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FICHA TÉCNICA

Título original: Culpa Tuya

Autora: Mercedes Ron

Copyright © 2017, Penguin Random House Grupo Editorial, S.A.U.

Copyright © 2017, Mercedes Ron

Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2023

Tradução: Ana Mendes Lopes

Revisão: Inês Guerreiro/Editorial Presença

Imagem da capa: © Stefano Cavoretto/Alamy StockPhoto/Fotobanco.pt

Capa: Sofia Ramos/Editorial Presença

Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.

a
1. edição em papel, Lisboa, janeiro, 2023

Reservados todos os direitos

para a língua portuguesa (exceto Brasil) à

EDITORIAL PRESENÇA

Estrada das Palmeiras, 59

Queluz de Baixo

2730­
-132 Barcarena

info@presenca.pt

www.presenca.pt
DEDICATÓRIA

Para a minha irmã, Ro,

obrigada por seres a minha companheira de brincadeiras,

por me ouvires, por te rires comigo e de mim

e por estares sempre presente quando preciso de ti.


Prólogo

A chuva caía sobre nós, encharcando­-nos, congelando­-nos, mas não queria

saber, já nada me importava, sabia que tudo estava prestes a mudar, sabia que o

meu mundo estava quase a desabar.

— Já não há como voltar atrás, nem sequer consigo olhar para a tua cara...

Lágrimas de desolação caíam­-lhe pelo rosto. Como podia ter­


-lhe feito uma

coisa daquelas? As palavras cravaram­-se na minha alma como facadas que me

dilaceravam de dentro para fora.

— Nem sei o que dizer — admiti, tentando controlar o pânico que ameaçava

abater­
-se sobre mim. Ele não podia deixar­
-me... Não o faria, pois não?

Os olhos do Nick cravaram­


-se fixamente nos meus, com ódio, com desprezo,

com uma expressão que nunca pensei que me pudesse dirigir.

— Está tudo acabado entre nós — sussurrou com a voz desfeita mas firme.

E, com estas cinco palavras, o meu mundo mergulhou numa escuridão

profunda, tenebrosa e solitária... Uma prisão desenhada à minha medida, mas

eu merecia, desta vez merecia.


1

Noah

Até que enfim, fazia dezoito anos.

Ainda me lembrava de, há onze meses, contar os dias até ser finalmente maior

de idade, para poder tomar as minhas próprias decisões e sair dali a correr.

Como é evidente, as coisas não estavam como onze meses antes. Na verdade,

tudo mudara tanto que só de pensar nisso me parecia incrível. Não só acabara

por me habituar a viver aqui como já não conseguia imaginar­


-me a viver noutro

sítio que não fosse esta cidade. Conseguira encontrar um lugar na minha escola

e também na família que me calhara em sorte.

Todos os obstáculos que tive de superar — não apenas nestes onze meses, mas

desde que nasci — tornaram-me uma pessoa mais forte. Pelo menos assim

pensava. Tinham acontecido muitas coisas, e nem todas boas, mas acabei por

ficar com a melhor: o Nicholas. Quem diria que ia acabar por me apaixonar por

ele? Mas estava tão loucamente enlevada que me doía o coração. Tivemos de

aprender a conhecer­
-nos um ao outro, aprender a existir enquanto casal, e não

era fácil. Trabalhávamos nesse sentido todos os dias. Ambos tínhamos

personalidades que chocavam com frequência, e o Nick não era uma pessoa fácil

de levar, mas amava­


-o com paixão.

Por isso, estava mais triste do que feliz perante a minha iminente festa de

aniversário. O Nick não ia estar presente. Há duas semanas que não o via,

porque passara os últimos meses a viajar para São Francisco... faltava­-lhe um

ano para acabar o curso e estava a aproveitar cada uma das muitas portas que o

pai lhe abrira. Longe ficara o Nick que se metia em sarilhos; agora estava

diferente: amadurecera comigo, melhorara muito, embora eu continuasse a ter

medo de que, a qualquer instante, o seu antigo eu voltasse à luz do dia.

Olhei­
-me ao espelho. Apanhei o cabelo num puxo solto no alto da cabeça mas

elegante e perfeito para condizer com o vestido que a minha mãe e o Will me

tinham oferecido pelos anos. A minha mãe enlouquecera com a organização da

festa. Segundo ela, seria a sua última oportunidade de representar este papel, já
que dali a uma semana eu acabaria o secundário e pouco depois haveria de ir

para a universidade. Tinha enviado candidaturas para muitas universidades, mas

acabei por me decidir pela UCLA de Los Angeles. Já tinha passado por

demasiadas trocas e mudanças, não queria partir para uma nova cidade e, muito

menos, afastar­
-me do Nick. Ele também estudava nesta universidade e, embora

soubesse que o mais provável era que acabasse por se mudar para São Francisco

para trabalhar no escritório novo do pai, decidi que iria preocupar­


-me com isso

depois: ainda me restava algum tempo, e não queria ficar deprimida já.

Levantei­
-me do toucador e, antes de me vestir, os meus olhos fixaram­-se na

cicatriz do estômago. Um dos meus dedos acariciou a parte da pele que ficaria

marcada e rasgada para a vida inteira, e senti um calafrio. O estrondo do disparo

que acabou com a vida do meu pai ecoou na minha cabeça, e tive de respirar

fundo para não perder a compostura. Não contara a ninguém sobre os pesadelos

e o medo que sentia de cada vez que pensava no que aconteceu, nem sobre a

forma como o meu coração começava a bater irremediavelmente enlouquecido

sempre que um estrondo demasiado forte soava perto de mim. Não queria

admitir que o meu pai voltara a traumatizar­


-me, bastava­-me não ser capaz de

estar no escuro, a não ser que tivesse o Nick ao meu lado... Não planeava

admitir que já não conseguia dormir tranquilamente, nem que não era capaz de

pensar no meu pai morto ao meu lado ou que o sangue dele a salpicar­
-me o

rosto me transformara numa louca. Eram coisas que guardava só para mim: não

queria que ninguém soubesse que estava ainda mais traumatizada do que antes,

que a minha vida continuava refém dos medos que aquele homem provocava

em mim. A minha mãe, por outro lado, nunca vivera tão tranquila, porque o

medo que sempre tentara esconder tinha desaparecido; agora era

completamente feliz com o marido: era livre. A mim, pelo contrário, ainda me

faltava percorrer um longo caminho.

— Ainda não te vestiste? — perguntou­-me aquela voz que quase todos os

dias me fazia rir à gargalhada.

Voltei­
-me para a Jenna, e um sorriso espalhou­-se pelo meu ­rosto. A mi­
nha

melhor amiga estava espetacular, como sempre. ­Cortara o cabelo comprido

havia pouco tempo e agora usava­-o pelos ombros. Insis­tira para que fizesse o

mesmo, mas eu sabia que o Nick adorava o meu cabelo comprido, por isso

deixei­
-o como estava. Já me chegava quase à cintura, mas gostava dele assim.

— Já te disse que gosto do teu rabo arrebitado? — disse­-me, chegando­-se à

frente e dando­
-me uma palmada no traseiro.
— És mesmo doida — respondi, pegando no vestido e enfiando­-o pela cabeça.

A Jenna aproximou­
-se do cofre, mesmo por baixo da prate­leira dos sapatos. Não

sabia a combinação nem nada, porque não o usava, mas, desde que a Jenna o

descobrira, dera­
-lhe para guardar ali toda a espécie de coisas.

Soltei uma gargalhada quando tirou de lá uma garrafa de champanhe e dois

copos.

— Vamos brindar ao facto de seres maior de idade — propôs, enchendo dois

copos e estendendo um na minha direção. Sorri; sabia que, se a minha mãe me

visse a beber, me matava, mas, afinal era o meu aniversário e tinha de o celebrar,

não é verdade?

