.10 Mas não escapou, no ano

8 Rémusat, p. 57. Segundo a análise de Rémusat, “a Revolução Americana botou Lafayette a perder
[...] a criação do fabuloso governo que adveio dela o encheu de ilusões. Ele acreditava na facilidade
das revoluções, e que ele havia nascido para fazê-las e liderá-las” (p. 245). Assim, quando viu a
juventude francesa protestando por uma revolução, “o entusiasmo deles o fez lembrar de seus
próprios anos de jovem. Aqui estava, mais uma vez, o seu sagrado batalhão. [...] Ele acreditava
lhes dever alguma coisa, e os via impacientes para consegui-la dele. Impôs-se o dever de liderá-los
pessoalmente — incapaz do pensamento de que alguém pudesse se arriscar mais do que ele pela
liberdade” (p. 57).
9 Ibid., pp. 57-58.
10 Bardoux, pp. 422-423.
334 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

seguinte, de ser exterminado enquanto símbolo revolucionário com a pu­


blicação de Vida Política de Lafayette^ escrito por Buonarroti e seus jovens
confrades, os quais censuravam o marquês como um anacronismo, artifi­
cialmente preservado “como uma múmia em suas ataduras”.11 Ele era um
exemplo do que se deveria evitar — já que um falso amigo é mais perigoso
que um inimigo declarado.12
Entre as muitas outras coisas que previra, Bonneville, já no início dos anos
1790, antecipara esses novos ataques a Lafayette ao descrevê-lo como um
^temporisateur^ uma personalidade dupla”, o qual, “não sendo nada num
partido nem no outro, será duplamente um nada”.13 Mas desmascarar uma
figura da estatura e respeito público de Lafayette depois 1830 não era coisa
muito fácil. Um alvo extraordinário requeria munição inovadora, e a salva
de artilharia de Buonarroti foi, sob muitos aspectos, um modelo para futu­
ras denúncias rituais de revolucionários. Seu panfleto não é de debate sobre
idéias gerais, e sim de desmascaramento exemplar de uma figura individual
— tudo, contudo, em nome dos princípios. O significado político “objetivo”
dos fracassos de Lafayette é analisado com um ar de distanciamento clíni­
co. As suas declarações “subjetivas” e aparentes sucessos são simplesmente
deixados de lado.
Diz-se que Lafayette tomava parte do “egoísmo”, e não da “igualdade”,
por causa de seu entusiasmo mais com a Revolução Americana do que com
a Francesa. Os Estados Unidos não viveram uma verdadeira revolução em
razão do “caráter egoísta dos seus líderes”, entre os quais não se contava
“um só proletário”,14 e tinham herdado da Inglaterra um legado sinistro de
legalismo e localismo.

O federalismo derrotou a unidade e criou um caos de leis ainda mais complicadas.


É o regime feudal com as vestes de formas democráticas.15

11 Vie politique de... Lafaytte (publicada com o pseudônimo de Gigault), Coleção Franklin, YU, 1833,
p. 33. Ele foi ridicularizado por evitar participação revolucionária ao se retirar para sua propriedade
rural em La Grange, depois despertando “como uma marmota após o inverno” e esperando que o
levassem a sério.
12 Ibid., p. 1.
13 Citado em Harivel, p. 63.
14 Vie politique, p. 44.
15 Ibid., p. 46. A Inglaterra era denunciada como traiçoeiramente aliciadora (“a fortuna da aristocracia
foi lapidada à base de insurreições”) e irritantemente insular (“as revoluções ficaram restritas à sua
ilha sem qualquer impacto no continente”), p. 42.
LIVRO n, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 335

O mesmo egoísmo que fez com que os americanos dessem as costas à França
revolucionária em 1793 levou Lafayette à “omissão da palavra igualdade”16
em todos os seus discursos públicos. Claramente o “herói de dois mundos”
não era herói algum para os novos revolucionários sociais.17
Talvez não exista papel mais difícil de desempenhar nos tempos modernos
do que o de revolucionário moderado: o homem que honestamente compar­
tilha tanto a esperança radical de um novo começo quanto a preocupação
conservadora para com os velhos valores e a continuidade. Nisso nada diverso
do que ocorrería a Martin Luther King em época posterior, Lafayette se viu
no centro dos acontecimentos e ponto de convergência “de todos os ódios e
preconceitos”18 de um tempo difícil. Embora nunca tenha atraído para si o
raio do assassinato, Lafayette enfrentou milhares de zombarias da direita e
da esquerda e um longo período de ignomínia póstuma. Logo antes de mor­
rer, falou em tom cansado, numa carta a um velho revolucionário italiano,
da oscilação entre apatia e despotismo, que se alimentam mutuamente e
inviabilizam a maturidade política e o progresso social. Ela antevia tempos
nos quais “se iniciará a grande luta entre os dois princípios, o despertar dos
oprimidos contra os opressores; e haverá um grande incêndio na Europa
que poderia ser evitado por meio de um modesto endosso do programa do
Hôtel de Ville [...]”.19
A despeito de quão repugnante sua posição possa ter se tornado para
velhos aristocratas, novos revolucionários e orléanistas oportunistas, La­
fayette permaneceu o mais destacado símbolo na Europa de esperanças
moderadas do típico ideal revolucionário. Embora lamentasse a infelicidade
resultante da malfadada disseminação da revolução por outros países em
1830,20 ele aceitou se tornar membro da guarda nacional polonesa em 1831

16 Ibid., p. 34.
17 Mesmo uma avaliação neutra de Lafayette logo passaria a ser vista como “prova” de insinceridade
ou timidez revolucionária. Veja-se a denúncia que Théodore Dézamy faz daquele que outrora fora
seu patrono, Cabet, por deixar passar o desmascaramento feito por Buonarroti e assim falhar em
denunciar Lafayette com vigor suficiente. Calomnies et politique de M. Cabet. Réfutation par des
faits et par sa biographie, 1842, p. 31-33.
18 Rémusat, vol. il, p. 254.
19 Carta a Belgiosco de 21 de agosto de 1832, em A. Malvezzi, “Il generale La Fayette e la rivoluzione
italiana del 1831”, em PAN, Io de julho de 1934, p. 366.
20 Carta de 6 de maio de 1831 a Casimir Périer, solidarizando-se com os italianos e reconhecendo as
“obrigações especiais” dos franceses, ibid., pp. 363-364. Lafayette foi, contudo, julgado acerbamente
por Pepe como “um desses aristocratas que, ligando-se a idéias sem nada entender delas, torna
trágica uma situação que não o era”. Falcionelli, Sociétés, p. 252; também p. 124, para a promessa
de Lafayette de ajudá-lo.
336 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

e trabalhou continuamente pela debilitada causa da Polônia.21 Ele concluiu


que, se o absolutismo real era o antigo inimigo, a apatia popular era sob
muitos aspectos o novo inimigo. A força corrosiva da apatia havia levado
muitas figuras sensíveis como Lamennais às armas, primeiro da reação e, em
seguida, da revolução. O desespero que Lafayette sentiu pela apatia política
da França era compartilhado até pelo seu mais bem-sucedido protegido suíço,
James Fazy, durante o seu período de mais profundo abatimento: C’est trop
d’avoir à lutter à la fois contre l’indifférence de ses amis et la malveillance
de ses adversaires [É muito custoso ter de lutar ao mesmo tempo contra a
indiferença dos amigos e a maledicências dos adversários].22
Mas Lafayette nunca perdeu a esperança. Ele continuou a acreditar que as
instituições liberais e nacionais inevitavelmente se estabeleceríam nas “duas
penínsulas” (Itália e Espanha), bem como na Alemanha e na Polônia.23
O seu ideal sempre foi a liberdade, mais que a igualdade e a fraternidade.
Ligava as velhas virtudes da racionalidade esclarecida às novas técnicas da
garantia constitucional e do debate parlamentar. Quando morreu em 1834,
a tradição revolucionária perdeu o seu maior elo vivo com o Iluminismo
aristocrático. Como disse o encomio maçônico em seu funeral:
A morte de Napoleão foi a extinção de um vulcão:
a morte de Lafayette foi o crepúsculo de um sol.24

Mas fora o vulcão, e não o sol, que dominara a vida política da França
durante a era revolucionária. Os grandes momentos de Lafayette — a De­
claração dos Direitos do Homem de 1789 e os “três dias gloriosos” de 1830
— foram ofuscados pelas convulsões mais decisivas de 1792 e 1848, respecti­
vamente. Cada uma dessas revoluções eminentemente políticas terminou por
levar ao poder um Napoleão. Em um mundo de política polarizada, poder
centralizado e liderança demagógica, havia pouco espaço para Lafayette.

Fazy e o triunfo suíço


A única revolução bem-sucedida na Europa entre 1830 e 1848 ocorreu na
Suíça. No espaço de poucos anos, a Suíça passou de uma partição semifeudal
21 Bardoux, p. 406 ss.; e a obra comemorativa de seu centenário publicada em Paris: La Fayette et la
Pologne 1830-1834, 1934.
22 Citado de uma carta de 31 de agosto de 1836, em Mémoires de Fazy, p. 240.
23 Carta a Belgiosco de 21 de agosto de 1832, em Malvezzi, p. 366.
24 Citado por H. Voorhis, “Lafayette: Citizen and Freemason of Two Countries”, em The american
lodge of research, transactions (free and accepted masons), 1936, vol. II, n° 2, p. 337.
LIVRO n, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 337

sob domínio Habsburgo a uma república federal com legislatura bicameral


muito próxima da que se instaurara nos Estados Unidos. O mais importante
líder revolucionário foi James Fazy, cuja carreira dá raro exemplo de uma
revolução à maneira americana a se impor no continente europeu. Ele ajudou
a conduzir a Suíça — apesar de seus elos geográficos e lingüísticos com as
três culturas que prenunciaram o rebuliço revolucionário continental (França,
Itália e Alemanha) — a um liberalismo “burguês” de molde essencialmente
anglo-americano.
James Fazy nasceu numa família huguenote que emigrou para Genebra e
se envolveu, com moderado sucesso, em atividades de comércio e manufatura.
Um ancestral seu fora relojoeiro de Catarina, a Grande e outro um primo
de Rousseau. As idéias deste último exerceram grande influência sobre Fazy
por meio de sua mãe, e o seu pai foi um importante apoiador genebrês da
primeira Revolução Francesa.25
Nascido em 1794, Fazy sofreu influência pietista na escola dos Irmãos
Moravianos em Neuwied, e em seguida foi introduzido à agitada vida de
estudante universitário na Paris dos primeiros anos da Restauração. Fundou
em 1817 um efêmero jornal radical, La France chrétienne, e ajudou a organi­
zar os carbonários franceses junto com seu irmão Jean-Louis e com Antoine
Cerclet, o qual (assim como a mãe de Fazy) nascera na Rússia e depois se
tornaria saint-simoniano e editor de Le National.26 Os próprios interesses
de Fazy pelo jornalismo político o levaram a escrever uma crítica do Banco
da França, acompanhada de uma fábula revolucionária e uma peça teatral.27
O seu primeiro trabalho de maior fôlego, uma série de “conversações polí­
ticas e filosóficas de 1821”, proclamava “Jesus Cristo o primeiro profeta da
liberdade e da igualdade” e saudava a Revolução Francesa por assegurar a
difusão do “liberalismo” até na Ásia e na África.28

25 A biografia-padrão escrita pelo seu filho, Henri Fazy, James Fazy. Sa vie et son oeuvre, Genebra/
Basel, 1887, pp. 1-2, 4-5, deve ser complementada com E Ruchon, “Une Famille genevoise: Les
Fazy d’Antoine Fazy, fabricant d’indiennes, à James Fazy, homme d’état et tribun”, em Bulletin de
l’institut national genevois, vol. li, 1939, pp. 3, 6, 8.
26 Vuilleumier,“Buonarroti... à Gèneve”, pp. 486-487; Henri Fazy, pp. 3-16. V. também a boa discussão
em F. Brokgauz e I. Efron, Entsiklopedichesky slovar’, vol. xxxv, pp. 235-236, e Les mémoires de
James Frazy, Genebra, 1947.
27 De la Banque de France, considérée comme nuisible aux transations commerciales, 1819; a alegoria
utópica sobre a soberania popular Voyage d’Ertelib, Genebra, 1822; e a peça La mort de Lévrier,
Genebra, 1826.
28 L’Homme aux portions ou conversations philosophiques et politiques, 1821, pp. 140,211-213; v.
também a § “Observations sur la révolution française”, pp. 66-119, LC.
338 A FÊ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

No início de 1826, retornou a Genebra e fundou o Journal de Genève corno


parte de um esforço para fazer frente à indiferença política da Restauração
em sua cidade natal; mas em agosto retornou a Paris, onde trabalhou no
Mercure de France au xix siècle e subscreveu cartas-protestos contra as leis
repressivas de Carlos x e em defesa do jornal La Révolution.19
A imaginação de Fazy foi deflagrada por longas conversas que manteve
com Lafayette sobre a experiência americana; e mais tarde recordaria uma
descrição dos Estados Unidos particularmente interessante que o marquês lhe
fez durante uma longa cavalgada de La Grange a Paris: “se um estenógrafo
estivesse lá para registrar tudo que o general disse, o livro que Tocqueville
depois publicaria teria se tornado desnecessário”.29
30
Em Paris no ano de 1828, ele produziu uma esquecida obra-prima, Geron-
tocracia, o primeiro livro a identificar sistematicamente a luta revolucionária
como um confronto de jovens e velhos. Ele estava nas barricadas de julho
de 1830 e, logo em seguida, à frente da oposição republicana radical a Luís
Filipe. Após ser perseguido pela censura e pagar uma fiança de 6 mil francos,
retornou a Genebra, anunciando em 1831 sua crença de que só algo como o
“sistema federalista dos Estados Unidos da América” iria “suprir as necessi­
dades constitucionais da Suíça”.31 Tendo recebido Buonarroti no início dos
anos 1820,32 seu lar se tornou lugar de reunião de Mazzini e outros revolu­
cionários nacionalistas no início da década de 1830.33 Em 1833, ele fundou
o primeiro jornal diário jamais publicado em Genebra, L’Europe Centrale,
como uma espécie de braço jornalístico da Jovem Europa de Mazzini. Do
jornalismo radical voltou à política radical ao fim dos anos 1830, elaboran­
do em 1837 o primeiro esboço de uma constituição federalista, à maneira
americana, similar à que a Suíça efetivamente adotaria uma década depois.
De 1835 a 1841, ele dedicou grande parte de seus esforços a uma longa
História de Genebra, que celebrava o papel do cidadão comum no desen­
volvimento da cidade e na resistência ao autoritarismo (calvinista bem como
católico). Rompeu acerbamente com os discípulos suíços de Buonarroti quando

29 Ruchon, “Famille”, pp. 10-11.


30 Citado de H. Fazy, James Fazy, p. 17; v. também Mémoires de James Fazy, p. 8.
31 Artigo anônimo no Journal de Gèneve, 1831, set., citado e comentado por W. Rappard, “Pennsylvania
and Switzerland: The American Origins of the Swiss Constitution”, em University of Pennsylvania.
Bicentennial Conference, Filadélfia, 1941, p. 105.
32 Vuilleumiet; p. 488; v. também Ruchon, Franc-Maçonnerie à Geneve, vol. iv, pp. 117-120, sobre os
laços de Fazy com Andryane e outros associados de Buonarroti.
33 Mémoires de Fazy, p. 240 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÄRIA 339

tentaram transformar a Jovem Europa em um órgão de revolução mais social


que política.34 Apesar da forte amizade com os pioneiros do comunismo em
Lyon, Lausanne e Genebra, Fazy se opôs desde o começo às restrições da
liberdade política e do crescimento econômico que ele considerou inerentes
ao programa deles. Os socialistas e comunistas estavam produzindo múmias e
não cidadãos, acreditava ele, ao atrofiarem e restringirem a dinâmica política
e os processos econômicos que a liberdade desamarra. Um relatório entregue
a Metternich em 1847 notava que o projeto de Fazy para Genebra defendia
tanto as liberdades (de religião e de reunião) quanto as responsabilidades
(cumprir as leis, promover a educação): “Dentro dessas liberdades e limites,
James Fazy acredita que a vida da República se desenvolverá inteiramente
por si só, alcançando uma liberdade harmoniosa, com prosperidade corporal
e espiritual. Ele não dará ouvidos nem a socialismo nem a comunismo”.35
Municiado em 1841 com uma nova revista, La Revue de Genève^ Fazy
publicou um projeto de organização municipal de Genebra e reuniu com
seu irmão 950 assinaturas numa petição popular para que se estabelecesse
um conselho eletivo. Aliando, habilmente, a sua própria minoria radical aos
deputados liberais, por um lado, e aos imigrantes revolucionários, por outro,
conseguiu que o conselho de estado convocasse uma assembléia constituin­
te eleita por todos os cidadãos em novembro de 1841,36 e triunfou em sua
resistência, ao longo dos anos 1840, ao poder ressurgente dos Sonderbund
católicos dentro da Suíça. No dia 6 de outubro de 1846, tornou-se chefe de
um governo revolucionário provisório composto por 10 pessoas, o qual se
revelou um dos mais ordeiros e moderados da história moderna. Seu governo
reformou a cidade de maneira concreta — quebrando os velhos monopólios
econômicos, democratizando as igrejas, transformando fortes em habitações
ou asilos de idosos, e assim por diante. Fazy também realizou uma segunda
reforma constitucional da cidade em 1847, que por sua vez influenciou a
estrutura da república federal que foi estabelecida em toda a Suíça no ano
seguinte.
Fazy foi deputado à Dieta constitucional e contribuiu para a elaboração
da constituição federal adotada pela Suíça em 1848. Ajudou a persuadir o

34 Relatório do agente de polícia habsburgo C. von Engelshaufen, 18 de março de 1847, em Barnikol,


Geschichte, p. 4.
35 Relato de G. Kuhlmann baseado em informação de A. Becker repassada por Engelshaufen: Bamikol,
p. 20; v. também comentários às pp. 19-23.
36 Esse relato se baseia em W. Rappard, L’Avènement de le démocratie moderne à Genève (1814-1847),
Genebra, 1942, pp. 253-263, 302-303; também Ruchon, “Famille”, pp. 12-15.
340 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

rei da Prússia a abrir mão de seus direitos sobre Neuchâtel e permaneceu


chefe do governo de Genebra até 1864. Tanto nas atividades locais como nas
nacionais, foi um líder do Partido Radical, abrangendo uma série de iniciati­
vas jornalísticas e econômicas, além de educacionais. Defendeu o estudo de
economia política na Suíça e fundou o Institut national genevois em 1852.
Passou seus últimos anos dando aulas, escrevendo e apadrinhando projetos
civis apolíticos em Genebra.
Fazy teve suas derrotas e seus inimigos. Seu plano geral para a cidade
de Genebra nunca foi implementado com sucesso; e a sua própria situação
financeira precária o levou a especulações econômicas que comprometeram
sua integridade.37 Sua atividade política lhe trouxe inimigos em Genebra
— e muitos outros junto aos suíços conservadores de expressão alemã.38
De qualquer maneira, sua carreira como um todo é uma das mais impres­
sionantes dentre os políticos revolucionários do século xix. Nem mesmo os
conservadores interferiram nas reformas constitucionais que ele realizara com
bastante solidez; e o cronista crítico de seus feitos provavelmente não está
exagerando ao dizer que “Fazy criou uma democracia e uma nova cidade”.39
Assim como outros tantos revolucionários na Inglaterra e nos Estados
Unidos, Fazy foi absorvido pelo sistema político. No processo, ele ajudou a
mudá-lo — mas também foi mudado por ele. Na Suíça do século xix, como
na Inglaterra do século xvu e nos Estados Unidos do século xvm, as revolu­
ções alcançaram moderado sucesso; e assim as desconfianças causadoras de
divisão chegaram ao fim. Em parte, pode-se dizer que mudanças econômicas
subjacentes nesses três países impediram que as mudanças políticas fossem
tão socialmente revolucionárias quanto prometiam a princípio. Não basta,
contudo, simplesmente falar de um crescente capitalismo burguês a domesticar
as bandeiras políticas; de um ativista revolucionário de ontem que se torna
o anedotista conservador de amanhã. Pois o moço que, em 1828, escreveu
a primeira condenação do governo dos velhos enfaticamente não tinha se
tornado, quando de sua morte meio século depois, simplesmente “os detritos
deixados por um tempo rico em tempestades”40 — como ele acusara de se­
rem os revolucionários franceses originais ao tempo da Restauração. Existe

37 Ruchon, “Famille”, pp. 16-17, 20 ss.


38 Ibid., pp. 18-19; também o estudo biográfico extremamente crítico de Th. de Saussure, James Fazy,
Sein Leben und Treiben, Zurique, 1865.
39 Ruchon, p. 24.
40 Gérontocracie, pp. 5-6.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÄRIA 341

uma unidade interna no trabalho de sua vida — nas idéias que expressou,
bem como na tradição que representou. Ideologicamente, articulou como
ninguém o que pode ser descrito como a alternativa gradual e evolucionária
à revolução e à reação. De modo mais geral, a tradição suíça mostrava uma
tal receptividade à mudança gradual, a ponto de parecer eficazmente — e
talvez instrutivamente — imune à formação de uma tradição revolucionária.
Ao examinar as idéias de Fazy, acha-se desde o princípio a crença numa
democracia humanizada, personalizada — composta pelos ideais univer­
sais da Revolução Francesa e pela experiência intimista e comunal de sua
Suíça natal. Suas raízes numa família ligada à manufatura lhe permitiram
perceber, duma forma que poucos teóricos sociais radicais eram capazes de
fazê-lo na Europa continental, a necessidade irreversível e o potencial liber­
tador do desenvolvimento industrial. Como Saint-Simon, ele acreditava na
“necessidade de uma revolução industrial como meio de evitar uma nova
revolução política”.41 Para Fazy, o verdadeiro conflito era, por um lado, entre
aquelas sociedades fechadas e “absolutistas” e, por outro lado, aquelas que
eram abertas e “inquiridoras”. Ele temia igualmente as velhas autoridades
eclesiásticas e os novos ideólogos políticos com suas doctrines alarmantes
du sans-culottisme apostolique.
A França da Restauração estava falsamente preocupada mais com pro­
teger a riqueza antiga do que com criar novos ricos. Tomada de assalto
por ligeiras manobras políticas de “todos aqueles partidos mais ou menos
detestáveis ou ridículos”,42 a França se deixou transformar numa arena de
disputas débilitantes entre velhos. As “ruínas da emigração”43 altercavam
com a revolucionária “geração de 1789” já esgotada, que “começou por
interditar os pais e terminou por deserdar os filhos”.44
À juventude se deveria dar poder porque era ela, “parte viril da nação”45,
que fazia a maior parte do trabalho e era a única a compreender “as ver­
dadeiras necessidades do corpo social”.46 A juventude buscava objetivos
socioeconômicos concretos, em vez de ideais políticos abstratos; e deveria

41 Fazy, Principes d'organisation industrielle pour le développement des richesses en France. Explication
des malaises des classes productives et des moyens d'y porter remède, 1830, título da § às pp. 271-282.
42 Gérontocratie, pp. 6-7.
43 Ibid., p. 22.
44 Ibid., p. 5.
45 Ibid., p. 9.
46 Ibid., p. 22.
342 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ser permitido fazer progredir a civilização com cuidado e inovação — liberta


dos lemas ritualizados e das controvérsias da era revolucionária.
Para Fazy, essa fé na juventude não era uma fantasia apaixonada nem uma
idéia abstrata. Muito tempo depois, na condição de presidente do Cantão de
Genebra, ele organizou banquetes para estudantes nos quais tanto os pais
como os políticos homenageavam as crianças e órfãos da cidade. Alexander
Herzen descreve um desses banquetes durante o ano revolucionário de 1849:
“Fazy fez um discurso inteiramente revolucionário, parabenizou os vencedo­
res e propôs um brinde “Aos futuros cidadãos!”, com execução de música e
salva de canhões. Em seguida as crianças, de duas em duas, caminharam à
sua frente em direção ao campo [...]”.47
Com crescente espanto, Herzen rememora o espetáculo dos pais e demais
adultos a formar uma avenida e saudar, com suas armas, o desfile das crian­
ças com Fazy: “apresentaram suas armas [...] Sim! apresentaram suas armas
diante de seus filhos e dos órfãos. [...] As crianças eram os convidados de
honra da cidade, seus “futuros cidadãos”. Tudo isso era para nós tão estra­
nho quanto estar presente a celebrações de aniversário em escolas russas ou
cerimônias similares”.48
A bête noire de Fazy era a Espanha, cuja forma “absolutista” de governo
produzia “apatia geral” no povo e uma economia estagnada. Ele almejava
solidificar as boas maneiras e o sentimento familiar da pequena Suíça e da
vida comunal alemã, mas lhes acrescendo os benefícios do desenvolvimento
industrial. As sociedades que tinha por ideais eram os países abertos e em­
preendedores da Inglaterra e dos Estados Unidos. Essa sua preferência sugere
uma afinidade profunda entre a nação onde habitava e aquelas que admirava.
Fazy, como a maior parte dos radicais políticos da Inglaterra e dos Estados
Unidos, permaneceu ativo até o fim da vida e não foi forçado a emigrar. Essas
três nações — diferentemente daquelas despedaçadas pela revolução e pela
reação — proporcionaram permanente oportunidade para que os radicais
inovadores dessem uma contribuição duradoura ao desenvolvimento de sua
nação. Assim, a diferença entre Fazy e a maior parte de seus companheiros
carbonários, que depois ou se esgotaram ou se corromperam, está menos em
suas personalidades do que nos seus sistemas políticos.

47 Herzen, My Past, vol. il, p. 723.


48 Ibid.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA FVOLUCIONÁRIA 343

Fazy aperfeiçoou a técnica de realizar mudanças por meio de pacíficas


campanhas constitucionais e eleitorais. Ao ceder, de tempos em tempos, aos
seus adversários conservadores em matérias de nomenclatura e terminologia,
ele em geral conseguiu prevalecer no que diz respeito a matérias essenciais de
direitos e garantias democráticos. Como observou após a sua bem-sucedida
luta pela adoção de uma constituição em Genebra: “mesmo os maiores ad­
versários da revolução contribuíram com a reforma mais radical — satisfeitos
com triunfar sobre nós em alguns pontos aos quais parecíamos nos apegar,
mas que na verdade nos eram de menor importância”.49
Fazy empregava meios extralegais, mas limitadamente: para ampliar a
participação política ao invés de restringi-la a manipulações ou conspira­
ções. Assim, em novembro de 1841, quando o Conselho de Estado estava
obstando à reforma constitucional convocada pela petição popular de Fazy,
ele propôs que se fosse diretamente à Catedral de São Pedro e se reunisse o
populacho para que autorizasse um corpo democraticamente eleito a revisar
a constituição. Confrontado, em 1846, com um contra-ataque conservador
muito mais poderoso dirigido contra a constituição adotada em 1842, Fazy
não hesitou em fazer barricadas e proclamar um governo revolucionário.
Herzen descreveu a tomada de poder como “um dezoito de brumário — em
benefício da democracia e do povo”. Fazy surgiu diante do conselho para
anunciar pessoalmente a sua dissolução. Os membros quase o prenderam, e
então lhe perguntaram em nome de quem falava:

“Em nome do povo de Genebra, que não tolera mais o seu governo e que se alinhou
comigo”, e logo em seguida Fazy puxou a cortina da porta da sala. Um grupo de
homens armados tomou o salão, pronto a descarregar fogo ao primeiro sinal de
Fazy. Os velhos “patrícios” e pacíficos calvinistas foram pegos de surpresa.

“Fujam enquanto é tempo!”, disse, e eles humildemente se arrastaram para


suas casas; Fazy se sentou a uma mesa e escreveu um decreto. [...]50

Este é um relato sem dúvida exagerado, mas essencialmente correto, de


uma rara vitória oitocentista por meio da “ audácia que Saint-Just considerava
essencial em um revolucionário”.51 Mesmo nesse caso, o ato revolucionário
de tomada do poder foi imediatamente subordinado a um programa cons­
titucional; e o governo provisório de dez membros buscou imediatamente

49 Mémoires, p. 246.
50 Herzen, My Past, vol. n, p. 726.
51 Ibid.
344 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

democratizar a cidade internamente, mesmo enquanto se preparavam para


defendê-la de ameaças externas.
Mais significativa ainda era a importância que Fazy dava a direitos in­
dividuais como um objetivo da revolução, sempre a ser protegido mesmo
contra os próprios líderes revolucionários. Sua preferência por legislatura
bicameral, pela manutenção de poderes locais, além do central, e por pesos
e contrapesos entre os três braços do governo — tudo isso se baseava em
sua admiração pelo sistema americano. Mas também advinha das suspeitas
que os burgueses suíços independentes tinham de uma longa linhagem de
intrusos autoritários, dos Sacros Imperadores Romanos a Napoleão. Ele
almejava preservar a integridade política dos cantões para maximizar a
participação local no governo e para se prevenir contra as “tendências uni­
tárias”52 fundamentais aos tiranos. Sua defesa dos direitos individuais de
liberdade de imprensa, reunião e religião era “de inspiração mais anglo-saxã
que francesa”, obra de um homem cuja composição nada tinha de “jacobino,
estatista ou autoritário”.53 Ele defendia a distribuição de poder ao dar um
toque libertário à doutrina da soberania popular absoluta tradicionalmente
invocada pelos centralizadores jacobinos.

A soberania do povo é uma soberania absoluta, cuja totalidade nunca pode ser
confiada a ninguém [...] O povo nunca delega senão partes de sua soberania.54

Fazy denunciou o comunismo não com a injúria dos conservadores, e sim


com o desdém dos liberais. Tratava-se de uma loucura estrangeira, impossível
de ser implantada, a qual nunca poderia ser “representativa do povo”, dizia
Fazy no início de 1842. “Só os governos estrangeiros parecem conscientes
da presença dos comunistas em nossos cantões e de suas ações, as quais
nenhum de nós notou”.55 O empreendedorismo prático dos suíços rejeita o
conceito estrangeiro de “centralização da propriedade [...] por meio da qual
trabalhadores alemães aceitos em nossos cantões estão preparando um futuro
afortunado, no qual não mais precisarão roubar, já que o povo em posse de
qualquer coisa será forçado a abrir mão do que tem”.56

52 Citado em Rappard, Avènement, pp. 366-367.


53 Ibid., pp. 329-330.
54 Ibid., p. 329.
55 Fazy, em Le Représentant du Peuple, 2 de março de 1842, citado em Saitta, Sinistra, p. 399.
56 “Les Communistes allemands en Suisse”, em Le Fédéral. Journal Genevois, 29 de março de 1842,
reproduzido em Saitta, p. 402. O autor não é identificado, mas o artigo é apresentado como, e assim
parece ser, continuação do argumento de Fazy.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 345

As lealdades familiares suíças eram, assim, contrastadas ao princípio


comunista de “centralização da família” numa “única grande família da
humanidade”.57
O desdém dos suíços pelo comunismo nascia tanto de uma confiança na
sua própria revolução constitucional quanto do receio de que ganhos con­
cretos fossem sacrificados por objetivos abstratos. Já em março de 1842 um
jornal genebrês comentava que os trabalhadores suíços de Lausanne haviam
se retirado das reuniões dos comunistas alemães “quando descobriram que
o ensino mútuo [ali praticado] era apenas um pretexto para esconder outro
objetivo. O comunismo não encontra no bom senso do povo suíço um mar
propício para navegar”.58
Fazy também demonstrou apreensão com os perigos do autoritarismo e
centralização do nacionalismo revolucionário. Tendo, em 1867, recepcionado
Garibaldi em Genebra como a personificação da “nova geração”, logo se
voltou contra ele.59 Depois disso, passou a criticar cada vez mais a super-
concentração de poder no Estado moderno. Defendia a opção por Estados
federativos na França, na Espanha e na Itália como meio de estender a fórmula
suíça ao resto da Europa e de dar início a uma federação continental.60 Ele
também alertaria, à maneira de Mill, quanto às ameaças dos agrupamentos à
liberdade originada com a nova tirania das maiorias dentro das democracias.
Escreveu uma “Declaração dos Direitos Individuais”, e sua última obra, Da
inteligência coletiva das sociedades (1873), insistia que os direitos individuais
fossem garantidos contra as autoridades coletivas de quaisquer espécies.61
Liberdade individual e permanente receptividade a Vesprit examinateur
eram, para Fazy, a única chance do progresso e a melhor esperança de
57 Ibid., p. 402.
58 Ibid., p. 403. Auguste Becker, o principal comunista alemão na Suíça após a prisão de Weitling em
1843, contra-atacou a fé de Fazy no poder da “economia política [...] para curar suficientemente
os inales da sociedade”. Les doctrinaires et les communistes dans la Suisse romande. Petit mémoire
addressé aux hommes d’état et aux honnêtes gens de la Suisse et de l’Allemagne, Lausanne, 1845,
p. 2, citado em Saitta, p. 301.
Depois das revoluções de 1848, à medida que passou a se preocupar com a redação de O Capital,
Marx passou a ter uma visão mais positiva de Fazy. V. A. Babel, “La Première Internationale, ses
débuts et son activité à Genève de 1864 à 1870”, em Mélanges d’études économiques et sociales
offerts à William E. Rappard, Genebra, 1944, pp. 244—245, 251.
59 Campanella, “Congress”, p. 464 ss., esp. p. 476.
60 Henri Fazy, p. 315.
61 Ibid., p. 94, sobre a Declaration des droits individuels', e p. 313 ss. sobre De l’intelligence collective
des sociétés, Fazy, contudo, estando no poder em 1849, teve de restringir as liberdades civis daqueles
que estavam exilados em seu território, a fim de se prevenir contra repressão externa - o que muito
escandalizou Herzen, My Past, vol. Il, pp. 727—734.
346 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

felicidade, tal como pensavam os principais progressistas liberais do mundo


anglo-americano do século xix.

Sociedades sem revolucionários


A experiência desse pequeno país sugere uma questão mais geral: por que
os regimes parlamentares e as sociedades relativamente abertas dos Estados
Unidos, da Inglaterra e da Suíça nunca transformaram as suas bem-sucedidas
revoluções em movimentos revolucionários de maior amplitude? Por que
esses países, que proporcionaram grande parte das primeiras inspirações dos
revolucionários e lhes deram constante asilo, praticamente não produziram
tradições revolucionárias nativas?
O mundo anglo-saxão estava, é claro, geográfica e lingüisticamente se­
parado do continente — e tinha uma tradição comum, bastante específica,
de gradual desenvolvimento legal e político. E ainda assim, por outro lado,
sem essas duas nações a tradição revolucionária moderna é impensável. A
Revolução Puritana na Inglaterra do século xvn foi chamada de primeira
revolução “ecumênica” por projetar uma visão universal do homem e da
sociedade.62 A Inglaterra deu início à Revolução Industrial um século depois
e, à altura do início do século xix possuía o primeiro proletariado industrial
e uma rica floração de atividade propagandistica e jornalística. Mesmo assim,
a Inglaterra não produziu uma tradição revolucionária própria — que dirá
uma revolução — naquele século.
Tampouco a produziram os Estados Unidos, que deflagraram em 1776
a cadeia de revoluções políticas modernas. A despeito da linguagem revo­
lucionária da Declaração de Independência e da permanente retórica da
política norte-americana (com partidos usando nomes revolucionários, como
“Democrático” e “Republicano”), os Estados Unidos contribuíram pouco
com a tradição revolucionária moderna. Tal qual a Inglaterra, os Estados
Unidos absorveram os derrotados. Suas vastidões despovoadas se prestavam
aos experimentos utópicos de Owen, Fourier e Gäbet — e depois aos feitos
desesperados dos republicanos irlandeses e dos anarquistas do leste europeu.
Mas os Estados Unidos não forneceram nenhuma liderança, ideologia ou
organização revolucionária de importância. No século xix, a resposta do
Novo Mundo ao Velho foi provavelmente maior na América do Sul do que

62 Onu, “Sotsiologicheskaia”, pp. 29-55, distingue essa revolução local com objetivos universais das
ondas mais disseminadas de revoluções que possuem, contudo, objetivos mais provincianos (como
em 1848).
LIVRO IL CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 347

na América do Norte. Os Estados Unidos apareceram no movimento revo­


lucionário internacional principalmente como local de agitação jornalística
da Liga Comunista e de colapso final da Primeira Internacional. Até mesmo
este último evento na Filadélfia, em 1876, passou quase despercebido em
meio às comemorações do centenário da Revolução Americana.
Mas por que a Suíça, localizada no coração da Europa e em estreito contato
com os movimentos revolucionários de todo o continente, falhou em forjar
uma tradição revolucionária a partir de sua revolução mais recente? A Suíça
deu à Europa o ideal de William Tell e as idéias de Rousseau. Deu abrigo
a revolucionários participativos, de Buonarroti, em Genebra, passando por
Bakunin, em Vevey, e chegando a Lênin, em Zurique.63 Atraiu tantos líderes
revolucionários eslavos, a ponto de levar o anti-revolucionário Dostoiévski
a caracterizar todo o conceito de revolução como “a idéia de Genebra”.64
Uma bem-sucedida revolução passada e determinado grau de representação
popular não explicam inteiramente por que a Suíça, a Inglaterra e os Estados
Unidos se mostraram tão imunes à formação de suas próprias organizações
ou ideologias revolucionárias. O exemplo fundamental da França mostra que
uma revolução relativamente bem-sucedida e algum grau de sufrágio não
são necessariamente antídotos ao desenvolvimento de uma tradição revolu­
cionária profissional. A França, lugar de vitoriosas revoluções “burguesas”
tanto em 1789 como em 1830, tornou-se o principal solo fértil para novas
idéias e organizações revolucionárias.
Qual, então, a diferença crucial entre Inglaterra, Estados Unidos e Su­
íça, onde não se desenvolveram tradições revolucionárias, e França, Itália
e Polônia (bem como outros países eslavos, germânicos e latinos), que as
desenvolveram?
A principal diferença parece estar na maneira como a mudança e a oposi­
ção se efetivaram na Inglaterra, nos Estados Unidos e na Suíça. Em primeiro
63 Sobre o papel central da Suíça como lugar de asilo e gestação de movimentos revolucionários, v. G.
Ferretti, Esuli del Risorgimento in Svizzera, Bolonha, 1948, e A. Senn, The Russian Revolution in
Switzerland 1914—1917, Wisconsin, 1971.
A Inglaterra desempenhou papel múltiplo: como financiadora de revoluções contra Napoleão (J.
Hirn, Englische subsidien für Tirol und die Emigranten von 1809, Innsbruck, 1912); corno base para
revolucionários italianos posteriores (E. Morelli, Mazzini in Inghilterra, Florença, 1938; M. Wicks,
The Italian Exiles in London, Manchester 1937); e como refúgio para uma grande variedade de
revolucionários sem lar (J. Hulse, Revolutionists in London, A Study of Five Unorthodox Socialists,
Oxford, 1970).
64 “A ‘idéia de Genebra’ é a idéia da virtude sem Cristo, meu rapaz, a idéia moderna, ou, mais
precisamente, a idéia de toda a civilização moderna”. Dostoiévski, A raw youth [O adolescente], L,
1950, p. 208.
348 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

lugar, essas foram nações que experimentaram previamente e legitimaram


a oposição ideológica ao catolicismo medieval. Eram, em suma, nações nas
quais o protestantismo se mostrava, senão o credo dominante, como nos
Estados Unidos, pelo menos um credo venerável e tão presente quantos os
demais. Em segundo lugar, cada uma dessas nações tinha encontrado modos
diferentes de institucionalizar a oposição política por meio de um eficiente
sistema de partidos. Fosse com um monarca e um governo parlamentarista
centralizado, como na Inglaterra, ou fosse numa república federativa com
separação de poderes, como nos Estados Unidos e na Suíça, o fato é que
todas essas nações proveram um escopo político à oposição séria e institu­
cionalizada. Além disso, essa oposição assumiu a forma disciplinada de um
número limitado de partidos — normalmente os dois maiores.
Isto não quer dizer que governo protestante não fosse ele próprio into­
lerante (ou até sangrento, como o atestam os católicos irlandeses e suíços
derrotados). Nem tampouco foi a tolerância à oposição política alcançada,
nesses três países, sem uso de violência e sem antagonismo civil num momento
ou noutro. A institucionalização da oposição ideológica e política, sob certo
aspecto, se relacionou com — e foi expressivo de — um tipo específico de
desenvolvimento econômico dinâmico e explorador que se deu nesses países.
Só aqueles ainda presos às ingenuidades científicas do século xix diriam ca­
tegoricamente que o capitalismo foi a causa e o constitue!onalismo, o efeito.
Karl Marx e Max Weber chegaram a conclusões diametralmente opostas
sobre se o protestantismo causou ou foi causado pelo capitalismo. Embaraço
similar pode ser extraído da literatura sobre a relação entre o surgimento da
burguesia industrial e a democracia liberal.
Mas também havia uma inter-relação — na qual, mais uma vez, é difícil
distinguir causa de efeito — entre a presença de tradições protestantes e
parlamentaristas e a ausência de tradições revolucionárias no século xix.
Thomas Macaulay, o grande cantor da Inglaterra parlamentarista e pro­
testante, descreveu-se como um homem que “desgosta de revoluções e,
por essa mesma razão [...] desgosta de contra-revoluções”. Essa passagem
é citada no frontispício de um importante tratado escrito por um liberal
húngaro,65 e bem poderia constar como prefácio à história do progressismo
parlamentarista. Gerações posteriores se rebelaram contra a auto-elogiosa

65 Frontispício de J. Êotvôs, Über die Gleichberechtigung der Nationalitäten in Oesterreich, Viena,


1851.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÄRIA 349

“interpretação whig da história”66 feita por Macaulay. Mas sua convicção


de que o protestantismo e o parlamento eram os dois antídotos essenciais
à estagnação e à insurreição foi largamente compartilhada por políticos
continentais em ascensão no século xix. Assim como Macaulay espalhou
suas idéias não só no parlamento, mas também através de sua monumental
e agradável História da Inglaterra, de igual modo no continente os poderes
libertadores do protestantismo e do parlamentarismo foram celebrados
por uma série de historiadores populares (e políticos, eles próprios) da
civilização, a começar por Gizot e Sismondi.
Grande parte da experiência européia do século xix dá substância ao
argumento de que o protestantismo e o parlamentarismo servem como uma
espécie de alternativa equivalente à revolução. Os países talvez mais imunes
de toda a Europa a movimentos revolucionários nativos foram as nações
inteiramente protestantes da Escandinávia, nas quais se desenvolveu uma
tolerância à sociedade de bem-estar socialista e à monarquia. Os Países Baixos
também servem de exemplo. Embora a Holanda tenha vivido uma revolução
ideológica contra a Espanha ao fim do século xvi, uma revolução política
ao fim do xvm e uma revolução de independência em 1830, dali em diante
os Países Baixos permaneceram em tranqüilidade, mesclando, no século xx,
monarquia e alto grau de controle social. Tudo isso foi alcançado gradual­
mente, com tolerância à oposição legal e à verbalização de discordâncias.
Por que as coisas foram tão diferentes na França? Assim como a Inglaterra,
os Estados Unidos e a Suíça, a França fizera avanços constitucionais por meio
de revolução: com a constituição de 1815 e com a monarquia constitucional
de 1830. Apesar disso, surgiram movimentos revolucionários após cada uma
dessas “vitórias”, e a França se tornou o principal centro de extremismo
revolucionário até depois da Comuna de Paris de 1871. Os jansenistas e
os philosophes tinham dado à França as suas formas próprias de dissenso
para com o catolicismo medieval; e a monarquia de julho legitimara algum
grau de oposição política. A França permaneceu, contudo, polarizada entre
posições extremas.
A tentativa de legitimar a oposição ideológica e política feita por Lamen­
nais e a escola de reforma social católica representou talvez o mais poderoso
esforço, durante os anos 1830, de chegar a um meio caminho coerente. Mas
Lamennais, embora muito lido naquela década, fracassou quase inteiramente

66 H. Butterfield, The whig interpretation of History, L, 1931.


350 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

em seu esforço de implantar na França católica um equivalente do protes­


tantismo e da democracia política.
Lamennais defendia uma espécie de versão socialista da Reforma dentro
da Igreja Católica. Ele viu com bons olhos as revoluções de 1830 preci­
samente porque legitimavam a oposição política na França e na Bélgica
e, assim, libertavam o catolicismo de seus elos com os monarcas tradicio­
nais. Ele exerceu alguma influência sobre os moderados na Bélgica,67 mas
bem pouca na França antes de receber louvores póstumos de democratas
cristãos e socialistas cristãos no século xx. Pois Lamennais era tanto
anti-revolucionário quanto antiautoritário. Embora nunca tenha sido pro­
testante nem ocupado assento no parlamento, acreditava na necessidade
de uma oposição religiosa dentro do cristianismo e de oposição política
dentro da ordem social.
Sem oposição ideológica e política ao status quo^ Lamennais temia que
a Europa se despedaçasse mediante contínua guerra civil entre revolucioná­
rios e reacionários ou se desintegrasse por completa falta de paixão. Assim
como os revivalistas protestantes na Inglaterra, que freqüentemente eram
acusados de substituir o fervor religioso das classes trabalhadoras pelo fer­
vor revolucionário, Lamennais era um entusiasta arrebatado. Escreveu seu
primeiro e famoso Ensaio sobre a Indiferença^ em 1817, com o propósito
específico de combater a debilitante tendência à apatia e decadência.68 Não
importa que ele alternasse entre seu conservadorismo católico inicial e seu
namoro final com o socialismo revolucionário, o fato é que ele queria, co­
erentemente, que a Europa partilhasse de seu entusiasmo, ajudasse a criar
uma nova oposição ideológico-política que revitalizasse uma civilização
já velha. A defesa que Lamennais fazia da democracia cristã e da justiça
social foi bastante ouvida por toda a Europa; mas só as suas primeiras
idéias conservadoras e ultramontanas tiveram contínua ressonância na
França novecentista.
Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos (ou na Suíça), onde
as controvérsias que se seguiram à revolução foram rapidamente ritualizadas

67 K. Jürgensen, Lamennais und die Gestaltung des belgischen Staates. Der liberale Katholizismus in
der Verfassungsbewegung des 19 Jahrhunderts, Wiesbaden, 1963. Lamennais tendia a ser influente
em países onde a revolução havia sido frustrada: na Alemanha dos anos 1830, como já discutido,
e na Rússia dos anos 1840; v. E Nikitina, “Petrashevstsy i Lamenne”, em Dostoevsky. Materialy
i issledovaniia, vol. ui, 1978, pp. 256—258, a primeira divulgação de um longo estudo ainda a ser
publicado.
68 Essai sur l'indifférence en matière de religion, 4 vol., 1817-1823.
LIVRO II, CAPÍTULO 7: A ALTERNATIVA EVOLUCIONÁRIA 351

como partidos políticos, a política francesa permaneceu polarizada. Os revo­


lucionários estavam constantemente confrontando os contra-revolucionários
fora das instituições parlamentares, as quais eram amiúde vistas como não
mais que arenas de briga para secretários mesquinhos. As facções modera­
das instaladas no poder raramente se sentiam seguras para aceitar o risco
de permitir que os partidos de oposição se unissem — ou sequer o risco de
tolerar eleições que pudessem trazer grandes mudanças ao exercício do poder.
Por que o impacto das duas grandes revoluções do fim do século xvm
foi tão dramaticamente diverso sobre a história política posterior dos Es­
tados Unidos e da França respectivamente? Havia, claro, óbvias diferenças
entre a tàbula rasa do Novo Mundo e a confusão de costumes feudais e
privilégios aristocráticos do ancien régimes entre a aceitação relutante, na
Inglaterra, de uma revolução em parte enraizada em direitos históricos e a
recusa revanchista da tradicionalista França em aceitar estruturas criadas
pela revolução de 1789. Pode-se também argumentar que a Revolução Ame­
ricana foi essencialmente republicana, ao passo que a Revolução Francesa
foi democrática — e assim intrinsecamente mais radical.
A vitoriosa Revolução Suíça seguiu não tanto o padrão francês quanto
o norte-americano de aceitar uma solução federalista para a organização
do Estado. A fórmula moderada girondina da Suíça foi rejeitada na França
tanto pelos bonapartistas quanto pelos jacobinos centralizadores. A Re­
volução Suíça, como a americana, obteve mais sucesso que a francesa em
distribuir o poder para além do centro que o exerce. Os suíços e os ameri­
canos neutralizaram o mito da revolução total que está por vir — ambos o
fizeram ao mitificar uma constituição moderada e ao legitimar a oposição
ideológica e política na sociedade pós-revolucionária.
Os Estados Unidos e a Suíça — e em alguma medida a Inglaterra, os
Países Baixos e a Escandinávia — rejeitaram o impulso básico da tradição
revolucionária ideológica rumo à simplificação radical. As revoluções
americana e suíça se consolidaram construindo sistemas políticos mais
complexos, e não mais simples. Em vez de centralizados, eram federalistas;
mais pessoas tomavam parte deles; e o poder tendia a permanecer difuso.
Desde a época em que os jacobinos atacaram os girondinos até a época
em que Buonarroti atacou o sistema americano, a tradição revolucionária
francesa claramente enxergou a complexidade do federalismo como uma
ameaça à simplicidade do sonho revolucionário.
352 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os Estados Unidos essencialmente colocaram em prática as idéias refor­


mistas do Iluminismo através de um processo gradativo.69 A Europa conti­
nental permaneceu, ao longo do século xix, politicamente mais autoritária
do que o Império Britânico fora no século xvm sob o reinado de George ui.
Assim, os europeus continuavam a desenvolver em teoria o conceito mais
revolucionário iluminista de operar um esclarecimento total por meio de
uma insurreição vindoura. Os intelectuais que antes da Revolução Francesa
tentaram “esclarecer os déspotas”, a fim de transformar a sociedade, agora
se voltavam para uma nova fonte de libertação: a ideologia. Esse moderno
substitutivo da religião nasceu — tanto como uma expressão quanto como
uma força — da oposição político-intelectual a Napoleão. Alcançou a ma­
turidade em meado do século, validando e legitimando a tradição revolucio­
nária social como adversária do nacionalismo revolucionário. A ideologia
ajudou os revolucionários sobretudo a manter vivas as certezas simples de
sua fé contra a sedução do empirismo e do liberalismo anglo-americanos.
Devemos agora nos voltar para o nascimento da ideologia revolucionária,
o derradeiro inimigo da alternativa evolucionária.

69 É a tese de H. Commanger, The empire of reason. How Europe imagined and America realized
the Enlightenment, NY, 1977, ecoada no essencial por P. Gay, “America the Paradoxical”, emThe
George Mason Lectures, Williamsburg, 1976.
CAPÍTULO 8
Profecia: o surgimento da intelligentsia

aparecimento de movimentos revolucionários na primeira metade

O do século xix se ligou diretamente ao desenvolvimento de uma nova


classe de intelectuais no continente europeu. Essa nova classe criou
sistemas de pensamento originais que podem ser chamados de ideologias,
e afinal desenvolveu um novo senso de identidade (e um termo com que se
descrever) como “intelligentsia”.
Sim, aos intelectuais se somavam em toda parte outras forças étnicas e
sociais de protesto contra as condições da fase inicial de industrialização
e contra a reação política. Mas, na turbulência que levou a revoluções em
1848 — independentemente de quais fossem as causas últimas —, os intelec­
tuais foram claramente preponderantes. Levaram o contágio de seus estudos
para as ruas, dos banquetes até as barricadas, a cruzar fronteiras nacionais.
Popularizaram, legitimaram e internacionalizaram o impulso revolucionário.
Restam ainda por ser feitos incontáveis estudos sobre a sociologia e a
psicologia dessa nova força social.1 Mas a primeira tarefa de uma história
1 Sobre o problema básico e recorrente de satisfazer uma população educada que cresce rapidamente
com expectativas que ultrapassam muito as oportunidades vocacionais, v. L. O’Boyle, “The Problem
of an Excess of Educated Men in Western Europe 1800-1850”, em Journal of Modern History,
1970, dez., pp. 471-495. Algumas hipóteses estimulantes sobre os modos variáveis de discurso
são mescladas com uma prosa sociológica empolada em A. Gouldner, “Prologue to a Theory of
Revolutionary Intellectuals”, em Telos, 1975-1976, inverno, pp. 3-36. As opiniões complexas do
próprio Marx estão descritas em S. Avineri, “Marx and the Intellectuals”, em Journal of the History of
Ideas, 1967, abr.-jun., pp. 269-278. A. Gella conta a história do princípio de urna teoria sociologica
geral (embora diga relativamente pouco sobre os inícios do fenômeno na própria Polônia) em “The
354 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

dos movimentos revolucionários é isolar aqueles sistemas de pensamento que


tiveram papel mais decisivo no desenvolvimento do afinco revolucionário
entre os intelectuais de início do século xix; determinar a gênese dessas novas
criações do espírito conhecidas como ideologias.
As ideologias foram definidas como “as proposições, teorias e objetivos
integrados que compõem um programa político-social”. Elas “conceitualizam
o processo e orientam os seres humanos a moldá-lo” ao criar “um programa
de ação coletivo” a partir de um “sistema coerente de símbolos”.*2 São, sob
muitos aspectos, uma forma moderna de religião — abrangentes em seu
escopo, universais em sua aplicação, históricas em seu direcionamento. Para
determinar quais desses sistemas no período romântico foram mais revolucio­
nários, pode-se começar com a distinção feita por Lênin entre as ideologias
dos revolucionários e a ideologia revolucionária. Qualquer inventário daquelas
primeiras no século xix teria de incluir o republicanismo, o nacionalismo, o
fourierismo, o owenismo, o messianismo cristão, o anarquismo, o populismo
e até o espiritismo. Mas poucas dentre essas eram inerentemente ideologias
revolucionárias com aplicabilidade universal e um conceito claro de como o
conflito atual conduziría à felicidade futura. Nenhum desses “ismos” oferecia
um conceito secular claro de como a história operava e de como oferecer
segurança intelectual e orientação estratégica aos revolucionários.
Dois dos novos sistemas — os de Saint-Simon e Hegel — ofereciam exata­
mente uma tal visão da história, e assim ambos serviram de fontes principais
à ideologia revolucionária moderna. Embora as ideologias tenham se desen­
volvido somente após suas mortes, Saint-Simon e Hegel criaram as idéias
originais que atravessaram fronteiras nacionais e culturais até adquirirem
um atrativo universal em uma era de nacionalismo.
Existem alguns paralelos entre os mundos de pensamento radicalmente
diferentes do aristocrata francês e do professor alemão. Cada um deles bus­
cou atualizar a fé iluminista nas leis subjacentes da natureza com uma nova
crença nas leis dinâmicas da história. Cada um atraiu jovens intelectuais
ambiciosos com o ideal de uma nova elite ativista. O número de discípulos
Life and Death of the Old Polish Intelligentsia”, em Slavic Review, 1971, mar., pp. 1-27.
2 Definições tomadas, respectivamente, de Webster’s Third International Dictionary, repetidas e
discutidas em E. Shils e H. Johnson, International Encyclopedia of the Social Sciences, vol. vu, pp.
66-85; e de W. Mullins, “On the Concept of Ideology in Political Science”, em American Political
Science Review, 1972, jun., pp. 498-510. E. Lenberg sugere que ideologias são necessárias para
a sobrevivência do mundo moderno: Ideologie und Gesellschaft, Stuttgart, 1971. H. Schelsky vê
os intelectuais comprometidos com ideologias como sacerdotes de uma nova religião secular: Die
Arbeit tun die anderen: Klassenkampf und Priesterherrschäft der Intellektuellen, Opladen, 1975.
LIVRO n, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 355

decada um se ampliou após a morte do mestre (Saint-Simon em 1825, Hegel


em 1832), pois seus respectivos impactos estavam em suas idéias, não em
suas personalidades.
Cada uma dessas idéias deu origem a uma escola de pensamento que
tomou um rumo ironicamente diverso daquele previsto pelo mestre. Tanto
Saint-Simon quanto Hegel haviam desenvolvido novas visões da história
precisamente para pôr fim à perturbação revolucionária; seus discípulos,
contudo, estavam na linha de frente de um renovado protesto revolucio­
nário. Embora a influência de Saint-Simon e a de Hegel fossem protéicas,
mostraram-se mais decisivas sobre os revolucionários. O impacto de ambos
convergiu em Karl Marx.
Se Saint-Simon e Hegel foram profundamente moldados pelos aconte­
cimentos da Revolução Francesa, cada um articulou suas idéias, por outro
lado, sob a sombra de Napoleão. Cada um foi, ao seu modo, um imperialista
da mente, buscando realizar no reino das idéias o domínio universal que
Napoleão parecia ter estabelecido sobre o mundo material.
Aos 42 anos, Saint-Simon trocou uma vida de especulação financeira e
aventura aristocrática por outra de especulação e aventura intelectual. Ele
o fez em resposta direta às supostas necessidades de Napoleão, que acabara
de se proclamar imperador. O primeiro escrito sério de Saint-Simon foi uma
proposta de currículo para o novo sistema de trinta liceus que Napoleão
havia projetado como a base para a educação cívica,3 e sua primeira obra de
importância publicada foi a proposta — escrita em 1802-1803 e dedicada a
Napoleão — de um projeto de paz perpétua durante a trégua que se seguiu
ao tratado de Amiens.4
A primeira obra importante de Hegel também foi escrita nesse mesmo
período, logo após assumir seu posto acadêmico na Universidade de Jena
em 1801. O seu grande tratado ideológico, A fenomenologia da mente (ou
espírito)^ foi escrito como uma espécie de contraponto intelectual à conquista
militar da Alemanha por Napoleão. Foi concluído ao som do canhoneio da
batalha em Jena, onde Napoleão esmagou a Prússia.

3 V. J. Dautry, “Sur un imprimé retrouvé du Comte de Saint-Simon”, em Annales Historiques, 1948,


out.-dez., pp. 289-321.
4 Republicado em Saint-Simon, Selected Writings (ed. F. Markham), NY, 1952, pp. 1-11. Dos muitos
estudos dedicados a Saint-Simon, faz-se aqui especial uso de E Manuel, The New World of Henri
Samt-Simon, Cambridge, Massachusetts, 1956.
356 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A filosofia de Hegel constituiu, sob alguns aspectos, uma vingança do


pensamento alemão contra a potência francesa vitoriosa. Os escritos de
Saint-Simon, por outro lado, representaram um drama mais sutil: o dos pri­
meiros “ideólogos” que se vingaram de um sistema político que os rejeitara.

Os saint-simonianos
Pesquisas recentes, às quais se tem dado pouca atenção, indicam que os revo­
lucionários babeuvistas e filadelfos podem ter influenciado diretamente Henri
de Saint-Simon durante a primeira década do século xix. Muito estudado
como uma influência de revolucionários posteriores, Saint-Simon também
deveria ter sido visto ele próprio como talvez influenciado, de modo direito,
pelos primeiros conspiradores da era napoleonica.
O elo crucial na sucessão apostólica que vai da Conspiração de Babeuf ao
nascimento da ideologia com Saint-Simon está em um dramaturgo e editor
revolucionário de menor importância, Jacques Rigomer-Bazin, com quem
Saint-Simon viveu em Paris em vários momentos importantes durante aquela
década. Pode ser que Bazin estivesse ligado ao Círculo Social de Bonneville,
e é quase certo que tomou parte da Conspiração de Babeuf quando ainda
trabalhava como jornalista revolucionário na provinciana Le Mans.56Depois
de se mudar para Paris, tornou-se próximo de Maréchal e de outros sobre­
viventes da conspiração por meio de um círculo de intelectuais radicais que
começou a se reunir periodicamente no Café Manège em 1799. A polícia
parisiense prendeu Bazin em maio de 1804 e confiscou o seu Esboço de um
novo projeto de organização social^ que aparentemente propunha que uma
elite autoritária de 30 sábios ajudasse os pobres a instaurar a igualdade social?
Saint-Simon estava morando com Bazin à época de sua prisão; e poste­
riormente, como fica claro, ele tomaria de empréstimo muitos elementos
dos escritos de Bazin desse período. Sua Carta de um Morador de Genebra
(1802-1803) propunha que 21 homens de gênio iniciassem uma subscrição
diante do túmulo de Newton e dessem início à reorganização científica da

5 O nome da sua organização em Le Mans, cercle constitutionnel ambulant, sugere elo com Bonneville.
V. J. Dautry, “Babuvistskaia traditsiia posle smerti Babefa i do revoliutsii 1830 g.”, em Frantsuzsky
ezhegodnik 1960, 1961, pp. 156-157, 165.
6 Ao que parece, não restaram cópias da obra confiscada de Bazin, Esquisse d’un nouveau plan
d’organisation sociale par un philanthrope. V. J. Dautry, “Saint-Simon et les anciens babouvistes
de 1804 à 1809”, em Babeuf... deuxième centenaire, p. 164. Dautry duvida da hipótese lançada
anteriormente por Mathiez, de que Saint-Simon pode ter sido influenciado diretamente por Babeuf
quando ambos estavam na Picardia em 1790—1793.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 357

sociedade. Sua obra seguinte, de 1804, adotou até o título da obra confiscada
de Bazin, acrescentando à defesa que este fizera de uma elite científica uma
idéia que pouco depois ganharia maior desenvolvimento nas mãos de Bazin:
o artista deveria ser o moralista da nova era científica; e um novo tipo de
escritor, o littérateur, o seu propagandista.7
Bazin desempenhou esse papel quando reapareceu, após sua soltura em
1807, como editor de um novo jornal, o Lettres Philosophiques, que atacava
os católicos e defendia ferrenhamente Maréchal em nome do “partido que
persiste em instruir para o progresso da filosofia”.8 O jornal se propunha
supostamente a “iniciar uma correspondência pública entre os filósofos”;9
mas parece que, na verdade, serviu de meio de comunicação (e talvez até de
mensagens codificadas) entre revolucionários filadelfos. Bazin era um de seus
líderes. Assinou um artigo de destaque, “Diálogo sobre a filosofia”, com o
nome de Philadelphe*, e a lista de 250 assinantes incluía a maior parte dos
principais revolucionários do período, cuja soma total era compatível com
a organização da sociedade em células de cinco homens. Parece razoável
a suposição de que o Lettres fosse simplesmente o órgão público de uma
conspiração secreta.10
No último número do jornal, Bazin lançou o clamor clássico do intelectual
alijado socialmente; perturbado com objetivos abstratos, ansioso por adquirir
relevância política e obcecado com a sua própria importância missionária,
anunciou que estava desistindo da filosofia de uma vez por todas em prol de
un plan d'une plus grande étendue; j'ouvre un plus vaste champ à la critique
[...] sur tous les points de la République des Lettres [um projeto de maior
escopo; lavro um campo mais vasto para a crítica [...] de todos os aspectos
da República das Letras].11
O novo jornal de Bazin incumbido de realizar essa missão jamais foi
criado; ele foi preso no início da primeira conspiração de Malet em 1808.

7 O Esquisse d’un nouveau plan d’organisation sociale par un philanthrope, do próprio Saint-Simon,
foi escrito anonimamente e permaneceu inédito até 1925. Dautry o comenta em Saint-Simon, Textes
choisis, 1951, p. 20.
8 Citado das Lettres philosophiques em Dautry, “Saint-Simon et babouvistes”, p. 165. Seu elogio de
Maréchal está em Lettres, pp. 109-118 (BN). Sua visão similar à de Maréchal da filosofia como o
“ponto” da “perfeição da espécie humana” para o qual todas as ciências convergem é desenvolvida
em Lettres, p. 203.
9 Citado em ibid., p. 166.
10 Interpretação sugerida por Dautry (ibid., p. 169) e Tugan-Baranovsky, “Male”, p. 179. Indicações
suplementares da importância de Bazin para os filadelfos estão em Vermale, Didier, pp. 96-97.
11 Citado em “Saint-Simon et babouvistes”, p. 170.
358 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Liberto da prisão em 1809, morou secreta e ilegalmente mais uma vez com
Saint-Simon, que o ajudou a fugir para o exílio.12 Embora seus caminhos
pareçam não ter mais se cruzado,13 fica claro que, durante esse período
de formação, Bazin serviu de inspiração pessoal e ideológica para a visão
saint-simoniana de uma elite de intelectuais que transformam não só a po­
lítica, mas toda a sociedade e cultura humanas.
Para rastrear a origem da ideologia revolucionária, deve-se distinguir
duas fases sucessivas do movimento saint-simoniano: a cientificista e a ro­
mântica. A primeira delas ocupou os últimos vinte e cinco anos de vida de
Saint-Simon, o que corresponde ao primeiro quarto do século xix. Repre­
sentou, em essência, uma reafirmação da crença setecentista no progresso
racional, secular. A segunda fase romântica se desdobrou durante a década
que se seguiu à morte do mestre, em 1825. Atendendo ao chamado de sua
última obra, O novo cristianismo, os discípulos de Saint-Simon criaram uma
nova e fantástica religião secular, com uma perspectiva global que antecipou
muitos aspectos do pensamento do século xx.

Uma ciência do homem

A fase cientificista do pensamento de Saint-Simon derivou diretamente


das atividades daqueles que primeiro se designaram “ideologistas”. Destutt
de Tracy, o primeiro a popularizar o termo “ideologia” em 1796-1797,14
sugeriu na primeira parte de seu Elementos de ideologia, de 1801, que a me­
tafísica tradicional deveria ser superada pela “ideologia”, um novo método
de observação dos fatos e de dedução de conseqüências que não aceitasse
nada que não fosse sugerido diretamente pelas sensações. Apoiando-se na
tradição de Locke e do Tratado das sensações (1775) de Condillac, De Tracy
12 Ibid., p. 172 ss.
13 Saint-Simon realmente enviou para Bazin um exemplar de sua brochura de 1814, Sobre a
reorganização da sociedade européia’, mas Bazin não gostou dela (“Saint-Simon et babouvistes”,
p.175). Ele retornou para Le Mans após a queda de Napoleão, adotou uma posição mais nacionalista
que revolucionária e teve negado sepultamento católico não por causa de seu passado revolucionário,
mas porque tinha morrido num duelo. V. Dautry, “Traditsiia”, pp. 172—179, esp. nota 140.
Um dos primeiros e negligenciados retratos de Bazin se refere aos “Bazinistes” como possuidores de
um tipo especial de sang froid dentre os revolucionários: “une espèce de haine élégante et frondeuse,
presqu’aussi aristocratique que la classe à laquelle elle s’adressait” (“uma espécie de raiva elegante
e rebelde, quase tão aristocrática quanto à classe contra a qual se dirige”]. Biographie universelle
ancienne et moderne, 1843, vol. ni, p. 353.
14 V. E. Kennedy, A philosophe in the Age of Revolution: Destutt de Tracy and the origins of “ ideology”,
Filadélfia, 1978, pp. 46-48. Trata-se de uma discussão completa, com referências exaustivas, dos
usos do termo “ideologia”. V. o seu “‘Ideology’ from Destutt de Tracy to Marx”, em Journal of
Ideas, 1979, jul.-set., pp. 353-368.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 359

argumentava que todo pensamento e todo sentimento são sensações físicas


em sentido estrito. “A ideologia é uma parte da zoologia”, escreve, com um
veio polêmico.15 A felicidade não é nada mais que o jogo livre dos órgãos.
Como o seu colaborador mais próximo resumiu: “O cérebro digere impres­
sões e secreta pensamentos”.16
Henri de Saint-Simon estendeu esse empirismo radical ao campo inteira­
mente novo das relações sociais. Tendo passado onze meses na prisão durante
o Reino do Terror, a aguardar sua morte a qualquer momento, ele tinha
profundo medo de revoluções. Sonhava fundar uma nova ciência do homem
como meio de superar a desordem e extirpar o inchaço de falsa retórica po­
lítica que ocultava as verdadeiras questões materiais da sociedade.1718
Assim,
ironicamente, esse aristocrata do ancien régime que buscava oferecer (nas
palavras do título de um de seus livros) os meios para pôr fim à revolução™
acabou popularizando a mais revolucionária de todas as idéias modernas:
pode existir uma ciência das relações humanas.
As idéias de Saint-Simon encontraram ouvidos receptivos porque os primeiros
“ideologistas” reunidos em torno de De Tracy19 popularizaram não apenas um
método de análise, mas também uma visão de sociedade. Entre os amigos de
De Tracy pertencentes à Segunda Seção do recém-criado Instituto (dedicado à
ciência moral e política), desenvolvera-se nos anos 1790 a crença inebriante de
que o desenvolvimento e a aplicação da nova ciência da humanidade poderiam
ser a criação suprema da era revolucionária. O jornal que popularizou essa fé
no poder prático da ciência foi o influente Décade Philosophique, Littéraire
et Politique, fundado em 1794, ano da reação termidoriana. Depois de cinco
anos de revolução tempestuosa, esse jornal e a recém-criada Segunda Seção
do Instituto buscaram centrar atenção em mudanças pacíficas e pedagógicas
para a “década filosófica” que se aproximava.

15 Éléments d’idéologie, 1801, vol. i, p. 1. V. G. Lichtheim, The concept of ideology and other essays,
NY, 1967, 3-46.
16 Cabanis, “Rapport du physique et du moral de l’homme”, p. 123, citado em G. Boas, French
Philosophes of the Romantic Period, Baltimore, 1925, p. 69.
17 A transposição de categorias fisiológicas para sociológicas é discutida nas obras de G. Gurvitch sobre
Saint-Simon, de modo mais breve em sua introdução a Comte Henri de Saint-Simon. La physiologie
sociale, 1965.
18 Considérations sur les mesures à prendre pour terminer la révolution, 1820.
19 A abordagem clássica do grupo está em F. Picavet, Les idéologues, 1891, embora esse conceito de
idéologues seja às vezes demasiado abrangente. V. C. van Duzer, Contributions of the Ideologues to
French Revolutionary Thought, Baltimore, 1935. Uma nova história englobante do movimento, de
suas origens pré-revolucionárias até sua dissolução sob Napoleão, está em S. Moravia, Il Tramonto
dell"illuminismo. Filosofia e politica nella società francese (1770-1810), Bari, 1968.
360 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O grupo dirigente, que De Tracy e Cabanis chamavam de idéologiste,


defendia que a chave para o entendimento e cura dos males da humani­
dade está na compreensão objetiva das realidades fisiológicas que estão
por trás de todo pensamento e sentimento. Eles foram encorajados pela
ascensão de Napoleão, pois este, durante sua campanha no Egito, reunira
uma espécie de instituto no exílio, cercando-se de cientistas e pedindo que
De Tracy e outros se juntassem a ele. Ao retornar para a França, Napoleão
aceitou se tornar membro da Primeira Seção do Instituto, que lidava com
ciências naturais. Visitou a viúva de Helvetius, uma espécie de matrona
salonista para os ideólogos. O grupo de De Tracy foi levado a crer que uma
“academia revolucionária” poderia vir a substituir a soberania popular. 0
primeiro esboço de Elementos de Ideologia foi composto com o objetivo de
ser utilizado nas novas escolas republicanas que esperavam fossem criadas
por Napoleão.2021
Contudo, uma vez estabelecido no poder, Napoleão começou a suspeitar
dos idéologistes, denunciando-os como idéologues.11 Dissolveu a Segunda
Seção do Instituto em 1803, levando esses primeiros ideologistas a formar
uma espécie de partido de oposição ao imperador. Quando a filha de De Tracy
se casou com o filho de Lafayette, as oposições filosófica e política se uniram.
A luta entre Napoleão e os idéologistes abalou profundamente ambos os
lados — talvez porque cada um admirava secretamente o outro. Napoleão
era um escritor compulsivo e um intelectual em potencial que nunca tivera
tempo para desenvolver essas suas inclinações. Os idéologistes tinham uma
clara sede de poder, que Napoleão parecia lhes ter negado. Muitos deles
tiveram um vislumbre, durante o período revolucionário, de uma vida ativa
e empolgante na qual poderíam ao mesmo tempo debater idéias e moldar
acontecimentos. Quando as restrições imperiais atingiram suas academias e
jornais, os ideologistas se sentiram vazios e destituídos de suas posses; sua
angústia não foi menos espiritual do que material.
Saint-Simon contribuiu com um projeto abrangente de oposição intelec­
tual. Os líderes combatentes deveríam ser os novos jornalistas politizados a

20 O título era Projet d'éléments d'idéologie à l'usage des écoles centrales de la république française.
Sobre a “academia revolucionária”, v. Kennedy, pp. 78—79.
21 Napoleão não foi seu único crítico. Filósofos moralistas como Mercier (que também estava
competindo pelo favor de Napoleão) os chamavam de idiologues, “idiotas” (Mormile, Néologie,
p. 197; Mercier, L'An [ed. Trousson], p. 26). O arquicrítico de Napoleão em meio aos intelectuais,
Madame de Staël, por sua vez o chamou de idéophobe (T. Jung, Lucien Bonaparte et ses mémoires,
1882, vol. il, p. 233 ss., citado em Madame de Staël, Ten Years of Exile, NY, 1973, p. 19).
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 361

que chamou littérateurs no seu Esboço de 1804, aos quais depois se referiría
como publicistes. A doutrinação científica e a unidade intelectual deveríam
ser fornecidas mediante uma nova “enciclopédia positiva” na qual trabalhou
de 1809 a 1813.22 Seu Ensaio sobre a ciência do homem^ de 1813, sugeria
que todo campo do conhecimento transitava de um estágio conjetural até
um estágio “positivo”, e que as ciências alcançavam esse estágio seguindo
uma ordem precisa.23 A fisiologia chegava agora ao estágio positivo, assim
como antes a astrologia e a alquimia haviam dado lugar à astronomia e à
química. Agora era a vez da ciência do homem chegar ao estágio positivo e
reordenar inteiramente todas as instituições humanas.
Sob certo aspecto, Saint-Simon estava apenas revivendo a visão iluminis-
ta da humanidade como a cruzar três estágios sucessivos até chegar a uma
ordenação científica da vida (veja-se Turgot e seu Discurso sobre a história
universal, de 1760), bem como a visão do progresso universal até chegar a
uma ordem racional (veja-se Condorcet e seu Esboço de um retrato históri­
co do progresso da mente humana, escrito em segredo pouco antes de sua
morte em 1794).
Mas, do mesmo modo como o regime revolucionário condenara Condorcet,
assim também Napoleão fechou a Segunda Seção do Instituto. Saint-Simon
foi forçado a publicar anonimamente as suas primeiras propostas e a fazê-lo,
em geral, fora das fronteiras do império napoleonico. Desse modo, Napoleão,
que ajudara a inspirar a busca por uma ciência do homem, também deu início
ao processo de voltá-la para caminhos revolucionários sociais.24 Convicto
de que o método científico deveria ser aplicado ao corpo da sociedade tanto
quanto ao corpo individual, Saint-Simon passou a analisar a sociedade em
22 Seus escritos sobre esse projeto são discutidos e pormenorizados em J. Walch, Bibliographie du
saint-simonisme, 1967, p. 31. V. também Gurvitch (ed.), Saint-Simon, p. 17; e H. Gouhier, “Un ‘projet
d’encyclopédie’ de Saint-Simon”, em Revue Internationale de Philosophie, vol. xiv, n° 53-54,1960,
pp. 387, 393.
23 Mémoire sur la science de l’homme, elaborado com diversas variantes em 1813, embora inédito até
1858. Algumas seções estão traduzidas em Markham, pp. 21-27.
24 Um exemplo paralelo e único de propostas excêntricas elaboradas na França, objetivando a
transformação revolucionária social do governo de Napoleão, está nas obras de dois naturais de
Lorraine, os quais se conheceram na Rússia e se mudaram para Paris, Pierre-Ignace Jaunez-Sponville
e Nicolas Bugnet: Catéchisme social ou exposition familière des principes posés par feu (1808) e La
Philosophie du Ruvarebohni, 2 vol. (1809). Essa ùltima retrata os náufragos “icanarfs” (franceses)
que vivem numa ilha sob o poder despótico de “Ponélano” (Napoléon), e descreve sua transformação
na “verdadeira felicidade” (vrai bonheur, um anagrama de Ruvarebohni} de uma “comunidade de
bens” cristã e comunista que rompe com todos os vestígios de consumo egoísta. V. Ioannisian, “Iz
utopicheskogo kommunizma vo Frantsii v nachale xix stoletiia”, em biovaia i Noueishaia Istorila,
1961, n° 3, pp. 58-69; e E. Pariser, “L’Utopie de deux lorrains sous Napoléon 1”, em Études, pp.
241-260.
362 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

termos de seus componentes fisiológicos: classes. Ele nunca pensou em classes


sociais no sentido marxista, mas sua análise funcional de classes preparou
o caminho para Marx.
O principal problema de cada etapa dos sucessivos esforços de análise
social de Saint-Simon estava em determinar qual força social era capaz de
aplicar a ciência à sociedade. Durante o período napoleonico, ele dividiu a
sociedade em proprietários, trabalhadores e intelectuais, depositando toda
sua esperança na abordagem desinteressada das questões humanas próprias
a esse último grupo. Acreditou ser possível persuadir os proprietários de que
os intelectuais eram os líderes naturais aptos a incitar a humanidade a se
afastar da perturbação revolucionária da ordem social.
Durante a Restauração, dividiu a sociedade em dois grupos fundamentais:
os industriais e os ociosos. Desiludido com os intelectuais, homens de saber
aos quais faltava iniciativa, voltou-se para os industrieis^ os “industriosos”
(não meramente industrialistas), a fim de que tomassem a liderança de padres
e políticos improdutivos. Ele idealizou os industriais não em razão de suas
posses, e sim pela sua capacidade de produção. O trabalho era libertador;
a abelha, e não o leão, merecería a realeza dos animais. Em suas Cartas aos
Industriais e em outros artigos desse período,25 vislumbrou o fim da revolu­
ção por meio de uma nova religião com um único mandamento: “Todos os
homens devem trabalhar”. Dentro de todos os grupos sociais havia os ocio­
sos (oisifs) e os industriosos (industriels). A nova elite deveria ser composta
de quaisquer pessoas que fossem industriosas na agricultura, no comércio,
na manufatura ou nas atividades bancárias, independentemente de origens
sociais. Saint-Simon foi o profeta da meritocracia, desejoso de reordenar a
sociedade à imagem do novo tabuleiro de xadrez que planejara para a França
revolucionária, com uma hierarquia na qual o rei era substituído por uma
figura chamada Talento.
Tendo fracassado, contudo, em conquistar os industrialistas, Saint-Simon
se voltou, em seus últimos anos (1824-1825), para a última força de base
revolucionária: “a mais numerosa e pobre das classes”. Dirigiu aos auto-
proclamados líderes da “santa aliança” o seu último apelo por um “novo
cristianismo” de moralidade sem metafísica, de tecnologia sem teologia. Só
isso seria capaz de impedir que os citadinos pobres recaíssem no falso deus
da revolução. “Ouçam a voz de Deus falando por meio de minha boca”,

25 Em L'Industrie (1816-1817) e L'Organisateur (1819), o seu Du Système industriel (1820-1822) e


seu resumo Catéchisme des industriels (1823-1824). V. Walch, p. 32.
LIVRO II, CAPÍTLFLO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 363

afirmou, com uma falta de modéstia bem característica, nas palavras finais
de sua última obra endereçada aos chefes políticos da Europa: “Retornem
ao verdadeiro cristianismo novamente [...] Cumpram todos os deveres que
ele impõe aos poderosos. Lembrem-se de que ele os manda devotar toda sua
força à mais rápida melhoria da sina dos pobres”.26
Saint-Simon prometeu explicitar detalhadamente a natureza do “novo
cristianismo”. Morreu, porém, em 1825 e nunca pôde ir além da sugestão de
que se assemelharia a seitas cristãs heréticas do passado e que reorganizaria
a sociedade em benefício dos mais pobres.
Saint-Simon era uma força intelectual verdadeiramente seminal: pai do
socialismo e da sociologia, e um João Batista da ideologia revolucionária,
clamando no deserto da era napoleònica e da Restauração um novo histo-
ricismo e o relativismo moral.
Saint-Simon foi um dos primeiros a popularizar a crença especificamente
oitocentista de que a verdade não é absoluta e sim histórica, e é materializada
não no pensamento individual, mas na ação social. Foi um dos primeiros pen­
sadores continentais a afirmar que a Revolução Industrial foi mais importante
que a revolução política na França. Para ele, os fatores decisivos da história
eram as ferramentas e as revoluções tecnológicas. Arquimedes foi maior que
Alexandre; Newton maior que Napoleão. As verdadeiras forças de mudança
na sociedade moderna, os industrieis, longe de terem sido favorecidos pelas
mudanças políticas na França, suportavam agora, ao contrário, o peso de um
segundo grupo de oisifs improdutivos: os novos políticos junto aos velhos padres.
Para Saint-Simon, a burguesia era praticamente tão parasita quanto os
aristocratas ociosos do ancien régime. Ele rejeitava o liberalismo (o qual logo
veio a triunfar entre seus amigos mais próximos, como Augustin Thierry)
como um movimento negativo e crítico, incapaz de reunificar a humanidade,
incompatível com o novo estágio positivo da ciência. Ele reconhecia a primazia
da economia sobre a política, da fisiologia sobre a metafísica. O governo era
uma função social apropriada ao estágio metafísico da história e deveria ser
agora substituído por uma organização social racional adequada à explo­
ração da natureza. O jugo do homem sobre o homem sempre foi opressor;
o jugo do homem sobre as coisas, libertador. Até em sua manifestação mais
política, sua Reorganização da Sociedade Européia, de 1814, ele incitava a
uma ruptura com os sistemas políticos pretéritos, saindo em defesa de um

26 Le nouveau christianisme* 1832, p. 116.


364 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

novo Parlamento Econômico da Europa e de uma autoridade transnacional


que unificasse o continente mediante obras públicas, tais como um canal
Danúbio-Reno e um Reno-Báltico.
Em sua utopia tecnocratica, a autoridade política deveria ser substituída
pela autoridade social. Esta deveria ser gerida por meio de três câmaras: a das
Invenções caberia aos engenheiros, a de Revisão aos cientistas, a de Execução
aos industrialistas. Um colegiado supremo deveria estabelecer leis físicas e
morais; e duas academias ainda superiores na hierarquia, a de Raciocínio e
a de Sentimento, deveríam ser ocupadas por uma nova geração de escritores
e artistas propagandistas.
A defesa final saint-simoniana de uma nova religião representou o ponto
culminante da tentativa idéologiste de suplantar toda religião absorvendo-a
em um esquema de evolução secular. No comentário que fez à obra que
François Dupuis publicou em 1802, A origem de todos os cultos ou Religião
universal 27 De Tracy sugeriu que as religiões do passado não eram simples­
mente superstição desprovida de sentido, e sim uma espécie de balbuciar
científico: a expressão geral, em linguagem imprecisa, do pensamento científico
daquele momento. Os rituais religiosos, mais ainda, eram socialmente neces­
sários para apresentar os princípios científicos às pessoas ainda ignorantes.
Saint-Simon acreditava que o seu “novo cristianismo” supria precisamente
essa necessidade das massas. Sua morte deixou incerto se essa nova fé era
planejada para fornecer a base moral da nova ordem social ou se era apenas
uma fé provisória, enquanto as massas se educavam para aceitar um sistema
totalmente cientificista.
Mais que qualquer outra figura de sua geração, Saint-Simon empolgou
os europeus jovens com as possibilidades libertadoras da indústria e com a
salvação que se poderia alcançar através do conhecimento e da maestria, e
não da fé e do mistério. Após o fracasso de suas conspirações no início dos
anos 1820, a juventude radical encontrou consolação e uma nova orienta­
ção na ideologia saint-simoniana. Os jovens se reorganizaram em pequenos
grupos de discussão, formando “um congresso de filósofos encarregados
de discutir tudo o que não havia sido discutido no Congresso de Viena”.28
Estavam entusiasmados com uma nova percepção da história absorvida da

27 A importância dessa obra é enfatizada em E Manuel, The eighteenth century confronts the gods,
Cambridge, Massachusetts, 1959.
28 De acordo com um de seus líderes, E de Corcelle, Documents, p. 8; citado em Isambert, De la
Charbonnerie, p. 118.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 365

filosofia alemã e com o estudo da economia absorvido da Inglaterra. Esses


interesses levaram a uma reavaliação de Saint-Simon. Alguns jovens passaram
diretamente de conspirações carbonárias para círculos saint-simonianos, o que
fez um dos melhores memorialistas do período caracterizar o saint-simonismo
simplesmente como “carbonarismo religioso”.29
A enorme influência póstuma de Saint-Simon se estendeu da Rússia e
da Polônia à América Latina — alcançando até o Oriente Próximo e o Dis­
tante.30 Seus ensinamentos ajudaram a formar uma elite intelectual radical
na Alemanha (que ele considerava “infinitamente superior no seu caráter,
ciência e filosofia”)31 e na Rússia (que elogiava como “ainda não consumida
pelo ceticismo”).32 Influenciou o pioneiro solitário do pensamento socialista
escandinavo, o jovem pintor sueco Per Gõtrek, que traduziu e popularizou
os panfletos de Saint-Simon antes de se concentrar em Cabet e no Manifesto
Comunista.33 Saint-Simon produziu permanente impacto sobre banqueiros e
construtores de estradas e canais,34 transmitindo a lição de olhar para além
dos obstáculos imediatos e das inibições tradicionais.
Mas a mais forte influência de Saint-Simon se deu dentro da França, em
primeiro lugar sobre a tradição positivista desenvolvida pelo seu amigo e às
vezes discípulo Auguste Comte.35 Comte perpetuou a busca por uma ciência
da sociedade mediante uma teoria do progresso em três etapas, que tomou
de empréstimo de Saint-Simon em 1822. Sua idéia de que a humanidade
parte de uma era “teológica”, passa por uma era “metafísica” e chega a uma
era “positiva” era encorajada por certo desdém pela política democrática
(entendida como fenômeno pertencente ao segundo estágio transitório).

29 Corcelle, Documents, p. 68.


30 V. R. Fakkar, Sociologie, socialisme et internationalisme prémarxistes. Contribution à l’étude de
l’influence internationale de Saint-Simon et de ses disciples, Neuchâtel, 1968.
31 De seu Reorganization of the European Community (1814), em Markham, p. 64.
32 Saint-Simon o diz ao futuro dezembrista Lunin, citado em H. Auger, “Iz zapisok Ippolita Ozhe”,
em Russky Archiv, 1877, kniga 2, p. 65.
33 Eramtidens religion, uppenbarad av Saint-Simon, Estocolmo, 1831; Saint-Simons religionsläre,
1833. Discussão e bibliografìa complete em P. Cornell em Svenskt biografiskt lexicon, xvn, 1969,
pp.685-688.
34 A obra de J. de Puyjalon (L’Influence des Saint-Simoniens sur la réalisation de l’isthme de Suez et
des chemins de fer, 1926) passa longe de esgotar o assunto.
35 Os laços entre os dois homens são discutidos em G. Gouhier, La Jeunesse d’Auguste Comte et la
formation du positivisme, 1963,3v., que em sua segunda edição foi acrescido de uma rica bibliografia
sobre saint-simonismo.
Um novo estudo soviético discute a influência de Saint-Simon mais sobre Comte (pp. 270-302) e
outros pensadores burgueses do que sobre os revolucionários: G. Kucherenko, Sen-Simonizm v
obshchestvennoi mysli xix vol., 1975.
366 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Embora essencialmente apolitico, o positivismo tinha implicações auto­


ritárias — apoiando-se na autoridade intelectual, e não no jogo aleatório
das pressões vulgares. O elo entre iluminismo e despotismo no século xvm
não foi inteiramente acidental. Saint-Simon tinha sistematicamente apelado
à autoridade monárquica, desde suas primeiras petições a Napoleão até
o último chamado a um “novo cristianismo” que fez aos líderes da Santa
Aliança. Em várias ocasiões os saint-simonianos procuraram Metternich,
o qual expressou admiração por sua doutrina e teve longo encontro com
Michael Chevalier em 1835.36 Auguste Comte depois pediria a adoção do
seu “Sistema de Política Positiva” a dois dos mais autoritários potentados da
Europa: o tzar russo e o sultão turco.37 O positivismo de Comte talvez tenha
tido maior influência nas cortes de regimes antidemocráticos na América
Latina e do Oriente Próximo.
Mais importante que a influência de Saint-Simon sobre a sociologia foi
seu impacto sobre o socialismo. Os seus seguidores dos anos 1830 primeiro
deram uso bastante corrente à palavra “socialismo”, mas também — para
ficar só no ano de 1831 — a “socializar”, “socialização”, assim como à idéia
de socializar os instrumentos de trabalho.38 Esses empregos às vezes eram
apenas um desdobramento de termos saint-simonianos mais antigos como
“organização” e “associação”, mas traziam novas sugestões de controle social
e de desafio ao individualismo liberal.
O primeiro historiador do socialismo, Louis Reybaud, profetizou em
1836, logo após o aparente desaparecimento dos saint-simonianos, que eles

[...] serão para o futuro social o que o balão de ensaio é para a experiência aero­
náutica. O balão de ensaio incha diante dos olhos da turba maravilhada, sobe, vai
ficando cada vez menor, perde-se no espaço. Após um papel brilhante e passageiro,
não mais existe; mas [...] durante esse processo ganhou uma familiaridade com as
zonas atmosféricas e com os caprichos dos ventos que o aguardam [...]39

A metáfora tecnológica parece apropriada, pois o socialismo saint-simoniano


foi criação de estudantes da École Polytechnique. Essa “escola de muitos

36 Fakkar, p. 95.
37 Esses pedidos de Comte para que adotassem o seu Système de politique positive estão discutidos
e documentados em Billington, “The Intelligentsia and the Religion of Humanity”, em American
Historical Review, 1960, jul., pp. 807-808.
38 Pormenorizado em G. Deville, “Origine des mots ‘socialisme’ et ‘socialiste’ et de certains autres”,
em La Révolution Française, 1908, jan.-juL, pp. 395-399.
39 L. Reybaud, “Socialistes modernes. I. Les Saint-Simoniens”, em Revue des Deux Mondes, 15 de
julho 1836, p. 341.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 367

ofícios” treinou engenheiros e técnicos para os exércitos revolucionário e


napoleònico e foi um modelo da nova instituição antitradicional aberta ao
talento e dedicada a realizações práticas.
O saint-simonismo revolucionário social foi iniciado por dois jovens estu­
dantes da École Polytechnique: Olinde Rodrigues, filho de um banqueiro judeu
de Bordeaux, e seu jovem aluno de matemática, Bathélemy Prosper Enfantin,
que lutara por Napoleão nos Cem Dias e passara os anos de 1821-1823 em
São Petersburgo.40 Esses dois técnicos se juntaram a ex-carbonários franceses,
como Bazard e Bûchez, para editar Le Producteur em 1825-1826, e depois,
em 1828, elaboraram uma Exposição sistemática da doutrina de Saint-Simon.
Esses saint-simonianos criaram o dito “a exploração do homem pelo homem”
e o conceito de luta de classes originada da “relação dos trabalhadores com
os proprietários dos instrumentos de trabalho”.41
Mas foi só depois que as renovadas esperanças revolucionárias dos anos
1830 geraram mais desilusão que a seita saint-simoniana realmente tomou
vulto. O jornal diário O Globo^ editado por Pierre Leroux, converteu-se à
nova fé em 1831, e foram fundados o semanai Organisateur e o primeiro
templo de uma rede nacional. Com isso, o saint-simonismo se tornou um
fenômeno de massa. Chegando em seu momento culminante a talvez 40
mil partidários e simpatizantes franceses, o saint-simonismo desenvolveu
laços com líderes intelectuais proeminentes por toda a Europa na década de
1830 — de Heine a Goethe na Alemanha, do liberal Mill ao conservador
Carlyle na Inglaterra.42 Franz Liszt foi um membro ativo, tocando piano em
algumas reuniões da seita.
Os saint-simonianos tentaram abrir uma nova universidade saint-simoniana
no dia de natal de 1829, pouco antes de se concentrarem em seus templos
da humanidade em 1831. Foram perseguidos em Paris com restrições go­
vernamentais e rumores de uma licenciosidade sexual escandalosa. Quando
Leroux deixou O Globo mais tarde, em 1831, e o jornal veio à bancarrota

40 V. J.-P. Callot, Histoire de l’école polytechnique, 1959* pp. 65,223-226; e para a integração da escola
ao ethos napoleònico, particularmente após a mudança para a sua nova localização em 1805, v. pp.
33-54.
41 Expressões tiradas da Exposition presente em Isambert, De la Charbonnerie, pp. 182-183. Existe
uma tradução inglesa em G. Iggers: The doctrine of Saint-Simon: an exposition; first year» 1828-1829,
Boston, 1958. O termo protocomunista “comunidade de bens" foi concebido e defendido por Prati
no seguinte tratado: Fontana (presidente), Prati (sacerdote), Samt-Simonism in London. On the
Pretended Community of Goods or the Organization of industry, on the Pretended Community of
Women or Matrimony or Divorce, 2a ed., L, 1834, esp. p. 7 (GL).
42 R. Parkhurst, The saint-simonians Mill and Carlyle, L, 1958.
368 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

no ano seguinte, houve necessidade de uma nova fonte de revelação e de um


local para adoração.
Os saint-simonianos encontraram ambas as coisas ao se recolherem, no
verão de 1832, para um retiro comunal e celibatário na propriedade rural
familiar de Enfantin localizada em Ménilmontant, nos arrabaldes de Paris.
Lá, às 10h da manhã do Dia da Bastilha, o “pai” Enfantin, um homem de
cabelos compridos, reuniu sete de seus “filhos” prediletos para a primeira
de quatro longas sessões nas quais revelava o seu Novo Livro- uma série de
aforismos místicos que sugeriam como a ciência deveria ser aplicada à socie­
dade. Rica em misticismo numerológico pitagorico, a revelação de Enfantin
se centrava em fórmulas triádicas para a nova “era orgânica”. Havia nela a
vindoura harmonia entre sentimento, indústria e intelecto; entre o espiritual,
o material e o racional; e entre o trabalhador (um plano), o teórico (uma
linha) e o apóstolo (um sólido tridimensional).43
A comuna liderada por Enfantin foi passageira, tornada memorável por
hábitos como o de vestir roupas abotoadas às costas, a fim de obrigar à de­
pendência de uns para com os outros. A busca que depois empreenderam por
um messias mulher no Egito foi ainda mais grotesca. Esses esforços, contudo,
representavam apenas os excessos de um entusiasmo geral da Europa pelas
novas ideologias, que davam esperanças, após o fracasso das revoluções de
início da década de 1820 e do ano de 1830, de criar uma nova ordem social.
O saint-simonismo trazia a promessa implícita de que aqueles envolvidos
em sua discussão iriam compor a elite de uma nova era. De fato, estes podem
talvez ser considerados a primeira “intelligentsia” moderna no sentido de
Karl Mannheim: um novo elemento desprovido de classe, liberto tanto do
controle que a Igreja exercia sobre o passado quanto dos vieses regionais
e de classe sobre o futuro, e capaz de dar algo de “dinâmico e elástico” ao
pensamento, ao mesmo tempo que força as idéias a entrar na arena polí­
tica. Essa “intelligentsia livre” estava destinada, na visão esperançosa de
Mannheim,44 a criar uma sociedade liberta de preconceitos e voltada para
metas sociais racionais. Os saint-simonianos, em sua maioria, acreditavam
estar fazendo exatamente isso.

43 Essas ênfases triádicas são reforçadas na tese inédita de P. Mickey, “Le Livre Nouveau: The Vision of
Monastic Saint-Simonism”, Princeton, 1971, esp. pp. 82-93. A tese traz como apêndice a primeira
reprodução completa do inédito Livre Nouveau a partir do manuscrito presente em BA.
44 Mannheim, Ideology and Utopia, NY, 1936 (as seções ii-iv são tradução do original alemão, Bonn,
1929); esp. “The Sociological Problem of the ‘Intelligentsia’”, pp. 153-164.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 369

Globalismo romântico

Os saint-simonianos dos anos 1830 desenvolveram projetos que extra­


polavam até os do mestre, que fantasiara ser um novo Carlos Magno e que,
junto a Madame de Staël, daria à luz um novo Messias. Os seus discípulos
românticos conceberam projetos para o rejuvenescimento da Oceania, da
índia e da China,45 e lançaram movimentos de envergadura no leste europeu,
no Oriente Próximo e na América Latina. As idéias saint-simonianas deram
nova esperança aos espanhóis exilados em Gibraltar e aos argentinos exila­
dos no Uruguai.46 Chevalier, o líder da religião saint-simoniana em Paris, fez
viagens prospectivas à Rússia e à África do Norte, à América do Norte e do
Sul. Escreveu um projeto detalhado para a minúscula república de Andorra,47
defendendo uma peregrinação de toda a população a todas as cidades por
onde passaram Moisés, Jesus e Maomé.48
Mas a importância história duradoura dos saint-simonianos não está tanto
em seu impacto sobre grupos específicos quanto no efeito geral que tiveram de
despertar expectativas por todo o mundo europeu. Mais do que qualquer outro
sistema de pensamento, o saint-simonismo inspirou revolucionários incansáveis
com uma nova esperança no início da década de 1830, uma época na qual a
desilusão era crescente, não só com a revolução, mas com a crença iluminista
nas leis naturais. Como a Revolução Francesa se dissipasse em brigas políticas
mesquinhas numa monarquia constitucional, Enfantin e Bazzard afirmavam,
em Julgamento da Doutrina de Saint-Simon Sobre os Acontecimentos Mais
Recentesy que, “diante da impotência e incoerência dos partidos, só os saint-
-simonianos possuem uma solução lógica para as dificuldades”.49
O saint-simonismo prometia uma transformação social universal. As velhas
revoluções políticas se desenvolveram a partir da civilização francesa, base­
adas no arquétipo de 1789—1793. Mas o novo tipo de sociedade vagamente
entrevisto pelos saint-simonianos poderia advir quase que de qualquer parte.
Assim, os saint-simonianos influenciaram o novo nacionalismo revolucio­
nário de Mazzini e da Jovem Europa.50 O distante eco sul-americano de

45 Fakkai; pp. 204-205.


46 Fakkar, pp. 159-160, 195.
47 La République d’Andorre, 1848; Fakkar, p. 181, nota 105.
48 Ibid., pp. 235-236, nota 36.
49 Citado de Jugement de la doctrine de Saint-Simon sur les derniers événements, em Fakkar, p. 43,
nota 43.
50 Salvemini afirma claramente que “quatro quintos das idéias de Mazzini são de origem
saint-simoniana”, em Mazzini, p. 161.
370 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGFM E HISTÓRIA

Mazzini, a “Jovem Argentina”, foi moldada, de maneira independente, pelo


saint-simonismo, que foi uma influência “decisiva” para “o nascimento da
mentalidade argentina”.51
No polo oposto da civilização européia — tanto em sentido geográfico
como espiritual —, a visão de uma nova comunidade religiosa proposta pela
conservadora Ordem Polonesa da Ressurreição também era de inspiração
fortemente saint-simoniana.52 Seu líder, Bogdan Janski, tentou por sua vez
converter o liberal John Stuart Mill.53
O saint-simonismo cruzou as fronteiras da Europa de maneira mais incisiva
com a intrusão francesa no Oriente Próximo. A campanha egípcia de Napoleão
nos anos 1790 introduziu a imprensa e novas idéias em velhas civilizações
do mundo afro-asiàtico. De modo similar, a hégira saint-simoniana para o
Oriente, após seus fracassos na França, levou à fundação da primeira escola
politécnica fora da Europa (no Egito, em 1834)54 e à primeira exportação
da ideologia revolucionária para além dos confins tradicionais da civilização
européia. Canning descreveu a assistência naval britânica a revoluções nas
Américas durante os anos 1820 como um ato de “dar vida ao novo mun­
do para que este reparasse o equilíbrio do velho mundo”. A mudança dos
saint-simonianos para o Oriente na década de 1830 tentou, de maneira mais
limitada, dar vida ao mundo antigo para que este reparasse o fracasso da
revolução social na Europa contemporânea. Embora tenham recebido pouca
resposta, as agitações dos saint-simonianos no Oriente prenunciaram coisas
que ainda estavam por vir.

51 “El movimiento sansimoniano argentino senala el punto de divergência definitiva entre la involution
del espírito hispano-colonial y el nacimiento de una mentalidad argentina”. J. Ingenieros, “La filosofia
social de Echevarria y la leyenda de la ‘Asociación de Mayo’”, em Revista de Filosofia, 1918, mar.,
p. 236. O líder Esteban Echeverria esteve na França em 1826-1830; e o jornal planejado pelo seu
grupo em 1838 deveria ser um “periódico puramente literário y socialista nada político”, com
Jnteligencia e várias outras palavras do tipo inscritas no cabeçalho, p. 240. V. também Ingenieros,
“Los Saintsimonianos Argentinos”, em Revista de Filosofia, 1915, set., pp. 275-315.
52 Sobre Zmartwychwstmicy, que se ignora em todas as histórias não polonesas, v. Callier, Janski,
e a história oficial da ordem: Historia zgromadzenia zmartiuychwstania panskiego, Cracóvia,
1892-1896, 4 vol. Ao mesmo tempo, a Sociedade Democrática Polonesa, composta de emigrantes
revolucionários, definiu o seu programa empregando termos saint-simonianos, isto é, trabalhando
para alcançar uma “época orgânica” de reconstrução social. V. Brock, “Program”, p. 98.
53 J. S. Mill, Correspondance inédite avec Gustave d’Eichtal, 1898, p. 147.
54 A. Abdel-Malek, Idéologie et renaissance nationale. L’Egypte moderne, 1969, p. 197, lista as primeiras
como Paris (1794), Berlim (1799), São Petersburgo (1809), Praga (1806) e Glasgow (1823). Tanto
no Oriente Próximo como na América Latina, as idéias de Saint-Simon tendiam a se mesclar com
o positivismo comteano e a fortalecer mais o estatismo que o socialismo (pp. 189-198).
LIVRO n, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 371

A viagem rumo ao Oriente empreendida pelos saint-simonianos em 1833,


depois de seu fracasso na França, fugiu ao padrão oitocentista. Revolucio­
nários que estivessem em busca de um recomeço tinham antes ido para os
Estados Unidos. O próprio Saint-Simon tinha sido estimulado a alargar suas
vistas, adotando perspectiva global, por suas experiências aos 18 anos na
Revolução Americana, em 1778, e como pretendente a construtor de canais,
dedicado a unir os oceanos através do México. Michael Chevalier retornou
à primeira fonte de inspiração do seu mestre para fazer uma nova avaliação,
em 1832-1835, das perspectivas para o saint-simonismo nos Estados Unidos,
no México e em Cuba.55
Chevalier, contudo, viajou rumo ao leste em busca do berço da civilização,
ainda não deformado pela fé revolucionária. O seu Sistema Mediterrâneo,
publicado em O Globo/6 trazia a visão de um progresso industrial pacífico
a se espraiar a partir do Mediterrâneo por meio de uma rede de estradas de
ferro que alcançariam a Ásia e a África, bem como a Europa. O “mar entre
as terras”, que nutrira guerras no passado, tornar-se-ia “o leito nupcial do
Oriente e do Ocidente”,57 o foro de uma “associação universal” de todos os
povos. Além da estrada de ferro, faziam-se necessários dois canais no Panamá
para conectar o Atlântico e o Pacífico, o que se baseava em uma demanda
saint-simoniana anterior de um canal que ligasse a Europa à Ásia através de
Suez. Também defendiam que se construísse uma grande barragem no Nilo.
Chevalier sugeriu que o conflito fundamental no mundo era entre Oriente
e Ocidente. Mas, à diferença de Kipling e dos pessimistas heróicos de épocas
posteriores, os saint-simonianos achavam que ambos de fato se encontravam
no Egito. Essa terra de lenda napoleonica parecia estar, sob o governo de
Mohammed Ali, entrando culturalmente na órbita francesa. Suas pirâmides e
obeliscos pujantes se assentavam dos dois lados do pequeno istmo desèrtico
em Suez, o qual sozinho separava as abundantes águas dos mundos europeu
e asiático. “O campo de batalha é digno das pirâmides que dominam sua pai­
sagem”,58 escreveu “Pai” Enfantin: “Deve-se fertilizar o Egito de Mohammed.
Podemos não decifrar os hieróglifos de seu esplendor antigo, mas devemos
gravar no seu solo os sinais de sua prosperidade futura”.59

55 Fakkar, pp. 188-191.


56 Système de la Méditerranée em The Globe, 5 de fevereiro de 1832, e separadamente, 1832; discutido
em Fakkar, p. 198 ss.
57 Citado em Fakkar, p. 199.
58 Citado em Charléty, p. 224.
59 Citado em Fakkar, p. 223.
372 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Eles vislumbravam um casamento da “imaginação e poesia” do Oriente


com a “organização e ciência positiva” do Ocidente.60
Os saint-simonianos que rumaram para o Oriente em 1833 à procura de
um “messias mulher” não tardariam a concentrar suas esperanças no Egito e
na “perfuração” de um canal que atravessasse a fina “membrana” do deserto
virgem, a única coisa que obstava a consumação do comércio leste-oeste. A
“associação universal” de todos os povos através desse canal era concebida
nos mesmos termos sexuais empregados a respeito do intercurso cultural a
ser consumado no “leito nupcial” do Mediterrâneo.61
Parecia estar em jogo nada menos que a virilidade deles. Logo após sair
da prisão, Enfantin emitiu em 8 de agosto de 1833 a ordem de ir para o
Oriente, fazendo-o em versos liricamente eróticos:

Suez
Est le centre de notre vie de travail
Là nous ferons l'acte
Que le monde attend
Pour confesser que nous sommes
Mâles.

[Suez
É o centro de nossa vida de trabalho
Lá realizaremos o ato
Que o mundo aguarda
Para confessar que somos
Homens.]62

O trabalho físico enleou a humanidade masculina na terra feminina: le


peuple com le monde.63 Dava-se assim significado universal ao simples ato
de intelectuais realizarem uma tarefa diminuta. O “povo”, que obviamente
estava realizando esse trabalho o tempo todo, era descrito paternalmente
como filhos dependentes da “família” saint-simoniana.

60 Chevalier, Système, em Fakkar, p. 199.


61 V. o último verso da canção de despedida de Félix Maynard À l*ouest-. “[...] Comme un riche divan
de pourpre triompheJ Sera dans l’avenir, la couche nuptiale, / Où deux mondes viendront s’épouser
dans la paix”. Vinçard aîné, Chants, p. 173.
62 Carta a Émile Barrault, chefe da expedição, como impressa em M. Emerit, Les Saint-Simoniens en
Algérie, 1941, p. 53. A carta também promete que este é apenas o primeiro dos canais a ser aberto
para o Oriente. “Plus tard nous percerons aussi l’autre à Panama” [“Posteriormente abriremos outro
no Panamá”]. O estudo de Emerit inclui muitos documentos materiais de maior importância do que
o seu título poderia sugerir.
63 Discussão em Mickey, pp. 125-126.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 373

O povo é a nossa família, engendromo-lo por meio do trabalho, abracemos,


acariciemos a terra [...] esperemos pelo leite da Mulher, mas nos ocupemos, nós
homens, do preparo do pão!64

O próprio Deus era tanto feminino como masculino,65 conduzindo o


povo à reunificação com a natureza (e à partilha da divindade) mediante
uma espécie de libido universal: Cette électricité vagabonde qui circulait du
monde à l'assemblée et de l'assemblée au monde et qui traversait les corps
sans se fixer [...] [Essa eletricidade errante que circula do mundo para a
assembléia e da assembléia para o mundo e que atravessa os corpos sem se
acomodar [...]]66
Os saint-simonianos viam o couple-prêtre [casal sacerdotal] de homem e
mulher como o novo microcosmo social a substituir o indivíduo atomizado,
e estendiam a imagética sexual ao macrocosmo, ao mundo como um todo.
Existia uma rivalidade quase fálica acerca de quem seria o primeiro a despertar
a feminilidade passiva do Oriente. Os saint-simonianos acreditavam que ela
seria despertada de seu torpor e violada pelo “canhão russo”, a menos que
a tecnologia pacífica que lhes era própria penetrasse o Oriente primeiro.67
Por trás dessa fantasia erótica havia uma percepção autêntica: uma anteci­
pação profética da crença moderna de que realização material plena é desejável
não só individualmente, mas também universalmente inevitável. O futuro
proporcionará, por assim dizer, os benefícios tanto de l'école polytechnique
quanto de l'amour polymorphique. Cada indivíduo completará suas experi­
ências na vida dos outros, e desse modo irá fluir pela vida de todos e afinal
perpetuar a própria vida na eternidade — assim argumentava Enfantin em
sua última obra, La Vie Éternelle.6* Ele levou às últimas conseqüências a idéia
saint-simoniana mais antiga de transmigração (palin-genesis) das almas,69
profetizando a transformação tecnológica da terra e a criação biológica de
uma nova humanidade andrógina.

64 Puyjalon, Influence, p. 65.


65 Sobre o endosso de seu pensamento na Paris da época, v. referências em J. Callot (pseudônimo Alem),
Enfantin, Montreuil, 1963, p. 112, nota 1.
66 Livre Nouveau, segunda $, texto em Mickey, segunda paginação, p. 50.
67 Puyjalon, p. 63.
68 Publicado em 1861, quando Enfantin tinha 65 anos, três anos antes de sua morte. Outros esforços
saint-simonianos posteriores de providenciar novas declarações religiosas estão em d’Eichtal, Les
Evangiles (1863) e Barrault, Le Christ (1865).
69 Herdado na Maçonaria e das obras esquecidas do místico de Lyon, o politicamente reacionário
Ballanche (La Palingénésie sociale). N. referências e discussão em Mickey, pp. 131-145.
374 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Não é só na condição de dados para investigações psicossexuais que


os excessos místicos e as aventuras orientais dos saint-simonianos merecem
atenção. Pois essa expedição oriental talvez tenha sido o primeiro grande
esforço organizado que intelectuais urbanos ocidentais fizeram para aplicar
uma ideologia secular de mudança social radical a uma área idealizada, sub­
desenvolvida. O Egito pareceu atraente diante das desilusões napoleônicas dos
saint-simonianos. Ao que parece, eles acreditavam que afinal retornariam do
Egito para a França vitoriosos e reverenciados, assim como antes Napoleão
tivera de voltar e impedir a dissolução de uma revolução prévia. Mas, em
vez das vitórias militares de Napoleão no Oriente, os saint-simonianos se
imaginavam, num prelúdio ao seu retorno, fazendo-se vencedores por meio
de triunfos tecnológicos. Conduziríam a França não para uma glória imperial
efêmera, e sim para uma era interminável de prosperidade industrial.

O primeiro muçulmano negro: Urbain

O primeiro chamado a que se olhasse na direção do Oriente, a fim de lá


encontrar a luz da revolução que se havia apagado no Ocidente, recebeu no
Novo Mundo resposta de um talentoso membro do grupo mais oprimido
das Américas: os escravos negros. Thomas Urbain, um dos oito filhos mula­
tos da segunda esposa (negra) de um dono de plantações e comerciante de
escravos francês, é talvez o mais interessante e negligenciado dos primeiros
saint-simonianos. Sua visão de utilizar a religião saint-simoniana para libertar
os negros foi, de certo modo, o último esforço desesperado dos negros das
índias Ocidentais para encontrar, na cultura francesa, a libertação prometida
pela revolta de Toussaint L’Ouverture. Ao mesmo tempo, a viagem de Urbain
de volta para a África, de onde nunca regressaria, representa o primeiro de
uma longa série de retornos de revolucionários negros do Novo Mundo (em
sua maior parte originados das índias Ocidentais) para a África: Padmore,
Blyden, Dubois, Fanon, Malcom x e Carmichael. Para Urbain, contudo, a
ilha permanecera, em suas recordações posteriores, uma espécie de paraíso
perdido da “doçura da vida familiar dos crioulos” e da moça negra “que me
apresentou os primeiros êxtases do amor nas vastas florestas”.70 Quando foi
para a França com o pai a fim de estudar medicina, adotou como sobrenome
o nome cristão do progenitor, Urbain, e era chamado de Thomas por seus

70 Urbain, Notice autobiographique, 1883, manuscrito inédito 13737, BA, p. 6. Esse testemunho
valiosíssimo e não utilizado complementa, no que tem de essencial, o único esforço de maior fôlego
de oferecer uma história abrangente da vida de Urbain, Emerit, Saint-Simoniens, esp. pp. 67-83.
LIVRO IÎ, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 375

colegas.71 Isolado e inseguro de sua identidade, converteu-se à nova religião


do saint-simonismo antes de completar 20 anos, passou pela fase monástica
em Ménilmontant, peregrinou a pé pela Córsega em companhia de outros
saint-simonianos e por fim rumou para o Oriente com os Companheiros da
Mulher, tendo desembarcado perto de Constantinopla em abril de 1833.72
Quando afinal chegou ao Egito, instintivamente “se sentiu um oriental”,73
tornou-se professor de línguas em Damietta e se converteu ao islã.
O flagelo de 1835, que levou alguns saint-simonianos, como a feminista
Suzanne Voilquin, ao haxixe, afastou Urbain da bebida e da “explosão de
sensualidade” e o conduziu a uma nova vida como muçulmano. Ele se im­
pressionou com a abordagem tolerante do islamismo para com as raças e com
a solidariedade da vida familiar muçulmana74 — e talvez também estivesse
decepcionado com os relatos de outros saint-simonianos, segundo os quais
até grupos isolados como os cristãos malabares da índia não preservaram a
ansiada ilha de pureza nas relações homem-mulher dentro da cristandade.75
Finalmente encontrou um nome para si, o do profeta Ismail, que também
fora filho de uma escrava e de um homem que os abandonou, mas que tinha
supostamente “descoberto uma fonte de água perto de Meca”.76
Na Argélia recém-colonizada pelos franceses, Urbain encontrou o seu
“oásis” sob a sombra de Enfantin, “a gigantesca palmeira do meu deserto”,77
o qual havia lá chegado em 1839 com uma comissão científica. Urbain, que
havia se mudado para lá em 1837, iniciou uma longa carreira de oficial
militar intérprete para uma série de altos oficiais franceses, a começar pelo
Duque de Orléans78 e a chegar até Napoleão m. Acreditava ser o escolhido
para realizar a mediação entre Oriente e Ocidente; e achava que o elo que
ele representava pessoalmente entre os franceses e os árabes era a peça-chave

71 Urbain, Notice, pp. 3-4 para discussão de ma triste origine.


72 Ibid., pp. 7-8; Emerit, Saint-Simoniens, pp. 41—46; e Emerit (ed.), Révolution...en Algérie, p. 88.
73 Fakkar, p. 207, nota 33.
74 Emerit, Saint-Simoniens, p. 70; Notice, pp. 9-10; também o texto de Urbain publicado anonimamente
“Une Conversion à l’islamisme”, em Revue de Paris, 1852, jul.
75 V. o relatório de Barrault a Urbain sobre Malabar em urna carta de 1833: Fonds Enfantins, 7619,
p. 17, BA.
76 Emerit, Saint-Simoniens, p. 73; Fakkar, pp. 231-234.
77 Emerit, Saint-Simoniens, p. 74: “Estou sedento de sua sombra”. A sede de Enfantin era igualmente
intensa, confessando a Urbain em uma carta de 11 de março de 1835 sentir falta de “teu rosto
moreno”, dizendo-se fascinado por “carne negra” e lamentar que “Deus ainda não me permitiu
alcançar a comunhão com essa carne”. Fonds Enfantins, 7619, pp. 123-124, BA.
78 Booth, Saint-Simon, p. 215.
376 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

da reconciliação futura. “O dia está próximo”, afirmou aos árabes, “quando


vos postareis em meio às nações para lhes cobrar o que fizeram das riquezas
que depositastes em meio a elas. O Oriente e o Ocidente pertencem a Deus,
e Ele está empurrando um na direção do outro”.79
Urbain se deixou absorver pelos estudos lingüísticos e etnográficos de
sua terra de adoção. De certo modo, a imagem cunhada por Enfantin da
reconciliação entre Oriente e Ocidente parecia estar ocorrendo na Argélia
por meio de Urbain, que era meio negro, meio branco, “abraçando o islã
sem renunciar ao cristianismo”,80 escrevendo poesia em francês e em árabe.
Em 1839, Urbain acresceu uma visão de reconciliação entre as raças ao
repertório saint-simoniano de conflitos a serem sanados com a vindoura “as­
sociação universal” dos povos. As Cartas sobre a Raça Negra e a Raça Bran-
ca, trocadas com o judeu saint-simoniano Gustave d’Eichtal, sugerem que se
alcance a reconciliação racial por meio da criação de uma nova raça mulata.
Eichtal estava claramente fascinado com sua relação pessoal com Urbain, o
que levou à colaboração de ambos numa obra intitulada Os Dois Mundos
no período de 1836 a 1839, trabalho, ao que parece, perdido.81 Eichtal via os
seus laços com Urbain como entre “o negro e o judeu: os dois párias, os dois
profetas!”, e acreditava haver uma profunda relação entre a libertação de cada
um desses povos.82 A conversão de negros como Urbain ao islamismo era um
importante primeiro passo, uma vez que os tornava “membros da grande fa­
mília de Abraão” e oferecia, através do Corão, “uma iniciação dos negros ao
livro”.83 Eichtal transferiu a típica glorificação romântica do “povo” imaculado
diretamente para os negros: La race noire c'est le monde sauvage de Rousseau

79 Fakkar, p. 207, nota 33; Emerit, Saint-Simoniens, p. 75.


80 Notice, p. 10. Ele também parecia uma espécie de mistura de dois personagens literários que Enfantin
considerava símbolos do Oriente e do Ocidente, respectivamente, Otelo, a representar o absolutismo
e a “constância”, e Dom Juan, a representar “mobilidade ardente” e anarquia. Fakkar, pp. 198-199.
81 Lettres sur la race noire et la race blanche, 1839, p. 13, nota a, YU. Além do pareamento básico de
Oriente com Ocidente, Eichtal imaginou um intercâmbio natural entre as Américas do Norte e do
Sul, a Europa e a África, a Ásia e a Oceania — cada uma dessas ligações lubrificada por um mar
seminal: o Golfo do México, o Mediterrâneo e o Mar do Sul da China, respectivamente (p. 61).
Eichtal parece assinalar uma nota de atração sexual por Urbain maior até que Enfantin: “Quando
você irá nos dizer, Ismayl, o seu nome de negro e de fetichistai Quando construiremos uma capela
para as pinhas em torno das quais nos reunimos na floresta de Fontainebleau?” (p. 30).
82 Ibid., pp. 13, 20. Urbain antecipou, manifestando inacreditável semelhança em relação a ele, o
ideólogo pan-negritude Edward Blyden (1832-1912), o qual também foi das índias Ocidentais para
a África, aprendeu árabe, interessou-se pelo islã e viu paralelos entre os judeus e os negros. V. H.
Lynch, Edward Wilmot Blyden, Oxford, 1967.
83 Lettres, p. 26.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 377

84 A mistura de raças no mundo hispânico (que se estendeu desde a época


dos mouros até a atual Cuba) era vista como um modelo de futuro na terceira
e última das Cartas 35 A vindoura humanidade mulata deveria ser o produto
da fusão erótica direta de raças e sexos apartados.
Urbain parecia aceitar a perspectiva de Eichtal de que o novo povo esco­
lhido deveria começar por forjar sua “aliança da zoologia com a história”84 8687
8588
na Argélia. A tentativa de criar uma nova universidade franco-àrabe e o livro
pró-árabe Colonização da Argélia, que Enfantin publicou em 1843 tendo
por base anotações de Urbain, representaram os últimos esforços conjuntos
dos saint-simonianos para encontrar um lugar sobre a terra onde realizar
a imediata transformação da condição humana. As últimas esperanças do
mestre acerca de um “novo cristianismo” foram transferidas para o interesse
dos discípulos no que pode ser chamado de “novo islã”. Eichtal desenvolveu
essa idéia em O presente e o futuro do Islã na África Central37 O próprio
título do novo jornal em francês fundado em 1844 pelos saint-simonianos
resume sua nova visão geopolitica: Argélia: Correio da África, do Oriente
e do Mediterrâneo 33
Urbain estava em Paris durante a Revolução de 1848. Pego na “febre
revolucionária”, serviu com Eichtal em uma unidade da Guarda Nacional
comandada por Rodrigues.89 A principal contribuição saint-simoniana aos
acontecimentos revolucionários na Argélia foi a brilhante defesa da mais des­
tacada organização revolucionária do país, os Filhos de Cartago, pelo líder da
peregrinação saint-simoniana rumo ao Oriente: Emile Barrault.90 Ele instruía
os réus até mesmo no momento em que advogava por eles, observando os

84 Ibid., p. 16. Eichtal se expandiu em entusiasmo com o espetáculo de dançarinos negros no Ópera
de Paris: “Das profundezas de meus estudos, eu me transporto com prazer para o meio de tribos
negras. [...] Vejo-os remexendo suas ancas por horas a fio” (p. 29). Urbain observou em resposta
que os muçulmanos africanos dançam ao ar livre, não em casas de ópera fechadas, e o fazem tanto
para rezar como para festejar (pp. 43-44, 48, na única carta de Urbain presente nesse volume).
85 Ibid., p. 52 ss.
86 Ibid., pp. 7, 58-59.
87 G. d’Eichtal, De l’état actuel et de l’avenir de l’islamisme dans l’Afrique centrale* 1841. Ele tinha sido
o primeiro apóstolo do saint-simonismo para os ingleses. V. Fakkar, p. 149 ss.; também B. Ratcliffe,
“Saint-Simonianism and Messianism: The Case of Gustave d’Eichtal”, em French Historical Studies*
1976, primavera, pp. 484-502, o qual, contudo, não menciona Urbain.
88 L’Algérie: courrier d’Afrique* d’Orient et de la Méditerranée.
89 Notice, p. 27.
90 Emerit, Révolution...en Algérie, pp. 76-77; e, de modo mais amplo, v. pp. 76-86 sobre esse grupo
de feitio carbonário. Um dos réus prenunciou Dostoiévski ao chamar outro réu de Cristo e seu
promotor de acusação de Inquisidor (pp. 81-82).
378 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

perigos da fantasmagorie révolutionnaire em uma atmosfera conspiratória:


“Si la démocratie conspire, elle abdique” 91 Seu argumento convenceu a maior
parte da comunidade européia na Argélia de que os revolucionários eram um
anacronismo inofensivo. Eles receberam uma sentença leve, e aumentou o
prestígio do grupo saint-simoniano na Argélia. Contudo, suas atividades na
década anti-revolucionária e pós-romântica de 1850 envolveram, em grande
medida, ou desenvolvimento tecnocràtico ou mediação cultural — esta última
tendo em Urbain o seu principal defensor.
Após uma longa carreira dedicada à unificação de dois mundos (valendo-se
cada vez mais do pseudônimo Voisin,, “vizinho”), Urbain lançou uma vibrante
e revolucionária defesa da cultura nativa contra a europeização em sua obra
de 1860, Argélia para os argelinos 92 Esse título foi o protótipo de inume­
ráveis protestos anticoloniais posteriores. Mas, para Urbain, sua inspiração
se originou da prolongada doença fatal de sua esposa moura, que para ele
simbolizou o sofrimento dos povos árabes. Napoleão m se impressionou
com essa e outras obras de Urbain. Veio a conhecê-lo na condição de seu
intérprete oficial enquanto viajava pela Argélia, e deu ao velho admirador
da cultura árabe a impressão de adotar as suas idéias ao declarar, em 1862:
“Como se pode esperar a pacificação de um país cuja quase totalidade da
população se encontra permanentemente transtornada. [...] Seria necessário
transferir toda a população árabe para o deserto e lhe dar o mesmo destino
dos índios na América do Norte [...]”.93
É uma declaração clássica da impossibilidade de domínio colonial dura­
douro sobre uma cultura hostil. A tragédia não está apenas em que Napo­
leão ui não tenha honrado seu compromisso implícito de autodeterminação
nacional, mas também em que homens como Urbain tenham acreditado que
ele o faria.94 Foi a última de uma longa série de ilusões napoleônicas, iniciada
com propostas do próprio Saint-Simon ao primeiro Napoleão e encerrada
91 Ibid., p. 83.
92 L’Algérie pour les algériens, datado em Notice, p. 31. Não está incluída no livro de Fakkar sua
Correspondance du docteur A. Vital avec L Urbain (1845-1874), com introdução e notas de A. Nouschi,
Collection de documents inédits et d’études sur l’histoire de l’Algérie, segunda série, vol. v, 1959.
93 Carta de Napoleão ni a Pelissier, citada em Emerit, Saint-Simoniens, p. 270, com texto comparado em
paralelo, de modo a mostrar como Napoleão se baseou no livro de Urbain, Indigènes et immigrants,
1862. Para detalhes sobre a afinal malfadada luta de Urbain (ao lado de Baron David, filho do
pintor revolucionário, e de outro ex-saint-simoniano, Frederic Lacroix, senador e às vezes chefe
do Escritório Árabe em Paris) para convencer Napoleão m a instalar um Royaume Arabe especial
dentro da Argélia, v. Emerit, pp. 233-287; também 1848 en Algérie, p. 88 ss.
94 V. o panfleto anônimo de Lacroix patrocionado por Napoleão ni: L’Algérie et la Lettre de L’Empereur,
1863.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 379

com o serviço dócil prestado por saint-simonianos sobreviventes, como


banqueiros e construtores de estradas de ferro, para Napoleão m. Mesmo
depois da queda deste último em 1870, Urbain continuou a crer que alguma
espécie de reconciliação entre Oriente e Ocidente estava de fato acontecendo
na África do Norte francesa.
Quando outro negro veio das índias Ocidentais um século depois de Urbain
e adotou como sua a causa argelina, pregou não a filosofia conciliatória de
Urbain e dos primeiros saint-simonianos, e sim a violência heróica, terapêutica.
Parecia ter chegado a hora das “nações do mundo prestarem contas sobre as
riquezas” tomadas das nações mais pobres, conforme Urbain predissera. Mas
o acerto de contas de Frantz Fanon deveria ser realizado não com a cálida
confiança de Urbain de que “o Oriente e o Ocidente pertencem a Deus”, mas
antes com a crença fria de que um diabólico Ocidente deve ser derrotado por
um levante geral de les damnés de la terre [os condenados da terra].
Essas palavras do mais famoso título de Fanon, contudo, advieram não
de uma canção nativa, e sim do poeta da Revolução Francesa, Eugène de
Potter, cujo hino aos combatentes das comunas parisienses se tornou a
Internationale. Não seria só de tradições nativas e de profetas visionários
como Urbain que os “condenados da terra” tirariam suas idéias de liber­
tação no século XX. Seria também de uma nova geração de revolucionários
políticos europeus instruídos menos no saint-simonismo romântico de
Urbain e mais na sombria prisão política da Ilha do Diabo na ilha tropical
que Urbain abandonara.

Os hegelianos
Os “jovens hegelianos”, ou “hegelianos de esquerda”, transformaram o vago
historicismo dos saint-simonianos e outros em estreita convicção revolu­
cionária. Sua influência (como a dos discípulos de Saint-Simon) se iniciou
apenas após a morte do mestre. Cerca de uma década depois da aparição
do movimento saint-simoniano, o hegelianismo de esquerda surgiu ao fim
dos anos 1830 como distintivo geracional dos radicais mais jovens situados
a leste do Reno. Alexander Herzen, um dos fundadores da tradição revolu­
cionária russa, procedeu de modo bastante típico ao passar do entusiasmo
inicial com Saint-Simon, cujas obras ele “carregava comigo como um Corão”,
para Hegel, em quem encontrou “a álgebra da revolução”.95 As metáforas

95 R. Labry, Alexandre Ivanovié Herzen 1812-1870,1928, p. 236.


380 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

estão bem-escolhidas. Saint-Simon oferecia uma visão do paraíso material:


Hegel, um método para alcançá-lo.
Uma nova geração impaciente tendeu a misturar saint-simonismo com
hegelianismo durante a década politicamente frustrante de 1830. Alguns
dos saint-simonianos mais velhos voltaram sua atenção para Hegel;96 e
eslavos jovens, como Herzen, ficaram maravilhados com os ainda mais
radicais jovens hegelianos. Herzen escreveu em seu exílio em Vladimir, em
julho de 1839, que estava considerando escrever uma dissertação sobre
“Como é nosso século um elo entre o passado e o futuro?” quando veio a
conhecer o tratado radical de um hegeliano polonês que, àquela questão,
respondia com uma “filosofia da ação”.97
Nada ilustra tão bem a atração transnacional do hegelianismo revolucio­
nário. Um exilado russo, a leste de Moscou, regozijava-se com a obra de um
pensador polonês, que escrevia em alemão, tendo por base uma tradução
francesa das obras do falecido Hegel. O hegelianismo revolucionário não
era menos revolucionário, contudo, por ser de natureza segunda. Herzen
escreveu que o sentimental “novo cristianismo” de Saint-Simon estava
doravante ultrapassado “pelo conhecimento absoluto revelado por Hegel”.

A sociedade futura há de ser obra não do coração, mas do concreto. Hegel é o


novo Cristo trazendo a palavra da verdade aos homens [...]98

A conversão de jovens alemães como Gall e Gans ao saint-simonismo


em Paris no início dos anos 1830 precedeu, e de certo modo preparou, a
educação de Karl Marx no hegelianismo. Pois Gans foi professor de Marx
na escola secundária em Trier; e tanto ele como o futuro padrasto de
Marx podem tê-lo exposto às idéias de Saint-Simon, antes que ele viesse a
se entusiasmar com o pensamento hegeliano na Universidade de Berlim.99
Todo o fenômeno do hegelianismo de esquerda foi, com efeito, descrito
como “nada mais que um saint-simonismo hegelizado ou hegelianismo
saint-simonizado ”.100

96 Fakkar, p. 38, nota 20.


97 A. Cieszkowski, Prolegomena zur Historiosophie, 1838; carta de Herzen a A. Vitberg, citado em A.
Volodin, Gegel’ i russkaia sotsialisticheskaia mysl’ xix veka, 1973, p. 139.
98 Citado em Labry, p. 237.
99 Fakkar; pp. 101-103.
100 Ibid., p. 113, que parafraseia discussão mais extensa de Gurvitch.
LIVRO n, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 381

Pedagogia prussiana

Para compreender os hegelianos de esquerda, é preciso deixar os pano­


ramas aventurosos dos saint-simonianos e se direcionar a um mundo mais
calmo de intelectualismo abstrato: passando dos enérgicos engenheiros da
École Polytechnique para os meditabundos filósofos da Universidade de
Berlim. Se o saint-simonismo foi a religião dos polytechniciens da França
pós-revolucionária, o hegelianismo foi a religião dos estudantes universitários
da Prússia pós-reformada.
A nova universidade em Berlim se transformou no coração intelectual do
renascimento prussiano depois da humilhação a que Napoleão submetera
a nação. Hegel foi central para sua vida intelectual não só como professor
de filosofia, de 1818 até a sua morte em 1831, mas por muitos anos depois.
Fundada em 1809, a Universidade de Berlim foi sob muitos aspectos a primeira
universidade moderna — urbana, voltada para a pesquisa, financiada pelo
Estado, livre de controles religiosos tradicionais.101 Berlim estava no vértice
de todo o sistema estatal de ensino da Prússia reformada. Propositalmente
localizada na capital, em vez de em tradicionais cidades provincianas e in­
dolentes, a Universidade de Berlim respirava uma atmosfera de expectativa
política e inovação intelectual em meio a seus professores estranhamente
jovens (a maioria na casa dos 30 e tantos anos) e seus talentosos estudantes.
A Universidade de Berlim foi construída sobre uma sólida tradição alemã que
já havia ampliado e modernizado o ideal universitário — especialmente em
Hallen, no fim do século xvu, e em Göttingen, em meados do xvm. Mas o
Estado prussiano perdeu ambas com o Tratado de Tilsit em 1807. Assim, as
esperanças de toda a Prússia estavam depositadas na nova universidade em
Berlim, a primeira a ser construída em torno da biblioteca e do laboratório
em vez de em torno da catequética sala de aula. A universidade oferecia aos
estudantes ingressantes o desafio da pesquisa em vez de um aprendizado
padronizado, a promessa de descoberta de novas verdades em vez da pro­
pagação das antigas. A educação na Universidade de Berlim era estruturada
com base no compartilhamento das investigações de um professor em vez
de na transmissão de um currículo preestabelecido. O interesse estava nos
institutos de pesquisa — foram criados doze deles durantes a primeira década
de existência da universidade —, e não na faculdade de teologia, até então
a área dominante. Mesmo aí, a inovação era manifesta com a faculdade de

101 S. D’Irsay, Histoire des universités françaises et étrangères^ 1935, vol. n, pp. 184-202.
382 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

teologia intraconfessional, gerida pelo Estado, na qual a figura mais influente


era o pouco ortodoxo Friedrich Schleiermacher.
A Universidade de Berlim marcou um novo capítulo não só no desen­
volvimento da pesquisa erudita, mas também da relação entre educação
e sociedade. Pois fora criação do Estado, incumbida de treinar uma nova
elite prussiana. A obra mais famosa de Schleiermacher foram os Sermões
patrióticos^ e a obra mais conhecida de Fichte, o primeiro reitor e professor
de filosofia da universidade, foram os Discursos à nação alemão de 1807.
À época em que Hegel sucedeu Fichte, em 1819, já havia passado a primeira
onda de otimismo na Prússia. Os estudantes agora enfrentavam restrições,
e era a conservadora Áustria, e não a reformada Prússia, que mandava na
política do mundo de expressão alemã. Mas Hegel tinha um já duradouro
interesse por política, o que se evidenciara ao ter substituído, quando estudante
de teologia, as preces matinais por jornais políticos ingleses. Ele descrevia a
leitura de jornais como “uma espécie de prece matinal realista. A pessoa se
orienta com relação ao mundo por meio de Deus e por meio daquilo que o
próprio mundo é”.102
O “mundo” de Hegel era em grande medida político. Profundamente
marcado pelas esperanças que a Revolução Francesa havia despertado, dire­
cionou sua filosofia ao objetivo de libertação política universal: “Nenhuma
outra filosofia foi tanto e tão intimamente uma filosofia da Revolução”.103
Intelectuais marxistas continuam a insistir no impacto revolucionário de
Hegel: como o primeiro grande pensador a se debruçar sobre as Revoluções
Industrial e Francesa,104 como uma influência decisiva sobre Lênin bem como
sobre Marx.105
Hegel se impressionara particularmente com Napoleão, o modelo sub­
consciente do seu ideal de “personagem histórico mundial”. Em Jena, no
ano de 1806, escreveu sobre Napoleão: “Vejo Napoleão, a alma do mundo,
102 Um aforismo de seus tempos em Jena presente em Dokumente zu Hegels Entwicklung, Stuttgart,
1936, p. 360.
103 J. Ritter, Hegel et la révolution française, 1970, p. 19. Igualmente simpático a esse tema é A. Prior,
Revolution and philosophy, the significance of the French Revolution for Hegel and Marx, Cape
Town, 1972, o qual tende a sugerir que a revolução foi mais direta e profundamente inspiradora
para Hegel do que para Marx.
104 G. Lukács, Der junge Hegel, Zurique/Viena, 1948, pp. 20-26, 716-718.
105 L. Althusser, Lenin and philosophy and other essays, L, 1971, p. 106 ss., esp. pp. 118-119. Mais
importante ainda do que esse elo estabelecido por Althusser com base na leitura que Lênin fez de
Hegel em 1814-1815 pode ser a influência de Hegel sobre um de seus tradutores russos, o irmão
mais velho de Lênin, Alexander Ulyanov.
LIVRO IT, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 383

cavalgando pela cidade em missão de reconhecimento. É deveras uma imagem


maravilhosa de se ver, concentrado num ponto, sentado sobre um cavalo,
um indivíduo que excede o mundo e o domina”.106
Aí estava a simplificação derradeira, um point parfait para o intelecto
imperial. Foi o poder “concentrado num ponto” que deu articulação ao pen­
samento complexo de Hegel, que tornou possíveis novos começos. Quando
veio a reação política após as inovações napoleônicas e a reforma prussiana,
Hegel se empenhou em transformar a filosofia numa arma política. Conseguiu
politizar a filosofia; suas aulas satisfizeram o empenho em adquirir poder
e “relevância” inerente à Universidade de Berlim — e em grande medida
também inerente à vida intelectual moderna.
Hegel expressava, em primeiro lugar, a suprema autoconfiança do homem
de idéias no valor de seu pensamento. Tudo se tornou relativo ao contexto
histórico porque a própria capacidade desse homem de ver a imagem dos
acontecimentos em seu todo era dada por absoluta.107 Ao aceitar a crença
romântica de que a verdade se revelava mais nos pormenores da História
do que na ordem natural estática, Hegel não deixou de simultaneamente
afirmar a idéia iluminista de que tudo o que existe é racional. O seu método
aplicava a razão precisamente àqueles fenômenos que mais interessavam à
mente romântica: arte, filosofia e religião.
Ele havia começado como estudante de teologia a buscar uma teodicéia,
uma justificação dos caminhos que Deus dispõe ao homem; terminou, em
vez disso, criando um novo deus: o “Espírito do Mundo”. Assim como
Hegel enxergava sua cátedra de filosofia a dar uma coerência abrangente à
pluralidade intelectual da nova universidade, de igual modo o Espírito do
Mundo dava justificação unificadora ao processo histórico. Assim como a
Universidade de Berlim servia de dínamo à regeneração da sociedade alemã,
correspondentemente a filosofia de Hegel era a fonte de seu dinamismo.
Hegel encontrou na insistência dos gregos antigos em ver o homem
como animal social um antídoto ao romântico solitário ensimesmado. A

106 Carta de 13 de outubro de 1806, na valiosa introdução de Z. Pelczynski a Hegel’s political writings,
Oxford, 1964, p. 7.
107 V. o penetrante ensaio de Karl Barth sobre Hegel como intelecto moderno modelai; Protestant thought
from Rousseau to Ritschl, L, 1959, pp. 268-305. Das muitas discussões filosóficas de Hegel, esta
exposição deve-se principalmente a E Grégoire, Études hégéliennes; les points capitaux du système,
Louvain, 1958. Alguns dos elementos aqui incluídos são mais implicados que afirmados diretamente
por Hegel (por exemplo, tese-antítese-síntese); mas, uma vez que lidamos com sua influência póstuma
por meio de expositores secundários, apresenta-se um retrato compòsito.
384 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

contemplação eterna do eu era, segundo descobriu, a velha idéia de inferno:


o sentido literal da palavra hypochondria. O mundo do espírito (ou da men­
te, pois Geist pode significar ambas as coisas) oferecia uma via de escape,
pois a mente encontra satisfação em sua própria atividade. A “ciência da
consciência” de Hegel era vista como uma força controladora do universo.
Sua obra posterior sugeriu que a luta individual para superar a “alienação”
se relacionava com a luta da própria História, que passa alternadamente de
separação a reconciliação. A tese gerava a antítese e se resolvia numa síntese
mais alta segundo o padrão do próprio pensamento. Assim como a História,
o pensamento se move ascendentemente através dessas tensões rumo à vida
pura do espírito — o velho ideal grego de contemplar a contemplação.
Jovens intelectuais da Europa oitocentista acharam fascinante a sugestão
de que a sua própria vida intelectual e sua alienação pessoal os colocassem em
especial comunhão com o Espírito do Mundo. Reconciliar a razão e a revela­
ção não oferecia conflito algum para o autoproclamado Tomás de Aquino do
protestantismo. Hegel via por um prisma histórico todos os credos religiosos,
considerando-os a expressão racional do que estava implícito nos sentimen­
tos religiosos de um dado momento. Tinha-se fé numa formulação particular
fundamentalmente porque se tinha fé na sabedoria do processo do qual ela
fazia parte. Do mesmo modo como organizações políticas eram necessárias
para dar expressão objetiva à necessidade de sociabilidade, de igual modo as
igrejas necessitavam objetivar os sentimentos subjetivos de maravilha que todos
os homens sentem. A derradeira verdade está somente no próprio processo —
movendo-se através, ainda que situada além, de todas as formas históricas e
parciais de expressão. A única liberdade real para qualquer indivíduo está em
conhecer as leis internas e as necessidades sempre mutáveis.
Hegel deu, portanto, uma atraente urgência ao conhecimento de como a
História funcionava. Toda a verdade se realizava historicamente, e qualquer
parte da realidade era inteligível apenas em seu contexto histórico. As tenta­
tivas fragmentárias de Hegel de decodificar o processo histórico inspiraram
uma variedade desconcertante de movimentos. Seu argumento de que alguns
grandes homens eram agentes escolhidos (“personagens históricos mundiais”)
espicaçou Carlyle e outros teóricos dos “grandes homens” da História. Sua
crença num papel especial do mundo alemão e do Estado prussiano inspirou
os chauvinistas “neo-hegelianos” de fim do século xix. A sua predisposição
pessoal para um constitucionalismo evolucionário influenciou o chamado
Rechtsstaat [governo da lei] dos liberais. Sua crença de que a missão da mente
LIVRO 11, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 385

era buscar uma compreensão abrangente dos fenômenos humanos inspirou


grande porção da erudição apolitica “alemã” nas humanidades e ciências
sociais ao longo de todo o século xix.
Mas o aspecto mais importante da imensa influência exercida por Hegel
foi seu estímulo aos jovens hegelianos ou hegelianos de esquerda. Essa nova
geração de radicais extraiu do seu legado uma fé na inevitabilidade dialética
e na orientação revolucionária da história.
O hegelianismo revolucionário se baseava, é claro, assim como outros
hegelianismos, em uma leitura parcial da imagem que Hegel fazia do mundo.
Hegel não queria, como tampouco Saint-Simon queria, iniciar uma nova re­
volução; pretendia apenas solucionar os conflitos da revolução anterior. Mas
o sedentário professor da Universidade de Berlim, com sua caixa de rapé e
seu estilo de vida de haute bourgeois [alta burguesia] fez nascer a idéia mais
revolucionária de todas: o método dialético.
Ao sugerir que a história, assim como o pensamento, avançava progres­
sivamente por meio de contradição e conflito, Hegel justificou um novo
tipo de militância baseado no que se pode chamar de poder do pensamento
negativo. Obviamente, a princípio a dialética era para Hegel um conceito
positivo, reconciliador. O sentido geral era adiante e para cima. Cada nova
síntese tendia a elevar (aufheben) o nível da civilização. Mas, como a histó­
ria progredia por meio de contradição, o método de Hegel sugeria que cada
nova afirmação gerava necessariamente a negação. Essa tensão, por sua vez,
fazia surgir a “negação da negação”, uma nova síntese.
Uma vez que o conteúdo fundamental da história era pensamento, os
principais componentes do seu desenvolvimento eram idéias. Para discernir
quais eram as idéias-chave de uma determinada época, fazia-se necessário um
novo tipo de pensamento especulativo que transcendesse a unilateralidade
do raciocínio a-histórico (que ele chamava raisonnement) e da imaginação
desarrazoada (que ele chamava Vorstellung^ “representação”, a palavra fa­
vorita do seu rival Schopenhauer). Devia-se, isto sim, buscar alcançar, por
meio de reflexão sobre a realidade, uma “apreensão” ou “conceito” (Begriff)
da verdade revelada da história. Ao se apossar desse Zeitgeist (“espírito do
tempo”), o intelectual especulativo adquiria um senso de relevância do qual
de outro modo ele tenderia a carecer em um mundo dispersivo.
Hegel via a história a conduzir o homem do reino da necessidade para o
da liberdade através do progressivo desenvolvimento da civilização ociden-
386 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tal — desde o advento do monoteismo, quando a liberdade foi confiada


ao um (Deus), a prosseguir com a Reforma, quando Lutero a ofereceu a
todos. Hegel acreditava que, no presente momento, a idéia de liberdade
estava afinal adquirindo forma política por meio de um novo tipo de Es­
tado que fora proposto por Frederico, o Grande e em parte implementado
pelas reformas prussianas. Assim, em certo sentido, a visão de Hegel era
simplesmente uma justificação edulcorada de sua vocação para ser uma
espécie de pedagogo-chefe da Prússia reformada. A história estava transfor­
mando idéias abstratas em formas concretas, e a Prússia era sua vanguarda.
Quem poderia ser mais importante na história do que a principal figura da
principal instituição do principal Estado?
O senso de destino e de amor-próprio que Hegel transmitiu ao estudo
da filosofia em Berlim durou para além de sua morte. Mas, para uma nova
geração de estudantes que acorreram à capital prussiana, vindos do centro
e do leste europeu, era difícil prosseguir com o otimismo de Hegel para
com o Estado como instrumento escolhido do processo histórico. Depois
de ter esmagado a rebelião polonesa em 1831 e proclamado sua doutrina
absolutista de “Ortodoxia, Autocracia e Nacionalidade” em 1833, o Czar
Nicolas I da Rússia buscou cada vez mais o apoio de seus parentes con­
servadores na casa governante da Prússia. Quando o novo rei da Prússia,
Frederico Guilherme iv, frustrou as esperanças suscitadas por sua coroação
em 1840 e se mostrou ainda mais reacionário que seu antecessor, um novo
grupo de jovens hegelianos começou a fazer uma leitura revolucionária da
mensagem de seu mestre.
Passara-se uma década desde a morte de Hegel; e a nova geração nun­
ca conheceu a euforia da participação esperançosa em reformas. Tinham,
contudo, absorvido as esperanças visionárias da perspectiva hegeliana e
o intelectualismo exuberante e arrogante de Berlim. As duas principais
correntes que posteriormente moldariam o bolchevismo — a intelligentsia
revolucionária russa e o marxismo alemão — tinham se originado no mo­
vimento dos jovens hegelianos. Os pioneiros de ambos os campos foram
intelectuais dos anos 1840 — homens que estavam não tanto empenha­
dos em consertar erros concretos quanto em realizar um ideal abstrato: a
transição hegeliana “da necessidade à liberdade”. Antes de dar atenção aos
marxistas alemães e aos revolucionários russos, é preciso primeiro seguir
a pista do primeiro despertar eslavo, que ocorreu sob a magia de Hegel e
a liderança dos poloneses.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 387

O despertar eslavo

Uma nova geração de poloneses, humilhada pelo desaparecimento de sua


nação, achou atraente a nova atmosfera intelectual alemã. Esses poloneses,
escrevendo principalmente na relativa liberdade da Poznan ocupada pelos
prussianos, transformaram o hegelianismo em uma arma de revolução e
inventaram um novo talismã verbal para os eslavos: a intelligentsia.
O fundador do hegelianismo revolucionário, August Cieszkowski, veio
para Berlim em 1832 logo após a morte de Hegel. Durante uma viagem a
Paris em 1836-1838, caiu sob influência saint-simoniana e fourieriana e
publicou, quando de seu retorno a Berlim em 1838, o fundamental Prole-
gômenos a uma historiosofia. Apesar do título pretensioso e da prosa alemã
desajeitada, Cieszkowski trouxe uma mensagem simples que radicalizou a
lição do mestre sob a desculpa de prover um derradeiro “conhecimento da
história” (o significado literal de “historiosofia”).
A história, sustentava ele, movia-se dialeticamente através de três épocas
consecutivas: emoção, pensamento e ação. A primeira época correspondeu
à antigüidade, a segunda se estendeu do nascimento de Cristo até a morte
de Hegel, a terceira era a época contemporânea destinada a transformar a
filosofia em ação.
Cieszlowski empregou o termo grego práxis para designar a “atividade
prática” que, segundo pensava, seria característica da nova época. A busca
por uma “filosofia da ação” se tornou elemento central para os pensadores
mais revolucionários dentre os jovens hegelianos: os primeiros companhei­
ros radicais poloneses;108 depois, em 1841, o revolucionário russo Nicholas
Ogarev, de importância fundamental;109 e por fim, Karl Marx.
Em seus Manuscritos Economico-Filosófìcos de 1844, Marx atrela o
pensamento à ação: atirando-se diretamente à atividade revolucionária e
descartando o pensamento especulativo no “estudo da praxis social”.110
Esse estudo ativista da sociedade a partir de seu contexto histórico con­
creto significou pouco mais que a adoção alemã da “fisiologia social” dos
saint-simonianos; mas também foi um meio de suplantar o sentimento de
separação entre o indivíduo e os demais por meio da descoberta de um novo

108 B. Baczko, “La gauche et la droite hégélienne en Pologne”, em Annali, 1963, vol. vi, pp. 137-163;
e a antologia Polskie spory o Hegla 1830-1860, Varsóvia, 1966.
109 A. Walicki, “Hegel, Feuerbach and the Russian ‘philosophical left*”, em Annali, vol. vi, pp. 121-122.
110 Citado em Fakkar; p. 107.
388 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

mundo no qual “o homem total e a sociedade total tendem a se recuperar


mutuamente”.111 Assim, independentemente do quanto os jovens hegelianos
estivessem respondendo às verdadeiras necessidades da sociedade, estavam
também respondendo à sua própria necessidade psicológica de um propó­
sito de vida: algum modo de se reconciliarem com a vida em meio a outros
homens, e até de se reconciliarem consigo próprios.
Quanto mais solitário e intenso fosse o intelectual, mais universal o seu
ideal tendia a ser. Assim, os poloneses que tinham perdido sua identidade na­
cional em 1831 e se embebido do hegelianismo da vizinha Prússia produziram
um grupo pequeno, mas altamente criativo, de ideólogos que rejeitaram o
hábito dominante do nacionalismo polonês em prol da visão mais universal
de uma revolução social.
Bogdan Janski, um saint-simoniano polonês, foi o primeiro a empregar o
termo “revolução social” nos anos 1830,112 antes de se lançar à fundação de
uma religiosa e conservadora “ordem da Ressurreição”. Também Cieszkowski
foi da ideologia à cosmologia a fim de defender uma idéia de transformação
social mundial. Para se opor à idéia de Mickiewicz de nação-como-messias,
sugeriu que a oração do Pai-Nosso contém a profecia de uma utopia social
vindoura. Em sua extensa e inacabada obra dos anos 1840, Pai-Nosso, sus­
tentou que o Reino estava literalmente vindo “à terra como no céu”. Uma
“humanidade orgânica” reintegrada inauguraria uma nova era do “Espírito
Santo” na qual todas as identidades nacionais desapareceríam perante o
Governo Central da Humanidade, o Tribunal Internacional Universal e o
Conselho Universal dos Povos.113
Em 1843, B. E Trentowski criou a palavra “cibernética” para descrever
uma nova forma de tecnologia social racional que, segundo acreditava, trans­
formaria toda a condição humana. Em sua pouco lembrada obra A relação
111 Gurvitch, citado em Fakkar, p. 107.
112 E. Callier, Bogdan Janski, Poznan, 1876, p. 72. Um emprego alemão anterior durante a Revolução
Francesa (por Wieland, ao descrever os jacobinos em Neuer teutscher Merkur, 1794, fev., p. 141,
citado por Seidler, p. 277) não guarda a mesma sugestão de mudanças sociais profundas: “Ihre
Absicht sey, aus der französischen Revoluzion eine révolution sociale d.i., eine Umkehrung aller
jetzt bestehenden Staaten zu machen”.
113 V. A. Walicki, “Two Polish Messianists: Adam Mickiewicz and Cieszkowski”, em Oxforf Slavonic
Papers, New Series, vol. il, 1969, esp. pp. 90-96. O conceito de uma “era do Espírito Santo” remonta
a Joaquim de Fiore e heresias de fim da Idade Média. Sobre a influência de Cieszkowski sobre os
movimentos revolucionários alemão e russo, v. McLellan, Hegelians, pp. 9-12; sobre os italianos,
v. Saitta, Sinistra, p. 125 ss.
Cieszkowski e outros eslavos prosseguiram com seu interesse pelos aspectos cosmológicos do
saint-simonismo (o conceito de palingênese e de uma vindoura era “orgânica”) mesmo após terem
passado ao hegelianismo. V. Gott und Palingenesis, 1842.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 389

entre filosofia e cibernética; ou a arte de governar as naçõesi ele também in­


ventou a palavra “intelligentsia”. Numa passagem em que desafia a liderança
do poeta nacionalista Adam Mickiewicz, Trentowski o acusou de estar em
descompasso com “a nova geração e o novo espírito”, “tremendo de medo
de que lhe seja tomado o cetro com que rege a intelligentsia polonesa”.114
Trentowski fora educado na Alemanha; e publicou seu tratado em Poznan,
onde a censura prussiana era um tanto mais liberal do que nas áreas polone­
sas ocupadas pelos austríacos ou pelos russos. No ano seguinte e na mesma
cidade, a expressão “intelligentsia progressiva” foi empregada em um peri­
ódico editado por Karol Libelt, um hegeliano polonês educado em Berlim e
politizado em Paris.115 Em seu Amor pela pátria, escrito no mesmo ano de
1844, Libelt descreveu aquela intelligentsia como “todos aqueles que, tendo
recebido uma educação acurada e ampla nas escolas secundárias e institutos
franceses, situam-se na direção da nação na condição de eruditos, oficiais,
professores, clero, industriais — em suma, todos aqueles que a guiam em
virtude de seu mais alto esclarecimento”.116
Eis aí, claramente, uma liderança para a Polônia alternativa à do governo
militar das potências que ocupavam o país. A idéia veio a se mesclar com a
nova teoria, lançada simultaneamente por Cieszkowski, de que a aristocracia
hereditária deveria ser substituída por uma nova aristocracia do mérito.117
Usos posteriores do termo na imprensa polonesa em Poznan acrescentaram
a idéia de que a intelligentsia era separada das massas.118
114 B. Trentowski, Stosunek filozofii do cybernetyki, Varsóvia, 1974, p. 549 (edição original de Poznan,
1843).
115 Inteligencja postepowa, em Rok, vol. xi, 1844, p. 3, citado em F. Peplowski, Slownictwo i frazeologia
polskiej publicystyki okresu oswiecenia i romantyzmu, 1961, p. 167.
116 K. Libelt, O milosci ojczyzny, Poznan, 1844, tal qual reimpresso em Libelt, Rozprawy, Cracóvia,
1869, pp. 111-112. O título completo da obra de Libelt é Amor da pátria. O ano de 1844 do ponto
de vista do esclarecimento, da indústria e dos acontecimentos atuais. V. Z. Wójcik, Rozwój pojecia
inteligencji, Breslávia/Varsóvia/Cracóvia, 1962, p. 21, nota 2; também I. Kosmowska, Karol Libelt
jako dzialocz polityczny i spoleczny, Poznafi, 1918.
A palavra intelligence já tinha sido utilizada, é claro, para sugerir tanto um corpo de reformadores
intelectuais quanto a inteligência em abstrato na retórica francesa dos anos 1830 e entre reformadores
alemães do fim da década de 1840. Veja-se sobre esse último caso, R. Pipes, “‘Intelligentsia’ from
the German*’, loc. cit., pp. 615-618. A remissão de Pipes ao exemplo que ele incorretamente chama
de primeiro uso “com o sentido moderno” (p. 616) também é imprecisa — o lugar de publicação é
Leipzig, e a página de referência é 5251.
117 Cieszkowski, De la pairie et de l*aristocratie moderne, 1844. Embora publicada em Paris, essa obra,
assim como as demais de seu autor, exerceu seu impacto por meio de Poznan, onde Cieszkowski
afinal se tornaria co-fundador e presidente da Associação de Poznaá dos Amigos da Aprendizagem.
V. Walicki, “Messianists”, p. 104.
118 Peplowski, p. 167. O uso de 1864 implica uma distinção entre a intelligentsia e as pessoas comuns;
o uso de 1857 sugere que a intelligentsia é essencialmente esnobe.
390 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Libelt e Cieszkowski ainda se baseavam, em grande medida, na velha


aristocracia para produzir a nova elite. Mas o con vite de Libelt à juventude
da Polonia para “sacrificar sua realidade por um ideal”, para “se apaixonar
pelo esclarecimento, renunciando aos prazeres do corpo” fez ressoar coisas
futuras. Na Rússia da década de 1860, a intelligentsia adquiriu pela primeira
vez a sua sugestão inteiramente moderna de uma elite intelectual desven­
cilhada de laços tradicionais e dedicada à mudança social radical.119 Libelt
invocou o texto de um poema de Schiller, “Resignação”, poema que havia
se tornado “especialmente popular na Rússia”,120 para sugerir o necessário
espírito de sacrifício aos fundadores de sua intelligentsia revolucionária,
Herzen e Ogarev. O poema oferecia a escolha entre satisfação no presente
e esperança no futuro. Não havia dúvida alguma de que os revolucionários
eslavos haviam optado, já nos anos 1840, por viver de esperança.
A filosofia hegeliana lhes deu esperança — mesmo quando eles a rejeita­
vam. Belinsky, o fundador do jornalismo radical russo, escreveu em 1838 que
os ensinamentos de Hegel lhe permitiram “lidar com pessoas práticas”121 ao
convencê-lo de que elas eram objetivamente dignas de estudo. A perspectiva
hegeliana o elevou acima do que o seu correspondente Bakunin chamava
“o meu eu pessoal”.122 Posteriormente, Belinsky rejeitou a “reconciliação
com a realidade” que Hegel oferecia, proclamando que “a sina do sujeito,
do indivíduo, da personalidade, é mais importante do que a sina do mundo
inteiro e [...] da Allgemeinheit hegeliana”.123
Mas esse foi “o grito de revolta de um homem doente a quem o remédio
hegeliano não pôde curar”.124 De fato, o “remédio” tinha induzido a um vício
em ideologias totalizantes; e os jovens révoltés de Berlim estavam criando
uma ideologia com sua “filosofia da ação”.125

119 A contínua liderança polonesa na criação de termos é novamente indicada no caso de inteligentny,
a forma adjetiva de intelligentsia. A versão polonesa estava já listada em uma enciclopédia de 1863:
“[...] no sentido mais amplo da palavra, chamamos inteligentny todo aquele que é um mestre completo
de algum ramo do conhecimento, por exemplo, um estadista, um arquiteto etc.”. Encyklopedyja
powszechna S. Orgelbranda, vol. xii, 1863, pp. 617-618, como citado em Wójcik, p. 22, nota 6.
120 M. Malia, “Schiller and the Early Russian Left”, em Harvard Slavic Studies, vol. iv, 1957, p. 188.
121 Polnoe sobranie sochinenii, vol. xi, 1956, pp. 293-294.
122 Carta de 4 de fevereiro de 1837, em A. Kornilov, Molodye gody Mikhaila Bakunina, vol. I, 1915,
p. 376.
123 Polnoe sobranie, vol. xn, p. 22.
124 A. Koyré, Études sur Thistoire de la pensée philosophique en Russie, 1950, p. 161. V. também a
bibliograficamente bem-informada discussão da influência de Hegel na Rússia.
125 A gênese de sua “filosofia da ação” entre os eslavos está delineada em Volodin, GegeP, p. 138 ss.
LIVRO IL CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 391

Ogarev, enquanto estudava na Alemanha, apontou o caminho ao afirmar


que “nem tudo o que é real é racional, mas tudo o que é racional deve se
tornar real. A filosofia da ação é no momento a melhor corrente de pensa­
mento [...] uma teoria segundo a qual a realidade irracional se transforma
em realidade racional. Praxis é história”. A ação revolucionária é a cura para
a alienação, a resposta adequada à presente época e um meio de transformar
as abstrações hegelianas em “algo pessoal”.126
Os amigos de Ogarev, os “exilados românticos” Herzen e Bakunin, fize­
ram esforços especialmente angustiados para fundir o pessoal ao universal
e para atender à reivindicação de Cieszkowski por uma nova filosofia da
ação.127 Os russos sentiam a dupla deficiência de serem aristocratas provin­
cianos e intelectuais alienados. Sofriam do senso agudo de serem à imagem
do “homem supérfluo” da literatura russa, com ainda menos oportunidade
que os prussianos de desempenhar atividade significativa na sociedade. Mas,
em uma Prússia mais interessada em crescimento econômico (por meio do
Zollverein^ a nova união aduaneira de 1834) do que em desenvolvimento
político ou educacional, muitos alemães também se sentiam frustrados.
Jovens intelectuais subestimados tendiam a reafirmar o seu próprio valor
exagerando a inutilidade dos poderes governantes.
Nenhum dos principais jovens hegelianos tinha sofrido seriamente nas
mãos das autoridades européias; e a maioria deles (incluindo Marx) parece
nunca sequer ter entrado em uma fábrica. A sua revolta era mental e espiri­
tual — originava-se de uma nova visão e não tanto de velhas queixas. Eles
falavam na condição de exilados — russos em Berlim e Paris, prussianos
em Genebra e Bruxelas, poloneses por toda parte. Falavam em muitas lín­
guas — mas sempre com a linguagem da profecia. Assim como os profetas
cristãos tinham identificado os governantes opressores com o anticristo para
aumentar as expectativas em torno da libertação trazida pelo Verdadeiro
Cristo, de igual modo os proféticos jovens hegelianos proclamaram o mal
dos governantes a fim de aumentar a sede de revolução.
Essa sede foi estimulada pela ordem de Frederico Guilherme iv da Prússia
para “extirpar a semente de dragão do hegelianismo”,128 em Berlim, atribuindo
126 Ogarev, citado de P. Sakulin, Russkaia literatura i sotsializm, 1924, pp. 158-159 por Walicki, em
Annali, voi. vi, 1963, p. 122.
127 V. A. Walicki, “Cieszkowski a Hercen”, em Studia filozoficzne, 1965, n° 2, pp. 137-164; e Polskie
spory, pp. 153-242.
128 Em urna carta a C. von Bunsen, citada a partir de Bunsen, Ams seinen Briefen, Leipzig, 1869, vol.
U, p. 133, em McLellan, Marx, pp. 40-41.
392 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a cátedra de filosofia que pertencera a Hegel ao seu adversário: o idealista


romântico Friedrich Schelling. Pois, para os radicais que peregrinavam até
o santuário de Hegel, instalar Schelling em Berlim não diferia muito de en-
tronizar o anticristo em Jerusalém. Sua aula inaugural sobre “A Filosofia da
Revelação”, em novembro de 1841, atraiu uma platéia ardente,129 na qual
se contavam Engels e Bakunin, ambos condenando esse aparente retrocesso
da lógica hegeliana à fantasia romântica.
Frustrados em todas as suas esperanças juvenis, os hegelianos radicais
começaram a ansiar por um apocalipse revolucionário. Bruno Bauer viu
na nova filosofia da ação “A Trombeta do Julgamento Final”, para citar o
título de um artigo seu de novembro de 1841;130 o chamado à violência não
demoraria. Bakunin afirmou ao fim de 1842 que 44 a. alegria da destruição é
uma alegria criativa”;131 e seu amigo Proudhon, sob a influência de Hegel,
iniciou a sua principal obra de meados dos anos 1840 com o lema Destruam
ut aedificabo [Destruo para construir].132
Mas todos os radicais hegelianos — sem excluir aquele inimigo amargo
de Bakunin e Proudhon, Karl Marx — acreditavam que a revolução traria
a liberdade por meio da destruição do estado, e não por meio da plena
realização deste último, como enxergara Hegel. Essa segunda geração de
hegelianos acreditava estar próximo o fim de todo governo opressivo. Alguns,
como Bakunin, defendiam uma revolução social que derrubasse “Deus e o
estado”.133 Outros, como Max Stirner, defendiam que “o ego e o que lhe é
próprio”134 rejeitassem toda autoridade imposta desde fora. Marx acreditava
que a revolução social surgiria dialeticamente de uma ordem feudal, passando
por uma ordem burguesa, por fim alcançando uma ordem proletária. Mas

129 Incluindo o teólogo dinamarquês Soren Kierkegaard e o romancista russo Ivan Turgeniev. Aulas
posteriores atraíram uma quantidade impressionante de russos, inclusive o futuro líder reacionário
Mikhail Katkov, o filósofo eslavófilo Yury Samarin e o teórico da revolução conspiratória, Nicholas
Ogarev. V. Volodin, Gegel’, p. 280.
130 V. a tradução reimpressa Trubny glas strashnogo suda nad Gegelem, 1933; também Volodin, p. 138.
131 Citado do Deutsche Jahrbücher, 1842, out., em M. Bakunin, Sobranie sochinenii i pisem', 1935,
vol. in, p. 148; v. também Annali., vol. vi, 1963, p. 110.
132 Ao que parece, nunca foi observado que esse lema soa muito similar àquele do “segredo da
Maçonaria” revelado apenas ao 33° e último grau da Maçonaria escocesa — pelo menos na Itália do
século xix: Distruggere e rifabbricare, Sòriga, Albori, p. 36. Assim como em tantas outras questões
relativas à revolução, a origem maçônica parece provável no caso de Proudhon, uma vez que ele
era ativo nas lojas de sua nativa Besançon, onde as tradições maçônica e revolucionária haviam
estabelecido antigas inter-relações.
133 God and the State, Boston, 1883.
134 M. Stirner (pseudônimo de Johann K. Schimdt), The ego and his own, NY, 1918.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 393

o anarquismo de Bakunin, o solipsismo de Stirner e o comunismo de Marx


encontravam todos eles embasamento na convicção dos jovens hegelianos de
que estava próximo o fim de toda autoridade; e de que o “espírito da época”
requeria uma rejeição revolucionária da estrutura atual de poder.
O hegelianismo revolucionário alcançou uma espécie de clímax na vida
de Edward Dembowski, o jornalista aristocrata que foi morto a tiros aos
23 anos, após liderar aquele que talvez tenha sido o regime revolucionário
mais extremista a aparecer na Europa do século xix. Dembowski havia sido
um dos principais manifestantes em Poznan e um exemplo fundamental do
fenômeno que Libelt foi o primeiro a nomear: a intelligentsia progressiva.
Jovem de vinte anos, ficou profundamente impressionado com a doutrina da
destruição criativa divulgada no artigo de Bakunin de 1842. No ano seguinte,
Dembowski publicou no jornal de Libelt o primeiro de vários artigos nos
quais se valia de filosofia abstrata para justificar a atividade revolucionária
concreta. Seus “Alguns Pensamentos sobre o Ecletismo” iam contra o uso
do hegelianismo para reconciliar contradições. Essa perspectiva “eclética”
era nada mais que um brinquedo nas mãos dos governantes instituídos. O
ateísmo era essencial, uma vez que “a escola hegeliana de esquerda” se situava
“no polo oposto ao radicalismo religioso”. Somente a pura negação e des­
truição poderíam levar à ação concreta e criativa que afetaria a “substância
sensual” da vida real.135
O último dos seus artigos de maior importância, “Pensamentos sobre o
Futuro da Filosofia”, de 1845, propunha que uma filosofia nacional polonesa
da revolução criasse uma síntese de pensamento alemão e feitos franceses.136 Ele
traçou a história de conjuntos paralelos de pensadores alemães e agentes fran­
ceses: Kant-Robespierre, Fichte-Babeuf, Schelling-Saint-Simon, Hegel-Fourier
e Feuerbach-Proudhon. Esse último par esgotava as possibilidades da filosofia
e da critica social ao alcançar, respectivamente, de um lado o materialismo
ateu e, de outro, a rejeição total da autoridade política.137 Nada mais restava a
fazer senão traduzir essas idéias em uma revolução necessariamente sangrenta
sobre o solo imaculado da Polônia. Quando a insurreição camponesa na Ga­
licia deflagrou protestos por toda a Polônia ocupada, Dembowski encontrou
oportunidade de colocar em prática essa “filosofia nacional”. O filósofo de 23

135 Izbrannye proizvedeniia progressivnykh pol'skikh myslitelei v trekh tomakh, 1958, vol. il, p. 292,
“Kilka mysli o eklektyzmie”, em Rok, 1843.
136 “Mysli o przyszlosci filozofii”, em Rok, 1845; também Polskie spory, pp. 277-368.
137 V. discussão em Janion, Goracka, pp. 456-458.
394 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

anos liderou o governo revolucionário que assumiu o poder na Cidade Livre


da Cracóvia. A velha capital tinha adquirido nova importância como única
parte não ocupada na Polônia e como uma pequena região do leste eslavo
onde os camponeses tinham sido emancipados.
No dia do aniversário de Washington em 1846, um governo nacional da
Polônia foi criado ali, e dois dias depois Dembowski se tornou o líder de fado
da “República da Cracóvia”. Os seus breves dez dias de existência chocaram
a Europa com a ousada proclamação de sufrágio universal, criação de fá­
bricas de manufatura nacionais e abolição do sistema de senhorio de terras,
a fim de que “todo mundo possa fazer uso da terra segundo seus méritos e
habilidades”.138 Assumindo a difícil tarefar de acalmar e satisfazer o ainda
insubmisso campesinato, Dembowski partiu da cidade para se encontrar com
as tropas austríacas que avançavam — na esperança de que elas pudessem
ficar fora da cidade e neutralizar os russos que também avançavam. Mas
foi baleado pelos austríacos, os quais anexaram o último vestígio de uma
Polônia livre depois que os russos ocuparam a Cracóvia no dia 3 de março.
Os desesperados poloneses começaram a abandonar a alcandorada filo­
sofia e a partir para praticidades. Henryk Kamienski, primo mais velho de
Dembowski, apontou o caminho com duas grandes obras publicadas entre
1843 e 1845: A filosofia da economia material da sociedade humana e So­
bre as verdades vivas do povo polonês.139 A primeira discutia a mecânica
concreta da mudança socioeconomica; a segunda, os usos táticos da violên­
cia revolucionária. Essa última obra propunha uma revolução agrária por
meio de um levante de guerrilha e uma cuidadosa campanha de terrorismo
revolucionário. Na exploração desse assunto — como em muitos outros —,
a Polônia da década de 1840 antecipou a Rússia da década de 1860. Nesse
ínterim, vieram as insurreições no Ocidente: a “revolução dos intelectuais”
de 1848, na qual nem a Polônia ocupada nem a sonolenta Rússia desempe­
nharam papel algum.

O choque de “ismos” em 1848


No início de 1848, uma onda de revoluções atingiu a Europa. Foi mais longe
e durou mais do que a de 1830. Mas em toda parte fracassou — e pôs um

13'8 Descrição de J. Feldman em The Cambridge history of Poland, NY, 1971, vol. n, pp. 352-354. O
melhor tratamento geral de Dembowski ainda é M. Stecka, “Edward Dembowski”, em Przeglad
Historyczny, voi. xn, 1910, n° 1 e 2.
139 O primeiro publicado em 2 vol., Poznan, 1843, 1845; o segundo, Bruxelas, 1844.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 395

fim àquela “sensação empolgante de possibilidades quase infinitas”140 que


havia antes prevalecido entre os revolucionários. Depois de 1848, o cálculo
passou geralmente a prevalecer sobre a exaltação; a realidade prosaica da
organização do estado e do desenvolvimento industrial suplantou a visão
romântica de uma nova nação ou comunidade social. Doravante, as revo­
luções seriam basicamente causadas por derrotas em guerras estrangeiras, e
não tanto por motins sociais internos.
Tomadas como um todo, as revoluções de 1848 parecem mais fluidas que
sólidas: estavam mais para uma inundação que tivesse submergido os alicer­
ces por toda parte do que para uma tomada de poder ou para a definição de
um programa. Houve um contágio do espírito em meio a uma perturbação
da autoridade.
Uma nova geração de pensadores ambiciosos e articulados deflagrou as
insurreições. Serviram de material inflamável os artesãos ameaçados pela
mudança social e outros indivíduos desenraizados das grandes cidades da
Europa continental. As estruturas tradicionais foram enfraquecidas pela
depressão econômica vinda de baixo e pela inépcia política vinda de cima.
A melhor caracterização do resultante remoinho de experimentação política
e entusiasmo poético talvez tenha sido a de “revolução dos intelectuais”.141
Essa revolução pode ter, para o mundo ocidental ideologicamente in­
seguro de fins do século xx, a relevância que não teve para a Europa mais
confiante de fins do século xix. Como última grande insurreição de uma
Europa essencialmente pré-industrial, a revolução de 1848 se baseou em
muitos dos mesmos elementos fundamentais em que se baseou o primeiro
levante interno do Ocidente essencialmente pós-industrial do fim da década
de 1960. Ambos os movimentos se tornaram internacionais quase instan­
taneamente — e foram mais fundo na sociedade ao conseguirem mobilizar
indivíduos recém-chegados às cidades ou ainda não assimilados por ela. Os
irlandeses em Londres, os saxões em Berlim e os franceses interioranos em
Paris142 desempenharam papéis na turbulência do fim dos anos 1840 não
inteiramente diferentes daqueles que os negros desempenharam nas cidades
norte-americanas do fim dos anos 1960.
140 S. Edwards, Selected writings of Proudhon, p. 16.
141 L. Namiei; 1848: The revolution of the intellectuals, NY, 1946. Pesquisa mais recente é contemplada
por P. Stearns, 1848: The revolutionary tide in Europe, NY, p. 197. Esses acontecimentos são inseridos
em um contexto europeu detalhado em W. Langer, Political and social upheaval 1832-1852, NY,
1969, esp. pp. 319-512.
142 Sua importância é enfatizada em W. Langer, “The Pattern of Urban Revolution in 1848”, em E.
Acomb e M. Brown, French society and culture since the Old Regime, NY, 1966, pp. 90-108.
396 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Sem dúvida, as revoluções de 1848 tiveram um alcance muito maior do


que os protestos estudantis de 1968 — e os elos entre revolta intelectual e
revolta urbana eram muito mais fortes. Essas duas ondas de perturbações
também tiveram causas profundamente diferentes. Mas ambas tiveram
como conseqüência o encorajamento de tendências conservadoras nos anos
seguintes. As duas insurreições compartilharam, mais ainda, uma profunda
diferença frente a todas as formas mais ritualizadas e organizadas de levante
que apareceram durante os 120 anos intervenientes de organização industrial
e conflito geopolítico entre estados desenvolvidos tecnologicamente. De fato,
1848 e 1968 compõem uma espécie de moldura para o conflito geopolítico
da era industrial.
Apesar de todas as suas diferenças, os levantes de 1848 e 1968 começaram
com a derrubada do principal símbolo de poder político no mundo ociden­
tal: o último rei da França e um presidente “imperial” dos Estados Unidos.
Em cada um desses casos, a inquietação interna guardou um laço histórico
profundo com uma distante guerra estrangeira. A inquietação dos anos 1840
não chegou de fato ao seu fim até que as paixões populares despertadas nos
maiores estados industriais do século xix, Inglaterra e França, fossem cana­
lizadas para o primeiro dos maiores conflitos da era industrial: a Guerra da
Criméia de 1853-1856. A inquietação dos anos 1960 não se iniciou de fato
até que o sentimento popular no maior estado industrial do século xx, os
Estados Unidos, se levantasse contra a Guerra do Vietnã.
Há similaridade entre essas duas guerras — assim como entre as revoluções
às quais a Criméia e o Vietnã estão ligados. Essas duas guerras destrutivas
marcam o nascimento e talvez a morte do ritual de violência em massa que
estados liberais industriais organizam internamente, mas executam em solo
estrangeiro. Ambas as guerras ocorreram em locais bastante delimitados
em áreas distantes, passando por um processo de aumento gradual da força
empregada. As doses foram calculadas por contadores anti-sépticos e em­
belezadas por políticos ambiciosos que faziam cena em torno da ameaça de
um regime autoritário hostil que toma o poder — por um efeito dominó
— de uma área instável (a Rússia nos Bálcãs, a China no sudeste asiático).
Lançaram-se à guerra reformadores idealistas e inovadores (Palmerston e
Kennedy/Johnson), e logo se criaram modelos de combatente heróico para
lhe emprestar prestígio (a Brigada Ligeira, os Boinas Verdes). O sucesso e
o fracasso em cada uma dessas guerras dependiam da relevância das novas
tecnologias e da função desempenhada pelos novos meios de comunicação.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 397

No caso da Guerra da Criméia, o londrino Times e a nova imprensa de massa


instigavam o entusiasmo e a sede de vitória. No caso da Guerra do Vietnã,
o New York Times e um novo meio de comunicação de massa, a televisão,
ajudaram a tirar os Estados Unidos da guerra.
O ritual moderno de guerra nacional que se vale de poderio industrial
surgiu, em larga medida, para canalizar, senão mesmo para resolver, as as­
pirações informes, porém exaltadas do período de 1848-1850 na industria­
lizada Inglaterra e na França em processo de industrialização. Pode ser que
o ritual tenha se esgotado no Vietnã na década de 1960, quando algumas
daquelas mesmas aspirações reapareceram em uma nação pós-industrial, os
Estados Unidos, em uma segunda e ainda mais indefinida “revolução dos
intelectuais”. A turbulência de 1968 talvez tenha revivido, no crepúsculo da
era industrial, algumas das formas e idéias presentes em sua aurora em 1848.
As novas idéias (os “ismos”) e os novos meios de comunicação (o jorna­
lismo de massa) desempenharam papel central nessa primeira revolução dos
intelectuais em 1848. Dos três ideais básicos da Revolução Francesa — la
république, la nation, la communauté — nasceram os três novos sistemas
de idéias que disputaram a fidelidade dos indivíduos na Europa continental
de início do século xix: o liberalismo, o nacionalismo e o socialismo. Após
a reencarnação da revolução na França em 1830, esses ismos se ligaram a
esperanças renovadas de sucesso revolucionário acalentadas por revolucioná­
rios de vertente política, nacional e social. As revoluções que se espalharam
da França para toda a Europa em 1848 podem ser discutidas em termos de
interação e conflito entre esses três ismos.
Vimos como os cafés do Palais-Royal deram, durante os anos de 1788-
1789, a legitimação de um protetor régio à discussão política livre com um
público amplo, e mobilizou esse público no sentido de ação revolucionária.
De modo similar, a campanha nacional de banquetes em defesa da reforma
eleitoral em 1847-1848 deu legitimidade de atividade parlamentar a uma
extensão ainda maior das discussões políticas, o que levou a uma nova
revolução.143 Mas, ao passo que a massa parisiense de 12 de julho de 1789
tinha se reunido em um ponto (o Palais-Royal), estimulada por uma queixa
(a demissão de Necker), tendo afinal convergido para um alvo (a Bastilha),
o novo populacho de 22 de fevereiro de 1848 se reuniu esparsamente pelas
ruas para manifestar apoio à campanha de banquetes que tomara toda a
143 Langer, Upheaval, p. 89; J. Baughman, “The French Banquet Campaign of 1847-1848”, em Journal
of Modern History, vol. xxxi, 1959, mar., pp. 1-15.
398 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

França; suas queixas eram de natureza econômica; e suas passeatas foram


um protesto contra o cancelamento do grande e culminante banquete em
paris. A multidão que transitou por Paris ao longo de dois dias até que o
Rei Luís Filipe abdicasse carecia da coesão da massa que anteriormente, ses­
senta anos antes, havia partido do elegante enclave de cafés de seu patrono.
Os parisienses de 1848 queriam comida, e não bebida, queriam um nicho
ideológico de legitimidade, e não um nicho geográfico.
Desde o começo havia ficado evidente o conflito entre aspirações políticas
moderadas e aspirações sociais radicais. Embora superficialmente se mos­
trassem como uma revolução política clássica como a de 1830, as cenas nas
ruas barricadas eram dramaticamente diferentes. As pessoas tinham mais
fome, o clima estava mais frio. O tenor romântico Nourrit havia ocupado
o centro do palco na celebração dos “três dias gloriosos” de julho de 1830.
Mas, no gélido fevereiro de 1848, a revolução encontrou o seu herói artístico
e porta-voz em um ator de vaudeville, Frederick Lemaitre, que encenava um
drama social nas ruas: O catador de lixo.
Lemaitre também atuou em melodramas revolucionários tradicionais, como
o Toussaint l’ouverture escrito pelo poeta que havia se tornado chanceler do
novo governo provisório de 1848, Lamartine. Mas Lemaitre se dedicou cada
vez mais ao vaudeville, o qual passara a se ligar intensamente à revolução
desde que o administrador do Teatro Vaudeville, Étienne Arago, fechara a
sua casa e ordenara ao público que se juntasse à massa amotinada em 1830,
afirmando que “não haverá nenhuma risada enquanto Paris estiver aos pran­
tos!”.144 Ao se preparar para o papel, Lemaitre estudou diretamente com um
famoso catador de lixo parisiense que era visto como um crítico social.145
Lamaitre interpretou o papel todos os dias — o que não era costumeiro em
Paris — após sua estréia em 1847;146 e O Catador de Lixo se revelou, em
1848, uma pièce d’occasion para a revolução, assim como o foram em 1830
Hernâni e A Muda de Portici.
Uma representação gratuita da peça ao meio-dia do dia 24 de fevereiro
para o povo de Paris produziu tamanho “efeito indescritível” que “os contem­
porâneos foram unânimes em atribuir à peça influência sobre a Revolução
de Fevereiro”.147 Na peça, Lemaitre tinha de tirar uma coroa de dentro de

144 R. Baldick, The life and times of Frederick Lemaitre, L, 1959, p. 79, também p. 80.
145 Ibid., p. 199.
146 P. Robertson, Revolutions of 1848: a social history, Princeton, 1952, p. 54.
147 A. Zévaès, “Le mouvement social sous la restauration et sous la monarchie de juillet”, em La
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 399

uma lixeira, e quando o fez o público irrompeu com o canto da Marselhesa


numa celebração comunal da transferência de poder do último monarca
francês para o povo. Canhões soaram, a platéia gritou “vive la république!”
e o espetáculo se misturou a um protesto popular que Lemaitre chamou de
“espetáculo verdadeiramente sublime”. O autor da peça, recém-chegado do
ostracismo que lhe tinha sido imposto, escreveu que “uma vida de exílio é
um pequeno preço a pagar por um dia como esse”.148
À altura do mês de junho, o governo revolucionário provisório estaria
atirando contra muitos daqueles que haviam sentido a sublimidade de que
Lemaitre falara. O povo trabalhador de Paris havia começado a repetir as
reclamações do catador de lixo sobre ter de “conseguir o seu pão numa ruma
de esterco”,149 e assim arrolou 30.000 subscritos para um banquete popular
(com refeição ao custo de 25 cêntimos, em vez dos 10 francos dos banquetes
eleitorais burgueses).150 Mas essa festa popular foi cancelada, e se seguiram
os sangrentos “dias de junho”, opondo liberalismo e socialismo nas ruas de
Paris. Nesse ínterim, contudo, a revolução tinha se espalhado para o resto
da Europa, valendo-se principalmente do terceiro e mais atraente dos ismos
naquele período: o nacionalismo.
O nacionalismo foi, como vimos, a mais destacada ideologia revolucioná­
ria entre 1830 e 1848. Às vésperas de 1848, com a campanha da Sociedade
Citilo e Metódio na Ucrânia e dos nacionalistas liderados por Kossuth na
Dieta Húngara, jovens representantes das maiores sub-nacionalidades de cada
um dos grandes impérios multinacionais, a Áustria e a Rússia, tomaram a
dianteira. Assim, já em janeiro de 1848 um levante separatista ocorreu em
Palermo, na Sicilia; e os estadistas conservadores se convenceram de que
estava se espalhando a “loucura polonesa” do nacionalismo revolucionário
que havia assomado na Cracóvia em 1846.
Quando caiu a monarquia burguesa de Luís Filipe em Paris ao fim de fe­
vereiro, parecia garantido o aval da França a revoltas nacionais em qualquer
parte. Um chansonnier francês, que antes havia visto a campanha francesa

Révolution de 1848,1936-1937, dez.-jan.-fev., p. 235.


