O Vampiro Que Me Amava - Karine Vidal

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Fechei o chuveiro e saí do box.

Eram cinco da tarde. Eu tomava banho tranquilamente. Não havia


ninguém em casa. Me sequei e me enrolei na toalha, abrindo a porta do
banheiro.

Parei, arquejando.

– Porra, que susto.


Meu padrasto arqueou a sobrancelha.

– Tão novinha, mas tão boca suja...

Matias, o novo marido da minha mãe. Olhou-me de cima à baixo, íris


ardendo. Lascivas e cheias de um desejo nojento.
Eu me encolhi, incomodada. Ajeitei a toalha sobre os seios.

– Pensei que não estivesse em casa.


– Voltei mais cedo do trabalho.

– Minha mãe veio com você? – engoli em seco. Não queria estar
sozinha em casa com ele.
Soltou um sorrisinho sacana.

– Não. Estamos apenas eu e você hoje.

Matias se casou com a minha mãe quatro meses atrás. Eles se


conheceram e se casaram muito rápido.

Matias tinha quarenta e sete anos. Eu, quinze.

Quando ele namorava a minha mãe, jamais agiu de forma


inapropriada comigo. Porém, depois que se casaram, nós viemos morar em
sua casa. E tudo mudou.

Matias revelou sua verdadeira face. Quando minha mãe saía, eu o


flagrava me olhando. Furtiva e insidiosamente. Encarava as curvas do meu
corpo adolescente, jogando indiretas sujas. Um predador de sorriso gentil.
Acontecia toda maldita vez em que minha mãe saía para trabalhar.
Era um inferno. Eu mal saía do meu quarto.

– Vou fazer o dever de casa. – Passei por ele pelo corredor, com
pressa.

Ele me interceptou, segurando meu braço. Congelei.


– Só um aviso. Não fique andando pela casa de toalha... Alguém pode
entender errado.

– Entender o quê?

– Que você está provocando.


Com um arranque brusco, soltei o braço de seu aperto.

– Então esse alguém precisa se tratar.

Corri para o meu quarto e tranquei a porta. O coração, acelerado.


Sentei-me na cama e massageei as têmporas. Nunca pensei que passaria por
isso. Eu tinha nojo dele e nojo de mim mesma. Um sentimento distorcido de
culpa.

A culpa não era minha – lógico que não. Então, por que eu me sentia
tão... Suja?

Fitei minha imagem no espelho da parede. Mostrava uma garota


esguia e de pele bronzeada. Consequência dos dias infindáveis de sol na
praia. Cabelos compridos e castanhos, ondulados até as costas. Rosto suave e
olhos verdes cor–de–mel. Herdei a beleza da minha mãe.
Considerar isso me fez trincar os dentes. Por culpa daquela beleza
maldita, eu estava sofrendo o assédio do seu marido nojento.

Meu nome é Clara Mourão, e moro em Recife. Curso o primeiro ano


do Ensino Médio.

Minha mãe, Ágata, era linda. Tinha 45 anos e uma genética super
favorável. Casou–se com o empresário do ramo farmacêutico, Matias, há
pouco tempo. Por isso, nós nos mudamos para a casa dele. Situava–se num
condomínio de classe média alta da cidade.
Minha mãe era consciente de sua beleza. Sempre a usou para
escalonar o meio social. Não por acaso ostentava seu terceiro casamento. Ela
era uma pessoa do bem, sim, mas de coração volúvel. Apaixonava-se fácil – e
mudava de vida mais fácil ainda.

Em razão de sua inconstância, vários homens entraram e saíram de


nossas vidas.

Eu tinha um pai. Ele morava em São Paulo, e nós conversávamos ao


telefone de quando em vez. Ele mandava uma pensão alimentícia irrisória.
Ultimamente, eu andava considerando uma ideia. Pensava em pedir
para morar com ele em São Paulo.

Meu pai se casou de novo. Possivelmente, sua nova esposa não me


aceitaria. Mas não custava tentar. Aquela ideia seguia maquinando na minha
cabeça há dois meses (quando o assédio de Matias começou).

Contar para minha mãe seria inviável. Ela estava apaixonada e jamais
acreditaria em mim.
Meu irmão, Lucas, tinha 21 anos. Morava conosco. Era um nerd
esquisitão, mas de bom coração. Cursava Biologia Marinha na Universidade
Federal da cidade.

Quando meu irmão estava em casa, Matias não ousava fazer


gracinhas. Ele era a minha âncora.

Só saí do meu quarto bem tarde da noite. Peguei um pacote de


biscoitos e um suco na cozinha. Aquele seria o meu jantar.

Amanhã, minha mãe e seu marido-verme viajariam. Representariam a


empresa numa convenção farmacêutica no Rio.

Graças aos céus, eu teria a casa só para mim. Poderia respirar


aliviada.

Na manhã seguinte, fui para a escola.


Quando retornei, Lucas estava em casa. Pouco saía do seu quarto. Às
dezoito, saiu para a faculdade, deixando-me sozinha. Finalmente.
Era uma noite quente de verão.

Matias podia ser o diabo em pessoa, sim, mas era dono de uma casa
muito agradável. Ampla e moderna, continha uma piscina nos fundos.
Eu amava o mar e amava a água. Então, decidi aproveitar o meu raro
momento de privacidade. Coloquei meu biquíni e fui nadar.

Na área de lazer, liguei o som baixinho. Mergulhei na piscina,


sentindo a água escorregando pelo meu corpo.

Foi então que ouvi um barulho. Alguém entrava na casa.


Paralisei de imediato, no meio de um mergulho. Submergi e gritei.
“Lucas, é você?”

“Sou eu, mana.” Ele gritou de volta, ao longe.

Expirei em alívio. Que bom.


Minutos depois, Lucas apareceu na área de lazer. Esta, ficava situada
aos fundos da cozinha. Separava-se da casa por uma parede de vidro.

Lucas abriu a porta de vidro e entrou na área. Era um nerd por


excelência. Camisa geek, óculos grossos e cabelo bagunçado. Amava estudar.

Bom, eu não podia julgá-lo. Eu também amava.


Secretamente, sentia que nós dois tentávamos nos compensar a
lascívia da nossa mãe, nos tornando excelentes nos estudos. E mais adultos
do que deveríamos.

– Nadando à esta hora?

– Pois é. Gosto da brisa da noite. – Apoiei os cotovelos na borda da


piscina. – Não era para você estar na faculdade? São o quê? Umas sete e
meia?
– Sete e quinze. E, sim, era. Mas precisava fazer um trabalho em
grupo e trouxe uns colegas de turma para cá. Os três estão na sala me
esperando, iremos trabalhar na mesa da copa. Só para te avisar.

– Está matando a aula para fazer o trabalho? Isso não tem muita
lógica. Por que não fazem amanhã de manhã?
Ele revirou os olhos.

– Tem um cara da turma que só pode nos encontrar na parte da noite.

– Que folgado. – Bufei.


– Pois é. Ele é esquisito e nos causa um pouco de... Medo. Então
deixamos por isso mesmo. Um dia só não irá nos matar.

– Tsc... Três marmanjos com medo de um garoto? Qual é.

Estalou a língua.
– Pode me zoar à vontade. Quando vê-lo, mudará de ideia... O cara
parece um chefe de quadrilha. Eu não encaro. Ainda não estou louco.

– Ok, agora fiquei curiosa. Acho que vou até lá dar uma olhada.

– Nem pense nisso. – Rosnou. Pegou a toalha por cima da


espreguiçadeira e jogou–a para mim. Captei–a com uma mão. – E não ande
pela casa de biquíni. Tem três marmanjos lá dentro.
Lucas mostrava-se mais cuidadoso comigo ultimamente. Ele não era
idiota. Possivelmente, notou os olhares lascivos de Matias.

Nenhum de nós dois falou nada. Era horrível demais para expressar
em voz alta.

– Ok. Vou ficar nadando por um bom tempo. Não vou incomodar,
então relaxa.
– Foi só para avisar mesmo. Ninguém virá até aqui. Tem comida na
geladeira, então não jante porcarias, ok?

– Sim, chefe.
Com um sorrisinho paternal, ele saiu. Sentia que Lucas fazia um papel
de pai para mim, vez que o nosso pai verdadeiro não se importava muito
conosco.

Após algum tempo, senti sede.

Ouvia as vozes masculinas advindas da copa. Pé ante pé, fui até a


cozinha. Não queria ser vista. Ter homens mais velhos em casa me deixava
nervosa.
Abri a geladeira e peguei um suco.

Foi quando aconteceu.

Fechei a porta da geladeira, e congelei. Alguém estava na cozinha.


Havia um garoto parado no batente da porta. Um dos colegas de
Lucas. Alto, musculoso e bronzeado. Queixo quadrado e cabelos escuros,
macios e bagunçados. Olhos negros ferozes e incendiários.

Tinha o maxilar trincado e a face perversa.

Eu estava apenas de biquíni. Cabelos pingando água.


O garoto me olhou de cima à baixo, num silêncio enigmático.

Engoli em seco. O cara parecia... Perigoso. Minha voz tremeu:

– O que está fazendo aqui?


– Estou procurando um copo de água. – Devolveu, cortante.

Sua voz era tão masculina e profunda quanto seus olhos.


– Ah. – Clareei a garganta. – Fica logo ali. – Apontei para o filtro por
sobre a pia. – Pode ficar à vontade.

Ele ergueu uma sobrancelha, ardiloso.


– Obrigado.

Confirmei com a cabeça e saí da cozinha às pressas. Fechei a porta de


vidro e voltei para a área da piscina. Meu coração, acelerado.

Aquele homem não se parecia em nada com os amigos de Lucas.


Nenhum traço de nerd desajeitado. O porte selvagem e atlético era
intimidador. Parecia mais velho que meu irmão. Havia um resquício de barba
no seu queixo másculo. As sobrancelhas escuras moldavam os olhos felinos,
tornando sua figura um mistério.
Ele parecia ter, no mínimo, uns 25 anos. Deveria ter começado a
faculdade mais tarde.

Era ele, tive certeza. O amigo estranho de Lucas. O chefe de


quadrilha de quem todos tinham medo.

Evidentemente, o grupo foi escolhido por sorteio. Do contrário, o


garoto dos olhos selvagens jamais estaria no grupo do meu irmão. Eles não
tinham nada a ver.
Bebi o suco na caixinha e entrei na piscina novamente.

Eu podia ouvir os barulhos do garoto se movimentando na cozinha.


Enchendo o copo de água e o colocando por sobre a pia. Estava totalmente
consciente de sua presença há alguns passos.

Enquanto nadava calmamente, senti algo diferente. Como se estivesse


sendo... Observada.
Com os olhos fechados, boiei por alguns segundos de barriga para
cima. Os cabelos, espalhados ao meu redor e a música suave tocando ao
fundo.

Tinha alguém me observando. Eu sentia.


Ousei abrir as pálpebras discretamente. Lá estava ele, parado atrás do
vidro que separava a área de lazer e a cozinha. O garoto. Mãos nos bolsos e
olhos negros me fuzilando. Olhava diretamente para mim, face séria e
misteriosa.

Não parecia me desejar de forma repulsiva, parecia me... Admirar.

Eu gostei de ter sua atenção sobre mim.


Consciente de estar sendo observada, voltei a nadar. Pela primeira vez
na vida, gostei daquele jogo... Sob o olhar dele, não me sentia uma garota.
Me sentia uma mulher.

Minutos depois, olhei para o vidro da cozinha. O garoto não estava


mais lá.

Parei na borda da piscina e me apoiei ali; o coração, acelerado.

Aquela pele bronzeada, aqueles olhos negros e selvagens... Deus,


jamais me senti tão impressionada diante de um homem. Sua figura era
inesquecível.

Ele era bem mais velho que eu, e amigo do meu irmão. Ou seja,
alguém inacessível.

Quem era aquele garoto?


Quando todos foram embora, eu saí da piscina e fui tomar banho.
Coloquei meu pijama e roupão, depois bati na porta do quarto de Lucas. Ele
abriu.

Inventei uma desculpa qualquer:

– Oi. E aí, quer jantar?

– Já comi o macarrão que a mãe deixou na geladeira. Tô tranquilo.

– Ok. – Virei–me para ir embora, mas parei no meio do movimento.


Tomei coragem: – Eu vi um dos seus amigos na cozinha hoje.

– Quem?

– Aquele que parece um chefe de quadrilha.

– Ah – arqueou uma sobrancelha. – Está falando do Tristan?


Tristan?

– Que nome é esse? – me espantei.

– Estranho, né? É porque o cara não é brasileiro. Ele é um


intercambista da Itália.
Ah, que ótimo. Além de mais velho, nem morava no Brasil.

– Não sabia que tinham intercambistas na sua turma.

– Tem alguns. No curso de Biologia Marinha, o Recife é referência


para o mundo.
– Entendi. E ele volta? – fingi desinteresse. – Já terminaram o
trabalho?

– Já sim, ele não volta mais. Graças a Deus. O cara é bizarro... Acho
que ele nunca sorri.

– Hum... – disfarcei a decepção. – Tranquilo, vou jantar. Até amanhã.


– Até. – Ele fechou a porta do quarto, e eu soube que não sairia até de
manhã.

Corri para o meu quarto e liguei o notebook. Fui até o Facebook da


Universidade de Lucas, e pesquisei a lista de amigos. Digitei o nome
incomum do garoto, Tristan.
Não o encontrei em lugar nenhum.

Ele não tinha uma conta nas redes sociais?

Bufei. Pelo amor de Deus... Será que era mesmo um chefe de máfia?
Pesquisei nas fotos da Universidade. Num dos álbuns, lá estava o
garoto.

Ao vê-lo, meu coração acelerou. Era uma foto em grupo. Havia três
garotos e um professor; parecia uma competição internacional sobre
conhecimentos de Biologia Marinha na Suíça. Seu grupo havia ganhado a
medalha de ouro.

Tristan tinha a medalha ao redor do pescoço.


Todos os demais sorriam. Ele, não. Encarava foto com os olhos
negros penetrantes – como se desafiasse a quem o obrigasse a sorrir.

Não vou mentir, encarando aquela foto, senti medo. Suas íris
pareciam cravar-se diretamente em mim.

Pare de me perseguir, garotinha. Você não vai querer descobrir


quem eu sou.
Nos dias seguintes, procurei o garoto por todas as redes sociais
existentes. Tudo em vão.

Na sexta-feira, desisti.
Era sábado, parte da tarde. Minha mãe estava no salão de beleza, e
Matias tinha ficado no Congresso no Rio. Amém.

Eu estava deitada no sofá da sala, vendo um filme de comédia


romântica. Lucas se deitava no sofá ao lado, folheando uma revista em
quadrinhos.
Esse nerd esquisito, ri por dentro com carinho.

O celular de Lucas tocou. Ele o pegou no bolso e olhou a tela; franziu


a testa sem reconhecer o número.

Atendeu. “Oi.” Pausa para resposta. “Hã, sou eu, sim.” Arregalou os
olhos. “Tristan?!”
Pausei o filme na mesma hora, tensa. Me sentei para ouvir.

“Tô livre, sim”, Lucas parecia extremamente confuso e chocado.


“Amanhã de manhã? Certo. Às 10 horas então... Te espero lá. Valeu, até
mais.” Lucas desligou o telefone, perplexo.

– O que ele queria? – perguntei na mesma hora. Não consegui paliar o


interesse.

Por que o-chefe-da-máfia-cruel ligava para Lucas? Eles nem era


amigos.

– O Tristan acabou de me chamar para jogar tênis com ele amanhã.


Ele é sócio de um clube chique da cidade.

Lucas adorava tênis. A maioria de seus posts nas redes sociais eram
comentários sobre o esporte.
Franzi a testa.

– Mas pensei que vocês não fossem amigos...


Lucas me olhou com estranheza.

– E não somos. – Desviou os olhos. – Apesar de que... Nestes últimos


dias, o Tristan tem andado bem amigável. Ele nunca tinha falado comigo na
vida. Começou a puxar assunto nas aulas e se sentar perto de mim.
– Por quê? – me choquei.

– Sei lá, Clara. Acho que ele está querendo fazer amizade.

– Com você?

Lucas estreitou os olhos.

– Não fique tão surpresa, engraçadinha.

– Não estou surpresa – menti. – É só que vocês são muito...


Diferentes.
Meu irmão era um nerd inofensivo e de bom coração. Tristan, um
atleta musculoso e muito gato. Porte feroz e cara de mal.

Ou seja, a fórmula perfeita para o desastre.

– Pois é, não temos muito a ver. Mas acho que ele é meio solitário
aqui no Brasil. Deve estar à procura de amigos – deu de ombros, indiferente.
– Vou jogar uma vez com o cara. Não vai me matar. – E voltou para sua
revista.
Eu me deitei novamente no sofá, religando o filme. Uma sensação
estranha pairando no fundo do estômago.

Quais motivos Tristan teria para ambicionar uma amizade com o meu
irmão? Os dois não tinham nada em comum. Já estudavam juntos há anos, e
nunca se aproximaram.

Então, por que agora?


****

Daí em diante, tudo foi ficando mais estranho. Tristan e Lucas saíram
mais vezes.
Tristan, na verdade, tinha muitos amigos no Brasil. Apresentou a
todos para Lucas.

A vida do meu irmão se transformou. Lucas começou a sair para


festas e baladas noturnas com ele. Juntos, frequentavam clubes e jogos de
futebol.

Pouco a pouco, Lucas se tornava mais... Descolado. Tudo por


influência do bad boy de olhos escuros.
De repente, meu irmão meio nerd e esquisito ficou cheio de amigos.
Andava mais feliz, mais sociável e mais seguro de si. Tristan foi um
verdadeiro milagre em sua vida.

Lucas não tinha o menor jeito com mulheres. Isso mudou. Estava
cheio de encontros, e afirmava que o amigo recente o havia ensinado muitas
coisas.

Uma rotina começou. Tristan aparecia em nossa casa, aos finais de


semana, para jogar videogame.
Pois é. Lucas e ele conquistaram esse nível de amizade.

Fiquei sabendo que o italiano morava num apartamento de luxo, num


condomínio caro de Recife. Então, por que despencaria até a nossa casa só
para jogar videogame com o meu irmão? Com certeza, ele teria em casa jogos
mais caros...

Ficava o mistério.
Nas semanas seguintes, o inevitável acontecia.

Eu me deparava com o garoto na cozinha e nos corredores da minha


casa. Ele se mantinha sempre enclausurado no quarto de Lucas – mas, vez ou
outra, saía para pegar algo na geladeira ou beber água.
Nunca me cumprimentou. Nunca perguntou meu nome.

Apenas me lançava olhares de soslaio, negros e ferozes. Como se


estivesse totalmente consciente da minha presença. Eu vejo você.

Era uma interação peculiar e sem palavras, mas carregada de


eletricidade.
Certo dia, estávamos na mesa do almoço. Minha mãe questionou
Lucas.

– Como você fez amizade com aquele garoto?

Matias almoçava ao meu lado, lançando olhares nojentos. Portanto, eu


comia calada e de cabeça baixa. Planejava me trancar em meu quarto tão logo
fosse possível.
– Que garoto? – meu irmão perguntou.

– Aquele fortão bronzeado, do cabelo escuro. – Ela comia


calmamente. – Ele não se parece com os seus outros amigos. É modelo, ou
algo assim?

– Ele é da minha turma. Por acaso fizemos amizade recentemente.


– Ele é bem caladão.

– Só com vocês, comigo ele se solta. Acho que ele só não gosta de
pessoas desconhecidas.

– Eu, hein... Ele pensa o quê? Que nós temos lepra?


– Não, mãe, ele é reservado, só isso. Na verdade, é bem inteligente e
perspicaz... Eu curto humor ácido.

– Tem cara de assassino, isso sim. – Matias bufou. – Não gostei da


última vez em que veio aqui. É meio mal educado, só responde minhas
perguntas de forma monossilábica. – Virou-se para mim. – E você, mocinha,
não deveria sair do seu quarto quando os amigos do seu irmão estiverem
aqui. Nunca se sabe quem eles são.

Minha mãe revirou os olhos.

– Pare de ser antiquado, Matias, os garotos são dez anos mais velhos
que a Clara. Ela é uma criança para eles.

– Você quem pensa, Ágata. Os homens são uns vermes, não dá para
confiar. Acredite, sei do que estou falando.
Minha mãe lançou um sorriso apaixonado para Matias.

– Você sempre protegendo a minha filha...

Aquilo foi demais para mim. Me levantei, irada. Esse cretino


dissimulado.

– Estou satisfeita, vou para o meu quarto. Tenho dever de casa.

Passaram-se algumas semanas. Tristan continuou frequentando a


minha casa.

Eu passava os dias ansiosa, esperando suas visitas. Ansiando pela


chance de trombar com ele no corredor e trocarmos um olhar de relance.
Ele nunca se aproximou, nunca me olhou de forma inapropriada.
Nunca disse nada constrangedor.

Tristan era um adulto e eu, uma adolescente. Eu entendi a distância


segura que impunha entre nós. Podia sentir que ele me admirava, sim, mas
apenas de longe.

Nas férias de julho, Lucas chegou em casa extasiante.


Eu e minha mãe estávamos na cozinha, preparando o jantar. Ele nos
contou a boa-nova.

– Vocês não vão acreditar! O Tristan convidou a mim e mais dois


amigos da turma para viajar com ele!

– Para onde? – minha mãe picava o tomate.


– Para a casa dele na Itália!

– O quê? – arfei.

– Pois é. Nós vamos no jato particular da família dele. Não terei que
pagar passagem, nem estadia, só descolar uma grana para gastar lá. Acha que
pode adiantar minha mesada do mês que vem, mãe?
– Mas... – minha mãe ficou confusa. – Assim, de repente? Você nunca
saiu do país. Tem certeza de que esse garoto é confiável?

– Claro que tenho, e será só por 15 dias. Ele mora em Roma.

– Lá é uma cidade cara, Lucas, tudo vendido em euro. Eu não tenho


dinheiro para te dar.
– Eu dou. – Matias entrou na cozinha. Tirou a carteira do bolso,
separando uma quantidade absurda de notas. Entregou-as na mão de Lucas. –
Toma, garoto, vá se divertir. Pelo menos você não ficará enclausurado
naquele quarto com seus quadrinhos.

– Matias... Tem certeza?

– É claro. Uma chance dessas não cai duas vezes no nosso colo.
Sabia que Matias só queria impressionar a minha mãe, mostrando ser
generoso.

Eu picava os legumes por sobre a bancada, chocada.


Tristan e Lucas viraram realmente amigos – e, agora, iriam viajar para
a Itália juntos. E “jato particular da família”? Tristan era o quê? Um
milionário da máfia?

Lucas me contou algumas coisas sobre ele.

Pertencia a uma família tradicional da Itália. Fizeram fortuna com


aquisições e vendas de propriedades durante séculos. Sua família tinha um
jato particular e várias propriedades em Roma.
Tristan já tinha feito uma faculdade anteriormente. Veio ao Brasil
cursar a segunda faculdade, pois era um amante do mar.

De fato, era mais velho que o meu irmão. Tinha 27 anos.

Deus... Doze anos mais velho que eu. O fato só tornava o garoto mais
enigmático para mim.
Uma semana depois, meu irmão viajou com ele.

Eu acompanhei suas redes sociais, vendo-o postar fotos com Tristan e


mais dois amigos da turma. Eram cliques nas baladas noturnas de Roma, na
piscina da casa do garoto, nas ruas da lindíssima cidade...

Tristan não sorria em nenhuma das fotos. Mas, ao mesmo tempo,


parecia satisfeito – olhos reluzentes em malícia.
Eu me sentia agradecida a ele. Que bom que a amizade dos dois fazia
ao meu irmão feliz...

Lucas precisava disso.


Salvei todas as fotos. Cortei a figura do italiano em cada uma delas,
armazenando todas no meu celular. Antes de dormir, eu ficava observando as
fotos, intimidada e curiosa. Fitava seus olhos negros e ferozes – que pareciam
devolver meu olhar.

Algo neles alimentava minha suspeita. Uma conjectura absurda que


retumbava no meu coração.
Era como se o garoto estivesse... Articulando para ficar perto de mim.

Uma mulher sente quando está sendo admirada.

Eu sei, era loucura. Provavelmente fruto de algum delírio adolescente.


Mesmo assim, a desconfiança sussurrava em meu coração. Aquela amizade-
relâmpago com Lucas não foi ocasional. O garoto guarda algum interesse
oculto, e frequenta a nossa casa por um motivo.
Bufei, resmungando sozinha. “Vá dormir, garota.”

Joguei o celular na escrivaninha e me virei para o canto. Obriguei-me


a parar de sonhar com possibilidades estúpidas.

Só por hoje, chega de sonhos adolescentes.


Quinze dias depois, Lucas voltou para o Brasil.
Chegou em casa bronzeado e alegre, cheio de histórias para contar.

Relatou as aventuras da viagem, e os detalhes da estadia. Tristan


morava numa mansão antiga, no centro de Roma, com seus primos. Eram três
homens tão novos quanto ele. Todos pareciam ricaços elegantes e perigosos –
como “chefes da máfia”. Palavras de Lucas.

Eram criaturas enigmáticas e reservadas, e não gostavam de se expor.


Tristan não voltou com eles. Afirmou ter assuntos de família a
resolver em Roma, até o fim das férias. Mandou os três garotos de jatinho de
volta para o Brasil.

Aquilo me decepcionou. Quando ele voltaria?


O tempo passou. Uma semana, um mês...

Eu me remoía em preocupação.

Quando se passaram dois meses, não me segurei mais. Perguntei para


o meu irmão se Tristan não voltaria.

Lucas ergueu uma sobrancelha, suspeitando.

– Por que quer saber?

– Por nada. É que ele não apareceu mais aqui em casa... E vocês
viviam juntos.

– Não sei. Ele não dá notícias há um bom tempo.

– Ah.
E não perguntei mais.

Dez dias depois, aconteceu.

Era uma quarta-feira, tarde da noite. Matias e minha mãe já dormiam,


vez que acordariam cedo para trabalhar amanhã.
Lucas chegou em casa depois da faculdade, mais tarde que o usual.
Eu estava na minha cama, lendo a matéria da prova de amanhã. Maldito
ensino médio.

Lucas falava ao telefone com alguém. Passou na frente da minha


porta, sussurrando. “Como assim você não voltará, cara?”, parecia nervoso.

Entrou no seu quarto e bateu a porta.


Eu fiquei mediatamente alerta. Pé ante pé, fui até a porta do seu
quarto e coloquei o ouvido lá, escutando a conversa.

“Está de sacanagem, Tristan?”, grunhiu.


Deus. Era ele.

“Vai largar o curso no final?! Isso é loucura! Pelo menos termine o


período...”, parou por um tempo, ouvindo. Depois, suspirou. “Eu entendo.
Então você não volta mais para o Brasil?”, outra pausa. “Pois é, pressão de
família é foda. Tente vir nas férias, pelo menos... Tranquilo. Vou sentir sua
falta, cara. A faculdade não vai ser a mesma sem você.” Parou para ouvir a
resposta. “Ok, deixa comigo. Adeus.”

E desligou.

Eu fiquei parada ali no corredor, congelada. Tristan não voltaria mais


para o Brasil.

Não sei por que aquilo destruiu tanto meu coração. Era só uma paixão
platônica e unilateral... Não era?
Lucas foi tomar banho e eu voltei para o meu quarto. Não consegui
mais estudar, nem fazer nada. Minha garganta se apertava. Eu precisava de
uma confirmação.

Depois do banho, geralmente Lucas ia até a cozinha. Comia um


sanduíche e ia dormir.

Quando ele foi até a cozinha, eu o segui.


– E aí. – Ele me cumprimentou. – Ainda acordada, pirralha? Não tem
aula cedo amanhã?

– Fiquei com sede. – Fui até o filtro e bebi um copo de água. – Com
quem você falava no telefone? – perguntei casualmente. – Parecia nervoso.

– Ah, é. Com o Tristan. – Sentou-se na bancada, dando uma mordida


no sanduíche. Parecia péssimo.
– Vocês brigaram?

– Não. Ele me ligou para avisar que não vai voltar mais para o Brasil.
Está tendo problemas na família. Terá que terminar os estudos por lá.
Segurei o copo com força. Tentei ficar calma e não demonstrar o meu
desespero.

– Não voltará nunca mais? – engoli em seco.

– Não, nunca mais. – Suspirou, chateado. – Que foda, viu? Logo


agora que eu fiz um bom amigo... O cara tinha que morar do outro lado do
mundo?
– Mas ele vem te visitar?

Me encarou.

– Óbvio que não, Clara. Somos homens, não menininhas do ensino


médio. Acabou, acabou. Não ficamos trocando bilhetinhos.
Rosnei.

– Só perguntei, seu grosso. – Coloquei o copo na pia e saí da cozinha,


passos furiosos.

Naquela noite, eu dormi chorando, como a adolescente iludida que eu


era.
Apenas uma criança de coração partido.

****

Três dias depois, eu ainda estava arrasada.


Era a parte da tarde. Estava sozinha em casa.

Lucas havia saído, e Matias e minha mãe foram trabalhar.


Alguém bateu à campainha. Atendi, e era o Correio. Havia uma
encomenda expressa para mim, advinda de outro país. Eu assinei e recebi o
pacote.

Franzi o cenho, estranhando. Não tínhamos comprado nada pela


internet ultimamente.
Não havia nome de remetente, apenas um endereço. Vi que viera de
Roma. O pacote estava em meu nome, e só poderia ser entregue em mãos. Já
estava tudo pago.

Meu coração acelerou. Roma?

Peguei uma tesoura e rasguei o pacote, apressada. Lá dentro, havia


um objeto quadrado e grande. Estava enrolado num tecido macio e caríssimo.
Retirei o tecido e coloquei o objeto por sobre a mesa da sala.
Era uma pintura de moldura dourada.

Arregalei os olhos quando a vi. Parecia algo advindo do


Renascimento.

Retratava uma garota de seios nus, sentada por sobre uma pedra, num
lago cristalino. Ao redor dela, uma floresta iluminada pela luz da lua. A
garota tinha uma cauda de sereia e um cabelo castanho e ondulado, até o fim
das costas. Pele morena e olhos muito verdes.
Uma sereia com o meu rosto.

Uma verdadeira obra de arte. Pintada por alguém de extremo talento,


como um mestre renascentista. Um Botticelli da vida.

No canto direito da obra de arte, não havia assinatura. Apenas uma


única letra.
T.

Eu sabia de quem era aquela pintura. Tristan.

Foi o seu presente de despedida para mim.

Naquele momento, as suspeitas em meu coração foram confirmadas.


Meu sentimento não era unilateral. Tristan também sentia algo por mim.

Eu era uma adolescente e, ele, um adulto. Por todo esse tempo, o


garoto me admirou de longe, assim como desconfiei. Nunca se aproximou – e
nem o faria. Seria ilegal e imoral.
Entre nós, só poderia haver uma admiração distante e silenciosa.

Eu abracei a pintura, os olhos úmidos por lágrimas.

Aquela obra era uma declaração de amor.


Anexa a ela, viera um bilhete dobrado. Caligrafia cursiva e luxuosa,
num papel elegante (como se advindo de outro século). A mensagem foi
escrita em italiano. Corri para o computador e a traduzi online. Dizia:

Quem sabe em outra vida.

Arfei, encarando a mensagem.

Tristan confessou seus sentimentos, mas sabia que, nesta vida, uma
história entre nós dois seria impossível. Teríamos que nos contentar com a
lembrança do sentimento.

Nós dois nos vimos apenas algumas vezes. Contudo, alguns encontros
nos causam reações químicas tão fortes, que transmutam tudo por dentro. São
encontros de alma.

Não era lógica, era química.


Eu guardei o bilhete e a pintura num lugar seguro. O coração,
inundado por gratidão. Sim, quem sabe em outra vida.

E aquela foi a última vez em que tive notícias do garoto.

Hoje havia sido a minha formatura.

Acabávamos de voltar da colação de grau.


Eu me formei em História pela Universidade Federal do Recife.
Acabava de completar 23 anos.
Depois da colação, fomos a uma churrascaria no centro da cidade para
comemorar. Eram cerca de nove da noite.

Na mesa junto a mim, sentavam-se minha mãe, Lucas e o meu


namorado, Marcos.
Nós brindamos com chopp, rimos e conversamos à vontade. Era uma
noite feliz.

Minha mãe se separou de Matias há muitos anos. Descobriu o óbvio.


Ele a traía com uma dezena de prostitutas. Muitas delas, menores de idade.
Aparentemente, ele tinha um fetiche por novinhas.

Não conseguimos provar o envolvimento com as menores. Então,


Matias nunca foi preso.
Quando eu completei 18, Matias deflagrou suas investidas em mim de
forma descarada. Mesmo depois da separação, continuou me perseguindo.
Tive que bloquear seu número e restringi-lo em todas as minhas redes sociais.
No-jen-to.

Hoje, foi um dia de novidades.

Após a graduação, iniciei a busca por emprego. Me candidatei à


vários cargos de professora. Tanto em cursinhos, quanto no ensino médio.
Todavia, meu verdadeiro sonho era outro. Eu queria ser professora
universitária. Mas, para tanto, precisaria de mestrado e doutorado. Era um
plano dificultoso. Não tínhamos as melhores condições.

Quando minha mãe se separou de Matias, perdeu o emprego em sua


empresa. Foi trabalhar como recepcionista de um hospital. Lucas era
professor e também não ganhava muito. Nos mudamos para um apartamento
mais simples, no subúrbio de Recife.
Matias deixou seus rastros sujos para minha mãe. Dívidas, mágoas e
um maldito coração partido.

Sentava-me ao lado de Marcos. Ele contava alguma história para


minha família. Era super amigo da minha mãe e irmão.
Já namorávamos há dois anos, e Marcos era o típico cara bonzinho e
seguro. Branco, de cabelos e olhos castanhos, usava um óculos moderno e
tinha um sorriso doce. Era esguio, mas bonito. Cursava física na mesma
faculdade que eu. Tinha 22 anos, e ainda faltava um ano para se formar.

Marcos era um monogâmico patológico. Queria se casar e ter filhos


bem cedo.

Eu gostava dele, sim, mas não tinha certeza sobre o casamento. Eu só


tinha 23.
Marcos era o oposto de “aventura.” Eu me agarrei a ele com todas as
forças, pois era um porto seguro. E depois da experiência assustadora com a
perseguição de Matias, eu queria homens seguros. Confiáveis.

Eu o enrolava há meses. Garantia que iríamos conversar sobre


casamento após nos formarmos.

Pois é, a hora chegou.


Sabia que, nos próximos dias, ele me confrontaria com o assunto. E
eu usaria os mesmos argumentos. Ainda sou muito nova. Preciso arranjar um
emprego numa universidade. Não tenho tempo para uma família agora.

As desculpas estavam se esgotando.

Eu ainda não descobrira, por que, exatamente, não queria me casar


com Marcos. Talvez porque houvesse um anseio secreto no meu coração...
Uma anseio por aventura. Por algo extraordinário.

Certos olhos negros e selvagens. Olhos que jamais consegui esquecer.

Marcos e Lucas me deram dinheiro e foram buscar os carros. Minha


mãe os acompanhou ao estacionamento. Eu fiquei para pagar a conta.

Quando fui ao caixa, me surpreendi.

A funcionária afirmou que nossa conta já havia sido paga. Me


assustei. Devia ter custado uns r$ 400 reais... Não era uma churrascaria
barata. Nós só nos demos ao luxo de ostentar porque era uma ocasião
especial. Minha formatura.
– Quem pagou? – perguntei, desconfiada. Quem seria o maluco?

– Ele não deu detalhes. – A mulher deu ombros. – Afirmou ser um


amigo de anos atrás. Ele não quis ser exposto, então não posso dizer o nome
no cartão de crédito. Sinto muito.

Eu guardei minha carteira, perplexa.


– Hã, tudo bem, então.

Minha garganta se apertou.

Será que havia sido o Matias? Ele andava me perseguindo


ultimamente. Esperava-me na porta da faculdade, fazendo ligações por
números desconhecidos... Minha mãe nunca soube disso.
Ele nunca conseguiu superar sua obsessão.

– Só me diga uma coisa. Era um homem na faixa dos cinquenta anos?


Calvo, de olhos castanhos?

– Não mesmo. – Riu. – Era um rapaz jovem. Bronzeado e forte, de


cabelos escuros. Parecia um modelo.
– E não tem nome?

Sorriu embaraçada.

– Desculpe, senhorita, não posso dizer. Ele foi bem específico quanto
a isso.

– Tudo bem – sorri amarelo. – Vou indo, então. Boa noite.

Se não havia sido o Matias, já era o suficiente.

Antes de sair para o estacionamento, passei no banheiro rapidamente.


Usei a cabine e lavei as mãos, olhando-me no espelho.

Eu cortei o cabelo especialmente para a noite de hoje. Aparei meus


longos fios na altura dos ombros. Eu era uma adulta formada agora. Queria
me parecer com uma professora.

Sorri para o espelho, satisfeita. O corte me caiu bem. Deixou-me mais


madura.
Fui para o estacionamento pensando no meu benfeitor misterioso.
Quem pagaria uma conta de r$ 400 em segredo? E a troco de quê?

No estacionamento, nós nos despedimos.

Minha mãe pegou uma carona para casa com Lucas. Eu entrei no
carro de Marcos. Geralmente, passava os finais de semana em sua casa.
Chegamos ao seu apartamento. Ele morava com os pais idosos. Eles
já estavam dormindo.

Naquela noite, fizemos um sexo morno. Era gostoso, sim, mas só.
Depois de dois anos de relacionamento as coisas esfriavam.

Eu não era uma pessoa muito sexual. Então, tudo bem por mim.
Nos deitamos em sua cama. Antes de dormirmos, Marcos foi ver série
no seu celular. Eu peguei um livro para ler. Amava literatura, e sempre
andava com um livro na bolsa. Caçoei tanto de Lucas por ser um nerd, e
acabei ficando igual a ele.

Nós saímos da churrascaria por volta das 11 horas. Agora eram cerca
de uma da manhã.
Eu já estava desligando o abajur para dormir. Marcos dormia
tranquilamente ao meu lado.

Foi quando meu celular vibrou. Começou a tocar desesperadamente.


Era um número desconhecido. Os toques acordaram Marcos.

– O que foi? – perguntou, grogue.


– Não sei. – Atendi. – Alô?

“Senhorita Clara?”, uma voz feminina respondeu.

“Sou eu.”
“Você é parente da Ágata e do Lucas Nogueira Mourão?”

Fiquei imediatamente alerta. “Sim. Ela é a minha mãe, e ele é meu


irmão. Por quê?”

A moça hesitou do outro lado da linha. Parecia triste.


“Desculpe, senhorita, não são boas notícias. Sou enfermeira do setor
da emergência do Hospital de Recife. Sua mãe e irmão sofreram um acidente
de carro algumas horas atrás. Tentamos de tudo para salvá-los, mas nenhum
dos dois resistiu. Por favor, venha ao Hospital urgentemente fazer o
reconhecimento dos corpos.”

Arfei, deixando o telefone cair.


Marcos se sentou, preocupado.

– Que expressão é esta, Clara? O que houve?

Encarei-o, em estado de choque. Voz esganiçada, tomada pelo terror.

– Minha mãe... Minha mãe e meu irmão... Estão mortos.

****
As semanas seguintes foram horríveis.

Conheci o verdadeiro significado da palavra sofrimento.

Para o meu completo espanto, os funerais foram completamente


pagos. O doador, anônimo. Eu não tive forças para questionar. Toda minha
energia estava sendo empregada naquele luto. Um sofrimento sem fim.
Eu perdi minha família inteira. Meu Deus.

Me mudei para a casa dos meus avós. Não consegui sustentar o


aluguel do apartamento sozinha.

Marcos se ofereceu para me receber em sua casa. No entanto, eu sabia


que aceitar nos levaria praticamente ao altar. Eu não tinha tempo – e nem
cabeça – para pensar nisso.

Dois meses se passaram.

Eu chorava todos os dias e mal me levantava da cama. Se não fossem


meus avós maternos, e seus cuidados, não sei como sobreviveria.

Algumas pessoas lidavam bem com o luto. Eu não era uma delas.
Mais um mês se passou.

Eu tentei me reerguer do estado vegetativo do luto, e começar a


procurar um emprego. Não poderia mais ser um gasto para meus avós. Eles
eram apenas dois aposentados humildes, morando numa casinha no subúrbio.

Anteriormente, minha mãe os ajudava no que podia. Mas agora


estávamos sozinhos. Erámos apenas eu e eles.
Não falava com meu pai há anos. Seria inviável pedir ajuda.

Comecei a enviar meus currículos para todas as vagas de professora.


O tempo passou e eu não fui chamada. Então, enviei currículos para outras
vagas. Recepcionista, caixa de banco, qualquer outra coisa. Eu só precisava
fazer dinheiro e ajudar meus avós.

Por fim, passaram-se quatro meses desde o acidente.


Eu já estava um pouco melhor. Ainda de luto, é claro, porém um
pouco melhor. Conseguia processar a tristeza. Fase da aceitação.

Foi quando aconteceu.

Era o meio da semana, parte da tarde. Chegou uma carta na casa dos
meus avós endereçada a mim. Envelope luxuoso, correspondência
internacional.
Ao ver o remetente, fiquei mortificada.

Era do próprio Reitor da Università di Magdala. Uma universidade


famosíssima em Roma, na Itália. Todo aluno de História que se prezasse a
conhecia. Ela era referência absoluta no meu ramo.

Abri o envelope – as mãos, tremendo.


Aquilo não fazia o menor sentido.

A mensagem viera em italiano. Estudei numa faculdade federal, logo


tive acesso à vários cursos de línguas estrangeiras. Diferente dos meus
amigos, não optei por inglês ou espanhol.
Escolhi italiano.

Sempre tive um amor estranho por aquela língua. Talvez, porque


todos os meus sonhos secretos morassem na Itália. Sonhos antigos de
adolescente – que envolviam certos olhos negros de mistério.
Sonhos que viraram passado em meu coração.

Estudei por quatro anos e me tornei fluente.

Retirei o documento do envelope. Era uma... Carta de admissão em


meu nome. Um convite.
Eu fui aceita no curso de Mestrado de História da faculdade de lá.

Mas o que diabos...?

A carta explicava os detalhes. Aparentemente, minha mãe arquitetou


tudo. Enviou a minha monografia de conclusão de curso para a banca da
Universidade de lá. Tudo em segredo.
Eles adoraram minha tese. Admirados, me ofereceram uma vaga na
próxima turma de Mestrado.

Eu lia a carta completamente em choque.

Como assim minha mãe me inscreveu? Ela nem sabia da existência


dessa Universidade! Ou... sabia?
A carta era estarrecedora. Eu havia ganhado uma bolsa integral no
curso de Mestrado, moradia estudantil, vale-alimentação e auxílio estadia.
Tudo em euros. Seriam dois anos de Mestrado e eu viveria muito bem.

A bolsa era fornecida pela Família di Santorum, para “estudantes


excepcionais ao redor do globo.”

Quem diabos seria essa família?


Sim, minha monografia ficou linda. Meus professores quase
choraram. Eu amava meu curso e era boa no que fazia. Contudo, nunca –
nunca – imaginei que o trabalho impressionaria a faculdade mais fodástica da
Europa.

Eu estava sonhando? Seria um delírio coletivo?


As aulas começariam no dia 15 de fevereiro. Ou seja, dentro de duas
semanas.

Sopesei as possibilidades. Se eu fosse embora, não seria um gasto


para meus avós. Os empregos por aqui estavam difíceis. E, se eu voltasse ao
Brasil como Mestra pela Università di Magdala, conseguiria ser professora
em qualquer faculdade desse país.

As federais daqui duelariam por mim. Eu já podia ouvir o tilintar das


espadas.
Ninguém, ninguém, conseguia fazer um mestrado por lá. Era
praticamente a Harvard dos estudantes de História.

Eu voltaria com um bom emprego garantido. Ganharia bem e proveria


meus avós.

Meu Deus, era uma chance única na vida.


E morar na Itália? Com tudo pago? Seria um sonho.

Tremendo, liguei meu notebook. Escrevi um e-mail em italiano


fluente. Copiei o endereço de e-mail do Reitor contido na carta. Na
mensagem, garanti que aceitaria a vaga com prazer. Não havia mais no que
pensar. Recusar seria insanidade.

Ele me respondeu no mesmo dia. Agradeceu, dando as instruções.


Segundo o próprio, a bolsa pagaria minha passagem de ida. Deu-me o
endereço da família que me hospedaria e acesso à conta do auxílio-estadia e
alimentação mensal.

Dois dias depois, minha passagem de avião foi enviada pelo correio.
Contei aos meus avós. Eles ficaram em êxtase. Eram os únicos que
sabiam, por enquanto.

Aquilo estava mesmo acontecendo na minha vida? Se estivesse, não


queria estragar.

Naquela noite, eu dormi reflexiva.


Há poucos meses, a vida me deu uma rasteira – e me tirou tudo. Vivi
os piores momentos da minha existência. Imersa em dor, confusão e luto.

E, agora, a vida me compensava com um presente.

Eu não sou feita somente de tragédias, Clara, ela sussurrou no meu


ouvido. Você já sofreu o que devia. Chegou a hora de reaver-se.
Às vezes, bem às vezes, nos deparávamos com milagres.
Foi o caos.
Marcos não aceitou de jeito nenhum. Deu-me um ultimato. Disse que,
se eu fosse, nosso namoro terminaria.

Ele se ofereceu para me bancar enquanto eu tentava um mestrado pelo


Brasil mesmo. Não aceitei. A chance de estudar na Università di Magdala era
única. Singular e excepcional. Nada no mundo poderia me parar.

Marcos me intimou. Ou ele, ou a viagem.


Doeu, mas eu tive que terminar. Um homem realmente apaixonado
não podaria os meus sonhos.

Dias depois, estava no avião para a Itália. Meus avós me levaram até
o aeroporto, emocionados e felizes. Sabiam o que aquilo significava para
mim.
Minha vida deu uma guinada de 180 graus. Eu mal podia acreditar.

Ao me sentar na classe econômica, olhei para as fotos na minha


carteira. Fotos de minha mãe e de Lucas. Beijei cada uma delas e sussurrei:
“vou realizar este sonho por vocês.”
No meu celular, várias chamadas perdidas de Matias.

O homem estava indignado por eu ir embora. Postei sobre o assunto


nas redes sociais e ele viu – é claro. Me seguia por contas falsas.

Pensando naquilo, soltei um sorrisinho. De desdém e de vitória. Será


um pouco difícil me perseguir do outro lado do mundo, não é, seu merdinha?
Também havia várias mensagens raivosas de Marcos. Eu não
significo nada para você? Você destruiu nosso futuro.

Etc, etc.

Suspirei. Seria a primeira e última vez em que eu responderia suas


mensagens de ódio. Digitei: “Se você me amasse mesmo, colocaria o meu
futuro à frente dos seus interesses. Sua raiva é o reflexo do seu egoísmo, não
do seu amor. Não me procure mais.”

Enviei antes que o avião decolasse. Depois, bloqueei o seu número.

Eu queria um homem que me fizesse voar, e não um homem que me


acorrentasse ao chão. Eu era uma garota da literatura, pelo amor de Deus!
Acreditava nos sonhos e no amor. Eu não me contentaria com uma vidinha
mediana. Um sexo morno, um casamento monótono...

Não. Eu queria viver uma história extraordinária.


E uma voz em meu interior sussurrava: você tomou a decisão certa.
As melhores decisões são as que fogem às amarras do medo.
Aquele avião me levaria para o lugar onde habitavam os meus sonhos.
Então, afastei o pavor e decidi acreditar naquela voz.

Com todo o meu coração.

****

Horas depois, o avião pousou no aeroporto de Roma.

Era uma manhã fria e ensolarada de domingo.

Eu desci do avião. O coração, palpitando. O que me esperava nessa


terra estrangeira?
Saí do aeroporto e peguei um táxi. Passei o endereço do alojamento,
fornecido pelo Reitor. Foi ótimo poder usar meu italiano.

Eu me hospedaria na casa da família di Santorum (a mesma que


financiava a minha bolsa). Eles tinham uma mansão no centro da cidade, e
transformaram parte dessa construção num alojamento para estudantes.

Descobri tudo o que podia sobre os di Santorum na internet.

Eram uma família tradicional da Itália. Milionária e filantropa. Seu


maior projeto de filantropia fornecia bolsas estudantis para mulheres do
mundo inteiro. Suas bolsas englobavam todas as faculdades de Roma, bem
como os mais diversos cursos.

Sim, um projeto exclusivo para mulheres. Criado para levar voz e


oportunidades a jovens estudantes ao redor do globo. Foi criado pela
matriarca da família di Santorum cinquenta anos atrás.

Eu achei aquilo o máximo. Vanguardista e extraordinário.


De dentro do táxi, observei o centro de Roma.

Tudo me fascinava. As construções de pedra com abóbodas


arredondadas, os arcos e as cúpulas das igrejas... Os edifícios barrocos,
enfeitados por estátuas e colunas monumentais... Aquedutos e fontes com
esculturas de deuses e anjos...
Deus. Para uma amante da História, aquele era o paraíso.

Parecia um universo alienígena. O ápice da arte e do talento humanos,


contidos numa cidade só. Eu podia ouvir as vozes do passado sussurrando
através das paredes, contando várias histórias.

Chegamos à casa dos di Santorum.


Revelava-se um enorme palacete medieval. Paredes de pedras, portas
e janelas suntuosas de madeira, cerceadas por arbustos. Mais se parecia a
uma fortaleza. Provavelmente, uma construção de trezentos anos – ou mais.

Fiquei intimidada.

Paguei o táxi e saí, carregando a minha mala. Bati à campainha, e


uma voz feminina atendeu o interfone. Informei quem eu era, e a porta foi
aberta.

Avancei pelos muros e adentrei no local.

O interior continha um imenso pátio gramado – decorado por


arbustos, bancos e fontes. Ao centro, ficava o palacete. Uma construção bege
de três andares, que provavelmente cobria um quarteirão inteiro.

As concepções de casa no passado eram diferentes. Era totalmente


comum para uma família da nobreza italiana, no passado, viver em casas tão
grandes quanto palácios.
Uma governanta idosa e gentil me recebeu. Explicou-me tudo e me
mostrou o lugar.

Senhora Francesca era seu nome. Esguia, de cabelos grisalhos e


roupas elegantes. Era a chefe e governanta do alojamento.
Explicou que o andar térreo do palacete era o rol de alojamentos.
Aqui, estavam hospedadas mais de cem mulheres do mundo inteiro. Todas
com bolsas de graduação, mestrado e doutorado nas mais diversas
universidades de Roma. Principalmente na Università di Magdala.

O alojamento fornecia todas as refeições do dia.

Eu dividiria o quarto com outra garota. Uma aluna de mestrado em


História da Arte.
Olívia, 25 anos, natural de Portugal.

Francesca nos colocou no mesmo quarto de propósito. Ambas


falávamos português, o que facilitaria a amizade.

Olívia chegara há dois meses. Viera nas férias para conhecer a cidade.
Poderia me mostrar tudo.

Francesca me deixou no quarto. Situava-se num imenso corredor,


lotado de portas. Um dormitório para moças.

O quarto era grande. Havia duas camas de solteiro, uma de cada lado.
Ao centro, um móvel com abajur. No canto, uma mesa de estudos, guarda-
roupas e um grande espelho. Havia também um banheiro anexo.

Tudo simples, elegante e de bom gosto.


A cama esquerda estava bagunçada, e decorada com almofadas
coloridas. Havia porta-retratos e maquiagem por cima do criado-mudo ao seu
lado. A cama de Olívia.

Fui até lá e observei seus porta-retratos. As fotos mostravam uma


garota de cabelos extremamente curtos e loiros. Olhos, acinzentados. Esguia,
moderna e linda.
Ocupei a cama disponível. Desfiz a minha mala e fui almoçar.

O refeitório mais se parecia à um restaurante. As mulheres se


sentavam em grupos nas mesas – rindo e conversando.

Eu me servi no buffet e me sentei em uma mesa, sozinha.


Observei ao redor, encantada.

Todas ali tinham algo em comum. Eram jovens e atraentes, como se


fossem escolhidas à dedo. Não só pela inteligência, mas também pela
aparência.

Arqueei uma sobrancelha. Que estranho. Qual a relevância da


aparência no meio acadêmico?
A comida era ótima. Algumas mulheres me notaram. Lançaram
sorrisinhos tímidos, mas ninguém se aproximou. Oi, novata.

Em breve, percebi que faria amizades. Todas pareciam gentis e


receptivas.

Na parte da tarde, saí sozinha. Decidi caminhar pela cidade e levar


minha câmera. Transitei apenas pelos arredores do palacete; não queria me
perder.
Tomei sorvete, tirei fotos, joguei moedas nas fontes e passeei por
sobre as pontes, sentindo o sol no rosto. Nem acreditava estar mesmo aqui.

Mandei todas as fotos para meus avós. Eles vibraram de felicidade


comigo.

Fui dormir cedo. Amanhã, a aula começaria às 8 horas.

Minha colega de quarto chegou de madrugada, trançando as pernas.


Tirou o casaco, deitou-se na cama e se enrolou com um edredom. Apagou na
mesma hora. Devia ter virado a noite na balada.

Sonolenta, voltei a dormir.

Às 6:40, já estava de pé. Tomei banho, coloquei meu jeans, botas e


casaco. Embora o sol brilhasse no céu, estávamos em pleno inverno europeu.
Tomei café no refeitório e fui caminhando para a universidade.
Seriam apenas 14 minutos de caminhada. Eu já tinha pesquisado tudo.

Cheguei a Università di Magdala às 7:45.

Consistia numa construção barroca e admirável. Paredes brancas


seculares, cúpulas arredondadas e pisos antigos.
Fui até a secretaria pegar meu horário. Depois, me encaminhei para a
minha primeira aula.

Enquanto andava pelos corredores, pensava em Lucas e minha mãe.


Eles estariam extasiantes de orgulho se pudessem me ver agora. Um diploma
desse lugar seria uma honra extraordinária.

Minha sala de aula ficava no segundo andar. Entrei e me alojei.


As mesas eram longas, de mogno escuro. O local, inclinado como
uma plateia. Assim, todos os alunos conseguiam ver o quadro negro, na
frente da sala. Havia um púlpito e um palco onde o professor ministrava.

A sala era ampla, ostentando uma janela lateral. Por lá, entrava a luz
do sol, com vista para o jardim que cerceava a universidade. Lindo.
Os alunos foram se acomodando. O professor chegou logo em
seguida. Apresentou-se, discorrendo num italiano rápido. Eu tive que me
concentrar para entender. Embora fosse fluente, não se tratava da minha
língua-mãe.

Por fim, consegui acompanhar toda a aula e fazer anotações. Em


breve, meu cérebro se adaptaria ao italiano.
Dois garotos se sentavam na mesa a minha frente.

Por causa da disposição inclinada, eu conseguia vê-los com clareza.


Os dois mexiam no celular e pareciam trocar mensagens entre si. O professor
não aceitava conversas paralelas durante a aula. Então, eles deram um jeito de
conversar.

Eu deduzi o fato porque ambos trocavam sorrisinhos maliciosos.


O sinal tocou, e a aula findou. Os alunos saíram.

Eu fiquei por ali, organizando o meu material. Fichei o caderno,


separando cada matéria por post-its coloridos.

Fui a última a sair da sala. Ao me levantar, notei algo. O garoto


sentado à minha frente havia esquecido o seu celular no banco.

Droga. Fui até lá e o peguei. Onde eu iria encontrá-lo? Será que


deveria deixar no achados e perdidos?

Talvez, se eu ligasse para um dos seus números conhecidos, um


amigo viesse buscar.

Rolei o dedo por sobre a tela. Não havia senha. A tela se acendeu
numa conversa de bate-papo em grupo. O grupo se chamava: “Seleção de
noivas – só as calouras mais gostosas.”
Arqueei uma sobrancelha. Que nome estranho.

Não quis bisbilhotar, mas foi impossível. Um trecho da conversa


saltou à frente dos meus olhos.
E aí. O que acharam das novatas deste ano?, o dono do celular
perguntou.

Vários outros caras responderam. Só havia homens.

As turmas passadas eram melhores.

Qual é, outro discordou. Tem umas gatas neste ano também.

Alguma interessante na sala de vocês?

Sim. Uma de pele negra sentada na primeira fileira, e uma loira no


fundo da sala.
Estou vendo também. Muito gatas.

Tem uma morena atrás de nós, o dono comentou. Bonitinha também.

Outro concordou. Estou vendo. Cabelo curto e olhos verdes?


Ela mesma. Não é de se jogar fora.

Soltei um bufar de desdém. Eles estavam falando de mim, na maior


cara de pau?!

Neste ano eu não escapo. Vou ter que escolher uma delas, tenho que
me casar.
Mas, já?

Já. A família está exigindo um herdeiro.

Foda. Mas faça o que tem que fazer, cara. As novatas são bem
gostosinhas. Serão boas parideiras.
E ótimas bolsas de sangue também, outro garoto emendou. Todos
enviaram risadas. Havia mais de dez caras na conversa.

Eu apertei o botão lateral do celular e apaguei a tela. Franzi o cenho,


guardando-o no bolso.
Que porra de conversa era aquela? Boas parideiras? Bolsas de
sangue? Que diálogo insano. Seria algum tipo de código entre veteranos? Eu
estava traduzindo errado?

Bizarro.

Desisti de procurar o dono; deixei o aparelho na sessão de achados e


perdidos. Os veteranos que se explodissem.
Eles se referiam às novatas como gado, como comida. “Gostosinhas.”
“Bolsas de sangue.”

Aquilo me indignou. Passei o dia com os dentes trincados – remoendo


a conversa odiosa.

Enquanto eu andava pelos corredores, observava a dinâmica do lugar.


Havia algo peculiar. As alunas mulheres eram vivas e coloridas, das mais
diversas etnias. Negras, indígenas, asiáticas, caucasianas, latinas... Vinham de
todos os lugares do mundo.
Mas os homens, não.

Os homens não tinham diversidade étnica. Eram todos brancos e


pálidos. Ostentavam traços estranhamente retos e lindos. Os cabelos e olhos
mudavam de cor, mas a palidez e a beleza eram palavras de ordem.

Eu estreitei os olhos, confusa.


Onde estavam os homens de outras etnias? Aquela era a Itália, pelo
amor de Deus. Era uma país miscigenado!

Fui para a minha segunda aula. Ainda observava os demais alunos


com desconfiança.
A sala tinha a mesma estrutura inclinada. Antes que o professor
chegasse, uma garota apareceu ao meu lado.

– Clara Mourão? – me interceptou.

Fitei-a, reconhecendo seus traços.

– Olívia? É você?

Ela abriu um sorriso. Falou num perfeito português:

– Sou eu mesma! Te reconheci pela foto de cadastro do alojamento. –


Estendeu a mão, simpática. – E aí? Estive te procurando o dia inteiro. Você
saiu antes que eu acordasse.
Minha colega de quarto: a portuguesa Olívia.

– Ah, sim. Muito prazer. – Apertei sua mão, devolvendo o sorriso. –


Desculpa por ter saído às pressas. Eu queria chegar cedo na faculdade. É o
primeiro dia, sabe como é.

– Eu sei. É a minha cara perder a hora. – Riu. – Posso me sentar com


você?
– Claro, por favor.

Olívia se sentou ao meu lado. Nós tínhamos aquela aula em comum.

Olívia me contou que, nestes últimos dois meses, fez várias amizades
no alojamento. Também saiu para a vida noturna de Roma quase todas as
noites. Garantiu que me apresentaria aos melhores bares e baladas
universitárias.
Olívia era linda e descolada. Tinha uma estilo vanguardista. Óculos
de sol, jaqueta de couro e botas de cano alto.

Eu, por outro lado, era bem mais tradicional. Enquanto eu era a-
garota-do-batom-nude, ela era a do batom-vermelho-sangue. Admirei seu
estilo ousado.
Olívia era divertida e super receptiva. Fiquei feliz por dividirmos o
quarto. Teríamos dois anos para construir uma amizade.

Assistimos àquela aula juntas. Depois, fomos caminhando pelo


corredor para a próxima aula.

Comentei com Olívia minha incredulidade a respeito dos homens


daquele lugar.
Ela concordou:

– Eu sei. São todos tão... – buscou a palavra por um tempo. –


Parecidos. Como se fossem da mesma família, ou sei lá. São tão...

– Brancos e pálidos. – Completei.


Ela riu.

– Pois é. E estranhamente lindos.

– Exatamente. Será que é coisa de italiano?


Deu de ombros.

– Só pode ser.

Nossa terceira aula seria diferente. Então, nos separamos.


Combinamos de nos encontrar na porta do refeitório na hora do almoço.
Ao meio-dia, eu parei na porta e esperei por ela. Olívia chegou
correndo.

– Desculpa, tô atrasada. Tive um professor que não parava de falar.

– Tranquilo. – Sorri, levando numa boa.

A desatenção e o estilo colorido eram seu charme.

Nós entramos e nos sentamos no imenso salão. As mesas eram


arredondadas, de mogno escuro. Lustres e castiçais pendiam do alto. Havia
uma pintura renascentista cobrindo todo o teto – uma verdadeira obra de arte.

Na verdade, todos os corredores da faculdade continuam pinturas e


afrescos. Não por acaso a Università di Magdala era uma referência em Arte
e História para o mundo. Artistas famosíssimos passaram por aqui.

O salão já estava lotado. Nos servimos no buffet, e nos sentamos


numa mesa ao canto.

Minutos depois, algumas amigas de Olívia nos encontraram,


sentando-se conosco. Eram três. Eu não consegui decorar seus nomes logo de
cara. Uma haitiana, uma paraguaia e outra filipina. Todas lindas e simpáticas.
Elas perguntaram sobre mim, interessadas. Eu era a novidade.

Aparentemente, as demais novatas chegaram aqui algumas semanas


antes das aulas começarem. Já haviam se conhecido e feito amizade. Eu era
exceção.

Minha carta de aceitação deve ter chegado por último. Fui uma
aquisição de última hora?
Nunca saberia...

Algum tempo depois, três homens entraram no salão.

Meu queixo caiu. Eram os mais bonitos dali.


Todos os seguiam com os olhos. Sentaram-se numa mesa ao centro –
um local privilegiado. Não foram até o buffet. Uma garçonete veio anotar
seus pedidos.

Eles conversavam entre si, sérios. Usavam roupas claras e


extremamente luxuosas. Sobretudos e relógios caríssimos. Como se não
fossem estudantes comuns.
Tinham feições pálidas, lindas e aristocráticas. Como se proviessem
de outro século.

As meninas da minha mesa estavam envolvidas numa conversa.

Aproveitei a deixa, e sussurrei para Olívia:


– Quem são aqueles?

Ela seguiu meu olhar, e abriu um sorrisinho.

– Ah, então você já os notou. Aqueles são os primos di Santorum, os


reis da Università. Eles são os donos daqui. Cada um faz um curso diferente.
– di Santorum? A família que banca as nossas bolsas?

– Exatamente. – Ergueu as sobrancelhas. – E são os donos da casa em


que estamos hospedadas.

Donos daquele palacete?! Puta que pariu. Deveriam ser milionários.


– E eles também moram lá?

– Sim, nos andares superiores. Mas nós não temos acesso. É ala
particular da família.

Uau.
– Como eles se chamam?
Era impossível não ficar vidrada em suas figuras extraordinárias.

– Aquele fortão à esquerda é o Athos di Santorum. – Apontou para


um dos caras à mesa; braços cruzados e expressão fechada. Olhos marrons e
cabelos castanhos, compridos até os ombros.
– Lindo. Mas parece estar com raiva do mundo.

Ela riu.

– Normal. Eles têm fama de malvados mesmo. O que está ao lado


dele, aquele sorridente, é o Eros.
Eros, cabelo loiro e olhos dourados. O único que falava. E,
possivelmente, o único dos primos que sorria. Parecia o mais simpático à
mesa. Todos os demais tinham cara de assassinos da máfia.

Continuou:

– E o de costas, cheio de tatuagens, é o Azlam.


Azlam. Cabelos escuros raspados, piercings e tatuagens. O mais
rebelde.

– Que nomes estranhos. Nem parecem italianos.

– Pois é. A família tem um gosto singular.


Tudo nos di Santorum era peculiar. As roupas luxuosas, as peles
muito pálidas, as expressões tenebrosas... Eles emanavam uma aura diferente.

Questionei:

– Estão sempre isolados? Não se sentam com ninguém?


– Com ninguém. As fofocas correm no alojamento, e pelo que fiquei
sabendo, são muito elitistas. Não se misturam com as estudantes. Vez ou
outra, eu vejo seus carros saindo do palacete, mas eles nunca vão ao nosso
alojamento. Vê-los em casa é quase impossível. Ficam trancados em seus
andares. São quatro primos misteriosos.

– Quatro primos? Cadê o quarto? – só via três.


– Deve estar chegando a qualquer momento. – Deu de ombros.

Naquele exato minuto, aconteceu.

A porta do refeitório se abriu. Um garoto entrou.

Parei de respirar.

Ele avançou pelo salão com o queixo erguido – como se fosse o dono
do mundo. Porte atlético. pele bronzeada, cabelos e olhos tão negros quanto a
noite. Expressão sinistra.

Meu coração se encolheu no peito. Eu não acreditava no que estava


vendo.
Era ele. Tristan.

Minha paixão proibida de adolescência.

Ele usava roupas escuras. Descoladas e rebeldes, porém elegantes.

Fiquei vidrada em sua figura, cativa daqueles olhos sinistros. Olhos


que nunca consegui esquecer.

Perscrutou o salão com o olhar, procurando por alguém. Encontrou o


que procurava e avançou direto para mesa dos di Santorum. Sentou-se entre
os primos, e foi cumprimentado por acenos de cabeça.

Olívia notou a direção da minha atenção.


– Ah, aí está ele. O quarto primo, Tristan di Santorum. Ele é o pior de
todos. – Revirou os olhos. – O mais recluso e desagradável.

Uma das garotas à mesa emendou.

– Pois é, e também o mais lindo.

Todas riram. Olívia concordou, sorrisinho malicioso:

– Isso é verdade. O desgraçado é lindo para cacete. Mas não é para o


nosso bico.

– Exatamente... – a outra aquiesceu. – Somos meras mortais perto do


Dom Tristan di Santorum e seus capangas. Os reis inatingíveis.

Outra horda de risadas. Olívia estalou a língua.

– Mas ainda podemos sonhar.


A conversa prosseguiu.

Olívia notou meu silêncio. Eu não ria, nem conversava. Apenas fitava
a mesa dos di Santorum com a expressão assustada e obcecada.

– Ei. – Ela me acotovelou de leve, falando baixinho. – O lance de


sonhar com os di Santorum foi só brincadeira, ok? Não vale à pena ficar
obcecada por eles. Nós já moramos em seu palacete há dois meses, e eles
nunca nos deram uma chance. São como as obras renascentistas desta
cidade... Feitos para admirarmos de longe. Não fique com esperanças, ok?
Não vai te fazer bem.
Saí do transe. Clareei a garganta e encarei a mesa.

– Claro, eu sei. Só estou olhando. É que eles são tão...

– Fascinantes? – sorriu bondosamente. – Eu sei. Mas esse tipo de


família só se envolve com mulheres do mesmo nível social. Eles são
monopólios fechados. É algo muito além do nosso entendimento. Outra
realidade.

– Eu sei... Sei como as alianças dos ricos funcionam. – Não consegui


esconder a decepção.
– Mas existem outros caras ótimos e acessíveis por aqui. Você é linda
e merece alguém que não seja prepotente e elitista como eles. Vamos
desencanar, combinado?

Devolvi seu sorriso bondoso.

– Combinado.
– Toma. – Ela abriu seu refrigerante e o colocou sobre a minha
bandeja. – Um presente para inaugurar nossa amizade. Ela é apenas um feto
ainda, precisamos nutri-la.

Eu ri.

– Que jeito bizarro de descrever...


– O quê? – riu. – Foi o meu primeiro conselho de amiga para você.
Precisamos comemorar.

Eu agradeci e bebi o refrigerante.

Sinceramente, sentia-me feliz por ter conhecido Olívia. Esta era uma
terra estrangeira e uma vida nova. Eu precisava de aliados e amigos genuínos.
Uma das garotas a chamou, capturando-a para uma nova conversa.

Quando Olívia desviou sua atenção de mim, meu sorriso morreu.


Vidrava-me na figura do garoto. Encantada, mas também apavorada.

Oito anos se passaram e Tristan di Santorum não mudou em nada.


Parecia ter a mesma idade de uma década atrás. Ele devia ter quase 40 anos
agora. Contudo, continuava aparentando não ter mais que vinte e sete.
Aquilo me assustou de verdade. Não era normal.

Meus pensamentos foram interrompidos por um toque, e meu celular


vibrou no bolso. Era a minha avó, uma ligação internacional. Eu precisava
atender.
– Já volto, meninas. – Me levantei e saí do salão rapidamente,
atendendo ao telefone. – Oi, vó. Como a senhora está?

Conversei com ela no átrio, do lado de fora do salão. Contei como


estava sendo o meu primeiro dia. Eu ainda teria mais duas aulas por hoje.
Contei que havia feito amigas e adorado minha colega de quarto. As aulas
eram maravilhosas, os professores competentes, e a universidade era linda.

Ela não quis atrapalhar o meu almoço, então conversamos pouco.


Quando ela desligou, guardei o celular no bolso e voltei para o salão.
Andei de cabeça baixa até a mesa.

Ter Tristan no mesmo cômodo despertava todas as minhas


terminações nervosas. Eu me sentia apavorada, inebriada e... Observada.

Ainda não podia crer na coincidência. De todos os lugares, eu acabei


o encontrando justamente aqui. Oito anos depois.

Meu cérebro estava em pane. Como o garoto não mudou em nada?


Ainda não conseguia digerir.

Sentei-me em minha mesa e voltei a comer.

Olívia murmurou para mim.


– Clara, você conhece o Tristan di Santorum?

Levava o garfo à boca, mas paralisei no meio do movimento.


Perplexa.
– Não – menti, voz estrangulada. – Por quê?

– Hum... É porque, quando você saiu do refeitório, ele te seguiu com


os olhos obsessivamente. Quase como um predador. Foi muito estranho.
Parecia que ele a conhecia.
Como é que é?

Meu coração disparou. Então, ele se lembrava de mim.

– Não conheço. Deve ter me confundido com alguém.

– É, pode ser. – Ela deu de ombros e voltou a conversar com as outras


garotas.

Faltavam quinze minutos para o fim do almoço. Os di Santorum se


levantaram e saíram em formação. Quase como um pequeno exército.
Queixos erguidos, expressões assassinas.

Saíram deixando murmúrios e olhares admirados para trás.


Uma garçonete veio até a nossa mesa.

– Olá! Quem de vocês é a senhorita Clara Mourão?

– Sou eu. – Me surpreendi. – Mas não pedi nada. Já paguei a conta


quando pesei o prato.
Fiquei tensa. Eu tinha o dinheiro contado para o almoço.

A moça colocou uma bandeja a minha frente.

– Isso é para você. Foi um presente e já está pago. – Sorriu


educadamente.
Havia um filé, um copo de vinho chiquérrimo e uma sobremesa de
chocolate. O prato mais caro da Università. Somente aquela refeição custaria
minhas economias para um mês de almoço.

Arregalei os olhos.

– Tem certeza de que é para mim?

– É, sim. Com os cumprimentos de Dom Tristan. Ele espera que


aprecie, bom apetite. – Piscou, se retirando.

Mas o quê...? Eu encarei o prato, mortificada.

As meninas ao redor me fitavam sem nada entender.

Quem sabe em outra vida, dizia o seu bilhete de anos atrás.

Alguma coisa me dizia que essa outra vida...


Havia chegado.
O acontecimento complicou a minha vida.
Tive que contar a verdade para Olívia. Tristan, amigo do meu irmão.
Nos conhecemos no Brasil oito anos atrás.

Ela não entendeu por que eu menti. Eu disse que entrei em pânico.
Não quis citar o fato que realmente me assustou: a aparência imutável do
garoto.

Voltamos juntas para a casa. Caminhamos pelas ruas de Roma, no


meio da tarde. Eu me desculpei:
– Sobre hoje... Me perdoa por ter mentido, de verdade. Não quero que
pense que sou uma mentirosa patológica por causa disso. Foi uma omissão
bem estúpida da minha parte. É só que... Eu não queria perguntas. Nem sabia
se ele se lembrava de mim.

– Tudo bem. – Ela deu de ombros. – A gente se conheceu hoje. Com


o tempo, você vai começar a confiar em mim. Também não sou do tipo que
conta tudo para um estranho logo de cara.
Encarei-a.

Ela riu.

– Tudo bem, eu sou esse tipo.

Chegamos ao alojamento. Olívia foi tomar banho primeiro, e eu me


deitei na cama. Tinha muito no que pensar. Cérebro confuso e coração
inebriado.

Tristan estava aqui. Estudava na mesma faculdade que eu. Passou-se


quase uma década, mas ele se lembrava de mim.

Quando nos conhecemos, eu era apenas uma criança. Só que, agora...


Não era mais.

O garoto não mudou em nada. Me convenci de que se tratava,


simplesmente, de uma genética abençoada. Era a única explicação.

Olívia saiu do banheiro, enrolada numa toalha.


– Sabe no que eu estava pensando? – começou, absolutamente do
nada.

– Não. Ainda não leio mentes. – Estalei a língua, jogada em minha


cama.

Ela enrolou uma segunda toalha na cabeça.


– Ok, acompanhe o raciocínio. Todos os di Santorum são pálidos
como giz. Então por que o Tristan é o único bronzeado? Ele não parece
diferente dos outros?

– Verdade. – Me toquei. – Ele é o único que se parece, de verdade,


com um homem italiano.
Ou o que havia no meu imaginário de um italiano. Morenos
bronzeados, másculos, dos cabelos escuros.

– Será que ele é adotado? – chegou à conclusão.

– Nunca saberemos.
Ela se sentou em sua cama, passando hidratante nas pernas.

– Não sei, não. Agora que ele se lembra de você, talvez se tornem
amigos.

Bufei.
– Duvido muito.

– Imagine você sentada à mesa dos di Santorum? Iria se tornar uma


lenda naquela universidade! A primeira caloura a penetrar num grupo
impenetrável. Amiguinha do Dom Tristan.

Só o pensamento arrepiou minha espinha.


– Não viaja, Olívia – ri. Depois, pensei em algo. – Falando nisso...
Por que todo mundo o chama de “Dom”?

– Ah, é um lance da faculdade. As veteranas daqui me explicaram.


Parece que os tataravós dos di Santorum eram parte da nobreza séculos atrás,
e a plebe italiana os chamava de “Dons.”

– Tipo... Coisa da máfia?


– Claro que não, sua louca – gargalhou. – Você anda vendo muitos
filmes. É uma espécie de pronome de tratamento para a elite, no passado. Isso
meio que pegou. Agora, todo mundo os chama assim. Mas não na frente
deles, é claro. É mais uma zoeira.

– Não pareceu zoeira quando a garçonete falou. – Observei.


– Verdade. Os funcionários da Università têm muito respeito por eles.
São os donos de quase tudo ali, afinal.

Eu fui tomar banho. Depois, Olívia e eu ficamos conversando no


quarto pelo resto do dia. No jantar, ela me contou que haveria um baile de
recepção aos calouros em duas semanas.

Na Università, os homens convidavam as mulheres. Era tradição.


– Eu, hein. Que medieval. – Comentei.

– Pois é, mas é porque se trata de uma tradição. Os homens aqui na


Itália realmente gostam das tradições. – Bufou em desdém. – O século vinte e
um mandou lembranças...

Depois do jantar, fomos para o jardim que cercava o Palacete.

Nos sentamos num banco. Olívia acendeu um cigarro. Era um


baseado.

Fiz uma careta.

– Você não está meio velha para isso?


– Fale isso para o meu estresse pós-monografia. Qualquer idade é
uma boa idade para um baseado. Acalma minha mente. Quer um pouco?

– Deus me livre. – Eu era certinha demais para aquilo. – Minha fase


de adolescente rebelde já passou há um tempo.
Graças aos céus. O cabelo rosa aos 17 foi um equívoco terrível.
Alguém devia ter me parado.

Fiquei bebendo um café enquanto ela fumava. Batíamos papo,


observando a movimentação no jardim. Muitas alunas transitavam por ali,
curtindo a noite estrelada. Andavam em grupos, rindo e conversando.
Foi quando o portão principal da propriedade se abriu. Vários carros
de luxo entraram.

Olívia ergueu uma sobrancelha.

– Eles chegaram.
Quatro carrões luxuosos adentraram pelos portões, e estacionaram na
porta da frente. Cada um dos primos di Santorum saiu de um carro.
Avançaram para a entrada do Palacete, com os queixos erguidos e as faces
perversas.

Tristan desceu de um Audi preto e reluzente. Um carro de luxo


conversível.

Ele foi à frente, liderando o grupo e entrando no Palacete – sem olhar


para nenhuma das garotas ao redor.

A semana se passou.

Eu via Tristan no refeitório todos os dias. Ele sempre se sentava de


costas para mim, e nunca mais enviou qualquer sinal. Me ignorava
completamente.

Após alguns dias, os homens da Università começaram a se


movimentar para o baile. Selecionavam e convidavam as garotas de seu
interesse.
As veteranas, amigas de Olívia, contaram que aquela era uma ótima
oportunidade para se formarem casais dentro do campus.

E, claro, fazer amigos.


Os italianos adoravam as alunas estrangeiras. Muitas se casavam com
italianos ao final dos cursos, e acabavam ficando por aqui.

As garotas começaram a ser convidadas. Os homens as interceptavam


nos corredores, no refeitório na hora do almoço ou na porta da faculdade, na
saída.

Olívia e eu também recebemos convites. Ela, inclusive, já tinha


arrumado um par. Um veterano da Arquitetura.
Eu, por outro lado, continuava sozinha.

Episódios estranhos se desenrolaram. Vou explicar.

Na última semana, fui convidada por quatro garotos. Dois me


interceptaram no corredor, um esperava na porta da sala e outro me encontrou
saindo do refeitório.
“Oi, a vi andando pelos corredores e fiquei interessado.”

“E aí? Você faz uma matéria comigo, não pude deixar de te notar...”

E assim por diante.


Eles perguntavam se eu iria ao baile. Eu dizia que sim. Era uma
caloura e queria fazer amigos. Em seguida, eles se apresentavam
educadamente – sempre muito pálidos e de belezas aristocráticas.

Eu era educada e levemente simpática. Mas, só. As mensagens no


celular daquele garoto me deixaram mais esperta.

Após se apresentarem, perguntavam o meu nome. E era aí que o


evento estranho acontecia. Quando eu dizia “Clara Mourão”, suas expressões
despencavam. Balbuciavam, assustados. “Ah, sim, eu te confundi com outra
pessoa. Desculpe.”

“Olha, acho que isso foi um engano. Até mais.”


E por aí vai.

Todos saíam apressados, como se eu fosse tóxica. Muito estranho.

Nos dias posteriores, resolvi testar uma tática.

Quando era abordada por um deles, mentia o meu nome. Na cara


dura. Só queria testar a teoria.

Quando eles ouviam o outro nome qualquer, abriam um sorriso e


reafirmavam seus convites. Ou seja: o problema estava no meu nome. Eles
não conheciam o meu rosto, mas, por algum motivo enigmático, sabiam
quem eu era.

Como se eu fosse uma... Mulher proibida.


A pergunta era: por quê? Por que “Clara Mourão” os assustava tanto?

Naquela semana, usei meu nome falso – Clara Almeida – e arranjei


um par.

Sim, eu sei, foi baixo.


Mas situações absurdas requeriam medidas absurdas.

Aceitei o convite de um veterano do curso de Cinema. Chamava-se


Giovanni. Um belo italiano de cabelos e olhos castanhos; cara de nerd
bonzinho. Super o meu estilo.

Trocamos os números de telefone. O baile seria neste final de semana,


e ele me buscaria no alojamento. Já estava tudo combinado.
No outro dia, à noite, recebi uma mensagem de Giovanni.

Clara, terei que cancelar o encontro do baile. Sinto muito.

Fiquei chocada. Por quê?! Aconteceu algo?, respondi de imediato.

Que merda. Eu seria a única caloura sem um par?

O celular vibrou. Giovanni respondeu, áspero.


Você mentiu o seu nome. Não devia ter aceitado o meu convite. Devia
ter dito que já tinha um par.

O quê?!

Digitei furiosamente: Mas eu não tenho um par!


O aparelho vibrou. Outra resposta: Então diga isso para o Tristan-
cara-de-assassino-di-Santorum. Ele é o único que parece não saber.

Fiquei encarando a mensagem, mortificada. Só podia ser sacanagem.

Eu não irei com ele! Foi um mal-entendido! Ele nunca me convidou.


É o que estão dizendo.

É um mal-entendido, Giovanni. Acredite em mim. Podemos manter o


encontro?

Tinha que ter sido um mal entendido. Qual era a outra explicação
razoável?
Ele respondeu: Sinto muito. O cara é perigoso, não posso arriscar.
Quem sabe da próxima.

Joguei o celular na cama, frustrada. O que porra estava acontecendo


aqui?!

Ok, os di Santorum eram mesmo assustadores e intimidantes. Mas


havia algo mais. Um respeito cego e subordinado, quase como se eles fossem
chefões de quadrilhas. Bandidos que matariam famílias inteiras ao mínimo
sinal de desobediência.
Os homens da faculdade pareciam me considerar uma “zona
proibida.”
Tristan havia dito alguma coisa sobre mim? Se sim, como o boato se
espalhou?

Que insanidade.

Após o primeiro dia de almoço, o garoto nunca mais se dirigiu a mim.


Nunca me cumprimentou ou me olhou. Nos corredores da Università, me
ignorava completamente.
Às vezes, eu buscava seus olhos no refeitório. Só para mostrar que eu
estava ali, muito perto, se ele almejasse se aproximar. O que o impedia?

Eu havia imaginado nossa atração insana, oito anos atrás?

Era frustrante. Ele nunca devolvia meu olhar, sempre imerso na


conversa com seus primos. Face sombria e fechada. Impossível mapear suas
intenções.

O fato me aborreceu por dias. Já estava me acostumando a ideia de ir


ao baile sozinha.

Querem saber? Dane-se. Eu era uma mestranda na faculdade mais


fodástica do país, e poderia ir a um maldito baile sozinha.

Chegou a sexta-feira.
Eu sabia que, na sexta, o time de natação não treinava depois das
aulas. E como boa recifense amante do mar, eu precisava nadar. A semana foi
permeada por uma tensão confusa, e eu queria relaxar.

A piscina aquecida ficava nos andares subterrâneos da Università. Fui


até lá ao fim das aulas. Era um salão coberto e estava vazio. Abarcava uma
piscina de ladrilhos azuis marinhos, comprida e retangular.
Sorri ao vê-la, satisfeita. Seria perfeita para relaxar.

Fui até o vestiário e coloquei o meu maiô. Depois, entrei na piscina e


comecei a nadar suavemente. Meus cabelos boiando ao redor.

Após alguns minutos, ouvi a porta do salão rangendo baixinho.


Alguém estava entrando.
Droga.

Parei de nadar. Emergi, olhando ao redor. O zelador havia entrado;


falou algumas palavras de desculpas, recolhendo o cesto de lixo.

“Sem problemas”, devolvi, sorrindo. “Bom trabalho para o senhor”,


me despedi.
Ele foi embora e eu voltei a nadar.

Aconteceu segundos depois. Enquanto deslizava pela água, senti...


Uma presença. Uma sensação arrepiando a nuca, como se estivesse sendo
observada.

Fiquei tensa de imediato.


Emergi à superfície, mas me mantive de costas para a porta. Com o
canto dos olhos, eu podia distinguir a presença. Havia alguém ali. Um
homem de sapatos e calças escuras, parado perto da porta.

Ele entrou quando o zelador saiu. Como se só estivesse me esperando


estar sozinha.
Controlei o impulso de olhar. Ainda não, Clara. Ele não quer ser
visto.

Voltei a nadar. Desta vez, não mais para mim – mas para ele.
Eu sentia o olhar feroz me devorando. A nuca, arrepiada. Eu
reconhecia aquela sensação. Senti-a oito anos atrás, numa situação
semelhante. Apenas um homem no mundo continha tal olhar incendiário, e
capaz de me causar essas estranhas reações.

Quando dei a volta na piscina, tomei coragem. Emergi, passando as


mãos nos cabelos. Virei-me para a porta e abri as pálpebras.

Lá estava ele. Tristan.


Recostava-se na parede do lado da porta do salão. Mãos nos bolsos,
traços sanguinários e olhos fervendo.

Engoli em seco. Só havia nós dois ali.

Nós nos encaramos fixamente. Desta vez, sem nos ignorar. Era um
momento decisivo.
Andei até a borda e tomei coragem. Questionei:

– Quer alguma coisa de mim?

Por que você me observa há tantos anos?


Ele apenas ergueu uma sobrancelha.

Tive certeza de que me convidaria para o baile. Eu vi as palavras na


ponta da sua língua.

Ele abriu os lábios para responder – mas foi interrompido. Bem no


momento, a porta do salão se escancarou. Um grupo de garotas entrou,
falando alto e rindo. Usavam toucas de natação.
O time feminino reserva viera treinar. Porra.

Paralisaram ao ver Tristan ali, bem ao lado. Mãos nos bolsos e face
mal-humorada.
– Ah, D-dom Tristan – uma delas gaguejou. – Desculpa! Não
sabíamos que estava usando a piscina hoje.

Tristan rosnou baixinho.

– Cazzo.

“Porra”, disse em italiano. Desencostou-se da parede, claramente


furioso. Me lançou um último olhar de soslaio – perverso e fervente – que
claramente queria dizer: nossa conversa ainda não acabou.

Então, saiu do salão. Passou pelo meio do grupo de meninas,


deixando-as perplexas.

Não acredito.
Saí da piscina ardendo em frustração.

A prioridade do lugar era do time de natação, logo eu tinha que sair.


As meninas foram gentis e disseram que eu podia ficar mais um tempo. Eu
neguei educadamente. Não havia mais clima para nadar. Estava furiosa.

Me sequei no vestiário, troquei de roupa e fui embora.


****

O baile seria amanhã.

Olívia me emprestaria um de seus vestidos, vez que eu não queria


gastar comprando roupas. Meu dinheiro era contato.
No sábado, às 7 horas da noite, o par de Olívia foi nos buscar.
Sim, eu ficaria de vela. Os dois não se importaram.

Era um pouco triste? Ok, era. Mas eu não perderia o meu baile de
recepção porque não tinha um homem ao meu lado. Não estávamos no século
XIX, pelo amor de Deus.
Olívia usava um vestido preto de paetê, e, eu, um dos seus vestidos
vermelhos. Mangas compridas com uma fenda na coxa. Usei meus scarpins
pretos e passei um batom vermelho. Olívia me convenceu, embora não fosse
muito o meu estilo.

“É um baile, garota. Largue essas palavras cruzadas e liberte a mulher


fatal que existe em você.” Foi seu argumento convincente.

Entramos no carro luxuoso de Enzo, o par de Olívia.


O baile aconteceria num grande salão da Università. Entregamos
nossos convites e entramos no local. Todos os alunos estavam chiquérrimos.
Os pares foram formados, e os garotos pálidos perambulavam pelo salão com
as alunas. Tanto italianas, quanto estrangeiras. Calouras e veteranas.

A Università não economizou em bebida e comida. Só nos foi servido


champanhe, whisky e outros destilados da melhor qualidade.

A música eletrônica pulsava no salão. Luzes de néon azuis


entrecortadas acompanhavam o ritmo das batidas.
No todo, assemelhava-se a uma balada europeia da maior qualidade.

Os di Santorum financiaram a festa. Não seria para menos.

Enzo e Olívia me incluíam na conversa e nunca me deixavam


sozinha. Todavia, eu sentia que eles precisavam ter um momento a sós.
Aquilo era um encontro, afinal.
Então, anunciei que daria uma volta no salão para buscar bebidas. E
assim o fiz.

Esgueirei-me por entre os corpos dançantes, esquivando-me dos


casais se pegando na pista. Fui até o outro lado do salão e me servi no buffet.
Comi alguns aperitivos, e depois me direcionei ao bar. Peguei um copo de
vodca com energético e fui bebericando; andava pelos cantos do salão,
observando a festa. Queria dar um tempo à Olívia e Enzo.

Eu tinha muitos defeitos – mas sem noção não era um deles.

Na extremidade do salão, eu os vi.

Os primos di Santorum paravam num círculo fechado, conversando


entre si. Sempre elegantes e muito pálidos. Bebericavam copos de uísque,
observando ao redor. Um grupo impenetrável.
Tristan não estava entre eles.

Aquilo me frustrava e confundia imensamente.

O que o garoto realmente queria de mim?


Sem uma palavra, ele afugentou todos os outros pretendentes – e me
deixou sem par. Nem se dignou a aparecer. Tínhamos uma relação de quase-
flerte bizarra. Ele nunca falou comigo, mas sua presença estava sempre por
ali, pairando ao meu redor.

E deixando seus rastros.

Parei num canto do salão, e recostei-me numa parede. Obriguei-me a


observar outras pessoas, pois não queria alimentar aquela obsessão pelos di
Santorum.
Há alguns passos de mim, em um canto, um grupo de garotos
conversava com uma loura.

Eram três. Tinham sorrisos maliciosos, regando a menina de bebida.


Serviram-na um copo de champanhe. Enquanto a garota estava envolvida
numa conversa com o mais alto, o da esquerda fez algo absurdo. Retirou uma
pílula do bolso, colocando-a discretamente no copo que a garota segurava.
Ela nem percebeu.
Meu queixo caiu. Estavam drogando a menina?

No mesmo minuto, a garota bebeu um gole da taça, distraída. Os três


caras trocaram olhares maliciosos.

Arfei. Puta que pariu, eles pretendiam apagá-la e estuprá-la?!


Naquele momento, alguém me deu um encontrão por trás. Me
desequilibrei e quase caí. Uma garota meio bêbada me derramou bebida.

– Ai, desculpa – segurava-se à mim, trançando as pernas.

Seu par apareceu, tentando segurá-la.


– Desculpa aí, novata. É que ela não está bem.

Os dois era um casal de namorados, veteranos da minha turma. Eu já


os tinha visto nas aulas.

– Sem problemas. – Grunhi. Tentei me desvencilhar da menina, que


se segurava em mim para se manter de pé. Ela seguia pedindo desculpas,
trôpega e repetidamente.
O garoto me pediu ajuda para a tirar dali. Hesitei, mas no fim os
ajudei. Não tinha muita opção, afinal.

Passamos os braços dela em nossos ombros, e a levamos para um sofá


próximo. Alguns alunos descasavam por ali. Deixei o garoto cuidando da
namorada e saí.

Voltei ao meu lugar, mas o grupo de garotos havia sumido. Levaram a


loura dopada com eles.
– Não! Que merda, não...

Eu não podia presenciar algo assim e ficar calada. Precisava impedi-


los!

Andei pelo salão, os olhos perscrutando o lugar, apavorados. Eu


precisava encontrar aquele grupo. Era uma questão básica de sororidade e
humanidade.
Perambulei por cada centímetro quadrado e não os encontrei.

Massageei as pálpebras, frustrada. Porra, Clara, pense.

Eles deviam ter partido. Ou pegariam um táxi na porta da frente, ou


iriam para o estacionamento. Ninguém pegaria um táxi com uma garota
dopada; provavelmente estavam de carro.
Saí do salão e fui para o estacionamento. Ficava aos fundos da
Università, cercado por muros altos. Estava vazio. Havia centenas de carros
de luxo estacionados, mas nenhuma pessoa. Todos já haviam entrado na
festa.

Andei por entre os carros. A bolsinha de festa agarrada à mão. Lá


dentro, eu sempre carregava um spray de pimenta. Adquiri esse hábito
quando era adolescente, desde que minha mãe se casou com Matias.

Causar um escândalo constrangeria a menina. Eu tentaria resolver às


ocultas.
Bem na extremidade do estacionamento, ouvi alguns barulhos. Corri
até lá (amaldiçoando meus saltos).