— À nossa — brindei.

Levantámos os copos e levámo­-los à boca. O champanhe estava ótimo, tinha

de estar — era uma garrafa de Cristal e custava mais de trezentos dólares —,

porque a Jenna fazia tudo à grande, estava acostumada a este tipo de luxos, e

nunca lhe faltara nada.

— Esse vestido é impressionante — declarou, enquanto me observava,

boquiaberta.

Sorri e olhei­
-me ao espelho. O vestido era lindo, branco, justo ao corpo e com

uma renda delicada que me chegava aos pulsos e deixava ver a pele clara por

entre os padrões geométricos que formava. Os sapatos também eram incríveis e

deixavam­
-me quase da mesma altura que a Jenna. Ela trazia um vestido curto

rodado, em tons grená.

— Está um monte de gente lá em baixo — anunciou, pousando o copo de

champanhe ao lado do meu. Eu fiz o oposto: peguei nele e bebi todo o líquido

borbulhante de um só trago.

— Não me digas! — exclamei, ficando imediatamente nervosa. Sentia que, de

repente, me faltava o ar. Aquele vestido era demasiado apertado, nem me

deixava respirar com liberdade.

A Jenna observou­
-me e sorriu­-me de forma cúmplice.

— Estás a rir­
-te de quê? — perguntei, invejando­-a por não ter de passar por

aquilo.

— De nada, sei como detestas este tipo de coisas, mas não te preo­cupes —

respondeu, aproximando­
-se da minha orelha —, estou aqui para me certificar

de que passamos um bom bocado — acrescentou a sorrir, enquanto me dava um

beijo no rosto.

Sorri­
-lhe também, agradecida. Talvez o meu namorado não conseguisse estar
presente no meu aniversário, mas pelo menos teria a minha melhor amiga ao

meu lado.

— Vamos descer? — propôs, compondo o vestido.

— Que remédio!

O jardim estava completamente transformado. A minha mãe tinha

enlouquecido; alugou uma tenda branca e mandou instalá­-la no jardim. Lá

dentro, além de uma quantidade enorme de lâmpadas, havia muitas mesas

redondas cor­
-de­
-rosa e cadeiras vistosas, por entre as quais circulavam

empregados de mesa com jaquetas e laços ao pescoço. Era um exagero de espaço;

havia um bar para servir bebidas, e, mesmo assim, nas mesas grandes,

encontravam­
-se inúmeras bandejas com todo o tipo de comida fornecida por

uma empresa de catering. Este aparato não me dizia nada, mas sabia que a minha

mãe sempre sonhara organizar­


-me uma festa de aniversário assim, sempre falara

dos meus dezoito anos e da ida para a universidade, e foram muitas as vezes em

que imaginámos as coisas que contrataríamos para uma festa se nos saísse a

lotaria e... afinal, parece que nos saiu mesmo! Mas aquilo era passar dos limites.

Quando apareci no jardim, todos me deram os parabéns em uníssono para me

surpreenderem, como se eu não soubesse que estavam ali todos à minha espera.

A minha mãe aproximou­


-se de mim e deu­
-me um abraço enorme.

— Felicidades, Noah! — disse, apertando­-me com força. Abracei­-a e vi,

atordoada, que atrás dela se formava uma fila de pessoas que queriam dar­
-me os

parabéns. Estavam ali todos os meus amigos de escola, muitos com os pais, de

quem a minha mãe se tornara amiga, e também mui­tos dos nossos vizinhos e

amigos do William. Fiquei tão nervosa que, inconscientemente, o meu olhar

começou a procurar o Nicholas


­ pelo jardim: era o único que conseguia

acalmar­
-me. Porém, não havia sinal dele... Eu já sabia, ele não podia vir, estava

noutra cidade, só o veria dali a uma semana, na cerimónia de formatura, mas

uma pequena parte de mim ainda esperava encontrá­-lo ali, no meio daquela

gente toda.

Estive mais de uma hora a cumprimentar os convidados, até que a Jenna se

aproximou de mim finalmente e me arrastou para o bar. Havia duas zonas, uma

para menores de vinte e um anos, outra para os pais.

— Tens o teu próprio cocktail — comunicou­-me, com um sorriso.

— A minha mãe perdeu completamente a cabeça — comentei, enquanto um

empregado de bar nos servia o meu cocktail. O rapaz observou­-me e sorriu,


tentando não soltar uma gargalhada. Espetacular, devia pensar que eu era uma

snobe.

Quando vi a bebida, quase me deu uma coisinha má. Era um copo de martíni

com um líquido rosa­


-choque e açúcar colorido no rebordo, com um morango

decorativo num dos lados. Atado ao pé do copo, havia um laçarote com um

dezoito feito com pequenas pérolas brancas.

— Falta­
-lhe um toque especial — disse a Jenna, pegando numa garrafa de

bolso pequena e deitando álcool nas nossas bebidas. A este ritmo, ia ter de me

controlar bem para não apanhar uma valente bebedeira antes da meia­-noite.

Um DJ bastante bom estava a pôr música de todo o tipo, e os meus amigos

dançavam como se estivessem possuídos. A festa estava a ser um sucesso.

A Jenna puxou­
-me para dançar com ela, e desatámos as duas aos saltos como

loucas. Estava a morrer de calor: o verão estava à porta, e já se notava.

O Lion observava­
-nos atentamente de uma das extremidades da pista. Estava

apoiado numa das colunas e fitava a forma como a Jenna mexia o traseiro no

frenesim da dança. Ri­


-me e, já cansada, deixei­-a a dançar com o resto do

pessoal.

— Estás aborrecido, Lion? — perguntei­-lhe, parando ao seu lado.

Sorriu­
-me, divertido, mas vi que alguma coisa o preocupava. Os olhos

continuavam fixos na Jenna.

— Feliz aniversário, já agora — disse­-me, já que ainda não tínhamos tido

oportunidade de estar sozinhos. Parecia­-me estranho vê­-lo assim sem o Nick. O

Lion não conhecia muita gente da nossa turma; o Lion e o Nick eram cinco anos

mais velhos do que eu e a Jenna, e a diferença de idade notava­-se. O pessoal da

minha turma era bastante mais imaturo do que eles, e era normal que não

quisessem estar connosco quando saíamos com os nossos amigos.

— Obrigada — respondi. — Sabes alguma coisa do Nick? — perguntei,

sentindo uma pontada no estômago. Ainda não me tinha ligado nem mandado

nenhuma mensagem.

— Ontem disse­
-me que estava enterrado em trabalho até ao pescoço, que lá

no escritório mal lhe dão tempo para comer, mas faltou­-lhe tempo para me

dizer que não desviasse os olhos de ti — acrescentou, a olhar para mim e a

sorrir.

— Os teus olhos não se desviam de uma pessoa em particular, isso é verdade

— afirmei, vendo que olhava novamente para a Jenna. Ela voltou­-se nesse

instante, e um sorriso de genuína felicidade apareceu no seu rosto. Estava


apaixonadíssima pelo Lion. Quando ficava a dormir em minha casa, passávamos

horas acordadas a falar da sorte que tínhamos por nos termos apaixonado por

dois rapazes que eram grandes amigos. Sabia de primeira mão que a Jenna não

amava mais ninguém além do Lion e ficava feliz por saber que o Lion estava

igualmente apanhado por ela. Desde que a conhecera que a adorava. Era mesmo

a minha melhor amiga. Gostava imenso dela porque estivera sempre ao meu

lado quando precisei dela e porque me fizera entender que devia ser uma amiga

de verdade; não era ciumenta, nem manipuladora ou rancorosa, como a Beth,

que vivia no Canadá, e, claro, era incapaz de me fazer mal, pelo menos

intencionalmente.