148 Felix Pyat, citado em Baldick, p. 202; Zévaès, p. 235. Théophile Gautier, que estivera presente à
turbulenta estréia de Hernâni, parece ter achado ainda mais espantosa a reação de “fanatismo,
frenesi” da platéia em 1848. V. Zévaès, p. 236; também Baldick, p. 200. Le Chiffonier de Paris era
tão popular que deu origem a uma paródia, Le chiffon-nié de par ici.
149 Citado em Zévaès, p. 235.
150 Langer, Upheaval, pp. 347-348; e artigos de P. Amann, cujas referências estão dadas na nota 53.
400 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGF.M E HISTÓRIA

de banquetes como o início de um “festim universal” de todas as nações,151


agora escrevia que

Paris est sorti du tombeau...


Radieux comme un Christ nouveau.

[Paris se levantou de seu túmulo...


Radiosa como um novo Cristo.]152

Antes mesmo que o novo governo francês tivesse adquirido forma política,
justificava a si mesmo “por direito natural e por direito nacional”, dirigindo-se
antes às nações que aos soberanos da Europa.153
Como se ocorrendo em resposta, uma velocíssima torrente de revoluções
nacionais se espraiou de Copenhague e Amsterdã até Veneza e a Sardenha.
Nos seus “dias de março”, a Alemanha foi o redemoinho situado ao centro.
Metternich, símbolo par excellence do antinacionalismo, abdicou e fugiu.
No prazo de uma semana, Berlim se revoltou como Viena; o rei da Prússia
adotou a bandeira tricolor revolucionária da Alemanha; e toda autoridade
parecia à beira do colapso. Nessa atmosfera, os revolucionários nacionalis­
tas buscaram formas políticas constitucionais que haviam proporcionado
as bandeiras para a revolta no início da era Metternich. Assim, o mundo de
fala alemã trouxe para o centro do palco a segunda doutrina revolucionária
da época romântica: o liberalismo.
O liberalismo dominou o pensamento europeu desde o momento em que
se reuniu, ao fim de março, um comitê de cinqüenta líderes alemães em um
“pré-parlamento” que cobrava a eleição de uma assembléia constituinte para

151 “La chanson du banquet” de 21 de fevereiro de 1848, citado em A. Zévaès, “Pierre Dupont,
chansonnier de 1848”, em La Révolution de 1848, 1931, mar.-abr.-maio, p. 39.
152 “La Jeune République”, em ibid., p. 40. V. também Dupont, La Marseillaise de l’atelier, pp. 37-38.
153 Lamartine, “Manifesto to Europe”, em Postgate, Revolution, p. 193. Para um novo e grande estudo da
Revolução Húngara, v. I. Deak, The lawful revolution: Louis Kossuth and the hugarians 1848-1849,
NY, 1979; e, sobre a mais importante das várias revoluções nacionais eslávicas, a qual acabaria por
entrar em conflito com a Revolução Húngara, v. I. Leshchilovskaia, Obshchestvenno-politicheshaia
bor’ba v khorvatii 1848-1849, 1977. V. esp. pp. 256-263 sobre os esforços dos poloneses, que na
luta pelos húngaros desempenharam papéis de liderança, para ao mesmo tempo ajudar os croatas.
Sobre o conflito de uma minoria nacional não-eslava com a Revolução Húngara, v. K. Hitchins,
Rumanian national mouvement in Transylvania, 1780—1849, Cambridge, Massachusetts, 1969, pp.
243-256.
O conflito entre os advogados universalistas da liberdade constitucional e os advogados nacionalistas
da fraternidade encontrou desdobramento no novo mundo com o fracasso geral dos abolicionistas
radicais de cooptar os nacionalistas irlandeses para a luta contra a escravidão dos negros. V. G.
Osofsky, “Abolitionists, Irish Immigrants and the Dilemmas of Romantic Nationalism”, em American
Historical Review, 1975, out., esp. pp. 911-912.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 401

uma Alemanha unificada. Em abril, uma assembléia constitucional foi eleita na


França na primeira votação de âmbito nacional a adotar o sufrágio universal
masculino, e quando o governo provisório renunciou à sua autoridade, no
mês de maio, uma assembléia republicana moderada se tornou com efeito
o governo da França. Repúblicas e constituições foram proclamadas em di­
versas regiões italianas; um congresso eslavo se reuniu em Praga, imitando
a assembléia alemã que se reuniu em Frankfurt no dia 18 de maio.
A assembléia de 830 homens em Frankfurt se revelou o mais sólido e
sério esforço de estabelecer uma nova ordem constitucional no continente.
Buscou ampliar a idéia francesa de uma Declaração dos Direitos do Homem
por meio de uma mais abrangente Declaração dos Direitos do Povo. Mas,
ao buscarem representar o “povo” diretamente, os instruídos parlamentares
de Frankfurt acabaram por se apartar das bases existentes de poder real.
Em um mundo alemão ainda politicamente dividido e economicamente
retrógrado, autoridades locais e principescas aos poucos recuperaram para
si o verdadeiro poder que vinha de cima. Enquanto isso, desde baixo, o
espectro da revolução social no verão de 1848 amedrontou cada vez mais
os profissionais liberais de classe média de Frankfurt. Os liberais de ontem
se tornaram os conservadores de hoje, e assim o governo liberal moderado
perdeu na Alemanha o seu lustro revolucionário como em toda parte.
O socialismo^ junto ao comunismo e outras palavras de ordem da re­
volução social, passou a dominar a imaginação européia, particularmente
depois que a escancarada luta de classes ensangüentou as ruas de Paris em
junho de 1848.
O desassossego dos proletários após a depressão de 1847 ajudou a precipi­
tar a Revolução de Fevereiro. A Comissão dos Trabalhadores, que o governo
provisório estabeleceu no Palácio de Luxemburgo, logo se tornou a força
principal numa crescente revolução social. Essa Comissão de Luxemburgo,
composta por 300 a 400 trabalhadores, serviu de foro para as demandas da
classe operária, algumas das quais (promulgação do direito ao trabalho e
criação de fábricas nacionais) a assembléia aprovou formalmente.
Apóstolos estrangeiros de soluções socialistas — Robert Owen, Goodwyn
Barmby e Karl Marx — acorreram a Paris. “O Rei do Comércio foi con­
quistado pelo Homem do Trabalho”,154 proclamou Barmby em março,
enaltecendo o presidente da Comissão, Louis Blanc, e seu vice-presidente,

154 Howitfs Journal, 25 de março de 1848, p. 207.


402 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

“Albert, o Artesão”.155 No dia 22 de abril, escreveu a um correspondente em


Paris que, “quando você receber a presente carta, Paris já terá socializado
pacificamente os seus bancos, estradas de ferro e fábricas”.156
Quando essa mensagem chegou à Inglaterra, contudo, já havia se ini­
ciado em Paris a virada conservadora contra os proletários. A esquerda foi
inteiramente derrotada nas eleições para a assembléia ao fim de abril; líderes
revolucionários bastante conhecidos, como Blanqui, foram presos em maio;
e em junho cerca de dez mil trabalhadores foram mortos ou feridos e cerca
de onze mil deportados pelas forças militares da assembléia “liberal”.
Os “dias de junho” robusteceram as forças de reação por toda a Europa.
Quatro dias após a repressão em Paris, a assembléia de Frankfurt reconheceu
o conservador arquiduque austríaco como “regente da Alemanha”. Pouco
depois, a assembléia convocou as tropas prussianas para resgatá-la de um
cerco revolucionário na igreja de Frankfurt, onde havia se reunido. Com o
sufocamento de uma revolta em Baden no mês de setembro e de um levante
proletário em Berlim no mês de outubro, a assembléia abriu caminho para um
retorno integral ao conservadorismo monárquico no mundo de fala alemã,
o que se iniciou com a contra-revolução na primavera de 1849 em Viena,
onde a revolução alemã tinha sido deflagrada exatamente um ano antes.
A ressurgência contra-revolucionária por toda a Europa em 1849-1850
não tirou vantagem apenas da inexperiência dos intelectuais como líderes
políticos. Igualmente importantes foram os conflitos subjacentes, que asso­
maram à superfície, entre as próprias ideologias revolucionárias.
Fora da França, o liberalismo na Alemanha tinha sido a principal fonte
de esperança revolucionária; o próprio Marx aconselhara a abolição de uma
Liga Comunista independente na primavera de 1848 a fim de unificar todas
as forças revolucionárias sob uma única e sólida revolução “democrática
burguesa”. Mas os liberais alemães se mostraram indiferentes à emergência
de um movimento de trabalhadores, e o espectro do comunismo que esse
movimento promoveu ajudou a transformar os liberais mais velhos em novos
conservadores. Ainda mais fundamental foi o conflito interno entre os ou-
trora compatíveis, mas agora rivais, objetivos revolucionários de unificação
nacional e republicanismo constitucional. O primeiro foi mais atraente para
as massas em tempos de amotinamento. Os alemães podem ser inflamados

155 Ibid., 8 de abril, pp. 253-256; 22 de abril, pp. 267-269.


156 Ibid., 22 de abril, p. 269.
LIVRO II, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 403

por ódio à Rússia, e os italianos por ódio à Áustria. Tanto alemães como
italianos se mostraram dispostos — às vezes até ansiosos — a abandonar
ideais republicanos e aceitarem um rei. Desde que fosse um rei deles próprios
que lhes desse identidade, pareciam prontos a escolher o ideal nacional de
unidade em detrimento do ideal liberal de liberdade: Einheit [unidade] a
prevalecer sobre a Freiheit [liberdade].
O fracasso da revolução de 1848 na Alemanha também ilustrou o con­
flito interno ao liberalismo entre o desejo de um estado de direito forte e de
crescente liberdade individual. Os liberais alemães derrotados em Frankfurt
eram só um pouco menos autoritários que os nacionalistas alemães vitoriosos.
Os liberais acreditavam em um executivo forte e em um legislativo fraco;157 e
seu conceito de “união constitucional” ajudou a separar a expressão “cons­
titucional” de suas associações anteriores com libertação revolucionária
romântica. A palavra Konstitutionelle sugeria o juste milieu de lei e ordem;
e esse conceito de “constituição constitucional” se opunha diretamente ao
de constituição revolucionária. Aquela primeira propunha moderação, a
segunda prometia libertação. O liberalismo constitucional deixou de ser um
ideal revolucionário na Alemanha não só por causa da pressão hostil exercida
por conservadores, mas também em razão das opções que os liberais fizeram
quanto ao que era seu programa.
As reivindicações de mudança política se tornaram menos revolucionárias;
e reivindicações por revolução social passaram quase despercebidas. Mesmo
dentro do “ismo” revolucionário dominante, o nacionalismo, os levantes de
1848-1850 revelaram conflitos profundos jamais antevistos pelo sonho de
Mazzini de uma fraternidade feliz de povos federados. O poder alemão foi
assegurado às expensas das identidades dinamarquesa e tcheca. A Hungria,
que havia produzido a mais exuberante e bem-sucedida das revoluções
puramente nacionais, foi esmagada desde cima pelo nacionalismo rival e
reacionário da Rússia e minada desde baixo pelo nacionalismo separatista
dos croatas, sérvios, eslovacos e romenos.
Ao leste do Reno, os monarcas reacionários triunfaram por toda parte;
em 1851, a única esperança dos revolucionários parecia estar na França e na
Inglaterra. A Inglaterra havia preservado certa margem de liberdades civis e
acolhia bem os refugiados políticos do continente. A França havia derrubado
o seu último rei e estabelecido uma república baseada no sufrágio universal.
157 D. Mattheisen, “1848: Theory and Practice of the German juste milieu”, em The Review of Politics,
1973, abr., pp. 187-190.
404 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mas a Inglaterra havia neutralizado o lado radical de sua tradição liberal me­
diante uma combinação criativa de repressão policial profilática e cooptação
seletiva, por meio do poder legislativo, do programa de reformas cartistas.
O protesto cartista em Londres em abril de 1848 envolveu pessoas da
classe majoritária de trabalhadores urbanos e da classe média mais bem
instruída da Europa. Mas os proponentes do uso de “força física” já tinham
malogrado dentro do próprio movimento. Com o fracasso desse ajuntamento
popular (sob forte chuva) em provocar algo que fosse além de uma inútil
petição por mais direitos democráticos, a Inglaterra viu o ano de 1848 passar
sem nenhuma insurreição, que dirá uma revolução. O liberalismo se apartou
mais ainda da militância revolucionária; e a grande exibição de produtos
no Crystal Palace em 1851158 afastou da vista dos ingleses quaisquer idéias,
concentrando-as na promessa de prosperidade e progresso gradual.
Em 1851, a França desferiu pancadas de outro tipo nas esperanças ainda
vivas de republicanismo revolucionário. No dia 2 de dezembro, data de
aniversário da primeira grande vitória militar de Napoleão I em Austerlitz,
Napoleão m dissolveu a assembléia legislativa e assumiu poder ditatorial.
Apesar da dura resistência ao golpe no interior do país, ele conseguiu trans­
formar a Segunda República no Segundo Império e estabelecer, ao longo de
uma década, uma espécie de estado policial sancionado por plebiscito, o que
refletia um desejo bastante difundido de ordem e estabilidade.159
Quatro dias após o golpe, Napoleão m devolveu o Panteão ao arcebispo de
Paris, o qual o rebatizou (pela terceira vez) de Abadia de Sainte-Geneviève —
desse modo condenando ao esquecimento um esforço artístico insubstituível
de expressar a fé comum a todos os ismos. Por mais de três anos um grupo
empenhado de pintores revolucionários vinha trabalhando, sob a direção
de Paul Chenavard, em um grande conjunto de projetos para redecorar o
Panteão.160 Foi talvez o projeto artístico ideologicamente mais ambicioso no
período de 1848-1851 — e uma digna reprise daqueles primeiros esforços,
após a morte de Mirabeau em 1791, de transformar a igreja em um santuário

158 Expressão maior da modernização e industrialização por que passava a Inglaterra à época, o Crystal
Palace foi uma colossal construção (quase 100 mil metros quadrados) em ferro e vidro erguida no
Hyde Park especialmente para abrigar a Grande Exposição de 1851 {Great Exhibition of the Works
of Industry of all Nations), cujo escopo mundial ajudou o país a firmar sua imagem vanguardista
em matéria de bens de consumo e progresso social — NT.
159 H. Payne, The Police State of Louis Napoleon Bonaparte 1851-1860, Seattle, 1966.
160 J. Sloane, Paul Marc Joseph Chenavard. Artist of 1848, Chapel Hill, 1962; Egbert, Radicalism, pp.
183-186.
LIVRO TI, CAPÍTULO 8: PROFECIA: O SURGIMENTO DA INTELLIGENTSIA 405

secular para grandes homens, o qual poderia inspirar os revolucionários a


“transformar o mundo em um Panteão”.161
A carreira de Chenavard parece uma espécie de rememoração do roman­
tismo revolucionário. Ele tinha estado na claque da estréia do Hernâni de
Hugo às vésperas da Revolução de 1830, tinha sido iconografo de Mirabeau
e membro da primeira Assembléia Nacional formada após a revolução, o
homem que Delacroix pediu para ver quando estava morrendo, e — dos pés
à cabeça — um leal filho de Lyon, com sua paixão pelos trabalhadores e seu
estilo alemão e místico de tratar as questões sociais. Na extremidade do friso
que projetou para o Panteão a fim de mostrar o progresso da humanidade,
apareciam Saint-Simon e Fourier, cujos discípulos eram os amigos mais pró­
ximos de Chenavard na década de 1840.162 Foi encarregado de redecorar o
Panteão em abril de 1848 pelo irmão do líder socialista Louis Blanc (Charles
Blanc, o revolucionário Diretor de Belas-Artes) e pelo líder político radical
Alexander Ledru-Rollin, o novo Ministro de Interior.
O elemento central na iconografia revolucionária de Chenavard era um
imenso mural em estilo heróico clássico representando personagens reais e
míticas em um panorama circular de “palingênese” (renascimehto contínuo),
o qual conduzia a uma irmandade universal de super-homens andróginos. A
interação entre direita e esquerda é evidente nesse monumento incompleto
da fé revolucionária. O título desse seu grande mosaico sob o domo central
do Panteão, La Palingénésie Sociale^ foi tirado diretamente de um livro pu­
blicado em 1827 pelo conservador e católico Pierre-Simon Ballanche, como
ele, natural de Lyon. A visão de Ballanche da história como uma série de
“renascimentos sociais” representou a “política do miraculoso” romântica
em sua forma extrema. Embora fosse politicamente reacionário e no fim das
contas pessimista quanto ao progresso (previa um retorno da humanidade à
animalidade depois de sua ascensão à divindade), Ballanche havia inspirado
muitas das imaginações mais ilimitadamente otimistas da ala revolucioná­

161 Tirado da declaração que representa o ápice musical da fé revolucionária no terceiro ato da ópera
de U. Giordano sobre o Reino do Terror, Andrea Chenier (1896): “Fare del mondo un Pantheon!
Gli uomini in dei mutare e in un sol bacio e abraccio tutte le genti amare!’*.
162 Sloane, pp. 46—47, 112 ss. Além dos murais e mosaicos, os quatro pilares principais deveriam
ficar enfileirados frente a estátuas que simbolizassem as quatro divisões da história e estágios de
desenvolvimento social: a era de ouro da religião (Moisés), a era de prata da poesia (Homero), a era
de bronze da filosofia (Aristóteles) e a era de ferro da ciência (Galileu). Haveria estátuas de Adão e Eva
em cada lado da entrada principal. Sloane relaciona esse simbolismo às teorias sexuais de Enfantin
(pp. 114-115), sem compreender o ideal sério e andrógino que ancora todo o desenvolvimento do
pensamento romântico de Ballanche a Enfantin, e deste a Chenavard.
406 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ria: os saint-simonianos em sua fase messiânica de 1832 e o velho Charles


Nodier, que nesse mesmo ano publicou uma fantasia futurista, Palingénésie
humaine.163
As pinturas, esboços e projetos de Chenavard e seus associados foram re­
legados a museus provinciais à época do Segundo Império. Napoleão m, que
havia suplantado Ledru-Rollin nas eleições já desde bem antes de se declarar
imperador, sentiu-se desobrigado de dar prosseguimento aos planos artísticos
do republicano derrotado. Assim como outros líderes políticos inovadores do
terceiro quarto do século xix (Bismarck na Prússia, Cavour na Itália), Napo­
leão adotou um pouco daqui e dali dos ideais românticos mais antigos. Mas
os ismos principais na França deixaram de ser quaisquer tipos de ideologia
revolucionária — fosse o liberalismo, o nacionalismo ou o socialismo —,
substituídos por um novo conjunto de atitudes apolíticas e anti-românticas
que atendiam pelo nome de realismo, materialismo e positivismo.
O fracasso revolucionário de 1848, a que se seguiu o golpe napoleonico em
Paris, representou um ponto de inflexão da história: uma perda de instância
de legitimidade. Exilado político no distante Cazaquistão, um dos sempre
proféticos poloneses, Zygmunt Sierakowski, escreveu que: “Antes do 2 de
dezembro, eu queria ir para Paris. Hoje vejo só dois lugares no mundo para
mim: Nova York ou Petersburgo [...] Se tivesse de escolher, talvez escolhesse
Petersburgo”.164
Se revolucionários ocasionalmente se refugiaram nos Estados Unidos, por
outro lado a própria tradição revolucionária emigrou para a Rússia. O im­
pacto posterior de Sierakowski provavelmente reside menos em sua liderança
pública do levante polonês de 1863 do que em sua influência mais silenciosa
sobre Chernyshevsky e a emergente tradição russa. O centro de gravidade
revolucionária estava passando da revolução nacional para a social, de Paris
para São Petersburgo.

163 Ibid., pp. 109-110.


164 Texto da carta de 9 de setembro de 1852, em Przeglad Historyczny, vol. lviii, 1967, pp. 116-117;
discussão em S. Kieniewicz, Les insurrections polonaises du xixe siècle et le problème de l'aide de
la France, Varsóvia, 1971, pp. 4-5.
CAPÍTULO 9

A igreja primitiva (a década de 1840)

Credo: comunismo
ais que qualquer outro movimento partícipe da tradição revo­

M lucionária, o comunismo nasceu com o seu nome. Ao aparecer


publicamente pela primeira vez em 1840, a palavra se espalhou
por todo o continente com uma velocidade inédita na história dessa
epidemias verbais. Diferentemente de rótulos revolucionários anteriores,
comunismo era uma palavra nova, à qual desde o começo se associou um
novo conceito.1
A rápida disseminação do termo pela Europa foi possível em razão dos
meios de comunicação acelerados (o serviço postal regularizado através
de barco e trem a vapor e do primeiro telégrafo). Aqueles que difundiram
a palavra constituíam um pequeno grupo de jovens jornalistas cuja única

1 Bertier de Sauvigny, “Liberalism”, pp. 147-166, analisa três fases distintas (e geralmente sucessivas)
da história de qualquer novo rótulo político de importância: a criação morfològica de uma nova
palavra, sua associação semântica com um novo conceito e sua maturidade lexical^ quando cai no
uso comum. O nascimento da palavra comunismo, que ele não discute, oferece exemplo ímpar de
todas as três fases a ocorrer quase simultaneamente,
Até a já discutida e inteiramente independente pré-história dessa palavra, com Restii de la Bretonne
no século XVIII, é antes abrupta que gradual. Restii criou morfologicamente a palavra a fim de
expressar um sentido semântico já amadurecido.
A única indicação de qualquer emprego do termo entre a década de 1790 {com Restii) e a de 1840
é uma atribuição não documentada a Lamennais que se encontra em Dauzat, Nouveau dictionnaire^
p. 182. Não encontrei nenhum emprego da palavra por Lamennais nos anos 1830, nem tampouco
o encontrou Y. Le Hir em seu estudo exaustivo de termos: Lamennais Écrivant 1948.
408 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ocupação era a artesania verbal. Ao contrário das vozes operísticas do


nacionalismo romântico, os revolucionários sociais se comunicavam de
modo mais natural em sua prosa impressa — o romance social, a rese­
nha crítica, o panfleto polêmico. Nascida de um verdadeiro oceano dessa
prosa, a palavra comunismo assomou como nome breve para uma visão
essencialmente verbal. A idéia, popularizada pela primeira vez nas páginas
de um romance ( Viagem à Icária^ de Cabet), foi aperfeiçoada e finalmente
tornada manifesta por Marx às vésperas da revolução de 1848.
O novo termo lançou luz sobre os medos da geração mais velha e as
esperanças da mais nova. A palavra comunismo espalhou-se antes que hou­
vesse quaisquer comunistas. De fato, o termo era empregado de maneira
eminente e recorrente por seus opositores conservadores — uma vez mais
a demonstrar a simbiose entre os temores de um extremo e as esperanças
do outro. Para situar o impacto do novo rótulo em seu contexto corres­
pondente, é preciso considerar de modo mais abrangente a história das
inovações verbais dentro da tradição revolucionária.

A palavra-amuleto

Cada nova década, com uma regularidade quase rítmica, produziu os


seus próprios novos rótulos com que agrupar a esquerda revolucionária.
Nos anos 1790, os amigos da Revolução Francesa invocaram a respeitável
palavra democracia com espantoso novo efeito. Constituição tornou-se
importante durante a década seguinte de oposição à tirania napoleonica.
Todos esses termos permaneceram no léxico revolucionário — e vieram
a recuperar seu poder evocativo original em épocas posteriores e lugares
distantes.
Nas décadas que se seguiram à derrota de Napoleão, contudo, houve uma
mudança na natureza dos termos míticos centrais que os revolucionários
privilegiavam. Palavras inteiramente novas com significados mais extensos
começaram a substituir palavras mais antigas portadoras de associações
mais limitadas. Esses novos rótulos foram derivados de palavras francesas
terminadas em isme^ e ofereciam a perspectiva vaga, mas atraente, de pro­
ver nova legitimidade para uma civilização européia que já não estava tão
convicta de suas igrejas e reis.
O primeiro novo ismo, inventado e ampiamente difundido no início
do século, foi o romantismo. Desde seu aparecimento em 1804, a palavra
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 409

projetou-se para além do emprego literário e implicou o comprometimento


ativo da vontade humana com uma nova visão de mundo.2 A proclamação
de um ismo sugeria uma nova idéia em busca de novos partidários — crenças
abstratas necessitadas de dedicação concreta. Acresceu-se conteúdo político
com a proclamação do novo e igualmente autoconsciente ismo da década
seguinte, o liberalismo.
Mas os termos romantismo e liberalismo não eram tão revolucionários
quanto os manifestos de seus partidários. De fato, a novidade chocante
dos profusos movimentos que hoje compreendemos a partir daquelas de­
signações foi de algum modo amortecida aos ouvidos dos contemporâneos
em razão do fato de que os adjetivos correspondentes já tinham empregos
não-revolucionários bem-estabelecidos. Não se pretendia que uma pessoa
romântica ou liberal possuísse, em nenhum sentido básico, alguma doutrina
nova que requeresse a designação especial de um neologismo como “roman-
ticista” ou “liberalista”. Os primeiros novos ismos a criar os seus próprios
istas foram o socialismo e o comunismo. Esses talismãs verbais surgiram
com precisa pontualidade — respectivamente — no início dos anos 1830
e no início dos anos 1840. Mas, ao contrário do liberalismo da década de
1820, o socialismo e o comunismo produziram autoproclamados socialistas
e comunistas. Os velhos adjetivos social e comunal eram claramente inade­
quados para escrever o novo tipo de comprometimento — com sentidos não
transmitidos por nenhum dos rótulos anteriores de democrata, republicano,
nacional, constitucional ou liberal.
A criação e propagação de novos rótulos abrangentes como esses foram
a marca distintiva da tradição revolucionária social durante o período entre
as revoluções de 1830 e de 1848. Antes de contar a história deles, convém
perguntar por que os bem mais numerosos e vitoriosos revolucionários na­
cionais dessa mesma época não produziram inovações verbais comparáveis.
Nationalisme, uma palavra cunhada pelo tratado bastante lido de Barruel
publicado em 1797, foi raramente utilizada por revolucionários nacionais
posteriores, e sequer aparece em qualquer grande glossário europeu antes
do Larousse de 1874.3

2 Sauvigny, p. 149.
3 Ibid., p. 157, e ainda pp. 155-160. Durante a Revolução Francesa, a designação de qualquer coisa
como um “ismo” (jacobinisme, sans-culottisme etc.) era quase uma forma de insulto, senão mesmo
de denúncia. No exílio após a Revolução de 1848, Metternich sustentava que a terminação ismo
sempre implicava desdém (ibid., p. 150).
410 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os revolucionários nacionais valiam-se, claro, de canções e símbolos


tanto quanto de palavras. Em geral protestavam contra qualquer ideal social
abstrato, proclamavam uma ligação quase orgânica com sua própria terra
e cultura, e rejeitavam lemas que refletissem o universalismo racionalista
de intelectuais desenraizados. Os revolucionários nacionais também eram
mais relutantes que os revolucionários sociais em adotar termos nascidos do
desprezo e odiados por seus adversários. Até Mazzini a princípio evitava e
raramente empregava o termo nacionalismo.4 Os nacionalistas românticos
basicamente pregavam um evangelho sentimental do amor, reunindo os ho­
mens, portadores de um legado comum, em um novo tipo de irmandade. Os
revolucionários sociais, ao contrário, pregavam a reestruturação racional da
sociedade. Eram uma pequena elite intelectual em busca de uma massa de
espectadores que rivalizasse com a dos nacionalistas. Sobretudo precisavam
de visibilidade, a qual poderia ser alcançada até por meio de publicidade
negativa. Além da visibilidade, algum lema que inspirasse a ira da imprensa
de massa não-revolucionária poderia ser profundamente útil para atrair nova
atenção para o seu ideal de mudança social extrema.
O termo socialista tinha uma pré-história substancial de emprego aleatório
como palavra ofensiva no século xvm. Na Itália, Rousseau foi denunciado
como um socialista em 1765,5 em seguida como um anti-socialista em 1803.6
Na França, um veterano radical da Conspiração de Babeuf empregou o
termo socialista em 1797 como meio insultuoso de designação de um chefe
de polícia realista.7
Ao que parece, a palavra foi utilizada pela primeira vez com o seu signi­
ficado moderno no círculo dos primeiros discípulos de Owen. Ao escrever

4 Ibid., p. 160.
5 O emprego que Ferdinando Fecchinei faz em Note ed osservazioni sul libro intitolato ‘Dei delitti
e delle pene’, contrário a Beccaria, é discutido em E Venturi, “‘Socialista’ e ‘socialismo’ nell’Italia
del settecento”, em Rivista Storica Italiana, voi. lxxv, 1963, pp. 129-141. Empregos anteriores do
termo diverso “socialista”, em meio a juristas da escola de direito naturai que se seguiu a Grotius,
são discutidos em H. Müller, Ursprung und geschichte des Wortes Sozialismus und seiner verwandten,
Hanöver, 1967, p. 30 ss.
6 De autoria de Giacomo Giuliani, L’antisocialismo confutato — Opera filosofica, Vicenza, 1903, p.
74, o qual também empregou o verbo “socializar-se” {socializzarsi), p. 160, discutido em Müller, p.
37.
7 G. Laurent, “Drouet sous le Directoire — A propos d’une lettre”, em Annales Historiques, vol. x,
1925, pp. 412-416. O texto completo da carta de Drouet foi perdido, mas ele também falou, em
1798, da necessidade de “vigiar as intrigas dos fanáticos socialistas e emigrados”, p. 416. Sauvigny
acredita que a palavra foi provavelmente usada na França antes de Drouet (“Libéralisme”, p. 162,
nota 31). V. também J. Godechot, “Pour un vocabulaire politique et social de la révolution française”,
em Actes du 89e Congrès des sociétés savantes, vol. i, p. 1964.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 411

a Owen em novembro de 1822, Edward Copper incitou à participação de


uma nova comunidade utópica uma pessoa não nomeada, a qual estava
“bem-disposta a tornar-se o que meu amigo Jo Applegath chama de socia­
lista”.8 Em 1827, Owen tornou-se o primeiro a empregá-la na imprensa. “A
principal questão entre os economistas políticos modernos (ou Mill e Malthus)
e os comunionistas ou socialistas”, escreveu na Cooperative Magazine, é se
“o capital deve ser ganho individual ou comumente”.9
Foi só após a Revolução de 1830 que socialismo ganhou uso corrente
com sentido positivo pela primeira vez, e rapidamente tornou-se uma das
“palavras sacramentais da época”.10 A palavra foi bastante evocada na França
ao longo da década de 1830 à medida que liberalismo se desgastava por sua
identificação com a monarquia burguesa.11 Disseminou-se agilmente junto a
palavras relacionadas (socializar, socialização) e outros termos mais efêmeros
(societismo, associacionismo) no período de 1831 a 1833. Bem-recebido ou
amaldiçoado, o socialismo era em geral visto como o necessário oposto do
individualismo e de uma preocupação estreita com processos puramente
políticos.12 A primeira grande reunião pública a se valer do termo de manei­
ra rotineira foi um congresso de cientistas e filósofos realizado em Nantes
em abril de 1833, no qual “socialistas” eram contrastados com “maníacos
políticos” {politicomanes), “que se ocupam de questões de constituição, em
vez de voltarem sua vista para a questão social”.13
Outro novo ismo surgido para desafiar um suposto vazio do liberalismo
político foi o radicalismo. Já nos anos 1820 pensadores franceses tinham
começado a se apropriar do termo “radical” dos reformadores utilitaristas

8 J. Gans, “L’Origine du mot ‘socialiste’ et ses emplois les plus anciens”, em Revue d'histoire economique
et sociale, vol. xxx, 1957, pp. 79-83, no qual se utiliza a correspondência de Owen em Manchester.
Applegath (também chamado, ao que parece, Applegarth) foi um instrutor em New Lanarck e
pertenceu à efêmera Sociedade Educacional em New Harmony, Indiana. R. Leopold, Robert Dale
Owen. A Biography, Harvard, 1940, pp. 36-37.
9 1827, nov., p. 509; citado em Bestor, p. 277.
10 Adam Mickiewicz, citado em Walicki, “Messianists”, p. 99.
11 Primeiro empregado em publicações francesas, aparentemente por um suíço, Alexandre Vinet,
“Catholicisme et Protestantisme”, em Le Semeur, 23 de novembro de 1831, citado em Müllen p.
97. Em Müller se encontra a discussão mais completa do assunto; e outras referências aqui presentes
são em grande parte materiais não utilizados ou pouco explorados por ele.
12 Deville, “Origine”, esp. pp. 387-398, ainda traz as melhores referências básicas desses primeiros
usos e discussão deles. V. também Bestor; p. 277, nota 95.
13 Charles Pellarin (o organizador jornalístico da conferência, que tinha laços tanto com os
saint-simonianos quanto com os fourieristas), citado em Müller; p. 102.
412 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ingleses.14 Sua idéia de que a mudança deveria ir até a própria raiz {radix) da
sociedade fora intensificada pelas expectativas elevadas que a Revolução de
1830 gerou.15 “Radical” foi cada vez mais empregado ao fim dos anos 1830
— especialmente após republicano ter se tornado um termo ilegal.16 Mas em
breve radical, assim como liberal, começou a sugerir oposição à revolução.
Théophile Thoré, um jovem revolucionário, citou em seu julgamento em 1841
o caso de um radical professo que anunciou, em um banquete em Rouen,
no início de 1839: “Nós somos revolucionários. Sim, amigos da revolução
completa, a fim de prevenir novas revoluções”.17
A nova palavra que o jovem Thoré e sua geração elegeram para a defesa
do ideal de revolução social foi comunismo.
Em março de 1840, um jornal conservador alemão publicou: “Os comu­
nistas pretendem nada menos que um nivelamento da sociedade — de modo
a substituir a ordem atual das coisas pela utopia absurda, imoral e impossível
da comunidade de bens”.18
Esse, que é o primeiro uso documentado do termo, já ilustra a repulsa
mesclada a fascínio que o novo conceito inspirou no oficialismo europeu. O
uso disseminou-se muito rapidamente pela Europa.19 Outro jornal conservador

14 J. Kayser, Les grandes batailles du radicalisme des origines aux portes du pouvoir 1820-1901,1962,
p. 8; Müller, pp. 54-55, para empregos britânicos anteriores.
15 Metternich escreveu que “o liberalismo foi substituído pelo radicalismo” em uma carta de 10 de
junho de 1832 ao embaixador austríaco em Berlim, Conde von Trauttmansdorff, a partir de texto
em V. Valentin, Nationalfest, PP- 138-139.
16 V. G. Alroy, “Les radicaux après la revolution de 1848”, em Le Contrat Social, 1966, set.-out., pp.
290-291.
17 M. Laffitte, citado de Siècle, 22 de março de 1839, em Procès de T. Thoré, 1841, p. 19.
18 Citado do primeiro de urna série de artigos sobre o comunismo na França em Augsburger Allgemeine
Zeitung, 11 de março de 1840, em F. Klitzsch, Sozialismus und soziale Bewegung im Spiegel der
Augsburger “Allgemeinen Zeitung” 1840-1850, Gütersloh, 1934, pp. 32-33. O uso nesse jornal
pouco lembrado (o qual também antecipou com seu ABC des Kommunismus o título do primeiro
manual soviético de doutrinação escrito por Bukharin), portanto, antecede qualquer um dos usos
documentados na melhor discussão disponível dos primeiros usos precisos da palavra feitos por
Bestor, “Évolution”, pp. 278-281, e ainda anterior a outras obras aqui mencionadas. O primeiro
emprego italiano é rastreado até os franceses e datado de 1840 por S. Battaglia, Grande dizionario
della língua italiana, Turim, vol. n, p. 448.
A. Bobkov indica que, pouco depois de janeiro de 1837, um agente de Metternich relatou que a Liga
dos Fora da Lei de Schuster estava à frente de “um movimento ora democrático, ora comunista,
ora republicano” (“K istorii raskola soiuza otverzhennykh vol. i 836-1837 godakh”, em Novaia i
Noveishaia Istorila, 1959, n° 5, p. 102). Mas o artigo original de que Bobkov tomou sua referência
torna claro que esse relatório data na verdade de 1843 (G. Wendel, “Vorläufer des Sozialismus”,
em Der Abend, 19 de novembro de 1929).
19 A rápida disseminação do novo termo pode ser analisada a partir de três dos mais antigos estudos do
assunto: a obra em geral favorável de L. von Stein, Der socialismus und communismus der heutigen
Frankreichs, Leipzig, 1842; o muito alarmista L. de Carné, “De quelques publications démocratiques
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 413

alemão elogiou três anos depois o “poder imenso” e a paixão polêmica que a
palavra desencadeara: “Quando folhas hostis não são capazes de atingir um
jornal liberal, reprovam-no por suas tendências comunistas... Considera-se
o comunista um criminoso contra a propriedade de outrem”.20
Nos anos 1840, o comunismo era mais uma presença nas mentes das
classes abastadas do que um ideal — que dirá uma realidade — para o prole­
tariado. Seus primórdios como movimento podem ser claramente rastreados
até a França do fim da década de 1930. O primeiro uso formal do termo
comunista na Alemanha de 1840 alude a uma realidade francesa prévia, e
Cabet alegou em 1841 que o comunismo teve início com discussões em pri­
sões francesas após as prisões de 1834.21 Embora não se tenha encontrado
nenhum exemplo, é quase certo que o termo surgiu durante o fim dos anos
1830 como uma das várias novas palavras francesas derivadas do termo
babeuvista — então revivido — communauté. Deste modo, qualquer relato
acerca do nascimento do comunismo deve começar com a França.

Fundadores franceses

O comunismo, como novo tipo de movimento revolucionário com cons­


ciência de classe, originou-se em Lyon e Paris na segunda metade da década
de 1830. Com a supressão do movimento de trabalhadores em Lyon após a
insurreição de 1834, um pequeno número de líderes proletários foi para a
marginalidade em busca de remédios mais extremos. A secreta “Sociedade das

et communistes”, em Revue des Deux Mondes, Io de setembro de 1841, pp. 724—747; e o antagônico,
porém relativamente erudito, L. Reybaud, “Des idées et des sectes communistes”, em Revue des
Deux Mondes, 1 ° de julho de 1842, pp. 5—47.
O último desses trabalhos, que descobri só após ter concluído esta §, não traz nenhuma documentação
em particular; mas sugere de forma geral um traçado muito próximo do que desenvolvo aqui
— enfatizando partícularmente os papéis de Buonarroti, Owen e Cabet — e que o comunismo,
como movimento consciente e organizado, teria começado somente após o fracasso da insurreição
blanquista de maio de 1839 (p. 28).
Numerosos empregos em jornais alemães de 1841 estão documentados em Schieder, Anfänge, p.
271, nota 1; também um emprego no londrino Times, 13 de novembro de 1841, p. 5. Para elementos
concretos e controvérsia em torno dos primeiros empregos, v. A. Cuvillier, “Action ouvrière et
communisme en France vers 1840 et aujourd’hui”, em La Grande Revue, 1921, dez., pp. 25-35; e
seu “Les communistes allemands”, em Hommes et Idéologies de 1840,1956, pp. 121-137.
20 Do jornal publicado em Leipzig Illustrierte Zeitung, 2 de setembro de 1843, p. 9, tal qual citado em
K. Koszyk, “Das Jahr 1845 und der deutsche Sozialismus”, em Annali, 1963, voi. vi, pp. 516-517.0
autor chega a falar de “comunismo na mais alta acepção” como garantidor de benefícios educacionais
e de outra espécie para os trabalhadores.
21 Schieder; Anfänge, pp. 270-271; A. Zévaès, “L’Agitation communiste de 1840 à 1848”, em La
Révolution de 1848,1926, out., p. 974.
414 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Flores” de 1836-1838 foi chamada de “primeira Sociedade Comunista”;22 e é


claro que por volta de 1838 em Lyon “só tinham surgido sociedades da classe
trabalhadora”.23 De igual modo, em Paris, após o fracasso da insurreição
blanquista de maio de 1839, foi fundada uma pequena organização composta
exclusivamente de trabalhadores, a Sociedade dos Trabalhadores. Buscou man­
ter o tipo de organização revolucionária hierárquica à maneira da Sociedade
das Estações de Blanqui, mas deu corpo às suas preocupações proletárias ao
renomear as unidades “semana, mês e estação” para “oficina, loja e fábrica”.24
O comunismo, como ideal político e talismã verbal, originou-se, todavia,
não com os trabalhadores, e sim em meio a intelectuais que proveram a
liderança por meio de grupos menores que surgiram dentro ou fora dessas
organizações maiores. Em Lyon, Joseph Benoît e mais dois das “flores” ori­
ginais formaram no firn de 1838 um Comitê dos Iguais que abastecia com
um programa igualitário a atividade proletária. Basicamente compondo uma
sociedade para exercer propaganda pacífica, seus membros flertaram com o
ativismo revolucionário, em especial após a visita a Lyon em abril de 1839
do excêntrico companheiro de armas de Blanqui, Barrés.25 Diferentemente
de quase todos os revolucionários da primeira metade do século xix, Benoît
tinha bastante experiência direta de trabalho físico. Todavia, as suas próprias
Confissões de um proletário indicam que suas influências formativas princi­
pais foram aquelas que tipicamente afetaram os intelectuais revolucionários
burgueses: freqüência à escola em Genebra, participação em uma variedade
de círculos ocultistas, entusiasmo por Rousseau, e, por fim, a descoberta do
livro de Buonarroti sobre Babeuf quando estava preso em 1834.26

22 Por Buffenoir, “Communisme à Lyon”, p. 348, sem qualquer indicação, contudo, de que fosse assim
chamado pelos contemporâneos.
23 M. McDougall, “After the Insurrections. The Worker’s Movement in Lyon, 1834-1852”, tese de
doutorado inédita, Columbia, 1974, p. 201 ss.
24 Sobre a Société des travailleurs e sua estrutura buonarrotiana comandada por um comitê central
dirigente que controlava agents révolutionnaires especiais, v. Rémusat, Mémoires de ma vie, 1960,
vol. in, pp. 390-391. Havia oito indivíduos em um métier chefiado por “um trabalhador”, três
métiers em um atelier comandado por um supervisor, três ateliers em uma fábrica chefiada por um
lojista (commis).
Diz-se que a organização possuía “menos de 500 membros” (ibid., p. 391). O melhor relato
da emergência dos comunistas a partir da tradição babeuvista (sem, contudo, mencionar essa
organização) é Zévaès, “Agitation”, out., pp. 971-981; dez., pp. 1035-1044; 1927, mar.-abr.-maio,
pp. 31-46.
25 McDougall, pp. 223-224; J. Benoît, Confessions d’un prolétaire, 1968 (originalmente escrito em
1871), pp. 61-62.
26 Benoît, Confessions, pp. 37—40, 56-57. Para maiores detalhes sobre essa organização secreta e
hierárquica que durou até 1843, v. McDougall, pp. 223-225.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 415

A nova e decisiva influência ideológica sobre Benoît e seus colegas indó­


ceis em Lyon foi Albert Laponneraye. Seu notável jornal, L'Intelligence^ foi
depois chamado de “primeiro órgão comunista da França”, e à época Cabet
o chamou “porta-estandarte do partido igualitário, o partido comunista”.27
O jornal de Laponneraye era popular não só em Lyon, mas também em Ge­
nebra e Lausanne entre os ex-discípulos de Buonarroti, que ao mesmo tempo
estava criando na Suíça o primeiro movimento a se chamar de comunista.28
L'Intelligence começou a circular em setembro de 1837, e ganhou uma aura
de martírio quando o principal colaborador de Laponneraye, Richard Lahau-
tière, foi processado no verão seguinte em razão de um artigo anticatólico que
acrescia a palavra Intelligence à Liberdade, Igualdade, Fraternidade.29 Em sua
defesa no tribunal, advogou que se inscrevessem na “bandeira proletária essas
quatro palavras orgânicas: caridade, igualdade, fraternidade, inteligência”.30
A liberdade foi apagada da lista — como fora antes na proclamação feita
por Blanqui de “Unidade, Igualdade, Fraternidade”,31 e como seria apagada
novamente no primeiro banquete comunista de Io de julho de 1840, pouco
depois de L'Intelligence ter sido forçada a encerrar sua publicação.
“Acaba de começar uma nova era do mundo”, dizia em itálico e negrito o
relato publicado sobre o banquete oferecido a cerca de mil artesãos na seção
parisiense de Belleville.32 Uma série de oradores passou a mencionar a palavra
comunista pela primeira vez em público, alegrando-se de que doravante os

27 M. Mikhailov, Istorila soiuza kommunistov, 1968, p. 54; Cabet, Histoire du journal “Intelligence”,
p. 7 (fragmento não datado em BN, identificado apenas como um extrato de Le Populaire, n° 6).
Cabet continua: L’Intelligence ne s’est jamais avoué communiste parce qu’elle ne jugeait pas qu’il
fut opportun de le faire alors; mais les idées et les principes qu’elle développait menaient droit à la
communauté [L’Intelligence jamais assumiu ser comunista, porque não julgou que fosse oportuno
fazê-lo então; mas as idéias e princípios que ele desenvolve levam diretamente à comunidade].
28 Sobre Lyon, v. Benoît, pp. 59-60; McDougall, pp. 222, 227. Sobre a Suíça, v. Barnikol, Geschichte,
p. 16; Pianzola, “Expulsion”, p. 65.
29 L’Intelligence, 7 de agosto de 1838.
30 Relato do julgamento em L’Intelligence, 3 de setembro de 1838.
31 O lema do jornal de Blanqui de 1834, Le Libérateur. Dommanget (Blanqui des origines, p. 129)
subestima a importância dessa substituição, mas enfatiza (p. 144) a importância do jornal para o
estabelecimento do ideal moderno de uma revolução social baseada em classes. Só chegou a sair um
único número (2 de fevereiro de 1 834), com o título revelador de Journal des opprimés voulant une
reforme sociale par la République. Blanqui preparou para o segundo número o seu famoso artigo
“Quem faz a sopa é quem deveria tomá-la”, que Benoît Malon considerou a primeira formulação
da doutrina coletivista moderna. Dommanget, pp. 129—130.
32 J.-J. Pillot, Th. Dézamy, Dutelloz, Homberg, Premier banquet communiste 1er juillet 1840,1840, p.
1. P. Angrand altera para 1.000 o número de participantes que, na brochura, diz-se ter sido 1.200:
“Notes critiques sur la formation des idées communistes en France”, em La Pensée, 1948, set.-out.,
p. 62.
416 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

políticos comuns {routiniers politiques) jamais poderíam “conter seu impacto


explosivo”.33 As palavras “unidade” e “igualdade” foram repetidas ao longo
dos brindes. A sua unidade deveria ser “perfeita”, “indissolúvel” e “inalte­
rável”;34 a sua igualdade, “real, perfeita e social”.35 Comunidade, felicidade
comum e probidade substituíam a liberdade na trilogia revolucionária.36 O
único brinde que sequer mencionou a palavra falou de “uma liberdade geral
e inteiramente receptiva... que não pode prosseguir sem curvar-se à sua irmã
e companheira igualdade”.37
Desde o princípio, assim, a liberdade foi mutilada pelos comunistas. A
preferência deles pela unidade e igualdade foi explicitada pelo principal patro­
cinador e orador do banquete, o ex-padre Jean-Jacques Pillot. Ele convocou
todos os presentes a “dispor sobre o altar da igualdade todo sentimento con­
trário à grande unidade”.38 Ele e o outro patrocinador do banquete,Théodore
Dézamy, eram os communistes immédiats39 — e podem ser considerados,
junto a Laponneraye, os verdadeiros fundadores do moderno comunismo.
Ao contrário de Benoît e seus colegas em Lyon, esses três jornalistas
parisienses eram jovens intelectuais, apartados de qualquer contato pessoal
com a classe trabalhadora. Estavam fascinados com o poder da Intelligence^
o título mesmo do jornal de Laponneraye; e é difícil não suspeitar que, de
algum modo, era o seu próprio poder que buscavam por meio da inteligência.
Na atmosfera móvel e ascendente da monarquia de julho, esses intelectu­
ais jovens e burgueses representavam a vanguarda da “revolução das altas
expectativas”. A história de sua peregrinação até o novo ideal comunista
começa — cronológica e ideologicamente — com Laponneraye.

33 Banquet, pp. 1, 9.
34 Vários brindes descritos em ibid., pp. 11-12.
35 Brinde ao alfaiate Vellicus, pp. 6-7.
36 Vários brindes, pp. 4, 3, 8. O primeiro destes pretendia explicitamente inserir “uma nova palavra”
nesse “lema”.
37 Esse brinde (feito por um não identificado Courmont, p. 12) é concluído desta forma: “Ao Governo
dos Iguais!”.
38 Pillot,p. 14.0 compositor saint-simoniano Vinçard já tinha antes cunhado o lema “Unam-se!’’como
resposta revolucionária ao “Enriqueçam-se!” de Luís Filipe, e acrescentou “unidade” à “liberdade,
igualdade, fraternidade”. V. F. Isambert, “Une religion de la fraternité. A propos de quelques journaux
ouvrièrs sous la monarchie de juillet”, em Journal de Psychologie Normale et Pathologique, 1957,
jul.-set., p. 319.
39 Essa designação foi primeiro dada à ala intelectual revolucionária extremista da Sociedade Parisiense
de Trabalhadores que surgiu em 1839 e, de acordo com a afirmação que C. Johnson faz — sem,
todavia, dar referências —, “também se chamavam a si mesmos simplesmente Les Communistes”.
Utopian Communism in France. Cabet and the Icarians, 1839-1851, Ithaca, 1974, p. 75.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 417

O Intelligence de Laponneraye foi o primeiro jornal bem-sucedido em


transformar as visões revolucionárias de intelectuais de classe média em uma
mensagem revolucionária atrativa para a classe trabalhadora. Laponneraye
desenvolveu duas das três novas idéias que os primeiros comunistas introduzi­
ram no pensamento social francês: uma visão da Revolução Francesa baseada
em classes e uma concepção global da educação popular. Ele deu uma nova
perspectiva sobre o único evento histórico que tinha algum significado até
para o operário mais iletrado, isto é, a Revolução Francesa.40 Ajudou a criar
uma visão mítica que predominou na historiografia comunista posterior: a
simultânea glorificação tanto da liderança política de Robespierre quanto das
aspirações socioeconômicas do proletariado parisiense. Esses dois elementos
com freqüência entraram em conflito, é verdade, mas foram retroativamente
unificados de modo a validar o desejo do próprio Laponneraye de criar uma
liderança para o poder revolucionário.
A deificação de Robespierre foi o último legado do velho Buonarroti
aos novos comunistas. No último artigo que escreveu, “Observações sobre
Robespierre”, ele inverteu a visão negativa que Babeuf tinha de Robespier­
re como um ditador, e o glorificou como verdadeiro sucessor de “Moisés,
Pitágoras, Licurgo, Jesus e Mohammed”. Só Robespierre Tiavia combatido
a “gangrena” da sociedade e estabelecido “a base para o edifício majestoso
da igualdade e da república popular”.41

40 Quase todos os diversos grupos de esquerda produziram interpretações positivas da Revolução


Francesa no período entre as revoluções de 1830 e de 1848. O texto basilar para revolucionários
sociais igualitários permaneceu a História da Conspiração dos Iguais de Buonarroti; para os
nacionalistas revolucionários, era a obra de Michelet; para os nacionalistas liberais, a Histoire de
la Révolution française de Adolphe Thiers ( 1836, com numerosas edições). Os socialistas cristãos se
inclinavam para as obras de Bûchez, Introduction à la Science de Vhistoire e Histoire parlementaire
da la Révolution française (esta última escrita em colaboração com Roux-Lavargne entre 1833 e
1838); os socialistas secularistas idealistas, para a obra de Louis Blanc Histoire de la Révolution
française (primeiros dois volumes de 1847) etc. Annales Historiques de la Révolution Française, 1966,
abr.-jun., é quase todo dedicado a analisar a visão que os primeiros socialistas franceses tinham da
Revolução Francesa.
41 De suas “Observations sur Maximilien Robespierre”, reimpressas (a partir de sua primeira e anônima
publicação como suplemento a Le Radical, Bruxelas, de 1837, e em La Fraternité, 1848, set.) em
Revue Historique de la Révolution Française, vol. ni, 1912, pp. 479-487, esp. pp. 481—482.
Já em 24 de novembro de 1832 (Poor Man’s Guardian, matéria principal, pp. 617-618) o tradutor
de Buonarroti, Bronterre O’Brien, havia tentado mostrar “o Verdadeiro Caráter de Robespierre”,
utilizando citações de Buonarroti e insistindo que “Robespierre sustentava praticamente a mesma
doutrina que o benevolente Robert Owen hoje promove — isto é, comunidade de bens, ou antes
uma distribuição igualitária dos frutos do trabalho humano entre aqueles que o produzem [...]”.
A esse artigo anônimo se seguiram discursos e artigos que atingiram um clímax no admirável livro
de O’Brien Life and times of Maximilien Robespierre, de 1838.
418 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os livros de estilo popular que Laponneraye escreveu sobre a história


francesa apresentavam o “incorruptível” Robespierre como um modelo para
os revolucionários contemporâneos por sua dedicação ao interesse público
sobre o interesse privado.42 Laponneraye exaltou o estilo político do Comitê
de Salvação Pública e ocupou-se pessoalmente da primeira edição sistemática
das obras de Robespierre, publicadas em três volumes em 1840.43
Mas foi mais longe ainda, com a sugestão de que a missão do revolucionário
contemporâneo era combinar Robespierre com Babeuf: meios autoritários
com objetivos igualitários. A “lei agrária” de Babeuf deveria ser ultrapassada
por uma mais completa “repartição, rateada de acordo com a necessidade”,
destinada a criar uma global “comunidade de direitos, trabalhos e deveres”.44
O segundo elemento no nascimento do ideal comunista foi um novo
conceito dos intelectuais e da educação. Laponneraye defendeu em seu
Catecismo Democrático uma doutrinação “comunal e unitária” baseada na
aliança entre “inteligência e trabalho”. Para ele a educação era um meio não
só de disseminar conhecimento, mas também de construir um novo tipo de
ser humano “em meio a uma sociedade que se gangrenou com egoísmo e
corrupção”.45 Esse novo tipo de educação buscava “a aniquilação do egoís­
mo” dentro do homem e a destruição dentro da sociedade dessa “anarquia
moral em que se afogam as inteligências”.46
Essa menção a “inteligências”, como um plural inanimado, marca o iní­
cio da tradução decisiva da velha idéia de inteligência abstrata para o ideal
moderno de uma intelligentsia ativa. A apologia do ideário revolucionário
é garantida pela força agregadora da inteligência — uma categoria sempre
compreendida implicitamente como fundamental para o escritor e seus leitores.
Essa inteligência deve penetrar e unir-se com as massas para libertá-las da
corrupção burguesa, que assume a forma política de “liberalismo, rebento
do federalismo girondino”.47 Faz-se necessária “uma revolução radical no

42 V. especialmente o seu Cours publique de l’histoire de France depuis 1789 jusqu à 1830;e sua Histoire
de la révolution française, 1838, 2 vol. As passagens mais relevantes são citadas e suas idéias pouco
lembradas são discutidas em G. Santanastaso, II Socialismo francese, Florença, 1954, pp. 110-113.
43 Oeuvres de Maximillien Robespierre, 1840. V. também suas Mémoires de Charlotte Robespierre
sur ses deux frères, 1835.
44 Laponneraye, “Babeuf et son système”, em L’Intelligence, 1840, fev., pp. 1-2.
45 Laponneraye, Catéchisme démocratique, s/d., p. 5.
46 Ibid., pp. 3, 6.
47 Ibid., pp. 12, 13.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 419

modo de vida”.48 Nessa revolução, o proletariado desempenhará o papel qw


o Terceiro Estado assumiu em 1789 — tornando-se consciente de que isto é
nada, e pode se tornar tudo.49
Esse ideal educacional foi desenvolvido de maneira ainda mais extrema pela
segunda figura principal no nascimento do comunismo: Théodore Dézamy.
Em um ensaio de 1839 para um concurso da Academia Francesa sobre o
fracasso de traduzir o iluminismo em uma moralidade prática, o então jo­
vem de 18 anos Dézamy defendeu um tipo inteiramente novo de educação
de massas: “comunal, igualitária, harmoniosa... industrial e agrícola”.50 A
educação de elite de qualquer tipo deve ser abolida. Quanto mais a educação
penetrasse as massas, “mais a inteligência deveria convergir”. Requeria-se
uma autoridade central forte (“um bom mecanismo social”) para unir teoria
e prática, combinar desenvolvimento mental e físico e dotar todos de novos
“hábitos de igualdade e fraternidade”.51
Dézamy afirmava que o teórico social transformado em revolucionário
era a “inteligência” ideal para a nova era — a substituir o anterior modelo
implícito de muitos reformadores sociais: o médico.

Não existe miragem mais pérfida que a de exaltar a medicina (ou o direito ou a
literatura) acima das ciências sociais... Eu compararia o médico ao alfaiate que
põe nova costura em terno antigo, e que ao fechar um pequeno buraco abre outro
ainda maior.52

Escritos como esse anunciam o terceiro e mais importante novo elemen­


to para o nascimento do comunismo: o elemento metafísico. Dézamy, um
estudante jovem e pobre oriundo de Dijon, tornou-se em Paris durante o
início dos anos 1840 talvez o primeiro revolucionário social verdadeiramente
ideológico da história moderna. Ele inspirou um derramamento tempestuoso
de panfletos que veiculavam uma fé intensa no universalismo e no ateísmo,

48 Une révolution radicale dans les moeurs”, em L’Intelligence, 1838, jul.


49 “Place au proletariat”, em L’Intelligence, 4 de setembro de 1837. Essa reformulação consciente de
Abade Sieyès presente no primeiro número do jornal de Laponneraye foi mais tarde repetida por
Marx, cujos empréstimos de expressões e temas dos primeiros comunistas franceses nunca foram
adequadamente reconhecidos, que dirá estudados.
50 T. Dézamy, Question proposée par l’Académie des Sciences Morales et Politiques. Les Nations
avancent plus en connaissances en lumières qu’en morale pratique? Recherches la cause de cette
différence dans leurs progrès, et indiques le remède, 1839, p. 59. O pensamento revolucionário foi
poderosamente estimulado por essa controvérsia ensaistica, para a qual o jovem Dézamy escreveu
sua esquecida resposta datada de 27 de dezembro de 1838.
51 Ibid., pp. 59, 61.
52 Ibid., 63, nota 1.
420 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

as antíteses do nacionalismo e da religiosidade que imperavam na época.


Desenvolveu (antes de Marx e sem contato com os alemães) a convicção
íntima de que estava construindo a ciência final e a sociedade perfeita.
Armado dessa convicção, Dézamy desenvolveu um estilo polêmico que era
qualitativamente distinto das disputas triviais anteriores sobre pormenores
de utopias ou motivações de personalidades. Enfatizou a necessidade de
disciplinar o intelecto para a tarefa da revolução. Líderes da revolução vin­
doura não seriam nem “crentes” (croyants) de alguma religião nem tampouco
“sábios” (savants), para os quais Buonarroti tinha se voltado, e sim um novo
tipo de intelectual engajado: os “sabedores” (sachants) de que “o objetivo
da filosofia... é conduzir os homens à felicidade... por meio da ciência”.53
A primeira tarefa do sachante era resgatar “as verdades primordiais, os
princípios gerais” do comunismo das distorções sentimentais feitas pelos
dois indivíduos mais famosos identificados com aquele rótulo no início dos
anos 1840: o respeitável Lammenais e o profeta literário do comunismo
(para quem, durante certo período, Dézamy trabalhara como secretário
particular), Étienne Cabet.
Num primeiro momento, Dézamy havia se juntado aos dois numa frente
comum de oposição revolucionária social à emergência de um nacionalis­
mo endossado oficialmente depois da insurreição blanquista de maio de
1839, do posterior receio de confronto com a Alemanha e da passagem da
Argélia de uma ocupação limitada à submissão total. Dézamy colaborou
com Cabet em um compêndio antinacionalista de 1840, Patriotas franceses,
leiais e corais de vergonha-,54 e Lammenais denunciou as forças militares do
governo estacionadas em fortes ao redor de Paris como “novas Bastilhas”.55
Lamennais tornou-se o primeiro de uma longa lista de radicais idealistas
a ser denunciado pelas autoridades como “comunista”56 — mas logo foi

53 Code de le communauté, 1842, p. 110; também pp. 230—234.


54 Patriotes français, lisez et rougissez de honte, 1840. Esse torn antinacionalista era também evidente
na obra de Cabet, Lettres sur la crise actuelle, 1840.
55 Angrand, “Notes”, p. 63, nota 1.
56 O que levou alguns a supor incorretamente que foi Lamennais quem criou a palavra. V. P. Gasson,
“Lamennais, a t’il lancé le mot ‘communiste’?”, em Le Monde, 18 agosto de 1954, p. 7; refutação
em H. Desroche, “A propos de Lamennais et du mot ‘communiste’”, em Actualité de l’histoire,
1955, mar., pp. 28-32. Sobre ataques de conservadores a Lamennais, v. De Carné, “Publications”,
pp. 728-731.
Quando de sua morte, Lamennais deixou uma descrição do comunismo como “duas doutrinas
com uma única designação [...] uma doutrina negativa, outra positiva, a primeira de destruição, a
segunda de renovação”. Desroche, “A propos”, p. 31.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 421

denunciado de maneira ainda mais violenta por Dézamy em razão de não


ser comunista o suficiente. O panfleto de censura que Dézamy escreveu em
1841, Sr. Lamennais refutado por si mesmo* buscou expurgar a religiosidade
do rótulo comunista.57 Seu panfleto do ano seguinte, Difamações e Políticas
do Sr. Cabet* criticou a vacilação (girouettisme) de seu ex-mentor e defendeu
— pela primeira vez — que uma disciplina ideológica, e não apenas política,
era necessária ao comunismo.58
Mais uma vez estavam em questão tanto forma quanto conteúdo, tanto
os papéis quanto as regras. Cabet havia se estabelecido como o intérprete
oracular do novo rótulo comunista. Tinha de ser desacreditado, para en­
fim ser suplantado. Alcançara sua reputação lançando mão dos artifícios
extremamente tradicionais de criar uma utopia literária situada numa ilha
imaginária (em Viagem à Icária* de 1839-1840) e de apresentar uma versão
secularizada do credo religioso (em Credo Comunista* de 1841). A alternativa
de Dézamy estava em seu Code de la Communauté* de 1842. Ao contrário
do Credo moralista e evocativo de Cabet, Dézamy valeu-se do modelo ilumi-
nista radical de um “código” racional à maneira como Morelly e Buonarroti
escreveram seus respectivos Código da Natureza. Diferentemente da Icária
fantasiosa de Cabet, o retrato prosaico elaborado por Dézamy se concen­
trava nos meios materiais de alcançar o objetivo comunista. Iniciava com
uma citação de Hobbes (“na comunidade, a moralidade advém das coisas
e não dos homens”) e terminava com o mapa desdobrável de um “palácio
57 Citado e discutido no único artigo sério jamais escrito sobre esse personagem esquecido: R. Garaudy,
“Le Communisme matérialiste en France avant 1848: un précurseur Théodore Dézamy”, em La
Pensée, 1848, maio-jun., p. 42. Em 1841, quando o pròprio Lamennais começou a utilizar o termo
(Du passé et de Vavenir du peuple, 1871, pp. 91-95), foi denunciado por uma série de correspondentes
autoproclamados comunistas de Lyon, Rouen e outras partes, que o acusaram de glorificar “o
egoísmo da família, que é em pequena escala o que o patriotismo excludente é em maior escala, o
egoísmo da nação”. A. Saitta, “Appunti e documenti per la storia del socialismo premarxista”, em
Movimento Operaio, 1956, set.-out., p.772; também documentos e referências às pp. 768-773.
58 Calomnies et politique de M. Cabet, 1842, p. 6. Cabet respondeu com Toute la vérité au peuple ou
réfutation d’un pamphlet calomniateur, 1842. Garaudy (p. 45) diz de Dézamy que foi o primeiro a
ver “que a intransigência filosófica era necessária para criar o Partido Comunista”.
Mais uma vez, tal era a dinâmica de denúncias que Dézamy estava denunciando Cabet precisamente
pelo pecado de religiosidade de que Cabet havia antes acusado os protegidos comunistas
“constantinistas” do Abade Constant — o Credo comunista de Cabet tendo sido escrito em parte
para combater a influência do Evangile de la liberté de Constant (1841), que também foi traduzido
para o alemão. V. Chacornac, Levi, p. 54 ss., e o estudo feito pela polícia parisiense em 1845:
“Renseignements”, em Actualité de l’histoire, 1957, out., p. 26, nota 4. Só mais tarde, com seu Le vrai
Christianisme suivant Jésus-Christ, 1846 (também 1847,1850), Cabet tentou equacionar comunismo
com “verdadeiro cristianismo”, mas nunca de um modo que indicasse que os ensinamentos cristãos
fossem para ele (como datamente eram para muitos alemães, como Schapper e Weitling) uma fonte
independente de inspiração. V. J. Prudhommeaux, Icarie et son fondateur Étienne Cabet 1907 pp
162-163.
422 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

comunal” onde os homens comunizados do futuro viveríam. Entre uma e


outro se desenrolava uma extensa discussão da racionalidade e inevitabilidade
da revolução social contra as transigências de políticas reformistas, por um
lado, e a dispersão das revoluções nacionais, por outro.
Dézamy insistia que uma revolução comunista deveria de imediato con­
fiscar toda propriedade e dinheiro, em vez de se contentar com a educação
pacifista e as medidas fiscais propostas por Cabet. “Com meias medidas não
se conseguirá satisfazer ninguém”.59 Uma mudança rápida e total seria menos
sangrenta do que um processo lento, uma vez que o comunismo libera toda a
bondade natural do homem e “não tem plano algum, nenhuma necessidade
de empregar violência ou constrangimento”.6061
Ao contrastar seu “comunismo unitário” ao “comunismo icariano” de
Cabet, Dézamy revelou mais uma vez o impulso recorrente da mentalidade
revolucionária em direção à simplificação radical. Na sociedade do futuro
haverá um único congrès humanitaireuma única língua (de preferência
uma língua morta e neutra como o latim)62 e uma única forma de serviço de
“atletas industriais”,63 que transformarão todas as tarefas de construção em
festivais juvenis e comunais. Travailleurs, unissons-nous! [“trabalhadores,
unamo-nos!”].64 Dézamy antecipou o chamado marxista “trabalhadores de
todo o mundo, uni-vos!”. Na condição de apóstolo da unidade e simplicidade,
Dézamy denunciou a “política de dispersão” que busca “afastar e distrair os
trabalhadores das teorias igualitárias e comunistas”.65
A lógica da simplicidade radical levou Dézamy a insistir que, assim como
o comunismo era “unitário”, sua vitória seria universal. O “comunismo
realizado” existirá apenas em um “país universal”66 que superará não só o
nacionalismo (o qual “aprisiona a igualdade no círculo estreito de uma na­
cionalidade egoísta”)67 como também quaisquer outras lealdades divisivas,

59 Code, p. 290.
60 Ibid., p. 291.
61 Ibid., pp. 268-269.
62 Ibid., p. 157, nota 1.
63 Ibid., pp. 156-161.
64 Le Jésuitisme vaincu et anéanti par le socialisme, ou les constitutions des Jésuites et leurs instructions
secrètes en parallèle avec un projet d'organisation du travail, 1845, p. 134.
65 Calomnies, pp. 35-36, citado em Garaudy, pp. 206-207. Dézamy está denunciando o novo jornalismo
de Émile de Girardin.
66 Code, p. 237.
67 Question, p. 14; também Code, pp. 286-287.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 423

a exemplo do famillisme.6* Não haverá nenhuma “nova santa aliança contra


o primeiro governo a abraçar o comunismo”,6869 porque seu apelo ideológico
irá se espalhar rapidamente e criar “a comunidade universal”.70 Conflito
entre “comunistas unitários” era algo logicamente impossível: “Não, não,
não pode haver quaisquer divisões entre os Comunistas; nossos confrontos
entre nós mesmos só podem ser confrontos de harmonia ou raciocínio...”.71
Os “princípios comunitários” contêm “a solução de todos os problemas”.72
A primeira Revolução Francesa fracassou por não se ter percebido que esses
princípios eram “a arma mais poderosa e mais sublime para deitar abaixo
os inimigos que devem ser eliminados”. O comunismo era “o meio único
e ímpar de destruir, de guilhotinar de uma vez por todas não homens, não
nossos irmãos, mas, ao contrário, todos os vícios”.73
Dézamy dessa forma antecipou o conceito maoista de que só “contra­
dições não antagonistas” são possíveis entre comunistas e a idéia bastante
stalinista de retratar o assassínio de dissidentes como a expulsão ritual de
alguma forma impessoal de vício.
Um investigador de polícia francês alarmado descreveu o Code de
Dézamy como um projeto para “Æz communauté rigoureuse, mathématique
et immédiate”,74 Sua prisão e julgamento em 1844 atraíram e inspiraram os
mais radicais dos intelectuais estrangeiros presentes à época em Paris: Arnold
Ruge, Moses Hess e Karl Marx, entre os alemães, e Nicholas Speshnev, entre
os russos.75

68 Question, p. 58.
69 Code, p. 292.
70 Ibid., p. 261.
71 Ibid., p. 123.
72 Ibid.
73 Ibid., p. 285.
74 De la Hodde, p. 269.
75 Sobre a hábil defesa de Dézamy no tribunal como escritor “puramente teórico”, v. G. Bourgin, “Le
Comuniste Dézamy”, em Festschrift für Carl Grünberg, Leipzig, 1932, pp. 69-74, esp. p. 70.
V. Rüge, “Dézamy und die Pressefreiheit”, em Zwei Jahre in Paris, Leipzig, 1846, vol. i, esp. pp. 77,
92-93 sobre sua relação próxima. Encorajado por Marx, Hess começou uma tradução alemã do
Code: Gesetzbuch der Gemeinschaft nach Theodor Dézamy, manuscrito inédito, datado em cerca
de 1846 por E. Silberner, The Works of Moses Hess, Leiden, 1958, p. 77. V. também as cartas de
Hess para Marx (Hess, Philosophische und sozialistische Schriften 1837—1850,1961, pp. 482—484);
Garaudy, Sources, p. 191; e a tradução alemã de Le Jésuitisme, Leipzig, 1846, junto a um breve
extrato de texto: Organisations-Entwurf, Leipzig, 1848. O negligenciado impacto de Dézamy sobre
Marx é discutido em D. Riazanov, Ocherki po istorii marksizma, 1923, pp. 76-77.
A figura misteriosa de Nicholas Speshnev, que introduziu na Rússia de meados dos anos 1840 a
idéia do comunismo revolucionário, ficou ao lado de Dézamy contra Cabet. (V. carta que esçreveu
424 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Além de seus exemplos de mártires, os fundadores franceses deixaram um


legado de oposição inarredável à religião sobrenatural. As últimas três obras
principais de Dézamy defenderam, entre 1845 e 1846, uma visão de mundo
materialista e atéia que suplantasse o catolicismo em prol da “organização
do bem-estar universal”.76 Já no seu ensaio premiado de 1839 Dézamy falara
dessa “sublime devoção que constitui o socialismo”7778 e incitara os “proletá­
rios infelizes” a “readentrar o círculo da igreja igualitária, fora da qual não
existe salvação”.7S
Para Dézamy — assim como para seu admirador Karl Marx —, o ateísmo
de seus anos de maturidade não era só “um acidente histórico ou biográfico”,
e sim “uma premissa essencial de toda a sua teoria”.79 O ex-padre Pillot foi
ainda mais longe com sua insistência de que “os Iguais desconhecem Deus
e o diabo”.80

a um amigo polonês em V. Evgrafova (ed.), Filosofskie i obshchestvenno-politicheskie proizvedenüa


petrashevtsev, 1953, pp. 488-502). Os anos iniciais de Speshnev, assim como os anos finais de
Dézamy, permanecem um enigma. Ao que parece, Spechnev lutou na guerra civil suíça no início
da década de 1840 e se tornou parte do modelo para o Stavrogin de Os demônios de Dostoiévski.
Nunca cumpriu sua promessa de explicar em maior detalhe as crenças comunistas que disseminou
na Rússia ao fim dos anos 1840 (v. Literaturnoe nasledstvo, lxiii, 1956, pp. 171-172). Sua idéia
(mais tarde desenvolvida por Bakunin) de que um grupo comunista mais secreto superaria os jesuítas
pode ter sido inspirada pelo Le Jésuitisme (1845) de Dézamy, embora ela remontasse, como vimos,
aos Iluminados e a Bonneville. Speshnev defendia que o comitê central tivesse três corpos igualmente
subordinados: o jesuítico, o propagandista e o revolucionário.
76 Em complemento a Le Jésuitisme, v. seu Examen critique des huit discours sur le Catholicisme et la
philosophie, prononcés à Notre-Dame, en décembre 1844 et en janvier 1845, etc. par M. Dézamy
d'après les principes de la philosophie naturelle, 1845; e seu Organisation de la liberte eu du bien-être
universel, 1846, citado e discutido em Garaudy, Sources, pp. 199-200. Garaudy, que à época era
um intelectual comunista francês de destaque, reproduz a refutação que Dézamy faz de Lamennais
(pp. 209-218) como uma espécie de modelo de respostas a objeções feitas ao comunismo. Dézamy
também é louvado na esquecida brochura de Benoît Malon, Le Parti ouvrièr en France, 1882.
77 Question, p. 56.
78 Ibid., p. 65, também p. 64.
79 P. Schuller, “Karl Marx’s Atheism”, em Science and Society, 1975, outono, p. 331.
80 Izbrannye sochineniia, 1961, p. 118. Iconoclastas russos dos anos 1950 também se autodenominavam
nibonicho (uma contração de “nem Deus nem o diabo”). V. Billington, Icon, pp. 779-780, nota 26.
O uso da palavra “niilista” como termo político teve início também com essa idéia. Em 27 de
dezembro de 1793, Cloots disse que “A República dos direitos do homem não é propriamente nem
teísta nem ateista, mas niilista”. Citado em A. Aulard, Paris pendant la réaction thermidorienne et
sous le directoire, 1899, vol. n, p. 285.
Pillot se viciou em referências babeuvistas. Seu jornal de 1839 era o Tribuno do Povo-, e seu tratado
de 1840, História dos iguais ou meios de estabelecer a igualdade entre os homens, inicia-se corn
um “Manifesto dos Iguais Contemporâneos”. Ver, como acréscimo ao esboço bibliográfico de I.
Zil’berfarb em Pillot, Sochineniia, o que diz S. Bernstein em “Le Néo-Babouvisme d’après la presse
(1837-1848)” em Babeuf et les problèmes, pp. 246-276; e V. Volgin, “Jean-Jacques Pillot, communiste
utopique”, em La Pensée, 1959, mar.-abr. Volgin também comenta (Frantsuzsky utopichesky
kommunizm, 1960, pp. 25-26) que Pillot empregava uma análise de classes sofisticada, senão até
funcional, dos papéis desempenhados na reação pelas diferentes “castas”.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 425

Influência inglesa

O comunismo era transnacional bem como antinacionalista. Se os pio­


neiros franceses logo iriam encontrar discípulos alemães, por outro lado
geralmente não se aquilata bem o quanto eles se basearam em fontes ingle­
sas. A Inglaterra tinha se tornado importante, na atmosfera repressiva de
fim dos anos 1930, como lugar seguro para revolucionários emigrados se
encontrarem e publicarem livremente. O movimento cartista, em seu estágio
inicial e semi-insurrecional, deu exemplo inspirador para a imaginação po­
lítica que começava a despertar no continente. De longe, o mais importante
catalizador britânico dos primeiros comunistas, contudo, foi Robert Owen,
o qual exerceu influência decisiva sobre dois bem diferentes pais fundadores
do comunismo moderno: Étienne Cabet e Goodwyn Barmby.
Gäbet passou a maior parte da década de 1930 em exílio na Inglaterra, onde
em 1839, clandestinamente, publicou pela primeira vez o seu enormemente
influente Viagem à Icária, A forma romanesca de Viagem seguiu em grande
medida modelos ingleses,81 e o conteúdo foi profundamente influenciado pela
sobriedade secular de Owen, o qual deu a Cabet uma alternativa raciona-
lista ao socialismo romântico de Fourier, o qual havia até então dominado
a imaginação francesa.
81 Depois que o Voyage and Adventures of Lord William Carisdale in Icaria, de Cabet, foi publicado pela
primeira vez em uma pequena edição londrina (simulando-se que o original francês foi traduzido do
inglês) em 1839, apareceu uma edição parisiense em janeiro de 1840, seguida de perto por traduções
para o alemão, o espanhol e o inglês, junto a outras edições condensadas ou parafrásticas (V. E Rudé,
Voyage en Icarie. Deux ouvriers viennois aux Etats-Unis en 1855, 1952, esp. p. 5; e A. Lehning,
“Discussions à Londres sur le communisme icarien”, em Bulletin of the International Institute of
Social History, 1952, n° 2, p. 87 ss.). O livro tinha por subtítulo “romance [novel] filosòfico e social”
— o termo exato empregado como subtítulo do livro de Flora Tristan, Méphis ou le prolétaire,
de 1838, um dos “romances sociais” de maior influência dos anos 1830, embora artisticamente
secundário. V. D. Evans, “Le roman social sous la monarchie du juillet, Romans démocratiques.
L’apothéose du prolétaire”, em French Quarterly, 1931, set., esp. p. 104; também A. Zévaès, “Le
Mouvement social sous la restauration et sous la monarchie de juillet”, em La Révolution de 1848,
1936-1937, dez.-jan.-fev., p. 232 ss.
A melhor ficção em prosa do período pré-1848 também concentrou a atenção das pessoas de
pensamento, é claro, nas condições de vida precárias das massas urbanas, da Londres do Oliver
Twist de Dickens à Paris de Les Misérables de Hugo e de Mystères de Paris de Sue, a chegar na
São Petersburgo de Gogol e do primeiro Dostoiévski. Logo, pode-se dizer que os gêneros em prosa
(incluindo as caricaturas litografadas de Daumier e os panfletos didáticos produzidos com novas
técnicas de impressão em alta velocidade, bem como o romance de idéias) auxiliaram as idéias
racionalistas dos revolucionários sociais quase tanto quanto os gêneros poéticos da música romântica
e da lírica contribuíram com o ideal rival e mais emotivo dos revolucionários nacionais. Se a ópera
vernácula foi, sob alguns aspectos, a mais alta expressão cultural do nacionalismo revolucionário,
o romance ideológico, como no caso de Icária, bem pode ter desempenhado papel similar para
os revolucionários sociais. Talvez as obras mais influentes de todas tenham sido os romances
imensamente populares de George Sand, que foram bem-sucedidas em fundir propaganda e arte no
comunismo semi-religioso des seus Le Meunier d'Angibault (1845-1846) e Le péché de M. Antoine
(1847). V. Evans, Socialisme, pp. 124-131.
426 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

Owen transmitiu a nova confiança secular de que a natureza humana po­


dería ser transformada através de um ambiente cooperativo. Também pregou
um desprezo altivo pelo reformismo democrático, em vez disso cobrando uma
transformação social fora da política e para além das fronteiras políticas. Sua
Associação de Todas as Classes de Todas as Nações, fundada em 1835, foi uo
primeiro movimento socialista organizado na Inglaterra”82 e um farol para
refugiados estrangeiros como Cabet. Owen trouxe uma alternativa rado-
nalista ao moralismo romântico dos “profetas de Paris” e dirigiu-se àqueles
que, como Cabet, encontravam dificuldades no trato com as perspectivas
parlamentares dos reformistas whigs e dos radicais cartistas. Owen era um
bem-sucedido industrial de manufaturas que havia, na Inglaterra e nos Estados
Unidos, criado empreendimentos cooperativos concretos segundo uma base
supostamente científica. Acerbamente atacado pelos visionários fourieristas,
Owen atraiu algum apoio dos saint-simonianos, estes mais cientificistas,
cujo jornal publicou em 1826 a primeira discussão francesa do “Sistema de
Cooperação Mútua e Comunidade de Bens” de Owen.83
Os fourieristas franceses, em busca de um fundamento mais racional para
a unidade, aliaram-se aos owenistas em 1834—1835. Um fourierista se quei­
xou em maio de 1834 de que o sonho de “un grand parti socialiste” ainda
estava muito distante.84 Ao prestar sua queixa, definiu o novo ideal, que fora
forjado pelo principal apóstolo de Owen na França, o jovem editor Jules Gay.

82 De acordo com C. Tsuzuki, “Robert Owen and Revolutionary Politics”, em S. Pollard e J. Salt (ed.),
Robert Owen Prophet of the Poor, Lewisburg, Pensilvânia, 1971, p. 34.
83 V. H. Desroche, “Images and Echoes of Owenism in Nineteenth-Century France”, em ibid., pp.
246-247. V. Saitta, Buonarroti, vol. I, pp. 64-69. A exposição que Rey faz das idéias de Owen
(reimpressa a partir da publicação em Producteur, 1826, set.-out.), Lettres sur le système de la
coopération mutuelle et de la communauté de tous les biens, d'après le plan de M. Owen, 1828,
defendia “la commmunauté de jouissance des produits, basée sur l’égalité”, p. 33. Rey, em seguida,
estabeleceu uma Sociedade Cooperativa Owenista em Paris (J. Gans, “Robert Owen à Paris en
1837”, em Le Mouvement Social, 1962, out.-dez., p. 35.).
O próprio Buonarroti saudou Owen já em 1828 {História da conspiração, citado em Pollard, Owen,
p. 248) e veio a admirá-lo ainda mais em seus últimos anos de vida. V. este importante artigo que
relaciona, bem mais do que é costumeiro, Owen com a tradição revolucionária: A. Mathiez, “Babeuf
et Robert Owen compares et défendus par Buonarroti”, em La Révolution de 1848, 1910, pp.
233-239.
Engels descobriu os ensinamentos de Owen, no momento em que também o descobria o proletariado
inglês, quando de sua visita à fábrica de Manchester em 1843, escrevendo dois importantes artigos
sobre o socialismo continental para o Novo Mundo Moral de Owen, 4 de novembro de 1843, p.
18 (Riazanov, Ocherki, pp. 44—45, 100—101). Há cerca de 300 extratos de Owen — de longe o
mais freqüente dos primeiros pensadores socialistas — nos cadernos de Marx de 1845-1847. V. M.
Rubel, “Les Cahiers de Lecture de Karl Marx”, em International Review of Social History, vol. il,
1957, pp. 401-402.
84 Berbrugger, citado em Sauvigny, “Liberalism”, p. 163.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 427

Um fourierista desiludido, Gay viajou a Londres em 1835 para buscar no


owenismo uma doutrina mais científica e revolucionária. Persuadiu Owen a
visitar Paris em 1837 com o objetivo de estabelecer uma Maison Harmonienne
para unificar saint-simonismo, fourierismo e owenismo. Owen também se
encontrou com Buonarroti pouco antes da morte deste, e foi festejado pelo
editor maçom que chefiava a Sociedade Estatística Universal. O único resul­
tado em matéria de organização foi o estabelecimento de uma pequena filial
francesa da Associação de Todas as Classes de Todas as Nações de Owen.85
Owen já tinha antes criado e popularizado termos como comunionista e
comunional*6 O seu livro memorável de “Hinos Sociais” a serem cantados
nos “Salões da Ciência” das novas comunidades cooperativas invocavam
repetitiva e liricamente a palavra:

A Comunidade de fato possui tudo


Que ao homem pode ser dado:
A Comunidade é felicidade,
A Comunidade é o céu.87

Os crescentes ataques públicos ao ateísmo de Owen só fizeram o anti­


clericalismo do mestre tornar-se ainda mais agudo. Em 1839, ele mudou o
nome de sua associação para Sociedade Comunitária Universal de Religiosos
Racionais. Ao mesmo tempo, seu ensinamento acerca de uma comunidade
igualitária científica como o verdadeiro propósito da humanidade deu
nova inspiração — através de Gay — àqueles franceses que no período de
1839-1840 — Dézamy e seus associados — divulgaram o termo comunista.88

85 Owen estava a caminho de uma visita a Metternich — uma de suas fracassadas e periódicas tentativas
de atrair governantes para suas idéias comunais. V. E Podmore, Robert Owen. A Biography, L, 1906,
vol. II, pp. 459-460. Desroche, pp. 249-258.
86 Bestow “Evolution”, p. 278, corrige o de resto valioso trabalho de K. Gründberg, “Der Ursprung
der Worte ‘Sozialismus’ und ‘Sozialist’”, em Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der
Arbeiterbewegung, vol. il, 1912, p. 378, o que levou muitos a crer que Owen usava o termo
“comunista” em vez desses outros tantos correlatos.
87 O último verso de uma típica canção dos Hinos Sociais (Leeds, 1838, L, 1840), em Podmore, vol.
li, p. 472. Owen também escreveu uma Bíblia Social (Manchester, 1835) e um Catecismo do Novo
Mundo Moral (Manchester, 1838; 2a ed., Leeds, 1838).
88 Gay tentou sem sucesso colaborar com o Intelligence de Laponneraye em 1838—1839 e fundar o
seu próprio jornal Communauté. Bulletin Mensuel de la Science Sociale (Gans, pp. 36-45). Esse
último esforço provavelmente inspirou o efêmero novo jornal de Dézamy de 1840, Communautaire.
Gay e Dézamy colaboraram em 1841 na publicação de L’Humanitaire, o primeiro jornal a advogar
abertamente o comunismo revolucionário e “o jornal mais radical a ver a luz do dia durante a
Monarquia de Julho”. Johnson, Communism, p. 113. V. também a opinião contemporânea e positiva
de um estudante francês sobre Owen, A. Cochut, em Revue des Deux Mondes, Io de abril de 1841,
p. 471.)
428 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mais ainda, tão distante quanto a Rússia, o Dicionário de Bolso do círculo


do radical Petrashevsky usava em 1846 “owenismo” como entrada “esópica*
para o termo comunismo. O próprio Cabet, além disso, foi tão profundamente
influenciado por Owen, que o comunismo icàrio que trouxe da Inglaterra para
a França chegou a ser descrito por uma autoridade destacada como “mero
owenismo afrancesado”.89 Cabet retornou a Londres em 1847 para receber
sanção direta de Owen ao seu projeto de organizar a emigração comunista
para os Estados Unidos. Owen, por sua vez, foi para a Paris revolucionária
em março de 1848; e os panfletos que lá fez circular, em defesa de uma re­
organização social total, foram denunciados pela esquerda francesa nativa
como “comunistas”.90 A defesa final de Owen de uma nova comunidade “de
todas as classes, todos os partidos e todas as religiões”91 encontrou eco no
efêmero jornal que Gay publicou em 1849, Le Communiste.
Cabet também pode ter se inspirado quanto à sua crença na necessidade
de uma ditadura revolucionária em outro autor britânico (ou, mais especifi­
camente, irlandês), Bronterre O’Brien.92 Mas a ênfase de Owen na educação
pacífica impediu que Cabet transformasse o elo que O’Brien estabelece entre
revolução social e ditadura robespierriana no autoritarismo maduro de Dézamy
e das gerações mais jovens na França. Enquanto isso, outro inglês, Goodwyn
Barmby, deu uma virada mais esquisita e religiosa ao pacífico ideal owenista
e, nos anos 1840, tornou-se talvez o mais prolífico — e certamente o mais
esquecido — propagandista do comunismo em qualquer parte do globo.

89 Desroche, em Pollard e Salt, Owen, p. 249. V. também pp. 239-240, 262. A influência substancial
de ambas as idéias e do exemplo de Owen sobre Cabet é discutida em Prudhommeaux, Cabet, pp.
133-139, mas é quase certo que será ainda mais enfatizada em um estudo de Desroche que está
para ser publicado, o qual se baseia em material inédito e no arquivo pessoal de Prudhommeaux,
bem como em outras fontes.
90 Ataques de fourieristas e proudhonistas citados com referências em M. Rubel, “Robert Owen à Paris
en 1848”, em Actualité de [’Histoire, 1960, jan.-fev.-mar., pp. 4-6.
91 Ibid., pp. 10-12 para o texto de sua Proclamation au peuple français aux militaires et aux civils de
toutes les classes, de tous les partis, de toutes les religions, 1848, jun.; também pp. 5-6 sobre outras
publicações parisienses de Owen em 1848.
92 O interesse de Cabet pela liderança revolucionária ditatorial se desenvolveu na Inglaterra ao fim dos
anos 1830 e se refletiu no seu Histoire populaire de la révolution française, primeira edição publicada
até 1830,1839-1840, 4 vol.; segunda edição publicada até 1845, 1845, 6 vol.; e especialmente seu
Rapport sur les mesures à prendre... le lendemain d’une insurrection victorieuse, L, 1840, sobre
o qual se pode 1er Lehning, “Discussions”, pp. 91-93, 96. Cabet, em Voyage en Icarie, 1845, p.
360, previu “um reino provisório de 30-100 anos”. Ele pode ter tomado essas idéias de Teste, que
ele conheceu em Londres, ou até mesmo de Buonarroti, com o qual trocou uma primeira versão
de Icária por uma cópia de sua História da Conspiração de Babeuf (v. Toute la vérité, pp. 85-86);
mas O’Brien, tradutor de Buonarroti (e partidário do culto a Robespierre), parece ser a fonte mais
provável dessa ênfase, em vista de sua proximidade e notoriedade em Londres.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 429

Fantasias cristãs: Barmby

John Goodwyn (costumeiramente chamado Goodwin) Barmby primeiro


popularizou o termo comunismo na Inglaterra, ligando-o a fantasias criativas
que soavam excêntricas mesmo nesse período de teoria social intricadíssima.
Munido de uma carta de recomendação de Robert Owen, ele, então moço
de 21 anos, viajou a Paris em 1840, a fim de escapar da “refrega de competi­
ção” e das limitações do nacionalismo estreito93 através do estabelecimento
de “comunicação regular entre os socialistas da Grã-Bretanha e da França”.94
Chamando-se de “amigo do socialismo na França, na Inglaterra e no mun­
do”, prometeu reunir material para uma história definitiva do socialismo e
de “todos os sistemas de comunidade” jamais concebidos.95
Ele empregava a palavra “comunidade” para sugerir a organização racio­
nal de tipo owenista como um antídoto ao romantismo fourierista. “Uma
Comunidade é preferível a um Phalanstère”, afirmou antes de sua partida da
Inglaterra;96 mas, quando de sua chegada a Paris, Bamrby logo se viu preso
num remoinho de atividades fourieristas que incluíam grupos de discussão
socialista, concertos fourieristas e palestras sobre frenologia e “ciência so­
cietária” ministradas em “cafetarias comunitárias”.97
No dia 20 de junho, Barmby apresentou “o prospecto e os papéis de uma
sugerida ‘Associação Internacional para a promoção de mútuo intercurso
entre todas as Nações’, para a qual um comitê provisório foi posteriormente
formado, em Paris, sob a presidência de um ardente amigo do progressismo
humano”.98 A Associação dirigia-se a pessoas de todos os países e sem li­
mitação de “seita ou partido”.99 Embora nada mais se saiba a respeito, esse
documento perdido bem pode ter sido o primeiro esboço de uma organização
comunista internacional. Parece provável que seu presidente francês fosse
Jules Gay.100 Barmby ficou feliz de reportar aos owenistas da Inglaterra que

93 “Journal of a Social Mission to France”, em The New Moral World, vol. 1,11 de julho de 1840, n°
2, p. 21.
94 New Moral World, vol. i, 18 de julho de 1840, n° 3, p. 43.
95 Ibid., n° 2, p. 21.
96 Ibid.
97 Ibid., vol. I, Io de agosto de 1840, n° 5, p. 74.
98 Ibid.
99 Ibid.
100 Barmby diz apenas que o prospecto foi apresentado a um não identificável “M. Havre” (ibid.). Já
que, contudo, Gay é discutido com destaque na mesma página em que consta uma bibliografìa das
obras de Owen, que somente Gay poderia ter fornecido, parece provável que Gay fosse de fato o
“amigo ardente” escolhido para chefiar a Associação.
430 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

o banquete comunista organizado por Dézamy e Pillot em Belleville, no dia


Io de julho, serviu à “comunidade e não [a]o Phalanstère”
Embora Barmby tenha depois alegado que fora ele o inventor da palavra
“comunista”,101
102 sua fascinação totèmica pela palavra parece ter se iniciado
somente após ter percebido que “os jornais públicos estão todos inflamados
com o jantar comunista em Belleville”.103 Barmby estava determinado a não
deixar o fogo extinguir-se, e começou a registrar “os movimentos dos comu­
nistas” em Paris para os seus leitores owenistas ingleses.104 O governo francês
proibiu imediatamente quaisquer outros banquetes comunistas em Paris. Mas
houve banquetes menores em Rouen e Lyon; e Barmby anunciou ao fim de
agosto que um segundo banquete comunista seria realizado no Instituto de
Infância dirigido pela esposa de Jules Gay: uma grande Fête^ a ser realizada
“dali a um mês”, em torno de cerimônias seculares de casamento de comu­
nistas destacados. Essas esperanças provaram-se inúteis com o esfacelamento
do governo em vista dos múltiplos ataques que vinha recebendo desde o fim
do verão e da tentativa de assassinato do rei no começo do outono.
Ao retornar para a Inglaterra, Barmby destrambelhou-se com o recém-
-descoberto rótulo. Fundou uma Sociedade de Propaganda Comunista (logo
renomeada Sociedade Comunitária)105 e um jornal, O Apóstolo Prometeico
ou Comunitário (logo renomeado A Crônica Comunista), Descreveu o comu­
nismo como a “ciência societária” e religião final da humanidade. Seu Credo
proclamava: “Eu creio... que o divino é o comunismo, que o demoníaco é
o individualismo...”.106

101 New Moral World, vol. i, Io de agosto de 1840, n° 5, p. 77, em uma § separada intitulada
“Correspondência Francesa”, na qual Barmby fala de um “jantar comunitário”. Sua nota prévia
fazia referência a um “banquete social dos adeptos da escola Comunista ou Comunitária” (ibid., p.
75).
102 Barmby contava que, quando em Paris, “em companhia de alguns discípulos de Babeoeuf [sic],
à época chamados igualitários, pela primeira vez pronunciei o nome Comunista”, em seu artigo
principal para The Apostle, and Chronicle of the Communist Church, vol. I, Io de agosto de 1848,
n° 1 e 2. A única cópia conhecida desse artigo (no qual eie pròprio faz um relato detalhado dos
primeiros anos de sua carreira) está em GL. Faz-se referência de maneira equivocada a essa citação no
Oxford English Dictionary, vol. ii, p. 701; o mesmo se aplica ao artigo sobre Barmby no Dictionary
of National Biography, 1921, vol. I, no qual se diz que Barmby reivindicava ter criado a palavra
communisme no curso de uma discussão com uma não nomeada “celebridade francesa” durante
sua viagem a Paris.
103 New Moral World, vol. i, 22 de agosto de 1840, n° 8, p. 123.
104 Ibid., p. 122.
105 Explicação da mudança em editorial em The Promethean, vol. i,n° 1, p. 12.
106 Texto em The Promethean, vol. I, n° 1, p. 23.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 431

Escreveu hinos e orações comunistas,107 defendeu a construção de


Communitariums,108 submetidos à suprema Comunarquia chefiada por
um casal de comunarcas eleitos.109 Chamava-se a si mesmo “Pontifarca da
Igreja Comunista”,110 proclamava a “religião do comunismo”,111 defendeu
a rejeição da alegada condição messiânica de Cristo e definiu o comunismo
como uma nova fusão do judaísmo com o “cristianismo”.112’113
Em março de 1842, Barmby lançou a primeira teoria comunista do
processo histórico: um esquema baseado em quatro eras da humanidade
(uma primeira era pastoral, a “paraísação”, a qual passa pela feudalização
e civilização até alcançar a “comunização”). Haveríam de suceder-se quatro
eras sucessivas de comunização (partindo de um clube ou loja, passando
pela unidade comum de produção e pela cidade comunal, a alcançar uma
sociedade comunista total).114 Instituiu um novo calendário e proclamou
uma nova dieta vegetariana. Estabelecido em seu novo communitarium em
Harnwell, defendeu uma restauração das terras da Igreja confiscadas por
Henrique vin — restaurando-as não para os monastérios do passado, mas
sim para os seus “comunistérios” do futuro.115
Barmby logo atraiu o apoio e aconselhamento de um jornalista cartista
radical, Thomas Frost, que logo transferiu as publicações de Barmby para o
impressor veterano da esquerda, Henry Hetherington. Barmby aproveitou-se
da chegada de Weitling a Londres para ampliar o tamanho de sua comunhão
de 70 membros para 130. Ele escreveu Livro de Platonópolis, misturando
temas utópicos tradicionais (“Platonópolis” foi o nome que Hupay deu à sua
primeira “comunidade filosófica” de 1779) com projeções científicas do futuro
(incluindo algumas ainda a ser realizadas, a exemplo de automóveis movidos

107 Ibid., p. 38, para hinos típicos de Owen: “Deus é tudo em tudo. [...] A Natureza, o Cristo material,
ensina que ele de fato existe [...]”.
108 Prospecto, ibid., p. 23.
109 Plano para “Gradações Administrativas na Comunização” elaborado por Barmby na página de
abertura de The Communist Chronicle, vol. I, n° 14.
110 New Tracts for the Times; or, Warmth, Light, and Food for the Masses. Bible proofs from Isaiah
Against Jesus Christ’s Being the Messiah, L (datado de 1842 no catalogo de BM), p. 14.
111 Ibid.,pp. 10-11.
112 Ibid., p. 10.
113 As aspas se justificam pois aqui o autor grafa Christianism, e não Christianity, a forma correta da
palavra em inglês. A construção excêntrica reforça a tentativa de Barmby de enquadrar o cristianismo
corno mais um “ismo” componente de sua teoria — nt.
114 W. Armytage, Heavens Below. Utopian experiments in England 1560-1960, L, 1961, pp. 198-199.
115 Ibid., p. 208.
432 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a vapor). Elaborou uma lista de quarenta e quatro Metas Societárias para a


humanidade e um plano de ação que rapidamente se tornou quase global.
Realizou uma turnê de palestras doutrinárias pelo norte, visitou e depositou
especial esperança na Irlanda, discorreu sobre cinco grupos territoriais para
a obra missionária, e começou a trabalhar por meio de “correspondentes
residentes” em Paris, Lyon, Lausanne, Colonha, Nova York e Cincinnati.116
Deu especial importância aos planos de seu correspondente John Wattles,
que fundou uma igreja comunista perto de Cincinnati e se ofereceu para
abastecer de cereais os comunistas europeus. Tentou estabelecer ligação
com sectários radicais que pretendiam estabelecer uma comuna igualitária
na Venezuela. Mas, uma vez que estes se viam apenas como uma sociedade
político-econômica, poderiam ser considerados apenas “quase comunistas”
e uma “congregação”, não uma verdadeira “comunhão” com comprome­
timento espiritual total.117
Barmby acreditava que o comunismo tornou obsoleta a política, e ele
parece ter sido o primeiro a empregar a frase incorretamente atribuída a
outros: “No futuro, a política governamental será sucedida pela adminis­
tração industrial”.118
Com seu desejo maníaco de trazer o céu pelo menos a uma pequena
porção da terra, Barmby foi levado às ilhas do arquipélago britânico. Na
Ilha de Wight, começou, em 1844, a fazer planos para um “communitarium”
modelo na Ilha de Sark. Dali, sonhou estabelecer “uma comunidade de
imprensa e agricultura” ao longo das Ilhas do Canal. Nada disso se mate­
rializou, e o mais prático Frost rebelou-se e fundou um Jornal Comunista
para rivalizar com a Crônica Comunista de Barmby. Vendo na adoção da
palavra “comunista” por Frost uma “quebra de direitos autorais”, Barmby
proibiu formalmente seu uso ulterior em um documento que foi “selado
com um selo de tamanho prodigioso, com gravação de símbolos maçônicos
em cera verde, sendo o verde a cor da Igreja Comunista”.119
Isolado em suas próprias fantasias, Barmby retirou-se ainda para outra
ilha, a Ilha de Man, para publicar seu Apóstolo em 1848. Ninguém ali ou

116 Thomas Frost, Forty years' recollections: literary and political, L, 1880, pp. 58-62, 70-71; Army tage,
pp.201-204.
117 Frost, pp. 67-68; A. Morton, The english utopia, L, 1952, p. 134.
118 Frost, 71.
119 De acordo com Frost, p. 74, também p. 67. O Chronicle está em NP, o que invalida a indicação de
Morton (p. 135) de que nenhuma cópia teria sobrevivido.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 433

em qualquer outra parte parece, contudo, ter se submetido ao excêntrico


ritual de iniciação prescrito para separar os “quase” comunistas dos ver­
dadeiros. Seu ritual batismal em quatro etapas deveria começar com um
banho frio (o Frigidério), seguido de um banho quente (o Friccionário).
A tudo isso se seguia uma unção com óleo e perfume: uma crisma secular
destinada a preparar o candidato para “o comuniverso divino”.120121
Abandonando os sonhos de um movimento internacional (cujo progresso
era registrado nação a nação em sua coluna “Inteligência Comunista”),
Barmby veio a se tornar o primeiro a falar em “Comunismo Nacional”
Após uma breve visita a Paris durante a Revolução de 1848, tornou-se
ministro unitário, amigo de Mazzini e defensor da revolução nacional em
vez da social.
Sua aberrante salada de utopismo secular e ritual cristão é ilustrada pelo
subtítulo de seu jornal dos anos 1840: “O Apóstolo da Igreja Comunista e da
Vida Comunitiva: Comunhão com Deus, Comunhão dos Santos, Comunhão
dos Sufrágios, Comunhão dos Trabalhos e Comunhão dos Bens”. Desde o
ponto de vista de sua efêmera “Igreja Comunista”, Barmby concebeu a luta
pelo comunismo em termos apocalípticos: “Na santa Igreja Comunista, o
diabo será convertido em Deus... E Deus chama todos os povos para essa
conversão de Satã... para essa Comunhão dos sufrágios, dos trabalhos e
dos bens tanto materiais quanto espirituais... para esses dias finais”.122
Assim, esse comunista pioneiro proclamou a morte do diabo de maneira
tão decisiva quanto os comunistas posteriores anunciariam a morte de Deus.
A corrida até o céu na terra foi, previsivelmente, liderada pelos poloneses.
Em um livro chamado Futuro dos trabalhadores^ um polonês de nome Jean
Czynski, o mais revolucionário dos fourieristas, foi o primeiro a sugerir
sistematicamente que o socialismo deveria ser realizado pelos trabalhadores,
em vez de pelo intelectuais. Barmby traduziu o livro para o inglês.123 Cabet
era ainda mais dependente de outro emigrado polonês, Ludwik Królikowski,

120 The truth on Baptism by Water, According to the Doctrine of the Communist Church, publicado
como n° 5 de The Communist Miscellany, s/L, s/d., pp. 2-3, GL.
121 Communist Chronicle, vol. i, n° 12, p. 133. Os itálicos são de Barmby.
122 Parágrafo final do texto “The Truth Concerning the Devil” de Barmby, em Morton, p. 136. V. a
antecipação dessa idéia na canção revolucionária dos anos 1830 “The Devil is Dead”: J. Puech,
“Chants d’il y a cent ans, autour des Saint-Simoniens”, em La Révolution de 1848,1933, man-abr.-
maio, pp. 26-29.
123 Barmby traduziu Avenir des Ouvriers com o título de The Workmen's Future em New Moral World,
vol. I, 26 de setembro de 1840, n° 13, p. 196.
434 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

um notável camponês autodidata. Ele era o colaborador mais próximo de


Cabet e o primeiro a popularizar uma versão cristianizada do novo ideal
comunista em seu extraordinário jornal Polônia para Cristo,124
Em 1840, o primeiro jornal francês concebido e editado por trabalha­
dores, UAtelier^ proclamou aos “trabalhadores revolucionários” que “meu
reino não é agora deste mundo”125, e estampou uma gravura de “Cristo
pregando a fraternidade ao mundo”.126 Cristo está situado sobre o globo
esmagando a serpente do egoísmo sob um pé e erguendo uma insígnia
onde se lia “fraternidade”, ladeado por anjos que trajavam barrete frigio
e se chamavam “igualdade” e “liberdade”127 — a iconografia da Santíssima
Trindade misturada ao lema trinitàrio da revolução.
Outros jornais revolucionários franceses dos anos 1840 falaram de
banquetes de protesto como “santas mesas” e “santas comunhões”.128 A
infusão de idéias cristãs representou para muitos “não a degradação da fé
cristã, mas a recuperação do entusiasmo religioso”.129
Na Alemanha, essa tendência de identificar comunismo com religião
era bastante disseminada e especificamente cristã. Os únicos livros citados
por Weitling em seu manifesto para a Liga dos Justos, A Humanidade
como ela é e como deveria ser, foram a Bíblia e as Palavras de um crente
de Lamennais. Os propagandistas eram favorecidos pela tendência de
identificar comunismo com comunhão130 e pela rima, em alemão, de Jesu

124 Polska Chrystusowa (1842-1846) foi sucedido por um segundo jornal, também publicado em Paris.
Brotherhood (Zbratnienie, 1847-1848). Królikowski exerceu considerável influência na França por
meio de seus escritos de início da década de 1840 em Le Populaire com o pseudônimo de “Charles”.
Depois que Cabet se mudou para os Estados Unidos, ao fim de 1848, Królikowski se tornou editor
de Le Populaire e assumiu a posição geral de “mandataire du citoyen Cabet”. Brock, “Socialists”,
pp. 160-161, bem como a discussão que se segue; também J. Turowski, Utopia spoleczema Ludwika
Królikotvskiego, 1958.
V. também os megalomaníacos “Estatutos da Igreja Universal” de Zenon Swietoslawski, que propunha
uma ordem comunista mundial com toda propriedade nacionalizada, uma capital no istmo de Suez
e o polonês como língua oficial. Discussão a respeito em Brock, “Socialists”, pp. 157 ss.; texto dos
estatutos em Lud Polski: Wybór, pp. 230-315; descrito como “totalitarismo revolucionário” por A.
Walicki em seu inédito “The Problem of Revolution in Polish Thought of 1831-1848”, 1976, p. 51.
125 Isambert, “Religion”, p. 319.
126 Citado de uma edição de abril de 1844, em Isambert, p. 312.
127 Reproduzido em Cuvillier, Hommes, verso da página 78. Sobre o papel central de Bûchez, líder do
Ateliê, V. ibid., pp. 9-137; também Cuvillier, Un Journal d'ouvriers. L'Atelier (1840-1850), 1954.
128 Isambert, p. 320.
129 Ibid., p. 325.
130 Weitling, “Die Communion und die Kommunisten”, em Der Hülferuf der deutschen Jugend,
1841, nov.; tal qual reimpresso em W. Kowalski, Vom Kleinbürgerlichen Demokratismus zum
Kommunismus, 1967, pp. 149, 147.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 435

Christ com Kommunist.131 Um panfleto de 1842 em Paris escrito por um dos


discípulos de Weitling defendia uma nova “comunidade de amor fraternal”
e a assistência mútua para tornar realidade o “puro cristianismo” entre os
trabalhadores.132 Outro discípulo redigiu naquele mesmo ano o sonho utópico
de uma nova ordem comunista, trazendo um título que remetia ao livro do
Apocalipse, mas que seria revivido por Hitler: O Império de mil anos133 O
fervor religioso ajudou o movimento comunista suíço de Weitling a alcançar
em 1843 cerca de 750 membros alemães em treze associações separadas,
além de outros 400 membros de expressão francesa.134
Barmby deu a entender que considera o comunismo de Weitling “não
uma fé, e sim uma ciência universal”,135 e estimulou Weitling a ir para a
Irlanda difundir a nova doutrina revolucionária.136 A prisão e julgamento
de Weitling em 1843 e sua posterior expulsão da Suíça amargurou os
primeiros comunistas, e muitos destes se inclinaram para um ponto de
vista cada vez mais obstinado e secular. Mas os temas religiosos perma­
neceram fortes no movimento alemão137 e desempenharam um papel mais

131 V. o exemplo de hinografia radical em Schieder, p. 285, nota 23; e, sobre a já bem fundada
disseminação na Alemanha de versões revolucionárias dos Dez Mandamentos, do catecismo e do
Pai-Nosso, pp. 221—222. V. também o texto de Barmby “Exposition of the ‘Lord’s Prayer’ According
to the Doctrines of the Communist Church”, em The Communist Miscellany, vol. I, n° 3, pp. 49—50.
132 A. Scherzer, Ermahnung zur Nächstenliebe, an die deutsche Jugend, Paris, 1842, maio, citado em
Schiedet, p. 284.
133 A. Dietsch, Gleichheit und Einigkeit, der Weg zur Freiheit und zum ewigen Friden. Das tausendjährige
Reich, publicado pela primeira vez no jornal Postthörnchen, entre 22 de julho e 12 de agosto de 1842,
depois publicado separadamente em Aarau, 1843. Esse e muitos outros exemplos são discutidos na §
“Der religiöse Sozialismus der Weitlingianer”, em Schieder, esp. pp. 280-296. Dietsch logo transportou
suas esperanças milenaristas para o Novo Mundo (como em breve também faria Weitling). V. o
seu Das tausendjährige Reich, nebst Plan und Statuten zur Gründung von New-Helvetia im Staate
Missouri in Nordamerika, Aarau, 1844.
Esse conceito de um reino de mil anos também animou as profecias radicais de M. L. B. Müller
(que chamava a si próprio de Ludwig Proli) na Bavária dos anos 1820. Depois de sua prisão em
1830, fugiu para a comunidade do grupo milenarista de Rappite na Pensilvânia. V. E Herrmann,
“Maximilian Ludwig Proli, der Prophet von Offenbach”, em Archiv für hessische Geschichte und
Altertumskunde, New Series, vol. xiii, 1922, esp. pp. 216-231.
134 Informação constante do relatório oficial de J. Bluntschli, Die Kommunisten in der Schweiz nach
den bei Weitling vorgefundenen Papieren, Zürich, 1843; discutido em Winke, p. 41. V. também W.
Seidel-Höppner, Wilhelm Weitling, der erste deutsche Theoretiker und Agitator des Kommunismus,
1961, pp. 27-53; e G. Bravo, Wilhelm Weitling e il comunismo tedesco prima del quarantotto,Turim,
1963.
135 Ctado em Wittke, p. 82.
136 Ibid., p. 98. Cabet também estava interessado nas possibilidades revolucionárias na Irlanda. V. o
seu État de la question sociale en Angleterre, en Ecosse, en Irlande et en France, 1843.
137 Embora Weitling tenha recuado um pouco quanto à sua religiosidade em Garantien der Harmonie
und Freiheit, Vevey, 1842, onde a palavra “Deus” aparece entre aspas, sua cepa religiosa foi reafirmada
em Das Evangelium eines armen Sünders, 1845.
436 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

importante na agitação revolucionária de 1845—1851 do que geralmente


se pensa.138
De fato, o comunismo provavelmente não teria de imediato atraído tanto
atenção sem essa mistura inicial com idéias cristãs. Essa fusão (1) tornou veros­
símil a idéia intrinsicamente implausível de que uma ordem social totalmente
diferente era possível “assim na terra como no céu”; (2) convenceu muitos
de que essa nova ordem “comunista” fundiría a communauté de Babeuv à
comunhão cristã; e (3) ajudou a tornar atraente pela primeira vez um ideal
social transnacional para um número significante de trabalhadores piedosos.
Esse débito para com as idéias religiosas permanece inconfesso ou obscu-
recido por historiadores revolucionários e comunistas — isto quando não é
de saída condenado como uma fuga retrógrada da realidade. Mas essa virada
no rumo da religião parecería representar um estágio “progressivo” no desen­
volvimento dos movimentos revolucionários — indo além dos experimentos
utópicos e das especulações de intelectuais fourieristas e saint-simonianos.
As idéias religiosas deram vida à consciência moral e social de uma classe
trabalhadora até então passiva em sua maior parte, e ajudou os intelectuais
seculares “na passagem da utopia para a realidade”.139 Para os simples tra­
balhadores, era mais fácil alinhar-se a um comunismo supostamente fundado
pelo “igualitarista supremo”, cuja primeira comunhão serviu de “imagem de
futuros banquetes” da sociedade comunista.140
A esperança de uma organização comunista internacional de natureza
semi-religiosa foi promovida por Barmby ao longo de breve período logo

Após a prisão de Weitling, August Becker (seu principal colaborador, filho de um pastor luterano
e ex-estudante de teologia) deu força à idéia de um comunismo cristianizado em seu bastante
reimpresso Kommunisten-Vaterunser e em Gebet des Armen, de 1843, assim como em seu novo
jornal publicado em Lausanne em 1845: Die frölische Botschaft von der religiösen und sozialen
Bewegung. V. também G. Bravo, “Il comunismo tedesco in Svizzera. August Becker 1843-1846*’.
em Annali, voi. vi, 1963, bibliografia às pp. 613, 616; artigo às pp. 521-608.
Em 1845 a polícia parisiense distinguia o comunismo materialista francês do comunismo alemão,
que supostamente se relacionava com “as tradições desfiguradas do cristianismo” iniciadas com
os anabatistas e que pregavam que “Jesus Cristo era o chefe de uma sociedade comunista secreta
fundada na Galiléia sob o reinado de Tibério”. “Renseignements”, pp. 14, 17.
138 V. J. Droz, “Religious Aspects of the Revolutions of 1848 in Europe”, em D. Acombe e M. Brown
Jr. (eds.), French Society and Culture Since the Old Regime, NY, 1966, pp. 134-149; e suas obras
mais especializadas, cujas referências são dadas à p. 149, nota 8.
139 Isambert (De la Charbonnerie, p. 187), tratando da conversão de Bûchez do saint-simonismo para
um socialismo explicitamente católico, tal qual o que se manifestava no jornal proletário Atelier.
140 V. a obra coletiva L’Individualisme et le communisme par les citoyens Lefeul, Lamennais, Duval,
Lamartine et Cabet, 1848, pp. 3—4, 33. Publicada em maio uma terceira edição de 20 mil exemplares,
esse talvez tenha sido o livro “comunista” mais lido no ano revolucionário em Paris.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 437

após a chegada de Weitling a Londres em 1844. Esse “evento grandioso”


deveria “estabelecer as bases segundo as quais a Igreja Comunista na Ingla­
terra e a Igreja Comunista na Alemanha possam agir de maneira coordena­
da”. Barmby acedeu publicamente aos “Primarcas da Igreja Comunista da
Irlanda” sobre a possibilidade de uma viagem missionária conjunta até lá
na companhia de Weitling.
Mas já em 1845 a maré estava virando precisamente para a direção do
comunismo irreligioso que Barmby temia.141 Schapper, o mais religioso líder
da Liga dos Justos, insistia naquele ano — e contra Weitling — que “nada de
transcendente” fosse mesclado às suas discussões políticas;142 e um italiano
em Paris observou ao mesmo tempo o surgimento do “ateísmo especulativo
e prático dos comunistas”.143 A formação da Liga dos Comunistas em de­
zembro de 1847 representou a fusão dos dois principais grupos comunistas
que se opunham à religiosidade de Weitling e Barmby: Liga dos Justos, de
Londres, e o Comitê de Correspondência Comunista, de Bruxelas. O ateís­
mo revolucionário que Karl Marx extraiu de Ludwig Feuerbach foi a nova
força unificante.

Fuga para os Estados Unidos?

Se a negação do paraíso de Deus era essencial para a doutrina revolucionária


européia, também o era a rejeição da crença de um céu na terra nos Estados
Unidos. Ao longo de todo o século xix, europeus escaparam de revoluções
fracassadas no Velho Mundo fugindo para a terra onde a revolução havia
sido bem-sucedida no Novo Mundo. Alguns vieram pessoalmente, como
Kosciuszko; outros por meio de procuração, como Bonneville, que mandou
esposa e filho para lá quando foi preso por Napoleão. Os revolucionários
serviam de sustentáculo para o novo estado. Se Kosciuszko ajudou a projetar
ameias e os primeiros manuais militares para a academia de West Point, o
filho de Bonneville tornou-se um de seus lendários primeiros graduados — o
primeiro de uma longa lista de ex-revolucionários europeus que se tornaram
líderes militares tanto na Guerra Mexicano-Americana como na Guerra Ci­

141 Vejam-se as objeções ponderadas de Barmby a comunistas que eram “mais politicamente sociais do
que religiosa e socialmente políticos”. Communist Chronicle, vol. I, n° 6, p. 86.
142 M. Nettlau, “Londoner deutsche kommunistische Discussionen 1845”, em Archiv für die Geschichte
des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, vol. x, 1922, p. 382. Observe-se também o efeito que
teve a tradução de panfletos anticlericais escritos por comunistas franceses sobre os discípulos de
Weitling na Suíça, o que é discutido em Schieder, pp. 296-300.
143 Andrea Mazzini, citado em Saitta, Sinistra, p. 62.
438 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

vil. A esposa de Bonneville, Margaret, tornou-se a companheira de Thomas


Payne nos últimos anos de vida deste. Seu filho Benjamin foi o assistente
de Lafayette quando de sua visita aos Estados Unidos em 1825-1826 e o
explorador do Extremo Oriente celebrado no livro de Washington Irving
de 1837: As aventuras do Capitão Bonneville. Assim, a própria carreira
revolucionária de Bonneville, que tirara sua inspiração romântica original
das peças de Schiller e dos primeiros acontecimentos revolucionários em
Paris, encaminhou-se nos Estados Unidos para o romance literário e para a
história militar.
Fugir para os Estados Unidos, portanto, era uma tradição dos revolucio­
nários europeus. Quando uns tantos comunistas europeus vieram a desafiar
Cabet a esse respeito ao fim dos anos 1840, a opção perdeu algo de seu
esplendor.
Depois da prisão de Weitling e dos inúmeros julgamentos e investigações
de 1843, Cabet, enquanto propagandista mais conhecido do ideal comunista,
enfrentou o problema de abrir mão da liderança do incipiente movimento.
Suas tentativas da atrair amplo apoio contra os julgamentos de comunistas
em meados da década de 1840, na França, o levaram a buscar alguma forma
de organização transnacional. Solicitou a colaboração de franceses e alemães
em Londres para estabelecer um centro comunal de cinco a vinte membros
que coordenasse a propaganda internacional do comunismo.144 Contudo,
ele logo concebeu um plano para estabelecer um assentamento muito maior
nos Estados Unidos. Passou a dedicar suas energias ao alistamento de vinte
a trinta mil “comunistas” para uma emigração em massa rumos àquele país.
Enxergava essa viagem à “Icario” do Novo Mundo não como uma fuga, mas
como uma tentativa de “criar uma nova direção” também para o movimento
europeu.145
Ao fazê-lo, Cabet apenas se valia de uma tradição já estabelecida por
discípulos de Fourier e Owen, cujos principais experimentos comunais ha­

144 Lehning, “Discussions”, pp. 94, 97. V. também Zévaès, “Agitation”, pp. 37-39.
145 Lehning, “La réponse de Cabet à Schapper”, em Bulletin of the International Institute of Social
History, vol. vm, 1953, pp. 7-8,15. V. também a crítica presumivelmente escrita por Karl Schapper,
“Nouveau journal allemand à Londres”, Populaire, 3 e 10 de outubro de 1847; reimpresso e discutido
em Lehning, “Réponse”, pp. 9—15.
As previsões de Cabet não eram inteiramente fantasiosas, já que o seu revivido Populaire, destinado
exclusivamente aos trabalhadores, havia alcançado alta popularidade, a ponto de, à altura do
seu oitavo número, precisar de impressão de 27 mil cópias. Garaudy, Sources, p. 166. Sobre o
desenvolvimento complexo de um grande público partidário de Cabet na França, passando de
“movimento a seita” durante os anos 1840, v. Johnson, Communism, esp. p. 207 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 439

viam sido fundados nos Estados Unidos. De fato, planejou viajar em 1847 à
Inglaterra para visitar Owen, “o venerável patriarca do comunismo inglês”,
a fim de garantir uma espécie de bênção para o projeto.
O projeto de Cabet foi, contudo, criticado pelos alemães em Londres, os
quais insistiam que o comunismo deveria, ao contrário, ser estabelecido na
Europa.146 Faziam-no repetindo a dura denúncia que, no ano anterior, Marx
havia feito de Hermann Kriege, o principal editor revolucionário alemão dos
Estados Unidos, por sugerir que o proletariado poderia encontrar um novo
começo estabelecendo-se nos ermos dos Estados Unidos. A posição de Marx
foi apoiada por todo o Comitê de Correspondência Comunista de Bruxelas,
com exceção de Weitling, que já havia partido para juntar-se a Kriege nos
Estados Unidos.147
Ao defender que se fizesse a revolução na Europa, ao invés de fugir para os
Estados Unidos, os comunistas alemães instalados em Londres ecoavam, com
volume amplificado, uma posição buonarrotiana dos anos 1830 que havia
passado quase despercebida fora de estreitos círculos conspiratórios. Os buo-
narrotianos em Paris se opuseram à fuga dos saint-simonianos para o Oriente
como um escapismo; e, quase solitários entre os revolucionários europeus
ativos no período, permaneceram hostis ao experimento norte-americano.
Essa atitude foi expressa através de ataques sem precedentes a dois dos mais
admirados participantes europeus da Revolução Americana, os quais tinham
se tornado personagens semilendários: Kosciuszko e Lafayette.148
De todo modo, o fato é que os Estados Unidos do século xix mais ab­
sorveram que rearmaram os muitos revolucionários que vieram bater às
suas praias. (Seu número aumentou acentuadamente após as revoluções
de 1848 terem fracassado na Europa). Os comunistas icarianos de Cabet
estabeleceram-se primeiro no Texas, em seguida em Nauvoo, Illinois; logo
brigaram entre si; misturaram-se à sociedade, como antes ocorrera a outros
146 No novo jornal Kommunistische Zeitschrift, fundado em setembro de 1847. Lehning, “Réponse”,
p. 10; texto alemão original em Lehning, “Discussions”, pp. 107-109.
147 A “Circular contra Kriege” de Marx (discutida em Cahiers de /’Institut Maurice Thorez, vol. i, 1966,
pp. 56-58) denunciava não só o Volkstribun de Kriege em Nova Iorque como também a abordagem
reformista e sentimentalista da nova organização “Jovem América”. Marx, contudo, sentiu-se
encorajado pela preocupação para com a comunidade revelada por baixo de sua “religião irracional”.
V. H. Desroche, “Messianismes et utopies, note sur les origines du socialisme occidental”, em Archives
de Sociologie des Religions, 1959, jul.-dez., p. 42, além de p. 32. Texto do artigo “Beschreibung der
in neuerer Zeit entstandenen und noch bestehenden kommunistischen Ansiedlungen”, em Deutsche
Bürgerbuch, 1845, em Werke, vol. n, pp. 521—535.
148 Sobre críticas polonesas a Koéciuszko, v. Walicki, “Problem”, p. 15; sobre Lafayette, v. Gigault, Vie
politique, 1833. Para discussão a respeito, Saitta, “L’idea de Europa”, pp. 420-421.
440 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

utopistas seculares no Novo Mundo. Cabet morreu em St. Louis em 1856,


rejeitado pelos seus poucos discípulos remanescentes.
O único movimento sério de revolucionários sociais a alcançar os Esta­
dos Unidos foi a Primeira Internacional, a qual, contudo, só foi lá chegar
em 1872 depois de já se ter desarticulado e necessitar de um lugar descente
para seu enterro. E, quando a Primeira Internacional desfez-se formal­
mente na Filadélfia em 1876, praticamente ninguém tomou conhecimento
nos Estados Unidos. Os outrora revolucionários haviam se tornado novos
norte-americanos; e a atenção popular se fixou nas celebrações do centenário
da nação naquela mesma cidade — a cidade de uma revolução bem diversa,
própria aos Estados Unidos.
O contínuo confronto “entre o proletariado e seus opressores” deveria
ser lutado — como os buonarrotianos haviam previsto — primariamente na
Europa. De fato, o único movimento revolucionário a ser sediado nos Esta­
dos Unidos na segunda metade do século xx foi a estritamente nacionalista
Fraternidade Republicana Irlandesa.149
Há uma ironia em tudo isso, pois a Revolução Americana tinha dado ori­
gem à idéia radicalmente nova de que um partido puramente político — sem
sanções religiosas ou dinásticas — poderia ser um legítimo objeto de dedica­
ção humana suprema, senão total. Como conseqüência da independência, os
norte-americanos desenvolveram paixões políticas intensas e “espírito parti­
dário” à medida que buscavam prover substância à vida política exigida por
sua nova Constituição.150 No curso do século xix, contudo, os Estados Unidos
passaram a definir os seus partidos mais em termos de interesses materiais
compartilhados do que em termos de idéias espirituais compartilhadas e a
aferir o “espírito partidário” precisamente através do tipo de atividade eleitoral
reformista que, à altura dos anos 1840, a nova geração européia de revolucio­
nários sociais viera a odiar. Não é de estranhar, portanto, que o acontecimento
político que mais preocupou até mesmo ex-revolucionários nos Estados Uni­
dos de 1876 foi não o último congresso da Primeira Internacional, e sim a
controvérsia puramente norte-americana e não ideológica entre republicanos
e democratas acerca da polêmica eleição presidencial disputada por Hayes e

149 Também chamada de Irmandade Revolucionária Irlandesa e, nos Estados Unidos, de Irmãos Fenianos.
V. W. D’Arcy, The Fenian Movement in the United States, 1858—1886, Washington, D.C., 1947; T.
Brown, Irish American Nationalism, 1870—1890, Filadélfia, 1966.
150 Sobre o emprego do termo “spirit of party” na primeira história abrangente da Revolução Americana
de 1788 e de “party spirit” num relato de viagem datado de 1799, v. H. Jones, Revolution and
Romanticism, Cambridge, Massachusetts, 1974, pp. 208, 222.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 441

Tilden. Tampouco surpreende que revolucionários sociais europeus nos anos


1840 pós-Jackson não tenham se voltado para os Estados Unidos em busca de
modelos para os seus esforços de finalmente criar um partido. Na atmosfera
repressiva das vésperas de 1848, era difícil para os europeus compartilhar
da fé política caracteristicamente norte-americana de John Adams, segundo
o qual 44 as bênçãos da sociedade dependem inteiramente das constituições
do governo”.151 A primeira tentativa dos comunistas de formar um partido
e desenvolver 44espírito partidário” não se originou das velhas esperanças do
Novo Mundo, e sim das novas esperanças do Velho Mundo.
O novo partido para o qual Marx escreveu o seu manifesto ao fim de
1847 era, em grande medida, um prenúncio do ainda mais substancial ‘‘par­
tido de um novo tipo”, arrematado com um sacrificial “espírito partidário”
(partiinost\ que Lênin criou em 1903. Os comunistas dos anos 1840 tive­
ram ainda menos impacto sobre a revolução que adveio em 1848 do que os
bolcheviques de Lênin sobre a Revolução de 1905. De todo modo é coisa
de especial importância estudar esse primeiro aparecimento de um partido
comunista na história humana. É um acontecimento que desempenharia para
os comunistas posteriores um papel similar ao que a Encarnação — ou talvez
o Pentecostes — desempenha para os cristãos.

Ecclesia: um novo partido


Desde há muito os pensadores sociais franceses sonhavam com um partido
político que fosse inteiramente diverso das facções briguentas da Restauração.
Queriam um partido fiel ao “movimento” que tinha produzido a revolução
original:152 uma associação que tivesse tanto princípios elevados como tam­
bém raízes mais profundas do que os políticos burgueses da monarquia de
julho. As palavras de ordem dos revolucionários pré-1830 — constituição,
república, liberalismo — foram cada vez mais rejeitadas; mas a nova geração
de fim dos anos 1830 e início dos 1840 ainda não estava pronta para aceitar
um chamado direto à revolução social. Em vez disso, voltaram-se para o velho
termo da década de 1790: democracia — com freqüência a intensificando
com o adjetivo “verdadeira” ou “revolucionária”. A democracia era associada
com as esperanças não realizadas — sociais bem como políticas — da tradi­

151 Citado do primeiro panfleto de Adams sobre política de 1774 ( Works, vol. rv, p, 193) em A. Ranney,
“‘The Divine Science’: Political Engineering in American Culture**, em The American Political Science
Review, 1976, mar., p. 142.
152 Cabet afirmou que “o partido do movimento ‘deve vencer ou perecer’”, em Révolution, p. 382.
442 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ção revolucionária francesa.153 O termo também adquiriu uma identificação


romântica com “o povo” no sentido de Lamennais, referindo-se às massas
desprovidas de privilégios e famintas.
Victor Considérant transformou o fourierismo em um novo movimento
político socialista ao mudar o nome do seu jornal de Falange para Demo­
cracia Pacífica. Falava da necessidade de um “partido social” para atender
às necessidades de uma “democracia moderna”.154155 Foi tendo por rival o
Manifesto da Democracia Pacífica de Considérant que Karl Marx escreveu
seu Manifesto Comunista ao fim de 1847. Marx estava empenhado em criar
justamente um tal “partido social” ideológico — mas que fosse revolucionário
e não pacífico, comunista e não socialista. Assim como Considérant, contudo,
Marx acreditava que seu novo partido também seria democrático em certo
sentido. Foi a organização internacional Democratas Fraternos, de Bruxelas,
que inseriu Marx nas discussões sobre comunismo junto a Weitling e outros, e
foi nos prédios dos Democratas Fraternos em Londres que a Liga Comunista
continuou a se reunir até que viesse a repressão policial no verão de 1848.103

Democracia renovada

A idéia de que o comunismo era a realização da democracia empolgou uma


nova geração de publicistas revolucionários franceses no início dos anos 1840.
Quanto mais autoritários os primeiros autores comunistas se mostravam em
seus planos, mais insistiam na natureza “democrática” desses planos. Pierre
Lerroux tomou a dianteira, proclamando que a democracia total era a única

153 Em 1839, Cabet incluiu na sua própria definição de democracia a “melhoria material, intelectual e
moral das condições das classes menos afortunadas [...] melhoria progressiva, contínua e incessante,
sem outro limite que não o do possível”. Da introdução de sua Histoire populaire, citado em Angrand,
“Notes”, p. 40.
A. Ledru-Rollin, o líder dinâmico do novo partido “radical” na assembléia francesa, falou em nome
da “democracia revolucionária” no seu Manifesto to the Workers de 1844 (discutido em Kayser,
“Batailles”, p. 26, nota a).
154 Argumentando que “a palavra democracia ainda não foi corrompida” e que ela detinha “poder
incomparável”, Considérant foi além do seu ainda popular Manifesto da Escola Societária de 1841
com o seu Manifesto da Democracia Pacífica no primeiro número do seu jornal de Io de agosto de
1843. Originalmente intitulado Manifeste Politique et sociale, foi republicado duas vezes em 1847
com o nome de Principes de socialisme. Manifeste de la démocratie au xixe siècle, logo se tornando
um modelo e um desafio para Marx. V. M. Dommanget, Victor Considérant. Sa vie, son oeuvre,
1929, pp. 24,22, e sua descrição de Considérant como um anti-revolucionário que não era, contudo,
um contra-revolucionário, pp. 131-136.
155 B. Nikolaevsky, “Towards a History of ‘the Communist League’, 1847-1852”, em International
Review of Social History, vol. i, parte 2, 1956, pp. 241-242. O relatório das atividades da Liga em
Londres no início de 1848, que vai apenso a esse artigo, revela que em Londres havia 84 membros;
já a Associação dos Trabalhadores dentro da qual ela operava tinha 179, ibid., p. 241.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 443

sanção possível para a autoridade moderna e insistindo que a democracia


era não apenas uma “palavra sagrada”,156 mas uma “religião”157 capaz de
garantir “uma solução pacífica do problema do proletariado”.158 Por meio
de sua Revue Indépendante nos anos 1841-1848, levou para o jornalismo
popular George Sand e Louis Blanc.
Os novos jornalistas radicais estavam tendo dificuldade, todavia, em tra­
duzir esse símbolo sagrado — democracia — em realidade política. Théophile
Thoré foi atirado à prisão em 1840 por dizer A Verdade sobre o Partido
Democrático, isto é, que ele deve servir ao “interesse das mais numerosas e
necessitadas classes, dos trabalhadores”.159 Convencido de que muitos “co­
munistas pertencem à grande corrente democrática”,160 Thoré perseverou em
sua tentativa de ligar os dois movimentos por meio do jornal de Leroux161
— assim provocando uma reprimenda do possessivo Cabet, O Democrata
tornado Comunista Contra a Sua Vontade.162
Foi do L'Humanitaire e do La Fraternité, os mais radicais dos novos jor­
nais comunistas surgidos em 1841, que primeiro veio a sugestão inequívoca
de que o “partido democrático” deveria na era moderna ser um “partido
comunista”. A maior parte desses primeiros comunistas tinha pouco mais
de 20 anos de idade. Sentiam que tinha sido quebrada a promessa de 1830
e que até os seus mentores mais velhos, Cabet e Leroux, corriam o risco de
“decapitar o futuro”.163 Soa apropriado que o primeiro uso da expressão
Partido Comunista pareça ter sido em um jornal do jovem Dézamy anuncian­
do a morte do último e velho companheiro de armas de Buonarroti, Voyer
D’Argenson, em agosto de 1842.164

156 L'Éclaireur de ITndre, 6 de dezembro de 1844, citado em Evans, p. 129.


157 Revue Encyclopédique, 1832, ago., citado em Evans, Socialisme, p. 78.
158 Subtítulo do novo jornal que fundou e editou de 1845 a 1850: Revue Sociale, ou Solution Pacifique
du Problème du Prolétariat,
159 La Vérité sur le parti démocratique, 1840, p. 11. A obra foi dedicada “Aux prolétaires”.
160 Vérités, p. 29.
161 Seu “Communism in France”, em Révue Indépendante, é pormenorizado junto a outros artigos em
Prudhommeaux, p. xxi.
162 Le Démocrate devenu Communiste malgré lui ou réfutation de la brochure de M. Thoré intitulée:
“Du Communisme en France”, 1847, originalmente publicado em Populaire, 1842, set. Hess traduziu
o artigo a partir de uma versão belga, deixando-o manuscrito, Der Communismus in Frankreich,
von Thoré; Silberner, Works, p. 90.
163 Procès de Thoré, p. 35.
164 Citado em Prudhommeaux, p. 19.
444 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

Uma aliança franco-germànica

Quanto aos jovens hegelianos na Alemanha, foi só quando começaram


a observar os seus pares na França que se tornaram verdadeiramente revo­
lucionários.165 O elo original entre os jovens hegelianos e a nova geração de
revolucionários sociais franceses foi Moses Hess, o correspondente em Pans
de Die Rheinische Zeitung, Ele havia sugerido que a inclinação alemã para
a liberdade filosófica só poderia ser realizada mediante a igualdade social
defendida pelos franceses,166 e teve intenção nos anos 1830 de escrever uma
biografia de Babeuf.167 Influenciado também pelos saint-simonianos, advogou
em seu Triarquia Européia^ de 1840, uma aliança progressiva da Prússia com
a Inglaterra e a França.168 Foi então atraído por Cieszkowski para o grupo
dos jovens hegelianos.169 Um nova série de artigos em 1841, a começar com
“Socialismo e Comunismo” e “A Filosofia da Ação”, lançou o longo esforço
de criar uma base filosófica para o comunismo.170 Judeu — e depois um dos
pais fundadores do sionismo —, Hess emprestou à sua crença no comunis­
mo um fervor messiânico que vislumbrava à frente não só uma mudança de
governo, mas uma espécie de “fim dos tempos” político.
Alguma fusão criativa das principais fontes de inspiração revolucionária,
as tradições francesa e alemã, era uma possiblidade especialmente acalenta­
da pelos russos. Em 1840, Belinsky saudou Heinrich Heine, o poeta radical
alemão que vivia em Paris, como um “alemão francês — precisamente aquilo
de que agora a Alemanha precisa acima de tudo”.171 As convocações a uma
insurreição violenta feitas por Bakunin foram publicadas com um pseudô­

165 Conservadores que se opuseram aos primeiros escritos anti-religiosos dos jovens hegelianos os
chamaram, muito antes que eles próprios assim se chamassem, de “esse partido” e de “uma nova
edição” dos “heróis da Revolução Francesa”. H. Leo, Die Hegelingen, Halle, 1838; citado em
McLellan, Hegelians, pp. 13-14 e (sem atribuição precisa da fonte) p. 24.
166 M. Hess, Aufsätze, pp. 199-202, citado em McLellan, p. 148.
167 Dalin, “Historiographie”, p. 75.
168 Sugerido no livro A reorganização da comunidade européia de Saint-Simon, de 1814 (Markham,
pp. 63-68), e desenvolvido no programa de O Globo, que falava de urna tripla aliança da ciência
alemã, da indústria inglesa e da moralidade francesa (Weill, L’École, pp. 68-69).
169 Hess associava Hegel a Saint-Simon e Fichte a Proudhon.
170 Depois publicado em 21 Bogen aus der Schweiz', reimpresso em Hess, Aufsätze; e discutido em
McLellan, p. 147 ss. Sob alguns aspectos, a “filosofìa da ação” (ou “dos fatos”) parecia ter sido
advogada pelo próprio Hegel por um breve período após a conclusão da Fenomenologia, enquanto
atuava como editor de Die Bamberger Zeitung. V. W. Beyer, Zwischen Phänomenologie und Logik.
Hegel als Redakteur der Bamberger Zeitung, Frankfurt/Main, 1955, pp. 86-108.
171 Belinsky, Polnoe sobranie, 1959, vol. xn, p. 13, citado em Volodin, p. 139. Belinsky estava comparando
Heine a Schiller, o poeta laureado perpétuo dos revolucionários eslavos.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 445

nimo francês no Anuário Alemão de 1842. Alexander Herzen, outro russo,


futuro amigo e eventual colaborador de Bakunin, saudou esse artigo como
prova de uma nascente aliança entre a política francesa e a filosofia alemã,
“o início de uma grandiosa fase de ativação (betãtigung}” do movimento
revolucionário europeu.172
O editor do Anuário Alemão, Arnold Ruge, expressou a esperança de que
o artigo de Bakunin fizesse “ alguns preguiçosos levantar-se de suas camas de
lauréis” e começassem a trabalhar por “um grande futuro prático”.173 Ruge
desempenhou papel central entre os mais velhos dos “jovens” hegelianos,
trazendo consigo uma aura de martírio por ter passado a maior parte da
década de 1820 na prisão. Sua rápida sucessão de experimentos jornalísticos
se tornou o veículo dessa “filosofia da ação”, assim como antes tratados e
palestras tinham servido de veículo para a filosofia “contemplativa” alemã
anterior.174 O seu Anuário de Halle tornou-se o Anuário Alemão, o qual por
sua vez fez surgir entre seus seguidores, no fim de 1841, o Die Rheinische
Zeitung-, um desafio proposital, no mundo jornalístico, ao conservador
Kölnische Zeitung. Em 1843, Ruge começou a dar ao “partido” hegeliano
uma linha política revolucionária ao buscar “limpar” o hegelianismo do libe­
ralismo moderado do próprio Hegel e ao incitar a Alemanha a “transformar
liberalismo em democracia”.175
Assim ele apresentou aos alemães a técnica polêmica dos comunistas fran­
ceses de opor a verdadeira democracia ao falso liberalismo. Logo foi forçado
a iniciar uma hégira de hegelianos até Paris. Fugiu da Prússia em 1841, só

172 Herzen, Polnoe sobranie, voi. ii, p. 257.


173 Citado por Walicki, em Annali, vol. vi, p. 111.
174 Discutido por Walicki, em Annali, vol. vi, p. 121; v. também a compilação exaustiva feita por A.
Zanardo, “Arnold Ruge giovane hegeliano 1824-1849”, em Annali, vol. xii, 1970, pp. 189-382; e
A. Cornu, Karl Marx et Friedrich Engels, leur vie et leur oeuvre. Tome premier. Les annés d}enfance
et de jeunesse. La gauche hégélienne, 1818/1820-1844,1955, esp. p. 172.
175 “Selbstkritik des Liberalismus”, em Deutsche Jahrbücher, 2 de janeiro de 1843, citado em McLellan,
p. 25; v. também pp. 28-32.
Um dos ex-apoiadores de Ruge se queixou, naquele mesmo mês, de que “o conceito de partido saiu
da igreja, passou pelas belas letras e pela filosofìa acadêmica, alcançando estatuto próprio”. Üben
den Begriff der politischen Partei, Königsberg, 1843, p. 13.
Mais uma vez ocorreu empréstimos entre os extremos da direita e da esquerda. O conceito de um novo
partido ideológico foi antes proposto pela direita com uma feição bem próxima da que seria depois
adotada pela esquerda. Victor-Aimé Huber; que havia lutado do lado do exército revolucionário
espanhol em 1823, foi convertido da militância revolucionária para o pietismo conservador e
publicou, em 1841, uma defesa de um partido político conservador de base ideológica. V. o seu
Über die Elemente, die Möglichkeit oder Notwendigkeit einer konservativen Partei in Deutschland,
Marburg, 1841; também J. Droz, “Victor-Aimé Huber: un conservateur social du milieu du xixe
siècle”, em Archives de Sociologie des Religions, 1960, jul.-dez., pp. 41-48.
446 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

para ser banido da Saxônia (e ver o Rheinische Zeitung ser fechado) no iní­
cio de 1843. Depois se mudou para Zurique e em seguida (depois de pensar
em ir para Estrasburgo ou Bruxelas) para Paris, onde junto com Karl Marx
fundou em 1844 o efêmero Deutsche-Französiche Jahrbücher. Animado como
a maioria dos alemães com a atmosfera parisiense, Ruge argumentava que
os jovens hegelianos iriam na nova era da práxis estabelecer a organização
política e a educação crítica de uma vindoura revolução social.

Entra em cena Karl Marx

O homem que chegou mais perto de realizar essa tarefa foi um jovem
jornalista apadrinhado por Ruge, Karl Marx. As obras decisivas nas quais
isso se realizou foram a extensa crítica de Marx à Filosofia do direito de
Hegel, escrita no verão de 1843, e sua introdução, datada do ano seguinte,
a essa mesma obra. Ao criticar a última e mais política obra de Hegel, Marx
aplicou pela primeira vez o seu assim chamado método transformativo —
invertendo a relação entre matéria e espírito — à política. Em sua introdução,
empregou “proletariado” e “comunista” pela primeira vez como rótulos de
libertação.176
Hegel defendera que acima da “sociedade civil” subjetiva existe um objetivo
social mais elevado e mais universal: o Estado. A identificação do Estado como
“a marcha de Deus ao longo da história” pode representar um entusiasmo
excessivo do ouvinte cujas notas sobre o curso de Hegel foram postumamente
transformadas em Filosofia do direito. Hegel estava falando de um ideal, em
vez de um Estado alemão existente. Seja como for, Hegel de fato divisava uma
missão de libertação universal para o Estado e para sua empenhada “classe
universal” {der allgemeine Stand)-, a burocracia desinteressada.
Marx virou de cabeça para baixo essa análise ao começar a tratar dos esta­
dos tais quais eles realmente existiam em 1843. Hegel tinha visto a sociedade
civil como a antecipação imperfeita de um estado ideal. Marx descreveu o
estado como expressão degradada de interesses materiais dirigentes da “so­
ciedade civil” — o termo bürgerliche Gesellschaft agora a adquirir algumas
das ressonâncias de sociedade “burguesa” e “civil”. A burocracia estatal era
antes o agente de interesses venais do que de qualquer missão universal.
176 Esta interpretação se baseia em boa parte em S. Avineri, The Social and Political Thought of Karl
Marx, Cambridge, 1968, pp. 45-64. V. também a discussão em Kolakowski, Main Currents, vol.
I, pp. 81-181, que só veio a ser publicado em data avançada demais para que eu ainda o pudesse
utilizar nesta §, mas cobre o assunto com ainda maior detalhe e da perspectiva analítica distinta de
um filósofo marxista revisionista; também pp. 9—80 sobre a pré-história do conceito de dialética.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 447

O conceito de “classe universal” foi revivido um ano depois na introdução


de Marx à obra de Hegel e aplicado ao “proletariado” — um termo que Marx
foi o primeiro a empregar com esse sentido puramente filosófico, hegeliano.
A “abolição da propriedade privada”, que o proletariado deveria realizar,
não estava inicialmente relacionada com qualquer análise do capitalismo
como um todo ou do proletariado em particular.
A missão libertadora do proletariado, contudo, relacionava-se de perto
com o estabelecimento da “verdadeira” democracia mediante sufrágio uni­
versal. A sociedade civil venal controlava o estado por meio da instituição
da propriedade, e mesmo formas avançadas de governo representativo
mantinham o requisito de propriedade para conceder o direito de voto. O
sufrágio universal iria acompanhar e assegurar o advento da propriedade
universal. A abolição (Aufhebung^ que também significa soerguimento e
transformação) da propriedade também envolveria a abolição do Estado.
Assim como no caso do termo proletariado, Marx foi o primeiro a empregar
o adjetivo “comunista” nesse contexto politico-filosofico. A abolição do velho
sistema político por meio do sufrágio universal iria, Marx insistia, “revelar
os verdadeiros aspectos comunistas dos homens”.
Assim, Marx relacionou a conquista do comunismo à causa do sufrágio
universal. Ao mesmo tempo, a universalidade que Hegel esperava realizar no
estado ideal agora deve ser realizada antes por meio da abolição do estado
existente. Assim como outros hegelianos radicais, Marx sonhava com uma
política que acabasse com toda política. O conceito hegeliano de “classe
universal” a guiar a humanidade até um milênio terrestre em meio a um
choque de opostos foi mantido:

Assim como a filosofia encontra as suas armas materiais no proletariado, de igual


modo o proletariado acha suas armas intelectuais na filosofia... A filosofia é a
cabeça dessa emancipação e o proletariado é o seu coração. A filosofia só pode
ser realizada por meio da abolição (Aufhebung) do proletariado, e o proletariado
só pode ser abolido por meio da realização da filosofia.177

O jovem Marx estava em busca de compensação cósmica para a frustra­


ção política. O governo prussiano havia falhado em atender às exageradas
esperanças hegelianas de que ele se tornasse “a encarnação da moralidade
objetiva”.178 Conseqüentemente, todo governo — na verdade a própria idéia
177 Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie, Einleitung, do Deutsche-französische Jahrbücher,
1844, em Werke, vol. i, p. 391.
178 Descrição feita por McLellan, p. 22.
448 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de governo — tinha de ser superado. Foi principalmente Moses Hess que deu
conteúdo social a essa visão escatologica. Através do refinamento que Hess
imprimiu a Proudhon, Marx primeiro compreendeu a propriedade privada
como causa básica da degradação do homem e da ineficácia de reformas
políticas na sociedade burguesa.179180
Foi também Hess que apresentou Marx em 1843 ao seu colaborador de
toda a vida, Friedrich Engels, o qual chamou Hess de “o primeiro comunista
do partido” e “o primeiro a chegar ao comunismo por uma via filosòfica”.^
Junto a Engels, Hess desenvolveu precisamente o conceito filosófico de um
partido comunista. Desdobrando a idéia de Hess de uma “triarquia européia”
em uma série de artigos de 1843, Engels insistia que um movimento comu­
nista alemão surgiría não da classe trabalhadora “relativamente pequena”,
mas “entre as classes instruídas”.181
Hess e Engels começaram a desnacionalizar o ideal revolucionário acres­
centando perspectivas francesas e inglesas às dos hegelianos berlinenses. Hess
tentou lhe emprestar um ar transnacional ao publicar em 1844, no jornal
parisiense Vorwärts 9 o primeiro de uma série de catecismos comunistas.182
A contribuição especial do jovem Marx no período de 1844-1845 foi
identificar a concepção ainda idealista de partido comunista com as pretensões
da ciência e o destino do proletariado. A idéia de um socialismo “científico”
baseado no materialismo histórico e uma rígida teoria de classes foram “única
e exclusivamente”183 obra de Marx — assim insistiu Engels mais tarde.
A primeira etapa de realização dessa obra deu-se com o rompimento de
Marx com Ruge acerca do sentido de uma derrotada revolta de tecelões na
Silésia em 1844. Ruge, o doyen dos jornalistas radicais hegelianos, defendia
uma melhor organização política e a educação dos trabalhadores. Marx, ao
contrário, incitava ao estudo mais profundo das causas da pobreza e a uma
maior fé na missão universal do proletariado alemão. Os membros do prole­
179 Ibid., pp. 146, 152.
180 Werke, vol. i, p. 494; McLellan, Hegelians, p. 147; L. Schwarzschild, The Red Prussian. The Life
and Legend of Karl Marx, NY, 1947, pp. 70—74; e G. Mayer, Friedrich Engels in seiner Frühzeit.
1820 bis 1851, 1920, pp. 104-123, e ainda referências a outros materiais, pp. 410,414-416.
181 Citado em Riazanov, Ocherki, pp. 105—106. V. também todo o artigo “Yunosheskie raboty Engel’as*’,
pp. 99-106. M. Rubel faz remontar a idéia moderna de um partido comunista (à época chamado
“partido de Marx”) aos escritos de Hess sobre a controvérsia de Marx e Weitling de 1846. “La
charte de la première internationale”, em Mouvement Social, 1965, maio-jun., p. 4, nota 2.
182 Kommunistisches Bekenntnis in Fragen und Antworten, reimpresso a partir de uma reedição de
1846 em Philosophische und sozialistische Schriften, 1837-1850, 1961, pp. 359-368.
183 Riazanov, p. 105.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 449

tariado estavam destinados a se tornar os teóricos do movimento proletário


mundial, assim como os ingleses se tornariam seus líderes econômicos e os
franceses, seus líderes políticos.184
Em A sagrada família^ publicado no mesmo ano, Marx rompeu de vez com
os hegelianos — e, em conseqüência, com o seu próprio intelectualismo prévio.
Ele tomou como modelo, desta vez, o reprimido movimento de trabalhadores
alemães liderado por Weitiling na Suíça. Dois anos mais tarde, denunciou o
comunismo cristianizado de Weitling (e, de modo mais amplo, o idealismo
sentimental) em A ideologia alemã. Marx empregou “ideologia” como ter­
mo ofensivo para designar os auto-enganos dos intelectuais alemães. Mas
ele próprio estava, por sua vez, criando uma ideologia no sentido moderno:
um sistema secular de idéias baseado numa teoria da história que prometia
afinal respostas para todos os problemas humanos.
O “partido comunista” para o qual Marx logo escreveu seu manifesto
era “ideológico” nesse último sentido. As polêmicas de Marx com aparentes
aliados durante o período de formação do seu “partido” refletiam seu desejo
pessoal de garantir para si uma posição pedagógica em relação ao emergen­
te proletariado análoga à que Hegel possuira em relação à emergente elite
prussiana numa geração anterior da Universidade de Berlim. Antes de aderir
à Liga Comunista, que se tornou o “partido” de Marx em 1847-1848, é im­
portante relatar a busca de Marx por um partido em que pudesse acreditar.
Essa busca corria paralela à sua busca filosófica e antecedeu sua descoberta
tanto do comunismo quanto do proletariado.
Em sua tese de doutorado de 1841, Marx depositou sua fé no “partido
liberal como o partido de um conceito... [que] realiza verdadeiro progres­
so”.185 Embora em pouco tempo se desiludisse com os liberais, não abraçou
de imediato aqueles que chamavam a si mesmos de socialistas e comunistas.
Esses lhe pareciam mais interessados em teorias econômicas do que em di­
fundir ativamente “um conceito”.186 No fim de 1842 Marx defendeu-se da
acusação de ser “comunista”,187 e insistiu no ano seguinte que o comunismo
era só “uma abstração dogmática... uma aplicação particularmente unilateral
do princípio socialista”.188

184 McLellan, p. 44.


185 Mega, vol. I, p. 65.
186 Mega, voi. vi, p. 191.V. M. Rubel, “Remarques sur le concept du parti prolétarien chez Marx”, em
Revue Française de Sociologie, 1961, vol. n, n° 3, pp. 166-176.
187 Werke, vol. i, p. 108.
188 Frühe Schriften, vol. i, p. 448.
450 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A mudança de Marx para Paris em 1843 o imergiu em história revolucio­


nária francesa, e sua amizade com Engels o conduziu ao estudo da economia
inglesa. Desprezado pelos radicais de carne e osso em Paris (com os quais
ele, Hess e Ruge tentaram colaborar no novo Anuário Germano-francési,^
Marx “descobriu” no distante proletariado alemão a força de libertação
revolucionária. Amadureceu aos poucos o pensamento de que uma há muito
ansiada passagem da teoria à prática pudesse de fato estar ocorrendo por
meio da “constituição do proletariado em uma classe”, coisa acerca da qual
Flora Tristan havia falado ao formar sua sociedade proletária internacional
em 1843: a union ouvrière.
Politicamente, a tarefa do proletariado era a conquista da democracia,
que havia sido comprometida pelo liberalismo. Ideologicamente, a missão era
concretizar a “emancipação humana” que está para além dos ganhos pura­
mente políticos das revoluções passadas:189
190 dar vida ao que Marx descreveu
em seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 como “humanismo
consumado” ou “naturalismo”. À época de sua expulsão de Paris em 1845.
descreveu tanto o seu objetivo quanto o da própria humanidade como o
“comunismo”.

Esse comunismo é como o naturalismo consumado que se iguala ao humanismo


que se iguala ao naturalismo...191

Uma ideologia pronta

O elemento novo e decisivo que Marx trouxe para o comunismo foi o


materialismo dialético. Eis aí, finalmente, uma ideologia revolucionária pronta
com uma perspectiva histórica dinâmica. Foi aperfeiçoada nos três anos que
ele passou em Bruxelas, de 1845 a 1848, os mais felizes de sua vida. Lá Marx
forjou o elo há muito buscado entre a França e a Alemanha. Mas não foi
tanto uma aliança de forças ativas, como divisada por Hess e Ruge, quanto
uma mescla de elementos das duas ideologias universais da era anterior: o
saint-simonismo e o hegelianismo.
Filosoficamente, Marx recorreu basicamente a três novas atitudes caracte­
rísticas dos radicais hegelianos de início da década de 1840: o negativismo, o

189 Ruge, Zwei Jahre, vol. i, p. 69 ss.


190 T. Oizerman, “Problema revoliutsii v trudakh Marksa I Engel’sa perioda formirovaniia Marksizma”,
em Moskovsky universitet. Uchenye zapiski (fil. fak), voi. clxix, 1954, p. 34.
191 Frühe Schriften, pp. 593-594.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 451

materialismo e o ateísmo. Deve-se usar o próprio método dialético de Hegel


para explicar como essas idéias revolucionárias podem ser extraídas de um
professor prussiano patriota, politicamente moderado, filosoficamente idealista,
sinceramente luterano, como era Hegel. Parece mesmo um desenvolvimento
“irônico” de “antíteses”, por meio do qual a “astúcia da razão” expressava
o “espírito de época”.
Tendo depositado, no início, esperanças exageradas no estado prussiano,
os incansáveis jovens hegelianos racionalizaram sua desilusão no início dos
anos 1840 cultivando a idéia sublime de sua total destruição. Uma vez que a
história avança por contradições (a dialética “negação da negação”), e uma
vez que o estado havia se tornado uma força negativa, o dever histórico deles
era “negar” o estado.
Os hegelianos radicais também passaram do idealismo para o materia­
lismo filosófico em meados da década de 1840. Ludwig Feuerbach advogou
o pensamento de que o “espírito de época” de Hegel não era nada mais que
o conglomerado das forças materiais. “O homem é aquilo que ele come”,
argumentou valendo-se de um trocadilho particularmente deselegante (em
alemão: isst, “come”, ist, “é”). Feuerbach chegou ao ponto de explicar o
fracasso da Revolução de 1848 recorrendo aos efeitos embotadores da dieta
à base de batatas das classes mais baixas.192
Em agosto de 1844, Marx confessou ter “amor por Feuerbach”193 — um
sentimento que ele raramente expressava — por apontar o caminho filosófico
até o socialismo. Feuerbach substituiu o idealismo pelo materialismo, embora
ainda preservando uma visão monista e determinista da história. O mate­
rialismo nos anos 1840 atraiu alguns daqueles que se preocupavam com a
industrialização no norte da Europa. Ao reafirmar o monismo e determinismo
de Hegel, Feuerbach solidificou a crença dos radicais de que a tensão entre
idéias morais e realidade material estava somente no nível das aparências.
Marx introduziu a idéia dinâmica de progressão dialética nesse monismo
materialista. Assim como outros determinismos metafísicos anteriores (o islã,
o calvinismo), o materialismo dialético proporcionava, paradoxalmente, um
chamado à ação. Suas Teses sobre Feuerbach, escritas pouco depois de sua
mudança para Bruxelas, eram para Engels “o primeiro documento em que

192 Sugeriu feijões como um substitutivo “viril”, revolucionário. V. L. Feuerbach, Sämtliche Werke, vol.
X, p. 23, citado em R. Binkley, Realism and Nationalism 1852-1871, NY, 1935, pp. 22-23.
193 McLellah, p. 106 ss.
452 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

se deposita o germe de um novo panorama do mundo”.194 Continha o seu


famoso dito: “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diversas
maneiras. É chegada a hora de mudá-lo”.195
Uma terceira zona de empréstimos tomados aos hegelianos radicais é o
ateísmo de Marx. Ao passo que Hegel havia identificado Deus com a tota­
lidade da história, seus discípulos tomaram Deus totalmente fora dela. Em
certo sentido, Hegel tinha preparado o caminho ao colocar a filosofia acima
da religião e ao subordinar todos os deuses ao seu conceito de um “espírito
do mundo” que tudo dirige. Os contemporâneos viam isso como equivalente
a ateísmo; e “a veemência dos ataques desferidos de alas religiosas contra
Hegel talvez possa ser comparada à reação a Darwin na Inglaterra”.196
A luta contra a religião, a causa original em torno da qual os jovens hege­
lianos pré-políticos tinham se reunido em 1837-1838,197 alcançou um nível
mais alto de sofisticação no livro de Feuerbach A essência do cristianismo,
de 1841. Feuerbach distinguia a “essência verdadeira ou antropológica da
religião” (a necessidade que o homem possui de um propósito moral mais
elevado) de sua “essência falsa ou teológica” (a crença em Deus). Marx
distanciou-se apenas do esforço de Feuerbach para criar uma nova religião
secular. Embora religiosa em sua natureza, a ideologia de Marx jamais
poderia ser religiosa em seu nome. A insistência de que ela era “científica”
ajudou a protegê-la do fluxo e refluxo de entusiasmo que empestava doutri­
nas revolucionárias rivais. Lênin depois rejeitou as tendências de “construir
Deus” dentro do seu movimento, e marxistas-leninistas posteriores rejeitaram
continuamente lealdades religiosas de quaisquer espécies em seus quadros.
Feuerbach preparou o caminho para o ateísmo revolucionário ao inventar
a crença hegeliana de que Deus criou o homem como um produto de sua
necessidade espiritual de superar a alienação divina. Feuerbach sugeriu, ao
contrário, que o homem havia criado Deus como um produto de sua própria
necessidade material de superar a alienação humana. Para Marx, isso sugeria
194 Introdução à primeira versão publicada em 1888 em Werke, vol. xxi, p. 264.
195 11a tese, manuscrito reimpresso em McLellan, Karl Marx. His life and thought, NY, 1973, p. 141.
O início da disseminação primeiro da visão feuerbachiana e depois da visão marxista de 1845 em
meio aos emigrados alemães está documentada, para os casos da França e da Bélgica, em Karl Grün,
Die soziale Bewegung in Frankreich und Belgien, Darmstadt, 1845.
196 S. Avineri, “Hegel Revisited”, em Journal of Contemporary History, vol. il, 1968, n° 3, p. 140.
197 A seriedade dos interesses religiosos e a prioridade das preocupações religiosas sobre as preocupações
sociais entre os jovens hegelianos são enfatizadas em W. Brazill, The Young Hegelians, New Haven,
1970. Críticos hostis de fins dos anos 1830 os consideraram tanto pró-judaicos quanto anticristãos
(Avineri, pp. 139-142).
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 453

que a alienação deveria ser resolvida não por forças espirituais, e sim por
forças materiais. Tanto a fonte quanto a cura residem na economia política;
sua força dirigente não vinha de idéias, e sim de classes sociais. A classe do
futuro — a classe para acabar com todas as classes — era o proletariado,
surgido inevitavelmente do conflito entre a ordem burguesa e a ordem me­
dieval. Toda alienação será superada — e cessará toda necessidade de deuses,
a qual mascara a repressão — quando o proletariado superar sua alienação
dos meios de produção que não lhe pertencem.
Assim, a revolução social tão ampiamente discutida na década de 1840
— o confisco forçado de todos os meios de produção — se tornou na análise
de Marx o ato inevitável, necessário e culminante de toda a história. Marx
tornou-se o primeiro a defender de maneira coerente que a revolução social
deveria ser feita não só para o proletariado, mas também pelo proletariado.
O intelectual em busca de “relevância” só pode atingi-la por meio da classe
trabalhadora.
Marx enxertou algumas das principais crenças saint-simonianas em sua
visão hegeliana da história: o potencial libertador da Revolução Industrial,
a necessidade de uma análise “científica” da sociedade de classes, o destino
histórico “da classe mais pobre e mais numerosa”. Os escritores alemães com
os quais ele e seus amigos aprenderam sobre a Revolução Francesa — Hess
ao fim dos anos 1830, Stein no início dos 1840 — tinham ambos dado es­
pecial importância ao saint-simonismo. Mais ainda, a cidade natal de Marx,
Trier, tinha sido um centro dos novos ensinamentos dos saint-simonianos.198
O pequeno grupo de emigrados alemães a que Marx buscou transmitir sua
ideologia representava uma autêntica intelligentsia revolucionária — eram mais
coerentes que os saint-simonianos de uma década anterior, e mais explicitamente
revolucionários. O método dialético oferecia segurança contra a desilusão; o
materialismo garantia relevância em um período de tensão socioeconomica;
e, mais importante que tudo, Marx era um líder ideológico incansável.
Karl Marx permaneceu basicamente um intelectual hegeliano — sempre
relacionando partes individuais de sua análise com um contexto mais amplo,
escrevendo com interesse voraz, mas com sobriedade emocional, sobre uma
variedade impressionante de assuntos. A mescla de idéias saint-simonianas
com outras teorias sociais anglo-francesas ajudou Marx a trazer Hegel de
volta “do céu azul para a cozinha”.199
198 Fakkar, esp. pp. 98-103; G. Gurvitch, “Saint-Simon et Karl Marx”, em Revue Internationale de
Philosophie, xix, 1960, n° 53-54, p. 399 ss.
199 Carta de Belinsky a Stankevich, 2 de outubro de 1839; em Belinsky, Polnoe sobranie, vol. xi, p. 387.
454 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

Fundando o Movimento

Mas onde estavam a tropas do exército ideológico de Marx? Havia alguém


disposto a segui-lo?
Weitling, o alfaiate itinerante de Magdeurg e Paris, formou entre os ale­
mães na Suíça o primeiro grupo de trabalhadores a se declararem comunis­
tas. Mudando-se para Londres, iniciou em fevereiro de 1845 uma discussão
intermitente, que se estendería por um ano, com a facção de imigrantes mais
moderada de Schapper. Weitling defendia que chegara a hora da revolução,
a qual poderia ser feita em aliança com os criminosos e os jovens, por um
lado, e com reis e príncipes, por outro.200201
O grupo de Schapper defendia que
se confiasse na educação comunista das classes trabalhadoras e rejeitava a
disposição de Weitling a tolerar a violência e “o comunismo dos príncipes”
(fürstenkommunismus}™ Mas Weitling argumentava que “a simples propa­
ganda de nada serve”202 e que ela não seria eficaz a menos que prometesse às
pessoas uma revolução social para logo, que elas ainda vivenciassem.
Schapper, por outro lado, dizia que o comunismo deve fortalecer a ha­
bilidade de “cada um desenvolver-se livremente”,203 e que “um verdadeiro
sistema será desenvolvido pelos nossos filósofos alemães”.204
O caminho estava livre para que Marx e Engels abrissem uma nova via
entre a militância de Weitling e o moralismo de Schapper. Parecem ter se
inspirado um pouco em antigos amigos e discípulos de Buonarroti, tendo
Bruxelas por canal de atuação. Planejaram publicar uma tradução alemã de
História da Conspiração de Babeuf^ que Buonarroti havia publicado naquela
cidade, e adotaram a oposição buonarrotiana entre “egoístas” e “comunis­
tas”.205 Quando de sua visita a Londres de 12 de julho a 20 de agosto de
200 Nettlau, “Londoner Discussionen”, pp. 368, 376, 379.
201 Ibid., p. 380. A expressão é de H. Bauer, o principal apoiador de Schapper nas discussões; o principal
apoiador de Weitling era Kriege.
202 Ibid., p. 368. Esperar que a classe operária esteja pronta é simplesmente “esperar que os pombos
assados voem até nossas bocas”.
203 Ibid., p. 382. Brincando com o título de Garantias de Harmonia e Liberdade, de Weitling, Schapper
não encontra “nenhuma garantia de liberdade” numa harmonia que seja demasiado soldatenmässig
[soldadesca] (p. 354).
204 Nettlau, “Discussionen”, p. 384.
205 Marx pode ter tomado essa distinção do jovem hegeliano Fröbel (McLellan, Hegelians, p. 34). Marx
divergiu do paralelo antes estabelecido por Feuerbach de “egoísmo e comunismo” como sendo
“inseparáveis como coração e cabeça” {Sämtliche Werke, Stuttgart, 1959, vol. li, p. 391). O único
articulador da Conspiração de Babeuf que ainda permanecia vivo pode ter sugerido bem mais que
uma afinidade geral ao afirmar, em 1845, que a História de Buonarroti “contribuiu, ou melhor,
fundou o Partido Comunista” (Savary, em La Fraternité, citado em A. Lehning, “Buonarroti’s Ideas
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 455

1845, tomaram uma posição elitista — ao evitar os briguentos trabalhadores


alemães e ao discutir colaboração internacional com intelectuais democráticos
radicais no pub Weber Street.206 Engels prolongou sua estadia, sozinho, em
razão do Festival Cartista da Nações, ocorrido em setembro. Entusiasmado
porque “um encontro cartista se tornou um festival comunista”, escreveu que
“democracia, em nossa época, é comunismo”.207 Contra esse pano de fundo
de associação com democratas burgueses em vez de com trabalhadores ale­
mães, Engels empregou pela primeira vez a expressão “partido proletário”.208
Marx trabalhou primeiro através do seu Comitê de Correspondência Co­
munista, em Bruxelas, uma organização composta por aproximados 1.500
escritores e compositores tipográficos bastante próximos de intelectuais
radicais belgas. Particularmente chegados a Marx eram Victor Tedesco, um
advogado natural de Luxemburgo que falava o dialeto baixo-alemão de Marx
e freqüentemente era seu companheiro de viagens, e Philippe-Charles Gigot,
cuja casa era utilizada para reuniões e como endereço postal.209
Os primeiros aliados estrangeiros do comitê foram os internacionalistas
cartistas Julian Harney e Ernest Jones, os quais fundaram em Londres a filial
Comitê de Correspondência, em março de 1846, apesar de suas desconfian­
ças para com “os personagens literários de Bruxelas”.210 Três meses depois,
Marx estabeleceu o seu primeiro elo organizacional com a comunidade alemã
de Londres. Ele não havia conseguido reunir adeptos entre os alemães da
Suíça, onde a influência de Weitling ainda era forte; e, apesar do enérgico
proselitismo de Engels, conseguiu conquistar não mais que uma parcela da
colônia de alemães em Paris (os carpinteiros de móveis). Depois de arrojar
Weitling aos Estados Unidos e de incompatibilizar-se com Proudhon no verão
de 1846, Marx e Engels buscaram aliados no grupo de Karl Schapper em
Londres, a Liga dos Justos.

on Communism and Dictatorship”, em International Review of Social History, 1957, n° 2, p. 282).


206 Um relato da reunião em The Northern Star, 23 de agosto de 1845, menciona somente a presença de
Engels, o que não chega a ser surpreendente, pois ele era bem mais conhecido na Inglaterra. Para um
relato dessa visita na qual Engels estabeleceu laços bem próximos com Harney, v. I. Bakh, “Novye
dannye o prebyvanii Marksa i EngePas v Londone v avguste 1845 goda”, em Is istorii sotsiaïno-
politischeskikh idei, 1955, pp. 479-482.
207 Werke, vol. li, pp. 613, 624.
208 Ibid., p. 613. Mais cedo naquele mesmo ano Engels estava falando para os alemães sobre “o partido
da comunidade” (ibid., p. 535).
209 Sçhwartzschild, pp. 132-134. Kuypers, “Marx en Belgique”, p. 413 ss.
210 McLellan, Marx, p. 171.
456 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

Desde 1840 esse grupo (embora menor que o braço parisiense da liga)
colocara-se à frente de duas associações educacionais de trabalhadores alemães
com cerca de quinhentos membros, entre emigrados franceses, escandinavos e
holandeses. A liga londrina estabeleceu contato formal com o comitê de Marx
em Bruxelas no dia 6 de junho de 1846, fazendo-o por meio de uma longa
carta de Schapper, Joseph Moll e sete outros “dos mais destacados dirigentes
comunistas locais”.211 Descreveram uma vida coletiva vigorosa: três encontros
por semana dos seus 250 membros (quase metade deles sendo não alemães),
reuniões bissemanais com o grupo de Harney (chamado de Democratas
Fraternos) e um programa educacional que incluía ensino de música e de
dança e uma pequena biblioteca com títulos em diversas línguas.212 Embora
preferisse o conceito de Marx de uma “revolução total [tüchtig]” baseada
em uma “revolução intelectual [geistige]” às “inanidades” não científicas de
Weitling, Schapper confessou ter antes temido que Marx alimentasse “o mal
superado ódio entre intelectuais e trabalhadores” e instalasse alguma nova
“aristocracia dos instruídos [Gelehrten-Aristokratie] para governar o povo
a partir de seu novo trono”.213214
Em outubro de 1846, Engels definiu “o objetivo dos comunistas” como
apoiar o proletariado contra a burguesia por meio de uma “revolução demo­
crática violenta” que acabaria com a propriedade privada e estabelecería uma
“comunidade de bens” (gutergenmeinschaft).114 A repressão policial ao braço
parisiense da liga forçou o grupo londrino a assumir a liderança internacio­
nal desse esforço. Em novembro de 1846, seus membros defenderam que se
formasse em Londres um “partido forte” em torno de um “credo comunista
simples, que pudesse servir de regra de conduta para todos”. Um congresso
da liga foi convocado para Io de maio de 1847, a fim de preparar para o ano
seguinte um congresso internacional dos “apoiadores do novo pensamento
[neue Lehre] oriundos de todas as regiões do mundo”.215
Esse chamado distinguiu três problemas urgentes a serem resolvidos no
congresso: (1) alianças com grupos burgueses radicais, (2) atitude em relação

211 Texto da carta com a grafia de Schapper, publicada pela primeira vez em Bund der Kommunisten.,
p. 347.
212 Ibid., pp. 348-349.
213 Ibid., p. 347.
214 B. Andréas, Gründungsdokumente des Bundes der Kommunisten (Juni bis September 1847),
Hamburg, 1969, p. 14. A valiosa discussão no prefácio a esses documentos recém-descobertos
infelizmente não oferece referências precisas.
215 Ibid., p. 18.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 457

à religião e (3) a unificação de todos os “partidos comunistas e sociais”.216 Em


janeiro de 1847, Moll partiu de Londres para fortalecer os laços com Marx em
Bruxelas e com Engels em Paris. Esses dois abasteceram o grupo londrino, ao
longo do ano seguinte, com respostas abrangentes a todas essas três questões.
Sobre a questão da unificação, Marx sugeriu que a unidade deveria se
basear em uma ideologia revolucionária — universalmente válida, mas
definida a partir de um centro. Censurou os “economistas”, que aceitavam
passivamente a lógica do desenvolvimento econômico capitalista, e os “so­
cialistas”, que se contentavam com experimentos privados.217 Somente um
claro reconhecimento do antagonismo básico entre burguesia e proletariado
prepararia este último para a “luta de classe contra classe, a qual levada às
últimas conseqüências é uma revolução total”.218
Marx empregou o início de 1847 na redação de seu Miséria da Filosofia,
escrito contra Proudhon. Era uma afirmação drástica de sua própria autoridade
contra a de um rival bastante conhecido, além de um texto de discussão da
“nova doutrina”. Ao fim de 1847, Marx chegou a Londres convicto de sua
visão de uma escatologia revolucionária. Tendo exposto a “miséria” de seu
principal adversário no continente, ele trazia agora as riquezas da filosofia
para a colônia alemã em Londres, a qual estava organizada em torno de
associações “educativas” e maravilhada com a tradição intelectual alemã.
Armados de sua ideologia, Marx e Engels agora passavam a oferecer solu­
ções aos dois outros problemas táticos que a Liga dos Justos enfrentava: as
atitudes para com a religião e para com o radicalismo burguês.
Sob vários aspectos, a questão da religião era a mais difícil. O proleta­
riado de Londres nunca tinha aceitado o ateísmo filosófico de Berlim e dos
intelectuais de Paris como Marx e Dézamy. No congresso da Liga dos Justos
realizado em Londres de 2 a 9 de junho, a velha idéia “utópica” de criar
uma “comunidade de bens” semi-apostólica ainda foi favorecida — junto à
exposição de “artigos de fé comunistas” sob a forma de catecismo. Ao que
parece, Engels foi o principal autor do credo do congresso de Londres, o qual
terminava desta forma: “Todas as religiões até agora foram a expressão de
etapas de desenvolvimento de povos individuais ou de massas de povos. O
comunismo, contudo, é o estágio de desenvolvimento que torna supérfluas
todas as religiões existentes e as abole”.219

216 Ibid.
217 Misère, pp. 487-489.
218 Ibid., p. 492.
219 Resposta à questão 22 no texto de Entwurf des Kommunistischen Glaubensbekenntnisses, em
458 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O verbo de Engels para “abolição”, o aufheben hegeliano, sugeria a elevação


para um nível superior de síntese. O tom era condescendente e intelectual.
Mas ainda não havia a declaração de uma clara visão de mundo alternativa.
O Manifesto Comunista pôs fim a um ano de discussões internas à Liga
dos Justos. A decisão de mudar o nome da organização para Liga Comunista
(e o primeiro emprego do lema “Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!”)
nasceu do congresso de junho, onde a influência de Marx ainda era pequena.
Discussões posteriores e a propagação da nova perspectiva marxista dentro
de alguns braços da liga parecem ter invertido a balança. Ao fim de outubro
ou início de novembro, Engels compôs para o braço parisiense os “Princípios
do Comunismo” com a finalidade de combater “A Confissão de Fé Comu­
nista” esboçada pelo braço londrino no mês anterior. Opondo-se à forma
de catecismo,220 Marx foi pessoalmente até Londres para tentar encerrar o
debate de uma vez por todas no segundo congresso da liga.
A perspectiva semi-religiosa de figuras como Schapper acalorou os deba­
tes, que se estenderam por dez dias. Mas Marx saiu por cima, e o primeiro
parágrafo do novo programa anuncia explicitamente que “o objetivo da Liga
é a queda da burguesia, o governo do proletariado... e a fundação de uma
nova forma de sociedade desprovida de classes e de propriedade privada”.221
Ao mesmo tempo, Marx também moldou a abordagem da nova liga ao
terceiro e último de seus problemas sem solução: a atitude em relação aos
partidos políticos burgueses radicais. Assim como outros comunistas dos
anos 1840, Marx se opunha ao passado de conspiração e segredo dos revo­
lucionários e definia o comunismo como a realização da democracia política.
Os argumentos a favor de uma aliança entre democratas e comunistas eram
particularmente persuasivos em Londres, onde a luta dos cartistas por di­
reitos civis parecia ajudar o trabalho educacional e organizacional da liga.