Um Land Rover vermelho estacionava-se numa vaga erma, com todas


as portas abertas.
Aproximei-me sem fazer barulho. A menina dopada foi deitada no
banco de trás, e dois garotos estavam em pé no lado de fora. Inclinavam-se
para ela, parecendo beijar seu pescoço. Um de cada lado. O terceiro cara
estava dentro do carro, beijando com vigor o pulso da garota.

Uma cena improvável e bizarra.

Peguei meu spray de pimenta e avancei, gritando em italiano.


– Ei, vocês aí! Parem com esta merda agora mesmo, ou vou chamar a
polícia! – peguei o celular na bolsinha e disquei o número da polícia. – Já
estou ligando.

Naquele momento, todos pararam o que faziam e se viraram para


mim. A garota, desmaiada no banco.

Quando eles se viraram, eu parei de andar. Arquejei, pega de surpresa.


– Mas o quê...?

Eles não estavam beijando a garota, estavam sugando o sangue dela.


Tinham os lábios encharcados por sangue. Os dentes caninos, afiados e
maiores do que deveriam.

Era algum.... Fetiche bizarro.


– Ai, meu Deus. – Quase vomitei. – Que coisa nojenta. Vou chamar a
polícia agora mesmo, seus cretinos. – E apertei e o botão “ligar.”

Aconteceu de repente.

Um dos homens correu até mim. Em frações de segundos, me


alcançou. Retirou o celular das minhas mãos e o arremessou longe. Eu mal vi
seus movimentos. Era como se ele fosse mais rápido que inteligência
perceptiva dos meus olhos. Num segundo, parava-se perto do carro. No outro,
agarrava a minha garganta.

– Cala a boca, vadia. Não vai atrapalhar nossos negócios.


– Mas o quê... – arfei. Eles eram bandidos?

Os outros dois vinham em minha direção. Olhares predatórios e bocas


sujas de sangue.

Ergui o spray de pimenta até o rosto do meu captor. Arremessei o


líquido, o empurrei e saí correndo. Tropecei e caí no chão. Ralei o joelho e
me contundi.
Estes saltos malditos.

Me levantei. Quando olhei para frente, tomei um susto. Lá estava meu


captor, bem à minha frente.

Como chegou até mim em questão de segundos? Aquilo não era


normal.

Tinha os olhos vermelhos, mas só. Parecia estar sem dor. O spray não
teve efeito sobre ele.

Abriu um sorriso venenoso – dentes afiados e pingando sangue. Uma


fantasia muito real.

– Sua cadela humana estúpida.


Os outros dois homens me cercaram. Me encararam de cima à baixo.
Meu vestido vermelho colado ao corpo, meu joelho pingando sangue...

Um deles passou a língua pelos dentes, parecendo faminto. Estreitou


os olhos.

– O que nós faremos? Devemos matá-la?

Caralho.

Outro respondeu:

– Sim, ela viu demais.


O mais velho considerou:

– Mas é aluna da Università. Vai dar um puta problema. – Apontou


para a pulseira de plástico em meu pulso.

Apenas alunos continham essa pulseira. Foi colocada na entrada,


permitindo-nos livre acesso à festa. Convidados não receberam.
A moça loira e dopada não a tinha. Reparei que era apenas a
convidada de alguém.

– Não podemos matá-la, os di Santorum irão nos caçar por isso.

– Vamos enterrar o corpo em território proibido para eles. Não vão


conseguir nos rastrear.

Debatiam como se eu não estivesse ali.

O que me estrangulara inclinou a cabeça para o lado, me fitando.

– Eu quero drenar o sangue dela primeiro. A puta loira não me


satisfez.
O outro me encarava com um desejo repulsivo.

– Eu já estou satisfeito. Antes de matá-la eu quero fodê-la. Quando eu


estiver satisfeito, você bebe o sangue.

Meu Deus, o que estava acontecendo aqui?!


O captor me ergueu pelo braço com violência. Apertou meu pescoço,
me estrangulando.

– Vou provar o sangue dela primeiro. Quando estiver fraca, você pode
brincar com ela.
Então avançou, cravando os caninos – absurdamente afiados – em
minha garganta. Os dentes eram como agulhas cortando a carne.

Eu gritei, em pânico. Ele não estava só me machucando, também


estava... Sugando o meu sangue!

De súbito, outro dentre eles pegou meu pulso e o mordeu. Seus


caninos penetraram em minhas veias. Dor lancinante.
Empalideci. Eles eram malucos?

Fossem o que fossem, drenavam meu sangue. Comecei a me sentir


tonta e parei de me debater. Fiquei fraca, em vias de desmaiar.

Foi quando aconteceu.


– Parem. Agora. Mesmo. – Uma voz tenebrosa ordenou. – Seus
malditos.

Os homens me soltaram de imediato. Os dentes, saindo de minha


carne.

Caí no chão. Olhos semicerrados e confusa.


Alguém havia chegado.

O homem que me mordeu gaguejou.

– D-dom Tristan...
Outro praguejou, voz estrangulada.
– Caralho, estamos mortos.

Caída no chão, olhei para cima e o vi. Tristan estava há alguns passos
de nós. Pulsos fechados e dentes cerrados em ódio. Encarava os homens com
uma fúria assassina.
Falou bem devagar. Quase pude ver o veneno escorrendo das
palavras:

– O que vocês pensam que estão fazendo?

Meu captor caiu de joelhos. Face apavorada, como se houvesse se


deparado com o próprio diabo.
– Nós sentimos muito. Por favor, tenha misericórdia.

Os outros dois também caíram de joelhos, subservientes. Abaixaram


as cabeças.

– Nós faremos qualquer coisa, lorde. Apenas nos poupe.


Tristan soltou o sorriso mais perverso que vi na vida.

– Eu pareço misericordioso para vocês? Devem estar me confundindo


com meus irmãos.

Todos arfaram. Perceberam o que iria acontecer.


Foi questão de segundos.

Tristan avançou para o meu captor e cravou os dentes em seu


pescoço. O homem gritou. Tristan drenou todo o seu sangue, deixando-o
caído no chão. Lívido, olhos arregalados. Morto.

O segundo tentou fugir. Tristan o alcançou – correndo a uma


velocidade insana. Pegou o seu pescoço e girou, quebrando-o. O homem caiu
no chão, morto também.
O terceiro permanecia de joelhos. Olhos fechados em pavor.

– Por favor, Vossa Excelência, tenha misericórdia... – murmurava.


Sabia que fugir seria em vão.
Olhando-o de cima, Tristan engrenhou os dedos no cabelo do homem.
Puxou sua cabeça para trás com violência.

– Porque você é mais esperto que os outros, irei te poupar. Você irá
passar a minha mensagem para sua família desprezível. Se eu vir algum de
vocês em meu território novamente, vou matar sem piedade. Queimarei suas
casas e dizimarei todo o seu clã.

Meu Deus, Tristan era um assassino.


Todos ali eram.

– S-sim, Senhor.

– Suma daqui antes que eu mude de ideia. E se eu colocar meus olhos


em você novamente, estará morto. Quero que tenha uma existência miserável,
sabendo que está em dívida comigo para todo o sempre. E que um dia eu te
encontrarei para cobrar.

O homem não esperou mais. Levantou-se e saiu correndo, sumindo a


uma velocidade inumana.

Não é real, não é real, eu repetia para mim mesma, bochecha contra o
chão. Semiconsciente, sabia que havia perdido muito sangue. Estava em vias
de desmaiar.

Tristan e eu ficamos sozinhos.


Ele me olhou e sua expressão mudou. O ódio se transformou em
tristeza – excruciante e refinada. Ele se ajoelhou ao meu lado e segurou
minha cabeça com uma mão. Com o polegar da mão livre, fez um carinho na
minha bochecha.

– Desculpe, linda. – Murmurou, voz baixa e ferida. – Desculpe não


estar aqui para te proteger. A culpa é minha.
Foi a primeira vez em que ele falou comigo. E sua voz, meu Deus...
Sua voz era musical e extraordinária, do jeito que imaginei.

Quis aproveitar o momento, apreciar a alegria de tê-lo tão perto. Mas


não houve tempo.

Minha consciência se rendeu.


Apaguei.
Acordei.
Abri os olhos lentamente. Todo o meu corpo doía.

Eu estava quente e ardia em febre. Olhei ao redor. Fui depositada


sobre uma cama, num quarto masculino e luxuoso.

Vozes masculinas conversavam.


“(...) e o veneno está fazendo efeito. Eu vou drenar, mas precisamos
sedá-la. Ela não vai aguentar a dor.”

– Onde... – balbuciei, sem forças. – Onde... estou?

“Ela acordou!”
Havia quatro homens no quarto. Os quatro di Santorum.

Azlam, Eros e Athos estavam de pé ao redor da cama. Tristan sentou-


se no colchão, ao meu lado, e colocou uma palma em minha testa.

– Cacete! Ela está ardendo em febre! – face assustada.

– Quem... eram... eles? – eu atropelava as palavras. – Os


sanguessugas...

Azlam, o di Santorum de cabelo raspado e tatuagens, inclinou-se para


mim. Olhou-me de perto.

– Ela está delirando, Tristan. Precisamos sugar o veneno agora, ou ela


irá morrer.
Athos, o de cabelos castanhos compridos, se aproximou.

– Deixa que eu faço. Eu sou o mais controlado.

– Não – Tristan rosnou, feroz. – Eu farei.


Eros, o loiro, contestou.

– Mas, Tristan, você pode não ser capaz de parar.

– Eu vou parar. Ela é minha mulher, não irei machucá-la. – Pegou


meu pulso e levou até a boca. Arreganhou os lábios e, como num passe de
mágica, seus dentes caninos aumentaram, afiados.

Eu ofeguei, assustada. Ele iria me morder?!

– Não! – tentei retirar meu pulso de sua mão.

Ele me segurou.
– Confie em mim, amor.

Amor?

– Ela não vai deixar, está em pânico – Athos se aproximou. Trazia


uma agulha nas mãos. – O veneno está causando alucinações. Vamos sedá-la,
vai ser mais fácil assim.

Olhei para a injeção, apavorada.

– Por favor, n-não... – nem conseguia me mover.

Tristan beijou a palma da minha mão.

– Relaxe, vamos fazer a dor passar.


Athos roçou a agulha no meu pescoço. Comecei a chorar.

– Estou com medo... – e com dor, com febre e delirando. Era o


inferno. Eu fui envenenada?!

Ainda segurando minha mão, Tristan me encarou com honestidade.


– Eu vou te ajudar. Foque-se em mim e esqueça o que está
acontecendo. Olhe somente para mim.

Foi a minha salvação.

Ele segurava minha mão protetoramente, olhando nos meus olhos.


Sendo a âncora que eu precisava.
– Não me solte. – Implorei.

– Não irei.

Athos injetou o sedativo em meu pescoço, e tudo foi ficando escuro.


O sedativo fez efeito. Apaguei, agarrada à mão daquele homem.
Homem que jamais conheci de verdade – mas que deixou uma marca gravada
à fogo em meu coração.

Marca esta que perdurava há muitos, muitos anos.


****

Ao acordar, me sentia muito melhor.

Sentei-me na cama, passando a mão pelos cabelos. As lembranças


vieram aos poucos.

Os homens de dentes afiados. A mordida em meu pescoço. Tristan me


salvando. Os di Santorum me aplicando alguma coisa enquanto eu delirava
de febre...

Soltei um palavrão abafado.


Inacreditável.

Olhei ao redor. Não reconheci o quarto em que estava. Consistia num


ambiente super espaçoso e masculino. No centro, havia uma cama box
imensa e com dossel. Eu fui colocada ali, bem no meio das almofadas.

Pinturas renascentistas nas paredes contrastavam com os móveis


modernos.
Que lugar era aquele?!

No criado mudo, ao lado da cama, havia uma muda de roupas. Minha


bolsa de festa também estava por ali. Fui até lá e as peguei. Eram roupas
minhas!

Havia um bilhete dobrado por sobre elas.

Espero ter escolhido bem. Melhoras,

Francesca.
A governanta do alojamento?
Francesca escolheu jeans, sapatilhas e blusa de frio. Minha nécessaire
também estava ali, portando escova de dentes e alguns itens de maquiagem.
Amém.

Eu ainda usava o vestido vermelho. Alguém colocou um band-aid em


meu joelho, pulso e pescoço.
Fui até o banheiro anexo e me olhei no espelho. Porra, estava
acabada.

Tomei um banho rápido e escovei os dentes. Penteei o cabelo e vesti a


roupa.

Enquanto me arrumava, considerava. Se Francesca estava por perto, e


os di Santorum me salvaram, eu só poderia estar no próprio palacete! Nos
andares superiores: as alas privativas dos primos.
Puta merda. Como vim parar aqui?

Olhei ao redor, incrédula.

Será que me encontrava no quarto do próprio Tristan?!


Poderia ser. Exalava exatamente seu estilo. Móveis masculinos,
escuros e modernos, contrastando com pinturas e obras de arte nas paredes.

Fiquei nervosa. Deus, o quarto dele.

Respirei fundo. Calma, Clara. Não entre em pânico. É hora de pensar


em como iremos sair daqui.
Abri as gavetas do criado até encontrar uma sacola de loja. Coloquei
minhas coisas na sacola e saí do quarto. Abracei a sacola contra o peito, na
defensiva. Estava apavorada.

Desemboquei num corredor.


Nele, havia outras portas, outros quartos. O corredor era enfeitado
com tapetes e quadros antigos e valiosos. Os di Santorum eram
colecionadores de arte.

Reconheci a cor das paredes e a estrutura do lugar. Parecia o interior


do palacete. O alojamento tinha o mesmo piso.
Todas as portas por ali estavam fechadas. Deviam ser os quartos dos
outros primos.

Então, fui andando pelo corredor. Desemboquei numa imensa sala de


estar, com móveis escuros e sofás de couro marrom. Tudo imerso no luxo.

Avancei por ali, meio apavorada. Não vi nenhum funcionário.


Anexa à sala, havia uma porta dupla e fechada. De dentro dela, saíam
algumas vozes e risos. Uma conversa entre homens. Reconheci algumas
vozes de ontem. Eram os primos di Santorum. Ouvi baques secos – como um
taco de sinuca encontrando uma bola. Alguns palavrões, outras risadas.

Seria um salão de jogos?

Me aproximei e ergui a mão para bater na porta. Depois, pensei


melhor.

Eu tinha visto muita coisa insana na noite anterior. Fui envenenada,


humilhada e sedada. Quase morri. Não tinha a menor obrigação de ser
educada.

Cordialidade era o caralho. Eu precisava de respostas.

Abri a porta.
Do outro lado, havia de fato um salão de jogos. Eros e Azlam
jogavam sinuca. Athos, o de cabelos castanhos e compridos, sentava-se num
sofá de couro próximo, lendo um livro. Fones de ouvido bloqueavam o
barulho dos primos.

Assim que entrei no ambiente, a conversa acabou. Todos olharam


para mim.
Eros baixou o copo de uísque que bebia. Azlam pousou o taco de
sinuca por sobre a mesa, e Athos tirou os fones e fechou o livro.

– Olha quem está aqui... Finalmente acordou, ragazza. – Eros, o loiro,


abriu um sorriso sincero e cordial. Aquilo me desarmou. – Já era sem tempo.

– Pensamos que entraria em coma. – Azlam troçou.


Athos apenas me encarava com desconfiança.

– Onde eu estou?

– No palacete, terceiro andar. Nossa ala particular.


– Onde está o Tristan?

Eros soltou um sorrisinho.

– É claro que perguntaria por ele. O que está rolando entre vocês?

– Eros, não seja inconveniente. – Azlam, o tatuado, rolou os olhos. –


Ele deu uma saída, ragazza, mas já está voltando. Foi resolver o problema
causado ontem na festa.

Ah, sim. Os malucos que tentaram beber o meu sangue. Normal.

Apertei mais a sacola contra o peito, desconfortável por estar ali. Os


três eram intimidantes.
– O que aconteceu comigo ontem?

Ninguém respondeu. Trocaram olhares enigmáticos entre si.


– Por que aqueles homens tentaram me machucar? – insisti. – E o que
era aquela bizarrice sobre beber o meu sangue? Canibalismo? Fetiche?

Grave distúrbio psicológico?


Athos suspirou, se levantando.

– Precisamos conversar. Você viu muito. Vamos fazer isso de forma


civilizada para não te assustar. Por favor, sente-se. – Indicou o sofá a sua
frente.

Parecia o mais sensato dentre eles. O mais velho e o líder.


Retorci os dedos, tensa. Todavia, fazer um escândalo não parecia a
melhor opção. Me sentei num dos sofás.

Athos reuniu as mãos, muito sério.

– Do que, exatamente, você se lembra de ontem?


– De tudo o que importa. Os dentes deles eram afiados e inumanos.
No começo, pensei que eram fantasias, mas vi os caninos crescerem na frente
dos meus olhos. – Seria alguma prótese? – Eles literalmente beberam o
sangue daquela garota. – Parei de repente, relembrando. – Meu Deus, a
garota! Ela vai ficar bem?

– Vai. Nós a curamos e a levamos para casa.

A curaram? De quê?
Deus, tantas perguntas.

– Eu também me lembro do Tristan... – baixei os olhos, apertando a


sacola contra o peito. – Os dentes dele cresceram e ficaram afiados. – Engoli
em seco. – Não foi normal.

Os três primos trocaram olhares enigmáticos.


– E mais o quê?

– Lembro-me que eles falavam sobre me matar. E quando o Tristan


chegou, desistiram. – Obedeceram ao garoto como se fosse um rei. –
Lembro-me de estar ardendo em febre. Vocês disseram que eu estava
envenenada e queriam drenar o veneno de mim. O Tristan planejava... Me
morder. Só que nenhum de vocês parecia estar alucinando. – Pelo contrário,
pareciam muito sãos. – E se ninguém aqui tem qualquer distúrbio psicológico
sério... – Massageei as têmporas, segurando o choro. – O que vocês são?

Azlam estava recostado perto de uma janela.

– Você já sabe o que nós somos. – Mãos nos bolsos, olhar austero.
Aquele homem não brincava. – Só não quer dizer o nome porque isso te
aterroriza. Vai ferir suas crenças humanas e desestabilizar seu mundo real.

Senti o terror em todas as minhas terminações nervosas.


Eros foi até o bar, no canto da sala.

– Argh. – Serviu-se com uma taça de vinho tinto e deu uma golada.
Parecia frustrado. – A hora de contar a verdade a elas é uma merda. Preciso
beber.

– Não sei do que vocês estão falando. – Comecei a me desesperar.


– Aí está: a fase da negação. – Eros bufou. – Qual é, ragazza? Você
não vê filmes? Homens bonitos e pálidos, que nunca envelhecem... – me
encarou em tom de obviedade. – Dentes afiados, sugadores de sangue? –
revirou os olhos. – Vamos, não me decepcione.

Meu coração acelerou.

– Isso é lenda. Estamos no mundo real.


Eu não diria a palavra com “v.” De jeito nenhum.

Era uma mestranda, uma amante do conhecimento empírico. As


lendas e fantasias, para mim, deveriam ficar nos livros que eu lia. Na vida
real seria insanidade.
Athos explicou com calma. Tinha o dom da temperança.

– Clara, eu sei que o dizemos parece um absurdo. Criaturas não-


humanas vivendo entre os seus? Eu também não acreditaria. Nem se visse
com meus próprios olhos. Nós, como criaturas... De outra raça, tentamos nos
manter em segredo. Os humanos não aceitam muito bem o diferente. Seria o
caos. Se descobrissem sobre nós, poderiam nos machucar.

Azlam grunhiu.
– Nos sequestrar e nos estudar em laboratórios, como malditos ratos.

– Exato. – Athos corroborou. – Nós somos bem mais fortes e rápidos


que humanos, é evidente. Mas atualmente a tecnologia de vocês supera a
força bruta. Por uma questão de preservação da espécie e sobrevivência, eu e
meus primos nos mantemos em segredo. E sempre foi assim.

Me levantei. Andei pela sala, passando a mão pelos cabelos. Sentia


um nó na garganta e um desespero crescente.
– Existem mais de vocês?

Ainda não me decidira por acreditar.

– Existem muitos. Não notou como os homens da sua faculdade


parecem tão semelhantes entre si?
Paralisei, encarando-o.

– Todos eles são como vocês?


– São. Só existem homens em nossa espécie.

Ai, meu Deus. Me sentei no sofá próximo. Enterrei o rosto nas mãos.
Calma, Clara.
– Vocês têm quantos anos?

Todos ficaram num silêncio hesitante.

– Quantos anos?! – insisti.

– Muitos. As obras renascentistas em nossas paredes foram


compradas por nós, das mãos dos próprios Mestres da época. Por isso somos
colecionadores lendários... Porque já estávamos aqui na época do
Renascimento.

Eu soltei uma risada nervosa.

– Puta que pariu. Isso não está acontecendo comigo.


Por isso Tristan não envelhecia. Em oito anos, ele permaneceu
exatamente igual.

Ergui o rosto, dentes trincados.

– Me provem. Me provem que estão falando a verdade e não estão


num delírio coletivo.
Eros suspirou e foi até mim. Sentou-se ao meu lado, oferecendo-me a
taça de vinho tinto que bebia.

– Toma. Você está precisando mais do que eu.

Arranquei a taça de suas mãos, irritada. Eu queria beber, apagar e


esquecer toda aquela insanidade.
Dei um gole e...
Chocada, cuspi tudo no tapete.

– Mas o que porra...? – ofeguei. Não era vinho tinto! – Isso é


sangue?! – limpei a minha boca, enojada. Sentia o gosto metálico na língua.
– Você estava bebendo sangue este tempo todo?!
Eros deu de ombros.

– Ora, você queria uma prova... Aí está.

– Ai, meu Deus. – Passei a mão pelos cabelos, tentando controlar o


pavor.
– Pergunte tudo o que quiser, Clara – Athos tinha a voz suave. – Se
você nos conhecer, não terá tanto medo.

Aquilo estava ficando real demais.

– Vocês estão... Falando sério?


Azlam ergueu uma sobrancelha.

– Temos cara de quem brinca?

Não tinham.

Meus olhos se encheram de lágrimas de pavor.

– Vocês matam pessoas?

– Não mais. – Athos foi sincero. – Aprendemos a controlar nossa


sede.
– Já mataram?

Trincou o maxilar, desconfortável.

– Sim. Mas não nos orgulhamos disso.


Meu. Deus.

– Vocês precisam beber sangue para viver?

– Sim, todos os dias. Geralmente usamos bolsas de sangue para tornar


tudo mais civilizado.

Então, a possibilidade horrorizante surgiu em minha mente.

Perguntei – mas já sabia a resposta.

– Tristan também é como vocês?

Eros recostou-se no sofá, parecendo tranquilo. Pegou a taça de minhas


mãos e deu um gole.

– Um vampiro? É claro que é.


Fechei os olhos. Senti o golpe de dor, ardendo nas bordas do meu
peito. Não pude controlar as lágrimas. Elas desceram por minhas bochechas
compulsivamente.

O homem com quem sonhei por tantos anos era um monstro.

– Quem mais sabe?

– As veteranas que moram no alojamento. Elas nos fornecem seu


sangue e viram nossas noivas. Muitos vampiros da cidade se casam com elas.
Não existem mulheres da nossa espécie, então precisamos reproduzir com
humanas.

Perdi o ar.

– Por isso vocês nos trazem para cá? Financiam bolsas para mulheres
do mundo inteiro estudarem aqui?
Eros estalou a língua.
– Bingo. Até que ela é esperta.

Eros era o único dos irmãos que levava aquilo na brincadeira. Athos e
Azlam se mantinham muito sérios.
– Se eu terminar o meu curso de Mestrado aqui...

– Sim. – Athos foi brutalmente honesto. – Provavelmente vai virar


uma de nossas fornecedores de sangue. Nós só bebemos sangue de mulher.

Caralho. Não tinha como ficar mais bizarro.

– Mas, Tristan... Tristan bebeu o sangue daqueles homens.

– Não eram homens, eram vampiros. Ele não estava tendo prazer e
nem se alimentando. Estava matando.

Eu me levantei de supetão.
– Vocês me enganaram. – Voz traída. – Enganaram a todas as
mulheres que vem para cá, cheias de sonhos! Estão nos usando. Somos
prostitutas de sangue para vocês.

A mensagem do garoto, no primeiro dia de aula, não saía da minha


mente. Seleção de noivas. Elas serão ótimas bolsas de sangue.

Athos permaneceu muito calmo.


– Sim, nós bebemos o sangue das estudantes. Mas tudo é feito de
forma consensual e com respeito. Muitas delas ficam por aqui e se casam
com os homens de nossa espécie. Criam famílias e são muito amadas. Não
somos os monstros que você pensa, Clara. Só não somos... Da sua espécie.

Eu ri com desdém.

– E como você explica aqueles malditos do estacionamento? Que


doparam a garota?
– Eles são outra casta de vampiros.

– Outra?! – só podia ser brincadeira. Quantos tipos de monstros


existiam?
– São os vampiros vivos. Só existem por alguns anos e por isso são
monstros incontroláveis.

Arregalei os olhos.

– Espera aí... Então vocês estão...

– Mortos. – Azlam cruzou os braços. – Pois é. Como acha que


andamos por esta terra há tantos séculos?

– E temos este bronzeado de cadáveres? – Eros apontou para si


mesmo, fazendo piada.

Olhei para Athos.


– Me diz que isso não é verdade.

Ele parecia triste.

– Sinto muito, Clara. É verdade. Nossos corações não batem mais.

Comecei a chorar. Demorei a me acalmar. Quando o fiz, perguntei.

– Eu sou prisioneira de vocês?

Athos se ofendeu.
– É evidente que não! Está livre para ir quando quiser. Não
prendemos nenhuma de nossas mulheres. Mas, ao partir, terá que assinar um
contrato garantindo o sigilo do nosso segredo.

Peguei minha sacola por sobre o sofá e me levantei.

– Então está decidido. Não fico neste palacete assombrado nem mais
um minuto.

Eros se chocou. Perturbado pela primeira vez naquela conversa.

– Você pretende ir embora sem falar com o Tristan?

Encarei-o com raiva.

– Eu não devo nada a ele. Não devo nada a vocês! Sou uma mulher
livre.

Vim para estudar, não para ser uma meretriz de sangue para aqueles
caras estranhos.

Eros fez uma careta.

– Maldição, isso irá nos ferrar. Tristan ficará furioso conosco se você
for agora.
– Então vão ter que me prender.

Athos se levantou, mãos nos bolsos.

– Não iremos. Você é uma mulher livre. Sinta-se à vontade para ir.
Quase bufei. Obrigada pela compaixão, Suas Excelências.

– Athos! – Eros se indignou. – Ficou louco? Tristan vai cortar nossas


cabeças!

– Não somos sequestradores, irmão. Nunca prendemos mulheres, e


não vai ser agora.
Azlam estalou a língua.

– Mas ela é a mulher do Tristan. Isso vai dar uma merda muito
grande.

Rosnei, limpando as lágrimas.


– Não é problema meu. Nunca mais quero ver vocês. Adeus. – Virei-
me e fui embora da sala, passos furiosos. Atravessei a sala de estar e
desemboquei num corredor social.

Perambulei por todo andar, até achar uma escada. Consegui. Desci e
chegar ao primeiro andar, e saí no jardim do Palacete.
Já era noite. Eu dormi por quase 24 horas... Meu Deus.

Corri para o meu quarto. Olívia não estava por ali. Deve ter saído com
Enzo.

Peguei meu celular na bolsinha. Restava pouca bateria, mas ainda


pude ver as ligações. Havia várias chamadas e mensagens de Olívia. De
ontem à noite e hoje à tarde.
Onde você está? Você sumiu há quase 24 horas! Dê notícias eu vou
chamar a emergência!

Joguei tudo na mala e na mochila. Mais tarde, eu ligaria para Olívia


para me explicar.

Ao limpar todo o meu quarto, coloquei um casaco mais grosso e saí


do alojamento. Fui empurrando a mala até a porta do palacete.

Não saí. Àquela hora, esperar na rua seria perigoso. Então fiquei ali
parada, entre o portão e o jardim, pensando no que fazer.

Peguei o meu celular e entrei no aplicativo do Uber.

Massageei as têmporas.
Para onde eu iria? Um quarto de hotel, uma pensão? Nesta cidade,
seria tudo muito caro. Eu conseguiria bancar por uns dias, depois, não mais.
Teria que arranjar um emprego à noite. Atrapalharia meus estudos, mas não
vi opção. A não ser...

A não ser ir embora.

Largar o mestrado e voltar para o Brasil.

Eu não queria estudar numa universidade onde garotas eram usadas


como bolsas de sangue por criaturas assombradas, que nem deveriam existir.
Era grotesco.

Parada ali, olhando para a porta, contive as lágrimas. Calma, Clara.


Você vai pensar em alguma coisa.
Uma voz gelada chegou por trás.

– Não faça isso.

Paralisei. Eu reconhecia aquela voz.


Virei-me para trás.

Tristan estava há alguns metros de mim. Mãos nos bolsos,


sobrancelhas franzidas e olhar negro assassino. Sua voz, puro veneno.

– Você iria embora sem se despedir de mim?

Engoli em seco.

– Sim. – Tomei coragem: – Por que deveria? Nós não somos nada um
do outro.

Ele arqueou uma sobrancelha, enigmático.


– Um sentimento começa com um olhar. Está mentindo para si
mesma e sabe disso.

Abri a boca para responder, mas perdi as palavras. Eu não sabia o que
dizer. Aquele homem habitava meus sonhos secretos. Contudo, era um
monstro sanguinário de outro século. Assustador.

E eu nunca fui a garota atraída pelo perigo.

– Não posso mais ficar aqui. Não depois do que eu descobri. Vocês...
Vocês são monstros.

Ele franziu a testa. Parecia ferido.

– Você nem nos deu uma chance.

Uma chance? Eles bebiam sangue humano para viver! Pelo amor de
Deus!

Eu sorri sem qualquer alegria.

– Estou nesta faculdade há um bom tempo, e você nunca se dignou a


falar comigo. Sempre me ignorou. E agora, como se fôssemos íntimos, me
aborda e me pede para ficar?
Ele não respondeu. Apenas me fuzilou com o olhar enigmático.

– Por quê? – insisti. – Por que não se aproximou antes? Eu precisei


quase morrer para que viesse até mim.

– Porque eu não sou bom para você. – Sentenciou simplesmente.

– Seus primos se relacionam com humanas. Por que você não pode?

– Porque eu sou diferente.

Perdi a paciência.
– Como assim?!

– Porque eu quero conhecer você... – Arqueou uma sobrancelha. –


Mas também quero te matar.

Vacilei, chocada.
– Você não faria isso.

– Você não me conhece. – Devolveu, feroz.

Engoli em seco.

– E qual dos desejos está ganhando?

Ele desviou os olhos – furioso e enigmático.


– Ainda estou tentando descobrir.

Meu Deus, que conversa estranha. Repleta de sentimentos carregados


e eletricidade.

Sentia a presença do garoto em cada uma das minhas terminações


nervosas. Homem nenhum jamais me causou tal reação.
– Se eu ficar, poderei me relacionar com outros homens?

Ele me encarou com fúria.

– Claro que não. Você é minha.


O quê?! Seria algum instinto possessivo vampiresco?

Vampiresco. Só a palavra me fazia querer correr daquela cidade e


nunca mais voltar. Eram esses tipos de criaturas que se escondiam no
submundo de Roma?

Neguei com a cabeça.


– Não posso ficar aqui. É demais para mim. Vocês nos trazem para cá
e nos enganam. Não sou alimento para sua raça, sou uma pessoa.

– Se ficar aqui, eu a protegerei. Sob minha proteção nenhum vampiro


ousará te tocar.

– Não é o suficiente.
Ele trincou o maxilar.

– Eu não costumo implorar, Clara Mourão. Não vou pedir outra vez.
Nem mesmo por você.
– Não posso.

– Pode.

– Não posso.

– Por que não? – rosnou.

– Porque eu estou de luto, porra! – gritei, perdendo o controle. Parei


entre arfares, lágrimas vindo aos meus olhos. Lágrimas execráveis que não
consegui controlar. – Eu perdi toda a minha família há 5 meses. Tem um
maldito buraco no meu coração. Não sei nem como estou viva. Estou
tentando me reerguer nesta vida nova, neste país novo... Mas vocês
estragaram tudo. Eu estou quebrada... Não tenho psicológico para lidar com
uma situação dessa estirpe agora. Outras espécies e vampirismo? – gargalhei,
ferida, passando a mão pelos cabelos. – É simplesmente demais para mim.
Não dá para aceitar.

Ele demorou para responder. Ficou me encarando, mãos nos bolsos.

Não sabia o que ele pensava. Olhar sombrio.

– Eu vou te ajudar.

– Não acredito em você. Você sumiu por oito anos e me deixou


sozinha.
Franziu o cenho.

– Eu estava esperando.

– Esperando pelo quê?


– Esperando você crescer. Você era uma criança para mim. O meu
amor pode ser um pouco... Brutal. Esperei você se tornar uma mulher e estar
pronta para mim.

Meu coração disparou.


– Eu sou uma mulher agora. Pretende ficar comigo?

– Não.

Meu queixo caiu.

– Por que não?

– Uma relação entre nós dois... – fechou as pálpebras por um minuto,


enraivecido e parecendo sofrer. – É impossível. Eu sou uma sentença de
morte para você.

– Mas você me chamou de... – hesitei, constrangida. – Me chamou de


amor na noite em que me salvou.
Devolveu, gelado.

– Você estava delirando. Não falei nada disso.

Neguei com a cabeça, incrédula.

– Então o quê? Vai simplesmente ficar longe de mim?

– Vou cuidar de você de longe. Te observar. É o máximo que posso


oferecer.

– Não é o suficiente.
– É só o que posso dar.

Fui tomada por ira.

– Então eu vou embora. – E me virei.


Quando coloquei a mão na maçaneta da porta, ele rosnou:

– Pare.

Parei, mas não me virei. O coração pulsante em expectativa.

Ele suspirou.

– Se ficar, podemos... Tentar nos conhecer. Mas não irei prometer


nada. Eu vou te mostrar quem eu sou, e se não ficar aterrorizada ao final, nós
veremos no que vai dar.

Me virei, segurando um sorriso. Não deixaria que ele visse minha


emoção.

Acenei um “sim” com a cabeça.

– Eu posso aceitar isso.


Ergueu uma sobrancelha.

– Não posso fazer promessas.

– Eu sei.
Seu rosto voltou a ser sombrio.

– Então chegamos a um acordo. Vá para o seu quarto e descanse.


Adeus. – Virou as costas e foi embora, subindo para seu andar particular.
No outro dia de manhã, tentei acordar Olívia. Nem a vi chegar na
noite anterior.
Balancei-a, mas ela nem se mexeu. Murmurou: “Me deixa em paz...”

– Deste jeito você não irá se formar, sua preguiçosa.

Ela somente grunhiu em resposta. Colocou o edredom por sobre a


cabeça, se escondendo.
Suspirei e fui me trocar.

No café da manhã, observei as garotas ao redor. Com o olhar apurado,


tentei discernir as veteranas das calouras. Algumas veteranas tinham
pequenas cicatrizes – muito imperceptíveis – no pescoço. Riam e
conversavam alegremente, como se não fossem usadas como meretrizes de
sangue.
Trinquei os dentes. Que coisa absurda.

Fui para a Università sozinha. Aquele tempo caminhando em silêncio


foi proveitoso, pois eu tinha muito no que pensar.
Tristan era um vampiro. Uma criatura cuja existência eu não
conseguia compreender.

O que sua existência significava? Algo imoral, satânico, ou apenas...


Diferente? Simplesmente outra espécie?

Seres humanos não lidam bem com o diferente, dissera Athos.


No imaginário humano, vampiros eram criaturas demoníacas e
assustadoras. Nisso, eu concordava. Principalmente quando me lembrava dos
dentes ensanguentados dos caras no estacionamento.

Em outra situação, eu sairia correndo daquele palacete e nunca mais


voltaria.

Só uma razão me prendia ali...


Aquele maldito sentimento.

Os olhos profundos de Tristan. A vontade de conhecê-lo. A mixórdia


de emoções que a mera menção do seu nome me causava. Tesão, curiosidade,
obsessão. Em meu peito, havia o começo de uma chama – que prometia se
transformar num incêndio.

Como eu poderia sentir tantas sensações paradoxais por um homem


que mal conhecia?
Talvez, porque ele permeasse meu imaginário há muitos e muitos
anos. Uma paixão mal resolvida. A promessa de uma paixão.

Tristan me fez rever concepções. Eu nunca acreditei em amor


instantâneo. Todavia, ao nos vermos pela primeira vez, nossos corpos foram
tomados por intensas reações químicas. Incendiárias, viscerais. Sensações
que jamais puderam ser esquecidas, e ficaram reverberando em nossos
corações por anos a fio.

Será que era o isso o que chamavam de... Amor à primeira vista?
Sim, o amor real era construído com o tempo. Mas, e uma paixão?

Sim, uma paixão poderia nascer no primeiro encontro.

Um sentimento nasce com um olhar, dissera o garoto. E ele tinha toda


a razão.
Cheguei à Università. Assisti às aulas um tanto distraída.

Se você ficar, poderemos tentar nos conhecer.

Deus, apenas a hipótese me causava um arrepio na espinha. De


antecipação e de pavor. Eu, me relacionando com um monstro?
Não é um monstro, uma voz sussurrou em meu coração. É o Tristan.
O seu sonho de muitos anos.

Quem eu pretendia enganar? Por ele, passaria por cima dos meus
princípios e daria uma chance àquele sentimento. Mesmo que fosse um
homem assustador e não pudesse me fazer promessas.

Ele era um risco que eu estava disposta correr.


Durante as aulas, observei os homens sentados ao meu redor. Eram
sempre pálidos e de belezas aristocráticas. Mas eu sabia a verdade. Por trás
daqueles sorrisos civilizados, havia monstros sanguinários. Mentirosos sem
pudor.

Quantos anos cada um deles tinha? Décadas, séculos?


Observei as calouras sentadas entre eles. Eram atraídas a esta
Universidade como presas. Conversavam e riam inocentemente, sem saber
que estavam entre sanguessugas.

Imoral. Bizarro. Inadmissível.


Saí da terceira aula explodindo em indignação.

Agora que eu sabia o que acontecia ao meu redor, ficava impossível


me sentir à vontade. Não era uma universidade qualquer... Era uma escola de
noivas. Um centro preparatório para mulheres de vampiros. Presas daqueles
homens, na mesa e na cama.

Me sentei no refeitório sozinha, na mesa de sempre.


Beliscava a comida, sem fome alguma. As amigas de Olívia não se
aproximaram, então fiquei solitária.

Olívia era a ponte entre nós. Sem ela aqui, não tínhamos nada em
comum.

Para não parecer uma fracassada solitária, peguei meus fones de


ouvido na bolsa e coloquei uma MPB suave. Aquilo me acalmou. A música
me fazia lembrar do Brasil. Lembrar-me de que eu tinha uma casa e uma vida
normal fora dessa Università assombrada.
Resista, Clara, são apenas dois anos. Pense no seu diploma. Ele
mudará sua vida.

Naquele exato momento, algo extremamente bizarro aconteceu.

Alguém se sentou ao meu lado. Olhei meu visitante de soslaio e abri a


boca, mortificada.
Eros.
– Oi, caloura.

Athos sentou-se ao lado de Eros.

– Ragazza. – Cumprimentou-me casualmente.

Azlam sentou-se à minha frente, do lado oposto da mesa. Bateu uma


continência descolada.

– E aí.

Eu retirei meus fones de ouvido – completamente chocada. O que


caralhos estava acontecendo aqui? O fim dos tempos? Um delírio coletivo?

Todos ao redor nos encaravam, em choque. E não era para menos.

Eu quase podia ler nas suas expressões arregaladas:


Quem é aquela caloura infiltrada entre os di Santorum?

Eles saíram da própria mesa para se sentarem com ela? Como ela
conseguiu tal façanha?

O que ela é? Uma celebridade?


Não. Apenas Clara Mourão, uma estudante de classe e aparência
medianas.

Então, o inimaginável aconteceu.

Tristan entrou no refeitório. Queixo erguido, face tenebrosa. Foi até


nós, sentando-se bem ao lado de Azlam.
– E aí. – Cumprimentou a ninguém em particular. Não olhou nos
meus olhos.

– O que iremos pedir? – Eros inquiriu.

– Deixem que eu escolho. – Athos levantou uma mão, chamando a


garçonete. – Vamos ver qual é o melhor prato de hoje.

Eu encarei a todos na mesa, sem palavras.

– Se não for muito incômodo, alguém pode me dizer o que está


acontecendo aqui?!

– Claro. – Eros pegou o seu celular no bolso, deslizando o dedo pela


tela casualmente. – O Tristan mandou que a gente se sentasse com você a
partir de hoje.

Eu quase me engasguei.
Tristan tinha os braços cruzados, recostado na cadeira. Lançou um
olhar aborrecido para Eros.

Este devolveu o olhar, fazendo-se de inocente.

– O quê? – deu de ombros. – Vocês não estão apaixonados em


segredo um pelo outro, ou sei lá o quê? Não é o seu plano para conquistá-la?
Tristan franziu as sobrancelhas, fuzilando o primo com um olhar
assassino. Não ouse continuar.

Azlam notou a fúria de Tristan. Interveio:

– Não o irrite, Eros. Ou você pode acordar sem um membro amanhã.


Eros fez uma careta.

– Foi mal.

Caralho, aquilo estava mesmo acontecendo? Meu coração batia


furiosamente. Podia senti-lo na garganta.
Ousei questionar diretamente ao Tristan.

– Nós... Vamos nos sentar juntos a partir de hoje?


– Vamos. – Foi sua resposta curta e grossa.

Não perguntei mais.

A garçonete veio até nós. Athos fez o pedido. Pediram para mim
também. Eu contestei, vez que já tinha uma bandeja à minha frente.

Athos ergueu uma mão, me ignorando.

– Você come esta gororoba barata todo dia. Tristan quer que você se
alimente melhor, para sua saúde. Vamos fazer um novo pedido.

A garçonete anotou tudo. Trouxe sucos e os vinhos, que os di


Santorum tomavam todos os dias no almoço.

Quando a garçonete saiu, eu grunhi.

– Eu posso pagar pela minha própria comida.


Tristan ergueu uma sobrancelha, irritado.

– Só estou cuidando da sua saúde.

Era a primeira vez que falava comigo hoje.


– Eu não pedi isso.

– Não pode aceitar uma gentileza? – devolveu feroz. – Irá te matar?

Mas o quê...
Retruquei, igualmente irritada.

– Se está tão furioso por ter que se sentar comigo, pode ir embora.
Não quero que fique se não for da sua vontade.

– Você não me deu muita opção, deu?


– Está livre para ir. Não é o meu prisioneiro.
Ele sorriu com desdém.

– Para quê? Para que você faça as suas malas e vá embora sem nem
me avisar? Como se me conhecer não fosse nada?
Fechei a boca.

Entendi o que estava acontecendo ali. Tristan não estava irritado, e


sim magoado. Usava a fúria para esconder o sentimento.

Sim, eu realmente planejei ir embora sem me despedir. Aquilo o feriu


mais do que pensei. Ele não se esqueceu.
Ademais, dei-lhe um ultimato. Ou ele abria uma fenda em sua vida
para mim, ou eu iria embora. E claramente não era um homem que gostava de
ser colocado contra a parede.

Mesmo assim, aqui estava ele. Furioso e ressentido? Sim, mas ainda
aqui.

Eros abriu o seu refrigerante, suspirando.


– Ah, brigas de casal...

– Não somos um casal. – Nós dois vociferamos ao mesmo tempo.

Os di Santorum trocaram sorrisinhos misteriosos entre si. Eros rolou


os olhos.
– Quem eles querem enganar?

Azlam estalou a língua.

– Se não devorarem um ao outro antes, é só uma questão de tempo.


Tristan desviou o olhar, irritado. Eu voltei a comer, calada. Maldito
constrangimento.
Athos colocou os cotovelos por sobre a mesa, olhando para mim.

– Nossa comida irá demorar um pouco, então vamos conversar, Clara.


Já que meu irmão a quer em nossas vidas, podemos tentar nos conhecer. O
que quer saber sobre nós?
Tristan tinha os braços cruzados e olhava para a parede. Me ignorava
completamente. Suspirei. Nossa quase-relação não estava começando bem.
Havia muita mágoa entre nós.

Então, decidi conversar com seus primos – de forma que aquele


almoço não fosse um completo desastre.

– Por que vocês se chamam de “irmãos”? Não são primos?


– Somos, sim. – Athos confirmou. – Mas famílias da nossa raça se
chamam de irmãos. É um modo de tratamento respeitoso entre os machos de
nossa espécie.

– Entendi. – Enrolei meu macarrão o com garfo, pensando na próxima


pergunta. – E sobre aqueles homens no estacionamento? Vocês disseram que
eles me envenenaram.

– Sim. Os vampiros vivos têm vidas muito curtas, de apenas alguns


anos. Por isso são tão incontroláveis. Querem beber sangue humano o
máximo possível. Eles injetam venenos paralisantes nas vítimas quando as
mordem, para que não consigam lutar. Depois, bebem o sangue até a última
gota. Não sabem parar como nós. Uma vez na corrente sanguínea, esse
veneno causa delírios, febre e dor. Se não for drenado, pode matar a um
humano. Por isso tivemos que drená-lo naquela noite.
– Quem fez?

– Tristan, é claro. Ele não deixou nenhum de nós morder você.


Apenas ele.

Tristan desviou os olhos, carrancudo. Eu clareei a garganta. Que


climão.
– Hum. E vocês, hã, vampiros mortos... – ainda era difícil falar aquilo
– não têm veneno?

– Não. Por isso nós podemos morder nossas mulheres sem matá-las.

“Morder nossas mulheres...” Puta merda.

– Vocês vivem por quantos anos? Séculos?

– Azlam e eu temos 550 anos. Esta criança que nós criamos – apontou
para Eros – tem apenas 120.

– Ei! – Eros rebateu. – Não sou criança. Já sou um vampiro


adolescente.
Escondi um sorrisinho.

– Isso explica muita coisa.

Eros me olhou.

– Ei, ainda não somos íntimos para fazermos piada um sobre o outro.

– Você me deu um copo de sangue. – Ergui as sobrancelhas. – Eu


tinha direito a uma pequena vingança.

Ele estalou a língua, pensando.


– Tem razão.

Baixei os olhos, mordendo o lábio. Tinha que perguntar.

– E o Tristan? Tem quantos anos?


Ele estava ouvindo e eu sabia. Não respondeu.

– Apenas 99. – Esclareceu Athos.

Segurei o espanto e não demonstrei reação. No fundo, gritava. Meu


Deus.

– Por que os vampiros mortos chamam o Tristan de “Sua


Excelência”?

– Ah, isso. Nós somos meio que uma família da nobreza entre os
vampiros vivos. Coisas remanescentes de séculos atrás.
– Ah, e daí vem o “Dom”?

– Exato. Os humanos da Università não entendem por que todos nos


tratam com tamanha deferência. Mas os vampiros daqui sabem muito bem a
razão. Os di Santorum governam a comunidade vampiresca de Roma.

– Vivos e mortos?
– Sim. Resolvemos as questões dos vampiros mortos, e mantemos os
vampiros vivos na linha. Eles obedecem a nós.

– E por quê?

Não seria por bondade no coração.


– Porque os malditos precisam. – Azlam esclareceu, bebendo sua taça
de vinho. – Se quiserem viver, precisam obedecer. Somos muito mais fortes
que eles. Tivemos séculos para aparar as arestas de nossas habilidades. A
cada ano em que vivemos, ficamos mais fortes.

– Então por que deixam esse tipo de... Criatura existir? Vocês
parecem civilizados, mas os vampiros mortos são monstros selvagens. Suas
existências são grotescas.
– Porque não queremos uma guerra. Muitos humanos sairiam mortos.
Já aconteceu séculos atrás, e foi um extermínio em massa. Na guerra, os
vampiros não respeitam nossas leis e matam humanos sem pudor. É nosso
papel como família Nobre manter Roma segura para os humanos.

– E a existência da nossa espécie em segredo. – Emendou Athos.


– Entendi... E vocês podem comer algo além de sangue, pelo que
vejo.

– Sim. Desde que bebamos sangue todos os dias, podemos comer o


que quisermos.

– Dormem em caixões?
Todos riram, menos Tristan.

– Claro que não.

– Alho?
– Mito.

– Estaca?

– A de madeira nos assusta um pouco, não vou mentir.

– Sol?

– Nós, mortos, podemos andar tranquilamente à luz do dia. Os vivos,


não.

– Queimam como churrascos – Eros fez um barulho engraçado de


algo fritando.
Azlam revirou os olhos.

– Só atacam à noite. Por isso criou-se a lenda de que os vampiros não


podem andar na luz do sol. Nós, vampiros civilizados, podemos. Mas a outra
raça desprezível nos ligou a milhares de mitos estúpidos.

Continuamos a comer e conversar. Tristan não participou. Comia e


bebi seu vinho, nos ignorando completamente. Mas eu sabia que ele estava
ouvindo.
Os di Santorum me contaram sobre eles.

Athos e Azlam já foram casados várias vezes. Suas mulheres humanas


morreram há muito tempo. Eles tinham filhos por todo mundo.

Apenas filhos homens, é claro. O sêmen dos vampiros só gerava


proles masculinas.
Contaram também que, quando não se alimentavam de bolsas de
sangue, tomavam direto das veias das mulheres. Era algo de viés quase
sexual para ambos. Causava muito prazer. Quase sempre, terminava em
relações sexuais. Eros fez questão de salientar esse ponto.

O sentimento de prazer gerado pela mordida era, nada menos, que


uma armadilha da raça.

Enquanto os vampiros vivos continham veneno, os mortos soltavam


pelas presas uma substância inebriante. Deixando, assim, as mulheres
relaxadas e felizes. Um sentimento pré-orgasmático. Elas não resistiam à
mordida, e ainda queriam mais.
Nunca os faltava sangue. Eles só bebiam o suficiente – jamais
afetando a saúde da mulher.

Ao final da conversa, Eros perguntou:

– E então, já não nos considera tão monstruosos?


Sim, estava mais calma. Mas ainda não tinha certeza.

Meu problema real não era com os di Santorum. Meu problema era
Tristan. Sempre ele. Eu queria conhecê-lo. Estar em sua cama e em sua vida.
No entanto, como faria isso se grande parte do meu coração tremia de
medo em sua presença? E não só porque ele era naturalmente assustador, e
sim porque era um monstro sugador de sangue.

– Eu estou quase convencida. Mas para realmente sentir confiança em


vocês, eu preciso ver.

– Como assim?
– Quero vê-los bebendo sangue de forma civilizada. Ver como
funciona. No meu imaginário, parece selvagem. Coisa de filme de terror.
Preciso ver com meus próprios olhos para atestar que não é bem assim.

Eros se dirigiu a Tristan.

– Vamos levá-la ao Clube, irmão. É a solução perfeita.


Tristan negou na hora, raivoso.

– De jeito nenhum.

– Qual é? Será a melhor solução. Ela verá o nosso pior e poderá tomar
uma decisão.
– Não aceito. Irão confundi-la com uma meretriz de sangue.

– Não se ela estiver conosco.

– Como assim? – inquiri. – Vão me confundir com uma prostituta


nesse tal Clube?
Não que eu julgasse o trabalho dos outros. Não era da minha conta.
Foi Athos quem explicou:

– O Clube noturno é um clube exclusivo para vampiros. Lá, só entram


mulheres dispostas a oferecer seu sangue. Elas vão de bom grado, porque a
mordida gera um imenso sentimento de prazer. Às vezes, rola mais do que a
mordida, não posso negar. Mas é tudo consensual e não envolve troca de
dinheiro.
Dei de ombros.

– Então são mulheres livres, indo atrás de prazer? Qual é o problema?


– século XXI, pelo amor de Deus.

– Pois é. Contudo, muitos vampiros antigos não enxergam assim.


Vários nasceram na época da dominação do patriarcado. Não conseguiram
acompanhar os tempos modernos. Existem vampiros vanguardistas, é claro,
mas outros ainda consideram essas mulheres como meretrizes de sangue.
Fiz uma careta.

– Que machistas do caralho.

Eros riu.

– Tão certinha, mas tão boca suja. – Piscou para mim. – Gostei de
você.

– Eu também gostei de você. – Estreitei meus olhos. – Ou melhor,


quase sempre. Às vezes você me irrita.

– Sei. Mas você daria uma bela companheira de copo. Quando você
se casar com o Tristan e ele te irritar, pode vir me procurar no palacete. Nós
tomaremos uma cerveja juntos.
O quê?!
– Quando eles se casarem...? – Azlam segurou uma risada. – Eles
praticamente se odeiam.

– Esperava o quê, meu irmão? Tristan tem uma personalidade


horrível, e ela não é muito melhor. Isso é só uma preliminar. Daqui há pouco
os dois estarão na cama.
Desviei os olhos, face queimando. Vou te matar, Eros.

Tristan se levantou de supetão. Rosnou:

– Vocês estão pedindo por uma mordida do meu veneno. – Retirou


uma nota de 100 do bolso e a colocou por sobre a mesa. – Vou embora. Este
almoço já deu para mim.
E saiu da mesa, partindo do refeitório com passos furiosos.

Eros suspirou.

– Sempre tão carismático.


Azlam tinha um sorrisinho.

– Perdoe nosso irmão. Seu mau humor é lendário. Ele não gosta de
ultimatos e você está o forçando a socializar.

Fiquei embaraçada.
– Não estou forçando... Foi um acordo.

Eros estalou a língua.

– Meio que está, sim. Ele faria qualquer coisa para você não ir
embora. Até passar por cima do próprio orgulho.
Azlam emendou, retirando uma nota de cem do bolso.

– Exato. Digamos que ele não aceita muito bem quando ferem o
orgulho dele. E por isso hoje está especialmente detestável.

– Então... Por que ele cedeu? Se é tão orgulhoso?

Eros levantou-se. Colocou uma mão sobre meu ombro.

– Mistérios do amor, minha ragazza.

Levantaram-se. Todos os três colocaram notas de 100 sobre a mesa.


Athos se despediu.

– Nos vemos mais tarde. Até.

– Até.
E foram embora. A garçonete veio até a mesa. Recolheu os pratos e
pegou o dinheiro.

– Eu devo alguma coisa? – questionei, apreensiva.

A senhora se sobressaltou.
– Claro que não, querida. Os cavalheiros arcaram com tudo. Fique
tranquila.

– Ah, ok. Obrigada.

Aquilo feriu meu orgulho, mas me deixou aliviada. Quem tinha


dinheiro contado não podia ceder aos luxos do ego.
Voltei para as aulas, pensativa.

Minha vida ganhou uma guinada de 180 graus outra vez. Fui jogada
numa história de terror e aventura. Vampirismo, o quase-envolvimento com
Tristan, a amizade com os reis da Università...

Loucura.
Ao término das aulas, voltei para o alojamento.

Quando cheguei, Olívia ainda estava na cama. Que estranho.

Sentei-me em seu colchão, balançando seus ombros levemente.

– Amiga, acorda. Já são três da tarde... Você está passando mal?

Ela acordou. Tinha os olhos avermelhados e olheiras – como se


houvesse chorado. Me assustei.

– Ai, não. O que aconteceu?

Ela apenas negou com a cabeça. Comprimia os lábios para não chorar.

Segurei suas mãos.


– Pode me contar qualquer coisa.

– Só estou muito cansada...

Cansada? Mas ela dormiu por horas.


Pousei a palma em sua testa, e ela não estava quente.

– Está sentindo alguma dor?

– Não.

Se não era físico, era emocional. Fitei-a com seriedade.

– Olívia, é sério. O que aconteceu?

Ela apenas encarou a parede por um tempo. Insisti. Ela suspirou e


confessou.
– Ontem eu saí com o Enzo. – Olhou-me, quebrada. Sussurrou
baixinho: – Ele me estuprou, Clara.

Ah, meu Deus.


Nós conversamos a tarde inteira. Eu chorei junto com ela, me
sentindo arrasada e violada também.

Como ele ousou machucar a doce e gentil Olívia? Como?

Aquele filho da puta precisava pagar.


Aconteceu no carro dele. Foram ao cinema noite passada, e ele a
convidou para um motel. Ela não aceitou, ele insistiu. Então, ele a violou no
carro mesmo. Deixou-a na frente do alojamento logo depois, cuspindo
ameaças.

Passei horas argumentando, mas Olívia não cedeu.

Ela não queria denunciá-lo. Estava com vergonha demais. O tipo de


vergonha irracional que te corroí por dentro. Você sabe que a culpa não é sua,
mas, ainda assim, quer se esconder do mundo.

No outro dia, não fomos a aula. Vê-lo nos corredores seria uma
tortura emocional para ela.
Ela passou o dia todo na cama. Se recusava a sair, dormindo o dia
inteiro. Comia pouco ou quase nada.

Às 9 horas da noite, recebi uma mensagem.

Se arrume, vamos sair. Clube noturno. Passo aí em uma hora.

Eros.

Respondi na hora.

Não vai dar. Minha colega de quarto não está bem e precisa de mim.
O que houve com ela?, Eros perguntou.

Desculpe, não posso dizer.

Qual é. Posso levá-la ao médico... Ou socar algumas bocas.


Suspirei. Eros não era o inimigo aqui, não sei por que fiquei na
defensiva. Ele poderia ajudar.

Pergunte ao seu amiguinho-vampiro-do-inferno Enzo Castellano.

Ele não respondeu mais.


No outro dia, fomos à aula.

Olívia não falava muito, mas aceitou sair da cama. Já era um começo.

Nas aulas, corredores e refeitório, rolava um burburinho. Parece que a


casa de um aluno foi atacada durante a noite. Ouvindo uma conversa e outra,
descobrimos que se tratava de nada menos que Enzo.
O garoto estava muito machucado – vários ossos quebrados. Seu carro
de luxo foi destruído, pedaços caídos pela rua.

Só que Enzo era um vampiro fortíssimo. Apenas um vampiro mais


forte poderia subjugá-lo.
Aquilo me deixou intrigada o dia inteiro.

À tarde, recebi uma mensagem de um número desconhecido.

Ele teve o que mereceu. Também garanti que fosse expulso da


universidade. Passe minha mensagem a sua amiga.
O quê?!

Adicionei o número. Não havia foto no aplicativo de mensagens.


Liguei. O homem atendeu, voz sombria.

– Alô.
Desliguei na hora, assustada. Era a voz de Tristan.

Ele tinha dado uma surra em Enzo? O expulsado da Università?

Eros deve ter interpretado minha mensagem, confrontado Enzo e


descoberto tudo. É claro que Tristan ficaria sabendo.

Respondi a mensagem. Obrigada por tê-la vingado.

Ele respondeu um tempo depois. Não foi só por ela.

Abaixei o celular, em choque. O que ele queria dizer? Que havia sido
por mim também?
Saber dos acontecimentos animou Olívia. A vida retornou aos seus
olhos.

Ela era uma garota muito intensa. Sofria muito profundamente, e


perdoava rápido. No outro dia, já estava melhor. Falava mais, quis se
arrumar, prestou atenção às aulas...

Ela não quis me dar detalhes de como havia sido. Eu também não
insisti.
Eu sabia que ela demoraria a se recuperar por completo. Isto é, se é
que se recuperasse. Existem coisas que não podem ser esquecidas.

No outro dia, na Università, chegou a hora do almoço.

Olívia e eu entramos no refeitório. Ao entrarmos, meus olhos se


cruzaram com os de Eros. Ele e os irmãos sentavam-se na mesa de sempre.
Ao ver-me, ergueu os dois dedos, me chamando.

Neguei com a cabeça. Ele estreitou os olhos e reiterou o movimento.


Droga. Se eu não fosse até eles, Eros viria me buscar.

Peguei o pulso de Olívia e a puxei comigo.


– Foi mal. Precisamos nos sentar em outra mesa hoje.

Ela arregalou os olhos quando percebeu.

– Está nos levando para a mesa dos di Santorum?! – voz estrangulada.

– Exato. – Grunhi.

– Ficou louca?! Eles irão nos decapitar, devorar nossos órgãos e...

Chegamos à mesa.
Athos olhava o cardápio.

– Finalmente, você demorou.

Azlam emendou:
– Só estávamos a esperando para fazer o pedido.

Tristan ergueu uma sobrancelha. Sempre irritado.

– Se vai se atrasar, avise. Você já tem o meu número.

Trinquei os dentes. Então por que não me coloca uma tornozeleira


eletrônica?

– Anotado, Majestade.

Olívia olhava de mim para eles, confusa e horrorizada.

Puxei-a comigo. Nos sentamos do lado de Athos.

Notando seu olhar atônito, esclareci:


– Não, não é um universo paralelo. Nós meio que... Fizemos amizade.

Acabei ficando de frente para Tristan – o que foi péssimo. Ele me


fuzilava com o olhar. Eu tentava não o encarar de volta.

– O que está rolando aqui? – Olívia se encolhia na mesa.


Foi Eros quem respondeu.

– Fizemos amizade com a Clara na última festa. Agora ela se senta


conosco. À propósito, sou Eros – estendeu uma mão por sobre a mesa para
ela. – O mais bonito da família.

Azlam bufou.
– Iludido.

– Como eu não fiquei sabendo disso? – Olívia seguia chocada.

Eros esclareceu.
– Você estava ocupada demais com o verme do Castellano.
– O quê?! Você sabe sobre o Enzo?

– Claro. Quem acha que deu uma lição no bastardo? – apontou para
Tristan. – Nosso irmão quase o matou. Foi a surra mais bem dada que já
presenciei. Ele só parou porque o forçamos.
Olívia olhou para Tristan, incrédula.

– Você... Você fez isso por mim? Não vai dar problema para você?

– Não. – Tristan devolveu, gélido. Não tinha o dom da sutileza.

– Por quê? – ela estava tímida. Os olhar negro do garoto intimidava. –


Nós nem nos conhecíamos ainda.

– Porque você é importante para a Clara. E a Clara é importante para


mim.

Quase me engasguei. Ergui uma mão para chamar a garçonete – meio


desesperada. Só queria mudar o assunto.
Vê-lo falando meu nome em voz alta foi inebriante.

A senhora veio até nós e fizemos o pedido.

Pedi o prato mais barato do dia. Tristan me lançou um olhar negro e


furioso. Eu não o contestei. Mudei o pedido apenas por hoje, escolhendo uma
carne de primeira. Resolvi dar-lhe um crédito pelo que havia feito por Olívia.
Amanhã brigaríamos por isso.
Conversamos sobre Enzo.

Tristan garantiu que este fosse expulso, mas apenas o Reitor sabia o
motivo. A razão jamais se espalharia.

Tímida, Olívia questionou sobre como ele descobrira. Tristan disse


que tinha os seus meios. Ela não perguntou mais.
Eros não parava de tomar energético.

– Tem certeza sobre isso? – apontei para a lata que tomava. – Você
não precisa ser mais pilhado que já é. Vai enlouquecer seus irmãos.
– Há, há. Só estou tomando porque preciso ficar ligadasso hoje. A
noite vai ser longa.

– Vão para a balada? – Olívia perguntou. Ainda estava se


acostumando a estar ali.

– Vamos, e a Clara irá também. – Piscou para mim.


– Hã? – me choquei.

Continuou para ela:

– Só não te levo também porque acho que sua amiga não irá aprovar.
– Por que não?

– Por nada, toma aqui. – E praticamente enfiei uma lata de


refrigerante na fuça dela.

Claro que eu não queria Olívia no Clube. Uma garota linda cercada
por vampiros sedentos? Não mesmo. Ela já tinha problemas suficientes.

O almoço prosseguiu.

Eu encontraria os di Santorum às 9 da noite, na porta do palacete.


Eros me convenceu.

Convidei Olívia para não causar suspeitas. Obviamente, ela não tinha
clima para festa.
Olívia não engolia muito bem minha amizade-relâmpago com os
garotos. Então, contei a verdade em partes. Meu irmão era amigo do Tristan,
e através dele fiz amizade com os primos. Aconteceu na festa, quando você
estava distraída com o Enzo.

Só omiti o envenenamento, a minha paixão obsessiva de anos e o


lance dos... Bem, monstros sugadores de sangue.
Após a faculdade, me preparei.

Usaria um vestido azul-marinho. Curto, sem decote, mangas três


quartos. Prendi meu cabelo num rabo de cavalo elegante e coloquei brincos
dourados. A maquiagem, discreta, realçando meus olhos.

Às nove, parei na porta do palacete.


Eros apareceu em seu Jaguar amarelo berrante. Bem a cara dele. Os
outros tinham ido na frente.

O clube ficava num bairro afastado. Um galpão discreto por fora. Lá


de dentro, podia ouvir as batidas pulsantes. Uma fila de mulheres lotava a
porta; todas lindas e bem vestidas. Os vampiros não enfrentavam a fila,
entrando por uma passagem separada.

Os di Santorum nos esperavam na porta.

Recostavam-se no carro preto de Tristan. Azlam fumava, Athos via


algo no celular, e Tristan se mantinha recostado no carro. Braços cruzados,
traços sombrios.

Eros estacionou na porta e fomos andando até lá.

– Veja a cara do Tristan – Eros riu, caminhando. – Todo mal


humorado porque você ainda não chegou.
– Pensei que essa fosse a expressão dele de sempre.

– Não, ele sabe ser legal quando quer. Nem sempre é um cretino.
Fiz uma careta.

– Acho que o problema é comigo, então.

– Claro que é. Ele detesta admitir que está nas suas mãos.

Chegamos até eles. Athos me elogiou.

– Está linda, ragazza.


Azlam me olhou de relance.

– Bem gata.

Tristan apenas ergueu uma sobrancelha.


– Vamos entrar.

Entramos pela porta exclusiva para vampiros. “Vossas Excelências”,


os seguranças abriram caminho para eles, baixando as cabeças em deferência.

Avançamos ao interior do clube. Um ambiente enorme, escuro e


pulsante. Tomado por luzes de neon, raps, hip hops e músicas eletrônicas do
momento.
Alguns casais dançavam na pista. A maioria conversava em grupos,
de pé perto das mesas ou nos sofás dos cantos. Mulheres sentavam-se nos
colos dos vampiros, rindo e bebendo.

Recebi olhares de cobiça. Contudo, todos foram desviados


rapidamente – ao notarem os di Santorum ao meu lado. Esta é território
proibido.

Nos sofás, na pista ou nas mesas, acontecia.


Vampiros mordiam os pescoços das mulheres. Estas, dançavam com
eles, olhos fechados e expressões de prazer. Como se estivessem
experimentando orgasmos.

Era algo quase sexual. Eu fiquei constrangida observando, porém


ninguém mais parecia se importar. Era normal.
Pegamos uma mesa no canto. Eros trocava olhares com uma loura;
minutos depois, pediu licença e foi até ela. Os dois trocaram alguns sussurros
ao pé do ouvido e sumiram por uma porta. Athos me contou que havia salas
privativas na parte de cima.

Azlam comunicou.

– Vou pegar bebidas. Alguém vem comigo?


– Eu. – Tristan olhou para Athos. – Preciso me alimentar. Não a deixe
só.

– Considere feito.

Eu observei Tristan se afastar, apreensiva. Athos notou minha tensão.


– Relaxe, Clara, Tristan só precisa beber um pouco de sangue. Esse
mau humor todo é fome. Ele não se alimenta desde ontem.

– Certo...

– Não vai rolar nada além.


Soltei um sorriso triste.

– Você não pode garantir.

– Eu o conheço, ele é monogâmico. Não faria nada com outra mulher


com você aqui.
Suspirei.

– Mas ele é lindo para cacete. As outras é quem são o perigo. – Além
do mais, não tínhamos nada sério. Só estávamos... Nos conhecendo.

De um jeito muito raivoso e peculiar.

Azlam e Tristan sumiram entre os corpos dançantes. Não parei de


olhar para o local de onde sumiram.

Athos estreitou os olhos.

– O que está realmente rolando entre vocês?

Fiquei embaraçada.

– Sinceramente, eu não sei... – fui honesta. Athos era gentil e


confiável, e me deixava confortável para confessar. – Eu gosto dele, quero
ficar com ele. Sinto que ele me corresponde, mas está hesitante. Diz que não
é bom para mim. Ele me observa, mas não quer se aproximar.

– Vocês estão... Apaixonados? Ou algo assim?


Sim, eu estava apaixonada por Tristan há muitos anos. Um amor que
nasceu na inocência do meu coração de adolescente, e criou raízes dentro de
mim.

Antes, eu o admirava de longe como uma criança. Hoje, eu o queria


como uma mulher.

Um desejo antigo. Um amor mal resolvido. Eu precisava viver aquilo


para me realizar e ser feliz. Qualquer outro amor seria um mero paliativo.
E, por algum motivo insano, aquele homem extraordinário também
sentia algo por mim.

Eu não era a melhor. Nem a mais rica, nem a mais linda. Contudo, a
química e a paixão não se submetem à lógica. O coração quer o que ele quer.

– Sim, eu estou. – Confessei. – Mas não sei o que ele sente.


– Bom... Pode não parecer, mas Tristan está tentando. Ele apenas não
sabe expressar. Você está aqui, conosco. Ele escancarou as portas da vida
dele para você entrar. Nenhuma mulher jamais penetrou entre nós como você.

– Mas eu o sinto tão distante...


– Meu irmão não é bom com as palavras. Mas não significa que ele
não sente. Quando você está distraída, ele te olha com uma admiração feroz.
Eu já reparei... Só você não vê.

Olhei para Athos com gratidão. Eu precisava daquelas palavras para


acalmar a tormenta em meu coração.

– E o que será que isso significa, Athos? Fala a verdade para mim.
Ele sorriu paternalmente, pousando uma mão sobre a minha.

– Eu acho que você será o primeiro casamento do meu irmão, minha


querida. Será a nossa futura nora. Vocês só precisam encontrar uma forma de
se entender.

Uma garçonete veio até nós, morena e bonita. Depositou dois copos
de uísque por sobre a mesa.

– Dom Athos – sorriu. – Aqui estão uns drinques por conta da casa.
Que bom que veio nos visitar hoje.

– Carina, minha cara. Como vai?

– Vou bem, Excelência. Já faz um tempo.


– Sim.

A bela garçonete olhou de mim para ele, tímida.

– É sua acompanhante nesta noite?


– Não, Clara é apenas uma boa amiga.

– Então... – mordeu o lábio. – Posso me sentar?

Athos ergueu uma sobrancelha. Olhou para mim:

– Você se incomoda?

– Não! Por favor... – e apontei para a cadeira vazia.


A morena abriu um sorriso extasiante. Para o meu choque, não se
sentou na cadeira. Sentou-se no colo de Athos. Acariciou seus cabelos
apaixonadamente. Um bichinho domado.

– Senti saudade, Milorde.

Athos sentava-se ali, musculoso e imponente. Como se de fato


pertencesse à realeza.
– Hum, será? Me traiu nestes últimos meses?

– De forma nenhuma. Minhas veias pertencem ao senhor.

– Ótimo. – E afastou seu cabelo do pescoço. – Me permite?


– Seria uma honra. – Ela quase se derreteu.

Eu fiquei mortificada. Iria acontecer? Aqui e agora?

Athos se virou para mim.


– Observe e aprenda, Clara. Verá que não é nada aterrorizante. –
Olhou para Carina. – Está com medo, minha cara?

– É claro que não, meu senhor. Sempre foi um cavalheiro comigo. – E


inclinou o pescoço para ele.

Athos fitou a jugular da moça. Arreganhou os lábios e seus caninos se


alongaram. Beijou a pele da mulher com carinho, e seus dentes roçaram no
seu pescoço. Carina gemeu, segurando os cabelos longos do vampiro.

“Por favor...”, implorava.

Athos a mordeu. Ela arfou, se deliciando, olhos fechados. Seus


caninos penetraram em sua carne e ele foi bebendo o sangue. Uma gota
vermelha escorreu por seus lábios e eu tremi.

Que. Bizarro.

Após algum tempo, parou. Desentranhou os dentes do pescoço dela e


lambeu o lábio inferior.
Carina abriu as pálpebras, desapontada.

– Mas já? O senhor bebeu tão pouco... Não está com fome?

– Foi o suficiente. Não quero te machucar.


– Não irá.

Sorriu compassivo.

– Já chega.
Ela acariciou seus cabelos, sedutora.

– Então me leve para a sua cama.

– Hoje não, minha cara. Estou de babá.


Carina me lançou um olhar suplicante.

– Ela pode ser cuidada por outros de seus irmãos.

Eu me levantei. Sabia quando estava empatando uma foda.


– Vou procurar pelo Tristan.

Athos se preocupou.
– Acho que não é uma boa ideia.

– É, sim. Vou seguir seu conselho e tentar dialogar com ele.

– Hum... Certo. Mas se algum vampiro te abordar, diga o meu nome.


Então ninguém te fará mal.

– Ok. Nos vemos mais tarde. Não vão embora sem mim.

Ele bufou.

– Jamais. Tristan me mataria.

Me despendi e entrei no meio da pista. Eu não queria procurar por


Tristan, apenas conceder privacidade a Athos. Ele e a morena claramente
queriam transar. Athos não tinha a obrigação de me vigiar.

Andei por entre os casais se pegando e os corpos dançantes. Ninguém


me incomodou. Eu era uma mulher bonita no meio de outras várias, tão
bonitas quanto eu. Nenhuma novidade.
Procurei pelo banheiro feminino.

Avancei por corredores serpenteantes. Das portas fechadas, ouvia-se


barulhos de risadas, conversas e gemidos. As salas privativas. Só Deus sabia
o que acontecia lá dentro.

Bom, correntes de orações não seriam...


Perguntei a uma garçonete passante sobre os banheiros. Ela me deu a
direção. Agradeci e fui embora.

Virei uma esquina, num corredor escuro – e brequei.

Meu queixo caiu.


Lá estava Tristan. Recostado numa parede, com uma mulher se
apoiando em seu corpo. Ele segurava os longos cabelos castanhos dela e
bebia de seu pescoço.

A mulher parecia excitada. Suas mãos acariciavam o abdômen


musculoso do garoto. Desciam pelos músculos de seus braços e por suas
coxas. Ela buscava alcançar sua calça jeans, na altura de seu membro.
Contudo, parecia sem coragem de tocá-lo.
Naquele exato momento, a mulher captou a mão livre de Tristan.
Entrelaçou os dedos nos seus e guiou a mão do garoto até sua bunda. Ela
queria ser tocada por ele.

Antes que acontecesse, eu arfei.

– Não ouse, sua vaca.


Tristan a soltou na mesma hora. Desentranhou seus caninos do
pescoço dela e afastou-a.

Olhou para mim, sombrio.

– O que faz aqui? Está sozinha?


– Vim procurar um banheiro.

Rosnou, furioso:

– Não é por aqui.


A mulher me olhou com desdém.

– Dom Tristan já está acompanhado. Nos dê privacidade. – E voltou a


colocar a mão sobre o abdômen do garoto, possessiva.

Olhei para a cena. As mãos dela na parte de baixo do abdômen, quase


encontrando a calça jeans...
Fúria me tomou.

– Desça mais essa mão e eu te mato.

A mulher arqueou as sobrancelhas. Olhou de mim para Tristan,


confusa e raivosa.

– Ela é a sua namorada?

Ele trincou o maxilar.

– Algo como isso.

Me choquei. Ele nunca havia dito algo semelhante.

Tristan dispensou a mulher:


– Pode ir, Paola. Tenho assuntos pendentes a resolver com minha
convidada.

– Mas, Dom...

– Obrigado pelo seu tempo. Adeus.


A mulher foi embora, o ego ferido. Antes de partir, lançou-me um
olhar venenoso. Vagabunda ladra de homens, murmurou sem som.

Um amor de garota.

Ficamos sozinhos. Tristan limpou o sangue do canto dos lábios.


– Por que fez isso? Eu preciso me alimentar. Não faço fotossíntese
para viver, caso não tenha percebido. Sou um monstro bebedor de sangue.

Estendi o pulso.

– Então se alimente de mim. – Não o queria com a boca no pescoço


de outra mulher. Um ciúme estúpido e incontrolável.
Horror tomou sua expressão.

– Ficou louca?

– Por que não? Pretende me machucar?

– É evidente que não.

– Eu vi Athos se alimentando e não pareceu tão... Selvagem. Quero


que faça em mim da forma civilizada para eu saber como é. E apagar a
lembrança horrível do estacionamento.

Ele negou com a cabeça, contrariado.

– Não entendo por que precisa disso.

Fui honesta:
– Para saber quem é você de verdade. O que eu posso aceitar do seu
modo de vida, ou não. – Engoli em seco, constrangida. – Só assim irei saber
se existe uma chance para nós dois.

Sua expressão mudou. Um relance de interesse e esperança reluziu em


seus traços. Ele desviou os olhos, considerando. Depois, grunhiu:

– Venha comigo.

Segui-o para uma sala privativa. Um ambiente quadrado e pequeno,


com sofás de couro pretos e mesa de centro.

Ele se sentou num dos sofás. Deu um tapinha no espaço ao seu lado,
me chamando.

Sentei-me ao seu lado, bem perto. Mãos tremendo, coração acelerado.


Estar perto de Tristan era emocionante, e seu cheiro profundo me dominava.
Ele se inclinou para mim, pegou minhas pernas e as depositou por
sobre as suas. Ficamos colados. Fiquei mortificada com aquela intimidade.

Seus caninos cresceram. Ele se aproximou e seus dentes roçaram em


minha jugular. Tremi.
– Está pronta?

– Estou.

– Tem certeza sobre isso?

– Sim. Eu preciso.

– No começo irá doer. Mas, depois, irá gostar.

As pontas afiadas perfuraram minha pele. Senti o choque e me


assustei.
Não obstante, segundos depois, a dor se foi. As mãos dele se
entranharam na raiz dos meus cabelos, puxando-me para perto. Ele sugava
lentamente. A língua, deslizando em minha pele.

O momento se tornou estranhamente... Erótico.

A dor virou prazer. Minhas terminações nervosas despertaram. Minha


fenda ficou molhada e quente, pulsando em antecipação. Gemi.

Ele notou minha mudança.

Tirou a mão do meu cabelo e pousou-a sobre minha cintura. Apertou


a pele ali. A ponta dos dedos longos, tocando a borda do meu seio.

Me movi, sentindo a minha fenda se contrair, querendo algo.


A mordida era... Deliciosa. Causava um sentimento extasiante. Uma
alegria profunda, e um prazer quase orgasmático. Gemi.

Ele retirou os dentes de mim na hora.


– Chega. – Grunhiu. Parecia ter se forçado a parar.

Levantou-se, passando a mão pelos cabelos, arfante.

– Por quê? – eu também arfava. – Eu queria mais.

Tristan se mantinha de costas para mim. Serviu-se com uísque, no


balde de gelo da mesinha.

– Posso não ser capaz de parar. – E bebeu uma golada.

Eu me levantei também.

– Então me satisfaça de outra forma. – Não lhe concedi tempo para


pensar.

Meu vestido se abria num zíper lateral. Capturei-o, abrindo até o fim.
Meu vestido caiu aos meus pés, deixando-me de sutiã e calcinha.
Vermelhos, de renda.

Tristan congelou ao ouvir o barulho do zíper. Ainda de costas, fechou


os punhos. Voz sombria.

– Você não fez isso.

Ah, sim. Eu fiz.

Sonhei com Tristan por oito anos. Oito anos de um amor e tesão
reprimidos, transbordando por meus poros. Invadindo meus sonhos mais
secretos, atrapalhando todos os meus namoros reais.

Naquela noite, eu não queria fazer amor com ele. Eu queria foder.
Avancei. Peguei um cubo de gelo no balde da mesinha. Passei minha
língua nele.

– Vire-se.
Ele tinha os dentes trincados.

– Não. – Vociferou.

– Vire-se.

– Pare de me provocar. Você não tem ideia de com quem está se


metendo.

Eu era uma nerd santinha, sim, e nunca havia vivido uma aventura
sexual selvagem. No fundo, sabia que havia guardado todo o meu lado
obscuro para Tristan. Ele me despertava o pior. Por ele, eu passei por cima do
bom senso e da vergonha.
Naquela noite, eu o faria foder comigo. Custe o que custasse.

– Isso você vai querer ver.

Peguei o cubo de gelo e passei por sobre a calcinha. Entrei com ele ali
dentro. O cubo tocou minha fenda, causando a contradição de sensações
deliciosas. Masturbei-me com ele, deixando-o roçar no meu clítoris.
Tristan fechou mais os punhos.

– Pare com isso.

– Quer o gelo? Vem pegar.


Ele estava parado. Voz tenebrosa.

– Se eu for, vou pegá-lo com a língua.

– Me mostre o que você sabe, Dom Tristan. – Pedi em tom de


escárnio. Eu queria provocá-lo até o limite. Queria ver seu pior lado.
Algo perturbado e profano dentro de mim desejava aquilo há muitos
anos. Sentir o gosto de seu perigo.
Ele se virou, feroz.

Aconteceu de repente. Tristan avançou para mim, empurrando-me


contra a parede. Segurou minhas duas mãos para o alto, rosnando.
– Não brinque comigo, garota. Você não me conhece.

Minha expressão se suavizou. Sentia uma mistura de medo, tesão,


desafio e paixão.

– Mas eu quero conhecer. – Quero isso há tantos anos.

Não era só sexo, era sentimento.

Ele entendeu o que eu queria dizer. Suas íris também se suavizaram,


abandonando a ferocidade.

– Eu posso destruir a sua vida. Sou a porra de um monstro.


– Vamos tentar... – desvencilhei minha mão esquerda. Ele permitiu.
Pousei-a sobre seu rosto. Um toque delicado, suplicante. – Tem alguma coisa
entre nós dois, algum sentimento estranho e profundo. Eu sinto isso desde à
primeira vez em que te vi. Como se fôssemos malditas almas-gêmeas. Isso é
raro, Tristan... Não acontece duas vezes na vida. Vamos nos permitir viver
esse sentimento.

Ele inclinou o rosto para minha mão, fechando as pálpebras.


Esfregou-se ali, como um animal feroz domado.

– Eu não sou bom para você. Você merece mais.


Aquilo me emocionou. Jamais o vira tão vulnerável.

– Vamos apenas nos conhecer, então.

Ele negou com a cabeça. A face, contorcida em perturbação. Me


frustrei:
– Por que está tão hesitante? Eu sei quem você é, e sei que é perigoso.
Mas não vai me machucar.

– Não é isso.
– Então o que é?

Ele apertou as pálpebras, parecendo sofrer.

– Não posso dizer.

Havia algo mais. Algo que Tristan escondia de mim.

Não sou bom para você. Tristan não estava se referindo,


exclusivamente, a ser um vampiro. Tinha outro segredo que nos separava.

– Podemos ir devagar. – Insisti.


Ele abriu os olhos. Riu, sem alegria.

– Você está quase pelada. Isso não é ir devagar.

Ergui uma sobrancelha.


– Eu esperei oito anos para ter sua língua dentro de mim. Não quero
esperar mais.

– Não posso te dar amor. Se quiser sexo, vai ser só isso. Por enquanto.
É o máximo que posso oferecer.

Eu parei e o encarei por alguns segundos. Suas palavras golpearam


violentamente o meu coração. Se quiser sexo, vai ser só isso.
Entretanto, me agarrei ao resquício de esperança. “Por enquanto.”

– Eu posso aceitar. – Por enquanto.

– Tem certeza? Não posso te dar amor, carinho e essas outras merdas
de humanos. Eu sou um mostro e só sei foder.
Endureci a expressão. Decidi-me a ter o que podia dele naquela noite.
Depois, eu pensaria no que fazer.

– Então me dê a foda mais bem dada da minha vida nesta noite.


Suas íris reluziram em tesão. Negras e incendiárias.

– Prometo que nunca irá se esquecer.

Ele se ajoelhou. Colocou uma de minhas pernas por sobre os ombros.


Lambeu a renda de minha calcinha, afastando-a com os dentes. Rosnou ao
ver minha fenda. Molhada, depilada, gelada em razão do cubo.
– Caralho, como eu sonhei com isso... Posso te chupar a noite toda.

– É só o que eu quero.

Ele retirou minha calcinha com a boca. Avançou, capturando os


lábios da minha boceta com os dentes. E, embora houvesse recolhido os
dentes vampirescos, ainda sentia o roçar afiado de seus caninos.
Não me machucou. Pelo contrário, só gerou mais tesão.

Ele me lambeu, chupou e mordeu. A língua desvendando cada parte


da minha fenda com ferocidade. Lambia meu clítoris em movimentos
circulares, fazendo-me gemer. Ao mesmo tempo, a ponta de seus dedos
brincava em minha entrada. Penetrava-me lentamente, me abrindo pouco a
pouco.

Ele retirou os dedos de dentro de mim e os chupou. Olhava para mim,


de joelhos.
– Seu gosto é tão gostoso quanto sua boceta.

Se levantou. Capturou meus pulsos, colocando-os para cima, contra a


parede. Beijou meu pescoço, chupando e lambendo.
Eu me contorcia em prazer.

Sim, já havia tido sexos bons. Mas aquilo... Caralho, aquilo era
sensacional.
Soltou-me, abrindo meu sutiã com destreza. Retirou a peça e encarou
meus seios.

Sempre tive vergonha dos meus peitos. Me desenvolvi muito cedo.


Considerava-os grandes demais, caídos demais. Imperfeitos.

Entretanto, Tristan parecia discordar. Trincou os dentes, tesão


reluzindo na negritude dos olhos.
– Puta que pariu. São lindos.

E capturou meu mamilo esquerdo com a boca. Chupou-o como se


esperasse por aquele momento há anos. Enquanto me chupava, roçava-se em
mim. Eu podia sentir seu membro duro contra meu quadril.

Ainda com a boca em meu mamilo, pousou as duas palmas em minha


bunda, me apertando. Saboreando minhas curvas fartas e latinas.
Libertou meu seio e sussurrou no meu ouvido.

– Valeu à pena esperar tantos anos. Você virou uma mulher deliciosa.

Então, me ergueu pelas nádegas, levantando-me em seu colo. Enrolei


as pernas em seu quadril. Olhamo-nos nos olhos. Eu segurei a raiz de seus
cabelos, me deliciando com a maciez.
Fui brutalmente sincera.

– Você é tudo com o que sonhei.

Ele franziu o cenho, digerindo minhas palavras. Devolveu baixinho:


– Não se apaixone por mim. Eu posso destruir a sua vida.

Engoli em seco.

– Eu decidi correr o risco.

– Porra, Clara. – Fechou os olhos e me soltou. Virou-se, ficando de


costas. Passou a mão pelos cabelos, perturbado.

Eu arfava, cheia de tesão.

– O que foi? Por que parou?

– Você está complicando tudo. Não envolva sentimentos nisso, porra.

– Por que não? Eu sei que você também sente.


Virou-se para mim, furioso.

– Mas eu não posso sentir!

Exalei em frustração. Brigar agora seria em vão.


– Quer saber? Fodam-se as complicações. Vamos esquecer o que eu
disse... Só quero te chupar. – E avancei para ele.

Tristan me surpreendeu. Capturou a raiz dos meus cabelos, puxando


minha cabeça para trás. Dominador.

– O quê...? – minha boca se abriu.


Colou o rosto ao meu, perigoso.

– Você não tem medo do perigo mesmo, garotinha. – E me puxou


para baixo, fazendo-me ficar ajoelhada. – Se quer foder, vai ser nos meus
termos. E me chame de senhor.

Quase gozei com aquela frase.


Nunca fui dominada. Até agora, não sabia que gostava daquilo – e
gostava muito.

– Sim, senhor.
Com uma mão, ele segurava meus cabelos. Um movimento violento e
erótico. Com a outra, abriu o zíper da calça. Pude ver sua cueca preta. O
membro ereto, duro e latejante debaixo do pano.

Ordenou, voz sinistra:

– Coloque o meu pau todo na sua boca. E só pare quando eu mandar.


Assim o fiz. Afastei sua cueca, e seu membro explodiu para fora –
grosso, moreno e imenso. Do jeito que sempre imaginei. As veias arroxeadas
e saltadas, latejando em tesão.

Caralho... Eu queria sentir aquilo tudo dentro de mim.

Minha fenda ficou ainda mais molhava em expectativa.


Primeiro, lambi a ponta. Tristan grunhiu, intensificando seu aperto em
meus cabelos. Depois, capturei o membro dentro da boca, chupando em
movimentos de vai e vem. Ele me guiava, empurrando minha cabeça para
frente e para trás. “Isso mesmo, engole tudo...”

Eu fiz o meu melhor.

Nunca gostei de sexo oral. Marcos queria ser chupado por horas,
sempre egoísta. Aquilo me deixava entediada e frustrada, pois ele nunca me
chupava de volta. E quando o fazia, era algo sem vontade.
Mas Tristan me chupou como um homem faminto recebendo comida
após dias. Como se minha boceta fosse a coisa mais preciosa que já houvesse
colocado na boca.
Agora, eu devolvia o favor, maravilhada.

Seu membro era delicioso. Escorregava em minha língua, entrando


em minha garganta. O gosto, extraordinário.
Tristan sussurrava palavras profanas e sensuais. Putarias que, em
outro contexto, me fariam fugir – e só eram aceitáveis na cama.

Quando ficou satisfeito, me puxou para cima. Ainda segurava a raiz


dos meus cabelos, rosto colado ao meu. Traços furiosos.

– Só o meu pau vai entrar na sua boca a partir de hoje. Ficou claro?
– Sim.

– Sim, o quê?

– Sim, senhor.
– Sua boceta também é minha. Se entregá-la para outro, eu matarei o
maldito e castigarei você.

– Entendi, senhor.

– Muito bem. – Olhos cruéis. – Agora vá até o sofá e fique de quatro


para mim.

Eu obedeci na hora.

Enquanto eu me colocava de quatro, Tristan ia retirando a camisa e a


calça. De soslaio, observei seu corpo. Abdômen trincado, cintura esguia e
braços musculosos. Nenhuma tatuagem maculava sua pele bronzeada. Os
pelos escuros contornavam o membro majestoso.

Perfeito.
Ele avançou para mim. Masturbava o membro ereto, preparando-o.
Ajoelhou-se. Encarou minha entrada aberta, estreitando os olhos.
“Que delícia...”, rosnou. Masturbando-se com uma mão, me chupou
novamente. A língua brincava no buraco da minha entrada, me fazendo
gemer em antecipação.

Depois, Tristan subiu e lambeu meu ânus. Arfei, surpresa. Ele


pretendia...?
Não me deu tempo para contestar.

Eu nunca, jamais havia deixado homem nenhum me penetrar por trás.


Mas Tristan me fazia mudar de ideia. Lambia o contorno do meu ânus em
movimentos circulares, sussurrando putarias. Eu me abria, deixando sua
língua brincar e entrar.

Nunca senti tesão por sexo anal. Agora, a língua do garoto me fazia
repensar.
Quando eu já estava aberta e arfante, ele se levantou. Passou a ponta
do membro no meu ânus e eu gemi.

– Vou comer a sua bunda hoje, e você vai ficar quietinha. Fui claro?

– Sim, senhor.

Lentamente, ele penetrou a cabeça na entrada.

– Ai. – Gemi, sentindo um pouco de dor.

Ele parou na mesma hora. Voz preocupada:


– Você já fez isso antes?

– Não.

– Quer que eu pare?


– Não – neguei na hora. – Com você, estou disposta a tentar.

– Tem certeza? Não quero te machucar.

– Tenho. Quero experimentar.

A verdade era que Tristan me fez ansiar por aquilo. Sua língua me
estimulou. Seria um outro tipo de prazer, e seria com ele. Aquilo me deixava
curiosa e ansiosa.

– Se doer, me avise. Eu interromperei na hora.

– Certo.

Ele retirou o membro. Inclinou-se, abrindo minhas nádegas com as


mãos. Lambeu-me como mais vigor ali atrás, lubrificando-me. Inseriu a ponta
do dedo. Estava excitada demais para sentir dor. Rebolei, me adaptando. Ele
inseriu mais um dedo, lambendo e sugando. Eu me surpreendi – mas
rapidamente me adaptei.

Ele me penetrava com dois, três dedos... Abrindo-me para ele.


Ficou de pé. Ainda mantinha dois dedos no meu ânus. Com a outra
mão, levava o membro à minha fenda. Esfregou-se nos meus lábios externos,
subindo a ponta para meu clítoris. Masturbava-me com a ponta do seu
membro, esfregando-se em mim com movimentos circulares. Ao mesmo
tempo, penetrando os dedos no ânus.