A Jenna aproximou­
-se de nós e deu um beijo sonoro ao Lion. Ele abraçou­
-a

com carinho, e afastei­


-me deles, sentindo­-me repentinamente triste. Tinha

tantas saudades do Nick, queria que ele estivesse aqui comigo, precisava tanto

dele. Voltei a olhar para o telemóvel, mas nada, não tinha qualquer chamada ou

mensagem dele. Estava a começar a irritar­


-me; enviar­
-me uma mensagem não

lhe ia roubar mais do que uns segundos. Que diabo lhe acontecera?

Aproximei­
-me do bar, onde um barman servia bebidas aos poucos maiores de

vinte e um anos que ainda restavam na festa. Era o mesmo que antes se

encarregara de servir o meu cocktail com a ajuda de outra empregada de bar.

Sentei­
-me ao balcão e observei­
-o, questionando­-me como poderia convencê­
-lo

a servir­
-me qualquer coisa.

— Seria muito pedir­


-te que me servisses qualquer coisa que não seja cor­
-de­
-

rosa e que tenha álcool? — perguntei, com a noção de que me ia mandar sabe

Deus para onde.

Para minha surpresa, sorriu e, depois de se assegurar de que não estava

ninguém a ver, pegou num copo de shot e encheu­


-o com um líquido branco.

— Tequila? — perguntei, a sorrir.

— Se te perguntarem, não fui eu — respondeu, olhando para o outro lado.

Ri­
-me e levei rapidamente o copo aos lábios. O trago queimou­-me a garganta,

mas soube­
-me pela vida.

Voltei­
-me e vi a Jenna arrastar o Lion para um canto escuro. Ver os meus

amigos abraçados e aos beijos estava a deixar­


-me deprimida.

«Maldito sejas, Nicholas Leister, por não me saíres da cabeça um único

segundo do dia.»

— Mais um? — ofereceu o barman; sabia que estava a abusar, mas a festa era

minha, merecia beber o que me apetecesse, não?


Estava prestes a beber quando, de repente, apareceu uma mão vinda do nada

que me deteve e me arrancou o copo.

— Acho que já bebeste o suficiente — anunciou uma voz.

Aquela voz.

Levantei os olhos, e ali estava ele: o Nick. Vinha de camisa e calças formais,

com o cabelo escuro ligeiramente despenteado e olhos cor de céu que brilhavam

com uma emoção contida, misteriosa e que, ao mesmo tempo, transbordavam

de felicidade.

— Oh, meu Deus! — exclamei, levando as mãos à boca. Um sorriso apareceu

no rosto dele, o meu sorriso. Um segundo depois, saltei para os braços dele. —

Vieste! — gritei com o rosto encostado ao seu, apertando­-o contra mim,

inspirando o cheiro dele e sentindo­-me inteira, de novo.

Abraçou­
-me com força; podia respirar, finalmente. Ele estava ali, oh, céus! Ele

estava ali comigo.

— Tive saudades tuas, sardas — confessou­-me ao ouvido, antes de me puxar a

cabeça para trás e de pousar os lábios sobre os meus.

Senti que todas as terminações nervosas despertavam. Havia catorze longos

dias que não sentia a sua boca na minha, as suas mãos no meu corpo.

Afastou­
-me e olhou­
-me com avidez.

— Estás linda — murmurou com a voz rouca, colocando as mãos na minha

cintura e puxando­
-me contra si.

— O que fazes aqui? — perguntei, tentando controlar a vontade que sentia

de continuar a beijá­
-lo. Sabia que não podíamos fazer nada, estávamos rodeados

de gente, e os nossos pais andavam algures por perto... Fiquei nervosa.

— Então, não ia perder o teu aniversário — respondeu, e os seus olhos

voltaram a pousar no meu corpo. Via a eletricidade surgir entre nós. Nunca

tínhamos estado tanto tempo separados, pelo menos desde que começáramos a

namorar. Habituara­
-me a estar com ele quase todos os dias.

— Como conseguiste vir? — perguntei contra o seu peito. Não queria parar

de o abraçar.

— É melhor não perguntares — respondeu, beijando­-me o cocuruto da

cabeça. Inspirei o seu perfume e fechei os olhos, extasiada.

— A festa está bonita — disse o Nick, a rir.

Afastei­
-me do peito dele e olhei­-o com má cara.

— A ideia não foi minha.

— Eu sei — assegurou com um grande sorriso.


Senti que o coração me inchava de felicidade. Tinha tido demasiadas saudades

daquele sorriso.

— Queres provar o cocktail que fizeram para mim? — perguntei, voltando­


-me

para o barman, que me ouviu e deitou mãos à obra.

— Tens o teu próprio cocktail, sardas? — perguntou ele, franzindo o sobrolho

quando o barman lhe serviu o líquido cor­


-de­
-rosa, morango incluído, e lho

entregou, segundos depois.

O Nick ficou a olhar para o copo com uma expressão que me deu vontade de

rir.

— Presumo que tenha de o provar...

O pobre rapaz bebeu o cocktail inteiro sem vacilar, apesar de saber a gomas

derretidas.

O meu sorriso de felicidade não me cabia no rosto, e ele deixou­-se contagiar

pela minha alegria. A sua mão alcançou­-me, e os lábios foram direito à minha

orelha. Mal roçou na pele sensível do meu pescoço, e senti que quase morria

com esse contacto tão simples da sua boca sobre a minha pele.

— Preciso de entrar em ti — disse­-me então.

Fiquei com as pernas a tremer.

— Aqui não podemos — comentei num sussurro, tentando controlar o

nervosismo.

— Confias em mim? — perguntou.

Que pergunta idiota era aquela? Não havia neste mundo ninguém em quem

confiasse mais.

Olhei­
-o diretamente nos olhos, era essa a minha resposta.

Sorriu daquela maneira que me deixava louca.

— Espera por mim atrás da casa da piscina — disse­-me antes de me dar um

beijo rápido nos lábios. Agarrei­-me com força ao braço dele, antes que se fosse

embora.

— Não vens comigo? — perguntei, nervosa.

— Acho que a ideia é ninguém se aperceber do que vamos fazer, amor —

confessou com aquele sorriso travesso que me fazia estremecer dos pés à cabeça.

Vi­
-o virar costas e cumprimentar os convidados. Emanava segurança por todos

os poros da pele. Fiquei uns segundos a observá­-lo, sentindo que as borboletas

me começavam a esvoaçar no interior da barriga. Não queria admitir que tinha

medo de ir para ali sozinha, às escuras e longe das pessoas.

Tentando controlar a respiração, peguei no shot que ainda estava em cima do


bar e bebi­
-o. O líquido tranquilizou­-me durante uns segundos. Respirei fundo

e encaminhei­
-me para a piscina, que ficava afastada da tenda onde todos

dançavam e se divertiam. Caminhei pela beira da piscina, tentando não cair à

água, até que cheguei à pequena casa de apoio na parte de trás. Do outro lado

erguiam­
-se as árvores que a rodeavam e, um pouco mais à frente, chegou­-me aos

ouvidos o ruído das ondas do mar a bater contra as escarpas. Encostei­-me à

parede traseira da casa, ainda a ouvir os ruídos dos convidados e a tentar não

perder a compostura.

Fechei os olhos com nervosismo, e foi então que o ouvi chegar. Os seus lábios

pousaram tão subitamente sobre os meus que não tive tempo para dizer nada.

Abri os olhos e encontrei o seu olhar fixo em mim.

Os olhos dele diziam tudo.

— Não tens ideia de como senti falta de fazer isto contigo — disse­-me,

segurando­
-me pelo pescoço e beijando­-me suavemente.

Derreti­
-me nos seus braços, literalmente.

— Meu Deus... como ansiei tocar­


-te! — exclamou, e as mãos percorreram as

minhas costas, de cima a baixo, enquanto o nariz me tocava no pescoço com

uma lentidão infinita.