Gründungsdokumente, p. 58.
220 Werke, vol. iv, pp. 640, 237. Para o texto de Grundsätze des Kommunismus, de Engels, ibid., pp.
363-380. Ao que parece, o “Kommunistisches Glaubensbekenntnis” [credo comunista] de Schapper,
Moll e Bauer nunca foi publicado. A origem desse gênero provavelmente está no texto de Moses Hess
de 1844, Kommunistisches Bekenntnis. Entre os documentos recém-descobertos de Andréas, está um
texto de 22 perguntas e respostas para um Kommunistisches Glaubensbekenntnis, aparentemente
esboçado para o encontro do mês de junho da Liga (Gründungsdokumente, pp. 53-58). O corpo do
texto está escrito com a grafia litografada de Engels, mas está assinado pelo presidente do congresso,
Carl Schill, e pelo secretário, Heide. Ver, como acréscimo a Andréas, a discussão de Seleznev, “Novye
dokumenty”, pp. 27-29.
221 Gründungsdokumente, p. 22. Não é dada nenhuma referência. Para o texto, v. Werke, vol. iv, p.
596; para comentários a respeito, v. Lehning, “Association”, p. 198; Andler, Manifeste, pp. 39-42.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 459

A aliança prática entre revolucionários proletários e burgueses foi posta


em prática em Londres por meio dos laços de Engels com os cartistas. Para­
lelamente, o Comitê de Correspondência Comunista de Marx em Bruxelas
participava das atividades dos Democratas Fraternos Belgas, e havia assumido
a nova designação de comunistas democráticos de Bruxelas.222 Muitos de seus
membros se juntaram aos belgas locais para fundar a Associação Democrá­
tica de Bruxelas em 1847, tendo Marx como um de seus vice-presidentes. A
viagem de Marx a Londres, que o permitiu participar do segundo congresso
da Liga Comunista, foi viabilizada por meio de um convite dos Democratas
Fraternos de Londres à sua filial belga.223 A importância de uma frente unida
com as forças democráticas burguesas foi assim naturalmente enfatizada por
Marx. Depois de retornar de Londres, tornou-se presidente da Associação
Democrática de Bruxelas.224
A tática de cooperação com partidos democráticos foi explicitada na quarta
e última seção do Manifesto de Marx. Só os comunistas podem representar
os verdadeiros interesses de classe dos proletariados, mas eles necessitam se
aliar com partidos democráticos radicais nos países avançados — e com os
revolucionários agrários em lugares atrasados como a Polônia. Os comu­
nistas precisavam apoiar “todo movimento revolucionário contra a atual
ordem política e social”, mas ao mesmo tempo “colocar em destaque, como
a principal problema, a questão da propriedade”. Marx divisava tudo isso a
ser feito abertamente — e até certo ponto “com a concordância dos partidos
democráticos de todos os países”.225
Portanto, Marx proporcionou guiamento a respeito dos três problemas da
agenda original da Liga dos Justos em 1846. Ofereceu unidade ideológica,
rejeitou o idealismo religioso e sugeriu cooperação tática com os revolucio­
nários burgueses. Ilustrou sua crença na “união e concordância” de todos os
“partidos democráticos” no início da Revolução de 1848 ao dissolver o novo

222 Werke, vol. iv, p. 26.


223 Relato da reunião (na qual Marx conheceu Harney) em Northern Star, 4 de dezembro de 1847.
Para a interação entre esses movimentos, v. Engels, “The Revolutionary Movements of 1847”,
traduzido do jornal de Marx Brüsseler Zeitung, 23 de janeiro de 1848, em Riazanov, The Communist
Manifesto, L, 1930, pp. 272-285. No começo de 1847, o comitê de correspondência de Marx se uniu
formalmente à Liga dos Justos, a qual, no mês de junho, mudou seu nome para Liga Comunista e
(no único número de seu jornal a sair; em setembro) invocou pela primeira vez o bordão “Proletários
de todos os países, uni-vos! ”. V. K. Grünberg, Die Londoner Kommunistische Zeitschrift und andere
Urkunden aus den Jahren 1847/1848, Leipzig, 1921, p. 35; Lehning, “Association”, pp. 198-199.
224 Werke, vol. iv, p. 603.
225 Communist Manifesto, § iv, em Selected Works, vol. I, p. 241.
460 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

Comitê Central da Liga Comunista fundado em Paris sob sua presidência.


Justificou-se afirmando que o estabelecimento de liberdades civis totais na
Paris revolucionária tornava supérflua uma associação como essa.
Logo veio a desilusão com o rótulo democrático; mas muitos acreditaram
em 1848 que o comunismo era a democracia na esfera social. Assim como
“democracia” em 1789-1794, o “comunismo” em 1848 tornou-se uma
palavra bastante temida — usada para “amedrontar políticos amadores” e,
dessa forma, dirigindo-se a “todos os democratas honestos conscientes da
lógica do seu princípio”.226

Comunismo vs. socialismo

Durante a década de 1840, a palavra comunismo adquiriu um sentido


diverso de socialismo. Mas havia, isto é certo, muita confusão e superposição
de sentido entre uma palavra e outra. Alguns, como Marx, às vezes utili­
zam os termos de maneira intercambiável.227 De todo modo, a divulgação
agressiva da palavra mais nova pelos jovens jornalistas franceses e a auréola
do martírio ligada aos “julgamentos comunistas” do início daquela década
emprestaram uma aura especial ao termo.
De maneira geral, o comunismo era distinguido do socialismo por meio
de uma das seguintes formas, ou por todas elas.
Em primeiro lugar, comunismo sugeria um controle social mais abrangente
do que o socialismo — controle tanto do consumo quanto da produção. No
seu primeiro congresso de junho de 1847, a Liga Comunista advogou não
só a socialização dos meios de produção, mas também criar uma abrangente
“comunidade de bens” para “a distribuição de todos os produtos segundo o
acordo geral”.228 O comunismo era uma nova forma de vida compartilhada,
não apenas uma nova forma de controle social.229
226 Citações do artigo “Comunismo” no periódico fiorentino Tribuno delia Plebe, 20 de dezembro de
1848, em Presse ouvrière, pp. 234-235.
227 Essa confusão era particolarmente característica de certa literatura de denúncia bastante difundida,
a exemplo do livro de Alfred Sudre, Histoire du communisme ou réfutation des utopies socialistes,
1849 (que, à altura de 1856, havia tido cinco edições e traduções italiana e espanhola) e de um tratado
“anticomunista” escrito por um anônimo “amigo da ordem”: L’antirouge, almanach antisocialiste,
anticommuniste, 1851. A primeira discussão sistemática da diferença entre os dois conceitos
(“igualdade absoluta” vs. recompensas “proporcionais aos trabalhos”) foi feita por Lamennais em
1841: capítulo 15 do seu Du passé et de l’avenir du peuple. V. Saitta, Sinistra, p. 265. Os comentários
de Saitta sobre o emprego dos dois termos (p. 250 ss.) são os mais ricos disponíveis a respeito dos
casos da França, Alemanha e Itália.
228 Gründungsdokumente, pp. 21-22.
229 Ver, por exemplo, G. Gaeta, “Première orientation sociale du journalisme”, em Presse ouvrière, p.
234.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 461

Em segundo lugar, o comunismo foi cada vez mais associado a uma visão
de mundo científica e materialista, em contraste com o socialismo moralista e
idealista. Com uma intensidade crescente de Cabet a Dézamy, e deste a Marx,
os comunistas viam a futura ordem a emergir por uma necessidade objetiva
da verdade científica, e não em razão de qualquer apelo subjetivo a idéias
morais. A dedicação ao ideal comunal requeria o distanciamento de tudo o
mais: um desgosto, a beirar a repulsão, pela sentimentalidade romântica (a
forma degenerada do idealismo moral) e uma oposição militante à crença
em Deus (a fonte última do idealismo moral).230
Em terceiro lugar, o comunismo era ampiamente associado à violência
política, associação que raramente se fazia no caso do socialismo. Essa identi­
ficação estava presente desde o começo. Em 1840, quando um dos primeiros
comunistas tentou matar o rei, o julgamento relacionou os communistes
immédiats a meios violentos.231 Lammenais sustentou em 1841 que os comu­
nistas, diferentemente dos socialistas, tinham de realizar a “igualdade rigorosa
e absoluta”, e assim seriam forçados “de uma forma ou outra” a fazer “uso
da força, do despotismo e da ditadura para estabelecê-la e mantê-la”.232
George Sand observou que os socialistas, à diferença dos comunistas,
não “se preocupam talvez o suficiente com a luta aqui e agora”.233 Cabet, ao
relatar a história do comunismo em 1842, admitiu que suas origens estavam
menos no utopismo não violento que ele próprio proclamava do que na
tradição babeuvista de revolução “imediata e violenta”.234
A crença dos comunistas na inevitabilidade da ordem igualitária legitimava
a violência, se é que não conduzia a ela.235 Os comunistas argumentavam que

230 Lorenz von Stein via o “comunismo” como algo que, de algum modo, era objetivamente mais real:
“a condição da qual o socialismo é apenas um sintoma”. The History of the Social Movement in
France, 1789-1850 (ed. Mengelberg), Totowa, Nova Jérsei, 1964, p. 286. Trata-se de tradução da
terceira edição (1850) de uma obra publicada pela primeira vez em 1842. A § “Communism and
Its Relationship to Socialism” (pp. 282-287) diferencia os dois.
231 Johnson, Communism, pp. 74-75.
232 Lamennais, Du passé, citado em Saitta, p. 265.
233 “La politique et le socialisme”, em Éclaireur de l’Indre, 1844, nov., citado em Saitta, p. 255.
234 Cabet, Douze Lettres d’un communiste à un réformiste sur la communauté, 1842. Conservadores
como Saint-Marc Girardin viam os comunistas como “os bárbaros dentro” da civilização européia
(Souvenirs et reflections politiques d’un journaliste, 1858, pp. 143-144). V. “Les ‘barbares de
rintérieur’”, em O. Hammen, “1848 et le ‘Spectre du Communisme’”, em Contrat Social, 1958,
jul., pp. 191-200; v. também a manifestação explosiva de Gottfried Keller em julho de 1843: Legge,
Rhyme, p. 145.
235 C. Bouglé vê o comprometimento com o igualitarismo como a raiz das diferenças entre comunistas
e socialistas nos anos 1840 (Le Sociologie de Proudhon, 1911, pp. 35-36).
462 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a sociedade burguesa já estava praticando violência contra a humanidade.


Precisamente porque os comunistas viam a si próprios como construtores de
uma última comunidade livre de violência, sentiam-se justificados em realizar
um último ato revolucionário de violência. Em sua primeira declaração dos
“propósitos dos comunistas” em outubro de 1846, Engels declarou que eles
se “recusariam a reconhecer outros meios” de estabelecer a posse comunal
nas mãos do proletariado “que não a revolução violenta, democrática”.236
Victor Considérant, autor do manifesto socialista que rivalizava com o de
Marx, insistia que “o comunismo é antes de mais nada também uma idéia
negativa... Não sabendo como desfazer o nó górdio, corta-o”.237
Os socialistas russos tendiam a concordar. Em 1844 Herzen definiu o
comunismo como “basicamente uma nuvem escura e negativa, carregada de
relâmpagos, que tal como o julgamento de Deus irá destruir o nosso absurdo
sistema social a menos que os homens se arrependam”;238 e poucos anos
depois como “o socialismo da vingança... próximo à alma do povo francês,
que tem um tão profundo senso da injustiça da ordem social e tão diminuto
respeito pela personalidade humana”.239 Dentro da Rússia, o Dicionário de
Bolso do círculo fourierista de Petrashevsky listava o comunismo, em abril
de 1846, ao fim de uma série de grupos de oposição descendentes “do partido
de Milton” na guerra civil inglesa, indo além dos “radicais”.240 Sugeria-se
que a sociedade futura seria dividida entre “fourieristas” e “comunistas”,241
os quais diferiríam em razão daquilo que apontavam ser a fonte do mal —

236 Gründungsdokumente, p. 14. Dézamy defendeu “comunistas de todos os matizes” da acusação


de defenderem o uso da violência (Presse ouvrière, p. 137); e Marx e Engels elaboraram extensos
ataques, com finalidade de distração, contra republicanos revolucionários “sanguinolentos”, como
Karl Heinzen ( Werke, vol. iv, pp. 309-324, 331-359).
237 Le Socialisme devant le vieux monde ou le vivant devant les morts, 1848, pp. 59-60.
238 Polnoe sobranie, vol. m, p. 319. Essa definição de março de 1844 tem por precedente um uso
mais positivo, em descrição de Weitling e seus partidários suíços em novembro de 1843 (ibid., pp.
140-141), sendo o uso mais antigo que encontrei em língua russa.
239 Na sua décima segunda “Letter from France and Italy”, em Polnoe sobranie, vol. vi, pp. 116-117.
240 Citado de Karmany slovar*, vol. u, reproduzido em Evgrafova, Filosofskie, p. 294. O artigo em
“Opposition” listava outros termos aos quais seriam dedicados artigos subseqüentes. Nenhum
desses artigos jamais apareceu no seu dicionário incompleto e freqüentemente esópico. A entrada
para “Owenismo” (definido como “um sistema de cooperação mútua e comunidade de bens”) se
assemelha mais a uma exposição do ideal comunista (ibid., pp. 263-267).
241 K. Timkovsky para M. Petrashevsky, em Evgrafova, Filosofskie, pp. 378-379; também Delo
petrashevtsev, vol. i, p. 326, vol. m, p. 272. Esse contraste era mais ou menos um lugar-comum nos
anos 1840. Ver, por exemplo, o ensaio “Fourieristen und Kommunisten”, em Augsburger Allgemeine
Zeitung, 7 de maio de 1841, discutido em Klitzsch, Sozialismus, p. 33; e os comentários de Joseph
Rey sobre “fouriéristes et communistes” como dois tipos de “socialistes complètes”, em Appel au
ralliement des socialistes, p. 9.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 463

respectivamente, a competição e a propriedade privada.242 Mas o cerne da


diferença — nas palavras do próprio Petrashevsky — está no fato de que “o
fourierismo conduz gradual e naturalmente para aquilo que o comunismo
quer instituir à força e num instante”.243
O quarto critério pelo qual o comunismo era geralmente diferenciado do
socialismo ao fim dos anos 1840 era sua dependência para com o poder e a
autoridade da classe trabalhadora. Até mesmo Herzen, apesar de seu medo
do comunismo, dizia em 1844 que ele era “mais próximo das massas”.244

Da falta de lar à universalidade

Os pouquíssimos intelectuais que empurraram o campo revolucionário


social para o comunismo possuíam uma característica em comum: não tinham
onde morar. Geralmente não possuíam “nem castelos nem fazendas”245 e,
nas palavras de um estudante francês à época do surgimento do comunismo,
englobavam uma “espécie de proletário descrito pelo termo heimthlosen^ isto
é, pessoas que não possuem lareira ou lar”.246 A falta física de um lar com
freqüência aprofundava-se em alienação espiritual em razão de três carac­
terísticas partilhadas pela maior parte dos comunistas: são jovens, possuem
uma precocidade intelectual não recompensada e vivem na solidão do exílio.
Os comunistas mais extremistas eram extremamente jovens. O primeiro
banquete comunista de 1840 tinha sido organizado principalmente por
radicais que ainda não haviam completado vinte anos, e como uma espécie
de contra-banquete às noites mais respeitáveis promovidas por reformistas
eleitorais mais velhos. O ateísmo sistemático com que Dézamy rejeitou Cabet
(e com que Marx rejeitou Wetiling) expressava a rebelião dos bem moços
contra homens que às vezes tinham idade para ser seus pais.
A paixão ideológica de Dézamy e Marx também foi um canal para a
expressão de talento intelectual e ambição pessoal que não poderíam achar
quaisquer recompensas apropriadas na sociedade existente. Esses homens se
insurgiram contra os patriarcas do comunismo nos mundos francês e alemão
242 Ivan-Ferdinand Yastrzhemsky, discutido na tese de doutorado inédita de F. Bartholomew, “The
Petrashevsky Circle”, Princeton, 1969.
243 Petrashevsky, citado em Evgrafova, p. 379.
244 Herzen, Polnoe sobranie, vol. in, p. 319. Thoré, já em 1840, confirmava com seu testemunho. V.
Vérité, pp. 22-24; também Cuvillier, Hommes, p. 130.
245 Título do mais famoso tratado de Pillot, Ni châteux ni chaumières,
246 “Qui n’ont ni feu ni lieu”, C. Louandre, “Statistique littéraire de la production intellectuelle en
France depuis quinze ans”, em Revue des Deux Mondes, Io de outubro de 1847, p. 284.
464 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

buscando libertar o novo ideal do modo “utópico” de experimento social


característico de uma geração anterior.
Mas onde os jovens que rejeitavam a autoridade paternal e divina poderíam
encontrar um lar? No fim das contas, não no espaço, mas no tempo; não em
lugares geográficos, mas no fluxo da história. A ideologia histórica oferecia
uma compensação cósmica para a falta de um local preciso de moradia. 0
revolucionário social se tornou um peregrino sem terra santa, mas com uma
infalível visão da história.
A visão nasceu no exílio solitário. O caminho para o comunismo começou
com Buonarroti, um exilado italiano que foi da Córsega para a França, e daí
para a Suíça, e daí para a Bélgica. A organização comunista se iniciou entre
alemães exilados em regiões onde não se falava alemão: na Suíça de expres­
são francesa, na França, na Bélgica e, por fim, na Inglaterra. O comunismo
nunca deitou raízes dentro da Alemanha, nem mesmo durante os turbulentos
anos de 1848-1849, nem em imensas áreas da Suíça de expressão alemã
nem nos Estados Unidos. O comunismo revolucionário também se mostrou
mais forte entre franceses exilados depois de 1848 em Jersey e Londres do
que fora antes em Paris.
Os revolucionários sociais que formaram a Liga Comunista em Londres
eram intelectuais jovens, desenraizados e, em grande medida, desnacionali-
zados. O âmago eram alemães Heimathlosen cercados por uma miscelânea
de belgas que falavam flamengo, irlandeses anglicizados, suíços multilíngües
e escandinavos.
O jovem Marx, então com 29 anos, pôde se tornar um estadista já tarim­
bado em meio a esse grupo. Ele era o protótipo do intelectual deslocado: um
hegeliano berlinense que havia descoberto o pensamento social francês em
Paris e em seguida digerido economia inglesa durante um segundo exílio na
Bélgica. O “Partido Comunista” em nome do qual ele supostamente fala em
seu Manifesto existia apenas em sua imaginação profética. Esse “partido”
era uma espécie de pied-à-terre para uns poucos intelectuais apartados das
principais correntes da política européia às vésperas da revolução.
Marx não forneceu nenhuma rota de navegação para singrar sob as
tempestades que caíram no começo de 1848, poucas semanas antes da
publicação do Manifesto. Mas ele de fato encontrou um ponto de retorno
para a bússola: a vindoura sociedade sem classes. O movimento inexorável
rumo a esse objetivo substituiu e superou quaisquer considerações pessoais
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 465

ou sectárias. O lar do homem, nesse ínterim, não é nenhum castelo de areia,


mas o fluxo da própria história.
A fé numa libertação “universal” futura247 reforçou a fé de Marx no ma­
terialismo histórico. Em todos os papéis a que depois se dedicou — como
ativo conselheiro de revolucionários, como comentarista jornalístico dos
acontecimentos atuais e como um erudito a trabalhar no jamais concluído
O Capital —, Marx transmitiu a crença jubilosa de que os conflitos locais
necessariamente alimentam um processo que leva à revolução universal.
Suas esperanças estavam depositadas na Europa, onde a sociedade burguesa
e seu proletariado redentor eram mais avançados; e ele geralmente via um
sentido progressista na disseminação das instituições européias: instituições
sobretudo alemãs — mas também as francesas, inglesas e até russas, quando
à custa do atraso oriental.248 Mesmo em meio aos acontecimentos urgentes
em Colônia durante 1848-1849, os artigos de Marx no Neue Rheinische
Zeitung recorrentemente encontravam significância revolucionária em acon­
tecimentos remotos. Sobre a rebelião de Taiping, sugeriu em 1853 que “a
revolução chinesa acenderá uma fagulha na já sobrecarregada mina do presente
sistema industrial e causará a explosão de uma crise geral que há muito se
vem preparando, a qual, espalhando-se pelo exterior, será logo seguida por
revoluções políticas no Continente”.249
Poucos anos depois, um levante espanhol o levou a concluir que “a revo­
lução é iminente e assumirá de uma vez um caráter socialista”.250 Às vésperas
de sua morte, assassinatos na Rússia lhe inspiraram o pensamento de que os
acontecimentos lá pudessem servir de “sinal para o desenvolvimento revolu­
cionário do Ocidente”251 e, assim, para a libertação universal.
O gênio de Marx ofereceu aos revolucionários de toda parte um novo
tipo de abrigo — abrigo em nada de particular, mas em algo universal. Esse
algo combinava historicismo hegeliano com cientificismo saint-simoniano:
inevitabilidade e perfectibilidade. Enquanto outros socialistas e comunistas

247 “Liberto de todos os limites locais e nacionais”: v. Die Deutsche Ideologie, 1953, pp. 60, 32; e os
comentários em K. Papaisannou, “Marx et la politique internationale, Marx et l’unité du monde”,
em Contrat Social, 1967, maio-jun., pp. 157-160.
248 Papaisannou, “Marx et la politique internationale, est et ouest”, em Contrat Social, 1967, set.-out.,
pp. 304-307.
249 “Revolution in China and in Europe”, em New York Daily Tribune, 14 de junho de 1853, em H.
Christmas (ed.), The American Journalism of Marx and Engels, NY, 1966, p. 90.
250 Papaisannou, “Marx et la politique”, pp. 300-301.
251 Willington, Mikhailovsky, p. 195.
466 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ofereciam idéias revolucionárias, Marx oferecia uma ideologia revolucionária.


Ao desenvolvê-la com uma idade relativamente jovem, Marx pôde reivin­
dicar o posto de estrategista-chefe da revolução proletária, o qual manteria
ao longo de quarenta anos. Engels, seu colaborador, mais jovem que ele, deu
continuidade a essa função por mais onze anos após a morte de Marx em
1883, assim iniciando uma sucessão apostólica cuja linhagem seria cada vez
mais objeto de litígio.
A posição especial de Marx se baseava largamente na ênfase que deu
a dois fatores do pensamento revolucionário durante a turbulência de
1848-1850: o destino do proletariado e a necessidade da ditadura. Ele forjou
o primeiro desses elementos às vésperas da revolução de 1848, o segundo
como conseqüência dela. Deu a ambos os conceitos uma espécie de signifi­
cado universal, que lhes assegurou uma atração permanente já muito depois
de esquecidos os acontecimentos revolucionários em que a participação de
Marx foi insignificante.

“O proletariado”

Mais uma vez, a palavra se torna elemento crucial. Boa parte da repen­
tina passagem de um número insignificante de comunistas a uma posição
de proeminência pode ser atribuída à habilidade deles para encenar sua
proximidade com algo que foram os primeiros a chamar sistematicamente
de “proletariado”.
Existe, é claro, algo de bastante tangível por trás da denominação. A difu­
são de maquinàrio industrial e do sistema fabril pela Europa ocidental criou
à altura da década de 1840 um conjunto crescente de operários manuais a
trabalhar por salários incertos em novos cenários urbanos. As condições nas
minas e usinas eram freqüentemente brutais; e o novo trabalhador industrial
não tinha nada do orgulho pelo seu produto e da auto-estima dos artesãos
tradicionais. Ele tendia a se tornar uma estatística menor em registros de
investimento e contabilidade, e compartilhava experiências e queixas similares
às de outros trabalhadores em outros países.
Mesmo assim, havia bem pouca comunicação interna — que dirá uma
identidade compartilhada — entre os trabalhadores. Tendiam a brigar mais
entre si do que com quaisquer outras pessoas — e a exacerbar, em vez de
suplantar, todos os velhos conflitos étnicos, religiosos e nacionais da huma­
nidade. O número de trabalhadores fabris ainda era insignificante fora da
Inglaterra, e menor ainda era o senso de importância coletiva.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 467

A realização mais própria de Marx foi solidificar com ampla aceitação a


idéia de que a história estava produzindo uma única força de libertação co­
nhecida como “o proletariado”, a qual tinha um único centro (um “órgão de
consciência”), o partido comunista. É importante relatar a história do mito do
“proletariado” próprio aos intelectuais revolucionários, bem como analisar as
verdadeiras condições e preocupações dos trabalhadores da era industrial.252
A palavra proletariado encontrou seu uso moderno no século xvn como
um termo geral e desdenhoso para designar as classes mais baixas.253 Algumas
conotações mais positivas apareceram no século xvm por meio de Rousseau
e de alguns babeuvistas.254 No influente livro que Sismondi publicou em
1819, Novos Princípios da Economia Política, a palavra era identificada com
conflito de classe. A “economia social” de Sismondi desafiou a indiferença
dos economistas clássicos para com as conseqüências sociais do jogo livre
das forças do mercado, as quais conduziram não à crescente felicidade do
povo, mas antes ao empobrecimento do “proletariado”. Argumentava que,
enquanto o proletariado romano vivia à custa do povo, a burguesia moderna
estava vivendo à custa do proletariado.
Depois da Revolução de 1830, alguns defenderam “a necessidade de re­
presentação especial para os proletários” na assembléia;255 mas um número
cada vez maior de pessoas acompanhou Blanqui em sua identificação do
“proletariado” com a luta social fora de todas as arenas políticas existen­
tes.256 Lamennais escreveu que o objetivo comum a socialistas e comunistas
era “abolir o proletariado e libertar o proletário”.257
252 Até mesmo os melhores historiadores do operariado ainda confundem os dois. O material bastante
variado presente na obra de E. M. Thompson, Making of the British Working Class, por exemplo,
traz descrição das idéias imaginativas, inventivas e quase todas não-revolucionárias da classe
trabalhadora da Inglaterra durante o início da era industrial. Entretanto, Thompson entende (no
título, na introdução e na conclusão) que seu objeto de estudo é uma entidade unitária, proto-
-revolucionária e auto-consciente. Praticamente não há evidência empírica ou maior argumentação
que embase essa suposição. Thompson evita o termo “proletariado”, mas não a visão (frequente
entre os intelectuais ingleses) de que a “classe trabalhadora” na Grã-Bretanha poderia ter de
algum modo criado uma revolução se tivesse adotado a consciência revolucionária secular
dos intelectuais, em vez de sua própria mescla de impulsos religiosos, reformistas e rebeldes.
253 Oxford English Dictionary, vol. vin, pp, 1447-1448.
254 Michael Lepeletier, irmão do babeuvista Felix Lepeletier, descreveu suas propostas para a educação
nacional comunal como “la révolution du citoyen-prolétaire”. V. Saitta, “Autour de la conjuration”,
em Annales Historiques, 1960, out.-dez., p. 429.
255 Jean Reynaud, “De la nécessité d’une représentation special pour les prolétaires”, em Revue
Encyclopédique, 1832, abr.
256 Dommanget, Idées, p. 251, e discussão às pp. 232-251. Laponneraye fez eco a Blanqui em Défense
du citoyan Blanqui devant la cour d’assise, 1832; Lettre aux prolétaires, Saint-Pélagie, 1833.
257 Du passé, citado em Saitta, Sinistra, p. 264; também p. 391 para sua expressão “a extinção do
proletariado”.
468 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

A realidade do conflito de classes foi afirmada em um monte de novas


publicações de início da década de 1840,258 e a necessidade de uma luta de
classes ativa era intensificada pela batalha dos comunistas mais jovens contra
o comunismo pacifista de Cabet. Um defensor de Babeuf lançou um primeiro
ataque em Cabet em agosto de 1840, anunciando: “Je ne suis pas littérateur,
mais un prolétaire...”.259
Per Götrek, um pintor sueco que havia conhecido pessoalmente Cabet,260261 262
trouxe para as discussões da Liga londrina algo do numeroso Círculo de
Educação dos Trabalhadores, em Estocolmo, com o seu panfleto de 1837 que
enfatizava o elo entre proletariado e comunismo: Do Proletariado e de sua
Libertação por Via do Verdadeiro Comunismo,161 Victor Tedesco escreveu
Catecismo do proletário161 que falava de conflito de classe entre “o rico e o
proletário”.263 A condição do trabalhador europeu era como a do escravo
negro nos Estados Unidos: “O negro é o escravo do homem. O proletário é
o escravo do capital”.264265
A concepção que Marx tinha do proletariado talvez tenha sido influenciada
por Götrek e Tedesco, os quais depois trabalharam, respectivamente, nas pri­
meiras traduções sueca e francesa do Manifesto Comunista165, A influência de
258 Jules Leroux, Le prolétaire et le bourgeois, dialogue sur la question des salaires, 1840. V. também
os comentários de Dézamy em Almanach de la communauté, 1843, pp. 69-72; e a proclamação do
jornal dos trabalhadores de Lyon, Le Travail, de que “entre o burguês e o proletário é evidente que
não existe nenhum interesse comum”, citado sem referências precisas em Cuvillier, Hommes, p. 122.
259 Savary, citado em J. Prudhommeaux, “Babeuf jugé par un communiste de 1840”, em La Revue
Française, vol. LV, 1908, p. 139.
260 Svenskt biografiskt lexicon, Estocolmo, 1969, vol. lxxxv, p. 685.
261 Anders Peter (Per) Götrek, Om Proletariet och dess befrielse genom den sanna kommunismen,
Estocolmo, s/d. Não há nenhuma discussão satisfatória acerca de Götrek ou dos elos entre o grupo
de Estocolmo (que, de acordo com a Bund der Kommunisten [Liga dos Comunistas], havia chegado
a cerca de 1.500 membros em 1848-1849) e Lund. Ver, como acréscimo à Bund, pp. 1071-1074;
B. Andréas, Le Manifeste Communiste de Marx et Engels, Milão, 1963, p. 20, nota 2; Seleznev,
“Dokumenty”, pp. 20—21; e a análise textual do panfleto de Götrek empreendida por E. Kandel’
em Novaia i Noveishaia Istorila, 1960, n° 2, pp. 119-226.
262 Andréas, Manifeste, pp. 15-16; Catéchisme du prolétaire, Liège, 1849; Kuypers, “Marx en Belgique”,
p. 416 ss.
263 Tirado de citação mais extensa presente em L. Bertrand, Histoire de la démocratie et du socialisme en
Belgique depuis 1830, Bruxelas/Paris, 1906, vol. i, p. 443. A teoria de Andréas, no que diz respeito
às influências (em Manifeste, p. 306), parece menos convincente do que a de Kuypers (na obra lá
citada), o qual acredita ter sido Tedesco influenciado pelo primeiro esboço feito por Engels.
264 Bertrand, vol. i, p. 441.
265 A tradução feita por Tedesco foi iniciada em março de 1848, mas foi confiscada pela polícia e nunca
publicada (Kuypers, “Marx en Belgique”, p. 415). A tradução de Götrek alterou “Proletários de
todo o mundo, uni-vos!” para “A voz do povo é a voz de Deus” — ao que parece, para evitar a
prisão. V. comentários sobre o seu Kommunismens Rost em K. Bäckström, Arbetarrörelsen i Sverige,
Estocolmo, 1971, vol. i, p. 43.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 469

Tedesco era maior, uma vez que ele era pessoalmente próximo de Marx e de
Wilhelm Wolff, o organizador da Liga dos Trabalhadores Alemães, fundada
em Bruxelas em 1847.266 Wolff acompanhou Engels até a primeira reunião
da Liga Comunista em Londres em junho de 1847; e Tedesco acompanhou
Marx até a segunda reunião em dezembro. Os círculos de radicais de Bru­
xelas tinham, senão outra coisa, pelo menos mais consciência de classe do
que aqueles de Paris.267 Marx também foi influenciado pelo livro de Lorenz
de Stein, Socialismo e comunismo na França Contemporânea^ o primeiro a
popularizar o ideal comunista na Alemanha ao explicar que

o comunismo, como expressão da consciência de classe proletária, pode acentuar


a oposição e o ódio entre as duas grandes classes da sociedade... O comunismo é
um fenômeno natural e inevitável em qualquer nação que tenha se desenvolvido
de uma sociedade de mercado em uma sociedade industrial e que tenha gerado
um proletariado. Não existe poder algum no mundo capaz de impedir o desen­
volvimento do comunismo.268

Marx divulgou pela primeira vez sua teoria da história e o conflito de


classe dinâmico, ainda que sucintamente, no Manifesto Comunista^ lançado
em janeiro de 1848. “A história de toda a sociedade até aqui é a história da
luta de classes”,269 proclamou na frase de abertura da primeira das quatro
seções do livro, “Burgueses e proletários”. Esse início impressionante suge­
ria não um simples programa — luta de classes contra a burguesia —, mas
ao mesmo tempo um chamado messiânico endereçado ao partido capaz de
libertar a humanidade de seu cativeiro. “Só o proletariado é realmente uma

266 J. Kuypers, “La Contribution de Victor Tedesco à l’élaboration du manifeste communiste de 1848”,
em Socialisme, vol. lxi, 1964, esp. p. 80, nota 1. V. também Kuypers, “Wilhelm Wolff und der
Deutsche Arbeiterverein (1847-1848) in Brüssel”, em Archiv für Sozialgeschichte, vol. in, 1963,
pp. 103-107. Embora Tedesco não fosse membro desse grupo, o seu Catecismo do Proletariado
foi quase de imediato traduzido para o alemão por Ferdinand Freiligrath, poeta e colaborador de
Marx no Neue Rheinische Zeitung, e distribuído na Inglaterra e nos Estados Unidos. V. Kuypers,
“Marx en Belgique”, p. 416.
267 A influência buonarrotiana era mais forte na Bélgica do que na França. Além das obras e personagens
cujas referências estão dadas em Kuypers, Bertrand discute (v. i, p. 174 ss.) as opiniões firmadas
uma década antes de Tedesco pelos irmãos Delhasse: Félix Defilasse, Le prolétariat veut être quelque
chose; e Alexandre Delhasse, Catéchisme démocratique.
268 Stein, History, p. 286; também p. 255 ss. A introdução de Kaethe Mengelberg (pp. 20-33) discute a
influência de Stein sobre Marx, no sentido da passagem do “idealismo dialético” para o materialismo
dialético. V. J. Weiss, “Dialectical Idealism and the work of Lorenz von Stein”, em International
Review of Social History, 1963, vol. vm, parte 1, pp. 75-93. A obra de Stein teve papel decisivo no
percurso de Bakunin, que parte da filosofia alemã, passa pelo pensamento social francês e chega à
atividade revolucionária. V. Polonsky, Materialy dlia biografa M. Bakunina, 1923, vol. i, pp. 105-106.
269 Marx, Selected Works, vol. i, p. 204.
470 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

classe revolucionária”,270 o instrumento escolhido para uma guerra de classes


para acabar com as guerras de classes.
Somente na segunda parte, “Proletários e Comunistas”, mencionava-se o novo
tipo de partido. Ele extrai toda sua autoridade (embora não necessariamente
todos os seus membros) do proletariado. O novo partido não se separava de
modo algum do proletariado ou se opunha a “ outros partidos da classe traba­
lhadora”, mas era o único grupo que representava “o proletariado como um
todo”.271 Enquanto tal, o partido comunista tinha a obrigação, ao participar
de qualquer movimento nacional, de “dar prioridade aos interesses comuns a
todo o proletariado, independentemente de qualquer nacionalidade”.272
Após umas poucas páginas de discussão, cessaram quaisquer menções ao
partido comunista. Engels, à época da redação do Manifesto, escrevera que
“o comunismo não é nenhuma doutrina, mas um movimento”.273 Embora o
Manifesto sugira determinadas medidas igualitaristas a serem adotadas após
a tomada do poder, elas não deveríam ser levadas a cabo por um partido,
mas pelo próprio “proletariado”, criando “uma vasta associação de toda a
nação”, na qual “o poder público perderá o seu caráter político”. Todos os
antagonismos de classe desaparecerão à medida que os homens ingressarem
num novo tipo de “associação em que o livre desenvolvimento de cada um
é a condição do livre desenvolvimento de todos”.274
A terceira seção do Manifesto era uma crítica das teorias socialistas rivais,
um exemplo excelente da endêmica literatura de denúncia entre revolucionários
da década de 1840. Era ao mesmo tempo um exercício de virtuose em matéria
de análise social — a relegar cada escola ao esquecimento histórico à medida
que mostra sua natureza “medieval”, “burguesa” ou “pequeno-burguesa”.
Evitava-se, no geral, a citação de nomes; e reconhecimento positivo — embora
com alguma condescendência — só é estendido a três socialistas “utópicos”:
Saint-Simon, Fourier e Owen. Seus projetos para o futuro supostamente
despertaram a imaginação crítica e corresponderam aos “primeiros anseios”
do proletariado “por uma reconstrução geral da sociedade”.275

270 Ibid., p. 216.


271 Ibid., p. 218.
272 Ibid., p. 219.
273 Engels, “Die Kommunisten und Karl Heinzen”, em Deutsche Brüsseler Zeitung, 7 de outubro de
1847, em Werke, vol. iv, p. 321. Esse e o artigo precedente do número de 3 de outubro contém uma
boa discussão da relação vislumbrada entre os dois pretendidos órgãos, os “partidos Comunista e
Democrata’*, ibid., p. 317.
274 Marx, Selected Works, p. 228.
275 Ibid., p. 237.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 471

A seção final do Manifesto prescrevia algumas alianças táticas para “os


comunistas”. Marx insistia, de modo bem característico aos primeiros re­
volucionários, que a violência da revolução apenas traria uma conclusão
racional (e por isso final) para a violência e desordem já iniciadas incons­
cientemente e prolongadas irresponsavelmente pela burguesia. Foram eles
que desarranjaram a família, tomando a propriedade privada da maior
parte da humanidade, e substituindo a educação doméstica pela educação
social. Tudo o que os comunistas buscavam era dirigir um movimento que,
ao completar esses processos em uma sociedade livre de antagonismos, daria
um fim a toda esse desarranjo.

Ditadura

Apesar da retórica retumbante de suas palavras finais — “trabalhadores


do mundo, uni-vos! ” —, o Manifesto passou em larga medida despercebido
até muito depois das revoluções de 1848-1849. Como um documento de
seu tempo, foi impreciso em duas de suas principais previsões para o futuro
imediato: a de que os antagonismos nacionais estavam desaparecendo frente
a um novo proletariado transnacional; e a de que a vindoura onda revolu­
cionária se concentraria na Alemanha e passaria de revolução burguesa a
revolução proletária.
A Liga Comunista, para a qual o Manifesto foi escrito, também desem­
penhou papel menor nos eventos revolucionários. Depois do retorno de seus
líderes para a Alemanha na primavera de 1848, os membros da Liga londrina
reduziram-se a escassos quarenta e oito;276 e em outras partes as agremiações
estavam dispersas e divididas.
A principal preocupação de Marx era editar o Neue Rheinische Zeitung^
a começar em maio de 1848 e prologando-se até sua demissão no ano se­
guinte. Só o que proporcionava em matéria de guiamento revolucionário
prático era um panorama olímpico de desenvolvimentos políticos e eco­
276 De acordo com o relatório da Liga presente em Nikolaevsky, “Towards a History”, p. 241, que
discute a pobreza de fontes e os problemas interprétatives que obstam qualquer história da Liga.
E. Kandel’ provê uma boa bibliografia de livros alemães recentes sobre organizações revolucionárias e
operárias na Alemanha à época da crise revolucionária dos anos 1850: “Protiv burzhuaznoi ideologii
i revizionizma”, em Voprosy Istorii KPSS, 1976, n° 10, pp. 66-78. O artigo mostra, contudo, a
sobrevivência dos estudos estalinistas na União Soviética. Kandel’ repreende escritos da Alemanha
ocidental recentes por não reconhecerem uma “ala proletária” nessas primeiras organizações (p. 69
ss.); mas ele não consegue apontar com precisão em que consistia essa composição “proletária”, e
não convencem nem sua argumentação de que o Comitê de Correspondência Comunista de Bruxelas
era uma organização dos trabalhadores, nem de que Marx teria tido grande importância durante a
revolução de 1848-1850 (pp. 70-74).
472 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nômicos que freqüentemente estava distante de seus leitores.277 “A música


ali”, um trabalhador escreveu, “é tocada num tom alto demais para nós;
não conseguimos assobiá-la”.278 A amargura se acentuou com a repressão
na Alemanha e com o fracasso da aliança democrática proletário-burguesa
em deter a maré. Uma carta de 22 de abril de 1849 denunciou Marx como
“um erudito Deus-Sol... intocado por aquilo que move o coração de seres
humanos”. Para ele o sofrimento humano tinha supostamente “apenas um
interesse científico, doutrinário”.279
Tornando-se ainda mais radical com sua prisão e julgamento em Colônia
e, em seguida, com o fechamento do seu jornal, Marx retornou para Lon­
dres no outono de 1849 e voltou atrás da oposição que havia manifestado,
na primavera, à reconstrução da Liga Comunista. Ajudou a reorganizá-la,
e emitiu um primeiro pronunciamento a ela em março de 1850.280 Mas as
discordâncias a fizeram ruir, e as atividades de Marx concentraram-se cada
vez mais no refinamento de sua teoria da revolução em duas grandes obras
sobre acontecimentos recentes: Guerra de classes na França (1850) e O 18
de brumário de Luís Bonaparte (1852). Esses escritos, junto ao Manifesto
Comunista e ao primeiro esboço feito em 1849 de sua teoria do desenvol­
vimento socioeconomico (mais tarde expandido em Crítica da economia
política e em O capital), representaram o coração de sua visão e de seu
legado revolucionário.
Seus escritos de Londres, a começar pelo Manifesto para a reestabelecida
Liga Comunista, enfatizavam a natureza transnacional da revolução social
vindoura. Seu tom tornou-se quase escatològico na retomada do Neue
Rheinische Zeitung, que era escrito em Londres, impresso em Hamburgo e
distribuído nos Estados Unidos e na Europa. Esperava que em breve o jornal
se tornasse semanal e em seguida diário;281 mas somente seis números foram
publicados entre março e sua demissão em novembro de 1850.
Sua perspectiva internacional oferecia não só consolação cósmica, mas
também novas esperanças de revolução. Os trabalhadores tinham sido

277 V. a tese de W. Dohl, Die Deutsche Nationalversammlung von 1848 im Spiegel der ‘Neuen Rheinischen
Zeitung, Bonn, 1930; também A. Molok, Karl Marx i iiun’skoe vosstanie 1848 goda v Parizhe, MJ
Leningrado, 1934, p. 6, nota 6; p. 27, nota 1.
278 Citado de Deutsche Zeitung, 18 de agosto de 1848, em Noyes, p. 122.
279 De dois membros da União dos Trabalhadores de Colônia, “em nome de muitos camaradas”, citado
em Noyes, pp. 286-287.
280 Noyes, pp. 286-289, 366. Texto em Marx e Engels, Selected Works, vol. ii, pp. 154-168.
281 Sochineniia, vol. vn, pp. 573-574, nota.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 473

esmagados em Paris só porque “por toda parte do continente” a liderança


da burguesia tinha “firmado uma aliança pública com a monarquia feudal
contra o povo”, ao passo que a classe trabalhadora não havia firmado uma
aliança internacional como essa. Mas a repressão francesa também revelava o
“segredo” de que qualquer governo era agora forçado a “manter paz externa
para gerir uma guerra civil internamente”.

Os povos que mal começaram a sua luta por independência nacional foram li­
bertos dos governos da Rússia, da Áustria e da Prússia. Mas, ao mesmo tempo, o
destino dessas revoluções nacionais tornou-se dependente do destino da revolução
dos trabalhadores. Sua aparente auto-suficiência e independência para com uma
grande insurreição social desapareceram.282

Destacando, oportunamente, os três movimentos revolucionários mais


nacionalistas da Europa, acrescentou: “Nem os húngaros, nem os poloneses
e tampouco os italianos serão livres enquanto o trabalhador permanecer
escravo”.283
A vitória da contra-revolução havia criado — em virtude do seu próprio
caráter internacional — condições para a vitória universal da revolução.
A interpretação de Marx — se não no conteúdo, pelo menos em sua for­
ma — era espantosamente parecida com as dos messiânicos religiosos que
ocasionalmente se juntaram aos revolucionários de 1848, argumentando
que o triunfo do Anticristo anunciava a iminente Segunda Vinda de Cristo.
Também Marx via próximo o Juízo Final:

Toda nova revolução de trabalhadores na França inevitavelmente implica uma


nova guerra mundial. Uma nova revolução francesa será obrigada a abandonar a
arena nacional e conquistar a arena européia, a única na qual a revolução social
do século XIX pode ser realizada.284

“O problema do trabalhador não pode em parte alguma ser resolvido


dentro das fronteiras nacionais”.285

A guerra de classes dentro da sociedade francesa será transformada em guerra


mundial entre nações. A revolução irá começar apenas quando a guerra mundial

282 Ibid., p. 31.


283 Ibid.
284 Ibid., pp. 31-32.
285 Ibid., p. 80; a documentação da edição soviética de 1956 (p. 579, nota 43) tem o cuidado de observar
que essa doutrina “era verdadeira quanto ao período do capitalismo pré-monopolista”, mas havia
sido invalidada pelo ensaio de Lênin de 1915, “Sobre a Palavra de Ordem dos Estados Unidos da
Europa”.
474 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

colocar o proletariado à frente da nação que controla o mercado mundial, à frente


da Inglaterra.286

Tinha esperança de que viesse a surgir conflitos entre as momentanea­


mente vitoriosas burguesias francesa e inglesa. Esses conflitos, por sua vez,
unificariam o proletariado francês e inglês — e representariam o “início
orgânico” da revolução final.

A geração atual recorda aqueles judeus que Moisés conduziu pelo deserto. Ela
deve não só conquistar um novo mundo, mas também sair de cena para dar lugar
a um povo maduro para o novo mundo.287

Ao fim de 1849 já havia ficado claro que as revoluções alemã e francesa


tinham fracassado em produzir uma nova ordem (e o movimento cartista
tinha fracassado em produzir sequer uma insurreição séria). Mas a causa da
revolução social tinha pelo menos alcançado uma bandeira com que igualar-se
à miriade de cores dos revolucionários nacionais. Na Paris de 1848, a ban­
deira vermelha havia tomado o lugar da bandeira preta como a favorita do
proletariado. “Só quando embebida no sangue dos insurgentes de junho”,
escreveu Marx em 1850, “a bandeira tricolor transformou-se na bandeira
da Revolução Européia — a bandeira vermelha”,288 Em uma reunião inter­
nacional realizada em 10 de novembro de 1850, o cartista Julian Harney,
amigo de Marx, tornou-se o primeiro homem a repudiar publicamente a sua
própria bandeira nacional em favor da bandeira vermelha da revolução.289
Mas os trabalhadores não seguiram esse estandarte. A revolução havia
morrido em toda parte, exceto entre os oradores de Londres, onde a revolução
na verdade nunca tinha ocorrido. Era um tempo de crise para o revolucionário

286 Ibid.,p. 80.


287 Ibid.
288 Ibid., p. 32.
289 Dommanget, Drapeau, p. 120. Já em um discurso para 300 exilados políticos no último dia de 1849,
Harney previa que “a bandeira vermelha deve se agitar sobre o mundo inteiro e reunir sob si todos
os povos” (ibid., p. 119). O símbolo aparecia com destaque no efêmero jornal de Harney de 1850,
no qual o Manifesto Comunista foi impresso pela primeira vez em inglês (com uma tal infelicidade
linguistica que começa pela frase de abertura, “A frightful hobgoblin stalks through Europe” [Em
vez de “espectro” — como é usual: “ Um espectro ronda a Europa” —, o tradutor empregou a palavra
“duende”, hobgoblin, e lhe acresceu adjetivo, gerando efeito cômico: “ Um temível duende ronda
a Europa“ — nt] The Red Republican, 9 de novembro de 1850, p. 161. No primeiros dos dois
volumes da reprodução fac-similar (L, 1966) J. Saville faz um relato sintético (pp. i-xv) da carreira
de Harney e lista obras a seu respeito desde a de A. Schoyen, The Chartist Challenge: A Portrait of
George Julian Harney, L, 1958. Para a longa correspondência de Harney com Engels (1843-1895),
V. P. Cadogan, “Harney and Engels”, em International Review of Social History, vol. x, 1965, pp.
66-104.
LIVRO IL CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 475

comprometido ideologicamente. Marx havia acreditado em uma revolução


universal, que estava murchando como um fracasso universal. A história
se negou explicitamente a aderir ao seu manifesto. Como um participante,
mostrou grande incapacidade de comunicar-se com os trabalhadores, que
dirá de liderá-los.
A resposta-padrão a essa frustração era emigrar para os Estados Unidos
em busca de um recomeço. A fuga dos revolucionários alemães para o Novo
Mundo depois de 1848 representou um dos movimentos de maior escala
desse tipo naquele século.290 Por um breve período, em agosto de 1850, até
Marx e Engels consideraram emigrar para os Estados Unidos.291 Mas vieram
a rejeitar essa opção, bem como a de substituir os objetivos revolucionários
dentro da Europa por objetivos reformistas.
Marx adotou um terceiro curso de ação próprio a um pequeno número
de alemães que haviam permanecido em exílio dentro da Europa: intensifi­
car o comprometimento messiânico. Caso quase único entre os extremistas
revolucionários, Marx, contudo, evitou atos aventureiros ou fantasias em
torno de novas conspirações. De fato, ele fortaleceu o seu comprometimento
não através de qualquer nova atividade nos anos 1850, e sim por meio do
refinamento de sua teoria revolucionária. Encarcerando-se no Museu Britâ­
nico, ampliou suas perspectivas estratégicas, antes limitadas ao jornalismo, e
escreveu seus volumosos trabalhos teóricos a Crítica da Economia Política,
os Grundrisse e Das Kapital.
A principal conclusão imediata de Marx em torno dos reveses de 1848-
1849 foi a de que se fazia necessária uma ditadura revolucionária para agir
em prol do proletariado. Ao propor essa doutrina, aproximou-se bastante
de Blanqui, cujas idéias também dariam reforço a Lênin em época posterior.
Em abril de 1850, Marx e Engels juntaram-se a Harney e outros em
Londres para elaborar planos para a Liga Universal dos Comunistas Revo­
lucionários — um último e efêmero esforço de transformar a revivida Liga
Comunista em uma força dirigente de organizações revolucionárias secretas
espalhadas pela Europa. Os estatutos dessa organização continham a primeira
formulação clara do conceito de uma provisória “ditadura do proletariado”:

290 O modo como esses revolucionários vieram a ficar absorvidos pela política reformista do Novo
Mundo é descrito por H. Schlüter, Der Anfang der deutschen Arbeiterbewegung in Amerika, Stuttgart,
1907.
291 Mayer, Engels, vol. i, p. 396; R. Stadelmann, Social and Political History of the German 1848
Revolution, Athens, Ohio, 1975, p. 177.
476 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

“O objetivo da associação é a derrubada de todas as classes privilegiadas,


sua sujeição à ditadura do proletariado por meio da sustentação permanente
da revolução até a realização do comunismo, que há de ser a forma final de
organização da sociedade humana”.292
A princípio Marx relacionou a expressão “ditadura do proletariado” à
sua teoria da história e da luta de classes em março de 1852. A idéia buo-
narrotiana de ditadura transitória de uma elite adquiriu assim a sua forma
“marxista” de ditadura de classe como preliminar necessário a uma sociedade
sem classes.293
Depois de 1848, muitos líderes revolucionários discutiram a necessidade
de alguma espécie de ditadura para defender a democracia revolucionária da
contra-revolução. O termo “ditador” ainda retinha algumas de suas conotações
romanas de lei marcial temporária em defesa de uma república294 — embora
Marx também o tenha utilizado como termo ofensivo.295 Este ainda não
tinha adquirido sua reverberação moderna de despotismo. Os comunistas
alemães também tinham utilizado o termo positivamente, a começar por
Weitling em 1845: “Devemos trazer à tona o comunismo através de meios
revolucionários, em seguida devemos ter um ditador que tudo governe”.296
Em Colônia durante a revolução de 1848, Marx censurou a assembléia
por fracassar em exercer a ditadura “em face da ameaça de contra-revolução
que cresce dia após dia”.297

Todo estado provisório estabelecido depois de uma revolução necessita de uma


ditadura, e de uma ditadura que seja enérgica.298

Uma década antes, depois do fracasso da insurreição de 1839 e da prisão


de Blanqui no Monte Saint-Michel, os blanquistas fugiram para Londres.
Os emigrados blanquistas agora se dedicavam novamente à questão do que

292 Texto do memorando de associação em Unter dem Banner des Marxismus, 1928, mar., pp. 144-145. V.
contraste com a passagem paralela no memorando da Liga Comunista, p. 141; também os comentários
de Lehning sobre o documento original de associação, “Buonarroti”, p. 285; “Association”, p. 199.
293 Marx e Engels, Sochineniia, vol. vin, p. 651; Lehning, “Buonarroti”, pp. 282-285.
294 H. Draper, “Marx and the dictatorship of the proletariat”, em Cahiers de 1’Institut de Science
Economique Apliquée, 1962, set., p. 6 ss.
295 Ibid., pp. 19-20.
296 Nettlau, “Discussionen”, p. 380, e empregos anteriores por Weitling em Draper, p. 14.
297 “Die Krisis und die Konterrevolution”, 14 de setembro de 1848, citado em Draper, p. 28.
298 Ibid., p. 27.
LIVRO II, CAPÍTULO 9; A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 477

“o povo deve exigir no dia seguinte a uma revolução”.299 Em 1848, assim


como em 1839, viram a insurreição ser esmagada e o mestre ser preso (na
distante Bela Ilha, na Baía da Biscaia).
Marx já tinha conhecido (e talvez tenha sido influenciado por eles) blan-
quistas na Bélgica, particularmente Jacques Imbert, que auxiliara Marx como
co-vice-presidente da Associação Democrática de Bruxelas.300 Um projeto de
publicações em larga escala foi planejado — porém nunca realizado — pelos
blanquistas em Londres; e cogitou-se fundar junto com os comunistas londri­
nos uma nova organização à maneira da Sociedade Republicana Central, que
Blanqui, Dézamy e outros tinham criado entre a Revolução de Fevereiro e a
repressão de junho de 1848. Blanqui tinha defendido que (1) se colocasse o
poder militar e político imediata e diretamente nas mãos da classe trabalhadora
e (2) que se adiassem as eleições, a fim de que nesse ínterim as organizações do
proletariado revolucionário tivessem tempo para reeducar as massas segundo
os seus próprios interesses, e não segundo categorias políticas ultrapassadas.301
No contexto da formação de uma frente revolucionária unida com os
blanquistas, Marx criou, em janeiro de 1850, a expressão “ditadura da classe
trabalhadora” em lugar da expressão anterior “governo (Herrschaft) do pro­
letariado”.302 Embora o cite como um “corajoso lema da luta revolucionária”
que havia aparecido anonimamente na Paris de 1848,303 parece provável que
ele simplesmente o tenha tomado dos blanquistas. Foi colocado em contato
direto com discípulos de Blanqui recém-chegados em um jantar em Londres
oferecido por Harney e outros radicais cartistas ao fim de 1849. Os blanquis­
tas franceses se juntaram a Engels, Marx e Harney para fornecer liderança
à Liga Universal dos Comunistas Revolucionários. Os estatutos (escritos em
francês pelo mais “blanquista” dos alemães, August Willich, que à época era
especialmente próximo de Marx) proclamavam o objetivo de derrubar as
classes privilegiadas e submetê-las à “ditadura do proletariado por meio da
sustentação permanente da revolução até a realização do comunismo”.304
299 Carta de Jules Vidil (ex-militar e destacado blanquinista entre os emigrados franceses em Londres)
para Blanqui de 19 de julho de 1850, citada em Dommanget, Idées, p. 383.
300 Kuypers, “Marx en Belgique”, p. 415, além de p. 412. Imbert desempenhou importante papel na
Associação dos Trabalhadores Alemães em Bruxelas. V. Kuypers, “Wolff”; também Dommanget,
Idées, p. 376.
301 Garaudy, Souces, pp. 239-241.
302 Na primeira parte de Guerra Civil na França, não publicado até março de 1850. V. Drapea pp.
31-32,34.
303 Sochineniia, vol. ii, pp. 239-241.
304 N. Plotkin, “Les Alliances des Blanquistes dans la Proscription”, em Revue des Révolutions
478 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A seção final do Luta de Classes na França, escrito nessa época, iguala


“revolução proletária” a “partido de Blanqui”.305 Nem tudo estava perdido
porque “o proletariado une-se mais e mais em torno do socialismo revolu­
cionário, em torno do comunismo, que a própria burguesia batizou com o
nome Blanqui”.306
A linguagem de Marx se torna quase inteiramente de segunda mão com
o uso de termos ofensivos caros aos blanquistas (“impostor”, por exemplo)
e expressões de aversão física às “fantasias” utópicas que distraíam da re­
volução. A vitória nas eleições de Paris em março de 1850 de Paul Louis
Deflotte, “um amigo de Blanqui... o insurgente de junho, o representante do
proletário revolucionário”, é citado por Marx como uma vingança dos pro­
letários pelos massacres de junho de 1848. “Por trás das cédulas de votação
estão as pedras das ruas”.307 Em seguida emprega — pela primeira vez — a
expressão “ditadura do proletariado”, ligando-a imediatamente ao seu novo
termo “revolução permanente”.308
A sugestão de que haja influência blanquista sobre Marx é anátema para os
marxistas, que parecem comprometidos tanto com exagerar a originalidade de
Marx quanto com caricaturar o “blanquismo”. Mesmo quando não sujeitos
à disciplina soviética, os marxistas insistem que Marx não tomou o termo de
Blanqui e que o usava para contrastar a sua “ditadura de classe” à concepção
elitista de Blanqui.309 Longe de ratificar ausência de influência de Blanqui,

Contemporaines, vol. lxv, 1951, p. 120; Werke, vol. vu, p. 615; McLellan, Marx, p. 235; Draper,
pp. 35-36.
305 Sochineniia, vol. vu, p. 51.
306 Ibid., p. 91.
307 Ibid., pp. 92-93.
308 Ibid., p. 91.
309 Draper, pp. 15-18,34 ss. Draper sugere (p. 32), mas não persuade, que Marx simplesmente inventou
o lema e o atribuiu retroativamente a 1848. A possibilidade de influência blanquinista sobre Marx
não pode ser descartada e jamais foi investigada com sistematicidade. Marx manteve contato
com blanquinistas durante sua visita a Paris em junho de 1849 (Dommanget, Idées, p. 377); e a
admiração de Marx por Blanqui era particularmente intensa em fevereiro de 1850, logo antes do
restabelecimento da Liga (Mikhailov, Istoriia, pp. 388-389).
Outro possível canal francês (não mencionado por Dommanget) é Jules Gay, cujo jornal Le
Communiste teve um único número, em março de 1849 [Babeuf et les problèmes, p. 276). Marx havia
elogiado Gay, ao lado de Dézamy, como os “comunistas franceses mais científicos”, os quais “estão
desenvolvendo a doutrina do materialismo no sentido de uma doutrina de verdadeiro humanismo
e como embasamento lógico do Comunismo” [A sagrada família, citado em Garaudy, Sources, p.
191). O salto na correspondência de Marx e Engels entre 23 de agosto de 1849 e 19 de novembro
de 1850 priva os historiadores de um testemunho direto acerca das influências de Marx durante
esse período decisivo, num momento em que a influência de Blanqui havia chegado ao seu ponto
máximo.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 479

contudo, esse emprego apenas indica uma ligação ainda mais profunda. Pois
Marx tendia a denunciar o ismo por trás de um indivíduo no ato mesmo de
apropriar-se de sua idéia — do mesmo modo como rivalizava com a persona de
um líder rival quando procurava afastá-lo. A adoção de uma idéia de Blanqui
criou a necessidade compensatória de denunciar o “blanquismo”.
A influência de Blanqui sobre Marx durante esse período é ainda ilustrada
pela apropriação por Marx de outro termo que se tornaria importante para
a história revolucionária: revolução permanente. Marx tinha rejeitado esse
conceito quando proposto por líderes trabalhadores em Colônia durante
1848-1849;310 mas abraçou a “revolução em caráter permanente” (“revolution
in permanence”) como “grito de guerra” da reordenada Liga Comunista em
março de 1850.311 Ele via a revolução permanente como condição necessária
de qualquer futura “ditadura do proletariado”, caso esta viesse a diferir em
algo da “ditadura da burguesia”.
As circulares enviadas do Comitê Central londrino para os membros
alemães da Liga Comunista em março indicavam que o tipo clássico de
conspiração à maneira dos Iluminados-buonarrotianos-blanquistas tinha
se enraizado profundamente entre os alemães. Emissários mandados de
Londres eram instruídos a recrutar pessoas para a liga junto a organizações
revolucionárias já em funcionamento. Lá havia duas espécies de associa­
ção; um círculo externo de grupos locais e provincianos que nada sabiam
sobre o círculo mais interno; só estes eram informados das “conseqüências
comunistas do presente movimento”. O movimento secreto e hierárquico
deveria ser inteiramente manipulado pelo Comitê Central londrino, o qual
aprovaria o emprego seletivo de terror contra “indivíduos odiados ou prédios
públicos associados com memórias detestadas”.312 A liderança sugeriu que a

310 Noyes, pp. 286-287, 366-367. Os alemães há muito tempo haviam alimentado uma fascinação,
freqüentemente ancorada em medo, pela idéia de que a revolução poderia se tornar uma condição
permanente bem como global — desde uma queixa de 1814 sobre “der allgemeinen Weltrevolution
unserer Zeit” [“a revolução mundial total de nossa época”] (Malinkrodt, “Was tun bei Deutschlands
und Europas Wiedergeburt?”, citado em Seidler, p. 297) até um ensaio retrospectivo sobre os
acontecimentos de 1848—1851, no qual se falava da “grundsätzliche permanente Erhebung des
Volkes über alle gegebene Obrigkeit” [“permanente e fundamental elevação do povo acima de toda
autoridade estabelecida”] (E Stahl, Was ist Revolution?, 1852, em Seidler, p. 291, nota a).
Tal como em muitos outros casos, esse conceito parece a princípio ter sido derivado do vocabulário
dos Iluminados. O ocultista bávaro Franz von Baader já observava em seu diário, em 14 de agosto
de 1789, sintomas “einer uns allgemein bevorstehenden Revolution (“de uma revolução geral
próxima a nós”] (Grassi, “Zum Bedeutungswandel des Wortes ‘Revolution’”, em Aufbruch, pp.
429-432), e ele ainda parece ter voltado a desenvolver a idéia em um ensaio que escreveu em 1834,
Revolutionismus (Seidler, p. 291, nota a).
311 Sochineniia, vol. vu, p. 267.
312 De cópia da diretiva secreta do comitê editada em Londres, 1850, man, tal como apreendida pela
480 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Liga Comunista deveria preparar os alemães para lutar ainda mais contra os
medíocres democratas burgueses do que com os reacionários na fase seguinte
da guerra revolucionária.
Após a derrota da insurreição dos trabalhadores em Paris no mês de julho
de 1850, Marx decidiu que alguma outra revolução era coisa improvável; e
já em agosto rompeu com Willich, o qual veio a duelar com um discípulo de
Marx no início de setembro. Ao reescrever os estatutos da Liga Comunista,
Marx denunciou Willich e seus discípulos no dia 15 de setembro por se con­
fiarem na “vontade dos revolucionários como único motor da revolução”313 e
por encher o movimento de elementos burgueses mesquinhos, a ponto de “a
palavra ‘proletariado’ [ser] agora usada como uma palavra vazia, do mesmo
modo que a palavra ‘povo’, usada pelos democratas”.314 Mas os planos de
Marx para a reorganização da liga não forçaram uma cisão com o “blanquis­
ta” Willich. Marx tomou a decisão atípica de apoiar dois grupos separados
em Londres, enquanto transferia a sede da liga para a Colônia.
Embora com menos membros do que nunca, a liga sediada na Alemanha
ganhou nova vida ao fim de 1850 por meio de seus elos com uma organiza­
ção de trabalhadores muito maior, embora não revolucionária: a Irmandade
(Verbrüderung) de Stephen Born. Marx foi bastante repelido na liga, mas
continuou a ser representado por muitos revolucionários mais jovens.315
Tampouco os laços com os blanquistas franceses foram afetados pelo
alheamento de Marx ao grupo de Willich em Londres. Marx e Engels tra­
duziram para o alemão e o inglês a denúncia que Blanqui fez dos socialistas
moderados enviada por ele da prisão para o Banquete dos Iguais organizado
em Londres no dia 24 de fevereiro de 1851. Blanqui disse, entre outras coisas,
que no futuro “serão traidores todos os governos que, erguidos pelos ombros
do proletariado, não realizem imediatamente (1) o desarmamento geral das
tropas burguesas e (2) o armamento e organização dos trabalhadores em
milícias nacionais”.316
polícia saxônica, enviada a governos alemães amigos e citada a partir dos Arquivos Wurtemberg
por Stadelmann, pp. 164-165.
313 M. Kovalevsky, “Souvenirs sur Karl Marx”, em Contrat Social, 1967, nov.-dez., pp. 357-358.
314 B. Nikolaevsky, “Toward a History”, p. 249. Para outros artigos sobre o conflito de Marx com
outros colaboradores “esquerdistas” em 1850—1851, v. N. Belousova, Iosif Moli’, sbornik statei,
1961; S. Na’aman, “Zur Geschichte des Bundes der Kommunisten in Deutschland in der zweiten
Phase seines Bestehens”, em Archiv für Sozialgeschichte, vol. v, 1965, pp. 5-82; e L. Easton, “August
Willich, Marx and Left Hegelian Socialism”, em Études de Marxologie, 1965.
315 O então com 22 anos Johannes Miguel, ex-ministro de finanças da Prússia. V. Draper, pp. 41—42.
316 Do texto francês presente em Dommanget, em Auguste Blanqui à Belle-Île (1850-1857), 1935, pp.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 481

A Liga Comunista chegou ao fim em maio de 1851. O movimento que


havia começado com um alfaiate alemão (Weitling) levando propostas co­
munistas à Liga dos Justos doze anos antes terminou quando outro alfaiate
alemão (Peter Nothjung, do Comitê Central de Colônia) foi preso na esta­
ção de trem de Leipzig no dia 10 de maio, portando consigo quase todos os
documentos de maior importância da Liga.317
O livro que Engels escreveu entre 1851 e 1852, Revolução e contra-revolução
na Alemanha, atribuía a culpa pelo fracasso da revolução alemã à timidez
dos liberais burgueses que a lideraram. Mas parcela da culpa pode também
ser atribuída ao extremismo do programa comunista, que amedrontava os
trabalhadores e os burgueses liberais e dava aos reacionários pretextos para
repressão.318 Os assalariados deslocados que constituíam a soldadesca rasa
das insurreições alemães se sentiram ameaçados por intelectuais que busca­
vam manipulá-los usando de terminologia estranha. Como ainda ocorrería
mais tarde — na Itália a caminho de Mussolini e na Alemanha a caminho de
Hitler —, o extremismo da direita cumpriu o papel de preparar o caminho
para a reação da direita.
A autópsia de Marx se concentrou na França. Ele havia traduzido o afo­
rismo impactante de Blanqui, “quem tem ferro tem pão”, para o Banquete
dos Iguais de fevereiro de 1851.319 Mas à altura do fim do ano ele se deu
conta de que as autoridades constituídas tinham todo o ferro e podiam dis­
tribuir o pão às massas cansadas. Blanqui permaneceu na prisão; e o último
grande levante popular do período (que reuniu 100 mil rebeldes contra a
proclamação da ditadura por Napoleão m), em dezembro de 1851, foi es­
magada e terminou com 500 mortos e 20 mil condenados à prisão.320 Não

65-66; também comentários às pp. 63-87, além de outros materiais, com referências indicadas,
em Lehning, “Association”, p. 204, nota í. A tradução de Marx e Engels (Sochineniia, vol. vu, pp.
569-570) teve uma tiragem alemã de 30 mil cópias (ibid,, p. 615) e foi anunciada numa carta inédita
de Engels ao Times (texto em ibid., pp. 493-494).
317 No livro em que se dedica a defender os acusados (Enthüllugen über den Kommunistenprozess zu
Köln, Basiléia, 1853; tradução com introdução de R. Livingstone, The Cologne Communist Trial,
VNY, 1971), Marx atacou o grupo de Willich por seus excessos conspiratórios e sugeriu que a
missão dele próprio era construir “o partido de oposição do futuro” com uma nova e diferente base
(Werke, vol. vin, p. 461; McLellan, p. 252). Marx tentou articular o que seria o germe de um tal
partido reunindo 60 alemães em uma Associação dos Trabalhadores que realizou dois encontros
por semana no fim de 1851, antes que se desfizesse quando seus principais membros se juntaram ao
mais numeroso grupo de Willich ao fim do verão de 1852.V. G. Becker, “Die neue Arbeiter-Verein
in London 1852”, em Zeitschrift für Geisteswissenchaft, 1966.
318 Argumento de Stadelmann, History.
319 Dommanget, Belle-Île, p. 66; texto em Unter dem Banner des Marxismus, 1928, mar., p. 145.
320 A importância desse levante negligenciado é enfatizada por C. Tilly (o qual nota que só 7 mil dos 26
482 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

houve nenhuma outra insurreição na França nem nenhuma outra menção


à “ditadura do proletariado” em parte alguma até que viesse a Comuna de
Paris vinte anos depois.321322
Marx enviou em 1852 o seu famoso O 18 de brumário de Luís Bonaparte
ao amigo íntimo Joseph Weydemeyer, a fim de que publicasse no seu efê­
mero semanário, Die Revolution.321 “Blanqui e os seus camaradas” eram
apontados por Marx como “os verdadeiros líderes do partido proletário, os
comunistas revolucionários”.323 (Estas últimas três palavras foram extirpadas
das últimas edições, depois que Marx começou a ver Blanqui mais como
um rival do que como um aliado. Não existe anotação alguma do expurgo
na edição soviética supostamente completa e acadêmica).324 Weydemeyer
tinha acabado de escrever em Nova York um artigo militante, “Ditadura do
proletariado”,325 e a carta que Marx enviou em 5 de março de 1852 ao seu
velho amigo continha a mais completa definição que jamais deu do conceito:
“A luta de classes necessariamente leva à ditadura do proletariado, a qual
constitui apenas a transição para a abolição de todas as classes e para uma
sociedade sem classes”.326
Marx saiu da crise convencido da necessidade de uma ditadura revolu­
cionária em qualquer revolução futura. A crença blanquista em uma luta
revolucionária sem fim transmitiu esperança em face da reação européia.
Trotsky revivería o conceito de “revolução permanente” em um período
similar de depressão após a Revolução Russa de 1905.327 Mas a maior parte
das expressões de esperança tendiam a vir do Novo Mundo, não do Velho.

mil presos eram trabalhadores rurais), “The Changing Place of Collective Violence”, em M. Richter
(ed.), Essays in Social and Political History, Cambridge, Massachusetts, 1970.
321 Draper, p. 46.
322 Apareceu de maneira seriada e está republicado em Selected Works, pp. 311-426.
323 Ibid., p. 323.
324 Sochineniia, voi. vni, p. 126.
325 Willich e Weydemeyer eram ex-oficiais prussianos que depois se tornaram líderes militares dos
exércitos nortistas na Guerra Civil norte-americana: o primeiro, um major-general que marchou junto
a Sherman sobre a Geórgia; o segundo, o comandante militar de Saint-Louis. Ambos continuaram
a ter Marx em alta conta, apesar de discussões anteriores. Weydemayer chegou aos Estados Unidos
no dia 7 de novembro de 1851; publicou seu artigo no terceiro número de Turn-Zeitung, NY, Io de
janeiro de 1852; e também incluiu uma reimpressão da primeira versão de A Guerra Camponesa
na Alemanha de Engels (Draper, p. 44).
326 Marx e Engels, Selected Correspondence, Moscou, s/d., p. 86.
327 In Itogi i perspektivy, escrito na prisão no início de 1906; publicado em Nasha revoliutsiia, São
Petersburgo, 1906, pp. 224-286; discutido em E. Carr, The Bolshevik Revolution, L, 1950, vol. I, pp.
56-58, 61. Trótski tomou a idéia de Alexander Helphand (Parvus), tanto quanto Marx a tomou de
Blanqui. V. Z. Zeman e W. Scharlau, The Merchant of Revolution, Oxford, 1965, pp. 36,110-111.
LIVRO II, CAPÍTULO 9: A IGREJA PRIMITIVA (A DÉCADA DE 1840) 483

Willich, Weydemeyer e Weitling (pela segunda vez) tinham emigrado; outros


revolucionários sociais pioneiros, como Cabet e Harney, não demoraram a
ir; e o próprio Marx tornou-se redator do New York Tribune, “Clubes co­
munistas” de ateísmo militante foram formados por emigrados alemães em
Nova York, Chicago e Cincinnati durante 1857-1858.328 Mas, em sua maior
parte, o sonho anterior de revolução social na Europa tinha sido simplesmente
enxertado no sonho nacional de uma América expandida, ao passo que na
Europa muitos dos colaboradores alemães de Marx eram absorvidos pela
mística nacionalista da inclinação alemã para a unidade; seu velho amigo
Moses Hess se tornou um nacionalista judeu visionário.329
Marx, contudo, continuava a acreditar na inevitabilidade de uma revo­
lução social global em escopo e permanente por natureza. Olhando retros­
pectivamente em 1860 para suas experiências com a Liga Comunista, não
parecería nem um pouco agastado com o fato de que um “sequer um partido
no sentido inteiramente efêmero da palavra chegou a ser formado ao longo
de oito anos”. Pois, no sentido mais elevado que dava à palavra — “por
partido, compreendo-o no grande sentido histórico” —, esse partido estava
apenas começando a existir: “A Liga, assim como a Sociedade das Estações
em Paris, assim como centenas de outras sociedades, foi só um episódio da
história do partido, que está por toda parte crescendo espontaneamente no
solo da sociedade contemporânea”.330
Assim, a confusa e conflituosa história da Liga Comunista foi só um
episódio na criação de um partido maior que estava por vir, um “partido
no grande sentido histórico” da palavra. Soa adequado que o único outro
“episódio” que Marx mencionou tenha sido a Sociedade das Estações de
Blanqui. Ao defender uma ditadura revolucionária centralizada em nome de
um proletariado monolítico, semimitológico, Marx aproximou-se das posições
de Blanqui. Essa evolução, por sua vez, acentuou o conflito já aberto em meio
aos revolucionários sociais entre Marx e o apaixonadamente antiideológico
e anticentralizador Pierre-Joseph Proudhon.

328 P. Fonei; “Statuten des Kommunisten Klubs in New York”, em Science and Society, 1977, outono,
pp. 334-337.
329 V. o seu Rom und Jerusalem, die letze Nationalitätsfrage, Leipzig, 1862.
330 Carta de 29 de fevereiro de 1860 a E Freiligrath presente em Marx, Sochineniia, vol. xxx, pp. 400
406; também Mikhailov, Istoriia, p. 14. '
CAPÍTULO 10

O cisma: Marx vs. Proudhon

conflito mais profundo e fundamental do grupo dos revolucionários

O sociais é aquele que, de modo recorrente, surge entre intelectuais


que se propõem a falar para os trabalhadores e trabalhadores que
tentam utilizar a língua dos intelectuais. Marx, o intelectual par excellence,
teve duas de suas primeiras e mais acerbas brigas com os dois trabalhadores
manuais que contribuíram de forma mais decisiva para a causa revolucioná­
ria da classe trabalhadora nos anos 1840: Wilhelm Weitling e Pierre-Joseph
Proudhon.
Weitling foi na prática excomungado por Marx durante um enfrentamen-
to pessoal na casa deste último em Bruxelas no dia 30 de março de 1846.
Uma testemunha neutra recorda corno Weitling tentou discutir estratégia
revolucionária “dentro dos limites de lugares-comuns do discurso liberal”.
De repente, Marx interrompeu aquela empolgação bem-educada: “Diga-nos,
Weitling, você que fez tanto barulho na Alemanha com seu ensinamento:
quais os fundamentos com que você justifica sua atividade e como pretende
embasá-la no futuro?”.
E a voz clássica do intelectual, convicto de que compreende os interesses da
classe trabalhadora como um todo, indiferente às opiniões de vista curta de
trabalhadores individuais, desdenhoso de líderes como Weitling que incitam
as massas “sem quaisquer justificativas bem fundadas para a sua atividade”.
Weitling respondeu tocando no nervo mais exposto de Marx: sua falta de
laços humanos com a classe trabalhadora.
486 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Weitling se consolou dos ataques daquela noite recordando as centenas de cartas e


manifestações de gratidão que havia recebido de todas as partes de sua terra natal
e evocando o pensamento de que o seu modesto trabalho preparatório teve talvez
maior peso na causa comum do que a crítica e análise de poltrona, distanciada do
mundo das pessoas que sofrem e se afligem.
Ao ouvir essas últimas palavras, Marx finalmente perdeu o controle e esmurrou
a mesa com o punho com tamanha força que a luminária chiou e sua chama treme­
luziu. Ergueu-se de chofre dizendo: “Até hoje ignorância nunca ajudou ninguém!”.1

Marx respondeu afirmando sua superioridade intelectual e sua missão


pedagógica; e seus murros na mesa não cessaram até que Weitling tivesse
sido mandado para os Estados Unidos e amigos como Moses Hess enviados
para lhe dizer que não teria “mais nada a ver com o seu partido”.2 Marx
fez seguir-se ao seu ataque uma circular contra Hermann Kriege, o qual
havia passado de colaborador de Marx na Bélgica a editor de um jornal
norte-americano com o título babeuvista de Tribuno do Povo (Volkstribun),
Marx censurou o sentimentalismo irrefletido de Kriege (assinalando que
este empregara a palavra “amor” trinta e cinco vezes) e sua crença de que o
problema social poderia ser sanado nos Estados Unidos, país rico em terras,
através do expediente de “transformar todos os homens em detentores de
propriedades privadas”.3
Muitos anos depois, na última e mais longa de suas várias grandes obras
de denúncia de radicais adversários, Marx deixou claro que o panfleto contra
Kriege tinha sido, de fato, parte de um expurgo ideológico consciente:

Publicamos ao mesmo tempo uma série de panfletos, em parte impressos, em parte


litografados, nos quais submetíamos a uma crítica impiedosa [as idéias dominan­
tes] da Liga. Estabelecemos em seu lugar a compreensão científica da estrutura
econômica da sociedade burguesa como único fundamento teórico sustentável.
Também explicamos de maneira popular que nossa tarefa era não a realização
de algum sistema utópico, mas a participação consciente no processo histórico de
revolução social que ocorria diante de nossos olhos.4

O caminho ficou mais livre para que impusesse seu programa aos emigrados
alemães depois que Weitling foi para os Estados Unidos no início de 1847
ajudar Kriege e resgatar seus discípulos do desvio nacionalista que haviam
feito no ano anterior em defesa da guerra contra o México. Mas o Tribuno

1 P. Annenkov, Reminiscences of Marx and Engels, p. 270 ss., citado em McLellan, Marx, pp. 156-157.
2 Moses Hess, Briefwechsel, p. 157, McLellan, p. 158.
3 Werke, vol. iv, p. 10.
4 Herr Vogt, em Werke, vol. xiv, p. 439, McLellan, pp. 158-159.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 487

do Povo de Kriege não demorou a fenecer, e Marx passou por cima do dis­
tante Weitling assumindo a liderança internacional do movimento comunista.
O conflito de Marx com Weitling revelou uma mistura característica de
desprezo pelo homem e respeito pelo seu papel. Marx não viu nada de pessoal
em seus ataques a Weitling. De fato, Marx reconheceu a função anterior que
Weitling tivera de lançar uma crítica social revolucionária da ordem existente.
Mas, à altura de meados dos anos 1840, Weitling representava para Marx o
mais impeditivo dos anacronismos: um líder histórico cuja hora havia pas­
sado. Weitling não conseguiu realizar a posição histórica de uma liderança
proletária e igualitária que ele mesmo havia criado. Para ocupar essa posição
ele próprio, Marx foi além do mundo de expressão alemã para articular um
ataque similar e simultâneo contra Proudhon: o principal proletário revolu­
cionário dentro da cidadela francesa da fé revolucionária. O choque entre
Marx e Proudhon se revelou o mais importante entre revolucionários sociais
da época — e pode ser que também seja para a nossa.
Por duas décadas após o seu primeiro confronto em 1845, Marx e Proudhon
lutaram com acerba rivalidade pela liderança do novo movimento proletário.
Levaram números crescentes de discípulos a se envolver em disputas cada
vez mais amplas. Nos anos 1860 (após a morte de Proudhon), as filhas de
Marx insultavam o proudhonismo até quando dançavam nos festivais da
Primeira Internacional.5 Nos anos 1960 (após a “morte da ideologia”), os
herdeiros de Proudhon responderam aos marxistas, com efeito, com os fes­
tivais da “nova esquerda”.
O conflito Marx-Proudhon pode ser analisado em dois níveis bem diver­
sos: como um choque pessoal-político entre revolucionários oitocentistas
rivais e como um conflito ideológico mais abrangente entre ideais radicais
conflitantes, porém duradouros.

O embate entre os homens


O conflito pessoal entre Marx e Proudhon foi mais intenso durante a sua
primeira fase logo antes da Revolução de 1848. Mas continuaria até a morte
de Proudhon em 1865; e um obituàrio insultuoso escrito por Marx ajudou
a garantir que o embate prosseguiría entre os grupos rivais. A batalha entre
marxistas e proudhonistas foi central para a história flutuante da Primeira

5 A. Babel, “La première Internationale, ses débuts et son activité à Génève de 1864 à 1870*, em
Mélanges d'études économiques et sociales offerts à William E. Rappard, Genebra, 1944, p. 239.
488 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Internacional de 1864 a 1876 — e para as tensões que depois ocorreríam


entre revolucionários latinos e eslavos, de um lado, e sociais-democratas
alemães, de outro.
Não foi tanto uma batalha de idéias quanto um choque de temperamen­
to moralista e temperamento autoritário em torno da questão: devem os
revolucionários ter uma ideologia? Marx respondeu que sim — e se tornou
autoridade consagrada para mais de meio bilhão de pessoas que viríam a
viver sob governo comunista em meados do século xx. A resposta negativa
de Proudhon o tornou o precursor (freqüentemente não reconhecido) de
alternativas anarquistas, que raramente obtiveram sucesso, mas jamais de­
sapareceram de todo.
Em 1844, num ponto de viragem importantíssimo para a sua vida, Marx,
então com 25 anos, viría a conhecer Proudhon, então com 35 anos. As brigas
que logo surgiram entre eles irritaram praticamente todos os nervos expostos
do jovem Marx em uma época delicada, na qual ele passava da juventude
como filósofo para a maturidade como revolucionário. Proudhon parecia
desafiar não só as idéias de Marx, mas a sua própria identidade.
Nos meses que antecederam sua expulsão de Paris, em fevereiro de 1845,
Marx estava misturando sua luta pessoal contra a alienação filosófica com
uma teoria histórica global na qual a revolução proletária suplantaria toda
alienação humana. Estava esperando o seu primeiro filho, mas ainda não
havia estabelecido sua sólida colaboração com Engels ou desenvolvido
completamente suas novas perspectivas. Estava consumado o seu rompi­
mento com o idealismo filosófico de seus ex-colegas hegelianos. Mas ainda
não havia estabelecido quaisquer laços concretos fosse com o proletariado
fosse com a revolução — os objetos de sua fé. As esperanças juvenis alemãs
de uma “santa aliança” com a tradição revolucionária francesa, que havia
levado Hess, Marx e outros até Paris, tinham se dissipado implacavelmente.
O Deutsch-Französische Jahrbücher de 1844 não conseguira atrair sequer um
único colaborador francês. Marx, assim como outros radicais recém-advindos
da Alemanha, tinha sido ignorado e ocasionalmente ridicularizado pelos
principais revolucionários franceses.
Marx sentiu, assim, profunda necessidade de uma conexão com a França
à medida que passou a discussões mais extensas com Proudhon quando este,
vindo de Lyon, chegou a Paris em 25 de setembro de 1844. Proudhon era a
personalidade radical mais chamativa e famosa da França: autenticamente
plebeu e temivelmente polêmico. Proudhon representava um elo tanto com a
I IVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 489

França revolucionária que os alemães admiravam quanto com o proletariado


a que Marx professava servir. Já em data recuada como 1842, Marx havia
louvado Proudhon acima de outros socialistas franceses como uma figura
"penetrante”. No início de 1844 Marx quis elogiar o comunismo da classe
trabalhadora de Weitling, chamando-o de "‘melhor até que Proudhon”.6
Marx admirava em particular o poder e a simplicidade do livro de
Proudhon O que é propriedade? (1841). Proudhon respondeu sem rodeios,
"propriedade é roubo”, e chegou ao ponto de sugerir que o “proletário”
[proletor] expropriasse o proprietário [proprietor] e estabelecesse direitos
de propriedade iguais para todos. Marx admirava a clareza poderosa de
Proudhon ao insistir numa revolução social tendo por base uma perspectiva
de classe. Ao longo de 1844, Marx contrastou favoravelmente os franceses
aos alemães abstratistas. Chamou O que é propriedade? de “manifesto
científico do proletariado francês”7 que “tem a mesma importância para a
economia moderna que O que é o Terceiro Estado? de Sieyès tem para a
política moderna”.8

6 Citações em P. Haubtmann, Marx et Proudhon, 1947, pp. 31-32. Ainda não existe nenhum tratamento
acadêmico abrangente desse conflito. Talvez o melhor levantamento de elementos seja E. Thier,
"Marx und Proudhon”, em I. Fetscher (ed.), Marxismusstudien, Tübingen, 1957, pp. 120-150.
J. Jackson, Marx, Proudhon and European Socialism, NY, 1962, é uma introdução útil, à qual falta
documentação ou bibliografia adequada. Entre os melhores relatos interpretativos estão E. Dolléans,
“La recontre de Proudhon et de Marx”, em Revue d’Histoire Moderne, vol. xi, 1936, pp. 5-30; M.
Bourguin, “Des rapports entre Proudhon et Karl Marx”, em Le Contrat Social, vol. ix, 1965, pp.
95-107; G. Gurvitch, “Proudon et Marx”, em Cahiers Internationaux de Sociologie, 1966, jan.-jun.,
pp. 7-16; A. Cuvillier, “Marx et Proudhon”, em Cercle de la Russie neuve, Paris. A la lumière de
Marxisme, 1937, vol. n, pp. 151-238; W. Pickles, “Marx and Proudhon”, em Politica, 1938, set.,
pp. 236-260; E. Drumont, “Proudhon et Karl Marx”, em Les trétaux du succès; figures de bronze
ou statues de neige, 1902, pp. 315—332; J. Dessaint, “Proudhon ou Karl Marx”, em Nouvelle Revue,
vol. XLiii, 1919, pp. 97-106; G. Adler, Die Grundlagen der Karl Marx’schen Kritik der bestehenden
Volksivirtschaft, Tübingen, 1887, pp. 169-202; G. Pirou, “Proudhonisme et Marxisme”, em Revue
des Mois, vol. xx, 1919, pp. 237-256; e V. Zastenker, “Proudhon et proudhonisme de 1846 à 1848”,
em Recherches soviétiques, 1956, maio-jun., pp. 151-194.
Para urna biografia relativamente favorável de Proudhon escrita por um homem prestes a se
tornar marxista, v. M. Tugan-Baranovsky, Prudon, ego zhizn’ i obshchestvennaia deiatel'nost, São
Petersburgo, 1891. O leninismo-marxismo moderno segue o padrão violento estabelecido por Yu.
Steklov em seu ataque polêmico logo após os soviéticos tomarem o poder: Prudon otets anarkhii,
Retrogrado, 1918. As opiniões do próprio Marx são resumidas e desenvolvidas com maior sobriedade
em “Marx über Proudhon”, em Die Neue Zeit, vol. xxxi, 1913, pp. 821-830.
Para trabalhos mais recentes sobre Proudhon, ver os ensaios e comentários reimpressos a partir de
um colóquio por ocasião do centenário de sua morte: L'actualité de Proudhon, Bruxelas, 1967; e A.
Ritter, The Political Thought of Pierre-Joseph Proudhon, Princeton, 1969. A discussão bibliográfica
conduzida por Ritter (pp. 3-25) contrabalança a discussão anterior e mais hostil feita por E. Carr,
Studies in Revolution, L, 1950, pp. 38-55.
7 Uma extensa § de A sagrada família, de Marx, escrito ao fim de 1844, contrasta favoravelmente
Proudhon aos alemães. Citação e comentários a respeito em Dolléans, “Rencontre”, p. 11.
8 Citação e comentários a respeito em Haubtmann, p. 33. Marx prossegue dizendo, com um toque de
490 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Era um grande elogio, ainda que amortecido pelo tom paternalista.


Proudhon tinha começado a tratar precisamente os problemas de importância
mais central para o novo figurino de Marx: a base econômica e a natureza
de classe do conflito revolucionário. Proudhon havia argumentado que, mes­
mo que um proprietário pagasse aos seus trabalhadores a diária completa
que eles lhe exigissem antes de entrar na fábrica, ainda assim não estaria
lhes pagando pela “força coletiva” que criava nova riqueza com “a união
e harmonia dos trabalhadores, a convergência e a simultaneidade dos seus
esforços”.9 Marx elogiou essa análise em A sagrada família-. e o que Proudhon
chamou de “erro de cálculo” (a disparidade entre a soma dos salários dos
trabalhadores e o valor dos bens produzidos) bem pode ter sido o ponto de
partida para a teoria marxista da mais-valia. Marx pareceu, num primeiro
momento, se basear na idéia de Proudhon de que a forma básica de explora­
ção capitalista era a apropriação de trabalho não pago pelo proprietário: a
“mais-valia” acumulada depois de pagar ao trabalhador o salário mais baixo
que o mercado permitisse.10 Mas, enquanto Proudhon invocava a teoria de
Ricardo de que o trabalho era a fonte de todo o valor como um imperativo
moral para alcançar a igualdade no futuro, Marx aludia a ela como uma
ferramenta científica para analisar a exploração no momento presente.11 Nos
seus Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844, Marx começou a enxergar
a futura libertação na superação da “alienação” do trabalhador (“trabalho
vivo”) dos meios de produção que eram propriedade do capitalista (“traba­
lho morto”). Dois ensaios de 1844 começaram a sugerir que o proletariado
poderia ser a força histórica que suplantaria essa alienação e libertaria toda
a humanidade dessa exploração.12 À época do Manifesto Comunista. Marx
endossou inteiramente a perspectiva de que “a burguesia [...] produz [...]
os seus próprios coveiros” e de que sua derrubada pelo proletariado adviria
de uma inevitabilidade histórica, e não em razão de estímulo proudhoniano.

inveja, que “Proudhon não se limita a ser alguém que escreve a favor do proletariado, ele próprio
é um proletário, um trabalhador” (p. 34). A promessa de Proudhon de descobrir as formas futuras
corretas da sociedade “por meio da observação das causas e efeitos da propriedade privada”
representava uma boa declaração da missão que o próprio Marx havia assumido. Essa promessa
também foi chamada de novo imperativo e louvada como uma “tarefa comunista” por Barmby em
The Communist Chronicle, vol. I, n° 6, p. 36.
9 Premier mémoires sur la propriété, citado em Haubtmann, p. 35.
10 Argumentação presente em Haubtmann, pp. 34-39.
11 Bourguin, p. 98 ss.
12 “On the Jewish Question” e “Contribution to the Critique of Hegel’s Philosophy of Right”, em
Marx, Early Writings, L, 1963, pp. 1-59.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 491

Proudhon pouco mencionou Marx em seus primeiros escritos. Mas depois


Marx alegaria ter dado a ele uma educação filosófica; pode haver indícios
de um breve período de entusiasmo com a nova perspectiva marxista na
expressão pouco característica de que Proudhon se vale em uma carta do
fim de 1844: “Deve-se abandonar o ponto de partida subjetivo até agora
adotado por filósofos e legisladores e buscar além do conceito vago do justo
e do bom as leis que podem servir para defini-lo [...] objetivamente no estudo
das relações sociais criadas pelos fatos econômicos”.13
O rompimento decisivo entre os dois veio em 1846, depois que Marx
organizou suas idéias e um núcleo de discípulos alemães na Bélgica. Foi um
racha em duas etapas que afetou primeiro a organização e depois a ideologia
do movimento revolucionário — com animosidade pessoal e cultural em
ambos os casos.
O rompimento da organização foi conseqüência de uma carta de Marx
de 5 de maio de 1846, na qual pedia a Proudhon que se tornasse o corres­
pondente francês de uma nova organização revolucionária internacional. A
carta falava de comitês de correspondência, mas alertava para a necessidade
de extremo segredo e continha um pós-escrito peculiar acrescentado pelo
belga Philippe Gigot, que Marx incumbira de ser cossignatário do centro de
Bruxelas. Gigot denunciava como “charlatão” e “parasita” o radical alemão
Karl Grün, que havia chegado a Paris logo quando Marx estava de partida.
Marx se ressentia de Karl Grün como alguém que, afinal, havia ocupado
seu lugar. Pois Grün era o último autoproclamado embaixador da filosofia
alemã junto aos revolucionários parisienses, autor de um novo livro que
definia a natureza e o sentido da agitação revolucionária de então14 e um
cortesão rival perante o favor de Proudhon. “Proudhon é o único francês
completamente livre de preconceitos que jamais conheci”, escreveu Grün.15
Proudhon correspondeu à admiração, e escreveu uma resposta afiada dire­
tamente a Marx, que, ao que parece, ele acreditava ser o verdadeiro autor
da carta em sua totalidade.
Proudhon foi muito além das questões levantadas na carta e sugeriu pro­
fundas dúvidas sobre o próprio Marx. Expressou disposição em trabalhar
conjuntamente pela descoberta das leis da sociedade, mas temia que Marx

13 Carta a Bergmann de 24 de outubro de 1844, em Correspondance, vol. ii, p. 166.


14 Die soziale Bewegung in Frankreich und Belgien, Darmstadt, 1845.
15 Citado em Bougie, Sociologie, p. 89.
492 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

não tivesse ainda se erguido acima da queda dos alemães para o “dogmatismo
aprioristico”: “Não caiamos na contradição de seu compatriota Lutero, que,
tendo derrubado a teologia católica, imediatamente passou às suas próprias
excomunhões e anátemas, para fundar uma teologia protestante”.16
Desse modo, Proudhon temia autoritarismo da parte de Marx mesmo
quando este lhe oferecia uma parcela maior de autoridade.

Já que estamos à frente de um movimento, não nos tornemos chefes de uma nova
intolerância, não nos coloquemos como apóstolos de uma nova religião, mesmo
que esta seja a religião da lógica e da razão.17

Esses sentimentos eram claramente ameaçadores para o bem mais jovem


Marx, que se sentia imune à religião e renovadamente inspirado pelo dogma
econômico. Mas Proudhon foi ainda mais longe ao desafiar a fé recém-des-
coberta por Marx na mudança social repentina — e até violenta. Proudhon
a caracterizou antes como um “empurrão” (secousse) do que como uma
verdadeira revolução:

Prefiro que o regime de propriedade (propriété) queime a fogo lento do que lhe
dar nova força com um [a noite de] São Bartolomeu dos proprietários [...] nossos
proletários têm tamanha sede de ciência, que lhes dar nada além de sangue não
lhes seria bem-vindo.18

De maneira um tanto paternalista, Proudhon caracterizou a fé de Marx


na revolução violenta como uma fase pela qual ele próprio, Proudhon, havia
passado em seus anos de juventude. Defendeu Grün em termos solidários,
pintando-o como um pai que, confrontado com uma pobreza abjeta, con­
tinuara sua educação em pensamento alemão que Marx havia ajudado a
iniciar. Numa conclusão algo provocativa, afirmava a sua própria autoridade
como figura mais velha e experiente, e sugeria que Marx e seus colaboradores
ajudassem a promover a tradução alemã do seu próximo livro, que Grün
estava preparando.19
A obra a que Proudhon se referia era seu extenso Sistema de Contradi­
ções Econômicas ou Filosofìa da Miséria^ de outubro de 1846. Em resposta
direta, Marx escreveu Miséria da Filosofia^ concluído em junho de 1847:20
16 Haubtmann, p. 64 (que inclui o texto completo de ambas as cartas).
17 Ibid.
18 Ibid., p. 68.
19 Ibid., pp. 70-73.
20 Os dois volumes são republicados juntos, com uma introdução e ligeira condensação do texto de
Proudhon, 1964: Proudhon Système des contradictions économiques ou philosophie de la misère,
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 493

o único tratado com extensão de livro contra um único homem e a única


obra em francês que Marx jamais escreveu.21 Esse título desempenhou papel
fundamental na disseminação do “novo ensinamento” que Marx conseguira
tornar a escora ideológica da Liga Comunista ao fim de 1847. Seu conflito
pessoal com Proudhon se tornou, desse modo, parte de uma luta organiza­
cional pela fidelidade dos revolucionários sociais. A colaboração de Marx e
Engels foi selada e seus primeiros esforços de organização foram conduzidos
tendo por pano de fundo a polêmica com Proudhon.
Além disso, em momentos sensíveis de sua carreira revolucionária posterior
Marx seria de novo confrontado com profecias rivais do francês abrasivo.
A interpretação que Marx fez da Revolução de 1848, por exemplo, pareceu
ser desafiada pela de Proudhon em Idéia Geral da Revolução (1851), que
denunciou a perversão do ideal revolucionário tornado “centralização mate­
rialista”.22 O livro de Proudhon de julho de 1852, La Révolution démontrée
par le coup d'état du 2 décembre^ foi uma contra-interpretação proposital
do famoso O 18 de brumàrio de Marx, e trazia urna série de julgamentos
paradoxais de enlouquecer, entre os quais até o apelo a Napoleão in para
que se tornasse o campeão da reforma social.23 Marx considerou escrever
(talvez o tenha mesmo feito) uma crítica da Idéia Geral de Proudhon;24 e
Engels elaborou um ataque a Proudhon naquele momento, o qual passaria
muito tempo inédito.25 Os marxistas reiteradamente repetiram o mestre em
sua acusação de que Proudhon flertou, senão mesmo incitou, uma colabo­
ração com Napoleão ni.26
Marx, Misère de la philosophie: Réponse à la philosophie de la misère de M. Proudhon.
21 A única exceção talvez seja a obra posterior, de 1860, Herr Vogt, que é, contudo, mais propriamente
um panfleto estendido e um ataque so ad hominem.
22 Generai Idea of the Revolution in the Nineteenth Century, L, 1923, p. 74.
23 Discussão em Dolléans, “Rencontre”, pp. 13-14.
24 Cartas de 8 e 14 de agosto a Engels, discutido em Rubel, “Cahiers”, p. 415. V. também Rubel, Marx
devant le Bonapartisme, Haia/Paris, 1960; e R. Rosdolsky, Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen
“Kapital”, Frankfurt, 1968, pp. 19-20.
25 Por fim publicado em Arkhiv Marksa i EngePas, 1948, vol. x, pp. 5-34. Engels já havia escrito a
Marx, no fim de 1848, um ataque virulento ao fato de que trabalhadores e revolucionários em Paris
pareciam seduzidos pela “monstruosidade pretensiosa de Proudhon” e deixados “desprotegidos,
expostos às garras impiedosas do lobo Proudhon” (Marx e Engels, Collected Works, M, 1977, vol.
vin, pp. 129,131).
Quando Marx passou, em 1957-1958, a escrever os sete cadernos que acabaram por ser o primeiro
esboço de sua análise abrangente da economia política moderna, Proudhon ainda foi o seu principal
alvo de crítica entre os vivos. Em sua introdução à primeira publicação inglesa dessa obra, M.
Nicolaus identifica Proudhon e Ricardo como os “principais antagonistas teóricos” de Marx (Marx,
Grundrisse, NY, 1973, p. 10; v. o texto de Marx, esp. pp. 424-426, 843-844).
26 Essa linha de ataque chegou a um clímax de destempero com a investida do stalinista veterano
494 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mais tarde, quando Marx finalmente viu ideologia e organização conver­


girem na Primeira Internacional de 1864, Proudhon produziu uma última
série de escritos que tanto entrou em conflito com a teoria de Marx na Crítica
da economia política quanto ajudou a prevenir, na prática, que os trabalha­
dores franceses colaborassem harmoniosamente com os alemães. Proudhon
substituiu a conversa sobre justiça pela análise econômica; os apelos morais
diretos às “classes trabalhadoras” pela política ideológica do “proletariado”.
A morte de Proudhon em 19 de janeiro de 1865 foi quase celebrada
por Marx em um obituàrio para a edição de janeiro do jornal alemão
Sozialdemokrat, o qual depois veio de praxe a ser utilizado como prefácio
ou apêndice em edições marxistas de “Miséria da filosofia”. Marx repetiu o
seu julgamento negativo pretérito em uma carta a um importante social-de-
mocrata alemão: “Ele quer se elevar à condição de homem de ciência acima
dos burgueses e dos proletários; ele não passa de um burguês medíocre,
continuamente jogado daqui para lá entre capital e trabalho, economia
política e comunismo”.27

Discípulos de Proudhon

O fantasma de Proudhon viveu o suficiente para assombrar Marx pelo


menos pelo resto do século xix. A oposição proudhonista ao centralismo e
ao dogma ideológico predominou tanto na Primeira Internacional quanto na
Comuna de Paris de 1871 — os dois mais importantes acontecimentos para
o desenvolvimento da tradição revolucionária social no Ocidente durante o
restante da vida de Marx.
O aspecto político-organizacional do conflito entre Marx e Proudhon teve
início enquanto este último ainda estava vivo — com as primeiras tentativas
de organizar a cooperação proletária internacional depois dos fracassos
desastrosos de 1848-1851. Proudhon emergiu desse período com bem mais
reputação — obtida como um jornalista ativo em Paris que havia defendido
solidamente uma mudança social imediata, radical, e como um dos poucos
recém-eleitos para a assembléia que haviam se valido de sua posição para
protestar publicamente contra os massacres de junho de 1848.
Na tão distante quanto calma Dinamarca houve resposta imediata à visão

francês G. Cogniot: Proudhon et la démagogie bonapartiste: un “socialiste” en coquetterie avec le


pouvoir personnels 1958.
27 Marx a Johann Schweitzer, 24 de janeiro de 1865, citado em The Poverty of Philosophy, Moscou,
1956, p. 224; emprego original em ibid., p. 141.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 495

de Proudhon de um novo internacionalismo baseado em ajuda mútua e em


pequenas cooperativas, e não em unidades nacionais e política parlamentar.
Um notável e jovem estudante de medicina, Frederik Dreier, propôs no seu
livro Futuro dos povos do mundo ( 1848 ) a visão de uma cooperativa interna­
cional de pequena escala que falasse uma nova língua comum. Fundou uma
pequena organização de artesãos em grande parte inspirado pelas idéias de
Proudhon.28 Assim, a primeira aproximação ao movimento cooperativista
no norte da Europa, que depois se tornaria uma grande contribuição da
Escandinávia ao socialismo moderno, foi de inspiração proudhonista. Mas
Dreier morreu em 1853 aos 25 anos, e o movimento não teve chance de se
desenvolver.
Outro eco imediato de Proudhon, embora mais distante, veio dos Estados
Unidos. Originário de Massachusetts, homem alto e bem-apessoado formado
em West Point e na Faculdade de Teologia de Harvard, William Greene publi­
cou em 1850 um livro proudhonista, Sistema bancário mutualista^ e chegou
a estabelecer um sistema de banco de terras para promover o mutualismo
no Novo Mundo. Em 1853, mudou-se para Paris, onde conheceu Proudhon
e permaneceu até a Guerra Civil. Depois de uma breve temporada de servi­
ço militar no Exército da União, tornou-se um organizador do movimento
trabalhador, dividindo seu tempo entre os Estados Unidos e a França, onde
se juntou à seção francesa da Primeira Internacional.29
O princípio de um movimento internacional da classe trabalhadora remonta
a abril de 1856, quando uma delegação predominantemente proudhonista
de trabalhadores franceses chegou a Londres com uma “mensagem dos
trabalhadores da França aos seus irmãos, os trabalhadores da Inglaterra”.
Esta propunha uma Liga dos Trabalhadores de Todas as Nações que em
toda parte superasse o capitalismo mediante cooperativas proudhonistas
de produtores e consumidores.30 Depois, em 1862, Napoleão m permitiu à
sua incansável classe trabalhadora o direito de eleger uma delegação para a
Exibição Internacional de Londres em 1862. Essa foi a primeira atividade

28 S. Stybe, Frederik Dreier, hans liv, hans samtid og hans sociale taenkning, Copenhague, 1959, pp.
41-43, 48, esp. pp. 151 ss. e 297-298. O seu anti-nacionalismo de caráter bem proudhonista é
ilustrado por Folkenes Fremtid e particularmente por Fremtidens Folkeopdragelse, ambos de 1848. V.
discussão em Stybe, pp. 295-296; B. Malon, “Le Socialisme en Danemark”, em La Revue Socialiste,
voi. ix, 1889, p. 394 ss.
29 C. Jacket; The Black Flag of Anarchy: Antistatism in the United States, NY, 1968, pp. 86-88. A
influência proudhonista sobre outros americanos radicais, a exemplo de Benjamin Tuckei; é enfatizada
por R. Rocket; Pioneers of American Freedom, Los Angeles, 1949.
30 Braunthal, pp. 79-80.
496 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

política independente de trabalhadores franceses desde o golpe napoleo­


nico; e os 750 delegados disseminaram consciência política internacional
junto ao proletariado francês. O líder proletário mais influente era um puro
proudhonista, Henri-Louis Tolain, que de maneira independente organizou
uma segunda delegação de trabalhadores em Londres no ano de 1863. Suas
reuniões se revelaram mais militantes, com discursos de apoio à Revolução
Polonesa e com o estabelecimento de elos com o recém-fundado Conselho de
Comércio de Londres.31 Foi feita uma convocação para um encontro inter­
nacional no ano seguinte — o qual acabou por seu o encontro de fundação
da Primeira Internacional.
Marx conseguiu se impor sobre o mazzinianos no comitê central quando
da redação das regras gerais e do discurso inaugural da nova organização,
ao fim de 1864. O medo que tinha dos proudhonistas se evidencia pela sua
insistência bem-sucedida de substituir o encontro em Londres do comitê
central (Conselho Geral) pelo seu primeiro congresso, que foi agendado
para ocorrer na Bélgica em setembro de 1865. Mas um conflito aberto com
os proudhonistas irrompeu na abertura da conferência, e continuou a do­
minar os primeiros quatro congressos realizados anualmente na Suíça ou
na Bélgica (Genebra, Lausanne, Bruxelas, Basiléia). A questão de fundo era
quase sempre a mesma: a insistência dos proudhonistas em um movimento
da classe trabalhadora baseado em sindicatos e cooperativas que evitaria
se envolver em questões políticas ou ideológicas. Os franceses, a princípio,
tentaram limitar os membros da Internacional a trabalhadores manuais, pois
tinham profunda desconfiança pelos retóricos e intelectuais que por tanto
tampo haviam enganado os trabalhadores franceses com lemas políticos.
Proudhon havia escrito um panfleto influente em abril de 1863 incitando
os democratas a boicotar a votação (“a igreja política da burguesia”) nas
eleições marcadas para maio.32 O mesmo tom antipolitico inspirou tanto o
Manifesto dos 60 de fevereiro de 1864, cujos signatários incluíam somente
trabalhadores, quanto a própria obra de Proudhon publicada postumamente,
Sobre a capacidade política das classes trabalhadoras.33 Nos congressos da
Internacional de fim dos anos 1860, os franceses se opuseram rigorosamente
a resoluções gerais sobre questões internacionais remotas e em grande medida

31 Ibid., pp. 88-91.


32 Les Démocrates assermentés et les réfractaires, 1863.
33 V. o material acrescido pelo editor, M. Leroy, à edição de 1924 de De la Capacité politique des
classes ouvrières.
LTVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 497

simbólicas (Polônia), e a medidas reformistas que dependessem de garantia


a ser dada pelo poder do Estado (leis de trabalho infantil).34 Para Marx,
contudo, essas questões não eram fins em si mesmas, e sim úteis “combates
de guerrilha”35 para mobilizar a consciência proletária e a solidariedade na
luta contra o capitalismo. Embora não estivesse presente em nenhum dos
primeiros congressos, Marx exerceu controle cada vez maior por meio de
sua posição no Conselho Geral e seu talento enérgico de redator e de tático.
O Congresso de Bruxelas de 1868, que atraiu o número recorde de 100 de­
legados, comprometeu a Internacional com a política de nacionalização dos
meios de produção — em grande parte por meio do cortejo de membros da
inchada delegação belga, afastando-os da posição proudhonista francesa.
César de Paepe, líder da seção belga que sediava e dominava o congresso,
descreveu seu movimento de alinhamento com a posição marxista como
“desproudhonizado”.36 O congresso na Basiléia no ano seguinte confirmou
o declínio da influência proudhonista ao endossar a propriedade comum
da terra, coisa que os proudhonistas consideravam equivalente à “tirania
coletiva”.37
Os relativamente não-violentos proudhonistas foram, ato contínuo, su­
plantados dentro da Internacional pela forma de anarquismo mais militante
e revolucionária representada por Bakunin, que participou de um congresso
da Internacional pela primeira vez em 1869. Mas, durante a Guerra Franco-
-Prussiana e a posterior guerra civil dentro da França contra a Comuna de
Paris, foram os proudhonistas (incluindo o amigo e retratista de Proudhon,
Courbet) que dominaram inteiramente a federação parisiense da Internacional.
Constituíram dezessete dos 92 representantes eleitos da Comuna.
Depois da guerra e da revolução de 1870-1871, o antiestatismo não-
-violento de Proudhon se reafirmou perante uma nova geração moderada
de revolucionários sociais. O proudhonismo ganhou novos adeptos no sul
e leste agrários da Europa. Grandes propagandistas do populismo, como
Nicholas Mikhailovsky na Rússia e Svetozar Markovic na Sérvia, traduzi­
34 Braunthal, pp. 120-138 ss., para os principais fatos; e, para uma rica bibliografia geral da
Internacional organizada país a país por J. Rougerie, v. Mouvement Social, 1965, abr.-jun., pp.
127-138. A melhor abordagem marxista ainda é a de Yu. Steklov, History of the First International,
L, 1929.
35 Citado em Braunthal, p. 125.
36 Citado em Rubel, “Charte”, p. 20. De Paepe depois descreveu o seu próprio sistema de comunismo
antidogmàtico, que ainda apresenta traços da influência de Proudhon, como “Le Communisme
relatif”, em La Revue Socialiste, vol. xi, 1890, pp. 547-553.
37 Descrição do proudhonista franco-suiço Dr. Pierre Coullery em Braunthal, p. 130.
498 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ram as obras de Proudhon;38 as idéias de Proudhon inspiraram Pi y Margal,


líder do antinacionalista Partido Federal na Espanha, e outros em Portugal
e no México.39
Na Europa ocidental, o proudhonismo permaneceu corrente dominante
ao longo das décadas de 1870 e 1880. Antes da grande expansão industrial
dos anos 1890 e do desenvolvimento paralelo da Segunda Internacional, o
ideal proudhonista “pequeno-burguês” de ganhar recompensa imediata em
bens e propriedade gozou de atração contínua. Em uma época de repressão
política, muitos preferiam desenvolver instituições da classe trabalhadora
inteiramente à parte da política burguesa. Fora da Alemanha, o marxismo
respondeu de maneira eficaz ao proudhonismo e seus aliados ideológicos
somente após a fundação do primeiro jornal marxista da França (o Égalité
de Jules Guesde de 1877) e do primeiro círculo marxista em meio aos eslavos
(o “Libertação do Trabalho” de Plekhanov em 1882).
O último congresso europeu da Primeira Internacional (Genebra, 1873) e
o primeiro congresso da Segunda (Paris, 1889) foram, cada um, precedidos
e desafiados nas mesmas cidades por um congresso rival simpático às idéias
proudhonistas: o congresso em Genebra de fundação da internacional anti-
-autoritária, de 1873, e o internacional Congresso dos Possibilistas em Paris,
de 1889. O primeiro foi uma reunião militante que, com folga, ofuscou o
pálido congresso marxista de uma semana depois; o segundo foi, contudo,
como o nome de possibilistas sugere, apenas uma versão atenuada da men­
sagem proudhonista: uma busca reformista do possível. O principal grupo
dos possibilistas foi ofuscado pelo encontro maior e mais cosmopolita dos
marxistas, cuja comemoração rival do centenário da Revolução Francesa
levou à fundação da Segunda Internacional.
Contudo, uma facção de possibilistas liderada pelo militante Jean Alternane,
que assim com Proudhon era impressor, manteve vivo o legado proudhonista
semi-anarquista, assim como a ênfase na ação direta a ser desempenhada
38 Billington, Mikhailovsky, pp. 22-23,188; J. Skerlic, Svetozar Markovic, Belgrado, 1922, pp. 130-144.
De igual modo, aqueles que queriam fazer os intelectuais russos passarem do populismo para o
marxismo, nos anos 1880, começaram por traduzir a Miséria da Filosofia de Marx para o russo. V.
a carta inédita de Vera Zasulich a Engels em N. Naimark, “The Worker’s Section and the Challenge
of the ‘Young’ Narodnaia Volia, 1881-1884”, em The Russian Review, 1978, jul., pp. 296-297.
39 Para diferentes interpretações do impacto de Proudhon sobre Pi y Margal e a tradição anarco-
federalista espanhola, v. A. Jutglar, Federalismo y revolución, Barcelona, 1966; e F. Urales, La
Evolución de la filosofia en Espana, Barcelona, 1968, esp. p. 28 ss., 75 ss. Para a influência de
Proudhon em Portugal depois de 1852, v. a rica antologia: Proudhon e a cultura portuguesa, Garcia
Petrus (ed.), Lisboa (?), 1861-1868,5 voi. Para o caso do México nos anos 1860 e 1870, v. G. Carcía
Cantú, El socialismo en México, siglo xix, México, 1969, pp. 11-12, 172-179.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 499

pelos próprios trabalhadores: “Nada de mãos limpas; somente mãos cale-


jadas!”.40 Mais militantes que os possibilistas, mas profundamente avessos
ao dogmatismo e centralismo dos marxistas, os allemanistas ajudaram a
transmitir a herança de Proudhon aos novos sindicalistas revolucionários à
medida que se articulavam no início dos anos 1890. A unidade básica desse
movimento era a versão local dos sindicatos, a Bourse de Travail, que era
profundamente proudhonista em sua composição de trabalhadores e em sua
ênfase na autoridade local e na ação direta. Se o futuro pertencia aos mais
bem-organizados marxistas, que logo assumiríam o controle da Segunda
Internacional, por sua vez os rivais proudhonistas pareciam ainda dominar
o movimento dos trabalhadores militantes na França e na maior parte do
mundo latino. Como explicou um destacado social-democrata alemão da
época: “Toda vez que o movimento dos trabalhadores é devolvido a si mesmo,
longe de tentações burguesas, longe do conselho de seus próprios dirigentes
— daqueles que se nomeiam seus dirigentes —, naturalmente recupera o
proudhonismo, a Doutrina Monroe do Proletariado”.41
Embora o anarcossindicalismo continuasse a se desenvolver no mundo
latino pelo menos até a Guerra Civil Espanhola, o proudhonismo é geralmente
visto como um fenômeno transitório do período que precedeu a expansão
imperial e industrial de grande escala da década de 1890. A Primeira Inter­
nacional e os congressos seguintes dos anos 1870el880 envolveram apenas
uma pequena parcela da classe trabalhadora européia. Destacavam-se os
trabalhadores relativamente especializados das maiores cidades com varie­
dade de indústrias. Havia pouca participação das massas de mão-de-obra
não qualificada advindas das indústrias metalúrgicas e mineiras ou das novas
cidades fabris construídas em torno da indústria predominante.42 Se a velha
classe de artesãos estava em declínio, o novo proletariado fabril ainda não
havia surgido de todo. Em data tão tardia como 1896,534.000 dos 575.000
estabelecimentos industriais na França tinham menos de dez trabalhadores.43
40 Citado em Joli, p. 59.
41 Eduard Bernstein, citado em L. Febvre, “Une question d’influence. Proudhon et le syndicalisme
contemporain”, em Revue de Synthèse Historique, 1909, ago.-dez., p. 193. V. também, sobre a
influência de Proudhon nesse período, E. Lagarde, La Revanche de Proudhon ou l'avenir du socialisme
mutuelliste, 1905; J. Julliard, Fernand Pelloutier et les origines du syndicalisme d'action directe,
1971, p. 205 ss., 265 ss.; e o trabalho mais decisivo de todos, A. Kriegel, Le Pain et les roses. Jalons
pour une histoire des socialismes, 1973, pp. 69-106.
42 J. Rougerie, “Sur l’Histoire de la Première Internationale”, em Mouvement Social, 1965, abr.-jun.,
pp. 28-34.
43 J. Clapham, The Economie Development of France and Germany, 1815-1914, Cambridge, 1963,
pp. 258-259.
500 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTORIA

A expansão da indústria pesada, de fábricas maiores e de uma mão-de-obra


não qualificada abriu caminho para novos movimentos de massa, mais re­
ceptivos ao apelo chauvinista da direita e à orientação marxista da esquerda.
Parecia ganhar nova relevância a crítica de Marx a Proudhon como “peque-
no-burguês”; mas, em uma época de mudanças pouco compreendida, o ideal
“pequeno-burguês” de Proudhon de preservar um mínimo de propriedade
privada e de autonomia local tinha um atrativo permanente.

Questões permanentes
Por trás da paixão pessoal de Marx e Proudhon e das polêmicas políticas
de seus partidários jaz um conflito mais profundo de idéias, o qual tem
importância duradoura para aqueles que buscam mudança social radical.
À primeira vista, a intensidade da luta entre ambos surpreende. Conser­
vadores, liberais e os primeiros socialistas românticos, todos viam muitas
similaridades entre os dois. Tomados em conjunto, Marx e Proudhon re­
presentaram o ponto de transição — um ponto, de fato, sem retorno — da
teorização sentimental pré-1848 para a rigidez realista dos movimentos
revolucionários de massa modernos.
Ambos tinham uma visão confiante da história que dava importância cen­
tral à realização das esperanças abortadas das revoluções francesas de 1789
e 1848. Na verdade, essa fé básica se tornou ainda mais intensa na esteira de
1848, uma vez que ambos se dedicaram inteiramente a solidificá-la por meio
de extensos escritos teóricos quando do desenlace desanimador da revolução
derrotada. Ambos acreditavam que a revolução social podería resolver as
contradições econômicas e sociais do mundo real. Foram os primeiros revo­
lucionários continentais importantes a estudar cuidadosamente a economia
clássica inglesa (mesmo antes de 1848) e a ver a classe trabalhadora como o
instrumento escolhido para a libertação derradeira de toda a humanidade.
Ambos acreditavam que todos os socialismos anteriores eram utópicos e,
na expressão de Proudhon, rêveries fantastiques [delírios fantásticos]: expe­
rimentos pessoais em vez de meios adequados para a transformação total da
sociedade. Ambos rejeitavam as instituições tradicionais do liberalismo burguês
mais sistematicamente que seus antecessores, e se opunham profundamente
ao nacionalismo e ao ideal de libertação nacional (embora cada um dos dois
refletissem alguns preconceitos próprios às suas respectivas nações). Ambos
eram crias do novo estilo feuilleton [folhetim] de escrita do início dos anos
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 501

1840 e da passagem simultânea da filosofia para a polêmica, da história para


a política, do diálogo acadêmico para os grupos de ação radical.
Ainda assim, as diferenças entre Marx e Proudhon — e entre seus parti­
dários conscientes e herdeiros inconscientes — eram profundas. O conflito se
dava em, no mínimo, seis áreas: a filosófica, a histórica, a moral, a política, a
econômica e a religiosa. Cada um desses domínios se tornou campo de batalha
para a luta contínua entre comunistas autoritários e “pequeno-burgueses”
mutualistas no século xix. Alguns desses conflitos, ou todos eles, reapare­
ceram no permanente debate do século xx entre os impulsos coletivista e
libertário da esquerda.
(a) Filosoficamente, havia diferenças desde o primeiro encontro dos dois
homens em 1844. O jovem Marx era um autêntico produto da autoconfian­
ça intelectual da Universidade de Berlim: acreditava que todas as questões
eram respondíveis e todos os problemas solúveis num sistema absoluto da
verdade que ele estava a descobrir. Proudhon, dez anos mais velho e muito
mais conhecido, era um plebeu autodidata com profundas suspeitas para
com abstrações intelectuais. “Você não consegue imaginar”, escreveu sobre
sua leitura de alguns economistas, “o efeito terrível que uma teoria erudita
produz quando utilizada de maneira destrutiva”.44 Rejeitava a própria imagem
de uma harmonia pitagorica na natureza que havia sido tão fundamental
para os primeiros revolucionários: “Não encontro em parte alguma, nem
tampouco consigo compreender, essa melodia do grande Todo que Pitágoras
pensou ouvir”.45
Assim como Marx, Proudhon vivia de escrever; mas havia profunda
diferença estilística entre a prosa dura e paradoxal (Marx a chamava de
“muscular”) que o provinciano francês praticava nas prisões de Paris e as
polêmicas lógicas e acres da escrita alemã renana que o outro praticava no
Museu Britânico.
(b) Suas visões diferentes da história se evidenciavam nos usos contrastantes
que faziam do pensamento de Hegel. Em termos gerais, Marx colocou Hegel
de cabeça para baixo, tornando sua teoria materialista em vez de idealista;
mas conservou a visão hegeliana básica de que a realidade era monista e
de que a história se movia necessária e dialeticamente rumo à realização de
uma ordem futura ideal. Em contraste, Proudhon manteve Hegel de pé, sus­

44 Citado em Bougie, Sociologie, p. 117.


45 Citado de De la Justice em H. de Lubac, The Vn~Marxian Socialist, L, 1948, p. 149.
502 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tentando a imagem hegeliana da história como um processo de idéias que se


desdobra através de contradições. Mas negava a visão monista e objetiva da
realidade que substituía o dualismo de “deve” e “é” do moralista subjetivo.
Depois negou que houvesse qualquer “síntese” de contradições da vida social.
A definição de Proudhon para revolução era de “desfatalização” da história
em vez de resolução final de seus problemas.46
A primeira grande obra de Proudhon, Sistema de contradições econômi­
cas, insistia que o intelecto poderia descobrir contradições necessárias na
sociedade — mas não determinadas sínteses. Para Marx, essa era a “miséria
da filosofia”: uma confissão de falência intelectual que desmobilizaria os
revolucionários, tirando-lhes qualquer esperança racional no curso da his­
tória. A compreensão imperfeita que Proudhon tinha de Hegel foi facilmente
demonstrada pelo jovem Marx, o qual explicou que Proudhon “glorifica a
contradição porque a contradição é a base da existência dele”.47
(c) A visão que Proudhon tinha da história se enraizava numa filosofia
moral mais próxima do moralismo sisudo de Kant do que do historicismo
impessoal de Hegel. Marx o chamava de “Kant francês”; e Kant ajudou
Proudhon a falar, não de uma dialética progressiva que tudo resolve, e sim
de antinomias que jamais podem ser resolvidas.48 Proudhon achou na des­
coberta feita por Kant de antinomias filosóficas insolúveis uma fonte não de
desespero, como achava Marx, mas de guiamento para a compreensão de
análogas antinomias na vida social. A análise econômica de seu Sistema de
contradições descobriu um paradoxo armado no próprio desenvolvimento
da economia: a necessidade de mais pobreza para criar maior riqueza; a
busca da felicidade levando a uma maior infelicidade, e assim por diante.
Mas Proudhon insistia que a agonia da contradição não conduziría ao
desespero ou à resignação, desde que o homem não olhasse para a situação
com complacência ou cinismo. A verdadeira resposta para a sociedade não
era a conclusão mítica de uma futura síntese final; era a possibilidade realista
de que, a cada etapa, as contradições que eram parte componente da própria
vida fossem postas em equilíbrio. Proudhon falava de um equilíbrio dinâmi-

46 Citado em E. Dolléans, Proudhon, 1949, p. 338.


47 Marx, carta a P. Annenkov de 28 de dezembro de 1846, em Poverty, p. 217. A tradição marxista alega
que essa atitude nasce logicamente da posição de classe do petit bourgeois, o qual por necessidade
oscila entre a burguesia que lhe está acima e o proletariado que lhe está abaixo.
Para uma explicação diferente do conflito na compreensão de contradições entre os dois homens,
v. Thier, pp. 131-133.
48 V. a § sobre Kant, Hegel e Proudhon em Lubac, pp. 140-165.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 503

co sempre em alteração: um “contrabalanceamento” de forças que jamais


desapareceríam ou perderíam sua capacidade de intercambiar. O equilíbrio
dessas forças rivais, embora sempre tenso e precário, era o bem mais alto a
que o homem poderia aspirar na terra.
Na sociedade, as contradições eram levadas ao equilíbrio pela Justiça,
que para Proudhon era um absoluto moral. A Justiça era um princípio mais
elevado que de algum modo lutava para controlar o processo histórico. O
bem e o mal não eram relativizados e subordinados à necessidade histórica,
como em Hegel; eram, antes, mantidos como valores transcendentes em si
mesmos. Ele insistia em rejeitar qualquer esquema no qual a distinção entre
bem e mal não fosse fundamental. Marx observou que Proudhon havia
reduzido a dialética de Hegel à “distinção dogmática entre bom e ruim”.49
Para Proudhon, a história era uma espécie de desenvolvimento da idéia de
Justiça, que ele descreveu variamente como “o grande ideal”, “um mistério”
e“a própria essência da humanidade”.50 Essa justiça era a perpétua defesa
da dignidade humana empreendida mediante a luta moral da consciência
individual. O mal não está nas relações sociais, mas na vontade humana; e
assim a causa proletária não salvaria por si só a humanidade, como queria
Marx.51 Proudhon chamava Marx de utopista por acreditar que a sociedade
poderia ser melhorada “sem que se instigasse uma renovada consciência de
justiça”.52 Marx, por sua vez, considerava Proudhon um utopista por fazer
a humanidade depender do idealismo moral do indivíduo e das obras de um
conceito a-histórico e metafísico de justiça.
(d) Politicamente^ a atitude de Proudhon divergia acentuadamente da
de Marx — embora ambos acreditassem que a revolução vindoura seria
afinal o fim de qualquer governo de opressão do homem sobre o homem. O
determinismo econômico de Marx considerava que a revolução seria reali-
zada mediante a conquista proletária do poder político; e que esse processo
iria exigir um novo tipo de partido político e uma provisória “ditadura do

49 Poverty, p. 125. Uma análise mais completa dos modos pelos quais Proudhon se exercita numa
espécie de dialética está em Chen Kui-Si, La Dialectique dans l'oeuvre de Proudhon, 1936. Sobre
o moralismo básico de Proudhon, D. Brogan escreveu que “Proudhon nunca se perguntava Isto é
verdade?*, mas sempre Tsto é certo?'** (Proudhon, L, 1934, p. 37).
50 De la Justice dans la Révolution et dans l’Église, 1858, vol. i, p. 42; v. a S “Adoration of Justice** em
Lubac, pp. 276-286.
51 “A vontade toma o homem um tirano antes que a riqueza o faça; o coração do proletário é o mesmo
que o do rico, uma fossa de sensualidade fervilhante, um centro de indecência e trapaça”. Philosophie
de la misère, citado em Lubac, p. 61.
52 Philosophie, como citado em Lubac, p. 296, nota 35.
504 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

proletariado”. Proudhon, acreditando no determinismo moral, considerava


que a revolução só poderia ser realizada por meio de mudança econômica e
social concreta; e que esse processo exigia a rejeição de qualquer atividade
política, privilegiando assim mudanças sociais imediatas que produzissem
benefícios econômicos palpáveis.
Durante a Revolução de 1848, Proudhon se afastou de debates políticos,
insistindo que a divisão parlamentar era “mil vezes mais idiota” que a cerimô­
nia de unção com santo óleo.53 Concentrou-se, em vez disso, em organizar um
ataque direto ao que chamou de “feudalismo industrial”: o abuso da posse de
propriedade para acumular ganhos não merecidos e servilizar os trabalhado­
res com a “lepra do interesse”. Propôs um sistema de bancos populares que
praticamente garantisse crédito livre. Isso estimularia a atividade econômica
sem aumentar o poder do governo ou de grandes empresas impessoais.
Marx observou corretamente que essa visão era “pequeno-burguesa”; pois
Proudhon buscava não acabar com o regime de propriedade privada, mas
apenas acabar com a propriedade desacompanhada de labor — o lucro sem
trabalho. Objetivava realizar a igualdade por meio de “uma identificação do
trabalhador com o capitalista” que não negaria o instinto humano de posse,
e sim faria o capital imediatamente disponível para todos, e assim alcançaria
um equilíbrio entre liberdade e ordem.54
(e) Economicamente, a essência da discordância estava em que Marx
acreditava que a propriedade deveria ser abolida, ao passo que Proudhon
acreditava que deveria ser distribuída. Na linguagem hegeliana de suas polê­
micas, Marx definia o comunismo — cuja essência era a abolição da proprie­
dade privada — como a síntese final da história. Proudhon via o comunismo
como não mais que a “antítese” do capitalismo — e assim necessariamente
tão unilateral e falso quanto o próprio capitalismo.55
A nova revolution sociale de Proudhon deveria ser feita não com uma
tomada violenta do poder político ao centro, e sim com o desenvolvimen­

53 De la Justice, citado em Lubac, p. 28.


54 D. Dillard observou prenúncios proudhonianos de idéias keynesianas sobre dinheiro e interesse:
“Keynes and Proudhon”, em Journal of Economic History, 1942, maio, pp. 63-76. A qualidade dos
escritos econômicos de Proudhon talvez tenha sido subestimada. Manuel du spéculateur à la bourse
(1853), a sua obra mais popular e com maior número de reimpressões, é em muitos momentos um
guia de investimento especulativo escrito por alguém com um interesse puramente intelectual no
processo.
55 Interpretação sugerida pela análise de R. Tucker; Philosophy and Myth in Karl Marx, Cambridge,
1961, pp. 108-154; e The Marxian Revolutionary Idea, NY, 1969, pp. 51-53.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 505

to não violento de um novo sistema de contratos iguais ao nível local. O


acordo direto entre homem e homem deveria minar e substituir o contrato
artificial entre cidadão e governo, entre trabalhador e capitalista. O crédito
livre deveria estimular o objetivo moral de uma distribuição mais justa, em
vez do objetivo econômico de maior produção.
O Proudhon das décadas de 1850 e 1860 foi além do simples anarquismo
de suas primeiras obras56 e relacionou sua visão da futura revolução social
com dois novos conceitos: mutualismo e federalismo. Tomou a palavra
mutualismo de um uso já antigo entre os artesãos de Lyon. Logo, era um
dos poucos ismos com uma autêntica origem nos trabalhadores, e não em
intelectuais. No dia 28 de junho de 1828, os trabalhadores de Lyon orga­
nizaram uma sociedade de Devoir Mutuel [Dever Mútuo] ou Mutuellisme,
com um programa de educação e ajuda mútua destinado sobretudo a apoiar
a autonomia e autoconfiança dos fiandeiros de seda da cidade. A data viria a
ser celebrada anualmente como “ano da regeneração”;57 e, no levante poste­
rior de novembro de 1831, uma mais militante Association des Mutuellistes
desempenhou também breve papel. Os trabalhadores de Lyon em geral
preferiram ser chamados de mutuellistes, em vez de prolétaires, durante os
anos turbulentos que culminariam na Revolução de 1848; e o termo impli­
cava trabalhadores a se organizarem sozinhos numa busca militante de suas
próprias necessidades imediatas e interesses materiais.
Essa tradição mutualista de Lyon nunca foi dominada nem por intelec­
tuais nem por políticos republicanos. O orgulhoso e provinciano baluarte
de Lyon desconfiava de centralização intelectual bem como política, o que
remetia necessariamente à primazia de Paris. As fortes tradições dos artesãos
da indústria de seda tornaram os trabalhadores lyonenses ainda mais hostis
à centralização e monopolização do poder econômico.
A cidade natal de Proudhon, Besançon, era geográfica e espiritualmente
muito mais próxima de Lyon do que de Paris. Proudhon passou boa parte
do período crucial de 1843—1847, quando escrevia seus trabalhos mais
importantes, em Lyon. Tomou o rótulo lyonense e o aplicou ao seu próprio
ideal de um novo tipo de relação contratual livre entre artesãos individuais

56 “Sou um anarquista em toda a extensão do termo”. Qu'est que la propriété, 1840, em Oeuvres
complètes, 1866, vol. i, p. 212. Às vezes ele emprega a forma an-archique (Carnets de P. J, Proudhon,
1960, vol. I, p. 203).
57 F. Rudé, “Le movement ouvrier à Lyon”, em Revue de Psychologie des Peuples, vol. xm, 1958,
pp. 231-235. P. Ansart, Naissance de l'anarchisme. Esquisse d'une explication sociologique du
proudhonisme, 1970, p. 165 ss.
506 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

numa empresa comum.58 O mutualismo de Proudhon representava um ideal


revolucionário social que estava bastante no ar em meados do século xix, mas
que foi em grande parte esquecido no século xx, uma vez que se opunha ao
comunismo. De modo similar, o ideal político do federalismo de Proudhon
foi ampiamente admirado em meados do século xix,59 mas foi depois obs­
cur ecido pelo conceito rival e predominante de nacionalismo.
O federalismo era “mutualismo transportado para a esfera política”, o único
princípio político que poderia contrabalançar a “centralização materialista”
do Estado nacional moderno.60 O federalismo era a concessão relutante que
Proudhon fazia à necessidade de organização política: a única esperança que
via de evitar guerras nacionalistas e de preservar o equilíbrio entre ordem e
liberdade. Tão profundo era o comprometimento de Proudhon com o prin­
cípio federal que se opôs à maior parte das causas revolucionárias sociais
de maior destaque dos anos 1860: a unificação da Itália, a independência da
Polônia, o partido da União na Guerra Civil Americana. Para cada um desses
casos, ele argumentava que políticos desencaminhados estavam simplesmente
criando maiores e mais impessoais concentrações de poder com a ajuda de
lemas políticos enganadores.61 Sobre Mazzini, perguntou: “Sabe ele o que fez
ao plebeu italiano ao transformá-lo num fanático por unidade? Estabeleceu
o reino da burguesia sobre ele”.62

58 Proudhon se opôs aos ateliês sociais organizados pelo Estado, defendidos por Louis Blanc, como
parte da “centralização artificial” (Solution du problème social, Oeuvres, voi. vi, p. 13) que os
parisienses estavam impondo ao resto da França, e defendeu que as “classes trabalhadoras” (que
não eram, em sua linguagem, um “proletariado” unitário) eram melhor servidas não em “capturar,
e sim em derrotar tanto o poder quanto o monopólio” (Confessions, p. 166, citado em Allen, p. 5).
59 A unificação da Itália e da Alemanha nos anos 1860 é vista não só como a vitória do nacionalismo
moderno, mas também como a derrota de uma predileção européia anterior pelos “experimentos
federativos”, em Binkley, Realism, p. 181 ss.
60 De la Capacité, 1924, p. 198 (v. também p. 404); e Idea of Revolution, p. 74. Para a evolução
das idéias de Proudhon, v. A. Bethod, “La théorie de l’état et du gouvernement dans l’oeuvre du
Proudhon. De l’anarchie au fédéralisme”, em Revue d’Histoire Économique et Sociale, vol. xi, 1923,
pp. 270-304; também Ansart, Sociologie de Proudhon, 1967, pp. 131-142.
61 V. seu Du Principe fédératif, 1863; e L. Abensour, “P. J. Proudhon et la Pologne”, em Grande Revue,
vol. CHI, 1920, pp. 3-15.
62 La Fédération et l’unité de l’Italie, 1862, pp. 27-28. V. discussão em Sairta, “L’idea di Europa”,
especialmente de Giuseppe Ferrari, o simpatizante italiano de Proudhon que temia que o advento
de grandes Estados destruísse de todo o domínio europeu em favor dos Estados Unidos, da Rússia
e, talvez, da China (Ferrari, La Chine et l’Europe, 1867, p. 598). Ferrari, embora ele próprio fosse
um professor, também compartilhava do temor que Proudhon tinha de intelectuais no poder. V. seu
Les philosophes salariés occupés à organiser une réaction occulte, 1849. V. o estudo de Ferrari sobre
Proudhon (1875) publicado em C. Saint-Beuve, P. J. Proudhon, sa vie et sa correspondance 1838-
1848, Milão, 1947, pp. 375—424; também C. Lovett, Giuseppe Ferrari and the Italian Revolution,
Chapel Hill, 1979.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON S07

Proudhon tinha uma preferência resoluta — muitos diriam reacionária —


por unidades sociais menores e mais personalizadas. Sua defesa apaixonada
da família rural tradicional (e seu concomitante ódio à “pornocracia” de
Paris) era parte de um localismo inflexível que tendia a preferir a Borgonha
à França, o Franco-Condado à Borgonha e a família ou vilarejo individual
ao Franco-Condado.63
Marx atacou essa atitude, chamando-a de “stirnerismo proudhonizado:
tudo a ser dissolvido em pequenos grupos ou comunas [...] enquanto a história
chega a um ponto de parada”.64 A perspectiva global de Marx favorecia “o
estabelecimento de economias e políticas de larga escala e a assimilação de
culturas e línguas mais limitadas”.65 Marx e Engels tinham especial desprezo
pelas “pequenas tradições de pessoas [...] em trajes populares” e certa paixão
pelo “direito que as grandes nações européias têm à existência separada e
independente”.66 Assim, Marx geralmente via com bons olhos as lutas de na­
ções maiores e mais desenvolvidas para se tornarem Estados (Itália, Hungria),
apoiava lutas menores que pudessem ajudar as maiores (Irlanda-Inglaterra)
e louvava as “classes nacionais” cujos interesses estivessem na vanguarda da
luta de uma nação com um destino histórico especial (a burguesia da Ale­
manha em 1848-1849). Contra o argumento proudhonista de que a causa
polonesa era uma “invenção bonapartista” para distrair a classe trabalhadora
das verdadeiras questões sociais, Marx insistiu, na Primeira Internacional,
que os poloneses mereciam apoio internacional contínuo tanto porque a
Polônia era uma grande nação “histórica” quanto porque sua condição de
nação era um pré-requisito para uma revolução alemã.

63 Jackson, Marx, Proudhon, p. 23. Contudo, Proudhon rejeitava a descentralização que fosse
meramente política em sua natureza, como aquela propagandeada pelo adversário alemão de Marx,
Moritz Rittinghausen, o qual defendia um tipo suíço de legislação local direta, Para Proudhon, isso
era ainda pior do que eleger representantes para uma assembléia distante, pois a legislação direta
impEca que o povo passe leis uniformes e restritivas, ao passo que legisladores eleitos ainda podem
manter a flexibilidade e representar a diversidade. Rittinghausen, Le Législation directe par le
peuple ou la véritable démocratie, 1850, é criticado em Proudhon, Idea, pp. 143-153; defendido por
Rittinghausen em La Législation directe par le peuple et ses adversaires, Bruxelas, 1852 (tradução
inglesa, introdução A. Harvey, Direct Legislation by the People, NY, 1897).
64 Carta de Marx a Engels, 20 de junho de 1866, citado em S. Bloom, “The World of Nations. A
Study of the National Implications in the Work of Karl Marx”, NY, 1941, pp. 28-29, um estudo
em geral negligenciado que se baseia —- e o refina (a partir da descoberta de novos manuscritos de
Marx e Engels sobre a questão polonesa) — em um artigo inédito de A. WaÜcki, “Marx, Engels and
Romantic Polish Nationalism”, 1977, ao qual devo esta análise.
65 Bloom, p. 36.
66 Citado em K. Marx, E Engels, The russian menace to Europe, Glencoe, 1952, pp. 99-100,
508 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Em sua hostilidade a todas as formas de poder centralizado, Proudhon atacou


Rousseau com particular malícia por ter tornado a tirania política “respeitável
ao fazê-la proceder do povo”.67 Proudhon viu com mais profundidade do que
a maioria dos outros radicais o perigo de guerra inerente à própria criação
do Estado industrial moderno. A guerra se tornava provável não só em razão
do monopólio do poder físico e da autoridade ideológica de que o Estado se
investia — mas também porque os padrões de comportamento tinham deixa­
do de ser morais e se tornado estéticos. Lemas abstratos e distantes conflitos
de fronteira haviam se tornado questões de importância física para as massas
desenraizadas que cada vez mais buscavam gênio artístico em seus líderes.68
Marx por vezes defendeu a guerra (geralmente contra a Rússia), mas a via
como um meio de apressar a revolução social e, assim, como um fenômeno
passageiro. Proudhon temia que a guerra tivesse um atrativo psicológico
duradouro e sugeria sua inevitabilidade em um mundo de nações soberanas:
“A guerra é a mais antiga das religiões e será a última”.69 A seu ver, conflitos
políticos tendiam sempre a se transformar em guerras. Uma vez que o conflito
não podia ser eliminado da vida humana, o fim da guerra requeria a elimina­
ção da política. Ao se concentrar mais em causas sociais do que políticas, a
França tinha agora a oportunidade de redirecionar a atenção da humanidade
para uma área na qual “a jurisdição da guerra é incompetente” e assim “criar
uma nova ordem espiritual”.70 O “valor criativo da guerra” não seria negado
nem suprimido, mas antes “transposto” para o trabalho criativo no qual as
“virtudes guerreiras” de orgulho individual e de trabalho coletivo estavam
igualmente envolvidas.71
O criador dessa nova ordem — que Proudhon chamou em suas últimas
obras de “terceiro mundo”, uma “nova democracia” — seriam as “classes
trabalhadoras” da França. Em Sobre a capacidade política das classes tra­

67 Proudhon, Idea, p. 118.


68 Uma longa e profética passagem de Proudhon sobre a inclinação das massas a julgar políticos a partir
de critérios estéticos numa era em que “le pouvoir s’était fait artiste” [o poder se tomou artista] é citada
por N. K. Mikhailovsky no começo de um artigo que critica o Estado moderno, o qual influenciou
especialmente o movimento populista na Rússia: “Conde Bismarck”, em Otechestvennye Zapiski,
1871, fev., em Sochineniia, São Petersburgo, 1897, voi. vi, pp. 71-72. V. também vol. 5, p. 15.
69 Le Guerre et la paix, 1861, § III.
70 La Guerre, p. 451 ss. As interpretações errôneas de Proudhon, que o retratam como um defensor
da guerra, tomam fora de contexto a sua seção anterior na qual trata da perdurável sedução da
guerra e dependência que boa parte da história e da arte tem para com ela. Proudhon chegou a ser
acusado até de proto-fascismo. V. J. Shapiro, “Pierre-Joseph Proudhon, Harbinger of Fascism”, em
American Historical Review, 1945, jul., pp. 714-737.
71 Dolléans, Proudhon, pp. 377-382.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 509

balhadoraS) sua última e póstuma obra, Proudhon estimulou o desenvolvi­


mento de um novo etos de “simplicidade democrática” dentro das classes
trabalhadoras: a construção não violenta de uma ordem social igualitária
por meio do mutualismo, ao nível local, e por meio de boicotes à ordem
burguesa, ao nível nacional.
(f) A religião era uma última área de separação entre Proudhon e Marx;
eles tinham atitudes radicalmente diferentes para com o legado judaico-cristão.
Marx era um ateu filosófico convicto. Embora bem versado nas Escrituras
quando jovem, não demonstrou quase nenhum interesse por elas quando
adulto. O seu herói era Prometeu, que havia roubado o fogo dos deuses; e
sua perspectiva era de condescendência, senão mesmo de desprezo, tanto
pelo seu legado judaico quanto pela tradição cristã alemã na qual ele havia
sido batizado. Via a religião como o ópio do povo72 e como a confusão dos
intelectuais.
Prodhon, por outro lado, era profunda e permanentemente perturbado
pelos ensinamentos cristãos. Não era de modo algum um crente em qualquer
sentido usual do termo. Mas seus escritos eram repletos de símbolos religio­
sos e de passagens bíblicas. Descreveu como as principais influências de sua
vida a Bíblia, em primeiro lugar, e em seguida Adam Smith e Hegel. Estas
duas últimas influências ele compartilhava com Marx; mas aquela primeira
era coisa que o distinguia. Sob muitos aspectos, provavelmente foi um leitor
mais completo do texto religioso do que do texto econômico ou do texto
filosófico, já que lia tanto o latim como o hebraico, mas jamais dominou o
inglês de Smith ou o alemão de Hegel.
Ele havia adquirido alguma familiaridade com a Bíblia na condição de
jovem compositor tipográfico em sua comunidade local73 e feito, já em data
recuada, um contraste entre a idéia bíblica de justiça e compaixão e a socie­
dade de conforto, indiferença e complacência que o cercava. Desenvolveu
especial repulsa pela sentimentalidade “neocristã” — “esses tolos que admiram
o cristianismo porque ele criou sinos e catedrais” — e um ódio vitalício pela
ureligião que se oferece como uma proteção para a classe média”.74
Para Marx, esse uso da religião pela classe governante era natural e inevi­
tável; era uma superestrutura de racionalização religiosa fadada a desaparecer

72 Essa famosa expressão, tirada da “Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, é citada
junto a outras passagens similares em Lewy, em Religion and Revolution, p. 542.
73 Jackson, Marx, Proudhon, pp. 16-18.
74 Citado em Lubac, pp. 81-83.
510 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

com a destruição revolucionária da infra-estrutura de formas sociais bur­


guesas. Mas Proudhon se afligia profundamente com qualquer identificação
do cristianismo com a ordem burguesa de Luís Filipe ou de Napoleão m.
Havia se tornado um porta-voz apaixonado da corrente do pensamento so­
cial francês que buscava separar o Cristo da Igreja: iguala radicalismo social
com verdadeiro cristianismo. Proudhon odiava a concepção saint-simoniana
de um “novo cristianismo”, a crença de que o povo precisava de uma nova
religião que o reconciliasse com uma nova elite científica. Proudhon não
perseguia nenhuma nova religião, mas antes a vitória final da Justiça sobre a
terra, que ele cada vez mais identificaria com a realização dos ensinamentos
de Cristo. Para Proudhon, Cristo era o ponto de partida da revolução e o
supremo mestre da Justiça — e assim, portanto, o homem que avalizava os
dois principais conceitos do revolucionário francês.75 Acreditava com Tolstói
que “somente a revolução que é impossível deter é uma revolução frutífera”,76
e que Cristo a havia deflagrado.77
Embora mais conhecido por sua influência sobre socialistas franceses e
anarquistas estrangeiros, Proudhon também influenciou muitos profetas
religiosos não ortodoxos da mudança social radical, porém não violenta.
Tolstói extraiu de Proudhon o título de seu mais importante romance, Guerra
e paz, e algumas de suas idéias posteriores.78 Martin Buber viu no mutualis-

75 A raison d’église dos fariseus, “os jesuítas de Jerusalém”, foi uma insidiosa precursora da raison
d’état dos “novos jesuítas”, os líderes políticos do moderno Estado jacobino. Ao combater tanto
a igreja como o Estado, Proudhon encontrou consolo no exemplo de Cristo (“Eu luto contra os
fortes; eu não esmago os fracos” — citado em Lubac, p. 65) e nas imagens do apocalipse cristão
(prevendo, em seu “Manifesto Revolucionário”, uma época iminente “quando a civilização nos
parecerá um perpétuo apocalipse [...] quando, por meio da reforma da sociedade, o cristianismo
terá recobrado sua força” [Le Peuple, 2 de setembro de 1848; em Dolléans, Proudhon, p. 149]). Na
sua última obra, caracterizou as classes operárias francesas como “esse Paráclito por cuja vinda os
apóstolos aguardam” (De la Capacité, pp. 129-130). Deixou o manuscrito de uma obra inacabada,
Cesarismo e Cristianismo, o qual em parte era uma reposta ao retrato de Cristo como um místico
sonhador feito por Renan em sua Vida de Jesus.
76 E. Simmons, Leo Tolstoy, Boston, 1946, pp. 649-650.
77 V. particularmente Proudhon, “Toast à la révolution”, em Le Peuple, 17 de outubro de 1848, em
Dolléans, Proudhon, pp. 150,215; “il n'y a pas eu plusieurs revolutions, il n'y a eu qu'une revolution.
La Révolution, il y a dix-huit siècles, s'appelait /’Évangile, la bonne nouvelle. [...] Ces chrétiens, ces
révolutionnaires firent la première et la plus grande des revolutions [...] la Révolution est en permanence
[...] il n’y a eu qu’une seule et même et perpétuelle révolution" [“não houve muitas revoluções, não
houve senão uma única revolução. A Revolução, já faz dezenove séculos, se chama Evangelho, a boa
nova... Esses cristãos, esses revolucionários fizeram a primeira e maior das revoluções... a Revolução
é permanente... não existe senão uma única e mesma e perpétua revolução”].
78 A dívida de Tolstói para com Proudhon ainda não foi estudada inteiramente. Algo nesse sentido foi
feito em S. Lafitte, “Tolstoi, Herzen et Proudhon”, em Studi in onore di Ettore Lo Gatto e Giovanni
Maver, Florença, 1962, pp. 381-393. Proudhon não só influenciou a oposição de Tolstoi à guerra e
ao poder do Estado que a cria, após encontrá-lo em Bruxelas um ano antes de publicar La Guerre
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 511

mo de Proudhon parte da inspiração moral para os kibutzim israelenses, os


quais por sua vez se constituíram em uma abordagem da propriedade social
“Personalistas” radicais e
que rivalizava com a da coletivização soviética.7980
padres-trabalhadores da França pós-Segunda Guerra Mundial também en­
contraram inspiração em Proudhon. Seu imenso número de partidários no
estrangeiro era maior naqueles países que combinavam tradições religiosas
poderosas com estruturas sociais reacionárias e autoritárias.
Embora a influência de Proudhon talvez tenha sido constatada de maneira
mais ampla no mundo latino, foi provavelmente mais importante na Rússia. As
singulares tradições do populismo russo foram profundamente influenciadas
por Proudhon desde o início por meio de seu impacto formativo pessoal sobre
Herzen e Bakunin, os dois principais autores pioneiros daquela ideologia.
O populismo russo se desenvolveu nos anos imediatamente posteriores à
morte de Proudhon, em 1865, no sentido de se tornar uma encarnação quase
perfeita das idéias proudhonistas. A glorificação de uma revolução social
não violenta a ser feita por meio de comuna e de arteF® era mutualismo
antipolitico em sua melhor expressão. A ideologia populista antiideológica,
antiautoritária e proto-cristã também partilhava dos temores de Proudhon
para com as cidades, o governo central e todo o léxico do constitucionalismo
liberal. Assim como os socialistas proudhonistas na França de fins do século
XIX, os populistas russos se dividiam numa ala “possibilista” moderada (os
“populistas legais”) e numa ala “anarcossindicalista” mais violenta81 (os
terroristas da organização Vontade do Povo e, mais tarde, do Partido Revo­
lucionário Socialista).

et la Paix; influenciou também o emigrado russo Barão E Fircks (Schedo-Ferroti), o qual, em 1864,
publicou em Bruxelas Le Program du congrès européen. Tratava-se do projeto proudhonista de
negar aos capitalistas o direito de fabricar armas e aos governos o direito de declarar guerra. V.
Dommanget, Blanqui et Popposition révolutionnaire à la fin du second empire, 1960, p. 15 ss.
79 M. Buber, Paths in Utopia, L, 1949, pp. 24-37, 86, 88,146-149. J. Bancal desenvolveu a idéia de
Buber fazendo uma distinção entre o “socialismo tópico” proudhoniano (com enraizamento orgânico
em alguma parte, por diminuta que seja) e o “socialismo utópico” dos intelectuais (localizado
somente na mente megalomaníaca). V. Proudhon pluralisme et autogestion, 1970, vol. U, p. 155.
Bancal chama Proudhon de “profeta do século xxi” (v. n, pp. 232-234) ao advogar autonomia do
trabalhador (autogestion), personalismo (v. n, pp. 219-220) e um pluralismo radical compatível
com o “pluralismo funcional da ciência moderna” (v. I, p. 181).
80 Espécie de cooperativa da Rússia pré-revolucionária na qual os trabalhadores viviam e trabalhavam
comumente, compartilhando os lucros, em geral, em partes iguais — nt.
81 G. Pirou, Proudhonisme et le syndicalisme révolutionnaire, 1910. A única monografia importante
que documenta a influência de Proudhon sobre algum russo é R. Labry, Herzen et Proudhon, 1928,
a qual foi em grande parte modificada e suplementada por M. Mervand, “Herzen et Proudhon”,
em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1971, jan.-jun., pp. 110-188. Ainda não existe nenhuma
pesquisa extensa da influência de Proudhon nem na Rússia nem no leste europeu.
512 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A paixão dos russos por respostas derradeiras os levou a desenvolver o


moralismo anti-sistemático de Proudhon em uma filosofia heróica da ação.
Mais próximo de uma expressão ideológica dessa atitude, que subjaz à
maior parte do populismo russo, estava o “método subjetivo” de Nicholas
Mikhailovsky. Este insistia que “o homem com sua carne e sangue, seus
pensamentos e sentimentos” deve ser o meio e o fim da luta revolucionária.
Lichnost\ a completude da personalidade em todo homem e mulher, não
poderia jamais “ser preterida por uma categoria abstrata”; e a crença heróica,
frequentemente anarquista, de que estavam “lutando pela individualidade”
impediu que a crença dos populistas russos no “povo” se transformasse numa
máscara para o coletivismo.82 Peter Kropotkin, um aristocrata convertido ao
populismo revolucionário ao fim dos anos 1860, deu nova e eloqüente voz
ao proudhonismo. Depois de viver entre os relojoeiros do Jura, observando
seu mutualismo disciplinado, e de discutir longamente com os exilados pre­
dominantemente proudhonistas da Comuna de Paris, Kropotkin retornou
a São Petersburgo para ajudar a estabelecer o primeiro grupo a organizar
e educar politicamente trabalhadores urbanos na Rússia, o assim chamado
Círculo de Chaikovsky, onde se originou boa parte da agitação mais ampla
dos anos 1870. Kropotkin deu mais vasta ressonância aos ideais de Proudhon
ao substituir o imperativo moral de “ajuda mútua” por teorias “científicas”
de conflito; e ao fim de 1873 elaborou uma espécie de manifesto populista
que repudiava todas as formas de constitucionalismo em favor de uma
federação de comunidades locais independentes controlada pelos próprios
trabalhadores e camponeses.83
No Ocidente, simultaneamente Bakunin desenvolvia, a partir da tradição
proudhonista, uma forma de anarquismo revolucionário ainda mais militan­
te. A luta resultante entre Bakunin e Marx foi, sob muitos aspectos, como
veremos, uma continuação do conflito anterior entre Marx e Proudhon.
Mas a Rússia do século xx (como a Alemanha de fins do século xix) viria
a seguir Marx e não Proudhon. Pois Marx havia feito uma análise mais
completa da Revolução Industrial e aceitado mais naturalmente o intermé­
dio da luta política. Embora poucos trabalhadores lessem seus escritos, ao
fim do século xix a reivindicação de Marx de autoridade científica exer­
ceu crescente atrativo sobre a primeira geração a experimentar educação
82 Citações e comentários em Billington, Mikhailovsky, pp. 27-41. Em uma carta a Proudhon de julho
de 1855 (Mervand, p. 113), Herzen escreveu: “Você é o único pensador autônomo da revolução”.
83 O documento “Dolzhny li my zaniafsai izucheniem ideala budushchego?” foi publicado pela primeira
vez apenas em russo (By/oe, 1921, n° 17); sua influência é discutida em Venturi, p. 483 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 10: O CISMA: MARX VS. PROUDHON 513

primária universal em escolas estatais seculares. O capital, a obra-prima


inconclusa de Marx do período pós-1848, era impenetrável para o traba­
lhador comum. Mesmo assim, este sentia: “Um respeito supersticioso pelo
que não compreendia. Havia duas condições: ela [a obra] explica tanto o
sofrimento pelo qual ele passa quanto a meta que ele se propõe. Proudhon
nunca soube como satisfazer a nenhuma dessas duas condições.84
Ainda assim, e a despeito das falhas inerentes de Proudhon e do aparente
triunfo do marxismo no século xx, o fantasma proudhonista não descansou
inteiramente. Pois a “nova esquerda” dos anos 1960 trazia claras semelhanças
com o velho proudhonismo. Havia, para começar, o moralismo intenso e
a rejeição quase anarquista de praticamente toda autoridade estabelecida.
Havia o desejo proudhonista correlato de pôr o poder diretamente nas
mãos do “povo”, em especial por meio de um fortalecimento não violento
de estruturas comunais locais. Ao mesmo tempo, havia um profundo anta­
gonismo a dogmas e à “mania de idéias”,85 bem como uma indiferença pela
história86 e uma suspeita para com a ciência. Acompanhavam Proudhon em
seu protesto contra o poder central remoto e em sua exigência de benefícios
concretos imediatos em lugar de objetos distantes e simbólicos promovidos
por governos.87 O “terceiro mundo” da nova esquerda era o mundo não
branco e extra-europeu oprimido tanto pelo capitalismo como pelo comu­
nismo. Mas se acreditava que esse novo “terceiro mundo” — assim como
o velho — era o portador de uma nova ordem social justamente em razão
de sua falta de participação nos processos existentes de poder. Enquanto
isso, hagiógrafos de Marx na União Soviética detectavam a mão do “ne-
oproudhonismo” por trás de uma variedade desconcertante de impulsos
autoritários; e denunciavam em minúcias o “retorno ao proudhonismo”.88
84 Bourguin, “Proudhon et Marx”, p. 106.
85 Idéomanie. V. Gurvitch, “Proudhon et Marx”, p. 10.
86 V. o que diz Saint-Beuve sobre Proudhon, discutido em Bourguin, p. 102.
87 Ansart, Naissance, pp. 250-253, sobre as relações com protestos mais recentes de jovens contra a
“externalização” do poder; também p. 236, contudo, sobre o protesto dos neo-românticos contra
o antifeminismo de Proudhon. Tendo sido Proudhon acusado (ou louvado) corno criador de tudo
que vai do fascismo ao déficit financeiro, suas opiniões sobre mulheres são agora lidas como
denunciadoras de homossexualismo. V. D. Guérin, “Proudhon et l’amour ‘unisexuel’”, em Arcadie,
jan.-fev., pp. 133-134.
88 N. Zastenker, pesquisador soviético erudito, mas um tanto deplorável, parece ter sido condenado a
passar a vida toda denunciando Proudhon e quem quer que já tenha dito algo de gentil a respeito
dele. Para amostras, v. seus artigos em lstorichesky Zhumal, 1944, n° 10-11; Literatumoe Nasledstvo,
vol. LXii, 1955; e Frantsuzsky Ezhegodnik, 1960. Dois de seus artigos — “Ideinoe bankrotsvo
sovremennogo neo-prudonizma”, em Voprosy Istorii, 1968, set., esp. pp. 93-94, e “Marx et Proudhon
aujourd’hui”, Cahiers du Communisme, 1969, fev.-mar. — são particularmente contrários a qualquer
514 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A controvérsia original entre Proudhon e Marx ocorreu em um período


sombrio do socialismo europeu: o terceiro quarto do século xix. Os primeiros
experimentos utópicos haviam fracassado; as revoluções de 1848-1850 ha­
viam fracassado; e os movimentos de massa de fins do século xix ainda não
haviam se amalgamado. Burguesia industrial e os grandes estruturadores do
Estado — Cavour e Napoleão in, Bismarck e Disraeli — pareciam triunfar
por toda parte. Mesmo assim, Marx e Proudhon continuavam a crer que
a sociedade burguesa estava condenada; e ambos reafirmaram, no período
mais sombrio de todos — as décadas de 1850 e 1860 —, sua crença numa
revolução social vindoura.
Marx baseava a sua fé revolucionária num extremamente abrangente
sistema da verdade; Proudhon, no fim das contas, oferecia apenas uma
crença apaixonada na Justiça. Talvez haja aí uma analogia com a Europa
do século XIII, quando chegava ao seu auge a prosperidade aparente da
civilização medieval, mas também quando surgiam duas novas ordens men-
dicantes pregando profeticamente a fraqueza interior daquela civilização: os
dominicanos e os franciscanos. Marx era o moderno Domingos, o Tomás
de Aquino construtor do sistema da igreja revolucionária; Proudhon era seu
São Francisco. O primeiro falava principalmente ao intelecto, o segundo
principalmente às emoções. Os franciscanos estavam sempre longe do poder
e mais próximos da heresia; mas foram os dominicanos que acenderam as
fogueiras da Inquisição e de Savonarola.

sugestão de síntese futura das idéias marxistas e proudhonistas — o que foi proposto por Gurvitch e
também no resumo de um colóquio por ocasião do centenário de Proudhon: Actualité de Proudhon,
p. 251.
CAPÍTULO 11
Um meio de comunicação mágico: o jornalismo

íC À imprensa é um tambor que conduz até a fronteira”, escreveu Ar-


ZA mand Marrast, editor do jornal National durante os levantes de
JL A. 1848 em Paris.1 As fronteiras eram físicas bem como espirituais,
pois, assim como o jornalismo levava os homens à revolução, de igual modo
jornalistas com freqüência abasteciam os movimentos daí resultantes. Marrast,
que, quando jovem, havia ajudado a escrever o libreto para o William Tell
de Rossini, deixara o tamboril do jornalismo e se tornara prefeito da Paris
revolucionária.
O último rei da França foi deposto literal e metaforicamente por jornalistas.
Émile Girardin, fundador do primeiro jornal barato de Paris voltado para as
massas, La Presse, procurou Luís Filipe e lhe disse, ao fim da manhã de 24
de fevereiro de 1848, que abdicasse do seu trono.2 Naquele exato momento,
formava-se um novo governo provisório na redação de outro jornal (o radical
La Réforme, de Flocon), depois de se ter consultado o conselho editorial de
um terceiro veículo (Le National, de Marrast).3
Um dos primeiros decretos do governo provisório garantiu ampla liberdade
de imprensa. A profusão de publicações revolucionárias não cabería apenas em
jornais tradicionais. Logo se desdobraram em cartazes, folhetos e letreiros, os

1 Marrast, “La presse révolutionnaire”, em Paris révolutionnaire, p. 348.


2 Robertson, 1848, p. 37.
3 Postgate, Revolution, p. 167; Robertson, 1848, pp. 28,40-41; Journal, p. 225.
516 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

quais Barmby fazia corresponder ao “pulso de um movimento intelectual que


pode ser contado em batidas por minuto” — uma saraivada de resposta contra
a “mosquetaria assassina de um despotismo morto, à deriva”. Essa efusão sem
precedentes representava “inscrições nas paredes dos Belsazares do mundo
inteiro!”,4 numa época na qual “impressores devem se tornar príncipes”.5
Fosse causa ou efeito, barômetro ou vela de ignição, a imprensa desem­
penhou um papel que foi tão central na revolução dos jovens intelectuais de
1848 quanto havia sido a conspiração de tipo maçônico nas revoluções dos
jovens oficiais no período de 1815 a 1825. Uma década de exuberante crítica
jornalística montou o palco para 1848. Mas o elo entre jornalismo e tradição
revolucionária moderna vai bem mais longe e pode chegar até a validar a
hipótese de que “toda mudança revolucionária nos meios de comunicação é
sucedida por uma mudança em toda a estrutura da sociedade”.6
A extraordinária importância do jornalismo para a Revolução Francesa
já foi salientada. Tanto no nível de mobilizações em massa e de populariza­
ção de idéias à la Marat ou Hébert, como no nível — à altura da elite — de
invenção de novas formas e palavras à la Bonneville ou Restii, foram os
jornalistas que providenciaram as baterias de fogo que levaram os franceses
a novos conceitos e também a novas conquistas.
O impacto do “quarto estado” durante os anos de 1789 a 1794 é tanto
mais notável por ter ocorrido numa era em grande medida pré-industrial.
A industrialização aumentou sensivelmente o número de jornalistas e sua
importância; e um grande número de revolucionários desenvolveu uma li­
gação quase fisiológica com a imprensa, a par de uma dependência pessoal
para com a escrita jornalística.
O tinir das prensas e o cheiro da tinta dos impressores estiveram perto
do movimento revolucionário em cada momento crítico de sua progressão
da conspiração à ideologia. Restii é o protótipo — ao criar a palavra “co­
munista” e fantasiar sobre o “ano 2000” durante a Revolução Francesa, em
comunhão privada com a sua própria prensa caseira — ao projetar os seus
próprios tipo e tipografia, alegrando-se com o ato físico de imprimir e com
a companhia de outros impressores. De modo similar, Joseph Applegath,
o primeiro homem a empregar a palavra “socialista” em seu sentido mo-

4 “The Placards of Paris”, em Howitt's Journal, 15 de abril de 1848, pp. 247-248.


5 Ibid., p. 248.
6 H. Innes, The Bias of Communications, Toronto, 1951, tal como resumido em G. Seldes, The New
Mass Media: Challenge to a Free Society, Washington, DC, 1968, p. 9.
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 517

derno, foi um engenheiro e “criador das prensas das quais se originaram


as máquinas modernas”.7 Os técnicos tipográficos da École Polytechnique
desempenharam importante papel no movimento saint-simoniano. Henry
Hetherington, pioneiro da imprensa radical barata e sem ilustrações, além
de um dos primeiros e decisivos organizadores do cartismo inglês, havia sido
aprendiz de Luke Hansard, o famoso impressor parlamentar. Sua vida se
passou literalmente em meio a prensas; e ordens judiciais de encerramento
de suas atividades eram com freqüência acompanhadas pela destruição física
da prensa e dos tipos a machadadas.8 A disseminação de doutrinas owenis-
tas junto à classe trabalhadora foi em grande parte obra de Hetherington e
outros impressores, a exemplo de George Mudie da Escócia.9 Hetherington
também ajudou a lançar a carreira jornalística de Barmby, que por sua vez
repopularizou a palavra “comunista”.10 Schapper, o fundador da Liga dos
Justos, havia sido estudante de silvicultura e tinha interesse pela produção
de papel e por impressão, bem como por idéias radicais. Proudhon aprendeu
a 1er enquanto trabalhava como aprendiz de impressor. O aprendizado em
uma oficina de imprensa induziu a um senso de identificação visceral com as
classes trabalhadoras nas canções de Béranger11 e nos folhetos de Proudhon.
Os compositores tiveram papel decisivo na formação de círculos revolu­
cionários entre os alemães emigrados do fim dos anos 1830. A comunidade
alemã em Paris se tornou cada vez mais revolucionária muito antes que Marx
se juntasse a ela em 1843. Um boletim da polícia de Paris detalhava a função
de destaque da sociedade de “demagogos alemães” e de sua subordinada
“sociedade de ação” — ambas fundadas em 1838. Dois dos três fundado­
res do primeiro desses grupos eram identificados como impressores (certo
Rauchfuss, originário da Prússia e adventício de sociedades secretas suíças, e
o “inteligente e influente demagogo” Trappe, originário de Dresden). O líder
da “sociedade de ação” era um “operário impressor” de Hanôver chamado
Rust, que, em 1830, com uma variedade de pseudônimos, havia fugido de
Gõttigen para a Bélgica, para a Suíça, juntando-se à campanha revolucionária
internacional contra a Sabóia antes de chegar a Paris em 1837.12

7 De acordo com Gans, “Origine”, p. 81.


8 V. o artigo de G. Holyoake no Dictionary of national biography, vol. dc, pp. 750-751; e seu Life of
Henry Hetherington, publicado no ano da morte de Hetherington, L, 1849.
9 J. Harrison, Utopianism and Education, Robert Owen and the Owenites, NY, 1968, p. 9.
10 Morton, Utopia, p. 135.
11 Fahmy-Bey, L’aventure, p. 30.
12 “Renseignements”, em Actualité de l’histoire, 1957, out., pp. 18-19.
518 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Foi desse grupo pioneiro que Weitling e Becker tomaram o talento e o


precedente para a primeira campanha de publicações comunistas na Suíça
de início da década de 1840.13 Em especial depois que as esperanças de
revolução se desfizeram com o fracasso da insurreição de 1839 em Paris, a
“sociedade de ação” alemã voltou suas atividades na Bélgica e em Luxem­
burgo inteiramente para a imprensa e propaganda.14
O jornalismo foi a mais importante atividade profissional para revolu­
cionários saint-simonianos e hegelianos. Hegel, quando jovem estudante de
teologia, havia substituído as preces matinais pela leitura de jornais ingleses
— um distante prenúncio do homem educado moderno que substitui a igreja
dominical pelo jornal dominical. Os saint-simonianos viam a imprensa como
o meio de propagação da teologia de sua nova religião da humanidade (assim
como o teatro lhe proveria sua nova liturgia).15
A profissão do jornalismo revolucionário se mesclou de maneira ainda mais
íntima com os novos meios de comunicação na Bruxelas dos anos 1840. Os
anos de desenvolvimento ideológico cruciais de Marx, que culminaram no
Manifesto Comunista, foram passados em Bruxelas, precisamente enquanto
ele aperfeiçoava a profissão de jornalista que havia adotado na vida adulta.
Bruxelas tinha se tornado o centro tanto do jornalismo revolucionário le­
galizado quanto do rápido desenvolvimento industrial depois da bem-sucedida
Revolução Belga de 1830. Buonarroti publicou sua história da Conspiração
de Babeuf em Bruxelas, lembrando seus companheiros ali que Babeuf havia
fundado o Journal de la Liberté de la Presse antes do seu Tribun du Peuple,
Jacob Kats, Louis de Potter e Felix Delhasse, discípulos belgas de Buonarroti,
direcionaram seus impulsos ativistas principalmente para o jornalismo,16 e
a euforia com o novo meio de comunicação se ampliou à medida que Bru­
xelas se tornava o eixo dos elos ferroviários e telegráficos entre a França, a
Inglaterra e o norte da Alemanha. O notável teórico social belga Napoleon
Barthel afirmava que esses novos meios de comunicação saudavam o advento
de uma nova “religião científica da humanidade”, que ele chamava “norma-
lismo”. Versado no estudo ocultista da frenologia e do magnetismo, Barthel
passou de um Manifesto Filosófico de 1839 a uma estranha produção no

13 Ibid., pp. 20-22.


14 Ibid., pp. 19-20.
15 A. Booth, Saint-Simon and the Saint-Simonians, L, 1871, p. 194.
16 Bertrand, Histoire, pp. 436—439; sobre o papel de estrangeiros emigrados na contínua agitação
revolucionária e jornalística da Bélgica, v. Battistini, Esuli italiani in Belgio, pp. 173-306.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 519

ano revolucionário de 1848: Da telegrafia física em geral, e em particular do


sistema de telegrafia eletromagnética de Napoleon Barth el.1718
O casamento do jornal impresso com a telegrafia e a audiência de mas­
sa ao fim dos anos 1840 fascinou emigrados incansáveis e desenraizados
como Marx. Os próprios títulos dos jornais com que os radicais alemães
contribuíam sugeriam a mobilização de palavras em prol da tecnologia: o
liberal Locomotiva, de Leipzig, o socialista Westphälische Dampfboot [bar­
co a vapor] e o diário editado por Gutzkow em Hamburgo, Telegraph für
Deutschland, Marx contribuiu com o Dampfboot™ e publicou no Telegraph
artigos a quatro mãos com Engels, cuja carreira de jornalista polêmico havia
se iniciado em 1841 num outro jornal também chamado Telegraph.19
A colaboração de toda a vida de Marx e Engels se iniciou, portanto, com
a atividade jornalística em Bruxelas: com a fundação do Comitê de Corres­
pondência Comunista em 1846 e, no ano seguinte, do Deutsche Brüsseler
Zeitung [Jornal Alemão de Bruxelas]. O seu primeiro emprego organizacional
do rótulo de comunista se deu com o Comitê de Correspondência, o qual, ao
que parece, buscou se infiltrar nas redes de correspondência e nas agências
telegráficas estabelecidas em Bruxelas, de modo a divulgar material num
amplo espectro de jornais europeus.
O Comitê de Correspondência parece ter tido relações com uma agência
de notícias de esquerda, o Escritório de Correspondência de Bruxelas, que um
colaborador próximo de Marx, Sebastien Seiler, havia ajudado a fundar em
1844.20 Jornalista radical e ex-colaborador de Marx no Rheinische Zeitung,
o suíço Seiler empregou o cunhado de Marx, Edgar von Westphalen, no seu
escritório. Bruxelas era a base de operações ideal. Relativamente livre de
censura, era o ponto de convergência de três grandes serviços de telégrafo
que estavam revolucionando o jornalismo: Reuters, da Inglaterra, Havas, da
França, e Wolff, da Alemanha. Suas linhas deveriam se cruzar em Bruxelas;
Marx e Seiler estavam aguardando.
Não apenas as primeiras esperanças, mas também as discussões seminais do
movimento revolucionário se desenvolveram à sombra da imprensa. Schapper
era o revisor de provas de Marx no Neue Rheinische Zeitung*, Stephen Born

17 Bertrand, p. 440.
18 H. Förder; Marx und Engels am Vorabend der Revolution; die Ausarbeitung der politischen Richtlinien
für die deutschen Kommunisten (1846-1848), 1960, pp. 75-95.
19 Cornu, Marx et Engels, vol. i, p. 253 ss.
20 Gründungsdokument, pp. 14-16; McLellan, Marx, pp. 152-153.
520 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

foi o seu tipógrafo no Deutscher Brüsseler Zeitung. Marx rejeitou o “ver­


dadeiro socialismo” dos jovens hegelianos e o comunismo semi-religioso de
Weitling atacando os seus respectivos jornais: o Westphälische Dampfboot
e o Volkstribun.11
Assim, o jornalismo feito por emigrados precedeu e ajudou a moldar as
idéias de Marx sobre organização revolucionária. Uma seqüência análoga
de fatos se daria no caso de Lênin, cujas idéias sobre organização política se
desenvolveríam em grande parte a partir das atividades do seu jornal Iskra
em 1900-1902, antes que um partido especificamente bolchevique surgisse
em 1903. Tanto o comunismo alemão quanto o bolchevismo russo foram
fundados por emigrados imersos no jornalismo, os quais se reuniram, com
meio século de distância, nas mesmas cidades de Bruxelas e de Londres.
Para compreender as origens do jornalismo ideológico que teve papel tão
central nos movimentos alemão e russo, deve-se começar pela história ante­
rior do jornalismo revolucionário na França. Em relação a isso, assim como
em relação a uma série de outras coisas, a Alemanha e a Rússia da segunda
metade do século xix estavam só mantendo vivas as esperanças que tinham
surgido e se frustrado na França.

O despertar francês
O surgimento de esperanças revolucionárias na França se ligava de perto às
mudanças nos meios de comunicação. Foi nesse campo específico que a nova
tecnologia da Revolução Industrial inglesa se uniu pela primeira vez às novas
idéias da revolução política francesa no início do século xix. Os resultados
foram tão explosivos para a política européia quanto a simultânea primeira
fusão de nitrogênio e glicerina no material bruto da nova dinamite.
A descoberta quase simultânea de métodos práticos para produção de
papel por meio de máquinas e para a aceleração da impressão por meio de
motor a vapor produziu, nos anos 1820, as primeiras grandes mudanças na
imprensa dos últimos dois séculos.21
22 O resultante advento do jornalismo de
massa moderno produziu mudanças de pensamento não menos abrangentes

21 As abordagens existentes da carreira de Marx como jornalista passam longe de esgotar o assunto:
L. Bittel, Karl Marx als Journalist, 1953; A. Hutt, “Karl Marx as a Journalist”, em Marxism Today,
1960, maio; e, com uma bibliografia mais completa, K. Seleznev, Rol’ K. Marksa i E Engel’sa v
sozdanii rabochei pechati, 1965.
22 G. Weill, Le Journal. Origines, évolution et rôle de la presse périodique, 1934, p. 195 ss. para um
relato sucinto das mudanças. V. também L. Radiguer, Maîtres imprimeurs et ouvriers typographes,
1903, p. 167 ss. sobre a tecnologia e a sociologia das mudanças.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 521

que aquelas produzidas antes pela introdução do alfabeto fonético e da im­


prensa (as revoluções “quirográfica” e “tipográfica”).23 O papel que Lutero,
a imprensa de Gutenberg e a Bíblia vernácula tiveram no século xvi foi, sob
muitos aspectos, desempenhado por Walters com o Times e Girardin com
La Presse no início do século xix.
Parece apropriado que a palavra magazine — empregada já no século
xviii para designar grossos jornais semanais ou mensais de crítica — tenha
sido utilizada para descrever concentrações tanto de pólvora explosiva como
de imprensa polêmica.24 Os jornais de massa sem ilustrações dos anos 1830
eram, nas palavras de um observador francês, “simplesmente uma máquina de
guerra”;25 e o desabrochar de uma imprensa diária barata depois da revogação
dos impostos que incidiam sobre ela aprofundou a paixão por conflito. Talvez
tenha havido uma inclinação especial para a crítica no desenvolvimento da
cultura impressa na França, pois se formou mais sob a influência de Rabelais e
Montaigne do que da Bíblia vernácula. Como disse um jornali^ta-revolucionário
dos anos 1840: “O estudo da imprensa francesa revela nela uma característica
que a distingue especialmente: em razão do simples fato de que exista, é revo­
lucionária [...] as grandes realizações, aquelas que são revividas de século em
século, pertencem apenas aos escritores revolucionários”.26
O papel poderoso que a imprensa teve durante a Revolução Francesa
fez com que governantes posteriores da França temessem outro Marat ou
Hébert. As restrições à imprensa se ampliaram e foram sistematicamente im­
postas por Napoleão. “Se afrouxo minhas rédeas sobre a imprensa, não fico
no poder nem três meses”, explicou.27 Dos cerca de 70 jornais de conteúdo

23 W. Ong, The Presence of the Word, New Haven, 1967, usa esses dois termos para designar os dois
estágios que sucedem e suplantam uma cultura oral anterior. De modo mais geral, ainda que com
menos sistematicidade, v. M. McLuhan, Understanding Media; the Extensions ofMan, NY, 1964; e a
obra de Innes, que muito o inspirou. Uma bibliografia útil sobre a revolução tipográfica se encontra
em E. Eisenstein, “Some Conjectures about the Impact of Printing on Western Society and Thought:
A Preliminary Report”, em Journal of Modern History, 1968, mar., pp. 1-56.
24 J. Kirchner, em Die Grundlagen des deutschens Zeitschriftenwesens, Leipzig, 1928, parte I, pp.
126-127, acompanha a origem do termo do plural arabico mahâzin até o italiano magazino (arsenal),
e daí passando à Inglaterra e desta à Alemanha em 1747. Essa história alemã (assim como as histórias
soviéticas) do jornalismo é rica em detalhes, mas não integra o seu tema especializado ao contexto
histórico geral.
25 L Faucher; “La Presse en Anglaterre”, em Revue des Deux Mondes, 15 de setembro de 1826, p.
692. A data e as páginas de referências desse artigo proveitoso são citadas de modo incorreto
em L. O’Boyle, “Ilie Image of the Journalist in France, Germany and England, 1815-1848”, em
Comparative Studies in Society and History, 1968, abr., p. 314.
26 Marrast em Paris révolutionnaire, p. 306.
27 Citado em C. Ledré, Histoire de la presse, 1958, p. 158.
522 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

político em circulação na região de Paris em 1800, só quatro permaneceram


ativos (todos eles sob restrições) à altura de 1811.28 Napoleão via a imprensa
inglesa como um de seus maiores inimigos, e fez grandes esforços para se
opor a ela, influenciá-la e até comprá-la.29 O seu próprio jornal semi-oficial
Moniteur fez pouco no sentido de angariar apoio público. De fato, “talvez
Napoleão tenha feito mais inimigos com esse desafortunado jornal do que
com os seus canhões”.30 Durante sua breve restauração em 1815 após sair da
Ilha de Elba, Napoleão gerou expectativas de uma imprensa livre — como
fez a Carta de 1815, após a deposição final de Napoleão.
Uma breve centelha de jornalismo revolucionário surgiu no Nain tricolore
de Robert Babeuf, o mais velho dos três filhos do conspirador.31 (Os outros
dois morreram em 1814 como soldados leais de Napoleão: Caius como
soldado do grande armée.* Camille como um suicida, atirando-se da Coluna
de Vendôme à vista da entrada das tropas aliadas em Paris). Robert seguiu
o caminho do seu pai no campo de batalha do jornalismo. Como livreiro,
impressor e às vezes panfletário em Paris, em Lyon e na Suíça, ele manteve
viva a velha tradição revolucionária ao longo do período napoleonico. Depois
de ser julgado e condenado à prisão no Monte Saint-Michel pela publicação
de um novo jornal em 1816, escreveu na prisão a obra em oito volumes
Martirológio da Revolução Francesa, ou Coleção monumental dedicada à
memória das vítimas por suas famílias. Quando solto em 1818, ficou sob
vigilância policial por 20 anos e se afastou de círculos revolucionários. Mas,
ao fim da década de 1820, renovou sua proximidade com Buonarroti, o
“querido amigo”32 e biógrafo do seu pai, assim provendo uma tênue linha
de continuidade entre os jornalistas revolucionários da década de 1790 e
aqueles da década de 1830.
Durante a Restauração, o Journal de l’Empire de Napoleão retomou seu
título anterior de Journal des Débats*, as forças foram transferidas do campo
de batalha do império para o campo de batalha do jornalismo da “juventude

28 Ibid.
29 E. Hamburger, “Episodes de la lute entre Napoléon 1er et la presse anglaise”, em Cahiers de la
Presse, 1938, out.-dez., pp. 617-623. O autor enfatiza a negligência dos historiadores para com
esse assunto, mas eie pròprio deixa de considerar H. Klein, Napoleon und die Presse. Napoleons
Kampf gegen die Presse, Bonn, 1918; também A. Periner, Napoléon journaliste, 1919.
30 Duchesse d’Abrantes, Mémoires, citado em Ledré, Histoire, p. 160.
31 G. Bourgin, “Note sur Robert Babeuf, fils de Gracchus et journaliste”, em Cahiers de la Presse, 1938,
abr.-jun., pp. 223-229; jul.-set., pp. 386-395.
32 Ibid., p. 394.
LIVRO II, CAPÌTOLO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 523

de 1815”: “Com o colapso do sistema imperial, quando seus braços cederam


de exaustão, os seus intelectos se elevaram para satisfazer sua necessidade de
atividade. As obras do espírito se sucederam às fadigas do corpo”.33
Surgiram jornais de todas as facções da assembléia — chegando aos extre­
mos da direita e da esquerda. Os “ultras” realistas reacionários que haviam
boicotado a nova assembléia encontraram suas vozes jornalísticas, assim
como as encontraram os republicanos radicais demasiado incendiários para
a assembléia e os mal disfarçados partidários da restauração napoleonica.
Não importa quais fossem suas posições, os jornais eram órgãos políticos
sectários que não faziam separação de noticiário e trabalho editorial. Somente
uns pouco centristas em torno de Guizot tinham algo que se aproximava de
um compromisso com a liberdade de expressão e a diversidade ideológica
como um valor a ser prezado em si mesmo; e esses moderados eram ridicu­
larizados como “doutrinários”.
A polêmica jornalística francesa ecoou com especial riqueza entre os
poloneses, que fortaleceram velhas expressões por meio de repetição ritual
e ganharam uma aura de heroísmo martirizado.34 As restrições e a censura
se iniciaram na Europa central com os Decretos de Carlsbad de 1819, aos
quais se seguiu, na França, a instituição da censura prévia em 1820. Altos e
baixos na curva em geral descendente da liberdade vieram a dar nos esforços
de Carlos x para suspender inteiramente a liberdade de imprensa às vésperas
da Revolução de 1830.
Os revolucionários de 1830 na França e na Bélgica esperavam pelo “dia
em que todo cidadão poderá ter uma prensa em seu lar, do mesmo modo
que tinha direito a ter caneta e papel”.35
Entre os muitos novos jornais, alguns começaram a clamar por mudança
não só política, mas também social. Horizontes inteiramente novos eram
sugeridos pelos próprios títulos dos dois jornais mais importantes: O Futuro
e O Globo.