Ai, meu Deus. Aquela combinação...

Me faria gozar.
– Me fode, por favor.

Senti ele sorrir com malícia.

– Minha putinha quer ser fodida?


– Sim, senhor.

Ele tocou a ponta do membro na entrada da boceta.

– Então toma meu pau. – E me penetrou com força.

Seu membro entrou em mim. Cada centímetro delicioso me rasgando,


violento e feroz.

Gememos juntos. Minha boceta se contraiu, sugando-o para dentro.


Doeu, então rebolei para me acostumar ao seu tamanho e grossura.

Nenhum pau que experimentei na vida se comparava ao dele. Imenso,


latejante, me completando por inteira... Era o encaixe perfeito.

Ele me comia com estocadas violentas. Tive que me segurar no


encosto do sofá para não cair.

Tristan pensou estar me machucando, e diminuiu o ritmo das


estocadas. Eu reclamei.
– Não pare. Eu quero com força.

Minha necessidade dele era visceral. Forte, suja e violenta. Tinha que
ser assim. Pelo menos da primeira vez.

Depois de várias estocadas, eu estava completamente aberta. Molhada


e pronta para mais. Ele retirou os dedos do meu ânus e me penetrou com a
ponta do membro. Entrou pouco a pouco, e eu gemi.
Aquilo foi demais para mim.

As palavras obscenas... O sexo sujo e selvagem que nunca tive na


vida... A penetração anal... Tristan me comendo, suado e feroz...

Gemi, sentindo o orgasmo chegar.


Ele me penetrou até o final. Ao mesmo tempo, inseriu um dedo em
minha boceta. Eu gozei loucamente. Minha boceta e ânus se contraindo,
encontrando o prazer nas duas partes.

Quando os espasmos deliciosos terminaram, Tristan saiu de dentro de


mim.
Inseriu o membro em minha boceta, penetrando-me até o final. Eu
ainda me contraía, nos momentos finais do orgasmo. Ele jogou a cabeça para
trás e agarrou minhas nádegas. Senti o jato quente dentro de mim.

Ele gozou intensamente. O líquido vazou, escorrendo pelo buraco de


minha boceta.

Eu arfava, sem acreditar naquilo. Nunca experimentei um orgasmo


tão delicioso... Tão intenso...
Eu tomava pílula anticoncepcional, logo não me preocupei.

Depois de um tempo, Tristan saiu de dentro de mim. Eu me ajoelhei


no sofá, cobrindo os seios. De súbito, envergonhada.

– Vista-se. – Grunhiu, sem me olhar.

Vesti minha roupa rapidamente. Arrumei o cabelo desgrenhado e


coloquei os sapatos. Minha bolsa tinha ficado na mesa do Athos.

Tristan evitava meu olhar. Arrumou a roupa, foi até a porta e a abriu.

– Vamos embora. Meus irmãos devem estar nos procurando.


– Ok. – E passei por ele, abraçando a mim mesma. De repente,
tomada por uma sensação fria na boca do estômago.

Ele estava tão... Distante.

Saímos e avançamos pelo corredor.


Ele caminhava ao meu lado. Olhava para a frente, expressão gélida.
Eu mordi o lábio e tentei uma jogada ousada. Sabia que ele também gostava
de mim. Eu só precisava conseguir me aproximar, derrubar a barreira
emocional entre nós.

Estendi a minha mão e capturei a dele. Entrelacei nossos dedos.


Ele me olhou, sobressaltado. Depois retirou a mão com violência.

– O que foi isso? – ficou irritado.

Recuei, ferida.
– Nada demais... – tentei conter o embaraço. – Andar de mãos dadas
não significa nada.

Ele parou, levando muito à sério.

– Significa que somos um casal. Já avisei para não ter esperança! Não
farei nenhuma dessas merdas.
Disfarcei a ferida com escárnio.

– Nossa, sinto muito, Dom Tristan – ergui as palmas. – Vossa


Excelência é mesmo intocável. Desculpe por subordiná-lo a estupidezes
humanas como romance.

Ele estreitou os olhos.


– Não fique magoada. Eu já havia te avisado.

– Mas o quê... Até onde você vai para me ferir? Eu sei que você
também gosta de mim! – vociferei. – Pare com este teatro! Só machuca a nós
dois!

Ele bufou em desdém.


– Você superestima meu sentimento por você.

– Eu duvido.

– Não pague para ver.

– Não minta para si mesmo.

Ele perdeu a paciência.


Naquele exato momento, uma mulher passava por nós. Tinha o cabelo
louro pintado e uma garrafa de vodca nas mãos. Parecia ter ido ao bar e estar
voltando para uma das cabines privadas.

– Ei, você. – Ele a chamou.

Ela parou e se virou na mesma hora. Arregalou os olhos. “Dom


Tristan?”
– Sou eu mesmo. – Tristan andou até ela, feroz. – Posso beijar a sua
boca?

Ela gaguejou, sobressaltada.

– Seria uma honra, Excelência.

Ele não esperou mais. Imprensou-a contra a parede, lascando-a o


maior beijo na boca. Com língua e tudo.

Meu queixo se escancarou. Não acredito. Ele não fez isso.

Soltou os lábios da mulher e olhou para mim. Olhos cruéis.


– Foi prova o suficiente para você?

Controlei as lágrimas que ameaçavam escapar.

– Vá se ferrar, seu cretino.


– Exato, isso é o que eu sou, um cretino. Agora você entendeu. Então
saia da minha vida antes que se machuque mais.

– Você não decide por mim.


– Saia. Da. Minha. Vida. Porra! – Gritou com fúria. Os olhos
reluziam em maldade, extremamente perigosos.

Eu recuei um passo, chocada. Pela primeira vez, sentindo medo em


sua presença.

Não teve jeito: meus olhos se umedeceram e uma lágrima escapou.


Limpei-a com raiva. Ergui o queixo, tentando manter o que sobrara da
dignidade.
– Já entendi o recado. Eu e você acabou por aqui. Fique tranquilo,
você nunca mais irá me ver.

– Ótimo.

Perdi o ar diante de sua frieza. Aquilo me humilhava.


– Adeus, Dom Tristan. Vá para o inferno.

Riu em desdém.

– Acredite, já estou lá.


Eu virei as costas e fui embora limpando as lágrimas. Aquele vampiro
maldito.

Entrei na pista, avançando entre os corpos de forma furiosa. A mesa


de Athos estava vazia. Minha bolsa, ainda por sobre uma das cadeiras.
Ninguém roubava ninguém por aqui. Vampiros eram ricos demais, e as
mulheres, muito selecionadas. Sabiam que não poderiam voltar se
cometessem deslizes.
Peguei a bolsa e saí da boate. Parei na entrada vazia. Era cedo demais
para ir embora, e tarde demais para chegar.

Peguei o celular e entrei no aplicativo do Uber. Iria embora e nunca,


nunca mais me envolveria com qualquer di Santorum. Me formaria em paz,
pegaria meu maldito diploma e voltaria para o Brasil. Assim que pisasse em
minha casa, esqueceria tudo o que vivi aqui.
Eu tinha levado um fora colossal. Grotesco e rude. Algo que jamais
poderia ser esquecido.

Então, decidi enterrar aquela dor bem fundo no meu coração – e


ignorá-la até que sumisse.

Aquele homem me trazia para sua vida, e depois me empurrava para


fora com violência. Me apresentava à família e me fodia com paixão. Depois,
me expulsava e me afastava.
Todos diziam que ele sentia algo por mim. Menos ele próprio.

Aquilo não era justo comigo. Nenhuma mulher deveria passar por
isso. Cadê a porra do meu amor próprio?

Ouvi passos atrás de mim. Congelei. Seria o Tristan?

Virei-me e dei de cara com duas pessoas. A garota de cabelos


castanhos – de quem Tristan bebeu o sangue mais cedo – e um amigo. Um
vampiro fortão, com cara de gangster.

– É aquela ali. – Ela apontou para mim, venenosa.

Ele colocou as presas para fora.


– Foi essa mulher que te humilhou, amore mio?

– Ela mesma. Me humilhou na frente de um dos Dons. Quero que ela


pague.

Ele avançou para mim, sanguinário.

– Deixe comigo.

Apavorada, me virei para correr. Mas já era tarde demais. O vampiro


me alcançou. Puxou-me pelo ombro e me jogou no chão. Depois, pulou por
cima de mim e cravou os dentes em meu pescoço. Eu gritei – mas a mordida
foi rápida.

Ele não bebeu meu sangue. Pelo contrário, senti que me injetava
algum líquido advindo das presas.
– O quê...?

Descravou os dentes e segurou meu queixo com força. Olhou em


meus olhos, ordenando.

– Esqueça nossos rostos. Isso é uma ordem.


Alguma coisa estalou em meu cérebro. Meus agressores foram
embora, deixando-me caída ali, no chão de concreto, sozinha.

Tentei me levantar e não consegui. Minhas pernas não se mexiam.


Falar também se tornou impossível. Cada comando do meu corpo não me
obedecia mais.

O vampiro havia me... Paralisado. Colocou veneno em minha corrente


sanguínea!
Fiquei ali, estirada no chão. Pavor me dominava. Eu não conseguia
me lembrar do agressor. Sabia que era um homem, mas só. Seu rosto me
escapou da memória.

Começou a chover.
Os pingos me molhavam, e eu não conseguia me mexer. Nem gritar
ou pedir ajuda. Fiquei ali por um bom tempo, até que um casal saiu, se
abraçando e rindo.

Ao ver-me estirada no chão, a mulher arfou.


– Meu Deus! Amor, olha isso! Não é a convidada dos di Santorum?

O vampiro que a acompanhava se assustou.

– Caralho... É ela mesma.

– O que aconteceu com ela?!

– Foi atacada... Droga, isso vai dar uma merda muito grande. – Passou
a mão pelos cabelos. Se ajoelhou ao meu lado, notando meus olhos se
movendo em pavor. – Ela está consciente. É veneno paralisante. Fique aqui e
cuide dela, vou lá dentro procurar o Dom Athos.

O vampiro entrou e a garota se ajoelhou ao meu lado. Colocou minha


cabeça sobre suas pernas, afagando o meu cabelo:
– Fique calma, meu namorado já foi chamar ajuda. Você vai ficar
bem.

Quase chorei em alívio. Não acreditava que aquilo tinha mesmo


acontecido comigo.

Não demorou muito. Minutos depois, várias pessoas me cercaram,


cochichando.
“Quem teve a audácia...?”

“Atacar uma protegida dos di Santorum? Loucura. O agressor está


morto.”

Os di Santorum chegaram.
Eros foi o primeiro a me ver. Pousou a mão na nuca, apavorado.

– Ai, não. Porra, Clara.

Athos e Azlam vieram logo atrás. Athos rosnou furioso:

– Quem fez isso?!

– Ninguém sabe, Excelência. – Um vampiro próximo falou. – Ela já


estava assim quando a encontraram.

– Saiam da frente! – Azlam avançou. Me ergueu do chão, aninhando-


me em seu colo. – Fique calma, ragazza. Estamos aqui.

– Alguém chame o Tristan! – Eros ordenou.

Uma voz tenebrosa nos alcançou.


– Não vai ser necessário.

Tristan avançou pela multidão, chegando até nós. Ao ver-me,


arregalou os olhos.

– Não. – Olhou para Azlam. – Quem? – perguntou entredentes.


– Ainda não sabemos. Mas iremos descobrir.

Tristan fechou as pálpebras por um momento, furioso. Depois,


estendeu os braços.

– Entregue-a para mim.


Eu olhei para Azlam, olhos aterrorizados. Torcia para que ele
entendesse minha mensagem. Não me entregue! Não queria ser resgatada
pelo homem que me desprezou e humilhou.

Azlam notou minha hesitação.

– Hã... Acho melhor não, meu irmão. Parece que ela não quer. Vocês
brigaram?

Tristan rosnou.

– Agora, Azlam. Ninguém cuidará dela melhor do que eu, e você sabe
disso.

Azlam olhou para Athos, duvidoso. Athos deu de ombros, dando o


veredicto:

– É a mulher dele e uma situação de emergência. Tristan saberá o que


fazer.
Não, merda.

Azlam suspirou. Estendeu os braços, passando-me para o colo de


Tristan.

– Cuidado com ela.


Tristan o encarou, feroz:

– Eu sei como cuidar da minha mulher.

– Ei, não desconte a raiva na família. – Eros interveio. – Sei que você
está puto, cara, mas a culpa não foi nossa.

Tristan me aninhou em seus braços. Apertou-me protetor e rosnou:

– Vocês a deixaram sozinha. Eu mandei que cuidassem dela só por


uma noite. Eu precisava me alimentar só por uma noite. Mas vocês
preferiram foder estranhas a observá-la.

– Irmão...
– Não falem comigo. – Vociferou. – Olhem o estado dela agora. A
merda já aconteceu! Se fossem a mulher de vocês, eu jamais abandonaria!
Façam algo útil e peguem o meu carro. Vou tirá-la daqui.

Eros abaixou a cabeça, triste. Azlam coçou a nuca. Athos ergueu o


queixo, melancólico.
– Você tem razão, fomos displicentes. Vou pegar o carro, espere aqui.
– Pegou a chave no bolso do irmão e saiu.

Azlam rosnou para os vampiros ao redor.

– Todos vocês, fora. Nem uma palavra sobre isso.

“Sim, Excelência”, e saíram, deferentes.

Fui levada para o estacionamento. Entramos no carro de Tristan. Ele


foi no banco de trás, segurando-me no colo. Athos foi dirigindo.

Chegamos ao palacete. Entramos discretamente até o segundo andar.


Tristan me levou até o seu quarto, depositando-me por sobre sua
cama. Os irmãos entraram logo atrás. Eu me deitava ali, os olhos voando de
um para outro. Os di Santorum conversavam. Tristan andava pelo quarto de
um lado a outro, mão na nuca, perturbado.

– Quando eu descobrir o nome do bastardo que fez isso com ela, irei
matá-lo. Beberei seu sangue e pendurarei seu corpo na porra da minha
parede.

Os irmãos trocaram olhares preocupados.


Tristan continuava, furioso:

– Quero o nome de todos os machos da espécie que estavam no clube


nesta noite. Acesso à todas as câmeras.

– Deixe isso comigo. – Garantiu Azlam. – Iremos pegar o maldito.


Athos considerou:

– É um vampiro vivo. Veneno paralisante não é coisa da nossa casta.


Mas como um vivo entrou na boate?
– Ou não. – Eros discordou. – Pode ser um de nossa casta com
habilidades especiais.

Eros já me contara que essas coisas eram raras, mas aconteciam.


Vampiros mortos com poderes diferentes.

Tristan deu as ordens.


– Azlam, vá até a boate. Faça perguntas e colete as filmagens das
câmeras.

– Quem fez isso as desligou, irmão. Não seria estúpido para comprar
uma briga conosco... Seria uma sentença de morte.

– Mesmo assim, eu quero tentar.


– Certo.

– Eros, vá até o alojamento e acorde a governanta. Não sabemos por


quanto tempo a Clara ficará paralisada. Mande-a contratar uma enfermeira
com urgência.

– É para já. – E saiu correndo. Azlam foi atrás.


Tristan se sentou na cama e massageou as pálpebras. Parecia exausto.

Athos se sentou ao seu lado. Repousou uma mão sobre seu ombro.

– Calma, meu irmão. Nós vamos tirá-la dessa.


– O veneno pode durar semanas, Athos... Se for o que estou pensando
que é, ela pode ficar assim por semanas. Ela não irá aguentar. É uma tortura.
Ai, meu Deus. Comecei a arfar em terror. Semanas paralisada?!

Athos me olhou.

– Porra, ela conseguiu ouvir.

Tristan se virou para mim, preocupado. Olhou para o irmão, sombrio.

– Deixe-nos à sós. Preciso ter uma conversa particular com ela.


Athos franziu o cenho.

– Ok, mas controle seu gênio. A Clara não precisa sofrer mais.

– Eu jamais a perturbaria, cara. Ficou louco?


Athos ergueu uma sobrancelha. Tristan bufou:

– Não nestas condições.

– Certo. Eu volto mais tarde.


Athos saiu do quarto, fechando a porta. Tristan se sentou ao meu lado
na cama. Traços sérios e arrasados.

– Não quero mentir para você. Eu conheço esse veneno que corre em
suas veias muito bem. Pode durar semanas...

Emiti um som com a garganta. O máximo que consegui.


Ele entendeu. Foi uma pergunta.

– Quantas semanas? Não sei... Quatro ou cinco.

Meu Deus! Um mês sem me mexer!


Suspirou.

– Eu disse que não era bom para você... Minha espécie fodeu a sua
vida. Não se preocupe. Eu te subordinei à minha espécie maldita, então eu
vou te tirar dessa. Independente da nossa relação. Vou cuidar de você até se
recuperar. Depois, sairei da sua vida, e você nunca mais terá que ver um de
nós outra vez.

Aquilo só quebrou mais um pedaço do meu coração. Desviei os olhos.


Não aguentava olhar para ele nem mais um segundo.
– Você quer ficar sozinha?

Grunhi. Ele entendeu como um “sim.”

– Ok. Vou sair, mas primeiro te deixarei confortável. – Ele ficou de


pé. Tirou meus sapatos, e abriu o zíper do meu vestido, afrouxando-o um
pouco. Tirou meus brincos e anéis. Me ergueu um pouco, abrindo o fecho do
meu sutiã.
Depois, me cobriu com carinho. Nem parecia o mesmo homem
perverso de antes.

Pegou meu celular na bolsa. Desbloqueou a tela com meu dedo.

– Vou mandar uma mensagem para a Olívia. Avisarei que passará a


noite comigo.

Arregalei os olhos. Ele me olhou:

– O quê? Quer que ela coloque a polícia atrás de você? É melhor que
sua amiga acredite que estamos dormindo juntos a surtar com sua ausência.
Como pretende explicar sua paralisia vampírica para as autoridades?

Ligou a TV num filme de romance. Colocou o controle por sobre a


cama. Mãos nos bolsos, traços constrangidos.
– Agora, preciso ir. Vou contratar uma enfermeira ainda nesta
madrugada. Veja o filme e depois durma um pouco. Eu e meus irmãos
ficaremos acordados. Quando acordar, teremos um plano.

Quando ele se foi, me senti solitária. A situação me aterrorizava.


Paralisada, envenenada, dependente dos cuidados de quatro vampiros... E de
brinde, ainda perderia meu semestre.
Meu. Deus.

Assisti ao filme. Lágrimas caíam por minha bochecha. Incrédulas e


arrasadas.

Em algum momento do filme, adormeci chorando.


Acordei no meio da madrugada, com alguém mexendo em mim.
Tristan e uma mulher desconhecida, de avental branco, paravam ao lado da
cama. Ela colocava alguma agulha em minha veia.

Tristan notou meu despertar.

– Não fique com medo. Esta é a Felipa, sua enfermeira. Ela te


colocará no soro para que não desidrate.
Felipa colocou um pouco de água na minha boca. Depois, trouxeram
uma sopa. Felipa me deu as colheradas na boca. Tristan ficou sentado bem ao
lado, observando tudo. Não me deixando por nem um minuto.

Em seguida, ele e Felipa me ergueram e me colocaram sobre uma


cadeira de rodas adaptada.

Tristan saiu, concedendo-me privacidade.


Fiz minhas necessidades. Depois, Felipa tirou minha roupa e me deu
um banho quente. Eu não estava com meus pertences, logo Felipa me vestiu
com roupas de Tristan. Uma calça cinza de moletom e uma camisa preta.

Colocou-me na cama e me cobriu.


Eu dormi assim: na cama de Tristan, vestida com as roupas dele. Seu
cheiro inebriava minha pele – deixando-me encantada e arrasada ao mesmo
tempo.

Saia da minha vida.


Sabia que ele só cuidava de mim porque se sentia culpado. E, assim
que esse suplício acabasse, ele sumiria e me abandonaria.

Então só restaria a mim. Sozinha com os destroços da porra do meu


coração.

Na outra manhã, conheci minha outra enfermeira: Donatella. Ela e


Felipa se revezariam em meus cuidados.
Os di Santorum criaram uma rotina.

Fui transferida para um quarto de hóspedes. As enfermeiras me


levavam ao banheiro, alimentavam e davam banho. Os irmãos, me faziam
companhia.
Athos lia para mim. Passava horas sentado ao lado da minha cama,
lendo romances italianos. Desconfiava de que não fossem do seu gênero
preferido. Era uma cortesia.

Azlam jogava. Baralho, xadrez, e até jogos no celular. Fazia as


minhas jogadas e as dele. Xingava e encenava, dramático. Eu me sentia
jogando também.

Se eu pudesse rir, riria. Era engraçado como ele se envolvia nas


próprias maluquices.
Eros assistia filmes comigo. Sempre de ação ou comédia. Me mostrou
seus filmes e séries preferidas, tagarelando o tempo todo, elaborando teorias.
Contava suas histórias com mulheres, viagens e amigos. Contava casos
engraçados que viveu, neste século e no passado.

Eu me sentia numa máquina do tempo viva.

Meus dias passavam assim, surpreendentemente rápidos. Os irmãos


não me deixavam ficar entediada.
Tristan vinha à noite.

Depois de eu jantar e tomar banho, a enfermeira saía. Ele ficava horas


comigo.

Não conversávamos. Ela apenas ligava a TV em minhas séries


favoritas. Não sei como descobriu quais eram... Talvez, perscrutando minhas
redes sociais.
Foi assim nas primeiras duas semanas.

Depois, Tristan criou uma nova rotina para mim.

Ele parou de ir à Università. Pegou todos os meus materiais do


mestrado. Livros, artigos, trabalhos... Sentava-se numa cadeira ao lado da
cama e lia tudo para mim. Uma e outra vez. Explicava a matéria com calma,
me dando tempo para entender. Parecia ter estudado tudo no dia anterior para
me explicar.

Fiquei tocada.

Aquele cuidado... Aquela consideração... Eram atos de um homem


apaixonado.
Ou eu estaria iludida, delirando?

Não sabia dizer. Meu cérebro dizia “não”, mas meu coração
discordava.

Ele nos ama, sim. Nenhum homem indiferente nos trataria com tanto
carinho.
Tristan sabia que perder o semestre me arrasaria. E, embora não
conversasse comigo, concedeu-me o que havia de mais precioso para ele...

Seu tempo e dedicação.

Deixou de estudar seu curso para estudar o meu.


Na quarta semana, as coisas mudaram.

Eu comecei a perder a paciência. Os di Santorum não conseguiram


descobrir meu algoz. Por minha vez, também não conseguia me lembrar. A
memória simplesmente havia sido apagada do meu cérebro.

A paralisia não melhorava.


Meus avós ligavam, impacientes. Fiquei muito tempo sem dar
notícias.

Athos teve que forjar uma carta com minha letra, e enviar ao Brasil
para acalmá-los.
Tristan mandou que mentissem para Olívia. Disseram a ela que eu e
ele havíamos ido para a Grécia numa viagem romântica. Ela se chocou, mas
acreditou. Eu e ele sumimos da Università. Olívia jamais imaginaria a
verdade dos fatos. Eram muito mais loucos que uma viagem-relâmpago.

Era uma quarta-feira, tarde da noite. Cerca de uma hora da manhã.

Tristan e eu víamos um filme, calados. Ele notou que eu olhava para o


teto, sem prestar atenção. Olhos umedecidos por lágrimas.
Aquele dia estava sendo especialmente difícil para mim. Tristeza me
dominou o dia todo.

Ele bufou.

– Chega disso. – Pegou o controle e desligou a televisão. – Já vimos


filmes demais. – Se levantou de rompante. Foi até a cama e pegou-me no
colo.

Fiquei mortificada. Ele nunca me tocava se não fosse absolutamente


necessário.

Levou-me até a cadeira de rodas. Colocou seu casaco sobre meus


ombros, e empurrou a cadeira para fora. Descemos num elevador privativo
até o jardim.

Em razão da hora, não havia mais ninguém lá. Claro que não.
Para todos os efeitos, Tristan e eu estávamos numa viagem romântica
– e não exilados no andar superior.

Ele empurrou minha cadeira até um banco. Sentou-se no banco, ao


meu lado. Ficamos de frente para a fonte de água. Nela, havia uma escultura
central de pedra. Retratava um homem beijando o pescoço de uma mulher
seminua. As alunas do alojamento sempre acreditaram ser uma obra sobre
luxúria e paixão. Inclusive eu.
Agora, meu olhar era outro.

Percebi a verdade. Aquilo retratava um vampiro mordendo uma


humana. A posição dos lábios no pescoço era muito insinuativa e estratégica.
Não era uma obra de amor. Era uma obra que denunciava a existência dos
vampiros bem na cara de todos os humanos.

E ninguém nunca havia percebido.


Tristan notou meu olhar.

– Ah, aquilo? Foi uma encomenda de Azlam a uma mestre


renascentista no século XVIII. – Estreitou os olhos. – Ele tinha um gosto
exagerado na época. Mas eu aprecio a ironia. É um pouco maçante guardar
nossos segredos por tantos séculos.

Ficamos em silêncio por um tempo.


Ele olhou para cima, observando a lua. Acompanhei seu olhar.

Era bom finalmente estar do lado de fora... A brisa suave da noite


fazia cócegas em minhas bochechas. Fazia-me lembrar que existia vida e
beleza além dessa paralisia. Além desses dias horríveis.

– Tenho algo para te contar. – Tristan anunciou de repente.


Fitei-o de soslaio. Ele se mantinha olhando para o céu. Queixo
trincado, olhos tenebrosos.

– Eu sou adotado.

Me assustei. Ele me contaria sua história? Por quê?

Suspirou.

– Nunca contei isso para ninguém a não ser meus irmãos. Neste
último mês, passei mais tempo com você do que jamais passei com qualquer
outra mulher. Nunca me casei, como meus irmãos. Nunca amei
profundamente. Sempre tive muitos... Problemas pessoais para lidar. E
embora tenha vivido 99 anos, nunca tive tempo para amor e outras merdas.
Continuei o encarando, esperando por mais.

Ele abria uma fenda para mim em sua vida misteriosa. Sem perceber,
me sentia honrada.

– Há um século, um vampiro vivo mordeu uma humana. Entretanto,


havia algo em seu DNA. Algo que a diferenciava das outras humanas. Ela
não morreu depois da mordida. Pelo contrário: se transformou. Foi a única
mulher humana da história a processar o gene do vampirismo. Nunca mais
soubemos de outra. Aconteceu bem aqui... – apontou para frente. – Numa
esquina próxima, nestas mesmas ruas pela qual andamos hoje. Só que num
tempo muito menos civilizado.
Continuou:

“Há 100 anos, essa mulher vampira engravidou. Ela era uma
aberração. Meio humana, meio vampira. Conseguiu gerar um filho por estar
viva, e passou o gene vampírico para ele. O pai era um vampiro morto.
Sienna era o seu nome. Ela tinha relações com todos os tipos de vampiros.
Enganou a todos, se passando por uma mulher humana. Não permitia que
ninguém a mordesse, mas matou muitos homens. Tanto vampiros, quanto
humanos. Sua vida foi um banho de sangue. Então, ela virou um monstro
lendário em Roma. Seu nome permeia as cantigas infantis, e aparece em
lendas por toda a Itália... Sienna era uma vampira viva e só saía à noite. Virou
o mostro sugador de sangue noturno. A versão feminina dos vampiros vivos
de hoje. Diziam que ela era tão sanguinária porque procurava pelo vampiro
que a transformou. Foi matando a todos no caminho até o encontrar e se
vingar.”

Ficou calado por um tempo. Sobrancelhas franzidas, olhos perdidos.


Parecia reviver lembranças.
Depois, sussurrou:

– Acontece que esse filho sou eu. Sienna me gerou, mas não cuidou
de mim. Era uma vampira sanguinária sem qualquer instinto maternal.
Abandonou-me com meu pai. Ele também não me quis. Eu era uma
aberração, filho de um vampiro morto com uma vampira viva. Nem um, nem
outro. Não pertencia a nenhuma das castas. Vivi pulando por lares adotivos e
orfanatos. Era expulso assim que descobriam minha sede por sangue. Quando
fiz dezessete, Athos ficou sabendo de mim. Uma criança que perambulava
pelas ruas de Roma, perigosa e com sede de sangue. Descontrolada. Ele me
adotou, levou-me para sua casa, e me ensinou tudo. Cuidou de mim como um
filho. Eu cresci entre os di Santorum e virei um deles. Aos vinte e sete, parei
de mudar, e não envelheci mais. Hoje, os três são meus amigos e irmãos. A
única família que conheci. – Cruzou os braços, reflexivo. – Sienna morreu há
muitos anos. Nunca conheci o vampiro que foi meu pai.

Prosseguiu. O tom, de confissão:


“Sou uma aberração. Um vampiro vivo que existe há mais décadas do
que deveria. Não sou pálido como meus irmãos, e meu coração ainda bate.
Não envelheço, e, assim como um vampiro morto, existo por muitos séculos.
Ao mesmo tempo, tenho veneno em minhas presas e sede de sangue
incontrolável, como a um vivo. Por isso sempre fui excluído e muito
controlado. Athos me aplicava uma rotina rígida. Só assim conseguiam
administrar minha sede por sangue. Se eu sair um pouco da linha... Se beber
uma gota à mais que o necessário... Posso perder o controle. Virar um
monstro sanguinário, que mata sem pudor. Assim como minha maldita mãe.”

Olhou para mim, sério.

– Eu menti para você, Clara. Todas as crueldades que falei foram para
te expulsar da minha vida, porque sou perigoso demais para estar ao seu lado.
Não posso me dar ao luxo de te amar. Qualquer mulher humana que ousar me
acompanhar por muito tempo, corre um sério risco. O sangue em suas veias
me tenta a todo minuto. Eu quero te beijar, mas também quero te matar. Não
confio em mim mesmo para estar com você. Sou um monstro domado, mas
ainda sou um monstro. Por isso sempre mantive uma distância emocional de
qualquer mulher humana que cruzou o meu caminho. Não posso me apegar a
nenhuma delas... Porque elas podem morrer por minhas mãos a qualquer
momento. Basta uma recaída. Basta o instinto falar mais alto, ainda que por
só um segundo. Qualquer deslize meu, e ela terá seu pescoço estraçalhado.
Ficar ao meu lado por muito tempo é uma sentença de morte.

Eu me choquei. Lágrimas vieram aos meus olhos.

Então era isso? Será que Tristan também estava apaixonado por mim?
E só se mantinha longe por que tinha medo de me machucar? Por isso era tão
cruel, e tentava me afastar?
Eu quis me mexer. Quis erguer a mão e tocar seu rosto. Confortá-lo,
dizer que ele também tinha o direito de experienciar o amor. Dizer que,
enquanto eu vivesse, ele nunca estaria sozinho.
Ele notou meu olhar emocionado. A ferocidade findou, e seus traços
se suavizaram.

– Desde que eu te conheci, oito anos atrás, algo em meu coração


mudou. Eu não quero mais ser um homem solitário. Me pergunto se foi por
isso que nunca encontrei uma companheira... Porque, talvez, ela
simplesmente houvesse nascido no tempo errado. Fiquei tantos anos sozinhos
porque estava esperando você nascer.

Aquilo foi demais para mim. Uma lágrima escapou dos meus olhos.
Quis erguer a mão e limpar meu rosto; não queria que o garoto me visse
chorando.

De súbito, Tristan olhou para baixo. Para minhas mãos.

Arregalou os olhos.
– Caralho! Você... Você se mexeu. – Levantou-se, eufórico. – Sua
mão se mexeu, Clara! – Ele abriu um sorriso sincero. Talvez o único que já
presenciei Tristan soltar. – O veneno está saindo do seu sistema!

Ah, meu Deus.

****

A partir daí, tudo melhorou.

Os di Santorum contrataram um fisioterapeuta. Eu tinha sessões todos


os dias. Tristan estava sempre presente. Abandonou todos os compromissos
para me ajudar.

Comecei mexendo as mãos. No outro dia, já mexia a cabeça. No


terceiro dia, conseguia falar e mexer os braços. Comecei a comer sozinha.
Contudo, voltar a andar estava sendo um problema.
Fui levada ao hospital em segredo. Fizeram todos os exames, e não
havia nenhuma lesão em minha coluna.

Então, os di Santorum concluíram que seria, apenas, uma questão de


tempo.
Fiz fisioterapia por duas semanas. Tristan estava sempre lá. Ele me
apoiava com o corpo, erguendo-me da cadeira e segurando-me quando eu
caía. Lado a lado com o fisioterapeuta. Praticamente virou seu assistente.

Pouco a pouco, fui dando os primeiros passos. Em uma semana,


consegui ficar de pé sozinha. Depois, fui reaprendendo a andar.

Os braços de Tristan sempre fielmente ao meu redor – todos os dias.


Não conversávamos muito. Havia muita eletricidade, constrangimento
e sentimentos não confessados entre nós. Mas ele estava sempre lá.

No décimo terceiro dia, o veneno saiu do meu corpo por completo. Já


conseguia andar sozinha.

Liguei para Olívia e meus avós. Acalmei a todos.


Nos cinco dias seguintes, fiquei sob supervisão. A fisioterapia
terminou, mas os di Santorum me fiscalizavam como gaviões. De olho em
cada um dos meus passos.

No décimo oitava dia, um exame de sangue concluiu que não havia


mais nada em meu sistema. Estava ótimo, e era hora de voltar à vida normal.

Ou, melhor, o mais normal possível...


Considerando que eu estudava numa faculdade cheia de vampiros.

Era uma sexta à noite. Seria minha última noite na casa dos di
Santorum. Amanhã, voltaria ao dormitório.
Estávamos reunidos no salão de jogos. Azlam saiu com uma mulher.
Eros e Tristan jogavam sinuca. Athos sentava-se ao meu lado no sofá, lendo
um livro.

No dia anterior, Eros contou que, amanhã, seria o aniversário de


Tristan. Faria 100 anos.
Pois é, normal. Pelo menos entre vampiros.

Eros afirmou que Tristan estava irredutível e não queria comemorar.


Então, tracei planos para ludibriá-lo. Queria provê-lo um dia feliz, sem que
ele soubesse.

Virei-me para Athos.


– É uma sexta à noite. Nós estamos parecendo um bando de velhos.

Ele devolveu, sem me olhar.

– Mas eu sou um velho. Tenho 500 anos.


Revirei os olhos.

– Qual é? Não tem um encontro, uma balada para ir?

– Não.

Estalei a língua. “Você é uma causa perdida mesmo”, e chamei Eros.

– Eros, e você? Estamos trancados nesta casa há quase dois meses.


Vamos nos divertir.

Ele fez uma careta.


– Não sei se você já está boa o suficiente...

Bufei.

– Estou ótima. Posso correr uma maratona.


– Ela tem razão. – Tristan falou de repente.

Todos olhamos para ele, chocados. Ele nunca concordava comigo.

– Como assim, cara? – Eros se chocou. – Você está defendendo a


diversão? Está possuído?

Deu de ombros.

– Foram tempos difíceis para esta família. Estamos trancados em casa


por semanas. Precisamos de uma folga.

Athos ergueu uma sobrancelha.

– Que tal uma viagem? Alguma praia paradisíaca?

Eros se animou.
– Que tal um ménage? Posso convidar algumas amigas. Deus sabe o
quanto preciso de sexo.

Fiz uma careta.

– Nos poupe dos detalhes.


– Tsc, você também precisa. Todo esse mau humor é falta de trepar.

Joguei uma almofada nele.

– Cala a boca. – Corei loucamente.


Ele desviou com destreza, gargalhando.

– Nervosinha. Você e Tristan se merecem mesmo.

– Então está decidido. – Tristan colocou o taco de sinuca por sobre a


mesa.
– O ménage? – Eros se assustou.
– Não, idiota. – Tristan o lançou um olhar negro. – Amanhã, levarei
todos nós para um passeio. Vamos colocar a energia reprimida para fora. –
Deu uma última golada no seu uísque e virou as costas, saindo.

– Ei! E o jogo? – Eros se indignou.


Tristan bufou, sem se virar.

– Eu ia ganhar de qualquer jeito mesmo. Só estou te poupando da


humilhação. – E soltou uma continência descolada, saindo do salão. – Adeus.
Tenho mais o que fazer.

****
Naquela manhã de sábado, voltei para o alojamento.

Olívia me fez centenas de perguntas – e tive que inventar todas as


respostas. Tristan e eu viajamos para a Grécia, sim. Mas o romance ficou
por lá. Não estamos juntos, nem somos namorados.

Era péssimo ter que mentir para ela.


Também fui a uma entrevista com o Reitor da Università.

Ele concordou em anular minhas faltas se eu fizesse uma prova ao


final do mês. Conteria toda a matéria perdida. Eu precisaria fazer 90% dos
pontos para passar. Conseguindo, não teria que repetir o semestre.

O Reitor foi bem categórico:


“Tenha em mente, senhorita Clara, que não abrimos tal exceção para
todos os alunos. Ajudar você foi um pedido especial do Dom Tristan. Ele
contou que você passou por certas... Dificuldades. Precisarei que honre nosso
voto de confiança, e dê tudo de si mesma no futuro. A Università não tolera
desídia nas responsabilidades acadêmicas. Nem de uma protegida dos Dons.”
Quis enfiar a fuça debaixo da mesa. Derreter e morrer por ali mesmo.

Me desculpei mil vezes. Eu era uma nerd por excelência, e levar


uma bronca do Reitor? O fundo do poço para mim.
Naquele ínterim, os di Santorum me proibiram de tocar no assunto
“aniversário.” Era um tema sensível para Tristan. Aparentemente, ele odiava
aniversários.

Hoje, eu sairia com os di Santorum.

Convidei Olívia. Mesmo hesitante, ela aceitou.


Às duas da tarde, nos encontramos na porta do palacete. Fomos juntas
no carro de Eros. Athos e Azlam pegaram carona com Tristan. Ele nos levava
para um passeio surpresa. Só saberíamos quando chegássemos.

O lugar era bem afastado. Fora da cidade.

Estacionamos na porta de um pátio murado. Lá dentro, havia um


bosque. Faríamos um piquenique?
Tristan avançou de carro pelo portão. Fomos atrás. Era um... Pátio de
paintball?!

– Uau! – Eros se animou. – Era exatamente o que estávamos


precisando! Tiro, porrada e bomba!

– Tristan arrasou na escolha. – Me empolguei.


Era o aniversário dele, afinal. E embora eu precisasse fingir que não
sabia, queria que ele tivesse um dia feliz.

Olívia se apavorou.

– Clara, pelo amor de Deus! Eles irão nos massacrar! Eu nunca fiz
educação física só para não quebrar a unha!
Gargalhei.

– Relaxa, Oli. Pegarão leve com a gente.

– Fale por você – Eros bufou. – Estou preso em casa há semanas.


Louco para colocar minhas presas para fora.

– Presas? – Olívia se confundiu.

– É um modo de dizer. – Emendei rapidamente. Porra, Eros.

Descemos dos carros e fomos para a recepção. Os primos estavam


animados. Até Tristan esboçava um sorrisinho. Foi lindo de se ver.

Precisávamos de mais momentos felizes. Os últimos tempos foram


sombrios demais.

Nos vestimos com os equipamentos de proteção. Macacões pretos,


máscaras e capacetes. Cada um ganhou uma pistola de tinta. Ganhamos o
passe-livre e entramos no campo de batalha. Foi reservado só para nós.
Tiramos os times. Saí com Eros e Athos. Azlam, Tristan e Olívia
seriam do time rival.

Um sinal disparou e nós corremos. Nos embrenhamos na floresta. Um


bosque pequeno cerceado por muros. Nele, havia cordas, casinhas feitas de
madeira e muretas de pneus. Tudo para simular um campo de guerra.

Então, a loucura começou.


Ouvi gritos e disparos. Uma música animada tocava ao fundo.

Eu corria pela floresta, gargalhando e fugindo dos tiros. Foi


maravilhoso correr novamente. Sentir o vento nos cabelos e usar minhas
pernas. O coração disparado, a adrenalina nas veias... Era sensacional.

Tristan sabia que eu precisava daquilo depois da paralisia. Correr, rir,


sentir-me viva. Questionei-me se ele havia escolhido o paintball por mim.

Não soube dizer. Suas decisões eram um mistério.

Eu me escondia atrás de uma árvore. De súbito, levei um susto.

Azlam estava escondido num dos galhos próximos. Pulou no chão


com a destreza de um puma. Caiu na minha frente, agachado. Só um vampiro
conseguiria fazer tal salto sem quebrar as pernas.

Abriu um sorriso malicioso. Apontou a pistola para mim.

– Mãos para o alto, ragazza.

– Ai, droga.

Eu seria a primeira a morrer?!


De súbito, alguém correu até nós.

Tristan pulou por sobre o irmão, levando-o ao chão. “Não tão cedo!”,
e arremessou sua pistola ao longe.

Azlam se indignou.
– Ei, cara! Você é do meu time!

Tristan apenas deu de ombros.

– Foi mal, irmão. A minha mulher, não. – E soltou um sorrisinho


sacana. Bateu uma continência e voltou a correr.
Antes de sumir, me lançou um olhar malicioso e incendiário. A minha
mulher, não.

Meu coração disparou. Éramos de times rivais, e ainda assim ele me


protegeu. Seria uma declaração de lealdade?

– Argh! – Azlam se levantou. – Que traidor do caralho! – virou-se


para mim, tom de obviedade. – Tá esperando o quê?! Corra!

Rindo, eu me virei e saí correndo.

– Desculpa aí! – e sumi entre as árvores.

Correndo, dei de cara com Olívia. Ela estava encolhida atrás de uma
parede de pneus, arfante.

– Mãos para o alto! – apontei para ela.

Retirou o capacete.

– Tarde demais, já estou morta. Seus amigos são loucos. – Havia uma
mancha laranjada em seu peito.

Me sentei ao seu lado, retirando o capacete. Também arfava.


– Ok, vou te fazer companhia. Preciso de uma pausa. – Eu era uma
pessoa dos livros, não dos esportes.

Ela estava chocada.

– Aquele Athos pulou do alto de uma árvore e atirou em mim! O que


ele é? A porra de um mutante?!

– Ah – soltei o cabelo – eles são bem atléticos.

Que droga. Estava cada dia mais laborioso sustentar aquela mentira.

Uma hora, Olívia saberia. Todas as calouras se tornariam veteranas


eventualmente, e seriam usadas como provedoras de sangue. Só queria que
não fosse um baque para ela.
Ela continuava a tagarelar:

– O Tristan pulou por cima do Eros, e o Eros o arremessou longe.


Como se o cara não pesasse nada! Foi insano! Eles tomam anabolizantes?
Drogas?

– Sei lá, Oli. Eles são musculosos.

– São aberrações, isso sim. Eu e você parecemos coelhinhos perto


deles. – Suspirou, se afundando no chão. Acrescentou do nada: – E aquele
Azlam é tão gostoso.

Encarei-a.

– Você está a fim dele?

– O quê? Você sabe que não posso ver um tatuado com cara de
malvado que já fico molhada. Eles são meu ponto fraco.

Acotovelei-a.

– Me poupe dos detalhes.


– Qual o problema? Você está transando com um di Santorum. Deixe
outro para mim.

Ergui as palmas.

– Você quem sabe. Mas os di Santorum são apenas para encontros


casuais, ok? Não espere mais nada deles. Só sexo. – Deus me livre de ter
Olívia envolvida romanticamente com um vampiro. Era perigoso demais.
Aquele tipo de insanidade eu só reservava... Bem, para mim.

– Eu sei. – Se desanimou. – Não sou estúpida para esperar mais nada.


Eles são famosos demais na Università, não se prenderiam a ninguém. Ainda
mais à uma caloura qualquer como eu.

Desviei os olhos. Queria confortá-la, dizer que qualquer homem são a


amaria, pois era maravilhosa. E se não amasse, também, foda-se. Nenhum
amor convalidava o outro. Já tínhamos valor por nós mesmas, não
precisávamos ter a aprovação de homens.

Mas o senso de proteção falou mais alto. Fiquei calada.

– Tristan te deu um pé na bunda? – perguntou baixinho.

Suspirei. Teria que mentir outra vez.

– Sim. Somos meros colegas agora.


Bom... Não era uma completa mentira. Após transarmos, Tristan me
mandou sair de sua vida. Desde então, eu não sabia o que éramos um para o
outro. Não namorados, não amigos...

– E você está bem?

– Estou. Ele é lindo, e tal, mas não me apaixonei por ele. – Há, há.
Conta outra, minha filha. – Foi só sexo.
Para ele. Para mim, foi um amor épico. Mas eu era uma adulta e não
poderia me agarrar a ilusões.

Olívia olhou por cima dos meus ombros.

– Que droga! Olha o Azlam bem ali!

Virei-me. Azlam se escondia atrás de um tronco, e ainda não nos vira.


Parecia estar montando uma armadilha para um dos irmãos.

– Corra antes que ele te veja! Vou tentar distrai-lo.

– Ok! – me levantei e saí correndo, na direção oposta.


Entrei dentro de um casebre de madeira. Portas e janelas caídas,
coloridas por manchas de tiros. Me agachei, espiando por uma das janelas.
Pistola bem posicionada na altura do meu peito.

Subitamente, uma voz tenebrosa falou:


– Peguei você.

Pulei de susto, me virando.

Tristan estava atrás de mim, há alguns passos. Pistola apontada para


meu peito.

– Droga. – Rosnei.

Ele tinha os olhos reluzindo em malícia.

– Ajoelhe-se, se não quiser morrer.

– Qual é? Você me protegeu daquela vez.

– Minha piedade acabou. Agora a questão é entre você e eu.


Me ajoelhei. No fundo, me divertia. O clima entre nós estava leve
pela primeira vez. Tom de brincadeira.

– Vamos negociar – sugeri.

Ele ergueu uma sobrancelha.


– O que você tem para me oferecer?

– Um... Agradecimento especial. – Retirei a máscara. Levantei-me,


mãos para cima. – Normalmente, eu retribuiria a sua ajuda no último mês do
meu jeito. Com amor e carinho. Mas sei que você não gosta de sentimento e
“outras merdas humanas”. Então... – peguei o fecho de seu macacão. Abri o
zíper e comecei a me ajoelhar novamente. – Decidi falar a sua língua.

Ele arregalou os olhos.


– Tá de sacanagem?

– Qual o problema? Só estamos nós dois aqui. No palacete seus


irmãos me fiscalizam o tempo todo. Não ficamos sozinhos.
Estreitou os olhos.

– Garota... Você não tem mesmo medo do perigo.

– Eu tenho. – Abri o zíper de sua calça. Acariciei seu membro por


debaixo da cueca. – Mas, por você, vale à pena arriscar.

Sexo nos aproximava. Era a único idioma pelo qual conseguíamos nos
comunicar sem soltar farpas. E eu queria agradecê-lo. Então, fiz o que sabia
fazer de melhor e dei o meu jeito.

Ele abriu um sorrisinho perverso. Olhos reluzindo em maldade.


Colocou a ponta da pistola na minha cabeça, entrando na encenação.

– Se não quiser morrer, me chupa com vontade.

– Sim, senhor. – E abaixei a cueca.


Seu membro escapou, já duro e majestoso. Um pau que causaria
guerras.

Primeiro, lambi a ponta. Tristan trincou os dentes e tirou a máscara


com violência, jogando a cabeça para trás.

Depois, lambi toda a extensão, olhando de baixo para ele. A troca de


olhares o deixou feroz. Com a mão livre, capturou a raiz dos meus cabelos e
me puxou para mais perto. Seu membro entrou mais fundo. Ele guiou minha
cabeça para frente e para trás, sussurrando putarias.
Vê-lo vestido de soldado, com a arma apontada para minha cabeça,
me fez viajar. Imergi numa fantasia obscena. Dessas, que você jamais ousaria
confessar a ninguém.

Ele largou a arma e segurou minha cabeça com as duas mãos. Os


movimentos ficaram violentos. Percebi que Tristan só sabia transar assim –
como um animal.

Ele gozou no fundo da minha garganta. “Porra”, grunhiu. O líquido


quente inundou minha boca. Engoli tudo.
Me levantei. Limpei os cantos dos lábios, expressão safada.

– Espero que tenha gostado. Esse foi o meu agradecimento.

Ele passou a mão pelos cabelos, arfante. Olhos animalescos.

– Eu já disse que acabou? – guardou o membro na cueca. – Encosta


na parede.

– Mas, Tristan, o jogo...

Ele avançou de repente. Segurou meu queixo, bruto.


– Encosta na parede. – Rosnou. – Você é a minha refém. A fantasia
só termina quando eu mandar.

– Sim, senhor. – Engoli em seco.

Ele levava aquilo à sério.


Tristan me guiou até a parede do casebre. Recostei-me ali, a cabeça
presa entre suas duas mãos. Sem saída.

Ele beijou e lambeu meu pescoço, me fazendo gemer. Aquele era o


meu ponto fraco.

Roçava seu quadril ao meu. Podia sentir seu membro se esfregando


contra mim, por debaixo do tecido. Duro outra vez. Mesmo separados pelos
tecidos dos macacões, a sensação de seu membro roçando nas fendas da
minha boceta era eletrizante.
Ele me masturbava. Eu acompanhei os movimentos, aumentando a
fricção. Delicioso.

Tristan abriu o zíper do meu macacão. Desceu a mão, abrindo o zíper


do me jeans. Encontrou a calcinha. Enfiou dois dedos dentro dela, brincando
com meus lábios externos. Encontrou meu clítoris e esfregou dois dedos ali.
Movimentos circulares.
– Ai. – Deixei escapar.

Eu tive dois namorados e fiz bastante sexo. Não obstante, nenhum


deles me causou tais sensações. O mero toque de Tristan me enlouquecia.

Por vinte e três anos, pensei não gostar muito de sexo. Pensei ser um
tanto frígida.
Estava errada. Só não havia encontrado o parceiro certo.

Tristan deslizou os dedos por minha boceta. Encontrou minha entrada,


brincando e me provocando. Sem penetrar.

De súbito, seu beijo em meu pescoço mudou. Senti o roçar afiado de


seus dentes. Fui tomada por excitação. Um prazer que só a mordida de um
vampiro poderia causar.

– Morde.

– Não. – Murmurou. – Só estou te provocando.

– Por favor – implorei.


Ele parou, tentado. Parecia refletir.

– Só por uns segundos... – Reiterei.

– Que merda. Você me tira a razão.


– Por favor... Senhor. – Adicionei de propósito. Só para incitá-lo a
ceder.

Sexo era bom. A mordida, maravilhosa. Os dois juntos seriam uma


combinação fenomenal.
– Você brinca com o perigo. – Rosnou. Os dedos, deslizando em
minha boceta. – E é por isso que eu te acho tão fodidamente gostosa.

Aconteceu simultaneamente. Ele cravou os dentes em minha jugular e


me penetrou com os dedos ao mesmo tempo.

Soltei um gemido. Puta que pariu...


Ele não bebia meu sangue. Apenas mantinha os dentes ali, soltando a
substância prazerosa da mordida. Os dedos, entrando e saindo de mim.

Só durei alguns segundos. Gozei com vontade.

“Tristan!”, a voz de Eros chamou ao longe. “Sei que você está aí!”
Abri os olhos, assustada.

– Merda.

Tristan tirou os dentes e dedos de mim. Deu dois passos para trás, se
afastando – olhos fixados aos meus. Levou os dedos à boca, chupando-os.

– O gosto da sua boceta é viciante para mim.

Fiquei jogada contra a parede, arfante. Observando aquela cena


depravada – e deliciosa.

“Tristan! Apareça! Está com medo?!”, Eros ria.


Aquilo me despertou. Fechei o jeans e o macacão. Arrumei o cabelo
rebelde e peguei minha máscara, jogada no chão. Recoloquei-a. Não queria
que Eros notasse minhas bochechas coradas e lábios inchados. Ele sacaria na
hora.

Tristan também recolocava a máscara.

Aproveitei sua distração.

– Ah, e Tristan? Mais uma coisa. – Peguei minha pistola no chão.

Ele me olhou.
– O quê?

Apontei a arma para ele, atirando bem no meio do seu peito.

Ele arfou, tomado por surpresa.


– Mas o quê... Sua traidora – rosnou, olhando para o tórax. Macacão
sujo de tinta amarela. – Isso não ficará assim. Vou te dar uma surra com meu
pau como castigo.

Soltei um sorrisinho.

– Lamento, senhor. O mundo é dos espertos.


Eros entrou na cabana. Ficou em êxtase ao ver a cena.

– Ah, não! – gargalhou. – Estão de sacanagem! Dom-tenebroso-


Tristan derrotado por uma humana! – ria mais. Foi até mim. Me abraçou e me
ergueu do chão. – Ganhamos, porra! – Me colocou no chão, bagunçando meu
cabelo. – Caramba, Clarinha... Você é pequenininha, mas é feroz!

Saímos da cabana.
Eros me colocou por sobre os ombros, gritando a plenos pulmões.
“Acabou, otários! Vitória do time vermelho! Somos os reis da porra toda!”

Não demorou muito. Os irmãos e Olívia apareceram. Todos tinham


manchas coloridas nos macacões.
Rindo e trocando farpas, fomos nos trocar. Pagamos na recepção e
fomos até o estacionamento.

Entrei no banco da frente do carro de Eros, pensando.


Foi um dia maravilhoso, e o clima estava ótimo. Era o final da tarde.
O sol já havia se posto. Eu sugeriria uma saída para uma boate mais tarde.
Assim, fecharíamos o aniversário de Tristan com chave de ouro.

Seguimos o Audi de Tristan para fora do pátio.

Ao chegarmos na rua, aconteceu. Vários carros pretos nos cercaram.


Um deles parou à frente do Audi, cantando pneus.
Eram uma emboscada!

– Mas o quê...? – Eros arfou. – Estamos sendo roubados?!

Eram cerca de dez carros. Todos pretos, luxuosos e iguais. Uma


gangue.
Tristan saiu do carro, furioso.

Olívia se chocou.

– Ele ficou louco?! Vai tomar tiros! Vamos nos render!

Os assaltantes saíram de seus próprios carros. Eram mais de vinte


homens cercando Tristan. Todos tinham armas apontadas para ele.

Eros rosnou.

– Humanos e seus brinquedos estúpidos. Tristan vai devorá-los vivos.


Meu coração batia contra as costelas, apavorado. Tristan levaria tiros.
Não morreria, óbvio, mas deixaria contusões.

– Vá ajudá-lo, Eros.
– E levar tiros? Não, obrigado. Peles mortas demoram para se curar.
Tristan dará conta.

Olívia se desesperava.
– Vocês estão brincando com a minha cara?! – berrou. – Eles estão
apontando armas para a cara do seu primo!

– Relaxa, ragazza. São só bugigangas humanas.

Naquele momento, Tristan ergueu uma mão. Parecia falar alguma


coisa.
Aconteceu de repente. Um dos homens atirou. A bala pegou no
pescoço do garoto, e ele caiu para trás.

Olívia gritou. Eros ofegou. “O que diabos...?”

Eu me apavorei. “Ai, meu Deus!”


Não era para ele ter caído! Corpos vampíricos eram como armaduras
blindadas. A bala não penetraria na carne!

Eros se assustou.

– Não são balas comuns... São dardos com veneno!

Eros e eu percebemos a situação no mesmo segundo. Não era um


assalto, era um sequestro.

– Eles sabem quem vocês são! – deduzi. Usavam veneno paralisante


para vampiros, afinal.

Azlam e Athos saíram do carro. Tinham os olhos completamente


vermelhos e os dentes arreganhados. Caninos afiados, prontos para a guerra.
No banco de trás, Olívia ofegou.
– Que porra é esta?!

Azlam e Athos partiram para cima dos vampiros vivos. Corriam a


velocidades inumanas. Arremessavam os soldados da linha de frente para
longe. Morderam pescoços e estraçalharam gargantas. Foi um banho de
sangue.
Naquele momento, pareciam o que realmente eram: verdadeiros
monstros.

Olívia tampava a boca com as mãos. Chorava, sem nada entender.

Só que não era a hora de explicar.


Então, o impensável aconteceu.

Alguém atirou um dardo no pescoço de Athos. Ele caiu na hora, olhos


arregalados de susto. Desmaiou segundos depois.

Eros segurou no volante, arreganhando os dentes.


– Como?

Azlam levou um dardo no peito. Manteve-se em pé, embora


bambeasse. O outro o atingiu no pescoço, e outro, na perna. Ele caiu
ajoelhado, tentando resistir.

Não durou muito. Desmaiou.


Eros tentava decidir o que fazer. Se fosse lutar, provavelmente cairia.
E se fugisse conosco, seus irmãos estariam em perigo.

Segurei seu braço e ordenei:

– Vá! Eles precisam de você!


– Dirija para o mais longe possível. Suma e não volte.
– Ok.

Eros saiu do carro e foi lutar. Assim que o fez, eu saltei para o banco
do motorista.
Olívia se apavorou:

– O que você está fazendo?!

– Não dá para explicar. Coloque o cinto. – Grunhi. Pisei no acelerador


e saí cantando pneus.

Através do retrovisor, podia ver Eros lutando.

Segundos depois, ele foi atingido por um dardo e caiu.

Eu me choquei. Que tipo de veneno usaram para abatê-los? Era


impossível! Os di Santorum eram a elite dos vampiros mortos. Nenhuma
espécie de veneno os derrubava. Em 500 anos, jamais perderam nenhuma
luta.
Então o que diabos acontecia aqui?

Pisei no acelerador sem medo, voando pela estrada. Segundos depois,


os carros pretos já estavam atrás de nós.

– Quem são eles? – Olívia olhava para trás, voz estrangulada.


– São vampiros, Olívia. – Mantive o foco na estrada.

– O quê?! – berrou.

– Sim, eles existem. E se não fugirmos, estaremos fodidas. Então não


me atrapalhe. – Passei a quinta marcha e voei pela estrada. O Jaguar de Eros
parecia um avião.
Foi em vão.
Os sequestradores atiraram em nossos pneus e o carro rodou. Batemos
na lateral de uma árvore. Só não nos machucamos porque usávamos cintos. O
airbag estourou na minha cara.

Um minuto depois, a porta do motorista foi aberta com violência.


Alguém me puxou para fora. Um dos vampiros-sequestradores. Dentes
arreganhados e olhos sanguinários.
O mesmo aconteceu com Olívia.

O vampiro me jogou no chão e apontou a arma para mim.

Perdi o ar, apavorada. Ele iria me matar?!


Não deu tempo de pensar em mais nada. Ele atirou na minha
garganta. Senti a agulha rasgando a carne e um líquido sendo injetado. Fiquei
tonta e fraca.

Desmaiei.
Acordei, confusa.
Abri os olhos lentamente e me sentei, massageando o pescoço.

Olhei ao redor. Estava numa espécie de cela subterrânea, uma


masmorra medieval. Ao meu redor, os di Santorum e Olívia. Cada um numa
cela particular.

Todos, menos Tristan.


Aquilo me apavorou. Onde o garoto estava? O que fizeram com ele?

Olívia chorava baixinho em sua cela; cabeça escondida entre as


pernas. Os di Santorum andavam em seus cubículos, impacientes.
Conversavam, especulando e armando planos de fuga.

Aparentemente fui a última acordar do tranquilizante.


Levantei-me. Segurei nas grades e me dirigi a Athos.

– O que aconteceu?
Athos me olhou, sério.

– Fomos sequestrados, Clara. Alguma facção de vampiros vivos


desenvolveu um veneno capaz de nos apagar.
– Isso nunca aconteceu em toda a história! – Azlam rosnou para
ninguém particular. Parecia furioso.

– E onde está o Tristan? – me apavorei.

– Não sabemos. Quando acordamos, ele já não estava aqui.

Segurei o abdômen, arfante. Ai, meu Deus.

– O que fizeram com ele?

Eros recostava-se na parede de sua própria cela. Mãos nos bolsos,


olhar sombrio.
– Nossos palpites não são nada animadores.

– Falem, por favor! Eu preciso saber.

– Ele é um híbrido, filho de uma vampira viva com um morto. Devem


estar fazendo experiências com seu corpo, e coletando seu veneno.

Engoli em seco.

– Estão... O machucando?

Os irmãos trocaram olhares sinistros.


– Provavelmente.

Me sentei, perdendo o ar. As pernas fracas. Isso não estava


acontecendo.

Naquele ínterim, Olívia chorava baixinho. Quando eu me acalmei do


aperto profundo no peito, chamei-a.
– Oli, você está bem?

Ela ergueu a cabeça. Tinha os olhos molhados e a expressão traída.

– Você sabia disso o tempo todo? Que nossa faculdade estava cheia
de vampiros?

Me entristeci.

– Sabia. Sinto muito.

– Inacreditável.

– Nós contamos tudo a ela. – Eros esclareceu.

– Eros! – me indignei. – Ela já passou por muita coisa! Não era a hora
de contar!
Ele se enfureceu.

– Tá de sacanagem? Fomos sequestrados, Clara! Estamos presos em


malditas celas! A Olívia merece saber o que está acontecendo aqui.

Foi a primeira vez em que vi Eros furioso. Nossa situação era mesmo
crítica.

Olívia riu sem alegria alguma.

– Que ironia. Um cara que eu mal conheço foi mais sincero comigo
que você.

– Eu só queria te proteger, Olívia. – Fui honesta. – Você acabou de


passar pelo inferno com o Enzo. Eu não podia jogar essa bomba no seu colo.
Você não iria aguentar.
Ela virou o rosto.

– Tanto faz. Agora, estamos todos no mesmo barco. Provavelmente


não iremos sobreviver para eu me ressentir com você.

Suspirei. Que situação de merda.

Recostei-me numa parede, escondendo o rosto nas mãos. Fomos


sequestrados e Olívia estava com raiva de mim. Mas nada disso chegava
perto do desespero que eu sentia por Tristan. Considerar que ele estava sendo
machucado, cortado como um experimento... Deus. Aquilo me matava aos
poucos. A dor rasgava o peito, queimando tudo por dentro. Nunca senti
desespero semelhante.

Talvez, apenas no enterro de minha mãe e irmão.

Athos e Azlam conversavam.


– Você reconhece a arquitetura, irmão?

Athos colocou a mão nas paredes.

– Sim. Parece o Gran Palazzo do centro.


– Mas foi interditado há anos. Ninguém mora nele.

– É o que pensávamos.

O Gran Palazzo – ou grande Palácio – consistia numa mansão


extraordinariamente antiga, no centro de Roma. Há alguns anos, foi aberta
para visitação, mas foi fechada por motivos desconhecidos. Aparentemente,
alguma família fez morada no local. Estávamos em suas masmorras.
– O que acha que nos aplicaram para nos derrubar?

Athos refletia. A mão no queixo.

– Não tenho ideia. Nunca na história conseguiram desenvolver uma


arma contra nós. Devem estar estudando nosso DNA há muito tempo.
– O quê? E como conseguiriam a porra do nosso sangue?

– Não tenho ideia – deu de ombros. – Não temos inimigos reais há


anos. Não estávamos esperando e abaixamos a guarda. Há muitos séculos
ninguém nos ameaçava.
Naquele momento, homens entraram no calabouço. Foram direto para
as celas dos di Santorum.

Azlam ficou descontrolado. Agarrou as grades e as balançou, quase


quebrando as estruturas. Olhos fervendo de ódio – completamente vermelhos.

– Como ousam desafiar nossa família, malditos? Não sabem quem


nós somos? Eu vou rasgar a garganta de cada um de vocês!
Um dos soldados soltou um sorriso sarcástico.

– O comando agora é outro, di Santorum. O tempo do seu reinado


acabou. – E arremessou um dardo em seu pescoço.

Outros soldados também atiraram dardos nos pescoços de Eros e


Athos.
Olívia e eu fomos poupadas.

O dardo não apagou os irmãos – apenas os enfraqueceu. Eles caíram


de joelhos, como se estivessem anestesiados. Os soldados colocaram coleiras
de ferro nos três, como se fosse animais.

Outros deles abriram nossas celas. Pegaram Olívia e eu pelos braços


com violência. Não nos drogaram. Nossos corpos humanos eram frágeis e
não representavam ameaças.
Todos fomos encaminhados para cima, empurrados como animais.
Eles nos levavam para algum lugar na superfície.
Eu não temia por mim. Só esperava poder ver Tristan.

Subimos por escadarias de pedra. Tudo muito antigo e medieval. Na


superfície, chegamos à ala principal do casarão. Tudo era decorado de forma
elegante e arcaica (como se a casa italiana houvesse parado no tempo).
Tapeçarias, quadros, candelabros...

Chegamos a um grande salão. Parecia um local de reuniões.

Havia uma grande mesa de mogno. Vários homens se sentavam ali,


conversando. Curiosamente, a pessoa que ocupava a cabeceira era uma
mulher. Longos cabelos ondulados e escuros; pele morena, rosto escultural.
Era ouvida com deferência, sendo claramente a líder.
Os soldados nos empurravam com violência. Fizeram com que nos
ajoelhássemos no meio do salão.

Ao chegarmos, a conversa parou.

A mulher abriu um sorriso maligno, olhos brilhando. Parecia em


êxtase.
– Ora, ora. Nossos hóspedes estão aqui. – E se levantou. Andou até
nós, mãos atrás das costas.

Usava um vestido cor de vinho elegante, e saltos altos. O batom,


vermelho rubro. Os brincos de diamantes – claramente verdadeiros –
reluziam em suas orelhas.

Exalava sensualidade, parecendo ter por volta de trinta anos. Tão


linda que doía olhar.
Se aproximou de Athos. Colocou uma mão em seu queixo, carinhosa.

– Meu querido... Há quantos anos.


Athos estreitou os olhos.

– Quem caralhos é você?

Ela colocou a mão sobre o peito, fingindo surpresa. Uma atriz


ardilosa.

– Não se lembra de mim? Agora estou ofendida.

– Não brinque comigo – rosnou. – Você não sabe quem eu sou.

– Ah, eu sei sim. – E piscou. – Nós fodemos num beco escuro e você
adorou. Foi cerca de cem anos atrás, então posso entender sua confusão.
Porém, olhe bem para mim... Eu sou uma amante inesquecível. – Fez carinho
em seus cabelos, estalando a língua. – Estou decepcionada com você, Dom.
Achei que seria um reencontro épico de amantes.

– Pegue a sua ironia e enfie no...

Ela ergueu a mão.


– Ora, por favor. Sem baixarias no meu lar. – Alguns de seus trejeitos
eram peculiares. Pareciam provir de outro século.

Passou para Eros e Azlam. Fez carinho nos rostos de cada um deles.
Azlam se desvencilhou com violência, e Eros mostrou as presas.

– Ah, e aqui estão... Meus caros Dom Eros e Dom Azlam. Os


lendários di Santorum. Vocês permeiam meus sonhos há muito tempo,
sabiam? – Inclinou-se para Azlam, passando um dedo sobre seus lábios. –
Uau, que ferocidade. Eu adoraria ter você na minha cama. – Olhou para Eros
ao lado. – Você também seria bem-vindo. Quem sabe os dois ao mesmo
tempo?
Azlam cuspiu.
– Vá se foder. Me solte e mostrarei o que pretendo fazer com você.

Ela gargalhou.

– Ah, Azlam e sua acidez lendária. É maravilhoso ver isso de perto! –


depois, passou para a próxima refém, Olívia. Pendeu a cabeça para um lado.
– Você, eu não conheço. – E então olhou para mim. Sua face se iluminou em
animação. – Ah, que maravilha, minha querida Clara! Finalmente nos
conhecemos. Há muito anseio por vê-la de perto.

O quê?

Ela andou até mim e se inclinou.


– Linda. – Passou os dedos em meu queixo, me admirando. – Posso
entender o que ele viu em você. Tem uma beleza suave... Nada exagerado,
mas reconfortante. É desse tipo de mulher que ele gosta? – desviou os olhos,
refletindo. – Interessante.

Ela se referia a Tristan?

– Onde o Tristan está? – rosnei.


– Ah, querida... Ele é um refém especial. Tem um lugar privilegiado
em meu palácio. – Olhou para os soldados ao redor. Todos trocaram
sorrisinhos misteriosos.

– Chega dessa conversinha estúpida. – Athos cortou. – Vamos ao que


interessa. Quem é você e o que quer conosco?

– Ora, Athos, não me decepcione. Você já deve saber quem eu sou.


– Não faço ideia.

Ela suspirou. Andou até ele, cruzando os braços.

– Sua família conquistou o posto de liderança dos vampiros há muitos


séculos. Ganharam o título pelo dinheiro e pela força. Já nasceram na
nobreza, e todos se acostumaram a obedecê-los. Seus pais eram vampiros
mortos tiranos, e vocês seguiram o legado. Mantêm os vampiros mortos na
rédea curta, e os vivos, quase não tem direitos. Precisam se alimentar longe
de casa. Viver separados para não chamar atenção. Como monstros, foram
marginalizados na calada da noite. Eu vim para mudar esse sistema de castas
estúpido. Os vivos não precisam obedecer aos mortos. Não percebeu o que
está acontecendo, meu querido? Isso é um golpe de Estado. Estamos depondo
sua família do poder.

Ele riu em desdém.


– E quem você pensa que é para fazer isso?

– Uma líder escolhida por eles.

– Já tentaram fazer isso antes, não se iluda. Nós sempre massacramos


vampiros rebeldes.
– Os tempos mudaram. Nós estudamos vocês por décadas.
Decodificamos cada parte de seus DNAs. Desenvolvemos venenos capazes
de fazer o impossível: matar os mortos. Nós inserimos chips nos corpos de
vocês, quando estavam apagados. Não viram os pontos? Ao menor sinal de
rebeldia, nossos cientistas ativarão o chip microscópico em seus corações.
Ele ativará o veneno e vocês morrerão.

Os di Santorum trocaram olhares assombrados.

– Eu sei – ela juntou as mãos, feliz. – A tecnologia humana é


surpreendente, não é? Demorou, mas conseguimos. Agora, não precisaremos
tomar o trono de vocês... A História nos mostra que a força bruta nunca
funcionou contra sua família. Não precisaremos lutar. Vocês entregarão a
liderança para nós, de bom grado. Caso contrário, bum. – Fez um sinal de
explosão com as mãos. – Bombas de veneno no coração. E um mero
microchip trará o fim de uma dinastia. – Estalou a língua, olhando
ironicamente para Athos. – Seria uma pena.

Eros cuspiu.
– Vocês são burros? Vampiros vivos são monstros descontrolados.
Eles só pensam em sangue. Não são civilizados o suficiente para tomar
decisões por nossa espécie inteira. Sem o comando dos di Santorum, irão nos
expor para o mundo humano em questão de meses. Será o fim das duas
castas.

– Não se preocupe, meu caro. Eu os disciplino há décadas. Eles


aprenderam todo o autocontrole comigo.

– Décadas? Você é só uma humana qualquer. Não deve ter mais de


30. Por que esses vampiros te obedecem?
Ela sorriu diabolicamente.

– Não sei. Talvez pelo meu charme?

Quando sorriu, eu arfei. A mulher tinha os caninos afiados. Era uma


vampira!

Athos se chocou.

– Quem é você?

– A única vampira fêmea da história. A primeira, a principal e a lenda.


– Ergueu o queixo, orgulhosa. – Eu ensinei aos meus vampiros vivos a
verdade que vocês escondiam... Nós não somos monstros, Dom. Somos
deuses. Está na hora de ocuparmos nosso verdadeiro lugar na sociedade. Não
como marginais fugitivos da noite, mas como líderes. Dignos de respeito e
obediência. Vocês, mortos, já nos dominam há tempo demais. O comando
agora é outro. Traremos uma nova era para as castas vampíricas, sem suas
regras limitantes. O sangue irá jorrar pela cidade de Roma, e nós estaremos lá
para beber. Chega de controle. Iremos nos satisfazer o quanto quisermos.
Humanos são nossos escravos de sangue, e chegou o momento de
mostrarmos isso a eles. Deuses não precisam se esconder. Eles não irão mais
nos matar, irão nos adorar.

Que vaca megalomaníaca.

Azlam grunhiu.

– Seu golpe de Estado é repleto de falácias. Vocês, vivos, não sabem


como governar. Não tem nossos contatos e nossos segredos de Estado. Irão
falhar epicamente. Não dou nem seis meses. Nossas presas irão estampar os
jornais humanos e seremos capturados como animais. Irão nos tornar
experimentos de laboratórios, e o resto de nós será exterminado. Humanos
não aceitam conviver com raças que os ameaçam. Vai ser um genocídio.

– Nós já pensamos nesse plano há décadas. Temos tudo sob controle.


– Não seja ridícula – Eros contestou. – Sua rebeldia delirante irá nos
matar. O que você sabe sobre governar uma espécie inteira?

– Bom, eu não sei nada. Mas conheço alguém que sabe. Ele está
chegando – colocou uma mão na lateral do ouvido – já ouço seus passos.

Os vampiros da sala olharam para a porta. Suas audições afiadas


captaram algo que eu não conseguia discernir.
Então, a porta do salão se abriu com violência. Um vampiro entrou.

A mulher abriu um sorriso maligno e orgulhoso.

– Aí está ele, o novo governante de todas as castas vampíricas.


Ele entrou no salão. Porte arrogante, queixo erguido. Completamente
à vontade entre nossos captores, como se pertencesse àquele lugar.

Andou até a mulher e beijou sua mão.


– Minha querida mãe.

Não.

Ela acariciou seus cabelos.

– Meu filho.

Os di Santorum arregalaram os olhos, sem acreditar. Eu arfei. Meu


coração, se partindo em cacos. Quase pude ouvir os estilhaços caindo no
chão.

Ele olhou para nós, sorrisinho cruel. Tristan.


– Olá, irmãos. Foram quase cem anos difíceis como o inferno
infiltrado entre vocês. Finalmente a farsa terminou. Agora, posso revelar
quem eu sou de verdade.

****

– O que está acontecendo aqui?! – Eros berrou.

– Só pode ser sacanagem. – Azlam arregalava as pálpebras.

Athos, contudo, não parecia chocado. Apenas muito, muito arrasado.

– Me diga que não é verdade.


Eu lutava para entender. Cem anos infiltrado? A farsa terminou?

Tristan colocou as mãos nos bolsos, despreocupado. Estava em casa.

– Sinto muito, Athos, guerra é guerra. Nós precisávamos usar todas as


armas. Vocês eram inimigos fortes demais. Se quiséssemos os derrubar, não
dava para jogar limpo.

Sua mãe emendou:

– Eu enviei meu filho para morar com vocês. Infiltrar-se, desvendar


seus segredos. Descobrir suas fraquezas. Ele aprendeu tudo. Coletou o sangue
de vocês para mim durante anos. Contou todos os seus segredos de Estado,
descobriu o que podia. Aprendeu a governar. Foi um plano demorado, de cem
anos... Mas deu tudo certo no final. Vocês eram um clã forte demais para
derrubarmos rapidamente. Requereu empenho e estratégia.

Sienna. Agora eu me lembrava de seu nome. A mãe-vampira de


Tristan que permeava suas histórias.

Eros riu com amargura.


– Por isso você nunca gostou de comemorar aniversários... Porque, a
cada ano, ficávamos mais próximos de descobrir sua traição.

Tristan deu de ombros.

– Foi o preço a se pagar.


Eu não podia acreditar. Nem respirar, nem me mover. O cérebro, em
pane. Aquilo não podia ser verdade. Não. Podia.

– Você nos enganou... – Athos tinha os olhos feridos, voz cortante. –


Nos ludibriou durante 100 anos. Eu te alimentei, te dei uma casa, te coloquei
entre os meus. Eu te chamei de irmão.

A frieza de Tristan me mortificava.


– Eu sou um soldado de elite, Athos. Soldados se infiltram. Não tenho
tempo para sentimentalismos. Fui treinado para isso a minha vida inteira. Só
estou cumprindo meu dever.
– Seu dever é o caralho! – Eros gritou. – Seu bastardo traidor!

Deus, aquilo era um pesadelo?

Azlam tinha a voz tenebrosa.

– Você nos enganou desde o começo. Nunca foi um renegado, um


garoto de rua. Nunca passou fome. Quando te resgatamos, pensamos que
fosse um jovem órfão. Tudo enganação.

– Bom... – Tristan ergueu uma sobrancelha. – Eu sou bastante rico,


como podem ver. – Apontou para a sala luxuosa ao redor. – E minha mãe está
bem viva. A história triste foi um mal necessário.
Sienna revirou os olhos.

– Athos sempre teve um coração mole. Não perderia a chance de ser o


mentor de um vampiro híbrido. Sabíamos que era um colecionador. E o que
havia de mais precioso que o meu filho? – colocou a mão sobre um ombro de
Tristan, fitando-o com admiração. – Um vampiro vivo, com as habilidades de
um morto? Ele era uma joia que Athos amaria juntar à sua coleção.

– Sua lealdade nunca foi nossa. – Athos constatou, negando com a


cabeça. De todos os irmãos, parecia o mais destruído. – Foi tudo uma mentira
para você? Nossos laços de família?
Tristan fez uma careta.

– Nós nos divertimos, admito. Nem tudo foi fingimento. Aprendi


muito com vocês. Diria até que sou um pouco... – estreitou os olhos,
sarcástico. – Grato.

Azlam rugiu.
– Seu maldito! Eu vou te matar! – e tentou se levantar.
De súbito, caiu de joelhos, gritando. Ouvimos um barulho de algo se
eletrocutando, seguido por um cheiro de queimado. Aroma de pele
chamuscada.

Ofeguei. As coleiras davam choque!


Azlam trincou os dentes e se levantou outra vez. A coleira, o
eletrocutando. Ele fincava as unhas nas palmas, aguentando a dor. Nenhuma
criatura no mundo aguentaria tal choque. Azlam era mesmo forte como o
inferno.

Passo por passo, se aproximou de Tristan.

– Pare agora mesmo. – Tristan ordenou, furioso.


– Não. – Azlam chegava mais perto.

Tristan tirou um pequeno controle do bolso. Retangular e prateado.

– Você não me dá escolha. – E apertou um botão.


De repente, Eros e Athos caíram no chão. Mãos sobre o peito, olhos
arregalados. Pareciam sentir uma dor paralisante.

Olívia e eu gritamos. Azlam parou e se virou. “Pare!”, berrou.

Tristan tinha a voz gelada.


– A coleira simula a dor de um ataque cardíaco. Você e eu somos
soldados e resistimos à dor, Azlam. Eros e Athos, não. É isso o que quer para
seus irmãos?

Azlam caiu de joelhos na hora, subserviente.

– Tudo bem. Apenas solte essa porra e pare de machucá-los.


Tristan apertou um botão. Eros e Athos pararam de se debater.
Azlam rosnou, olhos abaixados.

– O que você quer de nós?

– Quero que abdiquem ao comando das castas. Enviem cartas para


todas as famílias de vampiros com a novidade. Contem que abdicaram ao
trono, e estão se aposentando. Estão transferindo todos os poderes legais para
mim. Os mortos devem me jurar lealdade e me pagar impostos. Todas as
restrições contra os vivos serão revogadas. Eu farei as novas regras. Vocês
me obedecerão a partir de hoje e reconhecerão o meu comando. Todos os
assuntos de Estado serão tratados comigo agora. Sairão de organizações e
conselhos vampíricos. Transferirão as propriedades do Tesouro para mim.
Reconhecerão minha autoridade e não ficarão no meu caminho.

Sienna apertou a mão do filho, orgulhosa.

– Uma nova era para os vampiros começa hoje.


– Será um banho de sangue... – Azlam negou com a cabeça. – Os
humanos não estarão mais seguros nas ruas.

– Não se preocupe, irmão – Tristan sorriu com ironia. – Eu tive cem


anos para aprender o método de governança com vocês. Sei tudo o que
preciso para manter o segredo de nossas existências.

Athos se recuperou. Sentou-se, massageando o peito. Face sombria.


– Chega disso. – Levantou-se aos poucos. – Já entendemos o recado.
Você nos traiu, e consolidou um golpe de Estado. Pode nos matar quando
quiser. Nos liberte.

– Athos... – Eros olhou para o irmão, em choque.

– Pare. – Ele o cortou. – O que está feito, está feito. Eles armaram um
plano genial que durou cem anos. Fomos enganados, não adianta negar.
Aceitemos o castigo e paremos de nos humilhar.

Sienna suspirou, satisfeita.

– Athos... Sempre o mais sensato. Estou feliz por Tristan ter


aprendido com o melhor. Ele será um ótimo governante.

– Estou me fodendo para isso. Tristan não é mais problema meu. Nos
liberte agora.

Tristan apertou um botão no controle e as coleiras se abriram. Os


primos as retiraram com violência, se levantando.
– Agora que nós nos resolvemos, podem ir. – Tristan apontou para a
porta. – Não voltem mais e não fiquem no meu caminho. As cartas de
abdicação precisam estar no correio até amanhã.

Azlam grunhiu, se dirigindo à porta.

– Como queira, Majestade. – E foi o primeiro a sair. No caminho,


pegou a mão de Olívia, puxando-a com ele. – Venha. Vamos sair deste covil.
Athos foi logo atrás. Antes de sair, virou-se para Tristan.
Sobrancelhas erguidas.

– Sabe, nós perdemos o comando da espécie. Mas você... – negou


com a cabeça. Depois, lançou um olhar significativo para mim. – Você
perdeu bem mais. A única chance que tinha de ser feliz em sua vida
miserável e sem amor.

A expressão de Tristan decaiu. O escárnio se foi. As palavras o


atingiram de verdade.
– Ela irá me perdoar.

Mas o quê...?
Eu joguei a cabeça para trás e gargalhei. Uma risada zombeteira e
ferida. Lágrimas escaparam dos meus olhos. Eu as limpei, humilhada.

– Nem que o inferno congele, di Santorum. – Encarei-o com ódio. –


Olhe bem para mim, porque será a última vez em que me verá.
Peguei a mão de Eros ao meu lado e o puxei comigo. Lançando um
último olhar raivoso para Tristan, rosnei:

– Adeus, seu filho da puta.

Todos saímos da sala. Eu podia sentir o olhar do vampiro traidor


fuzilando minhas costas. Violento e feroz.
Ainda não acabou.
Passei o restante do final de semana na cama. Chorava sem parar.

As memórias emaranharam garras perversas em meu coração. Os


olhares traídos dos primos, a face gélida – e sem qualquer remorso – de
Tristan, a mentira, o amor que não vingaria, meus sonhos despedaçados...

Foram dias tristes como o inferno.

Para completar, ainda havia Olívia. Ela me ignorava, num silêncio


passivo-agressivo. Maravilha.
Eu me recusava a ver Tristan. Pelo menos, não tão cedo.

Mandei um e-mail ao Reitor. Inventei ter sido diagnosticada com um


vírus altamente contagioso. Ano passado, a memória do COVID-19 deixou
rastros de medo e feridas pelo mundo. Ninguém brincaria com um contágio.

O Reitor me dispensou. Ficou apavorado com a possibilidade de eu


aparecer nas aulas. Concedeu-me duas semanas de isolamento, e eu faria as
provas de casa.
Truque baixo, eu sei. Mas o desespero falava mais alto.

Por duas semanas, me escondi. Levava meus almoços ao quarto e


comia sozinha. Estudei muito e recobrei a matéria perdida. Não vou mentir:
era difícil estudar com um coração partido. Porém, decidi não deixar o
maldito traidor roubar meu mestrado de mim.

Meu coração, sim. Isso ele já havia esmagado.


Mas meu futuro? Isso não.

Era uma quinta à noite.

Havia uma palestra na Università, e o alojamento estava vazio.


Olívia saiu. Naquele dia, completaria 15 dias de isolamento.

De súbito, ouvi batidas na porta do quarto. Altas e violentas. “Abra


esta porta!”, alguém rosnou. “Eu sei que você está aí.” A voz de Tristan era
feroz.
Fechei o livro que lia. Levantei-me da cama, furiosa. Como este
maldito ousava me procurar?

“Vá embora”, gritei.

Ele ameaçou. “Nem fodendo. Sem você não abrir, irei arrombar.”
“Você não ousaria”, me choquei.

“Pague para ver.”

Peguei meu spray de pimenta na gaveta e atendi a porta.


– O que você quer? – rosnei.

Ele seguia parado no batente. Mão apoiada na parede, cabelos


desgrenhados. Pálpebras caídas, bochechas coradas. Muito bêbado.

– Onde você se meteu? – voz venenosa. – Faz quinze dias que eu não
te vejo, porra.

Nunca o tinha visto tão fora de controle. Um homem em pedaços.

– Evitando você, é óbvio. Estou estudando em casa.

– Não vai mais aparecer na Università?


– Não. Só quando você não estiver lá.

Ele socou a parede, descontrolado.

– Pare com esta merda! Pare de me evitar!


Ri em desdém e mágoa.

– Vá se ferrar, di Santorum. Você não manda em mim.

Ele estreitou os olhos, perigoso.

– Você é minha mulher. Preciso saber onde está.

– Eu era. Agora, somos apenas desconhecidos. Você é um inimigo


dos di Santorum, e eu te odeio. Traidor do caralho.

Passou a mão pelos cabelos, ferido.

– Então é isso? Somos inimigos agora? O seu sentimento acabou?

– Acabou. – Mentira. A paixão ainda estava lá. Mas eu a esmagaria e


esconderia bem fundo no meu peito.
Ele trincou os dentes.

– Eu não imploro por mulher nenhuma, Clara Mourão. Deveria saber


disso. Se eu for embora, te apagarei da minha vida para sempre. Você nunca
mais me terá.

– Que pena, Vossa Majestade. – Ironizei. – Espero nunca mais o ver.


Passar bem. Ou não, tanto faz para mim. – E comecei a fechar a porta.

Ele a interceptou com uma mão.

– Não – vociferou. – Você não pode fugir de mim.

Foi a gota d´água. Tomada por fúria, ergui o spray de pimenta e o


acertei bem no rosto.
Ele deu um passo para trás, chocado. Depois, limpou o rosto com as
mãos, dentes trincados em ódio. Abriu os olhos vermelhos. Reluziam em
fúria e maldade.
Fez uma ameaça muito real.

– Isso ainda não acabou. Você voltará para mim, custe o que custar.

E virou as costas, indo embora. Tristan não brincava, nem fazia


promessas vãs. E aquilo me apavorou.

Fechei a porta do quarto, murmurando. “Isso é o que veremos...”

****

Meu prazo de 15 dias findou.

Aproveitei meu último final de semana livre. Na segunda, tive que


voltar para a Università.

Assisti às aulas, e o clima estava fúnebre. Os vampiros mal


conversavam. O golpe de Estado já era notícia. Fiquei sabendo que a
Università passaria a abrir durante à noite. Agora que os vampiros vivos
estavam livres para perambular por aí, queriam ter a vida social dos mortos.
As mulheres da Università estavam em perigo. Agora, também seriam
provedoras de sangue dos vivos. Só que eles não tinham controle nenhum, e
nem se importaram com as vidas humanas. Não era mais seguro estudar por
aqui.

Evitei o refeitório e os corredores de propósito. Não queria me


deparar com Tristan.

Ao final das aulas, esperei a faculdade esvaziar um pouco. Os di


Santorum eram sempre os primeiros a sair.
Quinze minutos após o sinal, arrumei minha mochila e fui embora.

Ao sair da Università, brequei de susto.

Tristan estacionava na rua, bem na porta do prédio. Recostava-se em


seu Audi. Braços cruzados e expressão assassina. Os grupos de alunos
aglomerados na porta não se aproximavam, lançando-o olhares temerosos.

Apertei a alça da mochila, furiosa.


Ele olhava diretamente para mim. Claramente me esperava. Ergueu as
sobrancelhas, desafiando-me a me aproximar.

Andei até ele.

– Meu recado não foi claro? Fique longe de mim.

– Tenho um presente para você.

– Dispenso. Fique para você.

Ele tinha um sorrisinho vitorioso.


– Isso você não poderá recusar. – Foi até a porta de trás e a abriu. –
Podem sair – chamou cordialmente. – Ela já está aqui.

Então, dois idosos saíram do banco de trás. Eram simplesmente... Os


meus avós.

Meu queixo caiu:

– O que vocês estão fazendo aqui?!

Minha avó abriu um sorriso.

– Fomos convidados por seu amigo, Clarinha. O sr. Tristan pagou


nossas passagens e nos hospedou.
Meu avô veio até mim e me abraçou.

– Minha neta querida, que saudade!

Eu o abracei de volta, emocionada. Não tinha dinheiro para comprar


passagens para o Brasil. Não trabalhava e vivia do auxílio estudantil.
Provavelmente, ficaria os dois anos sem ver os meus avós – e tê-los aqui era
um presente sem igual. Meu coração vibrava de alegria.

Abracei minha avó.


– Ai, meu Deus, nem acredito que estão aqui.

À alguns passos, Tristan tinha as mãos nos bolsos. Observava a cena


com um sorrisinho misterioso.

Fui tomada por sentimentos confusos. O maldito conhecia meu ponto


fraco. E não, eu não o perdoaria – mas não era não era hora de pensar sobre
isso. Eu só precisava aproveitar ao máximo a presença dos meus avós aqui.
Segurei a mão de minha avó.

– Como vocês estão aqui? Por que não me contaram nada?

– Seu amigo gentil, Tristan, entrou em contato conosco. Disse que


você estava passando por um momento difícil no mestrado e precisava de
nós. Ele se ofereceu para pagar nossos passagens e nos hospedou em sua
casa. Ficaremos por cinco dias. Não é uma maravilha? Queríamos fazer uma
surpresa! Quando ele entrou em contato, dois dias atrás, tivemos que arrumar
as malas às pressas. Foi rápido, mas não dava para perder a oportunidade. Era
isso ou ficar 2 anos sem te ver.
Massageei as têmporas.

– Ai, vó...

– Não está feliz por nos ver, Clarinha? – meu avô desconfiou, ferido.
– Claro que sim, vô. Só estou meio chocada. – Soltei um sorrisinho
ameno para disfarçar. – Esta é a primeira viagem internacional de vocês, não
é?
– É, sim. Seu avô veio me perturbando a viagem inteira. – Minha avó
rolou os olhos. – Teve medo do avião.

– Aquela coisa voadora não é do meu tempo. – Meu avô grunhiu.


– Então... – Tristan deu um passo à frente. – Estava pensando em
jantarmos juntos. Os restaurantes de Roma são maravilhosos. Sei que está
meio cedo, mas vocês devem estar famintos. A viagem foi longa.

– É verdade. Acabamos de pousar no aeroporto. A comida daquela


aberração voadora era horrível.

Tristan usou todo o seu charme. Colocou uma máscara de bondade


que cativaria qualquer um. Um monstro-bebedor-de-sangue que atuava muito
bem.
– Então por que não vamos a um restaurante que eu conheço agora?
Podemos aproveitar e nos conhecer melhor. – Lançou-me um olhar
misterioso. – Clara é importante para mim, e eu adoraria conhecer a família
dela.

Minha avó juntou as mãos, encantada.

– Que garoto gentil! Você fez ótimos amigos por aqui, Clara.

– Pois é.

Fervia de ódio, mas aquele não era o momento para fazer um


escândalo. Meus avós eram dois idosos humildes, que jamais sonharam em
sair do Recife. Agora, estavam aqui, na Itália. Era a minha obrigação provê-
los com uma viagem inesquecível.

Quando minha família morreu, eles cuidaram de mim. Era a hora de


retribuir o favor.
Então deixei meus rancores de lado e me concentrei na felicidade
deles. Eu me resolveria com Tristan depois. Se tivesse que aturar a presença
do garoto e forjar sorrisos para alegrar meus avós, que seja. Sacrifícios do
amor.

Tristan nos levou a um restaurante chique. Ficava no centro de Roma.


Sentou-se conosco à mesa. Acabamos ficando lado a lado, como um
maldito casal. Meus avós sentaram-se à nossa frente. Estavam em êxtase por
estar ali. Observavam todos os cantos com olhares fascinados. Era um planeta
alienígena para eles.

Foi uma cena linda de se ver.

E, se eu não estivesse com tanto nojo e rancor de Tristan, poderia


abraçá-lo.
Pedimos filé com massa à gorgonzola, e um vinho caríssimo. Tristan
se ofereceu para pagar tudo. Insistiu até que meus avós aceitassem.

O garoto conversava num perfeito português. Afinal, tinha morado


um tempo no Brasil.

Minha avó comia, encantada.

– Então, meu filho, como conheceu a nossa Clara?

Tristan se portava como um perfeito cavalheiro.