As minhas mãos voaram até à sua nuca, e puxei­-o novamente para a minha

boca. Desta vez, beijámo­


-nos com um desespero maior, aquecendo­-nos como o

fogo ardente de um incêndio, a língua dele a enroscar­


-se na minha com

ferocidade e o corpo a comprimir­


-se contra o meu. Queria tocá­-lo, sentir a sua

pele sob os meus dedos.

— Tiveste saudades minhas, sardas? — perguntou, acariciando­-me o rosto

com a mão e observando­


-me como se o presente fosse eu e não o contrário.

Tentei assentir, mas tinha a respiração tão acelerada que só me saiu um

gemido, que se intensificou quando os lábios dele se dirigiram ao meu pescoço.

— Não pretendo voltar a ir­


-me embora — disse, entre um beijo e o outro.

Ri­
-me sem alegria.

— Isso não depende de ti.

Procurou o meu olhar.

— Então levo­
-te comigo... não importa para onde vá.

— Parece­
-me muito romântico — respondi, beijando­-lhe o maxilar.

O Nick segurou­
-me o rosto entre as mãos.

— Estou a falar a sério, fizeste­-me falta.

Voltei a rir, e então a sua boca silenciou­-me com um beijo pleno de paixão
contida.

— Quero tirar­
-te esse maldito vestido — grunhiu entre ­den­
tes, levantando­
-

me a saia até me ficar enrolada na cintura. Os olhos cravaram­-se na minha pele

nua e olhou­
-me com desejo, um desejo ­obscuro ­alimentado pela distância e pelo

tempo que passámos ­


afastados.

— Era capaz de ficar a noite toda a fazer amor contigo — disse. As mãos dele

pararam junto ao elástico da minha roupa interior.

Todo o meu corpo estremeceu.

— Preferes esperar? — perguntou, com o desejo a brilhar nos olhos

escurecidos. — Podia levar­


-te para o meu apartamento, mas acho que iam dar

pela tua falta.

— Sim, achas bem... — respondi, mordendo o lábio. Nunca o tinha feito

nestas circunstâncias, mas não queria esperar. O Nick encostou­-me à parede e

senti o roçar do seu corpo excitado contra o meu.

— Vamos ser rápidos, ninguém nos vai ver — assegurou­-me ao ouvido, sem

deixar de me beijar.

Assenti finalmente, e os dedos dele baixaram­-me a roupa interior, até a

deixarem caída no chão.

Os meus dedos dirigiram­


-se à gravata dele e puxei­-a até a soltar.

— Quero olhar para ti — disse, afastando­-se.

Sorriu com ternura e beijou­


-me a ponta do nariz. Levantou­-me as mãos até

entrelaçar os dedos atrás da sua nuca.

Observei­
-o sem me mexer enquanto ele desapertava as calças. Um segundo

depois, estava aprisionada contra a parede. Olhou­-me com doçura, as pupilas

dilatadas, preparando­
-me com o olhar, a transmitir milhares de coisas. Beijou­
-

me e então entrou em mim. Há meses que começara a tomar a pílula, e agradeci

a sensação de o sentir mesmo, sem barreiras entre nós. Deixei escapar um grito

abafado, e a mão do Nick moveu­-se para me tapar a boca.

— Não podes fazer barulho — avisou­-me, ainda imóvel.

Assenti com todas as terminações nervosas em tensão. Ele começou a mexer­


-

se, primeiro devagar, depois acelerando o ritmo. A sensação de prazer começou a

crescer dentro de mim a cada nova investida, a mão afastou­-se da minha boca e

acariciou­
-me no ponto em que mais ansiava pelo seu toque.

— Nick...

— Espera por mim — pediu­-me, agarrando­-me com força nas coxas. Fechei

os olhos, tentando conter­


-me. — Chegamos lá juntos... — sussurrou­-me ao
ouvido.

Os dentes dele apoderaram­


-se do meu lábio inferior, mordendo­-o, e o prazer

cresceu dentro de mim, até um ponto em que não o conseguia aguentar mais. O

grito que me saiu dos lábios foi amortecido pela boca do Nick sobre a minha.

Senti imediatamente que ficava mais tenso até que gemeu, acompanhando­
-me

naquela viagem de prazer infinito.

Atirei a cabeça para trás, tentando controlar a respiração, enquanto o Nicholas

me segurava com força entre os braços.

— Amo­
-te, Nick — disse, quando os seus olhos se cravaram finalmente sobre

os meus.

— Não fomos feitos para estarmos separados — respondeu.


2

Nick

Porra, tive tantas saudades dela! Os dias pareciam­-me intermináveis, e nem

vamos falar das semanas. Tive de trabalhar o dobro das horas para me deixarem

voltar para casa mais cedo, mas só por isto já valeu a pena.

— Estás bem? — perguntei, com a respiração acelerada. Nunca o tínhamos

feito assim, nunca. Eu controlava­-me quando estava com a Noah, tratava­


-a

como ela merecia, mas desta vez não consegui esperar. Desejei possuí-la assim

que a vi.

Os nossos olhos cruzaram­


-se, e um sorriso incrível apareceu na sua boca.

— Isto foi... — disse, mas calei­-a com um beijo. Sentia medo do que ela

pudesse dizer porque me perdi no desejo do momento. Ela estava espetacular

esta noite, mais bonita do que nunca, com aquele vestido virginal, que me

deixou louco.

— Amo­
-te loucamente, sabes isso, não sabes? — afirmei, afastando­-me dela.

— Eu amo­
-te mais ainda — respondeu, e, quando olhei para ela, vi que tinha

um pouco de sangue no lábio.

— Magoei­
-te — disse, acariciando o lábio inferior com o dedo e limpando a

gotícula de sangue que brotou. Que merda, era mesmo um brutamontes de um

idiota. — Desculpa, sardas.

Ela sugou o lábio, distraída... observando­-me.

— Isto foi diferente — disse, um segundo depois. E fora mesmo diferente.

Afastei­
-me dela e apertei as calças. Sentia­-me culpado: a Noah merecia fazer

amor numa cama, não contra uma parede, assim, às três pancadas.

— O que tens? — perguntou ela, olhando para mim com preo­cupação.

— Não tenho nada, desculpa — respondi, beijando­-a novamente. Desci­-lhe o

vestido sobre as ancas, controlando a vontade de recomeçar no ponto em que

tínhamos parado. — Feliz aniversário — disse­-lhe a sorrir, enquanto tirava uma

caixinha branca do bolso.

— Trouxeste­
-me um presente? — perguntou, emocionada. Era tão doce e tão
perfeita... Só de a ver, ficava logo bem­-disposto; só de lhe tocar, ficava excitado.

— Não sei se vais gostar... — comentei, sentindo­-me subitamente nervoso.

Os olhos dela arregalaram­


-se ao fitar a caixa.

— Cartier? — olhou para mim surpreendida. — Mas enlouqueceste?

Abanei a cabeça com o sobrolho franzido, à espera de que a abrisse. Quando o

fez, o pequeno coração de prata brilhou no meio da escuridão. O seu rosto foi

inundado por um sorriso, e suspirei de alívio.

— É lindo! — exclamou, tocando­-lhe com os dedos.

— Assim podes levar o meu coração contigo para onde quer que vás —

declarei, dando­
-lhe um beijo no rosto. Era a coisa mais pirosa que dissera na

vida, mas ela tinha este efeito sobre mim, transformava­-me num perfeito idiota,

completamente apaixonado.

Olhou para mim, e vi que tinha os olhos marejados.

— Amo­
-te, gosto muito! — exclamou, antes de me dar um beijo na boca.