33 Etienne Arago, em Paris révolutionnaire, p. 405.


34 Essa é a única tradição de jornalismo revolucionário cuja lexicologia e tradições foram submetidas a
cuidadoso estudo durante o importante período formativo. V. Pepiowski, Sloumictwo i frezeologie. O
impacto da tradição polonesa sobre a França e a Europa é discutido nas obras de L. Gocel, as quais
são em parte resumidas por ele em “Les débuts de la presse de la grande émigration polonaise en
France et son charactère clandestin (1832-1833)”, em Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine.
1968, abr.-jun., pp. 304-320.
35 A. Saint-Prosper, Du Monopole de l’imprimerie, 1831, citado em Radiguer; p. 190.
524 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÖR1A

O primeiro número de O Futuro, de 16 de outubro de 1830, marcou o


estabelecimento do Abade Lamennais como jornalista em tempo integral.
Até que fosse condenado pelo papa e seu jornal fechado dois anos depois,
Lamennais agitou o mundo católico pedindo por uma aliança da Igreja com
a mudança revolucionária, em vez de com a autoridade estabelecida. “O apa­
recimento desse jornal não foi, digamos assim, um acontecimento apenas na
França, mas em toda a Igreja Católica”, recorda-se um de seus entusiastas.36
Mais importante foi O Globo, de Pierre Leroux, com o qual, de resto,
inicia-se o jornalismo ideológico moderno. O Globo havia sido um órgão
especial do romantismo com uma equipe

[...] jovem e livre de qualquer compromisso com o passado [...] uma nova geração
[...] ligada à liberdade, sedenta de glória, sobretudo jovem. Com a fé ingênua da
juventude, com ilusões generosas e esperança ilimitada, vangloriavam-se de poder
evitar as armadilhas de seus pais e abraçar as conquistas da revolução, ao mesmo
tempo repudiando seus crimes.37

Em outubro de 1830, depois de alguns dos colaboradores liberais do


Journal terem aceitado cargos no governo de Luís Filipe, Leroux transformou
O Globo em um órgão saint-simoniano consciente, o qual teve importância
central na “evolução do romantismo francês até o socialismo”.38 A dedicação
à mudança social foi ratificada no pronunciamento solene: “A publicação de
O Globo não é uma especulação: é a obra de um apostolado”.39 O jornal
anunciou que seria distribuído de graça às novas igrejas saint-simonianas que
surgiam pela França, e foi espalhado por teatros e jardins. O Globo saltou de
tiragens de 2.500 exemplares em setembro de 1831 para 4.200 em janeiro de
1832.40 Seus correspondentes nas províncias deveríam recrutar partidários e
produzir um fluxo interno de notícias e externo de propaganda.41

36 C. Sainte-Foy, Souvenirs, p. 146, citado em Louis, Histoire, p. 438. Lamennais ajudou a levar o
impulso revolucionário além dos intelectuais anticlericais ao insistir nas características cristãs das
insurreições polonesa e belga. V. em particular C. de Coux, “Des Sociétés secrètes en Italie”, em
L’Avenir, 23 de abril, 1831.
37 Dubois, um editor anterior, citado em A. Lavi, ‘“Le Globe’ Sa fondation — sa redaction — son
influence d’après des documents inédits”, em Séances et Travaux de l’Académie des Sciences Morales
et Politiques, vol. clxi, 1904, pp. 588-590.
38 Evans, Socialisme, p. 34. A partir de 18 de julho de 1831, O Globo passou a trazer formalmente o
subtítulo de “Jornal da Doutrina de Saint-Simon”. V. G. Weill, L’École Saint-Simonienne, 1896, p.
65 ss.
39 Citado de O Globo, 9 de setembro de 1831, em J. Vidalenc, “Les techniques de la propagande
Saint-Simonienne à la fin de 1831”, em Archives de Sociologie des Religions, 1960, jul.-dez., p. 8.
40 Vidalenc, pp. 8, 14; também p. 12 para “a originalidade e amplitude dessa propaganda”.
41 Ibid., p. 13 ss. V. na p. 19 um mapa das igrejas e correspondentes saint-simonianos por toda a França.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 525

Leroux logo rompería com os saint-simonianos, mas só para vir a


propagar de modo ainda mais agressivo a idéia básica deles de usar os
meios de comunicação para fazer propaganda social. Ele se tornou uma
espécie de lexicógrafo-chefe da esquerda revolucionária — por meio da
Revue Encyclopédique (1831), da Nouvelle Encyclopédie (1834), da Revue
Indépendante (que co-editou corn George Sand em 1841 e que afinal
passaria às mãos de Louis Blanc em 1842) e da Revue Sociale (1843). Foi
o primeiro a popularizar a palavra “socialismo”, em grande parte como
termo insultuoso aplicado aos saint-simonianos (“que transformariam a
humanidade em uma máquina”), e o termo “individualismo” (uma ainda
pior heresia inglesa “que, em nome da liberdade, transforma os homens em
lobos vorazes”).42 Deu uma nova intensidade religiosa à palavra “humani­
dade”43 e cunhou a palavra “solidariedade”44 para a doutrina social que,
segundo esperava, a uniria. Ele próprio foi vítima da dinâmica de denún­
cia por rótulos. Tendo denunciado os saint-simonianos por construir um
“novo papado” com sua mot talismanique (socialismo) nos anos 1830, foi
acusado da mesma tendência nos anos 1840 pela estrela crítica ascendente
Sainte-Beuve, que a propósito de sua Révue Indépendante afirmou que “o
fim é o comunismo e Leroux é o seu papa”.45
Leroux tinha um fascínio quase totèmico pelo novo meio de comunica­
ção. Sua ligação à imprensa pode quase ser chamada de edipica. O primeiro
artigo que escreveu foi publicado em 1822 com o nome de sua mãe, que
havia morrido no ano anterior; e o artigo divulgava o projeto visionário de
uma nova tipografia — o pianotype — que operaria como um piano e tor­
naria o próprio ato de compor os tipos uma experiência estética.46 (Outro
impressor tentaria pouco depois montar uma tipografia de piano em Lyon).
42 Citado de seu artigo “De l’individualisme et du socialisme”, em Evans, Socialisme, pp. 223-224. O
artigo foi publicado pela primeira vez com outro título em Revue Encyclopédique, 1833, out., pp.
94-117, mas foi publicado formalmente só até 1834.
43 V. em particular seu De l’Humanité, de son príncipe, et de son avenir; où se trouve exposée la vraie
définition de la religion, et où l’on explique le sens, la suite, et l’enchaînement du Mosaïsme et du
Christianisme, 1840,2 vol..; 2a ed., 1845. Ao dar a esse termo um sentido social, preparou o caminho
para o seu emprego como título do primeiro órgão do socialista francês Jean Jaurès, do qual foi
tomado como nome para o jornal do moderno partido comunista francês.
44 Esse termo sofreu variações com o uso posterior, até mesmo pela direita. V. J. Hayward, “Solidarity:
The Social History of an Idea in 19th Century France”, em international Review of Social History,
vol. tv, 1959, pp. 261-284.
45 Citado em Evans, p. 39.
46 Originalmente intitulado Nouveau procédé typographique qui réunit les avantages de !imprimerie
mobile et du stéréotype”, republicado como “D’une nouvelle typographique”, em Revue
Indépendante, 1843, jan. V. Evans, Socialisme, p. 240.
526 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

As expectativas utópicas em torno da imprensa prenunciavam as grandes


expectativas que se desenvolveríam em torno da própria sociedade.
Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, Josiah Warren, de Cin­
cinnati, buscava propagar a mensagem revolucionária por meio de um for­
mato tipogràfico inteiramente novo que envolvia prensa de alta velocidade,
moldes de tipos e de faces, estereotipias e impressores cilíndricos. Veterano
da Nova Harmonia de Owen, Warren foi talvez o primeiro a popularizar a
palavra socialista no Novo Mundo. Viria a definir a sua variedade específica
de anarquismo pacifista como “universologia” — afirmando que as formas
políticas de governo são agora irrelevantes, que “a influência pública é o
verdadeiro governo do mundo” e que a imprensa deveria doravante ser a
principal arma desse “poder governante”.47
Enquanto Warren era contrário à “formação de sociedades ou de qualquer
outra combinação artificial”,48 Leroux buscava, de sua parte, algum novo
princípio de associação humana. No mesmo ano de 1833 em que Warren
escreveu O Revolucionista Pacífico, o irmão de Leroux, Jules, endereçou um
chamado “aos trabalhadores tipográficos” sobre a “necessidade de fundar
uma associação com o propósito de tornar os trabalhadores proprietários
de seus meios de trabalho”.49 O último grande jornal de Pierre Leroux foi
produto de uma associação de imprensa que ele fundou numa pequena cidade
do Maciço Central, com o objetivo de servir de “templo” para a humanidade
e de “solução pacífica do problema do proletariado”.50
Os ministros de Luís Filipe viam a livre imprensa como um “solvente uni­
versal”51 e abriram mais de quatrocentos processos de imprensa entre 1831
e 1832.52 O exemplo da Inglaterra foi visto como um perigo ainda maior,
pois os radicais filosóficos se utilizaram da imprensa para criar pressão em
defesa da ampliação do sufrágio na Lei de Reforma de 1832.53 Uma pesquisa

47 Warren, Manifesto, Berkeley Heights, N. J., 1952 (originalmente 1841), p. 6.


48 Ibid., p. 1.
49 J. Leroux, Aux ouvriers typographiques. De la nécessité de fonder une association ayant pour but
de rendre les ouvriers propriétaires des instruments de travail, 1833.
50 Respectivamente do subtítulo e da epígrafe de seu Revue sociale ou solution pacifique du problème
du prolétariat. Após o golpe de Napoleão ni, Leroux acabou por se retirar para a Ilha de Jersey,
onde realizava os experimentos de agricultura capazes de manter vivo — embora em miniatura — o
seu ideal.
51 Citado em Ledré, Histoire, pp. 201-202.
52 Ibid., p. 209.
53 Eles simulavam a ameaça de revolução para criar pressão por reforma. V. J. Hamburger, James Mill
and the Art of Revolution, New Haven, 1963.
LIVRO II. CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 527

francesa oficial sobre a imprensa realizada em 1833 aferiu, com alarme, o


poder do novo meio de comunicação:

Um livro é frio e lento como um monólogo demorado diante de um espectador


distraído. Num jornal, ao contrário, a conseqüência se segue à ação. Essa idéia que
você atira ao jornal fará amanhã uma jornada por toda a França. [...] Cria elos
secretos entre o jornalista e amigos desconhecidos que ele nunca viu nem nunca
verá, mas para os quais o seu pensamento é um alimento vital [...].54

Temendo que esse “alimento” estivesse criando o seu próprio apetite,


o governo francês tomou medidas restritivas da liberdade de imprensa em
setembro de 1835.
O verdadeiro desafio para a imprensa radical veio, contudo, menos das
restrições governamentais do que das distrações burguesas. Em 1836, Paris
revolucionou o jornalismo com a criação de dois jornais que custavam a me­
tade do preço de seus predecessores e se destinavam menos a instruir do que
a divertir. La Presse, de Emile Girardin, e Le Siècle, de Dutacq, apareceram
quase ao mesmo tempo em julho e elevaram o jornalismo de massa moder­
no ao primeiro plano da história. A imprensa diária agora se comprometia
a “estudar com esmero o gosto comum e satisfazer constantemente suas
exigências mutáveis (ses mobiles exigences)”.55 Girardin buscou oferecer
“publicidade de fatos e não polêmica de idéias”.56 Ele e Dutacq desenvol­
veram a já estabelecida tradição dos sensacionalistas canards — ficções
jornalísticas iniciadas em 1874 com a “descoberta”, no Chile, de uma harpia
monstruosa de 4,5 metros de altura e quase sete metros de extensão, gênero
que havia sido encorajado por Luís xviii.57 Também foram importantes
os romans-feuilletons, que alcançaram o público através do novo meio de
comunicação, a começar pelo romance de sucesso esmagador de Alexandre
Dumas, Os très mosqueteiros, publicado em Le Siècle.
Os novos diários de massa foram “além da ideologia”, substituindo a
política pelo entretenimento, criando heróis literários na ausência de heróis
políticos de verdade. Na década que se seguiu a 1836, a taxa de leitores de

54 Citado em G. Perreux, Au temps des sociétés secrètes, 1931, p. 168.


55 Prospecto de Le Siècle, 23 de junho de 1836, citado em V. Ainvelle, La presse en France. Genèse et
évolution de ses fonctions psycho-sociales, 1965, p. 205.
56 “Publicité des faits et non polémique des idées”, ibid.
57 Hatin, Histoire, pp. 149-152; também J.-P. Seguin, Nouvelles à sensation. Canards du xixe siècle,
1959.
528 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

diários em Paris cresceu de 70 mil para 200 mil.58 O jornalismo se tornou


um substituto para a política e a educação numa sociedade onde o acesso
ao parlamento e às universidades aumentou sensivelmente durante o mesmo
período. Como um francês notou em 1838: “Num país onde existe mais
liberdade do que educação, a imprensa tenta determinar (e não só repetir) o
que todos pensam”.59 Ele via a imprensa de massa criar uma “nova demo­
cracia” ao proporcionar um tribunal para o povo que era “mais alto do que
o tribunal dos juizes, do que o trono dos reis, e devo dizer ainda que mais
alto que o altar do Deus vivo”.60

O poder das imagens

As imagens se tornaram uma arma favorita do novo jornalismo radical


pela primeira vez em novembro de 1830, quando as caricaturas assinadas
por Honoré Daumier, então com 22 anos de idade, começaram a ser publi­
cadas no novo semanário La Caricature. A palavra “caricatura” se origina
do italiano caricare^ recarregar uma arma, e havia mais do que um pouco de
poder explosivo na nova imprensa ilustrada. Era não raro mais fácil chegar
ao homem do povo por meio de imagens do que por meio de palavras: mais
por meio do denominador comum da emoção do que por meio da qualidade
desigual da razão.
A virada na direção dos efeitos visuais, do “jornalismo tornado carne”,61
ajudou a levar o jornalismo ainda mais profundamente para a crítica social.
A Revolução Francesa havia sido consagrada na imaginação como uma série
de quadros: o juramento do jogo da pela, a tomada da Bastilha e infinitas
procissões até a guilhotina ou até o campo de batalha. Napoleão havia
mesclado a teatralidade real com a iconografia revolucionária. De David a
Delacroix, os pintores franceses tentaram dar forma pictórica aos anseios
revolucionários. Símbolos visuais em moedas e calendários, estátuas e cartazes
proporcionaram uma sinalização e uma sacralização para a fé revolucionária.

58 Ibid., p. 202.
59 Edouard Alletz, De la démocratie nouvelle, 1838, vol. ii, pp. 65—66.
60 Ibid., p. 64.
61 Descrição de Charles Philipon, fundador de La Caricature, citado em O. Larkin, Daumier: Man of
His Time, NY, 1966, p. 14. Sobre a história posterior e a importância social do cartunismo politico
no mundo moderno, v. a bibliografia em L. Streicher, “David Low and the Sociology of Caricature”,
em Comparative Studies in Society and History, vol. vin, 1965-1966, n° 1, pp. 1-2; e vários outros
artigos sobre o assunto nas edições posteriores do mesmo periódico, em especial W. Coupe, “The
German Cartoon and the Revolution of 1848”, vol. ix, 1967, n° 2, pp. 137-167.
LIVRO IL CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 529

Luís Filipe tentou sem sucesso sistematizar a parafernália visual da tradição


revolucionária nos prédios públicos e nos símbolos civis. Mas as imagens
inesquecíveis de sua época não foram as de monumentos construídos para
louvá-lo, e sim de desenhos para criticá-lo. Daumier, que por uma ironia
havia antes sido aprendiz no Museu dos Monumentos da França, trouxe
uma vitalidade de escultor aos seus monumentos de sátira política contra
o roi-mitoyen. Não foram capazes de o deter nem os seis meses de prisão
depois de retratar o rei como Gargantua em 1832, nem as restrições legais
contra caricaturar a realeza lançadas em 1835. Daumier apenas passou ao
campo mais rico da sátira social contra a burguesia em geral. No seu próprio
diário, Le Charivari, assim como em La Caricature e em outro novo jornal,
Le Corsaire, ele estimulou a criação de uma consciência de classe provavel­
mente mais do que qualquer panfletário socialista, ao retratar a burguesia
como uma “pança legislativa” inchada de interesse próprio.
Nenhuma palavra era capaz de dissipar os seus desenhos depois de terem
sido plantados na imaginação popular. Lamennais observou que “a própria
inteligência e o talento estavam do lado da república”.62 A litografia a giz
foi o primeiro meio barato de reproduzir um desenho “sem alterações, na
verdade do jeito que o artista o fez”,63 e não precisava que se tivesse acesso à
figura que estava sendo representada. O departamento do Sena, na época de
Daumier, possuía 24 casas de litografia, com 180 prensas e 500 trabalhadores.
A litografia de Daumier deixou no jornalismo moderno um retrato negativo
indelével da sociedade burguesa. Muitos de seus protótipos foram depois sis­
tematizados quase mecanicamente na cultura de desenhos da União Soviética.
O desenvolvimento do jornalismo ilustrado, da gravura à fotografia off-set,
envolvia tecnologias que, no entanto, eram mais caras do que os revolucio­
nários podiam pagar. Uma nova era de distração ilustrada se iniciou com a
aparição de Punch em 1841, à qual se seguiu, dois anos depois, a aparição do
Illustrated London News, de L'Illustration em Paris e do Illustrierte Zeitung

62 Lamennais, Correspondance, vol. n, p. 321, citado em Hatin, Histoire, p. 146; também p. 144 ss.;
e Ledré, La Presse, p. 142 ss.
63 Joseph Pennell, citado em Larkin, Daumier, p. 15. V. também A. Blum, “La Caricature politique sous
la monarchie de juillet*’, em Gazette des Beaux-Arts, 1920, mar.-abr., pp. 257-277. Os revolucionários
não empregam, claro, a litografia apenas em ilustrações. Louis Kossuth a utilizou como um jovem
delegado da Dieta Húngara em 1834 para publicar o procès-verbal daquela organização até então
secreta. V. Weill, Journal, pp. 188-189. A caricatura também floresceu por um breve período na
Rússia entre a revogação da censura sobre a litografia em maio de 1842 e a renovada política de
repressão de fevereiro de 1843. V. K. Koszyk, Deutsche Presse bn 19, Jahrhundert, 1966, p. 88.
530 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

em Leipzig.64 O jornalismo ilustrado de massa passou, assim, da ideologia ao


entretenimento e daí — em parte por puro tédio — ao entusiasmo chauvinista.
O extasiado soneto de dedicatória do primeiro número de The Illustrated
London News parecia profetizar guerras vindouras:

Ao Grande Público — gigantesca alma


Que ao corpo da nação dá vida e cor
E enche o sangue de suas veias de fulgor,
Sangue a espargir. [...]

[...] Sobre as simples notícias


Adornadas e preenchidas de cores
De mil tons — esse arco-íris das dores,
Das emoções todas do mundo inteiro.65

A convergência de desenvolvimentos tecnológicos — a chegada de serviços


de barco a vapor a toda a Europa nos anos 1830 e o início das atividades de
novas linhas de trem — preparou o caminho para que o jornalismo de massa
espalhasse suas imagens desse “arco-íris das dores, das emoções todas do
mundo inteiro”. Se George iv levou quase dois meses para receber notícias
da morte de Napoleão em 1821, já em 1840 as notícias viajavam de Lon­
dres a Paris (por pombo-correio) em sete horas.66 A era dos correspondentes
estrangeiros e das agências de notícia se iniciou em 1835, quando Charles
Havas, um fabricante de armas que parecia perceber o poder explosivo da
imprensa, criou, em Paris, L’Agence Havas. A telegrafia elétrica se tornou pela
primeira vez parte regular de um serviço de notícias no Morning Chronicle
de Londres em 1845.67 Bernard Wolf estabeleceu um escritório de corres­
pondência telegráfica em Berlim no ano de 1849; e se fez a ligação dessas
duas redes telegráficas com um terceiro serviço — o mais importante deles
— quando a Reuters, de Londres, fez suas linhas passarem por Bruxelas e
chegarem a Aachen em 1850, tendo ainda completado o cabo Dover-Calais
em 1851. Ao fim da década, esses três serviços estariam trocando notícias,
e mais uma década depois começariam a operar a divisão da cobertura
mundial de notícias.68

64 V. Progress of British Newspapers in the Nineteenth Century, L, s/d., p. 45 (um compêndio feito
pela Swan Eletric Engineering Company no início do século).
65 Illustrated London News, vol. i (1842, 14 de maio — 31 de dezembro), p. iv.
66 A. Chesnier du Chesne, “L’Agence Havas”, em Cahiers de la Presse, 1938, jan.-mar., p. 106.
67 Weill, Journal, p, 199.
68 Koszyk, Deutsche Presse, pp. 212-213.
LIVRO IL CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 531

A criação de uma rede mundial de notícias, contudo, não levou à paz, e


sim a uma busca incansável por novas aventuras estrangeiras. A nova tec­
nologia telegráfica trouxe entusiasmo do estrangeiro, mesmo com a amplia­
ção do controle policial internamente. A rede de comunicações telegráficas
desenvolvida na Inglaterra da década de 1840 ajudou a garantir a efetiva e
uniforme supressão do movimento cartista,69 do mesmo modo como a estrada
de ferro havia auxiliado a repressão de Napoleão ao levante parisiense do
outro lado do canal.
O jornalismo revolucionário procurou engajar não só os olhos, mas
também os ouvidos — por meio de jornais como La Ruche Populaire, fun­
dado em 1839 pelo compositor popular saint-simoniano Jules Vinçard. Os
alemães, em particular, desenvolveram um estilo que se poderia chamar de
encantatório. Já em 1818-1819, um jornal de Weimar, Patriot (órgão da mais
revolucionária das Burschenschaften [fraternidades], a dos “Incondicionais”),
lançou seus objetivos numa Grosses Lied [grande canção] — “Ein Reich [...]
ein Gott, ein Volk, Ein Wille [...] [Um Império... um Deus, um povo, Urna
vontade...]”70 —, cuja feição parecia a de uma estranha antecipação dos
encantamentos nazistas em Nuremberg em 1934. O irmão de Karl Folien,
Adolf Ludwig Folien, dizia que “os jornais são o vento que faz girar os
cata-ventos”.71 Ele tentou estimular uma revolução popular na Alemanha
se valendo de propaganda jornalística baseada principalmente em canções
de heroísmo e sacrifício. Seu livro de canções militantes, Vozes livres da
nova juventude, ajudou Karl Sand a cometer assassinato político em 1819
invocando uma série de modelos históricos, os quais vão de William Tell ao
insurreto contemporâneo Andreas Hofer.72
A imprensa comunista alemã na Suíça de início dos anos 1840 acrescentou
um elemento semi-religioso que lembrava, às vezes, o tipo de hinos e de leituras
familiares próprios à Reforma. Canções e responsórios eram impressos de
diversas maneiras e destinados a ser lidos em voz alta — antes em encontros
comunais de trabalhadores do que silenciosa e individualmente junto a uma
lareira burguesa. Houve até uma “Oração do Senhor Deus Comunista”:

69 E Mather, “The Railways, the Eletric Telegraph and Public Order during the Chartist Period,
1837-1848”, em History, 1953, fev., esp. pp. 48-51.
70 W. Schröder, “Politische Ansichten und Aktionen der ‘Unbedingten’ in der Burschenschaft”, em
Wissenschaftliche Zeitschrift der Universität Jena, vol. xv, 1966, n° 2, p. 236.
71 Ibid., p. 235.
72 Freie Stimmen frischer Jugend, 1819, discutido em Schröder, p. 237.
532 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Also sei’s! In deinem heil’gen Namen


Werfen wir den alten Trödel um:
Keine Herrn und keine Diener! Amen!
Abgeschaft das Geld und Eigentum!

[Que assim seja! Por teu sagrado nome


Derrubaremos esse velho entulho;
Sem senhores e sem escravos! Amém!
Abolidos o dinheiro e a propriedade!]73

O jornalismo ideológico na Alemanha e na Rússia


Essa mobilização de emoções por meio da imprensa ajudou a criar uma con­
cepção quase religiosa de jornalismo numa nova geração de exilados alemães
e russos. Desesperados com o fracasso de 1848, eles desenvolveram a idéia
de que o jornalista não era um mero “apóstolo”, mas também um profeta e
um sacerdote. Compartilhavam a crença, expressa um século depois por um
comunista moribundo, de que suas almas “se corroeriam permanentemen­
te” caso não desempenhassem seus sagrados deveres dia após dia: “Encarei
minha profissão como uma religião. Editar meus artigos diários era o meu
sacramento diário”.74
Essa dedicação ideológica de jornalistas comunistas de meados do século
XX era, de certa forma, o efeito atrasado da revolução das comunicações de
um século antes: a descoberta da palavra “comunista” no jornalismo dos
anos 1840 e a relação entre jornalismo ideológico e organização revolucio­
nária nos anos 1850.
A Londres vitoriana era a cidade santa da nova fé no poder da imprensa.
Mill escreveu que “a subversão das instituições estabelecidas não é nada mais
do que uma conseqüência da subversão prévia das opiniões estabelecidas”.75
Julian Harney, ao fundar tanto a ala radical do movimento cartista quanto
a Associação Democrática em 1837, insistiu na dependência de ambas de

73 Citado em G. Bravo, “II comunismo tedesco in Svizzera. August Becker 1843-1846”, em Annali, vol.
vi, p. 540, nota 63. V. também outros exemplos e elementos (com fontes citadas) à p. 538 ss., esp.
a publicação anônima de Ludwig Seeger e August Becker, Politisch-soziale Gedichte von Heinz und
Kunz, Berna, 1844; W. Schieder, “Wilhelm Weitling und die Deutsche politische Handwerkerlyrik
im Vormärz”, em International Review of Social History, vol. v, 1960, n° 2, pp. 265-290. A obra-
prima de Cieszkowski, “Pai-Nosso”, buscava extrair toda uma filosofia da ação social com base na
oração. V. A. Chrzanowski, Ojcze Nasz Augusta Cieszkowskiego, Poznán, 1918.
74 Gabriel Pari, citado por R. Callas, “Le rôle considérable de notre presse dans la propagation des
idées communistes”, em Cahiers du Communisme, 1958, fev., p. 241.
75 Citado em J. Hamburger, Intellectuals in Politics. J. S. Mill and the Philosophie Radicals, New Haven,
1965, p. 127.
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 533

apoio jornalístico: “Iniciar-se-á uma nova era” somente com “a libertação


da imprensa”.76 O comunista pioneiro Théophile Thoré se defendeu no seu
julgamento, em 1840, como uma espécie de Sócrates que substituiu a cicuta
filosófica pela tinta de impressori “Graças à impressão e à imprensa, hoje
temos meio de propaganda intelectual que os antigos não seriam capazes de
imaginar. Sem necessidade de conversar em lojas nem de pregar nas praças,
podemos enviar radiações de nosso pensamento diretamente até os corações
dos homens de boa vontade”.77
Barmby via a imprensa como substitutivo tanto de Cristo como de Sócrates:
“Desde a descoberta da imprensa [...] a missão do editor ultrapassou com
folga a do pároco-sacerdote, a mesa de trabalho se tornou mais útil do que
o púlpito, o artigo de destaque da edição de sábado mais salvador do que o
arrastado sermão de domingo”.78
A crença na função sacerdotal do jornalismo radical levou a sentimentos
de sucessão apostólica entre os jornais. A tradição revolucionária húngara
se erigiu com base no poder carismático do diário de Louis Kossuth Pesti
Hírlap (Jornal de Pest), o qual saltou, ao longo de um semestre de 1841, de
60 para 5 mil assinantes.79 A tradição revolucionária russa também se eri­
giu, de modo similar, com base no encanto de Vissarion Belinsky, jornalista
radical dos anos 1840. Seu exemplo de protesto apaixonado por meio de
“jornais grossos” legitimou o impulso revolucionário e compensou a falta
de oposição política. Uma linha de sucessão apostólica se seguiu à morte
de Belinsky em 1848: Chernyshevsky e Dobroliubov no O Contemporâneo
de fim dos anos 1850 e início dos anos 1860, Pisaev no A Palavra Russa de
meados da década de 1860, e Mikhailovsky no jornal prévio de Belinsky,
Anais da Pátria, ao fim da década de 1860 e ao longo da de 1870.80

76 Citado em A. Schoyen, The Chartist Challenge, L, 1958, p. 6.


77 Procès de T. Thoré, p. 24.
78 “Addres to our readers”, em The Promethean or Communitarian Apostle, 12 de janeiro de 1842.
79 G. Barany, Stephen Széchenyi and the Awekening of Hungary, 1791-1841, Princeton, 1968, pp.
382-383. Mazzini chamou o seu jornalismo, que havia alcançado sucesso similar, de “um ato
sacerdotal, a obra de um apostolado”. Ravenna, Giornalismo, p. 5.
80 O busto de Belinsky feito por Mikhailovsky era um claro substituto de ícone, e sua escrivaninha, sobre
a qual ficava o busco, foi descrita como “um altar sobre o qual ele celebra os seus ritos sagrados”.
V. Timofeeva, Gleb Uspensky v Zhizni, 1935, p. 115.
As pesquisas dos soviéticos resgataram Mikhailovsky do esquecimento do periodo stalinista. Mas,
como ele viveu no início do século xx e incorreu na ira polêmica de Lênin, ainda não foi incorporado
à hagiografia revolucionária. Sobre as suas ligações jornalísticas, bem como para ter acesso a um
sumário da nova literatura soviética desde a publicação em 1958 de Billington, Mikhailovsky, v.
V. Tvardovskaia, “N. K. Mikhailovsky i ‘Narodnaia Volia’”, em Istoricheskie Zapiski, vol. lxxxii,
534 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Pode-se dizer que o verdadeiro jornalismo ideológico se iniciou, sob vários


aspectos, com os jovens hegelianos de início dos anos 1840. Como um membro
desse grupo, Marx ajudou a elaborar projetos de jornais que nunca vieram a
existir (Zeitschrift für Theaterkritik [Jornal de Crítica Teatral] e Archiv des
Atheismus) e em seguida colaborou com alguns dos que se concretizaram
(Deutsche Jahrbücher e Rheinische Zeitung)-^ tornou-se um líder polêmico
pela primeira vez em 1842 aos 24 anos de idade, quando assumiu o posto de
editor-chefe do Rheinische Zeitung. Seu jornal se estabeleceu como rival do até
então dominante Augsburger Allgemeine Zeitung. No mundo alemão, surgia
uma imprensa política antes mesmo que houvesse uma associação política
legal. Marx explicou as vantagens desse desenvolvimento inverso no número
de ano novo de seu jornal de 1843. Os jornais alemães podem desempenhar
uma função pedagógica eminente para o despertar da imaginação política,
dizia ele, e não apenas lidar com complexos interesses de grupos, como faziam
os jornais ingleses e franceses, que tinham de responder ao “poder existente,
já formado”. A juvenil imprensa alemã não estava limitada, de forma passiva,
a “expressar os pensamentos, os interesses do povo. Você primeiro os cria,
ou antes os incute no povo. Você cria o espírito de partido”.81 82
Assim, do ponto de vista de Marx, o jornalismo tinha a responsabilidade
de criar o “espírito de partido”, ancestral direto do partiinosf de Lênin.
Para ambos esses homens, o desejo de criar um espírito de partido precedeu
a idéia clara de um partido político.
Foi na condição de editor do Rheinische Zeitung que Marx pela primeira
vez se deparou com questões econômicas, ao ser forçado a formar opinião
sobre a produtividade da região de Mosel e sobre os problemas gerais do
livre-comércio e das tarifas.83 Muito de sua educação posterior em economia
política se realizou sob a forma de seminários com colegas de redação.84

1968, pp. 163-203. V. também Vilenskaia, Mikhailovsky, 1978.


81 Bittei, Marx als Journalist, pp. 13-14.
82 Mega, Erste Abteilung, i, Erster Halbband, p. 337. No Dia da Bastilha de 1842, Marx descreveu o
jornalismo como a força que engaja “a filosofia contra o mundo”. Werke, vol. i, pp. 97-98, como
citado em O. Hamman, “The Young Marx, Reconsidered”, em Journal of the History of Ideas, 1970,
jan.-mar., p. 111. O primeiro texto jornalístico assinado por Engels foi a tradução de um poema
intitulado “Sobre a Invenção da Imprensa”. V. Cornu, Marx et Engels, vol. I, p. 227, nota 1. Para os
textos em espanhol e em alemão, com comentários de H. Koch, v. “Die Ode auf die Erfindung des
Buchdruckerkunst von José Manuel Quintana und Friedrich Engels”, em Wissenchaftliche Zeitschrift
der Universität Jena, 1952/1953, 1923.
83 Bittei, pp. 30-31.
84 Ibid., p. 23.
LIVRO II, CAPÍTULO 11 : UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 535

A fogueira revolucionária queimou com mais brilho nos jornais dos emi­
grados em cidades como Paris, Bruxelas e Londres (cidades para as quais,
uma após a outra, Marx fugiria), e ainda na Suíça e nos Estados Unidos.
Nesses lugares, o jornal se tornou o ponto de encontro e o centro organi­
zacional para um eleitorado desesperado e alienado. Filho de um pastor
turíngio, Julius Frõbel se mudou para a Suíça em 1835 e estabeleceu uma
nova editora, que ele descreveu como o “arsenal do partido do futuro”;85
esse “arsenal” ajudou Weitling a forjar as armas ideológicas das primeiras
organizações comunistas.
Os revolucionários que deixaram a Europa em grandes levas depois de
1848-1850 e embarcaram numa nova vida nos Estados Unidos raramente
mandaram de volta, aos seus ex-camaradas do Velho Mundo, quaisquer
armas ou idéias significativas.86 Marx, claro, também tinha em certo sentido
fugido para os Estados Unidos — no sentido de utilizar o Tribune de Charles
Dana, em Nova York, como seu canal jornalístico. No seu jornalismo da
década de 1850, ele ampliou a perspectiva global que já havia introduzido
no Neue Rheinische Zeitung^ em Colônia, durante os tumultos de 1848. A
União dos Trabalhadores de Colônia era a única da Alemanha a possuir um
jornal próprio;87 daí que Marx estivesse livre da responsabilidade de lidar
com questões locais no seu periódico, e assim se lançou a áreas remotas no
espaço e no tempo em busca de material que pudesse ser instrutivo para os
revolucionários. O mais recente estudioso desse período defende que se deve
falar de um partido do “Neue Rheinische Zeitung” durante esse período, em
vez de “Partido da Liga Comunista”.88 Em Londres, Marx se atirou ainda
mais profundamente no jornalismo, enriquecendo suas matérias com dados
colhidos no Museu Britânico e na imprensa diária, que era alimentada pela
Agência de Notícias de Reuters. Suas análises jornalísticas ajudam a justificar
o fracasso em concluir sua obra-prima, Das kapital.

85 Koszyk, p. 84. Para mais exemplos e detalhes, v. H. Keller, Dir politischen Verlagsanstalten und
Druckereien in der Schweiz 1840-1848, Berna, 1935.
86 Uma exceção foi o movimento feniano irlandês, que mandou de volta para a Irlanda armas e panfletos
destinados a várias gerações de revolucionários, e até lançou um ataque militar aos ingleses no
Canadá no fim da Guerra Civil Americana. Da parte dos nacionalistas revolucionários, a imprensa
polonesa dos exilados pela Europa continuou a influenciar um amplo espectro de revolucionários.
V J. Borejsza, W kregu wielkich wygnanców 1848-1895, Varsóvia, 1963.
87 G. Becker “Journaux de l’union ouvrière de Cologne”, em Presse ouvrière, pp. 264-283.
88 S. Na’aman, “In der Partei der Neuen Rheinischen Zeitung”, em Lassalle, Hanover; 1970, pp.
125-178, esp. p. 127.
536 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

As principais disputas de Marx com Weitling e Proudhon antes da Revo­


lução de 1848, e com Stephen Born ao longo dela, eram sob muitos aspectos
disputas contra o artesão tendo em vista a imprensa. Marx invocava os
símbolos políticos e as perspectivas estratégicas do novo jornalismo. Seus
oponentes estavam preocupados com os interesses concretos de trabalhadores
locais — às vezes preocupados apenas com os tipógrafos. A briga de Marx
com Proudhon era, quanto a isso, uma repetição intensificada do antago­
nismo entre os jornalistas intelectuais, os primeiros “comunistas” franceses,
e o L'Atelier proletário de início dos anos 1840.
Aqueles que tinham experiência direta de trabalho braçal, como Born e
Proudhon, desempenharam papel bem maior nos acontecimentos de 1848 do
que os protagonistas cerebrais, como Marx. Entre os tipógrafos particularmente
ativos estavam Claude Anthime Corbon, vice-presidente da assembléia consti­
tuinte; e George Duchêne, delegado dos tipógrafos na Comissão de Trabalho
de 1848 e fundador do jornal de Proudhon, Le Représentant du Peuple. Esse
jornal e os seus sucessores, Le Peuple e La Voix du Peuple, exerceram grande
autoridade na Paris revolucionária; e o jornal Fraternidade, de Leipzig, editado
por dois tipógrafos da “Liga de Gutenberg”, deflagrou uma rede de jomais por
toda a Alemanha e inspirou por toda parte os jornais pioneiros da classe traba­
lhadora: O Arauto, em Praga, e O Jornal dos Trabalhadores, em Budapeste.89
Na década de 1840, a vida dos quadros editorial e tipográfico de um
jornal radical se tornou uma espécie de modelo para a nova sociedade. Ali
existia de fato um senso de comunidade, construído em torno de um jornal
destinado aos homens comuns e escrito em linguagem atual. O trabalho
físico e o trabalho mental coexistiam em equilíbrio e harmonia. A tensão
entre homem e máquina ainda não existia, pois a linotipo moderna ainda não
havia entrado nos ateliês de impressão. O que estes produziam eram antes o
lucro da humanidade do que o de algum proprietário distante.
Corberon, que fundou junto com Bûchez L'Atelier, o primeiro jornal
francês produzido exclusivamente por e para trabalhadores, via no próprio
ato de compor os tipos o trabalho se libertar da rotina. Ele era mestre em
diversos ofícios, incluindo o da escultura em madeira, e via a produção
de jornais como uma espécie de iniciação maçônica a um novo tipo de
fraternidade.90 Born, que era tanto compositor de tipos como redator no

89 E Balser, “Une presse à rédaction ouvrière, 1848-1851”, em Presse ouvrière, p. 238 ss.; e p. 286 ss.,
309 ss.
90 O sexto estudo de Corberon, De la Justice, discutido em M. Collinet, “Les débuts du machinisme
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 537

jornal de Marx em Bruxelas, tinha uma visão similar da obra coletiva de


produzir jornais como um modelo para futuras iniciativas socialistas. A
greve de impressores e compositores que ele liderou em Berlim em abril
de 1848 foi a mais bem organizada e prolongada ação direta realizada
por trabalhadores alemães, em defesa de sua própria causa, nos primeiros^
dias de revolução. No verão de 1848, o movimento alemão nacional de
trabalhadores pelo aumento de suas percentagens de pagamento, realiza­
do por congressistas operários, acompanhado de greves, nasceu em boa
parte da assembléia nacional de impressores realizada no mês de junho em
Mainz. Born permaneceu no coração dessa assembléia, como presidente
do Comitê Central de Trabalhadores, como o espírito animador de seu
órgão “político-social” oficial, o jornal Das Volk, e como correspondente
em Berlim do Neue Rheinisches Zeitung de Marx.91
Os artesãos-impressores também foram decisivos nos acontecimentos
franceses de 1848. Duchêne e outros tipógrafos haviam sido líderes nas
campanhas de banquetes dos anos 1840; e o sindicato dos tipógrafos, que
havia chegado a 3 mil membros já no começo da década,92 proporcionou
uma imagem de solidariedade que se opunha tanto à mais alta burguesia
como às novas e mais impessoais técnicas de impressão.
Aí estava uma alternativa informal ao novo sistema econômico desper-
sonalizado da burguesia e aos mecanismos políticos e legais que ela oferecia
à classe trabalhadora. Na Inglaterra, na Bélgica e na Suíça, assim como na
França, tipógrafos começaram a criar sociedades e a organizar banquetes no
período de 1849 a 1851, repetindo a palavra de ordem: “Rumo à criação de
uma maçonaria tipográfica universal!”.93
O simples ideal artesão de amizade humana não poluída pelas máquinas
nem diluída pelas burocracias viria a ser, claro, suplantado pelo esmagador
desenvolvimento industrial do século xix. Mas permaneceu viva a crença
de que um jornal impresso poderia ser a voz autêntica de uma revolução

devant les contemporaines (1760-1840)”, em Le Contrat Social, 1965, mai.-jun., esp. p. 195.
91 Noyes, Organization, esp. pp. 131-143, bem como outros elementos cujas referências aí são dadas.
92 Radiguer, Maîtres Imprimeurs, pp. 252-253, 272.
93 Um delegado de Lyon proclamou: “O que existe entre os tipógrafos de Paris deveria existir entre
todos os tipógrafos, não apenas da França, mas da Europa, do universo inteiro” (Radiguet, pp.
254-255). O jornal profissional deles, Typographia, declarou, em edição de 25 de março de 1848,
que Vouvrier-imprimeur represente, pour parler franchement, ïétat supérieur du prolétariat [tto
operário-tipógrafo representa, para dizer francamente, o estado superior do proletariado”]. Citado
por J. Droz e P. Aycoberry, “Structures sociales et courants idéologiques dans l’Allemagne pré­
révolutionnaire, 1835-1847”, em Annali, vol. vi, p. 187.
538 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

popular — e seu ateliê tipográfico-editorial uma espécie de modelo para o


novo estilo de vida comunal.
Proudhon perpetuou essa idéia mesmo depois que a Guarda Nacional
irrompeu no seu escritório para quebrar sua prensa e embaralhar os tipos.
Durante a repressão que veio em seguida, Duchêne, colaborador de Proudhon,
enfrentou tantos julgamentos e multas que certa vez acabou se voltando para
o promotor, dizendo com ar cansado: L'addition, s'il vous plaît [A conta,
por favor].94
Embora a “conta” tenha chegado a 50 mil francos e 10 anos de prisão,
Proudhon logo se viu livre para reviver Le Peuple com o novo título de La
Voix du Peuple, em Io de outubro de 1849, tendo Alexander Herzen como
colaborador e patrocinador.95 O emigrado russo e seus amigos salvaram
Proudhon das garras de Emile Girardin, que havia reconhecido o talento
de Proudhon e tentava cooptá-lo por meio de subsídio financeiro.96 Depois
que os jornais de Proudhon La Voix e Le Peuple de 1850 foram fechados,
Girardin finalmente conseguiu se apossar de boa parte do pessoal e do léxico
do jornalismo revolucionário para o seu novo jornal de 1851, Le Bien-Etre
Universel.97 Era difícil prometer alguma coisa que fosse além do “bem-estar
universal”, e a enorme tiragem de 100 mil cópias impressionou Napoleão m,
que, por sua vez, apropriou-se das técnicas gêmeas praticadas por Girardin:
cooptação e distração.
Os jornais de Proudhon lhe deram a posição de principal porta-voz de
uma alternativa social revolucionária ao governo burguês centralizado na
França. E Herzen, batizado no jornalismo revolucionário com as publicações
de Proudhon do período revolucionário, transferiu essa tradição para a Rússia,
fundando em Londres, no ano de 1857, o primeiro periódico revolucionário
ilegal da história russa: Kolokol (O Sino).
O jornal de Herzen eletrizou uma Rússia exasperada pela derrota na
Guerra da Criméia e cheia de expectativas de recomeço com o governo do
novo tzar, Alexandre u. Herzen também se beneficiou do fato de que o meio
de comunicação jornalístico havia se tornado, nos mundos alemão e eslavo
94 Herzen, My Past, vol. il, p. 806. A atribuição a Duchêne é apenas uma suposição provável.
95 Ibid. V. também todo o capítulo sobre Proudhon, pp. 805-839.
96 Sobre a ajuda que Herzen deu a Proudhon, v. E. Carr, “Some Unpublished Letters of Alexander
Herzen”, em Oxford Slavonic Papers, vol. in, 1952, p. 83 ss.; também p. 108 para um trabalho
que Herzen tentou escrever contra Girardin. Sobre Proudhon como jornalista nesse período, v. A.
Darimon, A travers une Révolution (1847-1855), 1884.
97 Presse ouvrière, p. 176 ss.
LIVRO n, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 539

da década de 1840, uma forma de libertação dos confins da universidade,


com sua especulação abstrata e longas aulas divorciadas da realidade do
dia-a-dia. Quando Belinsky (“o furioso Vissarion”) transformou o velho
jornal de Pushkin, Os Anais da Pátria, em um órgão de crítica social direta,
“o mundo da política em miniatura”,98 agentes de polícia preocupados se
referiram ao jornal como um “partido”.99 Junto à crítica social francesa eram
traduzidos os romances socialistas de George Sand; um boletim de polícia
secreto identificou o “partido de Belinsky” com “panteismo, comunismo,
socialismo [...] robespierrismo”.100
Belinsky morreu às vésperas da revolução de 1848; e a Rússia não participou
da revolução, antes mergulhou num difícil período de reação. Herzen preencheu
o vácuo ao difundir a idéia de que a iniciativa revolucionária havia passado
do Ocidente para o Oriente, sobretudo para a Rússia, com o comunalismo
de seus camponeses e a hostilidade às instituições burguesas. Herzen transpôs
para a comuna camponesa russa o entusiasmo que os seus amigos franceses
Michelet e Proudhon haviam sentido, respectivamente, pelo comunalismo dos
pescadores da Britânia e dos artesãos de Jura. A crença bem própria ao popu­
lismo revolucionário russo de que a comuna proporcionava o germe de uma
nova ordem social foi anunciada por Herzen numa carta que enviou, estando
na Riviera francesa, para Michelet, nos dias sombrios de 1850.101
Escritos de ou sobre Michelet e Proudhon (assim como de Mazzini,
Victor Hugo e outros) eram incluídos no almanaque Estrala Polar, que foi
publicado pela primeira vez no verão de 1855, marcando o início de uma
imprensa russa sem censura. Primeiro operando com litografia, e depois
com tipos em grande parte transportados de Paris à mão, Herzen e Ogarev
publicaram fotos dos cinco mártires dezembristas na capa e incluíram na
edição trabalhos de Belinsky.102

98 Citado em V. Kuleshov, “ Otechestvennye zapiski” i literatura 40-kh godov xix veka, 1959, p. 4.
99 Ibid., pp. 357-359, nota 78.
100 Relatório de Bulgarin à terceira §, citado sem documentação precisa em ibid., p. 102. Se, como
parece, o relatório data de 1842, esse pode ter sido o mais antigo emprego da palavra “comunista”
na Rússia.
Sobre a importância especial das obras de Sand publicadas nesse jornal (e sobre a formação da literatura
de conteúdo social na Rússia), v. p. 105, e ainda o tratamento mais completo de K. Sanine, Les Annales
de la patrie et la diffusion de la pensée française en Russie (1868-1884), 1955, p. 60 ss.
101 Escrito em Nice e publicado pela primeira vez, de forma abreviada, em UAvènement du Peuple,
Paris, 19 de novembro de 1851, e na integra em Le Peuple russe et le socialisme. Lettre à Monsieur
J. Michelet, Professeur au Collège de France, 1852; e, em inglês, em From the Other Shore, L, 1956,
pp. 165-208.
102 Poliamaia Zvezda, assim como Kolokol, está agora reproduzido na íntegra em fac-símile, 1966. Sobre
540 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Uma rede de apoio de correspondentes secretos na Rússia forneceu parte


do núcleo de futuros movimentos revolucionários.103 O jornal Estrela Polar,
ao lado de O Sino, o suplemento que aparecia com maior periodicidade e em
breve o suplantaria, iniciou uma grande campanha de publicação em Londres
que levou à criação do populismo revolucionário. Logo chegando a tiragens
de 2.500 a 3.000 exemplares, O Sino cunhou dois grandes lemas: “para o
povo” e “terra e liberdade”. Publicações ilegais de estudantes começaram a
surgir no verão de 1858 em resposta, e amiúde como imitação proposital, a
O Sino de Herzen — como é sugerido por títulos típicos: A voz viva, O meu
anel, O último som e O eco.104
O nascimento de um novo extremismo na Rússia pode em parte ser iden­
tificado com a descoberta que um jovem estudante aristocrata de Moscou,
Peter Zaichnevsky, fez do Sino de Herzen. Sua imaginação se incendiou com
a descoberta da palavra “socialista” em “quase toda página” de Herzen; di­
recionou suas energias a “buscar toda chance possível de acesso a livros que
falassem disso [dessa palavra]”.105 Em segredo, começou a utilizar em 1859
a litografia empregada na reprodução de aulas da universidade para fazer
cópias de escritos revolucionários ocidentais. Preparava-se para publicar sua
tradução de O que é propriedade? de Proudhon quando foi preso, em 1861.
Oficiais alarmados realizaram um inquérito sobre a imprensa; revelou-se
que somente 96 das 150 prensas privadas de Moscou tinham autorização
oficial para funcionar.106
Iniciou-se a vigilância policial, e a repressão recebeu novo fôlego quando
Zaichnevsky reuniu um grupo de estudantes conhecido como “Sociedade dos
Comunistas” e formou, mais tarde naquele mesmo ano, “a primeira imprensa
livre da Rússia”. Tendo, por questões de segurança, se mudado de Moscou
para Riazan, essa sociedade — a primeira a invocar rotineiramente os termos

o Estrela Polar anterior dos dezembristas, v. V. Berezina, Russkaia zhurnalistika pervoi chetverti xix
veka, Leningrado, 1965, p. 74 ss.
103 Um estudo recente revelou essa rede como um meio importante de união de indivíduos aristocráticos
e não-aristocráticos (revelou ainda que ela incluía figuras das quais não se sabia de nenhuma
relação com revolucionários, como é o caso do etnògrafo A. N. Afanas’ev). V. N. Eidel’man, Tainye
korrespondenty ‘poliarnoi zvezdy', 1966, e a resenha que fez deste livro A. Turkov, Prometei, 1967,
n° 2, pp. 314-315.
104 S. Svatikov, “Studenticheskaia pechat’s 1755 po 1915 g.”, em Put’ studenchestva, 1916, p. 218, que
consta nas referências da tese de doutorado inédita de T. Hegarty, “Student Movements in Russian
Universities, 1855-1861”, Harvard, 1964. Para outro jornal, Ekho, publicado em data posterior
em Vilnius, v. Bol’shevistkaia pechat’ v dooktiabr’sky period, 1959, pp. 11-12.
105 Citado em Venturi, Roots, p. 285.
106 Ibid., p. 286.
LIVRO II, CAPÍTULO 11: UM MEIO DE COMUNICAÇÃO MÁGICO: O JORNALISMO 541

“socialista” e “comunista” em solo russo — deu início à duradoura tradição


russa de audácia revolucionária ao distribuir com destemor seus panfletos
na capela do Palácio de Inverno durante as cerimônias da segunda-feira de
Páscoa de 1862.107 Em maio, lançou o manifesto incendiário Jovem Rússia.
Esse notável chamado ao terrorismo revolucionário sugeria que os jor­
nalistas fossem líderes do “partido revolucionário” na luta pelo poder com
o “partido imperial”. Zaichnevsky censurou Herzen por incorrer no refor-
mismo e no liberalismo, por fracassar em perceber que “é hora de começar
a fazer soar o sino de alarme (nabat) e convocar o povo à revolta, e não de
papagaiar lemas liberais (liberal3nichât3)”.108 Zaichnevsky deu o nome rival
— Nabat — para o principal jornal do jacobinismo conspiratório russo, que
depois seria publicado no estrangeiro pelo seu amigo e eventual colaborador
Peter Tkachev.109
Outro grupo, que havia, contudo, se originado da mesma subcultura do
jornalismo revolucionário, apropriou-se do lema de Herzen “terra e liberdade”
como nome de uma organização revolucionária secreta constituída na Rússia
em 1862. A organização havia se inspirado em um jornal ilegal de 1861, o
qual tivera a ousadia de imprimir quatro números na prensa do Estado-Maior
em São Petersburgo. Terra e Liberdade tomou corpo em 1861 em torno da
equipe editorial de um jornal de São Petersburgo, O Contemporàneo110, e
estabeleceu contato com O Sino, que publicou em Londres sua proclamação de
1862, À Nova Geração, e ainda números especiais endereçados aos poloneses,
aos soldados e aos seus sectários. No outono de 1862, a Terra e Liberdade
enviou para fora do país o seu principal tipógrafo, o qual estabeleceu uma
nova prensa em Berna e discutiu planos para se unir — ou talvez absorver
e suplantar — aos esforços de publicação de Herzen em Londres.111 Assim,
em 1862, Terra e Liberdade começou a imprimir importantes proclamações
dentro da Rússia por meio de outra publicação ilegal: Liberdade.

107 Venturi, p. 286; Yarmolinsky, p. 111.


108 Do texto presente em B. Bazilevsky (Bogucharsky), Materialy dlia istorii revoliutsionnago dvizheniia
v rossii v 60-kh gg., São Petersburgo, 1905, p. 43. O termo insultuoso liberalishki também foi
empregado em círculos moscovitas. V. N. Pirumova, “M. Bakunin ili S. Nechaev?”, em Prometei,
vol.v, 1968, p. 173.
109 V. B. Koz’min, Tkachev i revoliutsionnoe dvizhenie 1860kh godov, Haia, 1969 (reimpressão de
edição de 1922); e P. G. Zaichnevsky i “Moldaia Rossiia”, 1932.
110 E. Vilenskaia, Revoliutsionnoe podpol’e v Rossii (60-egody xix vol.), 1965, p. 137. Essa obra resume
as novas pesquisas sobre a organização Terra e Liberdade e complementa Venturi, Roofs.
111 Sobre V. I. Bakst, v. B. Koz’min, Iz istorii revoliutsionnoi mysli v Rossii, 1961, p. 506 ss.
542 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Sobreveio o heroísmo martirizado com a prisão e julgamento dos prin­


cipais escritores integrantes do movimento, Michael Mikhailov, o jovem
poeta que se crê ter escrito  Nova Geração, e Nicholas Chernyshevsky, o
crítico literário radical que veio a escrever na prisão O que se deve fazer?,
uma incitação romanesca ao sacrifício e à vida comunal. Quando Lênin
tomou do pioneiro do jornalismo revolucionário russo o título para o seu
projeto de um novo partido — também O que se deve fazer? —, ele estava
apenas dando continuidade a uma velha tradição de veneração e imitação
de Chernyshevsky.112 Ao mesmo tempo, Lênin deu ao seu jornal desbravador
Iskra (A Fagulha) o nome de um jornal fundado por outro revolucionário
ligado à organização Terra e Liberdade, V. S. Kurochkin. Poeta, caricaturista
e tradutor das canções revolucionárias de Béranger, Kurochkin se juntou a
um cartunista e fundou o seu Iskra em 1859, para com ele satirizar a bur­
guesia segundo o espírito de Daumier. Também havia outro Iskra dentre as
publicações ilegais de estudantes; e, em 1862, outro dos títulos de jornais de
Lênin, Pravda, foi prenunciado pelo jornal de um discípulo bielorrusso de
Chernyshevsky: Muzhitskaia Pravda [Verdade Camponesa].113
Terra e Liberdade se antecipou a Lênin não só quanto a palavras, mas
também quanto ao emprego da atividade jornalística para organizar e para
educar o movimento revolucionário. A centralidade do jornalismo na tra­
dição revolucionária russa foi estabelecida com solidez nos cinco anos que
se seguiram ao primeiro soar do Sino de Herzen. Mas Terra e Liberdade foi
esmagada e o jornalismo revolucionário soterrado em 1863 pelo nacionalis­
mo reacionário que varreu a Rússia como resultado do levante na Polônia.
Devemos agora voltar nossa atenção para a decadência do nacionalismo re­
volucionário na maior parte do mundo europeu no terceiro quarto do século
xix e para o nascimento de uma imprensa contra-revolucionária de massa.

112 N. Valentinov, Encounters with Lenin, L, 1968, esp. pp. 63-68, enfatiza a importância do exemplo
de Chernyshevsky para Lênin. V. também W. Woehrlin, Chernyshevskii. The Man and the Journalist,
Cambridge, Massachusetts, 1971.
113 Sobre esse jornal, publicado de julho de 1862 a maio de 1863 por Kastus Kalinovsky, v. E. Golomb
e E. Fingerit, Rasprostranenie pechati v dorevoliutsionnoi Rossii i v Sovetskom Soiuze, 1959, pp.
11-12.
CAPÍTULO 12
A decadência do nacionalismo revolucionário

França dominou o período revolucionário que vai de 1789 a 1850;

A seu principal legado para o mundo é a criação de movimentos


revolucionários nacionais. Estes se desenvolveram em parte como
imitação da revolucionária nação-em-armas de 1793, em parte em reação à
subseqüente conquista napoleònica. As outras nações que ajudaram a inspirar
essa “primavera das nações” foram os Estados Unidos, cuja revolução havia
precedido a francesa, a Polônia e a Itália, que mostrava maior fidelidade em
sua propaganda dos ideais franceses.
O ideal da revolução nacional foi primeiro inspirado pela Declaração
Americana de Independência. Os italianos acrescentaram a idéia de recaptura
de um passado de glórias e de descoberta de uma nova natureza humana
por meio de uma luta nacional. As revoluções de 1830 e 1848 haviam sido
dominadas mais por revolucionários nacionais do que sociais, pelo que o
ministro russo Nesselrode chamou de “doença polonesa” (a autodeterminação
nacional), a qual se espalhava pela Europa.
A ideologia dominante do nacionalismo revolucionário começou a decair
depois do fracasso da revolução de 1848. A segunda metade do século xix
assistiu a uma metamorfose dramática do nacionalismo, operada por meio
de morte e transfiguração.
A morte veio com a separação decisiva entre nacionalismo e ideal revolu­
cionário no coração da Europa. Foi a força industrial-militar-diplomática de
um Estado estabelecido, e não uma revolta romântica em nome do novo valor
544 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nacionalista, que realizou a unificação da Itália e da Alemanha ao longo da


década de 1860. O Piemonte e a Rússia tinham de fato conquistado a Itália
e a Alemanha, ao passo que o levante polonês de 1863 foi esmagado pelo
poder russo depois de gritar seus últimos vivas ao nacionalismo romântico
e revolucionário.
O nacionalismo revolucionário foi então transfigurado em imperialismo
reacionário durante o último quarto do século xix. O nacionalismo, a velha
causa da revolução idealista contra a autoridade, reapareceu como um meio
de distrair o descontentamento nativo da Europa industrial e direcioná-lo
para o apoio emocional à expansão do poder estatal europeu.
Esse novo nacionalismo da era imperial européia — e a reação revolu­
cionária a ele — fazem parte de outra história: o drama global do século
XX. Aqui se deve tratar apenas da morte do velho nacionalismo revolucio­
nário no período decisivo que se encerra com a Guerra Franco-Prussiana
de 1870-1871. Um novo jornalismo e um novo Napoleão foram fatores
importantes: e a última das revoluções francesas — a Comuna de Paris de
1871 — foi um divisor de águas.

Os últimos heróis
Apesar do fracasso de 1848, permaneceram firmes as esperanças de mais
revoluções nacionais na década de 1850. Revolucionários de toda parte se
animaram com a derrota sofrida na Guerra da Criméia pela Rússia, o pilar da
reação européia, a qual havia extinguido a nação revolucionária da Polônia em
1831 e da Hungria em 1849. Os revolucionários nacionais foram ainda enco­
rajados pelo apoio de Napoleão in a movimentos de autodeterminação contra
os impérios conservadores e antinacionalistas dos Romanov e dos Habsburgo.
A causa polonesa preservava os seus atrativos perante toda a Europa,
apesar da morte de seus líderes simbólicos: Chopin durante a agitação
revolucionária de 1848—1849, Mickiewicz em meio à Guerra da Criméia
em 1855. Este último vinha reunindo legiões nacionais não apenas pelos
poloneses, mas também por outras nacionalidades oprimidas, incluindo os
judeus. Morreu em Constantinopla nos braços de seu amigo judeu Armand
Lévy, o qual, por sua vez, organizou uma companhia legionària de judeus, “a
primeira unidade militar judaica do período moderno”.1 Lévy depois se tornou

1 Milosz, History, p. 199, também p. 231. A melhor obra polonesa sobre Lévy é J. Borejsza, Sekretarz
Adama Mickiewicza, 1969.
LIVRO IL CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 545

o principal propagandista francês do movimento nacionalista romeno? Seu


sonho era libertar Jerusalém, cuja bandeira seria “os pergaminhos da Lei”.2
3
0 surgimento de uma nova nação romena com a conferência realizada em
Paris em 1859 deu um pouco de esperança de que a onda de nacionalismo
revolucionário talvez ainda estivesse a subir.
Os nacionalistas alemães, frustrados no Velho Mundo, dirigiram-se em
massa para o Novo Mundo depois de 1849, levando consigo idéias extremistas
sobre uma nova internacional nacionalista. Uma Liga Revolucionária Alemã
foi fundada na Filadélfia com o apoio do primeiro hegeliano radical, Arnold
Ruge, e de um ainda mais radical apóstolo do tiranicídio, Karl Heinzen. Seu
plano, elaborado por um ex-membro do governo revolucionário de Baden,
advogava um federalismo mundial messiânico a ser dirigido pelos Estados
Unidos. Primeiro se deveria anexar Cuba e Santo Domingo, em seguida o
México e a América Latina. Depois, a “infederação”4 da Europa deveria ser
iniciada pela Inglaterra. Em sua viagem triunfal pelos Estados Unidos em
1851, o derrotado revolucionário húngaro Kossuth provocou simpatia por
toda parte; e, no ano seguinte, uma revolucionária Liga do Povo para o Velho
e o Novo Mundo teve breve existência em Wheeling, na Virginia Ocidental.
Mas o impulso revolucionário não poderia ser revivido a partir dos Estados
Unidos; além disso, o nacionalismo frustrado dos novos alemães adventícios
encontrou seu único canal de expressão no nascente nacionalismo dos pró­
prios norte-americanos. Em 1853, dois imigrantes revolucionários alemães
publicaram A Nova Roma, que se antecipou de modo notável à geopolitica
de um século depois. Predizia uma Europa eclipsada por grandes potências
de ambos os lados: a Rússia reacionária e os Estados Unidos revolucionários;
e que a luta decisiva delas seria travada em grande parcela no ar. “Primeiro
a Europa será cossaca, depois ianque”.5
O centro das esperanças revolucionárias na Europa era Londres, aonde
Kossuth em breve retornaria. Mazzini e outros revolucionários nacionais lá

2 A. Lévy, La Russie sur le Danube, 1853, p. 175.


3 S. Maries, “Aspects des relations roumano-françaises: contribution d’Armand Lévy”, em Revue
Romaine d’Histoire, 1973, n° 2, pp. 375-394.
4 T. Huebner, The Germans in America, Filadélfia/NY, 1962, pp. 99-101.
5 Citado em Huebner p. 101. V. também Theodore Poesche e Charles Goepp, The New Rome, NY,
1853. É bem conhecido o nacionalismo militante pró-união de alemães da época da Guerra Civil,
como Carl Shurz. Alguns, como Goepp, foram longe a ponto de defender o rompimento do sistema
estatal do sul para garantir uma forte hegemonia nacional (The National Club on the Reconstruction
of the Union, NY, 1864).
546 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

formaram em 1850 um Comitê Central Democrático Europeu. Suas publica­


ções eram escritas em francês; mas tinha subcomitês de italianos, poloneses,
alemães, austríacos, húngaros e holandeses.6 Depois do golpe napoleonico
de 1851, exilados revolucionários com esperanças messiânicas acorreram a
Londres com intensidade ainda maior.7
Revolucionários sociais criaram a Commune Révolutionnaire^ uma fra­
ternidade internacional de socialistas revolucionários estabelecida em 1852
com uma liderança francesa em Londres e uma filial na Ilha de Jersey. O
livro que marcava seu estabelecimento foi planejado para ser distribuído na
França no aniversário de fundação da Primeira República Francesa. Panfle­
tos posteriores e seu órgão regular de propaganda, o jornal L'Homme de
Victor Hugo, eram contrabandeados para a França escondidos em locais tão
engenhosos como um busto da Rainha Vitória.8
Para essa autoproclamada herdeira da comuna revolucionária de 1792 em
Paris, as perspectivas eram universais. A Commune defendia uma “república
social e democrática universal” e uma “santa aliança dos povos”.9 Juntou-se
à ala esquerdista do movimento cartista para criar no começo de 1855 um
comitê internacional que, por sua vez, se uniu em 10 de agosto de 1856 aos
comunistas alemães e aos socialistas poloneses numa ainda mais abrangente
Associação Internacional.10
Essa associação estava mais para a última das organizações revolucioná­
rias internacionais à maneira antiga do que para um protótipo da Primeira
Internacional.11 Era essencialmente uma organização para jantares e discus­
sões de intelectuais emigrados. Estes se ocuparam com a composição de um

6 Lehning, “Association”, pp. 201-202.


7 Aproximadamente mil, segundo H. Payne e H. Grosshans, “The Revolutionaries and the French
political police in the 1850’s”, em American Historical Review, 1963, jul., pp. 954-955.
8 Ibid., p. 210, e nota 4.
9 Esses são os dois únicos lemas que aparecem nos certificados emitidos para aqueles que contribuíram
financeiramente, de acordo com reprodução constante em Lehning, “Association”, verso da p. 210;
V. também o Manifesto oficial de 24 de junho de 1858, p. 267.
10 Para uma reprodução do Bulletin of the International Association, que publicava os seus principais
artigos em quatro línguas — inglês, francês, alemão e polonês -, v. ibid., verso da p. 230.
11 A sugestão de Lehning (“Association”, p. 185) de que esta era “a primeira organização internacional
de caráter proletário e socialista” é, com efeito, desafiada por Nikolaevsky (“Secret Societies and the
First International”, em The Revolutionary Internationals, pp. 42—43), o qual observa que as palavras
“trabalhadores” e “proletário” nunca apareceram em seus estatutos. Mas Nikolaevsky subestima
o comprometimento dessa organização com a revolução social ao rotulá-la de “um decisivo passo
para trás em relação às organizações internacionais que os cartistas ingleses tinham tentado criar
nos anos 1840” (p. 42).
LIVRO li, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 547

calendário revolucionário social, o qual comemorava quase todas as visitas


e aniversários de figuras proeminentes. Mas também começaram a questio­
nar a crença na revolução nacional e nas reformas políticas que não fossem
acompanhadas de mudanças sociais.
Os fracassos do nacionalismo também eram fracassos do liberalismo;
assim concluiu o malfadado círculo russo de Petrashevsky no fim de 1849:

O movimento pelas nacionalidades é um produto do liberalismo, pois o socialis­


mo é uma doutrina cosmopolita que se coloca acima da nacionalidade. [...] O
movimento pelas nacionalidades se opõe ao sucesso do socialismo, afastando as
forças vitais da sociedade dos indivíduos capazes de ampliar o bem-estar social e
de fazer emprego da guerra — pegando em armas.12

A desconfiança em relação ao nacionalismo aumentou no Leste Europeu


após os acontecimentos revolucionários de 1848-1849. O nacionalismo
havia alimentado a repressão de um povo por outro — os russos contra os
húngaros, e os húngaros contra outros eslavos. Na Europa Ocidental, Cabet
e outros atacaram o símbolo da revolução nacional liberal — Mazzini —
numa brochura de 1852, Dos Socialistas Franceses ao Sn Mazzini.13 Ele foi
denunciado com grandes detalhes num manifesto de dezembro de 1858, Aos
Republicanos, Democratas e Socialistas da Europa, que acusava Mazzini
de se tornar um rico apologista da 66lei e ordem”: “O patriota italiano, o
representante da burguesia republicana, que havia inscrito em sua bandeira
lei e ordem’”.14
Tendo dito ao proletariado que “deixasse de lado os problemas sociais”,
ele agora deveria no mínimo dizer aos “seus amigos para deixar de lado suas
tendências plutocratas”.15
Depois de prosseguir com mais condenações aos “republicanos plutocratas”
da Europa, o manifesto defendia a rejeição da nacionalidade:

Os Estados da Europa reunidos em uma única república social e democrática, na


qual todos os cidadãos devem ser produtores antes de ser consumidores [...] uma
união entre proletários, democratas e socialistas da Europa é no momento presente

12 Delo Petrashevtsev, vol. ii, p. 95.


13 Des socialistes françaises à M. Mazzini, Bruxelas, 1852; e outras obras envolvidas nessa contínua
refrega têm suas referências dadas em Lehning, “Association”, pp. 208-209, nota 8.
14 “Aux Républicains, Démocrates et Socialistes de l’Europe”, em Lehning, “Association”, p. 274.
Lehning não conseguiu encontrar nenhuma cópia da edição de 7 de dezembro de 1858, e assim
reproduz, com base em Le Libertaire de 5 de fevereiro de 1859 (p. 233, nota 1), o texto francês “da
mais importante publicação lançada pela Internacional e o Comitê da Internacional” (233).
15 Ibid., pp. 274-275.
548 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

uma necessidade absoluta [...] “união” é a palavra de ordem do dia, “ação” será
a do amanhã.16

Os poloneses, nacionalistas incorrigíveis, logo deixaram a organização.


Novas regras igualitárias criadas em janeiro de 1859 (tratando da completa
igualdade entre os sexos e de uma definição quase anarquista da revolução
como “negação absoluta de todos os privilégios, negação absoluta de toda
autoridade”)17 apressaram a saída dos poloneses — e o colapso da organi­
zação. Sua última e pouco conhecida publicação, de 13 de junho de 1859,
recomendava que não se deveria tomar qualquer parte em nenhum conflito
que fosse puramente político, a exemplo da Guerra Franco-Austriaca na
Itália. Deve-se evitar a “dilaceração mútua das massas” numa época em
que “a “Marselhesa” soa a toda força para celebrar as aventuras de cabeças
coroadas [...] cujo poder se enraiza na inimizade das nacionalidades”.18
A Associação Internacional estabeleceu filiais em cidades norte-americanas
(às vezes chamadas Kommunistenklub) e deu importância às comunidades
comunistas de Cabet nos Estados Unidos. A Associação se comprometeu
com esses comunistas a não pôr em risco seu nobre experimento em razão
de brigas mesquinhas que permitissem aos exploradores da Europa dizer:
“Como podem vocês querer construir uma sociedade comunitária se nem
mesmo uns poucos comunistas conseguem viver em harmonia?”.19
Mas a decadente utopia de Cabet era um galho fino demais para que se
pudesse descansar sobre ele; e poucos na Europa perceberam o aparecimen­
to em Nova York, em 1859, do notável jornal antinacionalista de Joseph
Déjacques, Le Libertaire^ que criticava Garibaldi por vestir uma camisa
vermelha sem advogar a revolução.20
Os revolucionários sociais se sentiram seguros em solo europeu apenas na
Inglaterra, com o primeiro encontro das delegações de trabalhadores franceses
e ingleses e o estabelecimento da Primeira Internacional dois anos depois. O

16 Ibid., pp. 276-277.


17 Ibid., p. 233. Lehning surpreendentemente não relaciona a defecção polonesa nem com as predileções
nacionalistas nem com a base aristocrática dos revolucionários poloneses.
18 “Address of the International Association to the Democratic Party”, em Lehning, pp. 281-283.
19 Carta de 28 de agosto de 1858 do Comitê Central de Londres da Associação Internacional à
comunidade Icária de Nauvoo, em Lehning, p. 272.
20 Esse jornal, que se considerava tanto comunista como anarquista, perpetuou a vigorosa crítica anti­
mazziniana primeiro expressa por Branciano (o inimigo italiano do nacionalismo, autodeclarado
“amigo da bandeira vermelha”, e co-editor com Victor Hugo de L’Homme na Ilha de Jersey). As
opiniões de Déjacques são expressas em La Question révolutionnaire, reimpresso em 1971.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 549

encontro de fundação dessa Associação Internacional dos Trabalhadores, em


28 de setembro de 1864, pôs juntos no Saint Martin’s Hall organizações da
classe operária e intelectuais emigrados, justamente o local onde, nove anos
antes, muitos desses mesmos participantes tinham fundado21 a Associação
Internacional.
Ernest Jones, o aristocrático afilhado do Duque de Cumberland, havia
aberto esse encontro anterior no dia 27 de fevereiro de 1855 com um ataque
intimidador ao conceito de nacionalidade. Jones havia sucedido Harney
como principal internacionalista revolucionário entre os cartistas, e foi ele
quem liderou o último esforço dos cartistas de se organizarem politicamente
(o assim chamado “parlamento do trabalho” em Manchester, em março de
1854) e seu último grande jornal (A Folha do Povo). Em 1864, ele se ende­
reçou ecumenicamente a todos os “homens da Europa”: “Os reis inventaram
a idéia de nacionalidades hostis para dividir a unidade dos povos. [...] Para
nós, a nação é nada, o homem é tudo. Para nós, as nacionalidades oprimidas
são uma só: os pobres universais de todas as terras”.22
Jones, o maior poeta inglês oitocentista da luta de classes, retratou uma
simples luta entre o bem e o mal: “Todos os homens são irmãos — mas al­
guns são Abels e outros são Cains, e esta é uma reunião dos Abels do mundo
contra os coroados e poderosos Cains que os mataram”.23
A história da Primeira Internacional foi de contínua controvérsia entre
revolucionários sociais acerca de como os “Abels do mundo” combateríam os
Cains, os quais controlavam a terra e não agiam como protetores de seus irmãos.
Uma vez que a causa da revolução nacional começava a enfraquecer, os
revolucionários sociais começavam a brigar entre si com uma nova intensidade;
mas, pouco antes da fundação da Primeira Internacional em 1864, Mazzini e
seus amigos fizeram uma última tentativa de reviver o sonho de uma aliança
européia dos revolucionários nacionalistas. Os italianos providenciaram a
faísca para essa última centelha de nacionalismo revolucionário romântico.
Enquanto outros emigrados mantinham contato em Londres, Mazzini e seus
seguidores fizeram espantosas incursões secretas à Itália, as quais fascinaram
os leitores de jornais de massa baratos na Europa dos anos 1850.

21 Lehning, “Association”, pp. 236-238.


22 Citado em J. Saville, Ernest Jones, Chartist, L, 1952, pp. 58-59. Tecnicamente, essa foi uma reunião
pública (a primeira) do Comitê Internacional, a partir da qual se formou a Associação Internacional
(Braunthal, p. 77).
23 Citado em Lehning, pp. 213-214.
550 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Atingiu-se o clímax quando um grupo liderado por Felice Orsini atirou


três bombas em Napoleão m no dia 14 de janeiro de 1858, errando o alvo,
mas matando oito pessoas e ferindo 148. Orsini, homem de boa aparência,
já tinha sido duas vezes condenado como prisioneiro político e gozava de
enorme popularidade na Inglaterra, onde havia feito uma turnê de pales­
tras e vendido em um ano 35 mil cópias do seu livro de 1856, Calabouços
austríacos na Itália.14 O julgamento em Londres do amigo francês de Orsini
que havia ajudado a preparar as granadas “se transformou num julgamento
de Napoleão m”24 25 e resultou na absolvição do réu e em uma maior publi­
cidade da causa revolucionária nacionalista. O próprio Orsini foi julgado
e executado em Paris; mas o seu último apelo a Napoleão m para que se
dedicasse à causa da libertação nacional da Itália foi, de fato, atendida em
1859, quando Napoleão se juntou ao Piemonte na guerra contra a Áustria.
Em tudo isso havia um sentimento de déjà-vu. Os primeiros revolucioná­
rios profissionais do início do século xix tinham sonhado em executar um
primeiro Napoleão — e viam sua atitude com a Itália como uma espécie
de teste de sua alegação de ser um defensor da revolução. Até o nome da
primeira organização revolucionária reapareceu. A principal sociedade por
meio da qual os novos revolucionários italianos recrutavam aliados em
Londres, Bruxelas e Genebra se chamava Filadelfos. Assim como a orga­
nização anterior de mesmo nome, esta era um resultado da maçonaria, a
qual propiciava conexões internacionais e uma carapaça externa de segredo
para a prática de recrutamento. Alguns socialistas de destaque, como Louis
Blanc, acabaram impelidos para o campo dos revolucionários nacionais em
Londres por meio da loja maçônica dos Filadelfos Unidos.26 A maior parte
dos líderes da Associação Internacional se negou, em dezembro de 1858, a
assinar um documento oficial da organização que condenava o programa
mazziniano; e muitos começaram a colaborar com Mazzini mesmo antes de
a organização se desfazer, em 1859.
A insurreição nacional italiana contra os Habsburgo reviveu momenta­
neamente a crença romântica na libertação por meio da revolução nacional
— ainda que os sucessos obtidos pelos italianos fossem mais um trabalho de

24 M. St. John Packe, Orsini. The story of a conspiracy, Boston, 1957, p. 221. Embora Orsini a essa
altura já tivesse rompido com Mazzini, a extensão do estímulo do próprio Mazzini a atividades
terroristas é enfatizada por Nikolaevsky em “Societies”, pp. 43-45, e A. Luzio, Carlo Alberto e
Giuseppe Mazzini, Turim, 1923.
25 Nikolaevsky, “Societies”, p. 44.
26 Ibid., p. 38 ss.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 551

estadistas piemonteses como Cavour e de novas organizações burguesas (a


exemplo da Sociedade Nacional) do que de revolucionários mazzinianos.27 Ao
ver a Itália unificada com a ajuda de Napoleão m, organizações revolucioná­
rias da Hungria e da Polônia começaram a explorar novas possibilidades de
conspiração e possível colaboração com o novo Bonaparte. O aparecimento
em Londres de jornais revolucionários escritos em alemão e em russo — o
Hermann de Hinkel e o Sino de Herzen — parecia sugerir a existência de
interesses em comum entre os nacionalistas democráticos. Nacionalistas até
então não-revolucionários, como os tchecos, começaram a advogar por meio de
porta-vozes emigrados como Josef Fric, uma ampla coalizão de revolucionários
nacionais anti-Habsburgo. Contudo, Fric e Hinkel vieram a se chocar acerba­
mente em 1859 com Marx e Engels, os quais preferiam a hegemonia alemã
sobre os tchecos e um governo magiar sobre os outros eslavos Habsburgos.28
A chegada de Bakunin a Londres em 1861 depois de longo encarceramento
ajudou a reviver o sonho romântico de uma federação revolucionária eslava.
Quando rebentou a revolta na Polônia em 1863 e um governo nacional foi
estabelecido, foram feitos contatos e consultas a revolucionários tchecos e
croatas, bem como a húngaros e italianos.29 Surgiu uma espécie de aliança
anti-Habsburgo de nacionalistas revolucionários — a qual foi formalizada
numa convenção da qual tomou parte Garibaldi em junho de 1864. Forças
revolucionárias italianas e polonesas se comprometeram a continuar com
a luta contra os Habsburgo até que todos os eslavos submetidos a Viena
alcançassem completa autonomia.30 Mas o documento que declarava esse
compromisso foi assinado no momento mesmo em que a rebelião polonesa
estava sendo esmagada e em que Victor Emmanuel recuava diante de mais
conflitos com os Habsburgos. Enquanto a Alemanha, a Itália e até a Hungria
alcançavam nova estatura nacional, os eslavos permaneciam os portadores
do velho ideal de libertação mediante uma revolução nacional.

27 R. Grew, A sterner plan for Italian unity, Princeton, 1963.


28 V. o artigo inédito de Z. David sobre Palackÿ, esse amigo de Bakunin e inimigo do nacionalismo
pró-Habsburgo, adepto de melhorias gradativas: Josef V. Friâand the Cause of Czech Independence
(1859-1864), esp. pp. 5-6 e referências às pp. 32-33; Marx, Sochineniia, vol. vn, pp. 208,219.
29 Bakunin também esteve em contato com um ainda embrionário grupo finlandês quando esteve
em Estocolmo. Veja-se o recém-descoberto programa que Bakunin apresentou em 25 de abril de
1863 ao poeta nacionalista finlandês Emile von Quanten: E. Rudinitskaia, “Neizvestnœ pis’mo M.
Bakunina”, em Prometei, 1969, n° 7, pp. 236-241. Projetava-se a independência {p. 240) para a
Finlândia, Estônia, Letônia, Polonia, Lituânia, Ucrânia, Pequena Rússia, Bessarabia, Geórgia e todo
o Cáucaso.
30 Texto em “Konwencja miedzy J. Garibaldini a J. Ordega 6 Juin 1864”, em Kwartalnik Historyczny,
vol. XXXVII, 1923, n° 2, p. 373; discutido em David, pp. 27—28, 38.
552 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Em janeiro de 1864, Bakunin chegava a Florença e embarcava numa


década febril de atividade revolucionária em que o novo e o velho, o fato e
a fantasia, eram difíceis de distinguir. Em alguma medida, era uma repeti­
ção do passado revolucionário: uma visita de Bakunin a Garibaldi na Ilha
Caprera, outra tentativa de criar uma organização revolucionária através
de lojas maçônicas e sua adesão à sugestão de Garibaldi de que se criasse
uma nova loja, II Progresso Social. Ele escreveu um perdido Catecismo da
maçonaria e um projeto de organização, Propósitos da Sociedade e o Cate­
cismo Revolucionário.31 Bakunin também escreveu planos para uma série
de fraternidades revolucionárias internacionais fictícias: a Sociedade Secreta
Internacional para a Emancipação da Humanidade, em 1864, a Fraternidade
Internacional ou Aliança Internacional da Democracia Social, em 1868, e
uma última Aliança Revolucionária Socialista, em 1872. Por trás de tudo
isso estava a visão de uma sociedade natural perdida — cada célula é uma
família e todos os membros, irmãos.
Mas havia de fato algo novo na atenção que Bakunin dava a uma revolução
social que se opunha a qualquer forma de autoridade nacional. Nesses últimos
anos ele havia se tornado um autêntico anarquista revolucionário. Ele criou
a primeira organização italiana destinada a opor de modo explícito o ideal
socialista ao ideal nacionalista: a Aliança de 1864, a qual desafiou diretamente
a consideração que Mazzini tinha por modelos costumeiros de pensamento
político e religioso. Depois de se mudar para a Suíça em 1867, Bakunin
também tentou recrutar revolucionários sociais pertencentes à republicana
Liga da Paz e da Liberdade. Levou em seguida os recrutas genebreses para a
sua Aliança Internacional — e também para a Primeira Internacional, onde
iniciou seu longo embate com Marx e os marxistas. A Aliança de Bakunin
praticamente criou os braços italiano e espanhol da Primeira Internacional;
e suas idéias tiveram ressonância muito maior do que as de Marx entre os
suíços e eslavos.32 Também reuniu prosélitos em meio à classe trabalhado­

31 A. Lehning, “Bakunin’s Conceptions of Revolutionary Organizations and their Role: A Study of his
‘Secret Societies’”, em C. Abramsky (ed.), Essays in Honour of E. H. Carr, L, 1974, pp. 61-65 ss.,
contém novos elementos documentais. Ver, mais ainda, M. Nettlau, Ocherki po istorii anarkhicheskikh
idei stat’i po raznym sotsiaVnym voprosam, Detroit, 1951, pp. 82-84 ss.; C. Marti, Orígenes de
anarquismo en Barcelona, Barcelona, 1959, p. 70, nota 77.
Ao enfatizar de modo correto a natureza revolucionária social e transnacional de seus projetos
durante esses últimos anos, Lehning talvez vá longe demais ao afirmar que “depois do fracasso da
insurreição polonesa de 1863, Bakunin deixou de acreditar em movimentos de libertação nacional
como uma força social e revolucionária” (p. 57).
32 As obras fundamentais sobre esse período são de M. Nettlau, Bakunin e VInternazionale in Italia del
1864 al 1872, Genebra, 1928; e Bakunin and the International in Spain (há edição alemã anterior
daquela primeira obra em Archiv für die Geschichte des Sozialismus und der Arbeiterbewegung, vol.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 553

ra — primeiro na Espanha, onde a revolução tinha destronado a Rainha


Isabella em 1868 e despertado novas expectativas sociais; depois na Itália,
onde o número de seus discípulos aumentou após a morte de Mazzini em
1872.33 A esperança de conseguir se filiar à Associação de Bakunin atraiu a
Genebra em março de 1869 o jovem Serge Nechaev, o qual lá permaneceu
para escrever seu Catecismo de um revolucionário,
Embora em seus últimos anos Bakunin associasse revolução a anarquis­
mo, sua perspectiva estratégica permanecia nacional sob alguns aspectos.
Argumentava que os russos, italianos e espanhóis eram revolucionários por
natureza;34 e que a reação mundial estava concentrada justamente na nação
em que ele e outros jovens hegelianos tinham antes depositado suas mais altas
esperanças: a Alemanha. Em busca de uma sede do mal que proporcionasse
um contraste de claro-escuro com as terras da libertação, Bakunin atribuiu
aos alemães como nacionalidade o mesmo gênio demoníaco que Marx
atribuía à burguesia como classe social. A Alemanha se tornou uma espécie
de antinacionalidade, a qual havia deformado a Rússia nativa de Bakunin
num “império cnute-germânico”.35 Os povos do leste e do sul da Europa, ao
contrário, estavam investidos precisamente das qualidades a que os alemães
haviam renunciado, isto é, as da fraternidade espontânea antiautoritária.
Bakunin reviveu a crença de Weitling de que os fora-da-lei e os assaltantes
são recrutas revolucionários em potencial, e buscou estabelecer uma ligação
direta entre a ação conspiratória e as massas: “É certo que umas poucas
centenas de homens de boa vontade não são suficientes para criar um poder
revolucionário sem o povo [...] mas serão suficientes para reorganizar o
poder revolucionário do povo”.36

II, 1911-1912; e edição em espanhol daquela última obra, Buenos Aires, 1925). Sobre a Suíça e a
federação de Jura, v. a coleção anotada pelo principal partidário suíço de Bakunin, James Guillaume,
L'Internationale: documents et souvenirs (1864—1878), 1905-1910, 4 vol.; e novos elementos na
obra monumental de A. Lehning, Archives Bakounine, Leiden, 1961 em diante, 5 vol. saídos até o
momento.
Discussões de outros elementos e perspectivas estão (no que respeita à Suíça) em J. Freymond (ed.),
Études et documents sur la première internationale en Suisse, Genebra, 1964, e (no que respeita à
Itália) em L. Valiani, L'Historiographie de l'Italie contemporaine, Genebra, 1968, pp. 101-113.
33 Sobre a rica subcultura de conspirações na Espanha, v. C. Lidi, La Révolution de 1868, NY, 1970;
sobre a Itália, v. o estudo clássico de N. Rosselli com nova introdução de L. Valiani: Mazzini e
Bakunin, Turim, 1967.
34 Citações em J. Joli, The Anarchists, L, 1964, p. 92, e ainda pp. 111-113.
35 Bakunin, L'Empire knouto-germanique et la révolution sociale (1871) em Oeuvres, vol. II; e sua
continuação inconclusa (nov.-dez., 1872) publicada em Lehning (ed.), Michel Bakounine et les conflits
dans l'internationale 1872. La question germaine-slave, le communisme d'état, Leiden, 1965, pp.
169-219.
36 Bakunin, Ai miei amici d'Italia, citado a partir de Nettlau em Joli, Anarchists, p. 108.
554 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Enquanto o Bakunin da década de 1860 representava um retorno aos


conspiradores paramilitares românticos dos anos 1810 e 1820, o seu grande
revolucionário contemporâneo e colaborador ocasional, Giuseppe Garibaldi,
refletia o nacionalismo romântico das décadas de 1830 e 1840. Garibaldi se
tornou o único autêntico herói da decadente causa revolucionária nacional
ao fim dos anos 1860 e início dos anos 1870.
Assim como Mazzini, Garibaldi pertenceu aos Filadelfos de Londres?7
Havia atingido as dimensões de alguém maior que a própria vida como um
símbolo de libertação nacional ao levar suas lutas — de 1836 a 1848 — até
a América Latina, o primeiro canteiro da luta revolucionária contra a Santa
Aliança. Já em 1843 ele havia formado uma legião italiana no Uruguai; esta
tomou para seu uniforme as blusas vermelhas que haviam sido feitas para
uso dos trabalhadores de abatedouros de Buenos Aires.37 38 Esse uniforme ficou
associado com o abate de seres humanos e com a blusa ensangüentada do
martírio revolucionário depois da aniquilação da República de Roma. Ga­
ribaldi, que havia inspirado os defensores sitiados, viu em 1849 sua esposa
brasileira e companheira de revolução morrer durante a retirada de Roma.
As armadilhas do melodrama romântico cercaram os revolucionários
italianos nas etapas finais de sua longa luta pela unidade nacional. Alexandre
Dumas navegou em seu iate Emma até a Baía de Nápoles e colocou 14 ma­
rinheiros para manufaturar no convés blusas vermelhas para os insurgentes
de Garibaldi.39 Alguns deles se vestiam de preto, tendo à frente um Vesúvio
em chamas — invocando assim uma imagem da revolução há muito tempo
associada com a luta napolitana contra os Habsburgo.
Garibaldi reapareceu em cena para liderar a luta de libertação antiaus-
tríaca numa difícil aliança com Cavour. Quando este o enraiveceu ao ceder
sua terra natal (Nice) à França, Garibaldi partiu para Gênova no dia 6 de
maio de 1860, levando consigo seus famosos mil homens para a batalha final
de libertação da Sicilia e de Nápoles. Lá havia surgido pela primeira vez o
impulso revolucionário no início do século, e lá a luta contra os Habsburgo
tinha um atrativo já antiqüíssimo.
O caminho havia sido preparado para o impressionante sucesso de
Garibaldi em conquistar o sul e uni-lo com o norte da Itália pelo notável

37 Nikolaevsky, pp. 41-42 e notas.


38 Paris, Lion of Caprera, p. 63.
39 Alexandre Dumas, On board the Emma, NY, 1929, p. 522.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 555

levante de 1857 liderado pelo nobre napolitano Cario Pisacane, o primeiro


seqüestrador ideológico da era moderna. Pisacane era um oficial militar de
carreira que havia lutado na Argélia e ao lado de Garibaldi em defesa da
República de Roma em 1849. No dia 25 de junho de 1857, feitos os prepa­
rativos com outros revolucionários impacientes dos círculos mazzinianos,
Pisacane tomou à força o vapor postal Cagliari quando este saía de Gênova,
transformou-o num romântico navio almirante de libertação revolucionária
e navegou para o sul. Libertou cerca de 400 prisioneiros na Ilha de Ponza
(erroneamente acreditando serem todos presos políticos), prosseguiu até
Capri e de lá, após o fracasso de esperada revolução na região de Nápoles,
para a Calábria.40 Depois de ganhar algum apoio popular na área, viu suas
forças se dispersarem e se matou com um tiro.
Pisacane adicionou elementos de revolução social transnacional em sua
defesa de um levante nacional na Itália. Conseguiu recrutar os maquinistas
ingleses que estavam no Cagliari e aludiu a um iminente apoio francês. De
fato, um “grande medo” de revolução social se espalhou por toda a Itália — e
viria a perseguir Garibaldi mesmo após sua vitória.41 A idéia romântica de
que uma nação poderia ser inspirada à revolução por um navio libertador
sobreviveu apenas entre os isolados e desarranjados irlandeses, os quais fun­
daram sua maior organização revolucionária, a Fraternidade Feniana, no dia
de São Patrício de 1858. Numa improvável série de episódios nos Estados
Unidos ao longo de um quarto de século, os fenianos fretaram o navio Catal­
pa para resgatar prisioneiros políticos da Austrália Ocidental, e em seguida
encomendaram o primeiro submarino norte-americano, o Fenian Ram, a
fim de que propiciasse uma ligação entre os Estados Unidos e a Irlanda que
escapasse ao domínio que os ingleses tinham sobre a superfície do oceano.42
Assim como Mazzini, Garibaldi havia hesitado em misturar a causa na­
cional com o radicalismo social semi-anarquista de Pisacane. Mas, quando
a sua própria campanha se mostrou vitoriosa três anos depois naquelas

40 Há uma breve descrição em B. King, A History of Italian Unity, NY, 1967, vol. n, pp. 38-40;
informação completa em L. Cassese, La Spedizioni di sapri, Bari, 1969; e N. Rosselli, Carlo Pisacane
nel risorgimento, com um prefácio à nova edição (Milão, 1958) escrito por W. Maturi, o qual
acrescenta mais referências e comentários em seu Interpretazioni del risorgimento, Turim, 1962,
pp. 465-471. Hales, Mazzini, p. 127, discute um plano anterior de Mazzini para fazer algo similar.
41 Cassese, p. 40 (esp. nota 15), discute a “alucinação coletiva” implicada pela grande variedade de
testemunhos incoerentes de que Pisacane utilizou uma bandeira vermelha. A. Salomone, “The‘Great
Fear’ of 1860. Garibaldi and the Risorgimento”, em Italian Quarterly, 1971, primavera, pp. 77-127,
discute o medo de revolução social que assombrava Garibaldi mesmo quando já vitorioso.
42 T. Coogan, The IRA, L, 1970, p. 14.
556 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

mesmas regiões sulistas, Garibaldi sentiu na vitória a mesma perplexidade


que Pisacane havia sentido na derrota. A libertação implicou em algum de­
clínio do élan revolucionário, e um Garibaldi desiludido logo retornou à Ilha
Caprera. O efeito de sua vitória em toda a Europa, contudo, foi eletrizante
demais para que ele conseguisse se aposentar logo. No início de outubro de
1860, um mês antes de escoltar o Rei Victor Emmanuel até a recém-liberta
Nápoles, Garibaldi havia convocado uma legião internacional de voluntários
franceses, poloneses, suíços e alemães.43 Eles deveriam ajudar a completar a
libertação nacional italiana; mas Garibaldi depois sugeriu que esses grupos
poderiam ajudar também na libertação de seus próprios países. O primeiro
líder dessa legião internacional foi um polonês; e muitos dos participantes do
levante polonês contra a Rússia em 1863 vestiam blusas vermelhas e cantavam
canções italianas.44 Foram feitos os últimos esforços sérios para, em defesa
dos poloneses, tornar realidade o velho ideal de um exército revolucionário
internacional. Conversações foram estabelecidas em Dresden e Turim; e a
proposta ítalo-polonesa de insurreições anti-Habsburgo simultâneas na Ga­
licia e em Veneza recebeu, em junho, a aprovação de Garibaldi numa reunião
internacional que durou três dias na ilha para onde ele havia se retirado.
Os filadelfos de Londres reuniram muitos dos ex-membros da recém-des-
feita Associação Internacional para que dessem apoio à campanha de Gari­
baldi.45 Assim como aquele grupo maçônico, os nomes dos demais aliados
dessa campanha revolucionária de estrutura difusa pareciam um resumo das
conspirações românticas do meio século precedente: a fagulha de um levante
polonês, as fantasias dos emigrados residentes em Londres (incluindo idéias
russas de insurreições entre dissidentes religiosos, camponeses e soldados),
os rumores de uma possível libertação napoleonica e a indefectível melodia
de Verdi — uma espécie de Internationale do nacionalismo revolucionário
—, o Hino às Nações de 1862.46

43 Ele também lançou uma espécie de manifesto defendendo uma confederação européia, o seu
Memorandum alle potenze dell’Europa, de 22 de outubro de 1860. V. A. Tambora, “Garibaldi e
l’Europa”, em Atti del 39 congresso di storia del risorgimento italiano, 1961, p. 515. Sobre seus
laços com os húngaros, v. L. Lajos, Garibaldi e l’emigrazione ungherese 1860-1862, Modena, 1965.
44 K. Morawski, “Garibaldi e la Polonia”, em Atti del 39 congresso, p. 336.
45 Nikolaevsky parece dar um passo além do que os documentos disponíveis autorizam ao sugerir
(“Sociétés”, p. 46) que na década de 1860 “Mazzini, Garibaldi e os filadelfos formaram um bioco
que substituiu a Associação Internacional de 1855-1859”.
46 A primeira execução pública do texto de Boito e da música de Verdi foi em Londres no dia 24
de maio de 1962. Sua primeira reverberação internacional veio com o encontro de trabalhadores
franceses e ingleses em Londres em 5 de agosto (encontro preparativo à Primeira Internacional). V.
P. Masini, “I Canti della Prima Internazionale in Italia”, em Movimento Operaio e Socialista, 1969,
LIVRO n, CAPÍTULO 12; A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 557

Foi Johann-Philipp Becker quem, em Hamburgo, saiu-se melhor em divul­


gar o recrutamento para a legião internacional; ele havia participado tanto
do levante italiano como do levante polonês, e fizera campanha de apoio a
Garibaldi em seu jornal, A Estrela Polar.47 Em julho de 1863, Becker viajou até
a região do Jura — o berço natal dos primeiros carbonários e dos primeiros
filadelfos — para fazer os preparativos de um congresso internacional para o
qual haviam sido convidados, em nome de Garibaldi, líderes de movimentos
democráticos nacionais de toda a Europa. Realizado em Bruxelas de 26 a
28 de setembro, com Pierre Coullery do Jura48 na condição de presidente e
Becker na de vice-presidente, o congresso adotou a resolução de criar uma
Association Fédérative Universelle de la Démocratie^, uma sociedade de nome
parecido com o da Associação Democrática fundada em Bruxelas 16 anos
antes, isto é, em 1847. Esta última associação havia sido suplantada pela Liga
Comunista de Londres. De maneira similar, a nova e garibaldiana Associação
Democrática seria ultrapassada um ano depois por uma organização inter­
nacional que, sediada em Londres, era comprometida com a revolução social
e dominada por Karl Marx: a Associação Internacional dos Trabalhadores,
que depois viria a ser chamada de Primeira Internacional.
Em 1864, a paixão dominante entre os exilados políticos de Londres não
era a fundação da Internacional, e sim a organização de uma tumultuada
e bem-sucedida visita de Garibaldi. Os filadelfos ajudaram a organizá-la,
e refugiados nacionalistas vindos do levante polonês há pouco sufocado
ajudaram a levar o entusiasmo a um paroxismo. O espetáculo da chegada
de Garibaldi reinfundiu sangue fresco mesmo nas artérias revolucionárias
mais austeras. Goodwyn Barmby irrompeu de seu presbitério unitarista rural
em Wakefield, Yorkshire, para saudar a chegada desse herói da “completa,
profundamente bem-nutrida Itália”. Garibaldi, anunciou, era o libertador de
tudo, das árvores e pássaros às freiras solitárias em seus conventos.49

jul.-set., pp. 229-243.


47 V. em particular o seu “Die Polen, die Diplomatie und die Revolution”, em Nordstern, n° 219-223,
1863, jul. Nikolaevsky (“Sociétés”, p. 329, nota 23) argumenta de modo pouco convincente no
sentido de que Becker também era maçom, e como prova alega que Mazzini se dirigiu a ele como
“Querido Irmão”.
48 Sobre Coullery, um médico cristão visionário que ajudou a tornar Jura um grande centro de atividade
organizacional e de convicções anti-marxistas dentro da Primeira Internacional, v. J. Freymond e
M. Molnái; “The Rise and Fall of the First International”, em The Revolutionary Internationals,
pp. 14—16.
49 The Return of the Swallow and other Poems, L, 1864, pp. 40-41, também p. 21. Para os seus últimos
e mais típicos textos, v. Aids to Devotion; or Religious Readings in the Order of the Natural and
tha Christian Years, L, 1865.
558 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Herzen, desiludido com o fracasso da revolução na Polônia e rejeitado


pelos radicais russos mais jovens, deu um jantar festivo para esse símbolo
radiante da revolução vitoriosa; o jantar se encerrou com Baba à la polonaise
e Plombière de glace à la Garibaldi.5® Até os exilados franceses, os quais
nunca buscavam orientação revolucionária junto a estrangeiros, saudaram
Garibaldi como um precursor, senão mesmo como um modelo, de sua pró­
51
pria libertação.50
Durante um breve período inicial, a Primeira Internacional incluiu no seu
conselho geral um número substancial de filadelfos e de nacionalistas italia­
nos. Com sua remoção do conselho geral no outono de 1865 e o simultâneo
colapso dos esforços de Mazzini para estabelecer uma nova internacional de
revolucionários nacionalistas (referida às vezes como Aliança Republicana
Universal, às vezes como Comitê Republicano Internacional), meio século
de conspiração revolucionária romântica chegou ao fim.
Se aquele período de atividade revolucionária havia sido dominado por
revolucionários nacionais, o meio século seguinte foi dominado por um
tipo mais prosaico de revolucionários sociais pertencentes às duas primeiras
internacionais. O apelo revolucionário do nacionalismo tinha sido minado
pelo triunfo de um nacionalismo governamental conservador sob os auspí­
cios da burguesia — na recém-unificada Alemanha de Bismarck e na Itália
de Cavour; nos Estados Unidos pós-Guerra Civil; na elevação do Canadá
à condição de domínio em 1867; e até em dois acontecimentos do Leste
Europeu desse mesmo ano de 1867: a adoção de uma dupla nacionalidade
pelos Habsburgos no Império Austro-Húngaro e o entusiasmo nacionalista
despertado na Rússia dos Romanov pelo Congresso Pan-Eslavo de Moscou.
O nacionalismo romântico tinha sido construído sobre os pilares gêmeos
de uma sólida cultura vernácula e de um movimento revolucionário heróico
de autodeterminação política. Exemplos tardios importantes desse nacio­
nalismo surgiram nas fronteiras da Europa imperial do fim do século xix:
entre os irlandeses oprimidos do Império Britânico, no Ocidente, e os judeus
oprimidos do Império dos Romanov, no Oriente. Mas os palcos de Dublin
e o Exército Republicano Irlandês, assim como o teatro iídiche e os movi­
mentos sionista e bundista, eram brilhantes exceções à regra. As tendências

50 Cardápio do jantar com seis pratos de 17 de abril, entre outros materiais sobre os contatos russo-
italianos coletados por V. Never; em Atti del XLiii congresso di storia del risorgimento italiano, 1968,
p. 47.
51 La France libre et Garibaldi, L, 1864.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 559

nacionalistas dominantes no século xix eram de desenvolvimento industrial


e de expansão territorial levados a cabo pelos Estados nacionais, os quais
fizeram concessões de variado grau às formas políticas parlamentares do
liberalismo inglês ou francês. A oposição radical dominante estava agora
em buscar mudança antes social do que política, não importava se o povo
se visse como composto de revolucionários sociais ou de social-democratas.
O sonho nacionalista romântico não morreu dramaticamente; na verdade
apenas foi desaparecendo, como o próprio Garibaldi. Homem quase inteiramente
de ação, incapaz de compreender as complexidades políticas e econômicas do
novo mundo industrial, Garibaldi lutou pelos franceses em 1870-1871 e teve
breves e impressionantes carreiras nos parlamentos italiano e francês, antes
de se retirar para a sua ilha mediterrânea perto da Córsega, de onde havia
vindo grande parte da inspiração para o seu ideal de uma ordem natural não
conspurcada. Após sua morte em 1882, seu sonho simples de uma revolução
popular sem qualquer programa político ou conteúdo social claro sobreviveu
principalmente na adulação que o mundo anglo-americano não-revolucionário
dedicava a esse “herói de dois mundos”. Com a glorificação póstuma que lhe
fizeram professores prestigiosos — como o grande vitoriano George Trevelyan,
de Cambridge, e o grande wilsoniano Walter Phelps Hall, de Princeton —, eie
se tomou uma lenda. O futuro do movimento revolucionário, contudo, não
dependia desse consumado homem de ação, mas do supremo homem de teoria,
Karl Marx, que morrería só um ano depois de Garibaldi.
Mas os herdeiros de Marx jamais teriam chegado ao poder entre os
eslavos do nordeste se os herdeiros de Garibaldi não tivessem antes estabe­
lecido domínio entre os eslavos do sudoeste. O assassinato do arquiduque
Franz Ferdinand pela organização conspiratória nacionalista Jovem Bósnia,
em julho de 1914, levou de modo fatal à Primeira Guerra Mundial, a qual
tornou possível a Revolução Russa. Os objetivos idealistas e nacionalistas
daquela organização, suas práticas semimaçônicas52 e seu etos de disposição
juvenil ao sacrifício — tudo representou uma reprise na década de 1910
dos movimentos revolucionários anteriores na vizinha Itália. Logo após o
acontecimento decisivo, um dos dois integrantes da Jovem Bósnia julgados
pelo assassinato escreveu no seu diário estas palavras de Mazzini: “Não
existe nada de mais sagrado no mundo do que o dever de um conspirador,
52 Dedijer, The Road to Sarajevo, L, 1966, pp. 438—443, sobre a questão problemática, mas não
inteiramente despropositada, das relações e procedimentos dos revolucionários. Para provas de uma
base maçônica da Revolução Russa de março de 1917, v. G. Aronson, Rossiia nakanune revoliutsii.
Istoricheskie etiudy: monarkhisty, liberal, masony, sotsialisti, 1962.
560 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,EM F HISTÓRIA

o qual se torna um vingador da humanidade e o apostolo das leis naturais


permanentes”.53
Garibaldi permaneceu o símbolo da luta pela “ressurgência” nacional nos
Bálcãs — das montanhas da Albânia, onde ele era conhecido como “des­
cendente de Skanderbeg” (o grande herói nacional), até a russófila Bulgária,
onde os jovens radicais freqüentemente vestiam uma blusa chamada de
garibaldeika.54 Mais intensidade ainda vinha do movimento revolucionário
russo, que espalhou ao seu redor o seu próprio nacionalismo revolucionário
pan-eslavo e datava da década de 1870, quando Bakunin e Garibaldi haviam
se unido para dar apoio ao levante bósnio contra a Turquia em 1874-1875,
um ano antes de o governo tzarista intervir militarmente.55 Nos seus últi­
mos anos de vida, Bakunin faria um esforço final para angariar o apoio de
insurretos aos eslavos do sul, assim transferindo suas esperanças de uma
revolução de volta para terras eslavas. Em 1875-1876 ele se voltaria dos
camponeses da Bósnia para os populistas de São Petersburgo. E, só um ano
depois de sua morte, em 1877, os revolucionários russos iniciariam a longa
cadeia de assassinatos políticos no Leste Europeu que levariam a Sarajevo.

O jornalismo de massa
Foi então, nas décadas de 1860 e 1870, que as velhas esperanças do na­
cionalismo revolucionário e os velhos hábitos conspiratórios passaram do
centro de industrialização da Europa para a sua periferia rural. Paralelo a
esse fenômeno, deu-se ainda outro que minou qualquer possibilidade de
manter vivo o sonho da revolução nas mentes da massa: um novo tipo de
jornalismo. O jornalismo revolucionário de uma vanguarda intelectual, que
teve, como vimos, importância central no período de 1830 a 1848, veio a
ser desbancado em matéria de audiência popular por uma nova imprensa de
massa — uma imprensa que era não-revolucionária ou anti-revolucionária.
Foram duas as fontes de rivalidade com o jornalismo ideológico da tradi­
ção revolucionária: (1) os jornais simplórios e quase sem política alguma dos
53 Dedijer, Road, p. 178. O juramento revolucionário de Mazzini foi reimpresso em Zora, 1912 (p.
479, notas).
54 Tambora, “Garibaldi”, p. 462; e sobre a influência de Garibaldi sobre os russos, p. 476 ss. Para
uma bibliografia exaustiva sobre o impacto de Garibaldi, v. A. Campanella, Giuseppe Garibaldi e
la tradizione garibaldina, Genebra, 1971, 2 voi.
55 V. a discussão e referências em Billington, Mikhailovsky, p. 191, nota 1. Para a vaga de insurreições
nacionalistas da Bósnia e Herzegovina no verão de 1875 à Romênia e Bulgária às vésperas da guerra
russo-turca de 1877-1878, v. V. Trajkov, “L’Insurrection d’avril 1876 en Bulgarie et les peuples
balkaniques”, em Études Balkaniques, 1876, n° 1, pp. 16-41.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 561

próprios trabalhadores e (2) a imprensa chauvinista, com um sensacionalismo


deslumbrante que transformou o nacionalismo de causa revolucionária em
causa reacionária.

A preocupação dos proletários

O jornalismo produzido pelas classes trabalhadoras foi quase sempre


não-ideológico, só muito raramente revolucionário. Esse jornalismo se ini­
ciou na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde os leitores operários estiveram
desde o princípio preocupados com os problemas imediatos e os interesses
materiais. Essa perspectiva estimulou atitudes reformistas que mais tarde os
leninistas chamariam de “sindical”, “reboquista” e ouvriériste,
Nos Estados Unidos, sindicatos embrionários criaram os primeiros jor­
nais editados por trabalhadores e destinados a trabalhadores. Os pioneiros
foram primeiro artesãos especializados que trabalhavam com intelectuais no
Movimento dos Homens Trabalhadores na Filadélfia,56 e depois imigrantes
alemães letrados, os quais viriam a compor um terço da população das cida­
des norte-americanas.5758Todos os seus jornais tendiam a ser absorvidos pela
política reformista do Novo Mundo. Até mesmo uma geração posterior de
comunistas transplantados para o novo continente, como o amigo de Marx,
Joseph Weydemeyer, começou a dirigir suas energias jornalísticas no sentido
da política estabelecida — como ficou simbolizado no gesto de Weydemeyer
de, no início dos anos 1850, passar de um jornal chamado Revolução a
outro chamado Reforma.™ O próprio Karl Marx se tornou colaborador,
em meados de 1852, do jornal burguês reformista New York Tribune, do
ex-fourierista Charles Dana.59
56 0 Mechanics' Free Press desse movimento, de 1828, foi “o primeiro jornal dos trabalhadores editado
por trabalhadores e para trabalhadores”, de acordo com E. Pessen, “La premières presse du travail.
Origine, rôle, idéologie”, em Presse ouvrière, pp. 43—44.
57 De acordo com Obermann, “Germano-Américains”, em Presse ouvrière, p. 76.
58 Embora o principal novo jornal de 1845, Der Volkstribun, tenha tirado de Babeuf o seu título, o
seu tom reformista desagradou Marx, e o jornal mudou de nome para Die Revolution, um efêmero
semanário de 1852 e “primeiro jornal de trabalhadores marxistas da América”. Mas o próprio
Weydemeyer logo se queixou para Marx do “aburguesamento” dos trabalhadores nos Estados Unidos
(ibid., p. 84) e passou para o jornal Die Reform — de modo que o isolado Der Communist de Cabet
permaneceu o único jornal no Novo Mundo que mantinha um nome verdadeiramente revolucionário
advindo do Velho Mundo. V. Obermann, Joseph Weydemeyer. Ein Lebensbild 1818-1866,1968; e a
tese de doutorado inédita de D. Herreshoff, “American Disciples of Marx from the Age of Jackson
to the Progressive Era”, em Wayne State, 1963.
59 A cuidadosa análise de D. Riazanov dessa etapa da carreira de Marx conclui que os artigos escritos
em inglês eram em grande parte escritos por Engels (Ocherki, pp. 119-151) e discute a colaboração
menos conhecida e mais breve que depois Marx manteve com o mais conservador Die Presse de
Viena (pp. 159-173).
562 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Na Inglaterra, a classe trabalhadora se mostrou a princípio mais ame­


açadora para a autoridade européia. A partir de 1830 começa a aparecer
uma série de periódicos ilegais (não pagavam os impostos) com uma linha
editorial e um público cada vez mais proletários.60 Essas publicações ajuda­
ram a preparar as massas para o movimento cartista e para o sindicalismo
organizado — processo no qual irlandeses radicais desempenharam o papel
que os imigrantes alemães tiveram nos Estados Unidos.61
Na França, a imprensa operária logo surgiu como desdobramento dos
acontecimentos de 1830 (Le Journal des Ouvriers^ Le Peuple, Journal des
Ouvriers Rédigé par Eux-mêmes e L’Artisan., aos quais Lyon somava em
1831 L’Echo de Fabrique e o antiparisiense e antiintelectual La Tribune Pro­
létaire).62 Ao firn da década aparece uma imprensa ouvrieriste ainda maior
e mais agressiva, tendo à sua frente os infatigáveis ex-saint-simonianos:63
La Ruche Populaire de Jules Vinçard, um “jornal de trabalhadores editado
e publicado por eles mesmos”, em 1839, e L’Atelier de Philippe Bûchez, um
jornal ainda mais importante que foi fundado somente por trabalhadores
manuais assalariados e a eles se destinava.64
O elemento distintivo desses jornais operários é que eles mostravam
pouco interesse pelas teorias de intelectuais revolucionários sobre a classe
trabalhadora. O Atelier^ por exemplo, rejeitava as pretensões ideológicas dos
primeiros comunistas franceses de tornar a realização da felicidade material
“uma doutrina social completa [...] todo um sistema de filosofia”65 e a retó­

60 V. J. Wiener, The War of the Unstamped: The Movement to Repeal the British Newspaper Tax,
1830-1836, Cornell, 1969; A Descriptive Finding List of Unstamped British Periodicals, 1830-1836,
L, 1970; e P. Hollis, The Pauper Press: A Study in Working-Class Radicalism of the 1830’s, Oxford,
1970.
61 Sobre o papel de John Doherty como fundador de The Voice of the People, Workmen’s Expositor
e outros jornais em Manchester, e sobre o papel de Bronterre O’Brien ao dar um sabor mais
revolucionário ao Poor Man’s Guardian antes de se juntar por um período a Feargus O’Connor
em seu novo Northern Star (fundado em 1838), v. M. Brooke, “Naissance de la presse ouvrière à
Manchester”, e D. Thompson, “Création d’O’Brien et d’O’Connor”, em Presse ouvrière, p. 10 ss. e
21-23.
62 S. Gruner, “The Revolution of July 1830 and the expression ‘Bourgeoisie’”, em Historical Journal,
vol. xi, 1968, n° 3, p. 469; R. Gossez, “Presse parisienne à destination des ouvriers 1848-1851”, em
Presse ouvrière, pp. 130-131. V. também G. Weill, “Les journaux ouvriers à Paris de 1830 à 1870”,
em Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, 1907, nov.
63 Cuvillier, Hommes, pp. 91-93. Já que sua listagem de esforços anteriores (pp. 87-91) está, contudo,
incompleta, especialmente no que diz respeito a Lyon, sua conclusão de que a publicação de jornais
desse tipo se inicia só em 1839-1840 é equivocada.
64 Ibid., pp. 99-154, e Cuvillier, Un Journal d’ouvriers, 1914, sobre as querelas importantes que o
jornal manteve com outras publicações radicais.
65 Cuvillier, Hommes, p. 124.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 563

rica de Leroux ao falar da humanidade “como se esta fosse uma pessoa de


verdade”.66 A imprensa operária nutria especial desconfiança dos ideólogos
socialistas; e, no período de grandes possibilidades entre a queda de Luís Filipe
em 1848 e o golpe de Napoleão m em 1851, a influência de Proudhon foi
sensível e os jornais dos trabalhadores tendiam a ser “mais revolucionários
do que socialistas”.67 Mas o prestígio dos manifestos revolucionários já tinha
sido abalado pela repressão de junho de 1848;68 mais ainda, a restrição e
cooptação operadas por Napoleão mitigaram as inclinações revolucionárias
dos jornais proletários sobreviventes.
Mais uma vez, o centro do jornalismo operário voltou para a atmosfera de
maior liberdade da Inglaterra. A grande exibição de 1851 no Crystal Palace e
o governo reformista do partido liberal seduziram muitos ex-radicais com a
promessa de melhorias materiais e de mobilidade vertical dentro do sistema.
Quando, em 1855, o “imposto sobre conhecimento” foi inteiramente abolido
e não havia mais obrigatoriedade de aprovação governamental, o principal
beneficiário da nova liberdade de imprensa foi o jornalismo sensacionalista
de massa. Uma vez que a meta da liberdade foi alcançada, por uma ironia,
o próprio jornalismo cartista, que vinha protestando por aquela liberdade,
entrou em decadência.69 Londres não cessou de fornecer idéias e abrigo,
mas, por volta de 1860, a liderança revolucionária — bem como a tradição
cartista de jornalismo revolucionário — havia migrado para outras nações.
A Associação Internacional dos Trabalhadores de 1864 se desenvolveu
a partir da tradição de visitas de trabalhadores franceses a Londres — a
qual, por sua vez, se desenvolveu das tentativas cartistas de estabelecer uma
66 Ibid., p. 125.
67 De acordo com Gossez, Presse ouvrière, p. 148. Os jornais influentes que Proudhon publicou nesse
período se apoiaram em seus laços com a sociedade tipográfica para ajudar a organizar um Banco
para o Povo, o qual oferecia crédito com taxa de juros baixa e ajuda mútua para os trabalhadores.
68 Meramente um quarto dos 171 novos períodos fundados depois da queda de Luís Filipe em 25
de fevereiro de 1848 sobreviveu mais do que um breve período após 17 de junho (ibid., p. 183).
O pai simbólico do jornalismo revolucionário, “Père Duchêne”, reapareceu por um breve período
em junho como um “autor” no jornal oficial dos delegados dos trabalhadores do departamento do
Sena, Journal des Travailleurs, mas foi logo transformado (no título de um novo jornal surgido em
julho) em Le Perdu Chêne de la Révolution (“o carvalho perdido da revolução”) (ibid., p. 170).
69 O fechamento, em 1858, do People's Paper de Ernest Jones, o último jornal oficial do movimento
cartista, acabou com toda a liderança inglesa dos movimentos transnacionais da classe trabalhadora.
O proprio título, Bee-Hive, do mais importante jornal da classe trabalhadora da década de 1860
(fundado pelo carpinteiro George Potter “no interesse das classes trabalhadoras”) sugere sua
preocupação semi-vitoriana com as preocupações não ideológicas do dia-a-dia. V. S. Coltham,
“The Bee-Hive Newspaper”, em A. Briggs e J. Saville (ed.), Essays in Labour History, L, 1960, pp.
174-204; e “George Potter, the Junta and the Bee-Hive”, em International Review of Social History,
vol. ix, 1964, pp. 391-432; e vol. x, 1965, pp. 23—65.
564 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

colaboração anglo-francesa nos anos 1850.70 O Marx maduro, contudo, viu


relativamente poucas possibilidades revolucionárias tanto na classe trabalha­
dora francesa como na classe trabalhadora inglesa que apoiavam a Primeira
Internacional. Ele cada vez mais depositou suas esperanças no emergente
movimento social-democrata alemão, pois a Alemanha parecia o único lugar
onde os jornais proletários pareciam não implicar a renúncia à revolução.

A distração chauvinista

O surgimento de uma nova classe trabalhadora despertou muitos medos


nas décadas de 1850 e 1860. Com a recordação ainda fresca dos aconteci­
mentos de 1848, os estadistas da Europa não apenas garantiram benefícios
sociais ao populacho, a fim de desarmar os protestos sociais, como entraram
eles próprios nas listas jornalísticas para ajudar a moldar a opinião públi­
ca. Conservadores como Bismarck e Disraeli, não menos que um outrora
amigo dos revolucionários como Napoleão m, criaram canais jornalísticos
e programas “socialistas”. Até na Rússia o Ministro do Interior participou
da fundação do primeiro jornal operário do país, em 1875.71 Assim teve
início a longa tradição governamental russa de tentar se infiltrar ou dirigir
a organização da classe trabalhadora nos grandes complexos industriais de
fim do século xix.
Contudo, a verdadeira arma contra os trabalhadores de 1848 a 1914 foi
a nova imprensa patriótica. Ela impressionava as massas por toda parte —
prendendo o velho nacionalismo romântico ao vagão do poder industrial
estatal. A Inglaterra abriu o caminho na década de 1850, com uma imprensa
patriótica que fez pressão para que um governo liberal fraco intervisse na
Guerra da Criméia de 1854-1856, e em seguida fez campanha pelo expurgo
de toda a corrupção e ineficiência que impediam a vitória. Essa guerra, a
mais sangrenta do século que medeia entre Waterloo e Sarajevo, suplantou
na Inglaterra o que ainda tivesse sobrado da paixão cartista por reformas
70 O nome da Primeira Internacional era rico em reverberações cartistas, uma vez que a organização
fundamental dos cartistas, a Associação dos Operários de Londres, de junho de 1836, extraiu seu
nome de um grupo fundado em maio para combater o “imposto sobre conhecimento”, a Associação
de Operários Em Busca de uma Imprensa Barata e Honesta. A Associação dos Operários deu
início à tradição do internacionalismo cartista em novembro de 1838 com um chamado pioneiro à
solidariedade para com os trabalhadores belgas que pediam uma colaboração dos operários ingleses,
belgas, holandeses e renanos. Texto em The Constitutional, 12 de novembro de 1836; discussão em
Lehning, “Association”, pp. 189-191, o qual também traça a colaboração anglo-continental até o
fim dos anos 1850, pp. 191-284.
71 Sobre o mensário ilustrado Russky rabochy, v. B. Esin, Russkaia zhumalistika 70-80 godov xix
veka, 1963, p. 180 ss.
LIVRO IL CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 565

sociais. Jornalistas radicais da Inglaterra contribuíram para a histeria ao


batizar o conflito de “guerra do povo” e “guerra das nações” contra a Rússia
reacionária.72 Marx, que era, entre os jornalistas revolucionários da época, um
dos principais russófobos,73 tinha grandes esperanças de que a guerra pudesse
levar a uma revolução “como sexta potência da Europa”.74 O jornal The
Times encorajou seus leitores, mais ainda, a dar pitacos sobre a condução da
guerra; descreveu-a afinal como uma espécie de cruzada pela civilização, daí
o heroísmo da Brigada Ligeira75 e a missão curadora de Florence Nightingale.
William Russell, um brilhante correspondente irlandês do The Times,
ajudou a mobilizar a opinião popular a favor da guerra a despeito da hesi­
tação de políticos, e assim ajudou a provocar uma revolta instantânea contra
eles, pondo abaixo muitos líderes militares de reputação sem mácula. Após
a vitória, Russell se tornou “uma espécie de rei sem coroa”.76 Em 1855, The
Times tinha uma tiragem diária de 61 mil exemplares, mais de dez vezes
mais que os seus concorrentes;77 e um novo semanário começou a circular
em novembro de 1855 com a declaração direta de que “este país é governado
pelo The Times”.78
Durante a Guerra da Criméia, The Times encontrou na França, aliada
da Inglaterra, um imitador, Le Figaro, que, desde sua criação em 1854,
também apelava ao patriotismo da massa, valendo-se de uma aparência de
respeitabilidade conservadora. O exibicionismo patriótico extremo que em
breve se desenvolvería no londrino Daily Telegraph era também caracterís­
tico dos experimentos jornalísticos de Girardin e outros ao fim do reinado
de Napoleão m.

72 Citações de O. Anderson, A Liberal State at War, NY, 1967, pp. 3, 85. Sobre o apoio da imprensa
reformista na provinciana Sheffield, v. A. Briggs, “John Arthur Roebuck and the Crimean War”, em
Victorian People, L, 1954, pp. 60-94.
73 Para a mais rica documentação dessa atitude, incluindo material não presente em edições soviéticas
posteriores, v. D. Riazanov, Anglo-russkiia otnosbeniia v otsenke K. Marksa (Istoriko-kritischesky
etiud), Retrogrado (izdanie petrogradskago soveta rabochikh i krasnoarmeiskikh deputatovi, 1918,
LL.
74 Citado em Anderson, p. 3.
75 O poeta laureado Alfred Tennyson cantou os 300 homens da Brigada Pesada que haviam feito uma
incursão suicida até o topo de uma colina não menos do que cantou os “nobres seiscentos” que
Brigada Ligeira que havia feito incursão “no vale da morte” (The Poetic and Dramatic Works of
Alfred, Lord Tennyson, Boston, 1899, pp. 640-641, 292). Em outra parte ele repreendeu de forma
direta os reformadores: “Melhor uma vila decadente do que uma frota decadente (The Times,
9 de maio de 1859, citado em S. Maccoby, English Radicalism 1853-1886, L, 1938, p. 67).
76 Weill, Journal, p. 242.
77 Anderson, p. 71. Weill não toma a diferença como tão grande.
78 The Saturday Review, citado em Weill, p. 240.
566 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os franceses cunharam o termo “chauvinismo” para descrever essa atitu­


de, tomando a palavra da cultura popular dos salões de música. Um velho
vaudeville^ “La Cocarde Tricolore”, havia ridicularizado um partidário de
Napoleão i, Nicholas Chauvin, por cantar repetidamente:

Je suis français
Je suis Chauvin

Se os jornalistas franceses descobriram o chauvinismo às vésperas da


Guerra Franco-Prussiana, seus pares ingleses criaram um ismo similar pró­
prio para descrever uma irrupção paralela de patriotismo popular durante
a Guerra dos Bálcãs de 1878. Baseando-se num expletivo utilizado em bares
(jingo,, que significava “poxa”), a imprensa britânica começou a falar em
jingoismo. O Daily News de 13 de março descreveu o patriotismo excessivo
como a criação da “nova tribo dos patriotas de salão de música que cantam
o jingo”.79 Mas era a própria imprensa que proporcionava a orquestração.
Como os “patriotas de salão de música” urgissem a Inglaterra a lutar
contra a Rússia de novo, de sua parte os russos começaram a produzir a sua
própria imprensa jingo. De fato, a criação de um novo e anti-revolucionário
jornalismo de massa na Rússia deu um exemplo impressionante de reacio­
nários que exaurem as técnicas do jornalismo revolucionário pré-existente
e anulam seu atrativo.
A história começa com Michael Katkov, que havia sido um radical no fim
da década de 1850 e foi o primeiro na Rússia a usar em escritos a palavra
niilista. No fim de 1862, Katkov comprou o Notícias de Moscou^ jornal que
antes havia sido um órgão estatal semi-oficial e que só há pouco tinha se tor­
nado um jornal diário. Ele assumiu a editoria no dia de ano novo de 1863, e
dali a apenas dez dias se iniciaria o levante polonês. Sua resposta foi tal que
Herzen a descreveu como “cruzada cruel contra a Polônia”.80 Jogando com
os sentimentos antiestrangeiros de Moscou, a velha rival de São Petersburgo,
Katkov mostrou que um veículo de imprensa particular situado fora da capital
podia ser ainda mais reacionário do que os veículos governamentais oficiais
de São Petersburgo. Definiu seu Notícias de Moscou como “o órgão de um
partido que se pode chamar de russo, de ultra-russo, de exclusivamente rus-

79 Oxford English Dictionary, vol. v, segunda paginação, p. 585, para esses empregos, aparentemente
os primeiros, de “jingo” com o novo sentido. Ibid., vol. il, p. 304, para La Cocarde de 1831 e o
primeiro emprego de “chauvinismo” em 1870.
80 Kolokol, 1864, n° 44-45; citado em Russkaia periodicheskaia péchât’ (1702-1894), 1959, p. 25.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 567

so”;81 sua tiragem chegou à marca sem precedentes de 12 mil exemplares.82


Valendo-se de sua experiência prévia nos ambientes radicais dos “jornais
grossos”, Katkov deu uma moldura ideológica à repressão, ao argumentar
que favorecia “não o esmagamento da nacionalidade polonesa (narodnost’},
mas a invocação de uma nova vida política na Rússia”.83 Ao fazer amplo uso
de folhetins e de cartas ao editor de teor antiintelectual, o jornal de Katkov
ajudou a impelir o governo imperial a vencer a hesitação inicial e lançar uma
campanha de repressão. Katkov, em seguida, inseriu ilustrações na terra dos
ícones — nas quais representava o novo governador militar geral,84 Muravev,
como um herói popular, e o distante Herzen como um demônio que infectava a
Rússia com a discórdia estrangeira. Essa campanha jornalística de mobilização
patriótica ajudou a reduzir a tiragem do Sino de Herzen, ao longo de 1863,
de 2.500 exemplares para menos de 500.85 A campanha, ademais, encorajou
Katkov a fazer, já em 1866, uma campanha contra o vírus revolucionário em
sua pátria. Insistia que “a verdadeira raiz do levante está não em Paris, em
Varsóvia ou em Vilnius, mas em Petersburgo”.86 O inimigo deixou de ser os
revolucionários francos e passou a ser liberais situados em altos postos, “os
quais não protestam contra as influências poderosas que auxiliam o mal”.87
Ex-simpatizantes dos revolucionários se tornaram líderes do novo jornalismo
anti-revolucionário, fato que se intensificou nos anos 1860 com as publicações
seriadas de dois veteranos do círculo radical de Petrashevsky da década de
1840: Fiódor Dostoiévski e Nikolai Daniliévski. Os demônios, que Dostoié-
vski publicou num jornal de Katkov, caricaturou a conspiração revolucionária
de Nechaev com uma profundidade metafísica e um poder satírico inéditos.
Daniliévski criou uma justificação aparentemente científica para o pan-esla-
vismo expansionista com o seu Rússia e Europa, no qual descrevia a batalha
iminente entre os mundos “germânico-romano” e “eslavo”. Esse trabalho de
Daniliévski foi publicado em um novo mensário surgido em 1869; seu nome,

81 Citado em M. Lemke, Ocherki po istorii russkoi tsenzury i zhumalistiki xzx stoletiia, São Petersburgo,
1904, p. 279.
82 Ibid., p. 279; essa cifra é de 4.000 a mais do que seu concorrente mais próximo (ibid., p. 358).
83 Citado em Brokgauz-Efron, Entsiklopedichesky slovar\ vol. xiv, p. 732. V. também S. Nevedensky,
Katkov i ego vrernia, São Petersburgo, 1888.
84 Até 1917, chamava-se de governador militar o oficial incumbido pelo tzar de controlar uma
província, cidade ou região. Em tempos de guerra, o governador militar geral tinha prerrogativas
de comandante em chefe — nt.
85 Yarmolinsky, Road, p. 130.
86 Citado em Brokgauz-Efron, vol. xiv, p. 732.
87 Ibid.
568 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A Aurora (Zaria), era uma apropriação do léxico dos revolucionários. Entre


os que publicavam no jornal estavam Vasily Kelsiev, ex-colaborador de Her­
zen, e o principal romancista “antiniilista” dos anos 1860, A. E Pisemsky.88 O
romance de Dostoiévski começou a ser publicado em 1871 (no momento em
que os artigos de Daniliévski eram reimpressos como livro) no Tribuna Russa
de Katkov. Tamanha importância se atribuía a esse jornal na guerra ideológica
contra os revolucionários que, quando Katkov morreu em 1871, foi convocada
uma sessão especial do Conselho de Ministros para avaliar a “crise”. O jornal
foi transferido de Moscou para São Petersburgo, a fim de encorajar laços ainda
mais estreitos entre o jornal e a política oficial.89
Raramente funcionários do governo promoviam o pan-eslavismo reacionário,
o qual nunca se tornou ideologia oficial na Rússia tzarista.90 Era antes criação
dos novos jornalistas da imprensa de massa, os quais com freqüência eram
ex-intelectuais radicais que haviam redirecionado seus impulsos revolucioná­
rios para áreas estrangeiras. Katkov, que tinha antes estimulado os estudantes
rebeldes da Universidade de Moscou, permaneceu alguém que de tempos em
tempos cobrava uma reforma legal radical. A. A. Kraevsky, que havia sido amigo
de Belinsky e patrocinador do seu jornal Anais da Pátria^ lançou em 1863 um
novo jornal reacionário, A Voz (Golos), e bancou a ampliação de sua tiragem
de 4 mil exemplares para mais de 22 mil à época do entusiasmo pan-eslavo
de 1877.91 Nesse mesmo ano, A. S. Suvorin assumiu o diário peterburguês
Novos Tempos (Novoe Vremia) e o transformou em um jornal pan-eslavo
ainda mais influente. Deu a ele uma segunda edição diária e um novo tema, o
anti-semitismo, que, nos anos 1880, se tornou um dos assuntos dominantes
do novo jornalismo reacionário que, àquela época, se desenvolvia nas áreas
onde, com população de fala alemã, a Rússia fazia fronteira com o Ocidente.92
Mesmo essa gazeta continuou a fazer uso da retórica revolucionária sobre os
“novos tempos”. O próprio Suvorin tinha em sua juventude escrito um conto
intitulado Garibaldi^ que, como fonte de inspiração, era lido em voz alta nas
noites de conversação de intelectuais radicais.93

88 C. Moser, Antinihilism in the Russian novel of the 1860’s, Haia, 1964.


89 Russkaia pechat’, p. 342.
90 S. Pushkarev me fez perceber isso de maneira convincente em uma discussão ampla de meu Icon
(carta de 30 de julho de 1966, pp. 9-10), que se referia em particular à caracterização presente em
A. Lobanov-Rostovsky, Russia and Europe 1825-1878, Ann Arbor, 1954, pp. 259-263.
91 Russkaia pechat’, pp. 436—437.
92 P. Pulzer, The Rise of Political Anti-Semitism in Germany and Austria, NY, 1964, p. 34 ss.
93 Brokgauz-Efron, vol. lxii, p. 794; também Russkaia pechat’', pp. 509-511.
LIVRO IL CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 569

O novo industrialismo ajudou a imprensa chauvinista de massa a substi­


tuir o jornalismo ideológico do começo do século xix. A mudança crucial na
fonte de financiamento dos jornais, que deixou de ser os assinantes para se
tornar os anunciantes, fez mais do que inibir a crítica direta das instituições
capitalistas. Ela libertou os jornalistas da pressão para tratar dos interesses
locais e imediatos dos seus leitores. Os jornalistas do fim do século xix
eram encorajados por seus editores a criar identidades remotas e proble­
mas simbólicos para sua audiência anônima urbana. As matérias tinham
de ser cada vez mais dramáticas para competir com o volume crescente de
publicidade berrante. A situação se tornou pior na virada do século, com a
chegada do jornalismo com ilustração e manchete. O emprego regular de
fotografias, títulos sensacionalistas e edições especiais acelerou a virada rumo
ao estímulo das paixões por meio de nacionalismo anti-revolucionário. Os
“jornais grossos” da época anterior pareciam vagarosos e enfadonhos. Os
leitores, destituídos de suas prerrogativas, tinham perdido o controle. Estava
aberto o caminho para a decisão pioneira de Girardin de fazer depender
basicamente de anunciantes o chauvinismo de massa que ajudou a fazer a
Primeira Guerra Mundial.

Napoleão m e o “imperialismo”
0 drama da desradicalização das massas através de um novo tipo de jorna­
lismo se desenrolou com mais vivacidade na França de Napoleão m. Lan­
çando mão de meios que os contemporâneos jamais compreenderam — e
que os historiadores mal começaram a investigar —, Napoleão transformou
o nacionalismo revolucionário externo em uma ferramenta de repressão
política interna, e transformou as idéias sociais saint-simonianas nativas em
um instrumento de expansão no estrangeiro.
Não se pode falar do terceiro Napoleão sem se falar do primeiro; pois o
novo Napoleão chegou ao poder em boa medida graças à reputação do velho.
Napoleão m foi eleito presidente da Segunda República Francesa com uma
votação estrondosa em dezembro de 1848, e recebeu poderes ditatoriais três
anos depois com uma votação ainda mais desconcertante. A lenda napoleonica
continuara a encantar muitos intelectuais revolucionários.
A primeira Revolução Francesa trouxe Napoleão i ao podei; e os primeiros
revolucionários profissionais do início do século xix se uniram principalmente
para derrubá-lo. O pensamento revolucionário sobre o poder foi, portanto,
570 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

influenciado desde o começo por esse supremo homem de poder. Ele estabe­
leceu a agenda de toda uma geração ao abalar todas as velhas legitimidades
políticas: ao politizar o ideal iluminista de racionalidade universal (o sistema
métrico, o código napoleonico) e ao impô-lo a um mundo retrógrado. Acima
de tudo, alimentou a imaginação romântica com uma fascinação estética
pelo poder — e com as possibilidades de mudar o mapa e a vida da Europa.
Viessem dos exércitos que lutaram com Napoleão (os filadelfos franceses,
os filômatas poloneses e, em especial, os carbonários italianos) ou viessem
dos exércitos que lutaram contra ele (os dezembristas russos, os comuneros
espanhóis e os Tugendbund alemães), os primeiros revolucionários eram
soldados joviais que falavam francês e pensavam à grande maneira napo­
leonica. Existia, portanto, um modelo oculto ou “superego” dos primeiros
revolucionários. Bonaparte era Prometeu liberto, um novo-rico que chegou
ao poder; e o jovem revolucionário era quase sempre tanto um incansável
indivíduo prometèico quanto um forasteiro em busca de poder.
As mais importantes ideologias revolucionárias do período da Restauração
— o saint-simonismo e o hegelianismo — nasceram sob o signo napoleo­
nico. Elas continuavam a atrair intelectuais que buscassem dar um sentido
ao poder (e assim ter acesso a ele). Essa politização do intelecto havia se
intensificado sob Napoleão. Saint-Simon tinha começado a escrever com o
propósito específico de aperfeiçoar e completar as reformas napoleônicas.
Suas muitas e não atendidas tentativas de tratar diretamente com Napoleão
lhe fizeram se dedicar com predileção a encontrar um poder capaz de tornar
obrigatórias suas idéias. Hegel ficou encantado com a conquista da Alema­
nha por Napoleão, e viu a mão da providência no fato de que concluísse
sua Fenomenologia no período em que era travada a Batalha de Jena. Sua
visão política final parece ter sido uma síntese de reforma prussiana com
universalidade napoleonica.
A reintegração racional da sociedade pregada por Hegel e Saint-Simon seria
inconcebível sem a estranha combinação que Napoleão havia introduzido
no mundo: um déspota que governa em nome da liberdade. Não importa
quão pouco napoleônicas possam ter sido as esperanças que Saint-Simon
depositou na classe trabalhadora e Hegel no Estado prussiano, o fato é que
o impulso de buscar alguma transformação secular universal da sociedade
se originou, na mesma medida, do fato concreto da existência de Napoleão
e da retórica abstrata da revolução.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 571

O legado napoleonico ajudou, assim, a criar as primeiras ideologias re­


volucionárias; e a lenda napoleonica ajudou, por meios mais sutis, a reviver
e a intensificar o impulso revolucionário na década de 1840.94 O tédio com
a política e o estilo de Luís Filipe não teriam sido tão agudos em uma terra
que não tivesse um Napoleão de que se lembrar. O inseguro Luís Filipe, ao
buscar alguma genealogia que o legitimasse, cultivava uma identificação
com Napoleão. Ele fez suas cinzas serem trazidas até Paris para que fossem
sepultadas no Palácio dos Inválidos e ergueu sua estátua na Praça Vendôme.
Desde há muito havia franceses que se consideravam napoleonistas refor­
mados, assim distintos dos bonapartistas militaristas. Na década de 1840,
foram engolidos por outros grupos cujas esperanças políticas se centravam
no sobrinho de Napoleão, o futuro Napoleão ni, que tinha sido ativo no
movimento revolucionário italiano e havia em vão tentado duas vezes ser
aclamado imperador no fim dos anos 1830. Esse novo Napoleão escreveu
em 1839 o influente Des Idées Napoléoniennes, que defendia uma nova
autoridade suprapolítica que evitasse quaisquer doutrinas e buscasse apenas
benefícios concretos para as massas.95
Essa obra influente, que vendeu 500 mil cópias em cinco anos,96 refletia
as idéias dos saint-simonianos com quem Napoleão fizera amizade em seu
exílio inglês dos anos 1830. Ele os acompanhava na preferência de soluções
administrativas a soluções ideológicas ou políticas e no interesse (depois
deixaria de lado) por um possível canal na Nicarágua para promover o
“casamento místico do Oriente e do Ocidente”.9798
O jovem Saint-Simon passou dos seus sonhos iniciais de ser um novo
Carlos Magno ao seu último clamor para que se fizesse justiça à “classe
mais pobre e mais numerosa”. Napoleão ui, de modo similar, passou da
escrita de uma biografia de Carlos Magno no início dos anos 1840 à nova
proposta de aumento da produção e de fim do desemprego em sua obra de
1844: Extinção da pobreza.90
94 Fora da França, a lenda era tanto mais intensa quanto mais revolucionária na Polônia. H. Segei,
“The Polish Napoleonic Cult from Mickiewicz to Zeromski”, em Indiana Slavic Studies, vol. iv,
1963, pp. 128-151.
95 Além dos seus bem conhecidos contatos com revolucionários sociais, Napoleão também teve onze
encontros em Londres com Cabet no preciso momento em que ele popularizava pela primeira vez
o nome e as idéias do comunismo. V. M. Prudhommeaux, “Louis Bonaparte et Etienne Cabet en
1839”, em La Révolution de 1848, 1909—1910, mar.-abr., pp. 6-15.
96 S. Burchell, Imperial Masquerade. The Paris of Napoleon in, NY, 1971, p. 38 ss.
97 Ibid., p. 241.
98 Ibid., p. 44 ss.
572 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Napoleão ui não partilhava da oposição terminante de Napoleão i à ide­


ologia. Diferentemente deste último, que voltou do Egito e da Itália como um
homem de guerra, o terceiro Napoleão retornou de Londres para a França
como um homem de idéias. Tomou como sua a proposta proudhonista de
formar associações de trabalhadores e promover benefícios, e transformou
o saint-simonismo da sua juventude em um industrialismo autoritário e em
um positivismo anticlerical que fortaleceu demasiado o Estado francês" (e,
por implicação, ajudou muitos dos saint-simonianos ainda vivos a alcançar
posições lucrativas nos bancos, na indústria e no governo). Nesse sentido,
Bismarck o imitou ao transformar o hegelianismo, o sistema ideológico até
então prevalecente entre os revolucionários alemães, em um novo nacio­
nalismo conservador alemão. As raízes desse neo-hegelianismo vão dar em
um tratado de 1857 que pedia a construção de um monumento a Hegel, ao
mesmo tempo advertindo que nenhum monumento seria apropriado “até
que a nação alemã construa o seu Estado como um templo vivo do mais
puro realismo”.99100 Quando Bismarck se tornou primeiro-ministro da Prússia
cinco anos depois, tirou vantagem da paixão dos intelectuais hegelianos por
relevância política incumbindo muitos deles de funções na estruturação do
novo Estado. Muitos chegariam a crer que a visão de Hegel de uma sociedade
racional e ordenada, que faz nascer uma elevada cultura neo-helênica, logo
se tornaria realidade na nova Alemanha que Bismarck estava construindo.
A principal “idéia napoleonica” era a cooptação da retórica da Revolução
Francesa pela imprensa patriótica, manobra operada com brilho por Na­
poleão ui. O problema da imprensa era incontornável para quem desejasse
restaurar a ordem na França. Vitorioso nas eleições, Napoleão enfrentou o
desafio da imprensa livre: “A grande questão do século [...] a maior dificul­
dade para a ordem constitucional, o maior perigo para os governos débeis,
a prova decisiva dos governos fortes”.101
No começo, Napoleão m reagiu de modo negativo ao desafio. Mas suas
duras leis de imprensa de 1852 foram aos poucos se afrouxando. Deu uma
anistia geral para a imprensa em 1859, e logo formou nas fileiras do jorna­

99 A maneira como o positivismo do discípulo de Saint-Simon, Augusto Comte, proporcionava uma


ideologia substitutiva ao catolicismo conservador e ao romantismo revolucionário é tratada em
detalhes em D. Charlton, Positivist Thought in France during the Second Empire, 1852-1870,
Oxford, 1959; e W. Simon, European Positivism in the nineteenth century, Ithaca, 1963, p. 73 ss.
100 Constantin Rössler, System der Staatslehre, Leipzig, 1857, p. xvn, citado em Ritter, Hegel et la
révolution, p. 98.
101 Rémusat, Mémoires, vol. ii, p. 59.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 573

lismo chauvinista com o seu próprio anticlerical e quase socialista L'Opinion


Nationale.
Napoleão criou a “opinião nacional” que ele declarava descrever. Tão
cabal era o seu controle da imprensa, que um crítico se queixou antes da
legislatura de 1862: “Existe um único jornalista na França [...] o Impera­
dor”.102 Além de controlar a agência Havas e inundar o mercado de folhas
repletas de lemas (L'Empire c'est la paix, Le salut c'est la dynastie), Napoleão
subornou jornais de oposição, dinamizou o oficial Le Moniteur e lhe deu uma
agradável edição vespertina em 1864. Esse Petit Moniteur tinha tiragens de
200 mil exemplares e era vendido ao preço desvalorizado de seis cêntimos
— assim minando todos os concorrentes, que tinham de pagar o imposto
mínimo de cinco cêntimos por cada exemplar. O satirista Maurice Joly, em
seu A Política de Maquiavel no Século xix, de 1864, descreveu essa técnica
como “neutralizar a imprensa por meio da própria imprensa”.103
Napoleão era um mestre de cooptação e de relações públicas. Ele com
freqüência oferecia emprego a personalidades radicais de destaque, ao mesmo
tempo que roubava os seus lemas. Ele patrocinava banquetes e até associações
para os trabalhadores, e buscava determinar o curso da crescente demanda
deles por solidariedade. Projetos de moradia popular, sociedades de mútua
ajuda e outros programas de melhorias foram implementados e louvados
publicamente em suas viagens imperiais. Diferente de Fazy, que deu na Suíça
benefícios aos trabalhadores por antiga convicção e depois de cuidadoso es­
tudo, Napoleão simplesmente adotou o que o seu monitoramento da opinião
pública o convenceu de ser a escolha certa.
Os historiadores chegaram a juízos radicalmente distintos sobre os moti­
vos e até sobre os resultados do programa do imperador.104 Em essência, ele
102 Jules Faure, citado em D. Kulstein, Napoleon m and the Working Class. A study of Government
Propaganda under the Second Empire, Sacramento/Los Angeles, 1969, p. 41. Esse estudo
(particularmente pp. 38—68) mostra quão complexa era a regulação napoleònica da imprensa — que
envolvia a leitura de 546 jornais dos departamentos do território, além da imprensa de Paris, e que
requeria quatro tipos diferentes de subvenção financeira. V. também L. Case, French Opinion on
War and Diplomacy during the Second Empire, Filadélfia, 1954, e N. Isser; The Second Empire and
the Press. A Study of Government-Inspired Brochures on French Forcing Policy in their Propaganda
Milieu, Haia, 1974.
103 Citado de Joly, Dialogues aux enfers entre Machiavel et Montesquieu ou la politique de Machiavel
au xixe siècle, Bruxelas, 1864, citado em Kulstein, pp. 42—43. O famoso tratado anti-semita, Os
Protocolos dos Sábios de Sião, era em larga medida uma paráfrase da obra de Joly.
104 Extratos das várias interpretações acompanhados de uma bibliografia (a ser complementada por
Burchell, Kulstein e outras obras mais recentes utilizadas aqui) estão em B. Gooch, Napoleon in —
Man of Destiny Enlightened Statesman or Protofascist?, 1963, e S. Osgood, Napoleon hi. Buffoon,
Modem Dictator, ou Sphinx?, Boston, 1963. Essas alternativas expressas de modo tão infeliz não
574 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

parece ter preparado o caminho para a fórmula política peculiar à Terceira


República: a combinação da retórica revolucionária com a dependência
prática de uma administração centralizada permanente, coisa legada pelo
primeiro Napoleão.
Napoleão continuou a apoiar o movimento nacionalista italiano no
exterior, e ainda esposou outras causas revolucionárias nacionais ainda
mais distantes. Contudo, logo se avolumou a suspeita de que ele estivesse
tentando redirecionar para fora os impulsos populares de revolução social
que haviam surgido dentro da França em 1848 e 1851. Mais “imperador
dos franceses” do que “imperador da França”, ele pareceu se valer cada vez
mais de aventuras ultramarinas para ganhar prestígio interno: participação
na Guerra da Criméia em 1854-1856, conquista do Vietnã do Sul em 1862
e a tentativa desastrada de conquistar o México em 1866-1867. Tudo isso
exigiu de seus sinceros companheiros de jornalismo uma nova palavra de
exprobração: imperialismo. Esse termo, que foi o último dos grandes ismos
a receber um nome, foi utilizado para descrever a rápida expansão ultrama­
rina das potências européias nas últimas duas décadas do século xix; mas
o termo foi a princípio empregado para questionar Napoleão m no último
período “liberal” do seu reinado.105
O flagelo de Napoleão durante esses últimos anos foi o último grande e
polêmico inovador do jornalismo revolucionário no período francocêntrico:
Henri de Rochefort. Sua memorável carreira ilustrou tanto a vulnerabilidade
de Napoleão como líder bem como a vitória final do seu ideal chauvinista.
Rochefort veio da mesma baixa cultura que havia criado os termos chau­
vinismo e jingoismo; era um escritor de vaudeville e um discípulo não só de
Blanqui, mas também do compositor Béranger. Realizou o seu aprendizado
jornalístico no Le Figaro antes de lançar, no fim da década de 1860, as suas
folhas radicais La Lanterne e La Marseillaise e colaborar com o novo jornal

esgotam as possibilidades. Obras mais recentes com freqüência seguem a moldura estabelecida por
Zeldin, The Political System of Napoleon in, 1958, e sugerem que a imagem de primeiro mestre
da manipulação da política de massas talvez seja mais apropriada. Ver, por exemplo, uma obra
não incluída em Gooch ou Osgood: T. Corley, Democratic Despot. A Life of Napoleon in, 1961.
105 R. Koebner, “The Emergence of the Concept of Imperialism”, em Cambridge Journal, vol. v, 1952,
pp. 726—741; e, com tratamento mais completo, seu Imperialism: the story and significance of a
political word, 1840-1960, Cambridge, 1964.
Koebner acompanha a origem do termo da crítica inglesa da Napoleão in até a autocrítica inglesa da
década de 1870; mas houve um emprego francês de 1869 com o sentido moderno — ao contrastar
“l’esprit impérialiste” às “nos institutions libérales” — em J. Amigues, La Politique d’un honnête
homme, p. 98, citado em meio a várias outros empregos do período da Guerra Franco-Prussiana
em J. Dubois, Le Vocabulaire politique et social en France de 1869 à 1872, 1962, p. 319.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 575

de Victor Hugo, Le Rappel, lançado em 1869. Rochefort era a voz de um


proletário de boca suja: um Daumier em prosa com uma leve presença de
Rabelais, a prometer que faria o registro da “miséria dos trabalhadores” e dos
“banheiros das Tulherias”.106 O próprio título do seu primeiro jornal aban­
donava o passado romântico e invocava a imagem plebéia de um poste com
lâmpada a gás numa esquina parisiense. “A Lanterna”, explicou abertamente
Rochefort, “pode servir ao mesmo tempo para iluminar os homens honestos
e para enforcar os malfeitores”.107 Seu alvo favorito era Napoleão, que ele
atacou com um bombardeio jamais visto de metáforas com animais.108 Seu
jornal chegou à marca sem precedentes de 500 mil exemplares impressos,109
e seu formato de bolso, fácil de ser escondido, lhe propiciou distribuição por
toda a Europa. Quando foi forçado a fugir para Bruxelas, Rochefort encerrou
a publicação de A Lanterna com uma declaração modelar de independência
revolucionária da cooptação de Napoleão: “O papel do governo é, afinal, o
de me anestesiar tão logo possível; mas o meu papel é o de não lhes permitir
isso [...] É um papel original, é até burlesco. [...]”.110
Embora Napoleão tenha conseguido fechar o semanário no fim de 1869,
Rochefort não fez mais que transferir os seus esforços para um diário, La
Marseillaise, que um de seus colaboradores chamou de “um torpedo lançado
a alta velocidade contra os cascos de metal da marinha imperial”, e que um
futuro líder da Comuna de Paris chamou de “máquina de guerra contra o
Império”.111 Se a França ainda era a “luz do mundo”112 para os revolucio­
nários estrangeiros, o seu jornal era o principal farol.
Rochefort e seus colaboradores “propuseram agrupar todo o partido so­
cialista europeu para que estabelecesse através do jornal relações entre todos

106 Artigo de abertura do primeiro número de La Marseillaise, 19 de dezembro de 1869, citado em A.


Zévaès, Henri Rochefort le pamphlétaire , 1946, p. 77.
107 Epigrama sem fonte, em ibid., p. 35.
108 Exemplos que na tradução perdem sua mordacidade, em especial para o leitor moderno não habituado
com as demi-mots [meias-palavras] e sous-entendus [subentendidos] que dominaram o jornalismo
oitocentista da França, podem ser encontrados em ibid., pp. 47-48.
109 I. Collins, The Government and the newspaper press in France 1814-1881, Oxford, 1959, pp.
155-156.
110 La Lanterne, Ia série, n° 32, pp. 10-11.
111 Paschal-Grousset em 1891 (Zévaès, Rochefort, p. 78 ); Eugene Varlin, em uma carta de 1869 a James
Guillaume (então secretário da Primeira Internacional): ibid., p. 78.
112 Expressão do satirista russo Michael Saltykov, lamentando que a cidade sob Napoleão havia
passado a se preocupar só com “modas de mulher e temperos finos* (Za Rubezhom, em Izbrannye
sochineniia, 1940, p. 391).
576 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

os grupos”?13 Esse plano era fantasioso, mas a sua proposta foi bastante
imitada. Estudantes da longínqua São Petersburgo (incluso, aí, o principal
correspondente russo de Marx, Nicholas Danielson) tentaram criar um jornal
com o mesmo título e o mesmo propósito.
Dentro da França, Rochefort era atraente a ponto de precisar ser com­
batido não só com repressão, mas também com atrações concorrentes.
Girardin se mexeu para preencher o vácuo e, como vimos, tornou-se nos
últimos anos do reinado de Napoleão um destacado trovador do naciona­
lismo e da guerra externa. Assumindo o comando do moribundo La Liberté
ao fim dos anos 1860, elevou sua circulação de 500 exemplares para 60
mil através de uma revolução jornalística que foi “talvez tão significante
quanto aquela de 1836 da qual esta era, de todo modo, a conseqüência e o
prolongamento naturais”.113114 O novo público de massa que esse jornal criou
não se empolgava mais com Os três mosqueteiros ou com as colunas de
fofoca de La Presse, e sim com imagens de combates verídicos no mundo
real — despachos telegráficos sobre aventuras militares distantes, boletins
de mercados de ações em alta ou em baixa, além das competições atléticas
que La Liberté foi o primeiro a cobrir de maneira regular em sua nova
seção, “Le monde sp or tique”.
O próprio Rochefort acabaria seduzido pelo novo chauvinismo — em
que pese ele ter cumprido dez anos de pena na Nova Caledonia por seu
apoio à Comuna de Paris e ter fundado um novo jornal de oposição revo­
lucionária aos republicanos moderados (nomeado, com muita propriedade,
O Intransigente) no Dia da Bastilha de 1880. Deslocou-se à direita no fim
da década para apoiar o General Boulanger, foi ainda mais à direita uma
década depois quando do caso Dreyfus e, em 1907, deixou de vez O In­
transigente para passar os seus seis últimos anos de vida escrevendo para
o conservador e nacionalista La Patrie.
Não é necessário acompanhar em sua totalidade a história da imprensa
chauvinista e de como ela cresceu no fim do século xix. Muitas das inovações
empregadas para dar uma feição sensacionalista às notícias se originaram
nos Estados Unidos: ilustração fotográfica de assuntos políticos (no New
York Daily Telegraph, em 1873), linotipo (na imprensa germânico-ameri-
113 Zévaès, Rochefort, p. 78.
114 De acordo com Reclus, Girardin, p. 210, que também fornece cifras das tiragens e outras informações
sobre Girardin. Já ao fim da década de 1860, o tom antiprussiano de Girardin “ultrapassava
qualquer coisa que fosse permitida ao tumulto desorganizado dos deputados de direita”. Segundo
seu contemporâneo Ollivier, citado em Koszyk, Presse, p. 214.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 577

cana de Baltimore, em 1885) e uma série de dispositivos empregados por


William Randolph Hearst após adquirir o New York Journal em 1895.
Com o propósito de ofuscar o New York World de Pulitzer, Hearst se va­
leu de patriotismo agressivo como cimento de um império jornalístico.115
Ele praticamente criou a Guerra Hispano-Americana de 1898. Enviou o
ilustrador Frederick Remington a Cuba às vésperas da guerra para trazer
provas pictóricas das transgressões espanholas. Remington enviou um te­
legrama para Hearst: “Tudo quieto. Nenhum problema aqui. Não haverá
guerra. Quero voltar”. Hearst respondeu com a famosa mensagem: “Por
favor, fique. Você prepara os desenhos e eu preparo a guerra”.116
Uma passagem típica da esquerda revolucionária para a direita chau­
vinista — movimentação tão comum no jornalismo superpatriota — foi
a do jornalista francês de esquerda de maior influência política no fim do
século xix: Georges Clemenceau. Sua transformação em líder ultramilitante
da França na Primeira Guerra Mundial mostrou como a política de massa
tinha substituído não apenas o estadismo conservador das monarquias
restauradas depois de Waterloo, mas também a tradição de oposição re­
volucionária em cuja dianteira ia a França. O ano que serviu de divisor
de águas para muitos (incluindo o jovem Clemenceau, apoiador da Co­
muna) foi 1871, o qual selou a vitória do chauvinismo reacionário sobre
o nacionalismo revolucionário. A vitória dos alemães sobre a França na
Guerra Franco-Prussiana levou à coroação de um novo imperador alemão
em Versalhes. A simultânea “libertação” de Roma e sua designação como
capital italiana deram novas ressonâncias imperiais à unificação da Itália.
A Alemanha e a Itália — focos de esperanças, ao longo de todo o século
xix, de uma extensão da revolução para além da França — alcançaram a
unificação em 1871 não por meio de uma revolução popular, e sim através
do poder militar e diplomático de seus principais sub-Estados: a Prússia e o
Piemonte. A Alemanha de Bismarck realizou a Einheit [unidade] à custa da
Freiheit [liberdade], com um imperador, e não com uma constituição. A Itália
governada por Cavour se subordinou não à “Roma do povo” de Mazzini,
mas à Roma do novo rei. O Concilio Vaticano de 1871 proclamou sua fé

115 Weill, Journal, pp. 285-291. Sobre o papel da imprensa do continente no desenvolvimento do
sentimento chauvinista depois de 1871, v. H. Pross, Literatur und Politik, Geschichte und Programme
der politische-literarischen Zeitschriften im deutschen Sprachgebiet seit 1870, Otin/Freiburg, 1963; R.
Manévy, La Presse de la troisième république, 1955; e elementos citados com fontes em W. Haacke,
“The Austrian and Viennese Press”, em Gazette, vol. xiv, 1968, n° 3, pp. 195-216.
116 Citado em F. Mott, American journalism, a history: 1690-1960, NY, 3a ed., 1962, p. 529.
578 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

não na visão de Lamennais da libertação popular vinda desde baixo, mas


na infalibilidade da autoridade papal situada acima.
O mais dramático e decisivo acontecimento desse ano divisor, 1871, foi,
contudo, o surgimento e a queda da Comuna de Paris. Ela deflagrou a virada
à direita por toda a Europa — e abriu novos horizontes para a esquerda
revolucionária.

A Comuna de Paris
A Comuna de Paris de 1871 foi a maior insurreição urbana do século xix
— e precipitou a mais sangrenta repressão. Foi um marco na história revo­
lucionária: a última das revoluções com origem em Paris, a qual deu cabo
da dominação francesa da tradição revolucionária.
Essa insurreição parisiense foi o primeiro exemplo de desafio lançado pelas
massas ao novo Estado militar-industrial da Europa moderna. A Comuna
criou — ainda que só por um breve período — uma abordagem revolucionária
alternativa à organização da autoridade na sociedade moderna. As revoluções
posteriores bem-sucedidas na Europa seguiram o exemplo dos communards
de só fazer revolução no momento em que se iniciarem guerras. Enquanto
as revoluções de 1789, 1830 e 1848 ocorreram em tempos de paz, as que
abalaram a Rússia em 1905 e em 1917, bem como as que levaram outros
regimes comunistas ao poder na China, na Iugoslávia e no Vietnã nos anos
1940, foram desenvolvimentos diretos de guerras estrangeiras.
A Comuna deixou um legado de lendas e de lições. Proporcionou à Re­
volução Russa santas relíquias (Lênin foi sepultado com uma bandeira de
communard, e a nave espacial Voskhod foi, passados quarenta anos, equipada
com uma insígnia tirada de um estandarte da Comuna) e imagens sagradas (a
imagem iconica da luta de classes no filme Outubro de Eisenstein — mulheres
burguesas estocando com seus guarda-sóis pontiagudos os trabalhadores
caídos no chão — foi tirada de um mural do museu da Comuna em Paris).
Abundaram mitos da Comuna entre os anarquistas e os social-democratas
no período anterior à Primeira Guerra Mundial;117 entre os revolucionários
culturais chineses dos anos I960118 não menos que entre os revolucionários

117 G. Grüzner, Die Pariser Kommune, Colônia/Opladen, 1963, oferece uma história exaustiva do mito,
em particular de seu efeito intimidador sobre os social-democratas alemães.
118 Cheng Chih-Szu, “The Great Lessons of the Paris Commune”, em Peking Review, Io de abril de
1966, pp. 23-26; 8 de abril, p. 25; 15 de abril, pp. 23-29.
LIVRO n, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 579

políticos russos de cinqüenta anos antes;119 e, no Ocidente, em meio à nova


— bem como em meio à velha — esquerda.
Se os revolucionários posteriores viessem a encontrar alguma unidade,
esta seria alcançada por meio do grande hino que se originou do martírio
de 1871: a Internationale.
A Comuna consistiu no simples fato de que uma aliança revolucionária
governou Paris por 72 dias na primavera de 1871. Iniciou-se como um pro­
testo patriótico contra a capitulação do governo provisório francês ao cerco
prussiano a Paris depois da derrota e fuga de Napoleão m em setembro de
1870. Mas a Comuna logo se tornou um veículo de protesto proletário con­
tra o Estado centralizado moderno. Uma revolução social interna se tornou
um meio de restaurar o orgulho de uma nação depois que o Estado havia
sofrido derrota numa guerra estrangeira. Seus ecos foram longe a ponto de
alcançar os muçulmanos da Argélia120 e a provinciana Rússia. O líder de
um círculo estudantil, enquanto se deslocava de Vilnius a São Petersburgo,
assinou seu nome como “Comunista” e proclamou, em 14 de abril de 1871:
“A Revolução mundial já começou”. Intitulou A Forca seu jornal de breve
existência e passou ao anonimato fazendo, no dia 4 de maio, um apelo aos
seus compatriotas para que “respondessem onde estivessem à moribunda
Paris [...] às armas! às armas!”.121
Para o historiador de revoluções, a Comuna pode ser tomada como o
momento mais extremo de um ciclo revolucionário que se inicia na França
quando Napoleão tenta, em 1869-1870, tornar seu império mais liberal — e
que termina com a constituição formal da Terceira República em 1875.122
Mais ainda, o movimento foi estritamente parisiense. Embora tenha havido
insurgências esporádicas em outras cidades para demonstrar apoio à Co­
muna, foi só em Paris que se elegeu um novo governo comunal capaz de
exercer autoridade.
Para o historiador da tradição revolucionária, a Comuna representa um
ponto de virada no predomínio prévio da revolução política nacional para
a ênfase posterior na revolução social transnacional. É certo que a Comuna
119 G. lonescu, “Lenin, the Commune and the State”, em Government and Opposition, 1970, primavera,
pp. 131-165. V. Eremina, “V. I. Lenin kak istorik parizhskoi kommuny”, em Voprosy Istarii, 1971,
n° 2, pp. 31—43.
120 M. Mashkin, “K istorii bor’by za Kommunu v Alzhire”, em Voprosy Istorii, 1949, n° 6, pp. 85-99.
121 N. Goncharov, “‘Viselitsa’ — revoliutsionnye listovki o parizhskoi kommune”, em Literaturnoe
Nasledstvo, vol. i, 1931, pp. 161,164, e material na p. 159.
122 R. Williams, The French Revolution of 1870-1871, NY, 1969, p. x.
580 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

se originou de uma intensificação da militância nacionalista durante a guer­


ra com a Prússia iniciada no verão de 1870. O Comitê Central de Paris da
numerosíssima Guarda Nacional se opôs ao armistício de janeiro de 1871 e
falou das possibilidades de resistência por meio de um novo levée en masse.
Paris passou de nacionalista a revolucionária quando o novo governo cen­
tral de Thiers tentou sem sucesso se apossar das armas da Guarda Nacional
parisiense no dia 18 de março de 1871. Thiers fugiu para Versalhes, e os
líderes patrióticos da França elegeram uma Comuna de 81 membros como
governo paralelo — ou, como alguns diriam, como um inimigo de qualquer
tipo de governo.
Essa nova forma participativa de administração revolucionária resistiu
até o fim às exigências jacobinas e blanquistas de uma liderança executiva
forte e combateu a autoridade da Assembléia Nacional republicana em
Versalhes. A Comuna tentou ir além da política tradicional, revivendo, pela
primeira vez desde 1792-1794, sonhos de uma transformação fundamental
da condição humana.
O fato de faltar às expectativas propósitos claros não as tornava menos
intensas. No início, durante janeiro e fevereiro, as esperanças pareciam passar
da revolução nacional para a revolução social, enquanto 66comitês de vigi­
lância” se aliavam para formar um “Partido Socialista revolucionário”.123 À
medida que a Comuna se desenvolvia, os revolucionários sociais passaram a
evitar partidos formais, ainda que em geral se dividissem em proudhonistas
contrários à centralização e blanquistas elitistas e estatistas.
Cerca de metade do grupo governante era composto de trabalhadores
manuais; e a outra metade, em parte se confundindo com a primeira, era
composta de indivíduos que tinham se envolvido com a agitação política
operária da década de 1860. Havia um elemento proletário autêntico nos
esforços da Comuna de estabelecer uma organização industrial cooperativa
e uma educação secular voltada para a formação profissional.
A palavra-talismã dessa inesperada revolução social foi a própria palavra
“Comuna”. Para a maioria, ela sugeria “uma demanda por descentralização
da autoridade — um Estado federativo no qual pequenos grupos ou unida­
des autogovernadas se tornam a característica dominante”.124 A expulsão
do governo nacional de Paris no dia 18 de março foi descrita como uma

123 S. Edwards, The Communards of Paris, 1871, L, 1973, pp. 20, 53-54.
124 Williams, p. 152.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 581

révolution communaliste,115 Representou, quanto ao essencial, uma busca


por autoridade comunal e benefícios comunais. Marx e a Primeira Interna­
cional não eram mais que distantes comentadores dos acontecimentos, a
despeito das tentativas do governo de Versalhes de identificar comunalismo
com comunismo.125 126
Um estranho ar festivo pairou sobre Paris no período da sauveraineté
sauvage das massas, dos desfiles que proclamaram a Comuna no dia 28 de
março à destruição arrebatadora de um totem do culto napoleonico, a Coluna
de Vendôme, no dia 16 de maio, poucas horas antes que a Comuna fosse
esmagada. Proclamou-se 28 de março “o dia do casamento festivo da Idéia
e da Revolução”127 em meio às expectativas gerais de que se realizasse “algo
mais do que uma república nominal”,128 “a coisa em vez do mero nome”.129
No que Lênin chamou de “festival dos oprimidos”, até funerais se torna­
ram procissões de devoção cívica. Essas e outras cerimônias eram, não raro,
pontuadas pelos sons de novas armas disparando em Paris. Como um poeta
revolucionário escreveu:66 O bater dos címbalos pode ser ouvido no silêncio
amedrontador que medeia entre duas rodadas de disparos; e o clima alegre
de dança se mescla ao estrondo das metralhadoras norte-americanas”.130
As novas armas, claro, prevaleceram; e o “clima alegre de dança” deu
lugar à dança da morte. Na “semana sangrenta” que veio após a entrada
final das tropas de Versalhes em Paris no dia 21 de maio de 1871, cerca de
20 mil communards foram mortos. Outros 13 mil foram depois mandados
para o exílio. O horror físico foi acompanhado de uma tentativa — em
grande medida sem precedentes em repressões ulteriores de movimentos re­
volucionários — de tratar os revolucionários como criminosos patológicos.131

125 A. Decouflé, La Commune de Paris (1871). Révolution populaire et pouvoir révolutionnaire, 1969,
pp. 217-247.
126 Ibid.,p. 248-249.0 braço parisiense da Internacional assumiu um tom de marcado anti-nacionalismo,
proclamando em abril que “país” se tornou uma “palavra vazia” e que “a França está morta”. V.
Jules Nostag, “Country — Humanity”, em La Révolution politique et sociale, n° 3, em Postgate,
Revolution, p. 298.
127 Caracterização feita por Sartre, citada em Decouflé, p. 18.
128 Jules Vallès em Le Cri du Peuple, 30 de março, citado em Edwards, Communards, p. 75.
129 Citado de um editorial em Vengeur, 30 de março, em Dubois, Vocabulaire, p. 50.
130 Villiers de ITsle-Adam, “Paris as a Festival”, reimpresso em Edwards, p. 140.
131 M. Waldman, “The Revolutionary as Criminal in 19th Century France: A Study of the Communards
and Deportees”, em Science and Society, 1973, primavera, pp. 31-55; e pp. 37-38, n° 26, para varias
estimativas de mortes.
582 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A derrota da França pela Prússia e, em seguida, a derrota da Comuna


de Paris pelo governo de Versalhes pareciam representar o esmagamento
definitivo das idéias pelo poder. A França ainda era vista como a pátria da
fraternidade revolucionária; e revolucionários nacionalistas sobreviventes
de toda a Europa acorreram para ajudar a causa francesa. O último coman­
dante-em-chefe da própria Comuna foi o polonês Jaroslaw Dubrowski, o
qual morreu heroicamente nas barricadas.132 Garibaldi e sua contraparte
polonesa, Józef Hauke-Bosak (líder da insurreição nacional da Polônia em
1863), assumiram juntos o comando militar da fracassada defesa de Dijon
contra os prussianos; e o último grande herói do nacionalismo polonês lá
morreu sua morte de mártir.133
A derrota da Comuna de Paris e a posterior desintegração da Primeira
Internacional provocaram o fim da era francesa da história revolucionária
moderna. Por quase um século (desde a Grande Revolução de 1789), Paris
tinha sido o principal centro de expectativas e o palco da revolução. As pala­
vras de ordem dos anos 1830 e 1840 — socialismo e comunismo — soaram
primeiro em Paris, onde o gênio do jornalismo político popular também havia
sido liberto pela primeira vez. Lá, as fantasias de intelectuais proporcionaram
ideais espirituais para uma era materialista — e prefigurações proféticas de
quase todos os movimentos revolucionários vindouros. Todos os congressos
da Primeira Internacional tinham sido realizados em áreas francófonas na
periferia imediata da França — como se os líderes da revolução européia
buscassem ficar tão perto quanto possível da terra prometida que por ora
lhes era negada.
Essa esperança morreu quando a conservadora Terceira República se ergueu
sobre o túmulo da Comuna — e se mostrou a mais duradoura forma de go­
verno da história moderna da França. Assim, ironicamente o período francês
de história revolucionária foi encerrado pelo próprio sistema republicano de
governo que os primeiros revolucionários franceses tinham lutado para estabe­
lecer. Versalhes, onde tinham se reunidos as forças que destruíram a Comuna,
realizou sua vingança atrasada contra a Paris revolucionária. O Palácio das
Tulherias, que os republicanos de 1792 tinham invadido para estabelecer a
Primeira República, foi incendiado pelos communards quando a revolução

132 Borejsza, “Portrait”, pp. 153-154. Tão grande era o asco por toda a Europa pela Comuna, que os
dois filhos de Dabrowski foram levados ao suicídio, e seu irmão a cometer crimes no exílio. Sobre
a grande participação polonesa na Comuna, v. K. Wyczanska, Polacy w Komunie paryskiej, 1971.
133 Sobre essa figura notável, v. Borejsza, “Legend and Truth”, em Poland, 1973, dez., pp. 22-25.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 583

chegava à sua própria cena de imolação final. A Terceira República entronizou


o poder econômico da burguesia industrial e o poder militar do novo Estado
centralizado. Operou o casamento dos lemas revolucionários de ontem (go­
verno republicano, educação secular) com os interesses dominantes de hoje.
Tanto a fundação da Terceira República em 1871 quanto sua dissolução
final em 1940 ocorreram na esteira de derrotas militares para a Alemanha.
Na história dos movimentos revolucionários, não menos que na história dos
exércitos nacionais, o período de domínio francês veio a ser sucedido por
um período de predomínio alemão.
A República Francesa era um Estado tão conservador e unitário quanto
o império de Bismarck; e a França logo seguiu o exemplo da Alemanha,
transformando o nacionalismo revolucionário nascido no fim do século xvm
no imperialismo reacionário do fim do século xix.
Com o nacionalismo esmagado e o republicanismo desacreditado na
França, só a revolução social permaneceu incólume como ideal revolucio­
nário. Na Comuna houve dois tipos conflitantes de revolucionário social:
os proudhonistas, que defendiam a descentralização (com ênfase no gover­
no exercido de modo direto pelos trabalhadores e em seu benefício), e os
autoritários blanquistas e jacobinos (os quais, já nos dias em que sucumbia
a Comuna, estabeleceram um ditatorial Comitê de Salvação Pública). Mas
nenhum desses partidos tinha de fato um líder. Fazia seis anos que Proudhon
tinha morrido; e Blanqui foi preso e imobilizado antes que se formasse a
Comuna. A pessoa que chegou mais perto de se tornar um líder unificador
foi o jacobino moderado Charles Delescuzes; ele ganhou especial relevância
somente ao morrer nas últimas barricadas.
A dureza da repressão na França pôs o fardo da continuidade da tradição
revolucionária sobre líderes de outras terras. Dois em particular, Bakunin e
Marx, buscaram tirar lições da Comuna e levar adiante sua tradição. O con­
flito entre eles se tornou, com os amargos resultados da Comuna, tão central
quanto havia sido a luta entre Marx e Proudhon, um quarto de século antes.

Marx vs. Bakunin


Sob muitos aspectos, o embate de Marx com Bakunin foi apenas um apro­
fundamento do embate que tivera com Proudhon. Mais uma vez, tratou-se
de uma guerra civil entre revolucionários sociais que tinham mais crenças
em comum do que estavam dispostos a admitir.
584 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Tanto Marx como Bakunin haviam sido hegelianos radicais na Universi­


dade de Berlim. Ambos desenvolveram quase ao mesmo tempo na juventude
um comprometimento vitalício com a revolução vindoura que acabaria com a
desigualdade social. Ambos eram internacionalistas convictos que rejeitavam
qualquer revolução puramente nacional. Ambos buscavam estruturar sua luta
com base nas classes sociais oprimidas, rejeitando as tradições conspiratórias
elitistas do passado. Nenhum dos dois participou da Comuna, mas cada um
afirmava que sua tragédia heróica justificava suas próprias idéias revolucionárias.
O conflito se iniciou, de certo modo, em 1843, quando Bakunin insistiu
que o movimento comunista, à época ainda em sua infância, era um inimigo
profundamente autoritário da libertação revolucionária.134 Os anseios do
homem por uma identidade local e nacional poderiam ser esmagados, dizia,
pois o comunismo é a expressão de “uma horda de animais organizados
por compulsão e à força, preocupados somente com os interesses materiais,
enquanto ignoram o lado espiritual da vida”.135
Nos anos 1850, enquanto Marx escrevia no Museu Britânico, Bakunin
definhava nas prisões tzaristas. Nos anos 1860, enquanto Marx estabelecia
uma autoridade central em Londres para os revolucionários do norte europeu,
Bakunin se atirou numa série de movimentos no sul europeu que intensifica­
ram seu antiautoritaríssimo e prenunciaram o anticentralismo da Comuna.
Já em 1866 Bakunin tinha concluído que comunas autônomas e locais
eram a única forma legítima de autoridade política. Dois anos depois, falou
na substituição completa do Estado moderno por uma “federação de barri­
cadas”. Um de seus conceitos se antecipou aos sovietes que surgiríam mais
tarde na Rússia: um conselho governante de “um ou dois deputados para
cada barricada [...] sempre responsáveis e sempre revogáveis”.136
134 Seu artigo “Communism” apareceu sem indicação de autoria em Der Schweizerische Republikaner,
2 de junho de 1843, pp. 6, 13, e é discutido em Yu. Steklov, Mikhail Aleksandrovich Bakunin. Ego
zhin’ i deiatel’nost’, 1926, voL i, pp. 148-158.
135 Citado em E. Pyziur, The doctrine of anarchism of Michael A. Bakunin, Chicago, 1968, p. 30, nota. A
referência que faz a Steklov, vol. m, p. 227, é imprecisa. Steklov nota uma exceção, quando Bakunin
se referiu a si pròprio como “comunista” em outubro de 1844 (v. I, p. 147, nota 1). Steklov trata
com mais detalhe a oposição de Bakunin ao comunismo em sua apologia retrospectiva da adoção
do rótulo de “comunista” por Lênin em 1918: Kto zhe kommunisty? K voprosu o naimenovanii
nashei partii, NY, 1919.
136 Citações de A. Lehning, “Théorie et pratique du fédéralisme anti-étatique en 1870-1871”, em
International Review of Social History, vol. xviii, 1972, p. 457. V. também Yu. Steklov, “Bakunin
i franko-prusskaia voina 1870-1871”, em Golos Minuvshago, 1915, n° 5, pp. 5-43; e H. Temkin,
“Marx and Bakunin: A Dispute on the Principle of Organization of the Labor Movement”, artigo
inédito do Russian Research Center, Harvard, 7 de janeiro de 1971. Sobre seu débito para com
Proudhon, v. Lehning, “Conception”, p. 71; e particularmente “Letters to a Frenchman on the Present
Crisis” (1870), em S. Dolgoff (ed.), Bakunin on Anarchy, NY, 1972, p. 202.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 585

Bakunin rejeitava com ênfase a tradição buonarrotiana de organização


hierárquica que ia no sentido de uma ditadura revolucionária provisória.
Também criticou com mordacidade os socialistas alemães por sua insistência
de que “a revolução política deve preceder a revolução social”.137138
Contra a
meta declarada dos social-democratas alemães de um “Estado do povo livre”,
Bakunin insistia que “as palavras livre e do povo são anuladas e tornadas
sem significado pela palavra Estado”.Í3S
Às vésperas da Guerra Franco-Prussiana, ele pôs em andamento um plano
para um movimento revolucionário de amplitude européia contra o poder
estatal em todas as suas formas. A originalidade do plano de Bakunin está em
sua reivindicação de uma aliança entre operários e camponeses. Argumentava
que as revoluções levadas a cabo apenas dentro das cidades tendiam a tomar
o poder existente do Estado central e, em seguida, impô-lo sobre o campo.
Revolucionários elitistas e de origem urbana, como Marx, tendiam a irradiar
desprezo intelectual pelo campesinato, com denigrir sua fé religiosa e seus
métodos individualistas. O próprio Bakunin não era menos hostil a essas
atitudes dos camponeses, mas nem por isso deixava de argumentar que uma
demonstração de hostilidade apenas perpetuaria a separação do campesinato
de seu aliado revolucionário natural: o proletariado.