– Na verdade, eu já a conheço há uns anos. Por coincidência. Fui um


grande amigo de Lucas no passado, e frequentava a casa dos Mourão quando
a Clara tinha apenas 15 anos.
Minha avó paralisou. Pousou o garfo sobre a mesa, tendo uma
epifania.
– Não acredito. – E trocou um olhar com meu avô.

Este, se dirigiu a Tristan.

– Deixe-me fazer uma pergunta indiscreta, meu jovem... Nós não


tínhamos dinheiro para pagar os funerais da Ágata e do Lucas. Recebemos
uma doação anônima advinda da Itália. Nunca soubemos quem foi. –
Estreitou os olhos. – Por acaso ela veio de você, meu garoto?

– Fui eu, sim. O Lucas era um dos meus melhores amigos, e eu


respeitava muito a sua mãe. Foi uma tragédia o que aconteceu. Quis fazer
alguma coisa por eles.

Minha avó quase caiu no choro.


– Você é um anjo.

Quase bufei. Mal sabia ela.

– Você esteve no Brasil depois da faculdade, Tristan?


Ele bebeu seu vinho, um tanto encabulado.

– Estive sim. Eu precisei parar o curso de Biologia Marinha no meio,


em razão de... Problemas de família. Mas voltava todos os anos ao Brasil.
Mantive contato com Lucas e fui à sua formatura da faculdade. Também fui à
formatura do Ensino Médio da Clara, e à sua colação de grau de bacharelado
em História.

Paralisei, chocada.
– Eu não te vi.

– Só observei de longe.

Olhei para ele. Perguntei propositalmente em italiano, de modo que


meus avós não entendessem.
– Espera, foi você quem pagou a conta da churrascaria naquela
época?

– Foi. – Respondeu em italiano. – Eu a observava em segredo há


muito tempo. Estive em todos os momentos importantes da sua vida e te vi
crescer de longe. Sempre esperando.
Engoli em seco. Bebi meu vinho, desviando os olhos.

Puta que pariu, aquele homem era mesmo apaixonado por mim.

Uma alegria profana incendiou meu coração. Eu a reprimi na mesma


hora. Não, Clara, ele é um traidor. Não ouse sentir nada por ele.
E eu não sentiria. Estava decidida a colocar um fim àquela quase-
relação bizarra.

Meu avô coçou o queixo.

– Desculpe perguntar, mas... Uma possibilidade não sai da minha


cabeça.
– Diga, Sr. Joaquim.

– Ágata, minha filha, me contou uma história anos atrás. Quando a


Clarinha estava na época do vestibular, precisou fazer mais um ano de
cursinho depois do ensino médio para passar na Federal. Nós não tínhamos
dinheiro para pagar cursinhos particulares, pois eram absurdamente caros. Na
época, Ágata me confessou que recebeu um financiamento misterioso. Uma
bolsa de filantropos estrangeiros, que apostavam em jovens no Brasil. O
nome da bolsa era “Alessia di Santorum para mulheres prodígios.”

Alessia di Santorum?, arregalei os olhos. Aquele era o nome da


matriarca dos di Santorum! A mulher que morreu anos atrás e criou todos os
primos!
Virei-me para Tristan, perplexa.

– Você pagou meu cursinho pré-vestibular?

Ele deu de ombros.

– Sim. Sempre apostei na sua inteligência. Seu sonho era fazer uma
faculdade Federal e eu acreditei em você. Foi um investimento que valeu à
pena. Veja onde você está agora... No melhor curso de mestrado de Roma,
por mérito próprio.

Ai, meu Deus. Eu não sabia de nada.


– Foi você quem fez minha inscrição na Università di Magdala?

– Apenas apresentei sua monografia à banca de História da


Università. Passar foi um mérito seu.

– Mas foi minha mãe quem me inscreveu.


– Oficialmente, sim. Mas fui eu quem deu a ideia a ela, via e-mail
anônimo.

Apenas o encarei por um tempo. Tentava digerir.

– Por quê?

– Porque eu sempre quis o melhor para você. – Respondeu


simplesmente.

Meu avô olhou de mim para Tristan, perspicaz.

– Me digam a verdade, meus filhos... Vocês são mais do que amigos?


– Não! – neguei de imediato, furiosa.

– Por enquanto. – Tristan arqueou uma sobrancelha. – Estou tentando


conquistar o coração da sua neta há um tempo.
– Desde quando? – meu avô se preocupou. – Pelo que nos contou, ela
só tinha quinze anos quando você morou no Brasil.

– Desde que ela se mudou para o meu país, é claro. Antes, era muito
nova para mim. E eu jamais me envolveria com uma criança.
Minha avó respirou aliviada.

– Que bom saber. Tem tantos malucos por aí.

Ao final do jantar, meu avô pediu licença. Foi fumar do lado de fora.
Minha avó aproveitou a deixa e se dirigiu ao banheiro.
Virei-me para Tristan:

– O que você pensa que está fazendo?

– Pensei que ficaria feliz em vê-los.


– Eu estou, mas hospedá-los na sua casa foi insanidade! Uma mansão
cheia de vampiros malucos...

– Nada acontecerá a eles. Não sob o meu comando.

– Você não pode garantir.

– Posso, sim. Sou o rei.

– Não por mérito próprio. – Bufei.

Ele cruzou os braços.


– Se está tão preocupada, venha conosco.

– O quê?!

– Passe cinco dias na minha casa, assim poderá ficar de olho neles.
– Você armou tudo isso, não é? – estreitei os olhos. Tristan sabia que
eu não teria dinheiro para hospedá-los num hotel, e visitas eram proibidas no
alojamento.

Ele deu de ombros.


– Um homem apaixonado usa as armas que tem.

Meu queixo caiu. Desviei o rosto e bebi uma grande golada de vinho;
precisava de algo mais forte que isso.

– Quer saber? Eu vou. Nem morta deixarei meus avós sozinhos com
aqueles sanguessugas.
– Ótimo. – O garoto bebeu um gole de vinho, sorrisinho vitorioso.

Depois do jantar, levamos meus avós para passear no centro de Roma.


Eles jogaram moedas nas fontes e comeram gelatos. Mais felizes que nunca.

Depois, passei no alojamento e fiz uma mala rapidamente. Tristan me


esperava do lado de fora do palacete. Obviamente não era mais bem-vindo a
entrar.
Olívia não estava por lá. Após o sequestro, voltou para Portugal por
alguns dias. Precisava processar os acontecimentos e estar perto da família.

Foi melhor assim. Eu não queria chorar na frente dela – e, acreditem,


nestas últimas semanas tudo o que fiz foi chorar.

Coloquei a bolsa no porta-malas do Audi e fomos para o Palazzo,


onde Tristan agora morava. Ao entrarmos no estacionamento subterrâneo, me
arrepiei. Era horrível voltar àquele lugar. Palco do começo do fim, onde tudo
deu errado.
Meus avós, por outro lado, estavam encantados. Achavam toda aquela
arquitetura tradicional fascinante.
“É como se hospedar num castelo medieval! Isso é viver a História de
perto!”, meu avô exclamou. Era um apaixonado por História, assim como eu.

Já era noite e não havia ninguém em casa. Amém. Todos os vampiros


haviam saído para badalar e se alimentar.
Fui hospedada num quarto bem ao lado dos meus avós. Um recinto de
hóspedes impessoal e elegante. Dormi muito mal. Rolei pela cama a noite
inteira, perturbada. Estava na casa de Tristan. Compactuando com o inimigo
e traindo aos primos di Santorum.

O que eles pensariam de mim se soubessem?

Nos últimos dias, eu me tranquei no alojamento e não atendi às


ligações de Eros. Precisava de um tempo sozinha, processando minha dor.
Planejava procurá-los em breve. Conversar, ouvir suas versões... Entender
como Tristan conseguiu ludibriá-los por tantos anos. Ademais, eu precisava
conversar com alguém que entenderia a dor em meu coração. A dor da
traição.
Na manhã seguinte, escovei os dentes e tomei banho. Coloquei um
jeans, casaco e saí do quarto.

Tristan já me esperava. Recostava-se na parede à frente da minha


porta; braços cruzados, expressão enigmática.

– Bom dia.
Fiz questão de não sorrir.

– Só se for para você.

– Acredite, será. – E piscou, inabalável.


Naquele momento, meus avós saíram do quarto. Cumprimentaram-
nos com alegria, sem repararem o clima tenso.

Tristan nos convidou para o café da manhã.

Fomos até o salão principal do lugar (o mesmo em que tivemos que


nos ajoelhar daquela vez). Nos sentamos na comprida mesa de mogno. As
janelas estavam cobertas por pesadas cortinas de veludo. O local, iluminado
por lâmpadas e castiçais. A mesa de mogno deveria ter uns 20 lugares.

Vários vampiros se sentavam ali. Riam, comendo e conversando. Era


super estranho estar ali, no covil dos inimigos. Infiltrada entre eles, tomando
café da manhã.

Sienna se sentava numa das cabeceiras. A outra cabeceira estava


vazia, bem com seu lugar à direita. Eu me sentei nesse lugar vazio. Meus
avós se acomodaram ao meu lado.
Tristan se sentou na própria cabeceira – um lugar de honra.

Ao ver-nos, Sienna abriu um sorriso.

– Clara, você por aqui! Que maravilha a ver outra vez! Passou a noite
com o meu filho?

Corei loucamente.

– Não. Dormi no quarto de hóspedes.

– Não fique tímida, querida, pode me contar. – Ela abanou o ar. – Eu


torço para essa relação vingar.
Encarei-a, sem reação.

– Por quê?

Sério, por quê? Sienna parecia animada demais por nós dois.
Nenhuma sogra jamais me aceitou tão bem.
– Bom, torço para Tristan encontrar uma esposa há muitos anos.
Infelizmente, ele andou ocupado demais para pensar em amor. Mas agora que
situação se resolveu, estou ansiosa para que ele se case. Você é um raio de sol
nesta casa. – Fez uma careta, repensando. – Não literalmente, é claro. Nós
não somos muito fãs de sol por aqui.

Todos à mesa riram. Meus avós também sorriram, sem nada entender.
Não compreendiam o italiano.

Alguns vampiros lançavam olhares tenebrosos para meus avós.


Comida de verdade à mesa. E era por isso que eu tinha que ficar aqui. Estar
de olho na situação o tempo todo.

Durante o café, Sienna não parava de tagarelar. Parecia super animada


com minha presença.

– E então, quando vocês dois começaram a namorar?


– Mãe – Tristan limpou a boca com o guardanapo. – Pare de tentar me
vender para a Clara. Irá constrangê-la. Ainda não somos um casal.

– E nem seremos. – Grunhi.

Ela se assustou.

– Por que não, Clarinha? Vocês ficam ótimos juntos.

Clarinha? Soltei um sorriso irônico.

– Não sei. Talvez por seu filho ter enfiado uma faca nas costas dos
meus amigos, e traído a todos nós?
Ela revirou os olhos.

– Ora, são ossos do ofício de um soldado. É uma guerra, querida. Ela


existe antes mesmo de você nascer. Tenho certeza de que vocês irão superar
essa... Diferença de interesses. Quero muito que reatem. Sei que meu filho
viaja ao Brasil todos os anos por um motivo. De fato, é um lindo país. Mas
sempre imaginei que havia uma razão mais profunda para Tristan
constantemente voltar. Talvez, houvesse deixado um amor não correspondido
por lá... – ergueu uma sobrancelha. – E não é que eu estava certa? Os
corações dos homens são muitos simples de serem lidos.

Tentei controlar o ódio. Aquela situação não era um romance.

Graças aos céus, meus avós comiam calmamente, sem entender o


falatório em italiano.

– Não sou a mulher certa para o seu filho, Sienna. Também não tenho
interesse em entrar para a família. – Bebi o copo de suco.

Tristan parou de comer por um momento. Observou-me, calado.


Olhos enigmáticos.
Ela suspirou.

– Entendo... Você está com raiva. Se apegou aos di Santorum e


comprou a dor deles. Mas, se conviver mais conosco, verá que não somos tão
ruins assim. Somos uma família como qualquer outra, e só estamos tentando
sobreviver. Além do mais... – olhou para Tristan, admirada. – Olhe bem para
o meu filho. Não é um espécime incomparável de macho? Seria um bom
marido e um ótimo pai. Imagine um filho de vocês dois? Um pequeno
vampirinho, com o lindo rosto de Tristan e seus olhos verdes? Ah, um
herdeiro... – suspirou, sonhadora. – Seria uma alegria para a nossa família.

Eu quase me engasguei. Como vim parar nesta situação?


– Isso não vai acontecer. Não quero ter filhos.

– É sério? – estalou a língua. – Espero que mude de ideia algum dia.


Você é muito jovem mesmo, tem que aproveitar as alegrias da sua idade.
Depois, pense em herdeiros.

Perdi a paciência.
– Quer saber? Chega disso. Eu já deixei claro que não tenho nada com
o seu filho. Não estou fazendo birra, nem bancando a difícil. O que ele fez foi
muito sério e não tem perdão. Então, por que está tão determinada em nos
juntar? São esforços em vão.

Tentei manter o tom impassível, apesar das palavras duras. Não


queria que meus avós percebessem o que acontecia.

Sienna pousou o garfo na mesa, muito séria. Juntou as mãos:


– Eu quero o que todas as mães querem... Que o meu filho seja feliz.
Ele não teve muitas oportunidades para isso nos últimos anos. Estava em uma
missão. Agora, você apareceu. Uma mulher com quem ele finalmente anseia
por se casar. Meu filho lutou muito por nós, e sacrificou tudo. Também
merece viver um amor. Então, se ele me diz que lutará para te reconquistar,
eu o apoiarei cem por cento. Serei a sogra perfeita. Te receberei em minha
casa e em minha família, e cuidarei muito bem dos netos que você nos der.
Você será como uma filha para mim. Tudo pela felicidade dele.

Tristan fez uma careta para Sienna.

– O que nós combinamos, mãe? Sem pressão. Você está fazendo


exatamente o contrário do que mandei.
Ela bufou.

– É meio tarde para isso. Os avós da garota estão à mesa conosco.

Olhei o relógio de pulso.


– Vejam a hora... Daqui há pouco será o almoço. Vamos sair.

Só queria sair dali. Ver Sienna – minha atual inimiga mortal – abrindo
o coração era muito embaraçoso. Me causava um conflito de sentimentos.
– Ótimo. – Tristan se levantou. – Temos muito para ver. – Convocou
meus avós, num perfeito português. – Vamos indo? Roma nos espera.

– Vamos! – minha avó se levantou, animada.

Saímos do salão. No corredor, meu avô perguntou para nós.

– O que vocês estavam conversando na mesa? Parecia uma discussão


meio acalorada.

– Ah – o garoto olhou para eles. – Era uma discussão política. Temos


opiniões divergentes, mas é tudo muito amigável. Um debate saudável entre
família.

– Hum, e aquela mulher bonita era sua irmã? – minha avó questionou.
– Sienna? Era, sim. – Mentiu na cara dura. Não dava para contar que a
mulher era a sua mãe; eles aparentavam ter praticamente a mesma idade.

– E os seus pais?

– Não moram aqui. O Palazzo é muito grande, então nossos primos,


cunhados e demais familiares moram conosco. Gostamos da casa cheia.
Quase bufei em desdém. Que bela família calorosa. Só se esqueceu
de citar o lance das presas e dos assassinatos humanos.

Passamos um dia estranhamente... Divertido.

Tristan nem parecia o mesmo. Se esforçou para conversar com meus


avós, encontrar uma ligação emocional com eles. Contou sobre a cidade,
mostrou pontos turísticos, ouviu suas histórias... Realmente se empenhava em
cativá-los.

Passeamos por várias museus, parques e restaurantes.

Fiquei fora o máximo de tempo possível, e só voltamos para o


Palazzo na parte da noite (quando os vampiros haviam saído).

Assim como hoje, teria que faltar aos próximos três dias na
Università. Aquilo seria péssimo para meu currículo. Entretanto, deixar meus
avós sozinhos com Tristan e sua horda de vampiros loucos não era uma
opção.

Estávamos numa bomboniere no centro.


Há alguns metros, meus avós tiravam fotos numa fonte de água. Meu
avô lutava para entender a lógica de seu novo celular. Minha avó se sentava
na beirada da fonte, com um milkshake nas mãos. Fazia poses, parecendo
uma adolescente outra vez.

Sabia que aqueles dias de sol eram um presente para eles. Ficariam
cravados em suas memórias por anos a fio.

Tristan e eu nos sentávamos numa das mesinhas do passeio. Eu comia


uma sobremesa de chocolate, e ele bebia um café. Permanecíamos calados,
observando meus avós de longe.
Murmurei de repente.

– Obrigada por isso.

O garoto me olhou, surpreso.


– Não espere nada menos de mim.

Que resposta singular.

– Como assim?
– Porque eu faria insanidades por você. Qualquer coisa para realizar
os seus sonhos.

Superei, desviando o rosto. Aquele olhar negro e profundo do


inferno... Balançava as estruturas do meu coração.
– Sei que o que está fazendo agora tem um preço. O que você quer de
mim?

– O seu perdão.

Franzi o cenho.
– Nem vou responder. É uma discussão inútil.

– Ok. – Ele soltou uma pequena risada. – Então apenas se sente


comigo nos almoços da Università.

Estagnei. Aquilo iria ferir demais aos di Santorum.


– Os di Santorum irão me odiar.

– Será isso ou me perdoar. Escolha.

Fitei o garoto, reflexiva. Ele era inteligente demais para lutar por uma
causa perdida. Então, o que era aquilo?

– Você sabe que está se enganando, não é? Toda essa luta será em
vão.

Não precisei dizer mais nada. Ele entendeu. O perdão não iria
acontecer. Eu não tinha um coração tão bom assim. A amargura pelo que ele
fez – e pelo que ele era – criou raízes profundas no meu coração. Eu
demoraria umas duas vidas para superar.

Seus traços tornaram-se sérios. Não brincava.


– Eu sei. Mas ainda não estou pronto para desistir.

– Se é assim... – dei de ombros. – Acordo feito.

Os dias se passaram.

Eu acordava cedo e levava meus avós para fora do Palazzo. Não


queria tomar café da manhã com os familiares de Tristan. Sienna me
devoraria.

Passávamos o dia inteiro fora. Fomos aos shoppings, às lojas e aos


bares. Meus avós conheceram cada pedacinho de Roma.
Tristan estava sempre conosco. Não saíamos à noite. Agora, a cidade
se tornara perigosa para turistas – vez que os vampiros vivos tinham muito
mais liberdade.

No quinto dia, levamos meus avós ao aeroporto. Nos despedimos e eu


chorei horrores. Sabe-se lá quando os veria outra vez.
Minha avó abraçou Tristan com gratidão.

– Obrigada, meu jovem! Você não sabe o que estes dias significaram
para nós. Ver a Clarinha e estar aqui, neste país... Deus, foram os melhores
dias das nossas vidas.

Meu avô apertou a mão de Tristan com respeito.


– Não temos palavras para agradecer, meu filho. Por favor venha nos
visitar no Brasil.

Tristan lançou-me um olhar misterioso.

– Por mim, nós nos veríamos todos os anos.


Engoli em seco, constrangida.

– Vô, acho que chegou a hora do embarque. Vamos?

Nos despedimos e meus avós embarcaram. Tristan me levou para o


alojamento no seu Audi. Foi uma viagem silenciosa. Era a primeira vez que
estávamos sozinhos em dias.
Paramos na porta do palacete. Eu abri a porta do carro para sair e ele
me parou:

– Segunda-feira, na hora do almoço. Não se esqueça.

Droga, eu tinha me esquecido.


– Certo. – Acordo era acordo.
– Vou reservar uma mesa para nós dois no refeitório.

– Ok, tchau. – E saí do carro às pressas.

Naquele final de semana, Olívia voltou. Finalmente pudemos


conversar honestamente. Contei a ela toda a verdade, sem deixar nada de
fora. Ela estava mais calma. Decidiu que faria o mestrado até o meio do curso
e, quando se tornasse uma veterana, iria embora. Finalizaria o curso em
alguma faculdade em Portugal.

Olívia me perdoou. Entendeu o porquê mantive sigilo. Não era um


segredo meu para ser contado. Ela foi à várias sessões de psicólogo para
superar os acontecimentos. Principalmente o lance com Enzo. Se é que algo
assim pudesse ser superado.

Deixou de fora, é claro, o detalhe dos vampiros.


Na segunda, fomos juntas para a Università.

Eu havia estudado muito no final de semana para recuperar a matéria,


então consegui acompanhar as aulas. Contudo, permanecia tensa por toda a
manhã. Sabia o que me esperava no intervalo.

Nos dirigimos ao refeitório na hora do almoço. Ao entrarmos, Olívia e


eu o avistamos ao mesmo tempo. Tristan se sentava sozinho numa mesa, bem
no meio do lugar. Recostava-se na cadeira mexendo no celular. Queixo
trincado e face misteriosa. Ignorava todos os olhares que recebia.
– Ele está esperando por você? – Olívia murmurou, meio apavorada.

– Está, sim.

– Merda, Clara. Olha a situação em que você se meteu. O cara não é


do bem, veja o que fez com a própria família. Ele é uma companhia perigosa.
Tem certeza de que quer fazer isso?
– Não tenho muita opção.

Suspirou, desistindo.

– Ok. Vou me sentar com as meninas. Qualquer coisa, me grite e nós


fugiremos para as montanhas. Ou sabe-se lá onde estes sugadores de sangue
não nos alcancem.

Devolvi-lhe um sorrisinho carinhoso.

– Obrigada, Oli.

Caminhei pelo refeitório. Os primos di Santorum sentavam-se em sua


mesa de sempre. Conversavam, faces sérias. Num momento, meu olhar se
cruzou com o de Eros. Merda. Eu desviei rapidamente, sem coragem para
encará-los.

Andei até a mesa de Tristan. Quando os di Santorum perceberam o


que acontecia, franziram o cenho, magoados e chocados. Ela não irá fazer
isso. Não depois de tudo o que vivemos juntos.

Tristan ergueu os olhos e me viu. Abriu um sorrisinho enigmático e


guardou o celular.

Sentei-me à sua frente. A cabeça, abaixada. Sentia o olhar dos primos


fuzilando minhas costas. Traidora.

– Toma. – O garoto empurrou para mim uma lata de Coca-Cola diet,


do jeito que eu gostava. – Já pedi para você.

– Valeu. – Abri o refrigerante e bebi. Desceu queimando.


Ele me analisava.

– Que cara é esta? Parece que está tendo um derrame?

– Bom, olhe ao redor. Você é a criatura mais odiada desta Università


hoje. Eu estou absorvendo o ódio por conexão.

Olhamos. Todos os vampiros nos fuzilavam com olhares de desdém e


ira. Encaravam Tristan com os dentes trincados em frustração, vez que não
podiam falar nada. Usurpador. Eles não conseguiam aceitar o fato de um
vampiro híbrido no comando. Vampiros mortos eram elitistas e puristas.
Acreditavam que os vampiros vivos eram uma raça inferior. Um sangue sujo.
No entanto, se os próprios di Santorum foram subjugados, quem eram
eles para contestar?

Tinham que engolir o comando de Tristan.

O garoto devolveu os olhares sem medo. Ergueu o queixo, desafiador.


Os vampiros entenderam o recado e desviaram os olhos, contrariados. Era
uma batalha silenciosa.
– Não se preocupe. Eles ladram, mas não mordem. Não podem
desafiar minha autoridade, porque os di Santorum me entregaram o posto
legitimamente. Terão que me engolir.

Arqueei uma sobrancelha.

– Bom para você. – E bebi a Coca, amargurada. – Você manda em


todos, mas não tem nenhum amigo. Todos te odeiam. Espero que tenha
valido à pena.
– Tenho muitos inimigos sim, Clara, é o preço de ser um líder. Mas
não se preocupe. Ninguém irá te ferir.

Apontei ao redor.

– Pois é. Só me encararem como se eu fosse a traidora da pátria.


Ele fez uma careta.
– Você está aqui, sentada comigo. Então meio que é.

– E a culpa é toda sua – rosnei.

Deu de ombros.

– Nunca disse que eu era inocente.

A garçonete chegou. Cabeça baixa, triste e respeitosa. Sem a


cordialidade animada de sempre.

– Boa tarde, Dom Tristan. O que irá pedir hoje?

Ele fez nosso pedido. A garçonete saiu.

– Acho que a Mônica não gosta mais de você. – Comentei.


– Ela irá superar – estalou a língua. – Era muito apegada aos di
Santorum. Achava que éramos a família perfeita.

É, eu também. Ledo engano.

– Ela conhece a existência dos vampiros?


– Claro. Era uma das nossas melhores fornecedoras de sangue.

– Sério? Pensei que vocês só bebessem sangue de supermodelos. – A


garçonete era uma mulher na casa dos 35. Bonita, loura, de bochechas
coradas e rechonchuda. Uma beleza plus size para ninguém botar defeito.
Linda.

– Não tem correlação.


– Eu vi a dinâmica no Clube. Os vampiros só gostavam das magrelas,
padrãozinho de beleza.

– Isso é coisa de vampiro novato. Depois de certa idade, nós, machos


da espécie, aprendemos a apreciar a beleza feminina em todas as suas formas.
Mônica é linda.

– Já bebeu o sangue dela alguma vez?

– Sim. Junto com Athos numa festa particular.

– Foi bom?

– Sim. Ela era doce como mel.


– Que sorte a sua. – Não pude evitar o tom ácido.

– Espere – ergueu uma sobrancelha, malicioso. – Está com ciúme?

Bufei.
– Não se iluda, di Santorum.

Meus olhos escorregaram para os di Santorum.

Apenas Eros olhava para nós, ferido. Athos e Azlam comiam em


silêncio. Diversos vampiros iam até a mesa para cumprimentá-los e
conversar; todos com expressões de pesar. Entretanto, os primos não podiam
contar sobre o golpe de Estado e o microchip no coração. Para todos os
efeitos, Tristan herdou a liderança legitimamente.

Ainda olhando para os primos, murmurei:

– Por que você fez isso, Tristan?

O garoto não respondeu, apenas me olhou. Insisti:


– Sério, por que você fez isso?

– Não sei o que dizer. – Ele franziu o cenho. – Eu fui treinado a


minha vida inteira para isso.

– Não sente remorso?


Olhou para os primos, enigmático.

– Um pouco.

– Você os amou?

– Não sei, Clara. Eu nunca deixei sentimentos estúpidos como amor


entrarem em meu coração. Poderiam atrapalhar minha missão.

– Fingiu o tempo todo?

– Não. Me diverti muito com eles. Rimos e choramos juntos. Por


vezes, eu me esquecia de quem era e me envolvia nas questões daquela
família, como um dos seus. Mas sempre deixando uma porta fechada em meu
coração... Sempre soube que, eventualmente, aquilo iria acabar.

– Você foi um filho para eles. Depois, um irmão e um igual. Sabe


disso, não é?

– Eu sei, mas prefiro não pensar sobre. Causaria dor. E eu não sei
administrar muito bem sentimentos ruins.
– Pois é. – Murmurei inaudivelmente. – Nem a rejeição.

O clima pesou na mesa. Ele sabia que eu me referia à minha própria


rejeição ao amor que ele me oferecia. Tristan seguia insistindo, batendo numa
tecla sem efeito. E, no final das contas, nós dois sabíamos no que iria dar. Eu
iria embora e nunca mais o veria.

Os planos de Sienna, sobre casamento e filhos, jamais iriam vingar.


Ele abriu os lábios para dizer alguma coisa – mas, de súbito, parou.
Ergueu os olhos e viu algo além de mim.

Um vampiro se aproximava. Virei-me para trás e dei de cara com


Luigi Castellano, irmão do Enzo. O maldito Enzo.
– Dom Tristan. – Cumprimentou com escárnio.

Tristan devolveu o sarcasmo.

– Castellano, como vai o seu irmão? Ainda na ala hospitalar?

Luigi não respondeu. Apenas o encarou com ódio.

– Foi o que imaginei. – Tristan soltou um sorrisinho maléfico. – E vai


ficar lá por um bom tempo, não é? Que lástima. Mande meus cumprimentos a
ele.

Luigi trincou os dentes e deu um passo à frente, ameaçador.

– Nós sabemos que tem algo podre nesta história. Os di Santorum não
se aposentariam tão cedo, nem entregariam o poder para um sangue sujo
como você. Você fere a pureza da nossa raça.

Tristan juntou as mãos por sobre a mesa, impassível.


– Comentário interessante. Mais alguma opinião?

– Tenho, sim. Nós vamos descobrir o que caralhos você fez para
tomar o lugar dos di Santorum. A desculpa de aposentadoria não convenceu.
Pode demorar séculos, híbrido nojento, mas nós iremos te tirar do poder. Esse
lugar não é seu. As famílias de sangue-puro jamais irão te aceitar.

Os olhos do garoto reluziram em maldade.


– Você sabe o que essa pequena explosão histérica irá te custar, não
é?

– É mesmo? – Luigi gargalhou. Em seus traços, uma pitada de


loucura. – Eu e minha família não temos mais nada a perder. Você já fodeu
com nossas vidas.

De fato, os Castellano não podiam entrar em mais nenhum lugar de


Roma. Foram completamente exilados da comunidade vampírica. Era difícil
conseguir comida, parceiras ou vida social. Embargo completo. Tristan
garantiu que o castigo de Enzo durasse por muitos e muitos anos.

– Isso é pouco para o que posso fazer com você. Então, sugiro que vá
embora da Università e não ouse voltar. Nem amanhã, nem nunca mais. Mais
tarde farei uma visita à sua casa. Vamos ter uma conversinha amigável, assim
como tive com Enzo.

O garoto sorriu, meio alucinado.

– Eu imaginei que falaria isso. – Avançou para mais perto,


ameaçador. As mãos, nos bolsos.

As pessoas ao redor encaravam tudo, tensos. O que Luigi pretendia


fazer num refeitório lotado?
– Eu sou um cavalheiro, sabe, Dom Tristan? – arqueou uma
sobrancelha, sarcástico. – Vim de uma linhagem de sangue puro, e só quero
retribuir o favor. Já que você nos tirou tudo o que tínhamos, vou lhe tomar o
seu bem mais precioso. Sei que assim doerá mais. Olho por olho.

Aconteceu em segundos.

Luigi colocou a mão dentro do bolso interno do casaco e retirou uma


faca de lá. Um estilete maior que o usual, reluzente e muito afiado. O garoto
estava parado bem atrás de mim. Ergueu a mão com a faca e, para minha
surpresa, não atacou ao Tristan – atacou a mim. A faca desceu em direção ao
meu pescoço.
Mas o quê...?

Eu gritei e me encolhi. As pessoas no refeitório se levantaram –


arfantes e chocadas.
Mas a faca não me machucou. No meio do caminho, foi interceptada.
Tristan se levantou à uma velocidade inumana. Inclinou-se por sobre a mesa
e simplesmente parou a faca com a mão. Segurou-a com força. Não no cabo,
mas na própria lâmina.

Obviamente, a lâmina cortou a palma de sua mão. Sangue escorregou


por seu braço, caindo por sobre a mesa.
As pessoas se engasgaram. “Caralho! Ele é louco!”

Luigi ficou horrorizado. Nem ele esperava por aquilo.

Tristan não pareceu sentir a dor. Agarrou a lâmina com mais força – e
quase pude ouvir o barulho da faca penetrando em sua carne mais fundo.
Ele tinha a face perversa.

– Chegue perto da minha mulher e eu estraçalharei a sua garganta,


sem pensar duas vezes.

Luigi soltou o cabo da faca e deu um passo para trás. O plano falhou.
Tristan retirou a lâmina de sua palma com a outra mão. E para o
espanto de todos, levou a lâmina até a boca e a lambeu (com sangue e tudo).
Parecia um monstro alucinado. Rosto cruel.

– Acha que um pouco de sangue é problema para mim? Eu não tenho


medo de nada, Castellano. Sou um animal. Você não sabe com quem está
lidando. Chegue perto da minha mulher outra vez e eu irei te caçar até o fim
do mundo. Beberei o seu sangue e comerei sua carne. Depois, colocarei sua
cabeça em minha parede.

Luigi tinha a voz estrangulada.


– Não... Não voltarei mais à Università.
– Ah, não, meu amigo... – Tristan abriu um sorriso de escárnio. Os
dentes sujos de sangue. – Você não voltará mais a este país. Você e sua
família maldita estão sendo expulsos da Itália. Não levem nada. Nem
dinheiro, nem bens. Partam apenas com a roupa do corpo. Tudo o que é seu
será meu agora. Vocês irão embora sem um centavo.

– Mas...
– Cale esta boca, eu não terminei. Estou sendo misericordioso por não
te matar, apenas tirar tudo que tem. Considere um ato de compaixão. O
próximo ataque não ganhará tanta misericórdia da minha parte. – E enfiou a
faca na madeira da mesa. Segurou a mão ferida com a mão boa, e olhou para
mim, ordenando. – Venha, Clara.

Levantei-me imediatamente. Segui-o para fora do refeitório, alguns


passos atrás.

Tristan atravessou o salão com o queixo erguido. Deixava um rastro


de sangue para trás. Eu segurei minha bolsa nos ombros e abaixei a cabeça,
seguindo-o. Todos nos encaravam com um misto de choque e admiração.
Ouvi os murmúrios se alastrando.

Ele é mesmo a mulher dele?

Claro que é! Vejam a insanidade que ele fez para protegê-la.


Então é melhor não entrarmos no caminho dele. O cara é louco.

Os di Santorum observavam Tristan com ar de preocupação. O garoto


estava bem machucado, e eles costumavam ser uma família. Velhos hábitos
não morrem tão cedo.

Saímos da Università e entramos no estacionamento. Tristan segurava


a mão, e paramos ao lado do seu Audi.
– Você vai ter que dirigir. – Anunciou.

– O quê?! – eu, dirigindo esse carrão que valia mais que o meu
apartamento? Se batesse, estaria endividada para o resto da vida. – Acho
melhor não.
– Não estou em condições, Clara – grunhiu e ergueu a mão. – Sugere
o quê? Que eu pegue um ônibus?

– Tá bom – suspirei. – Cadê a chave?

– No meu bolso.
Avancei timidamente. Capturei a chave no bolso dianteiro de sua
calça. Abri a porta do carona para ele e afivelei seu cinto. Fechei a porta, dei
a volta no carro e fui para o banco de motorista. Liguei o veículo, nervosa.
Coração disparado.

Que merda de situação. Tristan machucado e eu, dirigindo a porra de


um Audi... Uma cena dramática no meio do refeitório... Isso tudo em questão
de minutos.

– Qual o hospital mais próximo? – inquiri.

– Hospital? Não vou para o hospital nenhum.

Encarei-o.

– Vai, sim! Ficou louco? Você está perdendo uma cachoeira de


sangue. – Sua calça e o banco do carona já estavam ensopados.
– Vamos para a minha casa. A ferida irá se curar em algumas horas.
Não posso levar pontos, vai atrapalhar o processo de cura vampírico. Só
preciso limpá-la e passar alguma pomada anti-inflamatória.

– Mas, Tristan...
– Sem “mas.” Sei o que estou fazendo. Sou um soldado, não é a
primeira vez que tenho um ferimento de faca.

Fiquei calada a partir daí. Sabe-se lá o que o garoto viveu nos últimos
cem anos.
Chegamos ao Palazzo.

Fomos direto para o seu quarto. Era a primeira vez que eu conhecia
seu verdadeiro quarto. Um cômodo tão grande quanto o do palacete, só que
mais aristocrático e medieval. Armas nas paredes, estantes de livros em
diversas línguas, e muitos, muitos quadros.

Ele se sentou numa cadeira, dando instruções. Peguei a caixa de


primeiros socorros e me sentei na cadeira à sua frente. Limpei o ferimento e
passei a pomada. Depois, enfaixei com a gaze.
Ele me observava trabalhar, calado. Eu sentia seu olhar me fuzilando.
Grunhi:

– Pare de me encarar.

– Não posso evitar.

Balancei a cabeça, enrolando a gaze.

– Você fez uma insanidade hoje, sabia? Parar a faca com a mão,
sabendo que iria se machucar. Por quê?

– Era você ou eu. Agi por impulso.


– Tinham formas melhores de resolver.

– Até eu pensar numa delas, você estaria morta. Sangrando no chão


do refeitório. E eu teria que estraçalhar a garganta do maldito na frente de
todos. Não seria um favor à existência discreta dos vampiros.
– Pensando por esse ângulo, ok. Mas tem outra coisa. Você falou
coisas comprometedoras para o Luigi na frente de todos, sobre matar e beber
sangue. Os vampiros entenderão, mas e as estudantes?

– As veteranas já sabem quem eu sou. As calouras entenderão como


metáfora.
– E se não entenderem?

– Então alguns dos meus soldados as hipnotizarão para esquecerem.

Terminei de enfaixar. Guardei os materiais na caixa e me levantei.


– Pronto, está feito. Acho que vou embora agora.

– Espere. – Ele segurou meu braço. – Já que está aqui, deixe-me te


mostrar uma coisa.

– Hum – olhei o relógio de pulso – tenho um trabalho a fazer para


amanhã. Preciso ir para casa.
– Não irá demorar.

Cocei a nuca. Que merda, não queria ficar sozinha com ele...

Argumentou:

– Eu sei que você me odeia, mas um favor não irá te matar. Só cinco
minutos. – Ergueu a mão, face inocente. – Veja, estou ferido.

– Ok. – Bufei. – Mas só porque você levou uma facada por mim.

– Ótimo. – Tristan se levantou. Antes de sairmos, retirou uma chave


da gaveta do criado-mudo. Dourada e antiga.
Ele me guiou para fora do quarto. Perguntei se não gostaria de tomar
um remédio para dor. Ele revirou os olhos. “Eu sou um vampiro-rei de 100
anos. Aguento um pouco de dor sem Dipirona.”

Fomos até o andar superior. Era uma ala reservada da família, deduzi,
vez que Tristan não a mostrou aos meus avós durante o tour pelo Palazzo.
No meio do corredor, havia uma porta dupla. Ele a abriu com a chave
dourada. Deu um passo para trás, me convidando a entrar. Avancei
timidamente, olhando ao redor.

Era um... Ateliê?

Havia vários quadros pendurados nas paredes. Alguns outros, ainda


em tripés de madeira, cobertos por lençóis. Por toda parte, mesinhas com
potes de tintas e pincéis espalhados.
– Meu ateliê particular. – Anunciou.

– Mas seus primos me disseram que não pintava há anos...

– Não quando estava com eles. Sempre dava escapadas para cá, para
ver minha mãe e pintar.
– Por que quis me mostrar isso? – observei ao redor, admirada. Suas
pinturas eram lindas.

– Para que veja que não sou o monstro sem coração que pensa que
sou.

Ok, então ele tinha talento para as artes e uma sensibilidade acima da
média. Percebi a doçura intrincada e profundidade de suas pinturas. Nenhum
monstro teria tal sensibilidade. Em todas as imagens, havia um quê de
melancolia, de solidão. Como se a vida dele não houvesse sido fácil.
– Na verdade... – ele avançou para o meu lado. Mãos nos bolsos, voz
enigmática. – Isso é uma confissão.
Fitei-o.

– Como assim?

– Estou te confessando um segredo que guardo no meu coração há


anos demais.

Ele andou até a primeira pintura num tripé. Retirou o lençol. O tecido
caiu no chão, revelando a imagem. O imenso quadro abstrato retratava uma
garota de cabelos castanhos e olhos verdes. Seu rosto era indeterminado,
fosco, como se ela estivesse atrás de um vidro. Todavia, aqueles olhos eram
inconfundíveis. Eram os meus.

Meu queixo caiu.


Tristan ergueu uma mão, indicando as demais.

– Pode vê-las, se quiser. Nunca as mostrei para ninguém.

Avancei com o coração disparado. Retirei o lençol da próxima


pintura.
Lá estava eu, novamente. De costas, sentada numa praia observando o
mar. Usava o biquíni verde – o mesmo que usei aos 15 anos, quando ele me
viu na piscina pela primeira vez.

Na próxima pintura, eu estava deitada num divã. Apenas um lençol


vermelho cobria meu corpo. Segurava uma maçã vermelha sugestivamente.
Talvez, uma metáfora para “o fruto proibido?”

Na pintura seguinte, havia uma garota sentada num campo. Lia um


livro, cabelos chicoteando ao vento. De novo, eu.
Havia desenhos em papéis amarelados espalhados por todo lugar. Nas
estantes, chão e mesas. Todos retratavam partes do meu corpo. Meu pescoço
e meus ombros, minha boca, meus olhos – e até minhas mãos. Ele capturou
cada detalhe de mim.

As datas das pinturas eram diferentes. Algumas, de oito anos atrás.


Outras, de seis, três, um, e até do mês passado.
Tudo naquele ateliê era sobre mim. Meu Deus.

Segurei a pintura que retratava meus olhos. Estava de costas para


Tristan. Murmurando baixinho, ousei perguntar.

– Você está apaixonado por mim, Tristan?


O garoto demorou a responder. Quando o fez, foi somente um
sussurro.

– Há mais anos do que posso contar.

Fechei as pálpebras por um momento. No coração, um relance de dor.


As palavras que falei a seguir me despedaçaram por dentro.
– Não posso te retribuir.

– Por que não?

– Porque você estragou tudo. – Segurei o maldito choro.

Outra vez, silêncio. Ele parecia processar minha resposta. Após um


tempo, questionou, feroz:

– Então o que você pode me dar?

Ninguém deveria fazer essa pergunta. Era humilhante. Quando se ama


alguém, a fortaleza construída ao redor do coração é profundamente atacada.
Então, sendo tomado por sensações maiores que você, tende-se a aceitar
qualquer gota homeopática de afeto que o outro pode te dar. E isso não era
certo.
Ninguém era obrigado a retribuir o amor de ninguém. Não obstante, o
apaixonado precisa entender quando é a hora de parar. De desistir e ficar
sozinho para recolher os cacos do coração. A isso, chamamos de reaver-se.

Eu não desejava um amor fadado ao fracasso para Tristan.


– Não fale isso. – Pedi.

– Por quê?

– Porque você deveria estar com alguém que possa te amar sem
obstáculos. Que não tenha tanta mágoa.
– Eu aceito qualquer coisa que venha de você.

Estávamos numa situação fodida. O ódio que eu sentia me impedia de


amá-lo, mas não me impedia de fazer... Outras coisas.

Mordi o lábio, pensando. Virei-me, olhar insinuante.


– Posso te dar um presente de despedida.

Ele entendeu na hora.

– É só o que pode oferecer? – olhar duro.

– Sim. – Na língua do sexo não havia sentimentos.

Desviou o rosto. Traços distorcidos em dor e, depois, obstinação.

– Então será do meu jeito.


Tristan recolheu as mãos atrás das costas, como um soldado. Sua
expressão mudou. Tornou-se dominadora e feroz.

– Sente-se ali. – Apontou com o queixo para a mesa próxima. Sobre


ela, todos os meus desenhos.

Eu me sentei ali em cima.


– Tire o casaco.

Tirei. Por baixo, usava uma camiseta branca e larguinha.

– Agora, o sutiã.

Obedeci. Desabotoei e o retirei por debaixo da blusa.

– Dê ele para mim. – Mandou. Joguei, e Tristan pegou-o no ar. Levou


a peça ao rosto, esfregando o nariz no tecido. Fechou os olhos, parecendo
sentir prazer. – Tem exatamente o seu cheiro. – Voz animalesca.

Então, com a mão livre, abriu o fecho da calça e colocou a mão por
debaixo da cueca. Mexeu no membro enrijecido.

– Agora, toque nos seus peitos para mim.

A camiseta branca era fina. Mostrava meus mamilos duros por


debaixo da tecido. Eu capturei os seios com as mãos e os toquei, apertando e
sentindo a maciez. Era uma experiência nova sentir tesão desse jeito: tocando
a mim mesma sob o olhar incendiário dele. Uma preliminar fodidamente
deliciosa.
Percebi, então, que Tristan era um vouyer. Gostava de observar.

– Tire a calça.

Tirei e joguei o jeans no chão. Fiquei apenas de calcinha e camiseta.


Ele encarava a minha fenda por debaixo da calcinha com ferocidade –
como se estivesse possuído. Me despia com os olhos. Tocava seu membro,
olhos agora fixos nos meus mamilos.

– Abra os botões da camisa e me mostre seus peitos.

Assim o fiz. Abri os primeiros botões e tirei um seio para fora. Tristan
grunhiu, aumentando os movimentos no próprio membro.
– Desça a mão para a boceta e masturbe-se para mim.

Brinquei com meu clitóris por cima do tecido da calcinha. Deslizei os


dedos pela fenda, movimentos circulares.
O tesão que o olhar dele me causava era inexplicável. Foi assim desde
a primeira vez em que o vi, 8 anos atrás, por trás do vidro da área de lazer.
Sempre aquele olhar.

– Penetre-se – ordenou. Suas mãos voavam pelo seu membro em


movimento de vai e vem. Dentes trincados em prazer.

Afastei a calcinha. Penetrei dois dedos dentro de mim, gemendo.


– É isso o que você quer... Senhor?

– Isso – voz cruel. – Imagine que sou eu aí dentro, entrando em você.

Com uma mão, eu me penetrava com dois dedos; com a outra,


acariciava meu seio esquerdo, consciente de meu mamilo intumescido.
Ficamos assim por um tempo, nos masturbando, observando um ao
outro. Até que Tristan jogou a cabeça para trás, largando o sutiã e se
masturbando com as duas mãos. Chegava ao ápice.

– Porra – rosnou – eu vou gozar. Venha até a mim e se ajoelhe.

Imediatamente me levantei, corri e me ajoelhei à sua frente. Ele


retirou o membro gigantesco da cueca e o colocou nos meus lábios.
– Abre a boca e engole tudo.

Eu abri. Ele penetrou o membro até o fundo de minha garganta e


gozou forte. Foi delicioso. Engoli o líquido quente, satisfeita porque era dele.
Nunca fiz isso por outro homem... Acontece que, por advir dele, parecia uma
grande honra.
Vá entender a mente dos apaixonados.

Quando terminou, tirou o pau da minha boca. Eu limpei o canto dos


lábios, soltando um sorrisinho sacana. A cena o fez grunhir como um animal.
Ergueu-me pelos cabelos e agarrou minha bunda, levantando-me ao seu colo.
Enrolei as pernas em sua cintura. Ele andou até a mesa e me sentou na
bancada. Empurrou-me e eu caí deitada, cabelos espalhados ao redor.
Tristan se ajoelhou no chão, à frente da mesa, e colocou minhas
pernas sobre seus ombros. Afastou minha calcinha e me chupou com
vontade. Nunca o vi tão faminto. Os caninos afiados roçavam os lábios
externos da minha fenda, o que só me excitava mais.

Ele lambeu, mordiscou e chupou pelo que pareceram horas, até ficar
satisfeito de mim. Depois, me virou com brusquidão e chupou a entrada do
meu ânus.

Aquilo me fez gemer e revirar os olhos. Puta que pariu. Nunca pensei
que sentiria prazer assim.
Eu estava de bruços. Ele empurrou minhas pernas, flexionando-as
para frente e me fazendo ficar de quatro. Ouvi ele retirando a calça,
deixando-a cair no chão.

Tristan puxou a raiz do meus cabelos, trazendo-me para mais perto.


Sua boca beijava minha clavícula e lambia meu pescoço. Enquanto isso, a
ponta do seu membro roçava na minha entrada molhada. Ficou roçando ali
até me fazer enlouquecer.

Não podia esperar mais. Implorei:


– Me fode, rápido. – Minha boceta pulsava em antecipação.

– Claro. – Sussurrou no meu ouvido. – Então admita que me ama.


Paralisei. O quê?

– Não.

Ele roçou o membro no meu clitóris e eu soltei um arfar.

– Então não vai ter meu pau hoje.

Me movimentei, tentando encaixar minha entrada na cabeça do seu


membro. Ele segurou meus cabelos com mais força.

– Não tente me desobedecer. Quem manda aqui sou.

– Por favor, senhor.

Ele levou o membro até minha entrada. Penetrou-me apenas com a


cabeça.
– Se quiser que eu te foda, vai ter que admitir que está apaixonada por
mim.

Minha boceta pulsava, querendo mais; encontrava-me completamente


aberta e molhada, doida para ser preenchida por ele. Queria aquele pau na
minha boceta, na minha bunda e na minha boca. O tesão falava por mim.

– Se eu admitir, você me come o dia inteiro?

Senti que ele sorria, bem próximo ao meu ouvido.

– Até você não aguentar mais. – E entrou com o membro mais um


pouco.

– Ainda não é o suficiente...


Lambeu meu pescoço e mordiscou minha orelha. A cabeça
escorregando, querendo entrar mais fundo. Me enlouquecia.

– Admita e te darei o que quer. Só preciso ouvir uma vez. – Com os


dedos, massageava meu clitóris.

Caralho, eu precisava do garoto por inteiro dentro de mim. Só a ponta


não era o suficiente.
– Vai, Clara... – brincava em meu clitóris; o pau, forçando na minha
entrada. Meus fluídos molhavam-nos inteiros. – Só uma vez.

Fechei as pálpebras, dominada por tesão. Merda.

– Eu sou louca por você.

Deu um tapa na minha bunda, castigando-me.

– Diga as palavras que eu quero ouvir.

– Sou apaixonada por você. – Confessei.


– Há quanto tempo?

– Muito tempo.

Foi só o que bastou. Seu membro me penetrou por completo e com


brusquidão. Eu ofeguei, chocada, preenchida e maravilhada. Ele me comeu
com estocadas violentas. A mesa balançava. Segurava meus cabelos e lambia
o meu pescoço, enquanto me fodia com força.

Às vezes, sussurrava putarias; às vezes, queria ouvir coisas de mim.

“Me diz quem é o seu homem.”

“Você”, eu gemia.
E penetrava com mais força. “Me diz quem você ama.”

“É você.”

“Senhor”, corrigia-me.
“É você, senhor.”

Ele saiu de dentro de mim e me virou para frente. Pegou-me no colo e


me colocou contra uma parede. Com a mão livre, guiou seu membro até
minha entrada novamente.
Aquilo foi mais difícil, pois nos olhávamos nos olhos.

Precisava confessar: encarar suas íris negras nunca era fácil. Elas
eram mais profundas e tristes do que deveriam. Toda aquela dominação e
ódio eram pertinentes ao soldado frio que ele mostrava ao mundo. Mas, por
debaixo delas, havia coisas ocultas. Coisas que ele só mostrava para mim.

Tanta tristeza e solidão... Tanta profundidade e amor não


correspondido...
Eu queria transar com ele o dia inteiro? Sim.

Só que havia mais.

Também queria abraçá-lo e acariciar seus cabelos. Dizer que tudo


ficaria bem. Que ele também tinha direito ao amor e que a vida não era só
sobre guerra. Dizer que ele podia admitir que amou os primos di Santorum
como irmãos, e que, quando a hora fatídica chegou, trai-los doeu sim.

E que confessar sentimentos não o tornaria um fraco perante os seus.

E aí, eu me lembrei: não era o meu papel dizer aquelas coisas. Só


causaria a impressão errada. Eu não iria ficar, nem iria amá-lo.

Nós, entretanto, não conseguíamos ficar longe um do outro. Sempre


arranjando desculpas para protelar o fim. Ele propunha acordos absurdos,
trazia meus avós de outro continente, e eu aceitava. Eu tentava me convencer
de que era preciso, de que não tinha saída...
Só que havia saída sim. Eu só precisava de coragem.

Nós transamos por horas e horas. Em todas as posições possíveis, e


em todos os cantos daquele ateliê. Depois, Tristan me levou para o quarto ao
lado – no qual havia um banheiro anexo. Transamos debaixo do chuveiro
também.
Como vampiro, ele não se cansava. Só paramos quando ele percebeu
que eu estava esgotada.

Estávamos deitados na cama do quarto de hóspedes. Ele estava por


trás, envolvendo-me em seus braços; seu membro dentro de mim, dando
estocadas leves, quase parando. Já tínhamos gozado várias vezes.

– Vamos parar. – Eu suspirei.


Ele retirou o membro de dentro de mim.

– Você está cansada?

– Acabada.
Tristan pareceu triste, mas se afastou. Deitou-se ao meu lado, calado.
Sentia que também não queria mais transar, só queria... Ficar perto de mim.

– Você também não está mais afim. – Constatei.

Ele suspirou. Demorou, mas finalmente confessou:


– É o único jeito que encontrei de te manter ao meu lado por mais
tempo.

Virei-me de barriga para cima e fiquei encarando o teto. Deitado ao


meu lado, ele flexionou as mãos atrás do pescoço.

Tentei não chorar:


– Vai chegar a hora, é inevitável.

Seu olhar me fuzilava.

– Qualquer segundo a mais com você é precioso para mim.

Fechei os olhos, ferida. Chega de protelar. Aquilo só estava


machucando a nós dois. Levantei-me, me enrolando no lençol. Minhas roupas
estavam no ateliê ao lado. Esperei não encontrar ninguém nos corredores.

– É isto – não olhei para ele. – Estou indo para casa.

– Eu a levo de carro. – Começou a se levantar.

– Não – neguei rápido demais, voz estrangulada. – Eu prefiro ir


sozinha. Pegarei um Uber ou ônibus.

Ele ficou tenso.


– Não precisa gastar seu dinheiro com bobagens. Deixe-me te levar.

– Ok. – Suspirei. Não tinha clima para argumentar.

Fomos ao ateliê ao lado e colocamos nossas roupas. Graças aos céus,


não encontrei nenhum vampiro no corredor. Seria uma situação humilhante.

Tristan me levou de carro até o palacete. Paramos na entrada. Era o


final da tarde. Quando ele estacionou, eu retirei o cinto e me virei para me
despedir. Ele olhava para a frente, mãos no volante, olhar sombrio. Não sabia
o que pensava.

Clareei a garganta. Cada palavra desceu arranhando, estraçalhando


meu coração.

– O acordo do refeitório acabou. Não nos sentaremos mais juntos,


nem nos cumprimentaremos nos corredores. Não quero ser sua inimiga, mas
também não quero ser sua amiga. Ficarei nesta cidade por dois anos e,
depois, vou embora. E a gente nunca mais vai se ver.

Ele apertou mais o volante, dentes trincados. Não olhava para mim.

– Se é o que você quer.

Não. Mas era o certo a ser feito.

– É.
O garoto ficou um tempo num silêncio tenebroso. Depois, me olhou,
ácido.

– Então adeus, Clara. Pode sair do meu carro.

Recuei, surpresa e ferida. Então terminaria assim... Com mágoa e com


ódio...
Que seja. Não importava mais.

– Adeus, Tristan. – Abri a porta e saí, praticamente correndo do


carro.

Entrei às pressas no alojamento. Quando parei à frente da minha


porta, percebi: não era ali que eu queria estar. Eu queria chorar, sofrer o luto
por aquele fim. Mas não sozinha. Outras pessoas experienciavam uma dor
semelhante à minha, e era hora de parar de evitá-los.
Num impulso, corri para o jardim e fui até a porta lateral do palacete.
Por ali, subia-se para a ala dos di Santorum.

Havia dois seguranças na porta. O mais jovem me parou:

– Ei, senhorita! Não pode entrar aqui. É ala particular.


O outro segurança, Costa, me conhecia. Me viu entrando e saindo no
palacete de cadeira de rodas. Nunca fez perguntas. Provavelmente, sabia que
trabalhava para vampiros, ou preferia não perguntar. Os di Santorum
pagavam muito bem (e compravam qualquer silêncio).

Costa interveio:
– Está tranquilo, Leonel, ela é amiga dos patrões. Pode deixá-la
entrar.

– Tem certeza? Pode dar problema para nós.

– Tenho. Ela morou com eles aqui por um tempo.

Hesitante, o novato Leonel me deixou passar.

– Obrigada, Costa. – Agradeci com sinceridade e corri escada acima.

Entrei no segundo andar. Nesta hora, Athos estaria na biblioteca;


Azlam, na sua aula de artes marciais e Eros... Bem, provavelmente na sala de
jogos ou vendo TV. Isso se não estivesse em alguma festa louca no iate de
alguém.
Entrei gritando. “Eros! Athos! Azlam! Tem alguém aí?!”

Percorri todo o andar. Eles não estavam em nenhuma das áreas


comuns. Fui até o terceiro andar, onde ficava a sala de reuniões. Às vezes, os
primos se reuniam lá para debater assuntos sérios. Eu nunca fui convidada.

Ergui a mão para bater na porta – mas não foi necessário. Ela se abriu
antes que eu a tocasse.
Eros estava do outro lado. Face gélida.

– O que você quer?

Foi só o que bastou. Ver um dos di Santorum me desarmou. As


lágrimas vieram aos olhos, e tentei não desabar.
– Por favor, não me mandem embora. Precisamos conversar.

Athos e Azlam se sentavam na mesa de reuniões, mais além. Rostos


impassíveis, olhos duros. Claramente com raiva de mim.
Eros rosnou.

– Como ousa aparecer aqui? Você está com ele. Depois de tudo que o
maldito fez para nós, você ainda está com ele.

– Não, eu nunca estive. – Limpei a lágrima na bochecha. – Só


buscava uma forma de me despedir. Agora acabou de vez.
Athos levantou-se. Veio até a porta com as sobrancelhas franzidas.
Foi bem direto:

– Só nos diga uma coisa: você o ama?

Eu chorei mais, escondendo o rosto nas mãos. Depois que me


acalmei, balancei a cabeça, confirmado. Sim.
– E ainda assim terminou com ele por nós? Nos escolheu?

Encarei-os com carinho.

– Sempre. Suas dores são minhas dores.

Azlam suspirou e veio até a porta.

– Então não há mais o que ser dito. Você é uma de nós. – E me


enganchou num abraço.

Caí no choro de verdade, agora soluçando. Azlam afagou meus


cabelos:
– Está tudo bem, ragazza. Acabou.

Eu soluçava, molhando seu ombro de lágrimas. Eros nos abraçou:


– Estamos juntos agora.

Athos colocou uma mão em meu ombro.

– Todos nós fomos traídos. Fiquemos juntos e recomecemos. Uma


hora esta dor vai passar.

Eu confessei:

– Não podia ficar com ele depois do que aconteceu. O que ele fez foi
imperdoável. – Foi uma traição grande demais, perversa demais. – Só que,
agora, eu me sinto tão sozinha... Eu estou destruída, gente. Ele acabou com o
meu coração.
Eu perdi Tristan di Santorum, a porra do amor da minha vida. Minha
paixão de tantos anos.

Ele não era o príncipe encantado dos meus sonhos de adolescente. Na


vida real, era um homem cruel, frio e monstruoso. Capaz de grandes
atrocidades e atos de deslealdade. Não dava para confiar. Eu o amava, sim.
Mas não queria dividir a cama e a vida com um monstro.

Só me restava lidar com a decepção e superar.

– Não está sozinha. – Azlam me confortou. – Você nos escolheu, e


nós iremos honrar essa escolha. Agora você tem a nós.
Fomos até a sala de estar. Conversamos por horas.

Os irmãos estavam apagados, olhos sem vida. Realmente destruídos.

Contaram que há muitos anos os vampiros vivos se rebelavam.


Nunca, entretanto, encontraram um líder. Tristan foi a novidade. Sua
inteligência e frieza os levou a elaborar o plano perfeito. Antes de abrigá-lo,
cem anos atrás, os di Santorum pesquisaram o passado do garoto. Não
encontraram nada.

Tristan apagou todos os rastros. Assumiu um papel e o interpretou por


décadas.

Ganhou a confiança dos primos pouco a pouco. Foi às reuniões de


Estado; conheceu líderes humanos que compactuavam com a existência dos
vampiros. Conheceu os segredos, as senhas de cofres, os líderes vampiros de
outros países... Viu de perto as fraquezas de cada um deles, as histórias de
família, os amores... Os pontos fracos, as pessoas que amavam... O nome de
cada um dos filhos ao redor do mundo...

Coletou DNA por anos. Fios de cabelo, restos de sangue de feridas,


saliva deixada em copos.

Um espião por excelência. Inacreditável.

Nós conversamos pelo resto do dia.

Azlam contou que, num ataque de raiva, quebrou o quarto inteiro de


Tristan.
Juntos, nós empacotamos tudo e colocamos em caixas no sótão. Quer
dizer, empacotamos o que sobrou. O que estava quebrado foi para o lixo.
Trancamos o quarto e prometemos nunca mais voltar lá. Foi quase uma
cerimônia de despedida.

Naquele interstício, os primos procuraram médicos de confiança.


Apenas o círculo do mais alto escalão médico conhecia o segredo dos
vampiros. Geralmente, esses médicos tratavam as esposas, mães e namoradas
dos vampiros.

Todos com silêncios devidamente comprados. Pelo dinheiro, por


amizade e até por ameaças.
Fizeram diversos exames. O chip estava inserido num local do
coração impossível de ser operado. Ninguém sabia como os médicos de
Tristan conseguiram inseri-los ali.

Embora seus corações não batessem, se o chip ativasse o veneno


adormecido no corpo deles, seria o fim.

Eles conheciam Tristan muito bem. O garoto era um soldado genial e


não faria promessas vãs. Muito menos, daria um golpe de Estado sem uma
ameaça real.
Os primos estavam de mãos atadas. Vampiros mortos apareciam no
palacete várias vezes ao dia, querendo conversar. Só as famílias de mortos
mais tradicionais e elitistas da Itália. Queriam entender a abdicação dos
primos.

Então, os di Santorum precisavam ser evasivos. Inventar mentiras.


Diziam que treinaram Tristan por cem anos, preparando-o para tomar o cargo
e unificar as duas castas.

Só que os vampiros mortos eram elitistas inveterados. Não aceitavam


a nova era. Abominavam aquela miscigenação. Tristan era híbrido, e sua
existência feria a pureza da casta dos mortos.
Então, eu percebi: existiam malucos puristas e fundamentalistas em
qualquer espécie.

Qualquer criatura lúcida sabia que o extremismo era uma profunda


estupidez. Os vampiros deviam ter aprendido um pouco com a história dos
humanos. Apartheid, xenofobia, racismo, genocídio... Nosso leque de
atrocidades era amplo e só causou dor. Resultado de delírios de mentes
pequenas, involuídas, limitadas.

Por um lado, eu entendia a causa de Tristan: minar o domínio de uma


casta a outra e trazer igualdade.
Mas, por outro, não dava para apoiá-lo. Os vampiros vivos eram
perigosos para humanos. Nos consideravam insetos. Poderíamos conviver em
paz com os vampiros mortos, pois eram civilizados e não bebiam sangue para
matar. Já os vampiros vivos eram outra história.

Duas semanas se passaram.


Eu fiquei cada vez mais próxima dos primos. Sentava-me com eles no
almoço todos os dias. Olívia se sentava conosco, e acabou fazendo amizade
também.

Tristan sumiu da Università. Achei aquilo ótimo. Não estava


preparada para revê-lo, não ainda. A ferida do término ainda estava aberta e
sangrava no meu coração.

Seu sumiço causou um burburinho na comunidade vampírica. Como o


líder das espécies desaparece, deixando seu trono tão vulnerável? Tal
imprudência não era da estirpe do garoto, e eu sabia que ele voltaria logo.
Durante os almoços, conversávamos sobre diversas possibilidades.

Athos estava trabalhando com uma hipótese. Achava que Tristan e


Sienna não trabalhavam sozinhos. Tristan só tinha cem anos de idade, e
aquele plano parecia advir de uma mente muito mais antiga. Alguém que
tramava contra a família di Santorum há muitos e muitos séculos.

Durante as últimas décadas, Tristan viajava para o Brasil e para outros


países com frequência. Sempre sozinho. Athos se perguntava se ele não
estava indo se encontrar com seu mandante.
– Tristan é muito inteligente – discordei de Athos. – Ele poderia ter
traçado esse plano sozinho, sim.

– Enquanto ainda era um vampiro novato? Duvido muito. Isso é coisa


de uma mente muito mais velha.

Era uma hipótese.


Na terceira semana, a primeira coisa boa aconteceu. Ganhamos uma
nova amiga.

Camille Hollander Farah chegou à Università como mestranda na


faculdade de música. Ela dormia no quarto ao lado no alojamento. Nos
conhecemos no jardim do palacete. Certa noite, ela lia um livro sozinha,
sentada num dos bancos. Olívia percebeu que a novata ainda não tinha feito
amizade e, desinibida como era, já foi logo abordando a garota.

A sinergia foi instantânea. Para nossa surpresa, Camille era um amor.


Sentimos uma química inexplicável com ela. Rapidamente nossa dupla virou
um trio, e Camille passou a andar conosco por todo lugar.

Ela viera de Israel. Pele clara, olhos marrons e muito doces,


emoldurados por um rosto lindo. Seus longos cabelos castanhos caíam em
ondas delicadas até o meio das costas. Sua beleza suave arrancava olhares por
onde quer que passássemos. Uma princesa saída de conto de fadas.

Foi aceita na Università por ter um enorme talento. Tocava


violoncelo. Uma especialização aqui, na Itália, poderia fazê-la alavancar no
cenário musical de Israel. Seu sonho era tocar na Orquestra Nacional de seu
país.

Na hora do almoço, Camille se ocupava. Tinha lições particulares


com seu professor, e por isso comia mais cedo. Não se sentava à mesa
conosco.

Não vou mentir: sua ausência era conveniente. Olívia e eu sempre


estávamos com os di Santorum, conversando sobre assuntos
comprometedores. Camille era só uma novata, não sabia sobre a existência
dos vampiros. E ficaria sem saber.

No que dependesse de mim, só contaríamos quando chegasse a hora


certa. Então ela decidiria se queria continuar na Università ou não.

Quando eu fui embora do Brasil, deixei todos para trás. Sentia-me


muito solitária neste país estrangeiro. Além do mais, o namoro com Marcos
havia me afastado de todas as minhas amigas. Logo, ter uma nova amizade
significava muito para mim. Eu não era alguém de muitos amigos, mas ficava
satisfeita com alguns poucos e bons. Pessoas em que eu poderia confiar para
o resto da vida.

Passou-se um mês.

Todas as noites, quando Olívia já estava dormindo, eu entrava


debaixo do meu cobertor e chorava baixinho. Estava vivendo um processo de
luto.

Tristan e eu nunca namoramos. Contudo, um romance de verdade não


precisava de rótulos. O amor e a conexão entre nós era muito real.
Sua partida me estraçalhou como nenhum outro término na vida
conseguiu. Fiquei com Marcos por dois anos – e não senti nem um décimo da
paixão, loucura e dor que o di Santorum me proporcionou.

Amor, intimidade e parceria era sobre tempo. Paixão, não. Paixão era
obsessão e coração acelerado. Noites sem dormir, dias que não passam. Era
tomar decisões estúpidas e ficar vulnerável. Paixão não se prendia à lógica ou
horas do relógio.

Um sentimento que vivia no seu próprio tempo.


Era uma noite de quinta-feira.

Olívia, Camille e eu tínhamos ido para um bar no centro de Roma.


Bebemos, flertamos e ficamos alegrinhas. Isto é, elas flertaram. Eu não tinha
psicológico para tal.
Voltamos para o alojamento. Camille estava no nosso quarto.
Deitava-se na cama com Olívia, batendo papo. Olívia mostrava para ela fotos
de seus antigos namorados no celular, e as duas riam e faziam piadas.

Fui tomar banho. Depois, me sequei e vesti um moletom. Sentei-me


na borda da cama de Olívia para ver as fotos. Ela usava as ferramentas de
edição para zoar suas ex conquistas. Desenhava chifres e bigodes em seus
rostos, fazendo-nos gargalhar.

– Isso não é certo... – estalei a língua.

– Não ligo – deu de ombros – todos eles me traíram ou ferraram com


o meu coração. Merecem um pouco de chifres e bigodes.

Revirei os olhos.
– Ok, você venceu.

– Esta daqui, principalmente. – Mostrou a foto de uma garota. Sua ex-


namorada de Portugal. Olívia tinha uma sexualidade fluída e não se prendia à
gêneros. Às vezes ficava com mulheres também. – Essa cretina me traiu com
um homem. Vai levar o bigode mais feio. Vou colocar umas espinhas na cara
também.

Gargalhamos.
Graças aos céus, eu tinha Olívia e Camille. As duas eram as únicas
que conseguiam me fazer rir nestes últimos dias.

Isso e as brigas de Eros e Azlam, sobre quem era o mais bonito da


família.

Eram dez da noite. De repente, batidas na porta nos surpreenderam.


Altas e violentas.
“Clara!”, um homem gritava do outro lado. Mais batidas. “Abra!”

Paralisei completamente. Aquela voz feroz... Tristan. Era ele.

Olívia e eu trocamos um olhar assustado. Camille se sentou, meio


apavorada.

– O que está acontecendo?

– É ele. – Engoli em seco.

Mais batidas violentas.

– Ele vai acordar todo o alojamento assim, Clara! – Olívia se


desesperou. – Melhor atender e conversar com ele em outro lugar.

Passei a mão pelos cabelos, coração acelerado. Meu deus, não estava
pronta para vê-lo.
“Estou ouvindo sua voz aí dentro.” Ele rosnou do outro lado.
“Atenda! Eu preciso te ver!”

Tremendo, me levantei e abri a porta. Ele estava do outro lado do


batente, completamente destruído. Olheiras sob os olhos e cabelos
desgrenhados. Nem parecia o mesmo líder imponente de outrora.

Ao ver-me, algo mudou em seu olhar. A raiva se dissipou. As íris


negras reluziram em tristeza e em algo mais...
Talvez, esperança?

Me pegou de surpresa. Subitamente, avançou e me abraçou –


selvagem e necessitado. Quase me tirou do chão. Emaranhou os dedos em
meus cabelos e escondeu o rosto em minha clavícula. Respirou fundo,
sentindo o meu cheiro.

– Caralho, que saudade.


Ouvi Camille sussurrar baixinho. “Vamos sair daqui, Oli. Este
momento não é nosso.”

Agindo por impulso, retribuí o abraço. Enganchei os braços em seu


pescoço, tocando seus cabelos macios. Meu Deus, como eu queria aquilo...
Me deliciei com seu cheiro extraordinário. Me entreguei ao calor dos seus
músculos, ao som do seu coração batendo contra o meu...
Uma sensação quente me inundava. De vida, de completude. Neste
último mês, eu estava morta. Mas nos braços daquele homem eu podia
respirar novamente. Era como se houvesse... Voltado a viver.

Ele notou minha retribuição ao abraço e me apertou com mais força.


Implorou, voz embargada:

– Não faça mais isso comigo. Não me afaste mais.


Olívia clareou a garganta.

– Com licença, desculpa interromper... Mas nós precisamos sair.

Tristan me soltou. Olhou para as duas com surpresa. Até então, nem
havia notado suas presenças.

Puxei-o para dentro do quarto e saímos da frente da porta. Pedi,


embaraçada:

– Nos deem um minuto sozinhos, meninas. Por favor.

– Claro.
As duas começaram a sair. Mas, de repente, Camille parou no batente
se virou para Tristan. Olhos estreitados.

– Foi você o cretino que partiu o coração dela, não é?

Tristan não respondeu. Apenas ergueu uma sobrancelha.


– Faça isso de novo e eu mato você. – Ela ameaçou.

Ele reagiu levemente surpreso. Devia ser engraçado para um vampiro-


rei como ele receber ameaças de uma garota humana. Minúscula e frágil.
– Ok. – Foi sua resposta curta e grossa.

Camille ficou satisfeita.

– Ótimo, o recado está dado. Vamos, Oli. – E puxou Olívia para fora
do quarto.

Fechei a porta. Me virei para ele, constrangida:

– Desculpa. A Camille é meio feroz quando se trata de mim e da


Olívia.

Nós éramos três estrangeiras num país estranho. Claro que fizemos
amizade muito rápido. Éramos a âncora umas das outras neste lugar solitário,
fazendo as vezes da família.
Ele franziu a testa.

– Não estou nem aí para ameaças das suas amigas. – E avançou para
mim. Um homem selvagem e meio descontrolado. – Só quero saber de você.

Coloquei uma mão em seu peito, impedindo-o.


– Calma, Tristan. Você está bêbado ou algo assim?

Os olhos alucinados, o cabelo desgrenhado... Havia algo de errado


com ele.

Tristan sorriu, ferido. Sem qualquer alegria.


– Não estou bêbado. Só estou sofrendo para caralho.

Ai, não... Massageei as têmporas.


– Nós já conversamos. Não faça isso comigo. – Não balance as
minhas convicções outra vez.

Foi a gota d’água para ele.


– Não faça isso você! – se descontrolou. – Como você ousa pisar no
meu coração desse jeito?! Como você ousa me abandonar? Eu sou a porra do
rei!

Apenas observei, impassível. Ele estava colocando a raiva para fora.

– Sabe quantas mulheres queriam estar na minha cama? Na minha


vida? – retirou o casaco, andando de um lado para o outro no quarto. Voz
furiosa. – Eu nunca deixei mulher nenhuma entrar no meu mundo, e você
simplesmente me chuta? Como-se-eu-não-fosse-nada?! – gritou.
Continuei calada.

– Como isso pode estar acontecendo comigo? Um rei chutado por


uma humana? Só pode ser brincadeira... – Passou a mão pelos cabelos,
vociferando. – Isso é um absurdo. Você não tem esse direito!

Apenas o fitei.

Arfante, ele terminou o rompante de raiva. Se sentou na minha cama e


apoiou os cotovelos nas pernas. Mãos segurando os cabelos, cabeça abaixada.

Deixei-o se recompor por um tempo. Depois, questionei:

– Já acabou?
Ele não respondeu. Suspirei com tristeza:

– Você está sofrendo, não é?

Toda aquela raiva era só a versão ativa da dor que ele claramente
sentia. Sussurrou:
– Mais do que você pode imaginar.

– Sinto muito por isso... Nunca quis te machucar.

Gargalhou, sem alegria:

– Claro que quis. Essa é a sua vingança pelo que eu fiz aos di
Santorum. Eu fodi com a vida deles, e agora você está fodendo com o meu
coração.

– Se é o que pensa...

Ele suspirou, afundando a cabeça nas mãos.

– O que eu estou dizendo? Não estou nem aí para as outras. É claro


que você pode me chutar, você é boa demais para mim. Eu sei que sou um
monstro sem alma e que não te mereço. – Ergueu os olhos. Para minha
surpresa, eles estavam marejados. – Mas eu te quero tanto.

Uma lágrima desceu por seu rosto. Solitária e refinada.


Foi a primeira vez em que vi o garoto chorar. Aquilo acabou comigo.

– Vai passar, Tristan. Você está de luto por um amor que terminou, e
eu também. É normal. Nós vamos superar com o tempo.

– Superar? – riu com escárnio. – Não quero superar! Não dá para


entender... – negou com a cabeça, as lágrimas caindo. – Como você escolheu
os di Santorum ao invés de mim? Você só os conhece há alguns meses. Eu te
conheço há muito mais tempo, uma história de anos. Nosso sentimento não
vale mais?
– Eles são meus amigos.

– E eu sou a porra do seu homem!

Suspirei.
– Mas eles não erraram. Você, sim. E eu não posso ficar com um
homem em quem não confio.

Franziu a testa, chocado.


– Acha que eu te faria mal?

– Não sei o que eu acho.

– Me diz a verdade. Sei que você se sente traída, mas tem algo mais.
Algo que te afasta de mim.

Fui cruamente sincera:

– A sua frieza me assusta, e esse é o problema. Não sei do que você é


capaz. Você sustentou uma mentira durante cem anos. Se sentou à mesa com
homens que o chamavam de irmão, ouviu os seus segredos e suas fraquezas,
compartilhou lágrimas e momentos felizes. Depois, esfaqueou-os pelas costas
sem pensar duas vezes. Levou uma vida dupla por dez décadas. É tempo
demais. Nem o melhor dos soldados conseguiria tal feito. Isso não me faz o
admirar, Tristan, me faz o temer. Quem é você de verdade? Alguém que fez o
que fez, é capaz de qualquer coisa. Nenhuma mulher estaria segura ao seu
lado.

O próprio garoto tentou me alertar diversas vezes. Não sou bom para
você.
Trincou os dentes.

– Sim, eu fiz isso. Dei um golpe de Estado e traí aos meus irmãos.
Mas jamais faria mal a você.

– Agora. Não faria agora. Ao longo dos anos, um casal briga, e briga
feio. E se eu quiser me separar de você? Se eu te magoar, ou abandonar? O
que você pode fazer em represália? Não dá para saber. Você pode acabar com
a minha vida. Esse é o problema, eu espero qualquer coisa de você. Não dá
para saber onde fica o seu limite. Como vou me deitar na cama de um homem
em quem não posso confiar? Construir uma vida ao lado de um homem
assim? – neguei com a cabeça, virando-me de costas para ele. Abracei-me, e
sussurrei baixinho. – Você não é o pai que eu quero para os meus filhos. Não
é seguro.

Se minha mãe estivesse viva, me diria: corra, filha. Corra para o


mais longe desse homem perigoso. Eu já me envolvi com homens não
confiáveis antes, e eles destroem seu coração. Amor nenhum vale o risco.
Tristan ouviu a tudo calado. Demorou a responder. Quando o fez,
tinha a voz destruída:

– Então minha palavra não vale nada para você?

– Não. Você deu sua palavra aos di Santorum, e veja o que aconteceu.
– Eu posso ser um homem melhor... Por você.

– Isso é ilusão. Ninguém muda ninguém.

– Tente.

Alguns fatos sobre mim: eu não era a mais inteligente nem a mais
linda daquele lugar. Mas eu era muito esperta, portando um senso de
sobrevivência aguçado. Sabia reconhecer o perigo e sabia onde era o meu
limite.

E Tristan di Santorum, o traidor que usou uma máscara por cem anos,
ultrapassava qualquer um dos meus limites. Eu o amava, sim. Mas não
pagaria o preço para ficar com ele. O risco era grande demais. A ferida da
traição ainda pulsava em meu coração...

Profunda demais. Aberta demais.


– Desculpa, Tristan. Simplesmente não há espaço no meu coração
para te perdoar. Quando eu te olho, tudo o que vejo é a sua traição. Não dá
para esquecer.

Meu coração sussurrava: você não pode confiar nesse homem. Ele te
ama agora, te quer agora. E depois? E quando o lado feio do amor e do
relacionamento se mostrar?
A vida não era um conto-de-fadas, e ninguém era feliz para sempre.
Eu não queria pagar para ver o lado feio de Tristan.

Naquele momento, o garoto começou a chorar de verdade.

Não me virei. Não aguentava ver.


– Por favor... – falava entrecortadamente – não faça isso comigo...
Não me tire da sua vida... Não sei como recomeçar sem você.

Suspirei.

– Por favor, pare.


– Este trono e este dinheiro não são nada sem você. Eu consegui tudo
o que queria, mas estou tão fodidamente infeliz.

Pensei sobre aquilo. Ele sabia que iria me perder assim que revelasse
a traição. Mesmo assim, pagou para ver. Achou que poderia me reconquistar
com a insistência e com o tempo. Achou que eu poderia perdoar.

Achou muitas coisas. Errou em todas elas.


Algumas atitudes precisam de punição. Era uma questão básica de
justiça.

– Você fez sua escolha, Tristan. Arque com as consequências.

– Eu não queria apenas namorar e conhecer você. Queria casar e


construir uma família com você.

– Sinto muito.

– Não vai nem olhar para mim? Se está me expulsando da sua vida,
pelo menos olhe nos meus olhos.

Fechei as pálpebras por um segundo, arrasada.

– Não há mais nada a ser dito. – Tomei coragem e me virei para ele. –
Está na hora de você ir.

Tristan franziu a testa, olheiras sob os olhos.

– Então é isso? Acabou?

– Acabou.
– Não tem mais volta?

– Não.

Ele refletiu por um tempo, fitando o chão. Expressão assustadora.


– Essa é sua palavra final, Clara? Porque, se for, eu nunca mais
voltarei a te procurar. E você sabe que eu não brinco.

Eu sabia. Se eu confirmasse que acabou, o garoto nunca mais


apareceria na minha frente. E seria o fim de verdade. Tristan implorou,
argumentou, brigou... Me mostrou seu lado bom, generoso e protetor. Tentou
tudo o que podia.

E não tentaria mais.


Reuni os destroços do meu coração e respirei fundo.

– Sim, é a minha palavra final.

Ele fechou os olhos por um momento.


– Eu vou sair com outras mulheres. Eu vou te tirar do meu coração.

– Faça o que precisar. Você está livre para amar outra mulher. Eu vou
seguir em frente também. Este amor... Acabou.
Ele abriu as pálpebras. Íris ardendo em mágoa, indignação e muita
dor. Um homem destruído.

– Esta é a última vez em que me verá. Nunca mais voltarei a me


dirigir a você.

– Eu sei. – Engoli em seco.


Ele ergueu o maxilar, orgulhoso. Os traços mudaram. A tristeza se
transformou em desdém e frieza.

– Então adeus, Clara. Espero nunca mais te ver. – Virou as costas e


foi embora, batendo a porta com força.

Eu perdi a força e caí no chão. Abracei as pernas, escondendo o rosto.


As lágrimas vieram.
– Adeus. – Murmurei, sozinha. Adeus, meu amor de ontem e sempre.

E sabia que aquele era o fim.

****

Dois dias se passaram.

As aulas findaram. Eu estava caminhando de volta para o alojamento


com Olívia e Camille.
Olívia tagarelava, como sempre. O psicólogo a ajudou muito. Ela
estava voltando a ser quem era, extrovertida e engraçada. Já Camille se
mantinha estranhamente calada.

– Cami – acotovelei-a amigavelmente. – O que houve? Está passando


mal?
– Não, estou bem.

Olívia percebeu sua expressão fúnebre.

– Qual é, você ficou calada pelo caminho inteiro. Fala logo. Alguém
fez alguma coisa para você? Em quem devo bater?

Camille mordeu o lábio e olhou para mim, culpada.

– Tenho algo para te contar, Clara.

– O quê?
Ela falou de uma vez – como se quisesse se libertar da culpa.

– Hoje, na hora do almoço, o seu ex me chamou para sair.

Congelei.
– O quê?! – Olívia berrou. – O Tristan?

– Ele mesmo.

– E você aceitou?!
– Claro que não! – se defendeu rapidamente. – Não sou louca.

Eu nem conseguia falar. A garganta fechada, tomada por total e


completo choque. O coração congelado de medo.

Olívia se indignava:
– Aquele cara está de sacanagem? Cobiçar justo a melhor amiga da
ex?! Não é possível! Só pode ser um tipo doentio de vingança!
– Também foi o que pensei... – Camille torceu os dedos, tensa. – Mas
considerando o que ele me disse, não é bem assim.

Minha voz saiu meio estrangulada:


– Vocês conversaram?

– Conversamos um pouco, mas só. Eu estava na defensiva. Ele me


abordou na porta da sala de aula. Eu disse que não queria participar da sua
vingancinha contra a ex, mas ele garantiu que aquilo não era sobre você.
Disse que vocês terminaram, sim, mas não se odiavam. Também disse que
não queria se vingar de você.

Foi demais para Olívia. Ela parou de andar, vociferando:


– Então por que se interessar justo por você?! Tem milhares de
garotas naquela porcaria de Università.

Paramos também. Camille suspirou.

– Ele contou que gostou da minha postura defendendo a Clara. E que


eu sou simplesmente... O tipo dele. Disse que passou por uns momentos
difíceis nos últimos anos, mas que agora finalmente pode recomeçar.
Conhecer uma mulher legal e ser feliz. Quando me viu, me achou linda e
destemida. E agora que está solteiro... Me chamou para sair. Acha que
podemos nos conhecer melhor e ver no que vai dar.
Eu queria morrer, derreter no chão e sumir. O golpe foi feroz. Quase
me inclinei e segurei a barriga, tentando não me despedaçar.

Tristan não estava tentando me atingir. Aquilo era coisa de


adolescente. Ele era um vampiro de cem anos com muito mais o que fazer;
tinha problemas maiores do que se vingar de mim. O garoto realmente gostou
de Camille. Depois de longos cem anos, finalmente estava livre para viver
um amor e recomeçar. Nós terminamos sem traição e sem ódio. Terminamos
porque não havia perdão.

Ele me avisou: eu vou sair com outras mulheres e te tirar do meu


coração.
Eu conhecia Tristan. Ele estava decidido a seguir em frente. Não era
uma vingança, era um interesse sincero.

O que só fazia doer mais.

Olívia notou minha reação. Eu não conseguia falar ou me mexer.


Virou-se para Camille, apavorada:
– Você não vai aceitar sair com ele, vai?

– Óbvio que não. Só achei que devia contar. Eu não faria isso com a
Clara.

– Graças aos céus! – Colocou a mão no peito dramaticamente. – Ex-


namorados de amigas são territórios proibidos, e todo mundo sabe. É uma
regra básica de lealdade.
E, assim, o tempo passou.

Quarenta e cinco dias transcorreram. Tristan não aparecia mais na


Università. Segundo fiquei sabendo, transferiu suas aulas para a noite.

Agora, a Università também funcionava à noite, para os vampiros-


vivos. É claro que os humanos de fora não sabiam a razão para a famosa
faculdade adicionar aulas noturnas. Acreditavam que o fluxo de alunos era
grande demais para o dia.
Na verdade, o esquema foi feito para os vampiros vivos não
queimarem ao sol.
Normal.

O término com Tristan deixou suas marcas. Eu não me sentia


fisicamente bem. Sempre cansada, nauseada e deprimida. Foi um mês
complicado.
Camille seguia estranha. Falava pouco e não olhava nos meus olhos.
Parou de frequentar nosso quarto, inventando desculpas para não voltar
conosco depois das aulas.

Um dia, eu decidi confrontá-la. Não queria que a situação com Tristan


prejudicasse nossa amizade. Era tão raro encontrar amigos de verdade...

Na hora do almoço, fui até o auditório de música, onde ela ensaiava


com seu professor todos os dias. Abri a porta. Camille estava no palco com o
professor. Ela tocava o violino, enquanto ele ditava algumas ordens. As
cadeiras da plateia estavam vazias...
Exceto por alguém.

Tristan se sentava na fileira da frente, observando-a. Mesmo de


costas, eu pude reconhecê-lo. Os ombros largos, os cabelos negros
bagunçados...

A porta não rangeu e ninguém me notou entrar. Silenciosamente, saí,


fechando a porta sem fazer barulho. Recostei-me na madeira, sem ar. O
coração, na boca. O que ele estava fazendo ali, assistindo à Camille?
Voltei para o refeitório correndo.

Olívia se sentava à mesa dos di Santorum. Me sentei ao seu lado; ela


perguntou:

– E aí, achou a Camille? Vocês duas precisam resolver seus


problemas.
– Não – menti. – A aula era fechada. Não podiam receber visitantes.

– Ah, sim. Então você fala com ela hoje à noite.

– Claro. – E bebi minha Coca-Cola.

Fiquei em silêncio a partir daí. Apenas ouvindo um caso que Eros


contava.

Os cacos do meu coração caídos ao chão.

****

Tudo piorou.

Resolvi testar uma teoria nos dez dias seguintes. Antes de ir para o
refeitório, eu passava nos treinos de Camille. Olhava pela fresta da porta
como uma stalker maluca. Pois é.
Tristan estava sempre lá. Sozinho, assistindo-a tocar em silêncio.
Parecia estar... Cortejando-a.

Camille ficava cada vez mais distante. Parecia sofrer. Não


transparecia a aura de uma mulher apaixonada, vivendo o ápice de um
romance. Pelo contrário. Ostentava olheiras sob os olhos, cabelo desgrenhado
e pensamentos distantes. Estava péssima.

Certo dia, eu vi um motoboy entregar um buquê de rosas vermelhas na


porta do seu quarto. Estava chegando ao alojamento, e ela não me notou.
Camille abriu a porta e, quando viu o cartão do buquê, fechou os olhos,
sofrendo. Ela agradeceu ao entregador e pegou o buquê. Então, entrou no
quarto e se trancou lá dentro. Não parecia nada feliz.
Havia alguma coisa séria acontecendo com a minha amiga.
Infelizmente, ela não me dava mais abertura para perguntar. Colocou um
muro ao redor de si.

Aquilo me magoava profundamente. Eu sentia a sua falta.

Naquela noite, mandei-lhe uma mensagem. Por favor, vamos


conversar. Você sabe que eu te amo. Nossa amizade é valiosa demais para
acabarmos com tudo assim.

Minutos depois, ela respondeu. Eu também amo você. Muito. Você é


minha família neste país.

Então vamos resolver nossos problemas.


Vamos. Minha colega de quarto saiu, venha até aqui para
conversarmos?

Estou indo. Coloquei o meu roupão e fui. Olívia já dormia, e nem me


notou sair.

Saí e bati na porta do quarto dela. Ela abriu, usando pijamas. Quando
me viu, caiu no choro imediatamente e me abraçou com desespero. Eu
retribuí o abraço:
– Estava com saudade...

– Eu também.

Entramos. Nos sentamos lado a lado em sua cama.


– Conta para mim o que está acontecendo. – Pedi.

Ela negou com a cabeça, enxugando as lágrimas.

– Não dá. É muito horrível.


– Você está sofrendo, está na cara. – Respirei, tomando coragem para
tocar no assunto. – Tem a ver com o fato de o Tristan aparecer todos os dias
nas suas aulas?

Camille olhava para baixo. Face corada por vergonha.

– Já faz dois meses que ele aparece. Me manda flores, presentes e


mensagens com declarações. E todo tipo de coisa romântica. Pensei que sua
atenção iria parar com o tempo, mas só aumentou. Ele não desiste.

Ai, meu Deus. Meu abdômen se contraiu e minha garganta se fechou.


Tentei ficar calma:

– O que ele faz?


Ela suspirou e saiu da cama. Ajoelhou-se e chamou:

– Venha e veja você mesma.

Eu me ajoelhei também. Embaixo da cama dela, havia toda sorte de


objetos. Muitos buquês de flores e caixas luxuosas. Todos, presentes dele.
Camille pegou uma das caixas e abriu. Era um anel de diamante.
Pequeno e solitário, mas ainda assim um diamante. Dentro da caixinha, havia
um bilhete escrito à mão, que dizia: dê uma chance para nós dois. Era a letra
do Tristan.

– Ele te deu um anel? – arfei.

– E brincos, e colares, e flores... – Camille engoliu em seco,


angustiada. – Ele disse que quer ir a Israel conhecer os meus pais, Clara. –
Levantou-se e sentou-se na cama. Passou a mão pelos cabelos desesperada. –
Não sei o que fazer. Perdi o controle da situação.
Naquele momento, meu coração estava despedaçado no chão. Eu
pisava em seus cacos.

Então, olhei para a minha amiga.


Camille tinha emagrecido. Andava pálida, calada e com olheiras sob
os olhos. Claramente vivenciava um conflito interno, e sofria para cacete por
isso.

A doce e gentil Camille. Aquela que amava a música e a arte. Aquela


que tinha o mais generoso e sensível dos corações. Aquela que me conquistou
à primeira conversa. Eu a admirava e a amava, e sabia que ela era a melhor
mulher que um homem poderia ter.

Sentei-me ao seu lado.

Era a hora de recolher a minha própria dor e agir como uma amiga de
verdade.

– Fala a verdade para mim. Me diz por que você está sofrendo.
Ela escondeu o rosto entre as mãos e recomeçou a chorar. Esperei que
se acalmasse. Então, peguei uma de suas mãos e entrelacei meus dedos nos
dela. Camille me confortou tantas vezes, me deu seu colo para eu chorar
tantas vezes... Era hora de retribuir o favor. Reuni toda a minha coragem para
fazer a pergunta.

A pergunta que mudaria tudo.

– Você está apaixonada por ele?


Ela apenas me fitou com aqueles seus olhos. Grandes, lindos e
castanhos. Agora, molhados por lágrimas de culpa.

– Eu acho que sim. – Confessou, arrasada.

Fechei as pálpebras, tentando lidar com golpe de dor. É claro que


estava. Tristan era um homem extraordinário, e quando ele queria conquistar
uma mulher, não tinha para ninguém. Ele entregava tudo de si.
Respirei fundo e abri os olhos.

– Vocês já ficaram?

– Claro que não, Clara! – ela se ofendeu. – Eu estou o afastando há


meses.

– Por causa de mim?

Demorou a responder. “Sim”, confessou baixinho.

– E por quê?

– Porque ele já foi o seu amor. Vocês têm uma história. Não posso
ficar com ele, é desleal, é traição. Eu jamais faria isso com você.