Sorri e pedi­
-lhe que se virasse, para a ajudar a pôr o fio. Com aquele vestido, o

pescoço dela ficava descoberto, e tive de lhe beijar a nuca. Ela estremeceu, e

obriguei­
-me a respirar fundo para não a possuir novamente, naquele mesmo

segundo. Pus­
-lhe o colar e observei­-a quando se virou.

— Que tal me fica? — perguntou, olhando para baixo.

— Estás perfeita, como sempre — respondi.

Sabia que tínhamos de voltar à festa, e era a última coisa que me apetecia fazer

naquele momento. Queria estar a sós com ela, bem, a verdade é que queria

sempre estar sozinho com ela, mas agora, depois de tanto tempo sem nos

vermos, era o que mais desejava.

— Estou apresentável? — perguntou com inocência?

Sorri.

— Claro que estás — disse, enquanto abotoava a camisa e pegava na gravata

que estava caída no chão.

— Deixa­
-me fazer eu — pediu a Noah, e soltei uma gargalhada.

— Desde quando sabes fazer o nó de gravata? — perguntei, sabendo que

nunca conseguira fazê­


-lo; até porque era sempre eu que lho fazia quando ainda

vivia nesta casa.

— Tive de aprender, porque o meu namorado tão bonito me deixou para ir

viver para o seu apartamento de solteiro — respondeu, enquanto acabava de

fazer o nó.

— É bonito, ele?
Ela revirou os olhos.

— Vamos voltar, senão toda a gente vai perceber o que estivemos a fazer.

Eu teria gostado que todos soubessem. Talvez assim aqueles rapazinhos todos

se mantivessem longe da minha namorada. Não obstante tudo o que já

tínhamos vivido juntos, para a maior parte das pessoas, éramos apenas meios­
-

irmãos.

Deixei que ela regressasse primeiro e, enquanto esperava, fumei um cigarro.

Sabia que a Noah não gostava muito que fumasse, mas, se não o fizesse, ia

enlouquecer. Antes de me ir embora, uma coisa chamou­-me a atenção. A roupa

interior dela estava caída aos meus pés.

Foi­
-se embora sem nada por baixo do vestido?!

Quando regressei, vi­


-a falar com um grupo de amigos. Estavam ali dois

rapazes, e um deles tinha a mão pousada nas costas dela. Respirei fundo para me

acalmar e aproximei­
-me deles. Quando a Noah me viu, pôs o braço à volta das

minhas costas e apoiou a cabeça no meu peito.

Fiquei calmo. Este gesto fora o suficiente.

— Viste o Lion? — perguntei­-lhe, enquanto procurava o meu amigo com o

olhar. Estava um pouco preocupado com ele, porque, quando estava em São

Francisco, ele ligara­


-me para me dizer que o irmão, o Luca, ia sair da prisão dali

a pouco tempo. O Luca estava preso há quatro anos, fora apanhado em flagrante

a vender marijuana, e ninguém conseguira evitar que fosse dentro. Para ser

sincero, não me agradava muito que o Luca saísse; não que não ficasse contente

pelo Lion. Afinal, o meu amigo estava sozinho, e a última família que lhe

restava era o irmão mais velho, mas eu sabia perfeitamente como o Luca podia

ser e não tinha a certeza se convinha ao Lion ter um ex­


-condenado a

acompanhá­
-lo nesta fase da sua vida.

— Olha, a verdade é que já há algum tempo que não o vejo — disse a Noah.

— De qualquer maneira, acho que está na altura de ires ­cumprimentar os

nossos pais... — acrescentou ela, e fiquei imedia­tamente tenso.

Depois do sequestro da Noah, tornou­-se evidente para todos que a nossa

relação era bastante séria, e os nossos pais não acharam graça nenhuma. Desde

então, faziam questão de demonstrar claramente o seu desagrado de cada vez

que nos viam juntos. Já sabia que o meu pai não iria per­mitir um escândalo

deste tipo; afinal, éramos uma família com exposição pública, e por isso avisou­
-

nos que, para o exterior, deveríamos continuar a ser apenas irmãos, mas fiquei
surpreendido pelo facto de a Raffaella não ter ficado do nosso lado. Pelo

contrário, a partir desse momento, passou a olhar para mim com uma expressão

de medo que me deixava nervoso.

— Olhem só! O meu filho voltou a casa! — exclamou o meu pai, esboçando

um sorriso falso.

— Pai — respondi em jeito de cumprimento. — Olá, Ella — disse com o

tom de voz mais agradável que consegui invocar. Para minha grande surpresa, a

Raffaella sorriu­
-me e deu­
-me um abraço.

— Fico feliz por teres conseguido vir — declarou, desviando os olhos dos da

Noah. — Até te ver, ela estava muito triste.

Olhei para a Noah, que corou, e pisquei­-lhe o olho.

— Que tal a vida no escritório? — perguntou o meu pai.

O grande sacana tinha­


-me posto a trabalhar para o Steve Hendrins, um idiota

autoritário que ia gerir o escritório até eu ter experiência suficiente para herdar

a liderança. Toda a gente sabia que tinha qualificações suficientes para isso, mas

o meu pai continuava a não confiar em mim.

— É esgotante — respondi, tentando não o fulminar com o olhar.

— Como a vida em geral — respondeu­


-me, então. As suas palavras

deixaram­
-me de mau humor. Estava farto de ouvir aquele tipo de bocas; há

meses que tinha deixado de me comportar como um puto mimado e que me

entregara ao papel que me estava destinado e não parava um minuto sequer.

Não só trabalhava para o meu pai mas também estava no último ano do curso e

tinha muitos exames pela frente. A maior parte dos meus colegas ainda nem

sequer sabia o que era um escritório de advogados, enquanto eu já tinha mais

experiência do que muitos dos que ostentavam o título da profissão. E, mesmo

assim, o meu pai ainda não tinha confiança em mim.

— Danças comigo? — interrompeu a Noah naquele instante, evitando que

dissesse alguma coisa despropositada ao meu pai.

— Claro.

Fui com ela para a pista de dança. Tinham posto um slow a tocar, e puxei­
-a

para mim com cuidado, tentando não deixar que o meu mau humor ou raiva

recaíssem sobre a única pessoa que me importava naquela festa.

— Não te irrites — pediu­-me, acariciando­-me a nuca. Fechei os olhos e

permiti que o seu toque me relaxasse.

A minha mão baixou até à cintura dela, roçando o fundo das costas.

— É impossível irritar­
-me contigo sabendo que não tens nada por baixo deste
vestido.

— Nem me apercebi — disse ela, detendo a minha mão.

Olhei para ela. Era linda.

Juntei a minha testa à dela.

— Desculpa — pedi, observando­-a e deliciando­-me com os seus olhos

maravilhosos.

Um segundo depois, sorriu­


-me.

— Ficas aqui esta noite? — perguntou.

Porra! Outra vez a mesma discussão. Não planeava ficar lá em casa, já me

mudara para o meu apartamento há meses e detestava estar sob o controlo do

meu pai. Não via a hora de a Noah se mudar para a cidade. Quando a tivesse ao

meu lado, tudo seria melhor.

— Sabes bem que não — disse, desviando os olhos para as pessoas que nos

observavam de vez em quando. Certamente os irmãos não dançavam assim, mas

naquele momento não queria saber da opinião delas para nada.

— Há duas semanas que não te vejo­. Podias fazer um esforço e ficar cá —

pediu, mudando o tom de voz. Sabia que, se continuássemos a falar daquilo,

iríamos acabar por discutir, e não era isso que queria.

— Para dormirmos separados? Não, obrigado — respondi, de mau humor. —

Ela baixou os olhos em silêncio. — Oh, vá lá, sardas, não te zangues comigo...

sabes que detesto ficar aqui, detesto não poder tocar­


-te e odeio ter de ouvir

todas as palermices que o meu pai está sempre a atirar­


-me à cara.