Não faz sentido denegrir ou enaltecer os camponeses. Trata-se de estabelecer um


programa de ação que supere o individualismo e o conservadorismo deles.139

Esse programa dependia da união para “extirpar o princípio de autoridade


em todas as suas formas possíveis”.140 Sem esse objetivo em comum, as pessoas
simples da cidade e do campo poderiam ser ludibriadas por demagogos e
levadas a uma guerra civil sem sentido sob os lemas rivais da opressão polí­
tica — os camponeses a se unir pela monarquia, os trabalhadores a morrer
pela república. As classes mais baixas tinham de ser libertadas de quaisquer
bandeiras e unificadas por uma revolução social de tipo proudhonista que
“promovesse a auto-organização das massas em corpos autônomos federados
de baixo para cima”.141

137 Ibid., p. 213.


138 Ibid., p. 214.
139 Ibid,, p. 197. Itálicos no original.
140 Ibid.j p. 202.
141 Ibid., p. 196; Archives Bakounine, vol. iv, p. 235.
586 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Bakunin tentou iniciar essa revolução anarcossocialista nas cidades do


sul da França. Depositava esperanças especialmente em Lyon, onde seus
discípulos realizaram um protesto em março de 1870. Caso Paris se saísse
vitoriosa primeiro, dizia, ela deveria de imediato renunciar a toda pretensão
de governar e organizar a França.142 Na primavera de 1870, ele vislumbrou a
revolução a se espalhar da França para os centros urbanos vizinhos da Itália
e da Espanha, e até, por meio dos dissidentes eslavos no império Habsburgo,
para a Rússia.143
Em setembro de 1870, imediatamente após a derrota decisiva do exército
francês pelos prussianos e a queda de Napoleão, Bakunin chegou a Lyon
para liderar um breve levante comunal; seus ecos logo chegaram a Marselha.
Sua proclamação do dia 25 de setembro, A Federação Revolucionária das
Comunas^ identificou a Prússia de Bismarck como o principal inimigo da
revolução social. Mesmo antes da derrota final dos exércitos franceses, falou
da necessidade de “derrubar os prussianos aqui de dentro para depois passar
com confiança e segurança a combater os prussianos de fora”.144 Estimulou
que se fizesse uma revolução comunal imediata, porque o Estado centralizado
francês estava doravante destinado a ser “pouco mais do que um vice-reinado
da Alemanha”;145 e defendeu uma “guerra até a morte” entre a “revolução
popular” e o “despotismo militar, burocrático e monárquico” da Alemanha.146
A segunda onda de revolução atingiu a França quando a Comuna de
Paris se rebelou na primavera de 1871. Bakunin não teve nenhum papel
direto; mas, exilado na Suíça, escreveu com fervor a sua obra mais longa,
parte da qual ele publicou em julho de 1871: O Império Cnute-germânico,
ou a Revolução social.
Para Bakunin, o gênio específico da Comuna de Paris estava em apresentar
uma verdadeira alternativa revolucionária social a “Deus e o Estado” — as
fontes gêmeas de toda opressão.147
Bakunin acreditava que os vilões internos ao campo revolucionário eram
os líderes jacobinos, que afinal impuseram “concepções ditatoriais e gover­

142 Lehning, “Théorie”, pp. 458-459; Dolgoff, pp. 178-180.


143 Introdução de Lehning a Bakunin, Selected Writings, L, 1973, pp. 23-24.
144 Carta de 23 de agosto de 1870, em Lehning, “Théorie”, p. 460.
145 Carta de 29 de setembro de 1870, em Lehning, “Théorie”, p. 465.
146 Carta de 28 de outubro de 1870, ibid., p. 465.
147 “The Paris Commune and the Idea of the State”, escrito logo após a queda da Comuna, em Bakunin,
Writings, p. 199.
LIVRO H, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 587

namentais” à Comuna, e Mazzini, que havia conduzido de modo equívoco a


revolução italiana, com um “idealismo religioso obsoleto”, para a “concupis-
cência política de grandeza estatal”.148 Com o argumento de que a revolução
social deve ser “diametricamente oposta” à revolução política,149 Bakunin
fez, entre o verão de 1871 e o verão de 1872, o seu último grande grupo de
convertidos à causa revolucionária à custa de Mazzini, quando uma federação
italiana da Internacional foi fundada por seus novos partidários em Rimini.
Outros futuros anarquistas, como Johann Most, na Áustria, iriam propagar
de modo independente a visão de Bakunin da Comuna como a precursora da
mais fundamental de todas as revoluções sociais.150 E, entre os povos eslavos
e latinos, onde o Estado era particularmente autoritário (e onde o desen­
volvimento industrial não havia avançado muito), a perspectiva bakunista
dominou na imaginação revolucionária.
O principal rival de Bakunin era, claro, Karl Marx, que personificava
com precisão os instintos autoritários alemães e as preocupações políticas
que Bakunin detestava.
Muito a propósito, o grande ensaio de Marx sobre a Comuna, Guerra civil
na França, foi escrito sob a forma de uma mensagem do Conselho Geral da
Associação Internacional dos Trabalhadores aos seus membros. Faltando-lhe
apoio junto aos operários que compunham a Internacional (coisa que só tinha
junto a um pequeno número de afiliados de expressão inglesa e alemã), Marx
consistentemente se empenhou a operar por meio da estrutura executiva do
Conselho Geral da Internacional, o qual era sediado em Londres, e não por
meio das federações autônomas e dos congressos gerais. O ensaio de Marx
foi escrito quando ocorriam as últimas execuções em Paris. Nele, Marx não
só redescobriu a paixão revolucionária de 1848, mas também antecipou o
novo estilo polêmico de 1917 e depois.
Houve, em primeiro lugar, uma reafirmação do laço necessário entre revo­
lução e violência: “Paris armada era a Revolução armada [...] uma rebelião
de senhores de escravos”.151 Passou então a explicar o sucesso da rebelião,
em especial através do expediente de descrever Alphonse Thiers como um
148 Ibid., p. 201; e “Réponse d’un international à Mazzini”, em ibid., p. 214.
149 Bakunin, Writings, p. 203.
150 Johann Most, Die pariser commune vor den Berliner gerichten, Braunschweig, 1875, esp. pp. 14-15.
151 “Guerra Civil na França”, citado em Postgate, Revolution, pp. 305, 311. Marx depois atenuou seu
endosso da Comuna, o que levou alguns estudiosos do marxismo, como Bertram Wolfe e George
Lichtheim, a sugerir que Marx praticamente repudiou o levante. Mas foi aquela sua obra que
influenciou a tradição revolucionária.
588 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

vilão sem paralelo mesmo no rico repertório de acrimonia polêmica de Marx.


Esse “Tom Thumb parlamentar, ao qual se concedeu desempenhar o papel
de Tamerlão”,152 foi retratado como “um virtuose no perjúrio e na traição”,
com a “vaidade no lugar do coração” — um gnomo153 monstruoso que “en­
cantou a burguesia francesa por quase metade de um século, pois ele é a mais
consumada expressão intelectual da própria corrupção de classe deles”.154
Marx estendeu o argumento revolucionário usual de justificação da
violência como medida defensiva necessária ao afirmar que Thiers era “o
verdadeiro assassino” do Arcebispo de Paris, que os communards haviam
matado junto a outros 64 reféns.155
A Comuna encorajou Marx a acreditar que novas formas políticas po-
deriam promover a revolução social — tanto quanto encorajou Bakunin a
sustentar que as formas políticas tinham impedido a Comuna de realizar a
revolução social. Marx traçou as origens da Comuna até as forças políticas.
Para ele, ela não tinha sido — como acreditava Bakunin — uma espécie de
oposto metafísico do princípio alemão de autoridade; teria sido um desenvol­
vimento dialético da política francesa como “antítese direta do Império”.156
A Comuna emergia do Império por um processo lógico, segundo Marx. A
industrialização de Napoleão havia criado um proletariado revolucionário;
o imperialismo de Napoleão o armou e criou guerras entre as nações, que
agora a classe trabalhadora mobilizada estava transformando em guerras
entre classes. O argumento de Lênin acerca do período da Primeira Guerra
Mundial, em Imperialismo, última etapa do capitalismo^ já havia sido adian­
tado na alegação de Marx de que o imperialismo, sob Napoleão m, tinha se
tornado “a forma derradeira do poder estatal [...] [da] sociedade burguesa
inteiramente desenvolvida [...] para [realizar] a escravização do trabalho
pelo capital [.,.]”.157
De modo análogo, a visão de Marx da Comuna como um instrumento de
libertação política ante a guerra imperial foi mais tarde, durante a Primeira

152 Ibid., p. 316.


153 Ibid., p. 310.
154 Ibid., pp. 307-308.
155 Ibid., p. 335. A retórica vodu de Marx contra o “Sulla francês” era em parte a raiva especial dos
deuses contra um anjo decaído — uma vez que Thiers, em sua juventude, havia sido para muitos o
modelo do homem radical de idéias alçado ao poder para mudar o sistema, em vez de ser mudado
por ele. V. O’Boyle, p. 312.
156 Postgate, p. 319.
157 Ibid., pp. 319, 336.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 589

Guerra Mundial, transposta para a visão de Lênin dos sovietes como um


mecanismo político por meio do qual estabelecer o poder proletário. Até a
confiança de Lênin no poder da revolução urbana de penetrar no campo
pode ter sido antecipada pela crença infundada de Marx no uatrativo da
Comuna perante os interesses vivos e as necessidades urgentes do campesina­
to”.158 Quando Lênin procurou por um lema para o confisco da propriedade
privada em 1917, tomou de empréstimo de Marx aquele que este último
havia atribuído aos communards (que eram menos dados ao confisco): “a
expropriação dos expropriadores”.159
Em 1871, assim como em 1848, Marx buscou apoio nos revolucionários
mais desprovidos de remorsos: os partidários de Blanqui. Esses “blanquistas”,
que em época de tranqüilidade Marx havia ridicularizado como “alquimistas
da revolução”, deram-lhe em épocas conturbadas um antídoto ao desespero
— e à desintegração interna ao campo revolucionário.
Novos partidários tinham se reunido ao redor do lendário Blanqui depois
que este foi solto da prisão em 1865; e ele publicou para eles, em 1869, um
manual de insurreição: Instruções para a tomada armada,160 Embora Blanqui
estivesse de novo na prisão à época da Comuna, seus correligionários ganha­
ram prestígio pela posição de liderança que tiveram nela. Depois da derrota
da Comuna, importantes blanquistas sob Edouard Vaillant foram cooptados
como heróis no Conselho Geral da Internacional. Marx cooperou com eles,
transformando esse corpo executivo constituído em Londres numa espécie
de materialização em embrião do conceito que, em 1848, havia extraído dos
blanquistas: uma “ditadura do proletariado”. Fez com que o congresso da
Internacional marcado para 1871 assumisse novo curso e se tornasse uma
conferência em Londres, que ele controlou aliado aos blanquistas.161
158 Ibid., p. 325. Marx chegou a afirmar que os contra-revolucionários “sabiam que três meses de
comunicação livre da Paris comunal com as províncias fariam nascer uma insurreição geral dos
camponeses”.
159 Ibid., p. 322.
160 Texto de Instructions pour une prise d'armes e discussão de G. Bourgin em Archiv für die geschickte
des Sozialismus und der Arbeiterbewegung^ vol. xv, 1930, pp. 272-300.
161 Os historiadores marxistas atenuam a dependência de Marx para com os blanquistas mesmo quando
oferecem provas dos laços destes com o marxismo na luta contra o proudhonismo/bakunismo. S.
Bernstein alega que a Aliança Bakunista rival foi fundada com a presença do próprio Blanqui ao
fim de 1868 (The beginnings of Marxian Socialism in France, NY, 1965,2a ed., p. 14}, mas também
sugere que Marx convenceu Blanqui a enviar delegados ao Congresso de Genebra em 1867, só para
vê-los rejeitados pelos proudhonistas desta vez e ainda em 1868.
M. Paz argumenta que “foi em sua animosidade simultânea e persistente contra Próudhon que
Blanqui e Marx se encontraram” (“Auguste Blanqui, le révolutionnaire professione!”, tese de
doutorado inédita, Aix-en-Provence, 1974, p. 132, BN; também pp. 131-135 para o conflito de
590 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O inimigo comum de Blanqui e Marx em 1848 havia sido Proudhon, e


o adversário que eles compartilharam em 1871 foi o herdeiro anarquista de
Proudhon, Bakunin. Marx excluiu de propósito Bakunin da lista de convidados
para a conferência especial da Internacional que se realizou em Londres em
setembro de 1871. Essa união blanquista-marxista em seguida transformou a
até então relativamente descosida Internacional em uma organização política
disciplinada, cuja direção central cabia ao Conselho Geral e cujo propósito
de alcançar poder político era explícito.
Os bakunistas responderam, por meio de um congresso rival em Sonvilier,
dois meses depois, que meios hierárquicos e políticos jamais deveríam ser
utilizados para alcançar fins revolucionários sociais. A “circular de Sonvilier”
proclamou que era impossível “a uma sociedade livre e igualitária nascer de
uma organização autoritária”*162 e insistiu que as organizações revolucionárias
deveríam ser exemplos em miniatura da nova sociedade, em vez ramificações
de um partido político.
Na primeira metade de 1872, o conflito fez nascer um novo vocabulário.
Marx reviveu em março a palavra anarquista como um termo pejorativo
aplicado ao grupo de Sonvilier, e enviou o seu genro Paul Lafargue para a
Espanha numa tentativa de minar as bases de apoio político que Bakunin
tinha lá. Os bakunistas responderam em junho empregando — pela primeira
vez na história — o termo marxista para descrever os esforços de estabelecer
um controle autoritário da Internacional. Denunciaram Lafargue como um
agente da “conspiração marxista” e um “apóstolo da lei marxista” (os quais
implementariam o que quer que Marx desejasse).163 Bakunin fortaleceu a sua
própria linguagem polêmica ao lhe acrescentar um novo termo: comunista
autoritário.164
Marx e Bakunin acusavam um ao outro de organizar uma conspiração.
Cada um tinha algum apoio de facções de communards sobreviventes. Um
curioso prenúncio da futura história revolucionária está nos nomes utilizados

Blanqui com Proudhon e seus discípulos, e pp. 138—153 para sua influência sobre Marx e Lênin).
Outro datiloscrito inédito de Paz (“Inventaire sommaire des papiers d'Auguste Blanqui”, 1972, BN,
pp. 18-26) enfatiza mais os paralelos do que os laços entre Blanqui e Marx.
162 Citado em D. Stafford, From anarchism to reformism, Toronto, 1971, pp. 10-11.
163 Citado em ibid., p. 15. V. também Paul Brousse, Le Marxisme dans P internationale, 1882; M. Rubel,
“La Charte de la primière internationale. Essai sur le “marxisme” dans l’association internationale
des travailleurs”, em Mouvement Social, 1965, abr.-jun., esp. pp. 3—6; e M. Mande, “A propos du
concept de ‘marxisme’”, em Cahiers de l’institut de science economique appliqué, vol. vin, 1974,
pp. 1397-1430.
164 Freymond, Études, p. 142.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 591

para designar as fações communards mais ou menos autoritárias: majoritaires


e minoritaires, Esses termos, majoritário e minoritário, reapareceríam nos
termos russos boïshevik e menshevik.165 Em ambos os casos, a adoção agres­
siva da etiqueta de majoritários por um partido autoritário transformou uma
maioria tática, dentro de um pequeno grupo, na pretensão de representar a
maioria de um corpo social mais amplo.
Os bolcheviques de Lênin eram tão minoritários dentro do movimento
social-democrata russo quanto os blanquistas eram majoritários na Comuna
de Paris. Mas aqueles primeiros se apropriaram habilmente do rótulo com
base na maioria alcançada em reuniões fundamentais da conferência parti­
dária de 1903, ao passo que aqueles últimos dele se apropriaram com base
em uma breve maioria alcançada na liderança da Comuna em seus últimos
dias. Outra antecipação verbal da história revolucionária russa posterior se
deu quando Bakunin inventou o termo revolucionário socialista, em oposição
ao social-democrata.166 De modo análogo, a organização internacional que
Bakunin havia fundado no verão de 1868, como Aliança Internacional da
Social-democracia, foi recriada, no início de setembro de 1872, como Alian­
ça Social Revolucionária.167 Bakunin assim criou o rótulo que acabaria por
ser adotado pelo maior partido revolucionário da Rússia imperial tardia. À
maneira dos bakunistas, os revolucionários sociais posteriores atribuíram
ao campesinato um papel-chave que nunca foi admitido pelos social-demo-
cratas urbanizados.
O conflito entre Marx e Bakunin alcançou seu clímax quando Marx, pela
primeira vez, foi em pessoa a um congresso da Internacional — em Haia, em
setembro de 1872. Conseguiu fazer com que Bakunin fosse expulso, e ainda
tentou, com a ajuda dos blanquistas, requisitar que todas as organizações-
-membros advogassem a conquista de poder político como um necessário
pré-requisito à revolução proletária. Contudo, a maior parte das seções na­
cionais da Internacional ficou do lado da bandeira bakunista numa série de

165 O estudo da origem e disseminação desse termo de C. Weill (“A propos du terme ‘bolchévisme’”,
em Cahiers du Monde Russe et Soviétique^ 1975, jul.-dez., pp. 353-364) vê um paralelo com o
blanquismo (p. 355), mas nunca considera os precedentes blanquistas ou quaisquer outros do termo
leninista.
166 Em 1873, no auge de sua luta contra Marx, Bakunin explicou que ele havia mudado o nome de
sua Aliança Italiana da Social-democracia de 1864 para Aliança dos Revolucionários Socialistas
“como resultado de os comunistas estatistas alemães darem ao termo ‘social-democracia* um sentido
comprometedor, doutrinário e estatista” (Istoricheskoe razvitie intematsionala, Zurique, 1873, parte
I, citado em Lehning, “Conception”, p. 62).
167 Lehning, “Conception”, pp. 73-74.
592 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORK,FM E HISTÓRIA

congressos depois realizados, desafiando Marx, ainda naquele ano de 1872.


A Internacional realizou um sexto congresso em Genebra em setembro de
1873, e ainda um último três anos depois, na Filadélfia. Mas, para todos
os efeitos, parou de atuar depois de 1872. Logo após o Congresso de Haia,
Marx transferiu o Conselho Geral para Nova York, a fim de evitar que
fosse controlado por bakunistas. Mas os partidários de Bakunin ampliaram
constantemente sua influência na Europa — acabando com a submissão de
muitos grupos de filiados locais à autoridade central e limitada que Marx
tinha estabelecido.
A Internacional foi destruída, é claro, não tanto por seus conflitos internos
quanto pela onda conservadora que varreu a Europa depois da Comuna de
Paris. A Aliança Revolucionária de Bakunin, concebida bem antes que ele
ingressasse na Internacional em 1868, sobreviveu por meio da Federação
do Jura. Os ferozes ataques ad hominem que Marx fez a Bakunin, além de
sua inclinação para uma estrutura autoritária central para a Internacional,
nunca ganharam apoio generalizado.
Os grupos latinos e eslavos da Internacional tinham especial simpatia
pela visão bakunista de que Marx, “como o cuco, tinha vindo chocar seu
ovo num ninho que não lhe pertencia”.168 Muitos continuaram a crer que a
liderança revolucionária ainda viria da França — e então se espalharia até
aqueles “povos e fragmentos de povos portadores da chama revolucioná­
ria”.169 Muitos partilhavam da opinião de Bakunin segundo a qual Marx
tinha repudiado a revolução como busca da liberdade e institucionalizado,
no campo proletário, o mesmo autoritarismo “pangermânico” que Bismarck
havia introduzido na vida política burguesa. Pouco depois do epiteto “mar­
xismo”, surgiu o de “bismarxismo”.170
O conflito entre Marx e Bakunin no início da década de 1870 atomi-
zou ainda mais uma esquerda já dizimada; e, de fato, destruiu a tradição
revolucionária social na Europa ocidental por uma geração. Com Bakunin
prestes a morrer e Marx a se tornar idoso e um pouco isolado, a tradição
revolucionária internacional de inícios dos anos 1870 perdeu sua liderança
ativa e sua primeira organização internacional. A briga entre os dois pen­

168 Da importante obra do principal partidário suíço de Bakunin, J. Guillaume, Karl Marx pangermaniste
et l’association internationale des travailleurs de 1864 à 1870, 1915, p. 1.
169 Os federalistas militantes de Jura depois da Comuna, citado em Stafford, From Anarchism, p. 76.
170 Bakunin, Writings, pp. 263-264; e pp. 232-270, para o pouco conhecido lado de Bakunin nessa
controvérsia, sugerindo que Marx representa a forma futura do “culto do Estado” de Bismarck.
LIVRO H, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 593

sadores deixaria um legado de amargura e de questões não resolvidas que


reapareceríam gerações à frente. A Primeira Internacional deixou uma série
de organizações nacionais e uma nova tradição de autoridade proletária
transnacional que inspiraria numerosos outros congressos nos anos 1870 e
1880, chegaria até — no centenário da primeira Revolução Francesa — à
Segunda Internacional, que seria fundada em 1889.
Nesse meio tempo, uma nova geração de revolucionários se formou ao
longo da década de 1870 sem o senso de foco geográfico que Paris havia
proporcionado antes. Os revolucionários agora tendiam a (1) organizar a
classe trabalhadora dentro do novo Estado burguês na esperança de tomá-lo
para si (a posição social-democrata da maior parte dos “marxistas”) ou (2)
combater o Estado enquanto tal, com o emprego de novas táticas violentas
(o populismo eslavo e o anarcossindicalismo latino são ambos herdeiros da
tradição “bakunista”).
O novo conceito que justificou — se é que não ajudou a inspirar — a
virada para a violência desses grupos nas décadas de 1870 e 1880 foi a idéia
bakunista de “propaganda por meio de atos”. Essa doutrina — se é que
pode ser chamada assim — foi elaborada pela primeira vez no fim de agosto
de 1870 como base para os levantes revolucionários que Bakunin estava
prestes a incitar: “Deixemos agora aos outros o desenvolvimento teorètico
dos princípios da revolução social, e nos contentemos com só aplicá-los de
maneira geral, com confiná-los em atos [...] doravante devemos propagar
nossos princípios não mais com palavras, mas com atos”.171
Além da “propaganda por meio de atos”, há um novo interesse pelo as­
sunto mais vasto da violência revolucionária — que se refletia, no Ocidente,
no anarquismo desesperado e no sindicalismo, e no Oriente em um tipo todo
novo de violência ascética. Para todos os europeus empenhados em não deixar
perecer a visão revolucionária no fim do século xix, a recordação da Comuna
permaneceu sagrada, e sua glorificação proporcionou uma compensação à
atmosfera hostil do Estado industrial anti-revolucionário.

O romance perdido
A mentalidade heróica, romântica, morreu com a Comuna de Paris. Tanto o
nacionalismo revolucionário como a liderança francesa foram minados, e o
171 Citado em Lehning, “Théorie”, p. 462. Esse uso é anterior à suposta origem do termo com os
bakunistas na Espanha 1873 e/ou com a explicação que Malatesta deu em 1876 para o levante na
Bolonha de dois anos antes (Stafford, From Anarchism, p. 79).
594 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

elemento intangível e indispensável de romance desapareceu para sempre do


mundo dos estandartes e das barricadas. Os communards tinham esvaziado o
Palácio das Tulherias e subido ao cume da Coluna de Vendôme — símbolos,
respectivamente, da autoridade monárquica e da autoridade napoleonica.
Mas a Terceira República não criou nenhum monumento capaz de simboli­
zar legitimidade ou sequer de provocar apoio emocional. No fim do século
XIX, a linha do horizonte parisiense era dominada por dois símbolos que se
propunham a ir além do passado político — mas só conseguiram provocar
ainda mais polarização. Sacre Coeur, a nova Catedral do Sagrado Coração,
elevava a sua grande cúpula branca sobre a antiga sede dos communards
no Montmartre — fruto de uma subscrição católica nacional para expiar os
pecados da Comuna. No lado oposto (esquerdo) do Sena, logo se ergueram
os 300 metros da Torre Eiffel, o símbolo de ferro de uma nova cidade indus­
trial construído no Campo de Marte onde se tinham realizado os primeiros
festivais revolucionários românticos.
O conservadorismo da Sacre Coeur se aliava ao industrialismo da Tor­
re Eiffel para produzir um novo tipo de poder estatal capaz de absorver e
transformar as formas do nacionalismo romântico. A violência heróica de
tipo ítalo-polonês deu lugar, no fim do século xix, à violência mecanizada
moderna das novas conscrições de massa para o exército. O melodrama
musical que tinha acompanhado e nobilitado o nacionalismo revolucionário
foi substituído, na vanguarda da experimentação musical, por um novo tipo
de ópera que anunciou a emergência do palco germano-russo do desenvol­
vimento revolucionário.

Modernização da violência

A repressão medonha da Comuna reviveu um elemento apocalíptico que


havia quase desaparecido do pensamento revolucionário posterior a 1848.
Dostoiévski relaciona as chamas das Tulherias às do Julgamento Final. Lênin
depois falaria de “batalha pelo céu”, e Pottier de la lutte finale.
Essa “luta final” do proletariado contra a burguesia não começaria para
valer, é claro, senão um quarto de século depois, quando, mais uma vez, a
derrota militar de uma potência européia abriu o caminho para um levante
interno. A humilhação que o Japão infligiu à Rússia em 1904-1905 levou
esta última à sua própria era revolucionária; e Lênin — o homem que afinal
conduziría os revolucionários ao poder — buscaria orientação no período
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 595

da Comuna. De fato, sua primeira reação quando, exilado na Suíça em


1905, soube que haviam se iniciado confrontos urbanos, foi a de começar
a 1er e traduzir as memórias militares de um líder da resistência militar dos
communards-. Gustave-Paul Cluseret.
Extratos da obra em três volumes de Cluseret foram traduzidos pela
esposa de Lênin e publicados com um prefácio deste em março de 1905.172
O ódio de Cluseret ao sentimentalismo e sua ênfase num planejamento cui­
dadoso sob a direção de um “painel geral de revolucionários” soava bem à
mentalidade pós-romântica; e sua ênfase cuidadosa na tomada dos principais
pontos da estrutura governamental existente fornecia um esboço de plano
para a tomada bolchevique do poder em São Petersburgo no ano de 1917.
Cluseret modernizou a violência revolucionária. Ele infundiu no pensa­
mento revolucionário o conhecimento da guerra de massas moderna que ele
havia adquirido ao participar diretamente das duas guerras mais sangrentas
do século que vai de 1815 a 1914: a Guerra da Criméia e a Guerra Civil
Americana. Formado na Escola Militar de Saint-Cyr e agraciado com a
Legião da Honra por sua repressão aos revolucionários em 1848, Cluseret
passou para o campo revolucionário ao servir junto aos camisas-vermelhas
de Garibaldi e aos clandestinos irlandeses nos Estados Unidos. Chegado à
França tomada pela guerra na condição de emissário de Bakunin em Lyon,
logo se tornou comandante-em-chefe da última fase da resistência militar na
Comuna de Paris. Seu conhecimento das técnicas modernas de combate foi
enriquecido pela convivência com o seu amigo e conselheiro Sheridan, um
austero general americano do exército da União, o qual havia lutado junto
com Moltke na nova máquina de guerra prussiana durante suas vitórias
agilíssimas sobre Napoleão m.
Os escritos retrospectivos de Cluseret sobre a Comuna defendiam um novo
tipo de guerra total na qual “não se deve esperar que haja nenhum quartel,
uma vez que não existe quartel algum”,173 e davam sugestões táticas diretas
para uma abordagem nova e não romântica dos confrontos de rua: atacar à
noite, esconder-se para neutralizar o poder de fogo inimigo, tomar casas de
esquina, e assim por diante. A educação militar e a educação cívica deveríam

172 Publicado em Vpered, 23 de março de 1905, discutido em B. Itenberg, Rossiia i parizhskaia kommuna,
1971, p. 179 ss.
173 “La Guerre des rues”, de Cluseret, Mémoires, 1887, vol. ii, pp. 273-289; reproduzido em P. Kessel
(ed.), 1871. La Commune et la question militaire (Cluseret-Rossel), 1971, p. 337.
596 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ser integradas174 em um novo tipo de milícia revolucionária que destruiría a


propriedade, e não o povo, e interrompería de modo permanente as linhas
burguesas de comunicação e abastecimento por meio de colunas móveis.
Nem mesmo os alemães teriam sido capazes de sustentar uma guerra longa
contra esse tipo de oposição;175 e nenhum Estado moderno conseguiría resistir
a uma revolução armada e disciplinada que se comprometia a substituir a
“base da sociedade”, e não a “substituir o povo”, como vinham fazendo os
conspiradores desde a última verdadeira revolução, em 1792.
A defesa que Cluseret faz de métodos violentos para alcançar objetivos
visionários se baseava na crença de que uma revolução social, e não nacional,
estava próxima: “A obra da segunda e suprema Revolução será substituir e
renovar o eixo social do capital, a fim de entregá-lo ao trabalho”.176
Esse espectro da esquerda foi utilizado pela direita para justificar ameaças
de contra-violência que ajudaram a manter a França polarizada — e com
freqüência paralisada — durante a conturbada vida da Terceira República.
A nova ênfase que Cluseret deu a objetivos sociais e não nacionais, à disci­
plina e não ao romantismo, foi melhor aceita nas áreas mais distantes à leste;
e, quando os revolucionários sociais urbanos finalmente ganharam o poder,
foi em São Petersburgo, em 1917, sob a liderança de um admirador russo de
Cluseret. A carreira revolucionária de Lênin fundiu as duas principais novas
forças que haviam surgido para dominar a imaginação da esquerda depois da
derrota da Comuna de Paris: a social-democracia alemã e o populismo russo.
Esses movimentos se desenvolveram a partir das tradições rivais de Marx, por
um lado, e de Proudhon e Bakunin, por outro. Eles refletiam uma atitude nova
e mais profissional respectivamente para com os problemas da organização e da
violência dentro do novo Estado industrial. O surgimento da social-democracia
na Prússia e do populismo na Rússia assinalaram a decadência da influência
francesa e o início do período germano-russo da história revolucionária.

As transformações da ópera

Passando das questões mundanas da violência e da organização para ou­


tras mais sublimes, o declínio tanto do romantismo como do nacionalismo
revolucionário nas décadas de 1860 e 1870 pode ser acompanhado por meio
das transformações sofridas pela ópera. Esse meio de expressão musical foi,
174 Ibid., p. 304.
175 Pp. 308-311.
176 P. 308.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 597

como vimos, uma pedra-de-toque da paixão revolucionária; e suas trans­


formações nesse período refletem a transferência do centro de gravidade
ideológica europeu do mundo franco-italiano para o mundo germano-russo.
Como já dito, o realismo e o materialismo prevaleceram na França depois
da derrota da Comuna de Paris. George Sand, a grande romancista romântica,
queixou-se já idosa a Gustave Flaubert, o novo realista, de sofrer de idiotisme
auditif nessa nova era. Ela não conseguiu mais sonhar com transformações
românticas da realidade, com ser homem e mulher ao mesmo tempo, com
“fazer palavras e música ao mesmo tempo”.177
Como tudo o mais, a música foi colocada a serviço do Estado. A ópera,
ontem meio de expressão da revolução, tornou-se serva da reação. A menina
muda de Portici, que quarenta anos antes havia precipitado a insurreição, foi
utilizada em 1870 para estimular a França a entrar numa desastrada guerra
com a Prússia. Em uma performance realizada logo após a malfadada de­
claração de guerra de Napoleão m, o elenco do Ópera de Paris se demorou
no palco para cantar La Marseillaise. A platéia empolgada os incitava a
cantar também a canção de guerra da crise franco-prussiana de 1840: Nous
l’avons eu, votre Rhin allemand [Tomamos vosso Reno alemão]. Quando o
elenco respondeu que não conhecia a letra, Girardin, jornalista sensível às
mudanças de tempo, gritou de seu camarote: “Vai demorar mais para que
aprendam do que para tomá-lo!”.178
Verdi, o patriarca do nacionalismo revolucionário anterior, retirou-se de
vez da política durante a crise de 1870-1871. Com a unificação da Itália já
assegurada, dedicou-se a conseguir tirar de Paris em segurança o cenário e
o figurino que utilizaria na estréia de sua nova ópera, Aida, que ocorrería
no Cairo, marcando a abertura do Canal de Suez. Esse velho sonho saint-
-simoniano de um canal que unisse Oriente e Ocidente através do Egito se
tornou realidade em 1869; mas ele anunciou a chegada não tanto de um
“novo cristianismo” quanto de um novo imperialismo. Depois da estréia
de Aida em dezembro de 1871, Verdi se fechou por inteiro nos majestosos
mundos apolíticos da religião (Messa de Requiem) e de Shakespeare (Otello
e Falstaff). E Aida, que uma década antes bem poderia ter sido vista como
um drama de libertação nacional, foi em vez disso tratada como puro espe­

177 Carta de 21 de junho de 1868, citada em T. Marix-Spire, Les Romantiques et la musique. Le cas
George Sand 1804-1836,1954, p. 592, nota 8; também p. 591, nota 6, e a $ “musique et philosophie”,
pp. 419-457.
178 M. Reclus, Émile de Girardin, 1934, p. 215.
598 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

táculo — em especial depois que foi montada, de 1875 em diante, no maior


palco de ópera do mundo no novo Ópera de Paris.179
Enquanto isso, no novo teatro de Bouffes-Parisienne a ópera tradicional
foi suplantada de vez pelas operetas de Offenbach, que se tornou a sensação
de Paris do período de lâmpada a gás. Essa música amena para as massas
— tal qual o novo jornalismo de massa — deu mais diversão a imperialistas
reacionários do que inspiração a nacionalistas revolucionários.
O modelo de musicais à la Offenbach foi saltando de império a império.
Chegou à Inglaterra no momento exato da abertura do Canal de Suez e da
criação do título de Imperadora da índia para a Rainha Vitória. Em 1875,
Gilbert e Sullivan escreveram a primeira de suas peças teatrais musicadas,
Julgamento a júri, como número de abertura para uma noite de Offenbach. Ao
mesmo tempo, em outro império anti-revolucionário, a Viena dos Habsburgos
se encantava com uma produção musical após a outra na esteira de Johan
Strauss il, ainda à época de sua primeira opereta de sucesso, Âs Mil e Uma
Noitesde 1871.
As operetas de Offenbach costumavam ser interrompidas por inserções
de dança, o cancã, procedimento que se tornou, para os revolucionários mais
sombrios que agora assomavam do outro lado do Reno, um símbolo da de­
cadência e inanidade imperiais.180 Na Alemanha e na Rússia um novo tipo
de grande ópera surgiu em clara oposição à tradição musical franco-italiana.
O aparecimento simultâneo de figuras tão diferentes como Richard Wagner
e Modest Mussorgsky anunciava uma rejeição do espírito lírico romântico
e do otimismo descomplicado da escola latina. Ideologicamente, suas ópe­
ras expressavam um novo nacionalismo divorciado por inteiro de qualquer
mensagem revolucionária.
Caso se possa apontar algum momento decisivo para essa transição do
predomínio franco-italiano para o germano-russo, talvez tenha sido o inverno
de 1862-1863, em São Petersburgo, quando surgiu um novo tipo de ópera no
norte da Rússia. Alexandre n tinha encomendado a Giuseppe Verdi a única

179 Em alguns casos, como na Cuba espanhola, os textos revolucionários eram habilmente cooptados para
propósitos reacionários, a exemplo de quando o General Concha substituiu a palavra “liberdade”
por “lealdade” no dueto do segundo ato da ópera Puritani de Bellini (saltando de pé com frieza para
liderar os aplausos, quando o barítono, indiferente, cantou Viva la libertà}, e de quando desarmou
a cena da revolta de A Menina Muda de Portici ao fazê-la anteceder de uma tarantela, que assim
transformou o melodrama em uma opera-bouffe (Maretzek, Revelations, pp. 29-30).
180 V. a crítica seminal do populista russo N. Mikhailovsky, “Darvinizm i operetki Offenbakha”, em
Otechestvennye Zapiski, 1871, out.; discutida em Billington, Mikhailovsky, pp. 76-77.
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 599

ópera que este compôs durante seu período de mandato no novo parlamen­
to italiano, de 1861 a 1865. À estréia mundial dessa ópera, La Forza del
Destino, em São Petersburgo, em novembro de 1862, seguiu-se, em fevereiro
de 1863, a chegada do adversário alemão de Verdi, Richard Wagner, como
regente convidado em São Petersburgo. A “música do futuro” de Wagner
empolgou a emergente sensibilidade russa e inspirou imitação imediata na
ópera de Serov de 1863, Judite. Wagner contrastou o calor da reação russa
à frieza da recepção francesa à sua “música do futuro” ao sugerir que “os
russos agora vivem no futuro”.181
A maior parte dos russos temia a atração sedutora de Wagner, mesmo
quando saudava sua rejeição dos modelos franco-italianos. Um grupo de
talentosos e jovens compositores russos abandonou o Conservatório de
São Petersburgo para formar uma nova Escola de Música Livre dedicada a
descobrir um estilo musical autenticamente russo, liberto de toda influência
estrangeira. O gênio do grupo, Mussorgsky, produziu no fim dos anos 1860
e nos anos 1870 uma ópera nacional russa para rivalizar com a realização
alemã concorrente de Wagner. Tomadas em conjunto, as realizações desses
compositores marcam o fim do elo entre nacionalismo e revolução que havia
sido a marca distintiva da ópera romântica franco-italiana.
Sob um ponto de vista só artístico, Wagner e Mussorgsky eram muito mais
antitradicionais (e, nessa acepção bem ampla, revolucionários) do que Verdi e
outros gigantes da ópera franco-italiana. Cada um deles buscou transcender
a linguagem romântica — e até mesmo toda a tradição musical do Ocidente.
Cada um deles buscou extrair uma nova linguagem musical diretamente do
“povo” e novos assuntos do subconsciente coletivo do folclore vernáculo.
As diferenças radicais entre os dois gigantes nos dizem algo sobre as bem
diferentes aspirações interiores do nacionalismo pós-romântico na Alema­
nha e na Rússia, respectivamente. Wagner e Mussorgsky desempenharam
papéis importantes no desenvolvimento de uma consciência nacional em seus
respectivos países. Com efeito, a música deles proporciona uma espécie de
presságio profético dos dois mais fatídicos levantes revolucionários do século
XX: o do nacional-socialismo da Alemanha de Hitler e o do nacionalismo
socialista da Rússia de Stálin.
Wagner desferiu — de maneira bastante literal — o golpe fatal sobre o
tema lírico do amor romântico que tinha sido central nas óperas do nacio­

181 Citado em N. Findeizen, “Vagner v Rossii”, em Russkaia muzykal’naia gazeta, 1903, n° 35, p. 767.
600 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nalismo romântico. O anseio subconsciente substituiu a melodia lírica em


Tristão e Isolda, que foi montado pela primeira vez em 1865. As primeiras
quatro notas abriram o abismo da música cromática moderna; e os amantes
foram transformados em personagens noturnas condenadas a ser oprimidas
pela música do subconsciente, que atingia a harmonia somente depois de o
orgasmo orquestral derradeiro deixar os amantes mortos no palco.
Depois de extirpar o lirismo do tema amoroso, Wagner passou à afirmação
do nacionalismo alemão em sua próxima grande ópera, Die Meistersinger [Os
Mestres Cantores de Nuremberg]. Montada pela primeira vez em 1868 após a
Prússia ter derrotado a Áustria dos Habsburgos, o compositor se encontrava
então enamorado dos sucessos de Bismarck e com o patrocínio seguro do ainda
mais conservador Rei Ludwig da Bavária. “O meu verdadeiro eu”, escreveu
alegre, “deambula pelas ruas de Nuremberg”; e uma percepção triunfante da
superioridade alemã irrompe em momentos cruciais do seu conto sobre um
concurso na Nuremberg medieval. Surge um crescendo heróico, tendente a
uma marcha militar, quando Hans Sachs, símbolo da cultura e virtude alemãs,
insere este trecho em seu monólogo sobre a vaidade do mundo:
Wir friedsam treuer Sitten,
getrost in That und Werk,
liegt nicht in Deutschland's Mitten
mein liebes Nürenberg!

[Quão pacífica e leal,


Segura de seus feitos e seus modos,
Jaz no meio da Alemanha
A minha amada Nuremberg!]

Meistersinger projetou o nacionalismo não-revolucionário, mas conserva­


dor. O velho Sachs fez com que o jovem Walter ganhasse o prêmio; e Sachs
terminava com uma advertência contra “pensamentos estrangeiros e modos
estrangeiros”:
Ehrt eure deutschen Meister,
dann bannt ihr gute Geister!
Und gebt ihr ihrem Wirken Gunst,
zerzing' in Dunst
das heil'ge röm'sche Reich,
uns bleibe gleich
die heil'ge deutsche Kunst!
LIVRO II, CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 601

[Honre seus mestres alemães


Se quiser prevenir desastres!
Carregue-os no coração;
Que o Sacro Império Romano
se desfaça em pó.
Em lugar dele teremos
a sagrada arte alemã!]

Wagner criou uma “arte sagrada alemã” por meio de sua monumental
obra O Anel dos Nibelungos^ que, concluída em 1874, teve a sua primei­
ra montagem integral em 1876 no teatro-santuàrio recém-construído em
Bayreuth para as produções do compositor.
Para a nova geração imperial de nacionalistas alemães do fim do século xix,
o Reno haveria de se tornar não só o complexo industrial de mais acelerado
desenvolvimento no mundo, mas também a fonte misteriosa de um anel de
ouro capaz de proporcionar o domínio do mundo e a derrubada dos deuses.
Aceite-se ou não a crítica freudiana de Wagner, segundo a qual este prometia
uma libertação fálica por meio da espada de Siegfried e da lança de Parsifal,
o fato é que havia claramente uma manipulação de emoções subliminares
na música de Wagner. O jovem Adolf Hitler era um wagneriano ávido, que
retornava de tempos em tempos à casa de ópera de Linz para assistir à en­
trada do cavaleiro de armadura reluzente em Lohengrin e que proclamava
Meistersinger sua ópera favorita, e que protagonizou o seu próprio triunfo
teatral em Nuremberg na reunião popular monumental de 1934.
Muito diferentes eram a música e a mensagem dos “dramas musicais
populares” de Mussorgsky na Rússia — mas igualmente destrutivos do li­
rismo romântico e do nacionalismo revolucionário da escola franco-italiana.
Em sua busca de um idioma nacional singular, Mussorgsky se esforçou
para descobrir sua nova linguagem musical nos sons intocados das pessoas
simples, chegando mesmo a tentar extrair música diretamente dos sons de
aglomerações balbuciantes na feira de Nizhni-Novgorod.
Desejoso de fazer a música expressar uma verdade que fosse ao mesmo
tempo realista e moral, Mussorgsky buscou primeiro inspiração nos textos
em prosa de Nikolai Gogol, e depois na história russa e no maior texto dra­
mático do maior poeta da Rússia: Boris Godunov^ de Pushkin. Ele passou
os anos de 1868 a 1874 — o exato período em que Wagner concluía o seu
Anel — escrevendo Boris, a única ópera que chegou a terminar. A maior das
óperas nacionais russas trata de um período de insurreições intestinas e de
modernização incerta que muito se assemelhava à Rússia de Alexandre ii:
602 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

os “tempos conturbados” do início do século xvn. Chamando-a de “drama


musical popular (narodnyY\ Mussorgsky o desenvolveu até a cena final na
floresta de Kromi, cena que ele chamava de “retrato do povo”182 e na qual
o crítico Stasov logo entre viu uma “cena revolucionária”.
Essa cena tumultuada vinha logo após a morte do Tzar Boris cheio de re­
morsos e mostrava uma sucessão de pretensos líderes do povo russo do início
do século XVII que sugeriam, com muita nitidez, algumas forças similares que
se digladiavam pela fidelidade do povo russo na turbulência dos anos 1870.
A cena também representava uma espécie de variante revolucionária da cena
anterior em que Boris morria em meio ao decoro de um boiardo, Duma.
Enquanto tudo era hierarquia e prèstito ordenado dentro do palácio do tzar,
tudo era caos e luta desordenada na floresta. No verão de 1874, poucos meses
após a estréia da ópera, seu inflamador coro antiautoritário Boiarinu, Slava
Borisovu foi cantado durante o famoso “movimento para o povo” dos estu­
dantes radicais que foram para o campo em busca de aliados revolucionários.
A autoridade era profanada a começar pela cena da coroação burlesca
do boiardo Khrushchev (sic), e assim seguia com a humilhação do herói do
folclore popular russo (o bobo santo) e o símbolo das maneiras arrogantes
estrangeiras (os jesuítas). Por fim, o “povo” de Mussorgsky encontra sua voz
no grito da soprano de smert3, smert’ (morte, morte) no clímax orgiàstico de
um coro regicida. Isso tudo guardava de maneira notável uma profecia sobre
o papel que as mulheres desempenhariam no movimento revolucionário que
acabaria por assassinar Alexandre n. As massas na ópera de Mussorgsky —
assim como as massas russas depois da morte de Alexandre n — corriam
a abraçar um novo tzar, e não a formar uma nova ordem revolucionária.
Mas a última palavra de Mussorgsky foi pronunciada pelo bobo santo dei­
xado sozinho sobre o palco (enquanto soa um sino de alarme e tremeluz uma
182 A. Orlova, Trudy i Dni M. P. Musorskogo, 1963, pp. 257, 234. As implicações ideológicas da cena
de Kromi discutidas em Billington, Icon, p. 406 ss., podem ser complementadas pela única discussão
musicològica detalhada existente, N. Briusova, “Stsena pod Kromani”, em Yu. Keldysh e V. Yakovlev,
M. P. Musorgsky, 1932, pp. 90-105, que também contém uma rica bibliografia (pp. 241-290) e
uma lista completa das obras de Mussorgsky e edições variantes (pp. 291—310). Um estudo recente
menos substancial é G. Khubov, Mussorgsky, 1969, pp. 486-492. A imensa compilação feita por
Orlova identifica elementos dessa cena que teriam sido derivados do folclore popular (pp. 25-28,
2.34-236). Mussorgsky a princípio a chamou de sua “vagabundagem” (brodiazbnaia}, escreveu-a
febrilmente enquanto preparava uma segunda versão da ópera em setembro de 1871 e a anunciou
a Stasov como “novidade e novidade, a novidade das novidades” (ibid., p. 224).
As duas variantes básicas de Boris são discutidas em V. Belaiev, Mussorgsky’s Boris Godunov and
the new version, Oxford, 1928. Cartas e documentos estão em J. Leyda e S. Bertensson (ed.), The
Mussorgsky Reader, NY, 1947. Há biografias escritas em inglês por O. von Rieseman, NY, 1929;
por M. Calvocoressi, L, 1956; e por V. Seroff, NY, 1968.
LIVRO IL CAPÍTULO 12: A DECADÊNCIA DO NACIONALISMO REVOLUCIONÁRIO 603

chama), não mais capaz nem de profetizar nem de rezar, mas só de lamentar.
0 povo não era mais o narod idealizado dos revolucionários populistas, mas
um faminto liudy sem comida nem esperança. O desolado realismo tinha triun­
fado sobre o romantismo revolucionário; e a mesma desolação prevaleceria no
esforço seguinte de Mussorgsky para escrever uma trilogia nacional de escala
wagneriana em sua última e incompleta ópera, Khovanshchina.
No ápice da agitação revolucionária de 1877, ele por um breve período
considerou a possibilidade de fazer uma ópera que tivesse por tema Pugachev,
o rebelde camponês do século xvni; mas recuou ainda mais, até o fim do
século XVII, tomando por tema os Velhos Crentes que haviam auxiliado os
Khovanskie na resistência às inovações ocidentalizantes de Pedro, o Grande.
A Khovanshchina de Mussorgasky termina, tal como O Anel de Wagner,
com as principais personagens consumidas por um imenso incêndio no pal­
co. Mussorgsky concluía com a voz de baixo de um padre velho crente que
pede a todos, em tom de desolada resignação, que se atirem à pira. Wagner
concluía com uma espécie de transfiguração, na medida em que Brunilda
sobe ao fogo para alegremente saudar seu marido. Mussorgsky sugeria que
o povo russo ansiava por mudança política, mas que era pouco provável
que encontrasse a libertação seguindo por esse caminho. Tão instigante era
para a imaginação a “cena revolucionária” de Boris, que, quando Lênin foi
por um breve período forçado, em meio à crise revolucionária de 1917, a
se esconder fora de São Petersburgo, teria assim respondido à pergunta de
para onde ia: “para Kromi”.
Desse modo, ao fim do século xix a ópera tinha se transformado em di­
versão rotineira dos reacionários, em vez de entusiasmo inspirador para os
revolucionários. A revolução social na era do industrialismo e do imperialismo
tinha se tornado algo de perigoso e desinteressante.
Os pretensos realizadores da revolução social tinham, contudo, encontra­
do outra canção para substituir La Marseillaise y que havia perdido algo de
seu esplendor revolucionário quando sua fixação final como hino nacional
da Terceira República foi supervisionada por ninguém menos que o flagelo
chauvinista da República, o General Boulanger.183 O hino rival endossado
pelos revolucionários sociais começaria a ser empregado na abertura do dé­
cimo quarto congresso do Partido dos Trabalhadores francês em 20 de julho
de 1896. Realizado em um momento de crescente rivalidade nacional e com
183 Sobre a comissão de 1886-1887 lançada por Boulanger como ministro da guerra, v. Chailley “La
Marseillaise”, p. 14.
604 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a presença incomum de numerosos delegados alemães e de outros países, o


congresso foi perturbado por um grupo chauvinista que gritava “abaixo a
Prússia”, balançando a bandeira tricolor e cantando La Marseillaise.™4 Os
socialistas franceses responderam cantando a “Internationale” de Pottier na
versão musical composta em 1888 por um belga, a fim de que fosse entoada
em Lille por um coro de trabalhadores.184
185 Assim, um poema quase esquecido
do tempo da Comuna de Paris e um arranjo musical que mal atraíra atenção
se tornaram de repente a canção dos revolucionários que, para além das iden­
tidades nacionais, vislumbravam uma solidariedade transnacional da classe
trabalhadora. A partir do congresso da Segunda Internacional em Paris no
mês de setembro de 1900, tornou-se praxe encerrar reuniões internacionais
de socialistas com o canto dessa música,186 que em geral permaneceu um hino
para aqueles que acreditam em revolução por meio de identidade de classe,
em vez de por meio de identidade nacional.
A era franco-cèntrica do nacionalismo revolucionário havia se iniciado
em Estrasburgo em abril de 1792, quando pela primeira vez La Marseillaise
uniu uma nação revolucionária para resistir aos monarcas alemães. Essa era
terminou na mesma Estrasburgo em agosto de 1870, quando novos invasores
alemães sujeitaram sua população civil a quatro noites de um bombardeio
contínuo e devastador. Essa atrocidade sem precedentes anunciou “uma nova
era militar”187 na qual a violência mecanizada conduziría à revolução social.
A Alsácia, que havia inflamado a França por meio de canção em 1792, ardeu
de ressentimento como província alemã depois de 1871 — e se tornou casus
belli em 1914.
O nacionalismo foi tomado e desradicalizado pelos grandes construtores
do Estado do período pós-1848: Napoleão m, Cavour, Bismarck. O nacio­
nalismo romântico permaneceu a ideologia dominante nos limites menos
desenvolvidos e politicamente menos francófilos da Europa (Irlanda, os Bál­
cãs); e, na virada do século, ganhou nova vitalidade no mundo não-europeu
que buscava resistir à dominação imperial européia. Mas os novos e mais
importantes desdobramentos do movimento revolucionário europeu entre
1848 e 1914 se dão dentro da tradição rival de revolução social. É para
as crescentes dores dessa tão diversa e transnacional tradição, em especial
dentro da Alemanha e da Rússia, que devemos agora voltar nossa atenção.

184 A. Zévaès, Eugene Pottier et iTnternationale, 1936, pp. 46-53, para o material contido aqui.
185 Sobre Pierre Degeyter e o coro “La Lyre des travailleurs”, ibid., pp. 35-37.
186 Ibid., p. 53.
187 M. Howard, The Franco-Prussian War, NY, 1962, p. 276, também p. 274.
LIVRO III
A ascensão dos revolucionários sociais:
fim do século xix e início do século xx
Afe«« em Aranca inieneioftai
CAPÍTULO 13

A máquina: a social-democracia alemã

epois da Guerra Franco-Prussiana e da Comuna de Paris, a Europa

D entrou numa nova era de conservadorismo social e politico. Mas


esta tinha diferenças profundas perante a restauração realista do
início do século. Uma nova ordem industrial havia criado uma nova inter­
dependência por meio da estrada de ferro, do barco a vapor e do telégrafo.
Alguns países haviam transformado o nacionalismo e o republicanismo de
lemas revolucionários em formas de disciplina social. O novo Estado nacional
possuía poder militar e de polícia suficiente para reprimir os revolucioná­
rios; e o Estado ganhava a potência produtiva e a habilidade política para
proporcionar benefícios sociais consoladores para as massas.
Depois de duas décadas de guerra intermitente entre Estados europeus, os
líderes da Europa agora voltavam suas energias militantes para o estrangeiro
e três décadas de expansão imperial contra o mundo não-europeu. O imperia­
lismo se mostrou grito de guerra mais atrativo junto às massas européias do
que a revolução; e, por pelo menos duas décadas depois da Comuna de Paris,
a onda revolucionária parecia estar em baixa — se é que não desaparecida.
O símbolo e fonte de dinamismo no novo Estado industrial era a máquina.
Era ela o coração pulsante da nova metrópole de manufaturas — um ímã
que puxava as pessoas do campo como se fossem limalhas soltas de metal. A
máquina mobilizava as massas em prol da produtividade, tornava-as fatores
em suas fábricas. Era o mágico da modernidade, transformando material
608 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

bruto oriundo do seio do solo em poder acabado acima dele. A máquina


também se tornou Moloque em ação, espalhando a soberania do aço por
todo o mundo por meio do barco a vapor e da locomotiva. Uma locomoção
de maquinàrio mais eficiente permitiu que a Prússia unificasse a Alemanha e
derrotasse a França.1 Os exércitos europeus começaram a mecanizar o assas­
sinato em massa adotando aquele terrível subproduto tecnológico da Guerra
Civil Americana: a metralhadora.2 Tanto as armas de fogo do novo exército
alemão como os motores da nova marinha britânica eram movidos por um
novo tipo de força. Em ambos os casos, a energia era dirigida por meio de
um eixo central; e, através do giro do tubo, era imensamente ampliada para
expelir balas ou propelir um navio.
Descarregar o tambor de uma arma era nada menos do que “a primeira
revolução dos projéteis”;3 e o motor de turbina era “uma das mais impor­
tantes invenções de toda a história da energia”.4 Fosse movida a vapor ou
a água, permitia ao homem gerar eletricidade. Países como a Itália, que não
tinha carvão, podiam afinal criar energia para a produção industrial. Assim,
em 1885, um ano após o aparecimento da primeira turbina a vapor utilizável,
um motor de combustão interna funcionou a contento no transporte por
terra realizado por Daimler e Benz na Alemanha. Uma nova mobilidade era
propiciada pela combustão interna e pelo uso de óleo para a energia industrial.
O homem não precisava mais extrair fogo de carvão em um lugar para criar
energia a vapor a partir da água em outro lugar. A energia agora era gerada
diretamente através da explosão de novos combustíveis voláteis — óleo e
gás — dentro da própria máquina. A máquina veio assim a conter a violên­
cia dentro de si mesma. Foi logo produzida em massa por outras máquinas
à medida que o sistema americano de partes intercambiáveis se combinava
com a habilidade alemã de realizar medições microscópicas precisas.
O novo mundo mecanizado tornou obsoletos o ideal romântico de uma
ordem natural e o estilo poético melodramático dos líderes anteriores. O
modelo subconsciente de organização revolucionária mudou sutilmente do
modelo de estrutura para o de máquina. Tornara-se passado a velha imagem
arquitetônica dos maçons que constroem um novo “templo” para a humani­
1 D. Showalter, Railroads and rifles, soldiers, technology and unification of Germany, Hamden, 1975.
2 J. Ellis, The social history of the machine gun, NY, 1976.
3 C. Fall, The art of war: from the age of Napoleon to the present day, NY, 1961, p. 64; também H.
Rogers, “The advent of riffled ordnance”, em A History of Artillery, Secaucus, 1975, pp. 93-111.
4 G. Wilson, “The Evolution of Technology”, em G. Métraux e E Crouzet (ed.), The nineteenth-century
World, NY, 1963, p. 167.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 609

dade por meio do exercício pessoal de suas faculdades mentais e morais. Em


seu lugar surgiu lentamente o conceito de uma máquina política moderna
dirigida por força termodinâmica e cálculo impessoal. Houve uma mudança
paralela nos indivíduos que compõem as fileiras revolucionárias. Gente de
perfil profissional, de origem com freqüência aristocrática e que se via como
construtora criativa de uma ordem ideal, agora cada vez mais dava lugar a
um novo tipo de organizador-intelectual preocupado com moldar uma orga­
nização eficiente para a — senão mesmo a partir da — classe trabalhadora.
A mudança de propósitos morais para funcionais não representou o triunfo
da “tecnologia” ou “organização” enquanto tal na tradição revolucionária.
Representou antes a vitória de um aspecto da tecnologia (a máquina dinâ­
mica, padronizada e independente do seu meio) sobre outro (a estrutura
relativamente estática, singular e dependente do seu meio).5
O poder era agora termodinâmico, não carismático: quente, bruto e
móvel, em vez de frio, elegante e estático. A crença romântica no poder
do indivíduo heróico irá desaparecer após a morte do último Napoleão.
Crescente e incansavelmente, o fim do século xix identificou o poder com
os elementos essenciais do próprio motor térmico: organização mecânica e
violência. A própria máquina era um modelo de violência organizada; e os
revolucionários estavam aprendendo as lições dela quando se voltaram para
os problemas da organização e para as possibilidades da violência como fator
de mobilização das massas.
As fronteiras da descoberta para a tradição revolucionária na era da
máquina estavam no centro e leste europeu. Os velhos centros de gravidade
— França, Itália, Polônia — decaíram em importância, enquanto o novo
tipo de organização aparecia na Alemanha e novos empregos da violência
se desenvolviam na Rússia.
***
Voltamos mais uma vez ao fogo; foram os altos-fornos e as máquinas movi­
das a chamas no Ruhr, no Sarre e na Silésia que, durante a segunda metade
do século xix, transformaram um povo alemão provinciano e semi-rural na
nação mais industrializada e urbanizada da Europa. O maquinàrio movido
a fogo que esteve por trás da rápida industrialização da Alemanha foi, na
verdade, produto de uma “segunda revolução industrial”. Enquanto a Pri­

5 V. D. Billington, “Structures and Machines: The Two Sides of Technology”, em Soundings, 1974,
outono, pp. 275-288.
610 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

meira Revolução Industrial de um século antes na Inglaterra havia surgido


por meio de tentativa e erro do operário-artesão, a nova realização alemã
surgiu antes do laboratório do cientista-engenheiro.6 A habilidade do novo
Estado alemão de aplicar de modo sistemático as descobertas da pesquisa
científica à produção fabril lhe permitiu ultrapassar a França e se tornar a
maior potência da Europa continental de um modo ainda mais decisivo do
que a vitória militar de 1870-1871.
A social-democracia representou uma tentativa sistemática dos alemães
de converter a efêmera conflagração revolucionária de 1848-1850 no fogo
mais disciplinado, de combustão lenta, da máquina política moderna. O par­
tido da Social-democracia Alemã buscou organizar os trabalhadores dentro
da sociedade de maneira tão racional quanto os novos engenheiros tinham
organizado as máquinas dentro da fábrica.
A Alemanha também suplantou a França como foco das esperanças re­
volucionárias; e a ironia aguda dessa mudança dramática pode ser ilustrada
por meio da história de uma família francesa: os Carnot. A Alemanha do fim
do século XVIII e início do xix não havia produzido nada que se equiparasse
ao gênio tecnológico dessa bem dotada família de cientistas-engenheiros; no
entanto, uma recém-unificada Alemanha no fim do século xix teve muito
mais sucesso do que a recém-polarizada França em aplicar as idéias deles à
sociedade.
Lazare Carnot fora o principal engenheiro militar e “organizador da vitória”
da primeira Revolução Francesa contra a intervenção contra-revolucionária
dos príncipes alemães de 1793-1794. O seu filho Sadi, meditando, com tris­
teza, sobre a posterior vitória inglesa sobre Napoleão e o exílio de seu pai
na Alemanha, concluiu que o motor a vapor tinha sido a fonte do triunfo
da Inglaterra. Ele então se aprofundou nos segredos dela e chegou à teoria
da termodinâmica que tornou possíveis máquinas de alta pressão movidas a
fogo. Suas Reflexões sobre o poder motriz do fogo, escritas em 1824 quando
ele tinha 28 anos, foi chamado de “a obra de gênio de maior originalidade
de toda a história das ciências físicas e da tecnologia”;7 mas esse seria o seu
único livro, pois ele morreria de cólera em 1832.

6 Binkley, Realism, p. 9 ss.


7 D. Cardwell, Turning points in Western technology, NY, 1972, p. 129. A obra original, Réflexions
sur la puissance motrice du feu et sur les machines propres à développer cetter puissance, 1824, é
bastante discutida por Cardwell.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 611

Foram os alemães que desenvolveram com maior sucesso tanto o conceito


de Lazare Carnot de máquina militar como a teoria de Sadi do motor térmi­
co. Aquele primeiro veio com as vitórias do exército prussiano na guerra de
1870-1871. A segunda veio nos quinze anos seguintes, à medida que N. A.
Otto desenvolvia o motor de quatro tempos; que Rudolph Diesel começava
a trabalhar no motor que leva o seu nome; e que Gottlieb Daimler e Karl
Benz, trabalhando de maneira separada, desenvolveram o primeiro motor
de automóvel.
Quando as Reflexões de Sadi Carnot foram reimpressas em 1878 pelo seu
irmão Hippolyte, a Alemanha havia ultrapassado a Inglaterra e a França como
a mais dinâmica potência industrial da Europa. Quando o filho de Hippolyte,
outro Sadi Carnot, tornou-se presidente da França em 1886, pareceu que sua
experiência com engenharia e sua estatura pessoal poderíam reaver para a
Terceira República uma posição de liderança industrial e política na Europa.
Ele repeliu o desafio neo-napoleônico que a direita lhe fez por meio do Ge­
neral Boulanger, mas a esquerda o tornou sua vítima quando um anarquista
italiano o assassinou, em 1894, em um banquete em Lyon.
A social-democracia alemã proporcionava uma forma de disciplina social
precisamente contra esse tipo de violência aleatória. Ela nasceu da introdução
em larga escala da tecnologia dos Carnot na cultura política muito diferente
da Alemanha imperial. O partido da Social-democracia Alemã se tornou o
primeiro corpo político organizado da época moderna a ganhar uma verdadeira
adesão em massa das classes trabalhadoras. Mas o partido tinha uma imagem
histórica turva. Os historiadores marxistas-leninistas não podem escapar à
necessidade de dar algum reconhecimento à primeira organização de massa
a adotar o marxismo como doutrina, o maior partido político da Alemanha
imperial e o principal veículo de mediação dos ensinamentos marxistas perante
o restante do mundo no período anterior à Primeira Guerra Mundial. Por
outro lado, esses historiadores acham necessário permanecer fiéis às duras
críticas que Lênin fez em sua última década de vida aos SociaLdemocratas
Alemães. Permanece coisa que causa perplexidade, mesmo para a esquerda
não-leninista, que os SociaLdemocratas Alemães não tenham conseguido (1)
tomar — ou pelo menos compartilhar — o poder na Alemanha imperial e
(2) prevenir — ou pelo menos resistir energicamente — a entrada alemã na
Primeira Guerra Mundial.
Os SociaLdemocratas Alemães ocuparam uma posição dentro da política
alemã que era tão ambígua quanto seu papel na história mundial. Não eram
612 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nem uma conspiração revolucionária nem um partido político operando por


meio de um sistema aceito. Eram, em vez disso, uma espécie de “oposição não
participante”8 dentro do mais poderoso Estado da Europa. Mais ainda do
que a Segunda Internacional, que eles com freqüência dominaram, mas por
cuja preservação pouco fizeram depois de 1914, os Social-democratas repre­
sentavam uma ponte entre as conspirações revolucionárias francocêntricas
da era européia e os movimentos de massa e a política global do século xx.
A social-democracia proporcionou um novo tipo de líder revolucionário.
Ele não chegava ao poder. Ele permanecia no deserto — mas como um orga­
nizador, não como um profeta. O partido alemão representou, na história dos
movimentos revolucionários, o ponto de transição entre os revolucionários
sem poder do século xix e o poder sem revolucionários do século xx.
O “Partido Comunista” de que Marx falava na década de 1840 tinha sido
mais um objeto de fé do que matéria de fato, e ele depois o enaltecería não
por qualquer coisa que tenha realizado, mas por sua essência espiritual de
primeiro “partido no grande sentido histórico”. Três características principais
um tal partido parecia ter: (1) unidade por meio de disciplina ideológica, (2)
dedicação total ao proletariado como classe e (3) liberdade perante quaisquer
perspectivas provincianas. Em parte alguma Marx e Engels encontraram
um partido como esse durante o recuo revolucionário da década de 1850,
e nunca viram mais do que uma materialização virtual sua na Associação
Internacional dos Trabalhadores durante sua breve história de 1864 a 1872.
A despeito dos esforços de Marx para controlá-lo e discipliná-lo, esse corpo
amorfo nunca se tornou um “partido” nesse ou em qualquer outro sentido.
Assim, o partido que se formou na Alemanha com o rótulo de
Social-democrata foi provavelmente a mais importante expressão política
do marxismo durante o período da vida de Marx — ainda que ele estivesse
bastante desligado da Internacional e ainda que não fosse disciplinado ideo­
logicamente o suficiente para ser um “partido” no “grande sentido histórico”
de Marx. O seu nome expressava o seu objetivo de uma revolução antes
social do que nacional — e sua identidade como algo mais que liberalismo
e algo menos que comunismo.
Os revolucionários tentaram repetidas vezes dar nova vitalidade a um
velho rótulo ao ligar adjetivos inovadores à palavra democracia. Os pri­
meiros e jovens comunistas do início dos anos 1840 se descreviam como
8 P. Netti, “The German Social Democratic Party 1890-1914 as a Political Model”, em Past and
Present, 1965, abr., p. 67.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 613

“verdadeiros” e “fraternais” democratas. Velhos stalinistas um século depois


tentaram renovar a manchada causa comunista se referindo à democracia “do
povo”,9 à democracia “de um novo tipo”10 ou à democracia “nacional”.11
A democracia “social” foi o novo rótulo de esperança para os castigados
revolucionários depois de 1848, de uma democracia mais sólida, o termo
político para designar o governo do povo, com um adjetivo que sugere
também justiça econômica.12 O termo foi invocado pela primeira vez por
um grupo organizado durante o rescaldo do levante de 1849 em Baden.13 A
social-democracia se tornou o rótulo principal para a nova disseminação do
ideal revolucionário social a leste do Reno no fim do século xix, ao poucos
foi ligado ao marxismo.

Origens lassalleanas
O extravagante fundador da Social-democracia Alemã, Ferdinand Lassalle,
parecia um tipo improvável na nova era da organização mecânica. Quando
jovem, ele havia sonhado com liderar o povo alemão na batalha; e, em vários
pontos de sua breve carreira adulta, assumiu a postura de um poeta ou filó­
sofo e o comportamento pessoal de um amante meditabundo e de um orador
demagogo. Sua aparência cortês e sua admiração por Garibaldi o tomaram
uma personalidade incompatível com Marx, que certa vez o chamou (para
embaraço dos hagiógrafos marxistas) de uma “união de judeu e alemão com
uma base de negro”.14

9 Sobre a pouco conhecida história do emprego desse termo pelo secretário de Lenin, Vladimir Bonch-
Bruevich, em 1903, bem como sobre empregos finlandeses, iugoslavos e outros posteriores no leste
europeu em meados da década de 1940 como uma alternativa ao modelo stalinista de “ditadura do
proletariado”, v. Billington, Icon, p. 774, nota 40.
10 Sobre a origem desse termo com Paimiro Togliatti em 1936 durante a Guerra Civil Espanhola e sua
adoção posterior por Mao durante a Era Yan’an e por outros como alternativa ao modelo soviético,
v. a tese de doutorado inédita de J. Urban, “Moscow and the Italian Communist Party: 1926-1945”,
Harvard, 1967; resumida no seu “Contemporary Soviet Perspectives on Revolution in the West”,
em Orbis, 1976, inverno, pp. 1372-1373.
11 W. Shinn, “The ‘National Democratic State*: A Communist Program for Less-Developed Areas ”, em
World Politics, 1963, abr., pp. 377-389. A expressão “Estado nacional-demoçrático” foi divulgada
publicamente na conferência internacional dos partidos comunistas em Moscou em novembro de
1960 (p. 376) e, ao que parece, originou-se na tese de doutorado da década de 1930 do africanista
soviético I. Potekhin (p. 384, nota 10).
12 Os muitos empregos desse período estão documentados em Müllei; “Die Wortfamilie Sozialdemokrat”,
em Ursprung, pp. 156-159. O emprego rival pelos proudhonistas se voltava para o termo “nova
democracia”, que apareceu no subtítulo do último livro de Proudhon, De la Capacité politique des
classes ouvrières.
13 Ursprung, p. 161.
1^ Werke, vol. xxx, p. 259; citado em McLellan, Marx, p. 322.
614 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Lassalle trabalhou com Marx no Neue Rheinische Zeitung em Colonia


entre 1848 e 1849, e desenvolveu idéias sobre organização revolucionária
diversas daquelas da Liga Comunista. O conceito que Lassalle tinha de
partido se originou não tanto das idéias do manifesto de Marx quanto das
práticas do seu jornal, isto é, do que o seu melhor biógrafo chama de partido
do “Neue Rheinische Zeitung”.15
Lassalle argumentava que o fracasso da Liga Comunista se devia ao fato
de que a haviam sustentado somente idéias muito gerais que eram “indiges­
tas aos que não fossem educados para elas” e impróprias para uso prático.
O mecanismo necessário para decisões táticas do dia-a-dia tinha lugar nas
discussões editoriais do Neue Rheinische Zeitung., onde Marx exercia sua
disciplina, por outro lado se beneficiando das críticas. O resultado não era
a ditadura individual inerente à estrutura da Liga Comunista, e sim uma
coletiva “ditadura do escrutínio” (diktatur der einsicht)16 por meio da qual
um pequeno grupo enfrentava a crítica mútua até chegar a uma compreensão
objetiva que se impunha por necessidade histórica.
Lassalle viu o fracasso do jornal de Marx em alcançar um público mais
amplo em 1848-1849 como em grande parte devido a uma deficiência orga­
nizacional. O grupo de Colônia simplesmente não tinha descoberto nenhuma
forma estrutural de estabelecer comunicação entre o alto comando comunista
e o exército proletário. Lassalle revelou seu remédio organizacional após o
fechamento do jornal e a fuga seguinte de Marx da Alemanha em maio de
1849.
Duas novas estruturas foram prescritas; e cada uma delas foi pensada para
ao mesmo tempo auxiliar na educação política das massas e alcançar conselho
e aprovação popular para a liderança. Primeiro veio a periódica “reunião de
massa” (Volksversammlung), na qual um programa preparado com denodo
era apresentado e uma ordem chancelada pela massa era produzida para
estabelecer uma linha estratégica geral a ser seguida por um longo período
de tempo. Depois veio a aglomeração permanente de organizações populares
menores (das quais o Clube do Povo, que Lassalle mantinha em Düsseldorf,
era uma espécie de modelo). Eles estabeleceram mandatos limitados para
ações específicas de natureza tática e local.17

15 Na’aman, p. 132.
16 Ibid., p. 132.
17 Ibid., pp. 133,154-155.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 615

Durante a década de 1850, as associações de trabalhadores foram proi­


bidas, e Lassalle empregou a maior parte de suas energias escrevendo sobre
assuntos legais, econômicos e literários. Mas ele continuou se correspondendo
com Marx e procurando posições jornalísticas para ele — vendo-o como
um líder ausente que compartilhava de sua crença de que a Renânia se tor­
naria afinal a base para revolucionar a Prússia. A agitação política ganhou
nova vida na Alemanha no fim da década, estimulada pela vitória italiana
sobre o conservador Império Habsburgo em 1859. A subseqüente unificação
italiana reavivou as manifestações políticas pela unificação alemã. Lassalle
foi logo imerso nos problemas práticos do despertar político prussiano, e
assim veio a se encontrar cada vez mais em conflito com as perspectivas
mais teóricas e globais de Marx em Londres. Eles discordavam, em primeiro
lugar, a respeito de quem era o maior inimigo do proletariado na guerra de
1859 — Engels apontava Napoleão m (que ajudara a Itália); e Lassalle, os
Habsburgo. Marx escreveu a Engels que a intransigência de Lassalle nessa
questão indicava que “nós devemos agora insistir inarredavelmente na dis­
ciplina partidária”.18 Mas eles nunca encontraram uma base comum para
diálogo, que dirá disciplina. Quando o novo rei prussiano declarou anistia
política no início de 1861, Lassalle propôs reviver o Neue Rheinische Zeitung
e trazer Marx de volta à Alemanha para assumir a liderança do “partido”.
Mas nem a visita de Marx a Berlim nem a viagem de volta de Lassalle a
Londres, em 1862, foram capazes de estabelecer um esquema de colabora­
ção. Tampouco Lassalle conseguiu que Marx aprovasse seu programa em
defesa do sufrágio universal e do auxílio estatal a cooperativas de produto­
res durante a campanha eleitoral nacional de maio de 1862. Marx criticou
Lassalle por sua falta de perspectiva internacional e sua ingenuidade sobre
sufrágio universal, que Napoleão m havia manipulado para sancionar uma
ditadura. Mas Lassalle continuou pressionando, de modo que fez reunir 14
representantes em Leipzig, em maio de 1863, para formar a Associação de
Todos os Trabalhadores da Alemanha, “a primeira organização trabalhista
nacional e independente” da história alemã.19

18 Werke, vol. xxix, p. 432.


19 G. Roth, The social democrats in Imperial Germany, Totowa, 1963, p. 42. V. também R. Reichard,
Crippled from birth, German Social Democracy, 1844—1870, Ames, Iowa, 1969; e E. Anderson, The
social and political conflict in Prussia: 1858-1864, Lincoln, 1954.
A atividade organizacional de Lassalle nesse período é abordada na coleção de documentos de S.
Na’aman, Die Konstituierung der deutschen Arbeiterbewegung 1862/63, Assen, 1975; e B. Andréas,
“Zur Agitation und Propaganda des Allgemeinen Deutschen Arbeitervereins 1863-1864”, em Archiv
für Sozialgeschichte, 1963, vol. in, pp. 297—332.
616 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Lassalle se voltou para o proletariado não por afeição, mas pela convic­
ção de que a classe média alemã era incapaz de lutar pelo governo popular.
Os liberais alemães formaram um novo partido Progressista em 1861, mas
Lassalle os via como paralisados pelo “medo do povo”:

Nossa burguesia liberal não consegue esmagar o Estado militar, não consegue
conquistar a liberdade política.20

O sufrágio universal e as eleições diretas eram pré-requisitos da demo­


cracia, que os liberais não mais acalentavam em seus corações. As coopera­
tivas de produtores eram necessárias para erguer os trabalhadores acima da
subsistência e lhes dar um gosto da “social-democracia” que estava por vir.
Argumentando que “a classe trabalhadora deve se constituir como partido
político independente”,21 Lassalle aumentou o tamanho de sua organização
de cerca de 400 membros para aproximados 1.000 membros no início de
1864.22 Lassalle rejeitou o conselho de Marx de fazer causa comum com os
liberais, que eram numericamente mais fortes, e deu à classe trabalhadora
alemã uma orientação rumo à separação autoconsciente do resto da sociedade,
a qual permaneceu basicamente inalterada. Os intelectuais que solicitavam
se tornar membros de uma sucursal da nova organização de Lassalle tinham
de ser aceitos pela central partidária. O adjetivo geschlossene^ que muitos
lassalleanos aplicavam à classe trabalhadora, significava tanto “fechada”
quanto “unida”.23
O Partido Social-democrata surgiu desses rudimentos, reunindo, em espe­
cial, os quadros protestantes da classe trabalhadora. No processo de atingir
“auto-isolamento” e “integração negativa”24 no Estado imperial alemão, os
social-democratas até certo ponto internalizaram inconscientemente não
apenas a disciplina militar do Estado a que se opunham, mas também sua
crescente mentalidade burocrática. A versão alemã do fenômeno recorrente
de empréstimos mútuos entre os extremos da direita e da esquerda começou
no início dos anos 1860, que foram os anos formativos tanto do Estado
reacionário alemão como do novo movimento da classe trabalhadora.
Pois, não importava se a Social-democracia Alemã era ou não “aleijada
20 Citado em Roth, p. 43.
21 Ibid., p. 45.
22 Ibid., p. 46.
23 Ibid., p. 48, nota 3.
LIVRO III, CAPÍTULO 1 3: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 617

de nascença”, fato é que ela era desde o berço assombrada pela presença de
Otto von Bismarck. Seu longo domínio sobre a vida política alemã se iniciou
quando ele foi convocado a se tornar ministro-presidente da Prússia durante
a crise constitucional de setembro de 1862. Ao ver o movimento da classe
trabalhadora como um aliado tático em sua luta contra os liberais, Bismarck
procurou Lassalle para discutir a proposta deste último de sufrágio universal
como um possível meio de fortalecimento da monarquia. Bismarck também
encarregou um jornalista conservador de examinar a questão dos benefícios
para trabalhadores levantada pelo programa de Lassalle — seguridade social
para idosos e regulamentação estatal das condições fabris — e elaborar uma
proposta de legislação social para os trabalhadores (a qual foi vetada pelos
liberais).25
De sua parte, Lassalle viu oportunidades para a classe trabalhadora alemã
na luta de Bismarck com as classes abastadas liberais. A classe trabalhadora
poderia se valer de maneira tática do poder do Estado de Bismarck para
desarmar os liberais e estabelecer cooperativas de produção. Estas últimas
forneceríam uma base econômica (e o sufrágio universal fornecería o ve­
ículo político) para uma eventual tomada do Estado central pelo partido
organizado da classe trabalhadora. Marx, que nesse momento objetou ao
conceito de Lassalle de cooperação interina com o Estado prussiano, foi ele
próprio mais tarde acusado de “Bismarxismo”.26 Assim, a história inicial
da Social-democracia Alemã se liga de perto aos esforços do Chanceler de
Ferro para alternadamente manipular, cooptar ou suprimir sua crescente
oposição na esquerda.
Lassalle não viveu o suficiente para ver o processo dar seus frutos. Mor­
reu num duelo em razão da honra de uma mulher aristocrata em agosto de
1864, apenas algumas semanas antes da fundação da Primeira Internacional.
Morreu como uma figura romântica de uma era já desaparecida — mas, sob
alguns aspectos, havia falado como o profeta de um futuro distante. Seus
discursos demagógicos para as massas (“o poder extremamente destrutivo
do discurso humano”)27 e sua admiração por Bismarck (“um homem” muito
distinto das “velhas damas” que eram os políticos liberais)28 prefiguraram,
de algum modo, o fascínio posterior dos alemães pela voz radiofônica e pela

25 K. Kupisch, “Bismarck und Lassalle”, em Vom Pietismus zum Kommunismus^ 1953, esp. pp. 132-133,
26 R. Hilferding, citado em Roth, p. 169.
27 Uma declaração da infância de Lassalle, citado em Reichard, p. 149.
23 Citado em ibid., p. 157.
618 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

masculinidade agressiva do Nacional-socialismo.


Esforços de organização segundo a tradição lassalleana foram feitos em tor­
no de jornais: primeiro o Nordstern de Hamburgo, depois o Sozial-Demokrat
de Berlim, fundado em dezembro de 1864. Seu editor, Johann Baptist von
Schweitzer, sucedeu a Lassalle como líder da Associação de Todos os Traba­
lhadores Alemães e logo descreveu seu novo jornal como “Órgão do Partido
da Social-democracia”.29 Schweitzer popularizou o argumento que Lassalle
sustentou com Marx por meio de um romance seriado, o qual mostrava os
liberais enganando os trabalhadores ao incitá-los a derrubar governos feudais
e em seguida tomando o poder e explorando a classe operária com ainda
maior brutalidade.30 Marx reagiu a Schweitzer com mais raiva ainda do
que a Lassalle, rompendo relações com ele em 1865, por três anos. Aplicou
à organização proletária social-democrata o rótulo degradante de seita, ao
mesmo tempo que chamava o não-revolucionário e burguês Volkspartei de
partido, uma vez que este apoiava o pedido de Marx de que se resistisse ao
controle prussiano da Alemanha unificada.31
Mas os liberais de classe média, que Marx a princípio vira como aliados,
foram imobilizados pela vitória espetacular de Bismarck sobre os Habsburgo
em 1866. Em busca de novas esperanças, Marx voltou sua atenção para um
segundo partido da classe trabalhadora, menos ligado à Prússia de Bismarck
do que à organização de Lassalle-Schweitzer: um amálgama de trabalhadores
e intelectuais que compôs em 1869, em Eisenach, o partido dos Trabalhadores
Social-democratas.
Os líderes de Eisenach (os “eisenachers”), Wilhelm Liebknecht e Johann
Philipp Becker, eram os melhores amigos de Marx na Alemanha, e tal como
ele eram intelectuais cosmopolitas e multilíngües forçados ao exílio depois
do fracasso da revolução de 1848-1850. Ambos foram militantes muito mais
ativos do que Marx, tendo lutado no levante armado de 1849 em Baden.
Becker permaneceu na Alemanha por toda a década de 1860 e se tornou a
força dirigente por trás do Vorbote, jornal oficial da Primeira Internacional
que começou a sair em janeiro de 1866.32 Liebknecht, o alemão que Marx

29 Koszyk, pp. 185, 189-190.


30 Lucinde oder Kapital und Arbeit, ein sozialpolitisches Zeitgemälde aus der Gegenwart, que começou
a ser publicado de maneira seriada em julho de 1863, é discutido em Kupisch, p. 135.
31 Werke, vol. xxxii, pp. 620-621.
32 Koszyk, p. 191; v. também R. Morgan, The German Social Democrats and the First International
1864-1872, Cambridge, Massachusetts, 1965.
LIVRO ni, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 619

mais apadrinhou em Londres nos anos 1850, tornou-se o seu mais eficiente
apoiador na Alemanha após seu retorno para lá em 1862. Ele colaborou de
perto com o carpinteiro e orador August Bebel. Ambos foram eleitos para a
Confederação da Alemanha do Norte de 1867, reafirmando a necessidade
de aliança tática com o que sobrou da oposição liberal a Bismarck.
Liebknecht e Bebel ganharam uma aura de heroísmo ao resistirem à
Guerra Franco-Prussiana, fazendo de plataformas de propaganda primeiro
seus assentos no Reichstag e depois suas posições de réus no julgamento de
Leipzig de 1872. Somente os eisenachers estavam ligados formalmente à
Primeira Internacional; e eles desenvolveram vários procedimentos que se
tornaram padrão em organizações revolucionárias de massa: um ritual de
expulsão formal e (depois do seu congresso de 1873) a insistência de que
membros do partido não poderiam ao mesmo tempo ocupar posições em
outra organização política.33
Assim, a despeito de sua inferioridade numérica em relação aos lassalleanos,
os eisenachers trouxeram uma força desproporcional à fusão dos dois grupos
organizada em Gotha em 1875. A aparente vitória dos lassalleanos naquele
momento, sinalizada pela aceitação do programa de unificação do Estado
prussiano como a moldura para o desenvolvimento socialista e das cooperati­
vas de produção como meio de distribuição de riqueza entre os trabalhadores,
levou Marx a fazer uma dura denúncia. Ele escreveu o seu último grande
tratado sobre a relação entre comunismo e revolução: a Crítica do Programa
de Gotha. Reprovou o “socialismo vulgar” envolvido na busca de qualquer
justiça distributiva que se baseie em qualquer mecanismo estatal existente. Pela
segunda (e última) vez em seus escritos, teorizou sobre a necessidade de uma
“ditadura do proletariado”. O Estado burguês existente, lembrou aos seus
leitores alemães, deveria ser inteiramente destruído, e os meios de produção
tomados pelo proletariado. Somente após esse acontecimento — quando uma
nova forma provisória de ditadura de classe se terá estabelecido — se podería
alcançar a justiça social, e o poder político opressor começaria a “definhar”.
A ditadura passaria por não ter quaisquer raízes na opressão de classe.
Como expressão da classe universal que se apropria dos meios de produ­
ção, a ditadura do proletariado seria efêmera: uma fase de transição para a
sociedade comunista (à qual teóricos marxistas posteriores chamariam de
“socialismo”). Marx adiava toda esperança de justiça distributiva para essa
33 Roth, pp.49-55; v. também a história semi-oficial de W. Schröder; Geschichte der sozialdemokratischen
Parteiorganisationen in Deutschland^ Dresden, 1912, p. 18 ss.
620 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

segunda “alta etapa” da sociedade comunista vindoura. Só então a sociedade


seria governada pela lei: “De cada um de acordo com suas habilidades, para
cada um de acordo com suas necessidades”.34
De longe como estava, Marx não era capaz de oferecer liderança à Social-
-democracia Alemã. Mas o marxismo, como ideologia, de fato teve impacto
decisivo depois que o Anti-Dühring de Engels começou a ser publicado em
1877-1878 no Vorwärts, o jornal oficial do novo partido unificado. Assim
como outros textos marxistas, essa afirmação doutrinai tomou a forma de
um ataque atroz a um rival. Eugen Dühring era um prolífico e iconoclasta
professor da Universidade de Berlim, o qual, em essência, argumentava que
a preocupação de Marx com leis econômicas estava embotando a saudável
paixão por política na Alemanha. Ao contra-atacar com alegria esse ídolo da
Berlim radical, Engels escreveu a primeira exposição popular do marxismo
como uma doutrina revolucionária coerente; essa exposição permaneceu a
obra de Marx e Engels com maior número de reimpressões, atrás apenas
do Manifesto Comunista.35 A obra de Engels foi de início denunciada, em
parte em razão de simpatia política por Dühring, que tinha sido demitido da
universidade. Mas ela impressionou profundamente os novos e emergentes
líderes da Social-democracia: os jovens Karl Kautsky e Eduard Bernstein,
bem como Liebknecht e Bebel. A crescente aceitação popular do tratado de
Engels foi um grande marco no caminho rumo à adoção formal do marxismo
como ideologia oficial do Partido Social-democrata da Alemanha.
A postura polêmica de Anti-Dühring transformou a imagem de Marx
na Alemanha — mesmo para aqueles que não conseguiam compreender
suas idéias. Pela primeira vez, Marx parecia com clareza estar defendendo
a classe trabalhadora e seus interesses econômicos contra as abstrações de
um professor. Engels ajudou a libertar Marx da acusação de excessivo inte-
lectualismo ao fazer a mesma acusação contra Dühring. Os partidários de
Marx não demoraram a ampliar o ataque ao “socialismo dos professores”
(KathederSozialismus [socialismo de cátedra]) em geral. Marx se apossou
da posição do rival, contudo, mesmo ao denunciá-lo. Assumiu a posição de
pedagogo-em-chefe do movimento revolucionário, transferindo do ensino
político proferido na Universidade de Berlim para a ciência econômica derivada
34 R. Tucker afirma que essa foi a única vez que Marx empregou a expressão e que a Crítica do Programa
de Gotha mostra que sua concepção de comunismo não se baseava em primeiro lugar num ideal de
justiça distributiva (The marxian revolutionary idea, pp. 46—50).
35 A versão mais popular da obra consiste de seus excertos principais sob o título Socialism: Utopian
and Scientific, publicado pela primeira vez em francês em 1880.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 621

do Museu Britânico a instância de autoridade quase eclesiástica perante as


classes trabalhadoras. O seu em larga medida não lido O Capital se tornou
uma fonte de autoridade maior do que as obras completas de Dühring. A
descoberta do marxismo ocorreu às vésperas do período de doze anos de
restrições anti-socialistas iniciadas em 1878. A garantia marxista de que a
revolução será no fim das contas determinada por leis econômicas e não
por ativistas políticos fortaleceu os social-democratas perante o desestimulo
que, de outro modo, poderia ter se abatido sobre o movimento, que agora
se via de repente proibido de fazer qualquer reunião ou de prosseguir com
qualquer publicação fora do Reichstag.
Os social-democratas haviam ampliado com firmeza sua força no Reichstag,
com passar de dois assentos nas eleições de 1871 a nove nas de 1874 e a
12 nas de 1877. Um alarmado Bismarck tomou por pretextos duas tenta­
tivas pífias de assassinato do imperador para aprovar, em 1878, restrições
anti-socialistas que permaneceram atuantes até o chanceler deixar o cargo
em 1890. Durante esse período, Bismarck reviveu seu interesse inicial por
legislação social para os trabalhadores — assim fornecendo seguro e bene­
fícios de aposentadoria como parte de um esforço para minar a ascendência
da Social-democracia sobre o proletariado. A reorganizada polícia política
alemã de Berlim recebeu, durante o período das restrições, cerca de 18 mil
relatórios de agentes incumbidos de acompanhar a agitação revolucionária
da qual os social-democratas eram supostamente os líderes.36
Essa perseguição, ainda que limitada, ajudou a expurgar do partido quais­
quer ilusões lassalleanas de avançar por meio do Estado. Sob a liderança de
Bebel, prosseguiu o trabalho organizacional junto ao proletariado. As primei­
ras tentativas de utilizar jornais intelectuais como base para a organização
foram substituídas por uma rede crescente de entidades sociais e fraternais de
trabalhadores, a qual chegava a emparelhar com a rede que as igrejas tinham
tradicionalmente propiciado. Organizações de mulheres, de jovens e de esportes
surgiram sob os auspícios social-democratas — e serviram como meio tanto de
recrutamento para o partido como de disseminação externa de sua propaganda.
No Congresso de Copenhagen, em 1883, os social-democratas professa­
ram não cultivar “nenhuma ilusão” de progredir por meio de parlamentos.
Ao escrever a Bebel no ano seguinte, Engels saudou “o partido” como uma

36 V. o estudo de D. Fricke baseado nos arquivos da Alemanha Oriental, “Politseiskie presledovaniia


sotsial-demokratov v Germanii v kontse xix veka”, em Novata i Noveishaia Istorila, 1959, n° 4,
esp. p. 95.
622 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

espécie de exército: como o “estado-maior” e a primeira organização mar­


xista de massa com uma base nacional.37 O partido continuou a crescer: de
300 mil votos que garantiram 12 assentos no Reichstag, em 1881, passando
a 24 assentos em 1884 e a 35 em 1890, quando o partido somou quase 1,5
milhão de votos — cerca de um quinto do total.38 No ano seguinte, em Erfurt,
durante o primeiro congresso realizado depois da queda de Bismarck e do
levantamento das leis anti-socialistas, o partido se declarou formalmente
marxista com as bênçãos de um idoso Engels e de seu jovem apadrinhado
em Londres, Karl Kautsky.

Ortodoxia kautskiana
Visto em retrospecto, é difícil compreender como Karl Kautsky conseguiu
exercer a autoridade notável que estabeleceu no Congresso de Erfurt e man­
teve por um quarto de século. Ele nunca ocupou posição formal fosse no
partido, fosse no parlamento, e sua prosa empolada era incompreensível para
muitos trabalhadores simples. Sua tendência de buscar orientação em Marx
para praticamente qualquer coisa era tão obtusa, que um colega seu disse:
“Kautsky sempre se sentiria obrigado a demonstrar que Marx até urinou
nas fraldas de maneira ortodoxa”.39
Seu longo aprendizado com Engels em Londres e sua função de curador
literário dos papéis de Marx e Engels sugeriram que ele fosse uma espécie de
sucessor apostólico dos fundadores. O seu novo jornal, Die Neue Zeit^ de 1883,
foi fundado em Suttgart sob as bênçãos de Liebknecht e Bebel. Ele combinava
o velho conceito de orientação revolucionária a partir de um jornal central com
a nova função de definir as posições marxistas frente a questões filosóficas,
culturais e políticas. Kautsky trazia para sua função uma base verdadeiramente
internacional: pai tcheco e mãe alemã, ambos com ancestrais italianos e eslavos,
uma educação vienense, longa residência na Inglaterra. Ele solidificou o seu
partido com a garantia marxista de que a revolução proletária era inevitável

37 M. Johnstone, “Marx and Engels and the Concept of the Party”, em The Socialist Register, 1967, pp.
121-122. O autor distingue quatro outros tipos de organização partidária reconhecidos por Marx
como implementações legítimas de suas idéias: o pequeno corpo revolucionário internacional da
década de 1840; partidos que representavam de modo autêntico o trabalhismo, mas aos quais faltava
organização nas décadas de 1850 e 1860; a federação universal de organizações dos trabalhadores
(a Primeira Internacional); e os amplos partidos trabalhistas nacionais segundo o modelo cartista
não-revolucionário que surgiram na Inglaterra e nos Estados Unidos por volta dos anos 1880.
38 C. Schorske, German Social Democracy, 1905-1917, Cambridge, Massachusetts, 1955, p. 3.
39 O pintor Friedrich Zundel, marido de Clara Zetkin, citado por Rosa Luxemburgo numa carta de
25 de janeiro de 1902, em Lettres à Léon Jogichès, 1971, vol. ii, p. 80.
LIVRO ni, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEM OCRACIA ALEMÃ 623

e não podia ser “nem apressada nem atrasada”.40 Os Social-democratas eram


“um partido revolucionário, mas não um partido que faz revolução”.41 Em uma
carta ao biógrafo de Marx datada de 1893, Kautsky sugeriu que a “ditadura
do proletariado” de Marx poderia ser realizada por meio de um parlamento
de tipo inglês com uma maioria social-democrata.42
Ele foi o pioneiro da tradição de definir a linha partidária marxista como
um centro entre os desvios de direita e de esquerda.43 Sua influência se
ampliou internacionalmente, na medida em que o partido alemão inspirou
imitadores por toda parte e cada vez mais dominou a Segunda Internacional
durante a década seguinte à sua fundação, em 1889.
O papel pedagógico de Kautsky foi imitado pelos pais fundadores dos
movimentos social-democratas que logo surgiram em dois impérios multi­
nacionais conservadores do leste europeu: por Victor Adler, na Áustria dos
Habsburgo, e por George Plekhanov, na Rússia dos Romanov.44
Assim como Kautsky, Adler tinha tchecos entre os seus antepassados,
uma educação vienense e uma relação pessoal próxima com Engels. Médico
e intelectual urbano, ele liderou o partido austríaco depois de sua funda­
ção não-ideológica em 1874 até a época em que, em 1889, conseguiu que
Kautsky esboçasse um programa puramente marxista que o comprometesse
com a tomada de poder político. O partido austríaco influenciou, por sua
vez, movimentos da classe trabalhadora de outras destacadas nacionalidades
do Império Habsburgo: em especial os húngaros e os tchecos. A tendência
dos grupos social-democratas de se relacionarem com o partido austríaco
40 “Nossa tarefa não é organizar a revolução, mas nos organizar para a revolução” (carta de 11 de
julho de 1900, citada em ibid., pp. 52-53). De acordo com G. Badia (Rosa Luxemburg. Journaliste,
polémiste, révolutionnaire, 1975, p. 147), essa formulação apareceu pela primeira vez em 1881.
A maneira como o kautskismo se tornou uma forma de disciplina e de autodefinição dentro do
socialismo alemão é discutida, se bem que não sem alguma projeção retrospectiva de práticas
soviéticas posteriores, em E. Matthias, “Kautsky und der Kautskyanismus, Die Funktion der Ideologie
in der deutschen Sozialdemokratie vor dem ersten Weltkrieg”, em I. Tetscher (ed.), Marxismusstudien,
Tübingen, 1957, vol. ii, pp. 151-197. A abordagem mais completa da carreira de Kautsky é atualmente
a de M. Waidenberg, Wzlot i upadek Karola Kautsky*ego, Cracóvia, 1972,2 voi.; o tratamento mais
incisivo é o de Kolakowski, Currents, vol. m, pp. 31-57.
41 “Ein sozialdemokratischer Katechismus”, em Die Neue Zeit, 1893/1894, vol. xii, pp. i, 368.
42 Carta a Franz Mehring de 8 de julho de 1893, discutida em Roth, p. 189.
43 Ele identificou de modo implícito essa doutrina com o próprio Marx no seu “Zwischen Baden und
Luxemburg” (Die Neue Zeit, 1909/1910, vol. ii, p. 667), em que a localização da terra natal de
Marx, Trier, entre essas duas cidades, à esquerda e à direita, era vista como “um símbolo do campo
da social-democracia alemã”. V. também Netti, Luxemburg, vol. I, pp. 429-435; Schorske, pp.
186-187.
44 V. S. Baron, Plekhanov, the father of russian marxism, Stanford, 1963; e J. Braunthal, Victor und
Friedrich Adler. Zwei generationen arbeiterbewegung, Viena, 1965.
624 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de maneira federativa, em vez de subordinativa, levou a que se fizesse pela


primeira vez uso, em 1895, do termo “nacional-socialismo”.45
Plekhanov publicou em Genebra, em 1882, a primeira tradução russa do
Manifesto Comunista. No ano seguinte, formou o primeiro grupo marxista
russo, o “Libertação do Trabalho”, e publicou Socialismo e a Luta Política,
o primeiro dos tratados ideológicos que o tornaram um rival de Kautsky
como principal teórico do marxismo internacional. O desenvolvimento da
social-democracia dentro da Rússia viria só mais tarde; mas, na década que
vai de 1885 a 1894, foram fundados partidos social-democratas segundo o
modelo alemão na Bélgica, Hungria, Bulgária, Polônia, Romênia e Holanda.
Em meados desse período, a Segunda Internacional foi fundada em Paris
no centenário da tomada da Bastilha. Adler e Plekhanov eram os principais
oradores; os parentes ainda vivos de Marx estavam presentes; e a delegação
social-democrata alemã de 81 pessoas era a segunda maior entre os quase
400 representantes de 20 delegações nacionais.
Só aos poucos a Segunda Internacional veio a ser dominada pelos social-
-democratas, e ela nunca se tornou de todo o que Liebknecht havia defendido
no primeiro congresso: “uma organização unida e única”.46 A Internacio­
nal foi fundada na França por ocasião de uma efeméride francesa tendo
clara maioria da delegação francesa (221 pessoas). Só no quarto congresso
(Londres, 1896) é que foram rejeitados de vez os anarquistas, sindicalistas e
outros anticentralizadores por meio da criação de uma organização central
e da exigência de que os membros aceitassem a necessidade de ação política
(segundo, implicitamente, o modelo do Partido Social-democrata Alemão).
No encontro seguinte (Paris, 1900), o modelo organizacional alemão foi
adotado em ainda maior extensão com o estabelecimento de um secretariado
permanente e remunerado: o Escritório Socialista Internacional, em Bruxe­
las. Esse corpo central não tinha a forte liderança pessoal que Marx havia
proporcionado ao Conselho Geral da Primeira Internacional, e os 50 a 70
membros do conselho do escritório se reuniam apenas quatro vezes por ano;
mas a pretensão de autoridade para-governamental era inegável. O comitê
executivo preparava e executava ordens para os congressos, os quais foram
a partir de então chamados Congressos Socialistas Internacionais; seu pro­
pósito declarado era o de “se tornar o Parlamento do Proletariado”, cujas
resoluções iriam “guiar o proletariado na luta por libertação”.47
45 De acordo com L. Derfler, Socialism since Marx, NY, 1973, p. 90.
46 Braunthal, pp. 243-245.
47 Citado do preâmbulo da resolução que criava o escritório, em L. Lorwin, Labor and Internationalism,
NY, 1929, p. 85.
LIVRO TH, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 625

A liderança de fato da Segunda Internacional foi exercida mais pelo Par­


tido Social-democrata Alemão do que pelo conselho do escritório ou pelo
secretariado de Bruxelas. As convenções do partido produziram em geral uma
posição alemã única antes dos congressos da Internacional. O Congresso de
Paris de 1900 e o de Amsterdã de 1904 foram precedidos cada um por um
congresso do partido alemão (em Hanôver, em 1899, e em Dresden, em 1903).
O Congresso da Internacional em Amsterdã em agosto de 1904 represen­
tou “o mais alto ponto da influência da Internacional”48 e talvez também o
mais alto ponto de seu controle pelos alemães. As formulações de Kautsky
em defesa de um novo comprometimento com a luta de classes e com o
uso revolucionário do poder parlamentar foram impostas ao congresso por
meio de uma delegação alemã disciplinada, a qual se apoiava no prestígio
do sucesso eleitoral de alcançar 81 assentos no parlamento e 3 milhões de
votos em 1903. O congresso seguinte, de 1907, foi o primeiro a ser realiza­
do na Alemanha; os social-democratas alemães tinham o maior grupo (289
membros) na maior delegação geral (886) a já comparecer a um congresso da
Internacional. A pompa cultural alemã dominou os trabalhos desde o canto
de abertura, um hino luterano no qual a palavra para designar o partido
substituía o nome de Deus: Ein feste Burg ist unser Bund [Um castelo forte
é o nosso partido].49
O partido alemão tinha expandido bastante sua organização depois de
1903, formando células em pequenas cidades e no campo, grupos de crianças
e de jovens, eventos culturais para trabalhadores-poetas e, por fim, em 1906,
uma escola central do partido. Houve ainda uma intensificação constante
da atividade jornalística, à medida que o número de jornais conservadores
e liberais declinava em comparação com o de jornais social-democratas.50
Em essência, os alemães tinham prevalecido sobre os franceses, Marx sobre
Proudhon, o socialismo objetivo e científico sobre o socialismo subjetivo e
utópico. Fora essa a batalha que Liebknecht e Bebel lutaram contra as idéias
proudhonistas dentro da Alemanha na década de 1870; e que Jules Guesde,
ao mesmo tempo, lutara com menos sucesso na França. Guesde estabeleceu
em 1877 o primeiro semanário marxista, Égalité, e definiu em 1879-1880
o primeiro programa marxista para a França. O mesmo conflito básico se

48 Joli, p. 105.
49 Joll,p. 133;Roth,p. 91.
50 A. Hall, “The War of Words: Anti-socialist Offensives and Counter-propaganda in Wilhelmine
Germany 1890-1914”, em Journal of Contemporary History, 13 de julho de 1976.
626 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

difundiu na Rússia, a começar com o chamado de Plekhanov em 1883 a que


se substituísse a tradição proudhonista anti-politica do populismo russo por
um programa social-democrata.51
A bênção final de Engels ao modelo alemão veio com sua última grande
obra: um novo prefácio, em 1895, ao livro de Marx Lutas de Classes na França,
Engels modificou, se é que não “revisou”, o tom semi-blanquista do clássico
de Marx, sugerindo eleições ao invés de insurreições como o caminho para
o poder. Vitórias contínuas nas eleições gerais deram aos social-democratas
alemães “uma posição especial [...] uma tarefa especial” como “‘tropa de
choque’ decisiva do exército proletário internacional”.52
Kautsky se tornou o guarda e perpetuador do otimismo evolucionista e
determinista que Engels estabelecera como estilo de interpretação do legado
de Marx.53 O modelo alemão de social-democracia parecia estar a caminho
de se realizar no período prévio à Primeira Guerra Mundial. As atividades
da organização se desenvolveram a grande velocidade, como uma subcul­
tura, a qual incluía lojas de cooperativas, clubes de xadrez e até sociedades
funerárias. O número de panfletos distribuídos pelo partido aumentou no
espaço de um ano (1911-1912) de 33,5 milhões para 114 milhões54 depois
das eleições de 1912, e a liderança de fato passou para o grupo parlamentar
composto em sua maior parte por verdadeiros trabalhadores.
A classe trabalhadora alemã era mais numerosa, melhor educada e su­
perior em posição profissional à da França ou da Rússia. Isso criava não só
uma máquina política eficiente, mas também a imagem atraente de “uma
contra-sociedade global pronta para substituir a sociedade estabelecida”.
Manteve a esperança viva em dois níveis, com sua “dupla ambição de ser
algo imediato e de ser tudo quando a hora chegar”.55
51 “É preciso combater o populismo em toda parte — seja ele alemão, francês, inglês ou russo”, escreveu
Engels a Vera Zasulich em 3 de abril de 1890. Proletarskaia Revoliutsiia, 1929, n° 2, p. 53.
52 Texto em R. Tucker (ed.), Marx-Engels Reader, p. 421. Esse prefácio foi reimpresso em The
Revolutionary Act, NY, 1922.
53 Kolakowski (Currents, vol. in, p. 51) desenvolve a idéia de que Kautsky estava na verdade apenas
extraindo as implicações da modificação que Engels já havia operado sobre a filosofia de Marx
(Currents, vol. I, pp. 376-408). Essa distinção (assim como aquela mais habitual no fim dos anos
1960) entre o jovem Marx dos Manuscritos Econômico-Filosóficos e o Marx maduro de O Capital
é rejeitada pelo establishment hagiográfico marxista-leninista por razões dogmáticas. Embora
muito se possa dizer acerca dessas diferenças, é fato que os acréscimos de Engels são uma rejeição
direta e antecipada do leninismo que estava por vir e do blanquismo que ficara no passado, pois ele
insiste que a época “de revoluções realizadas por exíguas minorias conscientes à frente de massas
inconscientes ficou para trás” (Reader, p. 420).
54 Hall, p. 15.
55 A. Kriegel, “Le Parti Modèle: La Social-Democratie Allemande et la ne Internationale”, em Le Pain,
pp. 253,254,258. Ela enfatiza a importância de ter chegado a 74% a representação dos trabalhadores
LIVRO in, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 627

Mas essa hora nunca chegou. De fato, a onda alemã talvez tenha atingido
sua altura máxima no Congresso de Stuttgart em 1907. A atividade organi­
zacional interna depois ganhou vida e lógica próprias. Os preâmbulos aos
relatórios executivos nas reuniões do partido começaram a lembrar pronun­
ciamentos estatais; as declarações sobre assuntos financeiros adquiriram a
solenidade de orçamentos governamentais; e os congressos anuais exigiam
semanas de preparação, prolongando-se agora por quatro dias.56 O impulso
revolucionário simplesmente se afogou num oceano de burocracia.
Os social-democratas também absorveram parte do etos nacionalista
da Alemanha imperial. Eles haviam ajudado a assegurar, em 1907, a opo­
sição proletária internacional a guerras nacionais (fosse “por meio de ação
parlamentar ou por meio de ação social”). Mas começaram a refletir uma
depreciação tipicamente alemã da Inglaterra e da Rússia e uma tendência a
absorver o movimento polonês, em vez de fomentar sua independência. Em
agosto de 1914, aceitaram a crença nacionalista dos alemães comuns de que
estavam defendendo a civilização contra a Rússia, e de maneira relutante,
mas unânime, votaram pela ampliação do crédito que ajudou a iniciar a
guerra e a condenar a Segunda Internacional.57

A luta contra o revisionismo


O conceito de partido marxista como instrumento de disciplina ideológica da
ação política de massa foi um legado bastante específico da social-democracia
alemã para o movimento revolucionário russo. Este último foi profunda e
permanentemente influenciado pelo modo como o partido alemão, na virada
do século, havia superado a crescente demanda em seu interior para que se
substituísse a revolução pela reforma. Uma estratégia pragmática e gradual
parecia ser apenas um prolongamento da decisão básica de concentrar os
esforços social-democratas em ganhos no parlamento. Havia ainda um
atrativo a mais na aparente tendência ao reformismo dentro da França e da
Inglaterra. Essa “luta contra o revisionismo” dos alemães dominou a imagi­
nação revolucionária no centro e no leste europeus durante o período que
vai do minúsculo primeiro congresso do Partido Social-democrata Russo, em

no Reichstag (p. 263). Para outra perspectiva acerca do atrativo internacional do modelo alemão, v.
G. Niemeyer; “The Second International: 1889-1914”, em Drachlkovich, Internationals^ pp. 106-107.
^6 Netti, “Party”, pp. 76—78.
57 V. o discurso fundamental de Hugo Haase no Reichstag (Joli, p. 175), que antes tinha ajudado os
social-democratas alemães a se oporem a ajudar a Áustria (pp. 159-164).
628 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

1898, até o segundo e grande congresso no qual nasceram o partido como


um todo e sua ala bolchevique leninista.
Kautsky popularizou o termo teórico revisionismo para denunciar aqueles
que “revisavam” os ensinamentos de Marx, transformando-os em reformismo
gradualista. Kautsky obteve sucesso em isolar, rotular e denunciar como um
ismo algo que, até então, tinha existido apenas como tendência.58
Em um ousado distanciamento da ortodoxia revolucionária durante um
banquete eleitoral em 1896, Alexandre Millerand, um destacado socialista
francês, afirmou que o capitalismo poderia agora ser com efeito suplantado
pela nacionalização e municipalização parciais dos meios de produção. Essa
estratégia envolvia necessariamente a colaboração política com radicais e
liberais na assembléia contra o controle monopolista da economia.59 Os
banquetes que, cinqüenta anos antes, tinham levado os homens às barricadas,
agora os levavam às urnas. As vitórias eleitorais de maio de 1898, combi­
nadas com a ameaça da direita durante o Caso Dreyfus, levaram o primeiro
ministro a convidar Millerand, em 1899, para ser ministro do comércio e
da indústria em seu novo governo.
Esse espetáculo sem precedentes de um socialista revolucionário em um
governo burguês dividiu os revolucionários sociais franceses em dois par­
tidos inteiramente novos. De um lado, a figura carismática de Jean Jaurès
aglutinou antigos “possibilistas” e outros reformistas em um novo partido
socialista francês comprometido com a “evolução revolucionária” (progenitor
do socialismo democrático moderno na França). De outro lado, o blanquista
Edouard Vaillant e o marxista Jules Guesde formaram o partido socialista
rival da França (o ancestral do moderno partido comunista francês). Esse
partido aceitava a advertência feita por Paul Lafargue, genro de Marx, em
1899 contra a “gangrena parlamentar” do oportunismo “firmador de pactos”
— assim concordando em participar das eleições, mas recusando qualquer
papel ministerial que pudesse “sossegar o ardor combativo do partido”.60
Enquanto isso, o movimento sindicalista francês se amalgamou de maneira
independente na Confederação Geral de Trabalho (CGT), a qual perpetuou

58 O termo “revisionismo” se originou da demanda, no sul da Alemanha, por “ação política reformista
e prática” voltada para “sucessos práticos parciais”, coisa invocada por Georg von Vollmar, Über
die nächsten aufgaben der deutschen Sozialdemokratie, Munique, 1891, p. 19, citado em Joli, p. 91.
59 O texto do programa de Millerand está em R. Ensor, Modern Socialism, L, 1904, pp. 48—55; discussão
em A. Kriegei e M. Perrot, Le Socialisme français et le pouvoir, 1966, pp. 65—83.
60 Citações de Lafargue, Le socialisme et le conquête des pouvoirs publics, Lille, 1899, em Kriegel e
Perrot, pp. 69-70.
LIVRO in, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 629

a tradição proudhonista antipolitica e se mostrou mais influente junto às


massas do que ambos os partidos socialistas.
O impulso reformista moderado foi fortalecido perante o movimento
trabalhista através da formação, em 1902-1903, de um Secretariado In­
ternacional das Centrais Sindicais Nacionais.61 Os 11 países representados
eram em sua maioria nações protestantes do noroeste europeu, onde as
tradições revolucionárias eram quase inexistentes; e a força dirigente, tanto
no secretariado permanente como nas conferências internacionais bienais,
tendia a ser a ala moderada do movimento social-democrata alemão. Al­
guma influência internacional independente era exercida pelo ainda menos
revolucionário movimento sindicalista da Grã-Bretanha. Esse movimento
crescente se impôs sobre a fraca Federação Social-democrata Marxista da
Inglaterra, a qual por um breve período havia tentado liderar a agitação
trabalhista do fim da década de 1880. Os sindicatos ingleses eram seduzidos
pelas melhorias graduais e, diferentemente de suas contrapartes alemãs,
eram criadores (não criações) de um partido político. Os britânicos elege­
ram delegados trabalhistas para o parlamento primeiro como um bloco
dentro do partido liberal, em 1886 e 1892, e depois formaram o Partido
Trabalhista Independente em 1893. O sucesso dos sindicatos britânicos
em fazer passar legislações progressistas encorajou outros a considerar as
vantagens de um sindicalismo que era

consciente de salário em vez de consciente de classe, interessado, em primeiro lugai;


na barganha coletiva, e não socialista, senão mesmo anti-socialista.6263*

O otimismo na classe trabalhadora quanto aos progressos sociais graduais


corria paralelo à crescente convicção socialista entre intelectuais da classe
social mais alta. A Sociedade Fabiana, fundada em 1883, desempenhou um
papel catalisador, pregando a “inevitabilidade do gradualismo” no movi­
mento rumo à sociedade socialista. Tomando seu nome do guerreiro romano
Fabius, que havia aprendido a esperar com paciência o momento de desferir
o golpe fatal contra Aníbal, os fabianos eram menos doutrinários do que os
social-democratas em sua dependência para com as massas. Eles temiam que
“a revolta dos estômagos vazios terminasse na padaria”.65 Rejeitavam não

61 Para discussão desse movimento internacional negligenciado, que funcionou à parte da Segunda
Internacional,v. Lorwin, pp. 100-114.
62 Lorwin, p. 103.
63 O líder e fundador fabiano Herbert Bland, citado em A. McBriai; Fabian Socialism and english
politics, 1884-1918, Cambridge, 1962, p. 18.
630 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

apenas a tática revolucionária, mas também o conceito de luta de classes,


argumentando afinal que

o conflito entre o burguês e o proletário pode produzir instabilidade industrial;


não é capaz de produzir socialismo.64

Os fabianos acreditavam estar “permeando” todos os elementos da so­


ciedade inglesa com a racionalidade do socialismo. Eles, em regra, ficaram à
parte das disputas marxistas da Federação Social-democrata e das atividades
políticas do Partido Trabalhista.
As idéias fabianas exerceram influência profunda sobre Eduard Bernstein,
o principal social-democrata alemão exilado em Londres na década de 1890.
Através dele, o reformismo não-ideológico do fim da era vitoriana foi trans­
formado na heresia marxista do revisionismo. O Partido Social-democrata
Alemão se tornou menos democrático no curso do processo de rejeição de
Bernstein — e, assim, também mais apropriado à adoção em terras autori­
tárias mais ao leste.
Bernstein era um dos quinze filhos de um pobre encanador judeu de
Berlim. Estudante brilhante e escritor, editou a partir de 1881 o jornal ofi­
cial do partido, Der Sozialdemokrat, e manteve proximidade com Engels
durante seu longo exílio em Londres. Desde os seus artigos de 1896 até a
publicação do seu Socialismo Evolucionário, em 1899, Bernstein argumen­
tou intensamente no sentido de que os ensinamentos de Marx requisitavam
uma revisão sistemática à luz dos desenvolvimentos econômicos posteriores
à sua morte. Dizia que o colapso capitalista não era inevitável, e que uma
revolução catastrófica era cada vez mais improvável. A riqueza de certo modo
estava sendo compartilhada (em vez de concentrada numas poucas mãos)
no sistema capitalista, e as classes sociais mescladas (em vez de polarizadas
de modo mais acentuado). Dizia que o Partido Social-democrata poderia
aumentar de maneira substancial sua influência se

encontrasse coragem para se libertar de uma fraseologia ultrapassada e lutasse


para se mostrar do modo como de fato é agora, um Partido Social-democrata da
reforma.65

64 Ibid., p. 66.
65 Citado de Democratic Socialism, em Braunthal, p. 264. Um importante grupo de novos livros alemães
que recapturam a complexidade, a riqueza e as raízes genuínas do pensamento de Bernstein no
marxismo é oportunamente pormenorizado e discutido em D. Morgan, “The Father of Revisionism
Revisited: Eduard Bernstein”, em Journal of Modern History, 1979, set., pp. 525-532.
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 631

Bernstein retornou à Alemanha em 1901 depois de 20 anos de exílio forçado


e foi eleito no ano seguinte para o Reichstag. Ele ganhou considerável apoio
no movimento sindicalista e no sul da Alemanha, onde os social-democratas
já eram ativos no governo local. Propôs que o Partido Social-democrata Ale­
mão seguisse, afinal, o precedente de Millerand ao insistir que se ganhasse a
vice-presidência do Reichstag e, assim, que se participasse do exercício formal
do poder governamental. Mas essa sugestão e o reformismo gradualista por
trás dela foram rejeitados de maneira decisiva na Conferência do partido em
Dresden, em 1903, e no Congresso de Amsterdã da Segunda Internacional,
no ano seguinte.
Bernstein trouxe para a Alemanha a visão bastante difundida na esquerda
européia de que a sociedade capitalista poderia “se desenvolver em direção
ao socialismo sem uma revolução violenta”. Contudo, o argumento parecia
se aplicar mais à Inglaterra do que à Alemanha, onde o executivo parecia
responder menos ao Reichstag. Mais ainda, por trás do executivo imperial
da Alemanha estava a força anti-democrática e anti-socialista dos militares e
dos nobres prussianos. Por fim, o que não é de somenos importância, havia a
longa afeição dos social-democratas pelo mito consolador de uma revolução
vindoura que os havia sustentado durante o extenso período de legislação
anti-socialista. Eles não poderiam suportar o abandono da idéia na teoria
— mesmo que a tivessem abandonado na prática. Assim, o revisionismo foi
obliterado como uma ameaça à fé revolucionária. Como disse Liebknecht a
Bernstein logo no início da controvérsia:

O Islã foi invencível enquanto acreditou em si mesmo. [...] Mas no momento em que
começou a ceder [...] deixou de ser uma força conquistadora. [...] Tampouco pode
o socialismo conquistar ou salvar o mundo se deixar de acreditar em si mesmo.66

Kautsky permaneceu o profeta desse Novo Islã. Ele manteve a fé intacta e


os crentes unidos com sua interpretação do Corão da social-democracia, O
Capitai Mas, diferentemente de Maomé, ele não seria “o selo dos profetas”.
Pois foi na Rússia, e não na Alemanha, onde primeiro irrompeu a revolução
no século XX (1905) e onde os revolucionários sociais afinal chegaram ao
poder (1917). O manto marxista da infalibilidade doutrinária foi passado
para o líder daquela revolução, V. I. Lênin, o qual anatematizou Kautsky,
de modo bastante similar à maneira como o próprio Kautsky tinha, vinte

66 Protokoll über die Verhandlungen des Parteitages, Hanöver, 1899, p. 149, citado em Braunthal, p.
271.
632 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

anos antes, condenado Bernstein no seu A Revolução Proletária e o Rene­


gado Kautsky, escrito ao fim de 1918 às vésperas do Primeiro Congresso da
Terceira Internacional.
Antes de passarmos da Alemanha para a Rússia, devemos fazer as per­
guntas incômodas a respeito dos social-democratas alemães. Por que eles não
alcançaram — ou buscaram de modo mais agressivo — o poder? Por que
passaram a se preocupar tanto com eleições parlamentares? Como puderam
vir a apoiar a corrida patriótica para a guerra em 1914 — assim fornecendo,
na prática, bucha de canhão proletária para o Estado burguês que eles em
teoria haviam se comprometido a derrubar?
Boa parte do “fracasso” dos social-democratas pode ser atribuído a forças
adversas externas. Eles tiveram o azar de ser um movimento revolucionário
em uma era não-revolucionária. A enorme concentração de poder físico no
novo Estado industrial do fim do século xix tornou a revolução espontânea,
gerada internamente, algo quase impossível. Mesmo na inflamada Paris de
1870-1871 um poder externo teria de primeiro esmagar a máquina estatal
existente antes que uma revolução pudesse ocorrer.
Mas parte da explicação do “fracasso” dos social-democratas está na
natureza do seu próprio movimento. Como vimos, ele concebia o poder de
uma maneira de todo diversa dos movimentos revolucionários anteriores,
a diferença antes descrita como a passagem de um modelo maçônico a um
modelo maquinai de organização revolucionária.
Os modelos maçônicos do período francocêntrico concebiam o poder em
termos arquitetônicos de continência de um espaço numa estrutura:67 ao si­
tuar o centro de legitimidade numa loja ou círculo mais interno; ao revalidar
a política através da estrutura de uma assembléia constituída e não através
do corpo de um monarca ungido; ao libertar os indivíduos na medida em que
os circunscrevia numa grande nation; ao buscar, enfim, “fazer do mundo um
panteão”.68 Mas o novo Estado alemão, mais ainda do que a Terceira República
da França, tinha cooptado essas imagens da era revolucionária nacional e lhes
dado um direcionamento conservador. À “primavera das nações” se seguira
67 A importância dos elementos espaciais e estruturais no simbolismo maçônico é enfatizada (sem
relação com movimentos revolucionários) por S. Baehr, “The Masonic Component in Eighteenth
Century Russian Literature”, em A. Cross (ed. ), Russian literature in the age of Catherine the Great,
Oxford, 1976, pp. 121-139.
68 Da evocação musicalmente suntuosa do sonho revolucionário perdido ao fim da ária “Nemico della
Patria” (U. Giordano, Andrea Chenier, ato III): “Fare del mondo un Pantheon! Gli uomini in dei
mutare e in un sol bacio e abbracio tutte le genti amare!” [Fazer do mundo um Panteão! Transformar
os homens em deuses e com um só beijo e abraço a todos amar!].
LIVRO III, CAPÍTULO 13: A MÁQUINA: A SOCIAL-DEMOCRACIA ALEMÃ 633

o verão quente da efervescência industrial e da expansão imperial. O novo


modelo maquinai dos social-democratas alemães expressava a substituição dos
ideais revolucionários nacionais pelos ideais revolucionários sociais.
Os alemães tomaram da máquina a imagem do poder como um desen­
volvimento dinâmico da força material ao longo do tempo, deixando de
lado sua imagem de conquista progressiva de segmentos de espaço mediante
heroísmo moral. O Partido Social-democrata não era a expressão de algum
ideal filosófico-moral. Era o instrumento material e político da classe traba­
lhadora. Essa classe não tinha uma localização geográfica única, um centro
de santificação numa loja ou círculo. Era um grupo bastante difuso e simples
de suplementos humanos às máquinas de um poderoso Estado recém-uni-
ficado. A social-democracia alemã via seu caminho até o poder, portanto,
como uma estratégia política que se desenvolvia ao longo do tempo, e não
por meio de esforços paramilitares de “libertar” áreas oprimidas. O objetivo
da estratégia revolucionária era ganhar controle sobre os meios de produção
que estavam em grande medida dispersos, e não tomar de maneira direta o
poder político centralizado do Estado.
O sucesso do Partido Social-democrata como uma máquina política lhe
conferiu um interesse pelo próprio Estado nacional dentro do qual seu poder
crescia. Desprovida do sentido que os revolucionários anteriores tinham de
uma identidade à parte, de uma conspiração fraternal aferrada ao seu próprio
espaço sagrado, a nova organização de massa foi incapaz de preservar sua
especificidade em relação ao sistema político estabelecido.
Mais importante ainda, aos social-democratas — assim como à maior
parte das organizações políticas no longo período de paz e progresso anterior
à Primeira Guerra Mundial — faltava aquele senso de presságio profético,
a única coisa que os poderia ter preparado para o que estava por vir. A Ale­
manha estava particularmente desafeita à violência durante esse período; foi
talvez, internamente, o país mais tranqüilo da Europa no quarto de século
precedente a 1914.69
É possível que só aqueles que tiveram uma vivência mais íntima da vio­
lência fossem capazes de sentir a chegada próxima de uma guerra global. A
violência, na Alemanha às vésperas da Primeira Guerra Mundial, ainda jazia
69 H. Marks, “The Sources of Reformism in the Social Democratic Party of Germany, 1890-1914”,
em Journal of Modern History, vol. xi, 1939, n° 3, p. 334; também Roth, p. 169, nota 18. Sobre o
complexo de forças que conduziram a uma tendência reformista simultânea no movimento sindicalista
alemão, v. D. Groth, “Intensification of Work and Industrial Effort in Germany, 1896-1914”, em
Politics and Society, vol. vin, 1978, n° 3-4, pp. 349-397.
634 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

protegida dentro das máquinas de um Estado disciplinado. Mais ao leste, a


violência não se mostrava tão confinada e controlada. O primeiro grande
conflito bélico do século xx, a Guerra Russo-Japonesa de 1904-1905, levou
diretamente à revolução na Rússia em 1905. E, quando novamente em 1914
veio uma guerra violenta, os social-democratas russos se mostraram mais
preparados do que seus pares alemães para fazer um movimento ousado.
Os alemães, tendo perdido sua dependência mais antiga para com o
heroísmo moral, foram assim incapazes de reunir coragem para resistir à
corrida para a guerra em 1914. Na Rússia, contudo, onde a violência era
parte central da tradição revolucionária, a oposição revolucionária social-
-democrata à guerra se desenvolveu com uma visada semiprofética. Vladimir
Lênin entreviu as chamas de uma revolução vindoura onde outros não viram
mais que a fumaça da guerra. Ele trabalhou para obter a vitória bolchevique
de 1917 desde dentro da versão russa do Partido Social-democrata Alemão.
Mas ele se baseou em uma singular — e singularmente violenta — tradição
revolucionária russa, a cujos detalhes devemos agora dar atenção.
CAPÍTULO 14
A bomba: a violência russa

emorou para que a chama revolucionária se acendesse na Rússia.

D A fagulha soprada de fora para dentro pelos oficiais dezembristas


morreu na neve da Sibéria. As chamas depois acesas por estudantes
revolucionários na época de Alexandre n também tinham se extinguido. Mas
esse fogo continuou a queimar de modo lento na clandestinidade e irrompeu
em três conflagrações revolucionárias no início do século xx.
Durante a segunda metade do século xix, a Rússia e o socialismo substi­
tuíram a Polônia e o nacionalismo como principal força revolucionária no
leste europeu. Em 1917, a tradição revolucionária social chegaria ao poder
na Rússia e produziría o primeiro rompimento na unidade ideológica da
civilização européia desde a Reforma Protestante.
Como e por que a Rússia passou da sonolência conservadora dos últimos
anos de Nicolau i, no início da década de 1850, à violência revolucionária
que saudou Nicolau n quarenta anos depois? Como pôde o socialismo re­
volucionário prevalecer numa terra até então conhecida pelo nacionalismo
reacionário? Nenhuma questão é mais importante na história da tradição
revolucionária do que as origens e natureza de sua vertente peculiarmente
russa.
A tradição vale — assim como a própria Rússia—como uma ponte entre a
Europa e a Ásia. Os revolucionários russos do fim do século xix representaram
tanto uma reprise dos europeus do início daquele século como um prenúncio
636 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

dos revolucionários extra-europeus do século xx. Monumento adequado à


tradição revolucionária russa seria não um daqueles trabalhadores heróicos
e saudáveis celebrados pela escultura stalinista, e sim algum estudante sim­
ples e enfermiço, com duas cabeças de Janus: uma olhando para trás, para a
inspiração européia, outra para frente, para a transformação global.
A importância da Rússia para o mundo está não só na vitória material da
Revolução Bolchevique, mas também na conquista espiritual prévia de uma
variante altamente cerebral, intensa ao extremo, da tradição revolucionária
européia. De fato, a transformação do velho Império Russo na nova União
das Repúblicas Socialistas Soviéticas lembrou, sob alguns aspectos, a passagem
do Império Romano do paganismo para o cristianismo com Constantino,
o Grande, no século iv. Os motivos determinantes para a mudança estão
não apenas nos problemas práticos de um império vetusto, mas também, de
modo mais profundo, em sua perda de legitimidade ideológica. As origens da
adoção da nova crença, em ambos os casos, podem ser buscadas nos longos
anos de pregação, martírio e quieta conversão à nova fé dentro do reino da fé
antiga. Assim como a Revolução Constantina se originou da história secreta
de uma fé antes ilícita, de igual modo a Revolução Bolchevique “começou”
com o desenvolvimento, dentro da Rússia, de um braço mais totalizante da
fé revolucionária européia.
Sua distinção tinha um lado negro. Pois se pode dizer que os russos desco­
briram os segredos da violência — assim como os alemães tinham revelado os
segredos do método de organização. Se a máquina simbolizava o movimento
revolucionário alemão, a bomba simbolizava o russo. O dispositivo explosivo
era um produto da nova tecnologia industrial tanto quanto a máquina movida
a implosão, mas a bomba era mais radicalmente democrática (qualquer pessoa
poderia fabricar ou ter acesso a uma) e amedrontava de maneira mais direta.1
O fascínio russo por explosivos remontava aos primeiros tzares mosco­
vitas,2 mas se intensificou com a expansão econômica ocidental do fim do
século XIX. Em busca de minerais e combustíveis para alimentar sua produção
industrial, a Europa ocidental explorou a Rússia e outras regiões remotas
utilizando novos materiais explosivos. O inventor sueco da dinamite, Alfred
Nobel, conduziu boa parte de seus primeiros trabalhos em São Petersburgo e
1 Por essa razão, a bomba “guarda um atrativo mais mágico do que um objeto visivelmente
manufaturado numa fábrica”, de acordo com um indígena admirador do movimento russo e líder
partidário no congresso norte-americano, Bai Gangadhar Tilak, em 1908. V. Z. Iviansky, “Individual
Terror: Concept and Tipology”, em Journal of Contemporary History, 1977, jan., p. 61.
2 Billington, Icon, pp. 40-42.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 637

estabeleceu, na virada do século, os maiores campos de extração de petróleo


do mundo na cidade de Baku.3
Da primeira detonação submarina de dinamite efetuada por Nobel em
1862 até o aperfeiçoamento dos componentes da nitroglicerina no início da
década de 1870, a Europa veio a conhecer novos explosivos potentes que
serviam tanto para extrair minerais quanto para matar pessoas. Os explo­
sivos exerciam certo fascínio científico sobre a nova geração de estudantes
radicais, uma vez que a química parecia ser uma das formas materialmente
mais úteis e menos românticas de ciência. Chernyshevsky justificou o novo
ascetismo revolucionário com uma metáfora química. O calor de que o povo
precisa veio não do sentimentalismo, mas de um fósforo frio que atinge a
superfície dura da realidade social e assim acende uma fogueira. Os estu­
dantes revolucionários desenvolveram uma reverência quase sacramental
por misturas químicas. Dmitry Mendeleev, que escreveu seus Princípios da
química e codificou em São Petersburgo a tabela periódica no fim dos anos
1860, permaneceu um modelo juvenil para jovens revolucionários até a
época do irmão mais velho de Lênin em meado dos anos 1880.4 A arte, não
menos que a ciência, requeria a unção da química; e o líder da nova escola
nacional russa de música era um químico, Alexander Borodin, que preparava
com regularidade um composto químico especial no qual eram imersas as
composições de seus colegas a fim de que não se deteriorassem.
A suprema organização revolucionária do período, a Vontade do Povo,
terminou o reino de Alexandre n com uma chuva de bombas. É notável o fato
de que a Vontade do Povo não tenha revelado seu nome nem seu programa
até novembro de 1879 — depois que a primeira bomba explodiu numa pri­
meira tentativa de assassinar Alexandre n.5 A explosão regicida foi, assim,
a primeira declaração pública da organização; e, quando um de seus líderes
3 R. Sohlman (The life of Alfred Nobel, L, 1929, p. 127, p. 181; Iviansky, p. 60) sugere que Nobel
teve profunda simpatia pelos radicais russos até o fim da vida. As realizações de Ludwig Nobel
(projetista do primeiro tanque de guerra do mundo e dos primeiros gasodutos e carros-tanque),
responsável por criar a indústria petroleira russa, são em parte enfatizadas em R. Tolf, The russian
Rockefellers: tha saga of the nobel family and the russian oil industry, Stanford, 1977.
4 De acordo com a irmã deles, Alexander Ulyanov, o irmão mais velho de Lênin, foi influenciado
de modo decisivo por Mendeleev mesmo quando ainda estava na escola secundária. A. Ivansky,
Zhizn’ kak fakeï, 1966, p. 121 e p. 136 ss. sobre o impacto de Mendeleev e outros cientistas sobre
os estudantes revolucionários de São Petersburgo durante a década de 1880.
5 R. Kantor; “Dinamit ‘Narodnoi Voli’”, em Katorga i Ssylka, vol. lvii-lviii, 1929, p. 120.0 líder da
Vontade do Povo, responsável pelos explosivos, distinguiu o ato de “levar a propaganda aos fatos”
(vesti propagandu faktam) da propagande par le fait dos “anarquistas suíços”. S. Shiriaev, em seu
testemunho no tribunal em 21 de julho de 1880: “Avtobiograficheskaia zapiska Stepana Shiriaeva”,
em Krasny Arkhiv, 1924, n° 7, p. 79.
638 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

foi preso, deu-se enorme atenção à análise dos dezessete quilos de dinamite
descobertos com ele. Os especialistas concluíram melancolicamente que o
explosivo era um composto original de alta qualidade fabricado dentro da
Rússia e fácil de ser replicado.6
Quando de seus planos finais para o bem-sucedido assassinato do tzar
em Io de março de 1881, a Vontade do Povo concentrou especial atenção na
bomba, mesmo reconhecendo que o emprego de uma arma de fogo teria sido
mais barato e de sucesso mais certo: não teria causado tanta impressão. Teria
sido visto como um assassinato ordinário, e desse modo não teria expressado
a nova etapa do movimento revolucionário.7
A tradição russa de fato expressava uma “nova etapa do movimento revo­
lucionário”. A armação de bombas se tornou uma força de união comunal não
menos importante do que a impressão de panfletos na célula revolucionária. A
oficina (masterskaià) de dinamite que a Vontade do Povo formou pela primeira
vez no fim dos anos 1870 reapareceu no grupo de estudantes do irmão mais
velho de Lênin no fim dos anos 1880 — e ainda novamente no “escritório
técnico” do partido bolchevique do próprio Lênin e em outros grupos que se
proliferavam pela Rússia na virada do século.8
A tradição russa tomou forma distinta pela primeira vez na década de
1860 em meio às grandes expectativas do período reformista de Alexandre n.
Como sabemos, Herzen, líder da primeira organização revolucionária russa,
Terra e Liberdade, manteve por quase uma década relações próximas com
revolucionários nacionais como Lelewel, Worcell, Mazzini e Fazy em Genebra.
Durante o período do reino de Alexandre, Herzen cultivara até a esperança
ítalo-polonesa de implantar uma monarquia constitucional através de uma
“reforma feita a partir de cima”.
Mas, mal havia Herzen começado a organizar de Londres uma conspiração
para atingir esse objetivo, sua liderança foi rejeitada por Chernyschevsky e os

6 Kantor, pp. 120—128.


7 Michael Frolenko, membro do Comitê Executivo da Vontade do Povo, “Nachalo narodnichestva”,
em Katorga i Ssylka, vol. xxiv, 1926, p. 22. Modifiquei a tradução dessa passagem frente ao que é
apresentado (com referência imprecisa ao original) em Iviansky, p. 47.
8 P. Zavarzin, Rabota tainoi politsii, Paris, 1924, pp. 94-97, sobre a tekhnicheskoe biuro dos social-
democratas em Rostov. Outro exemplo provinciano desse fenômeno (ainda mais destacado dentro
do rival Partido Socialista Revolucionário) foi a fraternidade estudantil formada por um estudante
de química, a boevaia druzhina em Kazan, que se orgulhava de sua bomba de maior destaque,
a ntakedonka, construída segundo o modelo dos revolucionários macedônios. V. S. Livshits,
“Kazanskaia sotsial-demokraticheskaia organizatsiia v 1905 g.”, em Proletarskaia Revoliutsiia,
1923, n° 3, pp. 104-105, com diagrama da bomba no verso da p. 104.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 639

“novos homens” da década de 1860 na Rússia. Por volta de 1863, a tradição


ítalo-polonesa foi com efeito ultrapassada na Rússia pela ideologia mais vio­
lenta de uma nova geração. A intensidade de sua discordância com a geração
mais velha (como a de Bazarov com seus pais no romance de Turguêniev Pais
e Filhos, de 1862) prenunciava algo de profundamente novo.
A nova tradição russa surgida na década de 1860 pode ser analisado a
partir de cinco palavras evocativas que lhe eram centrais: niilismo, intelligent­
sia, populismo, terrorismo e anarquismo. Cada uma dessas palavras já havia
sido empregada em outros lugares antes, mas ganhou, por meio de seu uso
russo, um novo significado e uma nova voga mundial. Tomados em conjunto,
os cinco termos sugerem uma oposição total e intransigente ao status quo.
Pode-se dizer que substituíram na prática a idéia revolucionária do período
francocêntrico anterior (embora em teoria pretendessem servi-la): liberdade,
igualdade e fraternidade.

Os slogans da década de 1860

Niilismo

Os movimentos juvenis se iniciaram com uma “revolução de grandes expec­


tativas” em uma época de reforma política. O primeiro movimento estudantil
revolucionário tinha surgido na Alemanha, meio século antes, a partir das
esperanças alimentadas pelas reformas na Prússia. Revoltas de estudantes
norte-americanos um século depois adviriam de um renovado senso de possi­
bilidades políticas criado pela era Kennedy e pelo movimento de direitos civis.
De modo similar expectativas exageradas de mudança nutridas pelos jovens
à época de Alexandre n levaram — talvez de modo inevitável — à desilusão
e quase ao desespero, uma vez que suas reformas vieram a ser vistas como
parciais e incompletas.
O sentimento de ser uma geração especial em geral se alimenta não só de
esperanças exageradas de reforma, mas também da identificação com um líder
político que parece representar um agente de mudança carismático. Talvez a
primeira geração de estudantes revoltados autoconscientes foi a dos poetas e
panfletários do Sturm und Drang da Alemanha da década de 1770. Sua glori­
ficação do poder em oposição à convenção foi, sob muitos aspectos, delineada
pelo modelo de Frederico, o Grande, que desafiou não só a tradição prussiana,
mas também o equilíbrio de poder europeu. Os primeiros revolucionários do
640 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

início do século xix eram jovens oficiais e estudantes cuja imaginação havia
sido inflamada por Napoleão; e ele continuou a inspirar rebeldes românticos
ao longo de todo o século.
A Jovem Itália e a Jovem Europa, organizações de Mazzini, forjaram no
início da década de 1830 a noção romântica de que a juventude deveria se
rebelar contra aquilo que Fazy chamou de “gerontocracia”. Mais uma vez,
esperanças foram suscitadas (pela Revolução de 1830) só para serem desfei­
tas com o fracasso da revolução em se espalhar e com o subseqüente retorno
de novos monarcas “revolucionários”, na Bélgica e na França, às práticas
conservadoras. A idéia vitalista de que a geração mais jovem deveria concluir
um programa reformista detido artificialmente manteve vivo o entusiasmo
revolucionário entre os poloneses e italianos durante a “primavera das nações”
que levou a 1848.
Mas a afirmação da identidade geracional entre os jovens russos da década
de 1860 trazia um novo elemento ideológico.9 Eles não tinham interesse algum
em completar o programa de reformas concretas iniciado por Alexandre n.
Rejeitavam a sociedade tradicional em sua totalidade — com efeito, rejeitavam
tudo que não fosse a sua recém-descoberta fé evangélica no método científico.
A negação total nasceu em parte do desgosto com a incompetência da velha
Rússia, que levou à derrota humilhante na Guerra da Criméia, em parte um
ressentimento desde há muito reprimido contra a pretensão e o irracionalismo
da Rússia dos Romanov. A singularidade da Rússia tinha sido afirmada com
um orgulho extravagante na doutrina da nacionalidade oficial em 1833 e iden­
tificada com conservadorismo social, na medida em que o império esmagou
as revoluções na Polônia, em 1831, e na Hungria, em 1849. Após a derrota
na Criméia, os jovens queriam dar fim a essa atitude de aceitação, e o termo
niilista foi inventado e popularizado por Turguêniev em seu romance Pais e
filhos^ de 1862, para descrever o novo negativismo que proclamava “dois mais
dois são quatro e nada além disso faz sentido”.10
9 Um historiador russo, que depois cairia nas graças de Stálin, foi um dos primeiros a apontar o papel
fundamental dos estudantes na Revolução de 1848 no Ocidente: v. E. Tarie, Rol’ studenchestva v
revoliutsionnom dvizhenii v Europe v 1848 g., São Petersburgo, 1906. Para estatísticas sobre a
população estudantil à época de Alexandre n (cujo contingente aristocrata decaiu de 65,3% para
43,1 % em 1875), v. G. Shchetinina, “Universi tety i obshchestvennoe dvizhenie v rossii v poreformenny
period”, em Istoricheskie Zapiskí, vol. lxxxiv, 1969, pp. 164—215, esp. p. 166.
A. Spitzer provê um levantamento abrangente e cético da vasta literatura recente do conceito de
revolta geracional em “The Historical Problem of Generations”, em American Historical Review,
1973, dez., pp. 1353-1385.
10 Sobre a questão complexa de se o jornalista reacionário Katkov deu origem ao termo um pouco
antes ou apenas o tomou de uma leitura do manuscrito de Turguêniev antes de sua publicação, v.
LIVRO UI, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 641

Essa extrema rejeição da tradição existente se confinou quase que só ao meio


estudantil. Assim como na Prússia dos anos 1810, um governo de inclinações
reformistas repentinamente, após ser derrotado numa guerra, criou oportu­
nidades educacionais e buscou organizar a crescente população universitária
em tradicionais agrupamentos por região. As zemliachestva russas eram uma
tradução literal das Landsmannschaften alemãs (e um empréstimo direto
das organizações Korporationen em Dorpat, uma universidade de fala alemã
situada dentro do Império Russo). Mas, assim como os estudantes alemães
formaram as suas próprias Burschenschaften antiaristocratas e antitradicionais,
de igual modo os estudantes russos desenvolveram no fim dos anos 1850
seus próprios agrupamentos, mais democráticos, que se destinavam a definir
e defender os direitos dos universitários: os skhodki^ assim chamados em
virtude do rótulo dado às assembléias tradicionais de camponeses.11 O senso
de possibilidades ilimitadas gerado por essas reuniões contrastava de modo
acentuado com as condições miseráveis em que os estudantes eram forçados
a viver. A população universitária russa praticamente dobrou nos seis anos
que se seguiram à sanção de matrícula ilimitada em universidades, em 1855,
e muitas das queixas dos estudantes a respeito da sociedade russa como um
todo eram, em alguns casos, projeções de suas próprias lamentações pelas
difíceis condições da vida de estudante russo.
Boa parte do comportamento posterior dos estudantes radicais russos
seguiu o padrão anterior dos estudantes alemães durante as revoluções de
1848-1849: impressão de jornais, fundação de “academias livres”, tentativas
de angariar apoio no exército (com sucesso em Baden, no verão de 1849)

o resumo e as referências dadas em Billington, “Intelligentsia”, pp. 810-811, nota 9. Com base
numa conversa posterior com o professor Bialy de Leningrado, estou propenso a crer na segunda
possibilidade.
Referências de empregos filosóficos anteriores do termo são dadas em Benoít-Hepner,
p. 193. Os usos políticos anteriores durante a Revolução Francesa são completamente ignorados
nos estudos citados. O primeiro uso parece ter sido feito por um francês enviado à Bélgica para
preparar sua unificação com a França (Antifédéraliste, 14 de outubro de 1793, comentado em A.
Mathiez, “Publica Chaussard, inventeur du nihiliste”, em Annales Révolutionnaires, vol. x, 1918,
pp. 409-410). O primeiro emprego como uma marca de orgulho foi feito por Anacharsis Cloots
em 27 de dezembro de 1793; “A República dos Direitos do Homem não é, propriamente dita, nem
teísta nem ateista; é niilista” (M. Frey, Les Transformations du vocabulaire français à 1*époque de la
révolution (1789-1800), 1925, p. 165). O primeiro emprego para designar um grupo foi feito num
sentido negativo similar ao uso de Chaussard no Courier français, Io de outubro de 1795: “Houve
mesmo na época de Robespierre uma facção designada pelo nome de indifférentistes ou nihilistes”
(A. Aulard, Paris pendant la réaction thermidorienne et sous le directoire, 1897, vol. n, p. 285).
Il A importância deles para o despertar da consciência estudantil é enfatizada por A. Gleason, Yowng
Russia; The Genesis of Russian Radicalism in the 1860*s, NY, 1980. V. também D. Brower, Training
the Nihilists, Education and Radicalism in Tsarist Russia, Ithaca» 1975, p. 122 ss»; e Hegarty,
“Movements”.
642 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

e esforços heróicos de resgatar da prisão seus heróis ideológicos (caso da


fuga de Johann Kinkel da prisão de Spandau, ação planejada por um rapaz
de 22 anos, Karl Schurz).12 O termo niilista foi popularizado pelo conto
Die nihilisten (1853), de Karl Gutzkow, para caracterizar o materialismo
dos estudantes alemães no rescaldo desiludido dos acontecimentos de 1848.
Os jovens russos absorveram com ânsia o materialismo de escritores ale­
mães dos anos 1850, como Büchner e Molleschott, com freqüência dando
solidez às suas novas convicções com uma intensidade teológica advinda de
um passado de seminarista. Diferentemente dos alemães, contudo, os russos
conseguiram fazer a revolução. O niilismo era para eles uma expressão não de
desencantamento, mas de uma emergente consciência política. Os revolucio­
nários alemães derrotados ou fugiram para o estrangeiro ou se aquietaram.
Mas os radicais frustrados na Rússia nunca tiveram chance de se insurgir em
1848. Frustrados, mais ainda, com a repressão dos últimos anos de Nicolau
I, tiveram um sentimento de novas possibilidades com o advento de um novo
tzar em 1855. Assim, os jovens desenvolveram uma subcultura de intensas
expectativas que nunca se cansou de tentar libertar presos políticos. Diferente
dos alemães que foram para os Estados Unidos, os russos enviados para a
Sibéria nunca perderam a fé numa revolução vindoura.
O elemento totalizante da tradição revolucionária russa devia muito de
sua natureza autoritária ao sistema tzarista. Nunca a interdependência dos
extremos da esquerda e da direita foi tão clara como no período final do Im­
pério Russo, onde o reformismo liberal dos primeiros anos de Alexandre il foi
sabotado tanto pelo terror da esquerda quanto pelo contra-terror da direita.
O populismo revolucionário competiu e se mesclou com o pan-eslavismo
reacionário dos anos 1870; os assassinatos perpetrados pela esquerda, que
atingiram seu ápice na morte de Alexandre n, foram sucedidos pelos pogroms
da direita à época de Alexandre m. Os revolucionários e a polícia não ape­
nas se estudavam mutuamente, mas suas atividades se interpenetravam, e
de modo tão profundo, a ponto de ser impossível às vezes esclarecer de qual
lado estava a real fidelidade de um indivíduo.
Contudo, as mais profundas raízes do totalitarismo revolucionário na
Rússia talvez estejam na subcultura universitária e em seus rituais de congre­

12 K. Griewank, Deutsche Studenten und Universitäten in der Revolution von 1848, Weimar, 1949, esp.
p. 55 ss. sobre a “universidade livre” em cuja faculdade se incluía Kinkel; Droz, Les Révolutions
allemandes de 1848, 1957, pp. 618-620, sobre a fuga de Kinkel; p. 609, sobre a singular reunião
do exército para a revolução em Baden.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 643

gação. O elemento decisivo não foi só o ingresso de estudantes não oriundos


da aristocracia na atividade política,13 mas também o desenvolvimento,
dentro das instituições da elite universitária, de “um padrão de duas vias de
promoção educacional, com uma delas levando à revolta política”.14
Essa via surgiu primeiro no Liceu Aleksandrovsky nos anos 1840, depois
nas universidades em meados dos anos 1850 e inícios dos 1860, e por fim
dentro das escolas técnicas (a Academia Médico-Cirúrgica e o Instituto Tec­
nológico), à medida que essas assumiam mais importância no fim da década
de 1860 e início da de 1870. Essas instituições extremamente seletivas do
governo russo garantiram um ingresso automático no Estado imperial; mas,
nos anos 1860, também se tornaram “um cadinho para o incremento da re­
volta radical entre estudantes para os quais as origens sociais não tinham mais
sentido”.15 Na capital impessoal de São Petersburgo, uma cidade construída
mais para desfiles militares do que para pessoas, a população universitária
havia mais que dobrado entre 1855 e 1859.16 Essa população estudantil
inchada foi apartada de seu passado provinciano e patriarcal e infectada
simultaneamente com a ambição política da imperial São Petersburgo e
com o panorama intelectual de uma universidade européia. Os estudantes,
assim, combinavam “atitudes elitistas com hábitos igualitários”.17 Desenvol­
veram uma vida comunal em torno de livrarias, de ajuda financeira mútua,
de publicações litografadas e até (com o auxílio fundamental, em 1860, da
faculdade de direito) de tribunais universitários.
A subcultura estudantil se desenvolveu a partir da vida formal da uni­
versidade. Livros e assuntos proibidos forneceram um contra-currículo mais
atrativo do que os temas “irrelevantes” apresentados nas aulas. Os estudantes
começaram a cultivar fantasias sobre refazer a sociedade como um todo à sua
própria imagem; e grupos de discussão estudantil proporcionaram cada vez
mais um “ambiente de proteção”18 para o franco recrutamento revolucioná­

13 Sigo aqui a modificação feita por R. Brym (“A Note on the Raznochintsy”, em Journal of Social
History, 1977, mar., pp. 354-359) sobre as atenuações de Brower (Training, esp. p. 114) acerca
da importância do papel social das “várias categorias” (raznochintsy) para explicar a virada
revolucionária da juventude na década de 1860. Sobre o termo em si mesmo, v. C. Becker,
“Raznochintsy: The Development of the Word and of the Concept”, em American Slavic and East
European Review, 1959, fev., pp. 63-74.
14 Brower, p. 144.
15 Ibid., p. 118.
16 Ibid., pp. 476-1026; ibid., p. 121.
17 Ibid., p. 137.
18 Ibid., p. 137.
644 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

rio. A vida universitària em sua fase inicial e apolitica continha os germes de


uma alternativa social à ordem tzarista. Os skhodki valiam por uma espécie
de parlamento; a comuna (obshchina)^ por uma espécie de judiciário; a
cooperativa (artel)^ por uma espécie de empreendimento produtivo baseado
na justiça econômica distributiva. Os seus grupos de discussão internos e
suas escolas de alfabetização para os outros compunham um sistema edu­
cacional completo. Tudo o que faltava era um executivo forte para desafiar
o governo tzarista; e esse executivo surgiu no fim dos anos 1860 na pessoa
de Serge Nechaev, o primeiro niilista revolucionário do mundo moderno.
O caminho dos estudantes de posições de privilégio e de promessa até
a oposição revolucionária começou com protestos concernentes a questões
estritamente estudantis, os quais se espalharam por centros universitários pro­
vincianos como Kazan e Kharkov ao fim dos anos 1850. Em Kiev, no outono
de 1859, um cirurgião idealista lançou o movimento da Escola Dominical,
que se valia do único dia da semana isento de trabalho para proporcionar
ensinamentos gratuitos aos camponeses que viviam na cidade. Esse esforço
pioneiro de educação popular ganhou uma coloração política quando um dos
tutores desse projeto, P. V. Pavlov, um jovem de Kiev que se opunha à servidão,
tornou-se professor de história russa na Universidade de São Petersburgo
em 1861. Ele glorificava, em suas aulas, a ocidentalização que ocorrera no
passado (à época de Boris Godunov e o zemsky sobors semiparlamentar) e
participava da impressionante rede de 28 Escolas Dominicais da capital, as
quais envolviam cerca de 450 voluntários dando instrução básica a cerca de
cinco mil estudantes indigentes.19
Longe de pacificar os estudantes, a emancipação dos servos em fevereiro
de 1861 apenas serviu para intensificar sua agitação. Após o protesto de 350
estudantes de São Petersburgo, em março, houve ainda outro protesto, em
abril, de 400 estudantes. Um esforço desastrado de processar um estudante por
fraude na primavera provocou outras manifestações. Quando foi concedida,
no verão de 1861, a há muito exigida abolição dos uniformes estudantis, a
medida foi recebida com desagrado e sentida como um plano para extirpar
um laço comum de solidariedade.20

19 R. Zelnik, “The Sunday-School Movement in Russia, 1859—1862”, em Journal of Modern History,


1965, jun., pp. 151-170; e Ya. Abramov, Nashi voskresnye skholy. Ikh proshloe i nastoiashchee,
São Petersburgo, 1900.
20 W. Mathes, “Origins of Confrontation Politics in Russian Universities; Student Activism 1855-1861 ”,
em Canadian Slavic Studies, 1968, primavera, pp. 28-45; e Hegarty, para detalhes e estatísticas.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 645

A agitação estudantil se tornou movimento estudantil com a repentina


aparição em São Petersburgo, em setembro de 1861, da proclamação re­
volucionária “À Geração dos Jovens”, escrita por Nicholas Shelgunov (um
veterano da Guerra da Criméia que se tornou um radical em suas viagens
pelo exterior) e revisada por Michael Mikhailov, um jovem poeta que vivia
um ménage à trois com Shelgunov e sua esposa. Mikhailov contrabandeou
600 cópias de livros da imprensa de Herzen de Londres para a Rússia dentro
de urna arca de fundo falso e distribuiu aquele chamado à “geração dos
jovens” a que rejeitassem não só as instituições da velha Rússia conserva­
dora, mas também as propostas de reforma dos novos liberais, e “avançar
corajosamente rumo à revolução”.21 O propósito da revolução proposta era
o estabelecimento da soberania popular, e os meios para tanto poderiam ser
violentos: “Se para atingir nosso propósito de dividir a terra entre o povo
tivermos de matar cem mil nobres, mesmo isso não irá nos deter 22
A prisão de Mikhailov no início de setembro e seu posterior julgamento
representaram a primeira perseguição oficial de um porta-voz da juventude
radical. O seu heroísmo, ao insistir ser o único responsável pelo panfleto,
ajudou a reunir estudantes em defesa não só do seu caso, mas também de sua
causa. Em contraste com movimentos estudantis posteriores, que colocariam
entre suas principais exigências a de anistia para seus membros, o movimento
estudantil revolucionário na Rússia colocava em último lugar as exigências
de ordem pessoal a fim de afirmar seus princípios.
O medo da crescente agitação estudantil levou as autoridades uni­
versitárias em São Petersburgo, quando do início de um novo semestre
letivo em 22 de setembro, a fechar as salas não utilizadas onde ocorriam
costumeiramente os encontros de universitários. Isso causou, no dia 23, a
entrada forçada de cerca de 500 estudantes no Salão de Atos que havia sido
trancado, ao que se seguiu no dia seguinte uma marcha de mil deles pelas
ruas até a casa do curador da universidade. Esses atos sem precedentes pro­
vocaram mais prisões, e um protesto similar em outubro em Moscou — o
primeiro desse tipo lá — levou a 340 prisões e 37 detenções. No dia 20 de
dezembro, a Universidade de São Petersburgo foi formalmente fechada. A
essa altura, os estudantes começaram a se entusiasmar com a experiência
de montar uma espécie de contra-universidade. Os dizeres “Universidade
de São Petersburgo” foram pregados na Fortaleza de Pedro e Paulo, onde
21 Citado tal como traduzido em Venturi, pp. 249,248.
22 Ibid., p. 249.
646 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mikhailov era mantido incomunicável. Jovens manifestantes confinados


na cidade de Kronstadt estabeleceram sua própria “república” na prisão.
Os universitários estabeleceram a sua própria “universidade livre” para
continuar o processo de esclarecimento público com a ajuda de alguns dos
professores mais jovens que haviam pedido demissão da universidade em
protesto contra o seu fechamento forçado.
A universidade livre e o movimento da Escola Dominical foram interrom­
pidos em março de 1862 com a repentina prisão, à noite, de Pavlov, professor
que havia tido central importância naquelas duas iniciativas. Mas a maior
parte da Universidade de São Petersburgo não abriu até agosto de 1863.
Durante os últimos dezoito meses, quando afinal não havia nem universidade
nem contra-universidade, o movimento estudantil atingiu um clímax frenético
que teve grande impacto no curso futuro da tradição revolucionária russa.
Em primeiro lugar, nesse período Herzen e Ogarev tentaram de modo algo
desajeitado dar uma organização revolucionária segundo o estilo ocidental
clássico ao amorfo movimento russo. Mas o Terra e Liberdade mal tocou,
que dirá controlou, a agitação dentro da Rússia.
A prisão de Nicholas Chernyshevsky, no verão de 1862, seu longo
encarceramento na Fortaleza de Pedro e Paulo antes do julgamento e seu
exílio final na Sibéria, em maio de 1864, deram à geração jovem um herói
e mártir. A famosa obra que publicou durante esse período de prisão, O
que fazer? Ou contos do Novo Povo, serviu de modelo para os novos
crentes numa ordem socialista racional. O ideal de Chernyshevsky era
o de uma comuna estudantil governada por um puritanismo utilitarista,
com o propósito de se tornar uma empresa de cooperação produtiva e
um centro de esclarecimento para as massas. Sua resposta de despedida
à questão sobre O que fazer? enfatizava a necessidade de estruturas co­
munais e objetivos antes sociais que políticos. O livro oferecia orientação
para a busca dos estudantes por um novo tipo de vida e sociedade que,
por sua vez, gerou no solo russo um novo tipo de revolucionário pro­
fissional. A chave estava em uma crença fanática e ascética na ciência.
O cientificismo era para Chernyshevsky e seu amigo mais novo, Dobro­
liubov, em grande medida uma questão de “troca de catecismos”, com
o que ex-seminaristas substituíam uma crença absoluta por outra “sem
qualquer conflito interior”.23

23 Descrição feita pelo filósofo religioso Vladimir Soloviev, Sobranie sochinenii, 1911, voi. vi, p. 270.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 647

A subcultura universitária passou a ser identificada com violência pelo


povo quando uma repentina série de incêndios varreu São Petersburgo na
primavera de 1862. Numa Rússia inflamável, construída com madeira, o medo
do fogo era endêmico; e rumores sobre incendiários da Boêmia chegaram
“até a última cabana, até o camponês sem teto”.24 Temores generalizados se
ligaram de modo específico aos novos revolucionários estudantes quando da
aparição do panfleto Jovem Rússia em maio de 1862, precisamente no mo­
mento do maior dos incêndios. Esse documento era obra de dois estudantes
de Moscou, Peter Zaichnevsky e Pericles Argiropulo, e marcou o início de
uma tradição revolucionária russa com diferenças bem acentuadas frente a
qualquer coisa no Ocidente.
Ambos os estudantes haviam antes tido alguma proximidade com o
movimento Terra e Liberdade de Herzen, e Zaichnevsky havia estudado a
Revolução Polonesa de 1830-1831, admirava Mazzini e fizera sua estréia
como orador revolucionário, em fevereiro de 1861, em um réquiem católico
realizado em Moscou em memória de estudantes mortos na Varsóvia.
Mas o Jovem Rússia se distanciava de quaisquer manifestos de linguagem
mazziniana (1) com sua exaltação quase sacramental de atos violentos e
(2) com sua identificação de violência com revolução social e não nacional.
Trazia esta profecia fabulosa: “Virá para breve o dia em que desfraldaremos
a bandeira do futuro, a bandeira vermelha. E com um poderoso grito de
“Vida Longa à República Democrática e Social Russa” investiremos contra
o Palácio de Inverno para exterminar todos os que moram lá”.25
A luta de classes violenta ocorrería entre o partido imperial e o “partido
do povo” na Rússia, “cujo destino estabelecera que fosse o primeiro país a
realizar a grande causa do Socialismo”. Se houver resistência, “gritaremos
“Peguem seus machados” e então atingiremos o partido imperial sem pou­
par golpes, do mesmo modo como ele não poupa seus golpes contra nós”.26
A terra e bens móveis seriam redistribuídos e se estabeleceríam fábricas
“sociais”. Uma elite revolucionária teria de “tomar em suas mãos a ditadura
e prosseguir sem que nada a detenha”, para só então ceder o poder a uma

24 Koz’min, iz istorii, p. 261. Algumas pessoas sugeriram que proprietários de terra estavam incendiando
São Petersburgo para retaliar a emancipação dos servos — e até que os tártaros estavam atacando. V.
S. Chelishev, “Krestianskoe volnenie po povodu slukhov ozhigariakh”, em Biblioteka dlia chtenüa,
1863, n° 1, pp. 274, 280, 283.
25 Jovem Rússia, como citado em Venturi, p. 295.
26 Ibid., pp. 295-296.
648 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

assembléia nacional eleita por meio de sufrágio universal. De outro modo,


as eleições poderiam levar ao fim da revolução, como na França de 1848.
Seu programa de “se colocar à frente de todo movimento”27 foi a princípio
condenado como uma importação ocidental elitista por Herzen e Bakunin
em Londres — e até, nesse momento inicial, por Chernyshevsky em São Pe-
tersburgo. Contudo, o Jovem Rússia na verdade representava um abrangente
programa revolucionário com autênticas raízes na realidade russa.28 Em pri­
meiro lugar, o manifesto nasceu do novo niilismo cientificista. Zaichnevsky
tinha vindo de sua pequena quinta provinciana em Orel para a Universidade
de Moscou, a fim de estudar matemática. Voltou-se para a política não em
razão de privação pessoal, mas da determinação ideológica de “defender a
racionalidade do socialismo”.29 Empregou o processo litogràfico, utilizado
na reprodução de cursos universitários, para colocar em circulação excertos
de duas influentes fontes do novo niilismo: o ateista A essência do Cristia­
nismo^ de Feuerbach, e o materialista Força e matéria, de Büchner. Quando
de sua prisão, a polícia também encontrou um manuscrito inconcluso do
manifesto plebeu original, O que é propriedade?, de Proudhon, cujo iguali-
tarismo rústico o tornou talvez o mais influente pensador revolucionário do
Ocidente na Rússia da época.30
No início de 1861, Zaichnevsky rompeu com um grupo de discussões,
o dos estudantes da Biblioteca de Kazan, para formar um grupo pequeno,
porém intenso, de cinco a sete membros, os quais, ao que parece, utilizavam
o nome de A Sociedade dos Comunistas, de modo que assim se tornou o
primeiro grupo “comunista” em solo russo.31
Zaichnevsky foi um dos primeiros agitadores estudantis a cultivar o apoio
das massas à revolução social. Seu grupo trabalhou com grande dedicação atra­

27 Ibid., p. 290. Zaichnesky identifica esse programa com Barbès, o principal colaborador associado
de Blanqui da década de 1830.
28 Ibid., p. 285. O relato de Venturi deve ser complementado com o relato póstumo de B. Koz’min, Iz
isto rii, pp. 127-345.
29 M. Lemke, Politicheskie protsessy v Rossii 1860-kh gg., 1923, p. 19.
30 Além das referências anteriores sobre o assunto, v. B. Goldman (Gorev), “Rol* Prudona v istorii
russkogo melkoburzhuaznogo sotsializma”, em Krasnaia Nov’, 1935, n° 1, pp. 160-173 e outras obras
arroladas em Itenberg, Dvizhenie, pp. 116,137. Sobre a influência de Proudhon sobre o colaborador
de Chernyshevsky, Dobriulov, V. Bazanov, Russkie revoliutsionnye demokraty i narodoznanie,
Leningrado, 1974, p. 134.
31 O número de “cerca de 20” dado por Venturi (p. 286) é diminuído por Koz’min, Is istori/, p. 134,
que, em compensação, pormenoriza um número maior de indivíduos em contato com o grupo, o
qual pode ter alcançado, mas não ultrapassado, a cifra de 15 a 20 (p. 146).
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 649

vés do movimento da Escola Dominical em Moscou,32 e em seguida se voltou


para a agitação revolucionária mais ativa no interior. Zaichnevsky partiu de
Moscou a cavalo no dia 21 de maio de 1861, com o objetivo de difundir as
idéias socialistas e desenvolver a estratégia revolucionária entre os camponeses
de sua Orel natal.33 Logo veio o rompimento com Argiropulo, que dizia que
“pregar não significa lutar”.34 Zaichnevsky respondeu que a pregação deveria
— se feita com seriedade — desenvolver-se em confrontação e até em conflito.
A confrontação pública com funcionários estatais enganadores e com
reformistas tímidos ajudaria a acabar com qualquer respeitabilidade da
Rússia oficial, do mesmo modo como o cântico estudantil cadenciado de
chelovek-cherviak (o homem é um verme) estava rompendo qualquer aura
de santidade que ainda restasse nas aulas compulsórias de teologia.35 Pregar
o socialismo, na visão de Zaichnevsky, não era apenas um ato educacional,
mas também um ato dramático. Mesmo que a testemunha acabasse mandando
o agitador para a forca, a imagem de um revolucionário verdadeiramente
dedicado assombraria seu perseguidor, do mesmo modo como os mártires
cristãos tinham assombrado a decadente nobreza romana.
Preso por ordem pessoal do Tzar Alexandre n, Zaichnevsky conseguiu,
todavia, concluir o Jovem Russia. Ele chocou a sociedade russa com suas
palavras de abertura:

A Rússia está ingressando na etapa revolucionária de sua existência [...] Sob o


presente regime um pequeno número de pessoas detém o controle decisivo do
destino dos demais [...] tudo é falso, tudo é estúpido, da religião [...] à família
[...] uma revolução, uma revolução sangrenta e impiedosa [...] deve alterar tudo
em suas próprias raízes [...] sabemos que rios de sangue correrão e que talvez até
vítimas inocentes perecerão [...]36

A mesma vida de estudante em Moscou que adestrou Zaichnevsky traria


em poucos anos o cumprimento da sua profecia. Moscou era tradicionalmente
menos simpática a idéias liberais ocidentais do que São Petersburgo. Tinha
ligação mais íntima com as tradições religiosas da velha Rússia que se opu­
nham àquelas idéias e foi o centro de boa parte da ressurgência nacionalista
reacionária que acompanhou o esmagamento da rebelião polonesa de 1863.

32 Koz’min, Iz istori^ pp. 157-166.


33 Ibid., p. 181 ss.
34 Ibid., p. 185.
35 Peter Boborykin, Za Polvekaì Moscou/Leningrado, 1926, p. 208.
36 Venturi, pp. 292-293.
650 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O Congresso Eslavo de Moscou, em 1867, tornou-se o lugar de lançamen­


to da nova ideologia reacionária pan-eslava — financiada com subsídios
generosos da administração da cidade e com apoio entusiasmado de seus
jornais. Em contraste com o mais moderado e transnacional Congresso dos
Eslavos ocorrido em Praga, em 1848, o congresso de Moscou se tornou um
veículo do chauvinismo russo.37
Mais uma vez, a natureza de mútuo auto-reforço dos extremos ficou
evidente. Moscou, novo centro da reação, era também o novo solo fértil da
revolução. Cerca de dez estudantes de Moscou, em sua maior parte originá­
rios da região do Volga, haviam formado em 1864 um grupo revolucionário
secreto chamado apenas A Organização; e dentro desta surgiu um grupo
ainda menor e mais secreto conhecido como Inferno, que alegava estar ligado
a um Comitê Revolucionário Europeu.38 Certo desejo de sacrifício — senão
de sofrimento — conjunto era parte central desses grupos. Eles emula vam o
estilo de vida ascético (com hábito de dormir no chão e de partilha comunal)
defendido por Chernyshevsky em O que fazer?
O próprio Chernyshevsky se tornou o mais acabado modelo para a nova
geração — tanto por sua rejeição de Herzen e da nobreza radical mais velha39
quanto por sua aceitação do martírio que lembrava o cristianismo primitivo.40
A nova sede por traduzir palavras em atos primeiro se expressou numa série de
pactos e complôs entre jovens moscovitas para libertar Chernyshevsky. A mais
pitoresca das novas comunas, a Academia Smorgon de 1867-1869 (cujo nome
remetia à região de floresta nos Urais onde ciganos treinavam ursos, daí ser
chamada também de Academia Urso), planejou explodir um trem para libertar
Chernyshevsky e levá-lo em segredo para o exterior, a fim de que fundasse

37 Como se daria com freqüência no novo chauvinismo, o chamado veio não do centro do poder
imperial, mas da periferia: o tratado de um obscuro eslovaco, Eudovít Stúr, que defendia a unificação
dos eslavos sob a liderança da Rússia, tendo por capital Moscou, por língua o russo e por religião,
a ortodoxia. Ver discussão da obra de Stúr “A Eslavidade e o Mundo do Futuro”, M. Petrovich, em
Journal of Central European Affairs, 1952, abr., pp. 1-19; e do Congresso de Moscou em Petrovich,
The emergence of Russian Panslavism, 1856-1870, NY, 1956, pp. 241-254.
38 A datação feita por Venturi de 1865-1866 é revisada à luz de novos dados por R. Filippov,
Organizatsiia Ishutina, p. 50 ss.
39 Chernyshevsky rompeu com Herzen ao visitá-lo em Londres em 1859. Para um exemplo de uma visão
ainda mais negativa de I. Khudiakov, que se encontrou com Herzen como emissário da organização
Inferno em Genebra, em 1865, e o denunciou por “viver como um nobre e não pôr em prática na
sua própria vida aquelas idéias de que ele tanto falava”, v. Filippov, p. 126.
40 Um líder do grupo colocou Chernyshevsky ao lado de Cristo e São Paulo como um dos três grandes
homens da história mundial: “Delo Karakozova”, em Krasny Arkhiv, 1926, n° 4, p. 93.0 tratado que
Khudiakov escreveu em 1866 em Genebra foi dedicado “aos verdadeiros cristãos” (Dlia istinnykh
khristian).
LIVRO Ili, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 651

um jornal revolucionário. Mas acabou por se contentar com enviar um de


seus próprios membros para Genebra em 1867 para reimprimir O que fazer!
Esse grupo também idolatrava a figura de Dmitry Karakozov, o jovem
estudante moscovita e membro do Inferno, que fora executado por sua
tentativa fracassada de assassinar o Tzar Alexandre em 4 de abril de 1866.
Desajeitada que fosse a sua tentativa, ela de fato abriu de alguma maneira
uma nova era de “propaganda pelas ações” — de terror e contra-terror, que
conduziría finalmente ao assassinato do tzar, quinze anos mais tarde.
O grupo Inferno pregava uma nova e sublimemente suicida teoria do
assassinato. Os membros faziam votos de celibato, de segredo e de completa
separação de toda a família e amigos do passado. A meta era o assassinato do
tzar — de preferência no domingo de Páscoa. Esperava-se que isso deflagrasse
uma campanha mais ampla de outras “seções” do “Comitê Revolucionário
Europeu” para exterminar monarcas por toda parte. O assassino, na véspera
do ato, deveria de modo deliberado ocultar sua verdadeira identidade não
só com um nome falso, mas também assumindo uma falsa personalidade
— com adotar de modo ostensivo um papel de bêbado e tagarela em total
desacordo com sua verdadeira dedicação revolucionária. Imediatamente antes
do ato, deveria desfigurar seu rosto a ponto de tornar-se irreconhecível; logo
após cometê-lo, deveria tomar veneno — deixando apenas um manifesto
da “organização”, que teria assim garantido um impacto que a propaganda
pacífica jamais alcançaria. O manifesto do mítico Comitê Revolucionário
Europeu deixado por Karakozov causou tamanho trauma no governo, que
este, após o julgamento secreto e a execução pública do revolucionário,
mandava prender até quem visitasse seu túmulo.41
Essa atmosfera de expectativa amedrontadora criou o clima para a che­
gada a Moscou de Nechaev, o gênio sombrio da tradição russa. Diferente de
quase todos os revolucionários da década de 1860, Nechaev vinha de uma
família da classe trabalhadora. Seu pai havia sido operário manual e sua mãe
costureira na cidade sem vida de Ivanovo-Voznesensk, o centro da nascente
indústria têxtil russa.42 Aos nove anos, Nechaev começou a trabalhar como
mensageiro em uma das fábricas dessa “Manchester russa” situada no curso
superior do Volga.