– Mas você está se apaixonando...


– Isso não importa! Você é mais importante para mim. Eu irei
arrancar esse sentimento do meu coração de qualquer jeito. Nem que eu tenha
que sair desta porcaria de Università e colocar milhares de quilômetros entre
nós.

Eu ri.

Não sei por que ri. Dor e pesar inundavam o meu coração, mas, ao
mesmo tempo, havia outro sentimento ali. Parte de mim estava um pouco...
Tocada. O meu lado de amiga, aquele que queria ver Camille ser feliz. Era
um conflito bizarro de sensações.
– Você está disposta a fugir do amor dele por mim? Só para não me
ferir?

– Claro que sim. – Ela apertou minha mão, sincera. – Qualquer coisa
por você. Nossa amizade vale mais. Só me afastei porque estava tentando
processar os sentimentos.
Sorri tristemente. A sempre leal e gentil Camille. Por isso ela estava
sofrendo nos últimos meses... Seguia tentando lutar contra o sentimento para
não me ferir.

Foi quando cheguei à uma decisão. Camille já tinha sofrido o


suficiente. Tristan gostava dela, e ela gostava dele. Eu jamais o perdoaria,
nem voltaria para ele. Então, por que me tornei uma pedra no caminho dos
dois?

Naquela história, os três estavam infelizes. Estava na hora de libertar


minha amiga daquelas algemas emocionais, e deixá-la ser feliz. Ela mostraria
o amor para Tristan. O amor que ele jamais conheceu e que eu não pude dar.

Era hora de sair do caminho dos dois.

Apertando sua mão de volta, olhei em seus olhos.


– Escute bem, amiga. Só vou falar uma vez. Chega de lutar e de
sofrer, você já fez o suficiente. Já provou sua lealdade a mim, e eu nunca vou
esquecer. Tristan e eu não temos volta. Acabou de verdade. Eu ainda não
superei, mas vou superar, é só uma questão de tempo. A verdade é que vocês
dois formam um casal sensacional. Você é tudo o que ele precisa... A mulher
mais honesta e gentil que eu já conheci. Ele precisa de uma mulher com um
coração tão bom quanto o seu, e você merece viver um amor correspondido.

Ela franziu o cenho.

– O que isso significa?


– Que eu estou te libertando, você não me deve nada. Pode viver esse
amor.

Ela negou com a cabeça, olhos ficando marejados outra vez.

– Não, Clara! Não posso fazer isso com você.


Coloquei uma mão em seu ombro.

– Pode. Eu estou te dando a minha permissão.

– Mas... Eu não quero te perder... – se desesperou.

– Você não vai. – Fiz carinho em seu ombro. – Eu estou sempre aqui
por você. Nossa amizade não mudará.

Ela abaixou a cabeça e chorou.

– Ai, meu Deus. Estou com medo.

– Não precisa ter. Vocês dois vão dar certo.

– Tem certeza disso? Pensa bem. Não conseguirei ficar em paz se


você estiver sofrendo.
O que eu poderia fazer? Deitar-me no chão e chorar? Fazer um
escândalo? Eu terminei com Tristan. Eles se gostavam, e eu estava
atrapalhando. Não havia saída. Sair do caminho dos dois era a única atitude
lúcida a ser tomada. Éramos adultos.

– Tenho – sorri tristemente. – Vá ser feliz.

Ela me abraçou com gratidão e felicidade.

– Obrigada, Clara. Eu não mereço a sua amizade.

Retribuí o abraço, sincera. Em meu coração destruído, havia uma


pequena chama de felicidade. Era bom ver Camille feliz.

– Eu amo você. E isso nunca irá mudar.


Ela me abraçou mais forte:

– Eu também amo você.


****

A partir daí, tudo mudou.

Nos últimos tempos, Tristan estudava à noite. Só aparecia na


Università para contemplar Camille no auditório.

Isso mudou. Ele reformou o horário e voltou para a manhã. Tudo para
ficar com ela.

Camille também mudou seus horários; passou a comer no refeitório


nas horas normais. Não se sentava conosco, e sim com Tristan numa mesa
distante. Só os dois.
Eles se sentavam frente a frente, rindo e conversando. Pareciam se
conhecer. Foi a primeira vez em muito tempo em que vi o garoto feliz.
Camille estava tímida, mas ele a deixava à vontade. Comprava comida para
ela e absorvia suas palavras com atenção. Completamente envolvido. Parecia
querer conhecê-la de verdade.

Eu me sentava à mesa dos di Santorum. Observava-os de longe todos


os dias. Os irmãos e Olívia não deixaram de notar a direção de minha
atenção. Tentavam me animar.

Inicialmente, Olívia ficou chateada com Camille. Queria cortar


relações – mas eu não deixei. Contei que eu mesma havia dado a minha
permissão para aquele romance. Ainda assim, Olívia não conseguia engolir a
situação. Considerava uma deslealdade.
Já os di Santorum não se importavam com quem Tristan saía; só
estavam preocupados comigo.

Eu comia pouco e dormia mal. Ainda não tinha superado o garoto – e


nem o faria por muito, muito tempo. Um amor de oito anos não era extintor
do dia para noite. Eu vivia um processo. Enquanto isso, sofria cada gota
refinada de dor. Foi você quem quis isso, Clara, tentava me convencer. Você
o deixou. Ele disse que pretendia encontrar outra pessoa. Você permitiu que
Camille cedesse. Não tem por que sofrer quando a culpa é toda sua.

Eu sabia disso. Racionalmente, sabia. Mas meu coração não queria


entender.
Pequenos atos me dilaceravam. Por exemplo, quando os dois
andavam juntos de mãos dadas nos corredores – coisa que ele nunca fez
comigo. Ou Tristan indo buscar Camille todas as noites na porta do palacete.
Ela, sempre muito bem arrumada e linda. Provavelmente ele a levava para
jantar ou ir ao cinema. Programas de casal.

Passou-se dois meses.

Os dois se conheceram o suficiente, e a relação virou oficial. Camille


mudou seu status nas redes sociais para “namorando.” Postava diversas fotos
com Tristan. Ele não gostava e não sorria, mas claramente fazia aquilo por
ela. Eram fotos de abraços, passeios, restaurantes e viagens para o litoral.
Eu queria parar de me torturar vendo as fotos, mas não conseguia.
Estava obcecada. A cada foto postada, meu coração se estraçalhava um pouco
mais. Mesmo assim, eu stalkeava suas redes várias vezes ao dia.

Olívia percebeu minha obsessão. Certo dia, confiscou meu celular.

– Chega disso! Vamos fazer um dia de limpeza de redes sociais! – e


me levou para sair.
Fomos para a balada. Beijei algumas bocas desconhecidas e enchi a
cara. Uau, homens humanos! Eu quase havia me esquecido de que eles
existiam. E que nem todos eram vampiros malditos que acabavam com
nossas vidas.

Nenhum beijo significou nada. Não dei meu telefone para ninguém.
Meio bêbada, voltei para o alojamento e chorei o resto da noite. Olívia
deitou-se debaixo do meu cobertor comigo e ficou me confortando.
Em determinado momento, murmurou:

– Se você sabia que ia sofrer tanto, por que deu permissão para que os
dois ficassem juntos?

– Porque eu não posso ficar com ele. – Limpei as lágrimas.


– Dane-se isso. Diga que você se arrependeu, que quer voltar.

Eu quase ri. Possibilidade ínfima.

– E os di Santorum? Como eles ficam nesta história?


Ela suspirou.

– Não sei, Clara, não sei... Você está numa situação-limite, e não
existe uma solução ideal. Alguém irá sair ferido, só não quero que seja você.
Olhe o seu estado. Não está melhorando, e eu tô ficando preocupada.

– Voltar com Tristan iria partir o coração dos di Santorum, e o da


Camille. Além do mais... – encolhi-me mais debaixo dos cobertores, sentindo
o golpe de dor. – Ele está gostando dela, Olívia. Tristan está gostando da
Camille.
– E daí? Acha que ele não voltaria com você se tivesse a chance?
Qual é, o cara praticamente implorou por você há alguns dias, bem aqui,
neste quarto. Eu acho que ele voltaria correndo.

– Há dois meses, sim. Mas agora, não mais. Ela é um amor saudável,
e eu sou sinônimo de sofrimento. Nossa relação é fadada.
Suspirou.

– Então o que você irá fazer? Claramente não está conseguindo ver os
dois juntos todos os dias.
– Mudar minhas aulas para a noite? – fiz uma piada ácida.

– Há, há. Os vampiros vivos irão te estraçalhar.

Estalei a língua.

– Não me importo. Vai doer menos do que ver o casal do ano juntos
todos os dias.

Todos os malditos dias. Quando não estavam juntos na Università,


nos corredores ou refeitório – trocando carinhos e andando de mãos dadas –
Tristan a buscava no alojamento. Ela passava o final de semana fora e só
voltava às segundas.

No feriado, os dois viajaram juntos para Israel. Tristan conheceu os


pais de Camille e toda a sua família. Acompanhei as fotos e os vídeos pelo
Instagram. Houve uma festa animada na casa da garota, e, aparentemente, a
família Hollander Farah recebeu o garoto muito bem.

Claro que receberam. Um lindo genro italiano, maravilhoso e podre


de rico. Quem não?

Duas semanas depois, aconteceu.

Camille apareceu na porta do meu quarto. Parecia arrasada. Abraçou-


me de supetão, confessando que sentia a minha falta. Queria reatar nossa
amizade. Disse para Tristan que não passaria mais todo o tempo com ele, pois
precisava dedicar um tempo às amigas.
Eu aceitei.
Sendo razoável, Camille não tinha culpa de nada. Ela se apaixonou e
lutou contra isso o quanto podia. O meu coração partido era um problema só
meu. Então, resolvi ser adulta, fazer o certo e reatar nossa amizade.

Olívia foi mais difícil de conquistar. Ela guardava rancor e tomou


minhas dores. Camille, entretanto, lutou para reaver a amizade da garota.
Subornou-a com cafés, doces e acessórios. Apareceu em sua porta, mandou
milhares de mensagens, etc.

E, no fim, Olívia cedeu aos seus encantos.

Nós três voltamos a ser o que éramos: um trio inseparável. Exceto por
alguns detalhes. Por exemplo, no refeitório Camille sentava-se com Tristan,
não conosco. Às vezes, ela voltava da Università de carro com ele, e não a pé.
Quando íamos beber cerveja nos jardins do palacete, jogar cartas e conversa
fora, Tristan aparecia. Trazia comida e sentava-se conosco.

Não vou mentir: era constrangedor e bizarro. Ele me cumprimentava


com educação, e só. Eu não era nada além da amiga da namorada.
Os dois tinham uma química palpável, e conversavam com muita
fluidez. Ela o entendia, e ele ficava à vontade em sua presença.

Um amor saudável.

O tempo foi passando e a situação se tornou normal.


Fazia três meses desde que terminei com Tristan. O relacionamento
dos dois engatou de vez, e ficou muito sério. Ele estava sempre conosco. Eu
evitava falar ou olhar em seus olhos, mas o garoto não demonstrava nenhum
desconforto. Falava comigo naturalmente. Como se houvesse, realmente, me
superado.

Com o passar das semanas, eu comecei a aceitar aquela verdade. A


gente se acostuma com a dor, a processa e simplesmente... A aceita. Eu
estava longe de superá-lo – mas sabia que, algum dia, o faria. Olharia para os
dois e não sentiria mais nada.

Acabou. Era hora de assimilar a realidade. Cravar suas raízes em meu


coração e seguir em frente.
Tristan e Camille completaram 4 meses de namoro.

Aquela era uma ocasião especial. A avó de Camille estava vindo para
a Itália nos visitar. Camille estava animadíssima e queria nos apresentar. Ela
buscaria a avó no aeroporto e deixaria suas malas no hotel. Depois, nos
encontraria num restaurante no centro.

Às seis da tarde, Olívia e eu fomos encontrá-las. Elas já nos


esperavam no passeio, na porta do restaurante.
A avó de Camille se chamava Raizel. Um senhora na casa dos 70
anos, com os mesmos olhos castanhos e doces da neta. Simpática e muito
amorosa. Camille falava muito sobre ela. Dizia que a avó era super sensitiva,
e adorava mexer com oráculos, tarôs e outras atividades místicas. A família
Farah não acreditava em seus “dons.” Consideravam-na, apenas, uma senhora
excêntrica.

Raizel parecia encantada com a cidade. Tirava fotos de tudo.

Olívia e eu atravessamos o passeio e nos aproximamos. Sra. Raizel


usava roupas engraçadas e coloridas. Muitas brincos e colares. Realmente
uma excêntrica adorável. Camille e ela eram muito próximas.
Ao ver-nos, ficou super alegre. Nos cumprimentamos com abraços
animados. “Ah, que ótimo finalmente conhecer vocês duas!”, falava em
inglês. “As amigas da minha neta! Ela fala muito de vocês! Vocês estão
salvando a vida dela neste país!”

Sra. Raizel elogiou o cabelo e o estilo de Olívia. Depois, virou-se para


mim. Pegou minha mão carinhosamente, abrindo um sorriso.
– E então, querida, já faz quanto tempo?

Retribuí o sorriso, sem entender muito bem.

– Como assim?

Ela fitou minha barriga.

– Ora, que você está grávida. Já faz um tempo, não é? Não consigo
adivinhar quantos meses... Sua barriga está muito pequena, mas sinto que a
gestação já está avançada.

Encarei-a, face assombrada.


– Como é? Eu não estou grávida.

Ela riu.

– Claro que está, minha menina. Eu nunca erro uma adivinhação.


Faça o teste... – colocou a mão sobre minha barriga e fez carinho. – Tem uma
criancinha aí dentro ansiosa para que você a conheça. Ela quer que a mãe
saiba que já está vindo.
Todas ficamos paralisadas. O olhar de Camille refletia completo
horror:

– Vó, a senhora tem certeza do que está falando?

Sra. Raizel olhou para a neta.


– É óbvio que sim, Camille. Faço isso há quarenta anos. Já me viu
errar alguma adivinhação?
Camille engoliu em seco e olhou para mim, apavorada.

– Não. Ela nunca erra.

Olívia quase se engasgou. Voz estrangulada.

– Isso é impossível! – segurou meus ombros e falou sério. – Clara,


pensa. Quando foi a última vez em que você teve relações com alguém?

Olívia já sabia a resposta. Sua face só refletia o meu próprio pavor.

Nos últimos quatro meses, me fechei no meu casulo e não saí com
ninguém. A última pessoa com quem aconteceu foi...

Tristan.
Pedi licença e saí.

Carreguei Olívia comigo. Corremos para a farmácia mais próxima e


compramos um teste de gravidez. Eu fiz o teste no próprio banheiro da
farmácia.
Esperávamos os minutos necessários. Sentava-me por sobre a tampa
do vaso, coração acelerado. Olívia se recostava na parede de azulejos, tensa.
Nossos celulares não paravam de tocar... Era Camille querendo saber para
onde havíamos ido.

Ignorávamos. Ainda não era o momento.

O teste ficou pronto. Lá estavam as duas linhas no plástico,


confirmando o resultando.
Positivo. Eu estava grávida.

– Ai, meu Deus. – Quase berrei. – Como é possível?!

Não, não, não. Simplesmente não. Respira, Clara. Não entre em


pânico.
– Isso não faz sentido! – Olívia andava de um lado para o outro no
cubículo. – Já faz quatro meses que vocês tiveram relações, era para você
estar na metade da gestação. Como a sua barriga ainda não apareceu?

Eis o mistério. Sim, eu havia engordado um pouco – apenas um quilo.


Consequência básica de se viver na Itália. Mas eu não era paranoica com
peso e nunca me importei. Minha barriga mudou milimetricamente. Somente
olhos mais perspicazes poderiam perceber.

Aquilo não fazia sentido. Uma mulher grávida de quatro meses já


teria uma barriga proeminente.
– Impossível, Olívia, eu tomo anticoncepcional.

– Métodos anticoncepcionais falham, e você sabe. Nada é cem por


cento garantido.
Sentava-me sobre o tampo do vaso, mãos na cabeça.

– Mas nunca aconteceu comigo.

– Tomava regularmente? Não errou nem uma vez?

Desviei os olhos, pensando. Da primeira vez em que transei com


Tristan, eu usava anticoncepcional religiosamente. Porém, depois...
Aconteceu toda aquela história de paralisia. Não tomei meus remédios
naquele mês.

Ademais, quando meus avós me visitaram, tive uma leve dor de


garganta. Tomei três dias de antibióticos, prescritos pelo médico da
Università.

– Errei algumas vezes. Não o usei no mês da paralisia e tomei


antibióticos por 3 dias. – Alguns dias antes de transar com Tristan no ateliê.
– Porra, Clara! Todo mundo sabe que antibióticos cortam o efeito de
anticoncepcional!

Me levantei. Comecei a entrar em pânico.

– Não, não é possível. Compre outro teste para mim. – E dei dinheiro
para ela.
Olívia saiu do banheiro; foi até o balcão da farmácia e comprou outro
teste. Urinei no plástico e, novamente, lá estava...

Positivo.

– Ai, meu Deus. – Recostei-me na parede do banheiro e fui descendo


até cair no chão. Enterrei a cabeça entre os braços. – Estou muito ferrada.

Muito. Ferrada.

– Como você contará para o Tristan? – Olívia se ajoelhou à minha


frente.

– Não sei – comecei a chorar. – Ele é namorado da minha melhor


amiga.

– Isso é o de menos. O problema de verdade é que ele é um maldito


vampiro.
Nós duas percebemos o fato ao mesmo tempo. Nos encaramos,
aterrorizadas.

– Ai, meu Deus, Clara! Seu filho vai ser...

Um vampiro.
****

Voltamos para o alojamento.

Eu bati à porta da Sra. Francesca. A governanta era uma mulher


humana que conhecia muito bem o mundo dos vampiros. Era confiável e
guardaria segredo. Poderia me ajudar.
Ela atendeu, surpreendida. Ninguém a procurava aos fins de semana.

– Srta. Clara? Posso ajudar?

Segurei suas mãos. Expressão apavorada e olhos vermelhos de tanto


chorar.
– Preciso de você, Francesca. Por favor me deixe entrar.

– Claro, entre.
Seu quarto era o maior do alojamento. Continha uma cozinha e sala
de estar anexa. Um pequeno apartamento. Nos sentamos à mesa de jantar. Ela
fez um chá de camomila e me ofereceu; eu bebi, mãos tremendo.

Contei a verdade parcial a ela. Disse que fiz um teste de gravidez e


deu positivo; minha última relação sexual havia sido há 4 meses, e eu não
ostentava nenhuma barriga. Havia parado de menstruar, sim, mas o médico
dos di Santorum avisou que aquilo poderia acontecer. Uma consequência do
veneno da paralisia. Até o meu corpo voltar ao normal, levaria algum tempo.

– Entendi... – ela tentava me acalmar. – E o pai é um dos vampiros da


Università?

– Sim. – Não entrei em detalhes. Só tentava parar de chorar.

– Ah, minha criança... – ela pegou minhas mãos por sobre a mesa. –
Agora tudo faz sentido. Uma gravidez de vampiro é muito diferente das
gestações humanas. Dura um ano e meio. Aos quatro meses, você não
consegue ver a barriga ainda. Como eles são criaturas muito mais complexas,
demoram mais tempo para se formar no útero. Você tem se sentido cansada
ou nauseada?
– Sim, completamente sem energia. – Mas eu também estava
enfrentando um processo de luto por um término. Claro que estava sem
energia. Pensei que estivesse em depressão. Não queria sair da cama e comia
pouco.

E não, não era porque eu estava fodidamente triste. Era porque eu


estava grávida!

– Então conte ao pai do bebê. Ele irá ficar louco de alegria! Os


vampiros raramente procriam, e uma gravidez dessas é um milagre. Eles
consideram uma honra e uma benção ter um herdeiro. Acontece muito, muito
raramente. Às vezes, um casal fica junto por trinta anos e pode nunca
engravidar. E, se acontecer, é só uma vez na vida da parceira. O sêmen dos
vampiros é muito diferente. Você não entende o que está se passando aqui? –
ela sorriu, emocionada. – Isso é um milagre, querida! O pai do seu filho
ficará fascinado.

Apoiei os cotovelos por sobre a mesa. Isso não estava acontecendo.


Escondi o rosto entre as mãos.

– Não estou pronta para ser mãe.

– Você terá mais de um ano para se acostumar à ideia. Não sei como
funciona a política de aborto no país de onde você veio, se é lícito ou não.
Cada país é um país. Mas agora é tarde para pensar nisso. Você já está de
quatro meses, e não é mais uma opção. A concepção se desenvolveu e não é
mais um amontoado de células, sem coração ou sentimentos. Agora, o feto já
sente tudo.

Caralho, estava ficando muito real.


– Além do mais, tentar um aborto à esta altura também poderia te
matar. É um bebê vampiro, muito mais forte que você.

– Só que o pai da criança e eu não estamos mais juntos. – Limpei as


lágrimas.

Tsc, aquilo era o eufemismo do ano. Nossa história era complicada


demais para ser explicada.
– Isso não importa. Ele irá criar o herdeiro com todo amor.

– Mas eu vou embora para o Brasil quando o bebê nascer.

Eu já estava na Itália há quase seis meses. A gestação durava um ano


e meio, e o meu mestrado durava dois anos. Logo, eu estaria em vias de ir
embora quando parisse.

Franziu a testa.

– Impossível, querida. Os vampiros não aceitam ficar longe de suas


proles quando nascem. Ou você terá que se estabelecer na Itália, ou o
vampiro terá que se mudar para o seu país. Você veio da América do Sul, não
é?

Tristan nunca se mudaria. Ele havia conquistado o trono da espécie


recentemente, e se fosse embora perderia tudo. Um plano de cem anos – de
abdicação e estratégia – jogado pelo ralo? Impossível. Sienna e seus
apoiadores jamais aceitariam.

De repente, o que aconteceria no futuro ficou óbvio. Cristalino.


Tristan se casaria com Camille, e eu teria que ficar na Itália criando o
filho dele. Passaria o resto da vida assistindo aos dois como um casal.
Moraria longe dos meus avós e do meu país natal. Aquela gravidez colocaria
um grilhão em meus pés – e me prenderia à vida de Tristan para sempre.

Qual era a alternativa? Ir embora para o Brasil e deixar meu filho aos
cuidados de Tristan?

Nunca, jamais. Era uma situação sem saída.


Além do mais, os di Santorum ficariam arrasados se soubessem. Eu,
carregando o filho do traidor? Não, impossível de aceitar. Eu os perderia
também.

Aquela não era a vida que sonhei para mim. Queria ser livre no meu
próprio país, esquecer as insanidades que vivenciei na Itália, e deixar para
trás meu maldito coração partido. Tristan não poderia tirar meu recomeço de
mim.
Levantei-me da mesa de supetão. A ideia, travando as garras em
minha mente e coração.

Eu sabia o que fazer. Se o garoto soubesse da gravidez, me


acorrentaria à sua vida para sempre. Tiraria meus sonhos e liberdade.
– Querida, você está bem?

– Estou, sim. – Murmurei, dentes trincados.

A decisão foi tomada.

Tristan não poderia saber daquela gravidez. Nunca. E eu iria embora


desse país o mais rápido possível.

****

Raspei a minha conta bancária. Entrei no site da empresa aérea e


comprei a passagem para o Brasil. O voo sairia amanhã à noite.
Ao saber, Olívia chorou muito. Mesmo assim, jurou guardar meu
segredo. Entendia minhas razões. Viver refém de Tristan para o resto da vida
era demais para mim. Eu não queria nenhuma correlação com aquela família
de vampiros maluca. Meu filho não cresceria neste ambiente de disputa,
traição e ódio.

Eu já sabia o suficiente sobre vampiros. Poderia alimentá-lo com


bolsas de sangue e com comida humana. Arranjaria um emprego qualquer no
Brasil.

Dane-se. Eu daria o meu jeito.


Naquela noite, Camille bateu à porta do meu quarto. Já havia deixado
sua avó no hotel e correu para cá. Perguntou-me sobre a questão e, de
coração partido, eu tive que mentir.
– Não foi nada, Cami. Fiz dois testes de gravidez. Deram negativos.

Ela arqueou as sobrancelhas.

– Tem certeza? Minha avó nunca erra nessas coisas. E você não saiu
com aquele carinha na balada, da última vez?

– Pois é. – Apenas beijei, não transei. Mas ela não sabia disso. – Mas
os testes foram claros. Além do mais, veja isto – levantei minha blusa,
revelando a barriga lisa. – Continuo magrela como sempre. Pareço uma
mulher grávida para você?

Ela riu.
– Não, não parece. Desculpe a minha avó, viu? Geralmente ela é
muito lúcida. Não sei por que errou tão feio desta vez...

Revirei os olhos.

– Até a mais fodástica das adivinhas tem seus momentos.


Ela riu de novo.

– Ok, desculpa pelo drama de hoje. Vamos sair amanhã de novo? Eu


vou levar minha avó em alguns museus. Sei que você adora isso, nerd da
História. Além disso, ela fica me perturbando, querendo conhecer você e a
Olívia. Não é para menos... Eu só falo de vocês duas para minha família. Eles
praticamente já as conhecem.

Sorri. Que doce.


– Vamos, sim.

– Tá bom! Te vejo amanhã, então. – Me lançou um beijo e foi saindo.

– Ei, Cami? – chamei-a.


Ela parou e se virou, inocente.

– O quê?

Andei até ela e lhe dei um forte abraço. Ela retribuiu, surpresa.

– O que houve, sua doida? – soltou uma risadinha. – Está


sentimental? De TPM?

– Algo assim. – E a abracei mais forte. Provavelmente, seria uma das


últimas vezes em que eu veria a minha amiga. Tão ingênua e bondosa amiga.
– Te amo, tá?
– Eu também te amo.

Desvencilhei-me e baguncei seus cabelos.

– Agora vá dormir. Amanhã o dia será agitado com a sua avó. Ela te
fará andar pela cidade toda, sabe como são esses turistas... – fiz piada.
Ela estalou a língua.

– Claro. Falou a garota que tirou selfie em cada canto de Roma.

Rimos e nos despedimos. Voltei para o meu quarto e fui dormir.


Coração apertado.

O domingo chegou. Meu voo partiria às onze da noite.

De manhã, saí com Camille e a avó. De tarde, fui até a ala dos di
Santorum me despedir. Anteriormente, mandei uma mensagem para Eros e
pedi para que todos se reunissem na hora do almoço. Já estava com as malas
prontas. Subi ao segundo andar e me encontrei com os primos. Nos sentamos
na sala de estar, e eu contei que estava partindo.

Eles surtaram, incrédulos e magoados. Athos especulou:


– Isso é por causa do Tristan e a nova namorada? Você não está
conseguindo ver os dois juntos?

– Sim. – Menti. Eu precisava de uma desculpa plausível.


Azlam bufou:

– Se for, então mude de faculdade. Nós podemos arranjar isso! Te


transferimos para outra Universidade em Roma. Temos contatos em todos os
lugares.

– Mas eu ainda veria a Camille no alojamento. E onde ela está, ele


está.
– Eu alugo um apartamento para você, porra! Não é motivo para ir
embora.

Athos considerou:

– Existe outro jeito de resolvermos isso, Clara. É só você se afastar


dos dois completamente. Mude de universidade e de casa.
– Não tenho dinheiro para isso.

Azlam se ofendeu.

– Está de sacanagem com a nossa cara?! Somos vampiros de 500


anos! Temos mais dinheiro do que conseguimos gastar. Podemos muito bem
alugar um apartamento para uma amiga.
– Exato – Athos concordou. – Eu conheço o Reitor da Università de
Roma. Eles têm um ótimo programa de História também. Não tão famoso
quanto o da nossa Università, mas ainda assim excelente. Você pode terminar
o seu mestrado lá e se mudar do alojamento, pronto. Não precisa ir embora.

Eros mantinha-se estranhamente calado. Sentava-se ao meu lado,


braços cruzados e face gélida.

– Fale alguma coisa, Eros! – Azlam ficou furioso. – Vai deixar a


Clara partir assim? Só por causa de um coração partido? Isso é ridículo.
Antes fosse.

Eros se levantou de supetão, irado.

– Ela pode fazer o que bem quiser. Não me importa. – E saiu da sala,
batendo a porta com força.

Athos suspirou.

– Você está fodendo com o coração do garoto, Clara. Você é a


primeira amiga de verdade que ele teve em anos. Ele não está pronto para te
perder. Toda essa raiva é só uma máscara para a tristeza... Conversem.

– Ok, vou ir atrás dele. – E me levantei.


Fui até o quarto de Eros. Bati à porta, mas ele não atendeu. Abri
mesmo assim e fui entrando.

O vampiro jogava videogame na TV imensa de plasma. De costas, me


ignorava totalmente. Sentei-me ao seu lado no sofá. Ele jogava um jogo de
tiros muito violento; parecia canalizar a raiva nos botões.

– Não vai falar comigo? – tirei os sapatos e enrolei os braços nas


pernas.
Eros continuou jogando, olhando para frente. Insisti:

– Qual é? Nós somos amigos, não me trate assim. Vamos conversar.

Soltou um sorriso de escárnio.


– Amigos? Amigos não abandonam uns aos outros. Não venha com
essa conversinha para cima de mim. É hipocrisia.

Suspirei.

– Eu preciso ir, Eros. Não estou feliz aqui.

Ele pausou o jogo e largou a manete. Virou-se para mim, furioso.

– Está achando que eu sou idiota? Você engana ao Azlam e ao Athos,


mas não engana a mim. Eu te conheço muito bem. Então pare de mentir.

– Do que está falando?

– Você viveu por 4 meses sem o Tristan! Passou por cima da mágoa e
voltou a ser amiga da tal Camille! E agora, de repente, não aguenta mais vê-
los juntos? – bufou. – Isso não passa de uma desculpinha esfarrapada. Não
está colando, Clara. Acho que vou engolir essa mentira?

Engoli em seco. O garoto era esperto e me conhecia bem. Sabia que


eu não largaria um mestrado por homem nenhum. Minha educação era
prioridade na minha vida. Eu entendia que o mercado de trabalho lá fora era
difícil, e tinha dois avós para sustentar.
– Não estou mais feliz na Itália. Quero voltar para casa, tenho saudade
da minha família.

Franziu o cenho.

– Mas nós podemos ser a sua família. Está se sentindo sozinha?


Mude-se para cá. Mandarei preparar um quarto para você bem ao lado do
meu.
– Não exagera – eu ri. – Nos mataríamos na primeira semana.

Ele suspirou. Capturou a minha mão por sobre o sofá.

– Qual é, Clarinha? Você é a minha primeira amiga em anos. Eu


nunca consegui criar uma amizade real com uma mulher antes.

– Claro, porque você transava com todas. Sorte a sua que eu não te
quis.
– Pode se enganar, você não é meu tipo.

Fingi choque.

– Está louco? Eu sou o tipo de todo mundo!

Revirou os olhos.

– O meu, não. Graças ao Deus dos vampiros.

Ficamos em silêncio por um tempo.


– Desculpa, Eros, eu preciso mesmo fazer isso.

– Mas nós passamos por tanta coisa juntos... Como você pode nos
abandonar assim?

– Vocês irão sobreviver sem mim. Eu sou só uma humana. Quantas


mulheres humanas já passaram pela vida eterna de vocês?
Ele se recostou no sofá, arrasado.

– Mas você é diferente. É a nossa parceira do crime. Morou em nossa


casa, conheceu nossos segredos... – fitou-me de soslaio, triste. – Nós já
perdemos alguém antes. E doeu como o inferno.

Tristan.
– Pois é... Todos nós o perdemos.

– Vai ser foda ficar sem você. Me acostumei à sua chatice.

Inclinei-me e baguncei seu cabelo.


– Nós vamos nos ver de novo. Venha me visitar no Brasil.

– É claro que irei. As mulheres brasileiras precisam desfrutar deste


corpinho – e apontou para si mesmo. Meio irritado, meio emotivo.
Rimos. Após um tempo, ele me olhou, novamente sério.

– Você não vai mesmo me contar a verdade?

– Qual verdade?

– A razão de estar indo embora. A razão real.

Meu coração se encolheu. Mentir para ele seria em vão. Então, resolvi
apenas omitir. Eros era perspicaz demais para ser ludibriado.

– Não, desculpe. É um segredo só meu.


– Então, se é assim... – retirou um anel do dedo indicador. Uma peça
preciosa que sempre usava. – Fique com isto. – E colocou o anel na minha
mão. Aro de ouro, pedra de diamante vermelho. – Vale uma fortuna em
qualquer joalheria. Irá te ajudar a recomeçar.

Abri a boca para recusar – óbvio. Não aceitava dinheiro de homens.

Não obstante, algo aconteceu. Algum instinto me parou.

Eu não cuidaria mais apenas de mim. Havia uma criança no meu


útero, e um dinheiro extra me ajudaria a criar o bebê melhor. Colocá-lo numa
creche boa e confiável, comprar as melhores fraldas e mantimentos, levá-lo a
bons médicos...

Franzi o cenho, um tanto tocada. Seria aquele o meu primeiro ato


como uma mãe? Passar por cima do orgulho pelo bem de alguém mais
precioso?

Resignada, coloquei o anel no bolso. Sentia um quentinho no coração.


– Obrigada.

Ele apertou minha mão.

– Obrigada a você por aparecer em nossas vidas. Sempre que quiser


voltar para a Itália, saiba que tem uma família à sua espera aqui.

****

Olívia e os primos me levaram até o aeroporto.

Foi uma despedida triste. Fui chorando por horas e horas, encolhida
na classe econômica. Algumas aeromoças perguntaram se eu estava bem, se
precisava de ajuda. Eu disse que não. Como poderiam me ajudar a superar
um amor malfadado? E lidar com um filho vampiro crescendo no útero?

Quando pousamos no Brasil, já era dia.


Meus avós me receberam no aeroporto. Me abraçaram com pesar.
Tive que inventar uma justificativa plausível, dizer que não estava me
adaptando ao mestrado. Afirmei não conseguir acompanhar as aulas em outro
idioma. Eles não me forçaram, e me apoiaram na decisão de voltar.

Eu só contaria sobre a gravidez depois de alguns meses. Como os


explicaria uma gestação de um ano e meio? Ademais, quando o bebê
nascesse, eu teria que me mudar. No dia a dia, meus avós perceberiam que a
criança era diferente. O sangue na mamadeira seria um choque.

Por isso era imprescindível que eu conseguisse um emprego.


Precisava começar a juntar dinheiro o mais rápido possível (antes que a
barriga aparecesse).
Voltamos para a casa dos meus avós. Era estranho estar no Brasil
outra vez. Sentia falta do clima, do arroz com feijão, das nossas músicas...
Mas, ao mesmo tempo, sabia que havia deixado coisas preciosas para trás.
Meu coração ficou na Itália. Junto às minhas amigas, irmãos, um grande
amor e um sonho de carreira. Tudo arrancado abruptamente de mim.

Deitei-me em minha cama e chorei o dia inteiro. Meus avós não me


incomodaram. Achavam que eu chorava pelo fim do mestrado.
Não era isso. Havia um problema maior: eu não estava pronta para
ser mãe. Nem sabia se queria ter filhos algum dia, pelo amor de Deus. Como
iria criar um bebê sem o pai? Escondendo sua existência pelo resto da vida?
Como eu iria alimentá-lo, ter acesso às bolsas de sangue?

Precisava o ensinar o autocontrole. E se ele machucasse os


coleguinhas da escola, da creche? Seria, provavelmente, uma criança muito
forte e faminta.

Médicos humanos saberiam fazer o parto? Ele nasceria um híbrido?


Um vampiro vivo ou um vampiro morto?
Meu Deus, eu estava perdida. Não tinha ideia do que fazer.

Já era tarde da noite. Meu celular começou a tocar. Uma ligação


internacional de Olívia.

Atendi. “Ah, oi, Oli. Desculpa não ter respondido às suas mensagens.
Estava exausta. Mas agora cheguei em casa e estou bem.”
“Clara”, ela atropelava as palavras, tensa. “Preciso te contar uma
coisa. Temos um problema.”

Me sentei na cama, coração acelerado. “O quê?”

“Eu tentei esconder ao máximo sua partida da Camille, mas ela não é
boba. Entrou aqui no quarto e viu que suas coisas tinham sumido. Me
pressionou e me fez confessar. O Tristan ficou sabendo da sua partida através
dela. Ele enlouqueceu com a notícia, Clara. Os dois brigaram feio, e ele
comprou uma passagem para o Brasil. Disse que vai ir até aí te trazer de
volta.”

“Como é que é?!”, quase berrei.


“É verdade. A Camille deu-lhe um ultimato. Disse que, se ele fosse
atrás de você, tudo estaria terminado entre eles.” Ela engoliu em seco,
perplexa. “O Tristan te escolheu, Clara. Terminou tudo com a Camille e está
indo atrás de você.”

Joguei os cobertores para longe, me levantando. “Está de


sacanagem?! O Tristan está vindo para cá?!”

Não. Era. Possível.


“Está indo, não. Já deve ter chegado. A briga aconteceu várias horas
atrás. Só agora que a Camille veio me contar. O garoto deve estar pousando
em Recife a uma hora destas.”

Puta que pariu.

“Ah, meu Deus. Ele não pode descobrir sobre a gravidez.”

“Eu sei. Arrume suas malas e vá para um lugar onde ele não possa te
encontrar. Ele conhece a casa dos seus avós?”

“Provavelmente, sim.” Ele me observava há anos, afinal. Estava no


Brasil na época do enterro da minha mãe. Devia saber onde eu morava desde
então.

“Então corra daí!”


“Tá bom, vou desligar. Obrigada por contar. Te darei notícias.”
Desligamos. Peguei uma mochila e coloquei algumas coisas dentro.
Roupas, dinheiro, celular, itens de higiene pessoal. Só o básico.

Já eram onze e meia da noite. Meus avós estavam dormindo. Eu sairia


e ligaria para eles de manhã. Até lá, inventaria uma desculpa qualquer. Algo
como “meu ex louco está vindo atrás de mim, não falem do meu paradeiro.”
Bem... Não deixava de ser um pouco verdade.

Parei na porta de casa. Morávamos num bairro tranquilo e deserto, no


subúrbio. Não havia ninguém na rua. Entrei no aplicativo do celular e chamei
um Uber. Demoraria 15 minutos até o motorista chegar, então me sentei na
calçada e esperei.

Tinha a mente acelerada e o coração inundado por sentimentos


conflitantes. Tristan terminou com Camille e me escolheu. Estava vindo me
buscar. Até onde iria o amor do garoto? Qual era o seu limite?
Aparentemente, não tinha limites.

Lembrei-me de algo que ele dissera meses atrás. Eu faria insanidades


por você.

Nunca mais duvidaria dele.

Antes do tempo previsto, meu Uber chegou. Um sedan prateado parou


à minha frente, e eu me levantei, secando as lágrimas.

– O senhor é o motorista do Uber?

O vidro do motorista mantinha-se entreaberto.


– Sim, senhora. – O homem grunhiu.

Fui entrando. Estava devastada demais para conferir a placa. Entrei no


banco de trás e pedi:
– Para o centro, por favor. – Eu havia inserido o endereço da rua
principal do centro da cidade. De lá, escolheria um hotel qualquer para passar
a noite.

O motorista usava blusa de frio, touca e uma máscara. Algumas


pessoas de idade avançada ainda mantinham o uso da máscara – em razão do
vírus do ano passado.
Fui olhando pela janela. Por todo percurso, pensava no que fazer. Se
Tristan houvesse vindo de jatinho, já estaria em Recife. Provavelmente a
caminho da minha casa.

Comecei a reparar o caminho.

– Ei, senhor, este não é o caminho para o centro. – Estávamos indo


para o lado oposto.
– Eu sei que não. Vamos dar uma voltinha... Só eu e você.

Encarei-o, assustada. Era difícil detectar seu rosto por trás da máscara,
mas eu conhecia aquela voz. A voz que me dava ojeriza e arrepios por toda a
vida.

Arfei:

– Matias?

Só podia ser brincadeira.

Virou-se para mim. Abaixou a máscara, sorrisinho lateral alucinado.


– Oi, Clarinha, sentiu saudade?

O ex-marido da minha mãe, obcecado por mim há anos. Ai, meu


Deus.

Peguei o celular no bolso. Meu motorista do Uber mandava


mensagens. Boa noite. Já cheguei e não estou te vendo.

Eu havia entrado no maldito carro errado! Matias estava me


perseguindo!
– Como ficou sabendo que eu havia voltado para o Brasil?

– Sua avó contou para as amigas da igreja. Minha mãe frequenta a


igreja e me contou.

Ri, nervosa. Só podia ser sacanagem.

– Você estava me seguindo?

– Desde que chegou.

– Para onde pensa que está me levando?


– Para a nossa casa, é claro. De onde você nunca devia ter saído. –
Estreitou os olhos, ressentido. – Tudo culpa daquela maldita Ágata. Já foi
tarde.

– Não fale da minha mãe! – vociferei. Tentei abrir a porta, mas estava
trancada. – Abra esta merda! Agora!

– Nem pensar – acelerou mais. – Ficamos muito tempo separados.


Precisamos matar a saudade.
Trinquei os dentes. Fervia em ódio. Era o pior momento para ser
sequestrada por Matias.

– Matias, seu velho maluco do caralho... Me solte ou eu vou te matar.

Ele sorriu.
– Que bom, o ódio está bem próximo ao amor. Além do mais, eu
posso ser mais velho agora, mas ainda dou conta do recado. Sou mais forte
que você. Temos assuntos pendentes, Clara. Você me provocou a
adolescência inteira, e agora não quer me dar? Você me deve uma foda, sim.
Nem que seja a última coisa que eu faça na vida.

– Você vai para a cadeia, pervertido maluco!


– Para te comer, vale à pena.

Não, comecei a me apavorar. Aquilo não podia estar acontecendo


comigo. Peguei o celular e disquei o 190.

– Se ligar para alguém, eu paro o carro e faço o que tenho que fazer
aqui mesmo. – Com uma mão livre, pegou uma arma escondida na cintura do
jeans.
Engoli seco, desligando a ligação. Coloquei a mão por sobre a barriga
automaticamente. Se eu morresse hoje, não morreria sozinha. Precisava
proteger o meu filho.

Sem saída, armei um plano. Liguei meu modo frio e estratégico. A


única forma de se lidar com malucos, era agindo de forma mais maluca que
eles.

– Tudo bem, você tem razão. Eu sempre te provoquei. – Menti


friamente. – Uma noite e isso acaba.
– Eu sabia... – ele me fitou com surpresa. – Sabia que você também
sentia tesão por mim.

Deus... O que se passava na cabeça desse homem perturbado?

– Eu sentia, mas não podia admitir por causa da minha mãe. Vamos
passar uma noite juntos, e então você me solta. Ok?
Seus olhos reluziam em tesão e insanidade.
– Maravilha. Tem várias camisinhas no meu carro.

– Que ótimo. – Quase vomitei. – Só vou mandar uma mensagem para


os meus avós e avisar que passarei a noite fora, na casa de uma amiga. Saí
sem avisar. Não quero preocupá-los.
Ele estreitou os olhos, desconfiado.

– Vou querer ver a mensagem.

– Tudo bem. – Liguei o celular e mandei a mensagem para minha avó.


Falava exatamente o que prometi ao maluco perseguidor.
Eu digitava muito rápido. Sem que Matias soubesse, mandei também
uma mensagem para um número internacional. Continha apenas um
endereço. O endereço da casa onde morei na adolescência, onde Tristan me
viu pela primeira vez. Ele se lembraria.

Ao final do endereço, adicionei: socorro. E enviei para Tristan.

Apaguei a mensagem do celular. Ele a receberia, mas Matias não a


veria.
– Está demorando demais isso aí. – Ele grunhiu. – Me deixa ver.

Entreguei-lhe o celular. Matias só viu a mensagem enviada para


minha avó. Estou indo passar a noite na casa de uma amiga. Volto amanhã
cedo, não se preocupe.

Se deu por satisfeito.


– Tudo bem, mas isso fica comigo. – E guardou meu celular no
próprio bolso.

Agora eu estava sem saída. Precisava confiar em Tristan. O maluco


do Matias portava uma arma, e eu não arriscaria a vida do meu filho. Faria o
que ele mandasse para sair viva.

Chegamos ao condomínio fechado. A mesma casa da minha


adolescência, onde Matias ainda morava. O lugar me dava arrepios.
Chegamos à frente da casa. Eu pensei em pular do carro e correr, mas
a rua estava deserta. Era uma hora avançada, num condomínio fechado.
Matias me alcançaria com o carro em minutos. Não havia ponto de ônibus ou
táxis por perto.

Entramos na garagem e saímos do carro. Entramos pela porta dos


fundos, na cozinha.

– Você primeiro. – Ele abriu a porta dos fundos, e desembocamos na


cozinha.
Matias, ainda com a arma bem posta na cintura.

– Então, por onde quer começar?

Me apavorei.
– Vamos beber alguma coisa primeiro.

– Claro, criar um clima... – clareou a garganta, embaraçado. Pensava


que estávamos flertando. O homem acreditava piamente ser correspondido;
um delírio vivido por anos.

Nos sentamos nas cadeiras da bancada da cozinha. Ele pegou duas


garrafas de cerveja na geladeira e nos serviu. Puxou conversa:
– Então, me conta, por que você voltou para o Brasil?

– Não me adaptei ao mestrado. – Repeti a mentira. – Era um país


estranho e uma língua estrangeira. Fiquei sozinha e depressiva.

– Sei... E não sentiu falta de alguém aqui?


– Claro que senti. – Sorri amarelo.

Tempo. Eu precisava ganhar tempo. Se Tristan realmente estivesse no


Brasil, veria minha mensagem e viria me buscar. Eu estava fugindo de
Tristan, sim, porém o que Matias preparava para mim era muito pior.
Conversamos por algum tempo. Matias ficou impaciente e se
levantou. Começou a abrir o cinto.

– Não dá mais para esperar, vamos começar. No meu quarto ou no


seu?

Engoli em seco. O maluco havia mantido o meu quarto intacto por


todos estes anos?
– Quer saber? Vou dar uma nadada primeiro. Estou com saudade da
piscina.

– Fazer dentro da água? – arqueou uma sobrancelha. – Interessante.


Pode ser gostoso. – E começou a desabotoar a camisa.

– Não – me engasguei. – Eu prefiro ir sozinha. Pode me esperar no


quarto.

Ele estreitou os olhos.

– O que está acontecendo aqui? Você não está tentando me enganar,


não é?

– Claro que não. Sou... Louca por você. – Caramba, eu merecia um


Oscar.
Naquele momento, meu celular vibrou no bolso de Matias. Ele o
pegou e observou a tela. Nesta, aparecia a foto e o nome do contato
chamador. Tristan.
– Por que este moleque está te ligando? – fitou melhor a tela. –
Espera, esta foto... Esse não é aquele amigo esquisito do Lucas, de anos
atrás? – ergueu os olhos para mim, furioso. – Vocês estão namorando?!

– Não!
A chamada acabou. O celular apitou e uma mensagem de Tristan
chegou. Por que está pedindo socorro? O que está acontecendo? Me atende.

Matias trincou os dentes, entendendo tudo.

– Você me enganou! – largou o celular e pegou a arma na cintura.


Engatilhou-a e apontou o cano para mim.
Dei um passo para trás, chocada.

– Matias, não.

– Quer nadar? Então nade para mim, sua vaca. Tire a roupa e fique só
de calcinha e sutiã. Agora.
Sob a mira do revólver, fiz o que ele mandou. Tirei o jeans e a blusa.
Ele me guiou até a área de lazer. Mergulhei na piscina. Ele foi tirando a roupa
e ficou só de cueca samba-canção.

Àquela altura, eu estava em pânico. Uma decisão se formava em meu


coração. Eu aguentaria qualquer coisa, mas não morreria hoje, nem seria
ferida. Meu filho era a prioridade.

Entrou na piscina, ainda segurando a arma.


– Nade. – Cuspiu.

Obedeci. Fiquei nadando por quase meia hora. Ele era um voyeur e
gostava de observar; inseriu a mão livre por dentro da cueca e começou a se
masturbar.
Eu tentava ignorar aquela cena asquerosa. Concentre-se em ganhar
tempo.

Em determinado momento, Matias jogou a cabeça para trás – como se


estivesse se segurando para não chegar ao clímax. “Venha aqui, garota”,
grunhiu.
Ai, não. Paralisei. Recostei-me na borda da piscina, o coração
acelerado.

– Matias, não faça isso.

Minha recusa o enfureceu. Ele explodiu, apontando a arma para


minha cabeça.
– Venha aqui agora!

De súbito, ouvimos um barulho advindo do lado de fora. Um carro


cantando pneus, uma freada brusca... A porta principal da casa sendo
arrombada com um chute...

Matias arregalou os olhos e saiu da piscina.


– Quem você chamou?! – gritou, apontando a arma para mim. –
Responda, ou eu vou te machucar.

Ergui as mãos.

– Não chamei ninguém.


Naquele meio tempo, alguém estava se aproximando. Podia ouvi-lo
andando pela casa, derrubando vasos e escancarando portas. Parecia procurar
por alguém.

Matias olhava de mim para o vidro da cozinha, apavorado.

– Você me denunciou? Eu vou te matar, sua vadia.


De repente, Tristan apareceu. Parou atrás da porta de vidro que
separava os ambientes. Face distorcida em ódio, olhos fervendo.

Ah, meu Deus. Quase chorei em alívio.


– O que esse garoto está fazendo aqui?! – Matias berrou.

Encarei-o com ar de vitória. Leve sorriso de desdém.

– Você está morto.

Tristan tentou abrir a porta, mas Matias havia a trancado. Matias


ergueu o queixo:

– Não irá entrar aqui, moleque. É uma festinha privada.

Tristan virou as costas e saiu da cozinha. Matias se surpreendeu:


– Ele desiste rápido. Melhor assim.

Segundos depois, Tristan voltou. Carregava no ombro um enorme


extinto de incêndio, que ficava na garagem. Deu alguns passos para trás,
decidido.

– Mas o quê...? – Matias se engasgou.

Não pôde terminar a frase. Tristan simplesmente arremessou o


extintor com força na porta de vidro. Esta, se quebrou em mil pedaços, os
estilhaços caindo no chão. Matias e eu escondemos os rostos para não sermos
atingidos. Por sorte, estávamos longe – no lado oposto da piscina.

Tristan foi entrando na área de lazer. Pisava por sobre os vidros, mãos
pingando sangue, machucadas. Deve ter socado o vidro que guardava o
extintor para pegá-lo. Nem parecia notar a dor. Mantinha o olhar fixo em
Matias, reluzindo em ódio.

Matias arregalou os olhos.


– O que pensa que está fazendo?! Está destruindo a minha casa! Você
é louco?!

Tristan soltou um sorrisinho cruel.


– Você não viu nada.

Matias apontou a arma para ele.

– Dê mais um passo e eu estouro a sua cara.

O sorriso do garoto apenas aumentou. Cada vez mais assustador.

– É mesmo? Quero ver você tentar.

– Estou avisando...
– Tente! – vociferou. – Não seja um covarde medíocre, ao menos uma
vez na vida. Atire, porra.

As mãos de Matias tremiam. Tristan voltou a avançar para ele,


assustador.

Matias se desesperou. Fechou os olhos e atirou. Eu gritei.


A bala atingiu o ombro de Tristan. O garoto nem se mexeu. Olhou
para baixo, para a camisa sangrando. Colocou a mão na ferida, penetrando os
dedos na carne e simplesmente... Retirando a bala de lá.

O projétil estava um pouco amassado na ponta. Não perfurou nenhum


órgão, apenas rasgou o músculo. O corpo do vampiro era resistente como um
blindado de aço.

Matias se engasgou, sem acreditar.


– O que é isso?!

O di Santorum arqueou uma sobrancelha, zombeteiro. Jogou a bala


para longe. Abriu um sorriso sanguinário:

– Já terminou? Então agora é a minha vez. – Seus caninos desceram,


afiados. Os olhos ficaram vermelhos e monstruosos.
O garoto se aproximou. Matias caiu no chão, tremendo.

– Mas o quê... Quem diabos é você?

Tristan o capturou pelo colarinho.

– O monstro dos seus pesadelos.

Pela primeira vez, fiquei grata por Tristan ser um vampiro. Ele ergueu
Matias do chão, e seus pés se debatiam no ar, apavorados.

– Saia da minha casa, sua aberração!


Tristan enfiou seus dentes na garganta e Matias gritou. Depois, o
garoto o arremessou ao longe. O corpo de Matias bateu contra o muro, e
quase pude ouvir vários de seus ossos se quebrando. Ele caiu no chão e o
vampirou montou sobre ele. Desferiu vários socos em sua cara.

Meu Deus! Ele iria matar o homem!

– Para, Tristan! – implorei, saindo da piscina. – Já chega! Você irá


matá-lo!
Tristan estava enlouquecido.

– A morte é pouco para ele. – Ergueu o homem pelo colarinho,


colando a testa na sua. Matias estava praticamente inconsciente. Olhos
semicerrados, boca e nariz pingando sangue. – Conte para alguém o que você
viu hoje e eu te matarei. Te perseguirei aonde for neste mundo. Triturarei
seus ossos e comerei seus órgãos, como um maldito animal selvagem.
Aproxime-se da Clara novamente e você estará morto. Saiba que ficarei em
seu encalço pelo resto da vida. Aproxime-se de alguma adolescente outra vez
e será carne morta. Ficou claro?

Matias tentou balbuciar.


– S-sim.

As pupilas de Tristan se dilataram. Ele olhava Matias nos olhos.


Parecia estar... O hipnotizando.

– Você irá dizer que foi assaltado. E, também, nunca mais irá se
aproximar de uma mulher. Viverá sozinho pelo resto de sua vida medíocre. E,
no fim, terá uma morte bem triste. Entendeu?
– Sim. – Os olhos de Matias permaneciam fixos, estatelados. Como se
não fosse uma resposta consciente.

O garoto o soltou. Levantou-se, tirando o celular do bolso e ligando


para a polícia. Relatou o endereço da casa. Inventou ser um vizinho
preocupado, dizendo ter avistado carros estranhos no condomínio e ouvido
barulhos de tiros.

Após desligar, guardou o celular. Pegou a minha mão e ordenou:

– Vamos embora daqui. Precisamos sair da cena do crime.

Eu aquiesci e corri atrás dele.

Matias gritou:
– Ei, Clara!

Nos viramos, dentes trincados. O que o maldito ainda queria comigo?

Foi súbito. Não pudemos reagir.


Ao atacá-lo, Tristan não se preocupou em retirar a arma de sua mão.
Matias apontou o revólver para mim e atirou. A bala atingiu meu braço.
Arfei, caindo.

Tristan rugiu.
– O quê...? Eu vou te matar!

– Não! – berrei. – Nos tire... Daqui... – tentava balbuciar, ardendo em


dor. – A polícia vai chegar...

Tristan xingou e me ergueu nos braços. Passou por cima de sua fúria
para nos livrar de problemas. Se a polícia nos pegasse ali, estaríamos
ferrados.
Saímos da casa. Ele me colocou no banco do carona do seu carro. Um
Mercedes prateado – provavelmente alugado no próprio aeroporto. Acelerou
e saímos do condomínio cantando pneus.

Ele dirigia como um louco. Ordenou:

– Segure a mão sobre a ferida! Não perca sangue.


Eu tentava respirar.

– Foi só... De raspão... – Mas estava doendo como o inferno.

– Estamos indo para o hospital.


Paramos na portaria do condomínio. Ele saiu do carro, explicando
rapidamente. “Vou hipnotizar o porteiro para apagar as filmagens de
segurança.”

Levou um minuto.

Tristan estava na cabine do porteiro quando algo aconteceu. Ouvi o


barulho de um carro se aproximando à uma velocidade ensandecida. Olhei
pelo retrovisor, e era o carro de Matias. Ele dirigia como um louco e batia nas
laterais dos carros estacionados. Estava machucado demais, e não sabia o que
estava fazendo.

Não deu tempo para reagir. Ele acelerou e simplesmente bateu na


traseira do carro de Tristan.
A fuga havia sido uma loucura. Não coloquei o cinto de segurança. O
impacto me arremessou para frente e bati com a cabeça no vidro.

Apaguei.

Lembro-me de fragmentos.

Eu, em cima de uma maca empurrada às pressas. Médicos ao meu


redor, dando instruções. Luzes de neon do hospital. Tristan correndo ao lado
da minha maca, a face horrorizada e a boca suja de sangue.
E só. Depois tudo ficou preto novamente.

****

Acordei.

Com os olhos semicerrados, observei ao redor. Estava num quarto


particular. Provavelmente, em algum hospital chique de Recife.

Tristan tinha um braço flexionado por sobre a minha cama. Apoiava a


cabeça ali, dormindo. Uma das mãos fielmente entrelaçada à minha. Deus...
Era extraordinário tê-lo aqui comigo. Sentia-me segura e viva, como se a mão
do garoto junto à minha fosse a única coisa certa na minha vida.
Então, me lembrei de repente.

A surra que Tristan deu em Matias; o maluco vindo atrás de nós e


batendo o carro...

Coloquei a mão sobre a barriga. Meu bebê. Meu Deus, será que estava
tudo bem com o bebê? O que era aquela preocupação em meu coração?
Como se a vida dessa criança fosse mais preciosa que a minha?
Tristan notou meus movimentos. Acordou, se sentando. Já havia se
limpado do sangue. Não falou nada. Apenas me fitou com olhos magoados e
ferozes.

Era difícil estar sob seu olhar negro, repleto de acusações e


sentimentos...

Clareei a garganta.
– Quanto tempo eu dormi?

– Mais de 24 horas. – Voz severa.

Tentei desvencilhar as nossas mãos. Ele impediu, segurando-me mais


forte.

– Não ouse.

– O quê? Não vai me soltar? – eu ri sem alegria. Tentava fazer piada


de algo que absolutamente não tinha graça. – Que ótimo. Sou sua prisioneira
agora.

– Você quase morreu na frente dos meus olhos. Nunca mais vou te
deixar ir.

Franzi o cenho. Partes do meu corpo doíam, mas ignorei.


– Você já tem namorada.

Ele se mantinha irredutível.

– Não tenho mais.


– Não faça isso com a Camille. – Implorei.

– Ninguém manda no coração.

– Pensei que você gostasse dela.


– E gosto. Mas nem uma fração do quanto eu amo você.

Ai, meu Deus. Eu devia estar sensível por causa da gravidez, pois
aquela declaração quase me fez chorar. Foram tantos meses de sofrimento...
De conflito interno e saudade desse homem...

– Você vai destruir o coração da Camille. Ela não merece.


– Eu sei que não. Irei recompensá-la de algum jeito. Só não posso
mais dormir na cama de uma mulher que não é você. Simplesmente não
consigo mais.

– Mas nossos problemas ainda não acabaram. Eu não te perdoei.


Ele franziu o cenho, ofendido.

– Não me interessa, eu vou conquistar o seu perdão. Nem que tenha


que lutar pelo resto da vida. Passei quatro meses sem você, e não passarei por
tal inferno nem mais um dia. Nada mais no mundo me importa.
De repente, alguém entrou no quarto e interrompeu a conversa
intensa. Nós dois desviamos o olhar, embaraçados. Mesmo assim, Tristan não
soltou a minha mão.

– Bom dia. – Um jovem médico entrou. Em seu jaleco, pude ver seu
nome. “Doutor Felipe Feron.” Sorriu para mim. – Finalmente acordou. Como
estamos hoje, senhorita?

– Dolorida...
Ele riu.

– Imagino que sim. Mas você teve muita sorte, sabia? A batida na
cabeça gerou somente uma pequena concussão. A bala no braço pegou de
raspão. Você provavelmente desmaiou de choque. – Folheou alguns papeis
em sua mão. Meu prontuário. – Deixe-me ver... Nenhum osso quebrado,
nenhum órgão comprometido... Só alguns arranhões. Mas isso o seu
namorado pode cuidar para você. – E olhou para Tristan, amigável.

– Claro, doutor. – O garoto confirmou.


Os dois debateram sobre o suposto assalto. “Assalto” deve ter sido a
desculpa que Tristan inventara para o meu ferimento de bala. O médico
discorreu sobre a violência em Recife. Falou que havia acabado de se mudar
para a cidade com a esposa, Dra. Ana Lívia, também médica deste hospital.
Contou-me que ela havia me atendido na emergência. Eu me lembrava
vagamente.
– Bom, agora vamos ver os exames recentes. – Voltou a folhear o
prontuário. – Ótimo, está tudo ok. Voltarei hoje à noite para te dar a alta. Ah,
e claro, o mais importante... – fixou os olhos no último papel do prontuário. –
O bebê está bem! Nada aconteceu ao feto. São quantos meses de gestação
mesmo? – dirigiu-se a mim. – Quatro?

Ai, não.
A mão de Tristan apertou a minha. Eu congelei. Olhei para o garoto, e
ele estava paralisado. Olhava fixamente para o médico, num misto de choque
e pavor:

– O que você acabou de dizer?

Doutor Felipe ficou confuso.


– Sua namorada está grávida de 4 meses. – Olhou para mim. – Você
não sabia?

Tristan se levantou de supetão. Encarou-me, feroz:

– Quatro meses?!
O médico clareou a garganta, notando o clima.

– Bom, deixarei vocês conversarem. Eu volto à noite para dar a alta.


Até mais tarde. – E saiu do quarto.

Tristan finalmente soltou a minha mão. Deu alguns passos para trás,
como se meu corpo desse choque.
– Quatro meses? – repetia. – Foi quando aconteceu a nossa última
vez...

Engoli em seco.

– O filho não é seu.


Ele trincou os dentes.

– Não minta para mim.

– Não é seu. Eu saí com outros homens.

– Mentira! – Vociferou.

– Você não tem como saber.


– Tenho, sim. Só por que eu estava com a Camille acha que não te
observei? Eu vi tudo de perto. Você não saiu com ninguém.

Mas o quê...

– Eu fui para balada com a Olívia e beijei vários caras.


– E voltou para a casa sozinha.

– Como você sabe? – me choquei.

Ele bufou em desdém.


– Eu sou um vampiro-rei com cem anos de idade, Clara. Não me
subestime. Tenho informantes em todo lugar. Todos os vampiros da cidade
trabalham para mim. Achou que não tinha vampiros naquela festinha?

– Você ordenou que me seguissem?!

– Claro que não. Você mandou que eu saísse da sua vida e eu saí. As
informações simplesmente chegaram até mim. Todos os meus vampiros
súditos nos viram juntos. Acha que eles não me contariam novidades sobre
você? Mesmo sem eu pedir?
– Que seja. Você está delirando, Tristan. Eu avisaria se o filho fosse
seu. – Menti. Estava virando uma profissional nisso.

Ele arregalou as pálpebras, fazendo uma conexão.


– Ah, porra. Como eu não percebi antes?! Por isso você foi embora da
Itália... Para esconder a gravidez de mim!

– Óbvio que não!


– Agora tudo faz sentido. – Começou a andar de um lado a outro na
sala. Passava as mãos pelos cabelos, nervoso. – Se você estivesse grávida de
outro homem, não teria ido embora. Apenas uma situação muito séria te faria
abandonar a Università. Seu mestrado era a coisa mais importante do mundo
para você. Ir embora foi uma insanidade.

Comecei a me desesperar.

– Não tem conexão.


– É mesmo? – parou e me fitou, maxilar trincado. – Se você estivesse
grávida de um humano, a barriga já estaria visível. Isso é uma gestação
vampírica. E adivinha? Nenhum vampiro transaria com você sabendo que é a
mulher que eu amo. Eles não ousariam me trair. Seria uma sentença de morte.

– Você mataria alguém só por sair comigo? Que selvageria. Não


estamos na Idade Média.

– Claro que não. Você poderia sair com quem quisesse, mas não fui
eu quem criou o código de honra entre os vampiros. Isso existe muito antes
de nós dois nascermos. E diferente de você, Clara, meus súditos não me
subestimam.
Desviei o rosto, ficando em silêncio. Os olhos, marejados. Mentir
para Tristan seria em vão. Ele era um pupilo de Athos di Santorum, o maior
gênio que já conheci. Nada o enganaria.

E a verdade ferraria com a minha vida.

– Eu não entendo... O que você planejava? Criar nosso filho sozinha?


Não respondi. Ele grunhiu:

– Era isso? Que loucura, Clara. Eu tenho mais recursos e poderia


prover uma vida melhor ao bebê. Além do mais, qualquer criança precisa de
um pai. Principalmente uma criança vampira. Como você conseguiria sangue
para alimentá-lo? Invadiria hospitais e roubaria bolsas de O Positivo? Seria
descoberta em uma semana!
Ainda sem encará-lo, murmurei.

– Eu tinha meus motivos.

– Quais? – vociferou. – O que justificaria esconder um filho de um


pai? Eu não sou um agressor, perseguidor e nem lhes faria mal. Então, o quê?
Olha o que você estaria roubando de mim...
A verdade explodiu dos meus lábios. Eu estava sob muita pressão – e
não conseguia mais mentir.

– Porque eu viveria uma vida miserável, droga!

Franziu o cenho.
– Do que está falando? Eu proveria vocês dois com o melhor. Você
poderia concluir seu mestrado e dar aula em qualquer universidade em Roma.
O bebê não atrapalharia sua rotina. Eu contrataria quantas babas você
quisesse.

Tentei não chorar na frente dele, mas foi em vão. Meus olhos ficaram
marejados. Malditos sentimentos.

– Eu não aguentaria passar a vida inteira vendo você com ela. Você e
Camille namorando, se casando e tendo filhos... Eu não suportaria estar lá
para presenciar. Precisava ir embora para minha casa e esquecer tudo o que
vivi em Roma. Esquecer você.
– Por quê? – murmurou surpreso.

– Porque meu coração está partido.

– Olhe para mim. – Ordenou.

Eu olhei, hesitante. Seus traços estavam mais que sérios.

– Me diga a verdade. Você ainda não me esqueceu?


Uma lágrima escapou. Desceu por minha bochecha, solitária e
humilhante.

– Não.

Ele expirou, passando a mão pelos cabelos.


– Eu passei quatro meses sem saber disso! Achando que você não me
amava! Por que você me deixou no escuro?

– Porque não iremos ficar juntos. Nem hoje, nem nunca. Alguém
tinha que seguir em frente.

Ele andou até a janela e ficou parado lá. Olhava para fora, braços
cruzados, parecendo pensar. Após um tempo, falou. Voz furiosa.

– Não importa o quanto eu tente ou o que eu faça... Você nunca


voltará para mim, não é?

– Não.

Suspirou.
– Então volte para a Itália. – Virou-se, decidido. – Vamos criar nosso
filho juntos. Não como um casal, mas com coparentalidade.

– Não posso. – Neguei com a cabeça. Agora, chorando de verdade. –


Não é a vida que eu quero para mim. Não irei aguentar te ver com outras
mulheres.

Ele se aproximou da cama e segurou a minha mão.

– Então eu não ficarei com ninguém.

– O quê?!

– Foi o que ouviu. Enquanto você viver, permanecerei sozinho.


– Como assim? Irá passar 60, 70 anos sem ninguém? Casto e
solitário?

– Se é que você precisa para ser feliz...

– Isso é insanidade!
– Eu já disse... – arqueou uma sobrancelha. – Eu faria insanidades por
você. Seu erro é me subestimar.

– Mas eu não quero que fique sozinho. Tudo o que mais queria era ter
uma família.

– Eu já tenho uma família. Você e o nosso bebê.


– Mas não seremos um casal.

– Não importa. Eu terei você na minha vida. Moraremos na mesma


cidade e eu a verei com frequência. Não preciso ser o seu homem, só preciso
respirar o mesmo ar que você. Já basta para mim.

Franzi o cenho, tocada. Ao perceber já havia perguntado.


– Você me ama tanto assim?

Ele ainda segurava a minha mão. Acariciou minha pele com o polegar
– um gesto simples, mas tão, tão cheio de carinho.

– Tentar te explicar a intensidade do meu amor seria em vão. Meu


coração está tomado por você. Demorarei muitas vidas para te esquecer.

– Mas um dia eu vou morrer... E você continuará aqui por muitos


anos.
– Eu morrerei com você, acredite. Embora você parta e eu, não, assim
que o seu coração parar de bater eu estarei morto também.

Meus olhos se encheram de lágrimas. Que amor era aquele?

– Nosso filho irá precisar de você quando eu me for. – Ele seria um


bebê vampiro e viveria por séculos.
– Eu o amarei tanto quanto te amo. Ele nunca estará sozinho nesta
vida.

Fechei os olhos por um segundo, sentindo o relance de dor.

– Mesmo assim... Não posso voltar, Tristan.


– Por que não?

– Se os di Santorum souberem que estou grávida do traidor, ficariam


muito magoados. Não me aceitarão de volta no palacete. Considerariam uma
traição.

– Então more comigo.


– Jamais. – Fiz uma careta. Odiava aquele Palazzo assombrado.

– Então eu comprarei uma casa para você. Algo perto da Università e


perto do Palazzo, no meio do caminho. Você pode morar lá com o nosso
filho. Será até melhor... Eu não poderia entrar no palacete para fazer as
visitas, mesmo. Sou uma persona non grata por lá.

Caramba, o garoto tinha uma solução para tudo.


– Mas não quero ficar longe da minha família. Nunca foi minha
intenção me estabelecer na Itália. Tenho avós idosos por aqui, e preciso ficar
para cuidar deles.

– Vamos levá-los conosco. Simples. Comprarei uma casa bem grande,


e vocês podem morar todos juntos.
– O quê?! Levar meus avós para a Itália?

– Por que não? Eles são aposentados e não tem família no Brasil além
de você. Tenho certeza de que irão querer acompanhar a infância do neto de
perto. Além do mais, eu os vi na Itália. Eles amaram Roma. É um lugar
maravilhoso para se viver, e eles seriam muito felizes por lá.

Que. Loucura.
– Mas e a gravidez vampírica? Uma hora, os dois irão perceber que o
neto não é uma criança normal. Como vou explicar as mamadeiras de
sangue?

– Fazendo o óbvio. Vamos contar a verdade para eles.

Arregalei os olhos. Ele elaborou:

– Contaremos aos poucos, é claro. Vamos preparar o terreno. Com os


meses, mostraremos que os vampiros não são os monstros que eles
imaginam... E uma hora eles irão aceitar.

– Mas pensei que os humanos não pudessem saber sobre o segredo


dos vampiros. – A não ser as mulheres que se tornariam fontes de sangue, é
claro.

– E quem irá te punir? Eu? – arqueou uma sobrancelha. – Eu sou a lei,


Clara. Se eu quiser que os avós do meu filho saibam sobre os vampiros, eles
saberão.
Neguei com a cabeça, incrédula. Havia um alívio imenso em meu
coração. Eu não criaria mais o meu filho sozinha. A vida seria muito mais
fácil.

– Não importa o problema que eu ressalte, você sempre terá uma


solução. Não é?
– Sempre. – Sorrisinho vitorioso.

Olhei para o teto com o coração acelerado. Uma nova vida me


esperava. E era hora de parar de fugir.

Tristan abriu meus olhos. Precisava pensar no bem-estar da minha


criança. Meu bebê seria mais feliz perto do pai. Tristan o ensinaria a ser um
vampiro, a conseguir sangue e a se manter longe da selvageria. Ademais, o
garoto lhe proveria uma qualidade de vida melhor. As melhores
oportunidades, as melhores faculdades, a melhor infância...
Com certeza, um futuro mais pacífico e seguro do que ser um
fugitivo.

Suspirei, tomando a decisão.

– Então que seja. Não importa o quanto eu fuja, você tem razão. Meu
filho precisa de um pai. Vamos voltar para a Itália.
****

Esperamos até anoitecer.

Enquanto isso, Tristan fez algumas ligações. Ordenou que trouxessem


seu jato ao Brasil; voltaríamos nele para Roma.
– Pensei que o jato pertencesse aos di Santorum.

– E pertence. Comprei outro para mim. – Informou simplesmente.


– Ah. Como você chegou tão rápido ao Brasil?

– Comprei a primeira passagem que encontrei para cá.

Na parte da noite, uma médica chegou. Dra. Ana Lívia era esposa do
Dr. Felipe, e ela mesma me deu a alta.

Nós saímos do hospital e fomos direto para a casa dos meus avós.
Decidimos não contar sobre a gravidez, por enquanto. Contaríamos daqui há
alguns meses, quando a barriga aparecesse. Então, eu os chamaria para morar
comigo na Itália. Tinha que preparar o terreno aos poucos. Toda aquela
história de “neta grávida de um vampiro” precisava emergir devagar, ou meus
avós surtariam.

Nos sentamos nos sofás da pequena sala de estar.


Tristan conversou com meus avós. Contou ter voltado ao Brasil para
me buscar. Garantiu que me ajudaria a prosseguir com o mestrado, me dando
aulas particulares.

– Eu decidi voltar para a Itália, gente. Vou tentar outra vez. –


Anunciei.

– Se é o que você quer, minha filha... – meu avô deu de ombros. –


Tente mais uma vez e se apoie em seus amigos. E, se não der certo,
simplesmente largue tudo e volte. Estaremos sempre aqui por você. Esta é a
sua casa também.
– Obrigada, vô. – E o abracei.

Arrumei minhas malas. Tristan esperou por mim, tomando café com
meus avós na cozinha. Minha avó fez bolo de cenoura especialmente para
ele. Ver o poderoso Dom vampiro tomar café num copo de requeijão foi uma
cena impagável.
Nos despedimos. Depois, fomos para o aeroporto.

Já era começo da madrugada, e o jatinho havia chegado ao Brasil.


Embarcamos. Na viagem, eu estava elétrica demais para conseguir dormir.
Pensava em como explicaria aquela situação para os di Santorum.
Tristan sentava-se na poltrona ao lado. Percebeu minha agitação:

– Ok, se você não consegue dormir, vamos fazer outra coisa. – E


levantou-se. Foi até a poltrona à minha frente e se sentou. Carregava o celular
nas mãos.

– O que está vendo aí? Série? Jornal?


– Não.

Arqueei uma sobrancelha.

– Pornô?
Ele revirou os olhos.

– Estou escolhendo uma casa para você.

Passamos a viagem assim, vendo fotos de casas para comprar. Tristan


adiantou tudo. Seu assistente contatou uma imobiliária em Roma, e esta nos
atendeu com exclusividade. Enviou todo o catálogo de imóveis para o e-mail
de Tristan.
Vimos várias casas. Discordarmos em todas. Brigamos, fizemos as
pazes, rimos, comemos e continuamos olhando o infinito catálogo. Até que
uma dentre elas nos chamou a atenção. Olhei para a foto, mordendo o lábio.

– É perfeita.

Era uma casa situada numa rua tranquila. Ficava há dez minutos da
Università. Paredes amarelas, dois andares e uma varanda charmosa. As
paredes frontais eram cobertas por heras e algumas flores brancas. Por fora,
era clássica e charmosa. Por dentro, uma mansão.

A casa tinha cinco quartos. Antiga e imensa. Um quarto para mim, um


para o bebê e outro para meus avós. Os demais seriam quartos de hóspedes.
Havia um grande jardim aos fundos. Nele, meu avô adoraria cultivar
suas plantas. A rua ficava perto de uma feira matinal, pela qual minha avó
adoraria passear.

Tristan foi passando as fotos da casa.

– Este quarto aqui, de fundos, pode ser o quarto do bebê. É mais


silencioso. A babá pode ficar com ele enquanto você trabalha.
– E o último quarto pode ser seu.

Ele me olhou, sobressaltado. Emendei com embaraço:

– Não que você vá morar com a gente, óbvio. Mas irá passar muito
tempo por lá por causa do bebê. Pode ser seu lugar privativo para ficar com
ele.
– Claro. – E guardou o celular no bolso, igualmente constrangido. –
Então é isso. Vamos ficar com ela?

Sorri, emocionada.

– Vamos.
– Ótimo. – E mandou uma mensagem para seu assistente.

– Mas como conseguiremos meu visto de cidadania italiano? – eu


portava um visto de estudante, apenas.

– Casando-se comigo?
Fitei-o.

– Prefiro nem responder.

Ele soltou um sorrisinho debochado.

– Esqueça, darei o meu jeito. Tenho contatos em todo o governo.

É claro que tinha. Usurpou todos eles dos di Santorum...


Lembrar-me daquilo me fez cair na real. Acordei, saindo da farsa da
fantasia romântica. Aquela não era uma história de amor, nem éramos um
casal comprando a primeira casa.

– Eu vou dormir agora. – Peguei o cobertor e me cobri.

Ele notou minha mudança de humor. Entendeu a deixa.


– Claro. Vou te deixar descansar. – E voltou ao seu lugar.

Virei-me para o canto e não falei mais nada.

Eu não podia deixar o olhar amoroso daquele homem mexer comigo.


Não podia fazer planos para o futuro. Nós dois não éramos um casal de
verdade, nem nunca seríamos.

****

Pousamos na Itália.

Os trâmites da mudança levariam um tempo. Precisávamos fechar o


contrato e mobiliar a casa.
Tristan convenceu-me a me hospedar no Palazzo por alguns dias.
Gastei todo o meu dinheiro na passagem de volta para o Brasil, logo, não
tinha condições para me hospedar num hotel. Também não queria gerar um
gasto desnecessário para o garoto por pura teimosia.
Voltar para o alojamento estava fora de questão.

Como eu explicaria o retorno para os di Santorum? Ainda precisava


pensar sobre isso. Imaginar a reação dos primos me destroçava. Engravidar
não foi culpa minha, mas geraria consequências. Seria inviável manter uma
amizade com eles sendo a mãe do filho de traidor. E, de brinde, mantendo
Tristan na minha vida.
Os primos já haviam deixado claro: ou Tristan, ou eles.

Fui alojada num dos quartos de hóspedes. Evitei sair de lá por todos
os quatro dias. Não queria ver Sienna, nem os vampiros que moravam por lá.
Só saía para visitar a casa nova.

Era um final de tarde.


Tristan e eu estávamos na casa. O designer de interiores se encontrou
conosco. Os móveis que compramos chegariam amanhã, e o designer estava
nos explicando onde cada um deles ficaria.

Não que isso importasse para mim. Eu estava encantada demais


observando a arquitetura interior do imóvel. Antiga e charmosa.

O piso de madeira secular... As paredes beges... A escada curvilínea


do átrio, com corrimão de madeira... Tudo transpirava um lindo passado de
glórias. Eu pensava na família que morava aqui um século atrás. Será que
eles foram felizes neste lar? Será que eu seria feliz aqui?
Comecei a arquitetar os planos. Deixaria meus avós no quarto do
primeiro andar, para que não precisassem subir as escadas. Meu quarto era o
principal no segundo andar. Grande o suficiente para uma cama de casal e um
berço. Havia também um banheiro anexo com hidromassagem. Muito mais
luxo do que jamais ousei sonhar.
O jardim dos fundos era a minha parte preferida. Um local retangular
e imenso, cerceado por muros de eras. Eu poderia colocar uma
espreguiçadeira na grama para tomar sol com o bebê. E, talvez, uma mesa de
jardim. Eu e meus avós poderíamos fazer piqueniques aos fins de semana.
Poderia até colocar uma churrasqueira ao canto e convidar minhas amigas.

Isto é, se é que eu ainda tivesse amigas.


Olívia seria fiel a mim, não importa o que eu escolhesse. Já Camille...
Camille era uma incógnita. Não sei como ficaria a nossa amizade agora.
Muito aconteceu. Nós sobreviveríamos ao furacão-Tristan?

Pensar em Camille me fazia suspirar em tristeza. Não dava para evitar


a garota para sempre. Eventualmente, teríamos que conversar.

Amanhã aconteceria a mudança.


O designer foi embora. Tristan e eu nos sentamos na escadaria aos
fundos, que desembocava no jardim. Ele olhava para o campo gramado,
ainda vazio.

– É um bom espaço para uma criança brincar, não acha?

– Sim. Em breve ele será um menininho... Poderá correr e jogar bola.


– Todos os filhos de vampiros eram machos. Já sabia que teríamos um
menino.
– E aqui poderemos ensiná-lo a andar.

– Mudando de assunto, pensei em colocar uma churrasqueira bem ali.


– Apontei para um canto. Dei de ombros e olhei para ele. – O quê? Sou
brasileira, adoro um churrasco.

Soltou um meio sorriso.


– A casa é sua. Pode fazer o que quiser aqui.

– Precisamos ir à uma loja de bebês. Comprar um berço, mamadeiras


e outras coisas. – Seja lá o que for que um bebê precise.
Meu Deus, eu era uma novata nesta habilidade de “ser mãe.” Minha
avó precisaria me ajudar.

– Temos tempo.

– Eu sei. – Suspirei. – É que tenho tantos problemas para lidar, que


preciso ocupar minha mente com alguma outra coisa.
– Somos dois.

Ficamos em silêncio por um tempo. Cada um, refletindo sobre suas


próprias questões. Após uns minutos, ele me olhou.

– O que vai fazer a respeito da Università?


– Vou continuar no curso, é claro. O Reitor não sabe sobre minha
partida. – Ainda não o avisara. Planejava comunicar via e-mail, de modo a
não ser tão constrangedor. O homem já me considerava uma aluna
problemática.

– Posso lhe dar um conselho?

– Você vai dar de qualquer jeito.


Estalou a língua.

– Pois é.

– Diga.
– Mude-se para o turno da noite. De manhã haverá os di Santorum e
a... – clareou a garganta. – A Camille.
Engoli em seco. Puta que pariu, ainda havia essa questão. A cereja do
bolo.

– Que ótimo. – Devolvi, amarga. – Todos irão querer minha cabeça.


– Exato. Mas os vampiros mortos serão seu maior problema. Quando
souberem que você é a mãe do meu filho, irão te odiar. Não vai ser um
ambiente saudável para você.

– Mas o turno da noite será pior. Estará repleto de vampiros vivos


famintos.

E eu seria uma grande salsicha-humana pelos corredores. Ambulante


e suculenta.
– Não haverá perigo. Estarei sempre ao seu lado. Agora que é a mãe
do meu filho, você meio que se tornou... – arqueou uma sobrancelha – uma
rainha para eles. Nenhum deles te fará mal. Não ousariam. Na verdade, se
colocarmos na balança, o turno da noite é mais seguro para você agora.

Mãe do filho do traidor. Inimiga número um dos vampiros mortos.


Pois é, mudar de turno parecia a ideia mais sensata.

– Certo. Vou pensar sobre isso.

– Sim, mas pense rápido, porque o Reitor já enlouquecido lidando


com as suas “situações de emergência.”

– Eu sei. Ele acha que eu sou uma aluna irresponsável.

– Isso é loucura, você é a maior nerd que já conheci.


– Exatamente!

– Certa vez, ficou horas discutindo sobre Reforma Tributária com o


Athos. E ele nem te obrigou, você fez porque quis. Eros e eu quase nos
jogamos da janela.

– É o que estou falando.

– Posso tirá-lo do seu pé. Quer que eu o hipnotize?

Abri a boca para responder “sim.” Mas, depois, a consciência nerd


falou mais alto.

– Não. – Droga. – Eu resolverei isso sozinha. Pelo menos tentarei.

No outro dia, estávamos no Palazzo. Na sala pessoal de Tristan.

Os funcionários faziam a mudança naquele momento. Logo à noite,


eu já poderia me instalar na casa. A energia elétrica e a água já foram ligadas.
Minhas malas estavam prontas, só bastava esperar.

Tristan não queria me deixar sozinha no quarto o dia inteiro. Então,


me convidou para tomar um café em sua sala privativa. Eu fui. Precisava
restabelecer uma relação amigável com ele; tudo pelo bem da
coparentalidade.
Ficamos conversando sentados no sofá. Bebíamos café, debatendo
sobre possíveis nomes para o bebê. No fim das contas, a relação amigável foi
por água abaixo e discutimos por meia hora. Eu queria um nome italiano
comum – tipo Matteo. Ele, um nome vampírico, tipo “Odin.”

– Nem pensar! – bufei. – Meu filho não vai ser troçado na escola.

– Ele irá estudar numa escola para crianças vampiras.


– O quê?! Claro que não! Vai estudar numa escola normal!

Tristan grunhiu.

– Temos muitos meses para discutir sobre isso. Ele ainda nem nasceu.
– Ok. – Revirei os olhos. – É a sua vez. Apenas jogue e pare de me
irritar. – Eu tinha comprado um baralho de Uno no aeroporto. Estávamos
jogando. Só precisávamos esperar o tempo passar.

Ele jogou uma carta de “compre mais quatro cartas.” Reclamei:


– Ei! Que sacanagem!

Soltou um sorriso debochado.

– Estou pegando o jeito neste jogo humano estúpido.

Fiz uma contra jogada, lançando um “compre mais duas cartas.” Ele
se sobressaltou. Depois, estreitou os olhos para mim.

– Sua víbora traiçoeira.

– Aceite com dignidade. Neste jogo não existe família, nem amigos.
Aqui é guerra.
Continuamos jogando e conversando. O assunto sobre a alimentação
do bebê surgiu. Inquiri:

– Eu não terei que beber sangue na gravidez, não é?

– Não. O bebê só vai ansiar por sangue após nascer. Não se preocupe,
eu tenho acesso a um estoque ilimitado.
– E ele irá beber leite também?

– Claro, será um híbrido. Poderá comer comida humana e sangue.


Sobreviverá com os dois.

– Que bom... – fiz outra jogada. – Pensei que teria que beber sangue
no canudinho, que nem a Bella em Amanhecer.
Ele me olhou.
– Quem é Bella? Sua parente?

Fiz uma careta de choque.

– Espera aí, não conhece Crepúsculo?

– Isso é uma banda?

– Mas o quê...? Não, precisamos resolver isso. – Larguei as cartas e


peguei meu celular no bolso. – É só a maior história de romance da cultura
pop da última década.

Mostrei algumas cenas para ele no YouTube. Ele observava. Face


impassível e levemente cética.

– Então, a garota bebia sangue no copinho para fazer o feto


sobreviver?

– Exatamente! – olhei para ele, subitamente esperançosa. – Espera!


Você não brilha no sol, não é?
Por favor, diga que sim.

Ele me encarou estupefato.

– Óbvio que não. Eu estraçalho gargantas, não sou um diamante


ambulante.
– Droga. – Coloquei a mão sobre a barriga e falei com o bebê: –
Desculpe, pequeno Matteo. Nada de brilhar no sol para você. Seu pai não é
tão legal assim.

Tristan olhou para a minha barriga. Ergueu uma mão.

– Posso?
Fiquei constrangida, mas permiti. Ele era o pai afinal.
– Pode.

Tristan pousou a mão por sobre a minha barriga. Fez carinho,


conversando com o bebê:
– Você não gosta de Matteo, não é, pequeno Odin?

Fiz uma careta.

– Se você insistir nesse lance de “Odin”, juro que irei registrar o bebê
em segredo como Edward Cullen.

– O vampiro que brilha?

– Ele mesmo. – Ah, meus amores de adolescência.

– Nem por cima do meu cadáver.


Rimos. Foi um momento feliz, leve e despretensioso. Não tínhamos
isso há muitos meses.

Subitamente, aconteceu. Uma voz venenosa chegou até nós.

– Que bom ver o casal feliz.


Paralisamos. Havia alguém parada no batente da porta da sala.

Ela estava acabada. Cabelo desgrenhado e olheiras sob os olhos.


Mãos nos bolsos do moletom, expressão traída e ferida.

Camille.
Eu saltei do sofá.
– Camille?

– Oi, amiga. – Devolveu com acidez.

– Como soube que eu havia voltado?


– Não soube. Vim ver outra pessoa – e olhou para Tristan, magoada. –
O cara que me abandonou e fugiu do país para perseguir a ex.

Tristan fechou os olhos por um minuto. Depois, se levantou com


calma.

– Camille, vamos conversar civilizadamente.


Por outro lado, eu não estava tão calma. Quase me desfiz em pedaços
diante da expressão traída da garota. Magoar Camille era o fim do mundo
para mim.
– Por favor, nos ouça! Não é o que você está pensando!

Ela avançou, pulsos fechados em fúria.

– Então por que diabos acabei de ver o meu namorado acariciando a


sua barriga?!

Tristan e eu trocamos um olhar apreensivo.

– Ai, meu Deus! – ela arfou, assimilando. – Você está grávida do


Tristan?

Engoli em seco. Ficamos em silêncio. Ela entrava em colapso:

– Mas nem dá para notar a barriga ainda... Então é recente... – Passou


a mão pelos cabelos, nervosa. – Vocês transaram enquanto a gente ainda
namorava?

– Não é nada disso! – neguei com veemência. – Aconteceu há muitos


meses, vocês não namoravam ainda.
Gargalhou, ácida.

– Estão achando que eu sou estúpida? Você não tem nenhuma barriga.
Essa história não faz sentido!

– Vai fazer, Camille. – E olhei para Tristan. – Conte a verdade para


ela.
– O quê? – ele se chocou. – Ela não está pronta para saber, é só uma
caloura.

– Conte, Tristan. – Fui firme. – A Camille irá descobrir em algum


momento. Ela namorava um vampiro, e merece saber.

Camille deu um passo para trás, testa franzida.


– Espera aí... O que você falou?

Suspirei.

– Tristan não é quem você pensa, Cami. Em algum momento ele teria
que te contar a verdade, só não era a hora certa. Ele não é humano, é um
vampiro.

Ela me fitou com horror.

– Você está delirando? Usando drogas?

– Estou falando muito sério.

– Vampirismo? Essa é a desculpa de vocês para a traição?

– Não é uma desculpa, Camille. – Tristan avançou um passo. – Eu


realmente não sou quem você pensa. Desculpe por esconder a verdade de
você.
– Parem com essas sandices! – gritou. – Estão troçando de mim?!

– Tudo bem. Eu entendo seu choque. – Ele arqueou uma sobrancelha.


– É mais fácil te mostrar do que tentar te convencer... – Então, suas íris
ficaram gradualmente vermelhas. Ele arreganhou os dentes e os caninos
desceram, afiados. À uma velocidade insana, ultrapassou Camille e trancou a
porta atrás dela. Colocou a chave no bolso e se virou para ela. – Isso é prova
o suficiente para você?

Ela arfava. Olhava de Tristan para o lugar onde havia estado, lapsos
de segundos atrás.
– Como... Como você foi parar aí?

– Do mesmo jeito que fiz isso. – E apontou para as próprias presas.

Ela vacilou, andando para trás. Face cheia de horror.


– O que é isto nos seus olhos? Por que seus dentes estão assim?

– Eu sou um vampiro, Camille. – Suspirou. – Sente-se, porque é uma


longa história.
****

Contamos tudo para ela.

Camille se sentou no sofá e chorou por vários minutos. Quando se


acalmou, limpou as lágrimas.

– Então é isso? Vocês vão ter um bebê vampiro juntos?

– Exatamente. – Confirmei. Falando em voz alta parecia ainda mais


delirante.

– Então vocês não estão juntos?


– Não.

– Todos os homens da Università são vampiros?

– Sim. – Tristan confirmou.


– Quando vocês iriam me contar?

– Quando você virasse uma veterana. Então, poderia se decidir por


assinar um termo confidencial e partir ou... Hã, permanecer e se tornar nossa
parceira de sangue. Foi a forma que encontramos de nos alimentar de forma
civilizada. É pré-requisito para conseguir o diploma.

Ela bufou.
– Dane-se o diploma. Que mulher em sã consciência preferiria ficar?

– Bom, você ainda não provou a mordida...

– Como assim?
Fui eu quem esclareci:

– A mordida de um vampiro é uma experiência maravilhosa e


viciante.
– Além do mais, os machos vampiros cuidam muito bem de suas
mulheres. – O garoto emendou.

– Dinheiro em troca de sangue?! – Camille se horrorizou.

– Claro que não! Monetizar troca de sangue é proibido pela nossa lei.
Estou falando de amor. Namoro, filhos, casamento... Os vampiros constroem
vidas ao lado dessas mulheres. Elas não são usadas e descartadas. São
amadas. Só bebemos sangue daquelas que nos dão a permissão. É tudo feito
com respeito.
– Então seus amigos, os di Santorum... – ela se virou para mim.

– São vampiros também – sustentei. – Eram da realeza da espécie.

– Por isso todos os chamam de “Dons”?


– Mais ou menos isso. É complicado.

Virou-se para Tristan.