— Pois, então não sei quando vamos conseguir ver­


-nos, porque esta semana

não posso ir à cidade. Vou estar ocupada a estudar para os exames finais e,

depois, com a formatura.

Caramba.

— Eu venho buscar­
-te, e passamos algum tempo juntos — propus,

acalmando o tom de voz e acariciando­-lhe as costas.

Ela suspirou e desviou os olhos para o lado.

— Não me faças sentir culpado, por favor, sabes que não posso ficar aqui —

pedi, segurando­
-lhe o rosto e obrigando­-a a olhar para mim.

Observou­
-me em silêncio durante alguns segundos.

— Dantes ficavas...

Os seus olhos voltaram finalmente a fitar os meus.

— Dantes não estávamos juntos — disse de forma terminante.

A Noah não disse mais nada, e continuámos a dançar em silêncio. Os olhos da


Raffaella não se afastaram de nós por um segundo enquanto estivemos na pista

de dança.
3

Noah

Os convidados já se tinham ido quase todos embora. A Jenna estava a

cumprimentar a minha mãe, e o Nick a fumar um cigarro com o Lion, na parte

de trás do jardim. Olhei em redor, para a confusão que restava depois da festa, e

pela primeira vez agradeci por ter alguém que limpasse a casa quase todos os

dias.

Depois de passar tanto tempo a socializar, sabia­-me bem um momento a sós

para poder apreciar a sorte que tinha. A festa tinha sido incrível: todos os meus

amigos vieram e trouxeram­


-me presentes espetaculares, que agora repousavam

numa pilha enorme sobre o sofá da sala de jantar. Preparava­-me para os levar

para o meu quarto quando vi que alguém me rodeava a cintura com os braços.

— Trouxeram­
-te um monte de presentes — sussurrou­-me o Nick ao ouvido.

— Sim, mas nenhum se pode comparar com o teu — respondi, virando­


-me

para olhar para os olhos dele. — É o presente mais bonito que já recebi e

significa muito, porque veio de ti.

Ele pareceu pensar nas minhas palavras durante um instante, até que o

vislumbre de um sorriso apareceu nos seus lábios.

— Vais usá­
-lo sempre? — perguntou. Uma parte de mim entendeu que para

ele era algo muito importante, que, de certa forma, tinha posto o seu próprio

coração naquele fio, e senti um calor intenso no meio do peito.

— Sempre.

Sorriu e puxou­
-me para si. Os lábios roçaram os meus com uma doçura

infinita, demasiada. Cheguei­


-me para a frente para aprofundar o beijo, mas ele

segurou­
-me onde estava.

— Queres mais? — ofereceu junto aos meus lábios entreabertos. Por que

razão não me beijava como devia ser?

Abri os olhos e dei com ele a fitar­


-me. As íris eram espetaculares, de um azul

tão claro que me provocava calafrios.

— Sabes que sim — respondi com a respiração acelerada e com os nervos à


flor da pele.

— Vem comigo esta noite.

Suspirei. Queria ir, mas não podia. Para começo de conversa, a minha mãe não

achava graça nenhuma eu ficar a dormir em casa do Nick, e na maior parte das

vezes acabava por mentir e dizer que estava em casa da Jenna. Depois, tinha de

estudar. Nesta semana ia ter quatro exames finais e, se não estudasse, podia pôr

tudo em risco.

— Não posso — respondi, fechando os olhos.

A mão dele desceu pelas minhas costas, com cuidado, numa carícia tão

delicada que me deixou completamente arrepiada.

— Podes, sim, e recomeçamos no ponto em que ficámos no jardim —

respondeu­
-me, levando os lábios à minha orelha.

Senti borboletas no estômago e um desejo a crescer dentro de mim. A língua

dele acariciou o lóbulo da minha orelha esquerda e a seguir mordeu­-o... Queria

ir... Mas não podia.

Afastei­
-me e, ao abrir os olhos para fitar os dele, estremeci... Tinha tido

saudades daquele olhar sombrio, do corpo que me intimidava e ao mesmo

tempo me proporcionava uma sensação infinita de segurança.

— Vemo­
-nos depois, Nick — respondi, dando um passo atrás.

Os seus olhos perscrutaram­


-me com uma expressão divertida e irritada.­

— Sabes que, se não vieres comigo, não há sexo para ninguém até à tua

formatura, não sabes?

Respirei fundo: estava a jogar sujo comigo, mas era verdade. Eu mal teria

tempo de ir à cidade para o ver e, se ele não queria vir para casa porque não lhe

apetecia encontrar­
-se com o pai...

— Podemos sempre ir ao cinema — propus com a voz entrecortada.

O Nick soltou uma gargalhada.

— Está bem, sardas, como queiras — aceitou, aproximando­-se e pousando os

lábios na minha testa num beijo ternurento e casto. Claro que estava a fazer isto

de propósito. — Vemo­
-nos daqui a dois dias, para irmos ao cinema. E para o

que mais acontecer.

Quis detê­
-lo e implorar­
-lhe que ficasse, quis dizer­
-lhe que precisava dele,

porque só quando estava ao seu lado deixava de ter pesadelos, que era o meu

aniversário, que era a sua vez de ceder e de me fazer a vontade,­ mas sabia que

nada do que eu dissesse o faria mudar de ideias e ficar a dormir sob aquele teto.

Observei­
-o enquanto descia as escadas com leveza, entrava para o seu Range
Rover e se ia embora sem olhar para trás.

Nos dias seguintes, mal saí de casa para respirar ar puro. Tinha de enfiar tanta

informação na cabeça que parecia que o meu cérebro ia explodir. A Jenna não

parava de me ligar para fazer queixa dos professores, do namorado e da vida em

geral. Ficava histérica sempre que havia exames e, além disso, era ela a

encarregada da organização da festa de formatura, e sabia que ficava doente só

de pensar que não estava a dedicar ao acontecimento todo o tempo que a ocasião

merecia.

Tinha combinado sair com o Nick naquela noite, presumivelmente para irmos

ao cinema, mas estava muito mal preparada para o exame de sexta­-feira, o

último que me faltava fazer. A coisa que mais queria no mundo era ver o Nick,

mas sabia que sair com ele me ia desconcentrar completamente, porque bastava

a sua presença para eu ficar desorientada. Se, além disso, dormíssemos juntos,

jamais conseguiria estudar depois. Tinha medo de lhe ligar para lhe dizer. Sabia

que ia ficar aborrecido. Há dois dias que não nos víamos, desde o meu

aniversário, e, embora falássemos por telefone, a verdade é que eu andava

bastante dispersa.

Foi por isso que decidi mandar­


-lhe uma mensagem. Não queria ouvir a sua

voz e distrair­
-me, não queria começar uma discussão. Assim, quando carreguei

em Enviar, pus o telemóvel em silêncio e tentei esquecer­


-me dele durante vinte

e quatro horas; quando acabasse os exames, haveríamos de estar juntos e faria o

que ele quisesse, mas agora estava a apostar tudo naquele último teste e queria

ter a melhor nota possível.

Duas horas depois, continuava no meu quarto com um aspeto desastroso, o

cabelo nojento e uma vontade imensa de chorar ou de matar alguém. Naquele

instante, a porta abriu­


-se quase sem fazer barulho.

Levantei a cabeça, e ali estava ele. Com o cabelo revolto e uma camisa branca,

a minha preferida.

Merda! Tinha­
-se arranjado para sair comigo. Esbocei um sorriso de cir-­

cunstância e fiz uma expressão de quem nunca partiu um prato na vida.

— Estás muito giro.

O Nick levantou as sobrancelhas e olhou para mim daquela forma que me

tornava dificílimo saber em que estava a pensar e aproximou­-se da minha cama

sem nunca desviar os olhos de mim.