41 Venturi, p. 349; também pp. 336, 345-346.


42 Para detalhes de sua juventude sombria, v. P. Ekzempliarsky, “Selo Ivanovo v zhizni Sergeia
Genad’evicha Nechaeva”, em Trudy Ivanovo-Voznesenskogogubernskogo nauchnogo obshchestua
kraevedeniia, 1926, p. 7 ss.
652 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Para ele, escapar para a vida estudantil moscovita foi uma espécie de
libertação. Absorveu com avidez a mitologia dos círculos estudantis de fim
dos anos 1860, a qual tendia a fundir e confundir numa única tradição
heróica o cientificismo ascético de Chernyshevsky, o chamado à violência
de Zaichnevsky e a tentativa de tzaricídio de Karakozov.43 Reprovou as
impropriedades de todos os revolucionários anteriores e, ao mesmo tempo,
valeu-se de sua origem numa classe baixa como uma espécie de certificado de
especial mérito. Só ele tinha sofrido no passado — e defendería a aceitação
de bom grado do sofrimento e do sacrifício pela “causa comum”. Um líder
estudantil romeno de Moscou, Zemfiry Ralli, havia iniciado com pioneirismo
a profissionalização da organização revolucionária tomando por modelo uma
sociedade secreta baseada diretamente na Conspiração de Buonarroti.44 Ralli
foi então para o exterior, a fim de se tornar o principal editor de Bakunin;
e Nechaev logo o acompanhou, indo a Genebra e lá sendo acreditado pela
“União Revolucionária Mundial”, organização mítica de Bakunin. Enquanto
estava no estrangeiro, Nechaev escreveu e publicou seu famoso Catecismo
de um Revolucionário: guia sombrio para a criação de uma personalidade
inteiramente revolucionária e para a manipulação calculista dos outros em
prol da causa revolucionária.4546
Esse não foi o primeiro Catecismo Revolucionário**6 e foi, sob muitos
aspectos, uma continuação dos esforços de Bakunin para adotar rituais ma-

43 P. Pomper, “Nechaev and Tsaricide: The Conspiracy within Conspiracy”, em The Russian Review,
1973, abr., p. 130.
44 Venturi, p. 359; e Ralli, “Sergei Genad’evich Nechaev”, em Byloe, 1906, vol. vu, p. 137.
45 Tradução do texto para o inglês em B. Dmytryshyn, Imperial Russia: a source book, 1700-1917, NY,
1967, pp. 241-247. Discussão e análise em Venturi, Roots, p. 359 ss., devem ser complementadas pela
diferenciação mais clara entre Nechaev e Bakunin em M. Confino, “Bakunin et Nechaev. Les débuts
de la rupture. Introduction à deux lettre inédites de Michel Bakunin — 2 et 9 Juin 1870”, em Cahiers
du monde russe et soviétique, 1966, out.-dez., pp. 581-699. Varias tentativas de imputar a Bakunin
uma grande parte da autoria do Catecismo (e também, em menor medida, a Ogarev, Tkachev e/ou
Enisherlov) são revisadas e refutadas por A. Ivanov (“Kto avtor ‘Katekhizisa revoliutsionera’?”, em
Novy Zhurnal, vol. Cxxiii, 1976, pp. 212-230). Ele conclui que a obra “pertence em seu conceito
e em sua composição a Nechaev e a mais ninguém” (p. 230). P. Pomper não leva em consideração o
artigo de Nechaev, mas insiste (para mim, de modo inconvincente) na autoria compartilhada com
Bakunin: “Bakunin, Nechaev, and the ‘Catechism of a Revolutionary’: The Case for Joint Autorship”,
em Canadian-American Slavic Studies, 1976, inverno, pp. 535-546.
46 V. a obra volumosa de um autor identificado apenas como P. H., The Revolutionary Catechism in
four languages (inglês, francês, galês e irlandês), Bath/L, 1849 (BO): “P[ergunta]. Qual é o objetivo
da Revolução? Riesposta]. A destruição das coisas existentes. P. Qual é o simulacro da revolução? R.
A substituição de coisas impossíveis de existir [...]” A seção sulista e mais radical dos dezembristas
empregava a forma de catecismo em 1825 (Ivanov, p. 224). Para as origens alemãs setecentistas do
polêmico uso de catecismos, v. J. Schmidt, Der kampf um den katechismus in der Aufklärungsperiode
Deutschlands, Munique, 1935.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 653

çônicos num manual revolucionário. Mas o documento também representava


uma resposta final à pergunta de Chernyshevsky: o que fazer? Ao raciona-
lismo ascético de Chernyshevsky, Nechaev acrescentou um ódio destilado
ao mais brilhante sobrevivente dos círculos revolucionários extremistas dos
anos 1860: Peter Tkachev.
Tkachev fazia parte da acossada ala petersburguesa de todos os princi­
pais grupos extremistas sediados em Moscou na década de 1860, da Jovem
Rússia à Academia Smorgon. Passou grande parte da década na prisão, o
que solidificou sua intensa identificação com Chernyshevsky.47 Foi um dos
primeiros russos a endossar o materialismo econômico48 — e pode ser que
tenha levado Nechaev a tomar conhecimento, com aprovação, da existência
de Marx.49 Dominava a arte “esópica” de transmitir mensagens revolucio­
nárias por meio de jornalismo feito dentro da lei; e, em 1868, publicou um
artigo que exerceu profunda influência sobre Nechaev: “Homens do Futuro
e Heróis da Mediocridade Burguesa”.
Tkachev sugeria que os “novos homens” de Chernyshevsky estavam
adquirindo um foco que lhes permitiría (por implicação) destruir a odia­
da “mediocridade burguesa” (meshchanstvo). Tudo o que era preciso era
que “todos os seus esforços e aspirações convergissem para um ponto: o
advento do triunfo de sua idéia”.50 Tinham de ser pessoas que se entregam
47 Venturi, p. 390.
48 Venturi, pp. 395-396. A referência feita por Tkachev em 1865 a uma passagem da Critica da
economia política incluía uma declaração incisiva de que “essa idéia se tornou comum a todos os
homens honestos e de pensamento, e nenhum homem inteligente pode achar alguma séria objeção
a ela”.
O materialismo filosófico ajudou Tkachev a passar de uma posição reformista para uma posição
revolucionária (R. Theen, “The Political Thought of P. N Tkachev in the 1860’s: From Reform to
Revolution”, em Canadian Slavic Studies, 1969, verão, pp. 200-223, esp. p. 220, nota 69), embora
Tkachev fosse hostil ao marxismo (D. Hardy, “Tkachev and the Marxists”, em Slavic Review, 1970,
mar., pp. 22-34).
O mais completo estudo de Tkachev hoje é o de Hardy, Peter Tkachev, the critic as Jacobin, Seattle,
1977. Outras obras são A. Weeks, The first Bolshevik, a political biography of Peter Tkachev, NY,
1968; M. Charol, The unmentionable Nechaev, a key to Bolshevism, NY, 1961; e R. Cannae, Aux
sources de la Révolution Russe, Netchaiev du nihilisme au terrorisme, 1961. As primeiras duas dessas
obras tendem a traçar elos diretos com o bolchevismo; à última falta qualquer documentação.
49 Nechaev apresentou o revolucionário Marx ao público russo quase com displicência: “Quem
quiser uma exposição teórica detalhada de nosso ponto de vista, poderá encontrá-la no Manifesto
do Partido Comunista que publicamos” (Venturi, p. 384). Venturi atribui a tradução a Bakunin, o
que, tem-se quase certeza, está incorreto (B. Koz’min, “Kto byl pervym perevodchikom na russky
iazyk ‘Manifesta Kommunisticheskoi Partii’?”, em Literatumoe Nasledstvo, vol. LXin, 1956, pp.
700-701); mas a suposição feita por Confino de que a autoria seja de Nachaev (p. 615) é também
só hipotética.
50 De “liudi budushchego i geroi meshchanstva”, em Delo, 1868, n° 4 e 5, tal como citado em Confino,
“Bakunin”, p. 617.
654 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

“inteiramente e com total abnegação” a essa “idéia”, que era, claro, a idéia
de revolução social na Rússia.
Nechaev foi quem proporcionou essa determinação obstinada. Esse foi
o seu único atributo elogiado até por seus detratores, e foi precisamente o
atributo necessário para liderar intelectuais brigões. Com efeito, Nechaev
se designou diretor executivo do movimento estudantil, que até então havia
desempenhado apenas funções legislativas e judiciais, econômicas e educa­
cionais. Ao que parece, ele se via como uma autoridade executiva rival à do
tzar. Adotou uma série de apelidos que sugeriam autoridade: o rei, o barão,
Liders (a partir da palavra inglesa “leader”), Barsov (em referência ao lorde
russo), Nachalov (em referência ao comandante russo), a águia e Volkov (a
partir de “lobo” em russo). Começou a empregar o plural maiestàtico, e pode
ser que tenha tido contato com um grupo extremista que planejou explodir
o trem do tzar perto de Elizavetgrad ao fim do verão de 1869.51
Nechaev tentou instilar no movimento estudantil um novo modelo de
dedicação revolucionária forjado nos tempos difíceis dos anos 1860. Invo­
cava a linguagem rude dos camponeses — e concentrou seu recrutamento
no Instituto Agrícola de Moscou, onde esse idioma tinha um efeito intimi-
dador. Parecia ter especial afinidade com os revolucionários dos Bálcãs, com
sua tradição de brigas e vinganças sangrentas. De sua antiga amizade com
o romeno Ralli em Moscou à sua visita ao líder búlgaro Khristo Botev em
seu caminho de volta à Rússia em 1869, chegando à sua admiração pelos
assassinos sérvios do Rei Michael Obrenovich e à sua própria adoção de
cidadania sérvia, Nechaev prefigurou a ligação próxima que se desenvolvería
entre revolucionários balcânicos e revolucionários russos do novo tipo.52
Para ele, “o revolucionário é um homem condenado” que “cortou todos os
laços com a ordem civil, com o mundo educado [...] se continua a habitá-lo,
é só para destruí-lo com maior eficiência”.53 O catecismo ensinou ao novo
tipo de revolucionário como utilizar diferentes categorias da sociedade que
ele havia jurado destruir. Os indivíduos importantes e inteligentes deve­
ríam ser mortos; os importantes e não inteligentes deveríam ser deixados
de lado, já que sua estupidez levaria os descomprometidos à revolta. Uma
51 V. o artigo inédito de P. Pomper, “Nechaev, Lenin, and Stalin: The Psychology of Leadership”, pp.
17, 18, 38, nota 34. Pomper se inclina a crer que Nechaev já fazia experimentos com explosivos
antes de viajar para o exterior.
52 Pomper; “Tsaricide”, p. 126; G. Bakalov, “Khristo Botev I Sergei Nechaev”, em Letopisi Marksizma,
1929, vol. ix-x; e discussão em Venturi, pp. 773-774, nota 29.
53 Do texto do Catecismo presente em Dmytryshyn, Imperial Russia, p. 241.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 655

terceira categoria, “animais e personalidades de destaque, nem inteligentes


nem competentes”, deveria, se possível, ser chantageada, a fim de que seus
“segredos sujos” não fossem divulgados. Os revolucionários deveríam fin­
gir que seguiam uma quarta categoria de “políticos ambiciosos e liberais
de diversos matizes”, ao mesmo tempo que os forçariam a dar passos mais
radicais que tornassem impossível voltar atrás. Em quinto lugar vinham
os revolucionários doutrinários ou retóricos, que tinham de ser forçados a
ir além da mera conversa e teoria e agir na prática. Isso serviria ao duplo
propósito de matar os fracos e treinar os que sobrevivessem para que se
tornassem ativistas linha-dura no futuro. Por fim, vinham as mulheres, que
ou seriam os melhores revolucionários ou então figuras a receber o mesmo
tratamento que a terceira e quarta categorias de homens.54
O Catecismo distinguia a vindoura “camaradagem” (tovarishch estuo} das
organizações ocidentais com seu “respeito pela propriedade, pelas tradições
[...] pela ‘civilização’ e ‘moralidade’” e até das “irmandades” de Bakunin.55
Nechaev retornou de Genebra com um cartão de filiado ao “comitê geral” da
organização mítica de Bakunin, “União Revolucionária Mundial”, e em segui­
da fundou tanto um jornal como uma organização com o nome Narodnaia
Rasprava (Justiça Sumária do Povo). Seu selo oficial falava da “Seção Russa
da União Revolucionária Mundial” e exibia um machado rodeado pelas
palavras “Comitê da Justiça Sumária do Povo de 19 de fevereiro de 1870”.
Essa era a data para a qual se havia marcado um levante revolucionário:
nono aniversário da emancipação dos servos e bicentenário do levante cam­
ponês liderado por Stenka Razin. Nechaev viajou até Vladimir e Ivanovo
à procura de recrutas camponeses para a sua elite revolucionária, que foi
organizada em pequenas células de cinco homens. Elo decisivo e força diri­
gente, no dia 21 de novembro liderou o grupo central no assassinato de um
estudante que integrava o grupo, o qual, como o próprio Nechaev, havia
trabalhado numa fábrica em Ivanovo e tinha o nome tão prosaico de Ivan
Ivanovich Ivanov. O assassinado Ivanov, um filho ilegítimo e ex-carcereiro,
pode ter recusado a incumbência do grupo principal da Narodnaia Rasprava de
matar o tzar, talvez com explosivos preparados em uma livraria nas cercanias
de São Petersburgo. Ele pode então ter sido executado em razão de dúvidas
quanto à sua fidelidade.56 Ou sua morte pode ter sido um crime calculado

54 Ibid., pp. 244-246; comentários (e traduções de sua fraseologia) de Venturi, p. 367.


55 Venturi, p. 367; Confino, p. 671, nota 1.
56 Uma hipótese derivada por uma extrapolação das informações constantes em “Tsaricide”, pp.
656 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

para afiar a lealdade e coesão daqueles implicados no crime. Seja como for,
o tzaricídio parece ter sido parte do plano para deflagrar a revolução social
no dia 19 de fevereiro, o qual incluía também o recrutamento de operários
das fábricas de munição de Tula.
Nechaev, que fugiu para o estrangeiro em meados de dezembro depois
de ter sido descoberto o corpo de Ivanov, tornou-se objeto de uma maciça
caçada humana em Londres, Paris e Suíça. De fato, foi julgado três vezes
pelo assassinato: primeiro por meio da versão ficcionalizada em Os demônios
de Dostoiévski, que começou a ser publicado em série no Arauto Russo de
Katkov em 1871; pela segunda vez quando de seu julgamento formal depois
de ser preso na Suíça no dia 14 de agosto de 1872 e ser extraditado para o
governo russo; e, por fim, pela terceira vez quando o próprio tzar o julgou.
Ao ouvir os clamores desafiadores de Nechaev por vingança revolucionária
em sua cerimônia de execução encenada, Alexandre n mudou sua pena de
vinte anos de trabalhos forçados para “prisão para sempre” sublinhando
pessoalmente essas palavras.
Mesmo em total isolamento na Fortaleza de Pedro e Paulo, Nechaev
exerceu certo impacto hipnótico sobre seus captores. Acabou até por ensi­
nar alguns deles a escrever em código; e, à medida que outros prisioneiros
políticos começaram a encher a fortaleza no fim dos anos 1870, instruiu
alguns deles em “desinformação”: a disseminação de manifestos falsos para
confundir o populacho e aterrorizar o oficialismo. Quando, no fim dessa dé­
cada, descobriu-se que ele ainda estava em São Petersburgo e não na Sibéria,
planos para libertá-lo começaram a substituir o projeto anterior de libertar
Chernyshevsky. Após o assassinato do tzar no dia Io de março de 1881, 69
soldados foram presos sob suspeita de colaborar com um plano de fuga de
Nechaev, o qual foi posto em um isolamento ainda mais profundo na prisão.
Morreu misteriosamente no dia 21 de novembro de 1882, talvez escolhendo
58
o aniversário do assassinato de Ivanov para o seu próprio suicídio.57

Intelligentsia

Sem conhecimento de seu uso prévio na Polônia, a palavra intelligentsia


foi introduzida na língua russa em 1861 com um artigo que descrevia es­

133-134, e Venturi, p. 775, nota 44.


57 Venturi, p. 387.
58 Sugerido por Pomper, “Nechaev, Lenin”, p. 39, nota 44.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 657

tudantes russos do sul no Império Habsburgo.59 Logo se tornou o “talismã


verbal” da nova geração de estudantes russos como um todo — carregada
de mais sentido universal do que jamais fora para os poloneses.
Não só os revolucionários, mas também liberais moderados, eslavófilos
românticos e ocidentalizantes racionalistas: todos se apropriaram do termo.
Tomaram-no como veículo do segredo de um despertar nacional por meio
da mobilização mental contra a inércia burocrática da velha Rússia. Os oci­
dentalizantes deram continuidade a uma longa tradição de uso reverenciai da
palavra francesa intelligence por radicais pioneiros, como Chaadaev e Herzen.60
Eslavófilos como Ivan Aksakov propagaram a imagem da intelligentsia russa
como uma força moral sem classe social que buscava se situar mais próxima
do povo comum e sofredor do que os intelectuais da aristocrática Polônia.61
Até funcionários estatais conservadores começaram a falar sobre “o desen­
volvimento de uma intelligentsia do povo”62 (narodnaia intelligentsia significa
tanto intelligentsia nacional como intelligentsia do povo).
Não demorou para que as expectativas ultrapassassem as possibilidades
práticas. Ao fim dos anos 1860, os revolucionários protestaram posse exclu­
siva do novo rótulo e do forte senso de retidão coletiva que se ligava a ele.
Nicholas Shelgunov, o primeiro radical a popularizar o termo, entreviu, em
sua Proclamação à Nova Geração de 1861, uma nova elite relativamente
apolitica, “a intelligentsia do país”,6364
a surgir da alargada população estu­
dantil. Em uma década, Shelgunov terá criado a palavra intelligent como
singular de intelligentsia e uma insígnia de filiação ao grupo. Também fez
uma distinção moral entre o verdadeiro e o falso intelligenti
Pisarev e Mikhailovsky, que se tornaram, um após o outro, os dois jorna­
listas radicais mais influentes na Rússia depois da prisão de Chernyshevsky

59 O uso mais antigo do termo como um substantivo coletivo por P. Lavrosky, de Kharkov, é reproduzido
e discutido no estudo exaustivo de O. Müller, Intelligencija, Untersuchugen zur Geschichte eines
politischen Schlagwortes, Frankfurt, 1971, p. 27. Seu trabalho negligencia, contudo, a riqueza e
prioridade dos empregos poloneses mesmo antes do uso por Libelt (de Wójcik) que ele menciona,
p. 395.
60 Müller, Intelligencija, p. 105 ss. V. especialmente a idéia de Chaadev, em 1835, sobre as vantagens
do atraso para ultrapassar o Ocidente em matéria de inteligência nacional (pp. 109-110).
61 Ibid., p. 141 ss. V. também A. Pollard, “The Russian Intelligentsia: The Mind of Russia”, em California
Slavic Studies, vol. in, 1964, p. 7, nota 19, pp. ll-15b
62 A. Nikitenko, citado em Müllet; pp. 124-125; v. também o emprego por Aksakov, p. 147.
63 Shelgunov, Vospominaniia, Moscou/Peters burgo, 1923, p. 33. Shelgunov foi o primeiro a identificar
o termo com racionalismo e consciência (Pollarda, pp. 15-16).
64 Müller; Intelligencija, p. 293, nota 126.
658 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

em 1862, viam a intelligentsia como a “força movente da história”,65 com a


própria história a se mover segundo as leis do progresso estabelecidas pelo
apadrinhado de Saint-Simon, Auguste Comte.66 Bakunin e Lavrov, os dois
principais teóricos e líderes da comunidade de emigrantes revolucionários,
guiavam-se mais pela vertente hegeliana da ideologia — o que é evidente no
apelo de Lavrov (feito em suas influentes Cartas Históricas de 1868-1869),
para que a “personalidade que pensa criticamente” se tornasse “um agente
consciente e informado do progresso”.67 Estava implícita, em todas as disputas
antiquadas do fim dos anos 1860 e início dos anos 1870 sobre “fórmulas do
progresso” e teorias tripartites da história, uma sede por ideologia em si mes­
ma: sede por algum conjunto científico e secular de crenças sobre a história e
mudança social que aspirasse a uma validade universal.68 Para manter vivas
as tradições radicais do início dos anos 1860 durante a atmosfera repres­
siva que se seguiu à tentativa de assassinato de 1866, fazia-se necessário o
reconforto moral da história. Assim, o niilista se tornou o intelligent. Passou
da iconoclastia à ideologia.
Além da preocupação com introduzir a ciência na sociedade, a intelligentsia
desenvolveu um comprometimento apaixonado com a justiça social. O in­
telectual radical não era em geral considerado inteiramente intelligentny a
menos que acreditasse no que Mikhailovsky chamou de “verdade de dupla
face”. Mikhailovsky insistia que a palavra russa para verdade, pravda^ sig­
nificava tanto a verdade objetiva e científica (pravda-istina) quanto justiça
(pravda-spravedlivost’].69 O intelligent tinha de se comprometer com ambas.
Embora a primeira leva de indivíduos que se acreditavam uma intelligentsia
se visse como um grupo de amigos evolucionários da ciência que rejeitavam

65 Pisarev, citado sem atribuição precisa em Bol'shaia Sovetskaia Ensiklopediia, Ia ed., vol. xxvin, p.
609.
66 Sobre o artigo fundamental de Pisarev de 1865, “Idéias Históricas de Auguste Comte” (Sochineniia,
São Petersburgo, 1897, vol. iv, pp. 313—464), e outros materiais que apresentaram Comte à Rússia
no fim da década de 1860 e início da de 1870, v. Billington, “Intelligentsia”, p. 812 ss.
67 P. Lavrov, Istoricheskie Pis’ma, São Petersburgo, 1906, p. 358.
68 Uma variedade desconcertante de filósofos da história passou por exame (e, em particular, foi rejeitado
o darwinismo social como uma racionalização do conflito perpétuo e do chauvinismo reacionário);
v. Billington, Mikhailovsky, pp. 27—41.
69 V. o artigo escrito em 1889 e escolhido por Mikhailovsky para ser a introdução de sua obra reunida,
Sochineniia N. K. Mikhailovskago, São Petersburgo, 1896, vol. i, p. 5. Ele celebra a “maravilhosa
beleza íntima” dos dois significados da palavra pravdai e define sua própria missão como a de
encontrar “um ponto de vista segundo o qual pravdaistinai e pravda-spravedlivost'i [...] sigam lado
a lado, uma enriquecendo a outra”.
Mikhailovsky também empregou o termo “intelligentsia russa”, popularizando-o em sua coluna
“Cartas sobre a Intelligentsia Russa”. V. Billington, Intelligentsia, p. 812.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 659

o nechaevismo como uma aberração psicologica, a convergência que logo


adveio entre a intelligentsia e a causa revolucionária foi prevista por Peter
Tkachev, a ponte humana entre essas duas tradições no fim dos anos 1860.
Na condição de “única pessoa que definiu com termos claros a intelligentsia
na década de I860”,70 Tkachev a via como um novo grupo social inseguro
criado pelas grandes reformas, ao qual não restava, contudo, “nenhum outro
meio de subsistência senão o trabalho intelectual”.71 Embora econômica e
culturalmente dependente das classes governantes, essa crescente categoria
de trabalhadores intelectuais estava social e psicologicamente mais próxima
do proletariado. Deixado em uma situação insegura tanto quanto o operário
por sua vulnerabilidade ao mercado, o intelectual retinha, contudo, a habili­
dade de identificar essa infelicidade com a de toda a sociedade e de conceber
uma alternativa revolucionária já amadurecida. Tkachev acreditava que a
maioria dos trabalhadores intelectuais se tornaria funcionários indolentes
do Estado, assim dispostos a se contentar com “completa liberdade em sua
especialidade, mas nada além disso”.72 Mas também viu a possibilidade de
que um remanescente revolucionário produzisse o que chamou, numa carta
a Engels de 1874, de “partido revolucionário socialista intelligentskaia” 73
Tkachev buscou encontrar uma base para um tal partido por meio de as­
sociação direta com Blanqui desde a época que ele foi exilado, em 1873, até o
momento em que fez seu panegírico quando de seu enterro, em 1881.74 Tkachev
e Nechaev tiveram pouco sucesso prático, mas executaram uma espécie de
coup d’imagination com sua versão ascética da idéia de Blanqui de que uma
elite amoral deve fazer a revolução e governar depois dela. A violência não
so era tolerada, era também exaltada por tornar “o sucesso da revolução” a
única paixão admissível. Como disse um dos partidários de Nechaev: “Não
existe honra absoluta; existe apenas honra partidária”.75 Mesmo antes que se

70 Pollard, p. 17.
71 Citado sem referência precisa em Pollard, p. 18. Frase similar se encontra em Tkachev, Izbrannye
Sochineniia, 1932, vol. i, p. 282.
72 Citação de Tkachev sem referência precisa em Pollard, p. 19.
73 Tkachev, Izbrannye, vol. i, p. 193, vol. in, p. 91; originalmente publicado como Offener Brief an
Herrn F. Engels, Zurique, 1874.
74 Tkachev morreu após uma longa doença, cinco anos depois da morte de Blanqui. A ênfase na violência,
na disciplina elitista e na execução de traidores que dava em seu jornal Nabat (1875-1877) foi
atribuída à influência de um rico polonês que era seu patrocinador e colaborador, Gaspar-Mikhail
Turski: D. Hardy, “The Lonely Emigré Petr Tkachev and the Russian Colony in Switzerland”, em
Russian Review, 1976, out., pp. 400-416.
75 Partiinaia chestnost*, citado da confissão de G. Enisherlov presente em Pirumova, “Bakunin ili
Nechaev”, p. 178. A sugestão de Pirumova de que Enisherlov inspirou o Catecismo de Nechaev
660 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

formasse qualquer partido, definiu-se a necessidade de uma espécie de espírito


sacrificial de partido, ao qual Lênin mais tarde chamará partiinost’,76 Mas os
novos intelectuais autoconscientes precisavam ligar seu senso de dedicação
à realidade social dos camponeses e trabalhadores retrógrados. A força para
operar essa união — fosse como fosse — era o populismo russo.

As bandeiras dos anos 1870

Populismo

O populismo nunca foi uma doutrina fixa, mas antes um vago ideal social
comum a muitas sociedades agrárias que estejam passando por um processo
de modernização ágil, porém desigual. Os dois maiores movimentos a desig­
narem a si próprios de populistas no fim do século xix ocorreram na periferia
rural da civilização européia: na Rússia e nos Estados Unidos. Era comum
a ambos (e a movimentos populistas posteriores) uma sede por regeneração
social que idealizava as relações humanas mais antigas e de base agrária e
que, por uma ironia, preparou o caminho para a posterior consolidação de
poder político e econômico centralizados.
O populismo se tornou um modo de pensamento — e não só uma certa
disposição geral — quando uma elite educada se pôs a defender os costumes
de uma região atrasada ou de um setor econômico confrontado pelo avanço
do capitalismo e da economia de mercado. Foi cultivado por pessoas cuja
educação as havia alienado de raízes e valores nativos e que, ainda assim,
buscavam uma compensação simbólica e psíquica na idéia de que “o povo”
produziría “algum tipo de sociedade integrada”,77 a qual evitaria o elitismo
despersonalizado do capitalismo. Assim, o populismo tendia a reviver a fé
romântica ou numa cultura (os primeiros eslavófilos russos) ou numa região
(os populistas norte-americanos que vieram depois) que estivesse ameaçada.
Na medida em que a Rússia passava por uma maciça europeização, sua
elite intelectual descobriu de repente o narod^ fazendo do camponês russo

parece duvidosa a Pomper (“Tsaricide”, pp. 127-128), a B. Suvarin (carta a Novy Zhurnal, 1975,
dez., pp. 281-283) e a Ivanov, “Kto”, p. 68.
76 Sobre a genealogia desse termo, v. Billington, Intelligentsia, pp. 816-817.
77 Do resumo que Isaiah Berlin faz de sua London Conference de 1967, “To Define Populism”, em
Government and Opposition, vol. in, 1968, n° 2, p. 173. Baseei-me particularmente nas contribuições
de Walicki e Berlin a essa discussão, pp. 137-179. V. também a versão impressa mais completa
editada por G. lonescu e E. Gellner, Populism: Its Meaning and National Characteristics, 1969; e a
resenha que dela faz T. Di Tella, Government and Opposition, vol. iv, 1969, n° 4, pp. 526-533.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 661

o repositório de todas as suas esperanças e necessidades pessoais de uma


ordem social mais humana.
O populismo russo começou com a busca etnográfica compulsiva, dentro
da subcultura universitária dos anos 1860, por um estilo de vida alternativo
em meio ao campesinato russo. No preciso momento em que os estudantes
abandonavam as universidades para se dedicar a atividades revolucionárias,
em 1862-1863, jovens artistas romperam com os conservatórios de pintura
e música de São Petersburgo para formar novos grupos mais plebeus co­
nhecidos como “os andarilhos” (pintores) e “os cinco poderosos” (músicos).
As melhores realizações dessa nova orientação — as pinturas de Repin e a
música de Mussorgsky — buscavam descrever a vida e a verdade do povo
simples; e o fim dos anos 1860 e início dos anos 1870 assistiram a uma ex­
plosão de fato e fantasia sobre a vida camponesa na Rússia. Estudiosos da
vida popular russa, como Afanas’ev e Khudiakov, eram ativos nas agitações
revolucionárias. Estudantes radicais continuamente se reuniram — mesmo
em sua época de maior niilismo — em torno de professores que estivessem
vasculhando a história etnográfica da velha Rússia, como Pavlov, do mo­
vimento Escola Dominical, ou Kostomarov, cujo curso de inverno de 1861
ocasionou uma revolta estudantil digna de nota. Afanasy Shchapov, pensador
radical de seminal importância em Kazan, aproximou-se de questões sociais
através de seus estudos de materiais sobre os Velhos Crentes e o norte rus­
so que foram transportados do Monastério de Solovetsk, no Mar Branco,
para Kazan durante a Guerra da Criméia. O primeiro círculo de tendência
populista em Moscou (o vertepniki ou “covil de ladrões”) se formou nos
últimos meses da Guerra da Criméia sob a liderança de um ex-velho crente
que havia se tornado um destacado compilador de velhas canções russas
e propagandista de idéias democráticas e atéias.78 Autor de uma série sem
precedentes de livros sobre mendigos, tavernas e loucos sagrados da velha
Rússia, Ivav Pryzhov se tornou um membro ativo da célula revolucionária
de cinco homens de Nechaev.79
O isolamento da vida estudantil e a abstração do estudo científico cria­
ram entre os estudantes uma necessidade profunda de algum laço psíquico
com “o povo”; e, à altura dos anos 1860, a busca passou da etnografia para
a vida real. Bakunin ajudou a realizar essa ida às massas por meio de seus
renovados chamados a que se estabelecessem elos eficientes com o impulso
78 Sobre P. N. Rybnikov, v. M. Klevensky, “Vertepniki”, em Katorga i Ssylka* 1928, n° 10, pp. 18—43.
79 Venturi, p. 375 ss., bem como as referências aí dadas.
662 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

insurrecional que, segundo supunha, estaria latente no campesinato. Mas


a principal nova tendência do fim dos anos 1860 e início dos anos 1870
rejeitou tanto a visão romântica dos bandos (shaiki) de Bakunin, à maneira
de Stenka Razin, quanto a rede de Nechaev de grupos revolucionários e
ascéticos de cinco homens.
O novo e não-violento populismo se iniciou com uma segunda onda de
agitação estudantil em 1868-1869 que levou ao fechamento, em março de
1869, da Academia Médico-Cirúrgica localizada em São Petersburgo. Um
grupo de aproximadamente 15 estudantes, a maior parte dos quais estudantes
de medicina, como Mark Natanson, reuniu-se numa casa de madeira de dois
andares em São Petersburgo para formar uma comuna dedicada e disciplinada.
Nicholas Chaikovsky, cujo sobrenome daria nome a esse círculo, referia-se
a ele como uma ordem monástica.
O círculo de Chaikovsky se dedicava coletivamente a se opor ao elitismo
e à violência de Nechaev. Contudo, o moralismo do grupo era tão intenso,
que deu origem a um conjunto de rituais que, à sua maneira, intensificaram
o fanatismo revolucionário. Os encontros envolviam uma mistura de terapia
e estratégia. Dava-se extraordinária importância à análise “objetiva” tanto
da moralidade pessoal como de questões sociais. A prática leninista posterior
da autocrítica e crítica grupai bem pode ter raízes na prática do círculo de
Chaikovsky da “crítica de cada um feita por todos”. Eles acreditavam que
“a análise objetiva das características e peculiaridades de um determinado
indivíduo numa reunião geral de todos” proporcionaria “o método exato
para a regulação de relações entre indivíduos e sociedade”.80 A influência
desse círculo irradiava para a nova geração de estudantes por meio de uma
série de manifestos e uma crescente rede nacional de Círculos de Auto-educação
e Atividade Prática.
O populismo era um movimento de tipo essencialmente proudhonista, assim
antidoutrinário e igualitário, com uma paixão pelas instituições comunais
mais antigas, por estruturas federais descentralizadas e por sociedades de
ajuda mútua que lidavam de modo direto com as necessidades sociais mais
urgentes sem passar em momento algum pela arena política. Assim como
movimentos socialistas utópicos anteriores no Ocidente, o socialismo populista
do círculo de Chaikovsky se enfraqueceu com a fuga do próprio Chaikovsky
para o Novo Mundo.81 Mais ainda do que seus pares ocidentais, contudo, os
80 N. Morozov, em Revoliutsionne narodnichestvo, 1964, vol. i, p. 221; citado em Brower, p. 203.
81 V. D. Hecht, Russian radicals look to America, Cambridge, Massachusetts, 1947, pp. 196-216.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 663

populistas pioneiros na Rússia extraíam profunda satisfação pessoal de seus


papéis de autonomeados agentes “críticos” do processo histórico.
Ao buscar um elo com o “povo”, a elite intelectual primeiro se voltou para
os trabalhadores urbanos, cuja situação de penúria havia sido “descoberta”
por meio do livro Situação da Classe Trabalhadora na Rússia (1869) de V.
V. Bervi.82 Dentro do círculo de Chaikovsky, o príncipe Peter Kropotkin, re­
cém-chegado de uma expedição etnográfica à Sibéria, professou ver na nova
classe trabalhadora “o mais puro elemento revolucionário”.83 Propôs acabar
com o “trabalho privilegiado” dos intelectuais e dos administradores fechando
todas as instituições de ensino superior e abrindo “escolas de ofícios” que
contemplassem diretamente os trabalhadores.84 Por volta de 1873-1874, os
trabalhadores tinham se tornado o principal foco de atividade do círculo de
Chaikovsky e a principal esperança de Kropotkin para combater os estatistas
amorais (gosudarstvennikï) tanto dentro como fora do campo revolucionário.
O anarquista Kropotkin via um novo tipo revolucionário, “o agitador do povo”
(narodny agitator^ a surgir da classe trabalhadora, o qual seria independente
não só da intelligentsia^ mas também de “qualquer liderança dos partidos
de emigrados”.85 Distinguia aqueles que estavam apenas temporariamente
empregados em fábricas {fabrichnye\ sem garantia alguma, e aqueles com
emprego permanente (zavodskie}. Os primeiros, segundo insistia, estavam
fadados a ser revolucionários; os últimos, a ser reformistas.86
Mas a busca pelas massas levou de modo inevitável de volta ao campo,
onde ainda viviam mais quatro quintos da população russa. No “louco
verão” de 1874, mais de dois mil estudantes deixaram as universidades e
as cidades para viver junto ao “povo”. Tão intenso era o desejo dos intelec­
tuais de se identificar com o campesinato, que estudantes judeus aceitaram
o batismo — não por se converterem ao cristianismo, mas em razão do
desejo de compartilhar essa parte da experiência camponesa. Coisa bastante

82 Itenberg, Dvizhenie, pp. 92-100, sobre o impacto dessa obra escrita por um funcionário do governo
ligeiramente mais velho e que havia sido influenciado por seus contatos anteriores com o círculo de
Petrashevsky.
83 Testemunho de um participante citado em M. Miller “Ideological Conflicts in Russian Populism:
The Revolutionary Manifestoes of the Chaikovsky Circle, 1869-1874”, em Slavic Review, 1970,
mar., p. 13; v. também Itenberg, pp. 186-193.
84 Do manifesto “Devemos nos Ocupar de um Exame da Ordem Futura” escrito por Kropotkin por
volta de novembro de 1873 e citado por Miller; p. 16.
85 Ibid., p. 17.
86 R. Zelnik, “Populists and Workers. The First Encounter between Populist Students and Industrial
Workers in St. Petersburg, 1871-1874”, em Soviet Studies, 1972, out., p. 258.
664 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

comum na história revolucionária, a natureza parecia imitar a arte. Alguns


estudantes foram procurar o “povo” cantando o coro de rebelados da cena
final de insurreição da ópera Boris Godunov, de Mussorgsky, que estreou
no início de 1874. Alguns foram viver entre os barqueiros do Volga, como se
respondessem à dramatização de sua miséria na famosa pintura que Repin
fez entre 1870 e 1873, “Transportadores no Volga”, desse modo aprendendo
a “odiar com o ódio deles”.87
A repressão do movimento em direção ao povo e novas restrições sobre
a colônia de estudantes emigrados (em particular uma grande concentração
em Zurique) trouxeram de volta a São Petersburgo e Moscou uma população
estudantil raivosa e desiludida. Ao mesmo tempo, a crença dos revolucioná­
rios em sua habilidade para driblar as autoridades tzaristas alcançou novas
altitudes com a fuga espetacular do príncipe Peter Kropotkin da prisão no
verão de 1875. Uma equipe de revolucionários com procedimento de má­
xima precisão resgatou esse famoso nobre convertido à revolução por meio
da combinação de elementos teatrais, como sinais através de balões e de um
violino cigano, e por meio de uma mensagem levada para dentro da prisão
no relógio de uma visitante que falava francês.88
Kropotkin e outros que o seguiram ao estrangeiro começaram de ime­
diato a enviar para Rússia propaganda revolucionária. Em meio à crescente
expectativa, cerca de quatrocentos jovens revolucionários persuadiram um
padre na Catedral de Kazan em São Petersburgo a celebrar uma liturgia em
honra a Chernyshevsky no dia 6 de dezembro de 1876;89 em seguida, esse
grupo se reuniu do lado de fora para o primeiro protesto público da história
russa. Entre os participantes estava não só o idoso veterano do movimento
Jovem Rússia, Zaichnevsky, mas também o jovem George Plekhanov, que na
década seguinte fundaria a primeira organização marxista russa.
Desfraldando uma bandeira vermelha e proclamando “vida longa à Re­
volução Socialista, vida longa à Terra e Liberdade”, os manifestantes deram
à frouxa designação de “grupo revolucionário populista do norte” uma

87 Itenberg, pp. 338-339 e ss. sobre o caso notável do estudante que se tornou ele próprio um
transportador, D. M. Rogachev. Outros acreditavam que o espírito rebelde de Razin e Pugachev
poderiam ser conjurados no Volga e revivido: V. Debagory-Mokrievich, Ot Buntarstva k terrorizmu,
Moscou/Leningrado, 1930, vol. I, p. 159; e V, Ginev, Narodicheskoe dvizhente v srednem povolzh’e,
1966, pp. 21, 64 ss.
88 Detalhes em M. Miller, Kropotkin, Chicago, 1976, pp. 114-129.
89 O padre pensou que o “Nikolai” a receber a honra era o neto do tzar, o futuro Nikolai il. V. P. Kann,
“Revoliutsionny fórum Peterburga”, em Voprosy Istorii, 1976, n° 12, p. 198.
LIVRO HI, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 665

nova identidade como Terra e Liberdade (Zemlia i Volia). Ao rememorar


Chernyshevsky e revisar o nome da primeira organização revolucionária da
década de I860, os russos dramatizaram mais uma vez o seu crescente senso
de tradição. Emularam a prática já costumeira de martírio heróico em tribu­
nais numa longa série de julgamentos políticos, a começar pelo “julgamento
dos quinze” manifestantes em janeiro de 1877 e alcançando um clímax no
“julgamento dos 193”, encerrado apenas um ano mais tarde. Esse último
caso, o maior julgamento político jamais realizado na Rússia tzarista, foi um
episódio rumoroso com minuciosa cobertura da imprensa.90
Enquanto isso, a Rússia entra em guerra com a Turquia; e a militarização
interna moveu a tradição russa para um caminho até então tomado só por
uns poucos: terrorismo.

Terrorismo

A virada para o terrorismo foi inspirada pela crescente atividade de gru­


pos extremistas no sul da Rússia, em particular nas cidades de Odessa e Kiev.
Odessa estava sob administração militar, e os líderes revolucionários de lá se
basearam em idéias religiosas sectárias e em uma subcultura quase criminosa
para disseminar novas formas de extremismo. Odessa produziu “a primeira
organização revolucionária composta de assalariados”, a União dos Traba­
lhadores Russos do Sul, de 1874.91 Kiev gerou ao mesmo tempo uma série de
movimentos insurrecionais (buntari), entre eles a maior organização revolu­
cionária composta basicamente por camponeses, a Irmandade Combatente.
A confusão entre direita e esquerda se evidencia mais uma vez no movi­
mento que se desenvolveu em Chigirin, perto de Kiev, que envolveu quase
mil camponeses numa sociedade secreta fantástica que seria supostamente
liderada pelo próprio tzar a fim de os libertar do jugo da nobreza. O novo
governo proposto deveria consistir num Conselho (Soviet) de Comissários, e a
nova milícia (druzhiniki) deveria destruir a nobreza com lanças e machados.92
Ao mesmo tempo, a Terra e Liberdade passava a empregar maior vio­
lência. O “círculo básico” dirigente criou um novo grupo destinado apenas

90 Eram divididos em 120 “protestantes” que se recusavam a comparecer no tribunal e em 73 (alcunhados


de “católicos”) que compareceram. V. N. Troitsky, “Protsess ‘193-kh’”, em Obshchestvennoe
dvizhenie v poreformennoi Rossii (título em homenagem a B. Koz’min), 1965, pp. 314-335.
91 Yarmolinsky, p. 197 ss.
92 D. Field, Rebels in the Name of the Tsar, Boston, 1976, pp. 113—207, fornece documentos e uma
narrativa dos fatos.
666 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

à “desorganização”. Isso incluía todo tipo de atividade violenta: libertação


forçada de prisioneiros, assassinato de espiões da polícia e “destruição siste­
mática dos mais danosos ou proeminentes membros do governo”.93
O terrorismo começou a dominar o movimento revolucionário russo no
outono de 1877 em grande medida por causa de dois membros ucranianos da
Terra e Liberdade: o impetuoso e carismático Valerian Osinsky (“o guerreiro”)
e o ascético e rico benfeitor do movimento, Dmitry Lizogub (“o santo”).94
Sugeriram que uma luta política direta e disciplinada contra a autocracia
deveria ter prioridade sobre tudo o mais na Rússia; e que o debate estéril entre
propagandistas (lavrovistas) e defensores de levantes (bakunistas) deveria
ser posto de lado em prol de uma campanha política comum. Havia uma
disparidade não percebida entre meios violentos e fins moderados. Osinsky
defendia que os “terroristas urbanos” deveríam “aterrorizar o governo” para
que este proporcionasse as mesmas liberdades constitucionais pelas quais ele
próprio havia lutado em Rostov do Don.95
A Rússia foi eletrizada pelo primeiro desses esforços: a quase bem-suce­
dida tentativa de assassinato do chefe de polícia de São Petersburgo, Fedor
Trepov, no dia 24 de janeiro de 1878, levada a cabo por Vera Zasulich, uma
antiga amiga de Nechaev, propagandista populista em Kiev e tipografa da
Terra e Liberdade. Uma hábil defesa e uma cobertura jornalística fascinada
transformaram seu julgamento numa investigação policial da vítima, em vez
93 Yarmolinsky, p. 219.
94 Descrições feitas por S. Kravchinsky (Underground Russia, NY, 1883, p. 100), cujos comentários
sobre esses dois homens permanecem um clássico. Para o pouco que se sabe a respeito de Lizogub, v.
E. Khir’iakova, “Vospominaniia i nekotorye svedeniia o Dmitrii Andreeviche Lizogube”, em Zven’ìa,
1932, n° 1, pp. 482-499; e o importante e esquecido esboço biográfico incluído na publicação
oficial da Vontade do Povo, confirmando sua importância central para a virada rumo ao terrorismo:
Literatura sotsiaVno-revoliutsionnoi partii narodnoi voli, Paris, 1905, pp. 363-374.
Lizogub serviu de modelo para o personagem Svetlogub de Tolstói no melhor tratamento literário do
terrorismo (bastante subestimado em comparação com as abordagens de Dostoiévski eTurguêniev):
“O Divino e o Humano” (“Bozheskoe i chelovecheskoe”). Concluído logo antes da Revolução
de 1905, esse conto memorável distingue os aspectos “divino” e “humano” do legado terrorista
mostrando como um dissidente religioso (do tipo que Tolstói admirava) havia sido inspirado pelo
Evangelho, que supostamente continha a essência da verdadeira fé do terrorista, e como depois um
líder revolucionário foi levado ao suicídio por não perceber que esse ideal cristão-anarquista era a
verdadeira mensagem revolucionária: Sobranie sochinenii, 1953, vol. xiv, pp. 205-238, 339.
95 S. Volk, Narodnaia volia, Moscou/Leningrado, 1966, pp. 67-68. A fonte básica sobre essa primeira
aparição do terrorismo organizado no sul da Rússia é Debagory-Mokrievich, Ot buntarstva, vol.
I. O relato romanceado em Kravchinsky (Underground, pp. 70-81) pode ser contrabalançado pelo
relato contrário de A. Ulam: In the name of the people, NY, 1977, pp. 269-296, que tende a evitar
as questões históricas concretas em torno da origem e prefere fazer apenas comentário editorial e
sugestões gerais no sentido de que as raízes do fenômeno estão em Nechaev. V. também J. Bachman,
“Recent Soviet Historiography of Russian Revolutionary Populism”, em Slavic Review, 1970, dez.,
599-612.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 667

de um julgamento criminal da quase assassina. Apesar de sua óbvia culpa,


foi inocentada no mês de março, levada para fora do tribunal nos ombros
de 1.500 a 2.000 estudantes radiantes96 e conduzida em segredo para fora
do país, assim se tornando uma heroína dos emigrados revolucionários.
Osinsky e seus colegas de Kiev seguiram o exemplo de Zasulich com várias
tentativas de assassinato, acompanhadas de declarações públicas de razão. A
partir de março de 1878, passaram a usar um selo vermelho oval que continha
um machado, uma faca e uma pistola, com o rótulo “comitê executivo do
partido revolucionário social russo”.97 Não existia, como em casos anterio­
res, essa organização; mas o termo “comitê executivo” se tornou de central
importância para a organização Vontade do Povo, fundada no ano seguinte.
Em maio de 1878, um dos apadrinhados de Osinsky matou o chefe de
polícia de Kiev; em agosto, um grupo afiliado tentou assassinar o tzar em
Nikolaev; e em abril de 1879 um terrorista perto do Palácio de Inverno dis­
parou cinco tiros na direção do tzar. Em seu julgamento, anunciou: “Nós,
revolucionários, declaramos guerra contra o governo”.98 Osinsky e seus
camaradas foram executados pouco depois; e o governo imperial declarou
estado de sítio, dividindo a Rússia em seis distritos militares. Em resposta,
foi formalmente constituída a organização Vontade do Povo no verão de
1879 com o propósito de combater a autocracia “à maneira de William Tell”,
valendo-se de uma organização paramilitar extremamente centralizada que
logo chegaria a ter algo entre 4 e 5 mil membros.99
Sua estrutura representava um retorno quase completo à tradição
buonarrotiana de conspiração secreta e hierárquica. Cada membro entregava
à elevada causa “todas as posses [...] todas as simpatias e antipatias pessoais,
toda a força e a própria vida”. Aceitava “subordinação absoluta à maioria”
em cada nível da organização e a autoridade absoluta dos níveis mais altos
sobre os mais baixos. Para além dos dois níveis mais baixos de “agentes”,
havia um terceiro e mais restrito grupo, o chamado “comitê executivo” que
usava a designação de “agente de terceiro grau” em seu trato com todos os
demais membros da organização.100 Seus integrantes buscavam camuflar a

96 Volk, p. 69.
97 Ibid., pp. 69-70.
98 Alexander Solovev, citado em Venturi, p. 632.
99 Estimativa de Volk, p. 277.
100 Ibid., pp- 254-255, para uma pesquisa cuidadosa da derivação da maior parte do estatuto da Palavra
do Povo a partir do estatuto da segunda Terra e Liberdade.
668 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

identidade do grupo dirigente e inspirar o vago medo de que pudessem existir


outros círculos internos além do seu próprio. Até o início de 1880 a Vontade
do Povo se referia a si mesma como uma “organização”, mas depois passa a
se chamar de “partido”.101 Desde o início rejeitou a possibilidade de funcionar
como uma organização pública, e insistia que os membros só fossem trazidos
para dentro, cooptados, após um período de aprendizado na condição de
“candidato”. “Grupos de luta” locais deveriam ser submetidos à disciplina
total ditada pela organização central. No outono de 1879, organizações locais
começaram a proliferar por todo o país. Uma explosão dramática no dia 19
de novembro descarrilou um trem no qual se supunha que estivesse o tzar; e
no dia 5 de fevereiro uma intensa explosão no Palácio de Inverno matou 11
pessoas e feriu 56. “O crime político”, escreveu um desesperado jornalista
reacionário, “se tornou uma verdadeira tradição nacional”.102
A Vontade do Povo acabaria por se enxergar como um governo alternativo
com sua própria “administração” central (cinco membros e três “candidatos”
a membros) dada pelo comitê executivo. A organização baseou sua autoridade
em dois “congressos” fundadores em Lipetsk e Voronezh no verão de 1879;
desenvolveu organizações locais por toda a Rússia (com freqüência apresen­
tando grupos separados de estudantes, camponeses e trabalhadores); criou uma
espécie de legislatura (obshchee sobranie); mobilizou “grupos de combate”
como uma espécie de tropa de choque cossaca (a qual era até designada por
meio do termo cossaco atamanstvo}^ e descreveu seu programa de terrorismo
com alvos selecionados com cuidado como o “ministério da justiça da revo­
lução”.103 Seus membros reviveram o termo “guerra partisan” para descrever
sua campanha contra o governo tzarista;104 mas as novas e mais destacadas
características de seu programa eram (1) os esforços ingentes (e surpreendente­
mente bem-sucedidos) para angariar um número substancial de simpatizantes
ativos e auxiliares passivos dentro da classe governante e (2) sua dedicação
quase mítica ao instrumento escolhido pela “justiça do povo”: a bomba.
Ganharam um círculo protetor externo de apoiadores em razão de sua
dedicação abnegada e ascetismo, os quais atraíram intelectuais liberais e ra­
dicais para escrever com pseudônimos no jornal deles. Ganharam protetores

101 Ibid., p. 259.


102 M. Katkov, citado em Ulam, p. 341.
103 Volk, pp. 227, 255-259.
104 No desenho de Lizogub presente no último número do jornal Narodnaia Volta a ser publicado antes
do assassinato do tzar, em Literatura “narodnoi volt”, p. 371.
LIVRO IH, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 669

e “ocultadores” (ukrivateli) dentro do establishment oficial do governo, o que


lhes permitiu pôr em funcionamento uma rede nacional de comunicação.105
A dedicação à bomba foi institucionalizada no verão de 1879 com a
organização de três “centros de dinamite” em São Petersburgo, onde se
fabricariam bombas para a luta final contra a autocracia.106 Esses centros
começaram a ter uma centralidade na vida da nova organização que havia
até então cabido só à imprensa. Embora as prensas permanecessem impor­
tantes para a Vontade do Povo, sua nova e distintiva instituição foi a célula
terrorista localizada perto de um depósito ferroviário, de uma estação de
polícia ou de uma residência oficial. Mulheres eram incluídas, o que dava
à célula a aparência externa de um pacífico grupo familiar. Mas em algum
cômodo interno sem janelas ou em um túnel profundo se dava o verdadeiro
trabalho do “grupo de combate”: a montagem e o despache de bombas.
Andrei Zheliabov, que se tornou o líder da campanha terrorista final que
levou ao assassinato de Alexandre n em Io de março de 1881, ficava, quando
jovem, fascinado pelo uso da dinamite para matar peixes no Mar Negro.
Permaneceu, sob muitos aspectos, mais fascinado pelo brinquedo explosivo de
Nobel do que pela tática de terrorismo. Nascido numa família de camponeses,
recusou-se a tomar parte na primeira onda de terrorismo sulista conduzida
por Osinsky, em 1877-1878, por causa da sua liderança aristocrática. Assim,
quando se juntou às fileiras em 1879, suas origens camponesas deram um
novo e autêntico toque populista ao terrorismo.
Nicholas Kibalchich, o engenhoso projetista dos pacotes de nitrogliceri­
na utilizados pela Vontade do Povo em seus assassinatos, acreditava estar
contribuindo com um novo tipo de movimento revolucionário que nascería
dentro das novas cidades industriais e provocaria a “mistura completa de
revolução política e revolução social”.107 Se havia algo de totalizante na
concepção dele, havia também um profissionalismo no seu hábil trabalho.
Suas bombas eram cuidadosamente construídas para ter um raio destrutivo
de apenas um metro, o que requeria proximidade com a vítima e minimizava
a possibilidade de o assassino escapar com vida.
Quando Alexandre n e seu assassino tombaram mortalmente feridos com
a segunda bomba atirada à sua carruagem em São Petersburgo, no dia Io
de março, o terceiro “lançador” de reserva correu a ajudar o monarca caído
105 V. o extenso capítulo “O Ukrivateli”, Kavchinsky, em Underground^ pp. 166-184.
106 V. Kantor, “Dinamit”, pp. 118-128; Volk, p. 259.
107 Citado em Venturi, p. 680.
670 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

trazendo uma bomba sob o braço, como se oferecesse um travesseiro ao tzar


moribundo.108 Zheliabov ligava o espírito dos terroristas aos dos primeiros
cristãos não-violentos. O fervor moral deles inspirou o romancista Tolstoi e
o teólogo Soloviev a enviar apaixonados pedidos de que se tivesse clemência
para com os assassinos. A carta de motivos dos Comitê Executivo da Vonta­
de do Povo foi endereçada ao novo tzar nove dias depois do assassinato do
seu pai; enfatizava a excruciante relutância deles em empregar violência e a
esperança de uma transferência pacífica de poder para o povo.
Kibalchich ratificou o retrato de terrorista nobre e relutante — seguiu
para a forca destemido, tendo dedicado suas últimas horas de vida a servir a
humanidade, na medida em que febrilmente tentava desenhar uma máquina
voadora movida a foguetes.109 O terrorista ascético que se sacrifica por uma
nova era de liberdade e ciência permaneceu um modelo para os estudantes
russos mesmo em meio à repressão jamais vista dos anos 1880.
Praticamente o único entre os revolucionários russos a se expressar desse
modo, George Plekhanov denunciou, num encontro de emigrados em Paris, a
Vontade do Povo por ter apenas colocado um “Alexandre de três riscados no
lugar de um Alexandre de dois riscados”.110 O pequeno grupo dissidente de
Plekhanov, o Redistribuição Negra, separou-se da Vontade do Povo no seu con­
gresso de fundação em junho de 1879, ao insistir que se enfatizassem objetivos
econômicos e não políticos. Plekhanov se opunha às “exibições pirotécnicas”
do assassinato político do mesmo modo como antes havia rejeitado as “espe­
ranças infantis” dos bakunistas de uma insurreição popular.111 Estabelecería,
de modo lento e à custa de muitos esforços, a tradição marxista rival no meio
dos emigrados nas décadas de 1880 e 1890; mas até ele reconhecería que
“protestar contra a luta terrorista da intelligentsia era coisa completamente
inútil: a intelligentsia acreditava no terror como em Deus”.112
Qual a origem dessa crença? De onde veio o “Deus” ao qual os próprios
marxistas russos depois prestariam culto?
Ao contrário do que em geral se crê, o terrorismo não tem origem no Reino
do Terror da primeira Revolução Francesa. Sem dúvida, o Comitê de Salvação

108 V. o depoimento de Ivan Emel’ianov em Krasny Arkhiv, vol. xl, 1930, p. 184.
109 Cf. a obra de seu parente distante, o posterior revolucionário anarquista Victor Serge, Memoirs of
a Revolutionist, L, 1967 (edição corrigida), p. 2.
110 Citado em Volk, p. 128.
111 Ibid., p. 81.
112 Citado em Volk, “Programmnye dokumenty”, p. 423.
LIVRO 111, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 671

Pública endossou formalmente o “terror como a ordem do dia” e tolerou um


programa draconiano em especial nas áreas fronteiriças ameaçadas, como a
Alsácia sob o governo de Saint-Just e Eulogius Schneider. Mas o comitê via essas
medidas como extraordinárias e próprias a tempos de guerra e anatematizava
o terrorisme^ do mesmo modo como depois Babeuf denunciaria o furorisme.n3
Marx adotou por um breve período o “terrorismo revolucionário” como
um slogan e um recurso depois da aparente derrota de outros métodos revo­
lucionários no fim de 1848. Via-o se desenvolver em resposta ao “canibalismo
da contra-revolução”, e revelou o segredo sombrio responsável por seu atra­
tivo. O terrorismo era o derradeiro método de simplificação revolucionária,
o antídoto para a complexidade e a confusão, o “único meio” “de abreviar,
de simplificar, de concentrar a dor atroz e assassina da velha sociedade e as
114
sangrentas dores de parto da nova [...]”.113
Foi só na Rússia do fim da década de 1860 e da década de 1870 que essa
forma heróica e violenta de simplificação se tornou a bandeira escolhida e o
curso de ação revolucionária favorito contra a autoridade estabelecida. Os
russos acrescentaram aos ingredientes básicos do terrorismo político (“uma
fonte de violência, uma vítima e um alvo”)115 o conceito de terrorismo como
um “ministério da justiça da revolução”.116 No mais importante tratado sobre

113 J. Waciorski, Le Terrorisme politique, 1939 (uma excelente abordagem da história e do vocabulário
do terrorismo feita por um jurista polonês que tem sido ignorado por estudos recentes), atribui
ao Comitê de Salvação Pública a crença de que “o terror é um meio legítimo de defesa da ordem
social estabelecida pela revolução; terrorismo é um meio de ação criminoso” (p. 30). Os termos
“terrorismo”, “terrorista” e “antiterrorismo” se tornaram de uso geral somente após a desgraça de
Robespierre. V. Brunot, vol. ix, pp. 871, 654; Frey, Transformation, pp. 188-189.
Para se guiar na vasta literatura recente sobre terrorismo, v. as obras de dois escritores sobre guerra
de guerrilha: J. Bell, “Trends in Terror: The Analysis of Political Violence”, em World Politics, 1977,
abr., pp. 476-488; e W. Laquer, “Interpretation of Terrorism: Fact, Fiction, and Political Science”, em
Journal of Contemporary History, 1977, jan., pp. 1-42. Este último inclui mais material histórico
e trata da rica ficção sobre o assunto — como faz W. May, “Terrorism as Strategy and Ecstasy”,
em Journal of the New School for Social Research, 1974, verão, pp. 277-298. O ignorado estudo
teológico de May explora o atrativo peculiar de viver perto da morte, libertando “a violência latente
em todas as coisas” e ajudando a criar uma compensação para a “deficiente vida rotineira” do mundo
moderno. V. também M. Hutchinson, “The Concepto f Revolutionary Terrorism”, em The Journal
of Conflict Resolution, 1972, set., pp. 383-396; e o número especial sobre terrorismo do Stanford
Journal of International Studies, 1977, primavera.
O assunto pouco abordado da manipulação terrorista da mídia com propósitos políticos é discutido
em Y. Alexander, “Terrorism, the Media, and the Police”, R. Kupperman e D. Trent, em Terrorism,
Threat, Reality, Response, Stanford, 1979, pp. 331-348.
114 “Sieg der Kontrerevolution zu Wien”, 1848, nov., Werke, vol. v, p. 457. Acrescentamos itálico.
115 E. Waltet; Terror and Resistance. A Study of Political Violence, NY/Oxford, 1969, p. 9. Esse valioso
estudo desenvolve idéias gerais a partir do exame de algumas comunidades políticas primitivas da
Africa.
116 Nechaev, em seus escritos da prisão do fim dos anos 1870, propôs que um tribunal revolucionário
672 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

o assunto, Nicholas Morozov, que integrava o Comitê Executivo da Vontade


do Povo, descreveu o terrorismo como “a mais justa de todas as formas de
revolução”,117 já que atingia apenas aqueles que eram culpados de crimes
contra o povo. Mais ainda, a prática do terrorismo proporcionava uma espécie
de batismo de sangue ao intelectual de mãos limpas. O comprometimento
com a violência, segundo via Morozov, separava o revolucionário dos libe­
rais tagarelas que eram “puramente platônicos” no “amor pela revolução e
no ódio ao governo”.118 O ato terrorista propiciava o “momento de ruptura
febril” (tochka pereloma)119 ao revolucionário aprendiz que busca superar
a inércia de bem-nascido e as inibições de intelectual.

O legado permanente

Blanquismo: o legado interno

A tradição terrorista que a era turbulenta de Alexandre n legou à Rússia era


tanto anarquista quanto autoritária. Era anarquista em sua determinação
de “desorganizar” e destruir todo poder estatal existente. Era autoritária ao
se basear numa organização disciplinada e hierárquica para cumprir sua ta­
refa. Assim, a Vontade do Povo deixou um legado profundamente dividido.
Embora a história seja complexa, pode-se dizer que as tendências autoritá­
rias predominaram dentro da Rússia e que as anarquistas nos reflexos do
movimento no exterior.
É uma profunda ironia que as idéias blanquistas tenham predominado no
legado russo interno da Vontade do Povo. Pois o próprio Blanqui passou toda
secreto entrasse em funcionamento logo após uma insurreição e que oferecesse só duas sentenças:
ou inocência ou pena de morte. V. Pomper, “Nechaev, Lenin”, pp. 19-21.
117 Morozov, Terroristicheskaia Bor’ba, L (mas na verdade foi impresso em Genebra), 1880, p. 8 (BM).
118 Ibid., p. 11. A acentuada oposição entre os objetivos revolucionários sociais e os ideais liberais já
havia sido observada num panfleto do círculo de Petrashevsky de 1849, O que é Socialismo?. Este
definia o socialismo como “diretamente oposto ao liberalismo”, que por sua vez era “destrutivo à
existência social” (Delo Petras hevtsev, vol. i, p. 92).
119 Morozov considerava o tiro de Zasulich o tochka pereloma [“momento febril”] da luta russa, depois
do qual o povo surgiu para se juntar a ela “como se tivesse brotado do chão” (Bor’ba, p. 5). Em sua
tentativa de prescrever o terrorismo como uma espécie de teste de maturidade para a juventude radical
(o que se pode chamar de intelligentnaia russkaia molodezh’}., Morozov estava, em certo sentido,
fazendo uma generalização com base na sua própria conversão do estudo científico para o ativismo
revolucionário. V. seu V Nachale zhizni. Kak iz menia vyshel revoliutsioner vmesto uchenago^ 1907;
V. também a coleção editada por sua esposa, Ksenia Morozova, Nikolai Alexksandrovich Morozov. K
90-letiiu so dnia rozhdeniia, Moscou/Leningrado, 1944. Ao que parece, Morozov planejou, nos anos
1880, escrever uma ampla história do movimento revolucionário russo (pp. 20-21, com bibliografia
à p. 38 ss.); os materiais de que seria composta foram reunidos em IA para futura publicação com
editoria de B. Sapir.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 673

a sua longa vida praticamente desconhecido na Rússia; e os propugnadores


russos do blanquismo, Nechaev e Tkachev, morreram não muito depois
de Blanqui no início da década de 1880. Mas foi justamente por terem se
tornado importantes somente nos últimos e dramáticos anos da Vontade do
Povo que as idéias blanquistas adquiriram o atrativo de uma novidade e a
aura do martírio. Essa combinação criou um fascínio fatal. Durante o reinado
repressivo de Alexandre m (1881-1894) um brilho atraente se ligou a essa
tradição ditatorial muito mais do que aos ideais democráticos do populismo.
O mais claro sinal de permanente veneração pela “propaganda por meio de
atos” dos terroristas está no nome depreciativo que os radicais de todos os
matizes deram a esse período: a era dos atos mínimos (malye dela). O anseio
por atos grandiosos — assassinatos suicidas, fugas dramáticas, lances de
heroísmo — exerceu uma atração desmedida sobre a nova geração de estu­
dantes dos anos 1880 à qual pertenciam Lênin e seu irmão mais velho. Assim,
o blanquismo — como o hegelianismo e o saint-simonismo, as ideologias
revolucionárias originais da elite intelectual européia durante o período dos
atos mínimos que se seguiu às revoluções de 1830 — falou a uma geração
emergente de intelectuais somente após a morte de seu mestre. E, mais uma
vez, num lugar imprevisto ao homem que deu seu nome ao ismo.
A virada blanquista da organização Vontade do Povo pode ser identifica­
da com a viagem ao exterior, no fim de 1880, de Morozov e um ainda mais
interessante teórico do terrorismo, um rico intelectual e proprietário de terras
bessarábio, Gerasim Romanenko. Os dois retornaram à Rússia em 1881 para
desempenhar um importante papel no Comitê Executivo da Vontade do Povo
durante o seu último ano de operação plena. Tenham ou não sido enviados
ao exterior como representantes da Vontade do Povo,120 ou tenham apenas

120 Como é sugerido em S. Valk, “G.G. Romanenko”, em Katorga i Ssylka, 1928, n° 11, p. 47. Parece
que depois disso não se escreveu sequer um estudo sobre Romanenko; e a questão geral do legado
da Vontade do Povo nunca recebeu tratamento adequado. É surpreendentemente ignorado no
Ocidente, onde um livro atrás do outro (Ulam é o mais recente e o que menos traz elementos originais)
termina com o assassinato de Alexandre n. Entre os estudiosos soviéticos, V.Tvardovskaia enriquece
substancialmente o retrato, insistindo de modo um tanto ousado (contra Volk e as posições soviéticas
convencionais) que a postura final e o legado da Vontade do Povo foram essencialmente blanquistas,
mas que o próprio Blanqui não era “blanquista”, segundo a conotação caricaturada que o termo
assumiu nas polêmicas leninistas (Sotsialisticheskaia mysl’ Rossii na rubezhe 1870-1880kh godov,
1969, pp. 226-234). Uma das poucas boas abordagens ocidentais das atividades revolucionárias
da negligenciada década de 1880 é V. Zilli, La Rivoluzione russa dei 1905. La formazione dei
partiti politici (1881-1904), Nápoles, 1963, pp. 57-79. Um excelente estudo que vai às fontes de
dois grupos menores que sucederam a Vontade do Povo é N. Naimark, “The Worker’s Section and
the Challenge of the ‘Young’: Narodnaia Volia, 1881-1884”, em Russian Review, 1978, jul., pp.
273-297. Novos elementos das atas de tribunais estão em N. Troitsky, “Narodnaia Volia9 perde
tsarkim sudom, 1550-1591, Saratov, 1971.
674 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ascendido a uma situação de proeminência no período em que a organização


estava preocupada com o assassinato do tzar, é fato inconteste que esses dois
homens desempenharam papel fundamental no derradeiro giro para as idéias
blanquistas dentro da Vontade do Povo.
Morozov havia mantido contato com Tkachev e outros blanquistas em Paris
em 1880; e Tkachev lhe escreveu, no dia Io de novembro de 1880, que “seu
programa coincide perfeitamente com o meu”.121 Romanenko, que permaneceu
no Ocidente um ano a mais que Morozov, tinha relações tanto com Tkachev
quanto com seu patrocinador polonês, Turski.122123Em Genebra, publicou uma
memorável convocação à “revolução terrorista” como a mais eficiente, justa
e incruenta forma de guerra social nas condições de vida modernas. Tinha
por título Terrorismo e Rotina.113 Romanenko argumentava que somente os
intelectuais poderíam conduzir uma revolução moderna. Eles eram “o grupo
revolucionário mais consciente”, o único capaz de interromper a “rotina” fatal
e o “filisteismo” da vida cotidiana. Mais ainda, a elite “consciente” se fazia
necessária para prover liderança às massas “espontâneas” e indisciplinadas.
A oposição leninista básica entre uma vanguarda “consciente” e as mas­
sas “espontâneas”, junto à idéia exaltada de Lênin do “partido” como um
“órgão da consciência”, tem assim claras origens nos últimos ensinamentos
blanquistas da Vontade do Povo.124
Desde o seu retorno à Rússia no verão de 1881 até a sua prisão em
Moscou no dia 8 de novembro, Romanenko foi figura enérgica no Comitê
Executivo da Vontade do Povo. Durante esse período de extrema repressão
governamental, o “partido” — como agora a Vontade do Povo designava a
si própria — respondeu intensificando sua ênfase blanquista na violência.
Uma carta do Comitê Executivo aos camaradas no exterior falava de “levante
exclusivamente militar com o objetivo de tomar o poder”.125
121 Volk, “Programmnye dokumenty”, p. 414; e ss., para materiais inéditos em torno dessa conexão.
122 Valk, p. 39 ss.
123 Ibid., pp. 38, 42, 48. Terrorizm i rutina, L (na verdade Genebra), 1880, tinha a princípio o título de
“O Terrorismo e os Filisteus” e foi publicado com o pseudônimo de “V. Tarnovsky”.
124 Todas essas idéias e expressões estão presentes na proclamação de A. Prybyleva-Korba no jornal oficial
deles de dezembro de 1880: Narodnaia Volia, n° 4, citado em Volk, p. 366. A palavra “partido”, com
sentido de “solidariedade de pensamento” e de total comprometimento, foi aos poucos substituída
pela palavra “organização”, termo fundamental com que se referir à Vontade do Povo. V. Volk, p.
259; Tvardovskaia, pp. 227-228.
125 Tvardovskaia, pp. 230-231. A carta “ao povo ucraniano”, que aparentemente Romanenko esboçou
para o Comitê Executivo, citava os primeiros pogroms antijudaicos como exemplos de crescente
resistência popular à opressão do campesinato ucraniano (Valk, “Romanenko”, pp. 50-52); mas
esse elemento anti-semita incomum entre os primeiros revolucionários foi refutado em Narodnaia
Volta, out., n° 6.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 675

Os blanquistas sempre fantasiavam que a tomada do poder estivesse ao


seu alcance e sempre insistiam no poder como um pré-requisito da revolu­
ção social. De maneira que não chega a ser inteiramente surpreendente que
Romanenko, na prisão, tenha tentado persuadir o tzar em pessoa a lançar
a revolução social. Escreveu uma carta memorável a Alexandre m, usando
frente e verso de 46 folhas, buscando convertê-lo ao socialismo. Foi entregue
pelo ministro do interior ao tzar em sua propriedade rural em Gatchina,126
bem no momento em que outras mensagens lhe diziam que uma nova infusão
de juventude estava revivendo a Vontade do Povo.
No primeiro aniversário do assassinato, um “círculo universitário central”
em São Petersburgo fez circular um periódico hectografado, Luta<> no qual
chamava a “jovem intelligentsia” (intelligentnoe iunoshestvo) a carregar a
tocha revolucionária.127 Esse grupo estava em contato com os remanescentes
do Comitê Executivo e com alguns sobreviventes periféricos da Vontade do
Povo;128 foi esmagado não muito depois da prisão, em fevereiro de 1883,
da última sobrevivente do primeiro Comitê Executivo da Vontade do Povo,
Vera Eigner. Ela fez um gesto derradeiro de bravata blanquista que se tornou
parte do folclore da nova geração de estudantes. Insistia que, num gesto de
boa vontade endereçado aos jovens, o governo libertasse não um terrorista
qualquer, mas o próprio Nechaev, então idoso.129
Um dos mais dinâmicos dos novos estudantes radicais, Lev Shternberg
escreveu em 1884 uma nova defesa do terrorismo depois de ser enviado de
São Petersburgo para Odessa. Argumentava que o terrorismo era a forma
menos sangrenta de revolução num país tão dependente da liderança a ser
provida por uma intelligentsia.13® Tentou criar um novo Comitê Executi­
vo em Ekaterinoslav em setembro de 1885. Depois de sua prisão no ano
seguinte, tornou-se famoso entre os prisioneiros políticos por seu slogan
constantemente repetido — impecável em sua piedade superficial, ainda que
inconfundível em sua alusão revolucionária à Vontade do Povo: “O Deus de
Israel ainda Vive!”.131
126 Valk, p. 53 ss. Não existe registro da resposta do tzar; mas a oscilação entre esquerda e direita evidente
no elogio que Romanenko faz dos pogroms prenuncia sua virada mais tarde para o monarquismo,
após o exílio na Ásia Central (ibid., p. 59).
127 Bor’ba, 1882, mar., citado em Volk, p. 346.
128 Chamavam a si próprios de “grupo preparatório dos organizadores práticos do partido da Vontade
do Povo** (Valk, p. 351 ). O círculo universitário se designava por “centro partidário” e chamava sua
publicação de “órgão partidário estudantil”.
129 Billington, Mikhailovsky, pp. 141-142.
130 I. Shtenberg, Politichesky terror v Rossii, 1884, ed. hectografada em IA.
131 M. KroF, “Vospominaniia o Shternberge”, em Katorga i Ssylka, 1929, n° 8 e 9, esp. pp. 226-228.
676 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

De fato, o Deus revolucionário se recusava a morrer. No firn de 1883,


um jovem poeta-filosofo da Universidade de São Petersburgo organizou uma
União da Juventude que almejava (1) estabelecer elos com as seções de tra­
balhadores dispersas da Vontade do Povo, com os revolucionários poloneses
e com os emigrados russos em Paris; e (2) uni-los por meio de um jornal
clandestino, O Revolucionário^ e por meio de uma nova tática de “terror
agrário-fabril” destinado a restabelecer a força organizacional no nível lo­
cal.132 Após prisões terem destruído a União em São Petersburgo no fim de
1884, os sobreviventes em Kazan tentaram proporcionar uma retaguarda
de apoio e continuidade.133 Foi dessa região do Volga no interior profundo
da Rússia que surgiu uma nova força sob a forma de Alexander Ulyanov, o
irmão mais velho de Lênin.
Ulyanov, um jovem e brilhante estudante idealista de Simbirsk, ajudou a
formar em 1886, em São Petersburgo, uma nova Fração Terrorista da Vontade
do Povo que repercutiu todos os elementos clássicos dos movimentos revo­
lucionários russos liderados por jovens intelectuais — e ampliou o emprego
do terrorismo de elite.
O grupo se materializou pela primeira vez na Universidade de São Peters­
burgo como uma união central de grupos estudantis regionais (soiuz zemlia-
chestv). Sasha Ulyanov, um jovem estudante de ciências naturais, participou
de todos os treze grupos originários da região do Volga.134 Ele também era
secretário de uma sociedade lítero-científica e um estudante ardente com
uma dedicação tipicamente evangélica às ciências naturais, levantando-se de
manhã cedo durante os meses de verão a fim de tirar máximo proveito dos
seus experimentos nos dias de luminosidade prolongada.135
Toda a compreensão que esse jovem cientista provinciano tinha de questões
sociais e políticas mais amplas advinha das tradições da intelligentsia revo­
lucionária. Toda a sua vida extracurricular em São Petersburgo era devotada
à veneração ritual de pessoas ou eventos celebrados no panteão radical. O
Exilado por dez anos na Ilha Sacalina, Shternberg se tornou um estudioso da cultural local e, depois
de seu retorno a São Petersburgo, um dos pais-fundadores da antropologia e etnografia russas
modernas. Cf. o artigo em sua memória em Sbornik muzeia antropologii i etnografia Leningrado,
vol. vu, 1928, pp. 1-70.
132 Naimark, p. 286 ss. A doutrina de fabrichno-agrarny terror lembra em alguns aspectos a doutrina
paralela da “ação direta” desenvolvida pelos sindicalistas revolucionários ocidentais.
133 Segundo novos documentos (datado de 1885, de Kazan) referentes a Vladimir Burtsev, o futuro
hagiógrafo da tradição revolucionária, citado em Naimark, p. 294.
134 Ivansky, p. 159.
135 Ibid., p. 200.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 677

fechamento, em 1884, do jornal legal favorito dos revolucionários, Os Anais


da Pátria, deixou o jovem Ulyanov quase incapaz de fazer suas primeiras
provas na universidade. Ele freqüentava as aulas de Vasily Semevsky sobre a
penúria do campesinato russo como uma demonstração ritual de solidariedade
a um professor ao qual se negara o título de doutor em razão de sua grande
simpatia pelos mujiques. Ajudou a organizar o primeiro protesto público em
São Petersburgo desde 1876: uma passeata pacífica de 400 estudantes até os
túmulos de revolucionários no cemitério de Volkovo, no dia 19 de fevereiro
de 1886, data de aniversário de 25 anos da emancipação dos servos. Em
novembro, ficou arrebatado ao compor a delegação estudantil que partici­
pou de um protesto de mil pessoas em Volkovo durante um dia inteiro, por
ocasião do vigésimo quinto aniversário de morte do colaborador jornalístico
mais próximo de Chernyshevsky, Nicholas Dobroliubov.136
Assim, o jovem Ulyanov era um puro acólito da intelligentsia radical e
cientificista quando colaborou na organização da Fração Terrorista da Vontade
do Povo, o primeiro grupo do mundo a chamar seus membros de terroristas.
Estes defendiam que os direitos constitucionais eram indispensáveis para a
criação de um partido dos trabalhadores na Rússia; e que uma renovada
ameaça terrorista era o meio mais seguro de pressionar o governo a fazer
concessões. O primeiro assalto da Vontade do Povo induzira à vacilação;
uma segunda investida induziría à transigência. Uma renovada e “decisiva
luta terrorista” era ainda mais necessária em razão da especial obrigação
na Rússia de “combater, em duas frentes, o capitalismo e o governo” e de
“elevar a disposição militante da sociedade avançada”.137
136 Ibid., pp. 243, 178-179, 186-189, 249-273. Quando menino na escola, sua primeira leitura de
texto ilegal foi do mais extremado dos niilistas cientificistas dos anos 1860, Pisarev (pp. 117-118);
nove dias depois do protesto em Dobroliubov, Ulyanov integrou outra delegação, a qual foi visitar
o satirista e ex-Petrashevets Michael Saltykov-Shchedrin, à época muito doente.
137 Relato feito por I. Lukashevich, reimpresso em Ivansky, pp. 288-289. O programa partidário de
Ulyanov, escrito na prisão, não coincide com a posterior doutrina leninista de que a intelligentsia^
como “grupo social independente”, deve liderar a luta política contra uma burocracia governamental
organizada (que também é, afinal, “uma força social independente”). “Programma terroristicheskoi
fraktsii partii ‘Narodanaia Volia’”, reimpresso em Ivansky, pp. 297-298. A principal arma deveria ser
o terror que precisa ser “sistemático” e acompanhado de atividade “propagandista” (propagatorskaia)
que vá além da mera propaganda (ibid., pp. 303, 300).
Um estudo soviético recente (I. Al’tman, “Programma gruppy A. I. Ulyanova”, em Voprosy Istorii,
1977, n° 4, pp. 34-44) indica que o programa foi pela primeira vez concebido em dezembro de
1886, formulado de modo mais claro em fevereiro de 1887, permanecendo incompleto quando
da prisão de Ulyanov. O artigo faz uma tentativa débil de sustentar o ponto de vista, bem próprio
à hagiografia leninista, de que o grupo representou um estágio ideologicamente progressista na
evolução do populismo ao marxismo. Al’tman encontra alguma similaridade entre a fraseologia
de Ulyanov e de Plekhanov, mas se baseia principalmente na repetida atribuição ao marxismo de
conceitos igualmente compartilhados pela tradição blanquista.
678 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Em um dos debates que levaram à decisão da Fração Terrorista de Ulyanov


de tentar matar Alexander ui no dia do sexto aniversário de morte do seu
pai, um membro, ao discordar, pediu-lhes que dessem atenção à realidade
que mudava: “Estatísticas são mais ameaçadoras do que bombas”.138 Apesar
de todo o seu cientificismo, Ulyanov estava comprometido com as bombas.
Com efeito, explicou ao grupo o funcionamento do projétil míssil que plane­
javam utilizar. Propagande par le fait significava para ele a propagação não
de fatos científicos, mas de feitos terroristas. Sua declaração do programa
da Fração foi lida pela planejada vítima, Alexander in, enquanto Ulyanov
aguardava preso a sua execução. O tzar cobriu o manuscrito de anotações
apopléticas, mas ao fim se consolou com a observação de Ulyanov de que
“sob o atual regime político da Rússia praticamente qualquer elemento
desta atividade é impossível”. “É bom saber”, escreveu o tzar.139
Mas o tzar não achou tão bom assim; os uniformes onipresentes que
passaram a protegê-lo continuaram a ser desafiados — como nas sociedades
primitivas — pelo poder da máscara.140 A máscara dava ao homem comum
uma nova identidade; um anonimato que alimentava medo e incerteza; uma
“imagem” pública que, grotesca, era contudo esplêndida e maior que a vida.
À diferença dos uniformes de poder que — conquanto opressivos — pelo
menos definiam papéis claros, a nova máscara revolucionária destruía todos
os laços com o que existia de familiar e previsível, com toda a lealdade e
responsabilidade da sociedade humana normal.
A máscara fazia parte da equipagem de revolucionário profissional
na Rússia já nos anos 1860. A organização Inferno já havia pregado a
necessidade de que se desfigurasse o próprio rosto antes de assassinar um
oponente. A Covil de Ladrões e a Academia Urso prezavam por uma apa­
rência bárbara para intensificar o efeito de choque na sociedade. Um grupo
misterioso que surgiu como um reflexo da Vontade do Povo, um grupo
terrorista de 1886 chamado “Lanceiros”, mascara va até suas bombas ao
disfarçá-las de dicionários.141

138 Relato de V. Dmitrieva em Ivansky, p. 193.


139 Ibid., p. 298, nota 1, e pp. 300—302 para outros comentários sobre o tzar; sobre a explicação de
Ulyanov sobre o seu projétil no dia 25 de fevereiro, v. AFtman, p. 38.
140 O contraste entre uniformes e máscaras no exercício da violência política é desenvolvido, com
exemplos africanos mas aplicações mais abrangentes, por Walter, Terror, pp. 85-101.
141 É bastante claro que esse grupo marginal afetou de modo profundo o ex-chefe tzarista da okhrana
de Kiev e ex-secretário pessoal do tzar: A. Spiridovich, Histoire du terrorisme russe, 1886-1917,
1930, pp. 14-17.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 679

Quando o jovem Ulyanov surgiu com sua Fração Terrorista, os homens


fardados supuseram que a organização estudantil regional a que ele tinha
antes pertencido, com os homens de Kuban e de Don, mascarava na verdade
um grupo revolucionário dedicado à revolução camponesa e à violência nas
fronteiras.142 Depois que Ulyanov e sua Fração foram esmagados em 1887,
nâo se podia usar máscara nos grandes centros urbanos de São Petersburgo
e Moscou, onde o controle policial tornou quase impossível a existência de
organizações terroristas. Mas o uso de máscaras se disseminou nas vastidões
do sul da Rússia, onde tinha surgido uma década antes — com Lizogub e
Osinsky, na Ucrânia, e com Zheliabov, nas praias do Mar Negro. Além dos
esforços de Romanenko, Shternberg e outros de perpetuar no sul a tradição
terrorista da Vontade do Povo, lá surgiram novos grupos e projetos, dos
quais o mais impressionante era o dos Conspiradores. Seu programa era in­
fluenciado pela Fração Terrorista de Ulyanov, mas sua dedicação estava mais
em organizar células terroristas urbanas do que em realizar atos terroristas.
A organização tinha seu centro em Kiev e contava com braços em Kharkov
e Kazan de 1884 a 1892, quando então mudou sua sede para Moscou. Embora
nunca tenha implementado a campanha ativa que se dedicava tão claramente
a preparar, a organização serviu de base de treinamento, assim sustentando
o senso conspiratório de solidariedade que então se institucionalizava na
tradição russa. Quando de seu desmanche em 1903, esse grupo alimentou
de membros a Iskra de Lênin e outras organizações revolucionárias do sul.143
A essa altura, a máscara havia retornado para o norte a fim de reestabelecer
os laços com a subcultura estudantil radical de São Petersburgo por meio do
irmão mais novo de Ulyanov. O partido bolchevique de Lênin tinha profundas
raízes na tradição revolucionária tão especificamente russa; e representava,
como veremos, não tanto “um novo tipo de partido” quanto a formação
final do partido com que seu irmão tinha sonhado. Por trás da nova másca­
ra do marxismo estava a velha figura de um intelectual revolucionário que
estabelecia autoridade política por meio do encantamento do populismo e
do cientificismo, e das táticas do terrorismo.

142 Boletim de polícia de 2 de janeiro de 1887, em Ivansky, p. 275; também Istorichesky Arkiv, 1960,
n° 2, p. 204, sobre os quase certamente apolíticos kubantsy i dontsy.
143 A história básica desse grupo negligenciado é “Istoricheskaia zapiska o tainom obshchestve
‘zagovorshchikov’”, em Katorga y Ssylka, 1928, n° 12, pp. 49-58, esp. o programa às pp.
51-52. Havia a já familiar estrutura de três graus de associação, o círculo “amorfo” (amorfay), o
“preparatório” e o “político”, este último sob a estrita disciplina dos “constituidores” (ucbrediteli),
que também controlavam todo o processo de cooptação, do grau mais baixo ao mais elevado.
680 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Anarquismo: o eco mais além

O ideal de uma revolução política constitucional havia se disseminado


no início do século xix do centro (França) para a periferia sul e leste da Eu­
ropa. No fim daquele mesmo século — como se por vingança —, o ideal de
uma revolução social total para além da política se disseminou, em sentido
contrário, da periferia para o centro. Oficiais maçons haviam carregado a
mensagem revolucionária até a Rússia no início do século, falando um francês
aristocrático e se autodenominando liberais ou republicanos. Os serviços
impessoais de telégrafo agora carregam, no fim do século, a nova mensagem
de volta para o centro no baixo vernáculo do jornalismo de massas sob as
chamadas de terrorismo, nhlismo — e, sobretudo, anarquismo.
O termo anarquismo se tornou popular no Ocidente no preciso momento
em que os revolucionários russos tendiam a abandoná-lo em troca do termo
terrorismo. Os mais lidos escritores emigrados que falam do movimento
revolucionário russo (Kropotkin e Kravchinsky) tinham deixado a Rússia
quando as táticas terroristas ainda se identificavam com a “desorganização”
do poder estatal e antes que a Vontade do Povo se constituísse numa espécie
de contra-estado revolucionário. Identificavam, assim, as táticas terroristas
com os ideais anarquistas; e no Ocidente essa identificação continuaria
prevalecendo. A imprensa ocidental que fazia cobertura dentro da Rússia
tendia a tomar de maneira ingênua a retórica heróica e antiautoritária dos
revolucionários. Daí que um anarquismo tingido de idealismo e santificado
pelo martírio tenha se tornado o novo talismã verbal de muitos revolucio­
nários que, sem ele, desanimariam.
Muitos no Ocidente foram infectados pelo “contágio moral de atos que
chocam a imaginação”.144 Pouco depois de terem sido disparados cinco tiros
em Alexandre u em maio de 1878, foram feitas cinco tentativas — uma cifra
inédita — de assassinar chefes de Estado coroados da Europa. O principal
recém-convertido ao terrorismo-anarquismo no Ocidente, Johann Most,
elogiou o “método russo” e comemorou o assassinato de Alexandre u num
editorial publicado em Londres.145 Dois anos depois, deu apoio de longe a
uma conspiração para atirar uma bomba no kaiser; foi preso na Inglaterra
por ter prestado auxílio ao assassinato do secretário e do subsecretário

144 Citado a partir de Kravchinsky, Le Tsarisme et la révolution, 1886, em Waciorski, Terrorisme, p.


37.
145 No seu jornal Freiheit, impresso com um cabeçalho comemorativo. V. S. Hunter, Violence and the
Labour Movement, L, 1916, pp. 66-68; Ivansky, p. 48.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 681

britânicos para a Irlanda, mortos por revolucionários irlandeses. A moda se


espalhou, e o horror do anarquismo expresso na imprensa o tornou um título
de fascínio e até de orgulho para alguns intelectuais de países até então não-
-revolucionários, como a Holanda, a Inglaterra e os Estados Unidos. Johann
Most levou o rótulo consigo para a América em 1883. O ideal anarquista foi
propagado tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos por um número
crescente de exilados do Império Romanov: russos e ucranianos em fuga da
perseguição política dos anos 1870, após os quais seguiram exilados judeus
em fuga da perseguição religiosa dos anos 1880.
O termo “anarquista” infligia especial medo nos corações daqueles que
construíam os novos Estados industriais do fim do século xix, pois os anar­
quistas tomavam o próprio Estado centralizado como seu inimigo. Por essa
mesma razão, o anarquismo proporcionou uma bandeira de nova esperança
a uma geração na França que havia se desiludido com a política: primeiro
em razão de uma década de repressão republicana após a Comuna, depois
em razão da decisão dos blanquistas de apoiar o desafio de direita feito à
Terceira República pelo General Boulanger, “na esperança de que esse fosse
o prelúdio de uma grande crise revolucionária”.146 Aí teve início a tendência
decisiva dos revolucionários golpistas de esquerda de ver no enfrentamento
lançado pela direita à autoridade republicana liberal um estágio útil, do pon­
to de vista prático, à preparação da revolução social. Esse modo de pensar
se revelou frutífero para Lênin, que veria no levante de Kornilov contra o
governo de Kerensky em setembro de 1917 um “descanso de armas” no qual
assentar o seu próprio rifle revolucionário. Modo de pensar esse que traria
conseqüências desastrosas para os comunistas alemães em 1933, quando
Hitler era visto como um Kornilov passageiro taticamente útil para destruir
a República de Weimar.
A luta dos revolucionários russos, ricamente coberta pela imprensa oci­
dental, passou a ser identificada com o rótulo anarquista. Os intelectuais
ativistas dos anos 1870 chamavam a si mesmos de “verdadeira”, “nova” e
“jovem” intelligentsia147\ e trouxeram consigo, em sua diàspora rumo ao Oci­
dente, a imagem da pura verdade a se opor ao poder desenfreado. A oposição
anarquista a todo poder era com freqüência transmitida no Ocidente por

146 Citado em P. Hutton, “The Role of the Blanquist Party in Left-Wing Politics in France, 1879-1890”,
em Journal of Modem History, 1974, jun., p. 293.
147 G. Haupt, “Rôle de Pexil dans la diffusion de l’image de l’intelligentsia révolutionnaire”, em Cahiers
du Monde Russe et Soviétique, 1978, jul.-set., pp. 236, 245, 247.
682 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

mulheres notáveis que desempenharam papéis de destaque no movimento


russo — e que com freqüência encetaram uma segunda carreira como viúvas
ou como líderes de movimentos radicais ocidentais.148 Mas o ideal anarquista
especificamente russo era popularizado de modo mais eficiente na Europa
ocidental (e até além) por três proeminentes membros da alta nobreza russa:
Michael Bakunin, Príncipe Peter Kropotkin e Conde Lev Tolstoi.
Bakunin embelezou a insurreição violenta lhe dando o nome de “anarquis­
ta”, em particular na Europa latina, durantes os anos 1860 e início dos anos
1870. Kropotkin ampliou e intensificou a visão anarquista de Bakunin — ao
mesmo tempo que amenizava seus excessos incendiários — depois de chegar
à França em 1876, ano da morte de Bakunin. Mais até do que este, Kropotkin
exerceu maior influência na Europa ocidental do que em sua terra natal.149
O terceiro grande aristocrata anarquista, Tolstoi, deu autoridade maciça
ao novo ideal ao renunciar à sua brilhante carreira literária no fim dos anos
1870 e se retirar à simplicidade rústica de sua propriedade rural — rejeitando
a autoridade da Igreja, do Estado e de qualquer ciência ou arte desprovida de
propósito moral. Tornou-se um pólo de atração magnética para diversos tipos
de descontentes no fim do período imperial: foi o “tzar” moral da Rússia e
conselheiro anarquista do mundo até sua morte, em 1910. Romances tinham
sido veículos de ideais revolucionários sociais desde a época de George Sand
e do Viagem à Icária de Cabet. Agora, o último ideal revolucionário social,
o anarquismo, reivindicava a lealdade do maior romancista vivo do mundo
ao longo dos últimos 35 anos de sua vida.
Ao glorificar uma antiga expressão depreciativa, os russos seguiram as
pegadas de Proudhon, enveredando por uma trilha já batida na Europa latina
por proudhonistas e bakunistas. O anarquismo tinha sido antes rejeitado
pelos revolucionários, que viam o termo como uma difamação conservadora,
senão como provocação.150 Babeuf observou a “celeuma” das autoridades
148 Além do impacto geral exercido pelas mulheres russas que discuto no último capítulo deste livro,
G. Haupt assinalou o casamento de importantes líderes da esquerda ocidental com revolucionárias
russas: Charles-Victor Jaclard na França, Fritz Adler na Áustria, Karl Liebknecht na Alemanha,
Filippo Turati na Itália. Haupt enfatiza em especial o papel desempenhado na Itália pela esposa de
Turati, sobre a qual se pode consultar A. Schiavi, Anna Kuliscioff, Roma, 1955.
149 Miller, Kropotkin., pp. 156-157. Uma obra não raro profética de um liberal ucraniano, que previa o
impacto da tradição revolucionária russa sobre o Ocidente, é Michael Dragomanov, Le Tyrannicide
en Russie et l’action de l’Europe occidentale, Genebra, 1881.
150 Diferentemente da maior parte do léxico revolucionário moderno, “anarquia” e “anárquico” são
termos com um significado relativamente constante, invocados por governantes europeus preocupados
desde pelo menos a época de Filipe o Belo. Cf. a coleção publicada pela Fundação Einaudi: Anarchici
e anarchia nel mondo contemp orane o, Turim, 1971, p. 591.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 683

estabelecidas diante das ameaças dos anarquistas.151 O anarquismo se tornou


um rótulo revolucionário de sentido positivo e com uma história contínua só
em 1840, quando Proudhon o invocou como uma divisa de orgulho e uma
arma de choque verbal.152
O hegelianismo de esquerda deu ao anarquismo um novo atrativo por
meio de Bakunin e outros nos anos 1840. Tendo previamente aceitado as
expectativas exageradas de Hegel de que a política transformaria a condição
humana, os hegelianos agora exageravam os benefícios a ser alcançados da
rejeição total de qualquer política. Esse salto dialético, verdadeiramente he­
geliano, deu-se em particular junto aos eslavos que viviam numa autocracia;
e o ideal anarquista como a “antítese” da autocracia se provou também de
grande apelo nas conservadoras e católicas Espanha e Itália.
O anarquismo se tornou uma destacada força por meio das fraternidades
e alianças que Bakunin organizou dentro e fora da Primeira Internacional,
tornando-se assim uma espécie de oposição de esquerda ao autoritarismo e
ao marxismo e realizando uma série de reuniões internacionais, de Genebra
(1873) a Paris (1889), durante o interregno entre o colapso da Primeira
Internacional e o nascimento da Segunda.153
Os movimentos espanhol e italiano iam na vanguarda. A Federação Italiana
da Primeira Internacional sobreviveu ao desaparecimento da organização
a que era subordinada e se tornou a maior e mais militante organização
anarquista das décadas de 1870 e 1880. Atraiu mais de 30 mil membros
em meados dos anos 1870 para dez federações regionais, estendendo-se da
Itália à Sardenha.154

151 Pages choisies, p. 265.


152 Oeuvres complètes, vol. i, p. 212. O anarquismo, como um ideal avant la lettre, tem muitos
precedentes; diz-se, em geral, que se aproximou pela primeira vez de uma formulação doutrinai
sistemática com William Godwin; Joli, Anarchists, pp. 31-39; Woodcock, Anarchism, pp. 60-93. Um
negligenciado e mais antigo hino à palavra é A Anarquiada [The Anarchiad], de 1786, um poema
semi-sério, um “épico das margens do rio Wabash”, escrito por Joel Barlow com a colaboração
de David Humphreys, John Trumbull e Lemuel Hopkins. O poema saudava o suposto “reino da
anarquia” na América primitiva como uma “dádiva”. A rara versão impressa, New Haven, 1861,
encontra-se na Beinecke Library, Yale University; cf. esp. pp. 18,20.
153 Discutido de modo perspicaz por M. Nomad, “The Anarchist Tradition”, em Drachkovitch,
Internationals, pp. 69-79. A pormenorização de conferências constante de Miller Kropotkin, pp.
258-259, é mais completa e lista os primeiros quatro congressos anarquistas (1873-1877) sob
direção da Primeira Internacional (bakunista).
154 Um abordagem geral está em P. Masini, Storia degli anarchici italiani de Bakunin a Malatesta
(1862-1892), Milão, 1969.
684 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Embora compartilhasse o palco com Bakunin e Tolstoi na tarefa de


divulgar o ideal anarquista, Peter Kropotkin era de longe o seu mais
influente proponente entre os revolucionários ocidentais. Ao iniciar sua
longa estada na Europa, a partir de 1876, ele preencheu o vácuo deixado
pelo desaparecimento da Internacional tipicamente bakunista no ano se­
guinte. Dominou os três últimos congressos anarquistas anuais sediados
em Jura (1878, 1879, 1880). Começou a atrair novos partidários com seu
ensinamento de que “feitos revolucionários [...] a expropriação violenta da
propriedade privada e a desorganização do Estado” poderíam aos poucos
destruir o Estado-nação e estabelecer organizações comunais federais por
toda a Europa. Deixou para trás o emprego russo da palavra “populismo” e
rejeitou o termo de Bakunin “coletivismo”, preferindo “anarco-comunista”
ou simplesmente “anarquista”.155 Seu conhecimento de línguas européias
e sua experiência tanto com expedições científicas quanto com aventuras
revolucionárias na Rússia lhe permitiam falar com autoridade no Ocidente.
Direcionou suas energias mais para o movimento anarquista internacional
do que para a causa revolucionária russa. Seu fluxo contínuo de publicações
atraiu um número crescente de partidários e sua prisão, em 1882, o cobriu
com o manto do martírio.
A perspectiva filosófica do anarquismo de Kropotkin se situava em algum
lugar entre o ateísmo violento de Bakunin e a religiosidade não-violenta de
Tolstoi.156 O jornal suíço de Kropotkin, Le Révolté, anunciou em 1879 uma
“revolta permanente por meio da palavra falada e escrita, por meio do pu­
nhal, do rifle, da dinamite”.157 Mesmo assim, depois veio a escrever: “Uma
estrutura baseada em séculos de história não pode ser destruída com uns
poucos quilos de dinamite”.158 Sua ênfase na ajuda mútua e nas coopera­
tivas de dimensões modestas sugeria um retorno proudhonista e pacífico a
155 Miller, “The Development of an Anarchist Ideology”, em Kropotkin, pp. 138-147.
156 A rejeição dramática de Tolstoi do Estado moderno, do sistema industrial e de todos os instrumentos
de violência influenciou o movimento por ação não violenta, apenas por meio da “força da verdade”
(satyagraha), liderado pelo revolucionário mais original do “terceiro mundo” no início do século
XX: Mahatma Ghandi. V. M. Markovitch, Tolstoi et Ghandi, 1928; K. Nag, Tolstoy and Ghandi,
Patna, 1950. Sobre as relações mais antagônicas de Tolstói com o movimento revolucionário dentro
da Rússia, v. E. Oberländer, Tolstoi und die revolutionäre Bewegung, Munique/Salzburgo, 1965.
Martin Green apresentará Tolstói e Gandhi como os criadores de uma alternativa religiosa radical
tanto ao marxismo quanto ao liberalismo em seu Tolstoy and Gandhi: An Essay in World History,
último volume de uma notável trilogia sobre imperialismo. Essa obra, a ser elaborada entre 1980
e 1981 no Woodrow Wilson International Center for Scholars, retoma as figuras fundamentais do
primeiro volume da trilogia, The Challenge of the Mahatmas, NY, 1978.
157 Citado em Joli, Anarchists, p. 127.
158 Citado de La Révolte, 18 a 24 de março de 1894, em Miller, p. 174.
LIVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 685

uma escala humana sociável e a uma justiça distributiva, e não uma guerra
romântica e violenta contra a autoridade estatal.159
A visão de Kropotkin dominou o movimento anarquista desde a época
em que o congresso anarquista reuniu os seus 45 delegados em Londres no
Dia da Bastilha de 1881. Não aconteceria nenhum outro autêntico congresso
anarquista até a reunião, que durou uma semana, de 80 delegados em Ams­
terdã no verão de 1907. Ao longo de todo o período interveniente, o espectro
de uma Internacional Negra assombrou a Europa. Os escritos prolíficos de
Kropotkin deram respeitabilidade à proposição de que “fora da anarquia não
existe revolução alguma”.160 Concorde com Tolstói, segundo o qual “a única
revolução é aquela que nunca cessa”, ele via a luta humana por liberdade
como a libertação progressiva e racional do jugo de toda autoridade restritiva.
Os anarquistas fizeram avançar essa intransigente fé antipolitica com bem
mais sucesso nos anos 1890 do que em geral se admite. Ganharam algum
volume de correligionários, entre os quais mais de 100 mil franceses,161 que
em sua maioria seguiam o ideal pacífico de Kropotkin e não o chamado da
“Dama Dinamite”. Dominaram, sob vários aspectos, os primeiros congressos
da Segunda Internacional até serem expulsos dela, devido à pressão feita
nesse sentido pelos estatistas social-democratas alemães no Congresso de
Londres, em 1896. Opuseram-se não só aos social-democratas, que eram
manifestamente favoráveis à política e cada vez mais burocráticos; começa­
ram a desafiar aqueles que lhes eram mais próximos, isto é, os sindicalistas,
por ousarem criar suas próprias estruturas políticas.162
No Congresso de Amsterdã, em 1907, os anarquistas demonstraram que
nem mesmo a solidariedade limitada de um congresso poderia ser garantida.
O anarquismo se fragmentou mais uma vez, e no período prévio à Primeira
Guerra Mundial funcionou mais como um catalizador dentro de outros
movimentos revolucionários do que como uma força unitária. Como disse
um delegado de suas inumeráveis e briguentas reuniões: “Estamos unidos
porque estamos divididos”.163

159 Prenúncios de Paul Goodman, Louis Mumford e outros críticos sociais na obra de Kropotkin são
pormenorizados em Miller, pp. 195-196.
160 Citado de “Le Gouvernement révolutionnaire”, em Paroles d’un revolte, 1885, em Miller, p. 192.
161 Estimativa feita por J. Joli, Times Literary Supplement, 10 de setembro de 1976, tendo por base o
estudo magistral de J. Maitrom, Le Mouvement anarchiste en France, 1976, vol. i.
162 V. o enfrentamento de Malatesta ao sindicalista francês Pierre Monatte no Congresso de Amsterdã
de 1907: Woodcock, Anarchism, p. 267. V. também Malatesta, Anarchy, L, 1949.
163 De um delegado à conferência de Genebra de 1882, citado em Woodcock, p. 260. Até que se fundasse
686 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Ainda assim, o anarquismo produziu um impacto transnacional e unitário


que o torna importante para a história da tradição revolucionária. Pois se
tornou uma palavra amedrontadora com poder jamais visto no Ocidente
e manteve viva a crença totalizante e quase religiosa na revolução durante
um período de positivismo, ceticismo e progressismo evolucionário. O anar­
quismo, enquanto rótulo político, tornou-se foco dos medos suprimidos da
época; e em especial nos Estados Unidos. A prisão, em 1920, de dois pobres
anarquistas italianos, Sacco e Vanzetti, e a longa agonia que acabou com sua
execução na cadeira elétrica em 1927 ritualizaram a rejeição dos ideais revo­
lucionários surgidos nos Estados Unidos no início do século xx. “Anarquia” e
“anarquismo”, lembrar-se-ia Katherine Anne Porter anos depois, inspiravam
“terror, irritação e ódio”,164 o que permitiu a um coro contra-revolucionário
se sobrepor ao “dueto de duas grandes vozes que contam uma história trá­
gica”:165 Kropotkin e Emma Goldman.
Uma espécie de revolução anarquista de fato ocorreu no Novo Mundo,
no mesmo ano em que Sacco e Vanzetti foram presos em Massachusetts.
Ocorreu no lugar mais improvável para habitação humana, na Península
Valdés, na Patagônia, onde a América Latina se estreita, tornando-se uma
seta que aponta para a Antártica. Lá, em 1920, Antonio Soto, um emigrado
espanhol que havia sido colega de classe na Academia Militar em Toledo do
futuro ditador fascista espanhol, Francisco Franco, liderou chilenos oprimidos
e peões argentinos numa breve e trágica revolução. Soto foi impelido a fugir
do serviço militar ao 1er Tolstói e havia trabalhado como assistente de palco
num teatro argentino antes de ir para o sul liderar sua efêmera revolução
em nome de Proudhon, Bakunin e Kropotkin. Sua bandeira vermelha e preta
foi queimada e cerca de 1.500 pessoas (em sua maioria criadores pobres de
ovelhas) foram mortas a tiros. O levante anarquista poliglota foi suprimido
pelo exército argentino.166

em Berlim, em dezembro de 1922, a Associação dos Trabalhadores Internacionais, não existiu


Internacional Anarquista alguma. Mas essa Associação, que teve mais de três milhões de adesões,
era de tipo mais sindicalista, e não um puro órgão anarquista. Teve uma existência débil, pulando
de um lugar para o outro, depois que os nazistas tomaram o poder em 1932, ainda mantendo,
contudo, alguma presença na Suécia.
164 K. Porter, “The Never-Ending Wrong”, em Atlantic, 1977, jun., p. 39.
165 Ibid., p. 64.
166 O. Bayer, Los vengadores de la Patagonia trágica, Buenos Aires, 1972, 3 vol.; obra da qual B. Chatwin
fez extensa resenha, em Times Literary Supplement, 31 de dezembro de 1976, pp. 1635-1636. Sobra
a substancial influência anarquista no Brasil, v. J. Dulles, Anarchists and Communists in Brazil,
1900-1935, Austin, 1973.
L IVRO III, CAPÍTULO 14: A BOMBA: A VIOLÊNCIA RUSSA 687

O sonho russo se desfez nessa remota fronteira da civilização européia


quase no mesmo momento em que, em 1920, ele morria na própria Rússia.
Quando o novo governo soviético estava finalmente para derrotar a oposição
branca na Guerra Civil Russa, lançou mão de uma “grande operação cirúrgica”
das substanciais e variadas forças anarquistas que até então tinham lutado
por ele.167 O grande líder anarquista ucraniano Nestor Makhno fugiria para
o exterior; e o homem que o havia inspirado, Peter Kropotkin, morreria em
Moscou no início de 1921 profundamente desiludido com a nova ditadura
soviética que havia restabelecido “o empreendimento jacobino de Babeuf”.168
Com os mais destacados anarquistas mortos ou fugidos, o espírito anarquista
também seria esmagado no mês seguinte, quando a revolta antiautoritária dos
marinheiros de Kronstadt foi cruelmente reprimida e seus líderes fuzilados
pelas autoridades soviéticas.

167 Avrich, Anarchists, p. 222, e de modo mais geral pp. 204—233.


168 Kropotkin, citado em ibid., p. 226. V. também Avrich (ed. ), The Anarchists in the Russian Revolution,
Ithaca, 1973. Sobraram apenas grupos minúsculos, como o dos “anarcobiocosmistas”, que
professavam apoio total ao Estado Soviético e concordavam em levar adiante seus experimentos
sociais “no espaço interplanetário, mas não no território soviético” (G. Maximoff, The Guilltine at
Work: Twenty Years of Terror in Russia, Chicago, 1940, p. 362; Avrich, p. 231). Contudo, também
havia, embora em geral mal se assinale isso, um movimento muito mais expressivo e pacifista de
anarquistas tolstoianos dentro da União Soviética; no momento, sua história está sendo escrita no
Woodrow Wilson Center por M. Popovsky com base em novos materiais colhidos na União Soviética
(The Peasant Disciples of Tolstoy: 1918-1977).
CAPÍTULO 15

O sindicalismo revolucionário

s mundos latino e anglo-saxão assistiram a um incremento da ativi­

O dade revolucionária violenta durante o fim do século xix e início do


XX. Não produziram nenhum mecanismo político tão impressionante
quanto o Partido Social-democrata Alemão, nem intelectuais revolucionários
tão intensos quanto os russos. Contudo, com base na intensificada violência
da classe trabalhadora, produziram uma nova tradição que pode ser descrita
como sindicalismo revolucionário: um elo entre as organizações de traba­
lhadores {syndicats) e a ação de massas tendo por propósito a criação de
uma nova ordem social.
0 sindicalismo revolucionário acatava Proudhon e Bakunin ao rejeitar a
arena política e todas as formas de poder centralizado. Na França o movi­
mento era mais forte, lá onde a linha de descendência de Proudhon era mais
direta. Mas os sindicalistas revolucionários enfatizavam a violência mais do
que Proudhon enfatizara — e de um modo diverso do conceito de Bakunin
de uma insurreição militar primitiva. Eles eram forçados, claro, a trabalhar
sob controle policial restritivo e regulações repressivas instituídas quando
do surgimento da Comuna de Paris; voltaram-se para o potencial de organi­
zações estruturadas em torno da fábrica, para assim lutar um novo tipo de
guerra a partir de baixo, e de dentro, do novo Estado urbanizado e industrial.
Parece uma ironia que a violência de trabalhadores e o sindicalismo re­
volucionário tenham germinado precisamente naquelas sociedades onde a
690 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

propriedade privada, o governo parlamentar e a correção vitoriana pareciam


estabelecidos com maior segurança: a França republicana, a recém-inde-
pendente Itália e (em menor extensão) os Países Baixos, a Inglaterra e os
Estados Unidos. A tradição sindicalista teve menor importância dentro das
monarquias conservadoras da Áustria, Rússia e Prússia.
O sindicalismo revolucionário surgiu em nações relativamente liberais
em parte por causa de sua tolerância para com novas formas de associação
da classe trabalhadora. Em alguma medida, os trabalhadores estavam sim­
plesmente rejeitando os valores e instituições da burguesia nas terras onde a
classe média havia alcançado maior poder. Mas o sindicalismo revolucionário
também expressou um profundo mal-estar relativo aos valores liberais — e
talvez relativo à cultura política ocidental como um todo: o desejo de se
afirmar com violência a partir de dentro — senão contra — do novo etos
industrial e de suas pretensões “progressistas”. O impulso violento foi ex­
presso no novo imperialismo de canhoneiras no exterior e, dentro da Europa,
na agitação de anarquistas, separatistas e sufragistas; contribuiu para “a
estranha morte da Inglaterra liberal” — e talvez para a morte do consenso
“liberal” ocidental de modo generalizado.1 Um incansável ennui levou boa
parte da avant-garde intelectual européia a adquirir certo gosto pela violência
durante o prolongado e vagaroso outono de relativa paz e progresso anterior
a 1914. O excesso edwardiano desafiou os valores vitorianos no início do
novo século; e muitos dos intelectuais mais destacados saudaram a guerra
quando esta finalmente chegou em 1914.2
A violência da classe trabalhadora assomou, portanto, só como uma parte
do problema geral da violência nas nações industrializadas do Ocidente.
Durante o período de 1871-1914, o Estado moderno europeu alcançou
um monopólio quase absoluto do exercício da violência dentro de suas
fronteiras. Essa concentração de poder sempre esteve implícita no conceito

1 D. Dangerfield, The strange death of liberal England, 1910-1914, NY, 1961, lista várias formas de
violência — algumas delas até hoje sem receber estudo apropriado — que irromperam na Inglaterra
durante esse período “pacífico”; e a tese sugerida pelo título do livro pode ser estendida também a
outras nações “liberais”.
2 Este assunto foi abordado em “When Peace Was the Establishment”, uma palestra de R. Stromberg
no Woodrow Wilson International Center for Scholar no dia 5 de agosto de 1974. Amostras da
grande obra que no momento ele elabora sobre o tema são “The Intellectuals and the Coming of
the War in 1914”, em The Journal of European Studies, vol. in, 1973, pp. 109-122; “Socialism and
War in 1914”, em Midwest Quarterly, vol. xvm, 1977, primavera, pp. 268-297; “1910: An Essay
in Psychohistory”, em Psychoanlytic Review, vol. lxiii, 1976, verão, pp. 235-248; e, em especial,
“Redemption by War: The Intellectuals and 1914”, em Midwest Quarterly, 1979, primavera, pp.
211-227.
LIVRO in, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 691

de um Estado secular inteiramente soberano e com território definido. Os


Estados industriais liberais sentiam uma tensão especial entre seu mono­
pólio do poder físico e seu declarado pluralismo de valores e instituições.
A tensão, como o poder, era nova; os líderes políticos tendiam tão só a
projetar tanto o poder quanto o problema no mundo externo, em vez de
lidar com a questão internamente. Havia, assim, necessidade psicológica de
um “novo imperialismo”, fossem quais fossem suas motivações econômicas
e ideológicas. Mas o imperialismo serviu apenas para canalizar, e nunca
para controlar, as novas formas de violência disponíveis ao Estado. Era um
jogo perigoso, pois os imperativos eram territoriais e não categóricos. Os
jogadores logo se viram faltos de espaço que pudessem tomar com facilidade
dos habitantes e repartir entre os conquistadores. A competição retornou
em 1914 para as terras de ninguém disputadas pelas próprias potências
européias — os Bálcãs, os limites bálticos, a fronteira franco-alemã. A
violência, que até então fora latente, torna-se flagrante; e a metralhadora,
a artilharia de shrapnel e o gás venenoso romperam o tecido da sociedade
européia na guerra de 1914-1918.
Bem antes que Oswald Spengler publicasse, em 1919, A decadência do
Ocidente, os europeus tinham começado a se considerar romanos sitiados à
espera de sua debacle. Em Chitral, Beau Geste e em outras produções literá­
rias afins do final do século xix, a Europa redescobriu o tema renascentista
do homem solitário de valores superiores oprimido por bárbaros vindos de
longe — “um tema que praticamente não tinha tido importância alguma
em toda a literatura ocidental posterior ao Renascimento”.3 O fundador do
Exército de Salvação sugeriu que “o coração das trevas” não se localiza na
África, e sim “na mais sombria Inglaterra”.4 Seu “abandono” da praga urbana
proporcionaria caridade material direta aos mais necessitados, ao mesmo
tempo que lhes infundiría uma militância mais espiritual do que material,
O maior dramaturgo da Inglaterra vitoriana tardia, George Bernard Shaw,
apontou a via revolucionária rival, afastando seu Major Barbara do exército
de salvação e o levando ao campo do socialismo.5 Novos recrutas advinham
não tanto da sociedade fabiana não-violenta e evolucionária de Shaw quanto

3 K. Deutsch e N. Wiener; “The Lonely Nationalism of Rudyard Kipling**, em Ya/e Reviewy 1963,
jun., p. 501. Deutsch e Wiener (p. 502) caracterizam Kipling como o supremo porta-voz da crença
geral no “caráter de tudo ou nada na lealdade ao grupo”, que ele atribuía a animais, bem como a
soldados e crianças na escola.
4 William Booth, in darkest England and the way out, L, 1980.
5 G. B. Shaw, Major Barbara, L, 1905.
692 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

da nova onda de manifestações de classe organizada, tipificadas pela grande


greve dos estivadores londrinos em 1889.
A essa altura, movimentos sindicalistas revolucionários a pieno vapor ha­
viam surgido na França, na Itália e na Espanha; essa corrente revolucionária
tinha alcançado as fronteiras ocidentais e orientais da civilização européia
através dos Trabalhadores Industriais do Mundo (iww),6 nos Estados Unidos,
e dos revolucionários sociais, na Rússia. Deve-se investigar esse poderoso
novo movimento em seu habitat natural ocidental — a considerar seu im­
pacto na carreira inicial de Mussolini, na direita, antes de observar o surto
revolucionário na Rússia e a emergência de Lênin, na esquerda.

A “Greve Geral”
Os sindicatos modernos a princípio não eram revolucionários — e nunca,
até então, haviam tido esse direcionamento como fundamental. Tampouco
eram violentos os sindicatos que aos poucos se desenvolveram entre os traba­
lhadores mais especializados. Esses sindicatos se concentravam em questões
materiais imediatas capazes de render pelo menos vantagens parciais; rara­
mente adotavam uma perspectiva ideológica ou estratégica. Era incomum que
protestos e greves tivessem objetivos políticos, e essa violência “moderna” ou
“associacional”, quando ocorria, era menos destrutiva do que as irrupções
das formas anteriores “comunais” ou “reacionárias” de violência.7
A depressão econômica de meados dos anos 1870 deu origem a um tipo
mais militante de organização sindical, que se desenvolveu na Inglaterra e,
em seguida, na França, uma vez que sindicatos haviam se tornado legais
nesses países em 1876 e 1884, respectivamente.8 Esse “novo sindicalismo”
de trabalhadores sem formação alguma ou apenas semi-instruídos, que se

6 Na sigla em inglês — nt.


7 C. Tilly, “The Changing Place of Collective Violence”, M. Richter (ed.), em Essays in Theory and
History, Cambridge, Massachusetts, 1979, pp. 146, além de pp. 139-164; também Tilly, “Collective
Violence in European Perspective”, H. Graham e T. Gurr, em The history of violence in America,
NY, 1969, pp. 4-44; e seu desenvolvimento mais completo dessas idéias em parceria com L. e R.
Tully, The Rebelious Century, 1830—1930, Cambridge, Massachusetts, 1975, que conclui que a ação
coletiva, e não a violência enquanto tal, é o que de fato interessa na história. Os Tilly distinguem
(pp. 51-55) três tipos de violência que tendem a ser dominantes uma após a outra, a despeito de
muitas vezes se superporem: a violência competitiva (testando a força dentro de um sistema local
de poder), a violência reativa (desafiando direitos estabelecidos) e a violência proativa (afirmando
novos direitos — como acreditavam estar fazendo, por exemplo, os “novos trabalhistas” e os
revolucionários sindicalistas).
8 Estudos recentes rastreiam a emergência desse “novo” e mais radical sindicalismo na Inglaterra dos
anos 1870. V. A. Musson, British Trade Unions, 1800-1875, L, 1972, p. 65.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 693

localizavam nas fábricas, minas e transportes, ganhou autoridade e auto­


confiança com a bem-sucedida Greve dos Estivadores de Londres em 1889.
O rápido desenvolvimento seguinte de sindicatos industriais de larga escala
pela Europa e pelos Estados Unidos se ligava de perto ao crescente uso de
táticas grevistas para fins revolucionários. Os novos militantes empregavam
greves tanto para desafiar a ‘‘aristocracia trabalhista” dos sindicatos mais
velhos quanto para elevar a consciência revolucionária das massas.
A grande esperança era chegar um dia a uma “greve geral” — um ato
coletivo de resistência da classe trabalhadora que poderia levar à derrubada
do domínio econômico e político da burguesia. Assim como a maior parte
das idéias da tradição revolucionária moderna, o conceito tinha suas origens
na época da primeira Revolução Francesa. Foi Sylvain Maréchal que, em
1788, sugeriu pela primeira vez um protesto proletário unificado contra a
organização política e econômica da sociedade moderna. Maréchal falou do
“imperativo de paralisação coletiva das forças produtivas” a ser efetuada
pela “classe mais numerosa”.9 De maneira independente, C. F. Volney sugeriu
poucos anos depois uma forma internacional e antimilitarista de paralisação
do trabalho. Idéias convergentes de resistência em massa, vindas desde baixo,
foram defendidas de várias maneiras por Lequinio, o bretão “cidadão do
globo”, por Marat (em sua “Súplica dos oito milhões de desafortunados”)
e por Pierre-Gaspard Chaumette, o líder da comuna insurrecional que esta­
beleceu a república em agosto de 1792. Chaumette defendeu, em junho de
1791, que não era necessário empregar violência contra um tirano: “Basta
não apoiá-lo, e isso bastará para que desmorone sob seu próprio peso e seja
destruído como um grande colosso cujo pedestal fosse removido”.10
A idéia de greve geral surgiu pela primeira vez dentro da própria classe
trabalhadora na Inglaterra, onde a Revolução Industrial estava mais avan­
çada. Em 1792, um sapateiro escocês educado, Thomas Hardy, iniciou uma
Sociedade de Correspondência em Londres, que logo fundou filiais em cen­

9 Marechal, Premières leçons du fils aîné d'un roi. Pra une député présomptif aux futurs États-
Généraux, Leçon XXXII, citado em M. Dommanget, “L’Idée de greve générale en France au xviue
siècle et pendant da Révolution”, em Revue d’Histoire Économique et Sociale, vol. xu, 1963, n° 1,
p. 40. Dommanget é menos convincente ao tentar localizar essa idéia na obra ainda mais antiga do
padre radical Jean Meslier, pp. 35—38.
10 Citado em Dommanget, p. 51; também pp. 48-53, e F. Braesch (ed.), Papiers de Chaumette, 1908.
Seguindo uma praxe revolucionária, particularmente sensível em militantes anti-clericais como
Chaumette, ele trocou seu nome cristão pelo de um herói da antiguidade: Anaxagoras, que foi levado
a julgamento pelas autoridades políticas em Atenas em razão de sua audácia científica e de seu não
conformismo.
694 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tros de manufatura das Terras Médias e da Escócia; ela pode ser chamada
de “primeiro movimento político independente da classe trabalhadora da
história”.11 Em 1795, quando muitos de seus líderes foram presos, a socie­
dade tinha 80 mil membros. E, em outubro de 1795, conseguiu reunir 150
mil trabalhadores para protestar contra Pitt e sua guerra contra a França
revolucionária; em seguida, a tradição se espalhou, chegando até os Irlandeses
Unidos, que fizeram planos para uma invasão em massa da Irlanda a fim de
libertá-la com a ajuda de forças revolucionárias francesas.
Parte da classe trabalhadora se voltou diretamente contra as máquinas
do novo sistema fabril durante os últimos dias das guerras napoleônicas.
O movimento ludista, com sua quebra generalizada das novas máquinas
têxteis, disseminou-se rapidamente, tendo se originado em Nottingham ao
fim de 1811. Sua repressão ocasionou mais violência organizada por parte
de artesãos sem lugar no novo contexto tecnológico. Já no início de 1817
se falava na Grã-Bretanha de uma greve geral. O termo foi popularizado
pela primeira vez por um pintor irlandês em Manchester12 e foi tema de um
notável tratado teórico escrito por um ministro não-conformista que tinha
se tornado proprietário de uma cafeteria londrina.13 A primeira tentativa de
realizar uma greve dessas proporções em uma nação industrial ocorreu em
1842, na Inglaterra; foi liderada por um homem que, em sua infância, havia
assistido ao “massacre de Peterloo”, na qual foram mortos trabalhadores numa
manifestação pacífica. Em seguida, despediu-se da fábrica onde trabalhava e
trocou o tear de potência pelo tear manual que havia pertencido ao seu pai.14

11 Braunthal, p. 14; e uma breve história às pp. 14-19. Sobre sua relação com o radicalismo britânico
da época, v. Bernstein, Essays, pp. 48-56; e obras cujas referências são dadas às pp. 204-205.
12 John Doherty, um fiandeiro que se tornou impressor. V. W. Crook, The General Strike. A Study of
Labor's Tragic Weapon in Theory and Practice, Chapel Hill, 1931, pp. 3-4.
13 William Benbow, Grand National Holiday and Congress of the Productive Classes, L, 1932.
Defendeu que todos os “companheiros espoliados e sofredores” parassem totalmente com o processo
produtivo por um mês inteiro, durante o verão, momento em que então um Congresso das Classes
Trabalhadoras elaboraria um projeto social para o futuro. Preparativos minuciosos garantiriam
que a participação “fosse não parcial, mas total”; e delegações de trabalhadores iriam “agredir com
palavras, mas não com atos”, a fim de persuadir os proprietários a apoiar essa versão moderna do
ano sabàtico dos judeus e do ano do jubileu. Embora não houvesse nenhuma intenção de alcançar
poder político, as determinações de Benbow para que se ampliasse gradativamente o tamanho das
delegações (de 20 para 100, de 100 para 1.000), a englobar representantes récalcitrantes da “minoria
gananciosa e vampiresca”, e seu anúncio num panfleto de fundar um jornal “puramente político”
com um título tirado de Babeuf — tudo apontava para uma concepção quase completa de greve
geral revolucionária. V. citações do texto reimpresso em E. Dolléans, “Le Naissance du Chartisme
(1830-1837)”, em Revue d'Histoire des Doctrines Économiques et Sociales, 1909, vol. u, pp. 1-12,
412; também comentários em Crook, pp. 9-10.
14 Richard Pilling, discutido em Crook, pp. 17-27.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 695

Uma greve geral de maior efeito ocorreu em Barcelona, no verão de 1855.


Lá, como em toda parte, a classe trabalhadora estava passando da violência
comunal à violência associacional; e um novo sindicato secreto, o Union de
Ciases, liderou a greve, pedindo “direito de associação ou morte” e a criação
de uma milícia popular.15 Essa huelga general serviu de modelo para o que se
tornaria uma vigorosa tradição espanhola de sindicalismo radical. A agitação
trabalhista, de inclinação anticentralizadora e antipolitica, continuaria a estimu­
lar os castelhanos, particularmente os catalães, desde a época de sua primeira
recepção entusiástica das idéias bakunistas, no movimento anarquista de mil
e quinhentos homens no início dos anos 1870, até a formação, em Barcelona,
em 1936, de uma aparente contradição em termos: um governo anarquista.16
Nos seus últimos anos de vida, Proudhon ensinou a Europa latina que a
greve geral deveria ser a principal arma de um grande movimento político,
o qual conduziría àquilo que ele chamaria de “a nova democracia”.17 As
eleições deveriam ser boicotadas em prol do desenvolvimento de um novo
etos de auto-ajuda com respeito a questões concretas, de uma “simplicidade
democrática” na vida cotidiana, bem como para que se preparasse uma
transformação radical da sociedade por meio de um boicote maciço de todas
as estruturas institucionais burguesas. O inventivo Girardin, à época muito
próximo de Proudhon, sugeriu em 3 de dezembro de 1851 — um dia após o
golpe de estado de Napoleão m — que a única resposta eficiente seria não a
resistência armada, e sim uma “greve universal”.18 Sob a tutela de Proudhon,

15 C. Jaurez, “Juillet 1855: La première grève générale en Espagne”, em Cahiers Internationaux, 1955,
jul.-ago., pp. 69-74. R. Bezucha defende que a parada de 25 teares por 8 dias em Lyon, em fevereiro
de 1834, foi na verdade uma greve geral (The lyon uprising of 1834, Cambridge, Massachusetts,
1974, pp. 122-134).
A. Saldiere observa que os primeiros comentários tendiam a perceber “mais a generalização de
uma greve do que uma greve geral” (La Grève générale de Robert Owen à la doctrine syndicaliste,
Bordaux, 1913, p. 17).
16 Somente na Espanha houve uma tradição anarco-sindicalista desde a época da Primeira Internacional,
de acordo com Rocker; Anarcho-Syndicalism, p. 131. Um ensaio interpretativo refinado é J. Romero-
Maura, “The Spanish Case”, em Government and Opposition, 1970, outono, pp. 456-479; sobre os
anarquistas que estavam no poder durante a Guerra Civil Espanhola, v. a tese de doutorado inédita
(Oxford) de J. Brademas, “Revolution and social revolution: a contribution to the history of the
anarcho-syndicalist movement in Spain, 1930-1937”, 1954.
O primeiro estudo acadêmico de greves foi feito em Portugal por Caetano d’Andrade Albuquerque,
Direitos dos operários (estudos sobre as greves), uma tese de habilitação de 234 páginas, Coimbra,
1870, obra não incluída em nenhum dos estudos mencionados anteriormente neste capítulo.
17 Crook, pp. 28-29; e, com tratamento mais completo, E. Georgi, Theorie und Praxis des Generalstreiks
in der modernen Arbeiterbewegung, Breslau, 1908, pp. 38-39. V. também Proudhon, De la Capacité
politique des classes ouvrières, sua última grande obra, em edição de M. Leroy, 1924.
18 Relato de Eugene Hins, citado em Rocker, Anarcho-Syndicalism, p. 72; também comentários à p.
70 ss.
696 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

os franceses sugeriram aos primeiros conselhos da Primeira Internacional que


essa greve deveria ter propósitos reformistas e pacifistas. Os belgas sugeriram
no Congresso da Basiléia que os conselhos de trabalhadores locais e uma
Câmara do Trabalho nacional poderiam “tomar o poder do atual governo”.19
Um exilado político ligou a idéia grevista a táticas mais militantes em um
panfleto escrito para trabalhadores franceses em 1869, La Grève; e houve
esforços para lançar uma greve geral dos trabalhadores contra a Guerra
Franco-Prussiana.20
Essa concepção foi reproduzia em 1871 pela antiparlamentar e antimar­
xista Circular de Sonvillier emitida pela Federação de Jura, que expressava
oposição ao “socialismo político” e a todas as formas de poder estatal. Via o
surgimento do novo tipo de organização sindical (syndicat) como bem mais
do que “um fenômeno transitório cuja duração estava presa à do capitalis­
mo”. Era o “ideal cultural” que faltava ao socialismo e proporcionava “o
germe da economia socialista do futuro, a escola básica do socialismo 21
A greve geral ajudou a dar uma identidade corporativa ao emergente
movimento sindicalista francês. Mais importante ainda, encorajou nos
trabalhadores um senso de que ainda existia uma tradição revolucionária
singularmente francesa. Ajudou a corrigir o desvio, depois da Comuna de
Paris, para o reformismo de tipo inglês de Paul Brousse e dos “possibilistas”22
ou para o marxismo doutrinário do “coletivismo revolucionário” de Jules
Guesde.23
O que deu aos sindicatos militantes um novo potencial revolucionário foi
a solidariedade geográfica que alcançaram, começando pelos trabalhadores
têxteis da Catalunha nos anos 1870. Em vez de organizar os sindicatos de
acordo com ofícios ou seguimentos do comércio, os castelhanos do norte
organizaram todos os ofícios e seguimentos em unidades locais definidas
19 Józef Hauke-Bosak, líder da rebelião polonesa de 1863, o qual dedicou o seu último panfleto aos
trabalhadores de Le Creusot, aos quais convoca à luta armada {Manuel d'organisation et du combat).
V. Borejsza, p. 24.
20 Saulière, pp. 15-33.
21 Rocker, pp. 89, 83.
22 D. Stafford, From anarchism to Reformism: a study of the political activities of Paul Brousse within
the First International and the French Socialist Movement 1870—1890, Toronto, 1971, esp. p. 199
ss. sobre as atividades dos possibilistas na França antes que ocorresse a reunião rival (Paris, 1889)
para o congresso de fundação da Segunda Internacional.
23 Extratos do seu Collectivisme et révolution (1879) e do texto de 1880 Programme du parti ouvrier
(escrito em conjunto com Marx, Engels e o colaborador próximo de Guesde, o genro franco-cubano
de Marx, Paul Lafargue) estão em P. Louis, Cent cinquante ans de pensée socialiste, 1947, pp.
208-211. V. também pp. 193-216.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 697

por área. Estas proporcionariam as bases do poder territorial que teria “um
papel educacional no presente”, enquanto se preparavam para assumir “um
papel dirigente na vindoura sociedade revolucionária”.24 Bases análogas de
força geográfica começaram a aparecer na Itália (camere del lavoro) e par­
ticularmente na França (bourses du travail), que logo se tornou o centro do
movimento sindicalista.
Os sindicalistas franceses ficaram impressionados com as greves
norte-americanas em protesto contra os anarquistas executados depois da
Revolta de Haymarket em 1886. Em 1887, formou-se a primeira bourse
du travail [conselho trabalhista] em Paris. O Congresso de Bordeaux dos
sindicatos franceses em 1888 endossou a tática de greve geral e a identificou
com revolução social. A greve geral revolucionária se tornou um ponto de
convergência na consolidação formal da Confederação Geral de Trabalho
(cgt) francesa durante o fim dos anos 1880. No Congresso da Marselha
em 1892, Aristide Briand sugeriu que uma “greve geral” representava uma
“força legal”, em vez de uma “força violenta”.25 À medida que a atividade
grevista se intensificava, maturou a idéia de que uma greve geral poderia
surgir espontaneamente de algum incidente e, intensificando-se, tornar-se
uma revolução. Um delegado dos trabalhadores ferroviários no Congresso da
cgt de 1896 insistiu: “A greve geral será a revolução, seja ou não pacífica”.26

Se houve algum líder em algo tão profundamente anticentralizador como


o sindicalismo revolucionário francês, este foi Fernand Pelloutier. Esse jovem
e apaixonado jornalista dominou a imaginação revolucionária da classe
trabalhadora francesa desde a época em que se tornou secretário da nova
Fédération des Bourses du Travail, em 1895, até a sua morte aos 33 anos
em seu escritório de trabalho, em 1901.
De toda a longa lista de intelectuais de classe média que reivindicaram
liderança revolucionária no século xix, Pelloutier foi quem provavelmente
fez mais profundos esforços para estudar e compreender as verdadeiras con­
dições das classes trabalhadoras2728e chegou mais perto de preencher o vazio
entre trabalhadores e intelectuais. Seu Revolução Através da Greve Geral,2*
24 Romero-Maura, p. 463.
25 C. Chambelland, “La grève générale, thème de la pensée de F. Pelloutier et d’A. Briand”, em Actualité
de l’Histoire, 1957, maio, pp. 22-23.
26 Crook, p. 36.
27 De açordo com J. Julliard, Fernand Pelloutier et les origines du syndicalisme d’action directe, 1971,
p. 171,
28 Texto em Julliard, pp. 279-303. Julliard defende (p. 61 ss.) que Pelloutier é o autor e reserva papel
698 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de 1892, defendia a ação direta para que se realizassem esses dois elementos,
assim criando um novo etos e uma nova sociedade.
As Bourses du Travail proporcionaram uma nova forma de autogoverno
dos trabalhadores, a qual desempenhava funções pedagógicas imediatas e
potenciais funções políticas, como era o caso das organizações trabalhistas
consolidadas territorialmente na Catalunha. Pelloutier tentou expandi-las e
transformá-las de meras provedoras de ajuda e informação numa espécie de
contra-governo estabelecido territorialmente pelos e para os trabalhadores.
Talvez só 1,25% dos trabalhadores franceses estivesse envolvido de forma
direta com as Bourses;*29 mas conseguiram, contudo, dominar a imaginação
proletária na França na medida em que mantinham viva a visão de uma or­
dem social alternativa. Com a morte de Pelloutier em 1901, o sindicalismo
revolucionário perdeu seu líder mais dinâmico; mas suas idéias ganharam
mais disseminada influência com a absorção da Fédération pela cgt.
O uso de greves se espalhou em grandíssima proporção por toda a Europa
industrial na virada do século. A Bélgica ofereceu um exemplo dramático
— sensível que era aos três grandes movimentos trabalhistas europeus: a
tendência alemã à organização partidária, a preocupação britânica com re­
formas práticas e a sede francesa por ação heróica direta. Concentrando-se
em objetivos políticos, os belgas produziram três grandes greves — cada uma
mais abrangente e organizada que a anterior — em décadas sucessivas (1893,
1902 e 1912-1913). Seu exemplo inspirou imitação na vizinha Holanda,30
onde um pastor protestante, Domela Nieuwenhuis, requisitou repetidamente à
Segunda Internacional que aceitasse o ideal de uma greve geral transnacional
como medida preventiva à guerra.
A Segunda Internacional em geral enfatizou mais a organização política
segundo o modelo social-democrata do que as greves sindicalistas. Mas estas
últimas inspiravam especial medo, pois a ação direta lançava uma ameaça
direta às classes privilegiadas, as quais sentiam que devem “achar um meio
de defesa ou então ser conquistadas e esmagadas”.31

A Suécia, até então uma tranqüila nação nortenha, realizou uma bem-

de menor importância a Briand.


29 Estimativa em ibid., pp. 257-258.
30 Crook, p. 154.
31 Cyrille van Overbergh, citado em ibid., p. 102.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 699

-sucedida greve geral em 1902, a qual preparou o caminho para o sufrágio


universal cinco anos depois. Embora os suecos tenham depois se orientado
pelos ingleses e não pelos franceses ao empregarem a organização sindical
para alcançar melhorias econômicas, nem por isso a greve sueca que se
prolongou por um mês em 1909 deixou de ser “a mais completa greve geral
não-revolucionária com propósitos especificamente econômicos da história
do movimento trabalhista até o início da Grande Guerra de 1914”.32
O sindicalismo radical, contudo, era em grande medida uma criação da
Europa latina. Uma greve geral de 150 mil trabalhadores com duração de
uma semana em Barcelona, em 1902, foi sucedida por uma greve ainda mais
ambiciosa na Itália em 1904. Os novos sindicalistas da Espanha e da Itália
extraíam cada vez mais força e inspiração da França.
A França se tornou o centro do sindicalismo revolucionário no início do
século XX,33 produzindo mais greves do que a Inglaterra ou a Alemanha,34
um recorde sem paralelo de sucessos com grandes greves35 e um conjunto
de novas técnicas de ação direta, entre as quais a greve em série (la greve
tournante, que parava a produção por meio de pausas coordenadas sem que
se deixasse o trabalho), a sabotagem36 e o boicote de produtos.
O principal teórico do sindicalismo francês depois da morte de Pelloutier
foi outro jornalista de classe média e funcionário de longa data da cgt, Émile
Pouget. Em obras como O AB C da revolução e Como faremos a revolução,
ele estabeleceu um plano para paralisar o Estado moderno sem utilizar armas.
Argumentava que o Estado não tinha capacidade de policiar as extensíssimas
linhas de comunicação e transporte das quais dependia; e que a força moral
de uma prise de possession [tomada de posse] pelos trabalhadores faria com
que as massas do exército ou se juntassem aos seus irmãos grevistas — ou, se
forçados a atirar pelos seus superiores, se rebelassem contra os seus oficiais.
32 Crook, p. 107; e pp. 103-104 para um relato completo.
33 Romero-Maura, pp. 466,477, esp. elementos na nota 30. Para uma história detalhada do sindicalismo
revolucionário francês, definido como “os princípios e práticas da cgt de 1902 a 1914”, v. F. Ridley,
Revolutionary socialism in France: the direct action of its time, Cambridge, 1970.
34 V. Dalin, Stachki i krizis sindikalizma v predvoennoi Franisii, Moscou/Leningrado, 1935, p. 7,
para estatísticas. Essa obra negligenciada é insuperável em sua abundância de detalhes; seu viés é
ligeiramente leninista.
35 Embora uma greve geral que se tentou fazer em 1Q de maio de 1906 não tenha sido de todo
bem-sucedida, nenhuma das maiores greves da cgt fracassou até aquela feita pelos operários de
construção de Paris em julho de 1911. V. Dalin, p. 178; e também J. Julliard, “Théorie syndicaliste
révolutionnaire et pratique gréviste”, em Mouvement Social, 1968, out.-dez., pp. 55-69.
36 E. Pouget, Sabotage, Chicago, 1913, indica (p. 37) que a cgt foi a primeira grande organização a
endossar a sabotagem, no seu congresso de Toulouse em 1897.
700 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Pouget seguiu o exemplo de Proudhon ao rejeitar todas as estratégias parla­


mentares e dogmas intelectuais — em especial o socialismo, que sempre busca
“chegar à revolução por vias estatistas”.37 Foi além de Proudhon, contudo,
ao defender a liberação das mulheres e ao fornecer um retrato explícito da
sociedade pós-revolucionária, de acordo com o qual um “Congresso Federal”
deveria confirmar a descentralização espontânea de toda autoridade alcançada
pelo processo revolucionário. A libertação dos preconceitos seria garantida
por um sistema educacional que excluiría todo estudo do passado e incluiría
apenas educação física e ciências exatas. A nova sociedade deveria se basear
não em outra Declaração dos Direitos do Homem, mas no “absoluto respeito
pelos direitos da criança”.38
O sindicalismo revolucionário tinha o objetivo de ignorar inteiramente
a arena política. Mas as notícias de uma vitoriosa greve geral de dimensões
nacionais durante a Revolução Russa de 1905 e a transferência, quase ao
mesmo tempo, do principal local das guerras trabalhistas do norte da França
para a região parisiense sugeriram a alguns que Paris talvez devesse mais
uma vez provar ser o lugar da revolução.39
Embora profundamente proudhonista e não ideológico, o sindicalismo
francês produziu um teórico sublime em Georges Sorel. Ele buscou inspirar
os trabalhadores com seu chamado ao heroísmo e seu mito de uma greve
geral que transcendería a gymnastique révolutionnaire da cgt.40

37 Citado em C. de Goustine, Pouget. Les Matins noirs du syndicalisme, 1972, p. 174. Sobre “L’ABC de
la révolution” de Pouget, v. p. 20; o Comment nos ferons la révolution de Pouget teve por coautor
Émile Pataud; originalmente não datado quando escrito (1907), foi publicado em 1909. Tirou o
título do seu La Voix du Peuple diretamente de Proudhon.
38 Comment, p. 226. V. pp. 158-170 sobre le congress fédéral', pp. 288-295 sobre la libération de la
femme.
39 O número de grevistas na região de Paris era menos do que a metade dos grevistas da região nortenha
no período de 1900-1905 (cerca de 91 mil contra 196 mil), mas se tornou duas vezes maior que a
do norte no período de 1906-1911 (cerca de 382 mil contra 169 mil) (Dalin, p. 9).
Gustave Hervé (La Guerre Sociale, n° 37, 1913, citado em Dalin, pp. 213-214) insiste que a
cgt tinha de fato se transformado num partido político capaz de derrubar o capitalismo. Dalin
acompanha a passagem da liderança do movimento grevista na França dos trabalhadores têxteis
para os trabalhadores de metalurgia e transportes no início do século (p. 8), o que supostamente
teria levado ao emprego de táticas mais sofisticadas. Ele atribui o declínio do entusiasmo no
período imediatamente anterior à Primeira Guerra ao crescente predomínio em Paris da bête noire
do marxismo, a “aristocracia trabalhista” dos sindicatos das indústrias de construção e de energia
(p. 172). V. também M. Reberroux, “Les Tendences hostiles à l’état dans la sfio (1905-1914)”, em
Mouvement Social, 1968, out.-dez., pp. 21-37.
40 Sorel foi influenciado pelo líder e estrategista da cgt, Victor Griffuelhes (v. JJ. Stanley (ed.), From
Georges Sorel, NY, 1976, p. 297, nota 135; e o prefácio de Sorel à obra de Griffuelhes e L. Niel,
Les Objectifs de nos luttes de classe, 1909). Mas, mesmo quando Griffuelhes negou ter lido Sorel,
fazendo-o com sua famosa frase “Eu li Alexandre Dumas” (Avrich, Anarchists, p. 99; Kriegel, Pain,
LIVRO UT, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 701

Sorel era filho de um monarquista burguês da Normandia e sobrinho de


um grande historiador da Revolução Francesa, Albert Sorel. Até os 45 anos de
idade, fora um quase desconhecido engenheiro civil que inspecionava estradas
e pontes e que havia desenvolvido um profundo desprezo pela vida política da
Terceira República. Seus primeiros dois livros foram publicados em 1889, nos
quais aclamava a poesia heróica e a ética tribal do Velho Testamento como
um antídoto ao utilitarismo cru da época e saudava a morte de Sócrates como
recompensa apropriada pelo seu racionalismo corrosivo e anti-social.41
Em 1892, aposentou-se com uma pensão do governo e iniciou uma nova
carreira de crítico social e de filósofo-em-chefe sem coroa do sindicalismo.
Embora muito mais influenciado por Proudhon,42 abraçou o marxismo como
cura necessária para o ceticismo corrosivo da época e como doutrina que
prometia encontrar no proletariado “algo digno de sobrevivência” numa era
corrupta.43 Seu ódio à sociedade burguesa era muito mais intenso do que o
de Marx e trazia traços de um desprezo estético. Tudo o que Sorel via era um
mundo decadente de grupos de interesse que trabalham em causa própria,
de intelectuais auto-indulgentes e de líderes venais que racionalizavam sua
total falta de convicção nos princípios pacifistas. Os ingleses eram menos­
prezados por tratarem guerras como competições atléticas; os franceses, por
sucumbirem a um racionalismo árido facilmente cooptável pela Terceira
República. Ele rejeitava o legado iluminista tradicionalmente prezado pelos
revolucionários franceses, bem como as “ilusões do progresso” que haviam
levado os franceses a cultuar o Estado e os trabalhadores a se dedicarem a
uma atividade política aviltante.44
Sorel encontrou uma alternativa na bourse de travail proletária, que era
“mais algo da ordem da consciência do que um instrumento de governo”.45
As associações trabalhistas que se formaram em torno de cada bourse e
envolveram diretamente os trabalhadores em atividades grevistas propicia­
ram uma alternativa heróica à política burguesa. O proletariado oferecia,
p. 89), exemplificou algo do desejo de heroísmo romântico e de libertação que era da essência de Sorel.
41 Contribution à l’étude profane de la Bible; Le Procès de Socrate, ambos de 1889, comentados em
J. Talmon, “The Legacy of Georges Sorel”, em Encounter, 1970, fev., p. 48.
42 Seu longo Essai sur la philosophie de Proudhon foi escrito logo após sua aposentadoria e publicado
na Revue Philosophique, vol. xxxm, xxxiv, 1892. A influência de Proudhon sobre Sorel é traçada
com concisão em Stanley, pp. 17-24.
43 1. Berlin, “Georges Sorel”, em Times Literary Supplement, 31 de dezembro de 1971, p. 1617.
44 Les Illusions du progrès, p. 1908.
45 Sorel, prefácio a Pelloutier, Histoire des bourses du travail, 1902, p. 26; citado no estudo que I.
Horowitz faz de Sorel, Radicalism and the Revolt against Reason, NY, 1961, p. 28.
702 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

enquanto classe, a única esperança de regeneração numa sociedade em que


as classes mais altas eram decadentes, as classes médias filistéias e as classes
mais baixas uma perpétua presa da retórica, seja de jacobinos ambiciosos,
seja de católicos reacionários.
Para completar sua missão, o proletariado deve se basear antes no pes­
simismo revolucionário do que no otimismo evolucionário: na convicção
heróica e emocional de que algo deve ser de certo modo, e não no argumento
mesquinho e intelectual de algo assim será. A crença num desenvolvimento
harmonioso e na paz social era própria de uma burguesia decadente, que
assim esperava arrastar abaixo os outros até o seu próprio nível. A fim de
evitar essa degradação, o proletariado deve se fundamentar firmemente num
mito: no “pessimismo armado”, que era capaz de inspirar “atos heróicos”
como aqueles dos primeiros cristãos e dos primeiros calvinistas. Crentes de
que o mundo em sua totalidade estava condenado, armaram-se da “vontade
de libertação” que “transformou tudo de cima a baixo”, antes que o espírito
crítico e o pálido otimismo do Iluminismo transformassem o calvinismo num
“simples cristianismo relaxado”.46
O comprometimento de tipo religioso era uma “impostura necessária”
nas relações humanas.47 O mito redentor do proletariado numa época pós-
-religiosa era o da “grande greve proletária e geral”. Não era nem uma greve
econômica (em busca só de benefícios materiais) nem uma greve política
(subordinada a ambições políticas). Sorel não tergiversa em chamar a Greve
Geral Proletária de “mito”.48 Mito, para ele, era “um poder que inflama a
alma [...] uma visão da vida”,49 a qual o proletariado só poderia manter viva
se rejeitasse toda tentação de “imitar a classe média”.50 A guerra de classe era
o mais essencial e esquecido conceito de Marx,51 a forma própria de comba­

46 Trechos do panegírico que faz Sorel da figura sublime do pessimista (que ele diferenciava do “otimista
sem coração” geralmente caracterizado como um pessimista) em Reflections on Violence, NY, 1961,
pp. 30-37. Essa edição inglesa (capa dura, 1950; Ia ed. francesa, 1908) inclui materiais suplementares
de edições posteriores e introdução de E. Shils.
47 Frase de Renan admirada por Sorel, citada em Carr, “Sorel: Philosopher of Syndicalism”, em Studies
in Revolution, pp. 153-154.
48 Sorel diferencia mitos, que expressam “uma determinação de agir”, de “utopias”, que são sempre
criadas por intelectuais covardes com a finalidade de “dirigir a mente do homem para reformas que
podem ser alcançadas por meio de simples remendos no sistema existente” (Reflections, pp. 50, além
de 41-53).
49 Talmon, “Legacy”, p. 54.
50 Reflections, p. 177.
51 Reflections começa com uma longa seção sobre “guerra de classe” que pretende recuperar a
belicosidade original do “vocabulário marxista” (p. 64 ss.).
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 703

te heróico do homem moderno e a fonte indispensável de élan vital para o


proletariado revolucionário. Precisamente por não serem órgãos políticos,
as bourses de travail e os syndicats eram capazes de liderar a revolução.
Os trabalhadores devem, contudo, unir-se na crença de que uma vindoura
Greve Geral Proletária suplantaria de uma vez por todas a ordem política
existente. O perigo era que esse acontecimento messiânico fosse pervertido e
transformado numa “greve geral política” controlada por políticos desejosos
de se apossar (ou a elas se juntar) das instituições burguesas de governo.52
A violência era o ingrediente indispensável: o cavalheiresco rite de passage
a que o proletariado tinha de se submeter em seu caminho até o poder, “a
expressão clara e brutal da guerra de classe”,53 que tudo clarificaria na medida
em que polarizaria a sociedade. O capitalismo, “no momento estupidificado
pelo humanitarismo”, recuperaria “as qualidades guerreiras que possuira
outrora”,54 e o proletariado cerraria fileiras com o entusiasmo de guerreiros-
-cruzados da Idade Média. Assim, por meio de Sorel, idéias da velha esquerda
se tomaram, de maneira imprevista, armas para a nova direita. Depois do
derramamento de sangue da Primeira Guerra Mundial, a violência sublime
que Sorel havia prescrito aos sindicalistas se tornaria parte dos princípios
básicos do fascismo.
O principal político francês do período, Georges Clemenceau, daria o
exemplo clássico da esquerda internacionalista que se volta para a direita
nacionalista. Ele havia utilizado o seu jornal de 1880, La Justice, para construir
uma reputação de inimigo cruzado da corrupção e de defensor do homem
comum (técnica também empregada por Hearst para fazer um contraponto
doméstico à sua convocação para uma cruzada no exterior). Também atuou
periodicamente como líder da extrema esquerda na Câmara dos Deputados.
Mas o jornalismo radical foi que permaneceu o meio de atuação preferido

52 V. as seções “The Proletarian Strike” e “The Political General Strike”, em Reflections* pp. 119-179.
53 Ibid., p. 91, com itálicos no original. A violência é contrastada com a “força” burguesa, que é ardilosa,
não reconhecida e altamente degradante — quase sempre camuflada pela “esperteza, pela ciência
social ou por sentimentos elevadíssimos”.
54 Ibid., p. 92 e p. 89.0 sindicalismo revolucionário violento alcançou um clímax na Espanha durante
a “semana trágica” de insurreição centrada em Barcelona, em julho de 1909 (J. Romero-Ma ura,
“Terrorism in Barcelona and Its Impact on Spanish Politics 1904-1909”, em Past and Present,
1968, dez., pp. 130-183; J. Ullman, Tragic Week: A Study of Anticlericalism in Spain, 1875-1912,
Cambridge, Massachusetts. 1968); teve seu clímax na Inglaterra com as greves industriais de
1911-1912 lideradas em grande parte pelo sindicalista australiano Tom Mann, as quais incitaram
as associações trabalhistas a se organização segundo um modelo sindicalista revolucionário de
indústrias nacionais capazes de coordenar greves de grande escala. V. G. Cole e R. Postgate, The
British Common People, 1746-1946, L, 1947, p. 416.
704 A FE REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

do ^-communard’. seu novo jornal de 1897, L'Aurore, imprimiu a famosa


denúncia de Zola das maquinações de direita por trás do Caso Dreyfus.
Contudo, quando o próprio Clemenceau chegou ao poder como ministro
do interior em 1906, defendeu o uso de força militar para suprimir desordem
doméstica. Depois de se tornar primeiro-ministro mais tarde naquele mesmo
ano, estendeu-se de maneira ainda mais sistemática na necessidade de força
nacional. Quando do lançamento de seu novo jornal de 1913, L'Homme
Libre, havia se tornado um puro e simples militante patriota. Defendeu o
rearmamento contra a ameaça alemã, a mobilização total tão logo se iniciou
a guerra e uma fanática “vontade de vitória” que o lançou, aos 76 anos de
idade, à posição de primeiro-ministro para dar o empurrão final rumo à
vitória. Deu ao comandante militar que escolheu para as últimas batalhas,
Ferdinand Foch, o título napoleònico de Marechal da França e insistiu na
imposição de termos de paz humilhantes em Versalhes para os derrotados
alemães. Enviou Foch para que se juntasse a outro ex-revolucionário que se
voltou para o nacionalismo contra-revolucionário, Józef Pilsudski, no último e
mais bem-armado esforço de acabar com a revolução bolchevique na Rússia.
O caso mais chocante de mutação da velha esquerda para a nova direita
ocorreu na Itália, a qual criou, a partir do caos do pós-guerra e da agitação
sindicalista, o primeiro regime fascista da história. Seu autor — e pai-fundador
da direita radical moderna — foi o ex-socialista de esquerda e admirador de
Lênin por toda a vida: Benito Mussolini.

A mutação fascista
A Itália desempenhou um papel especial na época em que se espalhavam pela
Europa as guerras trabalhistas. Lá havia veneráveis tradições de violência;
e os anarquistas, que haviam lançado sua primeira defesa da revolucioná­
ria “propaganda por meio de atos” em 1876 na Itália,55 ajudaram mais do
que em outros países a organizar a greve geral de 1904. Foi a maior feita
até então;56 mais de um milhão de trabalhadores participaram dela. Já que
praxes parlamentares e partidos políticos não inspiravam lealdade profunda
na Itália, o chamamento sindicalista à ação direta fora da arena política teve
especial atrativo. A greve geral italiana de 1911 contra a invasão de Tripoli

55 J. Guillaume (ed.), L’Internationale. Documents et souvenirs 1864-1887, vol. iv, 1910, p. 114,
citado em Ivansky, p. 45. Para detalhes, v. R. Hostetter, The Italian Socialist Movement I: Origins
(1860-1884), Princeton/Toronto/L, 1958, pp. 321-381.
56 Crook, p. 185.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 705

colocou em prática a idéia sindicalista original dos anos 1890: uma greve
interna para se opor a uma guerra externa. O último congresso da Segunda
Internacional (Basiléia, 1913) registrou muitos compromissos de ação pro­
letária internacional contra qualquer guerra vindoura. Os italianos deram a
mais séria resposta prática ao realizarem em junho de 1914 a última grande
greve geral antes do conflito.57 Embora se limitando a uma semana turbulenta
de duração, a greve impediu que a Itália, única entre as principais potências
européias, entrasse na guerra imediatamente após esta ter se iniciado em
julho de 1914.
As manifestações pedindo a intervenção italiana se iniciaram precisamente
entre os sindicalistas revolucionários, que temiam que a França revolucionária
pudesse ser derrotada e a reacionária Áustria encorajada a invadir a Itália. A
paixão sindicalista pelo mito heróico e pela ação direta ligou decisivamente
a velha esquerda à nova direita. Ao protestarem pedindo a intervenção ita­
liana, os sindicalistas ajudaram a formar “bandos [fasci] para a ação revo­
lucionária”. Pintavam a guerra como um processo enobrecedor que livraria
a Itália do governo monárquico e da forma parlamentar. Repercutiam os
esforços paralelos de Sorel na França, nos anos imediatamente anteriores
à guerra, para combinar as forças nacionalista e sindicalista em oposição à
democracia burguesa.58
Mussolini foi literalmente batizado dentro da tradição revolucionária. O
seu pai, um ferreiro de inclinação radical, deu-lhe o nome do revolucionário
nacionalista mexicano Benito Juarez. O jovem Mussolini se tornou um revo­
lucionário socialista, e na condição de marxista praticante passou parte de
sua juventude refugiado na Suíça. Em 1908, aos 25 anos, tornou-se editor de
um jornal do Partido Socialista, La Lotta di Classe. Em 1911 passou cinco
meses encarcerado por participar de protestos contra a conquista italiana da
57 L. Lotti, La settimana rossa, Florença, 1965.
58 Sorel se tornou um colaborador regular do nacionalista L'Indépendance e um patrocinador do
Cercle Proudhon, o qual (de acordo com seu líder, Edouard Berth) “chegou perto de criar o fascismo
avant la lettre” (citado em Talmon, p. 58, nota 15). Sobre a influência soreliana na Itália, v. R. Paris,
“Georges Sorel en Italie”, em Mouvement Social, 1965, jan.-mar., pp. 131-138; J. Roth, “The Roots
of Italian Fascism: Sorel and Sorelismo”, em Journal of Modern History, 1967, mar., pp. 30-45.
Destacado estudioso do fascismo comparado, E. Nolte tende, contudo, a enfatizar mais a influência de
Nietzsche do que a de Sorel no que diz respeito aos elementos não-marxistas da crítica de Mussolini
à democracia liberal: “Marx und Nietzsche um Sozialismus des jungen Mussolini”, em Historische
Zeitschrift, vol. cxci, 1960, pp. 249-335. Stanley (pp. 2-5) repele com energia a associação de Sorel
com o fascismo.
Para uma discussão mais geral da simbiose dos extremos da esquerda e da direita em sua oposição
comum ao Estado liberal na França, v. Z. Sternhall, La Droite révolutionnaire. Les origines françaises
du fascisme, 1885-1914, 1978.
706 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Líbia; e, em dezembro do ano seguinte, tornou-se editor do jornal oficial do


Partido Socialista, Avanti!, que ele, ajudado pela anarquista russa Angelica
Balatanov, transformou em um canal militante e revolucionário de ensina­
mentos sindicalistas.
Sua atividade jornalística à frente de um órgão partidário oficial guarda
grande semelhança com a de Lênin uma década antes. Como este, Musso­
lini assumiu responsabilidade pessoal por se valer de sua posição editorial
para determinar uma linha política geral. Assim como Lênin havia atacado
o “cretinismo parlamentar” (nos jornais Iskra e Vpered, que também signi­
ficava, como Avanti!, um chamado a ir adiante), de igual modo Mussolini
ridicularizou as ilusões parlamentares dos socialistas menos militantes. Ele
também criou uma revista teórica de menor envergadura, Utopia/9 a fim de
proporcionar guiamento para a criação de uma “cultura socialista” — mais
uma vez a lembrar o procedimento de Lênin, que fundou um jornal ideoló­
gico (a princípio chamado Zaria, depois BoPshevik e, por fim, Kommunist)
para complementar a orientação tática diária do jornal do partido (Iskra,
depois Pravda).
Mussolini, claro, divergiu de modo acentuado de Lênin ao adotar uma
postura intervencionista radical na Primeira Guerra Mundial. Foi expulso do
Partido Socialista Italiano em outubro de 1914 e fundou, no mês seguinte, o seu
jornal mais famoso, Il Popolo d"Italia, no qual elaborou sua síntese militante
de sindicalismo e nacionalismo. Argumentava que lutar a guerra ao lado dos
aliados serviria tanto para derrotar o reacionário Império Alemão quanto para
mobilizar as massas em ação direta contra o governo liberal desgastado da
burguesia. Quem tiver medo “de ir lutar nas trincheiras não será encontrado*

59 P. Monelli, Mussolini, NY, 1950, pp. 62-63; também R. De Felice, Mussolini il rivoluzionario
1883-1920,Turim, 1965, pp. 136-176, esp. pp. 182-183. O livro de De Felice é de longe o mais rico
estudo já feito sobre a formação política de Mussolini. Sua conclusão fundamental de que Mussolini
era produto da tradição revolucionária francesa e da esquerda provocou intensa crítica na Itália,
ao que De Felice respondeu com vigor numa entrevista a M. Ledeen, Intervista sul fascismo, Bari,
1975. D. Smith resumiu o ataque em uma resenha do quarto volume da biografia em andamento de
Mussolini (“A Monument for the Duce”, em Times Literary Supplement, 31 de outubro de 1975,
pp. 1278-1290); Ledeen respondeu; e suas avaliações conflitantes foram publicadas (1976) como
Un monumento al ducei Contributo al dibattito sul fascismo. A controversia é discutida de modo
sumário na introdução de C. Delzell à edição em inglês de uma obra interpretativa publicada pela
primeira vez em 1969: De Felice, Interpretations of Fascism, Cambridge, Massachusetts, 1977. De
Felice também estabeleceu relações entre o sindicalismo revolucionário e o ainda mais romântico
nacionalista de direita que contribuiu para o crescimento do fascismo, Gabriele D’Annunzio:
Sindicalismo rivoluzionario e fiumanesimo nel carteggio de Ambris-D’Annunzio, 1919-1922, Brescia,
1966. Uma introdução à vasta literatura recente sobre o fascismo escrita com especial simpatia
pela nova história social é C. Maier, “Some Recent Studies on Fascism”, em The Journal of Modern
History, 1976, set., pp. 506-521.
LIVRO ni, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 707

nas ruas no dia da batalha”. Havia chegado a hora de “gritar alto” algo que
“eu jamais teria pronunciado em tempos normais”, aquela “palavra temível e
fascinante: Guerra!”.60 Sua descrição da guerra como o “milagre” que acabaria
com a velha ordem e criaria condições para a nova prenunciou o totalitarismo
que estava por vir, mas também reverberou o romantismo original das eras
revolucionária e napoleònica com sua “política do milagroso”.
A frágil democracia liberal que surgiu na Itália depois da guerra enfrentou
desafios revolucionários advindos da ocupação das fábricas pelos sindica­
listas e do novo partido revolucionário de Mussolini, que transformou os
fasci di azione rivoluzionaria dos sindicalistas nos novos fasci italiani di
combattimento. Os símbolos fundamentais invocados por ele foram quase
todos tomados da tradição nacionalista romântica do Risorgimento. Il Popolo
d’Italia se aproveitou de reminiscências do L’Italia del Popolo de Mazzini;61
sua retorica revivia as esperanças mazzinianas de uma “terceira Roma” — não
de imperadores nem de papas, mas do “povo”; e seu hino de autocelebração,
“Juventude” (Giovinezza), era uma reprise da imagem que Mazzini fazia da
Jovem Itália. Valendo-se da mise en scène clássica da tradição revolucionária
nacional, Mussolini e seus correligionários realizaram na casa de ópera La
Scala, em Milão, a “primeira violência planejada da Itália pós-guerra”,62 um
protesto nacionalista baderneiro em janeiro de 1919. Até as camisas pretas
dos partidários de Mussolini combinavam a cor anarco-sindicalista com o
traje garibaldiano clássico. A fusão que Mussolini fez de violência e mito
lhe valeu a admiração de Sorel, que o descreveu como “não um socialista
comum [...] e sim um condottiere”.63
O fascismo de Mussolini era, portanto, um resgate do nacionalismo revo­
lucionário64 e uma adaptação do sindicalismo revolucionário. O rompimento

60 Citado de Popolo d'Italia, 3 de dezembro de 1914, em H. Finei; Mussolini's Italy, NY, 1935; v. também
pp. 90-105. E. Saltarelli crê que Mussolini soube de maneira hábil se apropriar do entusiasmo que
uma nova geração de jornalistas italianos havia provocado durante a campanha na Líbia em 1911:
“Le Socialisme National en Italie: précédents et origines”, em Mouvement Social, 1965, jan.-mar.,
p. 50 ss., esp. p. 59.
61 Seis jornais sucessivos perpetuaram o nome do jomal originai de Mazzini fundado em maio de 1848.
V. Ravinna, Giornalismo, pp. 13-14.
62 C. Seton-Watson, Italy from Liberalism to Fascism, L, 1967, p. 518.
63 Horowitz, p. 182.
64 O monopólio de elementos patrióticos atrativos e a popularização deles como armas contra a esquerda
são enfatizados em De Felice, Il Fascismo e i partiti politici italiani: Testimonianze del 1921-1923,
Bolonha, 1966. O emprego de “fasci” com um sentido vagamente socialista se iniciou, senão antes,
pelo menos em 1871. V. E. Wiskemann, Fascism in Italy: its development and influence, NY, 1969,
p. 9; também Tilly, Century, p. 120.
708 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

com sua crença anterior no socialismo foi dramatizado em abril de 1919,


quando ajudou a incendiar a sede do Avanti!, o jornal socialista que ele tinha
antes editado. Em julho, os fascistas se ofereceram para ajudar o governo a
suprimir uma planejada greve geral.65
Durante a segunda metade de 1919 e em 1920, a Itália produziu a revolução
sindicalista que mais chegou perto do sucesso em toda a história européia.
Começando pelos trabalhadores metalúrgicos em Turim e se espalhando
rapidamente por grande parte do norte industrializado, conselhos fabris
foram estabelecidos como uma forma rudimentar de auto-administração
descentralizada dos trabalhadores. Essa campanha foi menos violenta e
política do que a posição maximalista interna ao Partido Socialista, embora
tenha apresentado uma oposição mais completa ao Estado burguês do que
a ala parlamentar do partido. Quando os patrões se recusaram a negociar
com os conselhos, ocorreu em setembro de 1920 uma “ocupação das fá­
bricas” espetacular e em grande medida pacífica, que contou com 400 mil
trabalhadores, com outros milhões aderindo ao movimento por toda a Itália.
Apesar da aparição de bandeiras vermelhas e de organizações de “guarda
vermelha” em muitas fábricas, a recente Revolução Russa não exerceu gran­
de impacto sobre os acontecimentos italianos. Antonio Gramsci e Paimiro
Togliatti, intelectuais de Turim que mais tarde se tornariam fundadores e
líderes do Partido Comunista Italiano, não iniciaram nem controlaram a
efêmera tomada dos meios de produção pelos trabalhadores em 1920.66 A
empolgação diante da vitalidade espontânea do movimento e a frustração com
a oportunidade perdida de anexação completa do poder os levou a forçar um
racha no Partido Socialista Italiano em Livorno, em janeiro de 1921, e a criar
o seu próprio, mais disciplinado e mais político Partido Comunista da Itália.
Das perspectivas intelectuais e dos esforços pedagógicos de Gramsci para
prover guiamento ao proletariado durante a “revolução fracassada” de 1920,
nasceu a palavra e o ideal da hegemonia. Esta revivia o ideal sindicalista do
objetivo da revolução como a reintegração cultural total de um proletariado
autônomo, em vez de uma mera ditadura política. O entusiasmo do jovem
Gramsci com o potencial heróico do proletariado para construir “a cidade

65 Tilly, Century, p. 169 ss.


66 P. Spriano, L’Occupazione delle Fabriche, Turim, 1964, segue a linha de interpretação comunista
posteriory tendendo a minimizar a influência sindicalista e maximizar os aspectos inovadores do
grupo Togliatti-Gramsci. Um tratamento mais equilibrado é o de M. Clark, Antonio Gramsci and
the Revolution that Failed, New Haven/L, 1977.
LIVRO in, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 709

futura” ou “a nova ordem”67 lembrava Sorel — mesmo se adviesse da rejeição


do positivismo obtuso da vida intelectual italiana pelos estudantes da Univer­
sidade de Turim. Mas a luta pela hegemonia proletária requeria a liderança
de intelectuais; as organizações culturais e os meios de comunicação eram
mais importantes na preparação do caminho do que parlamentos e eleições.
Segundo acreditava Gramsci, os intelectuais estavam pelo menos potencialmente
livres da decadência enervante da política burguesa. A Itália tinha até então
produzido apenas uma “revolução passiva” — na qual o Estado havia criado
uma ditadura política de liberais burgueses, sem receber o assentimento, para
não falar o envolvimento, da sociedade civil. Assim, o Estado italiano existente
se mantinha mais pela força do que pela hegemonia. O proletariado tinha a
oportunidade, com a ajuda e tutela de intelectuais progressistas, de reviver a
vitalidade da sociedade civil por meio da criação da hegemonia na qual deve
se basear uma transformação verdadeiramente revolucionária da sociedade.68
Mas não seriam Gramsci e os comunistas que tomariam o poder e imporiam
uma nova hegemonia cultural, e sim o partido revolucionário rival também
fundado em 1921, o Partido Fascista da Itália. Seu primeiro secretário era um
ex-sindicalista, Michele Bianchi. Portava a primeira versão italiana do nome
de Auguste Blanqui (“Bianchi”), cuja famosa frase “quem tem aço, tem pão”
apareceu no começo do primeiro número do Popolo d'Italia de Mussolini.69

67 Respectivamente o primeiro título e o título que por fim se deu ao periódico cultural socialista que
proporcionou o nome (Ordine Nuovo) em geral usado para descrever o grupo Gramsci-Togliatti,
o qual acabaria por dominar o Partido Comunista Italiano.
68 Tanto a palavra quanto o conceito de “hegemonia” geraram uma literatura enorme que beirou o
misticismo com o advento do “euromunismo” e o esforço dos comunistas italianos, em particular
para se diferenciarem dos comunistas soviéticos. O conceito é discutido (ainda que sem que se
estabeleça de modo adequado sua relação com o legado sindicalista) em S. White, “Gramsci and
the Italian Communist Party”, em Government and Opposition, 1972, primavera, esp. p. 191; G.
Williams, “Gramsci’s Concept of‘Egemonia’”, em Journal of the History of Ideas, 1960, out.-dez.,
pp. 586-599; e especialmente T. Bates, “Gramsci and the Theory of Hegemony”, em Journal of
the History of Ideas, 1975, abr.-jun., pp. 351-366. Este ultimo observa (p. 352) que o conceito se
originou da ênfase que Axelrod e Plekhanov davam ao consentimento do proletariado. Mas Lênin
e os leninistas (em especial os intelectuais) também usaram o termo no período soviético inicial
como possível sinônimo de ditadura do proletariado. V. Adoratsky (“Idéia gegeonii proletariats”
e “Politieskaia deiatel’nost Lenina i ego lozungi”, em Melodaia Gvardiia, 1924, nQ 2-3, p. 488 ss.)
localiza o termo entre os primeiros “slogans” de Lênin. Mais recentemente, o termo foi devolvido
a Lênin como um conceito rígido central, empregado para refutar quase todas as políticas nâo
soviéticas no mundo contemporâneo, a incluir os reclamantes gramscianos do conceito (I. Aluf,
“Leninskoe uchenie o gegemonii proletariata i sovremennost”, em Voprosy Istorii KPSS, 1969, n°
1, pp. 14-29).
69 Wiskemann, p. 22; Finei; p. 101; Tilly, pp. 187-188. Novas provas da influência anterior e direta
de Blanqui sobre Clemenceau estão em M. Paz, “Clemenceau, Blanqui’s Heir”, em The Historical
Journal, vol. xvi, 1973, n° 3, pp. 604-615.
710 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A vitória na Itália da revolução nacional dos fascistas, e não da revolução


social dos comunistas, se deve em boa medida à tática dos perdedores. O
primeiro artigo político conhecido de Gramsci defendia o intervencionis­
mo de Mussolini na Primeira Guerra Mundial, com base no argumento de
que a guerra poderia destruir o Estado burguês e tornar a revolução mais
próxima.70 As decisões cruciais que tomou no fim de 1920 e no começo de
1921 levaram Mussolini ao poder — e ilustraram mais uma vez a freqüente
interdependência entre os extremos da esquerda e da direita.
Na crise do pós-guerra, Gramsci, Togliatti e outros fizeram a escolha
decisiva de juntar-se ao defensor extremista de laços próximos com Mos­
cou, Amadeo Bordiga, assim rachando o Partido Socialista Italiano e dei­
xando a esquerda irremediavelmente dividida no princípio do avanço de
Mussolini rumo ao poder. O sofrimento posterior de Gramsci em prisões
fascistas, o rápido repúdio dos comunistas italianos a Bordiga como um
desvio esquerdista, as críticas de Togliatti, no leito de morte, ao stalinismo
(exemplificado pelo tirano da Hungria, Matthias Rákosi, que havia sido
um agente soviético fundamental na conferência de Livorno) — tudo isso
não obscurece a tragédia inerente à formação original de um Partido Co­
munista à parte. Este foi formado em resposta direta às “21 condições” da
nova Internacional leninista impostas a partir de fora. Gramsci e outros
supuseram de maneira trágica que, ao concentrar seus ataques num Estado
democrático liberal frágil e em socialistas reformistas, acelerariam a sua
própria conquista revolucionária do poder — em vez de acelerar a conquis­
ta revolucionária das pouco compreendidas forças da direita. O atrativo
da revolução nacional sobre a social prevaleceu mais uma vez; e a direita
chauvinista chegou ao poder em 1922.
As mesmas incompreensões fatídicas flagelariam os comunistas alemães
uma década mais tarde. Veriam a débil República de Weimar e os rivais
social-democratas de esquerda como oponentes mais sérios do que os na­
zistas na direita. Hitler, assim como Mussolini, seria visto como apenas um
fenômeno passageiro que prepararia o caminho (como Kornilov havia feito
na Rússia em 1917) para a revolução séria da esquerda, tida como a única
possuidora de apoio popular duradouro.

70 “Neutralità attiva e operante”, em II Grido del Popolo, 31 de outubro de 1914; discutido em Clark,
p. 49, e com maior detalhe em R. Paris, “La primière Expérience politique de Gramsci (1914-1915)”,
em Mouvement Social, 1963, jan.-mar., pp. 31-57. A. del Noce fez observações no sentido de urna
maior influência do teòrico fascista italiano Giovanni Gentile sobre Gramsci: Il Suicidio della
rivoluzione, Milão, 1978.
LIVRO HL CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 711

O fracasso em distinguir com clareza os partidos revolucionários rivais foi


mais justificado no caso italiano do que no caso alemão. Mussolini, Bianchi
e outros, afinal de contas, tinham sido puras criações políticas da tradição
revolucionária; e eles adotaram em larga medida as técnicas sindicalistas,
ao organizarem seu movimento como um partido nacional controlador. As
associações sindicais fascistas foram utilizadas para mobilizar as massas;
e, depois da marcha em Roma em 1922, o Estado corporativo fascista foi
organizado em linhas verticais por indústrias segundo um modelo antes pri­
vilegiado pelas organizações sindicais grevistas. A ironia é enorme e é dupla.
As idéias sindicalistas eram utilizadas para abrir caminho para a centralização
do poder político, ao passo que a tradição sindicalista havia sido criada para
combater essa centralização. Mais importante ainda, ideais e expectativas
revolucionárias sociais foram muito utilizados (em especial no princípio, pelo
assim chamado fascismo delia prima ora) para legitimar, sob os auspícios da
direita, a sua rival tradição revolucionária nacional.
A tradição sindicalista também ajudou a preparar o caminho para outros
regimes fascistas que surgiram depois na Espanha e em Portugal. Por toda a
Europa latina, os sindicalistas tinham legitimado a ação direta violenta contra
instituições democráticas liberais e amedrontado os católicos, fazendo-os
cair nos braços de uma nova forma de nacionalismo pseudo-revolucionário.
O último exemplo confirmador veio de outro ditador de direita que havia
conseguido derrubar uma incipiente democracia na década de 1920: Józef
Pilsudski. Assim como a Itália, a Polônia havia sido um bastião da tradição
revolucionária nacional da era francocêntrica e de sua expressiva violên­
cia romântica. Essas duas tradições nacionais tinham inspirado à Europa
muito de seu dinamismo revolucionário anterior ao período de predomínio
germano-russo no último terço do século xix. Como Mussolini, Pilsudski
era um jornalista socialista de esquerda que havia crescido no período de
desilusão e confusão da virada do século. Como Mussolini, chegou ao poder
em grande parte adaptando seu treinamento na esquerda às necessidades da
direita — e se aproveitando de modo consciente do outrora revolucionário
nacionalismo. Como Mussolini, criou o que Spengler chamaria de uma pseu-
domorfose (uma falsa transformação) do legado revolucionário.
Pilsudski se ligou, por meio de seu irmão em São Petersburgo, ao mesmo
compio para assassinar o tzar em 1887 pelo qual o irmão mais velho de
Lênin foi executado. Condenado a um exílio de cinco anos na Sibéria por ter
buscado produtos químicos para ajudar os conspiradores, Pilsudski retornou
712 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

à Polônia para se juntar ao Partido Socialista Polonês (criado em Paris em


1892) e fundar, em 1894, um jornal clandestino, Robotnik [O Trabalhador].
Assim como Krupskaia no Iskra de Lênin, a esposa de Pilsudski era uma
colaboradora de central importância para ele, e ambos foram presos juntos
em 1900 em seu escritório editorial secreto em Lodz. Pilsudski admirava a
militância de Lênin, mas viu possibilidades de uma ressurgência nacional
revolucionária no seu país em meio à violência da Primeira Guerra Mun­
dial. Proclamado chefe de Estado com poderes ditatoriais quando a Polônia
finalmente alcançou sua independência em 1918, ele de imediato mergulhou
no combate contra o regime rival de Lênin a leste. Assim como a luta de
Mussolini contra os socialistas italianos pró-bolcheviques, o conflito de Pil­
sudski com Lênin era sob muitos aspectos um conflito intramuros entre as
tradições revolucionárias nacional e social. Ele combateu outros poloneses
(a exemplo do chefe da polícia secreta de Lênin, Felix Dzerzhinsky, cuja
carreira paralela no jornalismo revolucionário se iniciou quase ao mesmo
tempo e no mesmo local que a de Pilsudski).71 O projeto de Pilsudski de uma
federação de estados-nação se centrou na Polônia; sua oposição ao poder
imperial tanto da Rússia quanto da Alemanha era de várias formas um re­
torno ao nacionalismo romântico mazziniano da Jovem Polônia no início
do século XIX.72 Mas a paulatina consolidação de seu poder ditatorial traiu
a substância democrática daquelas primeiras visões da revolução nacional
como um caminho para a libertação humana.
Se o sindicalismo na Europa se viu assim absorvido por uma nova espécie
de nacionalismo radical de direita, nos Estados Unidos do mesmo período
ele encontrou sua mais pura expressão como uma doutrina da revolução
social ecumênica.

A fronteira ocidental
Como um fogo de campina que queima com mais intensidade na periferia,
a violência revolucionária se tornou mais intensa nas regiões mais remotas
da Europa no fim do século xix. Os Bálcãs, a Irlanda e até a Austrália se
tornaram grandes centros de manifestações violentas. A fronteira oriental
produziu a Revolução Russa; mas incêndios esquecidos também queimaram
na fronteira ocidental. No mesmo ano em que os russos realizaram a primeira

71 Sobre esse jornal de 1897 impresso em Kaunas, v. Golomb, p. 23.


72 K. Dziewanowski, Joseph Pilsudski, a european federalist, 1918-1922, Stanford, 1969, pp. 29^40,
e também Braunthal, pp. 230-231.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 713

greve geral bem-sucedida e de proporção nacional (1905), os norte-america­


nos fundaram a primeira e única organização internacional comprometida
a fazer a revolução através de greve geral: a Trabalhadores Industriais do
Mundo (iw).73
À medida que entrava na intensa era industrial dos anos 1870, os Esta­
dos Unidos se metiam na “mais sangrenta e violenta história trabalhista de
qualquer nação industrializada do mundo”.74 A violência industrial lá estava
voltada para questões econômicas quase naturais, em vez de voltada para
questões ideológicas.75 O coração da turbulência era a grande metrópole do
interior norte-americano: Chicago. A nova cidade de pedra e aço que surgiu
das cinzas do grande incêndio de 1871 criou, em 1875, a primeira Socieda­
de de Educação e Defesa, onde trabalhadores se reuniam regularmente e se
exercitavam com armas de fogo. Seis anos depois, Chicago sediou a primeira
reunião de norte-americanos que defendiam a revolução social através da
resistência armada à autoridade.76 O primeiro Dia dos Trabalhadores foi pro­
posto em Chicago em 1886; e a primeira greve industrial ampla foi lançada
lá em 1894: a greve de Pullman. Chicago também foi palco da Revolta de
Haymarket em 1886, que criou o primeiro temor moderno de revolucionários
nos Estados Unidos, e da fundação da iww em 1905.
Essa versão americana do sindicalismo revolucionário era um movimento
de proporções continentais que envolvia as cidades mais antigas do leste, as
novas minas do oeste, algumas fábricas do meio-oeste e a rede ferroviária
que ligava todas elas. Pela primeira vez desde a Revolução Americana, um
número significativo de norte-americanos — em sua maioria, gente traba­
lhadora — pedia a queda de seus governantes.
Esse movimento revolucionário do período industrial norte-americano se
desdobrou em duas etapas sucessivas, senão coincidentes. Cada uma delas
representou, sob alguns aspectos, uma repetição atrasada (senão inconsciente)

73 Na sigla em inglês — nt.


74 P. Taft e P. Ross, “American Labor Violence: Its Cause, Character, and Outcome”, em H. Graham e
T. Gurr, Violence in America: historical and comparative perspectives, NY, 1969, p. 281. Um bom
relato recente com bibliografia é S. Lens, The Labor Wars, from the Molly Maguires to the Sitdoums,
NY, 1974.
75 Só os isolados e idiossincráticos “Comitês de Vigilância” em Louisiana se diziam um “movimento
revolucionário” (baseando sua atividade ilegal no precedente de 1776). V. R. Brown, “The American
Vigilante Tradition”, em Violence, p. 181. Somente a misteriosa epidemia de assassinatos no território
mexicano se valeu da violência política com proveito revolucionário contra a autoridade constituída.
V. Brown, “Historical Patterns of Violence in America”, ibid., pp. 58-60.
76 Taft e Ross, ibid., pp. 283-284.
714 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de esforços anteriores de revolucionários europeus. Primeiro veio o período de


protestos heróicos e antiautoritários liderados por trabalhadores imigrantes
no noroeste americano e que lembravam a tradição ítalo-polonesa de vio­
lência revolucionária. Depois veio a organização sindicalista revolucionária
(a iww) liderada por mineiros do oeste e que lembrava esforços anteriores
dos franceses.

A inquietação étnica

O novo ingrediente vital nos Estados Unidos, aquele que ligou a violência
às idéias revolucionárias, foi o fluxo de imigração iniciado em meados do
século xix. À medida que o país adquiria mais mão de obra européia para
construir ferrovias e túneis de minas e encher fábricas, também adquiria uma
novíssima infusão de idéias. Num primeiro momento, essas idéias advieram
principalmente de nacionalistas revolucionários católicos, os quais com
freqüência se tornaram revolucionários sociais numa América predominan­
temente protestante.
A Irlanda desempenhou papel de particular importância, responsável
que foi por 44% dos 3,5 milhões de imigrantes que chegaram aos Estados
Unidos entre 1840 e 1854.77 Os irlandeses trouxeram consigo uma rica
tradição revolucionária de organização secreta e provocação à autoridade.
Foram imigrantes irlandeses que lideraram a rebelião de mineradores de
ouro na Paliçada de Eureka (nome de um subúrbio) na fronteira com a
Austrália, em 1854;78 também foram os que mais se destacaram na agita­
ção mais prolongada dos mineradores de carvão da Pensilvânia entre as
décadas de 1860 e 1870.
Depois da supressão da Sociedade da Insígnia no fim da década de 1830
e dos anos de escassez de meados da década de 1840, os revolucionários da
Irlanda se tornaram mais extremos e engenhosos. Algumas novas socieda­
des secretas reviveram a velha tradição agrária dos homens se travestirem
de mulheres (caso dos “Lady Rocks” e dos “Lady Ciares”);79 e o interior da

77 W. Broehl, Jr., The Molly Maguires, Cambridge, Massachusetts, 1964, p. 73.


78 Sobre o líder, “Peter Lalor”, os “Tipperary Boys” e estimativas de que cerca da metade dos 863
participantes eram irlandeses, v. Historical Studies, Australia and New Zealand, Eureka Supplement,
Melbourne, 1954,2a ed. ampi., 1965, pp. 49,79. V. também à p. 80 ss. a participação norte-americana
nesse acontecimento, que ajudou a dar origem ao nacionalismo e sindicalismo australianos (de acordo
com uma carta de 20 de dezembro de 1971 do estudioso irlandês e ex-embaixador na Austrália,
Éoin MacWhite).
79 Broehl, p. 25, e lista de outras sociedades, p. 26.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 715

Irlanda começou a falar de uma sociedade secreta inteiramente nova com o


nome lendário de Molly Maguire.80
Os Molly Maguires adquiriram uma importância no Novo Mundo que
nunca tiveram na Irlanda. Tornaram-se os defensores e organizadores dos
imigrantes irlandeses que afluíram aos campos de carvão recém-abertos da
Pensilvânia. A mineração de antracite era coisa nova para os irlandeses, os
quais, católicos, eram considerados suspeitos e estavam submetidos a fre-
qüente desemprego, em especial durante o período de recessão que se seguiu
à Guerra Civil. Eles buscaram a proteção dos Molly Maguires, os quais se
organizavam principalmente em tavernas como um braço secreto e militan­
te da Antiga Ordem dos Hibérnios. Os trabalhadores irlandeses fisgaram
a imaginação dos Estados Unidos com suas paralisações de trabalho, cujo
clímax foi a Longa Greve de 1875 contra a Ferrovia Reading.
Allan Pinkerton, um ex-radical cartista, chefiou o contra-ataque dos pro­
prietários de ferrovia, lançando mão de infiltrados nos Molly e empregando
“esquadrões volantes” para romper com a greve e prender seus líderes. Uma
série surpreendente de julgamentos terminou em 1877 com o enforcamento
de 20 líderes, oito dos quais pertenciam ao círculo secreto central. Surgiram
lendas na esquerda — e elas fortaleceram uma nova literatura de autocon­
fiança da direita: as histórias de detetive. Pinkerton proporcionou um modelo
de trabalho de detetive a serviço do status quo, e muito a propósito Arthur
Conan Doyle, depois de criar Sherlock Holmes, imortalizou em O Vale do
Medo (1915) a história do triunfo de Pinkerton sobre os mineiros irlandeses.
Os Molly Maguires estavam longe de ser o único movimento revolucio­
nário irlandês na América. A mais importante de todas as sociedades secretas
irlandesas foi fundada nos Estados Unidos no Dia de São Patrício de 1858:
a Irmandade Republicana Irlandesa, às vezes chamada apenas de “a orga­
nização”, mas em geral conhecida como Fenianos (em razão do nome dos
lendários guerreiros irlandeses da antiguidade).81 Alguns retornaram para
80 Ibid., pp. 27-32, para diversas lendas sobre a origem deles e a identidade de Molly Maguire. Essa
obra, a primeira a utilizar a documentação da agência de detetives Pikerton, serve de base para o
relato aqui feito.
81 W. D’Arcy, The Fenian Movement in the United States: 1858-1886, Washington, DC, 1947, p. 243
ss. V. também a coleção editada por M. Harmon, Fenians and Fenianism, Seattle, 1970. Para um
exemplo transnacional de interação esquerda-direita no movimento irlandês, ver o ensaio inédito
que revela que um pioneiro do radicalismo russo da década de 1830, que se tomou um monge
redentorista na Irlanda, acabou por escrever uma bênção especial para os fenianos: De benedictione
novi militis (E. MacWhite, “The Master’s First Chapelain and the First Russian Political Emigré.
Vladimir Pecherin, 1807-1885”, pp. 32-33).
V. também novos materiais em L. Ó Broin, Revolutionary underground: the story of the Irish
716 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

a Irlanda a fim de lutar lá, outros participaram de três tentativas fenianas


espetaculares, conquanto fracassadas, de atacar os britânicos no Canadá:
partindo de Nova York, em 1866, de Vermont, em 1870, e cruzando Mani­
toba, em 1871.82
Suas façanhas marítimas rivalizavam com as de Pisacane e Garibaldi.
Apossaram-se de um navio, que rebatizaram de Esperança de Erin e com o
qual transportaram armas de Nova York para a Irlanda, em 1864; fretaram
um barco e navegaram até a Austrália para resgatar prisioneiros políticos
irlandeses, em 1876;83 e aterrorizaram os britânicos cinco anos depois ao
encomendarem O Aríete Feniano, o primeiro submarino moderno construído
nos Estados Unidos, empregado em missões secretas na Irlanda.84
Enquanto os fenianos navegavam para longe, um grupo rival se recolhia
à clandestinidade: o Clan-na-Gael ou Irmandade Unida, cujo nome alter­
nativo, O Triângulo, lembrava o misticismo de organizações ocultistas mais
antigas.85 Fizeram planos de praticamente tudo, de afundar navios e explodir
a Câmara dos Comuns até assassinar a Rainha Vitória.86
O impulso revolucionário nos Estados Unidos do fim do século xix se
ligou a anarquismo e assassínio através da nova onda de trabalhadores
imigrantes sem formação, com freqüência originário do sul e do leste eu­
ropeu, os quais eram em grande parte excluídos da principal associação
trabalhista, a Federação Americana do Trabalho, fundada em 1886.87 Três
presidentes foram mortos a tiros nos quarenta anos seguintes à irrupção da
Guerra Civil. Lincoln foi assassinado um ano antes da primeira tentativa
de assassinato de Alexandre n, e Garfield quatro meses depois da segunda
tentativa de assassinato do tzar. Mas os assassinos norte-americanos eram
figuras solitárias e idiossincráticas — mais próximas do sentimentalismo da
Republican Brotherhood, 2555-1924, Totowa, 1976.
82 A curiosa mistura que faziam de violência e festividade é ilustrada pela “Marselhesa Feniana”, que
era cantada ao fim dos piqueniques fenianos: “Chega de discursos, irmão, e venha me encontrar
junto àquele rifle. / É por meio da voz doce dele, e só por meio dele, que os direitos do homem são
conquistados”. C. Wittke, The Irish in America, Baton Rouge, 1956, p. 154.
83 Z. Pease, The Catalpa Expedition, New Bedford, 1897.
84 D’Arcy, p. 404 ss.
85 T. Coogan, The IRA, L, 1970, pp. 12, 14.
86 N. Mackenzie, Secret Societies, NY, 1967, p. 188 ss.
87 A AFL foi a primeira entidade a realizar uma celebração formal do Io de maio com os trabalhadores
(v. M. Dommanget, Histoire du premier mai, 1953, pp. 35-37). Mas essa campanha se ligava à causa
da jornada de trabalho de 8 horas, não à solidariedade revolucionária, como se faria em dias do
trabalhador na Europa posteriormente. Em 1894, o trabalhismo americano estabeleceu o seu “dia
do trabalho”, este destinado mais à diversão, na primeira segunda-feira de setembro.
LIVRO IH, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 717

tradição ítalo-polonesa do que da tradição ascética e ideológica da Rússia.