– E o que exatamente você é? Por que todos nesta casa e na


Università o obedecem cegamente?
– Sou uma espécie de rei das castas vampíricas.

Ela se afundou no sofá. Ficou muda por um tempo, refletindo. Depois,


concluiu.

– Então vocês dois terão um filho juntos, mas não são um casal.
Aconteceu há meses. É uma gestação antiga.
– Exato. – Corroborei.

Ela olhou para Tristan. Expressão subitamente vulnerável.

– Então se você não está namorando a Clara... Irá voltar para mim?

O garoto a encarou por um tempo, num silêncio tenebroso. Os olhos


reluziam em algum pensamento enigmático.

– Não.

Ela perdeu o ar.

– Por que não?!

– Eu não posso, Camille. Sinto muito.


Seus olhos se encheram de lágrimas novamente. Era somente uma
garota de coração partido.

– Só me diga uma coisa... Em algum momento você gostou de mim?

– Sim.
– E ainda gosta?

– Sim. – Confessou, triste.

– Então por que não volta para mim? – se indignou. – Nós éramos
felizes juntos!
– Não, Camille... – O garoto negou com a cabeça. Olhos destruídos. –
Você era feliz. Eu só estava sobrevivendo. Gostava de você, sim. Mas o meu
verdadeiro amor... – desviou os olhos para mim. As íris reluziram em algum
sentimento profundo. – O amor é muito diferente. Domina você. – Continuou
com o olhar fixo em mim. – Eu vivo por esta garota. Ela é a minha obsessão e
o meu mundo.
Ai, meu Deus. Meu coração se quebrou.

Camille se chocou.

– Espera, então você ainda a ama?

Eu quis me encolher. Derreter e sumir. Não era para eu estar naquela


conversa.

Tristan foi firme. Ainda me encarava fixamente.

– Amo-a mais que a minha própria vida. Ela tomou o meu coração
por muitos e muitos anos. Um amor assim não pode ser esquecido. Serei
louco por ela enquanto eu viver.

O rosto de Camille se contorceu em dor. Ela se virou para mim,


lágrimas caindo.

– E você irá voltar para ele?


As palavras saíram dilacerando minha garganta.

– Não, não vou.

Ela se exasperou.

– Então o que, Tristan?! Você pretende ficar parado aí, esperando a


Clara pelo resto da vida? Está de sacanagem? Tem uma mulher aqui, à sua
frente, lhe oferecendo um amor correspondido. E você prefere me recusar e
esperar por ela?!

Ele deu de ombros, arrasado.

– Ou será ela, ou não será mais ninguém. Meu coração tem uma dona
só.
Camille se levantou, humilhada. Secou as lágrimas da bochecha.
– Então que seja assim, di Santorum. Se você prefere viver das
migalhas de afeto que a Clara te dá, ao invés de viver um relacionamento
real, não posso fazer mais nada por você. Eu tentei de tudo. Esgotei todas as
chances, lutei até o fim. Não posso mais lutar. Me dê a maldita chave. – E
estendeu a mão. – Quero sair daqui.

O garoto a entregou a chave. Ela andou até a porta e se virou para nós.
– Que sejam felizes. – Ironizou.

Destrancou a porta e começou a sair.

– Camille! – chamei-a.
Ela se virou. Perguntei, meio desesperada:

– Você não me odeia, não é?

Ela desviou os olhos, magoada.


– Não sei, Clara. Simplesmente não sei. – Então saiu de vez, batendo
a porta.

****

Dias se passaram.

Eu me mudei. Estava me adaptando à casa nova. Era estranho morar


sozinha num lugar tão espaçoso... Queria meus avós comigo.

Não foram dias fáceis. Havia uma tormenta em meu coração. A


despedida magoada de Camille me corroía, e os di Santorum não atendiam às
minhas ligações. Além disso, em breve eu me tornaria uma mãe de 24 anos. E
não tinha ideia se estava preparada para isso.

Era sábado. Olívia e eu estávamos na casa nova. Nos deitamos nas


espreguiçadeiras do jardim para tomar sol. Ela bebia um drink com álcool.
Como eu não podia beber, fiquei apenas no suco.

Batíamos papo, deitadas lado a lado. O sol refletia nas lentes dos
nossos óculos.
– Então, como está sendo estudar à noite?

– Tenso. – Admiti. – Os vampiros me tratam com muita deferência e


respeito, é óbvio, já que Tristan não sai do meu lado. Mas quando ele não
está por perto... Ou está em aulas diferentes... Eles me olham como se eu
fosse carne fresca no açougue.

Ela se arrepiou.
– Bizarro.

– Pois é. – E bebi meu suco, suspirando. – Ai, ai. Que saudade da


minha gim tônica.

– Só lamento, mamãe.
Acotovelei-a.

– Cala a boca. Você vai ter que trocar fraldas também.

– Nem pense nisso. Serei a titia que só leva para passear. O lance do
cocô é com você.
– Sua ingrata. – Estreitei os olhos.

– Estou brincando – riu. – Trocarei as fraldas do meu afilhado, sim.


Fique tranquila. Só não deixe ele me morder.

Dei uma golada no suco.


– Não posso prometer nada.

A notícia da minha gravidez se espalhou. Os di Santorum viajaram e


não respondiam às minhas ligações. Recebi apenas uma mensagem de Eros,
dias atrás. Sinto muito. Ele não será apenas o seu filho, também será o
herdeiro do traidor. Nós te amamos, mas não podemos lidar com isso. Pare
de nos ligar.

E só.
A mensagem quebrou meu coração. Não sabia para onde haviam
viajado. Ninguém sabia.

Alheia aos meu pensamentos, Olívia mexia no celular.

– E sobre o feriado da semana que vem? Ficou sabendo?


– Ahã. – As aulas da Università iriam parar completamente por 5 dias.
Diziam que era aniversário do fundador da universidade. Seja lá quem fosse.
– Iremos perder cinco dias de aula. O Reitor enlouqueceu? Irá atrasar todo o
cronograma de conteúdo.

– Eu sei. Deve ser uma comemoração de vampiros.

Uma voz nos surpreendeu.


– Alguém aí disse “vampiro”?

Tristan adentrava no jardim. Mãos nos bolsos, óculos de sol Ray-


Bans. Mais lindo que nunca.

Sim, ele tinha a chave da casa. Não sabia o que ele estava fazendo
aqui em pleno sábado. Tristan sempre angariava desculpas para aparecer. Ele
fingia não fazer isso só para ficar perto de mim, e eu fingia não perceber.
E assim seguíamos com nossa estranha relação.

– Olha ele aí... – Olívia se animou. – Venha tomar sol com a gente.
Eu faço um drink para você.
Olívia resolveu-se por aceitá-lo. Já que era o pai do meu filho, estaria
sempre na minha vida. Então, ela findou os ressentimentos.

Ele ficou desconfiado.


– Você não aparenta ser boa bartender. Não vá me envenenar.

– Tsc... Você me subestima demais, vampiro.

Ele se aproximou e se sentou ao pé da minha espreguiçadeira.

– E aí.

– Oi.

– Como está hoje?


– Faminta. Agora realmente me sinto como uma grávida.

– Normal. Você está entrando nos cinco meses de gestação. Nosso


bebê está começando a crescer.

Olívia foi até a mesinha próxima e fez um drink. Depois, entregou o


copo para ele. Perguntou:
– Por que você está todo vestido de preto em pleno dia de sol?

– É a única cor que uso. – Informou simplesmente.

– Ai, meu Deus! – ela ergueu os óculos, repentinamente animada. –


Você não vai brilhar no sol, vai?
– Foi exatamente o que eu disse! – observei.

– Seria demais!

– Não seria?! – ergui as palmas. Finalmente alguém concordava


comigo.
Tristan ergueu os óculos, revirando os olhos.

– Pela última vez, eu não vou brilhar. – Virou-se para mim. – Na


verdade, vim te contar uma coisa. É sobre o feriado da semana que vem.
Ele poderia ter falado isso por telefone, mas veio até aqui. É claro que
veio.

– Eu fiquei sabendo. Todas as aulas foram canceladas.

– Pois bem... – parecia um assunto delicado. – Há um detalhe que eu


ainda não te contei.
Ai, meu Deus. Geralmente depois dessa frase vinha algo como “eu
sou um vampiro” ou “eu traí toda a minha família por um século.”

– Nossa espécie tem um líder supremo...

Me estarreci.
– Pensei que o líder fosse você.

– Em partes. Perto dele, sou apenas um subcomandante. Quem manda


mesmo é ele. Trata-se de um vampiro lendário que passa anos hibernando.
Ele dorme por cem anos e acorda por dez anos. Por isso já viveu um milênio.
Quando acorda, os seres humanos têm uma década... Difícil. Ele é
extremamente cruel e sanguinário.

Engoli em seco.
– Não me diga que o feriado da semana que vem...

– Exatamente. Cem anos se passaram, e ele irá acordar. Todos os


vampiros precisam estar na Cerimônia de Despertar. É um evento oficial e
obrigatório em nossa espécie. As noivas, esposas e namoradas também
precisam ir. E como eu sou o rei vigente e não tenho esposa... – coçou a nuca,
embaraçado. – Você é o mais próximo de uma noiva para mim.

Olívia desviou os olhos e murmurou.

– Climão.

Eu a ignorei.

– Então, eu precisarei ir também?


– Sim. Não posso aparecer lá sozinho. O líder não permite um Rei
sem esposa. É vampiro secular e exige que sigamos tradições... Acredita que
todo vampiro precisa de um herdeiro. Posso apresentá-la como a mãe do meu
filho, e ele ficará satisfeito.

– Sou obrigada a ir?

– Não. – Franziu o cenho. – Eu nunca te obrigaria a nada, mas seria


um grande favor. Eu meio que preciso de você.
– Tudo bem. – Suspirei. – Se é importante para você...

– Ótimo. – Ele se levantou e terminou o drinque. Depois, colocou o


copo na mesinha. – Preciso ir, tenho alguns compromissos. Agora que o
Líder irá acordar, tudo precisa estar na perfeita ordem. Ele não tolera erros.

– Tranquilo.
– Até mais. – Olívia se despediu.

– Até, meninas. – E recolocou os óculos, partindo. – Ah, e Clara... –


virou-se para mim no meio do gramado. – Prepare o seu passaporte. Nós
precisaremos viajar.

– Para onde?! – a tal cerimônia não seria na Itália?


– Para a capital do mundo dos vampiros. A Transilvânia, é óbvio.
Onde achou que o Líder moraria?

Olívia franziu o cenho.

– Ei, Tristan... Como se chama esse líder vampiro?

Soltou um sorrisinho malandro.

– Não me decepcione, Olívia, você faz uma aula de mitologia antiga.


Já deve ter sacado.

– Ai, não. – Ela se apavorou. – Não me diga que o nome dele é Vlad
Tepes.

Tristan arqueou uma sobrancelha.

– Em carne, osso e crueldade.


Após uma continência descolada, virou as costas e saiu. Ficamos
sozinhas. Virei-me para Olívia:

– Quem é esse tal Vlad?

– O Conde mais sanguinário que já passou pela Transilvânia....


Existem vários livros e filmes sobre ele. – Ela negou com a cabeça, incrédula.
Olhos reluzindo num misto de medo e fascinação. – Você ainda não
entendeu, Clara? Estamos falando do maldito Conde Drácula. Não o das
histórias fictícias... Mas o verdadeiro.
****

A outra semana chegou.

Fomos de jatinho até a Transilvânia. Na aeronave, viajaram conosco


Sienna e alguns soldados do alto escalão de Tristan. Constrangedor.
Sienna estava em êxtase com a minha gravidez. Não parava de
tagarelar.

Em minha mala, eu levava um vestido preto de gala. Tristan contou


que o Despertar era um evento muito solene. E o Conde Vlad, considerado o
Pai de Todos.
Pousamos num aeroporto particular na Romênia. A Transilvânia era
uma região tradicional e antiga, situada dentro do território romeno. Os
limites fronteiriços entre um e outro eram confusos para mim.

Descemos do jatinho. Já era noite. Andávamos pelo pátio de


desembarque, enquanto Tristan conversava com um dos soldados. Eu andava
alguns passos atrás.

“Os changelings sabem que chegamos?”, Tristan inquiriu.


“Sabem, senhor. E já desocuparam a área. Eles não colocarão os pés
no distrito enquanto estivermos aqui.”

“Ótimo, melhor mantermos um relacionamento civilizado. Não quero


uma guerra com outra espécie. Mande meus cumprimentos ao Principal da
região.”

“Mandarei, Excelência.”

Não entendi a conversa – mas também não perguntei. Sabia que


existiam outras espécies não-humanas no mundo, mas Tristan preferia não
entrar em detalhes. A ignorância era mais segura.

Nos hospedamos num hotel no distrito de Brasov.

No outro dia, fiquei sozinha. Tristan tinha assuntos a cuidar.


Encontrou-se com lideranças vampíricas de diversas partes do planeta. Sienna
o acompanhou. Além de mãe, também era o seu braço direito.
Fiquei livre para fazer turismo na cidade. Para uma estudante de
História, estar na Transilvânia era o paraíso. Como um parque de diversões.

Brasov consistia num distrito de estilo gótico. Continha grande pátios


e casas coloridas; catedrais de torres pontudas e medievais, misturando-se ao
estilo turco-otomano.
Sentei-me num dos restaurantes na calçada. Tomava um café,
observando a população local. Enquanto isso, pesquisei sobre o tal Vlad
Tepes no celular. Evidentemente eu já conhecia a lenda do Conde Drácula,
mas jamais pesquisei à fundo. Nunca tive curiosidade.

Conde Drácula era um personagem fictício do romance de Bram


Stoker. Não obstante, foi baseado numa figura real: o Conde Vlad lll, nascido
na Transilvânia séculos atrás. Era chamado pela população local de “Conde
Dracul” ou “Draculea.”

Isso, porque pertencia à Ordem de Dracul – ordem do dragão –, criada


por guerreiros da época para proteger o território contra os ataques otomanos.
Contudo, na linguagem local, “dracul” também poderia significar “diabo.”
Vlad lll era um Conde que fazia as vezes de príncipe em sua região.
Famoso por ser extremamente cruel com os inimigos, empalava-os com
estacas de madeira, deixando-os morrer lentamente. Por horas ou dias.

A história sobre “beber sangue” e ser “morto-vivo” era considerada


apenas lenda. Crendice popular. Os vampiros da atualidade garantiram que
tudo fosse considerado ficção. Assim, protegeriam suas identidades.

Na viagem, Tristan havia me passado algumas informações sobre o


Conde.
Vlad não era apenas um guerreiro extremamente cruel. Também era
um vampiro. Após empalar, bebia o sangue dos inimigos e dizimava vilas
inteiras. É claro que essa última parte não estava no Google.

As histórias se misturaram ao longo dos séculos. Humanos já não


sabiam mais o que era verdade, ou crendice.
Historiadores nunca haviam encontrado seu corpo. É claro que não.
Ele seguia muito bem guardado num caixão nos calabouços do seu castelo –
só esperando a hora de acordar.

Vlad não nasceu no século XV, como a história contava. Havia


nascido um milênio atrás. Foi o primeiro homem a carregar o gene da
mutação vampírica. Portanto, todos os vampiros do mundo eram, de alguma
forma, seus descendentes.

Ele era o mais velho e o mais forte dos vampiros. Em sua longa vida,
fez muitos inimigos, mas também muitos aliados. Por lealdade ou por puro
medo.
Por séculos, cavaleiros de sua confiança guardavam seu corpo durante
o período de hibernação. Enquanto hibernava, Drácula delegava o Governo a
um de seus clãs de confiança. Há mais de cinco séculos o poder era delegado
à família italiana di Santorum.

Os primos governavam enquanto o Conde dormia. E quando Drácula


acordava, viravam seus subcomandantes e seguiam suas ordens.

Ninguém sabia ao certo se Drácula estava vivo ou morto. Ele era uma
criatura única.
Ao longo das gerações, alguma mutação genética dividiu os vampiros
em duas castas. Alguns bebês já nasciam com o coração parado e subsistiam
por séculos. Os vampiros mortos. Outros bebês nasciam com corações
batendo e tinham vidas muito curtas. Os vampiros vivos.

As duas castas obedeciam à Drácula.

A noite chegou.

Eu coloquei meu vestido preto e longo. Fiz um coque alto, coloquei


saltos altos e brincos prateados. Encontrei todos no átrio do hotel. Sienna
usava um vestido de gala cor de vinho, muito elegante. Todos os vampiros
estavam de terno, inclusive Tristan. Vestidos para um tapete vermelho.

Tristan ofereceu um braço para mim. Eu entrelacei meu braço no dele


sem questionar. Afinal, naquela noite éramos um par.
– Está linda, ragazza. – Elogiou.

Desviei os olhos embaraçada.

– Obrigada. Você também está.


Fomos de carro até ou Castelo Bram.

A viagem demorou um tempo. O castelo ficava situado numa região


remota, escondido entre os Montes Cárpatos. Consistia numa construção
secular, cravada no alto de uma colina. Paredes brancas, torres pontudas e
arquitetura gótica. Tudo bem medieval.

No dia a dia, o castelo funcionava como um museu. Vivia povoado


por turistas, atraídos por histórias de vampiros. No entanto, nas suas
masmorras mais profundas, ficava o caixão de Drácula. Humanos nem
desconfiavam. Apenas os vampiros sabiam da informação.
O castelo foi fechado para visitação.

Ao nos aproximarmos, um arrepio percorreu minha espinha. Parecia,


de fato, um castelo assombrado. Dava para entender por que inspirou tantas
histórias de terror.

Deixamos o carro no estacionamento lotado. Seguranças vampiros


guardavam muito bem às entradas. Tivemos que mostrar convites para ter
acesso ao interior.
Entramos.

Por dentro, o castelo continha uma arquitetura luxuosa e medieval. Já


estava lotado. Tristan cumprimentava vários vampiros, líderes de outros
países. Os vampiros mortos apenas acenavam com a cabeça ou lhe faziam
reverências raivosas. “Vossa Alteza”, cumprimentavam, dentes trincados.
Ainda não conseguiam engolir seu golpe de Estado.

O castelo lotava-se de vampiros mortos e vivos. Duas castas rivais


que, por uma noite, precisavam se engolir. Tudo por temor à Drácula.
Entramos num imenso salão de bailes.

Ao final, havia uma elevação com três cadeiras douradas. Tronos. À


frente das cadeiras, havia um caixão sustentado por uma mesa. A madeira do
caixão era velha como o tempo. Ornamentos em ouro, cravejado de pedras
preciosas.

O corpo de Drácula que estava ali dentro. À meia-noite, acordaria.


Violinistas e harpistas inundavam o salão de música. Garçons
passavam servindo champanhes e copos de sangue. Todos tinham olhos meio
vidrados e expressões perdidas, como se houvessem sido hipnotizados.

Tsc, claro que seriam. Como explicar aos garçons humanos as taças
de sangue? O caixão com a porra do Drácula dentro?

Notei que os di Santorum não estavam por ali. Estranho. Nem mesmo
o poderoso clã poderia faltar ao evento.
Havia muitas mulheres humanas no salão. Todas acompanhavam seus
pares vampiros. Eram esposas, namoradas ou apenas convidadas. Todas
muito bem vestidas para a ocasião.

Eu permaneci ao lado de Tristan e Sienna o tempo todo. O garoto era


abordado com frequência, sempre cercado de vários vampiros estrangeiros.
Conversava com os grupos em vários idiomas. Os vampiros me
cumprimentavam com deferência. A acompanhante do Rei. Faziam pequenas
reverências para mim.

Ninguém sabia se estávamos juntos ou não, nem se importavam. Virar


a mãe do vampiro-herdeiro me tornou intocável. Uma situação insana.

Eu bebia champanhe, alheia à conversa ao meu redor. Tristan debatia


com dois vampiros chefes. Um, da Austrália, e outro da Guiné Equatorial.
Distraída, corri meus olhos pelo salão e...

Estagnei, levando um susto.


Camille estava há alguns metros. Tinha um braço transpassado no de
seu acompanhante. Um vampiro veterano da Università, que eu já vira nos
corredores. Ela usava um vestido prateado e o cabelo preso num alto rabo de
cavalo. Linda.

Conversava com um grupo de vampiros e humanas. Em um momento,


nossos olhares se cruzaram. Ela desviou o rosto, magoada. Não me
cumprimentou.

Aquilo foi um golpe em meu coração. Fiquei calada a partir de então.


Tristan notou meu silêncio. Quando os visitantes saíram, me
perguntou:

– O que houve? Você está estranha.


Indiquei com o queixo a direção de Camille.

– Acabei de levar um fora colossal.

Ele acompanhou meu olhar, e viu Camille. Suspirou.

– Então ela veio. Pelo menos ela está seguindo em frente. Será que
aquele vampiro é um novo namorado?

Dei de ombros.

– Não sei, ela não me conta mais nada. Me excluiu totalmente da sua
vida.

– Ela irá te perdoar, Clara. Dê tempo ao tempo.

– Não sei, não... – E bebi meu champanhe com tristeza. Perdê-la doeu
de verdade. Eu sempre tive poucos amigos, e considerava Camille preciosa.
Não era um sentimento fácil.
Então, percebi algo e o encarei.

– Mas por que perguntou? – estreitei as pálpebras. – Você está com


ciúmes dela?

– Por que estaria? Ela é uma ex por quem tenho carinho. Só quero que
seja feliz. Mas a mulher que eu realmente amo está bem ao meu lado. Não
tenho olhos, nem tempo para mais ninguém.
Arregalei as pálpebras, bochechas ardendo. Ele sempre se declarava
nas horas mais inesperadas.

Engatei numa conversa com Sienna, bem ao lado, só para fugir do


olhar apaixonado do garoto. Estava mesmo desesperada.

Sienna me apresentava a todos como a sua nora. Por vezes, em


idiomas que eu nem compreendia. Não contestei. Só por aquela noite, resolvi
engolir os delírios de Sienna calada. O maldito Drácula estava num caixão
neste salão e prestes a acordar. Todos os vampiros perigosos deste lugar
tremiam de medo diante de seu nome. Era melhor não o irritar.

O tempo passou.
O relógio badalou a meia-noite. Todos pararam de conversar, e se
prostraram em círculo ao redor dos tronos. Uma senhora de idade foi o palco
e fez um discurso na língua de origem. Todos pareciam entender.

– Essa é a Sra. Mihaela, governanta do castelo. – Tristan sussurrava,


traduzindo para mim. – Ela está dando as boas-vindas a todos. Dizendo que o
Conde irá estranhar os costumes deste novo tempo, e que devemos informá-
lo dos acontecimentos do mundo aos poucos.

A mulher pareceu finalizar o discurso, e todos bateram palmas.


Tristan disse que sua família servia ao castelo há gerações. Mães e filhas
passavam o cargo de governanta, mantendo o caixão limpo e o esconderijo
seguro.
Então, a senhora olhou para Tristan e o convidou ao palco.

Me assustei. Perguntei entredentes:

– Por que ela está olhando para você?


Tristan sussurrou:

– O Vampiro-rei precisa abrir o caixão. É a tradição. – E então ele


avançou sozinho, subindo ao palco.

Fiquei tensa. Não o queria tão perto da criatura perigosa.


A governanta deixou-o sozinho lá em cima. Tristan pousou a mão
sobre o tampo do caixão e, com respeito, pediu permissão:
– Com a sua licença, meu Conde. – E o abriu.

Senti que todos na sala seguraram a respiração. Da minha posição,


não conseguia ver o corpo. Mas notei que algo dentro do caixão começou a se
mexer.
Discretamente, os vampiros colocaram suas esposas e namoradas
atrás de si. Automaticamente protegendo-as.

Ele se sentou lentamente no caixão. Finalmente pudemos vê-lo.


Drácula era um homem pálido como um cadáver. Esguio, rosto ossudo e com
olheiras profundas, tinha cabelos pretos muito bem penteados para trás.
Flexionou o pescoço de um lado a outro – acostumando-se a estar acordado.

Tristan foi o primeiro a se ajoelhar. Abaixou a cabeça com respeito, e


todos no salão o seguiram. Fiquei perplexa. Sienna me puxou para baixo,
meio desesperada. Tive que me ajoelhar também (como se aquele Conde
fosse, de fato, o meu rei). Que loucura.
O Conde abriu os olhos. Negros, sem vida. Deram-me calafrios.
Olhou ao redor, para o salão lotado, e soltou um sorrisinho perverso.

Engoli seco. Lembrei-me de Tristan dizendo: “Quando o Conde


acorda, os seres humanos têm uma década... Difícil. Ele é extremamente
cruel e sanguinário.”

A criatura abriu algum mecanismo dentro do caixão. A parte lateral se


abriu, pendendo para baixo. Então, ele colocou as pernas para fora e se
levantou.
Vestia-se como um lorde do século passado. Roupas escuras, gravata
e relógio de bolso. Muitos anéis nos dedos. Olhou para baixo e viu Tristan de
joelhos. Soltou um sorriso de satisfação e falou num perfeito italiano. Voz
assombrosa.

– Ora, vejam quem está aqui. Eu sabia que você conseguiria se tornar
rei. – Para o espanto geral, pousou a palma sobre a cabeça do garoto; fez um
carinho paternal em seus cabelos. – Você virou um grande homem, meu
filho.
Tristan pegou uma de suas mãos e beijou seus anéis.

– Bem-vindo, pai.

Pai?

O murmúrio foi geral. Todos se entreolharam, mortificados. Tristan


era filho do próprio Conde Drácula?

– Levante-se. – Drácula ordenou. Olhou ao redor, procurando por


alguém. – Onde está a sua mãe?
Tristan obedeceu. Se levantou e olhou em nossa direção.

– Venham até aqui, por favor.

Sienna se levantou e me puxou consigo. Minhas pernas tremiam.

– Siga-me. – Ordenou.

Drácula ergueu ou uma palma e ajudou Sienna a subir ao palco. Ela


beijou sua mão com deferência.

– Bem-vindo, milorde.

Ele pousou uma mão sobre seu queixo, admirando-a.

– Minha cara Sienna, continua tão linda quando antes.


Caralho! Os dois eram amantes?

O Conde notou minha presença ali, parada ao lado de Tristan. Olhou-


me, intrigado. Quis dar um passo para trás e fugir. Sua atenção era
apavorante.

– E quem seria esta outra bela dama?


Tristan pousou uma mão em minhas costas orgulhosamente.

– Esta é Clara Mourão, a mãe do meu filho. Clara está grávida de


cinco meses.

– Não me diga. – Os olhos de Drácula reluziram. Como se aquela


fosse a melhor notícia do século. – Que novidade magnífica! Agora nossa
família estará completa... – e ergueu uma mão em minha direção.
Eu olhei para Tristan, sem saber o que fazer. Ele apenas acenou com a
cabeça. Eu dei um para frente e beijei os anéis do Conde. Aparentemente, era
o que todos esperavam de mim.
Bizarro.

Ele acariciou minha cabeça como um pai.

– Bem vinda, minha criança. Meu neto em seu ventre é muito


aguardado e precioso para mim.

Soltei um sorrisinho ameno.

– Obrigada. – Eu acho.

Após as apresentações iniciais, o Conde foi em direção aos outros


convidados. Perambulou por vários grupos de líderes vampíricos. Conheceu
suas esposas e foi informado sobre as novidades.

Tristan e eu ficamos sozinhos, finalmente. Puxei-o para um canto do


salão. Furiosa, murmurei entredentes.

– Você é o filho da porra do Drácula? E nem pensou em me dizer?


Ele deu de ombros.

– Desculpe, era um segredo absoluto. Eu não podia contar nem para


você.

– Ah, que ótimo. – Me indignei. – E a Sienna é a namorada dele?

Franziu o cenho.

– Algo sim. Drácula não se prende à mulher alguma. Ele tem milhares
de amantes, mas minha mãe é especial.

– O avô do meu filho é o Drácula. – Passei a mão pelos cabelos,


estrangulada. – Como isso foi acontecer?! Explique.
Os vampiros ao redor perceberam que estávamos discutindo, e não se
aproximaram. Tristan suspirou:
– Tudo bem, não surta. Vou contar tudo. Sienna conheceu Drácula
cem anos atrás, quando ele estava acordado. Na verdade, ele ouviu falar de
uma mulher-vampira na Itália e ficou fascinado. Viajou para conhecê-la.
Sienna era uma criatura única. Diferente, forte e imortal. A primeira mulher
com o gene do vampirismo. Ele a conheceu e a considerou uma parceira
digna. Os dois tiveram um caso e ela engravidou. Enquanto ela ainda estava
grávida de mim, ele voltou a dormir. Mas não sem antes fazer um plano para
a minha vida.

Então, Tristan contou o plano.


A família di Santorum já governava há muitos séculos. Um poder
delegado pelo próprio Conde.

Porém, enquanto Drácula dormia, os di Santorum consolidavam sua


dominação. Os vampiros mortos passaram a confiar na família. Admirá-los
como líderes justos e competentes. Pouco a pouco, Drácula sentia que estava
perdendo a lealdade dos súditos para a família italiana.

Pela primeira vez na História, o Conde se sentiu ameaçado. A


hegemonia de seu comando estava em cheque. Os italianos tinham carisma, e
governavam de forma justa. Os vampiros de todo o planeta os admiravam. À
cada vez que o Conde acordava, encontrava os primos mais fortes.
Drácula era poderoso, sim – mas não poderia lutar contra todos os
vampiros do mundo. Se a grande massa apoiasse o governo dos di Santorum,
Drácula perderia seus súditos fiéis.

Entretanto, Drácula era esperto. Não poderia armar um Golpe de


Estado para a família sozinho. Geraria polêmica, e parte dos vampiros
poderia escolher apoiar os italianos. Ele não queria uma guerra civil entre a
sua espécie preciosa.
Então, armou um plano com Sienna. Enquanto hibernava, seu filho
seria introduzido no cerne da família italiana. Desvendaria seus segredos,
descobriria suas fraquezas e conquistaria a confiança de cada um deles.

Antes de nascer, Tristan já tinha uma missão. Infiltrar-se entre os di


Santorum e descobrir o que poderia derrotá-los.
Drácula viveu por muitos séculos. Viu a humanidade avançar, e sabia
que a ciência humana evoluía a cada ano.

Orientado por Sienna, Tristan cursou diversas faculdades ao longo


dos séculos. Estratégia Militar, Ciências Políticas e até Biomedicina. Tudo
para se preparar para o Golpe. Às vezes, ele tirava alguns anos de folga para
fazer o que realmente queria (como estudar Biologia Marinha no Brasil). Mas
logo em seguida Sienna o chamava de volta para casa.

Oito anos atrás, a matriarca da família di Santorum faleceu. Athos


virou o rei e convocou Tristan a retornar à Itália, como seu aprendiz.
Aconteceu bem na época em que nos conhecemos.
Com os anos, a equipe de Tristan estudou o DNA dos di Santorum.
Finalmente conseguiram criar um veneno capaz de derrubá-los. Tristan
esperou o prazo de cem anos ser completado. Drácula deixou claro que o
golpe só poderia acontecer quando ele estivesse prestes a acordar.

Tristan saiu como o traidor. Mas, na verdade, o cérebro por trás do


plano era o próprio Drácula. Ele deu uma rasteira às ocultas na família que o
servia.

A estratégia consistia em fazer parecer que os italianos entregaram,


de bom grado, o governo para Tristan. E não que o garoto havia tomado à
força. A aparência de civilidade era primordial. Evitaria uma guerra dentro da
espécie. Uma guerra que Drácula não sabia mais se poderia ganhar.
Ter seu filho no poder era o mesmo que estar no poder.

A causa de igualdade dos vampiros vivos era uma fachada. Feita para
enganar as massas vampíricas e angariar aliados.
Deduzi:

– Então, é a primeira vez em que você conhece o seu pai? Cara a


cara? – pelo que entendi, quando Drácula dormiu, Sienna ainda estava
grávida.

– Exatamente.
– Ai, meu Deus... – massageei as têmporas, digerindo a história. –
Como eu vim parar neste enredo de Game of Thrones?

Ele arqueou uma sobrancelha.

– Às vezes eu não entendo o que você fala.


– Hã? – me choquei. – Você não conhece Game of Thrones?

Ele apenas me encarou, impassível. Bufei.

– Sério, o que você faz no seu tempo livre?

– Treino, luto, estudo estratégias de guerra e... Penso em você.

Abri a boca para responder – mas nada saiu. Então apenas dei um
gole em meu champanhe, encabulada.

Alguém clareou a garganta perto de nós. Sra. Mihaela, a governanta.


– Com licença, Dom Tristan. Seu pai o chama.

– Certo, estou indo. – Tristan piscou para mim. – Te vejo mais tarde.
Fique perto de Sienna.

Tristan foi embora. Como se ouvisse o chamado, Sienna se


aproximou de mim. Com certeza, Tristan ordenou que não me deixassem
sozinha.

Observamos o garoto partir, juntas. Ele adentrou num círculo formado


por Drácula e outros homens, no canto do salão. Vampiros muito bem
vestidos e mais velhos, líderes de outros países. Todos sob o comando de
Tristan. E, agora, sob o comando de Drácula.
Sienna comentou comigo:

– Agora eles irão para uma sala privativa conversar sobre segredos de
Estado. Fumar charutos e beber sangue, é claro. Vlad deve estar faminto.

– Por que você não foi convidada? – estranhei. – Você participou de


todo o plano de cem anos. Também é uma das cabeças do governo.
Fez uma careta.

– Patriarcado, minha querida. Não importa o quanto eu seja


inteligente e uma líder singular, ainda sou uma mulher. Drácula nunca me
verá como uma igual. Por que acha que ele não delegou o governo a mim, e
fez questão de que tivéssemos um filho? – arqueou uma sobrancelha e me
olhou. – Porque o herdeiro dele seria um homem.

Observei o grupo oligárquico de vampiros, indignada.


– O patriarcado é uma merda.

– Pois é. Contamos com a sua geração de jovens mulheres para mudar


isso.

Naquele momento, meu celular vibrou na bolsa. Peguei-o e, ao ver o


remetente, me choquei. Era uma mensagem de... Eros!
Dizia: Me encontre no estacionamento agora. Precisamos conversar.
Por favor.

Desliguei o celular rapidamente. Não queria que Sienna visse a


mensagem.
Meu coração disparou, esperançoso. Eros finalmente queria
conversar! Será que pretendia me perdoar? Os outros primos também
estavam aqui? Se sim, por que não os vi no salão?

– Vou ao toalete. – Comuniquei.

Sienna aquiesceu, distraída.


– Certo. Volte rápido, estarei por aqui. – E rapidamente andou até
outro grupo. Ela conhecia todo mundo.

Avancei por entre os convidados e saí do salão. Tudo muito


discretamente.

Ao invés de seguir o caminho dos toaletes, virei à esquerda. Saí nos


fundos do castelo. Passei por alguns seguranças e desemboquei no
estacionamento. Ninguém me fez qualquer pergunta. Para todos os efeitos, eu
era só uma convidada indo embora após o Despertar.

O estacionamento estava vazio e escuro. Vários carros fechados, e só.

Mandei uma mensagem para Eros. Onde você está?

Ele respondeu de imediato. No Mercedes branco ao leste.


Andei até lá. Achei o carro e bati no vidro do carona. Eros destrancou
a porta e eu entrei. Ele estava lá dentro, sentado no banco do motorista. Nós
nos entreolhamos e nada precisou ser dito; podia ver a tristeza e a vergonha
em seus olhos.

– Desculpa por tudo! – joguei-me em seus braços.


Ele me abraçou de volta.

– Me desculpa também.

– Senti a sua falta.

– Eu também senti, ragazza.

Nos afastamos e limpei uma lágrima. Perguntei:


– Por que você não está no evento? Faltar não vai gerar problema para
você?

Passou a mão pelos cabelos, aflito.

– Vai, mas comparecer seria pior. Eu e meus irmão descobrimos o


plano do Drácula. Tristan é só uma marionete nas mãos dele. O Conde
maldito conspirou contra nós por cem anos, e deixou o filho levar a culpa.
Nós não poderíamos vestir ternos e recebê-lo com sorrisos... Não depois de
saber a verdade. Ele nos odeia, Clara. Fodeu com nossas vidas.
– Mas ele irá considerar a falta uma ofensa, e irá atrás de vocês... –
franzi o cenho. – Não têm medo?

– Temos. – Fitou à frente, sombrio. – Não temer Drácula é uma


estupidez. Não por acaso governou a espécie por um milênio. Ele é forte e
perspicaz demais. – E olhou para mim. – Só que nós também somos.

– Como assim?
– Nós temos um plano para derrotá-lo, Clara.

– “Nós”, quem? – me choquei.

– Eu, minha família e todos os vampiros mortos que aliciamos para o


nosso lado. Viajamos o mundo inteiro nas últimas semanas. Convocamos
amigos e contamos a história. Conquistamos um exército contra Drácula, e
muitos vampiros mortos irão nos apoiar. Nós vamos tomar o poder de volta e
dar um golpe de Estado. Do mesmo jeito que ele fez conosco.

– Mas isso é loucura! – arfei. – E o Tristan? Como ficará nessa


história?
– Ele será poupado. Nossa briga não é com ele, é com Drácula.
Tristan foi usado e enganado, assim como nós.

– Graças aos céus... – Me afundei no banco, aliviada. Pouco me


importava quem estava no poder. Só não queria que sangue fosse derramado.
– E quando o golpe irá acontecer?

– Agora.
– Agora?!

– Sim. Por isso eu tirei você lá de dentro.

Me empertiguei, assustada. Eros não viera apenas para conversar.


– Do que você está falando, Eros? Por que me chamou até aqui? De
verdade?

– Para te dar uma coisa. – E retirou algo do bolso interno do paletó.


Era uma... Injeção?

Foi questão de segundos.


Ele aplicou a agulha no meu braço repentinamente, e eu não pude
lutar. Arregalei os olhos, sem acreditar naquela traição.

– Mas o quê...? – comecei a ficar fraca.

Minha cabeça pendeu para o lado, e Eros segurou-a com uma mão.
Face arrasada.
– Desculpe, Clara. Isso é para o seu próprio bem.

– Você... me... drogou?

– Não se preocupe, você está segura comigo. Apenas durma.

****

Abri os olhos por alguns segundos.


Semiconsciente, olhei ao redor. Eu estava nos braços de alguém.
Era... Azlam?

Athos e Eros estavam de pé à nossa frente. Os três debatiam algum


assunto, parados à frente de uma casa chique. Dois andares, arquitetura típica
de Brasov. Então não me levaram para fora da cidade...

Azlam falava.
– (...) pode não ser boa ideia. Tem certeza de que os vampiros lá
dentro não farão mal a ela?

– Não irão. – Eros garantiu. – Eu disse que, se eles quisessem seguir


com o plano, a Clara teria que ser poupada. Eles concordaram com meus
termos.

Athos trincou os dentes.


– Se a machucarem lá dentro, terão que se ver comigo...

– Com todos nós. – Azlam emendou.

– Não se preocupem, irmãos – Eros reiterou. – Ninguém tocará em


nenhum fio de cabelo dela. Eu jamais permitiria.
Athos exigiu:

– E Tristan também não pode ser machucado.


– Eu sei que não. Mas aí já será mais difícil convencê-los. Eles estão
com ódio.

– Não interessa. Quem tocar no garoto morrerá pelas minhas próprias


mãos. Passe o recado.
Eros suspirou.

– Eles sabem. Vamos entrar. Em breve todos estarão chegando.

– Onde posso colocar a Clara? – Azlam perguntou.

– No quarto do sótão. Ela ainda irá dormir por um bom tempo.


Garanta que esteja confortável.

– Garantirei.

Entramos na casa. Eu tinha as pálpebras semicerradas, e via tudo


borrado.
Ainda era noite. A lareira da sala de estar crepitava. Havia muitos
carros estacionados na rua à frente à casa, bem como muitos vampiros
reunidos na sala. Seria uma reunião de rebeldes? Um grupo armado de
opositores do governo?

Subíamos por uma escada. Eu ainda estava nos braços de Azlam.


Tentava manter os olhos abertos em vão. Murmurei:

– Vocês estão... me fazendo... de refém? – seria uma armadilha para


atrair Tristan?
Azlam me olhou, surpreso por ver-me acordada. Respondeu com
tristeza.

– Desculpe, ragazza. Estamos fazendo o que precisa ser feito. Vai


acabar logo. Quando você acordar, tudo estará resolvido. Apenas durma.
Não consegui contestar. A droga era mais forte que eu. Desmaiei
outra vez.

****
Acordei.

Não sabia quanto tempo havia se passado. Me alojaram num quarto


de hóspedes, impessoal e elegante. O teto era inclinado e triangular. Um
quarto no sótão.

Levantei-me com dificuldade. Através da janela, pude ver que ainda


era noite. Então não dormi tanto quanto Eros esperava.
Aquilo era estranho. Eu era apenas uma humana e, Eros, um vampiro
perspicaz. Jamais erraria a dose do tranquilizante. A não ser que...

Que o meu corpo já não fosse tão frágil assim.

Pousei a mão sobre a barriga, percebendo. O feto era um vampiro, e


tê-lo dentro de mim deixava meu organismo dez vezes mais forte. A droga
não fez o efeito desejado no meu corpo por causa do bebê! Ele resistiu!
– Obrigada, filho. – Sussurrei.

Depois, saí do quarto na ponta dos pés. Não havia soldados


protegendo a porta. Ninguém previu que eu fosse acordar tão rápido.

Desci as escadas e cheguei ao primeiro andar. A casa era imensa.


Havia cerca de 50 vampiros na sala de estar – sentados nos sofás, recostados
nas paredes ou conversando em grupos. Discutiam, gritando e grunhindo em
várias idiomas. Os di Santorum estavam ao centro da sala, tentando acalmar
os ânimos.
Eu já me sentia mais alerta. Reuni forças para falar:
– O que está acontecendo aqui?

Todos me olharam. Arregalaram os olhos, chocados.

Um dos vampiros vociferou:

– O que diabos...? Você não tinha apagado a garota, Eros? – sotaque


carregado. Barba farta.

– Eu tinha. – Eros franziu o cenho. – Como você acordou?

Bufei.

– Desculpe-me por atrapalhar seus planos... – e apontei para a barriga.


– Não sou mais tão frágil assim.

Ele xingou em italiano.


– Merda. O bebê.

Avancei para Eros, furiosa.

– Você me drogou?! Como-você-ousou?!


O vampiro barbudo segurou meu braço.

– Não fale assim com o nosso líder, humana. Quem você pensa que é?

Athos se enfureceu:
– Não toque nela, Ferrat!

– Ela é nossa protegida. – Azlam corroborou. – Ninguém encostará


um dedo nela.

– Mas esta humana estúpida é a mãe do filho do traidor. Não poderá


sair viva daqui! É uma afronta!
Athos trincou os dentes:
– Solte-a. Agora. Mesmo. Isso é uma ordem do seu rei.

Contrariado, o vampiro me soltou. Mas não sem antes lançar-me um


olhar assustador. Isso ainda não terminou.
Eu fui em direção aos primos, expressão traída.

– Como vocês fizeram isso comigo?!

– Fizemos para te salvar, Clara. – Athos esclareceu, o queixo erguido.


– Se você estivesse com o Tristan na hora do ataque, os rebeldes jamais iriam
te poupar. Eles te matariam só para ver o Tristan sofrer. Só a poupariam se
você fosse nossa protegida.
Bufei em desdém.

– Muito obrigada, Suas Excelências. Quanta generosidade. Poderiam


ter me contado o plano, ao invés de enfiarem uma agulha no meu braço!

O vampiro barbudo interrompeu.


– Argh! Chega dessa conversa inútil. – Parecia irritado. – Temos
problemas mais sérios!

Pelas roupas, barba e sotaque, pude discernir que viera da Europa


Oriental. Talvez, o líder-vampiro de algum país de lá?

– Vocês têm certeza de que ele virá sozinho? – o tal Ferrat perguntou.
– É óbvio. – Athos confirmou, sem paciência. – Parecemos amadores
para você?

– “Ele”, quem? – me desesperei. – Quem está vindo?

O homem me ignorou.
– Bom mesmo, Dom Athos. Estamos arriscando nossas cabeças por
vocês.

– Ele virá. Deixamos claro que, se contasse a alguém, Clara morreria.

– O quê?! – berrei.

Eros revirou os olhos.

– Você não vai morrer, Clara. Só estamos blefando, pelo amor de


Deus. Acha que te machucaríamos?

– O Tristan só precisa acreditar, ragazza. – Azlam garantiu. – Não se


preocupe, vocês dois estarão seguros. Nosso problema é com o Drácula.

Naquele momento, aconteceu.

A porta principal se abriu com violência. Tristan entrou. Pulsos


cerrados e face perversa. A boca estava suja de sangue, como se houvesse
matado alguns no caminho. Era um sangue escuro, quase preto... Sangue de
vampiro.
– Estou aqui, malditos.

Ai, não. Os di Santorum sabiam que ele viria atrás de mim até no
inferno.

– É uma armadilha, Tristan! – gritei. – Fuja!


O garoto apenas me olhou com tristeza.

– Eu sei que é. – Mas eu vim mesmo assim, era o que seus olhos
diziam. Eu faria insanidades por você. – Libertem a minha mulher antes que
eu estraçalhe a garganta de todos vocês. Não a envolvam. O problema é entre
nós, seus bastardos.

Ferrat bufou em desprezo.


– Vejam como este híbrido imundo fala com os vampiros de sangue
puro... Esta nova geração está perdida mesmo. Se fossem há uns duzentos
anos, você e sua casta inferior seriam chicoteados até a morte. Só pela
audácia de nos olharem nos olhos.

Uau. Quando eu achava que o tal Ferrat não poderia ser mais
desprezível, ele nos surpreendia.
Sempre pressupus que preconceito e delírios de superioridade eram
defeitos exclusivos dos humanos. Percebia que não.

Athos ergueu uma mão, pacificando os ânimos.

– Acalmem-se. Vamos conversar, Tristan.


– Conversar?! – o garoto vociferou, olhos ficando vermelhos. – Vocês
sequestraram a minha mulher!

Eros perdeu a paciência.

– Senta aí, cara. Se quiséssemos o matar, já teríamos feito. Só


precisamos de quinze minutos da sua atenção.
Azlam passou um braço nos meus ombros.

– Ela está segura conosco. Apenas nos ouça.

Tristan fechou os olhos por um minuto. Murmurou entredentes,


controlando o ódio:
– Vocês têm quinze minutos, e nada mais. – Foi até o centro da sala.
Sentou-se num sofá e cruzou os braços. Ergueu uma sobrancelha cética. –
Estou esperando. Falem.

Athos sentou-se no sofá bem à frente. Juntou as mãos, expressão


séria.
– Serei direto. Você está sendo enganado pelo Drácula, Tristan. É só
um joguete na mão dele. O Conde tem planos ocultos muito cruéis para você.

– Essa é a estratégia? – Tristan expirou. – Tentarão me jogar contra o


meu próprio pai?
– Ele não está nem aí se é o seu pai ou não. Nós pesquisamos à fundo.
O homem guarda milhares de segredos bizarros. Ele teve um milênio para
arquitetar os planos...

– Do que vocês estão falando, porra?!

Athos suspirou.
– Tragam a informante.

Alguns homens saíram da sala. Subiram a escadaria e foram buscar


alguém no andar de cima. Demorou apenas alguns minutos. O silêncio foi
constrangedor. Tristan não tirava os olhos de mim, atento a qualquer
movimento dos vampiros ao redor.

Estes, olhavam de mim para Tristan, sedentos por sangue. Só não nos
atacavam por obediência aos di Santorum.

Os dois vampiros retornaram. Desceram as escadas, escoltando uma


garota. Ela devia ter vinte e poucos anos. Loira, olhos cor de mel. Lembrava-
me alguém, mas eu não sabia quem.

Tristan franziu a testa – verdadeiramente chocado ao vê-la.

– Tatyana?!
– A própria. – Athos apresentou-a a todos. – Esta é Tatyana Ionesku,
a filha da governanta do Drácula, sra. Mihaela.

Me choquei. Tatyana era mesmo a cara de Mihaela! Por isso seu rosto
famliar...

Tristan se indignou.

– Como você pode estar aqui, com eles? Sua família serve ao meu pai
há séculos! Esse é o mais alto grau de traição!

A menina abaixou o rosto, constrangida.

– Perdoe-me, Dom Tristan. – Tinha um italiano carregado de sotaque.


Não era a sua língua-mãe. – Eu não quero a vida de servidão das mulheres
Ionesku. Quando a minha mãe morrer, terei que assumir o cargo de
governanta. E não estou disposta a ficar presa nesta cidade para sempre
cuidando de um caixão. Tenho outros sonhos. Essa escravidão que Drácula
nos impôs precisa acabar.
Tristan soltou um sorriso venenoso e incrédulo.

– Você é louca, garota. Não servir ao Conde Drácula será a sua


sentença de morte.

A tal Tatyana ergueu o rosto – furiosa pela primeira vez.


– Está errado, Dom. Será a nossa sentença de morte.

Tristan estreitou as pálpebras, intrigado pela primeira vez. Azlam


sugeriu:

– Conte o que você já nos disse, Tatyana.


Athos corroborou:

– Como você pode ver, Tristan, nossas fontes são sérias. Não estamos
lhe enganando.

– Apenas falem logo – Tristan cortou, rude.


– O Conde Vlad está morrendo. – Tatyana confessou. – Ele já viveu
por um milênio. A bruxa que lançou a maldição do vampirismo sobre ele foi
bem clara. Avisou que ele dormiria por 100 anos e acordaria por 10 anos, por
dez vezes. A décima vez acaba de chegar. Esta será a última década de sua
vida. Quando ele dormir novamente, não irá mais acordar.

– E como você sabe disso?!


– Porque a bruxa era minha ancestral. Katerina Ionesku. Por que acha
que a nossa família está sendo forçado a servi-lo por tantos séculos? É o
castigo de Drácula para nós, suas descendentes.

Tristan passou a mão pelos cabelos, digerindo.

– Ok, então esta será a última década de vida do meu pai. E daí? Ele
teve uma vida longa e fel... – parou, repensando. – Uma vida longa e
sanguinária. Era o que ele queria. Quando o tempo acabar, irá partir em paz.
– Não, Dom Tristan. O Conde não pretende morrer! Agora que a
última década chegou, ele quer viver mais. Nunca foi sua intenção partir.
Enquanto estava acordado, pesquisava sobre formas de se manter vivo.
Consultou diversas bruxas ao redor do planeta e encontrou uma saída. Existia
uma brecha na maldição de Katerina. Para continuar vivo, o Conde descobriu
que precisava tomar outro corpo. Alguém recém-nascido em sua última
década de vida, e que tenha o seu sangue correndo nas veias. – Então, a
garota olhou para mim sombriamente. – A criança no ventre de sua mulher é
a saída para a maldição. Um descendente direto de Drácula, nascido na última
década. Assim que o bebê nascer, Drácula irá tomar o corpo da criança.
Colocará sua própria essência dentro do recém-nascido e viverá por mais mil
anos.

Arregalei os olhos, congelada. Tristan se levantou num salto:


– Não ouse mentir para mim.

Tatyana negou com a cabeça, olhos molhados.

– Não, Excelência. Sinto muito. Toda a minha família sabia disso há


séculos. Nós éramos obrigadas a guardar o segredo. Drácula procurou a
mulher-vampira por tudo o planeta, 100 anos atrás, para procriar com ela e
gerar descendentes de seu próprio sangue. Queria um herdeiro forte. Assim,
quando o momento chegasse, ele teria um corpo para tomar. De um neto ou
bisneto.

Perdi o ar.

– Me diga que isso não é verdade... – Implorei para Tristan. Ele


apenas me fitou, perdido.
Tatyana se dirigiu a mim:

– É verdade, menina Clara. Quando o seu bebê nascer, será arrancado


dos seus braços. Drácula entrará no corpo e você nunca mais o verá. As
mulheres de minha família se encarregarão de criá-lo. O corpo de seu filho
permanecerá intacto, mas a sua alma, sua essência... Será roubada. Se tornará
apenas um casulo para abrigar a mente de Drácula.

Coloquei a mão sobre a barriga, desesperada.


– Não podemos permitir! – falei para Tristan.

Ele começou a andar de um lado para o outro na sala. Mão na nuca,


refletindo. Falava sozinho.

– É muita loucura. Não posso acreditar que meu pai faria isso
comigo...
Eros bufou.
– Por que não? Ele nem te conhece, Tristan! Acha que tem algum
amor por você? O homem existe há um milênio e nunca teve filhos ou
esposa! Ele não tem amor por ninguém! Só por si mesmo! Nem deve te
considerar um filho... Você é só um meio para um fim.

– Ele irá roubar a sua criança, Tristan. – Azlam emendou, triste. –


Essa é a verdade. Nós não arriscaríamos nossas cabeças se não tivéssemos
certeza.

Athos cruzou os braços.

– E depois que a Clara der à luz, vocês dois serão mortos. Esse é o
plano, e Tatyana pode confirmar. Já está tudo armado. Acha que o Conde
deixaria os pais do bebê roubado vivos? Óbvio que não. Vocês poderiam
tentar reaver a criança e atrapalhar seus planos.

– É verdade. – Tatyana confirmou. – Drácula não deixa nenhuma


ponta solta. Ele pretende matar Dom Tristan e sua mulher. E todas as
mulheres Ionesku sabem disso. Nossos silêncios foram comprados há muitos
anos.
– Não dá para acreditar... – Tristan estava na fase de negação. – Isso é
mera especulação...

– Sei que é muita informação. – Athos suspirou. – Precisamos de


provas. Cadê a outra informante? – perguntou para ninguém em particular.

Um dos homens respondeu:


– Presa no meu carro, Excelência.

– Então vá buscá-la.

Ele saiu. Minutos depois, o homem voltou para a casa carregando


uma mulher desmaiada nos braços. Sienna.
Tristan arregalou os olhos:

– Só pode ser sacanagem! Vocês sequestraram a minha mãe


também?! – olhou para Athos com ódio. – Não me torne o seu assassino,
irmão.
O di Santorum permanecia impassível.

– Lamento. Foi por um bem maior.

O homem colocou Sienna deitada num dos sofás. Athos ordenou para
o subalterno:
– Traga-me a injeção de adrenalina.

Este, sumiu por uns minutos escada acima. Depois voltou com uma
caixa de aparatos médicos. Athos pegou lá de dentro uma injeção.

– Muito cuidado com o que irá fazer. – Tristan ameaçou.


– Não se preocupe, sei o que estou fazendo. Me formei em Medicina
duas vezes. Serei gentil. – Então, Athos aplicou a injeção no braço de Sienna.

A mulher acordou de repente, arfando. Começou a se debater, como


se continuasse uma luta. Athos segurou seus braços:

– Calma! Você está bem. Nós não lhe faremos mal!


Somente o cavalheiro Dom Athos poderia tratar uma refém com tanta
gentileza.

Sienna se sentou. Olhou ao redor, assustada.

– O que está acontecendo? Onde estou? – viu Tristan na sala e se


aliviou. – Meu filho, o que está havendo aqui?
– É o que estou tentando descobrir, mãe. – Olhou para Athos,
ressentido. – Explique por que diabos ela está aqui. Minha paciência está no
limite.

Athos ficou de pé à frente de Sienna. Mãos nos bolsos, muito sério.


– Nós descobrimos o plano de Drácula. Ele pretende usar o filho da
Clara para viver mais mil anos. Irá tomar o corpo da criança, e você sabia
disso o tempo todo. – Não foi uma pergunta.

Ela engoliu em seco.

– Não... Não sei do que está falando...


Eros riu com amargura.

– Não se faça de idiota, Sienna. Você está cercada por mais de


cinquenta vampiros que querem sua cabeça... Melhor falar a verdade logo.

Athos ergueu uma sobrancelha.


– Confesse antes que percamos a paciência. Você sabia sobre o plano
de Drácula, ou não?

Algo estalou no meu cérebro. Uma epifania.

Sienna sempre apoiou o meu relacionamento com Tristan. Isto é, além


do bom-senso. Eu fui rude, evasiva e ressentida. Ela não se importou. Ainda
me queria por perto. Batia constantemente na tecla de termos um herdeiro.
Praticamente nos levou até o altar.
Camille havia me contado o mesmo. Dizia que Sienna também a
recebera muito bem – e já falava sobre casamento.

Ou seja, ela não se importava sobre com quem Tristan se casaria. Só


queria um neto. Ela não sonhava com um herdeiro... Ela precisava de um.
Eram conceitos diferentes.
Drácula deve ter feito uma exigência anos atrás. Consiga um neto
para mim, custe o que custar.

– Você sabia. – Ofeguei, concluindo. – Por isso queria tanto um neto!


Por isso queria me casar com Tristan a qualquer custo... Precisava seguir as
ordens de Drácula, não é?
Tristan era esperto, ligou os pontos. Franziu a testa e olhou para mãe,
horrorizado.

– Sienna... Me diga que não é verdade.

Ela o fitou com olhos marejados.


– Desculpe, meu filho. Eu precisei fazer isso, ou Drácula iria nos
matar quando acordasse.

– Deus. – Tristan se sentou no sofá. Escondeu o rosto nas mãos, sem


nada falar.

A cena me dilacerou. Avancei. Sentei-me ao seu lado e pousei uma


mão em seu ombro. Embora não me visse, ele sabia que era eu. Sentiu o meu
cheiro.

– Minha vida foi uma mentira. – Sussurrou.

– Sinto muito... – E era verdade. Me partia o coração ver a dor do


garoto.

Baixou as mãos e suspirou. Olhou para mim, voz ferida.


– Não vou deixar nada acontecer ao nosso filho. Você confia em
mim?

– Eu confio. – Com toda a minha vida. – Mas como iremos fugir do


Drácula?
Tristan abriu a boca para responder, mas foi interrompido. De súbito,
ouvimos batidas violentas na porta.

Athos estranhou.
– Estamos esperando mais alguém?

Azlam respondeu:

– Alguns amigos do Norte. Mas pensei que não viriam. – Foi até a
porta e a abriu.

Do outro lado, havia um homem. Elegante, barba cerrada, de meia-


idade.

– Boa noite. – Azlam ergueu uma sobrancelha.

– Só se for para você. – Cortou, voz colérica. – Quem de vocês é Dom


Tristan di Santorum?
– Quem quer saber? – Azlam desconfiou.

Tristan se levantou, desafiador.

– Sou eu. Por quê?

O homem entrou sem cerimônia. Era humano, não vampiro. A pele


bronzeada e a beleza mediana não mentiam. Estava péssimo. Olheiras
profundas e expressão alucinada.

Dirigiu-se à Tristan, amargo.

– Sou Fabrizio Martinelli, acionista da empresa Castellano. Lembra-


se dos Castellanos? Aquela família que você destruiu. Deixou sem nada e
expulsou do país.
Enzo Castellano: o vampiro que violou Olívia. Tristan expulsou a
família inteira do país só com a roupa do corpo.

Tristan encarou-o com desprezo.

– Claro que sim. Nunca me esqueço de um inimigo. E daí?

– E daí?! – vociferou. – Por causa da sua vingança estúpida, a


empresa faliu e ficou devendo milhões. Eu investi tudo o que tinha nela.
Você me destruiu, maldito. Todos os meus bens foram tomados, e estou
prestes a ir para a cadeia por evasão fiscal. Minha mulher me deixou e levou
nossa filha. E quando eu perguntei aos Castellanos de quem era a culpa, eles
disseram apenas um nome: Tristan di Santorum.

Os vampiros da sala reviraram os olhos. “Mas o quê...”, “Só pode ser


brincadeira...”
Aquele não era o momento para saldar dívidas pessoais. Estávamos
numa iminência de guerra aqui, pelo amor de Deus.

Tristan cruzou os braços.

– A família Castellano mereceu todos os meus castigos. Eram


violadores de mulheres, insubordinados e corruptos. Se houver alguma
pendência comigo, fale com o meu advogado. Eu realmente não tenho tempo
para isso agora. Estamos numa reunião particular.
– Ah, é. – O visitante soltou um sorriso debochado. Olhou para os
homens ao redor. – O Castellano me contou sobre a... Peculiaridade de vocês.
Esta sala está lotada de sugadores de sangue. – Passou a mão pelos cabelos,
descontrolado. – Malditas aberrações.

Eros olhou para Athos, sem paciência.

– Devo matá-lo?
Athos grunhiu.

– Não, apenas tirá-lo daqui. Já temos problemas demais.

Eros deu um passo à frente. O homem ergueu uma mão.

– Acalmem-se, não será necessário. Já estou terminando o que vim


fazer. – Voltou-se para Tristan: – Sabe, antes de fugir, os Castellanos me
deram um presentinho. Eu estou falido e abandonado. Não serei preso, pois
prefiro morrer. Então, dois dias atrás, estava prestes a me enforcar no meu
escritório quando “bum.” – Fez um gesto com as mãos, meio ensandecido. –
Tive uma epifania. Pensei melhor no assunto. Já que iria morrer, por que não
levar o culpado de toda a desgraça junto comigo? – e retirou uma arma do
coldre do cinto. Apontou-a para a cabeça de Tristan.

Este parecia entediado.


– Uma arma de fogo? Sério? Balas normais não me machucam.
Poupe-nos do teatro.

– Ah, não, Dom-vampiro-do-caralho. Não é uma arma normal. É a


pistola especial dos Castellanos. Eles guardavam para matar possíveis
inimigos vampiros. Só tem uma bala disponível, e ela será para você.

Tristan franziu o cenho.


– Mas o que diab...

Foi tudo repentino. O homem o cortou, vociferando:

– Morra comigo, demônio sugador de sangue! – e atirou.


A bala penetrou bem na testa do garoto. Tristan caiu, olhos
arregalados.

Eu gritei, tomada por pânico.


– Não! – Azlam urrou com terror.

Sienna berrou. Eros deu um passo para trás, completamente chocado.


Athos caiu de joelhos, expressão mortificada. Ninguém acreditava no que
acabara de acontecer.
O homem pegou outra arma do interior do paletó. Uma arma normal.
Tinha lágrimas nos olhos.

– Adeus, monstros. Vejo todos vocês no inferno. – E atirou na própria


cabeça.

Então caiu no chão. Morto também.


Eu olhei para baixo. Aos meus pés, estava o corpo de Tristan. Olhos
arregalados, com uma única perfuração no crânio.

Morto.
– Não, não, não... – eu repetia, congelada. Estava em estado de
choque. Caí de joelhos ao lado do corpo dele, e balancei seus ombros. –
Tristan, acorda! Não ouse fazer isso comigo! – comecei a gritar. – Acorda,
droga! – ele não se mexia. Minha respiração ficou entrecortada, e eu não
conseguia encontrar o ar. Estava tendo uma crise de pânico. – Você não pode
morrer! – segurei seu rosto. – Não pode morrer, não pode me deixar aqui!

O garoto olhava para o teto. Pálpebras arregaladas, face impassível.


Não estava me ouvindo.

Athos permanecia ajoelhado há alguns metros de nós. Chorava


baixinho, cabeça abaixada.

– Ele está morto, Clara.


Aquelas palavras me aterrorizaram.

– Não está! – berrei. – Não pode estar... – coloquei sua cabeça por
sobre minhas pernas. Fiz carinho em seus cabelos. Minhas lágrimas caíam,
molhando seu rosto. – Acorda, meu amor. Por favor, eu não estou pronta para
te perder... Por favor, acorda.... Pelo nosso filho...

Eu ouvia alguém soluçar. Um choro doído e visceral. Era Sienna,


encolhida no sofá ao canto, mãos segurando a raiz dos cabelos. Estava
amarrada ali, sem poder sair. “Não, não... Meu filho...”, repetia.
Ouvi barulhos vindos do lado de fora. Carros cantando pneus e
estacionando com brusquidão. Vários deles.

Segundos depois, a porta foi aberta com violência. Os vampiros do


lugar ergueram suas armas – exceto os di Santorum. Os primos se
encontravam em estado de choque, e nem conseguiam se mexer. Olhavam
para o corpo de Tristan, expressões incrédulas e arrasadas.

Naquele ínterim, o pior aconteceu.


O próprio Drácula entrou na sala. Ao ver as dezenas de armas
apontadas para ele, soltou um sorriso de escárnio.

– Ah, não me digam, meus caros... Vocês irão atirar em mim? –


avançou pela sala, retirando as luvas de couro. – Não sei se sabem, mas balas
humanas não penetram em meu corpo. Eu sou um tanto... Como dizem
mesmo? – estreitou as pálpebras, fingindo pensar. – Ah é, imortal.

Ferrat apontava a arma para ele.


– Não dê mais nem um passo, Conde.

– E quem irá me impedir, meu caro Ferrat? Você? – Drácula passou


por ele, queixo erguido. – Você é só um bebê perto de mim. – Andou até
Tristan. Parou e olhou o corpo do garoto de cima. A frieza em sua expressão
me assustou; ele não demonstrou nenhum pesar. – Tsc, é uma pena. Ele era
um garoto com potencial.

– Ah, cala esta boca! – Eros cuspiu. – Você iria matá-lo de qualquer
jeito! Acha que nós somos idiotas?
Azlam segurou o irmão.

– Calado, Eros. Não é hora para isso. – Mesmo assim, eu podia ver a
fúria contida reluzindo nos olhos de Azlam.

Athos se levantou.

– Como ousa pisar na minha casa, Conde? Depois de toda a dor que
causou em minha família, como ousa?!

Drácula não parecia nem um pouco intimidado. Nem pelas armas,


nem pelos cinquenta vampiros querendo sua cabeça. Ele era muito mais forte.

– Me diga você, Athos. Fiquei sabendo que Sienna e a mãe do meu


neto foram sequestradas. Meu filho saiu no meio da minha festa, sem
qualquer explicação. Não foi difícil ligar os pontos. Vocês organizaram uma
reunião clandestina contra mim, no meu país, e acharam que eu não saberia?
– Estalou a língua, olhos perversos. – Que amadores. Há mil anos eu
comando este lugar. Tenho olhos em toda parte. Acharam mesmo que
ninguém me contaria?
Os di Santorum se entreolharam. Não previram traições dentre os
seus. Com certeza, algum aliado ficou com medo da represália e dedurou-os à
Drácula.

– Sabe, meu filho aliciou soldados muito leais nestes últimos anos. –
E retirou um uma espécie de controle-remoto do bolso interno do casaco. –
Esta geringonça humana, feita nesta estranha época evoluída, é bastante
perigosa. Os soldados me contaram tudo. Ela tem o poder para envenenar
seus corações e matá-los na hora. – E olhou para o controle, olhos brilhando.
– Ah, a tecnologia humana... Ela sempre me surpreende à cada vez que
acordo.

Caralho, o controle! Capaz de acionar o microchip nos corações dos


primos e matá-los. Os di Santorum engoliram em seco. Não era para tal
objeto estar nas mãos de Drácula.
O Conde soltou um sorrisinho irônico.

– O que foi? Ficaram muito calados de repente. Estão com medo?

Sienna e eu não conseguimos emitir reação. Tínhamos uma dor maior


para processar.
Tristan estava morto. Meu Deus. Meu cérebro estava tomado por esta
pequena frase; ela penetrava as raízes cortantes em meu coração, dilacerando
tudo por dentro.

O homem que eu amo morreu. Está caído bem aqui, em meus braços.
Não vai mais acordar.

– Fale logo o que quer, Vlad.

Drácula olhou com desdém para Athos.

– Eu sei quem é o cabeça desta rebelião, meu caro Dom. Então, vim
lhe dar um recado. Ninguém se rebela contra mim e sai vivo para contar a
história. Já aturo você e sua família arrogante por quinhentos anos. Isso acaba
hoje. Você finalmente me deu um motivo para te matar. – Ergueu o controle.
– Então... Eis o meu castigo – e apertou o botão.

Naquele momento, Athos arregalou os olhos. Caiu de joelhos, mãos


sobre o coração. Parecia estar tendo um ataque cardíaco. Não demorou. Ele
se debateu por uns segundos e depois caiu de lado. Olhos arregalados, pálido.
Morto também.

Azlam e Eros gritaram.

Eu não podia crer nos meus olhos. Meu Deus, isso é um pesadelo.
Não pode estar acontecendo comigo. Não pode. Eu simplesmente não
poderia sobreviver à tantas tragédias.

Drácula rosnou para os outros di Santorum. Ou melhor, os que


restaram.

– Tenho vocês dois nas minhas mãos também. Mais uma dessas
reuniões clandestinas e vocês morrem. Aos demais, fica o meu recado.
Abaixem estas armas ou vocês serão os próximos.
Os vampiros abaixaram as armas, apavorados. Não sabiam como
Drácula conseguira matar o poderoso Athos di Santorum com apenas um
clique (e subjugar Eros e Azlam com uma única ameaça). A história dos
microchips não era pública.

– Vamos ser sinceros aqui... – Drácula não tirava o sorrisinho


medonho do rosto. – Vocês não são capazes de armar um golpe de Estado
contra mim. Precisariam de líderes muito mais inteligentes. Infelizmente, a
única pessoa capaz de liderá-los acaba de morrer por minhas mãos. – E olhou
para o corpo de Athos com desdém. – Seus irmãos não são nada sem ele.
Vocês não têm uma liderança capaz de me vencer. Isso é o que eu faço com
os meus inimigos – e apontou para Athos. – Ficou claro? Quem ousar se
rebelar contra mim será o próximo.

Os vampiros não sabiam o que fazer. Uns baixaram o rosto,


subservientes. Outros ergueram os queixos, olhos reluzindo em ódio. Na sala,
um silêncio mortal.
Eros chorava desconsoladamente, e Azlam tentava segurar o irmão.
Também chorava baixinho. Eram lágrimas de tristeza e raiva.

Drácula se virou para eles:


– Vocês dois serão meus prisioneiros até segunda ordem. Matá-los
hoje seria um desperdício. São ótimos soldados. Quem sabe possam se juntar
a mim, e se tornarem meus subcomandantes? Após alguns anos em minhas
masmorras, é claro.

Azlam emanava ódio.

– Prefiro a morte, Conde.


– É o que veremos. Prenderei os dois por alguns anos em meus
calabouços, sem uma gota de sangue. Sofrerão uma fome eterna sem poder
morrer. Após algumas semanas, garanto que mudarão de ideia.

– Vá para o inferno. – Eros cuspiu.

Ergueu as sobrancelhas.
– Tem certeza? Dizem que sou o próprio diabo. Então estarei em casa.

Um soldado entrou pela porta. Parecia trabalhar para Drácula.

– Podemos partir, Sua Excelência?


– Podemos. Já terminei meu trabalho aqui. Levem Dom Eros e Dom
Azlam para as masmorras do castelo. Sienna e a menina Clara devem ser
alojadas em quartos de hóspedes. Garanta que sejam bem tratadas.

– E sobre aquela garota? – apontou para um canto.

Drácula olhou ao redor e viu Tatyana.


– Oh, minha querida Tatyana... Quase me esqueci de você. Sua
família me serviu por séculos, e hoje você me traiu. Manchou a honra das
mulheres Ionesku. E sabe como eu trato traidores? – sorriso cínico. Virou-se
para seu soldado. – Mate-a.

Ela arfou. “Conde, não!”


Foram suas últimas palavras. O soldado a capturou e mordeu.
Estraçalhou sua garganta em segundos. A garota caiu no chão, morta
também.

Meu Deus. Era um massacre.

Drácula juntou as mãos e suspirou, satisfeito.


– O doce cheiro da justiça. Uma pena que a era de empalamentos
acabou. Eu era feliz e não sabia – falava e ria sozinho. Possivelmente mil
anos existindo comprometeria qualquer sanidade. – Todos vocês estão
perdoados. Seria uma pena exterminar tantos lordes de sangue puro. Contudo,
permanecem na minha lista negra até segunda ordem. Vou observar cada um
de perto, e a qualquer sinal de revolta, terão o mesmo destino de nosso
estimado Dom Athos.

Falei sem pensar. Voz magoada e venenosa:

– Você não sairá impune disso, Vlad.


Ele se virou, surpreso. Como se me visse pela primeira vez.

– Ah, minha criança humana, sairei sim. Venho lidando com traidores
e inimigos há mil anos. Eu ainda estou aqui, já eles... – arqueou uma
sobrancelha – estão empalados em meus porões. Há mil anos tentam me
vencer e não conseguem. Então, se eu fosse você, ficaria caladinha e gestaria
esta criança para mim. Quem sabe ao final de tudo eu não tenha misericórdia,
e poupe a sua vida? Afinal, você está carregando o meu neto. – Fez uma
expressão inocente. – Somos família agora.

Trinquei os dentes. Aquele filho da puta cínico.

Azlam olhou para mim e negou com a cabeça. Não fale nada.

Se até os vampiros poderosos daquela sala tinham medo de Drácula,


quem era eu para me rebelar? Não podia ser machucada, não agora. Precisava
pensar na minha criança.

Passaram-se três dias.

Fui alojada num quarto de hóspedes no Castelo de Bram. Não


coloquei os pés para fora do quarto. Passei quase 72 horas deitada na cama,
encolhida em posição fetal. Dia e noite se misturavam. Não me trancaram, e
nem precisou. Eu não tinha forças para sair. Chorava o dia inteiro e não
comia nada. Forçava algumas frutas para dentro só por causa do bebê.

As funcionárias do Castelo traziam minhas refeições. Trouxeram


também minha mala de roupas do hotel. Faziam perguntas que eu não
conseguia responder. Só chorava, abraçada aos travesseiros.

A morte de Athos me doía, mas a morte de Tristan...

Deus. A morte do garoto me destruiu. Parte de mim morreu junto com


ele. Eu só existia por causa da minha criança.

O arrependimento me consumia, queimando meu coração. Eram


labaredas de culpa doloridas.

Encontrei papel e caneta no quarto. Comecei a escrever cartas sem


sentido, só para tentar esvaziar aquela dor. As lágrimas molhavam os papéis.
Cartas para Tristan...
Eu queria ter te perdoado antes. Queria ter passado por cima do meu
orgulho e dado uma chance ao nosso amor. Queria ter um coração tão bom
capaz de esquecer a traição.

Talvez a Clara adolescente teria o perdoado. Acreditado que o amor


compensaria todos os danos. Passaria por cima da mágoa e da falta de
confiança. Ah, como eu queria um pouco da inocência da minha adolescência
de volta...
Continuei a escrever.

Queria não saber que alguns pecados simplesmente precisam, sim,


ser pagos. E desconhecer que não, o amor não vence tudo. E somente amor
não é o suficiente.

Eu era uma garota que conhecia a perda. Havia perdido a mãe e o


irmão no mesmo dia. E quem vive esse tipo de dor, cria cicatrizes. A
inocência me foi tirada. Eu conheci o lado feio da vida e não era capaz de
perdoar.
Mas, agora, a ausência do garoto fazia um barulho estrondoso.
Ressoava em meu coração, exigindo atenção. Você nunca mais irá vê-lo.

Era um luto diferente. Uma revolta, uma incredulidade. Um


ressentimento por aquele amor ter sido arrancado de nossas mãos.

Depois de três dias chorando, fiquei fraca e semiconsciente. Foi então


que notei algo diferente. Uma sensação quente no meu coração. Era uma
sentimento de alívio – como se uma montanha houvesse saído dos meus
ombros.
A traição de Tristan não me feria mais. Simplesmente porque perdê-lo
era mil vezes pior.

Eu estava em paz. Finalmente havia o perdoado. Não da boca para


fora, não para fazer o relacionamento acontecer...

Mas perdoado de verdade.

Sua morte me fez ganhar... Perspectiva. Aquela mágoa me fazia beber


veneno todos os dias, e eu não queria abrigá-la mais dentro de mim. O luto
me limpou. Então, a mágoa se foi, de bom grado e em paz. Como uma
visitante que pegou seu casaco, chapéu e foi embora. Deixou a casa vazia e o
café ainda morno por sobre a mesa.

Meu coração estava... Livre.

Eu finalmente perdoo você, Tristan. De verdade. Queria que estivesse


aqui para ouvir isso.
No quarto dia, eu me levantei. Tomei um banho demorado e sequei os
cabelos. Tirei o pijama e me olhei no espelho. Eu parecia diferente. Já não me
sentiu mais uma jovem de 23 anos. Eu era... Alguém mais. Alguém com um
amor perdido.

Esse tipo de dor muda você. Sentia-me mais ferida, mas também mais
adulta e mais mulher.

Três batidas ressoaram na porta. Recoloquei o pijama e falei:

– Pode entrar.

Uma funcionária entrou. Trazia minha bandeja do café da manhã.


Arranhava o inglês:

– Bom dia, senhorita Clara. Trouxe a sua refeição matinal.


– Obrigada. Drácula está em casa?

Ela se chocou. Primeiro, porque era a primeira vez que eu a


respondia. Segundo, porque todos chamavam Drácula de “Conde” ou “Sua
Excelência”. Tudo muito respeitosamente.

Eu não tinha nenhum respeito. Inclusive, gostaria que ele se fodesse.

Clareou a garganta.

– Hã, sim. O Conde foi dormir em seu aposento particular. Ele caça à
noite e dorme de dia.

Que maravilha. A porra de um vampiro que queimava na luz do sol. O


clichê de um monstro.

– Tsc, que pouco original. Ele também tem medo de cruzes e alho?

Franziu o cenho.

– Não, mas ele tem sério problema com água benta. Não podemos
nem passar perto de igrejas.
Suspirei. Não sei por que me importava.

– Que seja. Já que ele está apagado, vou sair do quarto hoje. Acho
que tomarei o café lá embaixo.

– Que maravilha! O café está sendo servido na sala de jantar. Vou


levar a bandeja de volta.

– Ok. Só vou trocar de roupa e... – parei no meio da frase, franzindo a


testa. – Mas o que... – Senti uma contração na barriga e me inclinei para
frente. Outra contração feroz. A dor era lancinante. Caí no chão, ofegando. –
Tem algo... De errado... Com o meu bebê.

– Senhorita?! – a mulher se assustou.

Eu gritei e me contorci. Sentia uma dor aguda no abdômen.


A funcionária se desesperou. “Oh, meu Deus.” Deixou a bandeja cair
e saiu correndo. “Vou chamar ajuda!”

****

Fui levada ao hospital da cidade. Sra. Mihaela foi comigo.

No hospital, havia um médico obstetra da confiança dos vampiros


locais. Ele cuidava das esposas grávidas. Seus equipamentos eram especiais.
Máquinas de ultrassom mais potentes e remédios diferenciados. Ele tratava e
fazia os partos dos bebês vampiros.

Fez diversos exames em mim, e não detectou nada de errado. Mesmo


assim, nenhum remédio contra a dor funcionou. Eu me contorcia e suava frio,
sofrendo contrações.
Não era o início de um aborto. Simplesmente não sabíamos o que era!

O médico andava por sua sala, expressão séria, tentando pensar. Eu


me deitava na maca, gemendo.

– Não consigo entender... – Passava as mãos pelos cabelos grisalhos.


– É como se o feto estivesse fazendo você sentir dor de propósito. Não é algo
que a medicina possa explicar. Acho que você precisa procurar outra pessoa.
– Escreveu um número de telefone num papel e me entregou.

Voltei para o castelo de ambulância. Me recolocaram no quarto.


Enquanto isso, a governanta ligou para a tal pessoa misteriosa.

Já era fim de tarde, começo da noite. Em breve Drácula acordaria.

Mihaela ligou e chamou a pessoa ao Castelo. Eram sete horas da


noite. Eu estava deitada na minha cama, enquanto Mihaela colocava panos
úmidos na minha testa, tentando apaziguar a febre. Eu me contorcia de dor.
Drácula acordou. Ficou sabendo do acontecido e me visitou no
quarto. Recostava-se à uma parede, olhando para nós sombriamente. Braços
cruzados, face preocupada. Se eu perdesse aquele bebê, sua chance de
recomeçar em outro corpo acabaria.

Soldados bateram à porta. Alguém escoltou uma mulher para dentro


do quarto.
Sra. Mihaela quase chorou em alívio. Levantou-se, desesperada.

– Ah, Catalyna, graças aos céus! Precisamos muito de você!

Catalyna era uma mulher negra. Meia-idade, cabelos cacheados,


roupas coloridas. Usava uma longa saia, um chale e um lenço na cabeça.
Olhou para Drácula e fez uma reverência.
– Excelência.

– Boa noite. Fiquei sabendo que é a bruxa mais antiga da cidade.


Conheci a sua avó, também era uma bruxa.

– Sim. Tenho alguns talentos para o ocultismo.


– Certo. Faça-me um favor pessoal e dê uma olhada no meu neto. O
médico não conseguiu descobrir o problema. Precisamos de respostas. Não
queremos que a menina humana aborte.

A mulher andou até a cama e se sentou ao meu lado. Seu inglês era
falho, embora compreensível.

– Posso? – ergueu a mão por sobre a minha barriga.


Eu apenas aquiesci. Nem tinha forças para falar.

Ela pousou a mão em meu abdômen e fechou os olhos. Franziu o


cenho, balbuciando em romeno – como se estivesse conversando com
alguém. Todos ficaram em silêncio, observando. Ela finalmente abriu os
olhos. Virou-se para Mihaela, sotaque carregado:

– Já entendi o que se passa aqui. O feto está deixando a mãe doente de


propósito.
– Por quê? – arfei. Meu bebê não me amava?

– Porque ele está triste e ressentido, e quer ser ouvido. Foi o único
jeito que encontrou de passar a mensagem. Ele sabe que o pai morreu e está
sofrendo. Quer o pai de volta.

– Como ele sabe? Não faz sentido.


– Ele vê, ouve e sente o mesmo que você. Já tem uma grande
consciência. Não é um feto humano.

Drácula grunhiu.

– Os pormenores não importam. Quero saber qual é a solução.


Catalyna deu de ombros, triste.

– Não tem solução, Excelência. A mãe ficará doente até que o feto
pare de sofrer. O fim do sofrimento pode durar meses, ou pode nem
acontecer. Os corações processam a dor de formas diferentes.

– E o que vai acontecer?


– Não dá para prever. Mas tenho certeza de que, neste ritmo, a menina
não aguentará segurar a gestação. O corpo dela irá acabar expulsando o feto
quando entender que ele está fazendo mal.

Mihaela estava desesperada.

– Então a única solução seria curar o ressentimento?


– Sim, mas não vejo como. O pai está morto. – A senhora acariciou
minha barriga. Falou diretamente com o bebê. – Sei que o seu coração dói,
minha criança. Sei que ouviu a voz de seu pai daí de dentro por muitos
meses, falando com você. Sei que aprendeu a amá-lo e ansiava por vê-lo.
Mas você precisa superar essa dor, ou sua mãe vai sofrer. Ninguém pode
trazer os mortos de volta, meu pequeno. É hora de entender.

Naquele momento, Drácula expirou. Seu olhar se perdeu, parecendo


ter uma ideia. “Trazer os mortos de volta...”, murmurou para si.

– O que houve, Excelência? – Mihaela inquiriu.

– Já sei o que fazer. – E me fitou com malícia. – Não deixarei um


imprevisto tão estúpido como a morte atrapalhar os meus planos. Cuidem da
garota. Vou resolver isso.

Então, virou-se e saiu do quarto. Sem dar qualquer explicação.


****

Todos ficaram intrigados – menos eu. Não tinha força física ou


mental para tal. Só queria apagar e me livrar da dor.

Sra. Catalyna acariciava a minha barriga, cantando canções de ninar.


Estava acalentando o feto. Surpreendentemente, aquilo amenizava minha dor.
Não era lógica ou ciência humana.
Um tempo depois, um soldado veio nos chamar. Minha presença
estava sendo solicitada por Drácula.

– Mas a garota nem consegue se levantar! – Mihaela se indignou.

– Essas são as ordens.


Que ótimo. Arranjaram-me uma cadeira de rodas, e fui levada até a
sala de reuniões.
Catalyna empurrava a minha cadeira. Apenas sua presença dirimia
meu sofrimento; não deixei que fosse embora.

Entramos. Para o meu choque, os di Santorum estavam na sala.


Azlam e Eros sentavam-se à mesa de reunião, fracos e pálidos. Tinhas as
mãos acorrentadas como animais selvagens. Cabeças abaixadas, olheiras e
roupas sujas. Provavelmente, há quatro dias sem alimento.
Minha cadeira de rodas foi colocada bem ao lado deles. Catalyna
sentou-se ao meu lado.

Os primos e eu trocamos olhares arrasados. Ninguém tinha o que


dizer. Perdemos Tristan e Athos. Nossas vidas acabaram.

Drácula entrou na sala. Foi seguido por Sienna e mais dois soldados
fiéis.
Sienna estava um trapo. Não bem vestida e maquiada como sempre.
Roupas simples, cabelo desgrenhado e rosto destruído. Sentou-se em silêncio
à mesa. Claramente, uma mulher de luto. Nem ergueu os olhos para nós.

Drácula sentou-se na cabeceira da mesa. Dirigiu-se aos primos,


cínico.

– E então, meus convidados? Como tem estado a hospedagem nos


meus calabouços? Espero que confortável. Sou um bom anfitrião.
Eros desviou o rosto, amargurado. Azlam apenas encarou Drácula,
face sombria.

– Irei matar você assim que tiver a chance.

Drácula riu. Deliciava-se com a situação.


– Ah, Dom Azlam! Sempre com as palavras mais amáveis na ponta da
língua! Sua amargura me diverte há séculos...

– O que você quer conosco? – rosnou.

Sienna falou pela primeira vez. Rosto baixo, voz por um fio.

– Fale logo, Vlad, por favor. Eu quero voltar aos meus aposentos. Não
me sinto bem.

O Conde suspirou.

– Tudo bem. – Sienna era a única pessoa por quem ele tinha uma gota
de respeito. Juntou as mãos por sobre a mesa e começou, sério. – É o
seguinte, di Santorums. Eu tenho uma proposta. Vamos fazer um acordo e
negociar a liberdade de vocês.

Azlam e Eros se entreolharam, surpresos. Azlam voltou ao seu porte


de comando.

– Estamos ouvindo.
– Aparentemente, o feto no útero da garota se rebelou. Só vai nascer
se o pai voltar. Por isso, eu preciso de Tristan de volta. Dito isto, quero que
vocês dois busquem-no para mim.

Os primos arregalaram os olhos. Eros ofegou.

– Mas Tristan está morto! Você finalmente enlouqueceu?


Eu me aprumei na cadeira. Pela primeira vez, atenta.

– Buscá-lo? Como assim? Onde?

Até Sienna ficou atenta. Voz temerosa:


– O que está falando, Vlad? Nosso filho morreu.

– Morreu, mas eu vou trazê-lo de volta. – Se levantou e andou pela


sala. – Sabem, nestes mil anos de existência eu conheci muita gente. Lidei
com o ocultismo e bruxaria de toda parte do mundo. Aprendi muitos
segredos. Coisas maravilhosas e também coisas terríveis. Insanidades que eu
anseio esquecer. Tive contatos com criaturas que vocês nem imaginariam
existir... Por causa de quem sou, o precursor e líder de toda a espécie, me foi
permitido ter acesso à alguns segredos. Este mundo em que vivemos é
muito... Peculiar. Tem muitos desdobramentos.

– Pelo amor de Deus! – Eros grunhiu. – Vá direto ao ponto! Como


vamos buscar o meu irmão?
– Ah, crianças impacientes. – O Conde revirou os olhos. – Dom Eros,
vamos colocar estes seus neurônios louros para funcionar. Diga-me, como
vampiros podem morrer se já estão mortos? Já ouviu falar de alguém que
morre duas vezes?

Todos nos entreolhamos. Ninguém respondeu.

– Exato, porque isso não existe. – Drácula continuou. – Para onde vão
as criaturas já mortas? Para o estúpido paraíso humano? Claro que não.
Vampiros vão para um mundo paralelo.
Azlam estava cético.

– Como você saberia disso, Conde? Não brinque conosco.

– Digamos que a Morte é uma antiga... Amiga. – Fez uma careta. –


Ou algo semelhante. Conheci a Morte há alguns séculos. Ela é uma
colecionadora, adora criaturas diferentes. Criaturas únicas e especiais como
nós.
– A morte é um acontecimento. Você fala como se fosse uma criatura
personificada.
– E é, meu caro! – ele riu. – A Morte é uma criatura com muitos
rostos. Embora seu rosto original não seja tão agradável... Ela entra em
contato com quem a interessa. Assim que soube da minha existência, mil
anos atrás, me procurou para fazer um acordo. Ela queria a alma dos meus
descendentes. Crianças que já nasciam com corações parados? Que andavam
e existiam neste mundo, bebendo sangue humano? Nós a fascinamos. Ela nos
queria. Disse ter um lugar reservado para nossa espécie após morrermos.

– Não me diga... – Eros grunhiu. – A Terra do Nunca?

Azlam lhe lançou um olhar reprovador.

– O quê? – Eros rebateu. – Eu estou há quatro dias sem comer, e este


maluco vem falar de mundo paralelo para mortos? Não fode.

Azlam suspirou e se virou para Drácula:


– Deixe-me adivinhar... E ela te ofereceu algo em troca?

– É claro que sim. Ela fez uma proposta irrecusável.

– Que proposta, Conde? – Eros já estava impaciente.


Drácula nos fitou de cima, orgulhoso.

– A única coisa que eu ainda não tinha... A imortalidade.

– Puta que pariu – Eros fechou os olhos. – O velho está delirando.


Queria não ter saído do meu calabouço.
Drácula o ignorou.

– Tudo bem, Dom Eros. O mau humor é uma consequência da fome.


Por que acham que sou o vampiro mais velho do mundo? Foi a própria Morte
que me concedeu a ideia de transferir minha essência para outro corpo.
Nenhuma bruxa neste mundo saberia tal segredo.
O Conde continuou contando a história. Bizarra história.

Quase mil anos atrás – quando Drácula era um jovem vampiro


adolescente de 90 anos –, a Morte ficou sabendo de sua existência. Uma
criatura que assombrava a terra e dizimava vilas inteiras. Um homem que
desenvolveu uma mutação genética peculiar, e precisava beber sangue
humano para sobreviver. Alguém com força, talento, inteligência e beleza
extraordinárias. Qualidades que a Morte muito apreciava em sua coleção.

A Morte – a quem Drácula se referia como uma pessoa –, lhe


procurou e encontrou. Propôs um acordo. Em troca das almas de seus
descendentes, ela o tornaria imortal.

Ensinou-lhe o segredo. Ele teria que dormir por 100 anos e acordar
por 10. Assim, ela nunca viria o buscar. E quando seu corpo ficasse velho
demais para abrigar a alma, ele simplesmente mudaria de corpo.

Todos acreditavam que uma bruxa havia ensinado o truque da


hibernação para Drácula. Ledo engano. Era o que ele queria que
pensássemos. Foi a própria Morte que o ensinou.
Drácula vendeu a alma de seus descendentes em troca da
imortalidade. A Morte colecionava essas almas num mundo secreto, seu
universo particular. Segundo Drácula, chamado de “o mundo dos mortos.” O
outro lado. Uma dimensão paralela na qual poucos sabiam como chegar.

A ideia de Drácula?

Buscar Tristan nesse mundo e trazê-lo de volta. Simples.


– Vocês já estão mortos, então não precisarão morrer para chegar.
Minha proposta é a seguinte: vocês aceitam a missão e resgatam Tristan para
mim. Então, como parte da recompensa, permitirei que tragam Athos de volta
também.

Ah, meu Deus! Em meio à dor, eu sentia uma pontada de alegria.


Esperança.
– Por que nos escolheu? – Azlam se chocou. – Somos seus
prisioneiros. Poderia mandar seus homens de confiança.

– Simples. Embora sejam meus inimigos, vocês são os melhores


soldados que conheço. E eu não brinco em minhas estratégias. Entrem e
saiam do mundo dos mortos sem ser vistos pela Morte. Ela não perdoa
invasores. Também, não podem mencionar o meu nome por lá. Ela não pode
desconfiar que estou por trás disso. Tragam Tristan e Athos de volta, e eu os
libertarei. É claro que, depois, os exilarei. Mas vocês estarão vivos e livres de
mim, e as dívidas serão perdoadas. Não é uma boa oferta?

Azlam colocou as mãos acorrentadas por sobre a mesa, sério. Estava


negociando.
– Queremos mais.

– Estou ouvindo.

– Queremos a Clara. Depois que ela der à luz, sabemos que pretende
matá-la. Deixe-a viva e livre. Quero que ela vá embora conosco.
Naquele momento, senti uma pontada na barriga – uma contração
insuportável. Me inclinei e gritei. Lágrimas escaparam dos meus olhos.