— Deixaste­
-me plantado à espera — resmungou com tranquilidade, e não
percebi se estava a ralhar ou a tentar habituar­
-se à ideia.

— Nick... — respondi, temendo a sua reação e sentindo­-me culpada.

— Vem — pediu­
-me com voz doce. Ele tinha um olhar estranho, parecia

estar a ponderar alguma coisa, e estranhei que não começasse a barafustar de

imediato.

Queria beijá­
-lo. Era um desejo constante em mim. Por mim, passava o dia

inteiro com ele, entre os seus braços. Levantei­-me e fui de joelhos até à ponta da

cama onde ele estava à minha espera, de pé.

— Acho que é a primeira vez que uma miúda me deixa plantado, sardas —

disse­
-me. Pousou as mãos na minha cintura. — Nem sei como reagir.

— Desculpa — respondi com a voz vacilante. — Estou cheia de nervos, Nick,

acho que não vou conseguir passar neste exame. Não sei nada de nada e, se

chumbar, não vou conseguir acabar o ano, não vou para a universidade, nem

conseguir trabalhar naquilo que quero: vou ser uma pessoa inculta e ainda acabo

os meus dias a viver com a minha mãe. Consegues imaginar? Acho que...

Os seus lábios calaram­


-me com um beijo rápido.

— Tu és a pessoa mais marrona que conheço. Não vais chumbar nada. — Os

lábios afastaram­
-se e olhou­
-me com carinho.

— Vou chumbar, vou, Nick, estou a falar a sério. Vou ter zero, já imaginaste?

Um zero? Vou deixar de ser a favorita do professor Lam, e logo eu, que tive a

melhor nota da turma. Vai deixar de me tratar de forma diferente, e, olha, se

me...

Fechei a boca ao reparar no seu aviso silencioso, feito com o olhar. É verdade

que já estava a extrapolar um pouco, mas... Um sorriso travesso cruzou o seu

rosto.

— Queres que te ajude a descontrair?

«Ai, este olhar... Não olhes para mim assim, por favor... Logo quando estás

tão giro, de camisa, e eu tão maltrapilha.»

— Eu estou descontraída — menti.

— Preferes então que te ajude a estudar? — Afastou­-me uma ma­deixa de

cabelo do rosto, e suspirei interiormente com a ternura daquele gesto.

O Nicholas a ajudar­
-me a estudar? Aquilo não ia acabar bem.

— Não é preciso — respondi com timidez. Tinha receio de que, se ele ali

ficasse, acabássemos por fazer tudo menos chegar ao fim do tema oito de

História, e, embora o Nick estivesse lindo de morrer, não podia arriscar­


-me a

chumbar.
Sorriu­
-me de esguelha, ao seu estilo tão sedutor, e vi que dava um passo atrás.

Arregaçou as mangas da camisa, descalçou os sapatos e contornou a cama para

se sentar enquanto pegava no meu livro.

Estremeci ao imaginar­
-nos aos dois nesta cama, fazendo outras coisas que não

tinham nada que ver com estudar. O Nick começou a folhear as páginas até

chegar ao ponto onde eu parara, alguns minutos antes.

Esqueci­
-me de tudo, dos exames, da prova de acesso à universidade. Só queria

sentar­
-me no colo dele e contornar­
-lhe o maxilar com a ponta da língua.

Comecei a aproximar­
-me, e ele abanou a cabeça, levantando os olhos na minha

direção.

— Quieta — ordenou­
-me, divertido. — Vamos estudar, sardas, e, quando

souberes a matéria toda, pode ser que te dê um beijo.

— Só um?

Soltou uma gargalhada e voltou a concentrar­


-se nos apontamentos.

— Vamos começar, e, sim, quando acabarmos já sabes, prometo tirar­


-te esse

stresse todo de cima.

Disse isto com toda a tranquilidade do mundo, enquanto o meu corpo

estremecia ao ouvi­
-lo.

Duas horas e meia depois, sabia o tema todo do princípio ao fim. O Nick era

bom professor... Para minha surpresa, tinha paciência e explicou­-me a matéria

como se se tratasse de uma história; foram várias as ocasiões em que fiquei

embasbacada a olhar para ele, só a ouvi­-lo, atenta e verdadeiramente interessada

na Guerra da Secessão Americana. Até me relatou dados e detalhes que não

vinham no livro nem estavam nos meus apontamentos.

Quando fechou o livro, depois de eu recitar a matéria tintim por tintim,

sorriu orgulhoso e com uma centelha de desejo nos seus olhos azuis.

— Vais ter a nota máxima.

Fiz um sorriso de orelha a orelha e atirei­-me para cima dele. O Nick agarrou­
-

me e abraçou­
-me contra o seu corpo. Demos uma volta na cama, e beijou­-me,

sedento dos meus beijos. Enfiei a língua na boca dele, e ele brincou com ela

antes de me morder o lábio, de o chupar e meter na boca.

Gemi enquanto a mão dele descia pela minha anca, me levantava a perna e a

enroscava à volta da cintura. Quando senti o corpo dele contra o meu, quase

revirei os olhos quando uma doce pressão me levou quase ao sétimo céu.

— Fiquei irritado quando li a tua mensagem — comentou, levan­tando­-me a



-shirt e beijando­
-me a barriga com deleite.

Fechei os olhos e alonguei o pescoço para trás.

— Imagino que sim — respondi, abrindo os olhos e fitando­-o. Tinha

levantado a cabeça e olhava para mim com uma expressão algures entre a

excitação e a diversão.

— Mas gostei de estudar contigo, sardas... Apercebi­-me de que ainda há

muita coisa que te posso ensinar.

Ao dizer isto, tirou­


-me os calções, e fiquei só de roupa interior, por baixo dele,

com a sua boca demasiado próxima do centro do meu corpo para me sentir

tranquila.

Fiquei nervosa e icei­


-me um pouco para cima, no colchão.

A mão dele pousou sobre o meu estômago e obrigou­-me a ficar quieta.

— Prometi­
-te um beijo, não prometi?

Os olhos dele ardiam sobre os meus, e estava prestes a derreter­


-me. Quando

percebi do que estava a falar, fiquei involuntariamente tensa.

— Nick... — Não sabia se estava preparada para aquilo... Nunca tínhamos

feito nada parecido, e de repente só me apetecia levantar da cama e desatar a

fugir.

O Nicholas aproximou­
-se da minha boca, com os cotovelos pousados ao lado

da minha cara, e olhou­


-me com calma.

— Descontrai — disse, enterrando o nariz no meu pescoço, cheirando­-me e

beijando­
-me com cuidado.

Fechei os olhos e contorci­


-me sob o seu corpo.

— És tão doce... — disse, descendo com os lábios pelo meu estômago, a roçar

a pele e a provocar­
-me arrepios.

Quando chegou ao destino, deteve­-se por uns instantes. Achei- ­

tremendamente erótico vê­


-lo ali, no meio das minhas pernas, com aquela

expressão de puro desejo nos olhos, desejo por mim e mais ­ninguém.

Tirou­
-me as cuecas, com cuidado, e fiquei com tanta vergonha que fechei os

olhos, acedendo ao que ia acontecer, sem saber se ia gostar ou não, mas, ao

mesmo tempo, sem querer pensar muito naquilo.

A boca dele começou por me beijar as coxas, primeiro uma, depois a outra.

Abriu­
-me as pernas com delicadeza enquanto se acomodava no meio delas, e

estremeci.

O que veio a seguir foi pior, muito pior.

— Deus do céu! — exclamei, sem conseguir evitar mexer­


-me.
As mãos dele agarraram­
-me a cintura e, de repente, senti os beijos dele

desenharem círculos sobre a minha pele ultrassensível... Fechei os olhos e

deixei­
-me perder nas suas carícias e naquele momento tão perfeito. Quando

senti que tudo se tornava demasiado intenso, uma das minhas mãos procurou­
-o

para lhe pedir tréguas.