Com efeito, os dois mais importantes assassinatos políticos oriundos do
anarquismo norte-americano no início do século foram cometidos por um
imigrante italiano e um imigrante polonês.
Gaetano Bresci, um imigrante franzino de Florença, organizara um grupo
anarquista em Paterson, Nova Jérsei, conhecido como L'Era Nuova. Solitário
e desconhecido, comprou um revólver barato e praticou tiro nas florestas
perto de Weehauken, enquanto sua esposa e filha colhiam flores silvestres
da primavera. Retornou, discreto, para a Itália, sob o pretexto de visitar
sua mãe idosa; em vez disso, assassinou Umberto, rei da Itália, no dia 29 de
julho de 1900, quando o monarca saía de um festival de atletismo perto de
Milão.88 Um ano depois, em outro lugar de diversão (o Templo da Música,
na Exibição Pan-americana, em Buffalo), o presidente McKinley foi morto
a tiros por um tímido imigrante polonês, Leon Czolgosz.
Por trás e para além desses atos isolados, há um elemento de inspiração
russa, enriquecido com um traço de judaísmo profético oriundo dos gue­
tos do leste europeu. Czolgosz confessou ter se inspirado num discurso da
matriarca do ativismo anarquista dos Estados Unidos, Emma Goldman.89
Os correligionários de Bresci no grupo L'Era Nuova que sobreviveram se
juntaram à agitação anarquista (que culminou nos movimentos antibélico e
anti-recrutamento durante a Primeira Guerra Mundial), que tinha por líderes
Goldman e seu amigo íntimo e compatriota russo, Alexander Berkman.90
A imigração russo-judaica deu ao anarquismo norte-americano da era de
ouro os seus líderes mais inventivos. Seu pórtico de entrada, Nova York, que
até então só tinha servido de apoio aos revolucionários irlandeses, começou
a desempenhar papel análogo para outros movimentos revolucionários.
0 anarquismo se difundiu a partir de um movimento antes formado em
Londres: a Federação dos Anarquistas Judeus, que havia reunido emigrados
falantes de iídiche e oriundos da Rússia para, nos anos 1880 e 1890, ouvir
Kropotkin e outros russos.
O líder deles foi um notável alemão, Rudolph Rocker, que não era judeu
e aprendeu iídiche somente após ingressar no grupo e que, mais tarde, se

88 Jacket; p. 138.
89 R. Drinnon, Rebel in Paradise: a biography of Emma Goldman* Chicago, 1961, pp. 69-77. V. também
a bibliografia crítica, pp. 315-333.
90 Jacket; pp. 128-141.
718 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tornaria a consciência e o historiador do anarquismo internacional.91 Filho


de um tipógrafo de partituras e de uma talentosa encadernadora, Rocker
viveria o suficiente para ver sua livraria e arquivos queimados pelos nazistas92
e suas esperanças de realização do anarquismo minadas pelos comunistas
em Barcelona e, em seguida, eliminadas por Franco durante a Guerra Civil
Espanhola.93 Já idoso, emigrou para os Estados Unidos e viu na sua tradição
libertária as melhores esperanças de seus sonhos desvanecidos.94
Mas o sonho de uma América anarquista nunca morreu para Emma
Goldman.95 Ela, assim como Berkman, tinha transplantado para os Estados
Unidos as esperanças revolucionárias junto com a idéia judaica de uma terra
prometida.96 A colaboração rica e vitalícia dos dois se iniciou em agosto de
1889 ao se conhecerem por acaso num café do Lawer East Side freqüentado
por radicais.97 Três anos depois, Berkman teve a ousadia de tentar expandir o
terror anarquista aos opressores econômicos, não se limitando aos políticos.
No dia 23 de julho de 1892, tentou matar o magnata do aço Henry Clay
Frick, o qual pouco antes havia solicitado represálias contra os grevistas em
Homestead, Pensilvânia. Goldman imitou a personagem Sônia de Crime e
Castigo) tornando-se uma andarilha pedinte, a fim de juntar dinheiro para
comprar roupas que deixassem Berkman apresentável o suficiente para entrar
no escritório de Frick.98 Defendeu-o apaixonadamente depois que foi preso,
e continuou a advogar a resistência violenta a toda autoridade em seu jornal
Mãe Terra de 1906 a 1917.

91 Sobre os anarquistas judeus russos, v. R. Rocker, The London Years, 1956; sobre a influência deles
dentro da Rússia, v. Avrich, pp. 39-40. V. ainda o tratamento transnacional de Rocker, Anarcho-
Syndicalism, L, 1938.
92 V. o prefácio biográfico que o tradutor R. Chase fez a Rocker, Nationalism and Culture, NY, 1937,
p. 16.
93 V. o ainda valioso panfleto de Rocker, The Tragedy of Spain, NY, 1937.
94 V. Rocker, Pioneers of American Freedom, Los Angeles, 1949, em especial sua análise de por que o
anarquismo norte-americano nunca encontrou raízes no radicalismo europeu (pp. 145-154).
95 Goldman ficou devastada em seus últimos dias de vida em razão do esmagamento do anarquismo
na Catalunha durante a Guerra Civil Espanhola: “É como se você tivesse desejado um filho durante
toda a sua vida, e quando já está prestes a perder as esperanças, o filho lhe é dado — só para morrer
pouco depois de nascer” (E. Mannin, Women and the Revolution, NY, 1939, p. 137; Drinnon, p.
311). Ela seguiu a tradição de muitos radicais americanos da época de pedir que seu corpo fosse
transportado de volta para os Estados Unidos, a fim de ser sepultado perto dos mártires do motim
da Haymarket.
96 Drinnon, pp. 3-27.
97 A princípio, o que a atraiu nele foi sua glutonia no restaurante, não suas idéias. V. Goldman, Living
my Life, NY, 1931, vol. i, p. 5; Jacket, p. 129.
98 Jacket; p. 131.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 719

Johann Most, o principal anarquista violento dos Estados Unidos, prova­


velmente desejou que Goldman tivesse ido procurar sua revolução em outra
parte quando, numa reunião pública, ela o açoitou com um chicote por ter
criticado Berkman. Most (assim como Rocker) era um encadernador cuja
imaginação juvenil havia sido capturada pelo antiautoritarismo espontâneo
da Comuna de Paris. Sua aparência de urso e seus poderes oratórios inspira­
dores fizeram muitos lembrar de Bakunin. Por um breve período representou
o Partido Social-democrata no Reichstag prussiano, que ele denunciou como
um “teatro de marionetes”. Mudou-se depois para a Áustria, de onde viria a
ser expulso “para sempre”.99 Em Londres, foi profundamente influenciado
por relatos detalhados da luta dos terroristas dentro da Rússia imperial. Em
seguida foi para os Estados Unidos e, em 1883, elaborou o programa de
um congresso internacional de “anarquistas comunistas” revolucionários.100
Em Pittsburgh, Most defendeu que o anarquismo revolucionário usasse
uma violenta “propaganda por meio de atos” para tornar o proletariado
consciente do hiato entre governantes e governados.101102
Os anarquistas come­
çaram a assumir destacado papel em Chicago em 1886, após uma década de
turbulência industrial cada vez maior. Para protestar contra o assassinato de
seis trabalhadores grevistas na usina agrícola de McCormick, os anarquistas
organizaram uma reunião na Heymarket Square no dia 4 de maio. A despeito
da natureza pacífica da manifestação, que se limitou a discursos, a polícia
interviu empregando força, e na confusão que se seguiu sete pessoas acaba­
ram mortas por uma bomba. A opinião pública, irada, fez com que houvesse
rápida condenação dos líderes anarquistas e o enforcamento de quatro deles,
embora nunca se tenha descoberto quem foi o verdadeiro criminoso.
Most foi implicado no crime e preso. A corte arrolou entre as provas
o tratado que ele havia escrito imediatamente antes do acontecimento da
Heymarket Square: Ciência da Guerra Revolucionária — Manual de Ins­
truções Para o Uso e Preparo de Nitroglicerina, Dinamite, Trinitrocelulose,
Fulminato de Mercúrio, Bombas, Espoletas, Venenos, e Assim por Diante ™2
99 “Para sempre é bastante tempo”, falou ao tribunal com típica bravata. “Quem pode dizer se a
Áustria ainda viverá isso tudo”. Goldman, “Johan Most”, em American Mercury, 1926, jun., p.
162. V. também Rocker Johann Most. Das Leben eines Rebellen, 1924.
100 Havia 28 delegados de 22 cidades. V. H. David, The history of the Haymarket affair, NY, 1936, pp.
99-101. O “anarquismo comunista” se distinguia do anarquismo anterior, que era nativo de lá e
pacífico, próprio a homens como Josiah Warren. V. C. Machison, “Anarchism in the United States”,
em Journal of the History of Ideas, 1945, jan., p. 57 ss.
101 Moat, August Reinsdorf und die Propaganda der That, NY, 1885, pp. 28-30.
102 As cópias dessa obra rara parecem ter desaparecido das principais bibliotecas norte-americanas
720 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

O guia de Most para “armar o povo” se beneficiou da experiência dele


na fábrica de explosivos em Jersey City. Com um toque de prazer, entreteve
a idéia de usar “granadas de mão e cartuchos explosivos [...] o substituto
proletário da artilharia”.103 Bombas de maiores dimensões eram ainda mais
promissoras: “Pode ser que aquilo que reduz pedras duras a fragmentos não
faça má figura em um tribunal ou no salão de baile de um monopolista”.104
Most, todavia, não gostou de terem detonado uma bomba na Haymarket
e se recusou a defender Berkman. Tampouco os anarquistas de Chicago
gostavam de Most e do seu jornal — assim tendo fundado um órgão rival,
Anarquista^ pouco antes do acontecido na Haymarket.105 Para a maioria
dos anarquistas, contudo, Most permaneceu um “exemplo de homem que
não se deixa curvar pela prisão, pelo ridículo, pela calúnia”.106 Henry James
o tomou como modelo do misterioso Hoffendahl no romance A Princesa
Casamassima (1886).
Most ajudou a tradição revolucionária européia a encontrar raízes dentro
da nova classe trabalhadora nos Estados Unidos. Como escrevia e falava com
grande desenvoltura tanto em alemão como em inglês, alcançou a maior e
mais bem estabelecida das minorias na área urbana: os alemães. Ele reviveu
os argumentos pouco conhecidos a favor da violência de um inimigo alemão
de Marx, Karl Heinzen,107 reimprimindo sua defesa do tiranicídio exatamente
no dia em que o presidente McKinley foi assassinado.108 Somente uma cópia
do livro foi vendida (para o oficial de prisão),109 mas sua última frase servia
de texto incriminador: “Salvemos a humanidade a sangue e ferro, a veneno
e dinamite!”.110 Foi preso mais uma vez, agora por um ano.

depois do renovado interesse por esses assuntos no fim dos anos 1960. As citações aqui feitas são
do resumo ampliado que se arrolou como prova nos julgamentos da Revolta de Haymarkt e que foi
reimpresso em J. Lawson (ed.), American State Trials: A Collection of the Important and Interesting
Criminal Trials wich have taken place in the United States, from the beginning of our Government to
the Present Day, St. Louis, 1919, vol. xn, pp. 111-121. V. também L. Adamic, Dynamite. The Story of
Class Violence in America, NY, 1934, pp. 41-48; Jacket, pp. 94-96; Dedijer, Sarajevo, pp. 167-168.
103 Lawson, p. 118.
104 Ibid., p. 116.
105 V. o depoimento precedente nesse mesmo julgamento em Lawson, p. 110.
106 Citado em Drinnon, p. 35.
107 C. Wittke, Against the current: the life of Karl Heinzen, Chicago, 1945.
108 Rocker, pp. 403, 413; Goldman, p. 166.
109 Wittke, nota 8.
110 Heinzen, “Mord contra Mord”, em Freiheit, 7 de setembro de 1901, p. 2. Perceba-se corno esse
artigo (que foi publicado pela primeira vez em Johann Becker, Die Evolution, jan.-fev., 1849) já
prenunciava na esquerda o slogan de direita que Bismarck adotaria mais tarde: “sangue e ferro”.
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 721

Bem antes de morrer em 1906, Most foi esquecido e não se deu mais
atenção a essas reverberações americanas do romantismo revolucionário
europeu. Uma ameaça mais organizada ao status quo surgira sob a forma
de uma associação trabalhista revolucionária que, sob alguns aspectos, ultra­
passou a tradição sindicalista francesa — a iww, criada no ano da primeira
revolução russa.

A “Internacional” sindicalista

Talvez um milhão de pessoas tenham tido carteiras da iww em algum


momento entre 1905 e 1915,111 em sua maioria novos imigrantes. Tanto o
líder da organização, William D. Haywood, quanto sua 66figura mais dinâ­
mica”, Frank Little, tinham ascendência de índios e eram cegos de um olho.
O início da vida do cinematográfico Haywood mais parece um melodrama
de faroeste. Nascido em Utah, filho de um carteiro a cavalo, o “Big Bill” foi,
quando criança, trabalhar nas cidades de minas sem lei e se casou, muito
cedo, com “Nevada Jane” Minor.112 Quando ela caiu de um cavalo e ficou
permanentemente incapacitada, Haywood começou a beber, a 1er poesia
e a liderar uma “guerra nas montanhas rochosas” contra os proprietários
de minas; concentrou-se na cidade de Cripple Creek, Colorado, destino da
corrida por ouro. Na primeira grande greve (em Cripple Creek, em 1894), as
autoridades locais ficaram neutras. Como resultado, a vitória coube à nova
organização de Haywood, a Federação dos Mineiros do Oeste, a qual tinha
sido fundada por trabalhadores metalúrgicos em Montana um ano antes.
A segunda greve em Cripple Creek durou quase dois anos e terminou, em
1904, num sangrento desastre para a Federação. A essa altura, o número
geral de greves nos Estados Unidos tinha aumentado de 1 mil a 1>3 mil no
início dos anos 1890 para quase 4 mil; e Haywood havia direcionado sua
atenção para uma arena mais ampla.
Na convenção de fundação da iww, numa sala lotada no norte de Chicago,
no verão de 1905, ele presidiu 203 delegados. Eis aí uma organização revolucio­
nária completamente nativa dos Estados Unidos, saudada como o “Congresso
Continental da Classe Trabalhadora”113 e apelidada de modo tipicamente
111 Estimativa de P. Renshaw, The Wobblies. The Story of Syndicalism in the United States, NY, 1968,
p. 8.
112 Renshaw, p. 160. V. também J. Conlin, Big Bill Haywood and the Radical Union Movement, Syracuse,
1969.
113 Haywood (Renshaw, p. 175; Kombluh, Rebel Voices, p. 1 ), que acreditava que o seu Grande Sindicato
Único levaria à “grande revolução que emancipará a classe trabalhadora”. V. seu discurso “The
722 A FÉ REVOLUCIONÁRIA; SUA ORIGEM E HISTÓRIA

norte-americano, “os Wobblies” [“os Cambaleantes”]. A primeira reunião


representou oficialmente apenas 53 mil trabalhadores; mas sua perspectiva era
abrangente como seu símbolo: um globo (às vezes um sol) com a sigla iww.* 114
A iw ganhou membros no Reino Unido (em particular em Glasgow e entre
minorias célticas), cujo número cresceu depois da visita de Haywood à Europa
em 1910-1911; houve ainda reverberações da iww no México, no Chile, na
Escandinávia, além de um filial de considerável proporção na Austrália.115
A iww lembrava o braço do sindicalismo revolucionário que com ela
provavelmente teve menos contato: o espanhol. O objetivo de formar “um
único grande sindicato” dividido por departamentos industriais e se cons­
tituindo, na prática, num governo paralelo, lembrava o ideal hispânico do
sindicato único. O conceito regional de organizar todos os trabalhadores a
oeste do Mississipi (coisa natural numa organização da qual três quartos
dos fundadores eram originários da Federação das Minas do Oeste) trazia
algo do ideal recorrente de estabelecer territorialmente uma nova ordem
sindicalista na Catalunha.116
A iww foi influenciada de maneira mais direta, contudo, pelos franceses. O
congresso de fundação da iww endossou o ideal de uma “Greve Geral Social”;
e o livro de Haywood, A Greve Geral, saudava a Comuna de Paris como “a
maior greve geral já vista na história moderna”.117 Ben Williams, o polêmico
compositor de tipos de Solidariedade, publicação da iww, aproveitou-se de seu
grande conhecimento da língua francesa para traduzir as idéias sindicalistas
de ação direta e, em particular, de sabotagem industrial organizada. “Nós
não precisamos ‘defender’ isso, devemos apenas explicar. Os trabalhadores
organizados é que irão agir”.118
General Strike”, NY, 16 de março de 1911, citado em Crook, p. 216.
Um estudo erudito recente é o de M. Dubofsky, We Shall Be All: A History of the iww, Chicago,
1969. A melhor abordagem ainda é, sob vários aspectos, a de P. Brissenden, The iww: A History of
American Syndicalism, NY, 1919 (reimpresso em 1957). Para minutas da primeira convenção, com
delegados de 34 estados, v. The Founding Convention of the zww, NY, 1905 (reimpresso em 1969).
114 Ver, por exemplo, o desenho de “A Maior Coisa do Mundo” (reproduzido em Kornbluh, p. 33), no
qual uma corrente interminável de trabalhadores marcha para fora de um lamaçal e ruma a um sol
que contém globo, no qual se lê “iww Universal”.
115 Renshaw, pp. 221-238,4-5. Também houve um movimento sindicalista independente e paralelo na
Argentina que se desenvolveu de modo mais direto a partir de modelos franceses e espanhóis. Esse
movimento é incansavelmente abordado em uma tese de doutorado escrita em hebraico por Jacob
Ove, Tel Aviv, 1975, no momento programada para ser traduzida e publicada com o título de “El
Anarquismo y el surgimento dei movimiento obrero en la Argentina”, México, 1977.
116 Renshaw, p. 36; Romero-Maura, “Case”, p. 469. Estimativa de números em Lens, p. 175.
117 Do texto em Kornbluh, p. 45.
118 Williams, “Sabotage”, em Solidarity, 25 de fevereiro de 1911, em Kornbluh, p. 52. O termo surgiu
LIVRO IIL CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 723

A iww organizou duas greves particularmente dramáticas e demoradas,


cada uma delas a envolver cerca de 25 mil trabalhadores têxteis — uma, em
1912, em Lawrence, Massachusetts, a outra em 1913, em Paterson, Nova Jérsei.
Essas greves representaram acontecimentos de autêntica natureza folclórica
para a classe trabalhadora norte-americana; foram bem-sucedidas em transferir
os elementos musicais, visuais e cênicos de heroísmo até então associados ao
nacionalismo romântico para a causa chã do internacionalismo proletário.
A greve de dez semanas que iniciava em Lawrence, em janeiro de 1912, foi
marcada pela evacuação dos filhos famintos dos grevistas, o que lhes garantiu
uma simpatia nacional depois da chegada das crianças à Grand Central Ter­
minal. A própria cidade de Lawrence proporcionava uma espécie de festival
étnico contínuo a céu aberto. Só 8% dos grevistas eram norte-americanos
nativos;119 grande parte dos discursos era feita em italiano e outras línguas.
Arturo Giovannitti, líder grevista preso e editor de II Proletario, escreveu
poemas em inglês e em italiano, além de uma longa e poderosa introdução
a uma tradução inglesa do Sabotage de Pouget à época em que estava en­
carcerado em Lawrence.120
A confusão de línguas encontrou a unidade por meio de uma canção. Foi
“como se o grande caldeirão americano tivesse fervilhado” para produzir
“uma revolução com voz que canta”. Até um comentarista apático como Ray
Stannard Baker ficou impressionado: “É a primeira greve que vejo cantar.
Não esquecerei o curioso enlevo, o estranho e repentino fogo das nacionali­
dades mescladas nos encontros grevistas quando irromperam na linguagem
universal da canção”.121
O “estranho e repentino fogo” se tornou uma tocha sagrada quando a
greve geral foi das fábricas de algodão em Lawrence para os moinhos de
seda de Paterson. Não só canções, mas também bandeiras foram de central
importância para essa grande greve na primavera de 1913.

pela primeira vez na imprensa da iw em Solidarity, 4 de junho de 1910 (Kornbluh, p. 37) — um


jornal iniciado por Williams em Newcastle durante a greve de trabalhadores da indústria de aço
em 1909 (p. 51). Outras influências francesas são discutidas em M. Lapitsky, UiFiam Kbeivud,
1974, p. 111.
Elizabeth Gurley Flynn (posteriormente, líder do Partido Comunista dos Estados Unidos) depois
distinguiria a sabotagem disciplinada (“um processo industrial interno*) da violência pura e simples.
V. Sabotage, 1915, citado em Kornbluh, p. 37.
119 Estimativa de Gurley Flynn presente em Renshaw, pp. 100-101.
120 Pouget, Sabotage, Chicago, 1913; A. Giovanniti, Arrows in the Gale, Riverside, 1914.
121 “The Revolutionary Strike”, em The American Magazine, 25 de maio de 1912, citado em Kornbluh,
p. 158; outros comentários são citados em Renshaw, p. 106.
724 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Os trabalhadores grevistas de Paterson manufaturavam bandeiras ame­


ricanas em seu serviço; e no Dia da Bandeira, 17 de março, desfraldaram a
sua própria bandeira sob os seguintes dizeres:

Nós tecemos a bandeira; nós colorimos a bandeira;


Nós vivemos sob a bandeira; mas não furaremos uma greve por causa da bandeira.122

Mais memorável ainda do que os rituais da greve foi sua reencenação sim­
bólica num Memorial da Greve de Paterson diante de uma Madison Square
Garden lotada no dia 7 de junho de 1913. Patrocinado pela rica Mabel Dodge
e produzido por jornalistas e artistas reunidos na casa dela na Fifth Avenue, o
espetáculo contou com mais de mil grevistas de verdade. Eles foram treinados
para encenar e trazidos a Nova York num desfile até a torre da Garden, que
luzia com um símbolo de três metros de altura da iww em luzes vermelhas.
Do lado de dentro, encenaram os principais momentos da greve numa expo­
sição deslumbrante de teatro ao vivo e multimídia. A certa altura, encenou-se
o funeral de um grevista de Paterson que havia sido morto. À medida que a
procissão de mil trabalhadores descia pela nave levando o caixão até a viúva,
houve quem sentisse que a arena esportiva havia se transformado numa espécie
de templo consagrado à revolução. Como Mabel Dodge se lembraria depois,
“eu jamais havia sentido uma vibração de pulsação tão alta em nenhuma
reunião, fosse antes ou depois”.123
Essa “vibração de pulsação tão alta” não se esgotou de todo, apesar das
perdas financeiras do memorial, do fracasso da greve de Paterson e do rápido
declínio da iw, que foi de seus cerca de 100 membros em 1912 ao colapso
quase total após sua oposição aos esforços de guerra norte-americanos depois
de 1917.0 homem que concebeu e escreveu em boa parte o memorial em Nova
York, John Reed, prosseguiu com a glorificação da Revolução Mexicana em
seu México Insurgente, de 1914, e em seguida escreveu o relato mais influente
da Revolução Bolchevique de 1917: Os Dez Dias que Abalaram o Mundo.
Poeta romântico do Oregon, correspondente do jornal radical As Massas e
amante ocasional de Mabel Dodge, Reed era um entusiasta em busca de urna
causa. Era um típico americano aficionado por esportes, ao qual seu amigo
e colega de classe Walter Lippmann chamou de “o mais inspirado líder de
torcida” de Harvard.124

122 Kornbluh, p. 201.


123 Ibid., p. 202.
124 Citado em R. O’Connor e D. Walker, The lost revolutionary: a biography of John Reed, NY, 1967,
LIVRO III, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 725

Esse intelectual radical bem-educado também sentiu a paixão especifica­


mente populista de se reunir ao povo comum. Uma moça que foi presa na
greve de Paterson contou a Reed que “ficamos com medo quando entramos
[na prisão], mas estávamos cantando quando saímos”.125 Ansioso por com­
partilhar dessa forma de regeneração, Reed foi até Paterson e, por um breve
período, ficou preso numa cela minúscula junto com outros oito manifestan­
tes. Envolveu-se emocionalmente com a greve, mobilizou seus amigos para
realizar o memorial e depois partiu de navio numa busca jornalística por
um herói. Foi primeiro até Pancho Villa no México, depois para as frentes
ocidental e oriental da Primeira Guerra Mundial, e por fim caiu aos pés de
Lênin e Trótski quando rumavam para o poder em outubro de 1917. O re­
lato clássico de Reed recebeu um imprimatur tanto de Lênin quanto de sua
esposa Krupskaia. O líder de torcida organizada encontrou um jogo digno
de seu entusiasmo. O “espetáculo das massas russas”,126 a se desenrolar na
sua frente, substituiu os espetáculos na Madison Square Garden.
Apesar da história heróica e sangrenta das guerras sindicais, os Estados
Unidos não consolidaram nenhuma tradição revolucionária duradoura a
partir da experiência de início do século xx. As duas principais razões para
esse fracasso fatídico da esquerda foram a pressão nacionalista externa e a
desunião corrosiva interna.
Como já tinha ficado claro no caso da Itália, quem controlasse a bandeira
do nacionalismo tendia, em toda parte no mundo pós-Primeira Guerra, a
determinar a natureza do legado sindicalista. Nos Estados Unidos, a agitação
trabalhista se danou por sua oposição ao fervor nacionalista que varreu os
Estados Unidos durante e após a guerra. A intensidade e o internacionalis-
mo típicos de revolucionários sociais que davam o tom da iww (além dos
sentimentos antibélicos e antialiados de muitos alemães e irlandeses no
movimento trabalhista) provocaram uma reação patriótica. A década que
vai da entrada norte-americana na guerra em 1917 até a execução de Sacco
e Vanzetti em 1927 pode ser vista como um período em que se forjou um
novo nacionalismo na América, o qual esmagou os seus perenes rivais, os
revolucionários sociais.
Mas a desunião da esquerda minou o sindicalismo revolucionário nos
Estados Unidos muito antes que perseguições e inquéritos movidos pela
p. 33.
125 Citado em Kombluh, p. 201.
126 Ten days that shook the World, NY, 1919, p. 16.
726 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

direita o incapacitassem de modo irrevogável durante o período do “Perigo


Vermelho” de 1918-1920. Nem os intelectuais, que poderiam ter fornecido
líderes, nem o povo trabalhador, que poderia ter se juntando às linhas de
combate, aceitaram a militância trabalhista na maior parte dos casos. Os
intelectuais revolucionários se perderam em debates teóricos e brigas polí­
ticas dentro dos partidos socialistas fragmentados: o Partido Socialista da
América, de Eugene Debs, e o Partido Trabalhista Socialista (menor e de
orientação marxista), de Daniel De Leon. Lênin certa vez chamou De Leon,
sujeito nascido na Ilha de Curaçao e educado na Europa, de “o maior dos
socialistas modernos” — o único a ter acrescido algo ao pensamento socialista
depois de Marx.127 Mas De Leon era politicamente inepto na mesma medida
em que era intelectualmente brilhante.
Mesmo em seu auge, a iww e seus aliados de militância jamais representa­
ram mais do que uma pequena fração do movimento da classe trabalhadora
norte-americana. A Federação Americana do Trabalho (afl), de Samuel
Gomper, passou de 2 milhões para 4 milhões de membros entre 1914 e 1920;
e continuou a predominar no trabalhismo organizado dos Estados Unidos.
O mais sério esforço de revolucionar o trabalhismo a partir de dentro veio
com William Z. Foster, um dos 23 filhos de imigrantes irlandeses que mora­
vam numa favela. Era um ex-membro da iww que havia estudado na França
métodos sindicalistas para trabalhar pela revolução dentro de associações
maiores e conservadoras. Seu primeiro esforço de “furar por dentro” o
sistema, a Liga Sindicalista da América do Norte, nunca teve mais do que
2 mil membros durante sua curta existência (1911-1914). Foster depois se
dedicou a um novo tipo de associação por “amálgama”, que, assim como as
federações sindicais na Europa, unia as associações de ofício e de comércio
de uma determinada indústria num único corpo amalgamado e com esforços
grevistas coordenados. Formou esses grupos primeiro nos currais de Chicago,
depois nos grandes complexos metalúrgicos de Chicago e Pittsburgh. No
outono de 1919, uma grande greve nacional de metalúrgicos foi lançada pelo
grupo que Foster tinha organizado com a autorização da afl um ano antes,
o Comitê Nacional para a Organização dos Trabalhadores das Indústrias
de Aço e Ferro.
Foster planejou “fisgar a imaginação dos trabalhadores e reuni-los numa
associação en masse” lançando “um furacão simultaneamente em todos os

127 De acordo com John Reed, citado em A. Peterson, Daniel De Leon: Socialist Architect^ NY, 1941;
Renshaw, p. 26.
LIVRO IH, CAPÍTULO 15: O SINDICALISMO REVOLUCIONÁRIO 727

grandes centros metalúrgicos”.128 Ele almejava algo menos do que a greve


geral soreliana, que leva diretamente à revolução, mas algo mais do que
meros ganhos econômicos dentro do sistema existente. A greve durou até o
inverno e foi apoiada em locais distantes como Seattle e Washington, onde
os trabalhadores se apossaram dos estaleiros e lançaram uma greve geral em
toda a cidade.129 A greve dos metalúrgicos foi quebrada aos poucos, mas de
modo decisivo, através da aplicação do poder corporativo e policial no mes­
mo estado da Pensilvânia onde os Molly Maguires trouxeram pela primeira
vez à América a violência trabalhista meio século antes. Depois da abolição
do Comitê Nacional no verão de 1920 e de uma onda final de violência tra­
balhista durante a depressão de 1921-1922, a era do sindicalismo militante
nos Estados Unidos chegou ao fim.
Foster depois se tornou comunista e um sólido defensor da linha mos­
covita. Assim também procedeu o seu sucessor como presidente do Partido
Comunista dos Estados Unidos, outro irlandês veterano das guerras sindi­
cais, Eugene Dennis. Mas o partido deles nunca foi mais do que aquilo que
Marx teria chamado de “seita”.130 Reed, Haywood e a maioria dos demais
veteranos da iw que emigraram para o novo Estado Soviético também não
demoraram a se desiludir.131
Assim como o sindicalismo em geral, a iww em particular era profun­
damente antiautoritaria. Sua combinação de ação grevista violenta com
demandas de maior controle aos trabalhadores “não foi coisa exclusiva da

128 Fostes citado em Lens, pp. 231-232.


129 R. Friedheim, “Prologue to a General Strike: the Seattle Shipyard Strike of 1919”,em Labor History,
vol. vi, 1965, pp. 121-142. Uma leitura mais revolucionária da greve está em H. O’Conner, Revolution
in Seattle, NY, 1964.
130 O principal legado deles para o comunismo soviético pode ter sido o filho que Dennis deixou em
Moscou, Timur Timofeev, que hoje em dia é diretor do Instituto para a História dos Movimentos
de Trabalhadores, o qual supervisiona o aspecto acadêmico da hagiografia revolucionária soviética.
131 Em 1919, Reed rompeu com o Partido Comunista dos Estados Unidos pouco depois de sua fundação
em Chicago (Renshaw, pp. 197-198) e, em 1921, morreu em Moscou quase inteiramente desiludido
com o comunismo soviético. V. B. Wolfe, “The Harvard Man in the Kremlin Wall”, em American
Heritage, 1960, fev., pp. 6-9,94-103; também a nova introdução a Ten Days escrita por G. Hicks,
que révisa algumas conclusões de sua biografìa pioneira saída em 1938. Novos elementos sobre o
período russo de Reed (embora, como era de esperar; não conte quase nada sobre sua desilusão)
está em A. Startsev, Russkie bloknoty Dzhona Rida, 1968.
A maior parte dos ativistas da iw foram para a União Soviética como parte dos 1.500 imigrantes
do experimento da ilha de Kuzbas (Arquivo 811.00B, Kuzbas, Departamento de Estado, Washington,
DC). A maior parte deles voltou em desilusão para os Estados Unidos, e Haywood demitiu-se da
direção da iww em 1923. O estudo soviético que Lapitsky consagra a Haywood deixa a forte
suspeita de que este manteve, por fim, uma visão negativa da União Soviética, pois revela (p. 166)
que Haywood havia completado uma autobiografia lá e, no entanto, nada diz do seu conteúdo.
728 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

iww, mas o tema principal de uma dúzia de anos de feroz conflito de classe
nos Estados Unidos”.132 Se a iw nunca teve uma chance, pelo menos sem­
pre teve uma canção — milhares delas. Nisso obtendo maior sucesso do que
quaisquer outros revolucionários sociais, a iw quebrou o monopólio que
os revolucionários nacionais exerciam sobre o uso da música para mobilizar
as massas; e o mais bem-lembrado herói desse sindicalismo era, de manei­
ra muito apropriada, um compositor andarilho da fronteira americana, o
imigrante sueco Joe Hill. Sua execução por um pelotão de fuzilamento em
Utah, em 1915, o transformou numa “figura arturiana do proletariado, a
qual retornará do túmulo para ajudar os trabalhadores de toda parte”,133
enquanto isso os inspirando a cantar: “Sonhei que vi Joe Hill ontem à noite,
vivo como você e eu [...]”.

132 D. Montgomery, “The ‘New Unionism’ and the Transformation of Workers’ Consciousness in
America, 1909-1922”, em Journal of Social History, vol. xvn, 1974, p. 517.
133 Renshaw, pp. 146-147; também pp. 143-160 sobre questões aborrecidas em torno da lenda de
Hill, além de materiais suplementares em Kornbluh, “Joe Hill: Wobbly Bard”, em Voices, pp.
127—157; G. Smith, Joe Hill: The Man and the Myth, Utah, 1967; e O Cancioneiro da iww e o
Cancioneirozinho vermelho. Quando se formou em 1935 o Congresso de Organizações Industriais
— dando continuidade a associações trabalhistas depois do período da recessão —, a entidade tomou
para sua canção oficial uma pertencente à iww (cantada com a melodia de John Brown's Body e a
terminar com a afirmação vibrante de que “a união nos torna fortes”).
CAPÍTULO 16
O caminho até o poder: Lênin

ênin tirou a tradição revolucionária e a levou até o poder. Ao fazê-lo,

L provocou o primeiro grande rompimento na unidade básica da civi­


lização européia desde Lutero.
A Revolução Bolchevique — a primeira jamais feita em nome de uma
doutrina de determinismo impessoal e materialista — foi moldada de ma­
neira profunda pela liderança carismática desse homem. Ao retornar de
um longo exílio em abril de 1917 num trem selado que atravessou uma
Europa devastada pela guerra, Lênin liderou sua Rússia natal na derrubada
de sua nova democracia provisória. Ousado, apossou-se do poder em São
Petersburgo no mês de novembro; rebatizou de comunista a sua ala do
Partido Social-democrata no março seguinte; rumou ao poder em meio a
uma longa guerra civil e contra intervenção estrangeira; e formou a Terceira
Internacional (chamada de Internacional Comunista) em janeiro de 1919,
em repúdio ao socialismo democrático da Segunda Internacional.
Uma vez que o poder estatal estava consolidado no maior império ter­
restre do mundo, a tradição revolucionária se viu diante de oportunidades
inteiramente novas — e de problemas. O que se proclamara uma revolução
social com respeito total pela autodeterminação nacional se tornou uma
espécie de socialismo estatal burocrático confinado a um país e em grande
medida imposto pela Grande Rússia aos seus velhos clientes imperiais.
Lênin, contudo, viveu muito pouco para ver — e ser nelas implicado — as
730 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

características sombrias de uma revolução no poder. Governou com saúde


um país em tempos de paz só por cerca de um ano: entre o fim do conflito
civil, no início de 1921, e o seu primeiro derrame cerebral, em 1922. O novo
Estado mal tinha se definido politicamente como “União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas” quando Lênin morreu em janeiro de 1924, muito
antes das transformações sociais maciças da coletivização de terras e da
industrialização forçada.
A principal contribuição de Lênin para a história, portanto, está menos em
seus improvisos de estadista do que em suas realizações de revolucionário.
Ele alargou o atrativo do marxismo, que, antes uma doutrina revolucioná­
ria com foco nos trabalhadores urbanos das sociedades liberais ocidentais,
passou a ser uma ideologia global adequada às elites intelectuais e às massas
campesinas do mundo autoritário extra-europeu.

O Legado Alemão
Ao dar uma feição russa à doutrina alemã, Lênin estava de certo modo
fundindo os dois lados de sua ancestralidade. Seu pai era em parte um russo
tártaro e sua mãe uma alemã; ele parecia combinar a familiaridade com a
violência e a brutalidade de um russo do Volga com a disciplina organiza­
cional de um alemão.
A parte alemã de sua herança era menos importante, mas talvez tenha sido
negligenciada demais nos últimos anos. Os modelos e a ajuda dos alemães
foram tão importantes para os revolucionários sociais russos dessa época
quanto os modelos e a ajuda dos franceses tinham sido para os revolucionários
nacionais poloneses que, na época precedente, dominaram a história revolu­
cionária no leste europeu. O veículo político de Lênin para chegar ao poder
era uma variante do Partido Social-democrata Alemão. Sua ativa liderança
começou com a fundação do seu jornal Iskra (A Fagulha) na Alemanha, em
1900; e seu movimento final rumo ao poder se iniciou quando os alemães
lhe permitiram viajar da Zurique de expressão alemã até São Petersburgo,
em abril de 1917. Os laços alemães com o bolchevismo eram sutis e opor­
tunistas de ambos os lados, e de modo algum eram os simples laços de uma
relação financeira. Havia uma base de interesses comuns não só entre os
social-democratas de ambos os países, mas também entre o governo alemão
e o movimento revolucionário russo. Compartilhavam a oposição ao poder
tzarista desde quando foi firmada, em 1894, a aliança franco-russa contra
LIVRO TII, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 731

a Alemanha; e a oposição se aprofundou com a crescente dependência do


capitalismo russo para com a França.
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial, a Rússia tinha com a França
o maior débito da história das nações.1 O novo governo soviético se tornou
dependente da Alemanha num primeiro momento em razão de suas espe­
ranças de que lá ocorresse uma revolução vinda de baixo que o auxiliasse;
num segundo momento, depois do acordo de Rappallo em 1922, em razão
de ajuda econômica e militar vinda de cima.
A conexão alemã remonta ao início do marxismo russo, o qual perma­
neceu, até o início do século xx, uma espécie de movimento minoritário
germanofilo dentro da tradição revolucionária russa.2 O tempo de prova­
ção para os marxistas russos veio com os esforços pioneiros da década de
1890 de estabelecer bases concretas, dentro da classe operária russa, para a
doutrina ocidental abstrata da revolução proletária. O gênio de Lênin está
em sua aplicação da tradição russa de organização de vanguarda intelectual
à nova realidade de permanente turbulência e crescentes aspirações entre a
classe trabalhadora industrial.
O passo da industrialização russa começou a se acelerar demasiado no
fim dos anos 1880. Depois da escassez nacional e da epidemia de cólera de
1891, o influxo de camponeses despossuídos para as cidades se intensificou
de modo sensível. Ondas de novos trabalhadores vieram de um interior primi­
tivo e rural para as grandes novas fábricas e complexos urbanos, o que criou
novíssimas oportunidades de mobilização revolucionária. Mas permanecia o
tradicional problema: o hiato entre os líderes intelectuais e o povo comum.
O primeiro a sanar o hiato foi um dos poucos primeiros marxistas rus­
sos a vir de uma classe mais baixa: Pavel Axelrod. A princípio um judeu

1 Estudos recentes (tal como os coligiu M. Falkus, “Aspects of Foreign Investment in Tsarist Russia”,
em The Journal of European Economic History, 1979, primavera, pp. 5-36, esp. os gráficos às pp.
25, 31) sugerem que o investimento francês total na Rússia imperial era de cerca de 12 bilhões de
francos franceses em 1914.
2 Esse movimento se iniciou com uma reverência votiva a Das kapital, do qual não se tinha maior
compreensão. O inimigo anarquista de Marx, Bakunin, foi o primeiro a tentar traduzi-lo para o russo
no fim dos anos 1860. Adversários populistas do marxismo, Mikhailovsky e Nicholas Danielson
se tornaram, no começo dos anos 1870, os primeiros russos respectivamente a elogiá-lo de modo
extravagante na imprensa legal e a concluir uma tradução. Um professor liberal de Kiev, Nicholas
Siebei; foi um dos primeiros a incluir o livro de Marx num curso universitário, também ainda na
década de 1870. O próprio Marx, já em 1868, falava da “ironia do destino de que os russos, com os
quais lutei por 25 anos”, venham a ser “a primeira nação estrangeira a traduzir O capital” (Letters to
Dr. Krugebnann, L, 1934, p. 77; também Billington, Mikhailovsky, pp. 65-70; e A. Reuel, 'Rapitala’
Karla Marksa v rossii 1870kh godov, 1939, esp. pp. 68-118).
732 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

bakunista, deslumbrou-se, em duas viagens a Berlim em meado da década


de 1870, com a combinação de disciplina e participação dos trabalhadores
no Partido Social-democrata Alemão. Via nas atividades culturais deles e
nos feriados dos trabalhadores “um protótipo de vida na futura sociedade
socialista”.3 Juntou-se ao grupo antianarquista e antiterrorista Repartição
Negra, de Plekhanov, quando seus membros se rebelaram contra a política
conspiratória da Vontade do Povo; emigrou para Genebra em 1880; e em 1883
formou a primeira organização marxista russa, a Libertação do Trabalho.
Seu primeiro programa (1884) não só rejeitou de modo frontal o terroris­
mo da tradição russa como ainda criticou seu uso da conspiração política. A
influência dos social-democratas alemães era evidente na defesa de um amplo
espectro de atividades dos trabalhadores, segundo um modelo baseado na
sua condição de classe, e na sua idéia lassalliana de ajuda governamental
às cooperativas de produção. Um segundo programa (1887) apresentou o
conceito marxista de ditadura do proletariado ao se referir à “tomada de
poder político pela classe trabalhadora” como “pré-condição inevitável” de
mudança social radical.4
Embora marxista em seu conteúdo, esse pequeno movimento de emigrados
assumiu a forma tradicional de um círculo revolucionário russo: um pequeno
grupo de intelectuais exilados em busca de unidade e esperança numa nova
ideologia ocidental que prometia a libertação universal. O único grupo de
algum vulto dentro da Rússia a estabelecer laços com eles, nos anos 1880,
foi o efêmero (1883-1886) Partido dos Social-democratas Russos, que na
verdade era liderado por um estudante búlgaro do Instituto Tecnológico de
São Petersburgo. O primeiro grupo de importância liderado por russos foi
a Sociedade Social-democràtica, que, organizada por um estudante russo do
Instituto em 1889, tinha por objetivo o treinamento de “futuros rebeldes
russos”.5
O vírus alemão alcançou a Rússia em grande parte por meio dos movi­
mentos social-democratas de massa que se desenvolveram nas partes oci­
3 Dan, p. 168; A. Ascher, Pavel Axelrod and the Development ofMenshevism, Cambridge, Massachusetts,
1972, p. 26. A fonte basica é Axelrod, “Pervye vstrechi s germanskoi sotsialdemokratiei”, em
Perezhitoe i peredumannoe, Berlim, 1923, pp. 126-136.
4 Dan, pp. 174, 178, nota; também E. Yaroslavsky, Istorila VKP (B), 1934, 2° ed., chast’ i, p. 40.
G. Zhuikov tenta, sem conseguir ser muito convincente, sugerir uma maior influência do grupo
de Plekhanov em São Petersburgo do que em geral se admite (Peterburgskie marksisty i gruppa
“osvobozhdenie truda”, Leningrado, 1975).
5 Sobre esses grupos, liderados respectivamente pelo búlgaro Dmitri Blagoev e pelo russo Michael
Brusnev, v. Dan, pp. 186-187.
LIVRO in, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 733

dentais do Império Russo. No início da década de 1890, a via de contágio


saía da Alemanha, cruzava a Varsóvia na Rússia ocidental e prosseguia até
a própria São Petersburgo, a histórica “janela para o Ocidente” do império
eurasiàtico. A bitola dessa ferrovia se alargava à medida que seguia para o
Oriente; também os panoramas de atividade revolucionária se ampliaram.
Entre os primeiros infectados estavam os enérgicos trabalhadores ju­
deus confinados por lei aos limites de assentamentos na Rússia ocidental.
Suas conexões internacionais e sua língua iídiche, próxima do alemão,
garantiam-lhes uma exposição fácil e precoce às idéias alemãs. Assim como
os trabalhadores alemães, os judeus tinham um nível cultural relativamen­
te elevado, o que tornava suas privações civis e políticas particularmente
revoltantes. A situação se agravou de maneira drástica para os judeus na
década de 1880, quando os pogroms anti-semitas foram empregados como
um pára-raios para o descontentamento popular na Rússia ocidental e na
Ucrânia. Vendo-se assim ameaçados em sua própria identidade, alguns judeus
se voltaram para sua forma própria e intensa de nacionalismo, o sionismo,
o qual acabaria por fundar o Estado de Israel. Outros judeus encontraram
uma alternativa profética na União Geral dos Trabalhadores Judeus na Rússia
e na Polônia, mais conhecida como Bund, que foi criada em 1897, ano do
primeiro congresso sionista na Basiléia, e que foi na virada do século a maior
e mais bem organizada entidade social-democrata do Império Russo.6 Se o
sionismo era, sob muitos aspectos, uma variante particularmente vigorosa da
tradição revolucionária nacional, as novas organizações social-democratas
exemplificavam a tradição rival de revolução social.
Como se em reação ao multinacionalismo do Império Russo, o primeiro
partido social-democrata dentro de suas fronteiras, o Partido Social-democrata
da Polônia e Lituânia (criado em 1893), revelou-se o mais profundamente
antinacionalista de todos. Nascido da humilhação comum de poloneses e de
judeus, o novo partido era espicaçado pela judia polonesa Rosa Luxembur­
go a rejeitar todos os movimentos de visão nacionalista estreita em prol da
revolução proletária internacional. O partido polonês foi criado em oposi­
ção direta ao partido populista polonês (isto é, o Partido Socialista Polonês
ou PPS, na sigla polonesa), que, quando de sua fundação, havia aceitado a

6 Sobre os diferentes aspectos desse assunto complexo, v. E. Mendelsohn, Class Struggle in the Pale:
The Formative Years of the Jewish Workers’ Movement in Tsarist Russia* Cambridge, 1970; N. Levin,
While Messiah Terried, Jewish Socialist Movements, 1871-1917, NY, 1977; a tese de doutorado
inédita de H. Shukman, “The Relations between the Jewish Bund and the rsdrp”, Oxford, 1960;
e H. Tobias, em The Jewish Bund in Russia form Its Origins to 1905, Stanford» 1972.
734 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

identidade nacional da Polônia independente. Os social-democratas insistiam


que o proletariado polonês deveria se juntar somente à luta social comum
contra o sistema tzarista — e jamais, mesmo que por questão tática, tomar
parte de causas nacionais.
Ao fim dos anos 1880, tanto os trabalhadores poloneses quanto os judeus
estavam criando formas de ação mais enraizadas no proletariado,7 as quais
até então eram desconhecidas ao movimento revolucionário russo, com sua
clássica dependência de liderança intelectual de elite. Um ativista polonês
desse período, Waclaw Machajski, desenvolveu durante seu exílio siberiano
na década de 1890 uma acusação extremada da liderança intelectual parasita
dentro do movimento social-democrata.8 Passou sem resposta sua concla-
mação a uma “conspiração dos trabalhadores”9 que criasse um movimento
sem classes; mas a Makhaevshchina se tornaria uma poderosa corrente de
pensamento na esquerda russa. Desenvolveu-se a partir das bem estabele­
cidas tradições antiintelectuais de Proudhon, de Bakunin e dos anarquistas
russos e ajudou a reviver as paixões populistas que levariam à formação do

7 Uma organização de ação, a “União dos Operários Poloneses”, ganhou 6 mil membros durante
a turbulência industrial de 1890-1891 (E. Yaroslavsky, Istoriia velikoi kommunisticheskoi partii
[bol’shevikov], Moscou/Leningrado, 1926, Tomo i,p. 126); e Machajski foi preso em 1892 ao tentar
trazer um manifesto dos emigrados na Suíça para o proletariado que realizava um levante de grandes
proporções em Lodz. V. Nomad, em Aspects, pp. 98-99.
8 Embora esse argumento se dirigisse ao leste europeu, Machajski o afirmou em termos de desafio
à aceitação de intelectuais como potenciais aliados de uma revolução proletária, aceitação essa
que era expressa, como se fosse coisa rigorosamente marxista, por Karl Kautsky: Kautsky, “Die
Intelligenz und die Sozialdemokratie”, em Die Neue Zeit, 1894-1895, n° 27, pp. 10-16; n° 28, pp.
43-49; n° 29, pp. 74-80. Machajski afirmava que os intelectuais do movimento social-democrata
eram “funcionários privilegiados do capitalismo” empenhados numa disputa familiar em prol da
“burguesia educada” e contra a “aristocracia burguesa”, com o propósito de assegurar a forma
especial de “propriedade” deles (a educação que receberam) e utilizá-la como uma arma de controle
sobre os operários, dotados de menor nível de consciência.
9 O trabalhador intelectual, hectografado em 1898, foi publicado em 1905 (Umstvenny rabochy,
Genebra). V. também o seu Burzhuaznaia revoliutsiia i rabochee delo, 1905. Para comentários a
respeito, v. Nomad, Aspects, pp. 96-117; Avrich, Anarchists, pp. 102-106; e “Anarchism and Anti-
intellectualism in Russia”, em Journal of the History of Ideas, 1966, jul.-set., pp. 381-390; L. Feuer,
“The Political Linguistics of‘Intellectual’: 1898-1918”, em Survey, 1971, inverno, pp. 156-183;
e a tese inédita (Universidade de Columbia) de M. Schatz, “Anti-Intellectualism in the Russian
Intelligentsia: Michael Bakunin, Peter Kropotkin, and Jan Waclaw Machajski”, 1963.
As referências anteriores podem ser complementadas com proveito por uma discussão particularmente
rica no emprego de materiais poloneses sobre Machajski (bem como rica em escritos dele): A.
D’Agostino, “Machaevism: Intelligentsia Socialism and the Socialization of Intelligence”, em Marxism
and the Russian Anarchists, São Francisco, 1977, pp. 110—155.
O papel desproporcional dos intelectuais no leste europeu comunista continua a estimular emigrados
daquela região a publicar estudos importantes sobre o assunto. V. em particular A. Gella, The
Intelligentsia and the intellectuals. Theory, method and case study, Oxford, 1976; e G. Konrad
e I. Szélenyi, The intellectuals on the road to class power: a sociological study of the role of the
Intelligentsia in socialism, NY, 1979.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 735

rival revolucionário dos social-democratas, os mais numerosos, porém mais


amorfos, Revolucionários Socialistas ou sr.10
O antiintelectualismo intensificado era resultado do maior contato que
os intelectuais estavam finalmente tendo com os trabalhadores, que com
freqüência eram analfabetos e profundamente hostis a idéias teoréticas de
qualquer ordem. No interior profundo da Rússia, esse conflito era particu­
larmente severo — como se vê pelo caso do fundador dos primeiros grupos
marxistas do Volga superior, Nicholas Fedoseev.
Fedoseev se aproveitou das organizações radicais que tinham se desen­
volvido no início dos anos 1880 como imitações provincianas dos círculos
intelectuais de São Petersburgo. Como líder de um grupo de jovens intelectuais
em Vladimir, levou-os a se opor ao terrorismo e a trabalhar por relações mais
próximas entre camponeses e trabalhadores urbanos — assim ultrapassando
o que se percebia como duas fraquezas da organização Vontade do Povo.11
Mas ele, como os demais, não tinha resposta alguma para o problema do
hiato entre os intelectuais e as classes mais baixas — mesmo depois de ter se
convertido ao marxismo. Em 1888, estabeleceu em Kazan o primeiro círculo
marxista em sentido estrito na região do Volga com o propósito explícito de
criar autênticos líderes políticos da classe trabalhadora como Bebel, e não
teóricos como Kautsky.12
A despeito de esforços organizacionais enérgicos e de um programa de
publicações ilegais que ia de Vladimir a Kazan, Fedoseev nunca realizou seu
sonho. Foi preso no verão de 1894 e mandado numa longa e árdua viagem
pelo norte russo até Verkholensk, na distante Sibéria. Lá, tentou manter a
sanidade escrevendo um grande tratado marxista sobre os motivos econômi­
cos do fim da servidão na Rússia. Mas foi denunciado como um intelectual
burguês. O isolamento e a humilhação que lhe infligiam seus companheiros
de prisão o deixaram abatido. No verão de 1898, saiu para a taiga e se ma­
tou com um tiro.13
O antiintelectualismo, que parece ter perseguido Fedoseev até a sua
morte na Sibéria, também inspirou agitação da classe trabalhadora no outro
10 Na sigla russa transliterada — nt.
11 V. a introdução de B. Volin a N. Fedoseev. Stat’i i pis’ma, 1958, p. 7 ss.; também a coleção de
artigos mais informativa publicada anteriormente, Fedoseev Nikolai Evgrafovich. Odin iz pionerov
revoliutsionnogo marksizma v Rossii, Moscou/Petrogrado, 1923, pp. 28, 75, 104-110, ss.
12 Fedoseev, p. 74. Insistiu que se chamasse “social-democrata”, em vez de “marxista”, para evitar
qualquer sugestão de teorização intelectual.
13 Ibid., Stafi, pp. 8,23-27.
736 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

extremo do Império Russo, em Vilnius. O numeroso proletariado judeu de


lá tomou a dianteira na oposição de ação concreta entre os trabalhadores
à argumentação abstrata de intelectuais. Um trabalhador judeu, Arkady
Kremer, recomendou “protestos” como um corretivo à ênfase anterior dos
intelectuais em “propaganda”. Ele próprio foi desafiado por um operário
judeu ainda mais antiintelectual, Abraham Gordon, o qual acusou Kremer
de ver os operários como “bucha de canhão” para a revolução, buscando
manipulá-los enquanto adia a sua verdadeira educação política.14
O chamado à ação proletária direta foi trazido da Rússia ocidental para
São Petersburgo em 1893 por Yury Martov, um intelectual judeu russificado
que tinha sido exilado em Vilnius depois de participar da manifestação de
trabalhadores no funeral de Sholgunov, em 1891. Retornou a São Peters­
burgo em 1893, armado com o livro Sobre Agitação de Kremer, guia para
ação de massa.
O avanço na agitação foi um eco oriental da paixão sindicalista ocidental
pela ação direta. Mas também foi algo muito mais profundo. A tradição re­
volucionária estava lutando para estabelecer raízes no chão, para se libertar
de sua dependência já secular de “talismãs verbais”. Havia uma sede senão
de sangue, pelo menos de algum ritual sangrento: um desejo de renascer e
não apenas de publicar.
Assim, Martov foi ainda mais longe do que Fedoseev — que havia rejeitado
a denominação de marxista — ao rejeitar também os termos socialismo e
social-democracia. Buscou romper com hábitos de pensamento, assim como
com a suposição de que aos intelectuais russos cabia a liderança. Queria que
os trabalhadores se unissem em torno de um núcleo de lutas específicas, em
vez de em torno do refinamento de conceitos gerais. Ele foi o mais decisivo
personagem para que vinte e poucos grupos marxistas que se espalhavam
pela capital se congregassem na União de Luta pela Emancipação da Classe
Operária, que tomou forma em novembro de 1895: “a primeira organização
social-democrata russa que fez da agitação de massa o centro de suas ati­
vidades”.15 O Programa de Vilnius elaborado pela União, que contemplava
um incremento da agitação em prol de necessidades específicas dos traba­
lhadores, tinha o propósito de elevar a consciência política deles, e não de
14 Citado em I. Getzler, Martov, Cambridge, 1967, p. 23. A. Kremer e Yu. Martov, Ob agitatsii, A.
Gordon, Pis’ma k intelligentam, e S. Gozhansky, Pis’ma k agitatoram (que sugeria “atividade paralela”
entre ambas as esferas e assim prenunciava a idéia soviética posterior de um agitprop integrado) são
discutidos em Yaroslavsky, Istoriia, 1926, p. 128. V. também Dan, pp. 196-197; Getzler, pp. 21-44.
15 Dan, p. 199.
LIVRO 111, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 737

apenas melhorar seu bem-estar econômico. A organização defendeu greves


e publicou cerca de 70 panfletos antes de sua desintegração em 1897.
A primeira filiação de Lênin a uma organização foi, quando tinha 18 anos,
ao círculo pioneiro em Kazan liderado por Fedoseev, do qual participou do
outono de 1888 a maio de 1889. Mas Lênin subiu ao palco da história como
co-líder de Martov na União de Luta e como seu mais eficiente panfletário.
De um ponto de vista superficial, Lênin era apenas mais um intelectual
provinciano cujas primeiras experiências levaram a se tornar um radical. Pouco
após sua chegada a São Petersburgo em 31 de agosto de 1893, foi aceito em
grupos de discussão marxistas como irmão mais novo de um revolucionário
martirizado. Expulso da Universidade de Kazan por participar de uma ma­
nifestação estudantil, encontrou uma nova “Bíblia” ocidental na cidade de
Samara (Das kapital, de Marx). Em São Petersburgo, sua educação marxista
continuou dentro do círculo de um jovem engenheiro elétrico, R. E. Klasson,
que havia fundado em 1890 o primeiro círculo de discussão marxista séria
na cidade, antes de ir estudar de perto a social-democracia alemã de 1891
a 1893. A futura esposa de Lênin, Nadezhda Krupskaia, tinha pertencido
ao círculo de Klasson, que havia buscado preencher o hiato entre os pensa­
dores e os operários se baseando incialmente mais em Lassalle, pioneiro da
mobilização de massa, do que no mais teorètico Marx.16
A primeira obra extensa de Lênin, Quem são os “amigos do povo" e como
eles lutam contra os Social-democratas (hectografado em 1894), reverberava
a perspectiva final de Engels de que a carência e a peste estavam acelerando o
passo do desenvolvimento capitalista na Rússia; e de que a Rússia só poderia
passar à revolução se primeiro passasse por um período de desenvolvimento
capitalista. Lênin visitou a Alemanha no verão de 1895. Preso no início de
dezembro de 1895 por seu papel na organização da União de Luta, passou
um ano numa prisão de São Petersurgo e depois três anos de exílio siberiano,
o qual se mostrou para ele muito mais prazeroso do que para o seu antigo
mentor marxista, Fedoseev. Sendo-lhe concedidos momentos de sossego, a
companhia da esposa e acesso a uma grande biblioteca, Lênin escreveu a sua
obra econômica mais técnica, O desenvolvimento do capitalismo na Rússia,
que foi publicado legalmente em 1899. Representava um ataque final contra
a ilusão populista de que a Rússia poderia de algum modo evitar a etapa

16 V. também o importante testemunho de Klasson, “Vladimir Il’ich u R. E. Klassona”, em Krasnaia


Letopis’, 1925, n° 2, p. 145. Klasson recordou intencionalmente no seu depoimento de 1925 que
“tanto na época como agora, Marx era reverenciado, mas pouco lido” (p. 144).
738 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

capitalista de desenvolvimento econômico. Em seguida, iniciou em 1900 seu


longo exílio no Ocidente, onde fundou o jornal Iskra naquele mesmo ano e
o Partido Bolchevique em 1903.
Antes do “período do Iskra” (1900-1903), Lênin chegou a dar umas poucas
indicações de sua futura divergência do ainda dominante modelo alemão de
social-democracia, em especial da tradução teorètica que lhe dava Plekhanov.17
Enquanto este último proporcionava argumentos filosóficos em defesa do
marxismo com base nos seus muitos contatos com social-democratas alemães
no exterior,18 Peter Struve se juntava a Lênin na frente econômica de ataque
ao populismo depois que, numa viagem à Alemanha, “foi arrebatado pela
social-democracia alemã e seus sucessos”.19 Seu livro Notas críticas sobre o
problema do desenvolvimento econômico na Rússia vendeu toda uma edição
de 1.200 exemplares em apenas duas semanas após publicado em 1894.20
Nele, argumentava com ousadia que os infortúnios da Rússia não se deviam
ao fato de que o capitalismo estava se desenvolvendo no solo russo, mas da
fraqueza desse desenvolvimento.
Embora Lênin e Struve tenham se encontrado e brigado por um breve
período no fim de 1894, esses conflitos não mereceram muita atenção de
nenhum dos dois. Eles e todos os outros que se chamavam de marxistas se
sentiram demasiado dependentes uns dos outros e dos alemães depois da
repressão que se seguiu à agitação industrial do fim de 1895 e de 1896 na
Rússia. Struve viajou para o exterior para se aconselhar, em Berlim, com os

17 O escrito magistral de Plekhanov de 1894, Em Defesa do Materialismo (L, 1947), reconciliou o


cientificismo iconoclasta com o idealismo moralista da tradição revolucionária russa ao incitar a
nova geração a passar do materialismo “mecânico” ao “histórico”: uma visão de mundo “objetiva”
e “monista” que preenchería “o abismo aparentemente sem fundo” entre os simples fatos e os ideais
mais elevados (pp. 178, 220).
Kolakowski entende (Currents, vol. ii, pp. 329, 340) que Plekhanov “escreveu as primeiras obras
que podem ser chamadas de manuais de marxismo” e que foi ele a primeira pessoa a empregar o
termo “materialismo dialético” “para indicar a filosofia marxista como um todo”.
18 A grande proximidade de Plekhanov com o movimento alemão o ajudou a se tornar uma figura
importante na Segunda Internacional. Ele escreveu o seu tributo oficial a Hegel em 1891 (reimpresso
em Plekhanov, Les questions fondamentales du marxisme, 1947, pp. 107-135), foi formalmente
admitido como um marxista no Congresso de Zurique de 1893 (Joli, International, p. 72), colaborou
na campanha liderada pelos alemães para excluir os anarquistas e apertou teatralmente as mãos de
um socialista japonês na abertura do Congresso de Amsterdã de 1904, quando se dava a Guerra
Russo-Japonesa (ibid., p. 106).
19 P. Struve, “My Contacts and Conflicts with Lenin”, em The Slavonic Review, 1934, abr., p. 580. Eie
trouxe de volta “toda uma coleção de literatura social-democrata contemporânea em alemão” (p.
578) que não tinha paralelo em São Petersburgo e era ampiamente lida.
20 Ibid., p. 586. Struve, Kriticheskie zametki k voprosu ob ekonomicheskom razvitii Rossii, São
Petersburgo, 1894.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 739

social-democratas alemães e, em Londres, com o grupo Libertação do Tra­


balho de Plekhanov e com os social-democratas judeus. Retornou no outono
de 1896 para se tornar editor de um jornal que antes fora populista, Novoe
Slovo; e contrabandeou para dentro da cela de Lênin livros e artigos quando
este último ainda estava preso, antes de seguir para o exílio siberiano.21
Embora destruída pela repressão em São Petersburgo, a social-democracia
deixou Uniões de Luta e Comitês dos Operários espalhados por boa parte
do Império Russo. A “fetichização da organização”22, hábito adquirido dos
alemães, intensificou o desejo dos revolucionários de se consolidarem com
amplitude nacional na Rússia. Representantes do recém-formado Bund
social-democrata judeu se reuniram clandestinamente em Minsk com re­
presentantes de outros seis grupos menores entre Io e 3 de março de 1898,
a fim de realizarem o primeiro e fundador congresso do Partido Operário
Social-democrata Russo. O seu manifesto, escrito por Struve, declarava que
a luta pela “conquista total da liberdade política” era “a tarefa mais imediata
do partido”.23 Estabeleceram um Comitê Central e um órgão do partido
(Rabochaia Gazeta, de Kiev); Lênin foi designado diretor da publicação de
panfletos; e o grupo de Plekhanov foi encarregado de lidar com os contatos
no exterior. Os membros dos comitês centrais tanto do Bund judeu quanto
do partido russo, contudo, foram presos quase de imediato; e a prensa do
jornal de Kiev foi confiscada. Somente com a formação do neopopulista e
rival Partido Revolucionário Social (1901) e com a refundação do Partido
Social-democrata (1902-1903) é que a Rússia teria organizações revolucio­
nárias permanentes de penetração nacional. Até que a agitação inchasse em
1905 a ponto de se tornar uma revolução, os vários grupos marxistas do
Império Russo ainda tendiam a buscar liderança no partido alemão. De fato,
a autoridade alemã sob alguns aspectos cresceu à medida que a cada vez
maior corrente de emigração revolucionária24 se voltava para Berlim. Para
compreender o leninismo que se formou às vésperas da Revolução Russa de
1905, deve-se conduzir a atenção da semente alemã para o solo russo em que
ela se desenvolveu e considerar o novo tipo de apparatchik que surgiu pela

21 Struve, “Contacts”, 1934, juL, pp. 72-73; 204-205.


22 C. Weill, Marxistes russes et social-démocratie allemande 1898-1904, 1977, p. 185.
23 Dan, p. 208.
24 O estudo erudito, mas necessariamente leninista, do historiador alemão-oriental B. Brachman
(Russische Sozialdemokraten in Berlin, 1895-1914,1962) pode agora sem complementado pelo relato
mais interpretativo de Weill, que se concentra no período prévio a 1905. Sobre os colaboradores
alemães do próprio Lênin, v. K. Shterb, Lenin v Germanii, 1959.
740 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

primeira vez nesses anos formativos e a recorrência, na Rússia, do clássico


tema interação direita-esquerda.

Raízes russas
Numa nova introdução ao livro de Marx Lutas de classes na França^ publi­
cado no início de 1895 pouco antes que morresse, Engels saudou os social-
-democratas alemães como o “partido da subversão” que havia emergido
incólume de sua existência clandestina e se destinava a ser a nova religião
estatal do próprio império que o havia perseguido.25 Se fizermos a simples
substituição do Império Alemão pelo Império Russo, pode-se atribuir a En­
gels a predição de coisas futuras. No mesmo momento da década de 1890
em que os social-democratas alemães se envolviam demais com o sistema
existente para que ainda pudessem ser chamados de “partido da subversão”,
os russos se tornavam distantes demais do seu próprio sistema para almejar
algo que não fosse a subversão.
O notável renascimento da tradição revolucionária russa depois da déca­
da de 1880 nasceu em parte do próprio interior profundo da Rússia, onde
Lênin passou os seus primeiros 23 anos de vida. Assim como Stenka Razin,
líder do maior de todos os levantes camponeses russos, ele tinha nascido em
Simbirsk (atual Ulyanovsk) e passado todos os seus anos de formação na
região do Volga, na fronteira entre a Europa e a Ásia. Lá a autoridade da
distante e ocidentalizante São Petersburgo nunca foi inteiramente legitima­
da — do mesmo modo como nunca cessou de haver os perigos da violência
na fronteira. De seus muitos pseudônimos revolucionários, Lênin por fim
escolhería de modo definitivo aquele que advinha do mais frio e mais oriental
dos grandes rios siberianos, o Lena.
Se, como Anteu, Lênin extraiu sua força do exílio siberiano no fim dos
anos 1890, suas idéias sobre organização ele as tirou, por outro lado, das
tradições de ascese e auto-sacrificio do movimento revolucionário russo. Sua
dedicação a essa tradição lhe permitiu passar em geral incólume ao exílio
ocidental depois de 1900 e mudar a religião estatal do Império Russo do
cristianismo ortodoxo para o seu tipo de marxismo ortodoxo em meros seis
meses após seu retorno, em abril de 1917. Deve-se, portanto, atentar às pe­
culiaridades da tradição russa que Marx subestimava, a fim de compreender
a revolução que o deificou.

25 Texto em R. Tucker (ed.), Marx-Engels Reader, pp. 422—423.


LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 741

Lênin foi batizado na fé revolucionária pelo enforcamento do seu irmão


mais velho, Alexandre, em maio de 1887, por participação num compio para
assassinar o tzar.26 Seu caminho até a profissão revolucionária foi, de resto,
inteiramente típico da tradição revolucionária estabelecida na Rússia. Ele
era um intelectual de classe média, o filho radical de um pai liberal. Depois
de ser expulso da Universidade de Kazan por participar de uma manifes­
tação estudantil, ganhou tanto o tempo como a motivação para estudar as
obras de revolucionários russos anteriores, em particular Chernyshevsky.27
Sua primeira exposição ao marxismo no círculo de Fedoseev foi através do
substancial Das kapital e não do exortativo Manifesto comunista. Durante
os quatro anos que passou em Samara, na região do Volga superior — de
outubro de 1889 a agosto de 1893 —, Lênin teve considerável contato com
um poderoso sobrevivente da tradição blanquista russa, o qual depois es­
creveu que “a idéia de ditadura do proletariado já tinha ocorrido a ele”.28
Depois de se mudar em 1893 para São Petersburgo a fim de estudar direito,
Lênin se atirou à luta ideológica contra a crença populista de que o apoio de
massa a qualquer revolução deve vir do campesinato. Mikhailovsky, a quem
havia conhecido em Samara em 1892, tornou-se um alvo favorito de suas
polêmicas em Quem são os “amigos do povo ” e como eles lutam contra os
Social-democratas^ de 1894.
Essa obra já revelava duas características inter-relacionadas e permanen­
tes de Lênin como revolucionário: seu foco no poder e seu desprezo pela
intelligentsia. Ele queria não tanto refutar as incompreensões populistas de
Marx ou os erros de análise deles (o que abrangia as principais queixas de
tratados antipopulistas escritos por Plekhanov e Struve, respectivamente), e
sim lhes tirar o título atrativo de “amigos do povo”.

26 Citações de Lênin que atestam uma profunda identificação com o seu irmão como fonte vocacional
se encontram em L. Fischer; The life of Lenin, NY, 1964, p. 17.
27 A influência decisiva de Chernyshevsky sobre Lênin é confirmada em N. Valentinov, Encounters with
Lenin, L, 1968, pp. 63-72; e enfatizada em A. Ulam, The Bolsheviks, NY, 1965, pp. 19, 54-70.
28 Maria Yasneva (Golubeva), esposa do colaborador mais próximo de Zaichnevsky, e um partidário
de Tkachev que depois se juntou aos bolcheviques, como citado em V i. Lenin v Samare 1889-1893.
Sbomik vospominaniia, 1933, p. 69. V. também Szamuely, The russian tradition, NY, 1974, p. 318;
Valentinov, Encounters, pp. 73—75.
Quando Lênin foi pela primeira vez a Genebra, apontou as obras de Tkachev como “mais próximas
do que quaisquer outras do nosso ponto de vista”, em conversa com seu futuro secretário pessoal V.
Bonch-Bruevich (ver; deste último, Izbrannye Sochineniia, 1962, vol. n, pp. 314-316). V. Adoratsky,
amigo íntimo de Lênin durante aquele período e futuro editor de suas obras, também atesta a contínua
importância da tradição elitista e violenta da Vontade do Povo para Lênin durante seu período em
Samara. V. Fischer; Lenin, pp. 19-20. Ulam repudia Yasneva, de maneira um tanto cavalheiresca,
como uma “bruxa” (Bolsheviks, pp. 106—107).
742 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Mikhailovsky se situava na sucessão apostolica de Herzen e Chernyshevsky


como porta-voz jornalístico da intelligentsia revolucionária, e Lênin queria,
com efeito, substituí-lo para se tornar herdeiro daquela sagrada tradição.
Um de seus slogans mais importantes e originais foi formulado pela primeira
vez em outra obra daquele mesmo ano, desta vez endereçada não aos seus
inimigos populistas, mas a um aliado marxista que não era militante o sufi­
ciente. Reprovando que Struve usasse “a linguagem de um objetivista e não
de um marxista (materialista)”, Lênin insistia: “O materialismo traz dentro
de si, por assim dizer, um espírito de partido (partiinost9}” que requer que se
tratem todas as questões sociais a partir da perspectiva da luta de classes e
que se rejeite o estreito “espírito dos círculos” (kruzhkovshchina} nos quais
os intelectuais apenas conversam entre si.29
Lênin se atirou às campanhas polêmicas da União de Luta, que pelo
menos tinha conseguido ligar a elite intelectual às genuínas organizações
operárias. Mais de 70% dos mais de 150 membros identificados da União
eram operários,30 embora sua estrutura organizacional seguisse as tradições
conspiratórias estabelecidas dos revolucionários russos e em nada lembrasse
a social-democracia alemã.31 Um “centro diretor” de cinco intelectuais presi­
dido por Lênin se situava no ponto fulcral de um grupo organizador de 17
homens. Três dos grupos regionais de São Petersburgo eram chefiados por um
dos cinco diretores.32 Os dois principais diretores (Lênin e Martov) estavam
dispensados de filiações locais, a fim de proporcionarem guiamento estratégico
e garantir maior segurança. No diretório central não havia trabalhadores; e
29 Lenin, Sochineniia, 1941, 4a ed., vol. i, p. 380. Sobre empregos russos anteriores de partiiny e
empregos leninistas posteriores de partiinost’ em sentido pleno (sacrifício pessoal em prol do partido),
v. Billington, “Intelligentsia”, p. 816, esp. nota 32. No prefácio a uma coleção de documentos do
partido publicada em Genebra em 1904 (N. Shakhov, Bor’ba za s’ezd), Lênin insistiu que todo
material deveria “gravitar em torno de um ponto central, a saber: a luta do espírito de partido
contra o espírito de círculo (partiinosti s kruzhkovshchinoi}”; citado em V. Morozova, “Izdatel’stvo
sotsial-demokraticheskoi partiinoi literatury V. Bonch-Bruevicha i N. Lenina”, em Voprosy Istorii
KPSS, 1962, n°. 4, p. 101.
30 De acordo com D. Kuntsentov, V i. Lenin i mestnye partiinye organizatsii Rossii, Perm, 1970, p. 95.
A versão soviética oficial, que enfatiza qualquer pedacinho de testemunho autêntico para exagerar a
extensão da liderança de Lênin e de seus contatos com os trabalhadores, está sistematizada (com as
“falsificações burguesas” devidamente rejeitadas) em Ya. Volin (ed.), Istoriografiia peterburgskogo
soiuza bor’by za osvobozhdenie rabochego klassa, Perm, 1974.
31 D. Geyer parece sugerir que Lênin e os intelectuais impuseram aos trabalhadores uma conspiração
elaborada anteriormente (Lenin in der russischen Sozialdemokratie, Cologne/Graz, 1962). R. Pipes,
Social Democracy and the St. Petersburg Labor Movement, 1885-1897, Cambridge, Massachusetts,
1963, minimiza a influência de Lênin. A. Wildman, The Making of a Worker’s Revolution. Russian
Social Democracy, 1891-1903, Chicago, 1967, é uma valiosa obra de história social.
32 Para detalhes, v. Ya. Cherniavsky, Bor’ba V. I. Lenina za organizatsionnye printsipy marksistskoi
partii, 1954, p. 9 ss.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 743

a participação de proletários parecia estar limitada à categoria especial de


“trabalhadores-organizadores”, os quais propiciavam o elo entre os círculos
social-democratas de diferentes fábricas dentro de cada um dos três distritos.
Martov (líder de uma facção chamada de “a jovem”) parece ter feito
mais do que o “velho” Lênin para afastar a União de São Petersburgo da
tradicional relação de tutela para com as classes mais baixas. Seu conceito de
agitação combinava a idéia sindicalista de ação direta em relação a questões
imediatas com a convicção marxista de que “a luta não irá parar até que se
alcance a completa emancipação dos operários da opressão do capital”.33
Lênin participou da União somente durante algumas semanas antes de
ser preso, mas continuou a se comunicar com a organização de modo muito
à vontade durante o ano de prisão prévio ao seu exílio. O tema da extensão
da influência de Lênin sobre o grupo ocupou de maneira desnecessária os
historiadores, que talvez ainda não tenham devotado atenção suficiente à
possível influência do grupo sobre Lênin. Pois os associados de Lênin dessa
época permaneceram próximos dele por toda a década que vai de sua primeira
chegada a São Petersburgo ao nascimento formal do Partido Bolchevique,
em 1903. A maior parte deles desempenhou papéis importantes durante o
efêmero governo de Lênin no novo Estado Soviético. Independentemente da
natureza exata da liderança que Lênin exerceu sobre esses indivíduos, resta
claro que ele próprio precisava deles para construir uma organização política.
Assim, os colaboradores fundamentais de Lênin nessa década de formação
podem ser descritos como os primeiros apparat leninistas: os “homens do
aparato” (apparatchikí) que precederam — e sob vários aspectos criaram —
um “partido de um novo tipo”, isto é, o partido leninista.
Os principais colaboradores de Lênin eram quase todos intelectuais de
classe média levados à atividade revolucionária não tanto por convicção pro­
funda quanto por hábito mereiai da subcultura estudantil de São Petersburgo.
Enquanto os primeiros estudantes radicais eram consumidos por idéias, esses
jovens marxistas eram basicamente técnicos em busca de carreiras. Eram
treinados em engenharia para conseguir emprego no setor industrial que
passava por acelerado desenvolvimento no Império Russo; eles tentaram
aplicar os critérios profissionais adquiridos em sua formação técnica também
à atividade revolucionária. Reuniam-se num local em São Petersburgo que
bem pode ter se tornado tão importante para a gestação da revolução quanto
33 Citado a partir da primeira proclamação da União, em Dan (que foi um dos membros mais próximos
de Martov), p. 201.
744 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

fora o Palais-Royal em Paris. Assim como a casa real dos Orléans havia, sem
querer, proporcionado abrigo aos intelectuais proto-revolucionários do fim
dos anos 1780, também o Instituto Tecnológico, que gozava do favor imperial,
ofereceu, um século depois, uma estufa segura para o novo desenvolvimento
revolucionário na fria São Petersburgo.

O Instituto Tecnológico

O Instituto Tecnológico Prático criado pelo Imperador Nikolai i, em São


Petersburgo, havia produzido sua cota de heróis revolucionários na década
de 1870 e experimentado sua cota de restrições na década de 1880, inclusive
a reintrodução do odiado uniforme estudantil. O que permitiu ao Instituto
servir de posto de comando estratégico da agitação revolucionária foi a cria­
ção, em um dos ângulos de seu imenso pátio pentagonal, de um prédio de
três andares separado, o qual era inteiramente controlado pelos estudantes
e que afinal se tornaria, na prática, uma área liberada para revolucionários.
Construído em 1879-1880 para ser um prédio apolitico de jantares estu­
dantis, o prédio se tornou o centro de uma variedade crescente de atividades
comandadas pelos estudantes, em especial depois da formação, em 1884, da
“sociedade dos tecnólogos”, que no começo se concentrou no problema de
conseguir empregos. O espaço interno do prédio se tornou local de reunião
e cidadela para uma nova geração de estudantes que estavam ajudando a
Rússia a entrar na era industrial. O Instituto era a maior escola técnica da
Rússia, reunindo mais de 500 estudantes numa única localidade (e não em
prédios separados como numa universidade) e os submetendo a um regime
comum severo de laboratórios e seminários “que mais lembravam uma oficina
ou fábrica do que qualquer coisa que se dê numa universidade”.34

34 De acordo com o valioso fragmento da obra projetada por Leonid Krasin, uma “história
revolucionária do Instituto Tecnológico”, em M. Liadova e S. Pozner (ed.), Leonid Borisovich Krasin
(“Nikitich”). Gody podpol’ia, Moscou/Leningrado, 1928, p. 52. Ao que parece, esse projetado livro
nunca foi concluído, mas foi publicado no ano seguinte, com efeito, o seguinte artigo: M. Rappeport,
“Revoliutsionnaia istorila tekhnologicheskogo instituta”, no volume comemorativo do centenário
Tekhnologichisky institut imeni leningradskogo soveta rabochikh, krestianskikh i krasnoarmeiskikh
deputatov, Leningrado, 1928, vol. i, p. 271 ss. (LL). Tomo fatos de grande importância desse volume
rico e ilustrado, esp. pp. 97-99, 115, 266, 273-277, além da foto do predio estudantil à p. 294. O
número de matriculados foi fixado em 500 para o ano de 1887 (p. 105), mas foi ampliado para 630
em 1891 epara 841 em 1897 (p. 113). D. Brower, “Student Political Attitudes and Social Origins: The
Technological Institute of Saint Petersburg”, em Journal of Social History, vol. vi, 1972-1973, apenas
resume um questionário de 1909 que mostra que 56% dos estudantes do instituto se consideravam
parte da esquerda radical (p. 204); nota ainda que essa ala aumentou à medida que o número de
matrículas dobrou entre o fim dos anos 1890 e 1908 (p. 202).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 745

Alguns dos social-democratas judeus pioneiros deixaram Vilnius para


se integrar ao Instituto em 1885, e contatos ulteriores com centros revolu­
cionários foram facilitados pela fundação de uma filial em Kharkov no ano
seguinte. Ao que parece, foi um estudante polonês quem primeiro levou
idéias marxistas ao Instituto; e a bem-servida biblioteca do prédio gerido
pelos estudantes logo incluiría quatro exemplares de Das kapital, que de
outro modo era impossível obter em São Petersburgo. À altura do início dos
anos 1890, cada instituição de ensino superior na capital havia adquirido
(nas palavras da futura esposa de Lênin, Nadezhda Krupskaia) “sua própria
fisionomia”. O Instituto de Engenharia Florestal era um centro de populismo,
a Universidade, de “marxismo dentro das leis”, e o Instituto Tecnológico, de
social-democracia revolucionária.35
O primeiro grupo a combinar o estudo do marxismo com a organização dos
trabalhadores foi liderado por um engenheiro de ferrovias do Instituto, Mikhail
Brusnev. A principal figura desse círculo era um jovem estudante siberiano
da mesma instituição, Leonid Krasin. Seu relato sobre esses primeiros anos
soa, a princípio, como uma repetição dos primeiros círculos da intelligentsia
revolucionária russa. Os estudantes descobriram o emprego progressista de
descobertas científicas para fins revolucionários (do fogo grego à bomba de
Kibalchich); identificaram-se com as tradições da intelligentsia (realizando
protesto no funeral de Nicholas Shelgunov em 1891); e se designaram líderes
dos trabalhadores, pois se supunha que entre eles “o intelectual é necessário
para a realização de propaganda e atividades sistemáticas”.36
Esse elo com a classe operária, contudo, representa um daqueles pode­
rosos pontos de viragem na história humana. O novo círculo que Brusnev
constituiu em 1891 de repente imergiu a vanguarda intelectual no mundo
real das classes trabalhadoras russas. O próprio Brusnev, filho não-intelectual
de um nobre cossaco, tinha amplas relações na classe operária. Ele e Osip
Tsivinsky, outro polonês com experiência prática junto ao proletariado, tra-

35 N. Krupskaia, “O Krasine”, em Krasin, p. 137. De Lelewel (em geral omitido das versões soviéticas dos
fatos) só se diz aqui, como suposição, que se tratava de um polonês. V. ibid., pp. 52-57; Rappeport,
p. 279; e (sobre a visita de Yakov Notkin e Arkady Kremer de 1885) Levin, Messiah, p. 232.
Krasin foi atraído para o Instituto por um aluno (que era também um veterano da Vontade do Povo)
e pelo seu professor de química em Tiumen, na Sibéria (Krasin, p. 50). Valentinov, Krzhizhanovsky
e outros eram protegidos dentro do Instituto por outro professor de química e sua esposa, os quais
eram membros clandestinos do movimento social-democrata (Valentinov, Encounters, pp. 3-5).
36 O chefe de um círculo empregou essas palavras ao convidar Krasin para se juntar a ele, em outubro
de 1890; v. Krasin, “Dela davno minuvshikh dnei, 1889-1892”, em Proletarskaia reuoliutsiia, 1923,
n° 3, p. 10; também pp. 7-15.
746 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

balhou com Krasin, o qual se tornou líder de um novo grupo de operários


têxteis social-democratas.
O grande divórcio entre intelectuais e operários foi remediado com rituais
que tinham algo das características do batismo para uma nova vida. Krasin
teve de vestir roupas velhas, assumir um novo nome (“Nikitich”) e se mudar
das partes da cidade onde já havia eletricidade para as partes ainda, em grande
medida, na escuridão. Aprendeu gírias dos trabalhadores e incorporou parte
delas numa proclamação grevista no distrito portuário de São Petersburgo
em 1890; mas sua linguagem foi denunciada como demasiado bashkovity
(“cê-dê-efe”) por trabalhadores que não gostavam de seguir um líder jovem
demais para sequer ter um bigode completo.37
Os correligionários de Brusnev utilizavam formas familiares e designações
como “pai” para o principal organizador-operário e “tio” para o principal
colaborador de Brusnev.38 E havia não raras esposas. Krupskaia foi apenas
uma das professoras que participaram da “Escola Dominical” noturna para
trabalhadores organizada pelo círculo de Brusnev e que terminou se casando
com um dos revolucionários.39
Mas a única maneira de sanar de uma vez por todas o hiato entre intelectuais
e trabalhadores era forçar ambos os grupos a se tornar algo que nenhum dos
dois jamais tinha sido: organizadores profissionais em tempo integral. Assim,
em 1890 nasceu aquele que foi na prática o primeiro programa sistemático
de treinamento de quadros na tradição revolucionária moderna: o assim
chamado Círculo dos Organizadores (kruzhok organizatorov). A tradição
da Vontade do Povo foi alterada pelo treino tecnológico e administrativo do
próprio Instituto Tecnológico, tendendo à profissionalização que era essencial
ao combate de métodos policiais mais sofisticados.
O Círculo dos Organizadores se reunia em segredo nas horas de celebração
religiosa do domingo e nas noites de dias da semana; e o aparato partidário
interno que surgiría no futuro pode ser visto como seu descendente direto. O
círculo, quanto ao essencial, organizou o protesto no enterro de Shelgunov em
março e o protesto do primeiro Dia do Trabalhador em 1891; de sua parte,
Krasin organizou no mesmo ano a primeira organização social-democrata

37 Krasin, pp. 67-71.


38 Respectivamente, Fedor Afanas’evich e V. S. Golubev: Krasin, pp. 89, 394; também Rappeport, p.
281.
39 R. McNeal, Bride of the revolutions: Krupskaya and Lenin, Ann Arbour, 1972, pp. 31-33.
LIVRO IH, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 747

de mulheres na Rússia.40 Houve esforços concentrados de recrutamento de


seminaristas na Academia Teológica do Monastério Alexandre Nevsky e de
iniciar um esforço organizacional paralelo no distrito Taganka de Moscou;
mas a repressão policial destruiu a organização: expulsou cem estudantes
(incluindo Krasin) de São Petersburgo depois do protesto por Shelgunov e
prendeu o próprio Brusnev no ano seguinte. A partida deles serviu apenas
para espalhar idéias de organização social-democrata pelas várias regiões da
Rússia aonde os organizadores presos ou expulsos foram enviados. Krasin
pôde levar o evangelho da organização social-democrata revolucionária a
Nizhni-Novogord, Irkutsk, Criméia, Kharkov e, por fim, Baku, onde lhe deu
um importante emprego de engenheiro numa companhia elétrica o exilado
que havia sido o primeiro a fazer agitação social-democrata no Instituto
Tecnológico, R. E. Klasson.41
Klasson e Krasin faziam parte de uma espécie de màfia da eletricidade, a
qual gozava de alguma imunidade em razão da necessidade desesperada de
tecnologia nativa ocasionada por uma economia em rápida industrialização.
Outra criação do Instituto Tecnológico de São Petersburgo, Gleb Krzhizha­
novsky, de Samara, tornou-se uma lenda no submundo revolucionário por
causa de seu hábil uso de tecnologia elétrica para fins revolucionários; ele
foi reiteradamente ajudado no exílio por colegas de classe do Instituto.42
A mais famosa aluna do Instituto Tecnológico de 1890 a fazer parte do
primeiro grupo de discussão marxista de Klasson foi Krupskaia. Ela se jun­
tou ao círculo de Brusnev em 1891, conheceu Lênin alguns meses depois da
chegada dele a São Petersburgo em 1893, foi presa e exilada em 1896, não
muito depois dele, com quem se casou na Sibéria em 1898.
Mas o homem que mais que qualquer outro realizou o sonho de Krasin
de profissionalização dos quadros social-democratas em São Petersburgo,
nos anos 1890, foi um taciturno ucraniano chamado Stepan Radchenko.
Desde a época em que entrou no círculo de Brusnev em 1891, tornou-se na
verdade seu líder. Talvez tenha sido a mais importante figura responsável
pela sustentação do movimento social-democrata pelo resto dos anos 1890.
É certamente o mais negligenciado dos pais-fundadores do bolchevismo.

40 V. as importantes memórias de V. Karelina sobre esse grupo negligenciado em Krasin, pp. 86-92.
41 Krasin, pp. 35-40.
42 Testemunho autobiográfico em G leb Maksimovich Krzhizhanovsky. Zhinzn i deiatePnost’, 1974,
p. 186.
748 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O primeiro apparatchik: Radchenko

A importância de Rodchenko está não em suas idéias — jamais publicou


sequer um artigo —, mas em seu papel como técnico entre técnicos. Foi tal­
vez o primeiro apparatchik verdadeiramente profissional, um homem sem
grandes planos, mas com uma centena de detalhes muito bem cuidados: o
progenitor um pouco nobre de uma espécie inteiramente amedrontadora.
Nada se sabe de suas atividades entre 1887, quando veio de Kiev para
São Petersburgo para estudar no Instituto Tecnológico, até sua aparição num
círculo marxista em 1890. Não resta dúvida de que desempenhou impor­
tante papel no aprofundamento dos elos entre os círculos intelectuais e as
organizações operárias, e seu gênio conspiratório lhe permitiu ser o único
membro do círculo a evitar a prisão durante a repressão policial do verão
de 1892. Tornou o primeiro dos “estudantes eternos” que se tornariam tão
característicos dos festivais juvenis do stalinismo — permanecendo no Instituto
Tecnológico mesmo depois de concluir seus cursos em 1892, com o propósito
de continuar o trabalho de Brusnev.43 Ele trouxe Krzhizhanovsky para o re­
nascido círculo de 1892 e Lênin no ano seguinte (junto com a esposa deste e
com a sua própria esposa). Assim como Radchenko acompanhou Lênin nos
momentos cruciais entre 1893 e 1895 em São Petersburgo, de igual modo
sua esposa Ludmilla Baranskaia depois acompanhou Krupskaia no exílio.
Tanto antes como depois do exílio siberiano de Lênin, o apartamento de
Radchenko recebeu mais reuniões importantes do que qualquer outro lugar.
Radchenko fez parte do diretório interno de cinco homens da União de
Luta em São Petersburgo entre 1895 e 1896; foi o único delegado de São
Petersburgo no congresso de fundação do Partido Operário Social-democrata
Russo em Minsk, em 1898; o principal contato de Lênin quando este retornou
da Sibéria em fevereiro de 1900; e o principal representante do Iskra em São
Petersburgo ainda naquele mesmo ano.

43 A. Mel’nikov, Khranitel’ partiinykh tain, 1975, pp. 13—14 (HU). As fontes básicas sobre a vida e
atividades de Radchenko permanecem o seu irmão, 1.1. Radchenko (Stary Bol’shevik, 1933, mar.-abr.,
pp. 177-186), e o seu colaborador proximo G. B. Krasin (ibid.,pp. 186-189). Modestas melhorias de
informação, mas sem maior interpretação ou originalidade, advêm destes outros relatos que encontrei
após muita pesquisa: D. Kuntsentov, Deiateli Petersburgskogo “Soiuza bor’by za osvobozhdenie
rabochego klassa”, 1962, pp. 115-122; A. Mel’nikov, “Leninets Stepan Radchenko”, em Voprosy
[storti, 1970, n°. 4, pp. 191-206; e E. S. Radchenko, “Odin iz pervykh soratnikov 11’icha”, em Voprosy
[storti KPSS, 1969, n°. 7, pp. 88-93. A memória posterior de sua filha, Evgeniia Stepanova, é um
trabalho escrito de maneira puramente acadêmica no qual não se nota nenhum traço da relação
familiar.
LIVRO IH, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 749

O fato crucial e básico sobre esse personagem ubíquo, mas estranha­


mente silencioso, é que ele era o homem que fazia as coisas acontecerem.
Num mundo de gente que falava demais, ele era a pessoa capaz de agir com
velocidade e eficiência. Era o homem indispensável que poderia, em curto
prazo, encontrar um local para um encontro secreto,44 imprimir um folhe­
to, falsificar um passaporte, conseguir dinheiro e transportá-lo, entregar e
receber correio e fornecer artigos de necessidade, que iam de tinta secreta
a informações estatísticas. O primeiro círculo de Radchenko no início dos
anos 1890 recebeu o nome de “os tecnólogos”.45 Ele logo profissionalizou o
círculo de organizadores de Krasin, criando um “escritório técnico” em seu
centro, o qual sob vários aspectos se tornou o único órgão com existência
permanente em meio aos grupos social-democratas fluidos que se prolifera­
ram em São Petersburgo durante o início dos anos 1890.
O estilo de Radchenko era radicalmente diferente tanto do histrionismo
de tribunal dos populistas revolucionários da década de 1870 quanto da
bravata fria de um Nechaev que, na prisão, debate com os guardas e fantasia
nomes e títulos principescos para si próprio. Ele evitou a ribalta e a prisão,
permanecendo perpétua e profissionalmente nas sombras. Embora preso por
duas vezes, não permaneceu muito tempo encarcerado no período anterior a
1902. A polícia nunca conseguia encontrar materiais que o incriminassem. Os
seus gratos companheiros revolucionários — não ele próprio — lhe davam
títulos de nobreza revolucionária; eram títulos apropriados à nova sociedade
militar-industrial na qual o movimento deles operava: inzhener [engenheiro],
general e direktor46 Esses pseudônimos eram bastante utilizados por uma
geração de revolucionários relutante em conferir títulos de qualquer ordem
a qualquer pessoa.

44 Sobre o seu papel na organização de reuniões, v. M. Sil’vin, Lenin v period zarozbdeniia partii,
Leningrado, 1958, pp. 48-49,103,158-159. V. Akimov sugere que Radchenko de fato estabeleceu
uma escola clandestina em São Petersburgo entre 1892 e 1894 (The dilemmas of Russian Marxism
1895-1903, Cambridge, 1969, p. 235).
45 Mel’nikov, “Radchenko”, p. 196, Khranitel’, p. 98.0 codinome “engenheiro” parece ter sido utilizado
por seus contatos de Kiev. V. “Iz Vospominanii S.V. Parazich (S.V. Pomerants)”,em Krasnaia Letopis’,
1923, n° 7, p. 257.
46 Outro pseudônimo, embora empregado com menor frequência, era Leibovich, um patronimico
sintético que sugeria a forma russificada tanto da palavra alemã para “salva-vidas” (leibgvardiia}
quanto da palavra inglesa para “labradorite” (leiborist). V. Perepiska VJ. Lenina i redaktsü gazety
“Iskra" s sotsial-demokraticbeskimi organizatsiiami v Rossii, 1900-1903, 1970, vol. m, p. 711.
Embora sob vigilância policial desde 1891 (E. Radchenko, p. 89 ss.), Radchenko parece não ter
sido efetivamente detectado antes do outono de 1894. V. Mel’nikov, Khranitel3, p. 16.
750 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

O papel central de Radchenko no início da social-democracia não foi,


contudo, apenas o resultado de uma competência técnica impessoal. Ele
também era visto como o homem que podia fazer de modo eficiente a co­
municação entre os revolucionários linha-dura e a penumbra mais externa e
amorfa de simpatizantes. Era, portanto, não um conspirador sectário, mas um
verdadeiro apparatchik que expressava lealdade à causa interna precisamente
ao estender seu contato para fora, em busca de recrutamento, inteligência e
manipulação. Nas palavras de um importante contemporâneo e companhei­
ro de trabalho, Radchenko era um líder em “relações diplomáticas com os
marxistas que agiam dentro da lei e com outros grupos social-democratas
na capital: e com diferentes organizações de intelectuais, círculos de escrito­
res, estudantes e ativistas culturais”.47 Era também um elo de comunicação
entre os primeiros marxistas do Volga superior (seguidores de Fedoseev) e
os emigrados na Suíça.48
Dois fatores em sua juventude ajudaram Radchenko a se tornar
apparatchik-em-cheíe dos intelectuais de São Petersburgo. Tinha imergido
nas tradições revolucionárias profissionais da Ucrânia e, ao mesmo tempo,
na experiência prática de lidar com a classe operária.
Era o segundo dos onze filhos de um mercador de ascendência cossaca
que vivia perto de Chernigov, onde ele adquiriu um senso de orgulho regional
em razão dos nativos da área (Lizogub, Zheliabov e Kibalchich) que haviam
sido os primeiros revolucionários em São Petersburgo comprometidos com
o terrorismo. Sempre se referia ao salão de jantar do Instituto Tecnoló­
gico, onde recrutava intelectuais para a atividade revolucionária, como a
“Zaporozhian Sich”, a cidade lendária onde os cossacos tinham gozado de
liberdade e autodeterminação no curso baixo do Rio Dniepre. Para todas as
atividades, encontrava apoio numa espécie de rede ucraniana. Conservou seus
laços com Kiev, que criou a maior União de Luta fora de São Petersburgo e
proporcionou metade das seis organizações que se juntaram a Radchenko
para forma o Partido Operário Social-democrata Russo em 1898. Ao que
parece, Radchenko se valeu dos seus irmãos, dos colegas de escola ucranianos
e de seu assistente ucraniano, A. Malchenko, para desempenhar as formas
de assistência anônima tão variadas de que ele sempre necessitava. Quando
pressionado a romper o silêncio e explicar como conseguia provisões para

47 Sii*vin, pp. 104-105.


48 N. Sergievsky, “Gruppa ‘Osvobozhdeniia Truda’ i marksistskie kruzhki”, em Istoriko-revoliutsionny
sbomik, 1929, voi. ii, pp. 152-153.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 751

os seus companheiros revolucionários, respondeu que “através de tecnólogos


poloneses”;49 sua familiaridade com a língua e os revolucionários poloneses
na Ucrânia ocidental provavelmente lhe garantiram fontes de fornecimento
e de ajuda.
Em janeiro de 1894, depois de receber uma permissão médica para re­
tornar a São Petersburgo, Martov aconselhou seus amigos revolucionários a
parar de se considerarem judeus e poloneses deslocados, a parar de imaginar
“planos grandiosos” e a “ir humildemente, como ‘estudantes’, até Radchenko
e seus ‘anciões’ na organização já existente em São Petersburgo, do mesmo
jeito que fui como estudante até os marxistas em Vilnius”.50 O grupo de Ra­
dchenko absorveu e propagou a teoria de Martov de agitação direta em meio
aos operários, a qual tinha surgido de seu contato com operários poloneses
na prisão e com o trabalho organizacional dos judeus em Vilnius.51 Martov
via o trabalho pioneiro de Radchenko de ir até a classe trabalhadora como
um antídoto àquilo que então caracterizou como o “blanquismo” da maior
parte dos revolucionários sediados em São Petersburgo.52
Aparentemente, foi com facilidade que Radchenko se movimentou invi­
sível entre os operários de São Petersburgo.53 Ele apresentou Lênin ao seu
círculo dominical de trabalhadores quando este último visitou rapidamente
São Petersburgo, no outono de 1891, para acertar detalhes de seu ingresso
na universidade. Àquela época, Radchenko orientou tanto Lênin como os
trabalhadores na discussão do marxismo.54 Tornou-se “o guia dos outros

49 Sil’vin, p. 35. Outras informações tiradas de I Radchenko, pp. 177-178; G. Krasin, pp. 186-187.
É de se supor que haja mais detalhes sobre as atividades e conexões ucranianas de Radchenko e
seus irmãos num estudo escrito em ucraniano ao qual não consegui ter acesso: E. Malenko, Brafia
Radchenki, Kharkov, 1970.
50 Yu. Martov, Zapiski sotsial-demokrata, Berlim, 1922, p. 214, que cita com base na “carta penetrante”
que escreveu aos seus camaradas de São Petersburgo. Martov, assim como todos mais, intriga ao
fazer só um breve elogio de Radchenko.
51 Sobre esses outros aspectos do legado de Martov, v. I. Getzler, Martov, p. 9 ss.; também A. Patkin,
The origins of the russian-jewish Labour Movement, Melbourne, 1947.
52 Martov afirma ter sido o primeiro a usar para fazer denúncias (Zapiski, p. 214).
53 O pai de Stepan morreu quando ele era jovem, o que o obrigou a arcar com o negócio da família
de abastecer de madeira a ferrovia local, de modo que desde cedo imergiu no mundo dos artesãos,
operários ferroviários e assim por diante, figuras geralmente desconhecidas aos intelectuais de São
Petersburgo. V. I. Radchenko, pp. 177-178.
54 A recordação memorável que Vera Karelina faz dessa reunião (Krasnaia Letopis’, 1924, n° 1, pp.
10-11) é em geral ignorada em escritos soviéticos posteriores. O único autor que a cita (Mel’nikov,
“Radchenko”, p. 195) apresenta a reunião como se tivesse ocorrido em 1893 esegue a prática usual
de exagerar a influência de Lênin já em data tão recuada. Ao que parece, foi só em uma reunião
posterior (na qual Radchenko também estava presente) que Lênin foi apresentado pela primeira vez
a círculos revolucionários maiores como “irmão do bem-conhecido revolucionário A. L Ulyanov”,
752 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

revolucionários no meio operário”;55 e Lênin, como todos os demais, via-o


como “nosso mais hábil conspirador”.56 Foi ele quem levantou dinheiro para
financiar e imprimir a maior parte dos primeiros ataques marxistas contra os
populistas, incluindo o panfleto de Lênin Quem são os “amigos do povo”,
de 1894; e foi no apartamento dele que Lênin e outros social-democratas
de São Petersburgo proclamaram uma União de Luta pela Emancipação da
Classe Operária.57 A importância de Radchenko aumentou depois que Lê­
nin e outros líderes foram presos em dezembro de 1895; e ele desempenhou
destacado papel na reunião de 18 de julho de 1895 realizada numa floresta
fora de São Petersburgo, na qual a União de Luta se organizou para mais
uma rodada de greves.58 Preso em agosto, foi solto em novembro, quando
então assumiu controle total da organização. Foi o único delegado dela (e de
São Petersburgo) na conferência de fundação do Partido Social-democrata
em Minsk, em 1898, e foi provavelmente o responsável pelo acréscimo da
palavra “Operário” ao nome oficial do órgão.59
Radchenko exerceu influência decisiva para que não fosse aceita a proposta
dos operários de São Petersburgo de criação de uma tesouraria separada que se

em Kutsentov, Deiateli, pp. 116-118.


55 G. Krasin, p. 187.
56 Kutsentov, p. 120; Krzhizhanovsky, em O Vladimire ITiche. Sbornik statei i vospominanii, 1933,
pp. 39-40.
57 Kutsentov, p. 119; Sil’vin, pp. 48—49, 103—105; E. Radchenko, p. 90.
58 Mel’nikov, “Radhchenko”, p. 201, com base em novos materiais colhidos em arquivo.
59 V. ainda a discussão sobre o papel central de Radchenko em Mel’nikov, Khranitel\ pp. 102-110, que
também sugere a possibilidade de que Arkady Kremer, que discutiu com Radchenko sobre a palavra,
tenha sido o responsável pela sua inserção. O documento foi publicado pela imprensa do Bund; e
a presença de ambas essas figuras nas reuniões e a proximidade deles com os trabalhadores torna
um dos dois a fonte mais provável dessa adição do que Struve (a quem R. Pipes atribui a autoria
sem oferecer quaisquer motivos ou provas: Struve. Liberal on the Left 1870-1905, Cambridge,
Massachusetts, 1970, p. 193). Para um tratamento detalhado dessa conferência que se costuma
ignorar (o qual, contudo, não esclarece a questão), v. os artigos de I. Moshinsky e E. Gurvich em
Katorga i Ssylka, 1928, n° 40. O Partido Operário Social-democrata Russo permaneceu o nome
oficial até depois da Revolução Bolchevique.
A orientação proletária inicial do partido russo (senão até a própria introdução da palavra “operário”)
quase certamente deve algo aos social-democratas de Kiev e ao seu memorável líder, o chaveiro
Yuvenaly Mel’nikov. V. B. Eidel’man, “K istorii vozniknoveniia rossiikoi sotsial demokraticheskoi
rabochei partii”, em Proletarskaia Revoliutsiia, 1921, n° 1, pp. 20-65. Os militantes de Kiev
organizaram sua própria conferência em março de 1897 (pp. 31-33), e se saberia mais sobre o seu
papel na reunião de Minsk em 1898 não fosse o fato de que muitos deles foram presos em março
daquele ano. Mel’nikov morreu em 1899 e o livro coletivo dos kievianos, Rabochee delo v Rossii,
desapareceu sem sequer ser publicado (pp. 49, 51). Mel’nikov, que talvez tenha se tornado um
radical em virtude de seus contatos com os estudantes técnicos da sucursal de Kharkov do Instituto
Tecnológico, resumiu o anátema economicista para os historiadores posteriores de tendência leninista:
“É melhor erguer as massas uma polegada do que um único homem ao segundo andar” (p. 29).
LIVRO IIL CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 753

destinasse a necessidades e lutas puramente econômicas.60 Antecipou-se, assim, à


oposição de Lênin a qualquer “economicismo” divorciado da luta política. Com
efeito, pode ser que tenha sido ele a origem dessa atitude “leninista”. Pesquisas
recentes em arquivos soviéticos sugerem que Radchenko se opôs à primeira
defesa feita por Lênin de agitação entre os operários, em 1894, uma vez que
a considerou uma abdicação da militância revolucionária em favor da “luta
‘por cinco copeques’, ‘por água quente’ e por outras demandas econômicas”.61
Assim, do momento em que saiu da prisão em novembro de 1896 até
quando foi novamente preso em 1902 (e daí exilado pelos restantes nove anos
de sua vida), Radchenko foi o mais importante líder dos social-democratas
de São Petersburgo. Durante esse período, desenvolveu-se um conjunto de
crenças compartilhado pela maior parte dos organizadores social-democratas.
A exceção de uns poucos intelectuais aristocráticos como Struve, que sempre
acreditou mais na liberdade do que na igualdade, a maior parte dos social-
-democratas aceitou os meios conspiratórios de alcançar a revolução social.
Eles acreditavam que eram necessários tanto a propaganda marxista geral
como também a agitação entre os proletários para criar um “partido” po­
pular que fosse mais do que uma “seita” intelectual.62 Até Martov, o futuro
menchevique e líder dos “jovens” rivais dos “anciões” de Radchenko e Lênin,
pregava a necessidade de “uma organização conspiratória” que se “ligue a
um amplo partido social-democrata”.63
Os social-democratas russos ficaram bastante alarmados com a súbita
aparição do “economicismo”, a forma russa do “revisionismo” reformista
alemão. Depois da severa repressão à União de Luta em dezembro de 1895,
os grevistas de 1896-1897 se afastaram de objetivos social-democratas mi­
litantes em prol da busca de benefícios puramente econômicos. Quase que
60 Volin, Istoriografiia, pp. 8-9.
61 Za piatochok, za kipiatok. Essa versão partidária oficial de D. Kutsentov (em Ocherki istorii
Leningradskoi organizatsii KPSS. Ch.I, 1883-oktiabr' 1917, Leningrado, 1962, p. 51) baseia-se em
documentos de arquivo inacessíveis ao comum dos pesquisadores soviéticos (que dirá aos estrangeiros);
mas não tem documentação muito precisa e se inclina a sobrevalorizar retrospectivamente o papel
de liderança de Lênin e sua proximidade com a classe trabalhadora.
O intrigante uso fragmentário de memórias inéditas de V. Solodilov (em Mel’nikov, KhraniteP, p.
90) concorre para um retrato de Radchenko a defender que o movimento russo deveria não apenas
corrigir o sindicalismo inglês, mas também a social-democracia, fundindo a luta de classes do
proletariado com a luta política contra a autocracia.
62 Essa distinção remonta a Plekhanov em 1892 (Akimov, p. 17).
63 Getzler; p. 79. Martov também reviveu o tema buonarrotiano da difamação de Lafayette como o
burguês que busca “deter o desenvolvimento ulterior da revolução”. V. sua resenha (Zhizn\ 1900,
set., pp. 358-362) de Vasily Yakovlev, Markiz Lafaiet (deiateV trekh revoliutsii), 1889, citado em
Getzler, pp. 42-43.
754 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

de imediato após a fundação do novo Partido Operário Social-democrata


Russo, tanto a sua organização partidário oficial na emigração (a União dos
Social-democratas Russos no Estrangeiro) como também o seu jornal oficial
dentro do Império Russo (Rabochee Delo, “A Causa dos Operários”) acei­
taram a nova ênfase em objetivos econômicos alcançáveis, em detrimento
de planos políticos revolucionários nada realistas.
Em 1899, houve uma nova e mais violenta virada rumo à agitação
operária (centrada nos trabalhadores metalúrgicos de São Petersburgo e
da Ucrânia) e um renascimento acentuado da agitação estudantil. Lênin e
outros agitadores exilados na Sibéria enviaram um “protesto dos 17” contra
o movimento da social-democracia para longe da revolução. Em seu último
ano de exílio, Lênin entreviu as medidas fundamentais para a construção de
um novo partido revolucionário que corrigisse essa tendência ao reformismo
e mobilizasse um novo período de turbulência.
Começou pela peça de construção básica dos organizadores revolucioná­
rios modernos: uma célula central de três homens. Em sua correspondência
com Martov e Potresov, Lênin se referia aos três como a “troika” ou “tríplice
aliança” que alcançaria a “conquista do partido” depois que estivessem li­
vres.64 A principal arma deles seria a ferramenta favorita de revolucionários
totalitários desde o Tribun du Peuple e o Bouche de Fer de Bonneville: um
jornal ideológico-político. Seu título, Iskra (“A Fagulha”), e sua epígrafe, “da
fagulha nasce a chama”, reviveram uma metáfora clássica; e Lênin a ampliou
ao chamar seu jornal de “um enorme fole que soprará cada fagulha [...] até
que se tornem uma fogueira”.65
Lênin foi para o exterior com Potresov, tornou-o um aliado de Plekhanov
e de outros emigrados antieconomicistas e começou a publicar Iskra em
dezembro de 1900, na Alemanha, tendo Krupskaia como co-editora. Em
“Por onde começar?”, publicado no quarto número de maio de 1901, ele
resgatou a imagem de Bonneville e Babeuf do jornal como uma “tribuna”
destinada a “despertar em todos os estratos do povo [...] uma paixão por
denúncias políticas”.66

64 Dan, p. 229.
65 Lenin, What is to be done?, Oxford, 1963 (originalmente de 1902), pp. 182-183.
66 Citado na introdução de S. Utechin a ibid., pp. 109-110. Krupskaia cita Lênin a afirmar
categoricamente que “Iskra criou o Partido Operário Social-democrata da Rússia” (V. Stepanov,
Lenin i russkaia organizatsiia “Iskry” 1900-1903, 1968, p. 397). Embora os escritórios editoriais
ficassem em Munique e a prensa em Suttgart, ela insistia que “seu centro de gravidade se encontra
dentro da Rússia” (ibid., p. 7).
LIVRO ni, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 755

O jornal central se tornou para Lênin “não só um propagandista coletivo


ou um agitador coletivo, mas também um organizador coletivo”. “O próprio
trabalho técnico de produção” do novo jornal criaria “a rede de agentes locais
de um partido unificado [...] acostumados a cumprir regularmente funções
detalhadas numa escala nacional”.67
O próprio processo de distribuição do jornal envolvia a criação do núcleo
de um novo partido: “uma rede de agentes que se formará automaticamente
no curso do processo de estabelecer e distribuir um jornal em comum [...] a
prática regular desse trabalho garantiria a maior probabilidade de sucesso
no caso de um levante”.68
Assim, Lênin mesclou — como ninguém desde os saint-simonianos — o
conceito de um jornal central de doutrinação ideológica com um sistema de
organização nacional dedicado à revolução social. Acrescentou o elemento
de organização conspiratória criado por Babeuf e atingiu, desse modo, uma
nova intensidade na tradição revolucionária russa. A produção de Iskra
se entrelaçou com o aperfeiçoamento de senhas, pseudônimos e endereços
falsos; ao passo que sua própria prensa era também utilizada para outras
tarefas, como a impressão de passaportes falsos (era mais fácil forjar os
passaportes búlgaros e alemães do que os russos).6970O fluxo de informação
para fora da Rússia e a distribuição interna do jornal, a partir do centro
editorial em Munique, envolvia um sistema de transporte clandestino que
operava através de uma série de centros ilegais; à altura de 1903, envolvia
cerca de mil Iskrovtsy™
Vários dos ex-camaradas de Lênin ajudaram a formar células locais do
Iskra nas regiões para as quais foram mandados depois do exílio siberiano:
Krasin no Cáucaso, Malchenko em Nizhni-Novgorod, Martov — o terceiro
dos “triúnviros” de Lênin — em Poltava e arredores.71 A esposa de Radchenko
também partiu para Poltava no verão de 1900, lançando um notável esforço

67 Citado em A. Waldman, “Lenin’s Battle with Kustamichestvo: the Iskra Organization in Russia”,
em Slavic Review, 1964, set., p. 486.
68 What is to be done?, pp. 187-188.
69 G. Deich, “Voprosy kospirativnoi tekhniki *Iskry* v pis’makh V. I. Lenina 1900-1903 godov”, em
Voprosy Istorii, 1969, n° 9, esp. p. 51, 60—61, ss.
70 Stepanov, Lenin, p. 7; Deich,“Voprosy”, pp. 63-66; e, para detalhes sobre suas propostas originais
para Iskra e Zaria e sobre sua fundamental organização de apoio perto da fronteira de Pskov, v. B.
Novikov, VI. Lenin i pskovskie iskrovtsy, 1968; também BoLshevistskaia péchât*. Sbornik materialov,
1959—1961, 4 vol.; e os ensaios editados por A. Kostin quando do septuagésimo aniversário de
fundação do Iskra: Leninskaia “Iskra”, 197.
71 SiTvin, pp. 140-238.
756 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

familiar para estender uma rede de apoiadores por toda a Rússia. É quase
certo que Lênin precisou que os Radchenko fizessem arranjos antes de 1900
para que ele realizasse sua parada em Pskov, no caminho entre a Sibéria e
o exílio ocidental.72 A esposa de Radchenko (conhecida como “Pasha” e
direktorsha^ “a diretora”) ajudou a organizar seguidamente os dois mais
importantes centros ucranianos do Iskra e a rota de transporte ao sul para o
contrabando do jornal de fora para dentro do país.73 O irmão mais novo de
Radchenko, Ivan (conhecido como “Arkady” e “Kas’ian”) estabeleceu uma
prensa secreta em Kishinev, a qual começou a reimprimir o Iskra em solo
russo.74 O próprio Stepan Radchenko se tornou o principal agente em São
Petersburgo, e em abril Lênin lhe pediu que fizesse uma espécie de seção de
relatório bibliográfica para o Iskra das obras publicadas dentro da Rússia.
Lênin primeiro pediu que listasse para a rede do Iskra os jovens intelectuais
que formaram o grupo extremista Sotsialist e, em seguida, despachou um
emissário para, com o auxílio de Radchenko, estabelecer uma organização
permanente em São Petersburgo, a qual ligaria o Iskra aos remanescentes
da União de Luta.75 No fim do verão de 1901, o “diretor” foi renomeado
“general” pelo submundo revolucionário, numa espécie de promoção de
Radchenko no campo de batalha.76 Até a sua prisão e verdadeiro fim da
sua carreira em 4 de dezembro de 1901, exerceu papel fundamental no
“serviço postal socialista” utilizado para distribuir o jornal — as arcas com
fundos falsos, os endereços falsos {iavki}^ a redação de mensagens em tinta
invisível entre as linhas de publicações inócuas (as assim chamadas lastochki
ou “andorinhas”).77 Quando à sua prisão se seguiu a de sua esposa, o seu
irmão Ivan assumiu a liderança do escritório do Iskra de São Petersburgo e

72 Conclusão a ser tirada de materiais em I. Radchenko, pp. 183-184 (Perepiska Lenina i redaktsii
“Iskra”, vol. in, p. 711); e do testemunho de E. Radchenko de que Lênin visitava o apartamento
bem localizado, e ainda assim secreto, de Radchenko em Pskov “quase todo dia” (p. 91).
73 A correspondência que lhe enviava o Iskra deixa claro que ela ficava em Kharkov bem como em
Poltava (Perepiska, vol. i, pp. 57-58, 70).
74 Wildman, p. 489; Perepiska, vol. ni, p. 711; e A. Mel’nikov, “Organizator sovetskoi torfianoi
promyshlennosti. K 90-letiiu so dnia rozhdeniia 1.1. Radchenko”, em Torfianaia Promyshlennosf,
1964, n° 8, p. 25.
75 Mel’nikov, “Leninets”, p. 205; E. Radchenko, p. 92.
76 Não resta dúvida de que esse nome era a princípio desconhecido por Lênin e Krupskaia, corno
manifesta a pergunta desta última no dia 23 de setembro a um correspondente de São Petersburgo:
“Quem é esse que você chama de Generai?” (Perepiska, vol. i, p. 232, também pp. 226, 245).
77 Para detalhes sobre esse sistema, v. V. Novikov, “Nepremenno vysylaite Tskru’”, em Voprosy Istorii,
1977, n° 4, pp. 118-126, esp. p. 119; Leninsky sbornik, vol. vin, p. 260; e S. Rozenoir, Nelegal’ny
transport, 1932. A data da prisão (em correção a I. Radchenko, p. 184, e outros) é dada em Perepiska,
vol. in, p. 711.
LIVRO 111, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 757

teve função destacada no Comitê Organizacional formado dentro da Rússia


em preparação a um congresso do Partido Social-democrata. Representou
o Iskra na conferência preparatória em Pskov antes de ele próprio também
ser preso no fim de 1902.
Embora tenham fracassado no estabelecimento de uma liderança central
e contínua dentro da Rússia, os grupos do Iskra conseguiram disseminar
propaganda e novas técnicas de agitação por muitas partes. A estrutura
típica era a de um pequeno círculo interno de organizadores (que tinham
com freqüência nomes como Espártaco), o qual imprimiría folhetos sema­
nais e os distribuiría ampiamente (às vezes em papel colorido e atirados em
escolas infantis, ou então jogados ao acaso em teatros quando as luzes se
apagavam). Os organizadores também promoveríam pequenas reuniões de
25 a 30 social-democratas comprometidos, com o propósito de discutir pro­
blemas contemporâneos (letuchki ou reuniões volantes), e reuniões maiores
de 30 a 150 pessoas, entre as quais se incluíam simpatizantes não-partidários
(tnassovski ou encontros de massa).78
O Comitê Organizacional do Iskra dentro da Rússia foi que iniciou o
uso muito difundido da palavra partiiny (com espírito de partido) — com
freqüência reforçada pelo prefixo obsche^ a indicar um espírito de partido
comum, geral, mais elevado.79 Lênin estava respondendo à reivindicação de
Marx de um “partido no grande sentido histórico”: um corpo revolucionário
capaz de conquistar o poder.
Partiinost \ nesse sentido, era o exato oposto daquele amadorismo técnico
e provincianismo de perspectiva descritos pelo termo kustarnichestvo^ uma
palavra que Lênin começou a empregar com freqüência regular para denunciar
o descuido de método e a absorção por preocupações locais que os organiza­
dores do Iskra encontraram dominante em meio às próprias massas. Assim
como o economicismo podia embotar os objetivos revolucionários de um
“partido no grande sentido histórico”, de igual modo kustarnichestvo podia
embotar sua disciplina centralizada. A palavra foi utilizada tradicionalmente
para descrever os métodos primitivos das indústrias nativas da Rússia. Resta
claro que Lênin preferia métodos de organização revolucionária apropriados
à era industrial moderna de fábricas de grande porte. Ele precisava de seus

78 R. Obolenskaia, “Propaganda i agitatsiia v period staroi Tskry*”, em Stary Bol’shevik, 1928, mai.-
jun., esp. pp. 123-132.
79 “Doklad organizatsii ‘Iskry* n s’ezdu RSDRP v 1903 g”, em Proletarskaia Revoliutsna, 1928, n° 1,
pp. 147-167, esp. pp. 148,154.
758 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

“diretores” não menos que os proprietários burgueses das fábricas precisa­


vam dos seus; precisava de seus “generais” não menos do que os protetores
tzaristas do privilégio precisavam dos seus.
Em dezembro de 1901 (o mesmo mês em que o “general”, Stepan Rad­
chenko, foi preso), Lênin usou pela primeira vez o pseudônimo “N. Lênin”
com o qual se tornaria comandante em chefe do exército revolucionário.80
Seus artigos no Iskra podem ser vistos como comunicados revolucionários
— em geral focados num único tema que, com freqüência, podia ser reduzido
a um único slogan^ que invariavelmente recrutava a emoção e o intelecto
para a consecução de algum objetivo imediato.81 Lênin via todos os seus
colaboradores do Iskra como participantes de um treino básico para uma
futura revolução, pois “a prática regular desse trabalho garantiria a maior
probabilidade de sucesso no caso de um levante”.82
Como qualquer outro exército moderno, o Partido Bolchevique de Lênin
dependia do trabalho invisível de técnicos treinados: apparatchikii como Ra­
dchenko. Seu anonimato profissional tornou quase impossível reconstruir em
sua totalidade a história do que fizeram para criar o Partido Social-democrata;
mas é possível identificar outro local em São Petersburgo que desempenhou
na virada do século um papel quase tão importante quanto o Instituto Tec­
nológico. O modelo alemão de social-democracia foi de certo modo trans­
mitido e transformado na nova e dinâmica organização revolucionária russa
através da nova fábrica Siemens-Halske em São Petersburgo. Radchenko foi
trabalhar lá depois de sua expulsão do Instituto Tecnológico em 1893; e seus
encargos técnicos lhe permitiram constante acesso a meios de transporte e
comunicação para a rede do Iskra*3 De modo similar, Krzhizhanovsky se
valeu de sua formação como engenheiro elétrico para estabelecer o mais
importante centro de atividade do Iskra no interior (em Samara);84 depois

80 Designou-se “N. Lenin” pela primeira vez em um artigo escrito para o seu jornal teórico Zaria:
“Gg. ‘Kritiki’ V agrarnom voprose”, n° 2, 3, em Sobranie, vol. v, 1967, pp. 99-156 (concluído no
momento em que terminava O Que Fazer?).
81 Lênin diferenciava “artigo” dos “pensamentos e esboços” sem foco dos jornalistas burgueses. V. P.
Karasev, “Iz nabliudenii nad kompozitsiei leninskikh statei”, em Problemy zhanrov v zhurnalistike,
Leningrado, 1968, pp. 5-6. Quando depois questionado a respeito, Lênin listou sua ocupação como
a de “jornalista” ou “literato”, sendo que este último termo, em sua forma russa literator, remetia
desde Belinsky a “jornalismo ideológico”. Conferir V. Karpinski, “Lénine rédacteur”, em Lénine tel
qu’il fut. Souvenirs de contemporains, Moscou, 1958, p. 382.
82 What is to be done?, p. 188.
83 Mel’nikov, “Leninets”, pp. 205-206; E. Radchenko, p. 92.
84 Krzhizhanovsky, pp. 14-15; What is to be done?, p. 13.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER; LÊNIN 759

ele foi colocado em um posto estratégico para atividade organizacional


bolchevique por Leonid Krasin, que havia trabalhado para a Siemens na
Alemanha e retornado para dar continuidade à atividade bolchevique na
Rússia na condição de representante oficial da Siemens: primeiro como
chefe da sucursal moscovita e supervisor de seu programa de eletrificação,
depois em São Petersburgo como chefe de todas as operações da Siemens na
Rússia.85 Assim, parte do dinamismo do partido proletário russo advinha da
firma capitalista alemã que tinha inventado o dínamo.
Krasin herdou o codinome revolucionário de Stepan Radchenko, “ dire­
tor”;86 assim como outros dos primeiros tecnólogos-íZp/?^nzícÁ?zfes, ele teria
importante papel na administração do novo Estado soviético.87 Mas o homem
que transformou toda a sua tecnologia tática em estratégia revolucionária
foi, claro, o próprio Lênin.

O Mestre de Obras
A característica mais distintiva de Lênin era a sua determinação obstinada
de alcançar o poder político.88 Como vimos, ele já era um revolucionário

85 Krzhizhanovsky, pp. 16-17; Krasin, pp. 195, 200, 261, 271-272. e (sobre a fase alemã) 233.
86 Krasin, p. 257.
87 Krzhizhanovsky se tornou o diretor fundador tanto da Comissão Bolchevique para Eletrificação
(GOELRO) quanto da organização que a sucedeu, a Comissão de Planejamento Estatal (GOSPLAN).
Krasin se tornou Comissário do Povo para Indústria e Comércio e depois do Transporte. Ivan
Radchenko, que tinha trabalhado com Klasson para montar a primeira estação de energia elétrica
à base de lignito em Noginsk, em 1912, tornou-se chefe do Diretório de Lignito. V. Mel’nikov,
“Organizator”, pp. 25-26.
Embora tenha passado na prisão ou no exílio a maior parte da década que vai até sua morte em
1911, Stepan Radchenko se valeu de um breve período de anistia durante a Revolução de 1905 para
dar um revólver ao seu irmão Leonty em Moscou e para trazer outro irmão, Yury, para Vologda, a
fim de que aprendesse técnica revolucionária com os que estavam lá exilados. Depois da morte de
Stepan, Yury foi preso quando um longo estudo marxista de Stepan foi descoberto no compartimento
secreto de uma arca que havia sido leiloada para pagar dívidas. Esse escrito se perdeu, de modo que
o primeiro apparatchik não deixou nenhum legado escrito. V. I. Radchenko, pp. 183-186.
88 Por mais estranho que pareça, ainda não existe nenhuma biografia ampla e rigorosa de Lênin. As
volumosas pesquisas soviéticas sobre o assunto proporcionam vasta informação, mas são sobretudo
hagiográficas e destituídas de tratamento interpretativo, que dirá crítico. A “pesquisa erudita” sobre
Lênin na União Soviética está mais ou menos no mesmo estado que a pesquisa erudita cristã sobre
Jesus antes que a crítica bíblica moderna levantasse questões básicas de texto e de interpretação.
A “busca pelo Lênin histórico” ainda não é aceitável para aqueles que controlam o acesso aos
documentos. Um resenhista ocidental recente do principal hagiógrafo soviético vê Lênin tratado
não como um agente histórico, mas como uma figura, a validar a relação entre uns acontecimentos
e outros, e a todo momento representando “um objetivo iminente no curso dos acontecimentos” (A.
Kimball, *1.1. Mints and the Representation of Reality in History”, em Slavic Review, 1976, dez.,
p. 716).
Materiais antes pouco utilizados são incorporados em Fischer, Lenin, a melhor biografia geral;
mas esta deve ser complementada (especialmente quanto ao período inicial da carreira) com Ulam,
760 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

profissionai antes mesmo de se tornar marxista; e relacionou a sua nova


doutrina de modo mais insistente com a luta pelo poder do que o fizera
o próprio Marx. É quase impossível imaginar Lênin, no exílio, a seguir o
exemplo de Marx, de modo a escrever artigos pagos e sobre temas variados
para a imprensa “burguesa” e a devotar muitos anos de sua vida a escrever
uma grande obra puramente teórica como O capital. Ele jamais se sentiria
tão em casa no Museu Britânico quanto se sentia Marx, o doutor formado
em filosofia na era de ouro de Berlim. Lênin estudou de modo intermitente e
escreveu com rapidez. Sua carreira universitária abreviada prematuramente
o familiarizou não com a filosofia clássica, mas com a área do saber mais
política que se podia estudar em Kazan e São Petersburgo: o direito.
Lênin havia adotado o marxismo como uma alternativa necessária à via
populista para destruir a autocracia. Adotou o marxismo não como um corpo
de crítica para compreender a sociedade, mas como um programa pronto
para mudá-la. Ao contrário de muitos outros intelectuais marxistas na Rússia,
Lênin aderiu de modo quase acritico ao principal esquema de interpretação
do marxismo até seu impulso final rumo ao poder, tendo modificado ligei­
ramente a doutrina apenas durante e após a Revolução de 1905.
Como vimos, durante esse período de exílio anterior à Revolução ele criou
um “partido de um novo tipo” para liderar a luta. Ao fazê-lo, amparou-se
mais no Marx que periodicamente se identificava com Blanqui do que com
o Marx e Engels que depois se acomodaram à social-democracia alemã. No
Iskra, por mais que este fosse um jornal, Lênin estava menos definindo uma
doutrina do que se dirigindo a um destino. No seu primeiro esboço de um
plano de batalha, “Carta a um Camarada sobre Nossas Tarefas Organiza­
cionais”, ele se descreveu como alguém que rege uma orquestra. O regente
precisa saber “com precisão quem está tocando qual violino e onde [...] quem
está tocando errado [...] e quem deve ser transferido para outro lugar de
modo a corrigir a dissonância”.89 Sua auto-imagem em O que fazer? é a de

Bolsheviks, Shukman, Lenin, e D. Treadgolg, Lenin and His Rivals, NY, 1955. V. também R. Theen,
Lenin: genesis and development of a revolutionary, Filadélfia, 1973; B. Wolfe, Three who made a
revolution, NY, 1948; e An Ideology in power, NY, 1969; L. Schapiro e P. Reddaway (ed.), Lenin:
The Man, the Theorist, the Leader: A Reappraisal, NY, 1967; e a bibliografia de materiais em línguas
ocidentais em G. Heltai, Books on Lenin, s/1., 1969.
Urna nova e ambiciosa tentativa de sugerir que a ideologia era a característica essencial do leninismo
(a realização de uma tradição revolucionária inerentemente “gnostica”) està em A. Besançon, Les
origines intellectuelles du léninisme, 1977. “Lênin não sabe aquilo em que acredita. Ele acredita que
sabe” (p. 15).
89 Citado em Utechin, O que fazer?, p. 20.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 761

um mestre de obras que “dispõe uma linha [...] visível a todos”, de maneira
que cada fileira de tijolos terá uma linha a seguir — com cada indivíduo
dispondo tijolos separados, mas sabendo que existe “um objetivo final do
trabalho feito em conjunto”.90 Lênin não estava menos definindo uma linha
geral do que delineando um caminho específico. Quando tentava orquestrar
os sons que vinham da Rússia, notava duas formas principais de dissonância.
Seu gênio especial está em demonstrar que a dissonância da “direita” e da
“esquerda” tinha uma mesma fonte básica: a “espontaneidade”.
A contra-força necessária a essa dissonância era a “consciência”, a fonte
de disciplina num movimento que, de outro modo, seria amorfo. Mas a
consciência deve ser uma fonte de disciplina, não de dissipação. Daí que
o tratado de Lênin se inicie com um ataque à “liberdade de crítica” como
um slogan perigoso que levaria de modo inevitável à diluição da militância
revolucionária em reformismo democrático.91 A liberdade de crítica dava
origem ao “oportunismo”, “economicismo” e “sindicalismo” que ofuscavam
a crença marxista básica na luta de classes como a força que move a história.
Sem o auxílio da “consciência” mais elevada de uma ideologia revolucioná­
ria, em toda parte a classe operária corria o risco de se limitar ao impulso
“espontâneo” de satisfazer seus desejos imediatos. Os trabalhadores ficavam,
assim, vulneráveis ao suborno da burguesia, que se tornou ideologicamente
respeitável através da ideologia do “economicismo”.
Mas também os terroristas da esquerda incorriam no pecado da espon­
taneidade. Intelectuais burgueses que eram, não podiam transcender suas
origens de classe. Como resultado, a classe operária se infectava com a “es­
pontaneidade da mais ardorosa indignação dos intelectuais” que produzia
violência aleatória, e não um efeito acumulativo.92
Desse modo, Lênin criou a técnica do claro-escuro das polêmicas comunistas
modernas: o realce de uma nova linha de ação por meio do obscurecimento
de rivais que haviam se desviado à “esquerda” ou à “direita” — terrorismo e
economicismo, “aventureirismo” e “atavismo”, “exterminadores” de direita
e de esquerda após o fracasso da revolução de 1905 e, por fim, na época
pós-revolucionária, a “doença infantil” do “esquerdismo” e a “lambeção de
botas”, isto é, o “capitulacionismo” do “renegado Kautsky”.93 Stálin ritu-

90 Ibid., p. 177.
91 “What does ‘Freedom of Criticism’ mean?”, em What is to be done?, pp. 40-44, também 58-60.
92 Ibid., pp. 100,140,191.
93 Os dois mais importantes escritos prescritivos de Lênin, com significância programática geral para
762 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

alizou esse processo, transformando-o na fórmula de governo que alterna


expurgos da “esquerda” e da “direita” (a começar, respectivamente, com
Trótski e Bukharin).94
Para Lênin, contudo, o marxismo era o cimento ideológico de que um
movimento revolucionário sob assédio precisava — e não o betume flexível
para um manipulador que se arroga o direito de avalizar o poder. Em vez de
mais “teorias de revolucionários”, o movimento russo precisava de uma “teoria
revolucionária” e de uma vanguarda “consciente” apta a implementá-la. Desse
modo, Lênin lançava sua convocação a que se formasse uma organização
secreta e hierárquica de revolucionários profissionais em tempo integral, com
o propósito de construir um novo tipo de partido.
A inovação de Lênin na tradição revolucionária russa está em sua insistên­
cia de que esse era um partido marxista cujos interesses coincidiam em sua
totalidade com os da classe proletária. A relação do seu partido de vanguarda
com a classe operária era antes a do sistema nervoso central para com o corpo.
Era indispensável para o corpo, mas igualmente inseparável dele. As células
individuais desse sistema nervoso estavam, assim, inseparavelmente ligadas
tanto ao sistema nervoso de que eram parte subordinada quanto à parte
específica do corpo em que funcionavam. Logo, “a centralização das funções
secretas da organização não significa de modo algum a centralização de todas
as funções do movimento”.95 Os leninistas eram compelidos a tomar parte
de todas as formas de atividade que fossem genuínas expressões do interesse
da classe proletária (“o movimento”), mas deviam a todo momento a sua

o movimento internacional depois da chegada ao poder, são A Revolução Proletária e o Renegado


Kautsky (escrito no outono de 1918, publicado em L, 1920) e Esquerdismo, Doença Infantil do
Comunismo (escrito e publicado na primavera de 1920, distribuído pela primeira vez no crucial
Segundo Congresso da Internacional Comunista de julho daquele ano).
Uma realização polêmica especialmente brilhante de sua campanha no período prévio à Primeira
Guerra Mundial contra os “liquidadores de direita” (mencheviques) e os “liquidadores de esquerda”
(a facção bolchevique de Bogdanov, que com freqüência era dominante até dentro da Rússia) foi
seu sucesso em ridicularizar e unir os “buscadores de Deus” genuinamente cristãos e conservadores
com os “construtores de Deus” ultra-revolucionários. V. J. Scherrer, “‘Ein gelber und ein blauer
Teufel’. Zur Entstehung der Begriffe ‘Bogostroitel’stvo’ und ‘Bogoiskatel’stvo”, em Forschungen zur
osteuropäischen Geschichte, vol. xxv, 1978, pp. 319-329. Outro ato de engenhosidade polêmica
de Lênin foi relacionar a insistência dos bolcheviques de esquerda em pedir a revogação dos
deputados social-democratas eleitos para a Duma (“revogalismo”, otzovizm), com sua ênfase na
construção de urna nova cultura proletaria dentro da pròpria classe operária (“construção de Deus”,
bogotsroitePstvo), ao suposto pecado do “deus-revogalismo” (bozhestvenny otzovizm).
94 Isaiah Berlin chamou isso de “dialética artificial” de alternância planejada entre relaxamento e terror
e nela viu a contribuição especial de Stálin para a política do século xx. V. O. Utis, “Generalissimo
Stalin and the Art of Government”, em Foreign Affairs, 1952, jan., pp. 197—214.
95 What is to be done?, p. 145.
LIVRO ni, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 763

lealdade mais fundamental ao partido: o órgão da “consciência”, o único


capaz de dar uma direção ao movimento. Desde o começo, portanto, havia
algo de provisório na lealdade dos leninistas a qualquer coisa de exterior à
sua organização de elite. Lênin não deixou dúvidas sobre sua determinação
de impor essa disciplina ao colocar no frontispício de seu livro, como se em
resposta ao título O que Fazer?, a citação de uma carta de Lassalle a Marx
durante o período em que ambos eram próximos de Blanqui: “Luta partidária
dá ao partido força e vitalidade, a maior prova de fraqueza de um partido
é a sua dispersão e a atenuação de fronteiras rigidamente estabelecidas, um
partido se fortalece na medida em que submete a si próprio a expurgos [...]”.96
Lênin seguiu com sua luta no Segundo Congresso do Partido Operário
Social-democrata Russo realizado em Bruxelas e Londres de 17 de julho a
10 de agosto de 1903. Saiu de lá com o nome e o núcleo do seu “partido de
um novo tipo”, o bolchevismo. Sua facção tirou seu nome, “a maioria”, da
posição que ganhou ao empregar o que se tornaria uma técnica “bolchevique”
clássica: ter absoluta persistência na afirmação de suas posições e jamais ir
embora das reuniões. Lênin estava em clara minoria numa votação crucial
quando o congresso rejeitou formalmente sua insistência numa definição
partidária que enfatizasse a disciplina central e o comprometimento em tempo
integral dos correligionários.9798Mas ele perseverou; e o apoio majoritário à
formulação mais democrática de Martov se desfez quando os representantes
do Bund judeu e os “economicistas” deixaram o congresso em protesto contra
outras questões. Lênin se valeu de sua maioria temporária para eleger seus
partidários para o conselho do Iskra, designado oficialmente o órgão central
do partido, e para o Comitê Central. Embora ao fim do ano ele viesse a per­
der sua maioria no Iskra (e depois no Comitê Central), o bolchevismo havia
nascido; e o grupo mais numeroso e mais aberto à discussão democrática do
partido recebeu o nome permanente de menchevique, “minoria”.9*

96 Carta de 24 de junho de 1852, What is to be done?, p. 37.


97 R. McNeal (ed.), Resolutions and decisions of the communist party of the Soviet Union, Toronto,
1974, vol. I, p. 38.
98 Uma versão menchevique clássica do conflito é Dan, “Bolshevism and Menchevism”, em Origins,
pp. 236-407. A versão leninista padrão da União Soviética é “Vtoroi s’ezd partii. Vozniknovenie
Bol’shvizma”, em P. Pospelov et al. (ed.), Istorila kommunisticheskoipartii sovetskogo soiuze, 1965,
vol. I, pp. 446-531.
O próprio Lênin usava o termo “bolchevismo’* como sinônimo de “social-democrata revolucionário”,
a implicar que os demais eram menos revolucionários. Cf. V. Mochalov, “V. I. Lenin i vozniknovenie
marksizma v Rossii”, em Voprosy Istorii, 1969, n° 4, p. 26, nota 1.
764 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Por meio de uma longa série de lutas táticas com os mencheviques, en­
volvendo muitas alianças inconstantes, Lênin se recusou continuamente a
comprometer seu conceito de centralismo democrático em prol de algum
consenso democrático. Ele condenava as “formas falsificadas” de democracia
usadas pelos políticos liberais. Temia que qualquer campanha geral por direitos
eleitorais no Império Russo poderia simplesmente levar a outro “plebiscito
imperial” que expressasse a ligação das massas camponesas com o tzar, assim
como as massas francesas tinham votado em Napoleão m." Preferia uma
“assembléia constituinte”, que nascera na Revolução Francesa como uma
expressão de entusiasmo revolucionário, e não uma legislatura popular que
poderia desviar esse entusiasmo para canais reformistas.99 100
Muitas vezes denunciado como “ultracentralizador” e “blanquista”, Lênin
agiu continuamente como se sua facção bolchevique fosse mesmo o órgão
da consciência do proletariado. Depois de criar o seu novo tipo de partido,
sua maior realização foi a adaptação da ideologia marxista ao mundo menos
desenvolvido que o Império Russo, em parte asiático, rural em sua maior
parte, representava.
O primeiro passo foi a acomodação da burguesia intelectual dentro da
vanguarda proletária. Assim como se pensava que ocorria uma misteriosa
transformação da identidade pessoal quando se entrava no círculo interno
dos Iluminados da Bavária, de igual modo, ao se entrar no partido de Lênin,
“qualquer distinção entre operários e intelectuais deve ser completamente
destruída”.101 A função de classe desse partido era, com efeito, rebatizar
intelectuais como Lênin, fazendo-os completos proletários. Esse ritual era
essencial porque os intelectuais eram necessários em qualquer elite revo­
lucionária.102 A sanção explícita a uma liderança intelectual burguesa era
fundamental em países de todo dependentes da orientação de uma pequena
elite educada. Logo após o Congresso Partidário de 1903, Lênin conclamou
de modo enérgico os “estudantes revolucionários” a elevarem sua “consci­
ência”, aceitando a liderança que ele lhes proporcionava.103

99 O. Znamensky e V. Shishkin, Lenin, revoliutsionnoe dvizhenie i parlamentarizm, Leningrado, 1977, p.


17 ss. Talvez reflexo de uma temor das idéias “eurocomunistas”, esse livro tem abordagem contrária
à possibilidade de acomodar o leninismo a formas democráticas.
100 Ibid., pp. 22-25.
101 What is to be done?, p. 100.
102 Ibid., p. 63.
103 “Zadachi revoliutsionnoi molodezhi”, em Student, 1903, set.; Polnoe sobranie, vol. vii, p. 355.
V. também P. Gusiatnikov, “Bor’ba V. I. Lenina, iskrovetsev za revoliutsionno-demokraticheskoe
studenchestvo (1901-1903 gg.)”, em Voprosy Istorii KPSS, 1969, n° 1, pp. 30-37.
LÏVRO ni, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 765

Mais inovadora ainda era a disposição de Lênin a acomodar o campe­


sinato em sua aliança de forças progressistas. Valendo-se de uma metáfora
industrial, depois falaria de uma fusão metálica (smychka} ou “braçadeira”,
que junta operários e pobres mujiques. Em seus volumosos escritos dos
anos de 1902 e 1903 sobre os “pobres do campo”, baseou-se bastante na
análise kautskiana e em exemplos alemães; considerou que a única esperan­
ça do campesinato estava em sua transformação de proletariado rural em
massa de trabalhadores assalariados. Mas, tão logo irrompeu a revolução
em 1905, logo se deu conta da inadequação da fórmula marxista clássica
de uma “ditadura do proletariado” como forma indicada de governo re­
volucionário. No início de março de 1905, ele esboçou um artigo no qual
sugeria que o proletariado e o campesinato pobre constituíam juntos “os
verdadeiros portadores desta revolução”. Expressava o medo de que um
levante isolado do proletariado pudesse levar apenas a uma “espontânea
ditadura do proletariado”,104 a qual provavelmente seria arrasada por uma
onda contra-revolucionária, como acontecera ao proletariado parisiense
amotinado em junho de 1848.
Em congressos partidários rivais realizados em abril de 1905, os bolche­
viques mostraram um mais pronunciado interesse do que os mencheviques
em incitar e organizar o campesinato, embora reconhecendo que as massas
rurais eram “espontâneas e politicamente inconscientes”.105 Depois, no
verão de 1905, o panfleto Duas Táticas de Lênin propôs uma redefinição
marxista do governo provisório na sociedade pós-revolucionária como uma
“ditadura revolucionário-democrática do proletariado e do campesinato”.106
Lênin retornou de seu exílio suíço em 1905 durante a agitação da
greve geral, ficando na Rússia em meio ao que chamou de “turbilhão re­
volucionário”. Dois meses de malfadada incitação à insurreição armada
foram sucedidos por dois anos de consolidação organizacional dentro do
Partido Social-democrata, o qual se reuniu nominalmente no Congresso
de Estocolmo de 1906 e formalmente reconheceu o princípio do “centra­
lismo democrático”.107 Lênin recomendava que se boicotasse as eleições da
primeira Duma e se participasse das eleições de uma segunda Duma; mas,
104 “Sotsial Demokratiia i revoliutsionnoe dvizhenie krestianstva”, em Polnoe sobranie, vol, ix, pp.
409-410.
105 Resolutions, p. 63. Comparar com a rejeição menchevique específica do “emprego do terror agrário”
(p. 78).
106 Two tactics of Social Democracy in the Democratic Revolution, NY, 1963, pp. 65-73.
107 Resolutions, p. 94. Na verdade, o termo surgiu com os mencheviques (pp. 82-83).
766 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

como as Dumas foram prorrogadas e o governo revolucionário retrocedeu,


ele mais uma vez se retirou à emigração em novembro de 1907.
Sua principal obra no exílio (Materialismo e Empiriocriticismo, de 1908)
parece a qualquer cabeça ocidental educada um exercício estranhamente da­
tado e empolado de polêmica exagerada contra filósofos da ciência há muito
tempo esquecidos. Ainda assim, esse livro foi importante para Lênin no que
diz respeito à sua defesa da pretensão marxista de representar a verdade cien­
tífica. A insistência na natureza científica do seu próprio marxismo o tornou
mais atraente às elites ocidentalizadas de países menos desenvolvidos. Para
elas, a ciência representava menos uma introdução ao método experimental
de laboratórios do que a aceitação de verdades definitivas capazes de abalar
as bases da religião tradicional. O partido de um novo tipo criado por Lênin
proporcionou, portanto, não só um veículo para as ambições dos intelectu­
ais, mas também para suas visões semi-religiosas de transformação social
apocalíptica e para sua necessidade semifamiliar de rituais de agregação e
auto-afirmação.
Sua combinação de intensidade política com pretensões científicas produziu
uma importante mudança na atitude marxista para com a religião. Por um
lado, sua atitude prévia à revolução de 1905 era politicamente pragmática e
muito mais flexível do que a dos mencheviques e outros marxistas. Iskra fez
muito uso dos canais já rotineiros de contrabando de livros religiosos para
dentro da Rússia;108 e em O que fazer? Lênin viu em muitos dos sectários
religiosos “um meio e ocasião de agitação política, de um meio de levar as
massas à luta política”.109 No Congresso de 1903, um dos colaboradores
mais próximos de Lênin propôs uma aliança com esses “elementos demo­
cráticos populares” na luta contra a “democracia burguesa”. Argumentou
que os social-democratas poderíam ajudar a elevar a “consciência política
dos milhões que compõem a democracia do povo”110; ele lançou um jornal,
Rassvet (A Aurora), e uma campanha — com o assentimento de Lênin — para
trabalhar com dissidentes religiosos “a fim de levá-los à social-democracia”.111
108 O. Piatnitsky, Memoirs of a bolshevik, Westport, Connecticut, 1973, p. 56.
109 Citado e discutido em B. Bociurkiw, “Lenin and Religion”, Schapiro e Reddaway (ed.), Lenin, p.
13.
110 V. Bronch-Bruevich, a partir do texto de seu relatório ao congresso presente em Rassvet, 1905, n°
6-7, p. 173. Esse pode ter sido o primeiro emprego do termo “democracia do povo”.
111 Resolução do congresso (notavelmente menos entusiástica do que a formulação de Bonch-Bruevich),
citado em Bociurkiw, p. 115.
A ambiciosa tentativa que antes Herzen havia feito de recrutar os Velhos Crentes para a luta
revolucionária, no início dos anos 1860, é mostrada como algo não inteiramente irrealista (a despeito
LIVRO Ill, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 767

Conforme se aproximou a revolução de 1905, contudo, Lênin passou


do mero anticlericalismo a uma posição de militância contra a religião. No
ápice das expectativas revolucionárias um pouco mais tarde naquele mesmo
ano, Lênin rompeu de modo decisivo com o que tinha sido até então a visão
de praxe dos social-democratas europeus desde o Programa de Gotha — a
religião era uma questão privada. Insistia que, embora as crenças religiosas
possam ser privadas com relação ao Estado^ “sob circunstância alguma po­
demos considerar a religião uma questão privada frente ao nosso partido”,112
Nenhuma religião passada nem tampouco futura, ainda que fosse uma re­
ligião do proletariado,113 era aceitável. A “ciência” do marxismo era tanto
necessária como suficiente para a salvação e tinha em Lênin o seu infalível
e único papa secular.
A doutrina de Lênin atraía em especial os intelectuais de nacionalidades
oprimidas dentro e além do Império Russo. Em essência, ele previu o fim
de toda identidade nacional na revolução social vindoura; já no Congresso
de 1903, expressou o ódio e a suspeita que os centralizadores nutriam pelo
princípio federalista, sentimentos que remontavam à crítica dos jacobinos
aos girondinos. Mas, em seu primeiro escrito sobre a questão nacional, de
1903, reconheceu que a “autonomia” das nacionalidades oprimidas poderia
ser necessária em virtude das condições russas,114 e comemorou a entrada de
“material inflamável na política mundial”115 quando a revolução na Rússia
foi acompanhada de levantes na Pérsia, em 1906, e no Império Otomano,
em 1908, neste caso um movimento liderado pela organização Jovens Tur­
cos. Lênin estava aberto à idéia de que “o operário europeu tem camaradas
asiáticos” e se opôs de modo violento ao apoio a qualquer causa nacional na

de seu total fracasso) na tese inédita de R. Call, “The Revolutionary Activities of the Kologol Group
among the Raskolniks”, Bloomington, 1964.
112 “Sotsializm i religiia”, em Novaia Zhizn\ 3 de dezembro de 1905; B. Bociurkiw, p. 116.
113 Sobre a luta de Lênin contra o principal defensor de urna cultura proletária e de uma espécie de
religião proletária, v. D. Grille, Lenins Rivale: Bogdanov und seine Philosophie* Colônia, 1966, e
A. Yassour, “Bogdanov et son oeuvre”, em Cahiers du Monde russe et soviétique* 1969, out.-dez.,
para uma volumosa bibliografìa. Amostras do grande estudo em andamento de J. Scherrer sobre o
enfrentamento geral dos “bolcheviques de esquerda” de Bogdanov a Lênin (e àquilo que eles foram
os primeiros a chamar de leninismo) se encontram em “Gor’kij, Bogdanov, Lenin. Neue Quellen zur
ideologischen Krise in der bolschewistischen Fraktion (1908-1910)”, em Cahiers du monde russe
et soviétique* 1978, out.-dez., pp. 321-334.
114 M. Holdsworth, “Lenin and the Nationalities Question”, em Schapiro e Reddaways (ed.), Lenin*
pp. 270-272, observa que a autonomiia não implicava para Lênin a independência total que essa
palavra sugere para o leitor moderno de língua inglesa.
115 “Goriuchy material’ v mirovoi politike”, em Profetarli* 23 de julho de 1908; Polnoe Sobranie, vol.
XVII, pp. 174-183.
768 A FÉ REVOLUCIONÁRIA. SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Primeira Guerra Mundial. Opôs-se ao esforço de guerra com um pequeno,


mas enérgico grupo de social-democratas de esquerda na Suíça, entre 1914 e
1916; foi mais longe do que todos ao aclamar a derrota do seu próprio país.116
Sua mais destacada obra desse período esquematizou para os países menos
desenvolvidos uma demonologia de fácil compreensão.117 O imperialismo
era a etapa “superior” ou final do capitalismo, e a guerra, seu inevitável
subproduto. A guerra não era a política praticada de modo consciente por
alguém, era a forma do colapso convulsivo que o capitalismo assumiu em
sua última etapa, quando os grandes Estados capitalistas consumiam os
menores e o proletariado tanto deles como o seu. A tarefa do proletariado
era transformar a guerra entre nações numa guerra civil entre classes.
A teoria de Lênin do imperialismo levava a luta de classes ao nível de um
apocalipse global. Nessa última etapa, a burguesia européia tinha perdido
todas as características progressistas que antes tivera. Era agora dominada
por banqueiros parasitas que não tinham nenhuma função inovadora — na
verdade, eles tinham começado a guerra “grampeando cupons”. Quanto
às terras asiáticas de menor desenvolvimento, contudo, Lênin acreditava
que lá a burguesia ainda poderia ter potencial revolucionário; e uma das
primeiras proclamações do novo regime bolchevique foi a “Declaração dos
Direitos dos Povos Trabalhadores e Explorados”.
Assim como a besta de nove cabeças no Livro do Apocalipse, as “bestas
devoradoras” do capitalismo financeiro eram, para Lênin, um sinal de que
o fim da história estava próximo. O milênio, é claro, era a vindoura socie­
dade sem classes. E assim como o anticristo precedia o verdadeiro Cristo na
escatologia cristã, também a guerra imperialista havia concentrado poder
e mobilizado as massas de tal modo que tornava mais fácil a tomada de
poder pelos proletários.
A oportunidade de chegar ao poder surgiu no fim da Primeira Guerra
Mundial, quando o Império Russo se encontrava abalado com a morte
de cinco milhões de cidadãos e com a remoção de outros quinze milhões
da economia. Chegado o inverno de 1916, com o suprimento de cereais a

116 V. seu “Tarefas da Social-democracia na Guerra Européia” e os manifestos das conferências


internacionais em Zimmerwald em 1915 e Kienthal em 1916 (H. Gruber, International communism
in the Era of Lenin, Ithaca, 1967, pp. 53—80).
117 Imperialism, the highest stage of capitalism, escrito em 1916 e publicado pela primeira vez em
russo depois de seu retorno em 1917. Para breve discussão a respeito, v. M. Holdsworth, “Lenin’s
Imperialism in Retrospect”, em Essays in honour of E. H. Carr, pp. 341-351. Para maiores detalhes,
J. Freymond, Lénine et Uimpérialisme, Lausanne, 1951.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 769

mingar e a inflação em 800%, a Rússia foi atingida por três ondas de cho­
que sucessivas. Primeiro veio a revolta “de cima” com origem nos liberais
moderados, o assim chamado bloco “progressista” da Duma. Em janeiro
de 1917 eles mataram Rasputin, o símbolo da decadência imperial, e bus­
caram estabelecer uma regência sob o comando do Grão-Duque Miguel
que garantiria um governo constitucional responsável, com direitos civis
e autonomia local. A segunda insurgência veio “de baixo” no dia 8 de
março de 1917, quando protestos nas ruas de São Petersburgo levaram a
um confronto com mil mortos e à substituição do regime tzarista por um
Governo Provisório comprometido com a convocação de uma Assembléia
Constituinte. Ao mesmo tempo, o comitê executivo dos sovietes de São Pe­
tersburgo criou uma autoridade operária independente, que se desenvolveu
de modo contínuo e paralelo ao poder do governo democrático provisório
e criou contrapartes em outras cidades no breve período entre a queda do
regime tzarista, em março de 1917, e o triunfo do bolchevismo em novembro.
A terceira onda de choque foi o golpe de estado bolchevique, planejado
e executado por Lênin depois do seu retorno da Suíça a São Petersburgo
em abril. Ele trouxe consigo a aura de uma autêntica alternativa à Rússia
que sofria e brigava transtornada pela guerra; e ele se pôs à prova nos
estonteantes seis meses que terminaram com a sua própria revolução,
revelando-se um mestre estratégico a beirar a genialidade.
O seu primeiro e mais decisivo passo foi se identificar, em uma época de
generalizada confusão, com a mais utópica das posições revolucionárias: a
visão anarquista do fim iminente de toda autoridade. Lênin percebeu que,
numa época em que os laços tradicionais haviam se rompido, a posição
mais extrema poderia de repente se tornar a mais prática para a mobili­
zação das massas. Assim, logo após a queda do tzar e antes de retornar
à Rússia, Lênin pediu que lhe enviassem os escritos de Bakunin sobre a
Comuna de Paris. Logo escreveu o seu grande e influente tratado de 1917,
Estado e Revolução. Era uma obra de fantasia anarquista — note-se que
uma fantasia que em dado momento Marx compartilhou com Bakunin,
quando ambos estavam entusiasmados com o potencial criativo das novas
formas de autogoverno operário reveladas na Comuna de Paris.
Com a paixão de um anarquista, Lênin rejeitou os órgãos parlamentares
da burguesia, considerados elementos que frenavam a revolução. Ele via
aquele momento como um daqueles períodos em que a história se move como
770 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

uma locomotiva a toda velocidade, e não como um “lento cargueiro”.118 Nesse


momento, era preciso “armar o povo”, era preciso que “o povo constituído
em comunas”, com função política, se organizasse de modo espontâneo. Aí,
o partido de vanguarda e “consciente” deveria se harmonizar com o movi­
mento popular “espontâneo”, que almejava destruir as estruturas opressivas
do passado e criar a “democracia sem parlamentarismo”.119 A todo momento
reafirmando a sua autoridade marxista “científica”, Lênin sugeriu que a total
destruição do Estado burguês era iminente. A “ditadura do proletariado e
do campesinato pobre” que se seguiría à revolução “mirraria” no futuro
próximo. Já que toda coerção tem suas raízes na opressão de classe, todos os
instrumentos de coerção simplesmente desapareceríam numa sociedade sem
classes. Na imagem surpreendentemente utópica de Lênin, qualquer conflito
ou excesso após uma revolução proletária vitoriosa não requerería “nenhuma
máquina especial, nenhum aparato especial de supressão”.

Isso será feito pelo próprio povo armado, com a simplicidade e a agilidade com
que qualquer agrupamento de pessoas civilizadas, mesmo na época moderna,
interfere para fazer cessar um tumulto ou impedir que uma mulher seja violada.120

Tendo preservado a ortodoxia marxista durante os seus longos anos


de emigrado, Lênin de repente se apropriou não só desse sonho dos anar­
quistas, mas também das idéias mais visionárias de quase todos os outros
competidores revolucionários. Assumiu para si a insistência de longa data
dos mencheviques nos sovietes como grande instrumento de expressão
política proletária e a promoveu como único instrumento de legitimidade
política (daí seu slogan “Todo poder aos sovietes!”). Apropriou-se da de­
fesa de longa data dos socialistas revolucionários de que se expropriassem
as terras do campo (acrescendo “pão e terra” à sua demanda por “paz”,
assim formando uma trindade de reivindicações). E assumiu a perspectiva
até então rejeitada de Trótski e Parvus de que a revolução na Rússia deveria
“amadurecer” diretamente, numa seqüência “ininterrupta” que ia de uma
fase burguês-democrática a uma fase proletária.121

118 Matáforas fundamentais empregadas por Lênin durante a Revolução de 1905 e discutidas em
Znamensky, pp. 67-69.
119 Gosudarstvo i reuoliutsiia, Polnoe Sobranie, vol. xxxm, p. 48.
120 Ibid., p. 91.
121 M. Perrie mostra que a expressão e o conceito de “revolução permanente [permanentnaia]” em
Revoliutsionnaia Rossiia, Io de julho de 1905, foram na verdade utilizados pelo líder socialista
revolucionário M. Gots antes até do que Trótski e Parvus: “The Socialist Révolutionnaires on
‘Permanent Revolution’”, em Soviet Studies^ 1973, jan., pp. 411-413.
LIVRO HI, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 771

Lênin também abraçou de repente um grupo de brilhantes intelectuais


desenraizados, dos quais tinha antes mantido alguma distância. Eles propor­
cionaram o talento oratório e organizacional indispensável para mobilizar
as massas. Sua companhia no trem selado que o trouxe de volta à Rússia foi
um revolucionário judeu polonês muito talentoso, o qual tinha sido bastante
ativo na ala esquerda do movimento alemão: Karl Sobelsohn, que tirara o
seu nome de revolucionário, “Radek”, do herói de um romance inspirado
em Machajski122 e que se tornou o principal emissário de Lênin no exterior
durante os primeiros dias do novo regime. Quando de sua chegada, Lênin
recrutou em São Petersburgo um grupo antiintelectual de inclinação similar
que, chefiado por Trótski, era conhecido como “grupo inter-regional” (me-
zhraionka).123 Esses mágicos da palavra foram essenciais para a mobilização
de mentes que logo se realizou. Dois dos recém-batizados bolcheviques —
Lunacharsky e Trótski — encantaram as classes operárias de São Petersburgo
com sua oratória, assim realizando uma espécie de espetáculo de variedades
noturno no Cirque Moderne, que se tornou um centro de aglutinação popular,
bem à maneira do que fora o Cirque do Palais-Royal em Paris nos primeiros
anos da Revolução Francesa.
À medida que outras organizações colapsavam, o número reduzido de
correligionários de Lênin parecia menos um inconveniente e a estreiteza
da sua organização mais uma vantagem. Mas a fonte derradeira de força
era a disciplina pessoal rígida de Lênin. Note-se que o Partido Bolchevique
aumentou de tamanho dez vezes desde o seu momento de menor volume na
Revolução de Março, quando tinha 25 mil membros, até a tomada de São
Petersburgo seis meses depois. Mas foi o generalato de Lênin que permitiu a
esse grupo político relativamente pequeno liderar uma revolução e dominar
inteiramente o novo regime.
Se há algum elemento externo que tenha sido decisivo para que os bol­
cheviques conseguissem derrubar o Governo Provisório de Kerensky, meses
mais tarde, foi sem dúvida a decisão do líder militar conservador, o General
Kornilov, de marchar sobre Petrogrado e incapacitar fatalmente o Governo
Provisório com um ataque da direita. Essa ação de um extremo enfraqueceu o
governo centrista de Kerensky e permitiu ao outro extremo assumir crescente

122 Radek é o herói do romance Syzyfowe Prace de Stefan Zeromski, amigo de toda vida de Machajski;
v. D’Agostino, Marxism, p. 114; para uma bibliografia, v. W. Lerner, Karl Radek. The Last
Internationalist, Stanford, 1970.
123 I. Deutscher, The prophet armed, NY/L, 1954, pp. 254-262.
772 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

liderança na capital. Essa dependência dramática da esquerda para com a di­


reita na trincheira do poder aponta para um elemento profundo do nascimento
do leninismo e da história da tradição revolucionária moderna de um modo
geral. É para esse assunto sombrio que devemos agora voltar nossa atenção.