– Clara! – Azlam se levantou, chocado. – O que está acontecendo


com você?

– Não sei... – chorava.


– Alguém faça alguma coisa! – Eros se desesperou.
– Catalyna! – Drácula ficou tenso. – Nos diga o que houve!

Todos se levantaram, apavorados. Enquanto isso, eu chorava e me


contorcia. A dor era excruciante.
Até então, Catalyna estava calada. Ela não compreendia nossa
conversa em italiano. Mediante a ordem, se ajoelhou ao meu lado. Pousou a
mão sobre minha barriga e fechou as pálpebras, tentando entender a reação
do feto.

Contou:

– Ele ouviu o plano e não está concordando. Sabe que vocês


pretendem ir à algum lugar, e quer ir também. Deseja ir pessoalmente buscar
o pai.
Azlam arfou.

– A criança está louca? Clara teria que morrer para chegar ao outro
lado! Nós já estamos mortos!

– É o que ele quer. – Catalyna deu de ombros. – Se não concordarem,


a mãe irá sofrer.

– Eu vou. – Anunciei, voz embargada. – Não aguento mais essa dor.


Por favor, arrumem uma maneira de me levar. – Sem me matar, se possível.

Então, aconteceu. Como num passe de mágica a dor parou. Eu


coloquei a mão sobre a barriga, perplexa. Olhei para Catalyna e perguntei em
inglês.

– O que aconteceu?
– O feto... Aceitou a proposta. Se você for buscar o pai, ele não te
deixará mais doente. Essa é a condição.
****

Drácula encontrou uma solução. Segundo ele, existiam algumas


passagens no mundo que a Morte usava para transitar entre os reinos. Dos
vivos e dos mortos.
Duas delas ficavam em Londres. Uma na torre do relógio e outra
numa escola particular feita de oferenda à própria. Drácula disse que, por
razões secretas, as passagens foram comprometidas. Então ele pensou em
outra.

– Existem lugares com energias muito fortes. Vibrações tão altas


capazes de manifestar ruídos e imagens de outros mundos. Os seres humanos
consideravam esses lugares sagrados. Da última vez em que encontrei a
Morte, ela usou uma dessas passagens para voltar ao Mundo dos Mortos. Fica
na Itália, na Província de Foggia.

Os di Santorum trocaram um olhar consternado. Azlam questionou:


– Impossível. Você não está falando do Monte Sant’Angelo, está?

– Exatamente.

– Mas aquele lugar é realmente sagrado! Vampiros não podem se


aproximar! É tóxico para nossa espécie.
– Eu sei. E para qualquer outra criatura considerada... – Drácula
arqueou uma sobrancelha, cético. – Demoníaca.

Eu era uma estudante de História, e sabia muito bem do que eles


falavam.

O Monte Sant’Angelo era um lugar famoso. Nele, situava-se o


Santuário de São Miguel Arcanjo, uma igreja lendária. Em seu subsolo, havia
uma caverna que os cristãos consideravam sagrada.
Dizia-se que, naquela gruta, o próprio Arcanjo Miguel havia
aparecido em situações diferentes. Foram quatro aparições levadas muito à
sério. Registradas nos livros do próprio Vaticano.

Segundo os relatos, numa dessas aparições, o Arcanjo conversou com


um homem humano. Contou que ele mesmo havia consagrado a caverna, pois
era um lugar especial e sagrado. Uma gruta que o próprio anjo protegia.
Noventa anos após a primeira aparição, o Papa da época mandou que
fosse erguida uma Basílica por sobre a gruta. Desde então, o lugar atraía
milhares de fiéis em peregrinação. Diziam que qualquer pedido feito na gruta
era realizado pelo próprio Arcanjo Miguel. Até os impossíveis.

Eu não era uma pessoa religiosa. Mesmo assim, a história sempre me


emocionava.

Drácula contou que aquele lugar emanava uma energia tão poderosa,
que abriu uma fenda entre mundos. A Morte usava tal passagem para
perambular entre os lados. O lugar era sagrado e intocável, e a passagem
ainda estava lá. Eu não precisaria morrer para transpassá-la. Afinal, ninguém
sabia que ela existia.
– Mesmo se for verdade... Não vamos ser capazes de entrar na
basílica. – Eros considerou. – Vocês sabem muito bem que vampiros não
conseguem entrar em igrejas. Ainda mais numa igreja com uma energia tão
profunda.

– Exato – Azlam corroborou. – A energia Sagrada nos repele.

Drácula tinha outros planos.


– Não irão entrar pela Basílica, irão entrar por baixo dela. Eu sei onde
fica a passagem. É um túnel subterrâneo construído atrás da gruta.
– Então não precisaremos entrar no território sagrado?

– Não. Seja lá quem protege o lugar, não vai deixar que vocês entrem.
Vampiros que ousaram entrar lá enlouqueceram e morreram meses depois.
Melhor não brincar com o que não conhecemos. Irão passar por trás.
– E a atmosfera do mundo dos mortos não vai prejudicar a Clara? –
Eros perguntou.

– Não – Drácula revirou os olhos. – Ela não será a primeira pessoa


viva a invadir o lugar. Lá tem oxigênio e atmosfera idêntica à nossa. Só não
existe luz do sol. O máximo que ela irá precisar levar serão algumas cápsulas
de vitamina D.

Que loucura.
– E quanto tempo vamos ficar lá?

– O tempo que for necessário. Tristan e Athos estarão em lugares


diferentes. O mundo dos mortos é imenso, cabe a vocês encontrá-los.

– E tem alguma ideia de onde eles podem estar? – Azlam inquiriu.


– Tenho palpites, mas só. Encontrá-los é tarefa para vocês. E
lembrem-se, a Morte não pode saber que estão lá. Ou pode ser que ela nunca
mais os deixe sair.

****

A dor passou.
Agora, havia espaço dentro de mim para sentir algo mais. Esperança.
Todo o meu corpo foi tomado por uma expectativa insana. Uma chama
quente de alegria que inflamava meu coração.

Era uma missão suicida e arriscada? Sim. Mas para ver Tristan outra
vez eu faria qualquer coisa. Todos os tipos de insanidade.

Drácula alimentou os di Santorum. Naquela noite, os encontrei no


átrio do Castelo. Todos bem vestidos, limpos, alimentados e armados.
Prontos para a missão.
Eu coloquei um jeans confortável e tênis. Levava uma mochila com
roupas íntimas e mantimentos. Ah, e claro: uma porra de pote de vitamina D.
Eros fez questão.

Ir a uma missão suicida no mundo dos Mortos? Ok. Mas ficar sem
vitaminas? Jamais.

O jatinho dos primos foi trazido. Voltamos para a Itália. Drácula foi
conosco, deixando a viagem estranha e desconfortável. Não dava para
conversar sob o olhar sinistro do Conde.
Chegamos à Foggia. Desembarcamos num aeroporto particular.

O Conde não pôde sair do jato, vez que era dia. Se ficasse diretamente
sob a luz do sol, queimaria.

Pegamos um táxi até a gruta. O sol estava à pino no céu. No táxi, eu


pesquisava sobre a Basílica. Os documentos relatavam que, durante uma
aparição, o Arcanjo havia dito o seguinte: “Eu sou o Arcanjo Miguel e estou
sempre na presença de Deus. A caverna é sagrada para mim, é uma escolha
minha, sou o anjo da guarda dela. Ali, onde se abre a rocha, podem ser
perdoados os pecados dos homens. O que lá se pedir em oração, será ouvido.
Vá, então à montanha e dedique a gruta ao culto cristão.”
– Ótima hora para checar o Instagram – Eros me provocou.

– Bom, no mundo dos mortos não deve ter wi-fi.

– A dor passou?
– Passou. Parece que o bebê sabe que estamos indo resgatar o pai.

Eros suspirou.

– Sabe que não iremos deixar que Drácula roube seu filho, né? Só
ficamos calados para o velho nos deixar ir.

Encarei-o com carinho.

– Eu sempre soube.

– Quando voltarmos, ele irá nos perseguir pelo resto da vida.

– Somos espertos. – Dei de ombros. – Passaremos a vida fugindo,


então.

Estalou a língua, pensando.


– Eu, você, Athos, Azlam e Tristan... Todos juntos morando numa
casinha nas Maldivas. É uma bela fantasia. – Franziu o cenho. – E algumas
mulheres locais que topem ménages, é claro.

Estacionamos à frente da Igreja. Azlam pagou o táxi:

– Não fale suas baixarias na frente de uma igreja, Eros.

Ele ergueu as palmas.

– Amém, santo Azlam.

Descemos do táxi e eu tremi. De fato, havia uma energia diferente


pairando no ar.
Consistia num igreja de pedras brancas e muros de grades pretas.
Alguns tijolos estavam desgastados pelo tempo. No topo da igreja, havia uma
estátua do próprio Arcanjo. Lindo.

Demos a volta atrás da igreja. Desembocamos numa rua estreita e


deserta, logo ninguém nos viu.

Bem atrás da construção, no chão, havia um estranho afresco de


azulejos. Retratava uma flor de lótus. Estranhamente deslocado para o lugar.
Azlam se ajoelhou à frente dele. Falou algumas palavras ensinadas
pelo próprio Drácula. Ao som das palavras, ouvimos o barulho de um clique
e algo se abriu. O afresco era uma tampa de alçapão. Azlam o levantou. Nos
olhou com apreensão.

– Estão prontos?

“Não.”
“De jeito nenhum”, Eros e eu falamos ao mesmo tempo.

– Pois é – suspirou. – Agora é meio tarde para desistirmos.

Engoli em seco, as mão sobre a barriga. Qualquer coisa por Tristan.


Eros foi o primeiro a pular. Azlam estendeu a mão e me ajudou a
entrar. Em seguida, pulou atrás de nós e fechou o alçapão. Consistia numa
queda de apenas 2 metros. Caímos num túnel estreito. Continha paredes de
pedra e chão terroso; aparentemente, uma extensão da Gruta Sagrada.

Azlam foi à frente. Empunhava uma lanterna.

– Fiquem atrás de mim. A partir daqui, estaremos em território


desconhecido.
Pois é. Nenhuma criatura saiu deste túnel viva. Era reconfortante
saber.

– Como saberemos se já estamos no mundo dos mortos? – perguntei.

– Acredite – Eros ergueu de uma sobrancelha – vamos sentir.


Azlam andava e deslizava uma mão nas pedras das paredes.

– Dá para entender por que a Morte usou este túnel como passagem.
Conseguem sentir a energia?
– Sim. – Eros tremeu. – E arrepia a minha espinha. Como se não
devêssemos estar aqui.

Eu, de outra banda, me senti estranhamente em paz. A energia


daquela gruta me aliviava, drenando-me de toda a carga ruim.

– Está sentindo alguma coisa, Clara? – Azlam se preocupou.


– Não... Na verdade, esse lugar me faz muito bem.

– É porque você é humana. A energia sagrada do lugar não tem


nenhum problema com você.

– E o bebê? – apontei para a barriga.


– Acho que o protetor dessa Gruta também não tem problemas com
ele. É só uma criança inocente, com pensamentos puros. Não tem sangue nas
mãos ainda.

Tremi. Ainda.

O túnel era imenso. Andamos por horas e parecia não terminar. O ar


ficava cada vez mais rarefeito. Também, notamos a leve inclinação do solo;
estávamos descendo.
Eros e Azlam iam na frente, conversando. Eram mais rápidos que eu.

Eros resmungava. “Se descermos mais, vamos chegar ao Mundo


Escondido.”

“Deus me livre. Aqueles changelings na forma original me dão


arrepios. Eu tive o desprazer de ver um deles há duzentos anos, e não
recomendo.”

Eu os seguia. Comia minha terceira barra de cereal:

– O que são changelings?

Estávamos descendo numa missão secreta para o maldito mundo dos


mortos, e não era hora de comer. Mas, bem, eu estava grávida. Ninguém
ousou me contestar.

Azlam explicou:

– Uma das outras centenas de espécies não-humanas que existem no


mundo. São como fadas. Só que piores. Vivem debaixo do solo.

– Assustadores. – Eros tremeu.

– Vou querer saber os detalhes?


– Não. – Responderam em coro.

Andamos pelo que pareceram cerca de cinco horas. Em determinado


momento, meu relógio de pulso estagnou. Azlam contou que no mundo dos
mortos o tempo parava.

– Chegamos à fronteira entre mundos. Já devemos estar no mundo


dos mortos. Agora, só precisamos encontrar a saída do túnel.
Eu estava exausta. Os primos tiveram que fazer pequenas paradas por
mim. Eu me sentava e bebia água, tomando fôlego. Embora o ar fosse mais
rarefeito, ainda podia respirar perfeitamente.

Finalmente chegamos ao fim do túnel.

Àquela altura, já devíamos ter descido à porra do magma da Terra.


Quando Drácula disse sobre “mundo dos mortos no subsolo”, não estava
brincando.
Ao final do túnel havia uma porta de madeira (mais velha que o
tempo). Não havia maçaneta, apenas uma argola dourada.

Azlam falou algumas palavras e a puxou. A porta se abriu. Saímos


numa sala vazia, que se parecia à um armazém. Havia barris empoeirados e
várias caixas. Do outro lado da sala, uma outra porta.
– Ok. – Azlam se virou para nós. – Este é o mundo dos mortos, e não
sabemos o que encontraremos do outro lado.

Eros interrompeu:

– Caveiras falantes? Zumbis?


– A noiva cadáver? – murmurei.

Azlam nos ignorou.

– Seja o que for, fiquemos calmos. Vamos tentar nos misturar.


Ninguém pode desconfiar que viemos do mundo dos vivos.
– E se não der para nos misturarmos?

– Aí atiramos e corremos.

Ótimo plano.

Tensos, nos encaminhamos para a porta. Eros e Azlam tinham uma


mão nos coldres das armas na cintura. Eu fiquei bem atrás deles, coração na
boca. Um tour pelo mundo dos mortos não seria um parque de diversões.

Azlam abriu a porta. Todos em posição de ataque. Então, demos de


cara com um...

Bar?
– O quê?! – me choquei.
Eros expirou.

– Só pode ser sacanagem.

À nossa frente, a porta desembocava numa espécie de pub. Repleto de


mesas de madeira lotadas, música alta e garçons servindo cerveja. A taverna
era iluminada por centenas de velas. Só havia homens. Todos bebiam e
conversavam em grupos, enchendo a cara e soltando risadas. Alguns até
jogavam cartas e jogos de dardos.

Vampiros mortos já mortos.

Azlam piscou.
– Uma festa?

Eros se indignou.

– O quê? Este é o mundo dos mortos? Um pub de vampiros bêbados?


Cadê os zumbis?!
Azlam se recompôs. Sempre um soldado.

– Não importa. Tentem se misturar e não ajam de forma suspeita.

Avançou. Nós o seguimos, fechando a porta discretamente.

Infelizmente, eu era a única mulher do lugar. Meio impossível passar


despercebida.

Ao me verem, os homens se calaram e arregalaram os olhos. Toda a


conversa da taverna cessou.

Os primos e eu nos entreolhamos. Não sabíamos o que fazer. Eros


sussurrou entredentes para mim:
– Fale alguma coisa.
– Hã... Boa noite.

Todos começaram a falar ao mesmo tempo. Uma mulher aqui? Como


isso é possível?
São visitantes?

São invasores!

Um deles veio até nós, face perplexa. Tinha um crachá e um pano de


prato sobre o ombro. Provavelmente o dono do bar.

– Quem diabos são vocês?

Azlam coçou a nuca.

– Viajantes. Podemos conversar num lugar mais, hã, reservado?


Isto é, longe dos olhares ameaçadores da centena de vampiros?

Ele olhou para os clientes.

– Deixem que resolvo isso. – E nos levou para seu escritório nos
fundos.
Nos sentamos à mesa. Dissemos o combinado com Drácula. Éramos
visitantes de Roma à procura de outros vampiros.

Drácula nos contou que a disposição do Mundo dos Mortos era


praticamente igual à do mundo dos vivos. Existiam as mesmas cidades.

O dono do bar, um vampiro arruivado, passava a mão pelos cabelos.


– Inacreditável. Pensávamos que todos os vampiros do mundo dos
mortos estavam aqui! Nem sabíamos que existiam mais por aí...

Segundo Drácula, a morte criou para si um mundo paralelo. Aqui, ela


guardava seus “brinquedos.” Almas de humanos já mortos, bonitos,
inteligentes e interessantes. Uma verdadeira coleção.

No entanto, a Morte começou a quebrar regras. Sequestrar humanos


vivos, tomar corpos para si... Isso a fez ser punida. Entrar em guerra com...
Criaturas Superiores. Brincar com almas humanas era perigoso, e a Morte
pagou o preço. (NOTA DA AUTORA: descubra a história do Mundo dos
Mortos na duologia “Escola dos Mortos”, também na Amazon).
Por causa dessa guerra, o mundo dos mortos havia sofrido um grande
atentado. Um ataque feroz que destruiu prédios e causou grandes desastres
naturais.

A Morte perdeu a guerra. Seu mundinho secreto foi destruído. Alguns


habitantes fugiram, alguns resolveram permanecer. Os poucos habitantes que
sobreviveram tentaram reconstruir o lugar, pouco a pouco. Trabalhavam dia e
noite.

O homem nos contou:


– Os vampiros já desconfiavam que a Morte mexia com transações
ilegais. Trazia vivos ao mundo dos mortos, fazia acordos depravados, tomava
corpos humanos... Uma hora, a conta chegou. Os Seres lá de cima – e
apontou para o teto, misterioso – resolveram castigá-la. O ataque quase
destruiu por inteiro nosso mundo. E eu juro... – bateu o punho fechado na
mesa, raivoso. – Se eu vir mais algum invasor vivo por aqui, eu mesmo o
mato. Por causa desses vivos idiotas nós passamos pelo maldito Apocalipse.
Não sei como eles descobrem as passagens para cá, mas por causa disso a
Morte foi punida. Esse é o único mundo que nos resta. O que os vivos
querem mais? Colocar-nos dentro de caixões? – bufou. – Não entendo por
que não podem sossegar os traseiros no seu próprio mundo.

Puta merda.
– Ah é... – Eros parecia prestes a ter um derrame. – Malditos
invasores.

Azlam clareou a garganta.


– Se virmos algum vivo, iremos matá-lo na hora.

– Ótimo. – O dono se deu por satisfeito. – Agora vamos ao que


interessa. Expliquem a garota. – E apontou para mim.

Só vampiros mortos chegavam ao mundo dos mortos. E só existiam


vampiros machos. Logo, eu era uma aberração.
Repeti a história que Drácula mandou.

– Sou filha de Sienna Baronelli, a única mulher vampira da História.

– Ah, Sienna... – o homem se recostou à cadeira. Sorrisinho bobo nos


lábios. – Eu me lembro muito bem dela. Nós nos divertimos muito num
cabaré nos anos 20.
Pois é. Quando Sienna afirmava que já havia dormido com todos os
vampiros existentes, não estava brincando.

– Então você a conhece?

– Claro! Sienna é uma lenda entre os vampiros! A única fêmea de


nossa espécie. Sua filha será muito bem vinda entre nós! Como você morreu?
– Comida envenenada.

– Qual veneno? – franziu o cenho. – Quase nenhum pode nos matar.

– Uma erva especial da Transilvânia.


– Nunca ouvi falar...

– Pois é. Foi descoberta recentemente.


Contamos a seguinte história: estávamos no campo quando o ataque
ocorreu. Um vilarejo nos arredores de Roma.

Após o ataque, tentávamos encontrar sobreviventes. Rodamos por


várias cidades e países; encontramos pelo caminho alguns vampiros
nômades, sempre solitários. Vagavam ao léu neste mundo deserto.
Até que um dia encontramos um italiano. Ele nos contou que existia
uma pequena comunidade de vampiros na Itália. Então, viemos procurá-los.

Perguntei:

– Nenhum humano por aqui, hã, sobreviveu? – na falta de um termo


melhor...
– Não. Eles não eram fortes o suficiente. Antigamente, antes do
ataque, o mundo dos mortos era muito... – franziu a testa – vivo. Cheio de
música, cores e diversão. Depois do ataque todos os humanos que viviam
aqui morreram, e só nós restamos. – Vampiros eram mais fortes demais.
Pouca coisa os destruía. – Agora, estamos sozinhos. – Suspirou. – Recolher
os cacos desse mundo pós-apocalíptico é triste, mas somos resilientes.
Estamos o reconstruindo pouco a pouco.

– Então, todos os vampiros do mundo resolveram se mudar para cá?

– Quem ouve falar de nós, geralmente vem para cá. Já que estamos
condenados a passar o resto da eternidade neste mundo de mortos,
abandonados, pelo menos que fiquemos juntos. E agora que nós temos uma
mulher... – soltou um sorrisinho insidioso para mim. – Tudo será mais
interessante. Estamos há anos sem ver uma mulher. As mulheres humanas
morreram e só sobraram machos vampiros. Você será disputada. Ou...
Compartilhada.
Desviei os olhos, tensa. Precisava sair daqui.

– Na verdade... – Azlam cortou o assunto de propósito. – Estamos


rodando todos os países em busca de nossos irmãos. Nós nos separamos há
alguns anos. Não sabemos o que aconteceu com eles, nem se sobreviveram
ao ataque. Não temos notícias há muito tempo.
Telefones e internet não funcionavam nesse mundo.

– Humm... – aquilo distraiu o homem de mim. Graças aos céus. – Sei


como é. Também perdi o contato de vários amigos. Tem ideia de onde podem
estar?

– Nós temos um palpite, sim. Mas nosso estoque de gasolina acabou.


E depois do Apocalipse não encontramos mais aviões ou barcos funcionando.
– Ah, podem levar a minha gasolina. A cidade é pequena e mal
usamos os carros mesmo. Sobrou pouquíssima gasolina... – suspirou. –
Antigamente, a Morte deixava alguns visitantes entre mundos trazê-las do
mundo dos vivos. Mas agora que as passagens foram fechadas... Bem, em
breve ficaremos sem. Isso sem falar nos demais itens. Os vampiros mortos já
mortos não precisam se alimentar, óbvio... Só que uma existência sem cerveja
vai ser bem triste. Estamos bebendo nossos últimos barris.

Eros se chocou.

– Sem cerveja e sem mulheres?! – inclinou-se por sobre a mesa,


pousando uma mão sobre o ombro do homem. – Sinto muito, meu camarada.
É realmente uma tragédia.
– Nem me fale... Mas é melhor que estar num caixão.

– Pensando por esse lado...

O dono nos emprestou sua caminhonete. Tinha o tanque cheio.


Também garantiu que explicaria a situação aos seus clientes ferozes. Nós
asseguramos que voltaríamos, entregaríamos seu carro e beberíamos uma
cerveja no lugar.

Na despedida, o homem me olhava. Quase em prantos.


– Mas você irá voltar, não é, Clara?

– Claro que sim. – Menti. – Assim que encontrar meus amigos, irei
me estabelecer aqui.

– Que ótimo! Depois do desastre, ficamos com várias casas vazias.


Pode escolher qualquer uma para morar! Nós mesmos a reformaremos para
você. Tenho certeza de que todos os vampiros da cidade irão adorar a notícia.
Sorri amarelo. Ser literalmente a última mulher do mundo era
estressante.

Nos despedimos (antes que ficasse mais estranho).

Fomos de carro até Roma. A viagem durou algumas horas. Azlam


dirigiu, e eu viajei ao seu lado. Eros foi dormindo no banco de atrás.
Tsc. Apenas Eros podia dormir numa missão no mundo dos mortos.

Enquanto viajávamos, observava tudo pela janela. Meio assustada,


meio fascinada.

As estradas eram como as do mundo normal. Sinalização, vegetação,


asfalto... Não obstante, o céu era preto como breu. Não havia estrelas, lua,
muito menos luz do sol. E era sempre assim. Ademais, todos os nossos
relógios ficaram parados e meu celular não tinha sinal.
Às vezes, na estrada, passávamos por umas ou outras construções
caídas aos pedaços. Casas abandonadas, carros deixados no meio da estrada
com as portas abertas...

Um cenário pós-apocalíptico.

– O que aconteceu aqui? – murmurei para mim mesma.

Azlam ouviu. Considerou:

– A Morte irritou mesmo alguém lá de cima.


– Quem, especificamente?

– Não me pergunte o que não posso responder, ragazza. É um assunto


além da nossa compreensão. Ela mantinha esse mundo como seu parque de
diversões particular. Como castigo, todos os humanos foram expulsos. Só
criaturas mais fortes, como vampiros, sobraram.

– E o que aconteceu com os humanos? Não poderiam morrer outra


vez.
– Só sei o que Drácula contou. Alguns conseguiram retornar ao
mundo dos vivos. Outros, ficaram e desapareceram de vez.

– Quando aconteceu?

– Uns cinco anos atrás. Desde então, estão com ódio dos vivos. Se
descobrirem que você é uma invasora... – engoliu em seco. – Estaremos
ferrados. Eles odeiam os vivos depois do desastre.
Estremeci.

– Então é melhor eu interpretar o papel da minha vida.

Ligamos o som. Não havia rádio, mas achamos uns CDs no carro.
Fomos ouvindo músicas antigas.
– Isso é muito estranho. – Comentei. – Estamos na estrada, ouvindo
música. É como se estivéssemos no mundo real.

– Pois é, mas não tem nada de real aqui, acredite. – Fitou-me de


soslaio sombriamente. – Você não vai querer passar muito tempo nesse
mundo.
Na viagem, eu me hidratei e comi alguns salgadinhos. Levava tudo na
mochila. Eu era a única viva aqui que precisava de alimentos.

Horas depois, chegamos à Roma.

Foi bizarro ver a versão morta da cidade. Alguns prédios caíam em


ruinas. Outros, sobreviveram aos terremotos se mantiveram de pé – ainda que
de forma meio macabra.
As fontes de água não funcionavam. Postes apagados e água dos rios,
paradas. Havia carros abandonados no meio da rua e lojas com portas
escancaradas. Tudo um completo breu. Somente a luz dos faróis iluminava
nosso caminho.

Uma cidade fantasma.

Foi bem triste de ver.

Azlam tinha um palpite. Segundo Drácula, as almas voltavam ao seus


lugares de origem no mundo dos mortos. Lugares que consideravam como
lares. A casa de Athos sempre foi o Palacete. Então, onde ele estaria que não
lá?

Paramos na porta do Palacete. A porta da frente estava aberta.

Entramos silenciosamente. Foi doloroso ver o lugar – sempre tão


cheio de vida e risadas de estudantes – assim, vazio. Escuro e assustador.
Os primos subiram. Eu decidi ficar no térreo e o procurar nos jardins.
Aos fundos do Palacete havia um jardim. Local pequeno e privativo,
particular dos di Santorum. Nenhuma estudante estava autorizada a entrar.

O jardim de Athos.
O mais velho dos di Santorum havia vivido demais. Não gostava de
violência, como Azlam, e nem de badalação, como Eros. Ele tinha uma alma
tão antiga quanto o seu corpo.

Athos gostava de paz. Literatura, música clássica e solidão. No tempo


livre, também adorava cuidar de seu jardim. Muito centrado, compassivo e
paciente. Era como se sua mente houvesse parado alguns séculos atrás. Ele
não se adaptara ao ritmo louco da modernidade.

Talvez por isso todos os considerassem um “pai” da família. Porque


ele cuidava de todos nós.
Pensei com meus botões... Se eu estivesse exilada num mundo
paralelo, sozinha pela eternidade, onde me refugiaria?

No meu lugar preferido.

Dei a volta no palacete. Cheguei aos fundos, no jardim particular. O


portão de ferro estava entreaberto.

Foi um palpite certeiro.

Lá estava Athos. Ajoelhado na grama, cultivando suas rosas. Tinha o


cabelo preso num coque desleixado. Não usava camisa, apenas uma calça de
pijamas. Nunca o tinha visto sem seu terno polido. Nunca. Era mesmo um
universo paralelo...

Recostei-me no muro e cruzei os braços.


– Ora, ora. Que cena memorável.
Ele ergueu o rosto e me viu. Arregalou os olhos, sem acreditar.

– Clara?!

Abri um sorriso.

– Morrer não te fez se livrar de nós. Achou mesmo que não viríamos
te buscar?

Sem acreditar no que via, ele se levantou. Correu até mim e me


abraçou com fervor.

– O que você está fazendo aqui?! Estou sonhando?


Eu só consegui o abraçar de volta. Ele me rodou com alegria. Depois,
me colocou no chão, incrédulo. Colocou as mãos sobre meus ombros.
– Ah, não. Você não está morta, está? Meu Deus, me diga que não
está morta.

– Não estou. Nós viemos em uma missão secreta para te salvar.


– Nós?!

– Sim! Azlam e Eros também estão aqui.

– Meu Deus... – passou a mão pelos cabelos. – Vocês são


completamente loucos!

– Você não sabe nem da metade...

Corremos para o interior do palacete. Subimos ao segundo andar,


gritando pelos irmãos. Eros e Azlam logo nos ouviram, e correram para nos
encontrar. Deram de cara conosco na sala de estar.

Ao verem Athos, os primos ficaram extasiados. Se abraçaram com


alívio e alegria.
– Não acredito que vocês estão aqui mesmo! Isso é insanidade! –
Athos se emocionava.

– Nunca te deixaríamos, irmão. – Azlam apertou seu ombro.

Eros fez uma careta.


– Caralho, você está péssimo. Nunca o vi sem um terno.

– Não é? – concordei. – Este cabelo embaraçado, esta barba por


fazer... Qual é o próximo passo? Vender sua arte na praia?

– Viver do que a Natureza dá... – Eros completou a piada.


– E podem me culpar? – Athos bufou. – Eu achei que ficaria sozinho
para sempre neste mundo esquecido.
– Não culpo. – Eros constatou. – No seu lugar, eu andaria pelado.

– Você já faz isso. Mesmo no mundo dos vivos.

– Ah, é. – Desviou os olhos, pensando. – Teve aquela vez em


Istambul.

– Quase fomos presos por causa de você.

Nós rimos. Mas, rapidamente, meu sorriso morreu.

– Agora vamos falar sobre o que interessa. Athos, você sabe onde
Tristan pode estar?

Nos sentamos e conversamos. Contei sobre o acordo com Drácula,


sobre a dor e sobre o feto.

– (...) e foi assim que descobrimos sobre a existência do mundo dos


mortos. E o bebê quis descer até aqui para buscar o pai.
Athos se chocou.

– Ele nem saiu do útero e já está fazendo birra?

– O que você esperava? – dei de ombros. – É filho do Tristan.

– É, isso explica muito. – Recostou-se no sofá, cruzando os braços e


refletindo. – Sabem, desde que cheguei aqui, venho pensando sobre Tristan.
Ele deve ter chegado ao mundo dos mortos antes de mim. Procurei-o por toda
a cidade e não encontrei. Quando morri, acordei aqui: sozinho neste palacete.
Onde ele poderia ter acordado?

– Procurou no Palazzo, onde ele morava no mundo dos vivos?

– Sim, mas lá foi destruído. Muitos prédios de Roma não


sobreviveram ao terremoto. Fui até lá e só restou escombros.
Escondi o rosto nas mãos. Senti o desespero bater.

– Meu Deus, Tristan. Cadê você? – nunca iríamos encontrá-lo. O


mundo dos mortos era enorme, e ele poderia estar em qualquer lugar.
Qualquer. Maldito. Lugar.

Athos pousou uma mão sobre meu ombro.

– Calma, ragazza. Nós iremos encontrá-lo.

Azlam comentou:

– Drácula tem uma suposição, mas é meio absurda.

– Estou aberto a qualquer absurdo. Estamos sem opções.


– Ele disse que a Morte gosta de colecionar. E quem seria uma peça
mais preciosa que o vampiro-rei da espécie? Para uma colecionadora, Tristan
é uma preciosidade. Onde ela colocaria um vampiro do seu interesse?

– Onde pudesse ficar de olho nele... – concluí.

– Então, o quê? – Eros contestou. – Eles estão morando juntos, ou


algo assim?

Azlam argumentou:

– Drácula tem uma suspeita. Onde quer que a Morte esteja, Tristan
deve estar por perto. Segundo ele, até o século passado a Morte morava na
Inglaterra dos Mortos.

– Ou o que sobrou de lá. – Eros relembrou. – O cara do bar não disse


que Londres foi o epicentro do desastre?
– Ok, digamos que Tristan esteja com ela – teorizei – como nós
iremos parar lá? Não dá para ir de carro. – Daqui até a Inglaterra existia o
Oceano Atlântico no meio. – Precisaríamos de um barco, ou avião.

– E não tem companhia aérea no mundo dos mortos.

– Na verdade... – Azlam teve uma ideia. – Athos, você foi ao nosso


terraço?

– Desde que cheguei? Não. Não tinha o que fazer lá.

– Se lembra daquele avião que nós tínhamos em 1955? Será que ele
ainda está lá?

Os irmãos se entreolharam, esperançosos.

– Não sei. Esse mundo é estranho. O tempo se entrelaça e se


confunde. Encontrei pertences do século XIX na gaveta, ao lado do meu
iPod.

– Estamos esperando o quê? – me levantei às pressas. – Vamos ver!


Corremos.

No teto do palacete, havia uma área de pouso. No mundo dos vivos,


os primos a usavam para embarque e desembarque de helicóptero. Como
líder, Athos fazia muitas viagens internacionais.

O terraço era imenso. No canto, havia um grande veículo coberto por


uma lona. Os primos retiraram a lona – e lá estava. O avião da década de 50.
– Meu Deus. – Engoli em seco. – Será que é seguro?

– Mais ou menos. – Azlam coçou a nuca.

– Alguém sabe dirigir isso?


– Athos sabe. O avião era dele.

– Bom, faz uns 40 anos que eu não o dirijo... – comentou.


– Athos! – me desesperei.

– Mas eu nunca esqueço uma habilidade!

– Esperem aí – Eros contestou. – Estamos pensando em viajar para a


Inglaterra nesse fóssil?

– Não temos muita opção aqui, cara. – Azlam grunhiu. – O


helicóptero era alugado, o jatinho não está por aqui. Como quer atravessar o
Canal da Mancha? À nado?

– Melhor que voar num esqueleto de dinossauro.


Eu massageei as têmporas.

– Deus nos ajude.

Nos preparamos para a viagem. Tomamos banho e trocamos de roupa.


Graças aos céus, havia água encanada no mundo dos mortos. Vá entender a
lógica desse lugar...
Aqui, os primos não tinham necessidade de sangue. Eu, por outro
lado, fiz uma refeição. Não sabia o que nos esperava.

Horas mais tarde, partimos.

Athos pilotava a antiguidade. Nós fomos nos assentos de trás.


Eros aproveitava para rever seu CD Player dos anos 2000. Encontrou-
o perdido numa gaveta do seu quarto. Azlam folheava jornais antigos,
encontrados no sótão. Mostrou-me fotos dele e de Athos nas colunas sociais,
numa festa em 1940.

Era uma das poucas fotos que tinham. Viver por muitos séculos
demandava certa reserva.

Eu fui tremendo por todo o percurso. Tristan precisava estar lá. Tinha
que estar. Eu precisava vê-lo, tocá-lo, e amá-lo outra vez. Só assim poderia
respirar novamente.

A viagem durou algumas horas. A logística da Europa era diferente


do Brasil. Por ter dimensões muito menores, era como se estivéssemos
viajando de um estado a outro.
Finalmente chegamos. Pousamos no centro de Londres, numa avenida
bem ao lado do Rio Tâmisa.

Desembarcamos. Ao pisar em terra firme, olhei ao redor.

Meu Deus... A Londres dos mortos estava em pedaços. A London


Eye, a famosa roda-gigante, havia caído. Metade de sua estrutura estava
imersa no rio. A Torre do Relógio, em destroços. Todos os prédios em ruínas.
Os que se mantinham de pé, tinham janelas quebradas e portas caídas. Havia
vários carros largados no meio da rua e postes de luz ao chão. Um cenário
pós-terremoto.
O lugar se mostrava dez vezes pior que Roma. O epicentro do
terremoto.

O pior do ataque aconteceu aqui. Isso porque a Morte morava em


Londres, no Palácio de Buckingham. Ou, pelo menos, na versão do Palácio
do mundo dos mortos.

Andamos até o Palácio. Ficava à algumas quadras.


Athos criou uma teoria. Pensava que, se Tristan não acordou em
Roma, só poderia estar junto à Morte. Ele era um líder muito cobiçado. O rei
da única espécie sobrevivente devia estar num lugar de honra.

Drácula argumentou: “Onde vocês deixariam um prisioneiro


precioso?”
Nossa resposta foi unânime. “Bem debaixo dos nossos olhos.”

Então, apostávamos que Tristan poderia ter acordado no Palácio de


Buckingham, a moradia oficial da Morte. Assim ela poderia vigiá-lo de perto.
Paramos na porta do Palácio.

Estava em pedaços. Parecia uma versão macabra do Palácio de


Buckingham do mundo dos vivos. Paredes escuras, janelas quebradas e teias
de aranha. Os portões estavam enferrujados. Atrás das grades, havia um pátio
frontal repleto de destroços de estátuas e fontes.

Ficamos bem à frente do portão principal. Athos tentou abri-lo, mas


obviamente estava trancado.
Nos entreolhamos, tensos.

– E agora? – perguntei. – Como faremos para entrar?

Athos observava o Palácio com a testa franzida.


– Não sei. Vou pensar em alguma coisa.

– Não podemos fazer barulho. A Morte pode estar aí dentro.

– Quem sabe consigamos entrar pelos fundos? – Azlam sugeriu,


sempre estratégico. – Deve haver passagens de funcionários e saídas de
emergência.
De repente, ouvimos uma voz advinda de trás.

– Estão procurando alguma coisa?

Levamos um susto. Viramo-nos, na defensiva.


Havia um senhor de idade parado há alguns metros. Barba grisalha,
roupas de jardineiro, vassoura e pá nas mãos. Ficamos tensos.
– Quem é você? – Azlam se prostrou à nossa frente, protetor.

O homem ergueu uma sobrancelha.

– Eu sou o sr. Field, é óbvio. E quem são vocês?

– Hã – Eros improvisou. – Somos visitantes de outra cidade. Estamos


fazendo... Turismo.

Todos olhamos para ele, querendo estrangulá-lo. Turismo?! Porra,


Eros.

Ele deu de ombros. “O quê?”

– Ah, sim! – Sr. Field colocou a vassoura no chão e se apoiou em seu


cabo casualmente. – Estrangeiros, não é? Deu para notar pelo sotaque. De
onde são?

Meu Deus. O homem acreditou.


– Somos da Itália. – Athos clareou a garganta. – Desculpe-me pela
indelicadeza, mas... Por que o senhor está aqui? A cidade está vazia. Não
vejo mais ninguém.

– Bom, depois do ataque o mundo dos mortos ficou desolado.


Praticamente desabitado. Eu sou o vigia e, às vezes, o faxineiro – ergueu a
pá. – Trabalho para a Morte. Venho aqui uma vez ou outra para limpar.

Olhamos ao redor, para a cidade em destroços.


– Vai ser difícil. – Eros observou.

– Nem me diga, garoto. Estou nisso há cinco anos.

– Tem alguém lá dentro? – Azlam apontou para o Palácio. – Podemos


entrar para visitar?
Sr. Field se espantou.

– Vocês viajaram até aqui só para visitar o castelo em ruínas?

– Nunca tivemos a chance de fazer turismo no mundo dos vivos. E,


bem, temos a eternidade sobrando.

– Hum... Vampiros, não é?

– Somos.

O homem tremeu e fez uma careta.

– Claro que são. Somente vocês sobreviveram ao ataque. São


praticamente as baratas do mundo dos mortos. Nem um choque de meteoro
poderia destruí-los. – Riu sozinho. Todos o encaramos. Ele notou e parou de
rir. – Desculpem, tem muito tempo que não vejo ninguém. Estou ficando
meio sem filtro. Venham por aqui. – E avançou para nós, sem cerimônia.
Saímos do caminho. Ele tirou uma chave do bolso e simplesmente abriu o
portão principal. – Podem entrar.

– Tem certeza? – Eros se chocou. Simples assim?


– Claro, está vazio. A Morte não está em casa. Ela passa muito pouco
tempo aqui. Vive viajando ao mundo dos vivos para recolher almas. E agora
que o mundo dos mortos está vazio, ela não se interessa em ficar. Seus
brinquedinhos foram embora. Quando vem, mal sai do quarto. Está
deprimida.

Meu Deus. Seus brinquedinhos eram as almas humanas. Bizarro.

– Hã – comecei, sem acreditar. – Então podemos entrar sem


problemas?
– É um castelo abandonado, garota. Vão em frente. Ninguém se
importa.

Ah. Ok, então.

Adentramos no imenso pátio. Sr. Field nos deixou. “Tinha mais o que
fazer”, segundo ele.

Ao dar os primeiros passos para dentro do Palácio, caí na real. Aquele


era um momento crucial. Se Tristan estivesse ali, estaríamos salvos. Mas se
não estivesse...

Deus.
Sr. Field foi bem claro: é um castelo abandonado. Não tem ninguém
aí. Meus olhos ficaram marejados. Não, não vou desistir. Comecei a correr.

“Clara!”, os primos me chamaram lá de trás. Não parei de correr. Se


parasse, choraria.

Eles suspiraram. “Deixem-na”, Azlam cedeu.


Atravessei o pátio e cheguei ao castelo. Abri a imensa porta dupla da
entrada principal. Desembocava num átrio. Peguei a lanterna da mochila e a
liguei. Fui andando pelo Palácio, sem destino, gritando por Tristan.

Lá dentro era muito escuro. Empoeirado e repleto de escombros. À


cada vez que eu gritava por Tristan, chorava mais. Uma voz me dizia: ele não
está aqui.

Ao longe, ouvi os primos adentrarem no castelo. Também chamavam


por Tristan.
Andei por diversos cômodos por mais de uma hora. Me perdi em
vários corredores. Por fim, consegui voltar ao átrio principal. Nele, havia uma
grande escadaria que desembocava para dois lados. Sentei-me ao pé dessa
escadaria, escondi o rosto nas mãos e chorei. A lanterna, caída ao meu lado.

A desesperança me destroçava.

– Ah, meu Deus, Tristan... Onde você está?

Neste mundo não havia correspondências ou telefone. Como eu


encontraria o garoto? Buscando em cada canto do planeta? Poderia levar
anos. E se nossa gasolina acabasse? Quanto tempo eu poderia ficar nesse
mundo morto sem prejudicar a mim ou ao bebê?

Qual era a outra opção? Voltar sem Tristan?


Não, eu não viveria uma vida sem ele. Simplesmente não dava.

Mantive o rosto escondido numa das mãos. Pousei a outra palma


sobre a barriga. Aquela dor não era só minha.

– Ah, meu filho... – conversei com o bebê, a voz embargada.


Lágrimas caindo. – O que vamos fazer? Cadê o seu pai? – cadê o meu amor?
Aconteceu de repente.

Ouvi uma voz advinda de trás e de cima. Profunda, musical e


chocada.

– Clara?
Congelei. Olhei para trás, espantada. Lá estava ele, no topo da
escadaria. Uma mão sobre o corrimão e a expressão mortificada.

Tristan.
– Ah, meu Deus! – me levantei num salto. – Ah, meu Deus! – meu
coração disparou.
Ele apoiou uma mão sobre a nuca, horrorizado.

– Você está morta?!

– O quê?! Não! Estou viva e vim te buscar!


Ele expirou, sem acreditar; olhos presos à minha imagem.

– Estou sonhando? – sussurrou.

Foi então que recomecei a chorar, tomada por emoção.


– Não, meu amor... Eu estou aqui. Vim por você.

Ele piscou, incrédulo.


– Caralho, não é um sonho.

– Não! – eu ri.

Ele começou a descer as escadas correndo.

Eu subi, pulando degraus, ansiosa. Nos encontramos no meio. Joguei-


me em seus braços e ele me abraçou de volta com fúria. Enterrou o rosto em
minha clavícula, emaranhando uma mão na raiz dos meus cabelos. Apertou-
me contra si – como se nunca mais fosse me deixar escapar.

– Você está aqui mesmo. É você. – Ele tentava convencer a si mesmo.


– Sou eu.

– O que você está fazendo aqui, sua louca? É perigoso demais.

Afastei-me para olhar seu rosto. Pousei as mãos sobre suas


bochechas. Ele tinha os olhos úmidos como os meus. Respondi usando uma
frase que ele mesmo havia dito para mim – e que, desde então, ficara cravada
à fogo em meu coração.
– Você não entende? Eu faria insanidades por você.

Ele franziu o cenho, finalmente percebendo.

– Você... Me ama?
Uma lágrima desceu por minha bochecha.

– Há mais anos do que posso contar.

Sua expressão mudou. Primeiro por incredulidade, depois pela mais


refinada alegria. Ele me ergueu do chão e me beijou com fúria. Sua língua
invadiu minha boca, faminta. Beijou-me com paixão por vários minutos, até
ficar saciado de mim.
Por fim, mordeu meu lado inferior e terminou o beijo.

– Você é louca, garota. – Murmurou entredentes. Depois, começou a


beijar todo meu rosto. – Você é insana. – Mais beijos carinhosos. – A mulher
mais louca que já conheci.
– Qualquer coisa por você.

Eu me perdi entre seus beijos. Estar ali, no seu abraço, tomada por seu
carinho... Deus, era o paraíso.

Tristan me colocou no chão. Entrelaçou nossas mãos e beijou meus


dedos.
– Como você fez isso? Como conseguiu chegar até aqui? – ostentava
um sorrisinho incrédulo. Foi uma das poucas vezes em que o vi sorrir.

– É uma história louca. Drácula ajudou. Nos ensinou como entrar e


sair sem sermos vistos. Então entramos por uma passagem secreta e viemos
resgatar vocês dois.

– Nós dois? – se chocou.


– Você e Athos. Sim, ele morreu logo depois de você.

– O quê?

– Mas já está bem! Nós o encontramos e ele está conosco.


– Ah, meu Deus... – passou a mão pelos cabelos. – Você está aqui
mesmo, no maldito mundo dos mortos. Como? Quando e por quê? Não
consigo entender.

– Calma, eu vou te explicar tudo. Vamos nos sentar primeiro. – E o


puxei para baixo.

Nos sentamos nos degraus. Ele passou um braço sob minhas pernas e
me colocou em seu colo.

– O quê...? – fui pega de surpresa.

Ele me abraçou. Prendeu-me entre seus braços, possessivo.

– Não se atreva a ficar longe de mim.

Me aconcheguei.
– Não me atreverei.

– Onde estão os outros?

– Estão aqui, em algum lugar do Palácio. Nos separamos para


procurar por você.
– Deus, que insanidade. Vocês invadiram a casa da própria Morte.
Tem noção do que fizeram?

– Não muita – eu ri, meio descontrolada. – Agimos por puro


desespero. Devemos ir procurá-los?

– Melhor não, só iríamos nos perder. Eles acabarão voltando para cá,
já que é a saída do Palácio. – E me abraçou, escondendo o rosto em meus
cabelos. – Deixe-me ficar sozinho com você só mais um pouco... Eu preciso
disso.
– Eu também preciso. – E acariciei seus cabelos. Ele se moveu sob
minhas mãos; como um animal domado apreciando o carinho.

– Me conte tudo – pediu.

Então, eu contei.
O suicídio de seu assassino; Drácula aparecendo na casa; a morte de
Athos e suas posteriores prisões; a dor que o feto me fez sentir e o plano de
Drácula para trazê-lo de volta. Contei também sobre o bar, o avião e o senhor
Field.

Tirei a dúvida:
– Então você simplesmente acordou aqui quando morreu?

– Exato. Num dos quartos nos andares de cima. Não havia ninguém,
estou sozinho nesse palácio há dias. Foi como a porra de um filme de terror.

– Imagino – tremi, olhando ao redor. Escuro, mórbido e bizarro. – É


aqui que a Morte mora. Mas você já parece saber.
– Sim. Pude deduzir isso depois de alguns dias rodando pelo palácio.
Mas nunca me deparei com ela.

Amém.

– Ela não pode saber que estamos aqui. Drácula foi bem claro.
Precisamos sair sem ser vistos, e o mais rápido possível.
De súbito, a expressão do garoto decaiu. Como se houvesse uma
notícia triste.

Ouvimos vozes se aproximando.

“Onde aquele pirralho está?”, Eros grunhia. “Para completar, a Clara


também sumiu.”
“Nós vamos revirar Londres de cabeça para baixo, mas vamos
encontrar o Tristan.” Azlam emendou.

Athos finalizou: “Faremos o que for preciso. Não saio daqui sem ele.”

Os três entraram no átrio. Congelaram ao ver-nos ali – abraçados no


meio da escada.
Eros foi o primeiro a reagir. Abriu um sorriso e seus olhos se
molharam.

– Puta que pariu! Ela o encontrou!


Correram para nós. Nos levantamos, felizes. Athos enganchou o
irmão um abraço.

– Caralho, cara. Não acredito que te achamos.

Tristan devolveu o abraço com carinho.

– Obrigado, irmão. Obrigado por não desistirem de mim.

Azlam o abraçou. Em seguida, foi Eros.

– Nunca mais morra novamente. Você nos destruiu.


Tristan riu.

– Vou tentar. – Olhou para os irmãos, negando com a cabeça. Mal


podia crer no que via. – Não acredito que vocês voltaram por mim.

Athos franziu o cenho.


– Não importa o que aconteça entre nós, somos uma família. Você foi
enganado por Drácula esse tempo todo.

Eros bufou.

– Além do mais... Qual é? Sabemos que você também nos amou.


– Eu amei. – Tristan admitiu pela primeira vez. – E quando chegou a
hora de revelar a traição... – fechou os olhos, sentindo dor e culpa. – Aquilo
me matou por dentro.

Azlam pousou uma mão sobre o ombro do irmão.

– Claro que matou. Foram cem anos vivendo juntos. Um século


compartilhando dores e alegrias, todo maldito dia. Nem o mais gelado dos
corações conseguiria sair ileso.

– Olhe para nós – Eros bufou. – Somos apaixonantes para cacete.


Rimos. Athos contou:

– Além do mais, em última instância, você nos salvou. Ficamos


sabendo do plano original. Sienna contou que a ideia era ir nos envenenando
ano a ano, até nos deixar bem fracos. Depois do golpe de Estado, os soldados
de Drácula nos matariam. Mas você não permitiu.

– Claro que não permiti. Eles queriam que eu herdasse o trono como
único membro sobrevivente da família. Mas fiz com que encontrassem uma
alternativa. Traí-los era uma coisa, matá-los era outra. Eu deixaria a culpa me
consumir pelo resto da vida, mas não os machucaria. Sabia que me odiariam
para sempre... Mas, pelo menos, estariam vivos.
Perguntei de repente, honestamente curiosa.

– Você se arrepende?

O garoto me olhou com pesar.

– Não sei, Clara. Tudo o que sinto é uma tristeza confusa. Drácula
não é quem eu pensava que fosse. Manipulou a mim e a minha mãe, e eu
cresci numa mentira. Achei que, quando ele acordasse, me amaria e seria um
pai para mim. Mas estava somente me usando... – negou com a cabeça,
desviando o rosto, magoado. – Ainda estou digerindo essa mentira. Tentando
descobrir quem eu sou de verdade. Não um soldado, não um filho, não um
espião. Estou... Perdido.

Athos colocou as mãos nos bolsos, sério.

– Se precisa ser alguma coisa, seja nosso irmão.


– Drácula não é a minha família. A minha família estava aqui este
tempo todo, e eu não percebi. Morrer me fez cair na real. Eu não quero este
Trono estúpido, não quero este poder. Sem vocês, eles não significam nada.
Por causa deste plano eu perdi tudo. Meus irmãos, minha casa, minha
mulher... – e olhou para mim, arrependido.

Eros desviou os olhos, emocionado.


– Todo mundo comente erros, cara.

– Nunca quis mandar na espécie, sempre tomaram as decisões por


mim. Só segui as ordens. A verdade é que Athos é muito mais preparado que
eu. Essa posição é dele. Não quero o Trono, só quero a minha família de
volta. Vocês, meus irmãos... – e olhou para mim. – E a mulher que eu amo.

Athos sorriu carinhoso.


– Eu sabia que você voltaria para nós, meu irmão.

Arqueou uma sobrancelha.

– Sabem, morrer me fez rever minhas prioridades. Poder não importa.


A família importa.

Eros limpou uma lágrima, embaraçado. Era o mais engraçado, mas


também o mais emocional.

– Ok, chega desta merda sentimental. Agora que estamos resolvidos,


vamos sair daqui. Antes que a Morte apareça.

– Vocês têm certeza sobre isso? – Athos inquiriu. – Afinal, o Tristan e


eu morremos. Passar pelo túnel para o mundo dos vivos é fácil. Permanecer
lá em cima é que será o problema. Mortos não podem sair andando pela
terra...
– Conseguirão. – Azlam assegurou. – Não percebeu? Somos
aberrações. Já estamos mortos. Nos enviam para cá porque não sabem o que
fazer conosco. Para onde os mortos vão depois que morrem? Ninguém sabe.

Tristan fez uma careta.


– Isso nunca teve lógica para mim.

– Para nenhum de nós, meu irmão. Mas temos que escapar daqui o
mais rápido possível. Não sabemos como o corpo da Clara está reagindo à
esta atmosfera.

Tristan me olhou, preocupado.


– Você e o bebê estão bem?

– Estamos. – Garanti. – Não me sinto mal por enquanto.

Tristan arqueou uma sobrancelha.


– Ótimo. Porque, na verdade, tem um problema que não contei a
vocês.

– Como assim “problema”?!

– É mais fácil mostrar que falar. – E foi andando até a porta de saída.

Quando ia atravessar o batente, aconteceu. Tristan estagnou – como


se houvesse colidido contra uma parede invisível. Simplesmente não
conseguia sair do castelo.

– Ah, meu Deus – Eros entendeu. – Não me diga que você não
consegue sair desta porcaria de Palácio assombrado.

Ele nos olhou.


– Exatamente. Já tentei várias vezes, por várias portas. Algum feitiço
está me prendendo aqui dentro.

– Ah, que maravilha. – Eros se sentou nos degraus da escada, rindo


em desespero. – Vamos simplesmente nos sentar aqui e esperar a Morte
chegar.
– Agora estamos mortos. – Azlam engoliu em seco.

Eu me descontrolei.

– A Morte pode chegar a qualquer momento!

– Parem! – Athos vociferou. – Sem pânico! Vamos encontrar uma


saída. – Massageou as têmporas. – Arrume um lugar para conversarmos,
Tristan. Não podemos elaborar uma estratégia sentados aqui, nos escombros.

– Venham comigo. – Tristan nos guiou aos andares de cima.

O segundo andar estava bem mais habitável. O próprio Tristan limpou


e acendeu candelabros. Retirou escombros e vidros quebrados das janelas.
Afinal, considerou que ficaria ali por um bom tempo.
Nos levou a uma sala de reuniões. Colocamos um castiçal aceso ao
centro da mesa e nos sentamos. Tristan trouxe um copo de água com açúcar
para me acalmar.

Ele se sentou à cabeceira da mesa. Juntou as mãos e começou.

– Ok, há dias eu venho pensando numa possibilidade. Assim que


descobri que não conseguia sair do Palácio, comecei a procurar uma solução.
Primeiro, precisava descobrir o que me mantinha aqui dentro.
– Um feitiço, é óbvio. – Azlam asseverou.

– Concordo. Lógica humana não explicaria minha prisão.

– Lógica não explicaria a existência deste mundo – acrescentei.


– Isso mesmo. Estamos lidando com coisas sobrenaturais, então só
existe uma maneira de escapar. Vamos procurar uma solução sobrenatural. Se
a feitiçaria me mantém aqui, a feitiçaria também pode me libertar. Vamos
procurar uma feiticeira e resolver o problema.

Eros questionou.
– Ok, mas como vamos achar uma feiticeira no mundo dos mortos?

– Também fiz o mesmo questionamento. Então, comecei a pesquisar.


Revirei este castelo ao avesso e encontrei uma sala de arquivos. Parece uma
ala particular da Morte, onde ela guarda todas as informações secretas.

– E estava destrancada?
– Sim, não existia ninguém aqui para bisbilhotar. – Deu de ombros. –
E daí se eu descobrir seus segredos? Eu não poderia sair e contar a ninguém.
Sinceramente, acho que a Morte planejar me manter prisioneiro aqui para
sempre.

– Por que você acha isso? – inquiri.

Suspirou.

– Tenho razões para pensar. Venham comigo.

Primeiro, Tristan nos levou à um quarto. Escuro e imenso, medieval e


elegante. O único quarto que não estava coberto por teias de aranha.

– Este não é o quarto da Morte, é?


– Tenho quase certeza de que é. – Ele me respondeu. Foi até uma
pintura num tripé, coberta por um lençol. Retirou o lençol.

Ao ver a pintura, nós arregalamos os olhos.

– Quem é ele? – me choquei.


A pintura retratava um garoto. Tinha cerca de vinte anos e porte
atlético. Bronzeado, cabelos e olhos negros. Absolutamente lindo.

– Pela minha pesquisa, este é Maddox Tudor, um general que


comandava o mundo dos mortos antes do ataque. Braço direito da Morte. Ela
guarda uma pintura dele no próprio quarto... É evidente que estava obcecada
por ele.
– Tristan... – engoli em seco. – Esse cara é...

– Idêntico a mim? Eu sei. – E olhou para a pintura, fazendo uma


careta. – Somos ridiculamente parecidos. Bizarro.

Os traços da fisionomia não eram iguais. Mas havia pontos em


comum entre os dois. O tom de pele; os cabelos negros e bagunçados; o fogo
e o perigo no olhar... Eram os mesmos.
Athos especulou:

– Então, você acha que a Morte o trouxe para cá por causa do tal
Maddox? Para que você possa substitui-lo?

– Isso mesmo. Ele era humano, e deve ter escapado deste mundo no
ataque. Agora, ela precisa de alguém para assumir o lugar dele. Por isso me
prendeu aqui. Ela provavelmente estava obcecada pelo tal general, e eu...
Bem, me tornei um substituto conveniente.
Depois, Tristan nos levou a outro lugar. Uma espécie de porão.

– Esta é a sala de arquivos da Morte. – Tristan apresentou. Um local


imenso, repleto de escrivaninhas organizadas em ordem alfabética.

Tristan contou que revirou aqueles arquivos do avesso. Tentou


encontrar alguma informação útil sobre a estrutura do mundo dos mortos.
– E eis o que eu estava procurando... – foi até o setor da letra “K.”
Puxou uma gaveta e retirou de lá uma pasta. Na ficha, estava escrito em letras
cursivas: Katerina Ionesku. – O arquivo da bruxa mais poderosa que já pisou
neste mundo.

– Espera aí... – Athos se estarreceu. – Katerina? A bruxa que lançou a


maldição do vampirismo sobre Drácula?!
– Ela mesma. A antepassada das mulheres Ionesku. As governantas
de Drácula.

Azlam havia me contado tudo sobre ela. Katerina era uma mulher
celta que viveu mil anos atrás. Na época, Drácula e Katerina ficaram noivos.
Drácula a enganou. Tiveram relações íntimas antes do casamento – e, ao
conseguir o que queria, o Conde a abandonou. Alegou saber por terceiros que
ela não era mais virgem, e simplesmente cancelou o casamento.

Katerina tentou contar a verdade, mas a família não acreditou. A


garota ficou “desonrada.” A lógica patriarcalista da época a esmagou. Ela foi
expulsa de casa e jogada na rua pela família. Como um pedaço de lixo.
Katerina, então, se juntou a uma comunidade de mulheres que vivia
no meio da floresta. Acontece que essas mulheres eram bruxas celtas, que a
acolheram como uma irmã. Ensinaram-na sobre o poder feminino, deusas
sagradas e bruxaria. Paradigmas que a jovem nunca ouvira antes.

Tal comunidade de mulheres se autodenominava “Feiticeiras”.


Amantes da Terra e da natureza.

Katerina aprendeu tudo com elas. Anos depois, se tornou uma bruxa
formada e procurou por Drácula. Era hora de se vingar.
Lançou uma maldição sobre o Conde. Ele nunca mais poderia andar
sob a luz do sol ou amar qualquer mulher. Teria que beber sangue humano
para viver. Se transformaria, por fora, no monstro que já era por dentro.

Katerina queria retirar a luz e o amor da vida de Vlad – assim como


ele fez com ela. Assim, o Conde Vlad se transformou na abominação que era:
o primeiro vampiro da história. Condenado à uma eternidade escura e
solitária.
Após transformar-se num monstro, Drácula se vingou. Procurou a
aldeia de mulheres e matou todas elas. Deixou Katerina por último – para que
ela presenciasse a morte das irmãs.

O massacre aconteceu numa floresta, nos arredores da Romênia. Um


lugar lendariamente amaldiçoado. Segundo as lendas, as bruxas celtas mortas
ainda assombravam o lugar. Até hoje histórias do folclore local considerava o
bosque amaldiçoado. Teóricos do sobrenatural elaboravam teorias da
conspiração, espalhando boatos por toda a internet.

De fato, algumas coisas estranhas aconteceram naquela floresta. Era


conhecida por conter um índice altíssimo de suicídios. Não havia construções
ou turismo na floresta. Só atraía alguns arqueólogos ou curiosos por histórias
de terror.

Tristan teorizava:

– Mil anos atrás, Drácula matou uma vila inteira de bruxas naquele
local. Existem vários boatos e lendas. Centenas de turistas afirmam ter
sentido presenças sobrenaturais no local. Alguns, ainda garantem ter ouvido
vozes e risos de mulheres na floresta vazia. Claro que nunca passou de
especulação. Histórias baratas de terror. Mas, bem, nós estamos no mundo
dos mortos agora. Sabemos que o mundo sobrenatural não é tão ilusório
quanto pensam.
– Espera aí, cara – Eros interrompeu – o que você está querendo
dizer? Acha que as bruxas ainda estão lá, na floresta?

– Exatamente! E se elas ainda estiverem morando naquela floresta, no


mesmo lugar? Só que em uma realidade diferente? No mundo dos mortos?
– Acho improvável. – Athos discordou. – Por que estariam aqui? São
humanas. Com dons especiais, é claro, mas ainda humanas.

– Pensem comigo. Estamos num mundo paralelo, e esse mundo pode


deixar rastros de evidências do lado de lá. Vozes e presenças que os
sensitivos detectam na floresta. Por que ocorrem tantos suicídios naquele
lugar? Por que tantas pessoas diferentes alegam ouvir e sentir sensações
estranhas naquele bosque? Simples. Porque ele é de fato assombrado! As
bruxas mortas não foram embora! Estão lá, mas em outra realidade! Nesta
realidade.

Eros estalou a língua.


– É loucura.

– Então por que a Morte teria o arquivo da Katerina? – Tristan ergueu


a pasta em sua mão. – Ela só tem arquivos de pessoas de seu interesse.
Potenciais itens para sua coleção pessoal.

Athos desviou os olhos, raciocinando.


– Pessoas com... Atributos especiais.

– Vocês não entendem?! Liguem os pontos! Este mundo dos mortos


não existe apenas por um capricho da Morte! Não é feito exclusivamente para
guardar seus brinquedinhos. Os humanos foram embora e, adivinhem? O
mundo dos mortos ainda está aqui.

– O que quer dizer? – tentei acompanhar o raciocínio.


– Que, originalmente, esse lugar tinha outro propósito. Foi criado para
abrigar as almas dos não-humanos! Criaturas sobrenaturais que, quando
morrem, não tem para onde ir. Não podem ir para a pós vida humana. Então,
o que fazem conosco? Nos jogam aqui, nesse universo alternativo esquecido.
O mundo dos mortos não abriga apenas os vampiros, mas também toda a
sorte de criaturas sobrenaturais!

Athos começou a andar de um lado a outro.

– Querem saber? Faz sentido. Após o atentado, todos os humanos


daqui escaparam ou foram dizimados. Mas os vampiros sobreviveram.

– É como se o mundo dos mortos... – Azlam franziu o cenho. – Não


fosse feito para humanos.

– E sim para outro tipo de criaturas! – Eros acrescentou. – Criaturas


sobrenaturais como nós!
– Exato! – Tristan confirmou. – Por isso apenas os vampiros
sobreviveram. Porque este mundo foi criado para abrigar nossas almas após a
morte. Os humanos eram meros convidados aqui. E se outras criaturas
sobrenaturais também estiverem nesse lugar?

– Então também sobreviveram ao ataque!

– Isso. Este mundo é enorme e a população sobrenatural, pequena.


Devemos estar espalhados pelos cantos mais inóspitos do planeta. Só não nos
encontramos ainda.
Interrompi.

– Ok, supondo que as bruxas estejam no mundo dos mortos. Como


faremos para convencê-las a nos ajudar?

– Eu não posso sair do Palácio, mas vocês podem. Vão até elas e
peçam o favor em meu nome. Peça para quebrarem o feitiço que me mantém
preso. Encontrem Katerina, e diga que sou filho do Drácula. Basta contarem a
verdade. Drácula também me traiu, e quero voltar ao mundo dos vivos para
me vingar. Quando ouvir isso, Katerina irá me apoiar. Temos um inimigo em
comum.

Os primos debateram até chegar a um acordo. Por fim, tomaram uma


decisão.

Nós viajaríamos até a Romênia à procura das bruxas. A floresta era


imensa, e sabe-se lá quando as encontraríamos. Poderia levar semanas.

Paramos no átrio para nos despedir.

– Hã, tenho um anuncio a fazer. – Comecei. – Eu não quero ir.


– O quê?! – Tristan se surpreendeu.

Fui até ele e entrelacei nossas mãos.

– Pensei sobre isso, e decidi ficar aqui com o Tristan. Eu não serei de
grande ajuda na busca. Na verdade, posso até atrasá-los. Posso esperar por
vocês aqui?

Athos não se importou:

– Claro, se é o que você quer.

Levei os primos até o avião. Por sorte, ainda havia muita gasolina
sobrando. Eles decolaram e voltei para o Palácio. Tristan me esperava na
porta principal. Recostava-se no batente, braços cruzados e expressão
assassina. Estava furioso por ficar preso ali.
Ao ver-me chegando, sua expressão mudou. Os olhos reluziram e a
carranca se foi. Como se estivesse vendo seu paraíso particular.
Eu sorri e corri até ele. Assim que pisei no átrio, ele me capturou num
abraço intenso. Sussurrou contra meu cabelo:

– Por que você ficou?


Fui brutalmente sincera.

– Aonde mais eu iria? Meu lugar no mundo é onde você está. E se


você estiver preso aqui, passaremos por isso juntos.

Ele se afastou. Fitou-me, sem acreditar.

– Eu não entendo... O que mudou?

Peguei uma de suas mãos e levei aos lábios. Beijei-a com carinho.

– Tudo mudou. Eu não sou mais a mesma.


Franziu o cenho.

– Como assim? Eu fiz de tudo para te reconquistar. Lutei, sangrei e


sofri. Mas, no fim você deixou bem claro que não era capaz de me perdoar. O
que mudou? Eu preciso saber.

Eu me afastei alguns passos. Virei-me de costas, correndo a mão


pelos cabelos.

– Eu passei pelo inferno, Tristan. Isso me mudou.

– Como?

Suspirei. Era hora de confessar algumas verdades.


– Nos últimos dias, eu provei na pele o que era uma vida sem você.
Quando eu te vi ali, caído, morto aos meus pés... – fechei os olhos, sentindo o
golpe de dor. – Experimentei o inferno. Nunca mais quero passar por isso
novamente. Sua morte abriu os meus olhos. Não importa o que você tenha
feito, não existe saída para mim. Eu simplesmente não posso viver sem você.

Senti que ele se aproximava. Parou bem atrás de mim.

– Então você... Me perdoou?

Virei-me para ele, olhos umedecidos.

– Sim. Olhe para mim, olhe onde estou por você. Vim parar no
mundo dos mortos sem pensar duas vezes. Percebi que preferia morrer te
procurando, a passar uma vida inteira em sua ausência. Se isso não é amor, o
que mais pode ser? Então, caí na real. Foda-se o passado. Ele não importa
mais. Só o nosso amor importa. Desculpe-me por ter demorado tanto tempo
para enxergar.
Ele retorceu os lábios, tentando segurar o sorriso. Os olhos se
umedeceram; lágrimas que segurava ferozmente.

– Não acredito que estou ouvindo isso de você.

Neguei com a cabeça, olhos molhados.


– Não posso mais ignorar tudo o que você fez por mim. Sua luta, seu
amor leal de tantos anos... Não posso mais fugir do sentimento. Larguei tudo
e vim até o mundo dos mortos só pela chance minúscula de te ver outra vez.
E eu viria mais mil vezes. Quem estou tentando enganar? – ergui as palmas,
exasperada. – Chega destas mentiras! Você é a minha vida. Nada faz sentido
sem você.

Ele andou até mim. Face maliciosa, olhos reluzindo em mistério.

– Deixe-me ver se entendi... – Colocou uma mecha do meu cabelo


atrás da orelha. – Você está me pedindo em namoro, Clara Mourão?
Franzi o cenho.
– Não é um pedido, é uma intimação. Você é meu. Matarei qualquer
outra mulher que ousar se aproximar de você. – Desviei os olhos,
percebendo: – Ah, merda. Existe uma grande chance de eu terminar minha
vida na cadeia. Por que você tem que ser tão lindo? Isso é ridículo e
desnecessário.

Ele jogou a cabeça para trás e gargalhou de verdade.


– Adoro quando você viaja nas suas próprias paranoias.

– Ei, elas fazem sentido. – Para mim.

– Tranquilo. – Ele me abraçou, retirando-me do chão. – Eu te aceito


do jeito que você é, linda.
– Bom mesmo. Pois eu te perseguiria pelo mundo inteiro. –
Aproveitei o momento e entrelacei as pernas em sua cintura. Emaranhei os
dedos nos seus cabelos, sentindo a maciez. Cheirei sua pele, gravando aquele
aroma na minha memória e coração.

Deus... Aquele cheiro destruiria mundos e começaria guerras.

– Caramba... – me aconcheguei em seu abraço. – Que falta eu senti


disso.

Ele me abraçava com ferocidade.

– Eu sei que estamos em uma situação de merda, e presos no mundo


dos mortos. Mas, que se foda. Hoje é o melhor dia da minha vida.

Eu fazia carinho em seus cabelos, beijando seu pescoço e rosto.


Confessava entre os beijos:
– Eu te amei por tantos anos, sabia?

Ele esfregou o rosto em minha clavícula, pedindo carinho.


– Eu te amei mais.

– Nunca te esqueci. Nunca me entreguei de verdade a nenhum


relacionamento.
– Claro que não. Você sempre foi minha.

– Tem razão – ri. – No fundo do meu coração, eu sabia que pertencia


a outra pessoa. Só precisava te reencontrar.

O coração sabe a quem pertence. Podemos encontrar dezenas de


pessoas erradas na vida – mas a inteligência do coração sabe mais. Aquele
primeiro encontro com o garoto, anos atrás, causou reações químicas tão
fortes dentro de mim, que nunca mais foi esquecido.
Uns chamam isso de amor à primeira vista. Outros, de destino.

Tristan me colocou no chão. Pousou as duas mãos em meu rosto.


Fitava-me com ferocidade, bebendo da minha imagem.

– Você foi a minha ruína, garotinha. Desde que eu te vi ali, de pé


naquela cozinha, alguma coisa mudou em mim. Eu me lembro de cada
detalhe. Das curvas do seu corpo, do seu cabelo molhado, de cada gota de
água que descia por sua pele... A imagem ficou cravada na minha mente, e eu
nunca consegui esquecer. Como uma garota tão pequena pôde causar um
incêndio tão grande no meu coração?
– Eu também nunca esqueci. – Confessei. Ainda guardava sua pintura
no meu quarto.

– Quando eu te vi, soube que havia encontrado o que procurava há


muitas décadas. Você roubou o meu coração bem ali, naquele momento. Mas
as circunstâncias não permitiam que eu me aproximasse. Então, eu soube que
não havia saída para mim. Só me restava esperar. Aguardar você crescer e
estar pronta para mim.

– Isso é uma loucura. Quais as chances? Tínhamos tudo contra nós.


Mesmo assim, nos encontramos.
A diferença de idade, os conflitos internos... Não éramos do mesmo
país e nem da mesma espécie.

Ele riu, me olhando com fascinação. Beijou uma das minhas mãos
com carinho.

– O coração é inteligente, linda. Ele dá um jeito de encontrar o


caminho para onde quer voltar.
Pousei uma mão em seu rosto. Falei em português:

– Estou com tanta saudade de você.

– Saudade. Essa é uma linda palavra do seu idioma. Quando cheguei


ao Brasil, não a entendi muito bem. Não é uma palavra que existe em todas as
línguas. Mas, então, tive que voltar à Itália e deixar você para trás. Foi aí que
compreendi seu significado. Enquanto você crescia, não houve nenhum dia
em que não pensei em você, em que não senti a sua falta. Sua ausência deu
sentido à palavra para mim. Você foi a minha maior saudade.

Puxei-o pelas mãos. Sentamo-nos nos degraus da escada. Questionei:

– Já que estamos sendo francos – finalmente – posso fazer uma


pergunta?

– O que quiser, amore mio.


– Naquela época, por que você se aproximou do meu irmão? Vocês
estudavam juntos há muito tempo, e nunca foram amigos. Por que tão de
repente?
Ele estreitou os olhos.

– Você sabe por quê.

Sabia. Mas queria ouvir da boca dele.

– Foi por causa de mim?

– Claro que foi. Desde que eu te vi, você me marcou. Eu precisava


encontrar uma forma de vê-la outra vez sem parecer um perseguidor maluco.
Não podia te abordar diretamente por causa da sua idade. Só queria te
observar de longe. Estar por perto para presenciar seu crescimento. Ver suas
conquistas, saber se estava bem e saudável. Queria garantir que você
crescesse feliz.
– Espera. – Fiz uma careta. – Você viu os meus namoradinhos de
adolescência?

Ele grunhiu.

– Todos os malditos pirralhos.


– E não ficou com ciúmes?

– Não. Eles eram apenas crianças. Eu sabia que, quando você se


tornasse uma mulher, seria minha.

– Como tinha a certeza?


– Não tinha, o êxito era incerto. Só sabia que faria de tudo para te
conquistar. O que se passava no seu coração sempre foi um mistério para
mim. Mas eu nunca desisti. No fundo, meu coração entendia a verdade. Ou
seria você, ou não seria mais ninguém.

– Nós ficamos oito anos sem nos ver. Você namorou alguém?

– Nada sério. Eu não tinha tempo, nem interesse para uma relação
com outra mulher. Estava esperando por alguém. – E piscou.

Aproveitei o momento de honestidade para despejar todas as minhas


curiosidades.
– Por que você não voltou ao Brasil quando eu fiz 18 anos?

– Eu voltei. Mas você estava namorando um garoto do pré-vestibular.

– Ah, é verdade. – Henrique foi meu namorado antes do Marcos, e


durou apenas um ano. Um namorico estúpido da adolescência. Eu não tinha a
menor ideia do que estava fazendo.
– Quando você terminou com ele, eu estava no exército. Ao terminar
o serviço militar, voltei ao Brasil. Então você já tinha engatado um namoro
com outro. O odioso Marcos.

– Pois é – dei de ombros. – Sempre odiei ser solteira. Gostava da


estabilidade dos relacionamentos. Sabe, meu padrasto Matias foi um trauma
muito grande na minha adolescência. A insegurança e o medo constantes... O
meu pai ausente... Tudo isso sedimentou uma grande vulnerabilidade dentro
de mim. Nunca fui capaz de ser independente. Namorados eram meu
mecanismo de defesa. Procurava nesses homens a segurança que eu não tive
em casa.

– Você os amou?
– Não. Eu amei a segurança e estabilidade que eles me davam. Amor
de verdade? Paixão? Só com você.

– Você não precisa mais buscar apoio em ninguém, minha ragazza.


Nunca mais precisará se sentir vulnerável. Eu serei a sua rocha e seu escudo.
Vou lhe dar tudo o que precisa. Serei sua defesa e o seu chão. Vou amá-la até
extinguir todos os seus medos. Comigo, você sempre estará segura.
Eu me aproximei; me aconcheguei em seu corpo, pousando a cabeça
em seu ombro. Ele transpassou o braço ao meu redor, protetor. Enrolava um
dedo numa mecha do meu cabelo.

– É bom saber disso. – Murmurei.


Tristan era um paradoxo. Um vampiro perigoso e sanguinário, o
monstro dos meus pesadelos de infância. Mesmo assim, dentro do seu abraço,
eu me sentia tão à salvo.

Ele segurou o meu queixo, fazendo-me olhar em seus olhos.

– Mas eu não quero viver por você, linda. Quero te ajudar a ser
independente, reconstruir sua autoestima e autoconfiança. Não quero ser o
homem que você precisa, mas sim o homem que você escolhe. Sabe, para
vivermos um amor saudável, primeiro precisamos ser felizes sozinhos.
– Eu sei. Só ainda não descobri como fazer isso.

– Eu vou ajudar. Na adolescência, você viveu o que nenhuma garota


devia viver. Vamos trabalhar nesse trauma juntos e refazer cada pedacinho
seu que o Matias estragou.

Suspirei.

– Aquele maldito me deve anos de terapia.

Tristan desviou os olhos, perdido em pensamentos.

– Isso se eu não o matar antes.


– Tristan!

– O quê? Posso fazer parecer acidental. Do jeito que ele é estúpido,


qualquer um iria acreditar.

Revirei os olhos.
– Vamos apenas esquecer aquele bastardo. A vida dele já é
deprimente o suficiente. – O destino se encarregou do castigo.

Eu pretendia me vingar de Matias sendo feliz. Chocantemente feliz.


Sendo amada por Tristan, com um diploma nas mãos e vendo meu filho
crescer.
O tempo passou. Nós dois conversamos por horas.

Pedi para que Tristan me contasse sobre Camille – e ele foi totalmente
sincero. Disse que, depois de mim, seu coração ficou em pedaços. Ele
precisava de um curativo para aquela dor, e se jogou no primeiro amor com o
qual se deparou.

– Por que não deu certo?


Ele confessou:

– Camille era linda, mas não era você. Era perfeita e doce, mas não
tinha o seu cheiro. Toda vez que eu dormia em sua cama, fechava os olhos e
fingia estar com você. É horrível de admitir, eu sei. Mas é a verdade. Toda
vez que eu a abraçava e a tocava, parecia tão... Errado. Mas eu persisti. Achei
que um amor poderia curar o outro.

– Isso nunca dá certo.


– Pois é. Aprendi da pior forma. Não adianta colocar um simples
curativo numa ferida que ainda está aberta e sangrando. Você deixou um
buraco no meu coração que nenhuma outra mulher poderia curar. Aquela
relação foi um erro colossal. Eu não queria magoá-la. Mas estava ferido
demais para pensar nas consequências...

– E o que te fez cair na real?

– Um choque de realidade. Quando você foi embora da Itália, eu


enlouqueci. Camille me contou a notícia no meio de um restaurante. Nem
consegui fingir indiferença. Simplesmente me levantei e fui embora. Dirigi
como um louco para a casa e comprei uma passagem para o Brasil. Ela veio
atrás de mim, é claro. Entrou no Palazzo cuspindo fogo e me deu um
ultimato. Foi aí que eu percebi a verdade. Não poderia sustentar aquela farsa
nem por mais um minuto. Eu ainda amava você e estava cansado de fingir o
contrário. Precisava ir atrás de você ou então... Morreria. – Franziu o cenho. –
Foi tudo muito intenso.

Nos entreolhamos. Estalei a língua.


– O amor é tão dramático.

– Não é? – soltou um sorrisinho. – Estamos sempre por um fio.

Virei-me para ele, falando sério.


– Sabe, acabei de perceber uma coisa. Nós dois sofremos para caralho
e só vivemos a parte triste desse amor. Vamos viver a parte boa, que tal? Nós
merecemos isso.

– O que você propõe?

Dei de ombros.

– Não sei. Diversão, sexo, beijos, alegria... Vamos experienciar o que


nós nunca tivemos juntos. Um jantar romântico e um dia inteiro na cama,
jogando conversa fora. Cozinhar, ver filmes, brincar... Coisas de um casal
normal. Até agora, só passamos por situações insanas e sofridas. Nosso amor
ficou na espera. Vamos mudar isso e viver o que nunca vivemos. O que me
diz?

Ele ergueu uma sobrancelha.

– Divertir-nos aqui, no mundo dos mortos?


– Por que não? – me levantei, subitamente animada. – Não sabemos
quando Athos e os outros voltarão. Pode levar semanas. Estamos presos aqui
dentro, e este castelo é enorme. Vamos explorar e nos divertir.

Ele se levantou. Entrelaçou os braços na minha cintura.


– Quer saber? Essa é uma ideia insana e maravilhosa. Eu topo. Uma
lua de mel no mundo dos mortos.

Abri um sorriso.

– Exatamente.

Nós fizemos de tudo.

Primeiro, Tristan me levou até a cozinha e preparou uma refeição.


Comemos juntos, rindo e conversando. Ele pousou uma mão sobre minha
barriga carinhosamente e brincou: “Tenho duas bocas para alimentar agora.”
Depois, fomos explorar o Palácio. Ele me levou até o jardim dos
fundos, onde havia um imenso lago. O clima no mundo dos mortos era
sempre quente e agradável. Nos sentamos à beira do lago, apreciando a brisa
da noite.

Num determinado momento, perguntei:


– Ei, quer fazer uma loucura?

Ele arqueou uma sobrancelha e olhou para o lago.

– Está pensando no que eu estou pensando?

Dei de ombros.

– Tomar uma decisão estúpida e nadar pelados? É claro. Não tem


polícia aqui para nos prender mesmo.

– Só se for agora.
Como adolescentes, tiramos as roupas e entramos no lago. Nadamos
pelados por quase uma hora – rindo e jogando água um no outro.

É claro que, ao final, Tristan me levou para a beira do lago e fez


comigo outros tipos de brincadeiras. Brincadeiras que envolviam língua, suor
e muitas estocadas intensas.

Depois de gozarmos várias vezes, colocamos as roupas. Ele me levou


até a quadra de tênis do lugar. Insistiu em me ensinar a jogar – e foi um
completo desastre. Eu era péssima, e aquilo só o divertia mais. Tive que
aguentar piadinhas sobre meus dois pés esquerdos pelo resto do dia.
De noite, fizemos um piquenique no jardim. Tristan cozinhou tudo.
Levamos uma toalha para o gramado e fizemos um piquenique à luz de velas.
Foi malditamente romântico.

Evidentemente, terminamos o piquenique completamente nus.


Transando loucamente por cima da toalha.

Éramos literalmente as únicas pessoas em toda a cidade. Não vou


mentir... Havia alguns benefícios.
Finalmente ficamos com sono. Como o tempo não passava e não
havia sol, tentávamos estimar as horas. Criamos nossa própria rotina.

Tristan mostrou o quarto onde estava dormindo. Um cômodo imenso


e super masculino, com ares medievais. Tristan acreditava ser o antigo quarto
do General do castelo.

Antes de dormir, passamos grande parte do tempo discutindo sobre o


nome do bebê. Discordamos em todos. No final das contas, eu fiquei furiosa,
peguei o travesseiro e saí do quarto. Ele foi atrás de mim. Colocou-me sobre
os ombros e me carregou de volta à cama.
– Tudo bem – cedeu. – Podemos ficar com Matteo.

Estreitei os olhos, sorrisinho sacana. Sabia que iria ganhar aquela


discussão.

Dormimos abraçados a noite inteira. Foi íntimo e delicioso.

Quinze dias se passaram assim: cheios de amor, sexo e felicidade.


Passamos noites e noites abraçados, tomamos banhos juntos e
compartilhamos refeições. Também, tivemos aquelas conversas que nunca
pareciam ter fim – fazendo confissões e contando histórias sobre o passado.

Naquele tempo, realmente nos conectamos. Desenvolvemos a


cumplicidade real de um casal. Nos conhecemos.

No décimo sexto dia, acordamos. Tomamos café e fomos nadar no


lago.
Tristan contou que, quando estava sozinho, revirou o sótão do Palácio
buscando pistas. Queria saber por que diabos havia acordado ali – num
castelo abandonado, num mundo imerso numa noite eterna. Não encontrou
nada de útil.

Isto é, até agora.


Tristan descobriu uma caixa com apetrechos de pool party. Havia
biquínis, pistolas de água, boias infláveis (e toda sorte de loucuras que jamais
esperei encontrar no mundo dos mortos).

Resultado? Fizemos nossa própria festa no lago.

Ainda no sótão, Tristan encontrou um pneu velho. Usando uma corda,


amarrou-o a uma árvore e fizemos um balanço na beira do lago. Nadamos e
brincamos por horas.
No fim, Tristan deitou-se na grama para descansar. Tinha os olhos
fechados e as mãos apoiadas atrás da cabeça, distraído. Praticamente
cochilando.

Fui até ele na ponta dos pés. Peguei a pistola de água e simplesmente
atirei um jato em sua bochecha. Ele acordou, surpreendido. Franziu a testa
para mim, desafiado:

– Você não fez isso.


Apenas sorri maquiavelicamente.

– Está querendo guerra? – implicou.

– Tente me pegar! – E saí correndo como uma louca.


Antes de executar o plano, escondi muito bem a outra pistola de água.
Tristan foi procurá-la, e aquilo me deu uma vantagem. Entrei no castelo e me
escondi. Minutos depois, ele entrou, gritando meu nome. É claro que me
encontrou rapidamente. Era impossível ludibriar seus sentidos vampíricos.

Ele me deixou fugir. Corremos e brincamos pelos corredores; fizemos


uma guerra de água, nos escondendo um do outro pelos cantos. Eu corria o
mais rápido que podia – completamente encharcada e rindo sem parar.
Num momento, Tristan me encurralou num corredor. Apontou a arma
para mim, sobrancelha erguida em malícia.

– Mãos para o alto, ragazza.

Larguei a arma e ergui as palmas.


– Eu me rendo.

Ele se aproximava perigosamente.

– Então você ousou me desafiar para uma guerra?


Mordi o lábio, atrevida.

– Desculpe, senhor.

Estreitou os olhos.

– Você merece umas palmadas.

Ah, é. Eu mereço.

– Qual será o meu castigo?


– Posso pensar em algumas punições. – E olhou para o meu corpo
molhado, apenas de biquíni. Uma situação que nos reavivava certas
memórias.

Ele largou a arma e foi até mim. Imprensou-me contra a parede e


segurou minhas duas mãos acima da cabeça. Sussurrou ao meu ouvido:
– Foi deste jeito que eu te vi pela primeira vez, sabia? A água escorria
do seu corpo tão lindamente quanto agora... Na época, eu apenas te admirei
de longe, como um monumento intocável. Hoje, eu quero captar cada gota de
água com a minha língua.

– Então, faça comigo o que você não pôde fazer naquela época.
Ele enganchou os dedos no meu biquíni; desamarrou o nó das costas.

– Não sei, não. Será que você já está pronta para mim, garotinha?

– Esperei tempo demais. Estou pronta.


– Hummm... Deixe-me ver se está.... – Desfez o nó do biquíni em
minha nuca. A peça caiu, deixando meus seios desnudos. Ele tocou meus
mamilos, enrijecidos por excitação.

– O que concluiu, senhor?

– Ainda não me decidi. – Dentes trincados em tesão. – Preciso de um


exame mais aprofundado... – e se inclinou, capturando meu seio direito com a
boca. Chupou e mordiscou meu mamilo, até me fazer gemer. Ainda com meu
seio na boca, murmurou: – Vamos ver se você está preparada para mim. – E
inseriu uma mão dentro da minha calcinha. Seus dedos deslizaram ali dentro,
sentindo minha fenda molhada. Aprumou-se. Uma mão na minha fenda e
outra segurando meu queixo possessivamente. – É assim que eu gosto de te
ver. Molhada e pronta para mim.
Meu olhar era tão lascivo quanto o dele.

– Então me dê o que eu quero.

Estreitou as pálpebras, malvado.


– Você vai ter que fazer por merecer. Ajoelhe-se.
Obedeci. Ele abriu o zíper da bermuda, revelando seu membro duro e
majestoso. Segurou meu cabelo e mandou:

– Quer que eu te foda?


– Sim, senhor.

– Então me mostre o quanto você quer.

Não precisou pedir outra vez. Lambi a ponta do seu membro. Depois,
capturei-o por inteiro na boca – chupando-o com estocadas rítmicas.

Em determinado momento, Tristan grunhiu.

– Caralho, preciso te comer. – E me puxou para cima. Virou-me de


costas, bruto, imprensando-me contra a parede. Meus seios nus contra os
tijolos.

Ele se ajoelhou e abaixou minha calcinha. Segurou minhas nádegas


com as duas mãos, abrindo-as. Então, lambeu minha fenda e ânus, faminto.
Sua língua brincou em meu clitóris – completamente profissional. Cacete, ele
sabia mesmo o que estava fazendo.
A precisão e fome de sua língua me enlouqueciam. Me esfreguei
contra ela, gemendo.

Ele se levantou. Subitamente, deu um tapa forte na minha bunda.


Sussurrou no meu ouvido:

– Minha putinha gosta de ser chupada?


– Sim, senhor...

– Quer mais?

– Quero o seu pau.


E ele me deu o que eu queria. Segurou a ponta do membro em minha
entrada e penetrou-me com força. Eu perdi o ar. Enquanto seu membro
entrava e saía de dentro de mim, Tristan sussurrava putarias. Preenchendo-
me. Fazendo-me sua mulher.

Ao final, gozei primeiro. Ele gozou logo em seguida.


Fiquei exausta. Ele me pegou no colo e me levou até o quarto.
Tomamos um banho juntos. Ele me secou com a toalha e me vestiu com uma
camisola.

Eu ri:

– Não sou uma criança... Posso fazer isso sozinha.


– Eu sei. Mas me dá prazer cuidar de você.

Depois de me vestir, ele cuidou de si. Secou-se e vestiu uma calça de


moletom, deixando o torso nu.

Eu me sentei na cama. Ele foi até o rádio arcaico que havia no quarto.
Ligou-o, mas só havia uma fita. Tocava uma balada romântica da década de
80.

Ergueu uma mão.

– Dança comigo?

Levantei-me e andei até ele. Entrelacei nossas mãos.


– Claro que sim.

Ele levou minhas mãos até seu pescoço. Eu o abracei, feliz. Ele
entrelaçou os braços na minha cintura e dançamos lentamente. Ao fundo,
apenas o som da música suave.

Tudo com Tristan era intenso. Às vezes, ele me olhava nos olhos. Às
vezes, fechava as pálpebras e tocava meu rosto ao seu – acariciando-me e
sentindo meu cheiro.

Nós dançamos por um bom tempo. Aproveitávamos o fato de estar


sozinhos, de pijamas, namorando como um casal normal. Sem problemas,
sem traições, sem grandes lutas. Apenas ali, abraçados, sentindo o cheiro um
do outro.
A música tocava ao fundo. Um momento tão simples e tão íntimo...

Tristan beijava meu queixo, nariz e bochecha.

– O que está fazendo? – eu ri.


– Admirando-a e adorando-a... Como a obra de arte que você é.

– Vejam só... – neguei com a cabeça, um tanto emocionada. – Isso é


uma novidade.

– O quê?
– Na intimidade, o vampiro sanguinário é um romântico.

– Por você, eu posso ser muitas coisas, linda.

– Apenas seja você mesmo. Já é o suficiente para mim.

Tristan parou de dançar. Pousou as duas mãos em minha bochecha, a


expressão subitamente séria.

– Você sabe que fez uma loucura vindo ao mundo dos mortos, não
sabe?

– Sei. E não me arrependo de nada.


– Se conseguirmos sair daqui, me prometa uma coisa?

– Sim. – Não pensei duas vezes.


– Prometa que não vai embora. Fique comigo para o resto da vida.

– Prometo.

– Se você me deixar outra vez, Clara... – fechou os olhos por um


segundo, vivenciando um conflito interno. – Eu posso morrer.

– Tudo bem, amor. – Acariciei seu rosto com o polegar. – Eu não vou
te deixar mais. Isso ficou no passado.

Tristan permanecia muito sério.

– Você é o meu mundo e minha vida. Sabe disso, não sabe?

Sorri de soslaio.

– Eu sei. Você é a minha vida também.


– Promete que vai ser minha para sempre?