A simbiose dos extremos


A tradição revolucionária retornou, na Rússia de início do século xx, ao seu
padrão original da França de início do século xix. Como à época de Napoleão
I, também à época de Nicolau il os líderes revolucionários eram conspira­
dores de elite levados ao emprego de métodos de segredo pela caça que lhes
fazia a polícia. Em ambos os períodos, os revolucionários se empenharam em
destruir a autocracia por meio de assassinato e desafiar o domínio imperial
por meio de ideologia democrática.
A mais importante de todas as similaridades entre a época do primeiro
imperador francês e a época do último imperador russo foi a interação entre
os extremos. Na Rússia até mais do que na França, a esquerda e a direita
se influenciaram profundamente. A simbiose de extremos se tornou uma
característica decisiva e duradoura da tradição revolucionária russa.
Na primeira década do século xix, os republicanos mais extremados e os
“ultras” realistas haviam se atirado à conspiração contra Napoleão. O chefe
da polícia política revolucionária napoleonica tinha antes sido um revolucio­
nário fanático e um apóstolo de la révolution intégrale.114 A figura seminai da
Conspiração de Babeuf, Sylvain Maréchal, parece ter sobrevivido em razão de
alguma indulgência especial da polícia, se é que não mantinha relações com ela.
Mas a talvez inevitável simbiose entre os conspiradores revolucionários
e a polícia que os persegue viria a alcançar um grau ainda mais elevado no
caso russo. Como a presença policial era demasiado invasiva na Rússia do
fim do período imperial, influenciou tanto o movimento revolucionário russo
quanto a estrutura política que o movimento produziu depois de ganhar poder.*

124 E. Bramstedt, Dictatorship and political police. The techniques of control by fear, NY, 1945, p. 10 ss.,
enfatiza a importância fundadora de Joseph Fouché — tal como faz P. Wilkinson, Political terrorism,
L, 1974, pp. 51-53. Este último segue a abordagem de R. Cobb (Terreur et subsistences, 1793-1795,
1964, p. 207), ao ver a técnica de repressão preventiva a categorias suspeitas de potencial oposição
à revolução como uma grande inovação da era revolucionária — e ao atribuí-la, em grande medida,
a Fouché.
A polícia secreta prussiana, que depois proporcionou modelos para a direita, também se formou
como parte do movimento reformista prussiano de esquerda — seu pioneiro, Justus Brunner, a reagir
simbioticamente a Fouché. V. W. Obenaus, Die Entwicklung des preussichen Sicherheitspolizei bis
zum Ende der Reaktionszeit, 1940.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 773

O crescimento de uma polícia política secreta da direita na Rússia se li­


gou, desde o começo, ao desenvolvimento da organização revolucionária da
esquerda. A “Terceira Seção” da Chancelaria Imperial Russa tinha sido criada
em reação direta ao levante dezembrista de 1825. Embora de jure fizesse
parte da chancelaria do tzar, ela permaneceu uma organização pequena, na
prática dependente da extremamente visível gendarmaria de uniforme azul.
Ela havia deixado de ser eficiente muito antes de ser abolida em 1880, pois
só conseguia lidar com indivíduos, não com organizações. O movimento
revolucionário russo havia ingressado na etapa de organização profissional,
de modo que a polícia havería de dar resposta adequada.
A polícia secreta russa se originou com a formação de uma “divisão de
defesa da ordem (po okhrane poriadka) e segurança” da polícia peters-
burguesa depois do primeiro atentado à vida do tzar em 1866. Em meio à
renovada onda de assassinatos, um novo Departamento de Polícia Estatal
foi criado em 1880 com seções especiais para a defesa da ordem em Mos­
cou e Varsóvia.125 A nova organização secreta não tinha nada da posição
privilegiada e externa à burocracia de que gozara a recém-abolida Terceira
Seção do tzar. Começou com um pequeno grupo de seções especiais de se­
gurança (okhrannye otdeleniia) da polícia sob a assistência do ministro do
interior. Mas — sobretudo depois do estabelecimento de uma sede segura
no quinto andar do quartel-general da polícia de São Petersburgo, em 1898
— a Okhrana [A Sentinela], como é chamada contínua e incorretamente,
se tornou um vasto império policial. Sete novas seções foram estabelecidas
nas províncias em 1902; e sua jurisdição chegou a novas áreas de segurança
(okhrannye okrugi), que em 1914 eram algo entre 17 e 26, com outras 26
seções especiais e talvez até 77 escritórios distritais.126

125 Sobre a estrutura básica, v. E Zuckerman, “Vladimir Burtsev and the Tsarist Political Police in
Conflict, 1907-1914”, em Journal of Contemporary History, 1977, jan., p. 215, nota 11. Sobre sua
história e vários outros detalhes, v. os dois primeiros capítulos de sua tese de doutorado inédita: “The
Russian Political Police at Home and Abroad (1880-1917): Its Structure, Functions and Methods
e Its Struggle with the Organized Opposition”, Universidade de Nova York, 1973, pp. 1-92 — no
qual é utilizado o valioso arquivo da agentura estrangeira de Paris, hoje no Hoover Institution em
Stanford. Outra obra inédita identificada por L. Gerson (The secret police in Lenin’s Russia, Filadélfia,
1976,p. 325) como “Esboço de uma Tese de Doutoramento” em Columbia, 1957,é E. Hollis, “Police
Systems of Imperial and Soviet Russia”. Para um relato impresso em edição disponível, v. R. Hingley,
The Russian Secret Police: Muscovite, Imperial Russian and Soviet Political Security Operations
1565-1970, pp. 69-116. V. também a tese de doutorado em andamento (Universidade de Tel Aviv)
de N. Schleifmann, “The Role and Influence of Agents Provocateurs in the Russian Revolutionary
Movement: 1902-1917”.
126 Zuckerman, Police, pp. 5, 8,19, 25, 39,44-46; também “Burtsev”, p. 215, nota 11.
774 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A reorganização do Departamento de Polícia Estatal, em 1883, que o


transformou no Departamento de Polícia com atribuições de segurança polí­
tica, produziu uma estrutura organizacional à altura do profissionalismo dos
revolucionários. A polícia atuava com os poderes de exceção criados pela lei
de agosto de 1881 que permitia a implantação de ditadura militar em qualquer
área onde ‘‘condições alarmantes” tenham se apresentado em meio às gentes.
Esse “extraordinário poder de defesa” [chrezvychainaia okhrana]127 poderia
ser utilizado apenas com aprovação do tzar, mas na prática foi invocado com
freqüência nos últimos anos do Império Russo. Também a polícia secreta da
era soviética iniciou suas operações policiais mais amplas na condição de
“comissão extraordinária” [chrezvychainaia komissiia-Cheka], supostamente
de modo temporário e por emergência.
A campanha anti-revolucionária de Alexandre m foi a princípio dirigida
por uma organização de emergência criada diretamente dentro da corte
imperial: a Irmandade Sagrada [sviashchennaia druzhina]. Ela publicou um
jornal de provocação em Genebra chamado Pravda [Verdade] com a finali­
dade de desacreditar os revolucionários, identificando-os com o extremismo.
A Irmandade planejou assassinar destacados revolucionários no exterior,
enquanto negociava com outros um trato para que não houvesse perturba­
ção na coroação do novo tzar. Mas essa organização foi desfeita em 1882,
quando a emergência já tinha passado; e seus arquivos foram entregues a
uma nova seção estrangeira do Departamento de Polícia, que na verdade se
tornou o braço estrangeiro da Okhrana.
O resultante crescimento das atividades policiais no exterior centradas na
embaixada de Paris predispôs o Império Russo a uma crescente dependência
para com a França, onde as tradições de agentes provocateurs e de informantes
pagos tinham atingido novo nível de sofisticação sob o governo de Napoleão
ni128 e onde a Comuna de Paris havia deixado os conservadores num estado
de perpétua vigilância contra-revolucionária. O sistema de identificação dos
prisioneiros e arquivamento policial que serviu de base para o sucesso da
Okhrana (o sistema Bertillon) foi inteiramente importado da França.129

127 H. Senton-Watson, The Russian Empire 1801-1917, Oxford, 1967, p. 464.


128 Bramstedt, “The Political Police under Napoleon m”, em Dictatorship, pp. 35—49.
129 Zuckerman, Police, p. 64. A colaboração com a polícia alemã parece ter se concentrado na entrega
de suspeitos (o que é discutido pelo poeta social-democrata e crítico Karl Frohme, Politische Polizei
und Justiz im monarchistischen Deutschland, Hamburgo, 1926), embora essa interação tenha
aumentado com a fundação de uma agentura berlinense em 1893.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 775

A campanha anti-revolucionária com centro em Paris proporcionou um


campo de testes para a estratégia de emprego paralelo de informantes externos
e de penetração interna dos grupos revolucionários. Um líder dessa incursão
no exterior, Peter Rachkovsky, acabou em 1886 com a última prensa de agen­
tes da organização Vontade do Povo emigrados em Genebra. Sua descoberta
de revolucionários com bombas em Paris, quatro anos mais tarde, ganhou
imensa publicidade a fim de desacreditar o movimento revolucionário pe­
rante a opinião pública liberal e para ajudar a aplainar o caminho da maior
cooperação policial russo-francesa nos anos que culminariam, em 1894, na
aliança histórica dos dois governos.130
Dentro da Rússia, a polícia secreta amadureceu rapidamente suas téc­
nicas de penetração e provocação. Muitas das autoridades policiais eram
alemães bálticos disciplinadores como V. K. Plehve, que se tornou diretor do
Departamento de Polícia em 1881, vice-ministro do interior de 1884 a 1892
e ministro do interior e chefe da gendarmaria de 1902 até julho de 1904,
quando os terroristas o explodiram com uma bomba.
O sul da Rússia, de onde a violência terrorista viera pela primeira vez
a São Petersburgo nos anos 1870, tornou-se o principal palco de ação da
contra-violência governamental dos anos 1880. Kiev recebeu o codinome
de skorpion [escorpião] na muitas vezes anodina linguagem codificada da
Okhrana.131 O General Strelnikov, que deu início a revistas e prisões em
massa e a pogroms em Kiev, foi assassinado em março de 1882 por Stepan
Khalturin, que antes havia tentado explodir o Palácio de Inverno e se tornou
o último assassino-mártir bem-sucedido da Vontade do Povo.
Em resposta, a polícia desenvolveu uma nova forma de profissionalismo
exemplificada pelo tenente-coronel Gregory Sudeikin na Okhrana de São

130 V. o relato de Leonid Men’shchikov, líder da Okhrana de Moscou, que tinha antes se envolvido com
o movimento revolucionário e que alegou, depois da Revolução de Outubro, ter sempre trabalhado
em segredo por ela: “Parizhskie ‘Bombisty’”, em Okhrana i revoliutsiia, 1925, cap. 1, pp. 89-93.
Os papéis de Men’shchikov estão na coleção Nikolaevsky do Hoover Institution, Stanfod; e suas
notas e complementos a uma cópia da história de V. Agafonov do escritório da Okhrana em Paris
(Zagranichnaia okhranka, Retrogrado, 1918) està na Biblioteca da Universidade de Wisconsin. Cf.
nota de A. Senn em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1978, out.-dez., p. 444.
Sobre o contexto político mais amplo no qual a emigração revolucionária operava em Paris
durantes os anos 1880 e 1890, v. a tese de doutorado inédita de M. Millard, “Russian Revolutionary
Emigration. Terrorism and Political Struggle”, Rochester, 1973.
131 Zuckerman, Police, p. 80 ss. sobre esse e outros codinomes que os revolucionários depois adotaram
com freqüência como meio de sátira ou bravata. Em meio à torrente de jornais radicais que surgiram
durante a Revolução de 1905, havia o Skorpion — assim como o Vampir (Vampiro), Pulemet
(Matralhadora), Yad (Veneno) etc. Todos esses estão na Biblioteca da Universidade de Wisconsin
(Senn, p. 447).
776 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Petersburgo. Ele começou a recrutar presos políticos para ser agentes-duplos,


como foi o caso de Serge Degaev, que se tornou um agente da polícia den­
tro da liderança sobrevivente da Vontade do Povo. Embora depois Degaev
tenha mudado de idéia e assassinado Sudeikin como uma espécie de ato de
expiação,132 o estrago estava feito. Estava dado o precedente de confusão de
identidades entre os impérios clandestinos da direita e da esquerda na Rússia.
Sudeikin dizia, ao que parece com sinceridade, que somente a colaboração
entre a Okhrana e a Vontade do Povo propiciaria as reformas que Alexandre
ir havia promovido por meio de instituições liberais. O argumento de que as
reformas na Rússia só poderiam ocorrer por meio da polícia, e não contra
ela, aparentemente persuadiu Degaev a colaborar com a Okhrana.
O contínuo embate entre a polícia e os revolucionários ocorreu num mundo
crepuscular de acordos tácitos, alianças pessoais e até mútua admiração. O
combate corpo a corpo às vezes levava à união em segredo. Nomes que sur­
giam na direita (Pravda para um jornal, druzhiniki para designar os espiões
“voluntários”) depois reapareciam no vocabulário da esquerda. Pasternak
reviveu o nome de Strelnikov, o primeiro apóstolo da violência de direita,
como o nome de sua personificação da esquerda revolucionária em Doutor
Jivago. As medidas “extraordinárias” da derradeira polícia tzarista prepa­
raram o caminho para a “comissão extraordinária” da era soviética inicial.
Quando a Okhrana ganhou a sua própria sede no quinto andar do prédio
da polícia no número 16 da via do cais do Rio Fontanka, em São Petersburgo, a
Rússia já tinha uma organização contra-revolucionária profissional com arquivos
detalhados nos relatórios dos agentes e na leitura de correspondências no seu
“gabinete negro”. Um arquivo típico sobre um revolucionário assinalava todas
as suas relações humanas conhecidas por meio de linhas radiais que levavam a
diferentes círculos: vermelhos para laços com terroristas, verdes para compa­
nheiros de atividade política, amarelos para parentes e marrons para pessoas
das quais se sabia que mantinham relações com terroristas.133 Outro conjunto
de cartões usava diferentes cores para distinguir filiações revolucionárias ou
só potencialmente revolucionárias: vermelho para rs (revolucionários sociais),
azul para sd (social-democratas), amarelo para organizações estudantis, branco

132 Degaev fugiu e começou uma nova vida de amigável professor, com o nome de Alexander Pell,
passando por uma série de universidades norte-americanas de Dakota do Sul a Bryn Mawr; v.
Yarmolinsky, Road, pp. 317-323.
133 R. Gaucher, The terrorists from Tsarist Russia to O.A.S., L, 1968, p. 36, que se baseia em Victor
Serge, Les Coulisses d’une sûreté générale. Ce que toute révolutionnaire devait savoir sur la répression,
1925, pp. 49-50 (relançado em 1970 tendo por título o que era originalmente o seu subtítulo).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 777

para associações profissionais, verde para anarquistas. Havia em 1911 algo


em torno de dois a três milhões desses cartões nos arquivos da polícia política.
O número de documentos acumulados em 1900 passava de 100 mil e conti­
nuou a crescer.134 Relatórios de espiões externos (filery, de fileurs [fiandeiros]
em francês) eram comparados com os de espiões internos [sotrudniki]; e se
faziam preparativos para prisões em massa nas épocas de maior atividade
revolucionária (logo, de máxima visibilidade dos revolucionários).135
A polícia contra-revolucionária se tornou sob muitos aspectos uma imagem
espelhada dos revolucionários. Os policiais adotaram os seus próprios klichki
[pseudônimos], inclusive a distinção entre “anciões” e “jovens” utilizada pelos
revolucionários nos anos 1890; empregaram as suas próprias mamochki e
nianki [“mães” e “tias”, que, como as dos revolucionários, cuidavam dos
abrigos secretos onde aconteciam reuniões ou onde se trocavam mensagens];
e classificaram seus agentes de acordo com o tipo de revolucionário com que
lidavam: agentes terroristas, agentes de propaganda e agentes de tipografia.
Dava-se especial importância a esse último tipo em reconhecimento da im­
portância central que as prensas secretas tinham como ponto de aglutinação
dos revolucionários clandestinos:

[...] descobrir uma prensa secreta — era esse o sonho de todo “uniforme azul”,
do mais jovem recruta ao mais encanecido general [...] “extermínio da tipogra­
fia” — era esse o presente que abria caminho para a comemoração, a promoção,
a condecoração.136

O império contra-revolucionário da Okhrana se espalhou por toda a


Rússia como um câncer incontrolável. Na distante Vlodivostok, um estu­
dante de Kiev que havia sido rejeitado na manifestações estudantis durante
a Quaresma assumiu destacado papel em dois importantes jornais, a fim de
que a Okhrana os pudesse controlar.137 Na Finlândia, em outro extremo do

134 Zuckerman, Police, pp. 62—63, além de p. 85, sobre a maneira como várias linhas, círculos e cartões
são reunidos em cartões sinópticos individuais.
135 Gaucher, p. 43, e toda a seção “Okhrana vs. Terrorism”, pp. 28-56.
136 Men’shchikov, Okhrana, cap. 3, 1932, p. 40; sobre diferentes tipos de agente, v. p. 34 ss., além de 56.
Os mamochki okhrankoi também eram chamados de babushki provokatsii, p. 118 ss. Os últimos
dois volumes da obra inestimável de Men’shchikov (NY) enriquecem de modo substancial o retrato
dado em Zuckerman, que incorre no erro de dizer que nada foi publicado além da primeira parte
da obra, impressa em 1914 (Police, p. 69, nota 103).
137 Men’shchikov, Okhrana, cap. Ill, p. 58, sobre Gregory Kivo e os jornais DaPny Vostok e Vladivostok.
Quando sete residentes inocentes foram executados porque o líder local da Okhrana, o tenente-
coronel Zavarnitsky, simulou uma conspiração revolucionária, houve apenas uma leve reprovação
(ibid., p. 47).
778 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

império, Leonid Men’shchikov agiu de maneira ágil com um quadro de 200


agentes para promover e intensificar a russificação daquele povo orgulhoso
e independente.138
A singular desigualdade do desenvolvimento político russo ajudou a
contra-revolucionária Okhrana tanto quanto aos seus pares revolucionários.
A falta de maior participação no processo político retirava dos procedimen­
tos governamentais rotineiros qualquer senso de legitimidade que barrasse
ataques da direita e da esquerda. Ao mesmo tempo, o relativamente vigoro­
so desenvolvimento das práticas legais tornou difícil alcançar condenações
nos tribunais. Desse modo, a Okhrana se via cada vez mais pressionada a
empregar métodos clandestinos e, se possível, extrair confissões dos acusa­
dos, de modo a garantir as condenações. Assim a Okhrana se entrelaçou de
modo ainda mais profundo com a vida da esquerda, de modo a estabelecer
a intimidade necessária para persuadir o revolucionário a dar informações
e seduzi-lo para que confessasse seus crimes.
Mas a sedução operava nos dois sentidos. Envolver-se com a esquerda,
sem abordar seus ideais e aspirações, revelou-se coisa difícil. Por mais que,
em princípio, a Okhrana e os revolucionários se opusessem uns aos outros,
partilhavam na prática de uma subcultura comum de intriga, anonimato
e empolgação. Eram as forças dinâmicas numa sociedade estática; e era
mais fácil mudar de lado do que abandonar esse mundo sedutor. Sem a
colaboração de funcionários da Okhrana de Varsóvia como Michael Bakai
e, depois, Leonid Men’shchikov, Vladimir Burtsev jamais teria formado em
Paris a sua notável polícia política e escritório de detetive para combater
a Okhrana no exterior adotando as próprias práticas dela de vigilância e
penetração.139
As duas mais importantes formas de simbiose direita-esquerda foram
aquelas dos dois mais famosos líderes da Okhrana a se infiltrar no movi­
mento revolucionário: Serge Zubatov e Yevno Azev. Eles eram as figuras
centrais dos esforços da polícia política para minar o que se percebiam como
as duas mais sérias ameaças ao regime: os programas social-democratas de
organização da classe operária e o renascimento do terrorismo político de

138 Men’shchikov, “Okhranniki v Finliandii”, em Okhrana, cap. I, pp. 219-226, esp. p. 221. Men’shchikov
é pouco sincero ao assumir o seu próprio papel de liderança.
139 Burtsev foi o principal cronista emigrado da tradição revolucionária até 1905. Zuckerman (Police,
pp. 48-49) concorda com Bramsed ao sugerir que o primeiro escritório da polícia revolucionária
a proteger grupos subversivos foi o de Raoul Rigault à época de Napoleão in (“Burtsev”, p. 214,
nota 1).
LIVRO in, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 779

revolucionários socialistas. Se esses dois famosos agentes provocadores da


direita não conseguiram destruir nenhum desses movimentos da esquerda,
pelo menos levaram os dois extremos a novos níveis de interdependência.
Zubatov tivera envolvimento com revolucionários quando estudante e
começara a trabalhar para a Orkhrana depois de ser preso em meados dos
anos 1880. Agindo como um sotrudnik da polícia, ajudou a destruir a úl­
tima prensa da Vontade do Povo em Tula, em 1887; entre os então presos,
conseguiu por sua vez recrutar Men’shchikov.140 À medida que a agitação
social-democrata crescia entre os operários urbanos durante os anos 1890,
muitos oficiais tzaristas concluíram que esperar passivamente por uma nova
rodada de violência era uma resposta inadequada. Zubatov achava que a
própria monarquia deveria tomar a frente da organização dos trabalhadores.
Preparou um memorando em 1898 sobre a questão dos operários, e em 1901
viajou até Kharkov para estudar organizações de trabalhadores. Em maio,
criou para a Okhrana de Moscou uma nova organização que rivalizasse com
a dos social-democratas: a Sociedade Moscovita de Mútua Ajuda dos Traba­
lhadores Mecânicos. Seus líderes eram ex-social-democratas; e sua primeira
atividade de importância foram palestras sobre as instituições operárias no
Museu Histórico neomedieval da Praça Vermelha.141
A campanha de Zubatov para conquistar os trabalhadores, afastando-os
da intelligentsia politicamente subversiva, estendeu-se à comunidade judai­
ca de Minsk, Vilnius e Odessa, onde partidos operários independentes dos
judeus haviam se estabelecido, com níveis diversos de sucesso, como rivais
do Bund social-democrata. Se os protegidos de Zubatov realizaram uma
manifestação pró-tzarista no dia 19 de fevereiro de 1902 para comemorar
a emancipação dos servos e abortar movimentos revolucionários de massa,
por outro lado convocaram em novembro, na fábrica de tratores de Vyborg,
o primeiro encontro legal dos operários de São Petersburgo a apresentar

140 Men’shchikov, Okhrana., cap. 1, pp. 20—25. Sobre dois diferentes aspectos do memorável movimento
de Zubatov, v. D. Pospielovsky, Russian Police Trade Unionism, Experiment ou Provocation?, L,
1971; e J. Schneiderman, Sergei Zubatov and Revolutionary Marxism. The Struggle for the Working
Class in Tsarist Russia, Ithaca/L, 1976.
141 Schneiderman, p. 105 ss.; Pospielovsky, p. 98 ss. Sobre um assunto tão delicado como Zubatov e
o “socialismo policial”, mesmo hoje só se pode aprender algo de modo muito indireto a partir das
pesquisas soviéticas. V. V. Sviatlovsky, Istorila professionaPnogo dvizheniia v Rossii, Leningrado,
1925; V. Novikov, “Leninskaia Tskra’ v bor’be s zubatovshchinoi”, em Voprosy Istorii, 1974, n° 8,
pp. 24-35; e I. Ionov, “Zubatovshchina i Moskovskie rabochie v 1905 g.”,em Vestnik Moskovskogo
Universiteta, 1976, n° 3, pp. 54-68. As atividades de Zubatov nos anos 1890, negligenciadas nesses
relatos, são descritas pelo seu sucessor na Okhrana de Moscou, Men’shchikov, Okhrana, cap. 1, pp.
199-200, 339-348,428, nota 8.
780 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

queixas à monarquia. Mais social-democratas acabaram se envolvendo —


especialmente aqueles com raízes proletárias autênticas como I. Babushkin,
um veterano da União de Luta em São Petersburgo. Até Lênin, que denunciou
com veemência o movimento, estava disposto a utilizá-lo com o propósito
de conseguir informações e disseminar propaganda.142 Desse modo, as orga­
nizações expressamente pró-monarquistas de Zubatov serviram de veículo
para nova agitação revolucionária e recrutamento — à maneira do que foram
as lojas maçônicas para os primeiros revolucionários. De fato, Zubatov foi
demitido pouco depois da greve geral de Odessa, em julho de 1903, em razão
do medo dos oficiais de que as organizações dele estivessem fazendo mais
para avançar a causa revolucionária do que para detê-la.
O verdadeiro benefício que a esquerda auferiu com essa iniciativa da direita
veio com a Revolução de 1905. Essa revolução foi lançada, em primeiro lugar,
pelo terrível massacre no “domingo sangrento” (9 de janeiro de 1905) de
manifestantes pertencentes a uma organização que havia se desmembrado do
movimento de Zubatov. O Padre Gapon, ex-pastor de ovelhas que liderou as
manifestações, havia antes conhecido Zubatov e depois estabelecido relações
formais com a Okhrana. A Assembléia dos Operários Fabris e Moleiros, que
ele fundou no início de 1904, foi organizada com o conhecimento e ajuda
da polícia de São Petersburgo; mas já em março ela havia desenvolvido o
seu próprio programa de reforma social e política, o qual foi ocultado das
autoridades.143 Assim, a organização de Gapon foi capaz de liderar o protesto
de janeiro, quando 150 mil dos 175 mil trabalhadores industriais da cidade
realizaram uma greve não-violenta e elaboraram uma petição endereçada ao
tzar, na qual pediam modestas concessões econômicas e o fim do “governo
através da burocracia”.144
Tropas a cavalo atiraram contra várias passeatas que seguiam das regiões
industriais remotas até o centro de São Petersburgo. Quando a principal
passeata, chefiada por Gapon, chegou cantando hinos à praça aberta em
frente ao Palácio de Inverno, na esperança de entregar a petição ao tzar, os
manifestantes foram brutalmente dispersados a tiros. Gapon, que gozava
de prerrogativas eclesiásticas, foi protegido pelo revolucionário socialista P.
Rutenberg, que o atirou ao chão para não ser atingido e o ajudou a escapar

142 Novikov, pp. 31-33.


143 W. Sablinsky, The Road to Bloody Sunday: Father Gapon and the St. Petersburg Massacre of 1905,
Princeton, 1976.
144 S. Harcave, The Russian Revolution of 1905, NY, 1970, pp. 81,69; texto da petição às pp. 285-292.
I IVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 781

— só para ajudar a enforcá-lo em março de 1906, depois de ele ter retornado


à Rússia e, ao que parece, estabelecido contatos com a polícia.145
O “domingo sangrento” deflagroLi quase dois meses de greves em cerca de
122 cidades e num grande número de minas e ferrovias por todo o império.146
Outra onda de greves veio depois do Dia do Trabalhador, que tinha caído
num domingo, e a militância se intensificou ainda mais com o surgimento
da violência contra-revolucionária chauvinista das “Centenas Negras”. A
derrota da frota russa para os japoneses no Estreito de Tsushima no dia
14 de maio e o motim no Encouraçado Potemkin no Mar Negro um mês
depois abalaram as ilusões do poder imperial russo. A turbulência que veio
em seguida foi mais violenta e se concentrou no coração da Grande Rússia
como jamais acontecera. Parece que dissidentes do movimento de Zubatov
desempenharam papel mais decisivo do que em geral se assinala nas duas
mais importantes inovações revolucionárias que logo surgiram: o primeiro
“Soviete dos Operários” e a grande greve geral de outubro de 1905.
A cidade de Ivanovo-Voznesensk, o centro têxtil a 320 quilômetros de
Moscou no qual Nechaev foi educado, lançou no dia 12 de maio a mais longa
greve do ano, que envolveu cerca de 15 mil trabalhadores.147 O primeiro soviete
ou “conselho dos operários” surgiu quando o comitê grevista composto por
151 pessoas (incluídas 25 mulheres) assumiu funções para-políticas depois
que funcionários do governo e proprietários de fábricas fugiram da cidade,
amedrontados. O soviete formou a sua própria milícia, assumiu poderes lo­
cais de regulação de preços e convocou encontros diários a céu aberto numa
peninsulazinha coberta de relva no Rio Talka, à qual chamavam “cabo da boa
esperança”.148 Essa “universidade livre do Talka” foi dispersada por tropas
cossacas e Centenas Negras, mas prosseguiu até 19 de julho.
145 Hingley, p. 95, Leninsky sbornik, vol. ni, pp. 123-126, vol. v, p. 590. A oscilação de Rutenberg entre
a esquerda e a direita encontrava paralelo na de Boris Savinkov, o primeiro colaborador terrorista
do grupo Sotsialisti de 1900 com o qual Lênin mandara Radchenko estabelecer contato. Savinkov
se tornou um terrorista de vulto do Partido Socialista Revolucionário, mas depois escreveu dois
romances de denúncia do terrorismo (O cavalo branco, de 1909, e O conto do que não aconteceu,
1913) e se juntou ao levante de direita de Kornilov contra o governo provisório de Kerensky. O
representanto de Lênin no trato com Gapon era Ivan Radchenko.
146 Estimativa em Crook, p. 161; detalhes em Harcave, pp. 98-135.
147 M. Gordon, Workers Before and After Lenin, NY, 1941, p. 3. V. também Harcave, pp. 150-154;
O. Anweiler, The Soviets. The Russian Workers, Peasants and Soldiers Councils, 1905-1921, NY,
1974; o relato do velho bolchevique F. Samoilov, Pervy sovet rabochikh deputatov, Leningrado,
1931; A. Shipulina e Yu. Yakobson, “Ivanovo-Voznesensky sovet rabochikh deputatov 1905 goda”,
em Voprosy Istorii, 1977, fev., pp. 38-55; e W. Gard, “The Party and the Proletariat in Ivanovo-
Voznesensk, 1905”, em Russian History, vol. n, parte 2, 1975, pp. 101-123.
148 Shipulina, pp. 48, 53-54; Gard, p. 110.
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Na adoção do nome “soviete” e na afirmação de demandas de menor


monta, como o pedido de estabelecimento de feriado nacional no dia 19 de
fevereiro, os trabalhadores têxteis de Ivanovo-Voznesensk talvez tenham sido
influenciados por precedentes dos trabalhadores têxteis de Moscou que, em
grande parte, deviam sua organização a Zubatov. Já em 1902, o principal
organizador de Zubatov em Moscou havia se declarado presidente do “So­
viete dos Operários da Cidade de Moscou”;149 e os planos de organizações
de Zubatov por toda parte incluíam eleições para outros “Sovietes dos Ope­
rários”.150 O exemplo de Ivanovo logo inspirou os operários de Moscou a
estabelecer o seu próprio Soviete, mas as demandas econômicas nas petições
elaboradas por veteranos das organizações de Zubatov continuaram a do­
minar a agenda na cidade até a grande greve geral de outubro.151
Em Moscou, alguns veteranos da campanha moderada de Zubatov do
início de 1905 se tornaram radicais e se juntaram aos bolcheviques,152 que
deram importância ao renascimento, em Ivanovo, do slogan “trabalhadores de
todo o mundo, uni-vos!” e concluíram o seu próprio tributo com as palavras
“vida longa ao socialismo!”.153 Enquanto isso, formou-se a mais formidável
de todas as organizações soviéticas naquele bastião da política radical, o
Instituto Tecnológico, em São Petersburgo, onde a influência menchevique
era mais forte entre os social-democratas e aonde Trótski, com uma presença
teórica eletrizante, chegou em meados de outubro, logo após o começo da
greve geral.154
A Grande Greve de Outubro deu ao mundo a primeira demonstração clara
do potencial revolucionário de uma greve de dimensões nacionais num Estado

149 Material até agora inédito sobre M. Afanas’ev presente em Ionov, p. 60.
150 Novikov, pp. 25-27.
151 Ionov, pp. 64—66, de fato aceita essa versão e, em essência, confirma a conclusão de S. Schwartz,
The Russian Revolution of 1905: The Workers* Movement and the Formation of Boshevism and
Menshevism, Chicago, 1967 (alhures ridicularizado por Shipulina e outros pesquisadores soviéticos)
de que exigências puramente econômicas dominaram todas as organizações operárias de massa até
outubro de 1905.
152 Shipulina, p. 65 ss.
153 Citado de um panfleto escrito por um “grupo do comitê nortenho do Partido Operário Social-
-democrata Russo”, Samoilov, pp. 42, 93.
154 Deutscher, Prophet, p. 125 ss. Antes conhecido como “comissão grevista” ou “comitê dos
trabalhadores”, o grupo de São Petersburgo talvez tenha sido o primeiro a formalmente se declarar
um soviete (v. L. Petrova, “Peterburgsky sovet rabochikh deputatov”, em Voprosy Istorii, 1955, n° 11,
p. 26). A insistência de Shipulina e outras fontes soviéticas na paternidade de Ivanovo pode refletir
o fato de uma maior participação bolchevique. Outras obras que dão por pressuposta a origem em
São Petersburgo são L. Kleinbort, Pervy sovet rabochikh deputatov, Retrogrado, 1917; e a obra de
1925 de L. Gorin, referida e criticada em Samoilov e em Shipulina.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 783

industrial moderno. Começou de maneira quase casual com a paralisação de


impressores em Moscou e São Petersburgo. Quando os trabalhadores ferrovi­
ários se juntaram à causa, o governo perdeu os sustentáculos no transporte e
na comunicação de que necessitava para controlar um império de dimensões
continentais. A atividade grevista alcançou as forças armadas, as minorias
étnicas; e já começava a levantar o campesinato, quando a amedrontada
autocracia lançou seu manifesto de 17 de outubro, prometendo liberdades
civis e uma assembléia nacional consultiva, a Duma.
Mas a desordem pública não diminuiu. Presos os líderes do Soviete de
São Petersburgo no dia 3 de dezembro, seus pares em Moscou iniciaram
uma nova greve geral quatro dias depois — com o encorajamento atrasado
e mal calculado de Lênin. A greve logo se tornou um levante armado em
Moscou, “o único caso durante a revolução em que o tzarismo enfrentou
um oponente substancial no campo de batalha”.155 A repressão sangrenta e
o fim da greve no dia 19 de dezembro acabaram com os “dias de liberdade”,
e a pacificação da turbulência no campo prosseguiu durante o ano de 1906.
O difícil estabelecimento do sistema da Duma sob a direção de um tzar
relutante provocou grande reação quando a Segunda Duma, de maioria
oposicionista, foi fechada em junho de 1907 e as leis eleitorais, revisadas.
Os contínuos episódios de guerra e revolução entre 1904 e 1906 aumen­
taram de modo sensível o nível de violência no Império Russo. Em regiões
remotas, como as montanhas do Cáucaso, houve 1.150 atos de terrorismo
entre 1905 e 1908.156 As tradições de banditismo local se mesclaram às tra­
dições revolucionárias russas, e insurgentes não-russos com freqüência se
identificavam mais com o partido social-democrata do que com os socialistas
revolucionários, onde havia maioria de russos e maior ênfase rural. Entre
aqueles que fizeram seu aprendizado revolucionário no submundo georgiano
estava o jovem Josef Stálin, que servia como misterioso oficial de ligação
entre o escritório da ala bolchevique do partido no Cáucaso e seus esqua­
drões de combate. Aqui, como em tudo o mais, sua habilidade em sobreviver
a dissensões mortíferas e em enganar a polícia ou escapar da prisão sugere
155 O. Anweiler, citado em R. McNeal, Russia in Transition 1905-1914, NY, 1970, p. 18,
156 Trotski, Stalin, NY, 1946, p, 97; I. Deutscher, Stalin: A political biography, NY, 1949, p. 87, também
pp. 84-91. Sobre os escritos de Lênin desse periodo sobre “guerra de partisan” e a organização
de druzhiny (unidades social-democratas de combate de 3 a 75 membros, com os seus próprios
oficiais eleitos), v. L. Senchakova, Boevaia rat* revoliutsii. Ocherk o boevykh organizatsüakh rsdrp
i rabochikh druzhinakh 1905-1917 gg., 1975, esp. p. 34 ss.
Sobre a atividade dos “irmãos da floresta”, que moveram guerra de partisan na região dos Bálcãs
depois da derrota de dezembro, v. N. Burenin, Liudi boTsheuistskago podpoVia, 1958, pp. 60-62.
784 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

que ele próprio tenha em alguma medida colaborado com a Okhrana em


seus primeiros anos.157
A única prisão coletiva de bolcheviques pela Okhrana antes de 1914 foi
a de seus membros na Segunda Duma,158 o que levou o partido de Lênin à
clandestinidade — e a um contato mais próximo com os agentes clandes­
tinos da repressão. Dois dos amigos e protegidos mais próximos de Lênin
durante o período de exílio que se seguiu eram sotrudniki da Okhrana: David
Zhitomirsky e Roman Malinovsky. O primeiro se aproximou dele em Paris
depois de 1908, o segundo na Cracovia depois de 1912. Apesar do aierta
de Burtsev a Lênin acerca das conexões do seu amigo com a Okhrana, ao
que parece Zhitomirsky continuou a gozar da companhia e confiança do
líder revolucionário até 1915.159 Malinovsky permaneceu tão próximo de
Lênin que, mesmo depois de sua cumplicidade com a polícia secreta ter sido
revelada após a revolução, ele ainda assim retornou à União Soviética, ao
que parece confiante de que seria bem-vindo.160 Lênin lhe recusou apreço
ou não buscou salvá-lo da execução sumária. Embora não exista razão para
supor que o próprio Lênin tivesse relações com a Okhrana,161 tampouco há
dúvida de que ele se beneficiou diretamente da campanha policial para evitar
a unificação do Partido Social-democrata. A prisão do principal bolchevique
defensor da reunificação com os mencheviques, Alexis Rykov, foi útil a Lênin
ao preparar o caminho para a elevação de Malinovsky em 1912 ao Comitê

157 As provas em E. Smith, The young Stalin, NY, 1967, indicam a possibilidade dessas conexões — pelo
menos desde a época de sua misteriosa sobrevivência às incursões da Okhrana emTiblissi, em 1901 —,
ainda que suas hipóteses mais particulares sobre a extensão dessas conexões pareçam indevidamente
conjeturais. Antes, já Isaac Don Levine, George Kennan e outros haviam sugerido um elo entre Stálin
e a Okhrana; e um destacado historiador soviético me confirmou, durante a era Khrushchov, que as
descobertas desses autores eram “corretas em essência, mas não em seus detalhes”. Roy Medvedev,
Let history judge: the origins and consequences of Stalinism, NY, 1971, pp. 315-324, oferece uma
discussão fascinante, ainda que cética, dessas teorias e de outros rumores na União Soviética sobre
as possíveis relações de Stálin com a polícia secreta tzarista. Parte significativa do material que ele
próprio apresenta e a comparação que estabelece entre Stálin e Azev põem em dúvida sua conclusão
de que “Stalin não trabalhou para a polícia secreta tzarista” (p. 323); e ele parece menos convicto
ainda em seu estudo mais recente “New Pages of Political Biography of Stalin”, R. Tucker (ed.), em
Stalinism, NY, 1977, pp. 199-201. Tucker mostra que nenhuma conexão foi provada e se revela
cético quanto ao argumento de Smith, ainda que não feche questão a respeito (Stalin as Revolutionary
1874-1929, NY, 1973, pp. 108-114).
158 Zuckerman, Police, p. 88.
159 Ibid., pp. 614-615.
160 Fischer, Lenin, pp. 81-84, lista as muitas perguntas sem resposta sobre as relações de Lênin com
Malinovsky. V. também D. Anin, “Lenin and Malinovsky”, em Survey, 1975, outono, pp. 145-156;
e R. Elwood, Roman Malinovsky: a life without a cause, Newtonville, 1977.
161 Como se sugere, por exemplo, no artigo anti-semita e pouco convincente publicado sob o pseudônimo
de Salústio, “Lénine Agent de l’Okhrana”, em Revue de Paris, 5 de dezembro de 1927, pp. 806-826.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 785

Central Bolchevique como grande aliado leninista na resistência à unifica­


ção.162 Miron Chernomazov, que em 1913 sucedeu a Stálin como editor do
jornal bolchevique, Pravda^ foi outro agente da Okhrana.163
Mas o Partido Socialista Revolucionário, muito maior, representava
outro tipo de problema. Herdeiros diretos da tradição revolucionária po­
pulista, seus membros tinham de ser combatidos frontalmente. Sua “seção
combatente” linha-dura havia embarcado numa campanha de assassinatos
que representavam uma ameaça imediata ao governo. A Okhrana lhe deu
o nome imperial zombeteiro de “Boris”164 e começou uma guerra clara e
frontal, além de bem-sucedida, contra a nova organização.
Seu fundador era um talentoso farmacêutico de Kiev, Gregory Gershini,
que buscou subordinar os ataques terroristas a uma estratégia geral discipli­
nada pelo Partido Socialista.165 Mais uma vez, o terrorismo era obra de um
movimento de jovens. A campanha tinha sido lançada por um estudante que
tentou matar o ministro da educação em fevereiro de 1901 e que liderou o
primeiro movimento organizado de jovens revolucionários em Rostov, em
1902.166 Mas, no curso da luta revolucionária, as preocupações materiais
dos operários se tornaram mais importantes do que as costumeiras defesas
estudantis de “unificação ideológica”.167
162 Zuckerman, p. 654; S. Oppenheim, “The Making of a Right Communist — A. I. Rykov to 1917”,
em Slavic Review, 1977, set., p. 438. Sempre um sujeito agregador, Rykov começou sua carreira
revolucionária criando o seu singular comitê conjunto do Partido Socialista e do Partido Operário
Social-democrata em Saratov, em 1901 (ibid., p. 422).
163 H. Shukman, Lenin and the Russian Revolution, L, 1966, p. 138. Pravda, que Stálin fundou em
São Petersburgo em 1912, tirou o seu nome de um jornal anterior publicado desde 1905 em Viena
pelos mencheviques ucranianos e ao qual, em 1908, Trótski havia dado nova vida ao se tomar seu
editor. Deutsche, Prophet, pp. 191-199. A polícia “desmascarou” Chernomazov em fevereiro de
1914, numa jogada com o objetivo de tirar o foco de atenção da figura de Malinovsky.
164 Zuckerman, Police, p. 80.
165 Zilli, pp. 445-464; e sobre as idéias iniciais de Gershuni, v. pp. 298-303. Cf. também Gershuni,
“Terroristichesky elemento v nashei programme”, em Revoliutsionnaia Rossiia, 1902, jun., pp. 2-5; e
sobre os primeiros estágios de desenvolvimento do Partido Socialista Revolucionário, v. Spiridovich,
pp. 149-167.
166 A. Korov, V. Dalin, Yunosheskoe dvizhenie v Rossii, Moscou/Leningrado, 1925, 2a ed., p. 40, sobre
a “Liga Russa da Juventude”, e pp. 44-45 sobre a proclamação do Comitê Geral ao Iskra. Sobre a
liderança mais geral do sul da Rússia, ao se reunirem estudantes com um maior descontentamento
geral entre 1900 e 1902, v. P. Gusiatnikov, Revoliutsionnoe studencheskoe dvizhenie v Rossii,
1899-1907, 1971, pp. 41—42; sobre a disseminação da agitação estudantil por escolas secundárias
e profissionais, v. A. Ushakov, Revoliutsionnoe dvizhenie demokraticheskoi intelligentsii v Rossii,
1895-1904, 1976.
167 Nos 179 registros de ocorrência policial entre 1902 e 1911 daqueles acusados de atos terroristas
nos quais suas ocupações são descritas, vê-se que 90 (62%) eram operários; 37, intelectuais; 23,
estudantes; e 20, camponeses. M. Perrie, “The Social Composition and Structure of the Socialist-
Revolutionary Party before 1917”, em Soviet Studies, 1972, out., pp. 247-248. Sobre as demandas
786 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A grande jogada da Okhrana foi colocar no lugar de Gershuni um ex-


-revolucionário, Yevno Azev, no comando da Seção Combatente do Partido
Socialista em 1903. Embora estivesse a trabalho da Okhrana, Azev não fez
nenhum esforço para impedir em 1904 o assassinato do seu chefe nominal,
o ministro do interior Plehve. Ele se tornou membro comitê central do par­
tido no ano seguinte e ajudou a polícia política a fazer as suas duas maiores
prisões em massa da era revolucionária: primeiro a prisão de quase todos
os delegados do primeiro congresso do Partido Socialista Revolucionário
em Imatra, em janeiro de 1906, e depois a prisão da Seção Combatente do
Partido em São Petersburgo, no mês de março.168
Azev foi por fim exposto por Burtsev e formalmente denunciado no fim
de 1908 e início de 1909. Ele jamais teria conseguido manter sua impostura
intacta por tanto tempo se não houvesse algo de sinceridade em seu com­
prometimento revolucionário; com efeito, Azev tinha sido o único a apoiar
publicamente Burtsev durante o período de ação terrorista deste último nos
anos 1890.169 Muitos continuaram a crer que a própria denúncia dos laços
de Azev com a polícia era uma manobra de provocação.
A destruição da ala terrorista do Partido Socialista Revolucionário não fez
cessar a violência revolucionária, pois o terrorismo já tinha saído do controle
dos socialistas mesmo antes da Revolução de 1905. O agente incendiário e
antidisciplinar era o anarquismo destrutivo dos bezmotivniki^ o grupo dos
“sem-motivo” que pertenciam ao movimento mais amplo dos judeus da
Bandeira Negra, e de um grupo menor de Odessa, o dos “Intransigentes”. A
inspiração estrangeira veio com a publicação anarquista Pão e Liberdade^
que começou a circular em 1903 e trazia em seu cabeçalho a famosa frase
de Bakunin: “A Paixão pela Destruição Também É uma Paixão Criativa”.170
O renascimento do terrorismo entre os intelectuais se espalhou para o inte­
rior rural durante a Revolução de 1905. Fios de telégrafo eram cortados e
colheitas queimadas, enquanto o Partido Socialista se mostrava incapaz de
canalizar a violência para o objetivo desejado de “expropriação organizada

dos estudantes por ideinoe ob’edinenie e sua resistência ao liberalismo moderado de kul’turniki, v.
Kirov e Dalin, p. 55 ss.
168 Zuckerman, Police, p. 88. Materiais básicos sobre Azev se encontram em Gaucher, pp. 57-70;
Men’shchikov, Okhrana, cap. 3, pp. 5—33; e B. Nikolaevsky, Aseff, the Spy — Russian Terrorist and
Police Stool, NY, 1934.
169 Nikolaevsky, Aseff, pp. 29-30.
170 Avrich, Anarchists, pp. 40-71, sobre essa notável profusão de terror, atentados a bombas e violência
suicida deflagrada pelos beznachal’tsy e bezmotivniki-, e pp. 105-106, sobre o neprimimirmye.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 787

da terra”.171 Enquanto o partido substituía os “esquadrões de combate” pela


sua Seção Combatente, os muito mais violentos maximalistas, por outro lado,
rompiam para formar os seus próprios esquadrões terroristas. Em agosto
de 1906, os maximalistas mataram 32 pessoas e feriram o filho e a filha do
primeiro ministro Stolypin. Censurados pela opinião pública irada e até pelo
comitê central do Partido Socialista, os assassinos responderam que “a ver­
dadeira causa da profunda aflição do público é que o próprio Stolypin [...]
ainda esteja vivo”.172 Embora o passo do terror tenha se desacelerado depois
de 1906 graças à “gravata de Stolypin” (o laço do carrasco) e aos “trens de
Stolypin” (que levavam condenados para a Sibéria), o próprio Stolypin foi
assassinado na casa de ópera de Kiev em 1911. Muito apropriadamente, o
assassino foi um agente policial infiltrado entre os anarquistas evolucioná-
rios daquela cidade. Embora ele pareça ter agido “sem instruções nem de
organizações revolucionárias nem da polícia”,173174
o impulso de assassinar lhe
175
havia sido inculcado pela sua experiência com ambos os grupos.
Sua identificação com o comprometimento e o heroísmo da tradição ter­
rorista era fato determinante para que o Partido Socialista Revolucionário
continuasse a ter proeminência como o Partido Revolucionário da Rússia.
Mesmo depois da Revolução de Outubro dos bolcheviques em 1917, os
socialistas os ultrapassaram numa proporção de dois para um nas eleições
para a Assembléia Constituinte: a única eleição livre e multipartidária e com
sufrágio universal que jamais houve na Rússia.174175
O renascimento do terrorismo no início do século xx paralisou até aqueles
que se opunham a ele. Mais poderoso do que a realidade do terrorismo era o
medo dele. Era o medo do desconhecido: a misteriosa bomba sempre prestes
a explodir no romance alucinatório de Bely de 1911, Petersburgo,176 Temia-se
algum elo preternatural entre o terror e o apocalipse bíblico no romance O

171 Gaucher, Terrorists, p. 52,


172 Ibid., pp. 52-53; Avrich, p. 64.
173 Segundo G. Tokmakoff, “Stolypin’s Assassin”, em Slavic Review, 1965, jun., p. 314; também Avrich,
p. 55, nota 61. A natureza puramente individual dos principais assassinatos políticos, como o do
presidente Garfield em 1881 (A. Robertson, “Murder Most Foul”, em American Heritage, 1964, jul.,
pp. 90-104), não invalida a natureza imitativa do ato (uma reverberação do assassinato anterior de
Alexandre n naquele mesmo ano).
174 O autor escrevia numa época em que ainda existia a União Soviética — nt.
175 V. O. Radkey, The Election to the Russian Constituent Assembly of 1917, Cambridge, Massachusetts,
1950, pp. 16-17; também a história que Radkey escreveu do Partido Socialista Revolucionário: The
Agrarian Foes of Bolshevism, NY, 1958; e The Sickle Under the Hammer, NY, 1963.
176 Com uma boa tradução para o inglês, Bloomington, 1978.
788 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Cavalo Branco (1909) de Boris Savinkov, o líderes dos socialistas revolucio­


nários nos assassinatos de Plehve em 1904 e do Grã-Duque Sérgio no ano
seguinte. Até o primeiro teórico do terrorismo russo, Nicholas Morozov,
começou a misturar idéias revolucionárias com especulação apocalíptica em
seu Revelação em trovão e tempestade: o nascimento do apocalipse (1907).177
A imagem final era a de Cristo feito revolucionário, a liderar “apóstolos”
armados numa São Petersburgo devastada, o que vemos no grande poema
de Alexander Blok de janeiro de 1918: “Os Doze”.
A violência trabalhista cresceu continuamente depois do massacre de
trabalhadores nas minas de oura de Lena, em 1911, mas foi logo desviada
para a violência organizada da Primeira Guerra Mundial. Essa guerra era
pré-requisito indispensável à revolução na Rússia; e ela começou com um
acontecimento de misturava com perfeição as tradições ítalo-polonesa e russa
de violência. O assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando em Saraje­
vo, em julho de 1914, foi um gesto anti-habsburgo clássico, do tipo que os
sérvios haviam absorvido de seus vizinhos italianos. Ao mesmo tempo, era
um ato que lembrava mais os seus apoiadores russos. O entusiasmo popular
na Rússia por ir à guerra era, em grande medida, um produto da simpatia
cripto-revolucionária pelos eslavos do sul. A desastrosa guerra terminou
para a Rússia numa revolução e numa guerra civil nas quais os derradeiros
e rivais promotores da violência eram ambos revolucionários poloneses:
Pilsudski e Dzerzhinsky.
Józef Pilsudski liderou a batalha final contra o Estado soviético em
1920-1921. Ele era o líder da recém-independente Polônia e a última ex­
pressão da tradição revolucionária nacional. Veterano da conspiração que
terminou com a morte do irmão de Lênin nos anos 1880 e dos “esquadrões
de combate” que conduziram assaltos espetaculares a bancos e arsenais na
Rússia durante a Revolução de 1905, voltava agora com um exército na
condição de vingador de uma Polônia finalmente liberta do domínio russo.
Pilsudski era um herói apocalíptico para a nova direita na Rússia, o qual
tinha vivido em intimidade simbiotica com a velha esquerda na emigração
pré-revolucionária. Dmitry Merezhkovsky escreveu um romance em 1921 no
qual o saudava como o homem enviado por Deus para libertar a Rússia do

177 Morozov, Otkrovenie v groze I bure; istoriia vozniknoveniia apokalipsica, São Petersburgo, 1907;
tradução resumida de M. Kissell em Popular Astronomy, 1940, dez.; 1941, jan.; reimpresso como
The Revelation of Thunder and Storm, Northfield, Minnesota, 1941. V. também Morozov, Proroki;
istoriia vovniknoveniia bibleiskikh prorochestv, 1914 (todos esses títulos estão disponíveis em LC).
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 789

anticristo Bochevique.178 Emigrado depois de 1917 (assim como fora depois


de 1905), o romancista reviveu muitas das idéias ocultistas a partir das quais
a tradição revolucionária tinha primeiro se desenvolvido — como o conceito
dos Iluminados da influência de círculos concêntricos de três homens que se
irradia por todo o mundo.179 Inseguro, aproximou-se de Mussolini e depois
de Hitler em busca de algum tipo de força nova que libertasse o mundo do
ateísmo burocrático e encetasse uma “revolução religiosa”. Assim, a men­
talidade revolucionária romântica de Merezhkovsky ajudou a fortalecer a
crença apaixonada de Pilsudski de que somente uma teocracia nacionalista
de direita poderia impedir uma autocracia ateista universal de esquerda.
O principal defensor da nova autocracia ateista na Rússia foi outro polonês,
Felix Dzerzhinsky. Ele era o derradeiro revolucionário social, assim como
Pilsudski era uma destilação do nacionalismo revolucionário. Ao passo que
Pilsudski era um produto do Partido Socialista Polonês dos anos 1890, Dzer­
zhinsky foi um dos primeiros partidários, em meados daquela mesma década,
do primeiro partido marxista do Império Russo: o Partido Social-democrata
da Polônia e da Lituânia. Ele fundou sua Comissão Extraordinária (Cheka),
encarregada da defesa da revolução, só umas poucas semanas após a toma­
da do poder, rapidamente a transformando na mais impressionante polícia
política que o mundo jamais vira. Logo formou uma Guarda para se infiltrar
em organizações de emigrados no exterior e conseguiu ludibriar e trazer de
volta para a Rússia figuras como Savinkov, o qual renunciou publicamente a
suas opiniões anti-soviéticas antes de morrer misteriosamente numa prisão.180
Dzerzhinsky começou a designar “seções especiais” para missões soviéticas
no estrangeiro — quase como se sua organização fosse uma continuação da
Okhrana, e não uma reação a ela.
De fato, ele tinha sido educado em prisões tzaristas e no exílio siberiano,
onde passou quase metade da sua vida adulta prévia a 1917. Nascido em
família abastada e católico devoto que costumava obrigar seus irmãos e irmãs
a rezar habitualmente, trocou seu catecismo cristão por um catecismo mar­
xista durante seu primeiro ano na Universidade de Vilnius, abandonando-a
178 Merezhkovsky, Józef Pilsudski, L, 1921; também (em coautoria com Hippius e outros) Das Reich
des Antichrist: Russland und der Bolshewismus, Munique, 1922.
179 Taina trekh, Praga, 1925; e comentários em B. Rosenthal, D. S. Merezhkovsky and the Silver Age:
The Development of a Revolutionary Mentality, Haia, 1975, pp. 216-223, esp. p. 221; também
“The Religious Revolution”, pp. 163-195, sobre a tendência apocalíptica anterior iniciada com o
seu Acercando-se da Besta, de 1906. V. esp. em p. 165, nota 9, o esquema de Hippius de círculos
concêntricos de três indivíduos.
180 Gerson, Police, pp. 234-237, 311, nota 29; Hingley, pp. 140-141.
790 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

para se tornar um agitador entre os operários da cidade próxima de Kaunas.


Aprendeu quase tudo que sabia com a polícia tzarista, que o perseguiu e o
prendeu seis vezes. Entre os extremistas revolucionários com os quais foi
encarcerado no fim do período imperial, ganha renovada vida a velha tradição
russa de auto-imolação.181 Dzerzhinsky descreveu o socialismo mais como
uma “tocha” do que como uma “doutrina”;182 e a si próprio descreveu como
um lutador que ou vivia “inteiramente no fogo” ou seria “carregado para o
cemitério”.183 Quando finalmente foi carregado até o seu local de descanso
na Necrópole da Muralha do Kremlin perto de Lênin, Stálin o incensou
por “ter se exaurido pelo proletariado”.184 Radek o tratou como o grande
“desinfetante” da revolução;185 e cada ritual periódico de expurgo, base da
atuação do império policial, era chamado de “limpeza” (chistkd).
Todas essas metáforas sugerem que Dzerzhinsky representava uma espécie
de essência purificada da fé revolucionária. Se Lênin havia descrito sua pro­
fissão como a de “jornalista”, Dzerzhinsky respondeu a questionário similar
se dizendo “revolucionário — e mais nada”.186
Eis aí a simplificação radical pela qual os revolucionários há muito an­
siavam: a fé provada pelas chamas. Dzerzhinsky representava o comprome­
timento que o poder não podia corromper. Era a simplicidade encarnada,
o defensor humilde da revolução, a trabalhar dezesseis horas por dia num
prédio que antes tinha abrigado uma companhia de seguros. Muito mais do
que Robespierre, merecia o título de “incorruptível”.
Duas semanas depois da morte de Lênin, tornou-se presidente do Con­
selho Supremo da Economia Nacional, além de chefe da polícia. Iniciara-se
a mistura fatal desses dois cargos; e depois de sua morte, dois anos mais
tarde, o seu império policial foi transformado no instrumento pessoal de
Stálin de terror político e econômico. A arma que Dzerzhinsky tinha criado
para defender uma fé simples foi mais uma vez utilizada contra aqueles que
181 Avrich, Anarchists, p. 64.
182 Dzerchinsky, Prison diary and letters, Moscou, 1959, p. 20; Gerson, p. 13.
183 Citado em A. Khatskevich, Soldat velikikh boev: Zhizn’ i deiatel’nost’ F. E. Dzerzhinskogo, Minsk,
1961, p. 98; Gerson, p. 12.
184 Stálin, Works, Moscou, 1954, vol. vm, pp. 203-204; Gerson, p. 266. Quando Stálin foi retirado do
mausoléu onde ficava perto de Lênin, foi muito a propósito depositado na Necrópole da Muralha
do Kremlin perto de Dzerzhinsky. V. G. Leggett, “Lenin, Terror and Political Police”, em Survey,
1975, outono, p. 187.
185 Citado a partir de um relatório de inteligência britânico inédito em Gerson, p. 35.
186 Questionário do Décimo Congresso do Partido em 1921, como citado em N. Zubov, E E. Dzerzhinsky:
Biografila, 1965, 2a ed., p. 272; Gerson, p. 267.
LIVRO III, CAPÍTULO 16: O CAMINHO ATÉ O PODER: LÊNIN 791

continuavam tornando as coisas complicadas. A inteligência soviética destruiu


a intelligentsia russa. A espada era manejada por Stálin, mas Dzerzhinsky
foi quem a forjara. Este último, em seus derradeiros anos, foi talvez muito
apropriadamente o mais importante aliado de Stálin nas batalhas contra
Trótski e outros rivais pelo manto de Lênin.
O reino da polícia secreta sob o governo de Stálin ultrapassou qualquer
coisa remotamente imaginada pela Okhrana.187 Embora os sucessores de
Stálin tenham desmantelado a maior parte dos campos de concentração, o
poder “extraordinário” da polícia seguiu intacto. Um filme biográfico que
glorificou Dzerzhinsky no início da era de Brezhnev recebeu o título de Ve­
liky Podvig [o “grande feito”], tradicionalmente empregado para descrever
a obra salvifica e heróica dos santos. Quase um quarto de século depois que
as imagens gigantescas de Stálin vieram abaixo em lugares públicos de todo
o Império Soviético, a estátua maciça de 12 metros de altura de Dzerzhinsky
ainda avulta em frente à sede da polícia secreta que ele havia estabelecido
na Lubianka, perto-do Kremlin.
Em que pese seu extenso uso de agentes provocadores, a Okhrana tzarista
nunca viria a se envolver no tipo de contra-assassinatos no exterior que a
polícia secreta soviética perpetraria. Com efeito, a crescente preocupação
com o devido processo legal nos julgamentos e o tratamento relativamente
humano na prisão e no exílio tornaram a campanha da Okhrana contra os
revolucionários muito menos severa e eficiente do que a dos seus sucessores
soviéticos. A polícia tzarista realizou só quatro prisões em massa no início
do século XX,188 e Lênin, como muitos outros, beneficiou-se de condições
minimamente aceitáveis para leitura e escrita durante o seu exílio nada
árduo na Sibéria.
É verdade que os governantes soviéticos foram educados em crueldade e
conhecimentos técnicos pelos seus predecessores tzaristas, mas é evidente que
não se limitaram a uma mera recriação, na esquerda, do que antes tinha sido
experimentado pela direita. Fizeram sua Revolução de Outubro de 1917 não
contra o tzarismo, mas contra o Governo Provisório democrático que o tinha
substituído. O regime leninista pregou em seus apaixonados primeiros anos
um repúdio violentamente antinacionalista do esforço de guerra com que o

187 Sobre as origens dos campos de concentração e do sistema de trabalho forçado, ver, além do livro
de Alexander Soljenítsin, Gulag Archipelago, 1975, NY: D. Dalin e B. Nikolaevsky, Forced Labor in
Soviet Russia, New Haven, 1947; e S. Wolin e R. Slusser (ed.), The Soviet Secret Police, NY, 1957.
188 Zuckerman, p. 88.
792 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Governo Provisório de Kerensky tinha se comprometido. Os bolcheviques


trouxeram consigo um novo senso de legitimidade e missão ideológica que
os libertava das inibições morais da Velha Ordem. A revolução que operaram
no poder foi além da simbiose dos velhos extremos a fim de construir um
admirável mundo novo, no qual a paz totalitária era proclamada a única
alternativa sólida à guerra total.
A miriade de partidários de Lênin teve de lidar com três '‘problemas do
leninismo” fundamentais. Essas questões iam além dos problemas gerais
básicos do marxismo: se existe ou não uma única resposta para todas as
questões, ou se a sociedade secular pode ser aperfeiçoada.
O leninismo oferecia os problemas adicionais de (1) um padrão ético
dùplice: as obrigações morais contrárias, mas igualmente imperativas, de se
envolver de corpo inteiro com os movimentos de massa e, por outro lado, ter
absoluta lealdade para com uma elite interna; (2) uma tendência antidemo­
crática que talvez se devesse às condições da Rússia pré-revolucionária, mas
que continua a ser defendida como universalmente válida; e (3) a ausência de
quaisquer planos administrativos (excetuados os mais ingênuos) depois de
uma revolução vitoriosa. Como observou um destacado biógrafo de Lênin
a respeito de sua atuação após chegar ao poder: “O que começou a sair de
cena foi a idéia de que um dia se teria também de sair de cena”.189
Mas seria enganoso, além de injusto, concluir uma discussão sobre Lênin
com a impressão de que o aparato do partido e a internalização dos métodos
autocráticos russos fossem a essência do seu legado. O coração do leninismo
era a figura do próprio Lênin: um personagem de grande disciplina pessoal e
essencialmente puritano, no qual a paixão revolucionária por simplificação
encontrou sua personificação humana. Via-se como o simples servo de uma
revolução que era maior do que ele — a falar diretamente com o proleta­
riado por meio dos slogans e pronunciamentos simples que asseguraram o
sucesso da Revolução Bolchevique. O anseio revolucionário fundamental
de oprostifsia^ de simplificar as coisas, encontrou encarnação verbal na rei­
vindicação que Lênin fez em abril de 1917 por “pão, paz e terra” e em sua
proclamação, em novembro, de que tudo agora pertencia a todos.

189 Fischer, Lenin, p. 121.


CAPÍTULO 17

O papel das mulheres

revolução de Lênin em novembro de 1917 se insurgiu contra um

A regime revolucionário rival que, por um breve período e de maneira


provisória, tinha levado a democracia à Rússia em março daquele
ano. A revolução social leninista foi condenada a se confinar num único país
depois do derradeiro fracasso da tentativa de revolução na Alemanha, em
janeiro de 1919.
As mulheres tiveram importância central tanto na primeira vitória em
São Petersburgo quanto na derrota final em Berlim. Elas, muito aos poucos,
gradualmente, ganharam proeminência na tradição revolucionária; mas ga­
nharam maior importância especialmente nos movimentos alemão e russo. A
Revolução de Março em São Petersburgo foi deflagrada por uma manifestação
de massa em razão do Dia Internacional da Mulher. O levante de janeiro em
Berlim terminou com o assassinato da única grande figura revolucionária da
época a rivalizar com Lênin em estatura: Rosa Luxemburgo.
Como em Bruxelas no mês de agosto de 1830, também em São Petersburgo
em março de 1917 uma festividade popular teve conseqüências mais amplas
e imprevistas. Assim como uma apresentação de ópera havia deflagrado uma
revolução nacional em 1830, uma manifestação de mulheres, essencialmente
apolitica, deu início a uma cadeia de acontecimentos em 1917 que levou à
revolução social. Em ambos os casos, há uma espécie de lógica interna. O
melodrama operistico romântico, como vimos, era um símbolo e estímulo
794 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

para a causa visceral da revolução nacional. A causa das mulheres, por


outro lado, se ligava de igual modo à tradição rival e mais racionalista da
revolução social.
Numa reprise final da história de revolucionários sem poder, pode ser
adequado atentar à função das mulheres, um grupo social que, na Europa
do século XIX, era bastante desprovido de poder. Sua lenta progressão até
alcançar proeminência no movimento revolucionário em geral reflete a gradual
ascendência da revolução social sobre a nacional, a substituição da liderança
ítalo-polonesa pelos movimentos alemão e russo. As mulheres deram especial
força a esses dois movimentos na Europa não-católica — tornando-os uma
subcultura completa capaz de sobreviver à repressão, cooptação e isolamen­
to impostos por governos autoritários e sociedades hostis. As mulheres se
envolveram com acontecimentos revolucionários especialmente no rescaldo
da Primeira Guerra Mundial, produzindo em Rosa Luxemburgo talvez a
revolucionária com caráter profético mais autêntico do início do século xx.
Esta discussão do envolvimento de mulheres nas tradições revolucionárias
só pode arranhar a superfície de um problema complexo. Necessariamente
excluída do foco que dedicamos aos líderes e inovadores ideológicos, a massa
dos revolucionários da soldadesca rasa era em grande parte composta de
mulheres e, em específico, de feministas, que poderíam ser mais revolucioná­
rias ou menos. Quase que em qualquer momento do período que tomamos
em consideração é possível encontrar algumas mulheres a compartilhar e
ecoar as demandas políticas e econômicas lançadas por homens. Outras
buscavam alterar somente o papel social das mulheres, que ainda estavam
confinadas a posições fixas e subordinadas no sistema familiar patriarcal
europeu. Aquele primeiro grupo aceitava de modo mais ou menos passivo
a agenda estabelecida pelos revolucionários homens; já o segundo grupo
se identificava com o movimento revolucionário maciçamente masculino
apenas de modo episódico.
Nossa discussão se centrará numa terceira categoria de mulheres: as revo­
lucionárias criadoras e proféticas que foram não só originais, como também
importantes dentro do movimento revolucionário. Essas mulheres não raro
trouxeram para o movimento mais amplo uma aura especial de superioridade
moral, nascida em parte da própria exclusão delas do poder. A crítica que
faziam da sociedade européia tendia a ser especialmente alargada, a indicar
o rumo de uma revolução social para além das perspectivas locais. De vez
em quando, foram inteiramente além da dimensão social, sugerindo novas
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 795

dimensões sexuais, culturais e psicológicas para o pensamento revolucionário.


Como esses são assuntos hoje de renovado interesse e de incerto significado
no futuro, esta última visada retrospectiva das origens do movimento revo­
lucionário se concentrará nas mulheres.

As francesas
Como no caso de muitas outras coisas que abordamos, a história das revo­
lucionárias começa na barafunda da Revolução Francesa. Os pensadores
do Iluminismo se preocuparam em grande medida com a questão exígua
de como a educação poderia melhorar o destino das mulheres.1 Rousseau,
proto-revolucionário sob outros aspectos, foi o primeiro de uma longa série
de antifeministas convictos da esquerda francesa. As mulheres tiveram pouca
importância na Revolução Americana e nas etapas iniciais da Revolução Fran­
cesa. Um pequeno grupo de revolucionárias feministas, contudo, logo surgiu
na França. Olympe de Gouges, “a alta sacerdotisa do feminismo”,2 esboçou
uma Declaração dos Direitos das Mulheres (para a qual tentou conseguir o
endosso de Maria Antonieta) que complementasse a Declaração dos Direitos
do Homem. Mary Wollstonecraft censurou Burke por rejeitar a Revolução
Francesa, escreveu uma Reivindicação dos Direitos das Mulheres e viajou
deslumbrada para a Paris republicana de 1892. Esposa do libertário anarquista
William Godwin e mãe da esposa do poeta romântico e ateu Shelley, ela foi
uma espécie de matriarca da tradição revolucionária feminina, a despeito
de sua falta de influência na Inglaterra, sua terra natal, ou na Escandinávia,
para onde se dirigiu depois de deixar a França revolucionária.3
O Círculo Social de Bonneville estava quase só na reivindicação de
igualdade radical para as mulheres, em grande parte através de sua notável
porta-voz feminista, a baronesa holandesa Etta Palm d’Aelders.4 O único
pensador a ligar uma visão social radical a idéias revolucionárias sobre o
papel das mulheres (e a fazer uma especulação sobre as possibilidades po­

1 L. Abensour, La Femme et le féminisme avant la révolution, 1923; também Abray, “Feminism*.


2 W. Stephens, Women of the French Revolution, NY, 1922, p. 245, ao que parece citando Michelet,
Les Femmes de la Révolution, que fez pela primeira vez muitos perceberem o papel especial das
mulheres na revolução.
3 Entre os biógrafos dela, ver esp. C. Tomelin, The life and death of Mary Wollstonecraft, L, 1974;
também o livro dela A historical and moral view of the origins and progress of the French Revolution,
and the effect it has produced in Europe, L, 1794.
4 A única monografia existente sobre Palm (W. Koppius, Etta Palm: Nederland's eerste Féministe,
Zeist, 1929) mal arranha a superfície do assunto. V. pp. 30-41,47,67, sobre o seu papel no Círculo
Social. V. às pp. 73-80 seu discurso à organização filiada Confederação dos Amigos da Verdade.
796 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

limorfas da experiência sexual) foi, como vimos, um homem: o criador da


palavra “comunista”, Restif de la Bretonne.
O espírito prevalecente no período revolucionário francês era o de Les
Révolutions de Paris, que recomendava às mulheres ficarem em casa e “tri­
cotarem calças para os nossos bravos sans-cullotes”.5 “Politicamente, ao fim
da revolução as mulheres estavam piores do que no seu início”;6 e, com os
ajustes feitos em 1815, as mulheres não ganharam novos direitos além dos
de herança e divórcio — e este último seria logo revogado por Luís xvm.
A índole e o legado da era napoleonica eram agressivamente masculinos.
Houve uma espécie de luta na França entre o mundo feminino dos salões
e o mundo masculino do grande armée. Os inimigos internos mais tenazes
de Napoleão foram mulheres: primeiro as idéologues reunidas em torno
da última figura maternal dos salões, Mme. Helvétius; e depois as liberais
românticas reunidas em torno de Mme. De Staël.7
Os revolucionários do período da Restauração na Europa continental
eram exclusivamente homens: pequenos bandos de baixos oficiais das guerras
napoleônicas e estudantes que se agrupavam em fraternidades de tipo maçô-
nico. Buonarroti, o pioneiro da revolução social, rompeu com esse padrão
de recrutamento restrito a homens dos revolucionários nacionais anteriores.
Exilado na Suíça durante o início da Restauração, buscou trabalhar com
conhecidas que tinham o emprego temporário de professoras em escolas
para meninas, a fim de assim recrutar mulheres para a sua organização re­
volucionária transnacional. Ele “sempre encontrou junto às mulheres maior
desinteresse, devoção e constância do que entre os homens”.8 Seu principal
ajudante dizia ter criado “um verdadeiro exército de moças sabichonas”9
na Suíça. Mas, ao que parece, a organização revolucionária mais interna
de Buonarroti nunca aceitou mulheres — aparentemente em razão de dois
problemas que ele identificou: a insolência congênita delas (que tratariam
os homens como “peças de mobília doméstica”) e sua inabilidade para lidar
umas com as outras sob pressão.10 Prati acrescentou a queixa mais vil de

5 Stephens, Women, p. 171.


6 Stephens, p. 174.
7 F. Picavet, Les Idéologues, 1891, p. 31, 221, ss, nota 2; A. Giullois, Le Salon de Mme. Helvétius,
1894; e P. Gautier, Mme. De Staël et Napoléon, 1903.
8 Prati, em Penny Satirist, 12 de maio de 1838, p. 1.
9 Ibid., p. 2.
10 Ibid., pp. 1-2.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 797

que as mulheres, nas reuniões de radicais, se mostravam tão pouco atraentes


a ponto de levar “o mais ardente amante da feminilidade a fazer um voto
eterno de celibato”.11
Na Inglaterra, o feminismo se mostrou antes uma causa reformista do que
revolucionária. O movimento pelo sufrágio das mulheres tinha se iniciado já
em 1818—1819. A versão original da Carta do Povo pediu o sufrágio universal
dos adultos, o que foi só depois revisado para o sufrágio dos homens.12 O
feminismo inglês, assim como o norte-americano, se movia nas altas classes
burguesas como uma busca pelo voto; raramente se ligava ao socialismo
como ideologia ou ao proletariado como classe.13
Na França, contudo, um feminismo verdadeiramente revolucionário se
tornou uma grande força entre as revoluções de 1830 e 1848. O reino da
política e do poder ainda era dos homens, mas o advento das mulheres no
jornalismo trouxe preocupações morais mais vastas sobre a sociedade como
um todo e um novo pendor para o internacionalismo pacifista. As mulheres
ajudaram a estender os horizontes para além das perspectivas com freqüência
estreitas das conspirações anteriores só de homens, fazendo-as visões mais
amplas de uma humanidade transformada.
Os sempre inventivos saint-simonianos tomaram a dianteira ao proclamar
que a vindoura revolução social seria liderada por um messias mulher. De­
siludidos com a revolução puramente política de 1830 e com o seu próprio
fracasso em estabelecer uma nova sociedade em Paris sob o comando do
“Pai Enfantin” em 1832 (“o ano do pai”), um grande grupo de saint-simo­
nianos proclamou 1833 “o ano da mãe”, designando-se a si próprios de
les compagnons de la Femme14 e partindo para o Oriente em busca de urna
salvadora. O líder deles, Barrault, proclamou-se o “São Pedro da Messias
Mulher” e viu presságios favoráveis em erupções vulcânicas, na aparição do
cometa Halley e na morte de Napoleão n (supostamente o último messias
homem possível). Endereçou um apelo “As Mulheres Judias”, saudando-as

11 Penny Satirist, 29 de setembro de 1838, p. 4. Refere-se à Inglaterra do fim da década de 1920.


12 J. West, A history of the Chartist Movement, Boston, 1920, pp. 36-37.
13 A atitude não-revolucionária ficou explícita na canção sufragista do início do século xx: “Pela
segurança da nação / Às mulheres dar o voto. / Pois a mão que balança o berço / jamais irá mudar
o mundo [rock the boat}”. G. Lerner, “The Feminists: A Second Look”, em Columbia Forum, 1979,
outono, p. 25.
14 O relato clássico ainda é o de S. Charléty, Histoire du saint-simonisme (1825—1884), 1931, pp.
205-234. V. também Fahmy-Bey (pseudônimo de Johan d’Ivray), L’Aventure saint-simonniene et
les femmes, 1928; e Ch. Patureau-Mirand, De la Femme et son rôle dans la société, d'après les écrits
saint-sim omens, Limoges, 1910, que é um estudo mais analítico.
798 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

por rejeitar a idéia de um messias homem e por, em vez disso, produzirem


“banqueiros de reis” e o “laço industrial e político entre os povos”. Contra
a sua crença de que as judias poderíam produzir um novo messias feminino,
outro saint-simoniano argumentou que a índia tinha produzido deusas mais
sensuais e um Deus mais verdadeiramente “andrógino” do que o “autorita­
rismo masculino” dos judeus.15
Havia um cerne de seriedade em tudo isso. A idéia de que a androginia (o
estado de Adão antes da queda) era a única condição humana verdadeiramen­
te livre tinha, desde Böhme, sido um conceito central na tradição ocultista.
A preocupação romântica de superar a “alienação” levou alguns a propor
questões além da dimensão social acerca da alienação básica e biológica de
um sexo para com o outro. A androginia apareceu tanto como o objetivo
da humanidade como a chave da imortalidade na última obra de Enfantin,
La vie éternelle (1961).16
Fourier acreditava que a renovação social requeria o equilíbrio de 12
paixões básicas e 810 “principais caráteres” criados pela interação entre elas.
Mesmo aqueles que não cultivavam esse tipo de fantasias ficaram intrigados
com o seu conceito de libertação total e de satisfação das paixões em falans-
térios culinários. Um aspecto particularmente agradável desse sistema era
a emancipação das mulheres de seus limitados papéis familiares; e, ao que
parece, o termo “feminismo” foi criado por Fourier.17
Os saint-simonianos defendiam que um homem e uma mulher unidos
(le couple prêtre) deveríam substituir o indivíduo como unidade básica da
sociedade, de modo a garantir a igualdade entre os sexos e a sociabilidade
dentro da sociedade.18 A construção de um novo tipo de família era para eles
um pré-requisito de uma sociedade renovada. Com o fracasso da revolução
política de 1830 e da própria propaganda de massa que eles fizeram em 1831,
os saint-simonianos radicais pensaram que as mulheres, não menos que os
trabalhadores, poderíam proporcionar novas mensagens de libertação. Entre

15 Charléty, pp. 212-213.


16 Publicado em inglês como Eternal Life, Chicago, 1926.
17 Stephens, Women, p. 236, nota 1, encontra o primeiro uso do termo em Fourier, Le Théorie des
quatre mouvements, 1808 — uso que não localizei e que não está incluído na relação das invenções
linguísticas de Fourier presente em Bestor.
A inter-relação entre a cosmologia freqüentemente ridícula de Fourier e suas pretensões sociais
consideradas mais sérias é enfatizada em N. Riasanovsky, The teaching of Charles Fourier, Berkeley/
Los Angeles, 1969.
18 Patureau-Mirand, pp. 79-95.
LIVRO ni, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 799

as convertidas devotadas à criação de uma nova “família” havia uma moça


proletária órfã, Suzanne Voilquin, que tomou parte (junto a seu esposo,
irmã e cunhado) do jornal das operárias, La Femme Libre. Como o título
dava vezo a algum ridículo, logo o alteraram para La Femme de VAvenir [A
Mulher do Futuro] e, depois, para La Femme Nouvelle, ou Tribune Libre
des Femmes. Mas esses jornais fracassaram, bem como a busca oriental por
um messias mulher.19
A viagem ao Oriente, vista em retrospecto, pode parecer uma fantasia
cômica ou uma reprise patética da expedição de Napoleão ao Egito. Con­
tudo, ela dirigiu os saint-simonianos para a terra que viria a construir um
monumento às suas crenças, remodelando as rotas marítimas do mundo: o
Canal de Suez. Mais ainda, as aventuras deles não deixaram de os levar a uma
espécie de messias mulher, pois, a caminho do Oriente, Barrault conheceu e
converteu à nova doutrina saint-simoniana um obscuro segundo oficial do
navio, Giuseppe Garibaldi, então com 25 anos.20 Este estava destinado a se
tornar não só um dos mais bem-sucedidos revolucionários do século, mas
também um dos mais profundamente dependentes de uma mulher.
Em 1839, depois de outras muitas viagens oceânicas e de vários anos de
aventura revolucionária no Uruguai e no Brasil, Garibaldi repentinamente
perdeu seus camaradas italianos em um naufrágio e foi arrastado, desolado,
até a costa brasileira. De acordo com o testemunho dele próprio, resolveu-se
a encontrar uma mulher como sua única esperança, olhou pelo telescópio
do navio uma figura feminina esplendidamente atlética, desceu à terra para
lhe dizer “você deve ser minha” e a trouxe à bordo.21 Seja qual for a versão
verdadeira da história, não há dúvida de que Anita, a sua “amazona bra­
sileira”, o salvou da ruína. Ao longo de toda a década seguinte, ela estaria
inseparavelmente ao seu lado, mesmo durante longas cavalgadas e combates
aguerridos, até ser morta nos arredores de Roma em meio ao colapso da re­
pública revolucionária que eles haviam estabelecido lá por um breve período.

19 Fahmy-Bey, pp. 57-67; E. Sullerot, La Presse feminine, 1966, pp. 19-20; também S. Voilquin,
Souvenirs d’une fille du people ou les saint-simoniennes en Egypte, 1966. Para urna bibliografìa, v.
Walch, p. 42.
20 Charléty, p. 212, nota 2; Parris, Lion, pp. 5-12,20-29, que se orienta por novas pesquisas, dá grande
importância à viagem de Garibaldi até Clorinda com os saint-simonianos. Vê a influência deles, de
um modo geral, como wa chave de compreensão para toda a vida e conduta dele* (p. 22), mas não
discute o conceito de messias mulher, que era à época a principal preocupação dos saint-simonianos.
21 Parris, p. 54 ss.
800 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

As mulheres recém-mobilizadas da França do início do século xix


não eram nem revolucionárias nem messias: não eram mais dames^ mas
tampouco eram ainda citoyennes. Se os homens tinham celebrado sua
oposição revolucionária à aristocracia se vestindo à maneira que se cha­
maria de sans-culottes^ também algumas mulheres começaram a desafiar
a convenção burguesa usando roupas masculinas.2223 Os jornais de público
24
feminino foram aos poucos trocando a moda e as fofocas pela sátira social
e questões reformistas.
As feministas saint-simonianas conturbaram um discurso de Robert
Owen em Paris, em 1837, e o fizeram de um modo que prenunciou protes­
tos posteriores internos à esquerda contra o “chauvinismo masculino”. A
jovem mulher que denunciou a ausência de mulheres no pódio de Owen
estava assim desafiando a identificação de reforma social radical com o
racionalismo árido e a organização exclusivamente masculina do princi­
pal anfitrião de Owen, César Moreau, fundador da Société de Statistique
Universelle e editor de L’Univers Maçonnique.13
O novo e mais importante aspecto da agitação social que pode ser
atribuído em grande parte às mulheres era uma paixão pelo pacifismo e
pela não-violência. Delphine Gay e George Sand colaboraram numa cam­
panha pela abolição “de todas as penas violentas e a supressão de todas
as guerras” no jornal cristão moderado Journal de Femmes, que começou
a ser publicado em 1832. Eugénie Niboyet, editora de vários jornais para
mulheres e destacada feminista em Paris, fundou em Lyon o primeiro pe­
riódico pacifista: La Paix des Deux Mondes 14
O ingresso das mulheres na atividade revolucionária estava diretamente
relacionado ao surgimento de uma tradição revolucionária social que riva­
lizava com o nacionalismo. Por mais sugestivo que tenha sido o exemplo
de Anita Garibaldi, o fato é que as mulheres praticamente não desempe­
nharam papel algum nos movimentos nacionalistas ítalo-poloneses. Dos

22 V. “De la ‘dame’ à la ‘femme’” e ilustrações em Sullerot, La Presse, pp. 15-17; também H.


Haustein, “Transvestitismus und Staat am Ende des 18. und im 19. Jahrhundert”, em Zeitschrift
für Sexualwissenchaft, vol. xv, 1928-1929.
Para uma tentativa de derivar a imagem revolucionária das mulheres a partir do retrato que delas era
feito na arte visual de propaganda anterior a 1848, v. E. Hobsbawn, “Man and Woman in Socialist
Iconography”, em History Workshop Journal, 1978, outono, pp. 121-138.
23 Gans, “Owen à Paris”, pp. 41-44.
24 Sullerot, p. 20. Delphine Gay, filha da escritora Sophie Gay e esposa do editor Émile Girardin, foi
a mais influente das críticas sociais mulheres e, ao mesmo tempo, a última porta-voz da crença dos
idéologues na psicologia como uma ciência libertadora. V. seu Physiologie du ridicule, 1833.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 801

5.472 emigrados poloneses registrados na França em 1839, quase todos


eram nacionalistas revolucionários e menos de dois mil eram mulheres.25 A
mais notável nova profeta do pacifismo e do antinacionalismo no período
pré-1848 foi outra latino-americana, a qual chegou mais perto do que
Anita Garibaldi de desempenhar o papel de messias mulher: Flora Tristan
y Moscozo. Filha de um aristocrata peruano que supostamente descendia
de Montezuma e futura avó de Gauguin, Tristan foi a primeira pessoa a
pensar numa solidariedade de classe desnacionalizada entre os proletários.26
Ao fim das andanças físicas e espirituais ampiamente recordadas em
seu livro Peregrinações de uma Pária, Tristan tomou parte nos anos 1840
das causas das mulheres e dos trabalhadores, os dois “párias” do mundo
moderno.2728 Depois de deixar o marido, que quase a havia matado, voltou
a usar o nome de solteira e foi para Londres. Horrorizada com a pobreza
e inumanidade de lá, chamou-a de “cidade monstro” [La Ville Monstre].23
Ela foi a toda parte, da Câmara dos Lordes (em cujos recintos exclusivos
dos homens entrou disfarçada de turco)29 até o famoso asilo de loucos de
Bedlam, onde parece ter adquirido seu senso de chamado messiânico.30
Tristan viajou pela França em busca de correligionários para a sua
projetada Union Ouvrière, ganhou a colaboração de George Sand e se
correspondeu com jornalistas alemães sobre sua idéia de uma “união uni­
versal” dos trabalhadores.31 Ela associava o termo proletariado não só à
categoria econômica dos trabalhadores desprovidos de propriedade, mas
também com a missão moral de salvar a humanidade de todas as suas divi­
sões — incluindo aquela entre os sexos. O herói de seu romance socialista
verdadeiramente fantástico, Méphis ou o Proletário, era um rico banqueiro

25 S. Kalembka, Wieka Emigracja, 1971, p. 284; Borejsza, “Portrait”, p. 138.


26 V. a obra dela Union ouvrière, Paris/Lyon, 1844 (reimpressa em 1967), esp. p. 47 ss.; também o
depoimento negligenciado do seu contemporàneo alemão A. Ruge, “Flora Tristan und die Union
ouvrière”, em Sämtliche Werke, 1848, vol. v, pp. 93-102.
J. Puech, La Vie et l’oeuvre de Flora Tristan 1803-1844 (L’Union ouvrière), 1925, permanece um
estudo fundamental. V. também C. Gattey, Gauguin’s astonishing grandmother: a biography of
Flora Tristan, L, 1970; J. Baelen, La vie de Flora Tristan, 1972; P. Leprohon, Flora Tristan, 1979; e
o relato edulcorado feito por D. Desanti, Flora Tristan. La femme revolte, 1972.
27 A melhor discussão a respeito é M. Thibert, “Féminisme et socialisme d’après Flora Tristan”, em
Revue d’Histoire économique et sociale, vol. ix, 1921, pp. 115-136; também Puech, pp. 337-356.
28 Título da segunda ed. de 1842 de Les Promenades dans Londres, 1840. V. Puech, p. 115, nota 3.
29 Puech, p. 100.
30 Ibid., pp. 105-106. Passou doravante a se referir a Bedlam como Bethlehem [Belém].
31 Ibid., p. 417 ss.; também A. Zévaès, “Flora Tristan et l’Union Ouvrière”, em La Révolution de 1848,
1934, dez., 1935, jan.-fev., pp. 213-222.
802 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

que, ao mesmo tempo, assumia a forma encantada de um messias mulher e


se declarava proletário.32
Tristan permaneceu fantasiosamente produtiva até sua morte no início
de 1844. Dizia que a segunda vinda de Cristo seria bem mais animada do
que a primeira, já que não viria mais sozinho, e sim acompanhado de uma
femme-guide.33 Também defendia que as três pessoas da Trindade deveríam
na vindoura era socialista ser representadas como Pai, Mãe e Embrião.34
Seu último livro foi escrito junto com o ocultista Abbé Constant, pois ela
havia mergulhado na bizarra subcultura de feministas místicas sob influência
de um livro dele, A assunção da mulher 35 As mais fantásticas eram as “fusio-
nistas”, as quais proclamaram a Festa da Assunção de 1838 o “primeiro dia
de Evadah”, no qual uma nova espécie andrógina (que recombinava Eva e
Adão, daí seu nome) começaria a transformar a Terra. Falando na condição
de le Mapah (unindo “mama” e “papa”), o prolífico autor dessa seita persis­
tiu em suas crenças, chegando a proclamar 1845 “o ano do paráclito”.36 O
saint-simoniano D’Eichtal defendeu que a doutrina da trindade era na verdade
“une haute formule [uma alta fórmula] zoologique” de harmonização de
todo conflito terrestre. A raça branca “masculina” e a raça negra “feminina”
deveríam gerar “a nova humanidade mulata [...] que ainda está no berço”.37
Flora Tristan contribuiu para a “emancipação da mulher”, tema do seu
primeiro livro e título do seu último.38 Mas a sua verdadeira importância,
e das novas jornalistas em geral da década de 1840, se deve ao fato de ter
injetado no movimento socialista mais amplo preocupações que refletem

32 Puech, p. 402 ss., sobre Méphis ou le Prolétaire, 1838.


33 Thibert, pp. 128-129.
34 Puech, pp. 2, 309-391.
35 Abbé Alphonse-Louis Constant (depois Éliphas Levy), L’Assomption de la femme, ou le livre de
l’amour, 1841, nota 1, indica que antes tinha a intenção de intitular o livro “evangelho do amor”.
Ela dispôs que, depois de morta, sua cabeça fosse legada ao presidente da Sociedade Frenològica. J.
Marillier, “Pierre Moreau, ‘L’union’”, em Actualité de [’Histoire, 1953, n° 5, p. 13. Thibert discute
o feminismo de Esquiros e outros no seu valioso La Féminisme dans le socialisme français de 1830
à 1850, 1926, p. 384.
36 Para esses e outros detalhes sobre o ex-marinheiro Louis de Tourreil, sua doctrine fusioniene e religion
fusionienne, bem como o desenvolvimento que Constant deu a essas idéias, v. Viatte, Victor Hugo
et les illuminés, pp. 82-97.
37 D’Eichtal e Urbain, Lettres sur la race noire, pp. 18, 60-63, nas quais a nova trindade de branco,
negro e mulato é descrita como “une nouvelle loi de famille”; também pp. 64-67, nota 2, sobre
tentativas posteriores de extrair um significado social e profético da doutrina da Trindade. Eichtal,
que era judeu, estava se dirigindo a Urbain, que tinha se convertido ao islamismo.
38 Nécessité de faire un bon accueil aux femmes étrangères, 1835; e o livro publicado postumamente
L’Emancipation de la femme, ou le testament de la paria, 1846.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 803

(pelo menos em parte) algo de próprio ao seu sexo: um comprometimento


com a não-violência, uma oposição internacionalista a qualquer revolução
puramente nacional e uma simpatia especial pelos esquecidos, os sofredores
“invisíveis” da nova sociedade industrial: prisioneiros, pacientes de asilos
mentais e as vítimas da discriminação religiosa e racial.39 Em seu último ano
de vida, conseguiu 10 mil assinaturas para uma petição pela libertação dos
negros.40 Tendo antes levado um tiro do seu marido autoritário e incestuoso,
Tristan sentia que as mulheres deveriam desempenhar um papel central na
futura luta social para preservar a não-violência, pois nas questões humanas
“o poder intelectual sucede à força bruta”.41
Nos Estados Unidos, a causa dos direitos das mulheres também se ligava
com freqüência com a dos direitos dos negros e da não-violência.42 O Oberlin
College, que foi pioneiro na admissão de negros em pé de igualdade com os
brancos, também se tornou em 1841 o primeiro a graduar mulheres. As duas
causas se fundiram numa notável contemporânea e contraparte norte-americana
de Flora Tristan: Frances Wright. Ela era o mais raro de todos os fenômenos:
uma revolucionária abnegada em uma sociedade próspera e pós-revolucionária.
Filha de um rico comerciante escocês, Frances (Fanny) Wright publicou
em Londres Visões da sociedade e costumes na América (1821), livro que
inspirou revolucionários por toda a Europa durante o período da Restauração
e a levou a um contato íntimo e de toda a vida com o Marquês de Lafayette,
à época com 67 anos. No primeiro encontro deles, ele elogiou os escritos
dela sobre a Revolução Americana: “Você me fez reviver aqueles dias [...]
Éramos um exército de amigos; compartilhávamos tudo, nossos prazeres,
nossas dores, nosso dinheiro e nossa pobreza”.43
As esperanças dela se misturaram às lembranças dele. Ela passou longos
períodos no quarto situado embaixo do dele na estância rural do revolucionário
francês. A América era, nas palavras de Wright, “nossa utopia”;44 e sua crença

39 Sullerot, “Journaux”, pp. 109-110.


40 Presse ouvrière, p. 132.
41 Citado em Thibert, p. 128.
42 Sarah Grimke, Letters on the equality of the sexes and the condition of women, Boston, 1838;
outras obras discutidas em W. O’Neill, The Woman Movement: feminism in the United States and
England, NY/L, 1969, pp. 19-21.
43 W. Waterman, Frances Wright, NY, 1924, p. 64.
44 A. Perkins e T. Wolfson, Frances Wright free enquirer: the study of a temperament, NY/L, 1939.
NY/L, 1939, p. 64. V. também pp. 385-386 para uma bibliografia dos escritos dela; mas não existe
nenhuma biografia séria de Wright nem tampouco uma relação completa de sua obra.
804 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

comum na perfeição do Novo Mundo formou a base de uma “amizade nada


comum”.45 Muitos foram os rumores de que ela fosse sua amante, mas na
verdade ela tentou se tornar filha adotiva dele. Depois de retornar a Londres,
correspondeu-se com ele incessantemente (não raro em código) ao longo do
período das intrigas da carbonária. Acompanhou-o até os Estados Unidos em
setembro de 1824, permaneceu junto dele na maior parte do tempo de sua
triunfal e longa viagem e, no verão revolucionário de 1830, retornou para a
França, onde passou outros cinco anos de renovada colaboração com Lafayette.
Uma mulher bonita de quase 1,80 metro de altura, Fanny Wright era fre-
qüentemente vista usando roupa similar a uma toga branca. Dava aos seus
amigos nomes da antigüidade clássica (Jeremy Bentham era “Sócrates”), e ela
própria se tornou uma espécie de deusa clássica para muitos revolucionários
jovens. Serviu de companhia e consoladora para o mártir irlandês Wolfe Tone
em Nova York, para o general italiano Pepe em Londres e para um amante
não identificado conhecido apenas por meio de sua correspondência com o
pseudônimo revolucionário de “Eugène”.46
Na segunda metade dos anos 1820, Fanny Wright tentou realizar um
plano grandioso de libertação dos escravos norte-americanos, integrando os
negros em um novo tipo de comunidade igualitária: novas áreas de plantation
que seriam transformadas em colônias owenitas produtivas. Trabalhando de
perto com o filho de Robert Owen (e tentando recrutar a viúva de Shelley),
ela estabeleceu uma comunidade-piloto multirracial em Nashoba, Tennessee,
e depois na principal colônia owenita de New Harmony, Indiana. No dia 4
de julho de 1828, tornou-se a primeira mulher do Novo Mundo a fazer o
principal discurso numa grande celebração pública desse feriado nacional.47
Ardente jacksoniana, mudou-se para a Filadélfia, em meio à crescente
turbulência trabalhista quando do lançamento da primeira folha de tra­
balhadores da história, a Mechanics' Free Press, em 1828. Em Nova York,
fundou uma sociedade radical de propaganda, os Questionadores Livres, que
fez da celebração do aniversário de Thomas Payne o seu principal evento e
estabeleceu filiais em outras cidades, em parte seguindo o modelo dos car-
bonários.48 Ainda preocupada com a questão racial, partiu para o Haiti com

45 Waterman, p. 65.
46 Perkins, pp. 54-84.
47 De acordo com Perkins, p. 208. V. também pp. 127,175-176,193-194, sobre os principais elementos
de seus experimentos utópicos; e Waterman, pp. 94-97, sobre os panfletos desse período.
48 Perkins, pp. 248-254.
LIVRO 111, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 805

um grupo de negros e o pintor e educador francês Guillaume Sylvain Casimir


Phiquepal D’Arusmont, com quem se casou em 1831 depois de engravidar.
Em 1830, primeiro entusiasmada com a Revolução de Julho na França,
depois desiludida, concluiu que somente nos Estados Unidos se poderia
realizar uma revolução universal definitiva. Via essa revolução como atéia,
igualitária e anarquista. Nos seus últimos 17 anos de vida após o retorno à
América em 1835, comprou a casa em Cincinnati do anarquista Josiah Warren
e defendeu “o povo cavalgado da terra” contra os “cavalgadores cde bota
e espora’”. Tornou-se cada vez mais apocalíptica à medida que retrocedia
a onda revolucionária nos Estados Unidos pós-jacksoniano. Às vésperas de
1848, predisse que a América se avizinhava de uma “quarta era” da humani­
dade. O cristianismo, a “religião dos reis”, tinha dado lugar ao feudalismo,
o qual foi substituído nos Estados Unidos primeiro pelo “sistema bancário
e financista” e agora por uma religião inteiramente secular do povo.49
Uma concepção extremada do papel das mulheres era de fundamental
importância para os seus ensinamentos revolucionários. Levara Lafayette em
1824 para ouvir a pioneira da educação de mulheres, Emma Willard, em Troy,
Nova York; e era tão contrària ao uso do termo masculino “fraternidade”,
que alterou o slogan revolucionário clássico de “liberdade, igualdade e fra­
ternidade” para “liberdade, igualdade e altruísmo”.50 Mas ela fez inimigos ao
defender que as crianças fossem tiradas de seus pais ao completarem dois anos
e colocadas em escolas públicas que iriam lhes inculcar idéias igualitárias. Sua
oposição à instituição da família e a toda religião organizada a indispôs até
com os abolicionistas radicais; e seu desejo de que se misturassem de maneira
ágil as raças, a fim de criar uma população uniformemente mulata, provocou
reações racistas. Morreu quase esquecida em 1852. Os marcos do movimento
por emancipação das mulheres no mundo anglo-saxão passaram por ela: o
início do movimento pelo sufrágio feminino na Convenção Antiescravagista em
Londres, em junho de 1840, e a primeira convenção dos direitos das mulheres
convocada pela Sociedade de Amigos de Nova York, no verão de 1848.51

49 Ver suas palestras sobre “A Natureza e História da Civilização Humana”, discutidas em Waterman,
pp. 246-254; e England the Civilizer — Her History Developed in Its Principles, L, 1848.
50 Perkins, pp. 110, 372.
51 Perkins, p. 363; resoluções da conferência em O’Neill, pp. 108-111. Elizabeth Cady Stanton, à
qual, em razão de seu sexo, foi negado um assento na conferência anterior; tornou-se uma líder
radical da reunião seguinte. Sua “Declaração de Sentimentos” se baseou em parte na Declaração de
Independência; e o jornal que cofundou com Susan B. Anthony depois da Guerra Civil se chamou
Revolução. V. O’Neill, “Feminism as a Radical Ideology”, A. Young (ed.), em Dissent: explorations
in the history of American Radicalism, DeKalb, 1968, p. 279.
806 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Foi na Europa continental, e não nos Estados Unidos ou na Grã-Bretanha,


que o feminismo se ligou à revolução.52 Fanny Wright foi atraída para a
causa revolucionária pela primeira vez ao 1er uma história da Revolução
Americana escrita por um italiano, o qual tinha projetado sobre a experi­
ência norte-americana as suas próprias esperanças em torno da libertação
nacional italiana.53 K grande dame do feminismo radical na Nova Inglaterra,
Margaret Fuller, de Brook Farm, se tornou uma verdadeira revolucionária
só na Itália, quando teve seu interesse despertado pela Revolução de 1848
depois de visitar George Sand, em 1847.54

52 As mulheres de fato desempenharam um papel crucial na efervescência revolucionária do começo


do século xx. As principais personalidades iam de Lucy Parsons, a viúva do único mártir que falava
inglês na Revolta de Haymarket, a qual esteve presente no palanque do congresso de fundação da
iww, até a editora anarquista emigrada Emma Goldman. Mas quem exerceu função primordial
foi uma série notável de irlandesas radicais que haviam, no Novo Mundo, passado da revolução
nacional à revolução social. A linhagem de líderes ia da mítica “Molly Maguire”, que emprestara
seu nome à conspiração da década de 1870, passava pela heroína dos mineradores Mary (“Mãe”)
Jones, outra mulher fundadora da iww e que chegaria aos cem anos de idade, até Elizabeth Gurley
Flynn, companheira e correspondente de Joe Hill nos últimos dias de vida dele, a “moça rebelde”
das suas baladas. V. Gurley Flynn, I Speak My Own Piece, NY, 1955.
Um singular papel de liderança no próprio movimento revolucionário irlandês coube a Maude Gonne,
que inspirou ao mesmo tempo extremistas de direita e de esquerda: primeiro trabalhou tanto com
os boulangistas franceses quanto com os republicanos irlandeses, depois tanto com o seu marido
revolucionário (John MacBride, um mártir da Revolta da Páscoa em Dublin, em 1916) quanto com
o reacionário que a admirou ao longo de toda a vida, o poeta William Butler Yeats. As biografias
recentes de S. Levenson (NY, 1977) e N. Cardozo (NY, 1978) devem ser complementadas — quanto
a esses aspectos da carreira dela — pelo estudo planejado por L. O’Neill, The Gyres of Gonne: the
influence of Maude Gonne MacBride on Modern History.
Mais militantes do que as “filhas de Erin” organizadas por Gonne, em 1900, eram os rivais
revolucionários dos escoteiros, os “Garotos de Erin”, organizados pela revolucionária ainda mais
profissionai Constance Markiewicz em 1909. Filha do Lorde Gore-Booth, casou-se com um polonês
para dar mostras de afinidade revolucionária, participou da Revolta da Páscoa de 1916 e se tornou
a primeira ministra do trabalho no primeiro governo independente da Irlanda — e a primeira
mulher no Ocidente a ficar à frente de um ministério. V. J. van Voris, Constance de Markievicz, Old
Westbury, 1972, pp. 8, 39 ss. Eamon de Valera depois observaria que “as mulheres são ao mesmo
tempo os mais ousados e os mais intratáveis dos revolucionários”. Ibid., p. 9.
53 Carlo Botta, Storia della guerra del’independenza degli Stati Uniti d’America, Paris, 1809, 4 voi.
Seu quadro de referência era em geral europeu. Quando de sua primeira viagem aos Estados Unidos
em 1818—1819, ela escreveu uma peça que glorificava um revolucionário suíço, obra que, segundo
acreditava, inauguraria uma escola inteiramente nova de teatro (Altorf, a tragedy, Filadélfia, 1819;
discutido em Perkins, pp. 12-13). Sua mensagem revolucionária romântica, contudo, estava em
desacordo com a inclinação chauvinista da nova nação; e, quando da visita triunfal do General
Andrew Jackson a Nova York, a peça dela foi substituída, talvez de modo oportuno, por Pizarro,
um drama sobre conquista colonial. Perkins, pp. 36-Al.
Mais uma vez, foi um acontecimento europeu — a eclosão e a difusão da revolução em 1830 —
que a inspirou a prever em um jornal norte-americano (Free Enquirer, 27 de novembro de 1830)
o advento iminente de uma nova sociedade que “não mais levanta nação contra nação”, à qual se
chegaria através de uma nova forma de guerra que diferia “de todos os demais conflitos em que a
raça humana se empenhou até agora [...] uma guerra de classes [...] que [...] é universal". Citado
em Waterman, p. 228; também Perkins, p. 305.
54 P. Miller (ed.), Margaret Fuller, American Romantic, NY, 1963, pp. 286-300, inclui as cartas delà
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 807

O levante europeu de 1848—1849 produziu uma série de novos jornais,


muitos com posicionamentos revolucionários. O primeiro diário de mulheres
na França, La Voix des Femmes, surgiu em março de 1848 como um “ jornal
socialista e político”; a ele se seguiram La Femme Libre, La République des
Femmes (que publicou “La Marseillaise des Femmes” no seu primeiro núme­
ro)55 e La Politique des Femmes (um jornal de operárias que logo mudou seu
nome para L'Opinion des Femmes). Um grupo notável de moças protestou
sob a bandeira de Vésuviennes no mês de março, lançou um Manifeste des
Nésuviennes em abril e fundou uma comuna feminina e igualitária em Bel­
leville, onde havia sido realizado o primeiro banquete comunista.56
Mas a libertação das mulheres ainda estava longe. Os jornais de Ribald
ridicularizavam as exigências feministas,57 e a maior parte dos revolucioná­
rios permaneceu paternalistamente indiferente às “senhoritas venusianas”.
Delphine Gay se queixou de que o grito “vida longa ao governo provisório!”
tinha sido trocado pelo de “vida longa às senhoritas provisórias!”.58
As mulheres tiveram grande importância ao longo dos anos 1840 na
glorificação das formas artísticas de simples operários e camponeses, pro­
clamando que, na presente época, “o papel criativo na poesia pertence ao
proletariado, ao povo”.59 Esse populismo literário que varreu a Europa
naquela década tem profunda dívida para com a mulher mais influente de
sua época, uma das poucas que ousaram vestir roupas de homem e adotar
um nome masculino, George Sand. Conseguiu, quase sozinha, transformar
o romance seriado em sedutora propaganda socialista. A começar pelo seu
Spiridon (1838), escrito sob a influência de Lamennais, ela inundou a França
com um novo tipo de ficção, o qual desafiava tanto o romance histórico de
sobre seu trabalho (em sua maior parte como diretora de um hospital em Roma durante o cerco à
república revolucionária). O manuscrito de sua história da Revolução Italiana, que ela considerava
sua obra mais importante, foi perdido no naufrágio que lhe tirou a vida próximo a Fire Island, Nova
York, durante seu retorno à América.
55 Reprodução do original de 1848, jun., em Sullerot, La Presse, p. 27. V. também o “Journaux” dela,
p. 88 ss., sobre a proliferação desses jornais. Para maiores detalhes e outras perspectiva, v. L. Adiei,
A l’Aube du féminisme: Les premières journalistes (1838-1852), 1979.
56 S. Rowbotham, Women, Resistance and Revolution, L, 1972, pp. 123-124; Chacornac, Levy, p. 117;
e E.Thomas, Les Femmes de 1848,1948. As primeiras partes do volume espirituoso de Rowbotham
são melhores quanto à parte inglesa do que quanto à francesa, pois nesse último caso ela nunca
distingue bem os personagens, confundindo Desirée Gay com a sua cunhada Delphine Gay, sem
nunca a identificar com o seu próprio nome de solteira, Desirée Veret (pp. 117-121).
57 Sullerot, La Presse, p. 28.
58 Ibid., p. 26.
59 Citado de Le Compagnon du Tour de France, 23 de outubro de 1851, em E. Thomas, George Sand,
1959, p. 59.
808 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Stendhal quanto o romance realista de Balzac. Ela se propunha a descrever


o homem não como ele era ou é, mas “como eu gostaria que ele fosse, como
acredito que ele deva ser”;60 e ela incendiou a imaginação revolucionária ao
identificar esse ideal com os camponeses e os proletários de uma maneira
romântica, quase sensível. Mas Sand desapareceu como voz revolucionária
com os fracassos de 1848. O Segundo Império de Napoleão m se mostrou
de espírito ainda mais agressivamente masculino do que o Primeiro Império
de Napoleão Bonaparte.
As mulheres tiveram grande importância na Comuna de Paris. As forças da
direita, que em sua propaganda atacavam com especial veemência les pétroleu­
ses, as “incendiárias” que supostamente puseram fogo em Paris, processaram
mais de mil mulheres na repressão que se seguiu.61 Um primeiro sinal de que
as mulheres russas deveriam tomar das francesas a liderança do movimento
revolucionário feminino adveio da função preeminente assumida por emigradas
russas nas duas principais organizações de mulheres na Comuna, a União das
Mulheres e o Comitê de Vigilância das Mulheres de Montmartre.62
Uma última líder da tradição revolucionária francesa surgiu do martírio
da Comuna de Paris: Louise Michel. Ela reafirmou com renovada intensidade
os temas característicos de Sand e Tristan: o internacionalismo e o pacifismo.
Conhecida por várias designações, como as de Vierge rouge, la sainte laïque
e la flamme révolutionnaire,63 seus discursos eram tão inflamados quanto
recatada era sua aparência. Sempre vestida de preto com um colar muito
branco, defendeu-se com eloqüência no julgamento dos communards, cumpriu
prisão na Nova Caledonia e retornou para se tornar a apóstola incorruptível
do sonho anarcossindicalista da grande grève.64

60 E. Dolléans, Féminisme et mouvement ouvrier: George Sand, 1951, p. 44. E. Thomas vê essa atitude
como uma justificação precursora do “‘realismo socialista’, que não é nem realista nem socialista,
mas descreve o homem modelar, o modo como se gostaria que ele fosse”. Sand, p. 59.
61 E. Thomas, The Women Incendiaries, L, 1967, p. 14. Thomas reconhece que deve haver alguma
verdade nas alegações, pp. 64-65.
62 Thomas enfatiza o papel de Elizabeth Dmitrieff, amiga e emissária de Marx e líder da união, que
era a seção feminina da Internacional francesa; e também o papel de Anna Korvin-Krukovskaya,
esposa do líder blanquista Victor Jaclard, no comitê (pp. 59-62, 74-76).
A atuação dessas duas mulheres (e de uma terceira e importante russa, E. Barteneva) é discutida
em maior detalhe por I. Knizhnik-Vetrov, Russkie deiatel’nitsy pervogo internatsionala i parizhskoi
kommuny, Moscou/Leningrado, 1964. V. também W. McClellan, Revolutionary exiles: the russians
in the First International and the Paris Commune, L, 1978.
63 E. Thomas, Louise Michel ou la velléda de l’anarchie, 1971, pp. 10, 447, e a epígrafe introdutória
de M. Barrés, Mês Cahiers, 1929, vol. vi, p. 91.
64 Thomas, Michel, p. 432.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 809

Michel era uma dessas líderes que não pertencia a nenhum partido,
“mas à Revolução como um todo”.65 Na virada do século, era talvez a
mais apaixonada e sincera inimiga do militarismo na Europa. Ao ter seu
visto negado pelos Estados Unidos e ao ser expulsa da Bélgica, a simples
sugestão de que ela deveria ir para o exterior desencadeou uma onda de
protestos e apelos ao Quai d’Orsay.66
Ela falava com brilho sobre questões que os revolucionários costumam
evitar. Depois de quase morrer no início de 1904, esboçou uma atitude
revolucionária para com a morte perante uma grande platéia em Paris.
Emprestou beleza ao ateísmo revolucionário, descrevendo a morte como
uma mera “anexação aos elementos”, uma irradiação de cheiros e cores
do corpo, um retorno à simplicidade de que ela se recordava na Nova
Caledonia depois de um tufão. As complexidades da linguagem humana
simplesmente desapareceríam; e uma simples canção “composta por um
niilista” preenchería o ar e permitiría que se descesse ao “buraco das som­
bras [...] os braços tocando de novo os muros de um abismo”.67
Como se numa paródia da pureza dessa fé, as várias facções revolucio­
nárias disputaram acerbamente pelo direito de carregar o seu corpo quando
ela morreu em Marselha no dia 9 de janeiro de 1905. Os anarquistas dispu­
taram os seus restos mortais com Rochefort, o jornalista ex-revolucionário
que a tinha mantido financeiramente mesmo depois de sua virada para o
nacionalismo reacionário. O funeral dela foi a maior procissão popular da
França desde o enterro de Victor Hugo vinte anos antes.68 À medida que
se descendia seu corpo na sepultura, gritava-se “Vida longa à revolução
russa! Vida longa à anarquia!”.69 No mesmo dia do seu enterro, irrompera
a revolução russa de 1905. Era a revolução que ela predissera logo antes de
morrer,70 e ela foi liderada por um movimento no qual as mulheres tinham
papel mais central do que jamais tiveram na França.

65 À la Révolution tout entière: S. Faure, citado em ibid., p. 444.


66 Ibid., p. 436.
67 Ibid., pp. 433-134.
68 De acordo com ibid., p. 447.
69 Ibid.
70 Ibid., p. 439. A profecia delà foi praticamente a única a sugerir, já em época tão recuada, que na
vindoura Revolução Russa “os soldados estarão com o povo”, como de fato mostraram estar em
1917.
810 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

As russas
O exemplo de George Sand ajudou a implantar na Rússia a consciência
revolucionária que preparou o caminho para 1905 e 1917. Os dois grandes
escritores que participaram dos círculos socialistas pioneiros da Rússia na
década de 1840, Dostoiévski e Saltykov, consideravam Sand um dos princi­
pais fatores que concorreram para o despertar de sua consciência e uma das
supremas personalidades do século.71 Tivesse vivido além da morte prematura
em 1842 e Elena Hahn, romancista e uma das primeiras defensoras dos direi­
tos das mulheres, poderia ter sido a George Sand russa.72 Não tivesse a rede
revolucionária de Konarski na Rússia ocidental sido destruída em 1839 e a
organizadora dos seus círculos especiais de mulheres, Ewa Felinska, poderia
ter sido a Flora Tristan russa.73 Não tivesse a Rússia de Nikolai i se tornado
repressiva nos seus últimos anos e a nação poderia ter absorvido o feminismo
revolucionário de Suzanne Voilquin e outras saint-simonianas que tinham
se mudado do Egito para a Rússia no fim da década de 1830, levando com
elas a vaga idéia de que Nefertiti e Cleopatra poderíam servir de modelos
para o novo feminismo.74 No fim dos anos 1840, a maior influência veio do
romance que Herzen escreveu à maneira de George Sand sobre uma menina
russa, uma filha ilegítima, na qual a causa da libertação feminina se ligava
à da libertação dos servos.75
Com o governo mais liberal de Alexander n, o papel das mulheres e a
questão feminina se tornaram de central importância para a tradição revolu­
cionária russa. Os jovens se apropriaram do problema dos direitos femininos
em parte por causa da posição subordinada bastante incomum que coube
historicamente às mulheres na sociedade moscovita. Tratava-se também de
uma questão que afetava de modo direto e emocional os próprios estudantes
universitários, recém-libertos das constrições sociais e doutrinais de uma
escola secundária com perfil de seminário e ansiosos para romper com o
domínio matriarcal e a disciplina patriarcal da família tradicional russa. A
71 V. Saltykov, Za Rubezhom, em Izbrannye sochineniia, Moscou/Leningrado, 1940, p. 30; citações de
Dostoiévski em Thomas, Sand., pp. 126-127.
72 V. referências dadas em Billington, Icon, p. 739. Ela foi a mãe da futura teosofista Helena Blavatsky.
73 Polski Sloumik Biograficzny, 1968, vol. xiii/3, p. 478.
74 V. A. Abdel-Malek, Idéologie er renaissance nationale. L'Egypte moderne, 1969, pp. 306-314;
também “La fin du rêve”, em Fahmy-Bey, esp. pp. 205-208.
75 O esquecido romance Quem é o culpado? de Herzen, ainda sem tradução em inglês, é relacionado
ao “georgesandismo” por Malia, Herzen, cap. ix, e ao ainda incipiente movimento russo por R.
McNeal, “Women in the Russian Radical Movement”, em Journal of Social History, 1971-1972,
inverno, p. 147.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 811

população universitária muito aumentada do início dos anos 1860 buscou


uma nova ética e um estilo de vida comunais, que lhe proporcionariam justiça
social e satisfação sexual.
Fossem quais fossem os motivos individuais de cada um, a nova geração
como um todo adotou os direitos das mulheres como talvez sua principal
causa social no período que vai da emancipação dos servos em 1861 à des­
coberta do proletariado urbano cerca de uma década depois. Chernyshevsky
proporcionou um modelo ascético de “nova mulher” e de “novo homem”
em seu O que fazer?.76
Mikhailov, que havia precedido Chernyshevsky como mártir nos anos 1860,
fez sua reputação como um apóstolo da libertação feminina. Influenciado
pelos saint-simonianos que visitou em Paris, ele chocou até funcionários da
igreja na distante Sibéria com suas propostas de “retirar a brida posta sobre
as mulheres”.77 Exemplificou a nova ética vivendo um ménage à trois com
Nicholas Shelgunov e sua esposa (que teve um filho seu) e aceitando sozinho
a culpa pela proclamação À Nova Geração — assim salvando da prisão o
seu principal autor, Shelgunov.78
Nicholas Mikhailovsky, o mais influente jornalista populista dentro da
Rússia no último terço do século xix, também afiou sua língua polêmica tra­
tando desse assunto. Desde os primeiros artigos que publicou aos dezessete
anos em 1860 até o prefácio laudatorio que escreveu em 1869 para o livro
Os direitos das mulheres de John Stuart Mill, devotou muito de suas energias
à causa feminina.79 O Tribuna da Mulher (1860-1868), que, impresso em

76 Um antigo e esquecido admirador ocidental acreditava que Chernyshevsky sugerira uma nova
doutrina de “sexualismo” que pudesse levar a humanidade muito além do socialismo* da mesma
forma que este último tinha ido além do “individualismo masculino”. V. P. Bonnier, "Tchemychewski
et l’évolution sexuelle”, em Revue Socialiste, 1885, vol. U, pp. 734, 837; e, numa abordagem mais
geral, pp. 598-611,731-738,832-837; v. também Sagnol, "L’Égalité des sexes”, em Revue Socialiste,
1889, vol. ix, pp. 685-687; 1889, pp. 82-98.
77 Citando um arquimandrita de Irkutsk não identificado, em A. Shilov, introd, a M. Mikhailov, Zapiski
(1861-1862), Retrogrado, 1922, p. 3.
78 Zapiski, pp. 5-6. V. também R. Stites, “M. L. Mikhailov and the Emergence of the Woman Question
in Russia”, em Canadian Slavic Studies, 1969, verão, pp. 178-199; e The Woman's Liberation
Movement in Russia: Feminism, Nihilism, Bolshevism, 1860-1930, Princeton, 1977; também V.
Broido, Apostles into Terrorists. Women and the Revolutionary Movement in the Russia ofAlexander
II, NY, 1977.
Para urna biografia definitiva baseada em novos materiais, v. P. Fateev, Mikhail Mikhailov —
revoliutsioner, pisateï, publitsist, 1969. Para uma boa discussão de quatro outros livros menos
importantes sobre esse assunto tão abordado, v. R. Stites, “Wives, Sisters, Daughters and Workers:
A Review Article”, em Russian History, 1976, vol. m, pp. 2,237-244.
79 V. Billington, Mikhailovsky, p. 17, referências na nota 3; e citações de E. Kolosov em Mikhailovsky,
Polnoe sobranie sochinenii, São Petersburgo, 1913, vol. x, p. lxi.
812 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

São Petersburgo, foi o último e mais radical dos jornais feministas russos da
década de 1860, atraiu contribuições de escritores influentes com Lavrov e
do romancista Gleb Uspensky, o qual viria a ser uma figura dominante no
período populista.
Em 1869-1870, a Rússia seguiu o exemplo da Inglaterra, com um intervalo
de poucos meses, ao admitir pioneiramente mulheres em cursos avançados
de suas principais universidades.80 As estudantes vieram a ter grande impor­
tância na agitação estudantil que se intensificou no início da década de 1870.
Em Zurique, grande centro de estudo para russos no exterior, 103 dos 153
estudantes universitários eram mulheres.81 Os novos grupos de mulheres
tinham tamanha relevância no nascente movimento revolucionário (do clube
de mulheres de prática oratória ao “grupo de Fritschi”, assim chamado em
razão da perplexa hospedeira suíça que recebia as moças),82 que o governo
russo, alarmado, ordenou em dezembro de 1873 que todas as estudantes em
Zurique retornassem à Rússia no fim do ano. A minoria masculina expres­
sou sua solidariedade pelas estudantes também retornando; e as mulheres,
por sua vez, responderam participando tanto do movimento popular em
1874 quando da virada posterior para o terrorismo. Quase todo momento
dramático da década de 1870 produziu algum exemplo de mulher heróica.
Vera Zasulich, uma tipografa de São Petersburgo, inaugurou a campanha de
terror político atirando no chefe de polícia de São Petersburgo em janeiro de
1878. Quando se familiarizou com a oratória dos tribunais, deu um exemplo
modelar de como transformar o julgamento criminal de uma quase assassina
no julgamento político da pretendida vítima.
Os preparativos finais para o assassinato do Tzar Alexander li no dia Io
de março de 1881 foram supervisionados por uma frágil loira de vinte e seis
anos, Sophia Petrovskaia. Outra conspiradora, Gesya Helfman, provou-se
o maior interesse humano do julgamento (e ganhou o único adiamento da
forca ali obtido) quando se descobriu que estava grávida.
Um revolucionário observou que “as mulheres são mais cruéis do que
80 Cf. A. Yanovsky, “Zhenskoe obrazovanie”, em Borkgauz-Efron, Entsikopedichesky slovar, vol. xxn,
esp. pp. 869—871. A profundidade dos artigos sobre o assunto nessa enciclopédia russa do fim do
século XIX contrasta acentuadamente com a maior parte das enciclopédias ocidentais da época e
posteriores.
81 Em maio de 1873, J. Meijer, Knowledge and Revolution: The Russian Colony in Zurich (1870-1873),
Assen, 1955, p. 47. V. também A. Amfiteatrov, Zhenshchina v obshchestvenennykh dvizheniiakh
Rossii, Genebra, 1905; e sobre o início do século xx, Zhenshchiny russkoi revoliutsii, 1968.
82 Meijer, pp. 69-72. V. também A. Knight, “The Fritschi: A Study of Female Radicals in the Russian
Populist Movement”, em Canadian-American Slavic Studies, 1975, primavera, pp. 1-17.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 813

nós, homens”;83 e isso tendia a ser verdadeiro tanto na realidade quanto na


fantasia. O coro de mulheres de “Morte! Morte!” proporcionou o clímax
orgástico e a mensagem assassina da massa na “cena revolucionária” final
(na Floresta de Kromi) em Boris Godunov, de Mussorgsky.
Na atmosfera de reação com o governo do novo Tzar Alexander ui, mais
uma mulher, esta de nome Fé (“Vera”, em russo), manteve viva a fé revolucio­
nária. Vera Figner foi a principal responsável por preservar ao longo de boa
parte da década algum vestígio da velha organização Vontade do Povo; suas
memórias são uma das melhores crônicas do movimento.84 Maria Oshanina,
a terceira veterana (junto a Petrovskaya e Figner) do comitê executivo da
Vontade do Povo, foi uma destacada jacobina de tendência centralizadora e
uma grande transmissora de idéias conspiratórias para os novos movimentos
dos anos 1890.85
Embora com freqüência fossem amantes dos jovens revolucionários, não
raro as mulheres também eram figuras maternais. Alexandra Weber, por
exemplo, deu atenção maternal e companhia sucessivamente a cada um dos
dois líderes rivais da emigração revolucionárias da década de 1870: cuidou
de Bakunin em seus últimos anos de vida, e depois foi confidente íntima de
Lavrov.86
Na Rússia, a prensa ilegal da Vontade do Povo, que por quatro anos
desafiou a vigilância policial na década de 1860, ficava no apartamento de
uma senhora apelidada de “Mãe de Deus”. Os revolucionários recordam de
entrar em seus aposentos “com a sensação de reverência do fiel que cruzava
o pórtico de um templo”.87 Essas imagens não eram apenas figuras de lingua­
gem; a tradição russa, nesse ponto, era influenciada por uma seita religiosa
russa, que com freqüência tinha por centro uma líder conhecida como “Mãe
de Deus”. A Terra e Liberdade publicou um número especial para dissiden-
83 Citado sem atribuição exata de autoria em Yarmolinsky, Road, p. 238.
84 V. Figner, Memoirs of a Revolutionist, NY, 1927; também Studencheskie gody (1872-1876), 1924. Ela
editou no período soviético inicial — junto com A. Pribyleva-Korba, outra veterana da Vontade do
Povo — uma série de outras memórias sobre o movimento. V. seu Narodnaia Volia, vospominaniia o
1870kh godov, 1926. Menos importante, porém mais conhecido no Ocidente em razão das palestras
e publicações que fez durante o exílio, era Cf Breskho-Breshkovskaya, Hidden springs of the Russian
Revolution, Stanford, 1931; e The Little Grandmother of the Russian Revolution, Boston, 1918.
85 A importância de Oshanina (nascida Olovennikova), a mais velha de três irmãs revolucionadas,
é só parcialmente sugerida em Venturi, Roots, pp. 643-644; e é tratada com maior detalhe nas
referências dadas nesse livro, pp. 822-823, e no curso sobre a tradição revolucionária russa que
Boris Nikolaevsky deu em Harvard na primavera de 1960.
86 P. Pomper, Peter Lavrov and the Russian Revolutionary Movement, Chicago, 1972, pp. 176-179.
87 Kravchisnky (Stepniak), citado em Yarmolinsky, Road, p. 214.
814 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

tes religiosos e assumiu o nome de Akulina^ em referência a uma santa cujo


nome era utilizado tanto por famosos profetas sectários quanto pela seita de
autoflagelação que ia ao extremo de praticar autocastração.88
As mulheres tendiam, na Rússia, a ser mais revolucionárias do que fe­
ministas. Não hesitavam em se valer de sua feminilidade em prol de fins
revolucionários — vivendo um casamento fictício para garantir um disfarce
conspiratório, escondendo um revólver num regalo, acomodando um deto-
nador num espartilho.89
O papel específico das mulheres no movimento russo foi o de purificar e
intensificar o terror, e não de articular idéias.90 Assim, as mulheres tomaram
a dianteira da sustentação da tradição terrorista depois que a Vontade do
Povo foi desarticulada (quase metade das sentenças de trabalho forçado
perpétuo nos anos 1880 foi imposta a mulheres)91 e do renascimento daquela
tradição no início do século xx. Um terço dos membros da “organização de
combate” de 1802-1810, que deu ao Partido Socialista Revolucionário força
moral e várias lideranças, eram mulheres.92 Essas mulheres viam a renascida
violência revolucionária não tanto como uma tática política calculada, e sim
como uma expressão do “anseio por plenitude moral”.93 Elas com freqüência
demonstraram uma atitude “quase respeitosa” para com os atos terroristas.94
Depois da Revolução de 1905, as mulheres participaram do esforço dos
maximalistas para realizar incursões e projetos terroristas (muitas vezes
inteiramente à parte da disciplina do Partido Socialista Revolucionário) e

88 Termo de Panteleev citado em Vilenskaia, p. 145, que parece desconhecer o sentido sectário do
termo.
89 Tat’iana Lebedeva e Vera Zasulich (v. comentários em McNeal, “Women”, p. 149); a figura de
“Natasha” é discutida por N. Burenin, Liudi bol’shevistskogo podpol’ia, 1958, pp. 35-38. Sobre
o papel das mulheres como transportadoras de munição, v. P. Gusiatnikov, Revoliutsionnoe
studencheskoe dvizhenie v Rossii, 1971, p. 188.
90 McNeal, pp. 153-154.
91 21 das 43 sentenças. O terrorismo era quase sempre punido com essa sentença. McNeal, p. 155.
92 A. Knight, “Female Terrorists in the Russian Socialist Revolutionary Party”, em Russian Review,
1979, abr., p. 146, estima que pelo menos 25 do número total de 76 membros eram mulheres. Esse
importante artigo se baseia em um capítulo da tese de doutorado que o autor defendeu em 1977
na London School of Economics: “The Participation of Women in the Revolutionary Movement in
Russia: 1890-1914”.
93 Expressão de A. Kelly (“Revolutionary Women”, em New York Review of Books, 27 de julho de
1975, p. 22), empregada para caracterizar a especificidade, bem como a importância, do papel
desempenhado pelas russas. Maria Spiridonova, que Knight acredita (p. 150) representar “melhor
do que qualquer outra figura o tipo da terrorista russa”, definiu posteriormente a função do seu
Partido Socialista Revolucionário como a de “purificar a atmosfera moral” (Knight, p. 159).
94 Zenzinov, citado em Knight, p. 147.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 815

da aprofundada autocrítica entre os terroristas exilados na Sibéria ou no


exterior.95 Um importante maximalista, muito apropriadamente bisneto de
um dezembrista, descreveu esse processo de reexame na Sibéria mais como
uma intensificação do comprometimento do que como uma revisão de tática.
Tudo o que as mulheres tinham feito “era de novo analisado do ponto de
vista da sua pureza”.96 Essa paixão pela pureza alimentou o crescente desejo
entre as mulheres de ser aquela que irá atirar a bomba,97 aquela condenada
à morte98 ou até aquela que se mata na prisão. Como se voltadas para a
tradição dos Velhos Crentes de se autocarbonizar (também na qual as mu­
lheres tiveram grande importância),99 as terroristas da tradição populista dos
socialistas revolucionários se valeram dessa espantosa prática para expressar
a sinceridade da sua fé: Sofia Ginsbourg ateou fogo em si própria em 1890,
Maria Vetrova em 1897, Sofia Khrenkova — professora de uma vila e mãe
de três filhos — em 1908.100
O fogo começava a passar das mentes dos homens para os corpos das
mulheres. Os seus corpos, assim como sua fé, em geral eram puros. Ambas
as formas de pureza eram seladas pelo ato heróico do martírio, o qual dava
às palavras das mulheres uma autoridade que elas não poderíam de outro
modo exigir na sociedade russa.
As terroristas geralmente eram seletivas, contidas e quase auto-sacrificiais
no emprego da violência. Evstoliia Rogozinnikova, uma estudante bolsista
de vinte e um anos do Conservatório de Música de São Petersburgo, ao que
parece tirou vantagem de sua bela figura — muito perfumada num elegante
vestido preto — para conseguir acesso à administração da prisão peters-
burguesa, onde atirou no diretor. Foi impedida à força de levar a cabo o
seu plano original de explodir o prédio detonando os quase seis quilos de
explosivos que havia escondido em seu corpete e utilizado para aumentar

95 Knight, p. 152 ss.


96 I. Kakhovskaia, “Iz vospominanii o zhenskoi katorge”, em Katorga i Ssylka^ 1926, n° 2, p. 178;
citado em Knight, p. 158.
97 Cf. os casos de Dora Brilliant e Rahel Lurie, em Knight, pp. 148-150.
98 Casos de Zinaida Konopliannikova e Maria Spiridonova, em ibid., pp. 150-151.
99 P. Smirnov, “Znachenie zhenschiny v istorii vozniknoveniia raskola”, em Missionersky Sbornik,
1891, nov.-dez., pp. 330-365.
100 McNeal, p. 158; Knight, p. 150. A mais lancinante e comovente dessas auto-imolações, e que causou
maior impacto na sociedade, foi a de Maria Vetrova, uma jovem estudante de Chernigov que havia
comandado uma prensa ilegal com várias outras mulheres, conhecido Tolstói e que se incendiou
com o querosene da lamparina que usava para 1er. V. N. Rostov, “Samoubüstvo M. F. Vetrovoi i
studencheskie besporiadki 1897 g.”, em Katorga i Ssylka, 1926, n° 2, pp. 50-66.
816 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

o busto.101 Depois que ela foi executada três dias mais tarde, começaram
a surgir novas Joanas D’Arc nas províncias, emprestando uma autoridade
moral estimulante à crença na revolução social naquele que foi o mais som­
brio período da reação. Moças sinceras repetidas vezes enfrentaram velhos
juizes depois de seus ataques exclusivamente voltados contra homens. E
mesmo assim continuaram a fazer a batalha pelos corações e mentes tanto
de homens como de mulheres, não só através do testemunho que davam nos
tribunais, mas também ao caminharem alegremente para a morte “como se
vai a uma festividade de feriado”.102 Uma camponesinha terrorista mostrou
algo de característico das outras moças e de profético quando proclamou,
num tribunal de Kien em 1908, pouco antes de se matar, que “nossa morte,
como uma chama ardente, irá inflamar muitos corações”.103

As alemãs
Ao passar das mártires às líderes, passa-se de mulheres russas, em sua maioria
nobres que sob vários aspectos eram a encarnação da intelligentsia russa,104
às mulheres alemãs mais cerebrais que deram disciplina organizacional e
ideológica ao campo revolucionário através do movimento social-democrata.
Marx deu relativamente pouca atenção ao papel revolucionário das mu­
lheres, para não falar da causa feminista.105 Ele previra o desaparecimento
da família autoritária antes de 1848 e rejeitara o intenso antifeminismo de
Proudhon. Mas ele próprio levava uma vida familiar vitoriana; e Engels falou

101 McNeal, p. 154; Knight, p. 154. Ambos esses tratamentos secundários grafam erroneamente o nome
dela. O último sugere que ela não detonou a dinamite por medo de machucar transeuntes inocentes;
mas não há nenhuma prova disso na única fonte primária existente, A. Friedberg, “E. Rogozinnikova
(vospominaniia)”, em Katorga i Ssylka, 1929, n° 1, pp. 154-177.
102 Descrição de Konopliannikova, citada em Knight, p. 150.
103 O discurso teve um impacto poderoso até sobre anarquistas de expressão russa nos Estados Unidos
quando foi publicado lá: Rech’ Matreny Prisiazhniuka v Kievskom voenno-okruzhnom sude 19-go
iiulia 1908 goda, NY, 1916; citado em Avrich, p. 66.
104 A análise de McNeal (pp. 150-151) da compilação mais abrangente de biografias de revolucionárias
russas pré-1905 (Deiateli revoliutsionnogo dvizheniia v Rossii: bio-bibliografichesky slovar’, 1927-
1933, a levar em conta, contudo, apenas as letras A até G) conclui que 60% das 317 mulheres (entre
as décadas de 1860 e 1880) vinham de grupos privilegiados (nobreza e comerciantes). Ele sugere que
essa porcentagem é provavelmente menor no caso dos homens. A análise de Knight (pp. 144-145)
das biografias de mulheres terroristas do Partido Socialista Revolucionário na década que vai de
1902 a 1911 mostra que a porcentagem de mulheres oriundas de classes abastadas diminuiu só
um pouco (e era manifestamente maior do que no caso dos homens) e que quase todas elas haviam
recebido educação refinada — 20 das 27 mulheres oficialmente identificadas como terroristas pelo
partido eram designadas como intelligentki.
105 V. A. Meyer, “Marxism and the Woman’s Movement”, D. Atkinson et al. (ed.), em Women in Russia,
Stanford, 1977, esp. pp. 90-101; também C. Guettel, Marxism and Feminism, Toronto, 1974.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 817

por ambos quando disse que o esforço dos comunistas alemães para emancipar
as mulheres durante a Revolução de 1848 havia produzido apenas “algumas
sabichonas, um pouco de histeria, uma boa porção de brigas familiares na
Alemanha — mas não produziu sequer um bastardo”.106
Embora as revolucionárias alemãs nunca tenham sequer chegado perto
da intensidade das russas (pelo menos não até as terroristas da década de
I960),107 elas com efeito foram pioneiras na fundação de associações de
mulheres108109e a primeira de uma série de organizações social-democratas
femininas em meados dos anos 1870. August Bebel, cofundador do partido
alemão, produziu sua obra teórica A mulher e o socialismo em 1879, cinco
anos antes do livro menos influente e mais teórico de Engels, A origem da
família.™9
O movimento alemão recebeu uma injeção de intensidade russa quando
seu mais destacado membro feminino, Clara Zetkin, visitou São Petersburgo

106 Citado sem autoria exata em Gustav Scheidtmann, Der Kommunismus und das Proletariat, Leipzig,
1848, p. 53; citado sem menção a Engels em Noyes, Organization, p. 46, nota 1.
Engels desprezou os esforços não-revolucionários de Louise Otto-Peters de melhorar as oportunidades
profissionais e educacionais para as mulheres; e social-democratas posteriores com freqüência
ecoaram essa atitude ao analisar seu “Discurso de uma Donzela” aos ministros da Saxônia, em
maio de 1848, e seu trabalho como editora do primeiro jornal de mulheres alemãs, Frauen-Zeitung
(1849-1852). V. Zetkin, Zur Geschichte, pp. 25,46-59, que expressava retroativamente a derradeira
insistência dela de que as organizações das social-democratas deveriam evitar todo contato com os
movimentos de mulheres burguesas (Cf. Meyer, “Movement”, p. 111).
Em paralelo aos esforços pioneiros de Peters, havia a organização feminina (mais esquecida ainda)
que se formou em Bruxelas em resposta à defesa do fourierista Considérant dos direitos das mulheres
durante a Revolução de 1848. Liderado por Desirée Veret Gay, viúva do primeiro discípulo francês
de Robert Owen e inimiga declarada do “socialismo autoritário” (cf. Dommanget, Considérant, p.
189; Zetkin, pp. 32-33; e a obra injustamente esquecida de Jules Gay, Le Socialisme rationnel et
le socialisme autoritaire, Genebra, 1868), esse grupo acabou por estabelecer laços com a Primeira
Internacional. Defensores pioneiros de centros diários de atenção infantil, Gay e seu marido viam
a igualdade de sexos como um grande contrapeso às tendências paternalistas e autoritárias que se
desenvolviam dentro do movimento socialista. O tratamento compassivo das crianças seria a principal
característica de uma nova moralidade; e eles criaram o primeiro jornal voltado expressamente
para as crianças. V. Gans, “Owen à Paris”, p. 45; e Desirée Gay, Education rationelle de la première
enfance: Manuel à l’usage des jeunes mères, 1868.
107 10 dos 16 principais membros do grupo terrorista Baader-Meinhof eram mulheres. V. M. Getier,
“Women Play Growing Role in Slayings by West German Terrorist Groups”, em Washington Post,
6 de agosto de 1977, p. A-15. As semelhanças desse grupo com uma seita religiosa medieval são
sugeridas por M. Lasky, “Ulrike Meinhof and the Baader-Meinhof Gang”, em Encounter, 1975, n°
6, pp. 9-23.
108 Uma associação de trabalhadores têxteis fundada em 1869, na Saxônia, foi “a primeira a tratar as
operárias e as viúvas de operários como iguais” e a organizá-las “contra a classe capitalista inimiga”,
de acordo com Zetkin, Zur Geschichte, pp. 7—8.
109 A extraordinária popularidade da obra de Bebel pode ser constatada pelo fato de que a sua tradução
para o inglês feita pelo marxista norte-americano Daniel de Leon se baseou na 33a edição: Woman
under Socialism, NY, 1904.
818 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

na época em que crescia a agitação revolucionária em 1878, ficou fascinada


pelo exemplo da Rússia e se casou com um russo. Após a revogação das leis
anti-socialistas de Bismarck de 1878-1890, ela fundou um jornal especial
para a mulher socialista, Igualdade (Die Gleichheit), o qual se tornou um
jornal internacional depois que ela cofundou um Congresso Internacional
das Mulheres Socialistas em 1907. As mulheres, contudo, eram muito mal
representadas na liderança do partido alemão; às vezes Zetkin e a líder aus­
tríaca Adelheid Popp eram as únicas mulheres com autoridade nas imensas
delegações de língua alemã nos congressos da Segunda Internacional. A In­
ternacional das Mulheres, organização paralela de Zetkin, desfez-se depois de
um último e desesperado Congresso das Mulheres contra a Primeira Guerra
Mundial realizado em Berna, em 1915.110 Amiga de Lênin, uma comunista,
e mais antigo membro do Reichstag, Zetkin presidiu a penúltima reunião
do parlamento alemão livremente eleito — antes que Hitler o fechasse.111
Nesse entretempo, o movimento de Zetkin se concretizou na Rússia.
Menos de um ano após o Congresso das Mulheres Socialistas que ela tinha
organizado, os russos reuniram mil mulheres para o Primeiro Congresso
das Mulheres de Toda a Rússia em 1908.112 Quando Zetkin designou o 8 de
março como Dia Internacional da Mulher, em 1910, os russos o celebraram
com especial intensidade. O protesto anual levou à repressão em 1914, que
acabou por impedir o lançamento do jornal especial Rabotnitsa [A Mulher
Trabalhadora], que havia sido planejado por Krupskaia (mulher de Lênin), sua
irmã Anna Elizarova e sua amiga mais íntima, Inessa Armand. O feriado foi
celebrado três anos depois com a manifestação que levou à queda do tzarismo
no dia 8 de março de 1917. Depois que o Governo Provisório foi, por sua
vez, derrubado pelos bolcheviques, Rabotnitsa foi revivido, realizou-se um
Segundo Congresso das Mulheres em 1917 e se estabeleceu uma Seção das
Mulheres [Zhenotdel] especial do Comitê Central, a princípio sob a chefia
de Armand, depois de Kollontai.113 Elas lutaram para realizar a igualdade
110 Koszyk, Presse, vol. n, p. 208; Joli, International, p. 65; Zetkin, Zur Geschichte, pp. 218-220;
Meyer, “Movement”, pp. 111-112. Um vivido testemunho da resistência da classe operária alemã
aos plenos direitos das mulheres e do efeito freqüentemente intimidador das social-democratas é
dado em A. Popp, Autobiography of a working woman, L, 1912. Sobre o rápido crescimento do
número de mulheres social-democratas, que passaram de umas poucas em 1890 a 175 mil em 1914,
ver a tese inédita de J. Strain, “Feminism and Political Radicalism in the German Social Democratic
Movement 1890-1914”, Berkeley, 1964.
111 Joli, International, p. 37. V. também Zetkin, Reminiscences of Lenin, L, 1929.
112 L. Edmonson, “Russian Feminists and the First All-Russian Congress of Women”, em Russian
History, 1976, vol. iii/2, pp. 123-149.
113 R. Stites, “Zhenotdel: Bolshevism and Russian Women, 1917-1930”, em Russian History, 1976,
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 819

das mulheres que era formalmente garantida pela Constituição Soviética —


expandindo o conceito com efeito particularmente radical nas sociedades
tradicionalistas da Ásia Central, aplicando o ritual público de “retirada do
véu” das mulheres muçulmanas,114 as quais se tornaram o “substituto do
proletariado” numa revolução social imposta.115

Rosa Luxemburgo
Não há dúvida de que a maior revolucionária do início do século xx foi uma
amiga de Clara Zetkin, Rosa Luxemburgo. Ela acrescentou às componentes
russa e alemã a paixão da tradição revolucionária própria da sua Polônia
natal e a intensidade profética da sua ascendência judaica. Opôs-se tanto
ao elitismo bolchevique como à social-democracia reformista. Representou
por um breve momento, após o fim da Primeira Guerra Mundial, a visão de
uma revolução grande o suficiente para unir alemães e russos, para resolver
as questões polonesa, judaica e feminina de uma vez só e por todas. Com
sua morte em 1919, foi-se também a visão de uma revolução que fosse in­
transigentemente internacional e democrática.
Nascida numa família de comerciantes na Polônia russa, Luxemburgo
se impressionou, então menina de quinze anos, com a agitação operária em
Varsóvia no inverno de 1885, muito antes de haver protestos comparáveis em
São Petersburgo. Associou-se por pouco tempo às maiores organizações de
socialistas revolucionários na Polônia, a “Proletariado” e a “Segundo Prole­
tariado”, antes de fugir para Zurique em 1888.116 Nesse centro de emigração
para marxistas russos e poloneses, conheceu seu companheiro revolucionário
de toda a vida e futuro marido, Leo Jogiches (Tyszka), pouco antes de ele
também ter de fugir para o exterior em 1890. Ele tinha sido um líder revolu­
cionário em Vilnius, onde mulheres judias desempenharam importante papel

vol. ni/2, esp. p. 175. O título advinha da única obra importante de feminismo revolucionário russo
anterior à revolução de 1905, Zhenshchina-Rabotnitsa, primeiro livro de Krupskaia, que o escreveu
na Sibéria, em 1899, e o publicou ilegalmente pelo Iskra na Suíça em 1900 (embora no livro conste
a data de 1901) e o republicou, com uma nota explicativa, em Moscou/Leningrado, 1926 (LC). V.
também J. Fréville, Inessa Armand: une grande figure de la dévolution Russe, 1957; B. Wolfe, “Lenin
and Inessa Armand”, em American Slavic and East European Review, 1963, mar., pp. 96-114; e
a publicação anterior de Kollontai através da Primeira Internacional: Rabotnitsa i krest'ianka v
Sovetskoi Rossii, Retrogrado, 1921.
114 L. Bryant, Mirrors of Moscow, NY, 1923, pp. 121-122; citado em Stites, “Zhenotdel”, p. 180.
115 G. Masseti, The Surrogate Proletariat, moslem women and revolutionary strategies in Soviet Central
Asia: 1919-1929, Princeton, 1974.
116 Acerca desses anos iniciais, é útil o trabalho de R. Evzerov e I. Yazhborovskaia, Roza Liuksemburg,
1974, p. 20 ss.
820 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

ao criarem organizações social-democratas dentro do Império Russo.117 Por


pouco tempo ele manteve contato com o grupo de Plekhanov, Libertação do
Trabalho, antes de se aliar com Luxemburgo ao Partido Social-democrata
do Reino da Polônia e Lituânia. A partir de 1893, ela participou de todos os
congressos da Segunda Internacional, com exceção do último (1913), e se
mostrou sob todos os aspectos uma personagem internacional.
Luxemburgo começou sua luta de toda a vida contra o provincianismo
nacionalista ao rejeitar a causa da independência polonesa, a qual tinha sido
esposada pelo majoritário Partido Socialista Polonês (pps, na sigla polonesa),
fundado em 1892. Defendia, em vez disso, o comprometimento integral dos
poloneses com a destruição do tzarismo. Sua luta na Polônia por um partido
marxista proletário contra o pps, que era populista e de base camponesa,
deu-se em paralelo com o conflito entre marxistas e populistas na Rússia. Ela
internacionalizou sua perspectiva ao expandir seu interesse de modo a abranger
a luta dos poloneses contra os Habsburgo, os Hohenzollern e os Romanov.118
Sua atividade aguerrida no exterior fez do partido polonês um eficiente grupo
de pressão na Segunda Internacional, e ela própria se tornou a força dirigente
por trás do jornal teórico de seu partido.119 Mas se estabeleceu na Alemanha
a partir de 1898 e transferiu suas principais energias para a luta contra o revi­
sionismo de Bernstein dentro do Partido Social-democrata. Assim como Lênin,
ela combinava a fé revolucionária inflexível com grande flexibilidade tática
baseada em sutis distinções ideológicas. Defendia que, antes da revolução, os

117 Sobre a importância fundamental de Anyuta Leibovich como a “alma” do Círculo de Jovens Judeus
em Vilnius (1885-1887) e sobre Liuba Axelrod (sem relação alguma com Pavel Axelrod) no novo
grupo de 1886, v. Levin, Messiah, pp. 228-229; e sobre o papel “lendário” Jogiches como um elo
com o mundo externo, cf. ibid., p. 233.
Novas pesquisas feitas por L. Gerson para uma biografia de Dzerzhinsky indicam que o primeiro
amor desse fundador polonês-russo da polícia secreta soviética foi Julia Goldman, judia irmã de
um dos fundadores do Bund. As mulheres judias continuaram a ter função desproporcionalmente
grande naqueles aspectos da atividade revolucionária que requeressem abnegação e risco. Quase
30% das terroristas do Partido Socialista Revolucionário eram judias, embora bem poucos homens
judeus estivessem envolvidos (Knight, p. 146).
Sobre a questão mais ampla do papel e da motivação dos judeus para tomar parte da tradição
revolucionária, v. R. Wistrich, Revolutionary Jews from Marx to Trotsky, L, 1976, que tende a
enfatizar o ódio a si próprio como motivo recorrente numa variedade de personagens examinadas,
além da abordagem mais equilibrada de L. Schapiro, “Jews in the Russian Revolutionary Movement”,
em Slavonic and East European Review, 1961, dez., pp. 148-167.
118 Evzerov, pp. 34-36.
119 Przeglad Socjaldemokratyczny, que seguia o modelo do Neue Zeit de Kautsky, era o jornal teórico;
Czerwony Sztandar (Bandeira Vermelha) era o jornal diário do partido — assim se aplicando à
Polônia a mesma divisão da imprensa partidária que Lênin havia instituído na Rússia. V. J. Netti,
Rosa Luxemburg, L, 1988, vol. i, pp. 251-295, esp. pp. 267-270. Esse valioso e fundamental estudo
pode ser complementado em alguns pontos por Badia, Rosa Luxemburg.
LIVRO III, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 821

socialistas poderiam e deveríam servir em parlamentos que fazem leis, mas


nunca em cargos executivos que as implementem.120 Agiu, muito mais do que
Lênin, com base em instituições geradas espontaneamente pelo proletariado,
e fez um esforço mais duradouro do que o de qualquer outro marxista para
adaptar o ideal latino da greve geral à cética social-democracia alemã.
Ela inventou o termo “greve em massa”, não como uma “técnica engenhosa
descoberta por meio de raciocínio rarefeito”, mas como uma descrição do que
os complacentes alemães poderiam aprender com a experiência revolucionária
russa de 1905.121 Para Luxemburgo, a greve em massa era uma nova forma
proletária de luta de classe que havia superado as barricadas burguesas de
1848-1849 e até as de 1870-1871. A greve em massa era um fenômeno que
havia surgido de maneira espontânea e que não podería ter seu curso manipulado
por nenhuma autoproclamada elite.122 A greve em massa unia as lutas política
(antiabsolutista) e econômica (anticapitalista), e avançava necessariamente da
etapa de protesto para a etapa de combate. Depois que os protestos tivessem
vencido a inércia e estimulado a consciência política, lutar seria coisa espontânea
e que, em geral, adviría quase por acidente. Da experiência compartilhada de
combate emergiríam novas formas proletárias de política e cultura.
Para Rosa Luxemburgo, a revolução russa de 1905 fracassou porque a
luta econômica, que havia levado a um enfrentamento político de dimen­
sões nacionais durante a greve geral de outubro, relaxou posteriormente e
se reduziu a disputas econômicas provincianas. Mas, uma vez que essa foi
a primeira revolução na qual o proletariado assumiu o principal papel, ela
incitava os social-democratas alemães a vê-la como “sua própria” e aprender
com ela. Sobretudo, o exemplo russo mostrava aos alemães “burocratizados”
que um movimento menos organizado havia ultrapassado um movimento
menos ativo — e como a organização poderia nascer diretamente da luta,
em vez de a luta nascer da organização.123
120 “Sozial Reform der Revolution”, em Leipziger Vokszeitung, 6 de julho de 1899, traduzido como
“Une question de tactique”, em Le Mouvement Socialiste, 1899, ago., pp. 132-137.
121 Greve em massa, partido e associações trabalhistas, concluído em São Petersburgo, 15 de setembro
de 1906, tradução modificada em R. Howard, Selected political writings of Rosa Luxemburg, NY/L,
1971, p. 237.
122 Rosa Luxemburgo acreditava que o natural enraizamento da greve em massa na classe operária a
distinguia da greve geral anarquista tão caricaturada pelos social-democratas (“a greve geralé de uma
falta geral de sentido”); achava ainda que o fato de ela ter se originado na relativamente atrasada
Rússia (“Em nenhum outro país se pensou menos em ‘propagar’ ou sequer em ‘discutir’ a greve em
massa”) prenunciava um poder ainda maior da greve em massa em países mais industrializados. V.
Howard, Writings, p. 230, parafraseando artigo da própria Luxemburgo de 3 de março de 1905.
123 Netti, Luxemburg, vol. il, p. 504.
822 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

A ênfase que ela dava à liderança “espontânea” das massas no processo re­
volucionário a indispunha com Lênin. Foi uma das primeiras a criticar a ênfase
deste último no papel de vanguarda do partido como um “ultracentralismo”,
“o espírito estéril de vigia noturno”, a ditadura sobre as massas ao invés de
ditadura das massas.124 Via Lênin como culpado do mesmo “subjetivismo”
e “blanquismo” que haviam assombrado o populismo russo; e rejeitou com
firmeza a disposição de Lênin de dar um papel progressista aos movimentos
revolucionários nacionais na vindoura revolução social. No estudo inaca­
bado que fez da Revolução Bolchevique (escrito enquanto estava na prisão
na Breslávia), ela insistia que as formas democráticas fossem aplicadas ime­
diatamente sob a ditadura do proletariado. Censurava o emprego do terror
e a dissolução da Assembléia Constituinte pelos bolcheviques, traduzindo a
palavra democracia como “hegemonia do povo” (Volksherrschaft} no esforço
de encontrar um vocabulário adequado às suas idéias.125 Sua crítica ao terror
em 1918 era no fim das contas a mesma que havia feito ao elitismo em 1903:
que ele levava à atrofia de toda iniciativa espontânea e a um crescimento
do próprio governo burocrático que as revoluções deveríam suplantar.126 A
revolucionária mais reverenciada na Rússia, Vera Zasulich, que havia passado
do populismo ao marxismo, deu à crítica paralela ao elitismo de Lênin uma
aura especial de pureza desinteressada.127
Apesar de suas profundas diferenças e críticas mútuas, Luxemburgo se
pareceu muito com Lênin no modo como liderou uma oposição de esquerda
dentro do Partido Social-democrata do pré-guerra, no desenvolvimento de
uma visão global que proporcionava coragem externa e serenidade interna,
no elo que estabelecia entre capitalismo, por um lado, e imperialismo e guer­
ra, por outro, e na crença de que a guerra nacional levaria inevitavelmente à
revolução social.
124 As críticas que ela fazia (listadas em Badia, p. 306 ss. e em Y. Bourdet, “Le Marxisme anti-autoritaire
de Rosa Luxemburg”, em Autogestion, 1977, out., p. 50) de fato tinham precedência na crítica de
Parvu ao “ultracentralismo” de Lênin (Badia, p. 327, nota 306).O texto clássico de Luxemburgo, “As
Questões Organizacionais da Social-democracia Russa”, foi publicado tanto no Iskra quanto no Die
Neue Zeit em julho de 1904 e está traduzido (com uma introdução de B. Wolfe) em R. Luxemburg,
“The Russian Revolution” and “Leninism or Marxism?”, Ann Arbor, 1961, pp. 81-108.
A profundidade da oposição dela ao autoritarismo leninista é minimizada por Badia, mas enfatizada
por Bourdet e particularmente por D. Guérin, Rosa Luxemburg et la spontanéité révolutionnaire, 1966.
125 Badia, pp. 354—355, nota 120.
126 Ibid., pp. 303-304.
127 Zasulich acusou Lênin em 1904 de substituir o conceito hierárquico de “organização” pelo conceito
massificado de “partido” e condenou, em 1918, pouco antes de morrer, o repúdio bolchevique à
democracia. V. J. Bergman, “The Political Thought of Vera Zasulich”, em Slavic Review, 1979, jun.,
pp. 243-258.
LIVRO in, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 823

Durante o período que medeia a vazante da maré revolucionária na Rússia


em 1906 e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, tanto Lênin como Rosa
Luxemburgo tentaram fortalecer o fervor ideológico de seus respectivos
partidos através de grandes escritos teóricos. Luxemburgo buscou usar não
só o jornalismo, mas também a escola do partido em Berlim como veículo
de ataque à ala mais cautelosa e doutrinária e de radicalização dos futuros
líderes partidários. Essa técnica foi empregada pela primeira vez pelos “bol­
cheviques de esquerda” sob a liderança de Bogdanov em Capri (1909) e na
Bolonha (de novembro de 1910 a março de 1911), e depois por Lênin em
Longjumeau, nos arredores de Paris (verão de 1911).128 Rosa Luxemburgo
também precedeu Lênin na análise marxista do imperialismo, e correu
paralela a ele no boicote radical à Primeira Grande Guerra. Seu “Panfleto
de Junius”, escrito na prisão em 1905, rejeitou o argumento central dos
social-democratas para racionalizar seu apoio ao esforço de guerra: que se
tratava de uma guerra defensiva contra o perigo russo.129 Insistia que não
era possível fazer guerra defensiva alguma contra as grandes potências em
plena época do imperialismo. O proletariado russo, dizia, estava agora na
linha de frente da revolução; não era parte do monólito reacionário, como
parecera a Marx à época da Revolução de 1848 e como o via, desde então,
grande parte dos social-democratas alemães. Na guerra, Luxemburgo via
novas possibilidades de revolução. Quando foi solta da prisão e chegou a
Berlim no dia 10 de novembro de 1918, o dia anterior ao derradeiro armis­
tício, mergulhou num frenesi de atividade revolucionária com o objetivo de
realizar uma revolução social na Alemanha.

128 Luxemburgo ensinou na escola partidária alemã a partir de 1907 e foi convidada por Bogdanov
e Gorki a ensinar na escola partidária russa em Capri, que tinha o propósito de formar “quadros
permanentes de diretores do partido” (J. Scherrer, “Les Écoles du parti de Capri et de Bologne: La
Formation de l’intelligentsia du parti”, em Cahiers du Monde Russe et Soviétique, 1978, jul.-set.,
pp. 261,266). Parece provável que a tradição leninista tomou o conceito de “quadros do partido”
de Bogdanov (o qual os via como portadores de uma nova consciência coletiva e de um senso de
“habilidade organizacional”, organizovannost’, organizatsionnost*'. Scherrer, pp. 266-267), o qual
por sua vez o extraiu dos social-democratas alemães.
Entre o conceito de Bogdanov de uma “intelligentsia dos trabalhadores”, a enfatizar o caráter de
classe e a consciência proletária daqueles a serem treinados, e a ênfase de Lênin na “intelligentsia
partidária”, mais preocupada com a ortodoxia marxista dos intelectuais e a consciência destes da
luta de classes (as duas posições antípodas, como as formula Scherrer), Luxemburgo estava mais
próxima desta última opção. Badia sugere, em geral, que a relação entre Lênin e Luxemburgo era
antes a de “adversários privilegiados” do que de oponentes que discordam quanto aos princípios
(p. 325).
129 A primeira parte dessa brochura (publicada pela primeira vez em Zurique, 1916, como Die krise
der Sozialdemokratie) está traduzida em Writings of Luxemburg, pp. 322-335. Um conjunto mais
completo e representativo de textos está traduzido por Badia em Luxemburg, Textes, 1969, pp.
190-213.
824 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Sua malfadada tentativa reprisou muitos temas e símbolos básicos da


tradição revolucionária. Até os pseudônimos revolucionários que escolheu
traíam um retorno inconsciente às origens. De Junius (usado originalmente
por um revolucionário judeu de Estrasburgo, Frey, durante a Revolução
Francesa) passou ao Graco de Babeuf, e daí a Espártaco, que fora adotado
pelo progenitor das doutrinas revolucionárias alemãs, Adam Weishaupt. A
Liga Espartaquista adotou, em dezembro de 1918, a designação de comunis­
ta, que Restii inventara e Lênin revivera. “Não tenho tempo para pensar no
que acontecerá comigo”, escreveu a Clara Zetkin, acrescentando em francês,
como se passando à língua fundamental da tradição: C’est la révolution}^
Denunciou os liberais como “pequenos Lafayettes” no último artigo130 131 que
escreveu antes de se atirar à direção do processo revolucionário por meio de
um jornal diário que trazia o símbolo básico da revolução social: Bandeira
Vermelha (Rote Fahne). Também planejou um semanário teórico cujo título
descrevia seu escopo, Die Internationale.
A revolução dela era de jovens. Na conferência de fundação do seu novo
Kommunistische Partei Deutschlands (Spartakusbund) no firn de dezembro,
o seu marido era o único delegado (entre 127 de 56 localidades) com mais de
cinqüenta anos.132 Seu movimento era liderado por intelectuais jornalistas.
Uma de suas poucas vitórias foi a ocupação do escritório telegráfico Wolff
em Berlim — o próprio coração do sistema de comunicações que tanto tinha
fascinado Marx quando fez contato pela primeira vez com os extremistas
em Bruxelas.
Roxa Luxemburgo era uma analista social demasiado perspicaz para
não perceber que não havia esperança de revolução imediata; e ela argu­
mentou contra as ilusões do seu principal companheiro revolucionário, Karl
Liebknecht. Já que, contudo, ela estava comprometida com uma greve em
massa e com a luta revolucionária contra a assembléia nacional, não via
outra alternativa senão tomar parte na luta desordenada lançada em janei­
ro. Os seus espartaquistas combateram as forças armadas que retornavam
do fronte e tentavam estabelecer a autoridade da assembléia nacional e dos
social-democratas mais conservadores. Uma greve geral conseguiu adesão
em massa, de modo que levou à efêmera tomada de centros de transporte e

130 Badia, Luxemburg, p. 344.


131 “Die kleinen Lafayette”, em Spartacus, 1918, out.; pormenorização de artigos e pseudônimos em
Badia, p. 866.
132 Ibid., p. 374.
LIVRO in, CAPÌTOLO 17: O PAPEL DAS MULHERES 825

comunicação. Mas a Rosa Luxemburgo faltavam tanto a organização que


Lênin tinha ao seu dispor quanto a habilidade dele em traduzir visão estra­
tégica em planos de batalha concretos. Os espartaquistas revolucionários e
seus aliados não demoraram a ser fuzilados; Luxemburgo foi morta junto
com Liebknecht na noite de 15 de janeiro.
O nacional-socialismo de Hitler seria a última gárgula do nacionalismo
revolucionário masculino. O internacionalismo socialista inflexível de Lu­
xemburgo era o seu exato oposto: a culminância da tradição antimilitarista
e antinacionalista das revolucionárias. Sua implacável oposição a qualquer
envolvimento na Primeira Guerra Mundial foi reverberada na Rússia pela
destacada feminista radical Alexandra Kollontai, que se juntou ao Partido
Bolchevique de Lênin em 1915 em grande parte motivada pela oposição dele
à guerra. Assim como Rosa Luxemburgo e Zasulich, Kollontai identificava
a revolução com a espontaneidade da iniciativa operária, e não com um
partido leninista e elitista. Ela sobreviveu aos demais e se tornou membro da
Oposição Operária, depois de servir como primeira comissária no Conselho
do Comissariado do Povo no ano seguinte à Revolução Bolchevique.133
Essa revolução foi a primeira a proclamar direitos iguais para as mu­
lheres. Krupskaia, Zetkin e outras se juntaram a Kollontai para reivindicar
significância universal para esse aspecto da nova ordem estabelecida. A
revolução que estava no poder, contudo, parecia cada vez mais distribuir a
obrigação de desempenhar velhos tipos de trabalho, e não a oportunidade
de construir um novo tipo de sociedade. A despeito dos ganhos formais para
as mulheres com a igualdade cívica e profissional, as mães fundadoras, não
menos que os pais fundadores, viram-se desiludidas.134 O Estado Soviético
dependia precisamente daquela combinação de terror e burocracia que Rosa
Luxemburgo temia.

133 Depois de participar da Oposição Operária, a carreira posterior dela foi em posições diplomáticas
no exterior, a começar pela embaixada da Noruega em 1923, tendo sido a primeira mulher a ser
acreditada num país estrangeiro. Sobre o seu utopismo prévio e erótico, v. “The Path of Eros with
Wings”, em Molodaia Gvardiia, 1923, n° 3; outros materiais em Billington, Icon, p. 766, nota 100;
B. Clements, Bolshevik feminist, the life ofAleksandra Kollontai, Bloomington, 1979; “Emancipation
through Communism: The Ideology of A. M. Kollontai”, em Slavic Review, 1973, jun., pp. 323-338;
e J. Stora-Sandor, Alexandra Kollontai, Marxisme et révolution sexuelle, 1973.
134 Para uma série de visões diferentes sobre esse assunto, cf. a conferência ocidental editada por D.
Brown, The Role and Status of Women in the Soviet Union, NY, 1968; e a conferência do bioco
oriental sintetizada por M. Pavlova, em Literatumaia gazeta, T7 de maio de 1970. Para uma discussão
simpática do movimento feminino na China desde a abolição dos “pés-de-lótus” durante a revolução
de 1911 até os últimos dias do governo de Mao, v. H. Snow, Women in Modern China, Haia, 1967
826 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Luxemburgo trouxe para a tradição revolucionária uma plenitude espe­


cial e feminina de sensibilidade que faltava ao período germano-russo da
história revolucionária. De fato, ela trouxe algo do humanismo expressivo
do período anterior ítalo-polonês para o árido puritanismo da tradição
social-democrata, perfeitamente exemplificado por Lênin e sua anodina
parceira e esposa, Krupskaia.
Luxemburgo expressou a crítica especial e universal da sociedade a que
antes haviam dado voz mulheres de habilidade e sensibilidade incomuns,
como Wright e Tristan. Ela soprou inspiração no sombrio movimento social-
-democrata freqüentemente através de uma rede de outras mulheres: Louise
Kautsky, da qual permaneceu amiga íntima mesmo depois do rompimento
com Kautsky, em 1910;135 Clara Zeitkin, a primeira inimiga do revisionismo
e sua correspondente íntima nos últimos anos; e Sophie Liebknecht, a quem
enviou da prisão inspiradas cartas também em seus anos finais. Nunca foi
uma feminista, e partilhava, sem se envergonhar, das experiências especifi­
camente femininas de ser uma companheira e uma cozinheira.136 Mas ela
trouxe para o movimento revolucionário uma vivacidade de engajamento
desprovida de auto-indulgência que em geral era desconhecida dos revolu­
cionários oitocentistas — que dirá dos obtusos funcionários do século xx.
Roxa Luxemburgo se situou numa linhagem profética de revolucionárias
que renunciaram a um lar e a um país pela busca da terra prometida. A lista
começa com Etta Palm, uma holandesa em Paris; passa por Flora Tristan,
uma peruana em Lyon; pelas saint-simonianas, no Egito; por Frances Wright,
a esposa escocesa de um francês na fronteira norte-americana; pelas russas,
na Suíça, até chegar a esta líder polonesa e judia que buscou reproduzir a
Revolução Russa na Alemanha.
Ela não foi só uma profetisa da revolução — de seu fracasso na Alema­
nha137 e de sua deformação na Rússia —, mas também uma encarnação da
simplicidade revolucionária. Por trás de todas as palavras escritas pela mais

135 Badia, pp. 148-149, 597-598. A tentativa mais inspirada de fazer de Luxemburgo uma amiga
póstuma, senão uma advogada, do sistema soviético está no ataque de Clara Zetkin a Paul Levi:
Roza Liuksemburg i russkaia revoliutsiia, Moscou/Petrogrado, 1924.
136 Badia, pp. 796-797.
137 Já no seu último grande artigo sobre greve em massa (no Leipziger Volkszeitung, 26-28 de junho
de 1913), Rosa Luxemburgo observava que o proletariado alemão, apesar de sua organização
incomparável, era um caso quase único por nunca ter produzido uma greve em massa; e o chamado
dela à luta, “acabe em vitória ou em derrota”, deixa claro que acreditava neste último resultado. V.
Textes, pp. 160, 169.
LIVRO ni, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 827

articulada das jornalistas revolucionárias,138 há uma fé simples que vai além


da razão — fé na perfectibilidade proletária e transnacional; na luta violenta
como processo criativo e pré-requisito à vitória; e nos mitos originais da
tradição revolucionária: numa revolução inacabada e numa ordem natural
perfeita.
A visão essencial que ela afirmou com sua vida e confirmou com sua
morte talvez esteja mais bem expressa na descrição da vida simples que
certa vez encontrou na Ilha Córsega. As ilhas serviram de perene local para
a utopia, da imaginação de Thomas More à realidade de Sand, na Major­
ca, ou de Garibaldi, na Caprera. Luxemburgo descreveu a Córsega, onde
Buonarroti e Urbain tinham encontrado inspiração, como uma alternativa
ideal “à Europa de hoje”, um lugar apto a satisfazer o desejo profundo dos
revolucionários de oprostifsaiz simplificar as coisas. Escrevendo da prisão
para Sophie Liebknecht, Rosa Luxemburgo se recordou de ter recuperado “o
silêncio do início do mundo” em meio à pureza rústica e de ter encontrado
o arquetípico e intocado “povo” numa pobre família de camponeses que
passava silenciosamente, “em plena harmonia com a paisagem”. Sentiu-se
tentada “a cair de joelhos, como sempre me sentia impelida a fazer diante de
algum espetáculo de rematada beleza”.139 Propôs à amiga que ambas viajassem
juntas à Córsega numa espécie de peregrinação para se renovarem, assim
revivendo a metáfora da revolução como um sol que nasce: “Devemos ir para
lá e [...] correr toda a ilha a pé, dormindo cada noite num pouso diferente,
saudando a cada manhã, pelo caminho, o sol que nasce”.140141
Em vez disso, Luxemburgo foi da prisão para o martírio, junto com o
esposo da amiga. Ela reafirmou sua fé na vitória derradeira da revolução em
suas últimas palavras escritas, que retomavam as metáforas antigas e mes­
siânicas da sua ascendência judaica: “A revolução irá se levantar outra vez,
retinindo [...] e proclamará ao som de trombetas: eu fui, eu sou, eu serei”?41

138 “Se fosse preciso descrever em uma única palavra a atividade de Rosa Luxemburgo — nào apenas
sua profissão, mas sua vocação —, seria o caso de dizer que foi em primeiro lugar e acima de tudo
uma jornalista, e mais precisamente uma jornalista política”. Badia, p. 593, e a excelente seção
analítica, “La Journaliste”, pp. 593-643.
139 Luxemburgo, Briefe aus dem Gafängnes, 1920, pp. 17-18; e discussão dessa passagem de sua
correspondência publicada postumamente: Badia, esp. pp. 712-713.
140 Luxemburgo, Briefe, p. 18.
141 Citado de “A ordem reina em Berlim” {Die Rote Fahne, 14 de janeiro de 1919), presente em Howard,
p. 415. Suas palavras confundem versos de dois poemas revolucionários de um amigo de Marx, F.
Freiligrath.
828 A FÉ REVOLUCIONARIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

Uma vida tão apaixonada e uma morte tão trágica deixaram não só
uma lenda, mas também uma espécie de presença assustadora. Quando os
revolucionários sociais finalmente chegaram ao poder na Alemanha, não
com espontaneidade depois da Primeira Guerra, e sim através do exército
russo depois da Segunda Guerra Mundial, o regime stalinista na Alemanha
Oriental tentou em vão se mostrar uma expressão das esperanças de Rosa
Luxemburgo.142 Pouco antes de morrer, ela tinha escrito que a verdadeira
vitória está “não no início, mas no fim da revolução”.143 Cresceu a suspeita
de que a vitória — e a revolução dela — ainda estivesse talvez por vir.
Alguns viram uma defesa póstuma das posições dela na invocação de
seu nome no fim da década de 1960 e início da de 1970: por estudantes
radicais franceses e italianos, por terroristas alemãs ou por admiradores de
movimentos antiimperialistas no terceiro mundo e da revolução cultural de
Mao na China.144 Mas Rosa Luxemburgo era uma crente eurocèntrica na
liderança espontânea do proletariado industrial moderno. Talvez tenha en­
contrado a sua mais autêntica reencarnação no proletariado de sua Polônia
natal. Somente lá sua memória foi profunda e continuamente honrada num
Partido Comunista dominado pelos soviéticos. Em dezembro de 1970, as
classes operárias polonesas se insurgiram numa greve em massa contra o
despotismo burocrático sem qualquer liderança política interna ou guiamento
por uma elite intelectual, uma ação que surpreendeu Ocidente e Oriente. A
greve produziu na Polônia a primeira mudança forçada de liderança política
na Europa por meio de ação proletária direta desde 1917.
A inesperada queda de Gomulka pareceu uma reabilitação poética de
Rosa Luxemburgo. A greve começou em Estetino, na área fronteiriça entre
os mundos polonês e alemão, onde ela havia passado boa parte da vida. Pôs
abaixo o homem que tinha acabado de expulsar quase o último dos judeus

142 Bertolt Brecht escreveu um poema sobre a morte dela em 1919, mas fracassou depois em seus dias
de maior conforto como dramaturgo oficial do regime alemão-oriental em ir além do prólogo de
sua projetada Vida e morte de Rosa Luxemburgo. V. Badia, pp. 798-800.
143 “O que quer a Liga Espartaquista?”, em Die rote Fahne, 14 de dezembro de 1918, citado em
Bourdet, p. 55. V. também Badia, Le Spartakisme: Les dernières annés de Karl Liebknecht et de
Rosa Luxemburg 1914-1919, 1967; e Les Spartakistes 1918: L’Allemagne en révolution, 1966.
144 De todas as tentativas gauchistes de se basear em Luxemburgo para desenvolver um programa político
para os partidos comunistas desburocratizados do fim da década de 1960, a mais séria foi a do
chefe do psiup na Itália, Lelio Basso. Além de uma importante edição das obras dela que organizou
{Scritti politici, 1967), v. de Basso “Socialismo e rivoluzione in Rosa Luxemburg”, em Problemi del
Socialismo, 1971, jan.-fev., pp. 40-63; e as atas da conferência que organizou em Reggio Emilia em
setembro de 1973 sobre “A Contribuição de Rosa Luxemburgo ao desenvolvimento do pensamento
marxista”.
LIVRO m, CAPÍTULO 17: O PAPEL DAS MULHERES 829

patrícios de Luxemburgo daquela região onde historicamente tanto sofreram.


Foi quase como se ela tivesse retornado como o personagem Dybbuk, numa
peça de mistério judaica, para assumir o corpo de um operário polonês e
vingar o legado repudiado da esposa judia de Gomulka.
Pode a fé revolucionária ainda ter alguma vida nas burocracias
neo-autoritárias e pós-revolucionárias da Europa oriental de fins do século
XX? Se essa fé sobreviver ou reviver nas terras onde Rosa Luxemburgo viveu
e morreu, parece provável que seja movida pelo fantasma dela a assombrar
os stalags do stalinismo e as dachas dos seus diretores. Para eles, ela pode
falar de sonhos esquecidos — lembrando-lhes que uma judia já defendeu
que os poloneses deveriam se unir com os russos pelo seu bem comum; que
os alemães se beneficiariam da revolução na Rússia; e que a revolução so­
cial aboliria diretamente tanto as identidades nacionais quanto os controles
autoritários que reprimem a criatividade dos operários.
EPÍLOGO
Além da Europa

sta história tratou de revolucionários que atuaram dentro da Europa

E e fora do poder no período que vai do fim do século xvm ao início do


século XX. Não cabe aqui discutir o legado de suas idéias àqueles que
depois exerceram ingente poder estatal em nome da revolução. O mundo bem
diverso posterior a 1917 — de guerra total e paz totalitária, da identificação
inicial feita por Stálin de revolução com poder e da busca final de Mao por
uma revolução além do poder: tudo isso requerería outro volume com as
suas próprias e especiais técnicas de análise e urdidura textual.
Um breve epílogo talvez possa sugerir uma importante característica do
movimento revolucionário do século xix ao XX: o alastramento da fé política
revolucionária da Europa para um Oriente que desperta. No início do século
XX, bem à maneira do que ocorreu nos países europeus no início do século
xix, o nacionalismo revolucionário se espalhou pelo mundo afro-asiático
numa espécie de reação em cadeia global contra o “novo imperialismo” das
grandes potências européias.
O centro de combustão desse renascido nacionalismo foi aquela extensão
— politicamente, uma terra de ninguém — que vai de além do Danúbio até
as ribanceiras do Tigre e do Nilo. Aí estava a parte oriental mais próxima
do Ocidente, o Oriente Médio ou Oriente Próximo, o centro da questão
oriental. Esse berço da cultura ocidental se tornou solo fértil para a nova
era de revoluções antiocidentais. Se o período francocêntrico de atividade
832 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM F HISTÓRIA

revolucionária tivera como seu principal inimigo o Império Habsburgo e


o período germano-russo havia se centrado no Império Romanov, a época
da revolução mundial se iniciou com a revolta contra o Império Otomano.
O surto de nacionalismo revolucionário e violento começou com uma re­
verberação dos movimentos europeus anteriores injustamente negligenciada:
a Organização Revolucionária Interna da Macedonia (orim). Fundada como
uma organização antiotomana em 1893, iniciou os seus esforços sempre fra­
cassados de produzir uma nação macedonia com o slogan “Melhor ter um
fim com horror do que viver um horror sem fim”. Bastante romantizada à
época como um conjunto de rebeldes montanheses que enfrentam os cruéis
turcos,1 essa organização merece ser reavaliada por uma geração posterior
como talvez o primeiro movimento moderno de libertação nacional: com
o emprego de transmissões clandestinas, terror urbano e uma estratégia
conscientemente planejada para chamar a atenção da opinião pública inter­
nacional para a situação política local.
A “transmissão” ocorreu no Dia de Santo Elias, 20 de julho de 1903,
quando gramofones escondidos atrás de ícones das igrejas ortodoxas mace-
dônias irromperam com a mensagem gravada: “Irmão! Chegou a hora da
luta [...] Abaixo a Turquia e a tirania! Urra!”.2
A base urbana do movimento era a cidade portuária cosmopolita de
Salonika, onde um grupo de estudantes de ensino médio, a princípio conhe­
cido como Agitadores da Malta [Rabblerousers] e depois como Multidão,
estudava o movimento revolucionário russo e elaborava os seus próprios
e ambiciosos planos terroristas. Com o objetivo de combater a tirania
econômica e a tirania política, e de chamar a atenção internacional para
o processo, passaram mais de dois anos cavando um enorme túnel sob as
filiais de Constantinopla e de Salonika do Banco Otomano. O plano era
explodir simultaneamente ambos os prédios, com o lançamento paralelo
de uma série de ataques coordenados em Salonika. As explosões começa­
ram na manhã do dia 28 de abril de 1903 a bordo de um navio francês
que descarregava munições para o exército turco; e, ao fim do dia, outras

1 Em especial pelo entusiasmado H. Brailsford: Macedonia: its races and their Future, L, 1926.
2 Citado em Gaucher, p. 155. A discussão feita aqui se baseia em sua abordagem, pp. 155-173, e
também na abordagem mais detalhada e com um ponto de vista grego — que identifica a orim com a
Bulgaria — de D. Dakin, The greek struggle in Macedonia, 1897-1913,Tessalônica, 1954, p. 5, nota
1. As influências ideológicas russas que, por meio da Bulgária, chegaram à orim são enfatizadas por
V. Zuev, “Gotse Delchev — vydaiushchiisia deiatel’ makedonskogo osvoboditel’nogo dvizheniia”,
em Institut slavianovedeniia: kratkie soobshcheniia, 1954, n° 12.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 833

explosões tinham mergulhado a cidade numa escuridão fumacenta e pro­


vocado uma represália feroz das tropas turcas.
Os revolucionários macedônios fizeram uma tentativa tosca e, no fim
das contas, suicida de realizar uma revolução instantânea. Não bastasse a
insanável desvantagem frente aos turcos, para piorar, os rebeldes citadinos
não tinham coordenação com os líderes do interior, cujo levante no verão
de 1903 durou só um pouco e nunca tornou realidade o autoproclamado
“governo das florestas”. Seja como for, seus esforços de planejamento, dis­
ciplina e limitados recursos centrados em ataques-surpresa foram proféticos
dos futuros confrontos de guerrilha. A orim se valeu da técnica de fazer
ataques repentinos e em seguida desaparecer no campo, o que tornou quase
impossível acabar inteiramente com o movimento. “Quando uma divisão turca
pensava ter encontrado uma unidade de combatentes”, observou um coronel,
“logo descobre que encontrou apenas um grupo de camponeses lavrando a
terra”.3 Depois da revolução dos Jovens Turcos em 1908, a orim renasceu e
continuou a reunir os interioranos pela sua causa sempre frustrada, até que,
em 1934, foi esmagada de vez pelo próprio exército búlgaro que outrora
havia treinado muitos dos seus primeiros quadros.
A orim foi o menos bem-sucedido dos movimentos revolucionários bal­
cânicos quanto ao objetivo de construir uma nação, mas foi o que obteve
maior sucesso em termos de longevidade no exercício do poder e no combate.
Cinco anos após surgir em 1893, a organização piramidal, cuja célula básica
possuía dez homens, exerceu verdadeiro poder sobre boa parte da Macedonia,
negando colheita, impostos e residência segura às potências que ocupavam o
país. Congressos anuais secretos determinaram as orientações do grupo; fez-se
uso de áreas de apoio “seguras” na Bulgária durante os primeiros anos e de
uma estrutura complexa de líderes de comitês [comitadji], bandos militares
[chetas] e organizações ligadas à educação e à igreja, que constituíam uma
espécie de fronte “cultural” do movimento clandestino.
O terrorismo se aliou às grandes lutas de libertação nacional nos Bálcãs
rurais e colonizados; e movimentos similares logo se desenvolveram nas
partes asiáticas do Império Otomano — e mais além.
A Revolução Russa de 1905 inaugurou uma nova e global “era das re­
voluções”, produzindo, literalmente, um efeito elétrico. O gerador da revo­
lução foi, sob muitos aspectos, o Instituto Tecnológico de São Petersburgo,

3 Gaucher, p. 155.
834 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

que convocou um primeiro comício estudantil no dia seguinte ao primeiro


massacre de manifestantes em frente ao Palácio de Inverno (o “domingo
sangrento” de 9 de janeiro de 1905);4 sobreviveu ao cerco militar ao seu
prédio estudantil;5 e reuniu o primeiro Soviete de Operários em seu salão
de leitura. Krzhizhanovsky, especialista elétrico e ativista bolchevique na
São Petersburgo de 1905, via o transmissor elétrico como “a transição da
anarquia da produção capitalista à produção planificada”.6 Mais tarde
ajudou Lênin a redefinir o comunismo em termos das duas coisas que foram
literalmente introduzidas na Rússia entre as paredes da sua alma mater^ o
Instituto Tecnológico: “poder soviético acrescido de eletricidade”.7
O serviço elétrico de telégrafo permitiu que os acontecimentos de uma
revolução ainda em andamento fossem noticiados em 1905, pela primeira
vez na história, um ritmo diário pelo mundo inteiro. O efeito foi particular­
mente intenso fora da Europa, onde o novo imperialismo tinha infectado
novas regiões com idéias revolucionárias ocidentais. As antigas e orgulhosas
civilizações da Ásia eram particularmente sensíveis ao poder expansionista
dos Estados europeus. As notícias sem precedentes de que uma nação asiática
(Japão) tinha vencido uma potência imperial européia (Rússia) na guerra de
1904-1905 encorajaram novos líderes a mobilizar o potencial revolucioná­
rio do “proletariado externo” do Oriente menos desenvolvido, porém mais
densamente povoado.
A revolução interna à Rússia logo após a derrota na guerra para uma
potência asiática externa produziu de imediato ecos no Oriente: tanto sobre
grupos minoritários dentro do Império Romanov quanto nos Estados asiá­
ticos logo além de suas fronteiras.
A inquietação passou do turbulento Cáucaso para o Irã, onde, em dezem­
bro de 1905, uma greve geral eclodiu em Teerã, ao passo que a greve geral

4 P. Gusiatnokov, “Studencheskoe dvizhenie v 1905 godu”, em Voprosy Istorii, 1955, n° 10, p. 75.
5 Esse confronto terrível, que durou vários dias atraiu grande atenção popular, é descrito em sua
totalidade em Rappeport, Institut., p. 284 ss. V. também A. Mil’shtein, Tekhnologichesky institut v
1905 godu, Leningrado, 1955.
6 Krzhizhanovsky, Sochineniia, 1933, vol. i, p. 61. Pôs em epígrafe a essa brochura fundamental
sobre a eletrificação da Rússia: “O século do motor a vapor foi o século da burguesia; o século da
eletricidade é o século do socialismo”. Krzhizhanovsky. Zhizn\ p. 22.
7 Lênin empregou essa formulação pela primeira vez no 8o Congresso dos Sovietes no Teatro Bolshoi
em Moscou no dia 2 de dezembro de 1920 (Krzhizhanovsky. Zhizn’, pp. 33-34). O principal rival
socialista revolucionário de Lênin e Trótski em 1917 depois se queixou das “cargas elétricas de força
de vontade” que esses líderes bolcheviques deram aos acontecimentos daquele ano: V. Chernov, The
Great Russian Revolution, New Haven, 1936, p. 445.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 835

de Moscou caminhava para o fim. Em Tabriz, em setembro de 1906, foi es­


tabelecido o primeiro de vários conselhos de operários persas organizados à
maneira russa (sovietes). Só com a intervenção anglo-russa em 1911 foi que
se conseguiu reprimir de todo o movimento revolucionário persa.8 Nesse
mesmo ano, a primeira revolução moderna da China derrubou a dinastia
Manchu. Seu líder, Sun-Yat Sem, também foi influenciado pela Revolução
Russa de 1905 e pela tradição de que ela era produto. Ele tinha conhecido
líderes revolucionários russos como Gershuni em Tóquio, onde estabeleceu
em 1905 um movimento revolucionário de tipo russo, baseado em estudantes
e orientado por um jornal similar ao Sino de Herzen.9 O exemplo russo
também influenciou a virada rumo a greves e insurreição da Jovem índia10
e a revolução dos Jovens Turcos, que derrubou um sultão corrupto em 1908.
A organização anterior Jovens Otomanos, dos anos 1870, foi influenciada
pela emergência de uma tradição revolucionária russa depois da derrota dos
turcos na Guerra Russo-Turca. Agora, surgia o movimento Jovens Turcos
estruturado a partir de uma célula secreta de oficiais em Salonika. Estes re­
volucionários se valeram de uma mistura de táticas grevistas com resistência
armada similar à das sociedades secretas armênias que, ao que parece, foram
influenciadas pelo movimento revolucionário russo de 1905-1906.11
O levante de revolucionários asiáticos contra impérios europeus repetia,
sob muitos aspectos, o levante de revolucionários europeus contra o Império
Habsburgo um século antes. A Jovem Itália e a Jovem Europa de Mazzini
eram os ancestrais diretos dos Jovens Turcos e de outros movimentos na­
cionais de jovens na Ásia. Assim com os revolucionários europeus do início
do século xix, os revolucionários nacionais asiáticos do início do século xx
adicionaram vagas idéias de revolução social aos seus sonhos de libertação
nacional.
O nacionalismo revolucionário asiático do início do século xx com fre-
qüência seguiu os padrões do protótipo europeu. O movimento revolucio­

8 I. Spector, The First Russian Revolution: its impact on Asia, Englewood Cliffs, 1962, pp. 40,44,50;
comentários de Iran, pp. 38-50; e material complementar em B. Aizin, “Mezhdunarodnoe znachenie
revoliutsii 1905-1907 godov v Rossii”, em Novaia i Noveishaia Istoriia, 1975, n° 6, pp. 21—41.
9 Spector, pp. 80-83. Pouco depois, os pioneiros estudantes revolucionários do Japão também imitaram
os russos, chamando seu jornal de Narod: H. Smith li, Japan’s First Student Radicals, Cambridge,
Massachusetts, 1972, p. 5, além de pp. 63, 74-75.
10 Spector pp. 105-109; também novos elementos em P. Sinha, The Indian National Liberation
Movement and Russia, 1905-1917, Nova Deli, 1975 (versão revista de uma tese defendida na
Universidade de Moscou).
11 Ramsaur, Young Turks, p. 127; C. Buxton, Turkey in Revolution, NY/L, 1909, p. 43 ss.
836 A FÉ REVOLUCIONÁRIA: SUA ORIGEM E HISTÓRIA

nário chinês prévio a 1911, por exemplo, foi tão dependente de jornalistas
ideológicos emigrados (Sun-Yat Sem no Havaí e no Japão, grande parte da
futura liderança comunista na França) quanto antes fora o movimento rus­
so.12 A mesma orientação dada por emigrados foi essencial para a Revolução
Vietnamita, com Ho Chi Minh a viver sucessivamente em Paris, Moscou e
Cantão. A interação esquerda-direita também é evidente no treinamento
soviético do filho e sucessor de Chiang Kai-shek, líder do regime naciona­
lista em Taiwan; e no estranho modelo de transmissão de idéias terroristas
oriundas do Vietnã. Alguns terroristas franceses de direita, a Organisation
Armée Secrète (oAs), parecem ter aprendido suas técnicas enquanto eram
mantidos presos pelos terroristas de esquerda no Vietnã. A direita francesa,
por sua vez, proporcionou um ensino similar à esquerda argelina, o Front
de Libération Nationale (fln), cujos eficientes métodos terroristas homena­
geavam a simbiose que ocorre quando les extrêmes se touchent.
Os revolucionários asiáticos ecoaram idéias européias no século xx, ao
passo que os revolucionários europeus tinham ocasionalmente ecoado idéias
asiáticas no século xix. O mais sofisticado teórico da insurreição nacional
entre os sempre proféticos poloneses foi ainda mais longe em sua busca por
modelos de inspiração: da resistência relativamente familiar dos espanhóis e
russos a Napoleão à resistência dos sérvios e albanos aos turcos, dos argelinos
aos franceses, dos povos caucasianos à Rússia — e do Afeganistão à Inglaterra
durante a guerra de 1832-1842. Quando as tropas russas acorriam àquela
terra montanhosa nos últimos dias da década de 1970, era coisa sinistra
1er um exilado polonês dos anos 1840 recomendar o estudo detalhado da
resistência afegã a um invasor imperialista do passado, “pois aí será possível
descobrir a fonte para a reconstrução da Polônia”.13
À medida que a África acompanhava a Ásia em seu despertar, um novo
teórico da violência revolucionária viajava, como fizera Ismail Urbain um
século antes, das índias Ocidentais para a França, e daí para a Argélia.
12 A. Kriegel, “Aux Origines Françaises du Communisme Chinois”, em Preuves, 1968, ago.-set., pp.
24-41.
13 Citação de Ludwik Bystrzonowski presente em Halic, 'Warfare, p. 144. A imensa variedade de suas
experiências na emigração (de ativo papel no movimento argelino de resistência a adido militar
turco em Paris) é descrita em Hallicz, pp. 120—155. Sua inédita “Mémoire sur Afghanistan” está no
Museu Czartoryski, Cracovia, ni, ms. 5555.
Ao firn do século, a ânsia desesperada por regeneração nacional levou os revolucionários poloneses
a glorificar distantes e dispersos movimentos de protesto (os irlandeses contra os britânicos) e
nacionalismos não-revolucionárias (os japoneses contra os russos). “Na época, estávamos enamorados
dos hindus, dos habitantes do Cáucaso, dos albanos, dos bascos [...]”, relembrou Ignacy Daszynski,
Pamietniki, 1957, vol. i, p. 23; Borejska, “Portrait”, p. 147.
LIVRO III, EPÍLOGO: ALÉM DA EUROPA 837

Frantz Fannon reverberou muitos dos temas dos primeiros apóstolos ítalo-
-poloneses da violência heróica. “Só a violência”, insistia, “torna possível às
massas a compreensão das verdades sociais”; ela seria “uma força de limpe­
za” que “liberta o nativo do seu complexo de inferioridade e do desespero
da inação”.14 “Abater a tiros um europeu é matar dois coelhos com uma
cajadada só, é ao mesmo tempo destruir um opressor e um homem que é o
seu oposto”.15 Mas essa mensagem era menos original do que ele supunha.
0 seu estilo refletia mais a sua formação ocidental de psicólogo do que o
pensamento real do terceiro mundo. Talvez só na Cuba de Fidel Castro te­
nha havido alguma resposta ao ato de Fanon de despertar a África para a
violência revolucionária; e essa resposta veio em dependência do benfeitor
imperial de Cuba, a União Soviética. Os próprios revolucionários cubanos
— desde Marti, com seus longos anos de jornalista revolucionário a editar
A Era de Ouro em Nova York, no fim do século xix,16 ao longo exílio de
Castro no México e nas brenhas — repetiram muitos dos temas da tradição
revolucionária nacional. Quando a revolução nacional cubana entrou em
conflito com o poder imperial da primeira nação a nascer de uma revolução
nacional, os Estados Unidos, ela atraiu considerável simpatia — porém mais
entre os bem-alimentados estudantes do Ocidente superdesenvolvido do que
no mundo faminto e subdesenvolvido. Para muitos intelectuais, a utopia tinha
novamente retornado a uma ilha tropical do Novo Mundo — justamente
onde os intelectuais da nascente Europa moderna a tinham imaginado.

14 F. Fanon, The wretched of the Earth * Middlesex, Inglaterra, 1970, pp. 74-118; D. Caute, Fanon, L,
p. 85. Caute indica mais Sartre e Merleau-Ponty do que Sorel como fonte das idéias de Fanon sobre
violência (pp. 92-94).
15 Fanon, Wretched, p. 19.
16 G. de Zendegni, “Marti in New York”, em Américans, 1973, jan., pp. 7-12. Seus jornais se destinavam
a outros países além de Cuba, e La Edad de Oro era endereçado às crianças, ainda não corrompidas
pelo preconceito social.
Este livro foi impresso pela Gráfica Santuário.
Os papéis usados para compor este livro
foram chambril avena 80g para o miolo,
e para a capa, cartão triplex 250g.
“A fé revolucionária foi construída
mais por inovadores ideológicos
do que por líderes políticos. [...] O
profissionalismo se iniciou mais tarde,
com um novo tipo de homem: um
intelectual sem experiência política,
mas que via na revolução um objeto
de fé e uma fonte de vocação, um
canal para a emoção sublimada e
para a ambição sublime. Se a religião
tradicional deve ser descrita como co
ópio do povo’, a nova fé revolucionária
bem pode ser chamada de a anfetamina
dos intelectuais”.

“A maioria dos revolucionários via


a história profeticamente como uma
espécie de auto medieval em plena
encenação. O presente era o inferno, e
a revolução um purgatório coletivo que
levava ao futuro paraíso terrestre. A
Revolução Francesa era a encarnação
da esperança, mas foi traída pelos Judas
que integravam a ala revolucionária e
crucificada pelo Pilatos que estava no
poder. A futura revolução seria uma
espécie de Segunda Vinda na qual o
justo seria vingado. A própria história
providenciaria o juízo final; e uma
nova comunidade para além de todos
os reinos se materializaria na terra
como jamais poderia fazê-lo no céu”.

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James H. Billington rastreia neste livro as origens de uma nova fé — a fé
revolucionária — e mostra que ela foi moldada não tanto pelo racionalismo
critico do Iluminismo francês (como em geral se pensa) quanto pelo ocultismo
e proto-romantismo da Alemanha.
Essa fé foi incubada na França durante o período revolucionário
junto a uma pequena subcultura de literatos que estavam imersos no
jornalismo, em sociedades secretas, e que logo depois se deslumbraram com
“ideologias” enquanto sucedâneos seculares da crença religiosa. A novidade
dos revolucionários modernos, que têm um fervor análogo ao de cristãos e
muçulmanos de épocas passadas, está na crença de que uma ordem secular
perfeita emergirá da derrubada violenta da autoridade tradicional.
Este estudo é uma história não de como revoluções são feitas, mas de que
são feitos os revolucionários: os criativos forjadores de uma nova tradição.

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