– Prometo.

– Então prove.
– Como?

Ergueu uma sobrancelha, desafiador.

– Case-se comigo.
****

O quê?!

Minha garganta se fechou. Meu coração bateu com fúria.


Antes que pudesse responder, ouvimos um barulho estrondoso. Vinha
de fora e de longe. O som de uma... Aeronave pousando?!

Nos entreolhamos, animados.


– Eles chegaram!

– Vamos! – e saí correndo.

Esperamos pelos irmãos no átrio. Tristan mantinha as mãos nos


bolsos, calado – expressão sombria em nervosismo. Já eu torcia os dedos em
pânico. Meu Deus, tragam boas notícias. Por favor.

Um tempo depois, Athos apareceu. Estava sozinho. Com a expressão


austera, atravessou o pátio e entrou no átrio.

Eu mal podia me conter:


– Pelo amor de Deus! O que aconteceu?

– Cadê os outros, Athos? – Tristan perguntou, sério.

– Acalmem-se, eles estão bem. Só não voltaram comigo.


Olhei para o di Santorum. Voltara sujo, com as roupas rasgadas e
alguns cortes pelo corpo. Comentei:

– Você parece ter vindo de uma guerra.

Ele pousou a mão na nuca – expressão traumatizada.

– Digamos que aquelas bruxas são um pouco... Selvagens.

– Então vocês as encontraram?!

– Encontramos. Atravessamos a floresta inteira e demorou dias. Mas,


no fim, encontramos o vilarejo onde se escondem.
– Elas irão nos ajudar?

– Vão. Mas sob condições muito, hã, específicas.

Fomos até a sala de reuniões para conversar.


Athos contou a história inteira. Os três pousaram no limite da floresta.
Adentraram e perscrutaram cada centímetro do lugar. Por dias, não
encontraram evidências das bruxas.

Mais tarde descobririam a verdade. Elas se escondiam de propósito,


jogando feitiços ao redor do vilarejo e deixando-o invisível. Forasteiros
curiosos só veriam árvores escuras. Assim, as bruxas se mantinham
protegidas e isoladas.

O décimo quarto dia de busca findou. Os primos estavam desistindo.

Athos percebeu que não havia esperança. Isolou-se num canto


afastado da floresta para processar a derrota. Chorou de verdade, pois sabia o
que falhar na busca significava... Sua família seria destruída. Ou todos nós
passaríamos o resto da eternidade no mundo dos mortos, ou deixaríamos
Tristan para trás.

Só que eu não poderia ficar aqui por muito tempo. Estava viva.
Eventualmente, a Morte voltaria e perceberia minha presença. Ela me mataria
pela audácia de invadir seu mundo. Uma vez morta, eu não viria para o
mundo dos mortos. Humanos já não eram permitidos aqui.
Tristan e eu terminaríamos separados de qualquer jeito. Ou seja: não
havia um final feliz.

Athos não viu saída. Então, tomou uma decisão. Não partiria conosco,
e ficaria no mundo dos mortos com Tristan. Simplesmente não podia deixar
seu irmão sozinho, para sempre, nesse mundo abandonado.

Athos conhecia as consequências da decisão. Nunca mais veria seus


outros irmãos ou a luz do sol outra vez. Por isso, sentou-se sozinho no meio
da floresta e chorou. Por horas e horas.
Então, o milagre aconteceu.

Uma bruxa o observava de longe. Viu suas lágrimas doídas, e seu


sofrimento real. Intrigada e tocada, desarmou o feitiço da invisibilidade e
apareceu para ele. Acontece que a bruxa era a própria Katerina.
Athos sentava-se à cabeceira da mesa. Ao falar sobre o encontro, sua
expressão mudou.

– Ele era... Uma deusa. – Olhos perdidos e sonhadores. – Nunca vi


uma mulher igual. Jovem, mas sábia. Delicada, mas poderosa. Forte, mas
extremamente gentil. – Franziu o cenho. – Uma criatura incomparável.

Tristan e eu nos entreolhamos.


– Ah, não. – Estalei a língua. – Só faltava essa...

– Porra, Athos. – Tristan rosnou. – Duzentos anos sozinho e você se


apaixona por uma maldita bruxa no maldito mundo dos mortos. Logo agora?

– O quê? – ele nos fitou.


Neguei com a cabeça.

– Você se apaixonou à primeira vista, Dom. E foi o único que não


percebeu.

Ele se exasperou.
– Vocês estão delirando!

– Ok, que seja. – Tristan cortou o assunto. – Isso é um problema para


mais tarde. Continue a história.

Athos prosseguiu.
Na floresta, ele contou sua história para Katerina. O plano de Drácula,
a prisão de Tristan, nosso filho e a missão de resgate. Katerina topou nos
ajudar, sim, mas com algumas... Condições.

Primeiramente, levou os primos ao seu vilarejo. Eles conheceram


todas as bruxas que moravam lá. Guerreiras celtas majestosas e lendárias.
Athos garantiu nunca ter visto nada igual.
Para nos ajudar, Katerina negociou os termos. Ela não confiava em
homens – e com razão. Eros e Azlam ficaram detidos no vilarejo. Só
poderiam sair se Athos voltasse.

A bruxa preparou uma poção temporária. Athos entregou o recipiente


a Tristan. Continha um líquido esverdeado, com cheiro de ervas. Bebendo
aquilo, Tristan ficaria livre de qualquer feitiço por quarenta e oito horas.

Katerina queria conhecer o filho de Drácula pessoalmente. Então,


Tristan teria que ir ao seu encontro no vilarejo. Lá, ela lhe daria a poção
definitiva para se livrar do feitiço de prisão.
– Assim, tão fácil? – Tristan se intrigou. – Basta eu ir até lá?

– Não. Ela quer fazer um acordo. Teremos que lhe fazer um favor em
troca da poção.

– Qual favor?
– Ainda não sabemos. Ela disse que só contará para você.

– Mas pode ser qualquer coisa! – me choquei. – Qualquer exigência!

– Ela assegurou que não fará mal a nenhum de nós.


– E se a ignorarmos? – ponderei. – Você pode ir buscar Eros e Azlam,
e todos fugiríamos juntos. Entraríamos no avião para Foggia, passaríamos
pelo túnel e adeus, mundo dos mortos. Tristan terá dois dias de liberdade.
Conseguiríamos executar uma fuga em 48 horas?

Tristan concordou.

– Clara está certa. Não vejo razão para negociarmos com a bruxa.

– Não, meu irmão. Katerina foi bem cristalina. Se você tentar escapar
do mundo dos mortos, o feitiço da prisão continuará impregnado no seu
corpo. Depois das quarenta e oito horas, você morrerá e acordará exatamente
no mesmo lugar. Aqui, neste Palácio.

Bufei. A cretina era esperta. Nos deu uma solução parcial para
continuarmos precisando de sua ajuda... Assim, ela poderia pedir o que
quisesse em troca.
– Então, a poção de agora é só um paliativo?

– Sim. Apenas para que consiga sair do Palácio e ir até o vilarejo. A


poção que trará sua liberdade definitiva ainda não está pronta. Antes de fazer
a poção, ela quer conversar cara a cara com você.

Grunhi.
– Bela aliada. Primeiro ela prende Azlam e Eros, e agora faz
exigências. – Olhei para Tristan, meio indignada. – O que será que ela quer
com você?

– Não sei, amor. Mas a mulher é esperta. Nos deixou sem alternativa.
– Virou-se para o irmão. – Então negociar com Katerina é nossa única saída?
Não podemos obrigá-la a nos entregar a poção? Não sei se notou, mas
geralmente não negociamos. Somos vampiros seculares – ergueu uma
sobrancelha – muito mais fortes que ela.

– Podemos ser mais fortes, sim, mas as bruxas tem truques. Artifícios
que não compreendemos. Basta Katerina se sentir ameaçada que estalará os
dedos e sumirá. Como perseguiremos um inimigo que nem podemos
enxergar?

Suspirei.
– Já entendi o que está dizendo. É melhor tê-la como aliada que como
inimiga.

– Exatamente. Sua cooperação é nossa melhor chance. Sem ela, não


conseguiremos sair deste mundo bizarro.

Tristan se levantou. Tomou uma decisão.


– Então, que seja. Vamos viajar e conhecer a bruxa.

– Mas, Tristan... – contestei. – E se ela lhe pedir algo absurdo em


troca da poção?

Ele me fitou sombriamente.


– Então eu farei. Sou capaz de qualquer coisa para sair daqui.

****

Tristan bebeu a poção e saímos. Andamos algumas quadras até o


avião. Tristan estava em êxtase por finalmente sair do Palácio.

– Nunca fiquei tão feliz por andar numa cidade abandonada em pleno
mundo dos mortos.

Rimos.

A viagem durou algumas horas. Eu fui bem preparada, levando a


mochila com mantimentos, água e roupas limpas. Ser a única pessoa viva
naquela missão era estressante.
Finalmente chegamos à Romênia.
Nos dirigimos a oeste do Distrito de Cluj-Napoca. Ali, ficava o
bosque de Hoia Baciu, apelidada pelos turistas de “a floresta mais mal-
assombrada do mundo.”

No último século, Tristan visitou bastante a Romênia. Encontrava-se


com as lideranças locais que apoiavam o golpe de estado de Drácula. Tudo às
ocultas, é claro. Os di Santorum nunca desconfiaram. Por causa disso, Tristan
estava familiarizado às histórias do lugar.

Durante a viagem, contou o que sabia:

“No mundo dos vivos, os turistas relatam suas experiências no


bosque. Dizem sentir náuseas ou sensação de ser observados. Outros,
garantem que o tempo lá dentro é confuso. Pessoas perdem-se por dias, e ao
saírem, acreditam ter se passado apenas alguns minutos. Os antigos contam
que uma menina de cinco anos desapareceu no bosque. Cinco anos depois,
foi encontrada – mas não havia crescido, nem mudado em absolutamente
nada. Para completar as crendices, em 1968, um militar garantiu ter avistado
um óvni no lugar. A namorada do homem corroborou a história, e pronto. Foi
o que bastou. O bosque tomou a fama de mal-assombrado. Enfim... É um
lugar estranho.”

Comentei:
– Imagine esse lugar no mundo dos mortos? Deve ser mais estranho
ainda.

– Em breve iremos descobrir. – Fez uma careta.

Pousamos no liame da floresta.


Desembarcamos e entramos no bosque. Athos ia na frente, pois já
conhecia o caminho. Tristan segurava a minha mão firmemente, carregando a
minha mochila no ombro. Com a mão livre, empunhava uma lanterna.

Durante o percurso, ele me observava. Notou meu silêncio:

– Está com medo?

– De estar numa floresta assombrada, no mundo dos mortos, prestes a


encontrar as bruxas que a assombram? Tsc, não mesmo. Já lidei com coisa
pior.

– Tipo?

– Tipo ficar sem você.

Me olhou, surpreendido.

– Uau. Estudar numa faculdade de vampiros te deixou durona.


Andamos por cerca de meia hora. Athos parou de repente, no meio de
uma campina.

– É aqui. – Anunciou.

Ao nosso redor, apenas árvores escuras e uma névoa sombria.


– Não tem nada aqui, irmão.

– Acredite, tem. Só não conseguimos ver.

– O que precisamos fazer?


– Nada. – Suspirou. – Apenas nos sentar e esperar. As bruxas saberão
que chegamos. – E se sentou ao pé de uma árvore, recostando-se ao tronco.

Tristan fez o mesmo. Recostou-se numa árvore e se sentou. Abriu os


braços para mim, chamando-me. Eu me aconcheguei em seu colo e
esperamos.

Naquele interstício, ouvíamos vozes sussurrantes. Eu senti calafrios


na espinha e sensação de estar sendo observada. O lugar era mesmo sinistro.

Athos combinou o encontro com Katerina neste dia e neste lugar. Não
havia horário específico. Então, tivemos que esperar.
Horas depois, ela apareceu. Ouvimos o barulho de seus passos se
aproximando. Ela surgiu por entre as árvores escuras, sem carregar nenhuma
lamparina consigo. Andava no breu como um animal selvagem. De longe, só
se viam seus olhos verde-diamantinos.

A bruxa andou até nós. Nos levantamos, tensos. Ela usava um vestido
medieval azul-celeste. Tinha também um cinto de couro na cintura e um arco
de flores na cabeça. Os longos cabelos escuros caíam até o fim das costas.
Algumas partes eram trançadas com ramos de folhas. Havia duas fendas
cortadas no vestido, mostrando as pernas nuas. Feitas para correr e lutar.

Ela tinha os pés descalços. Tornozeleiras de flores e pinturas pelo


corpo. As fendas no vestido arcaico conferiam-lhe ares selvagens.
Uma mulher que não fora domesticada pelo patriarcado.

Athos e ela trocaram um olhar. A bruxa o cumprimentou, voz


imperiosa:

– Dom Athos.
Ele aquiesceu com respeito.

– Katerina.

Katerina morreu aos vinte e seis anos. Desde então, nunca mais
mudou. Era tão linda, natural e selvagem que doía olhar. Ela parou à nossa
frente e analisou Tristan de cima à baixo, desconfiada.
– E você deve ser Dom Tristan, o filho do Drácula.
Tristan ergueu uma sobrancelha.

– Não por escolha própria.

Inclinou a cabeça, curiosa.

– Guarda ressentimento do seu pai, minha criança?

Apenas uma bruxa de mil anos poderia considerar Tristan uma


criança.

– Ele me enganou por um século, e agora quer roubar o meu filho.


Não quero apenas me vingar dele... Quero matá-lo.

Os olhos de Katerina reluziram em animação. Soltou um sorriso


perverso.

– Prevejo que iremos nos dar bem. O inimigo de Drácula é meu


amigo. – Olhou para mim, intrigada: – E esta menina? É o seu amor?
– Sim. Minha mulher e mãe do meu filho.

– Interessante. Sigam-me, vampiros. Temos muito o que conversar.

Nós a seguimos floresta adentro.

Athos e a bruxa iam à frente. Conversavam em italiano. Katerina


contava sobre a estadia de Azlam e Eros no vilarejo. Segundo ela, os primos
se adaptaram muito bem.

Perguntei, tímida:

– Como você sabe falar italiano?


Ela se virou para trás e me olhou.

– Eu existo há mil anos, minha criança. Tive tempo para aprender. Sei
falar muitas línguas.
Katerina era mais amigável comigo do que com os primos. Talvez
porque eu fosse mulher.

Andamos até encontrarmos uma formação rochosa. Segunda a bruxa,


o vilarejo ficava situado do outro lado da caverna. Humanos comuns jamais
encontraram a entrada.
Adentramos na gruta estreita. Do outro lado, desembocamos numa
imensa campina vazia. Katerina se virou para nós:

– Vou retirar o feitiço dos seus olhos. Fechem as pálpebras por um


momento.

Assim fizemos. Ela recitou algumas palavras numa linguagem


desconhecida e depois, falou em italiano:
– Podem olhar agora.

Obedecemos. Tristan se assustou, e eu arfei.

A campina vazia se tornou um vilarejo. Em meio às casas de palha e


fogueiras, dezenas de mulheres perambulavam; carregavam cestos de frutas
ou carcaças de animais; afiavam suas armas ou trabalhavam em poções.
Algumas colhiam ervas, outras contavam histórias em grupos. Eram
caçadoras, curandeiras, líderes e guerreiras. Roupas medievas, cabelos
trançados com flores, facas nos cintos... Uma mistura selvagem entre
feminilidade e perigo.
Ao longe, havia um grupo aglomerado. Vinte mulheres cantavam
músicas e bebiam, parecendo comemorar. Eros e Azlam se misturavam a
elas. Riam, bebiam e conversavam amigavelmente.

– Tsc... – ironizei. – Belos prisioneiros. Parecem estar sofrendo muito.

Katerina deu de ombros.


– Seus irmãos se adaptaram muito bem à nossa comunidade.

– Bem até demais. – Tristan murmurou. – Nem sei se vão querer ir


embora.
Todos fomos à casa de Katerina conversar. Era uma cabana de palha
na extremidade da campina. Dentro do cubículo, havia uma mesa de madeira,
uma rede e um fogão de lenha. Vários potes e ramos de ervas espalhados pelo
lugar; praticamente seu laboratório bruxo.

Nos sentamos à pequena mesa para conversar. Não havia cadeiras


para todos, então Eros e Azlam permaneceram de pé.

Observamos os “prisioneiros.” Eros tinha uma coroa de louros na


cabeça, e, Azlam, algumas tatuagens de tinta rústica pelo corpo. Os dois
exalavam cheiro de álcool.
Athos grunhiu para eles:

– Obrigado pelo sacrifício de ficarem aqui.

Eros soluçou, um pouco bêbado.


– Disponha sempre, irmão.

– Parece ter sido horrível – comentei.

– A gente faz tudo pela família.


Tristan revirou os olhos.

– Sei.

Katerina presidiu a reunião. Juntou as mãos por sobre a mesa e


começou, séria:
– Bom, di Santorums, vocês cumpriram suas partes no acordo. Então
vamos negociar. – Olhou diretamente para Tristan. – Você quer se libertar do
feitiço e voltar ao mundo dos vivos, certo? Mas, quando voltar, Drácula ainda
estará lá. Invencível, perigoso e imortal. Vai persegui-los pelo mundo até
conseguir roubar o seu filho.

– Sabemos disso. Mas estamos lidando com um problema de cada


vez. O primordial é conseguirmos voltar ao mundo dos vivos.
– E depois que estiverem lá? Como se livrarão do Conde?

– Do único jeito viável: fugindo. Não podemos vencê-lo. Ele é muito


forte e tem muitos aliados.

– E os vampiros-mortos que apoiaram Athos na revolta?


Foi Azlam quem respondeu:

– Estão desfalcados. Depois que viram o que Drácula fez com Athos,
muitos desistiram. Não querem colocar suas famílias em risco.

Katerina ergueu uma sobrancelha.


– Certo. Então vocês não têm mais um exército no mundo dos vivos...

– Não.

– Foi o que imaginei. Eis a minha proposta, di Santorum – e voltou-se


diretamente para Tristan. – Eu te dou a poção para se libertar do feitiço e
você vai embora. Também, te proverei com um exército de vampiros capaz
de derrotar Drácula. Tudo o que eu quero em troca é que me leve para o
mundo dos vivos com você.
Tristan e eu nos entreolhamos, chocados. Eu perguntei:

– Como assim “exército de vampiros”?

De onde diabos ela tiraria um?


– Os vampiros do mundo dos vivos não enfrentaram o Drácula porque
têm muito a perder. Mas existem vampiros que não têm medo, pois já
perderam tudo.

– Quem?
– Seus antepassados.

Athos arregalou as pálpebras, compreendendo:

– Os vampiros do mundo dos mortos!

– Exatamente. Noventa por cento deles morreram pelas mãos do


próprio Drácula ou seus seguidores. Adorariam ter a chance de se vingar. Eu
posso fazer um feitiço e abrir as portas do mundo dos mortos por 24 horas.
Esses vampiros vão até Drácula e o matam.

Azlam estalou a língua:

– Genial. Drácula jamais esperaria antigos inimigos se levantando dos


túmulos para uma vingança.
– E todos ao mesmo tempo! – Eros se animou.

– Espera. – Tristan cruzou os braços, cético. – Então, neste tempo


todo, você poderia abrir as comportas do mundo dos mortos. Por que não fez
isso antes? Sei que quer se vingar dele há séculos. Não faz sentido.

– Simples. – A bruxa suspirou. – Porque eu só posso abrir a passagem


entre mundos estando do outro lado: no mundo dos vivos. Mas não posso sair
desta floresta. Eu e minhas irmãs estamos presas aqui.
– Por quê?

– Porque Drácula quis.

Katerina contou que Drácula era um amigo íntimo da morte. Em troca


das almas dos vampiros, a Morte lhe concedeu vários favores. Dentre eles,
trancar as bruxas no mundo dos mortos. Drácula tinha medo de que as almas
das bruxas retornassem para assombrá-lo. Então, a Morte as prendeu na
floresta.

– Ok – interrompi. – Vocês estavam presas e de mãos atadas. Nós


entendemos. Mas o ponto é: como pretende voltar conosco ao mundo dos
vivos?

Os di Santorum eram vampiros que... Já estavam mortos antes de


morrerem. Aberrações que transitariam entre os mundos tranquilamente. Eu
estava viva. Também passaria tranquilamente pelo túnel.

Mas, e Katerina? Ela era uma humana morta. Como voltaria ao


mundo dos vivos?

– Já pensei em tudo. Primeiro, vocês voltarão. Depois, irão me


invocar e eu irei aparecer.
A voz de Eros ficou estrangulada.

– Tipo invocar um espírito?

Ela o olhou de volta, inabalável.

– Algo como isso. Uma vez na terra dos vivos, eu quebrarei a


fronteira entre os mundos por algumas horas. Nossos vampiros saem e o
capturam. Então, Drácula vai ter o que merece.

– Mas como nós, hã, a invocaremos? – Eros tremeu. Bizarro.

– Com um dos feitiços mais antigos da minha tribo.


Ela explicou. As bruxas da Antiguidade acreditavam em união post
mortem. Quando dois jovens solteiros morriam, suas famílias realizavam uma
união entre suas almas, para que não ficassem sozinhos na além-vida.
Acreditavam que seus espíritos estariam perturbados se morressem sem um
parceiro. Então, uniam um espírito a outro numa cerimônia formal. Usavam
pertences dos falecidos para representá-los.

Engoli em seco.
– O que você quer dizer, Katerina? – união post mortem? Além-vida?

Ela foi direto ao ponto.

– Que algum de vocês terá que se casar comigo.


****

Me desesperei:

– Mas seria um casamento de fachada, não é? Só para te invocarmos?


– Não, deve ser um casamento real. Não dá para fazer um divórcio de
almas. Uma vez casadas, essas almas estarão juntas para sempre.

Ai, meu Deus. Tristan estava muito sério.

– E qual de nós você quer?

– Você seria o parceiro ideal. Casar-me com o filho de Drácula seria a


maior das vinganças.

Ele ergueu o queixo, irredutível.

– Impossível, bruxa. Eu já tenho um amor.


– É a minha condição, vampiro. Será isso ou nada.

De repente, Athos interrompeu a discussão:

– E se alguém se voluntariar?
Todos o encaramos. Clareou a garganta:

– Eu me voluntario para ocupar o lugar do Tristan. Eu me caso com


você. Drácula me odeia em segredo há muitos séculos. Nossa união iria
enfurecê-lo. E, o mais importante... Tristan não está livre, e já ama outra
mulher. Eu, por outro lado... – desviou os olhos, embaraçado. – Estou com o
coração livre. Posso me comprometer a um casamento real. Todos saem
ganhando.

O casebre caiu num silêncio pesado. Todos perceberam a verdade –


exceto o próprio Athos. Ele estava de quatro por Katerina.

A bruxa franziu o cenho. Encarou Athos por vários segundos,


expressão misteriosa.

– O senhor está afeiçoado a mim, Dom?


Azlam se engasgou. Eros segurou uma risada. Athos tropeçou nas
palavras:

– O quê?! Não! Só estou fazendo isso pelo bem da família!

Sei. Conte-nos outra.

Katerina estreitou as pálpebras, analisando-o. Depois de um tempo,


resolveu-se:

– Tudo bem, então – e estendeu uma palma. – Eu aceito a sua


proposta. Um di Santorum pelo outro. Casar-me com o inimigo número um
será uma traição tão vil quanto o filho.

Athos tentou esconder o sorrisinho de vitória. Apertou a mão da bruxa


– no cumprimento mais estranho da história.
– Ótimo. Estamos noivos, então.
Diante do olhar apaixonado de Athos, Katerina se constrangeu.
Levantou-se, passando a mão pelos cabelos.

– Certo, o acordo está, hã, celebrado. Irei comunicar a notícia às


minhas irmãs. Então deflagarei os preparativos. – E acenou com a cabeça,
saindo da cabana. – Milordes. Senhorita.
Athos a observou partir, encantado. Ficamos sozinhos. Athos notou
nossos olhares zombeteiros. “O quê?”, grunhiu.

Eros estalou a língua.

– Uau, alguém traga o véu e grinalda para Athos.


– Ele é a noiva. – Emendei.

Até o recluso-das-trevas Tristan entrou na brincadeira.

– É isso aí, meu irmão. – E ergueu o dedo anelar. – Só se entregue


quando tiver um diamante bem aqui.
Azlam uniu as palmas, encenando.

– Posso ser sua madrinha?

Athos rosnou:

– Falem mais alguma coisa e eu mato vocês.

Demorou dois dias para findarmos os preparativos. Katerina começou


a preparar a poção de ervas. Já Athos saiu do acampamento para procurar
mais gasolina para o avião.

Naquele interstício, fomos acolhidos na comunidade. As mulheres da


aldeia eram muito amigáveis. Nos cederam algumas cabanas para dormirmos,
e providenciaram água e comida para mim. Tomamos banho no riacho aos
fundos da floresta. A temperatura da água era quente e agradável; a brisa da
noite-eterna, suave. Foi quase como... Acampar.

Katerina deixou que a poção descansasse por alguns dias. Era um


procedimento demorado.
Durante o dia, ajudávamos as mulheres em seus afazeres. Elas
costuravam, pintavam e colhiam ervas. Outras, guerreavam, fabricavam
armas, caçavam e faziam esportes meio... Violentos. Por aqui, não havia
mulheres submetidas a convenções. Eram todas livres para ser exatamente
quem queriam ser.

Sinceramente? Aquilo era foda.

Elas seguiam seus próprios horários. No que consideravam “noite”,


findavam o trabalho. Se reuniam ao redor de fogueiras; cantavam, contavam
histórias, bebiam e conversavam.
Elas eram as bruxas celtas que estudei nos meus livros de história.
Que ocupavam as fantasias do meu coração de estudante, de amante do
passado. Conversar pessoalmente com elas era... O paraíso. O meu êxtase
profissional e intelectual.

A inteligência e sabedoria delas me emocionava. A força, a liberdade,


a liderança nata... Elas emanavam a mais pura energia feminina, sem as
amarras da submissão. Falavam com propriedade sobre o Sagrado Feminino,
Natureza, Deusas Interiores que as regiam, fases da lua e espíritos-amigos.
Transitavam com facilidade entre temas diversos. Política e receitas na
cozinha; distribuição de renda e a melhor técnica de bordado; melhores
penteados trançados e, de repente, discussões acaloradas sobre grandes
mestres da Filosofia.

Dentro delas, as energias feminina e masculina não duelavam.


Coexistiam em paz. Mulheres sem amarras.
Eu amei e me emocionei diante daquela liberdade. No fundo do meu
coração, desejei que todas as mulheres do mundo pudessem algum dia viver
como elas... Livres para serem quem são. Sem se submeter às regras de um
mundo construído para agradar à homens.

Drácula as prendeu na floresta e as privou da liberdade. Mas suas


almas lindas e selvagens permaneciam intactas. O fogo da inteligência e sede
de viver ainda queimava em seus corações. Algo que Drácula nenhum as
roubaria.

****

Dois dias se passaram. Tristan bebeu a poção definitiva. Athos


conseguiu gasolina para o avião; encontrou-a no aeroporto abandonado da
cidade. Nos despedimos das mulheres da aldeia, agradecidos, e partimos.

Horas depois, pousamos na Foggia dos mortos.


Tivemos que nos esconder e esperar o bar se esvaziar. Por volta das
quatro horas da manhã – no horário insano do mundo dos mortos – o último
cliente saiu. O dono fechou o estabelecimento e foi embora. Tristan arrombou
a porta dos fundos e entramos.

Antes de ir embora, Katerina escreveu um bilhete e me deu uma


instrução. Minha missão era simples: deixar o bilhete na taverna.

Deixei o bilhete na mesa do escritório do dono do bar. Passamos pelo


armazém e entramos no túnel. Nenhum vampiro desconfiava sobre aquela
passagem.
Foi uma caminhada longa e cansativa. Isto é, para mim. Os di
Santorum estavam ótimos.

Foram sete horas de subida. Túnel estreito, ar rarefeito, no escuro e


grávida. Nada divertido. Paramos algumas vezes para eu me hidratar e comer.

Nos últimos quilômetros, Tristan simplesmente me carregou. Eu


estava em suas costas, com a cabeça apoiada em seu ombro. Os demais
primos caminhavam à frente.
– Estou pesada? – perguntei. Ele já me carregava há uns 40 minutos.

– Não, amore mio.

– Fale a verdade. Eu posso andar agora. Já descansei o suficiente.

Ele grunhiu.

– Eu sou um vampiro, pelo amor de Deus. Você não pesa nada para
mim.

Eu apertei meus braços ao seu redor.


– Uau. Meu namorado é um herói.

– Namorado, por enquanto. – E olhou para trás, para mim, sério. –


Não ache que me esqueci da pergunta que fiz no Palácio. Você me deve uma
resposta.

– Você já sabe a minha resposta. – Lógico que eu me casaria com


Tristan. Eu o queria para o resto da vida.
– Mas eu quero ouvir da sua boca.

– E ouvirá... Quando tudo isso acabar.

Estreitou os olhos, sorrisinho lateral:


– Está se fazendo de difícil para mim, Clara Mourão?

Estalei a língua.

– Um pouco. Já corri muito atrás de você... Literalmente desci até o


mundo dos mortos. Chegou a hora de você correr um pouco atrás de mim.

– Feito. Se prepare para as minhas ligações bêbado durante a


madrugada.
Horas depois, chegamos ao fim do túnel. Subir foi muito mais
laborioso que descer.

Ao chegarmos à extremidade do túnel, todos bebemos uma poção


feita por Katerina. A solução confundiria os sentidos de quem nos visse.
Sabíamos que haveria soldados de Drácula nos esperando na saída.
Evidentemente, o Conde sabia que não voltaríamos ao seu castelo de bom
grado. Não era idiota.

Abrimos o alçapão e saímos. Desembocamos na rua aos fundos da


igreja Sant’Angelo.
Olhei para o céu. Meio-dia, sol à pino. Não pude evitar um sorriso.
Era maravilhoso ver a luz de novo.

Vampiros nos esperavam em cada esquina. Recostavam-se às paredes


das casas, muros ou nos seus carros. O quarteirão da igreja estava cheio de
espiões de Drácula.

Fizemos como Katerina mandou. Passamos por cada um deles sem


emitir reação. Os soldados nos avistavam e franziam o cenho – sem nos
reconhecer. Nos viam, mas não sabiam quem éramos. E simplesmente... Nos
deixavam passar em paz. Era como se a poção alterasse nossos rostos para
eles.
Estávamos sem dinheiro ou identidades. Então, tivemos que roubar
um carro para voltar à Roma. Eu me revoltei, mas Athos me acalmou.
Assegurou que encontraria o dono do carro – pelo número da placa – e faria
um depósito em sua conta no dobro do valor do veículo.

Bom... Estávamos fugindo do maldito Conde Drácula. Não era hora


para moralidades.
Viajamos de carro até Roma. Entramos no Palacete sem sermos
vistos. As pessoas olhavam para nós e não nos reconheciam. O efeito da
poção era chocante.

Tomamos banho, comemos e trocamos de roupa.

O jatinho da família estava retido na Romênia. Então, Azlam foi


buscar um helicóptero. Ele mesmo dirigiu, e, naquela noite, sobrevoamos até
a Romênia.
Àquela altura, o efeito da poção já havia passado. Então, tivemos que
pousar num local distante.

Nosso destino era a cidade de Cluj-Napoca, na Romênia, lugar onde


fica a floresta das bruxas. Katerina nasceu e morreu naquele distrito. Seu
corpo estava enterrado num cemitério próximo.

Era aí que a parte perturbadora do plano começava.

Para invocar a bruxa, teríamos que realizar um casamento entre Athos


e o espírito de Katerina. Então, naquela madrugada, invadimos o cemitério
local. Arrombamos a cripta onde Katerina fora enterrada e roubamos um de
seus restos mortais. Um osso da costela.

Arrombamento de cripta, furto de restos mortais... Nada demais.

Para completar, Tristan teve que hipnotizar um padre da região, para


que este celebrasse a cerimônia de casamento.
Aconteceu na capela, dentro do próprio cemitério. No sentadas nos
bancos de madeira. Athos ficou de pé no altar. Usava um terno elegante e
uma flor na lapela. Sobre a mesa do altar, havia os ingredientes para a
cerimônia de invocação. Restos do falecido; um objeto que o pertencia; uma
outra alma disposta à união; uma autoridade para celebrar a cerimônia.

Conseguimos tudo. Colocamos sobre a bancada os ingredientes: um


osso do cadáver de Katerina e um anel de família usado por ela. A própria
Katerina nos confiou o anel no mundo dos mortos. No altar, havia também
um padre hipnotizado e um noivo disposto a cometer aquela loucura.
Estávamos prontos.
Eram três e trinta da manhã. A cerimônia começou.

O padre repetia palavras numa linguagem antiga – olhos fixos à


frente. Claramente, sem saber o que estava fazendo. Ao final do sermão, fez
uma pergunta à Athos. O di Santorum retirou uma aliança do bolso do terno e
afirmou em italiano: “sim, eu aceito.” Então, colocou a aliança no próprio
dedo.

Tristan e eu trocamos um olhar sombrio. Estávamos casando Athos


com o espírito de uma mulher morta. Não dava para ficar mais bizarro que
isso.

Tristan traduzia o sermão para mim. Então, ao final, o padre falou:


“Eu os declaro marido e mulher.”

Uma rajada de vento sobrenatural abriu as portas da igreja. As velas


foram apagadas. Tinha alguma coisa acontecendo aqui.

O padre acordou do transe. Olhou ao redor, assustado. Não nos


reconhecia e nem sabia como fora parar ali. Viu o osso por cima da mesa e
começou a entrar em pânico. Impaciente, Athos pegou seus ombros e olhou
em seus olhos. Ordenou: “Você vai dormir agora e só acordará de manhã.
Não irá se lembrar do que aconteceu aqui, nem de nenhum de nós.”

O homem desmaiou na hora – hipnotizado outra vez.

Naquele momento, pássaros cantaram um canto assustador. O vento


ficou mais forte. As velas dos castiçais se reacenderam sozinhas, como por
encantamento.

Ouvimos passos no cemitério; alguém se aproximava. Olhamos para


porta da igreja, tensos. Tristan transpassou um braço ao meu redor,
protegendo-me. Eros engoliu em seco. “Santo Pai...”, murmurava.

Caímos dentro de um filme de terror?


Ainda em cima do altar, Athos esperava. As duas mãos unidas à
frente e o rosto solene.

– Silêncio. A noiva está chegando.

Segundos depois, aconteceu. Katerina entrou pela porta da frente.


Usava um véu e um vestido branco de modelos medievais. Sob a luz trêmula
das velas, parecia ser realmente uma assombração – uma noiva cadáver.
Ela andou pelo corredor da igreja até o altar. Pegou o seu anel na
mesa e colocou-o no próprio dedo. Olhou para Athos, sorrisinho de vitória.

– Sim, eu aceito.

E foi assim que trouxemos a maior inimiga de Drácula de volta dos


mortos.
Amanheceu. Emprestei algumas das minhas roupas para Katerina. Ela
estranhou os jeans, mas aceitou. Foi um alívio para todos (já que era bizarro
vê-la naquele vestido de noiva cadáver).
Azlam levou o padre – bastante confuso – para casa. Tristan e eu
saímos para comprar as ervas que Katerina precisava para o feitiço. Durante
todo o dia, ela preparou as ervas e os cânticos; trabalhou dentro da capela do
próprio cemitério.

Nós a ajudamos. Espalhamos velas em seis pontos específicos do


cemitério. Aprendemos algumas palavras da linguagem celta e acendemos
uma grande fogueira no centro do lugar. Nem me perguntem o porquê.
Coisas de bruxa.

Na parte da noite, estávamos prontos.


Cada um de nós ficou de pé num dos pontos específicos do cemitério.
Formávamos uma estrela de seis pontas. No centro, estava a fogueira acesa.

Quando o relógio tocou à meia-noite, começamos a recitar as palavras


ensinadas por Katerina. Pessoalmente, eu não tinha ideia do que diziam –
apenas as decorei. Katerina informou ser um pedido às bruxas do passado
para que abrissem, momentaneamente, o véu entre mundos. Era um favor, e
não uma certeza.
“Como saberemos se dará certo?”, eu perguntei, horas antes.

“Não sabemos. Mas Drácula tem uma dívida antiga com todas as
bruxas pelo que fez a nós. Nossas antepassadas irão nos honrar.”

De seu lugar num dos pontos da estrela, Katerina presidia o feitiço.


Olhos fechados, cabeça jogada para trás. Estava invocando todos os vampiros
já mortos pelas mãos de Drácula – ou em razão do seu ódio.
Acreditem, foram muitos. Drácula colecionava inimigos há mil anos.

O portão do cemitério tremeu. Senti um arrepio na espinha, e o vento


ficou gelado. A fogueira ao centro subitamente se apagou.

Estava feito.

Katerina disse que, quando a barreira entre mundos caísse, os


elementos da natureza ficariam perturbados. Não era feitiço natural, e sim
magia proibida. Por isso a súbita mudança climática e o fogo apagado sem
explicação.

Nos encontramos no centro do cemitério, como combinado. Katerina


já esperava por nós. Comunicou:

– Deu certo. As bruxas aceitaram nossa oferenda e o véu foi retirado.


Comecem a cavar.
E assim fizemos.

Na parte da tarde, Katerina nos mandou comprar outras coisas além


de ervas. Também trouxemos picaretas e seis pás. Eu preferi não perguntar o
que teríamos que desenterrar. Trazer vampiros dos mortos já era
suficientemente assustador.
Os di Santorum retiraram a lenha chamuscada do caminho. Com as
picaretas, quebraram o chão de concreto. Chegamos à camada de terra.
Cavamos bem ali, onde havia estado a fogueira.

O bilhete deixado por Katerina continha várias informações. A data


de hoje, o endereço exato deste local, e a seguinte mensagem: vingança
contra Drácula no mundo dos vivos. Usem o túnel na cripta de Katerina
Ionesku. Cemitério de Cluj-Napoca, Romênia. A passagem será aberta à
meia-noite. Traga quantos vampiros puder.

Cavamos e cavamos.
Enquanto desenterrávamos sei lá o que, Eros resmungava.

– Me lembre de nunca mais fazer um pacto com uma bruxa.

– Deixa comigo. – Resmunguei de volta.

Então, nossas pás bateram em algo duro. Um alçapão de madeira.


Retiramos a terra de cima e abrimos o alçapão. Olhamos para baixo (meio
assustados com o que encontraríamos).

O alçapão desembocava num túnel. Lá embaixo estavam vários


vampiros. À frente de todos, ninguém menos que o dono do bar em Foggia –
o vampiro ruivo e barbudo. Ele segurava uma lamparina na mão. Ao ver-nos
lá de baixo, sorriu, vingativo.

Foi ele quem encontrou o bilhete.


– Estamos aqui. Cadê aquele Conde maldito?

****

Um por um, os vampiros foram saindo do túnel.

No final das contas, tínhamos mais de 200 vampiros lotando o


cemitério.

Katerina os explicou tudo. Eles teriam 24 horas aqui, no mundo dos


vivos. Drácula estava a caminho e não esperava pelo ataque. Uma rara e
única chance de vingança.
Todos eles morreram por suas mãos, ou por suas ordens. Conflitos de
família, luta por dominação de territórios, etc. Estavam ansiosos por uma
vingança.

Katerina orientou que os vampiros se escondessem nas redondezas.


Havia um bosque denso ao redor do cemitério – perfeito para uma
emboscada. Os vampiros se dissiparam e se esconderam. Enquanto isso,
fomos até a capela e Azlam fez a ligação. Discou o número de Mihaela, a
governanta do Castelo de Bram. Obviamente, Drácula não tinha um celular.

“Mihaela, aqui quem fala é Azlam di Santorum. Passe o telefone para


Drácula com urgência.”
Todos olhávamos Azlam com expectativa. Minutos depois, o Conde
atendeu. Azlam colocou no viva voz.

“Dom Azlam.”

“Vlad, sou eu. Tenho notícias.”


“Então já estão de volta entre os vivos...”

“Sim, mas tivemos um problema no retorno. O túnel desembocou em


um lugar diferente. Estamos presos no cemitério do distrito de Cluj-Napoca.
Não sei como aconteceu. A passagem não desembocou na Igreja de
Sant’Angelo, mas sim na cripta de alguém. Um túmulo com o nome de
Katerina Ioensku. Você conhece?”

Silêncio pesado do outro lado da linha.


“Vlad?”

“Conheço-a bem.” Drácula tinha a voz estrangulada. “Foi a única


evidência que encontraram da presença dela?”

“Exato.” Azlam mentiu descaradamente. “Agora estamos presos no


cemitério. Alguma magia estranha nos mantém cativos aqui.”
“Maldição... A bruxa maldita deve ter descoberto que vocês estavam
no mundo dos mortos. Os confundiu para me atrair.”

“Que bruxa?”

“Esqueça. Ela está morta, não pode me alcançar no mundo dos vivos.
Tristan e a garota humana estão bem?”
“Estão. Resgatamos Athos também.”

“Ótimo, estou a caminho. Fiquem longe da cripta de Katerina, e não


toquem no nome dela.”

“Quem é Katerina?”
“Você não vai querer saber.” Então Drácula simplesmente bateu o
telefone na cara de Azlam.

Katerina revirou os olhos.

– A única pessoa de quem ele tem medo.


Eu sentia um prazer obscuro:

– Drácula irá surtar quando a ver aqui, em pessoa.

Eros congratulou Azlam.

– Bela atuação, mano.

Um tempo se passou. Então, finalmente ouvimos o barulho de um


helicóptero pousando.

Katerina se escondeu na capela. O resto de nós foi para o centro do


cemitério.

Minutos depois, Drácula abriu os portões do cemitério e entrou. Olhos


negros reluzindo em ódio. Ao seu lado, ninguém menos que Catalyna – a
anciã que conseguia conversar com o meu feto. Provavelmente, ele a trouxe
consigo com o intento de desfazer o feitiço que nos prendia. O falso feitiço.

A anciã o acompanhava há alguns passos atrás. Cabeça abaixada,


segurando seu xale. Claramente não queria estar ali.
Drácula andou até o centro do cemitério. Parou à nossa frente. Ergueu
uma sobrancelha para Tristan, frio.

– Que bom que está de volta, meu filho.

Tristan tinha a face igualmente impassível. Devolveu, gélido:


– Pai.

– E a criança? – Drácula perguntou para mim.

– Está bem. – Pousei a mão sobre a barriga, tensa. Mas você não irá
roubá-la de nós, seu maldito.
– Ótimo. – Virou-se para Athos. – E a estadia no mundo dos mortos,
meu caro? Como foi? Sempre tive curiosidade para saber como é lá embaixo.

Athos foi curto e grosso.

– Bizarra. Espero não voltar.

– Um dia todos nós estaremos lá. – Drácula soltou um sorrisinho


condescendente. – Isto é, menos eu. – Virou-se para Catalyna. – Consegue
detectar o feitiço ao redor do cemitério?

Ela fechou os olhos, parecendo tentar captar sons que não ouvíamos.

– Estou tentando, Excelência, mas não consigo decifrar o que os


prende. No entanto... Sinto uma presença forte... De alguém que não devia
estar aqui.

Drácula olhou ao redor do cemitério, dentes trincados. Pela primeira


vez, parecendo amedrontado.

– Katerina. Aquela maldita bruxa... Mesmo morta ela continua me


assombrando.
Catalyna abriu as pálpebras.

– Não sinto nenhum feitiço de prisão neste lugar. Estamos livres para
partir.

Drácula franziu o cenho e olhou diretamente para Athos.


– O que está acontecendo aqui?

– Sinto muito. Nós não iremos embora com você hoje. – Athos
anunciou, vitorioso.

– Vocês me enganaram?
– É uma guerra, Conde. Vale tudo. Até jogar sujo.
Drácula olhou para cada um de nós. Percebeu que era uma armadilha.
Do bolso interno do paletó, retirou um objeto quadrado e prateado.

– Receio que não, di Santorum. Eu posso mandar qualquer um de


vocês de volta ao mundo dos mortos com apenas um clique.
Eros perdeu a paciência.

– Então por que não tenta, seu bastardo?

Drácula estreitou os olhos, confuso. Não entendia como agíamos com


tamanha audácia.
– Eu tentei uma aliança, tentei poupá-los... Mas como vocês não
aprendem a lição... Como queira, Dom. – E apertou o botão.

Eros arregalou os olhos e arfou. Caiu no chão, se debatendo.


Segundos depois, paralisou, olhos arregalados.

Drácula negou com a cabeça.


– Crianças tolas. Quantas vezes precisarei matar um dos seus para que
entendam que não podem me vencer? Parem com este teatro e venham
comigo.

Naquele segundo, Eros abriu os olhos e se sentou. Sorrisinho


sarcástico.

– Gostou da minha atuação, Conde?


Todos nós sorrimos como malícia. Katerina nos contou tudo
antecipadamente. Sabíamos que naquelas vinte e quatro horas nenhum
vampiro poderia morrer. O mundo dos mortos e dos vivos se misturava.

Drácula ficou mortificado.

– Mas o quê... – atropelava as palavras. – Você estava morto. Eu


acabei de te matar.

Eros se levantou, limpando a roupa.

– Desculpe-me por atrapalhar os seus planos, Vlad, mas hoje ninguém


pode morrer. O véu entre o mundo dos mortos e dos vivos caiu.

– De que tipo de atrocidade estão falando? – ofegou.

– Que hoje somos fodidamente imortais! – Azlam se vangloriou. –


Seu controle estúpido não funciona.

Naquele ínterim, Catalyna olhava para os cantos do cemitério;


encolhida e apavorada.

– Excelência... Estamos sendo observados...

– Por quem? – Drácula acompanhou seu olhar, paranoico.


– Por pessoas que não deviam estar aqui... Pessoas de outro mundo...

Tristan cruzou os braços, debochado.

– Trouxemos umas surpresinhas do mundo dos mortos para você, meu


pai. Alguns dos seus antigos inimigos sentiram sua falta.

Eros suspirou.

– Ah, o reencontro de velhos amigos. Eu sempre me emociono.

Drácula rosnou:
– Falem logo o que querem de mim, di Santorums.

Azlam colocou dois dedos nos lábios e assobiou. Era o sinal. De


repente, vários vampiros pularam o muro que cercava o cemitério. Outros
simplesmente entraram pela porta da frente; punhos cerrados e caninos
afiados expostos. Com sede de sangue.
O dono do bar foi o primeiro a nos alcançar. Parou entre nós e
Drácula – traços vitoriosos e vingativos.

– Olá, Vlad. Já faz um tempo.


O Conde arregalou os olhos.

– Castian?! Como você pode estar aqui? Eu te matei um século atrás.

– Ah, é – rosnou. – A mim e a toda minha família. Minha esposa


humana grávida e meu filho em seu ventre.

Os vampiros formaram um círculo ao redor do Conde, deixando-o


encurralado.

Drácula zombeteou, diabólico.

– Eu me lembro bem. À propósito, sua mulher era uma delícia... Me


satisfez bastante antes de morrer.
Castian rosnou e partiu para cima de Drácula. Os dois começaram a
lutar. Eu mal conseguia distinguir os golpes. Os movimentos eram tão
rápidos que fugiam à inteligência dos meus olhos.

No fim, aconteceu o inevitável. Castian terminou no chão – a garganta


sob a sola do sapato de Drácula. Este, pegou uma farpa de madeira no chão,
resquícios da fogueira, e simplesmente enterrou-a no coração de Castian. O
vampiro ofegou em susto e dor. Vomitou um pouco de sangue.

Drácula manteve o pé em sua garganta. Aprumou-se, arrumando as


roupas. Olhos venenosos.
– Quem será o próximo? Posso fazer isso a noite toda.

Eu me encolhi. Nunca me acostumaria àquela violência tão crua.

– Ainda não acabou, Conde... – Castian tentava murmurar, cuspindo


sangue. Então, simplesmente retirou a farpa de sua carne, centímetro por
centímetro. Embora acabado, tinha um sorriso no rosto. – Ninguém pode
morrer hoje. Somos invencíveis. Vai ter que lutar conosco para sempre.

O Conde bufou, desdenhoso.


– Não me diga. Iremos mesmo jogar esse jogo? Nenhum de vocês é
forte o suficiente para mim. Não puderam me vencer antes, nem podem
agora.

Azlam perdeu a paciência. Avançou, punhos cerrados.

– Mas duzentos de nós podem.


Tristan me colocou atrás de si, protetor. A luta começou. Todos os
vampiros partiram para cima de Drácula, violentos. O Conde lutava e se
defendia – cortando gargantas e empalando corações. Ele era brutal. Uma
centena de vampiros terminou caída aos seus pés, sangrando e agonizando.

O bastardo era mesmo uma máquina. O mais forte da espécie.

Tristan percebeu o inevitável. Para vencermos, teria que se juntar à


luta. Virou-se para mim:

– Não importa o que aconteça, não saia daqui. Me entendeu?

– Sim.

Deixou-me recostada à uma lápide, escondida atrás do mármore. Os


quatro di Santorum avançaram para Drácula.
– Saiam da frente! – Tristan ordenou para os demais. Os dentes
caninos descendo, afiados; os olhos ficando vermelhos. – Agora esta luta é
nossa.

Todos obedeceram.
O Conde os viu se aproximando. Pela primeira vez, vacilou,
temeroso. Azlam e Athos eram vampiros antiguíssimos, e seus inimigos mais
fortes. Já Eros e Tristan... Bem, foram treinados por eles. Igualmente mortais.

A luta foi sangrenta. Eu quase infartei umas quatro vezes. Drácula


quebrou o pescoço de Eros e empalou Athos no coração. Só Tristan e Azlam
continuaram lutando.
Segundos depois, Athos se recuperou. Retirou a farpa de madeira do
coração e voltou a lutar. Eros teve o pescoço quebrado e apagou por alguns
segundos. Depois, acordou e voltou a lutar.

O maldito Conde parecia invencível. Os di Santorum davam tudo de


si, mas Drácula simplesmente... Não caía.

Posso fazer isso a noite toda, garantira. E ele não estava brincando. O
intragável Vlad era realmente o mais forte. O precursor da espécie, o líder e o
original. Todos os vampiros do mundo eram suas meras cópias.
Fiquei aflita. Uma hora, o feitiço terminaria e os vampiros poderiam
morrer. Se Drácula resistisse até lá... Ele nos esmagaria. Sozinho.

De repente, algo aconteceu. Um evento extremamente bizarro.

Os duzentos vampiros que assistiam à luta jogaram as cabeças para


trás; olhos arregalados e íris brancas. Estavam fora de si. Começaram a entoar
cânticos estranhos, numa língua desconhecida. Como se estivessem
possuídos.
Drácula e os di Santorum pararam de lutar. Eros sorriu, diabólico:

– Parece que temos visita.

Drácula se assustou. Os olhos voaram para cada um dos vampiros


possuídos. Voz estrangulada:
– Katerina? Você está aqui?

Foi o que bastou. A bruxa saiu da capela há alguns metros. Veio


andando até nós em toda a sua glória. Selvagem, descalça, perigosa. Cabelos
chicoteando no vento.
Drácula parou de respirar. Foi a primeira vez que demonstrou um
medo real naquela noite.

– Você.

Ela parou há alguns metros de Vlad.


– Já faz muito tempo, Conde.

Ele engoliu em seco. Até a voz da bruxa o assustava.

– Mil anos. Como... Como você pode estar aqui?


Sorriu maquiavélica.

– Eu tenho meus truques. Lembra-se de minhas irmãs? – e apontou


para os vampiros. Expressões arregaladas e vazias; íris brancas. Era uma
possessão em massa. Não eram mais os vampiros naqueles corpos... Eram as
bruxas.

Drácula os encarou, horrorizado.


– Não é possível.

– Você nos matou e nos encarcerou naquele mundo assombrado e


esquecido. Viemos cobrar o preço.

Drácula deu um passo para trás – verdadeiramente intimidado.


– O que você quer de mim? Eu nunca te amei e nunca vou amar.

Katerina ergueu uma sobrancelha.


– Ah, não... Eu não quero o seu amor. Já superei isso há muito tempo.

– Então o que quer? Uma vingança? Você está morta, bruxa. Volte
para o seu próprio mundo e deixe os vivos em paz. Aqui não é o seu lugar.
– Eu não vim me vingar, Conde. Eu vim te buscar. Vou te levar para
o mundo dos mortos comigo e te torturar para o resto da eternidade. – Ergueu
uma mão. Ordenou, feroz: – Ajoelhe-se, maldito.

As pernas de Drácula tremeram e ele caiu, de joelhos. Dentes


trincados em fúria. Claramente compelido por algum feitiço.

– Sua... puta... feiticeira...


– A mais forte de todas. – Ela ergueu o queixo, vitoriosa. – Não sou
mais a garotinha que você enganou, Conde. Nestes últimos mil anos, tornei-
me mais forte que você. – Virou-se para os di Santorum. – Tristan, faça as
honras.

O garoto tinha a expressão sanguinária.

– Com prazer. – E pegou um pedaço de madeira do chão. Posicionou-


se à frente de Drácula e cuspiu: – Adeus, pai. Volte para o inferno que é o seu
lugar. – E cravou a farpa no coração de Drácula.

O Conde caiu para trás, segurando o peito, assustado.

Naquele momento, algo aconteceu. Eu senti uma pontada abrupta na


barriga. Agressiva e muito dolorida.

Drácula seguia no chão, empalado e sentindo dor, mas sem poder


morrer.
Gritei, caindo. Todos olharam para mim. Os di Santorum se chocaram
e correram até mim. Tristan foi o primeiro a chegar; pegou-me no colo,
assustado.

– Clara? Amor?

Eu gemia e chorava, as mãos sobre a barriga.

– Ai, meu Deus...

– O que está havendo?! – Eros se apavorou.


Eu arfava entrecortadamente. Meu útero se contorcia numa dor
excruciante. Eu queria morrer por ali mesmo só para dar um fim àquilo.

– Tem... Alguma coisa... Acontecendo com o bebê...

Tristan se assustou de verdade. Correu, levando-me até Katerina. Os


di Santorum nos cercavam, apavorados.
– O que está acontecendo com ela?! – Athos questionou Katerina. –
Você sabe? Pelo amor de Deus, diga que sabe.

Azlam se encolhia diante dos meus gritos, voz estrangulada.

– Faça alguma coisa, bruxa. Ela está sofrendo!


Tristan implorou:

– Ajude-nos, por favor. Faça a dor parar.

De súbito, ouvimos uma gargalhada alucinada e cruel. Olhamos para


Drácula. Ele estava caído há alguns metros, o finco de madeira entranhado no
peito. Sangue escorria de sua boca e narinas. Como não podia morrer, apenas
seguia ali, sofrendo uma dor agonizante.
– Vocês... me... subestimaram... – ria.

Os olhos de Tristan ficaram vermelhos em fúria. Vociferou:

– O-que-você-fez-com-a-minha-mulher?!
Drácula apenas riu mais.

– Caralho. Vou matá-lo. – Tristan passou-me para o colo de Azlam.

O garoto foi até o pai. Pegou seu colarinho e gritou, descontrolado:

– O que você fez com a minha mulher, desgraçado?!

Para o nosso espanto, Drácula parecia se deliciar com a situação.


Segurou a ponta da estaca:

– Eu fiz isso. – E simplesmente empurrou a madeira mais fundo.


Quase pude ouvir sua carne sendo dilacerada.

Eu senti outro golpe de dor e gritei.

– Calma, ragazza. – Azlam me abraçou, olhos molhados em angústia.


– Já vai passar, eu prometo. – Olhou para Tristan, horrorizado. – É como se
ela sentisse tudo o que Drácula sente.
Katerina ofegou, compreendendo.

– Oh, meu Deus. Ele se ligou ao feto.

– Como assim?!

Enquanto isso, Drácula se afogava no próprio sangue. Balbuciou


entrecortadamente, sorrisinho bizarro.

– Tudo que eu sentir, seu bebê sentirá... – falava e cuspia sangue. –


Torture-me e torturará ao seu próprio filho.

Tristan arregalou as pálpebras, tomado por horror.


– Não.

Com um golpe, retirou a madeira do coração de Drácula. O Conde


arfou. Eu arfei também, como se a adaga estivesse sendo retirada de um dos
meus órgãos. Dor insuportável.

Tristan jogou a madeira longe. Levantou-se e correu para mim.


“Deixe-me segurá-la”, estendeu os braços. Azlam me entregou para ele,
destruído. “Sinto muito, irmão.”
Athos praguejou. “Maldito seja. Uma jogada de mestre.”

Eros apoiava uma mão na nuca. Observava a minha dor, olhos


molhados por lágrimas de revolta. “Esse vampiro miserável...”

Os di Santorum jamais fariam algo para me machucar, o que


significava que... Drácula não poderia ser machucado. Um xeque-mate
genial.
Drácula mantinha uma mão sobre o peito. Tentava estancar o sangue.

– Eu avisei... Vocês são apenas... Crianças... Perto de mim.

– Ajude-a. – Tristan implorou para Katerina.


Ela estendeu uma mão na direção de Drácula e fechou os olhos.
Emanando ódio, ordenou algumas palavras antigas. Então, a ferida de
Drácula simplesmente se fechou. Ele respirou, aliviado. Concomitantemente,
a dor em meu útero também cessou. Eu voltei a respirar – suada e exaurida.
“Acabou...” murmurei.

Tristan me abraçava, olhos marejados.

– Sinto muito por isso. Me desculpe.


– A culpa não foi sua.

– Foi. Se eu soubesse... – negou com a cabeça, se martirizando.

– Pare. A culpa não foi sua – reiterei.


Naquele momento, algo nos interrompeu. Catalyna colocou a mão
sobre o peito e abaixou a cabeça. Emitiu um grunhido bizarro. Quando
ergueu o rosto novamente, seus olhos rolavam nas órbitas – completamente
brancos. Outra possessão.

Todos nos assustamos.


– Quem é desta vez? – Tristan inquiriu para Katerina.

– Não sei. – A bruxa ficou tensa. – Não fui eu quem convocou. Não
sei quem é.

Catalyna sorriu de soslaio arrogantemente.


– Olá, fugitivos. Acharam mesmo que eu não os encontraria?

Katerina e Drácula arregalaram os olhos. Katerina caiu de joelhos


imediatamente, cabeça abaixada. “Vossa Eminência.”

Drácula segurou a ferida e, com dificuldade, também se ajoelhou.


“Seja bem-vinda.”
Catalyna arqueou uma sobrancelha para Drácula, fria.

– Olá, meu velho amigo.

Tristan ofegou.
– Morte?!

O quê? Quase desmaiei por ali mesmo. A Morte em pessoa estava


entre nós?!

Ela olhou para o garoto. Sua expressão arrogante se suavizou.


– Olá, meu estimado. É uma lástima que tenhamos nos conhecido
assim. Queria ter chegado antes ao Palácio para dar-lhe às boas-vindas.
Infelizmente, estive ocupada coletando algumas almas.

Todos engolimos em seco. Bizarro.

– Por que...? – Tristan clareou a garanta. Tentou se manter firme. –


Por que me levou para a sua casa?

Algum sentimento reluziu nos olhos da Morte. Uma saudade, uma


tristeza profunda... Só quem já experimentou um coração partido conhecia a
sensação.

– Porque você é tão parecido com ele. – Provavelmente, a Morte se


referia ao seu antigo General, Maddox. Era nítido que ainda estava
apaixonada por ele. Então trincou os dentes, repentinamente furiosa. Olhou
para Drácula: – Uma pena que seja o filho deste traidor.
Drácula se apavorou. Tropeçou nas palavras:

– Vossa Eminência, tente me entender. Eu tive que fazer isso para


concluir o plano de...

– Cale-se! Você me traiu! Ninguém nunca devia saber sobre a


passagem no Monte Sant’Angelo! É um lugar sagrado que não devia ser
invadido. O protetor do lugar está furioso! E adivinhe quem terá que pagar o
preço?
– Me perd...

– Eu! – vociferou. – Eu terei que pagar! – passou a mão nos cabelos,


tentando se recompor. – Tem 200 vampiros mortos andando sobre o mundo
dos vivos. Almas de bruxas mortas estão soltas por aí, possuindo corpos. Eu
saio por algumas semanas e, quando volto, descubro que o mundo dos mortos
foi invadido e roubado. Tudo ficou fora de controle! E você ainda roubou o
meu novo General! – apontou para Tristan.
Drácula estava acuado; nem conseguia olhar nos olhos de Catalyna.

– Me desculpe, Vossa Eminência. Eu fiz o que foi necessário para


continuar sobrevivendo. O bebê de quem planejei tomar o corpo queria a
presença do pai, mas ele estava morto. Não tive alternativas. Precisei mandar
buscá-lo.
Ela massageou as têmporas. Parecia exaurida.

– Querem saber? Eu tenho vários outros problemas para lidar. Meu


mundo está em colapso e estou sendo constantemente observada por...
Criaturas superiores. Não posso sair da linha. Então, parem com este maldito
teatro e voltem para o maldito mundo dos mortos. Antes que as criaturas lá de
cima saibam o que está acontecendo aqui.

– Nós voltaremos, Senhora de Todos os Mortos. – Katerina baixou os


olhos, subserviente.
– Ah, não, bruxa, não estava falando de você. Você não voltará.

– O quê?!

– Preciso que permaneça aqui até encontrar uma solução para o feitiço
do Conde. Encontre uma forma de desvincular Drácula do bebê no ventre da
humana. Depois que o fizer, envie o Conde direto para mim. Os demais
vampiros devem voltar ao mundo dos mortos assim que o feitiço terminar.
Não deixem rastros no mundo dos vivos. As bruxas devem abandonar os
corpos que tomaram imediatamente. Possessão foi expressamente proibida
pelas Criaturas Superiores.
– Vossa Eminência, Tristan precisa ficar. O feto anseia pelo pai e se
recusará a nascer se forem separados. Athos também não pode ir embora.
Nosso casamento é o que me mantém aqui.
– Que fiquem, então.

– E o que faremos com Drácula até lá?

Ela lançou um olhar venenoso para o Conde.

– Isso não me importa. Prendam esse verme até que ele esteja morto e
venha para o mundo dos mortos. Lá, eu acertarei minhas contas com ele.

Katerina franziu o cenho.

– Mas pode demorar décadas, e até séculos, para que eu consiga


desfazer a ligação.

– Então permaneça neste mundo até que consiga. Não posso me


vingar de Drácula se ele estiver ligado a um bebê inocente. As Criaturas lá de
cima não irão aprovar, e eu estou sendo vigiada o tempo todo. Não posso
cometer mais nenhuma ilegalidade. Não importa quantos séculos demore,
bruxa, desfaça a ligação. Depois, envie Drácula direto para mim. Você tem a
minha permissão para ficar no mundo dos vivos até o fazer.

Katerina trocou um olhar íntimo com Athos. Ela ficaria. Eles


estariam juntos.

– Morte... – Drácula balbuciava. – O que pretende fazer comigo?

Ela cuspiu:

– Você verá quando chegar ao mundo dos mortos, traidor. Aguarde a


sua sentença.
Drácula engoliu em seco. Então, a Morte andou até Tristan e
simplesmente... Tocou a sua bochecha. Fez-lhe um carinho com o polegar,
voz doce.

– Adeus, meu querido. Nos vemos em alguns séculos. Você seria um


ótimo General.

Tristan piscou, horrorizado. Claramente sua expressão queria dizer:


espero que demore.
Então, Catalyna expirou. Fechou os olhos e seus joelhos fraquejaram.
A senhora começou a cair – mas Tristan a segurou antes que atingisse o chão.
A morte havia ido embora. Catalyna abriu as pálpebras. Olhou ao redor,
confusa.

– O que aconteceu?

Tristan a apoiou, colocando-a de pé. Murmurou.


– É melhor que não saiba, por enquanto. Agora está tudo bem.

Naquele ínterim, Drácula tentou se levantar. Katerina estendeu uma


mão e grunhiu:

– Não tão cedo, Conde.


Drácula caiu de joelhos novamente. Dentes trincados em ódio, preso
sob algum feitiço.

Athos tomou à frente da situação.

– Tristan, leve Clara para um hospital. Eros, Azlam, venham comigo.


Vamos trancar o Conde nas masmorras do Castelo de Bram.
– Ótima ideia. – Eros sorriu, maligno. – Conheço um calabouço
perfeito para hospedá-lo. – E trocou um olhar astuto com Azlam.
Possivelmente, se referia ao mesmo calabouço em que Drácula os havia
trancafiado. Doce vingança.

E Drácula ficaria preso lá por um bom, bom tempo.


O tempo passou.
Drácula foi transferido para a Itália. Seguia bem preso nos mais
profundos calabouços do palacete. Muito, muito abaixo da terra.

Katerina se mudou para o palacete. Contatou diversas bruxas da


atualidade para que, juntas, pudessem elaborar o feitiço de desligamento.
Todas emitiram suas opiniões sobre o caso: o desligamento levaria décadas.
Era um feitiços super complicado.

Nunca soubemos como Drácula conseguiu ter acesso a ele.


Provavelmente, já o elaborava há séculos – usando gerações e gerações de
bruxas. Não poderíamos torturá-lo para que contasse, nem ameaçar matá-lo
de fome. Afinal, o bebê sentiria seu sofrimento.
Então, trancamos Drácula num calabouço. Sozinho e com o orgulho
ferido? Sim. Mas muito bem alimentado com sangue e sem nenhum
ferimento. Ele não tinha que estar feliz – só tinha que estar à salvo. Nutrido e
vivo.

Seria uma década solitária para o Conde. Que pena.


Por outro lado, aquela situação daria mais tempo para Katerina no
mundo dos vivos. Ela e Athos... Bem, estavam se entendendo. Eros me
contou que Katerina dormia no quarto de Athos todas as noites. Saía de lá no
fim da madrugada, pé ante pé.

Embora não contassem a ninguém, realmente consumavam aquele


casamento. Athos não conseguia esconder o sorriso.

Azlam e Olívia estavam saindo. Apenas se conheciam, e não


assumiram nada oficial. Porém, os dois não se desgrudavam um do outro há
semanas.
Já Eros... Bem, seguia sendo Eros. Mantinha relações com todas as
mulheres da Itália (e estava muito bem com isso, obrigado).

Tristan e eu viramos namorados oficiais, e não nos escondíamos mais


de ninguém. Minha barriga ficou evidente. Todos ficaram sabendo da
gravidez.

Naquele interstício, Camille saiu da Università e voltou para Israel.


Não tive notícias da minha amiga desde então. Aquilo me partiu o coração.
Todos voltamos à Università. Nos almoços, nos sentávamos todos
juntos no refeitório. Agora Olívia se sentava conosco, e parecíamos uma
grande família. Vez ou outra, Katerina aparecia para almoçar com a gente.
Ela não gostava de ficar sozinha no Palacete. Estava tentando se adaptar à
vida no mundo moderno. Suas maiores dificuldades eram calças jeans,
buzinas de carros e sapatos. Evidentemente, também sentia falta de suas
irmãs.

Katerina completou um mês no mundo dos vivos. Naquela


madrugada, a despedida dos vampiros mortos foi bem triste. Eles ficaram no
cemitério até o sol nascer – e muitos se emocionaram e choraram vendo o sol.
Alguns não o viam há séculos.

Mas, quando a hora chegou, eles desceram pelo túnel e foram embora
com gratidão.

Antes que partissem, Katerina os contou a verdade. Existia uma


aldeia repleta de lindas bruxas numa floresta na Transilvânia. Ela escreveu o
endereço exato num bilhete. Os vampiros ficaram eufóricos. Não estariam
mais solitários no mundo dos mortos... Poderiam ter esposas, amigas e
amores...

As bruxas não podiam sair do acampamento. Mas nada impediria os


vampiros de entrar.
Katerina tomou aquela decisão por um motivo. Suas irmãs
permaneciam sozinhas há um milênio. Era chegada a hora de se abrirem para
o mundo. Fazer amigos e viver histórias de amor. Com os vampiros, a
eternidade naquele mundo assombrado seria mais palatável.

Tristan e eu nos mudamos para a casa nova. Resolvemos morar


juntos.

Pegamos a chave da casa. Era o dia da mudança oficial. Os móveis


estavam prontos, e nossas malas, no carro. Antes de passarmos pelo batente,
ele me pegou no colo. “Ei!”, eu ri, surpreendida. Estávamos sozinhos. Era um
final de tarde, e o sol entrava pelas grandes janelas.
Tristan colocou-me no chão do átrio. E então... Se ajoelhou.

– O que está fazendo?! – me espantei.

Ele retirou uma caixinha de veludo do bolso.

– O que eu quis fazer desde a primeira vez em que te vi. – E abriu a


caixinha. Lá dentro, havia um anel de diamante vermelho-rubro.

– Isto é o que estou pensando? – meus olhos marejaram. Aquele


homem era o meu sonho de tantos anos... Aquele homem profundo, lindo e
sombrio, ajoelhado aos meus pés, querendo ser meu...
O garoto se mantinha muito sério.

– Amore mio. Minha menina. Minha vida. A única em meu coração e


pensamentos, aquela por quem esperei por tantos anos... Case-se comigo,
razão da minha existência. Cada batida do meu coração tem o seu nome. Eu
respiro por você. Por favor, me dê a honra de ser minha esposa.

Chorando, eu me ajoelhei. Me joguei em seus braços:


– Sim! Pelo amor de Deus, sim!

Ele riu, aliviado. Me abraçou de volta com ferocidade. Naquele


momento, eu senti algo peculiar na região da barriga.

– Tristan – me desvencilhei, assustada. Pousei a mão sobre o ventre. –


Eu acabei de sentir uma espécie de... Cócegas.
– Como assim?

– Uma sensação esquisita bem aqui, na barriga.

– Ah, meu Deus! Nosso bebê se mexeu!


– O quê?! – me choquei. Então essa era a sensação?
– Ele está crescendo, Clara. Finalmente está nos dando sinais!

– Essa é a primeira vez em que ele se mexe...

Tristan passou a mão pelos cabelos, emocionado.

– Acho que ele fez isso para nos dizer alguma coisa. Está nos dando a
sua aprovação.

Nós nos abraçamos como tolos maravilhados.

Eu queria que minha mãe e meu irmão estivessem aqui, presenciando


aquele momento. No entanto, sabia que, de onde quer que estivessem,
estariam olhando por mim.

Quando eles se foram, eu era apenas uma garota abandonada. Sem


futuro e de coração partido. Mas hoje aqui estava eu: superando meus
traumas, reerguida e protegida por uma nova família. Lucas e minha mãe
ficariam orgulhosos de mim.

Muito bem, Clarinha. Você conseguiu.


Tudo bem, Clara, vai dar tudo certo. Não surte.
– Ai, meu Deus! Estou tendo um ataque de pânico. Não consigo
respirar.

Olívia segurou meus ombros, séria.

– Pare com esse chilique. Você consegue. Vai entrar lá e se casar com
aquele vampiro, ou eu resolverei sua crise com um tapa na cara.
Nossa, que violência.

– Tudo bem. Já me sinto melhor. – Não queria arriscar...

Estávamos na sala anexa da igreja. Hoje era o meu casamento com


Tristan. Todos os convidados já haviam chegado. Provavelmente, Tristan já
me esperava no altar. Eu ainda tinha 15 minutos de preparação.
Olhei-me no espelho da sala, coração acelerado. Usava um vestido de
noiva de cetim, branco como a neve. Tomara que caia, véu rendado até os
pés. Meu buquê era feito de lírios brancos. Katerina e Olívia eram as minhas
madrinhas. Athos, Eros e Azlam, os padrinhos de Tristan.

Katerina estava acalmando os convidados do lado de fora. Olívia


permanecia na sala de espera comigo. Em breve, eu iria entrar. Meu avô me
levaria até o altar, e minha avó já estava entre os convidados.

Eu estava muito grávida. No final da gestação, Matteo se mexia


constantemente. Hoje, em especial. Parecia animado, sabendo que era uma
data especial.

Eu sentia uma mistura de pânico com alegria. Pânico, porque odiava


ser o centro das atenções – e hoje haveria uma centena de vampiros e
humanos focados em mim. Afinal, eu era a esposa do subcomandante de toda
a espécie. Alegria porque... Bem, era Tristan me esperando naquele altar.

As lideranças das castas foram organizadas. Athos ficou com o


comando geral – representando os mortos – e Tristan ficou com o
subcomando – representando os vivos. Seria um governo mais democrático
para as duas espécies. Ademais, Tristan colocaria rédeas nos vampiros vivos,
o que era ótimo. Precisávamos de ordem e paz.
Fiz questão de convidar Sienna para o casamento. Fazia meses que
Tristan se recusava a vê-la. Não era para menos. Sienna enganou o filho por
décadas.

Não obstante, hoje era um dia especial. Feliz, único e propício a


perdoar. Sienna sofria muito com a separação, e me procurava
constantemente. Então, decidi intervir e fazer Tristan perdoá-la. Foram meses
a fio ruminando o ressentimento. Chega.
Olívia transpassou o braço no meu. Nos fitamos no espelho.

– Caramba, você está muito linda.

– Pois é – suspirei – muito linda e muito grávida. Pareço uma bola de


boliche... Terei que andar rolando até aquele altar.

– Não é? – ela riu. – Parece que este bebê vai explodir de dentro de
você a qualquer momento.

– Ei! Eu sou a noiva hoje. Minta para mim.

Ela me lascou um beijo na bochecha.

– Relaxe. É a bola de boliche mais linda da Itália.

Batidas na porta nos interromperam.


– Ah, meu Deus – me desesperei. – Ainda não está na hora.

– Calma, garota. Deve ser só a Katerina. – Olívia foi atender à porta.

Ao abrir, nos deparamos com uma surpresa. No batente, estava


ninguém menos que... Camille. Ao ver-me, abriu um sorriso encantado.
– Puta merda. Você é a noiva mais linda que eu já vi.

– Camille?! – me emocionei.

Ela entrou, tímida.


– Oi. Já faz muitos meses... – torceu os dedos, honesta e tensa. – Sinto
a sua falta, de verdade. Você também sente a minha?

– Ah, meu Deus. Claro que sim. – E abri os braços. Ela correu até
mim e nos abraçamos. – Senti tanta saudade, Cami. – Confessei.

– Eu também. Me desculpa por tudo.


– Não, me desculpa você.

– Nestes últimos meses, eu tive tempo para refletir. Percebi como


perdi a lucidez. Tristan sempre deixou claro para mim que já havia conhecido
o amor da sua vida. Eu sabia que ele sempre amaria outra mulher, mas me
perdi nas minhas próprias ilusões. Eu me envolvi numa história que não era
minha. Nossa amizade foi tão verdadeira... Eu não quero perder isso.
Podemos recomeçar?

– Você me perdoou? – me comovi.

Ela se desvencilhou. Pegou minhas mãos, sincera.

– Não há nada a ser perdoado. Aquele homem no altar sempre foi seu.
Qualquer outra mulher seria a errada. O tempo curou a ferida no meu
coração, e hoje... Bem, é um dos dias mais especiais da sua vida. Eu não
poderia perder.
Havia enviado o convite para ela meses atrás. Só nunca imaginei que
Camille viria.

Enganchei-a num abraço.

– Eu nunca quis te ferir. Você é tão valiosa para mim.

– Eu sei. Nem eu. Nossa amizade é mais preciosa que qualquer


mágoa.

– Que bom que você está aqui. – Fechei os olhos, aliviada. – Agora
me sinto completa. – Uma montanha saiu dos meus ombros. Todos os que eu
amava estavam aqui. E quem não estava... Bem, observava-me de algum
lugar. Como Lucas e minha mãe.

A hora chegou. Camille foi para a igreja, e Olívia foi para o altar, em
sua posição de madrinha.
Eu entrei. Meu avô me levou até o altar. Tristan me esperava lá no
alto, terno preto, mãos unidas à frente. Sorrisinho de soslaio, olhos negros de
mistério.

E a cada passo que eu dava até ele, sabia que estava tomando a
melhor decisão da minha vida.
****

Após o casamento, fomos para a cerimônia de recepção.

Aconteceu no jardim do palacete. Tudo foi enfeitado com pisca-piscas


dourados, flores brancas e toalhas de cetim. Muito champanhe, música ao
vivo, e uma pista de dança.
Meus avós se mudaram para a Itália há uma semana. Estavam
encantados com o lugar. Até então, acreditavam que eu estava grávida há
nove meses. Não contamos sobre, bem... O vampirismo. Mas contaríamos
quando chegasse a hora certa.

Na pista, Tristan e eu dançávamos uma música lenta. Eu apoiava


minha cabeça em seu peitoral, ouvindo seu lindo coração bater. Estava em
paz.

Olhei ao redor. Meus avós estavam assaltando o buffet (mais felizes


que nunca). Camille flertava com um vampiro charmoso. Azlam e Olívia
conversavam num canto, rindo e bebendo champanhe. Athos e Katerina
dançavam lentamente na pista, íntimos. E há alguns metros de nós, Eros
jogava seu papinho em alguma estudante inocente. Seu habitat natural.
Geralmente, vampiros eram seres monogâmicos, que definhavam sem
uma parceira de vida. Menos Eros, é claro. Eros era uma aberração.

Eu dançava em silêncio, cabeça colada ao peito de Tristan. Meus


passos eram lentos. Eu estava grávida demais para me esforçar.

– Está tão calada... – ele observou. – O que está pensando?

– Na nossa vida. – Suspirei. – Eu nunca pensei que seria mãe tão


jovem. – Nunca pensei que seria mãe. – Eu estaria apavorada se você não
estivesse ao meu lado, sabia?

Matteo nasceria ao final deste mês. Eu planejava ficar, pelo menos,


uns quatro meses com ele em casa. Amamentando e aprendendo a ser mãe.
Depois contrataríamos uma babá.

Meu curso de Mestrado havia terminado. Foi concluído com sucesso.


Agora, eu me inscreveria para o doutorado da Università. Começaria dentro
de seis meses, no semestre que vem. Ao fim do doutorado, eu me
candidataria para uma vaga de professora na própria Università. Curso de
bacharelado em História, professora substituta. O meu currículo e notas
impecáveis advogariam ao meu favor. Estaria no páreo para concorrer à vaga.
– Já discutimos isso por várias vezes... – Tristan constatou. – No que
mais está pensando?

Me aconcheguei mais no seu abraço.

– Penso na minha sorte. Todos os meus amigos estão felizes. Meus


avós estão morando comigo. Temos uma casa linda e estou no caminho para
me tornar uma professora universitária. O homem dos meus sonhos está aqui,
ao meu lado. E irá compartilhar essa vida fenomenal comigo. – Olhei para
ele, testa franzida. – É possível alguém ser tão feliz assim?
Ele pousou uma mão em minha bochecha. Acariciou-a com o polegar,
fitando-me com uma admiração feroz. Como sempre fazia.

– Eu me pergunto a mesma coisa todos os dias. Quando você acorda


ao meu lado... Deus, parece que eu tenho o mundo nas mãos.

Eu abri um sorriso. Mas, subitamente, um pensamento veio à mente.


O sorriso morreu.
– Tristan... Você irá viver por muitos séculos, e eu, não. O que você
vai fazer quando eu me for?

– Eu vou continuar neste mundo até o nosso filho precisar de mim. E,


quando ele construir a própria vida e se tornar independente... Eu me vou
também. – Não titubeou. – Quero ser enterrado ao seu lado.

– Fique vivo enquanto ele precisar de você. Me promete?


– Eu prometo. Mas não vamos ter essas conversas horríveis hoje. É o
nosso casamento.

– Eu sei. Só estou muito emotiva. O Matteo me faz chorar, comer e


fazer xixi descontroladamente.

Nós rimos.
– Acredite, eu sei. Lembra-se daquela vez em que precisei encontrar
acarajé para você, em plena madrugada?

Minha gravidez me fazia desejar todos os tipos de comida do Brasil.


Pobre Tristan... Teve que se virar nos últimos meses. Estalei a língua:

– No fim, você conseguiu. Sempre consegue. Como faz isso? –


maldito vampiro esperto.
– Ser um líder tem suas vantagens. – Deu de ombros. – Posso colocar
todos os meus soldados à procura de seus desejos insanos.

Abri a boca para responder – e foi quando aconteceu.


Repentinamente, senti algo estranho e molhado.
– Tristan. – Parei de dançar, voz estrangulada.

– O que foi? – ele também estagnou, sério.

– Eu acho que acabei de me humilhar um público.

– Do que do que você está falando, Clara?

– Eu fiz... Xixi nas calças.


Ele arregalou os olhos, segurando uma risada estratosférica.

– Como é que é?

– Shhh – ordenei entredentes. – Fale alguma coisa e eu te mato.


Ele olhou para baixo. Meu vestido estava completamente molhado na
região do ventre e das pernas. Sua expressão mudou.

– Clara... – ofegou. – Eu acho que a sua bolsa estourou.

– O quê?! – berrei.
Todos olharam para nós. Tristan passou a mão pelos cabelos,
encantado e apavorado.

– Porra, está acontecendo. – Pegou-me no colo, erguendo-me do chão.


– Parem o casamento! – gritou. – A Clara entrou em trabalho de parto!

A música cessou na mesma hora. Convidados se levantaram,


perplexos. Alguns assobiaram e aplaudiram, outros começaram a correr para
todos os lados. Todos apavorados e maravilhados ao mesmo tempo.
– Ai, meu Deus – engoli em seco no colo de Tristan. – Não, eu não
estou preparada. – Devia acontecer só daqui há um mês!

Ele me apertou, severo.

– Você está. Eu ficarei ao seu lado o tempo todo.


– Me leve para o hospital!

Foi uma loucura.

Entramos no carro de Tristan. Athos dirigiu, e Azlam sentou-se no


banco do carona. Eros, Tristan e eu fomos no banco de trás. Camille, Olívia e
meus avós pegaram um táxi.

Eu segurava a mão de Tristan, ofegando. Azlam me instruía,


repetindo as formas de respirar. Provavelmente, mais apavorado que eu.

Comecei a sentir as contrações.


– Ai, meu Deus! Tem outra vindo! – e me inclinei para a frente,
dentes trincados.

– Eu estou com você! – Tristan me apoiava.

– Inspira e expira – Azlam repetia, aflito – inspira e exp...


Outra contração. Gritei:

– Cale a boca, Azlam! Você não sabe o que estou passando aqui!

Coitado. Mais tarde, pediria desculpas. Mas naquele momento


precisava canalizar minha raiva em alguém.

Eu gritava e me contorcia pelas contrações. Ao meu lado, Eros estava


pálido. Quase se desfaz em pedaços.

– Eu não vou aguentar isso! Parece um filme de terror! Parem o carro,


eu quero descer!

A contração acabou. Eu me acalmei.


– Ok, essa acabou. Já estou bem.

– Graças a Deus. – Eros se jogou no banco.


Tristan fez carinho em meu cabelo.

– Vai acabar em breve, linda. Aguente só mais um pouco.

– Não vai. – Azlam se desesperou. Ele havia ido à várias aulas de


parto comigo (estranhamente interessado). – Eu e Clara já combinamos que
ela não tomará a epidural. Isso vai rolar por horas.

Outra contração. Eu gritei.

– Cala a boca, Azlam! – e me inclinei para a frente, apertando a mão


de Tristan. – Eu quero a anestesia agora!
Tristan se desesperou.

– Dirija mais rápido, Athos!

– Estou tentando! – Athos gritou de volta. Estavam todos fora de


controle.
– Meu Deus... – olhei para o trânsito, percebendo a verdade. – Não
chegaremos ao hospital. O bebê vai nascer aqui mesmo.

– O quê?! – Eros berrou. Foi a gota d’água para o vampiro. Ele


simplesmente desmaiou.

Eu falava entrecortadamente.
– Alguém... Tire... Uma foto disto...

Tristan gargalhou.

– Deixa comigo. Não permitirei que ele se esqueça disso pela


eternidade.
As contrações estavam rápidas demais. O parto vampírico era
diferente, e não muito demorado. Uma vez estourada a bolsa, o bebê nascia
rapidamente.

Athos dirigiu como um louco e chegamos ao hospital. Meu obstetra –


exclusivo para noivas de vampiros – já estava à postos. Tomei a anestesia e
as contrações não doeram mais. Apenas Tristan ficou na sala comigo. Meus
avós, os di Santorum e minhas amigas esperavam lá fora.
Não demorou muito. Tive que realizar alguns empurrões e logo
Matteo veio ao mundo. Ostentava os mesmos cabelos negros de Tristan, mas
tinha os olhos claros como os meus. Foram momentos loucos, apavorantes e
emocionantes. Tudo ao mesmo tempo.

Eu estava deitada na cama – suada e exaurida. As enfermeiras


limparam Matteo e o entregaram para Tristan. Ele o trouxe até mim. E
enquanto se aproximava, eu observei a cena de pai e filho juntos pela
primeira vez.

Tristan admirava o bebê com um amor selvagem. E eu sabia que,


enquanto o garoto vivesse, meu filho estaria protegido. Tristan seria o melhor
pai de todos. O garoto nunca teve muito amor na vida – mas era um
especialista em amar. E eu sabia que ele amaria Matteo com a mesma
dedicação feroz com a qual me amava.

– Conheça a sua mãe, pequeno. – Tristan sussurrou para o bebê.

Estendi os braços. Tristan colocou Matteo em meu colo. Olhei para


aquela criatura minúscula e indefesa e, naquele segundo, todas as minhas
inseguranças caíram por terra. Eu era uma mãe. Eu poderia fazer aquilo. Por
essa criaturinha pequena e magnífica, eu faria.

Tristan sentou-se na cama ao nosso lado. Segurou a mãozinha do


bebê.
Me fitou, emocionado.

– Você acaba de me dar o maior presente da minha existência. Sabia


disso?
Eu fitava Matteo, maravilhada.

– Ele é lindo.

– Vocês dois são. – O garoto negou com a cabeça, incrédulo. – Desde


que você chegou, tudo mudou para mim. Obrigado por esta vida
extraordinária que você me proporcionou.
Encarei o meu homem, comovida.

– Para sempre nós três? – eu, ele e o nosso filho. O time perfeito.

Tristan pousou uma mão em meu queixo. Fitou-me com aqueles olhos
negros, tão profundos e tão meus.
– Para sempre ainda seria pouco. Eu quero muitas vidas com vocês.

Fim.
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(@autora_karinevidal).

DESVENDANDO GABRIEL

Uma cidadezinha repleta de segredos.


Um garoto traiçoeiro rendido. Um amor inesperado.
Anna é uma órfã. Ao completar 21 anos, um padrinho misterioso aparece em sua vida. Ele
a retira do orfanato e a leva para morar com ele.
Anna, então, se muda para Vila Sartori. Uma cidadezinha enigmática. Naquele lugar, a
garota decide construir uma nova vida. Mas Gabriel Valentini chega para atrapalhar seus
planos.
Gabriel é o diabo em forma de gente. Filho do padrinho de Anna e rei da faculdade Sartori.
Por lá, todos obedecem às suas ordens. Um líder nato e traiçoeiro.
Anna e Gabriel são ódio à primeira vista. O garoto transforma a vida de Anna na cidade
num inferno. Mas o destino prega uma peça no playboy. Uma reviravolta faz com que
Gabriel fique em dívida com a garota. Então, ele faz de tudo para pagar. Gabriel e sua
família escondem segredos sombrios, e Anna está decidida a descobrir o que são.
Criaturas místicas, lendas da Romênia e crianças roubadas. Uma paixão inesperada e
proibida.
Gabriel se apaixona por Anna, mas ela não o quer. O garoto é perigoso e ela sabe.
A cidade esconde segredos assustadores. Um lar de criaturas lendárias e malignas, que
vivem escondidas por séculos. Envolvida numa história insana, Anna fará uma escolha
difícil. Precisará se tornar um deles, ou...
Desvendar o segredo de Gabriel e morrer.
(@livro_desvendandogabriel).
Uma monarquia moderna. Um Conde playboy: rico e perverso. Um amor proibido.

Escondida dos olhos humanos, existia uma espécie secreta. Seres com dons seculares,
feiticeiros do mundo moderno.

Essa dinastia bruxa era comandada pelo Conde Herdeiro: Nero Monferrato. Um playboy
perverso, lindo e cruel.

Elisa é uma jovem garota bruxa do Brasil. Ela precisa ir até a universidade bruxa da Europa
para estudar. Na Academia Constantin, só entravam os bruxos mais ricos, lindos e
oligárquicos. Com muita economia, os pais de Elisa conseguem a enviar para tal escola
europeia.

Acontece que o Conde Herdeiro, Nero, também estuda lá. Ele é um veterano diabólico, que
comanda a universidade com punho de ferro. Um ditador lendário, e um libertino perverso.
Por obra do destino, Nero descobre que sua noiva prometida está na Academia. E ela é
ninguém menos que a própria Elisa.

Contra todas as probabilidades, O Conde Herdeiro fica perdidamente apaixonado pela


simples garota. Então, Nero deflagra uma batalha incessante para ganhar o seu coração.

Só há um problema: Elisa o odeia. Mas Nero não pretende desistir de conquista-la.

Uma universidade secreta, apenas para playboys podres de ricos. Bruxaria, fantasia,
intrigas e mistério.

Um Conde perdidamente apaixonado. Um amor proibido. Um submundo secreto de jovens


diabólicos.

Desvende o misterioso mundo dos bruxos modernos, e podres de ricos em O Conde


Apaixonado.

(@livro_ocondeapaixonado_1)
“Lara Valente viverá uma história de amor avassaladora e surpreendente. Ela se apaixonará
por um garoto – mas só existia um detalhe: ele já estava morto.
Lara também irá morrer. Mas sua história não termina por aqui. Pelo contrário: é aí que ela
começa.
A jovem carioca será enviada para um misterioso internato na Inglaterra. Mas o lugar
esconde um segredo. Vários acontecimentos irão leva-la a descobrir que, por trás da
fachada da Escola dos Sotrom, existe uma Escola muito mais perigosa (cheia de segredos,
pactos e mortes).
Nessa Escola repleta de ocultismo, Lara será assassinada. Mas sua história ainda não
terminou. Ela acordará em um mundo paralelo, um universo glamouroso onde vive a nata
dos melhores, escolhidos à dedo pela Morte.
A Escola dos Mortos abriga os que foram assassinados e enviados para lá. Uma sociedade
escondida em que existem apenas os melhores, coexistindo em segredo com a escola dos
vivos.
Adolescentes mimadas, carros luxuosos, segredos escandalosos, campeonatos, corridas e
caçadas.
Lara irá se apaixonar por um homem perigoso. Luka Ivanovick: com seus olhos negros,
hostis e arrogantes – repletos de ocultismo e falta de respostas. Ele é o mais cobiçado e
perigoso do lugar (e, misteriosamente, fica obcecado por Lara). Através dele, a garota
descobrirá a cruel história por trás de sua morte.
Paixão, mistério e um jogo de sedução escuro e apimentado irão acontecer entre o mundo
real – e o misterioso mundo noturno da Escola. Até Lara descobrir que, dentro dos caixões
os mortos daquele lugar nunca dormem.
)@livro_escoladosmortos_1)
ELE NÃO VEIO DESTE MUNDO
Um reality show. Três garotos famosos, playboys e perversos. Uma garota brasileira
tentando sobreviver.
Nina leva uma vidinha mediana no Rio de Janeiro.
Um dia, um golpe de sorte do destino muda toda a sua vida.
Ela é escolhida para participar de um reality show na Espanha. Para isso, terá que se mudar
para a mansão de três garotos. Estes são herdeiros milionários, playboys traiçoeiros e
famosos em toda a Europa.
Nina terá que sobreviver na casa dos herdeiros por três meses.
O mais velho é o pior. Kaio di Ferrari é sombrio e cruel, um libertino que odeia a Nina à
primeira vista. Ele não a quer em sua casa, e fará de tudo para destruí-la.
Acontece que o destino é imprevisível. Com o passar do tempo, Kaio acaba ficando louco
de amor por Nina. Mas a garota não quer o seu coração, e irá fugir o bad boy cruel com
todas as forças.
Mas Kaio não pretende desistir.
Acontece que a mansão dos di Ferrari é perigosa e esconde vários segredos. Os garotos não
são humanos (e nem vieram deste mundo).
Então, quem os di Ferrari são de verdade? O que eles querem neste mundo? Nina tentará
descobrir. E, o mais importante: tentará sair viva daquela mansão.
(@livro_elenaoveiodestemundo)

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