— Ainda és melhor do que eu imaginava — confessou, parando por um

instante para logo a seguir voltar a acariciar­


-me com enorme suavidade. Ficou a

olhar para mim com os olhos brilhantes. — Queres que continue?

Porra...

— Sim... Por favor — respondi com um suspiro. A última coisa que vi antes

de fechar os olhos foi o seu sorriso enorme. Deixei­-me levar novamente pelas

suas carícias até que estas se tornaram tão avassaladoras que acabei por me

agarrar aos lençóis com força.

Deus do céu...! Tinha acabado de ter a experiência mais erótica da minha vida.

Quando recuperei, o Nicholas tinha o queixo apoiado sobre a minha barriga e

olhava para mim como alguém que encontrou um tesouro no fundo do mar.

Corei, e ele riu­


-se, impulsionando­-se para cima e deitando­-se ao meu lado.

Tapei­
-me com o lençol, e ele puxou­-me para os seus braços.

— Porra, Noah... diz­


-me por que motivo nunca te tinha feito isto.

Virei­
-me e enterrei o rosto no peito dele. O Nicholas continuava vestido, e

não precisava de olhar para ele para ver que tinha uma ereção por baixo das

calças.

Será que tinha de lhe fazer o mesmo?

Voltei a ser assaltada pelos nervos, mas o Nick beijou­-me a cabeça e

levantou­
-se, saindo da cama.

— Onde vais? — perguntei, quando começou a encaminhar­


-se para a porta.

— Se não me for embora agora, fico aqui o resto da noite — explicou, e

notei­
-lhe a voz um pouco tensa.

Peguei nos calções que estavam ao meu lado, sobre a almofada, onde os

tínhamos deixado cair, e vesti­


-os. Saí da cama e fui ter com ele.

— Na sexta­
-feira já acabo, Nick, e teremos todo o verão para nós.

Aproximei­
-me e dei­
-lhe um abraço amoroso.

Ele apertou­
-me nos seus braços e suspirou com resignação.

— Se não tiveres nota máxima neste exame, estás feita comigo.

Ri­
-me e afastei­
-me do seu peito para o poder observar.

— Obrigada... Por tudo — disse, sentindo que voltava a corar.


Estendeu o braço e tocou­
-me no rosto.

— Tu és a coisa mais bonita que já me aconteceu na vida, sardas, não me

agradeças por nada deste mundo.

Senti que o meu coração inchava de felicidade e de uma pena imensa quando

me beijou o topo da cabeça e se foi embora, deixando­-me ali.

O exame correu­
-me maravilhosamente. Não podia ter sido melhor, e quando,

cinco minutos depois, me encontrei com a Jenna no corredor, olhámos uma para

a outra e pusemo­
-nos aos saltos como loucas. As pessoas começaram a olhar para

nós, alguns alunos riam­


-se enquanto outros faziam troça, mas não me

importava... O meu tempo ali acabara, já não teria de vestir uniforme, não seria

tratada como uma criança nem teria de mostrar as notas à minha mãe para que

mas assinasse ou qualquer outra idiotice do género: estava livre, estávamos

livres, e não podia estar mais feliz por isso.

— Não acredito! — gritou a Jenna, abraçando­-me loucamente no dia em que

fomos ver as notas. Fomos para a cafetaria e, quando entrámos, ouvimos os

nossos colegas de turma mais alegres do que nunca, a gritar, a dançar, a rir e a

aplaudir: era um delírio, uma festa absoluta. O resto dos alunos olhava para nós

como se fossemos malucos, alguns com inveja, já que a maior parte ainda tinha

alguns anos pela frente antes de saírem daquela escola.

— Estão a planear fazer uma fogueira na praia para queimar os uniformes —

informou­
-nos um miúdo com um sorriso radiante. — Vocês alinham?

Eu e a Jenna entreolhámo­
-nos.

— Claro que sim! — gritámos em uníssono, o que nos fez rir com histeria;

parecia que estávamos bêbedas, mas bêbedas de felicidade.

Uma hora depois, depois de festejar com a turma e de passar as aulas a fazer

parvoíces e a perder tempo, saí finalmente daquela escola que me trouxera mais

coisas boas do que más. Lembrava­-me de a ter odiado inicialmente, mas, se não

tivesse sido aquela escola, não me teriam admitido na UCLA nem poderia

estudar Filologia Inglesa, como sempre sonhara.

Ia a sair aos saltinhos quando o Nick me enviou uma mensagem a dizer que

estava à minha espera à porta. Estava ao lado do carro, e, quando me viu,

radiante de felicidade, um sorriso incrível espalhou­-se pelo seu rosto. Incapaz de

me conter, saí a correr e atirei­-me para os braços dele. As mãos do Nick

agarraram­
-me com rapidez, e procurei os seus lábios com os meus, até nos
unirmos num beijo digno de um filme romântico.

Tinha terminado o secundário, tirara as melhores notas e ia para uma

universidade que jamais me poderia atrever a desejar; tinha o melhor namorado

do mundo, que adorava, e dali a dois meses ia viver sozinha para o campus

universitário, com um futuro magnífico pela frente.

A vida não me podia correr melhor.


4

Nick

A minha miúda acabou o secundário. Não podia evitar sentir­


-me o homem

mais orgulhoso do mundo; ela não era apenas linda mas também incrivelmente

inteligente. Acabou o ano com as melhores notas, as universidades disputaram­


-

na entre si, mas a Noah acabou por decidir ir para a minha universidade, aqui,

em Los Angeles. Não sei o que teria feito se ela tivesse regressado ao Canadá,

como planeara inicialmente.

Não via a hora de ela se mudar para o meu apartamento. Não que já lho

tivesse dito, mas a minha intenção era que viesse viver comigo. Estava farto de

ter de aguentar todas as restrições que os nossos pais decidiram impor­


-nos assim

que souberam que namorávamos. Desde o sequestro da Noah que a Rafaella se

tornara completamente paranoica, mas este nem era o único problema, porque

tanto ela como o meu pai demonstraram pouco agrado perante o facto de os

filhos de ambos namorarem. A coisa foi arrefecendo aos poucos e, agora que já

não vivia com eles, em vez de tudo normalizar, como fora minha esperança no

princípio, acontecera exatamente o contrário. Mal deixavam que a Noah viesse a

minha casa e cá ficasse a dormir. Tivéramos de inventar todo o tipo de idiotices

para podermos estar juntos sem interrupções. Para mim tanto se me dava o que

o meu pai e a mulher tivessem para dizer, já era crescidinho, tinha vinte e dois

anos e em breve faria vinte e três, podia fazer o que me desse na real gana, mas o

mesmo não acontecia com a Noah. Sabia que o facto de termos cinco anos de

diferença nos iria criar alguns problemas ao longo do tempo, mas nunca pensei

que nos causasse tantas dores de cabeça.

Mas não era altura para pensar nisto: íamos festejar. Eu ia levar a Noah à tal

fogueira que os colegas da turma tinham organizado. Não que me apetecesse

especialmente, mas pelo menos sempre podíamos passar um tempinho juntos.

No dia seguinte, a Noah ia estar muito ocupada com a festa de formatura, e a

mãe queria jantar com ela depois da cerimónia, por isso, ou saíamos juntos hoje

ou ia ter de a partilhar outra vez com o mundo inteiro. Tinha noção de que
parecia egoísta da minha parte, mas nos últimos meses, com todas as obrigações

escolares dela e as minhas viagens para São Francisco, assim como com os

empecilhos dos nossos pais, não passara com ela nem metade do tempo que

queria, logo, tinha de aproveitar a ocasião.

O caminho até à praia foi muito agradável. A Noah estava emocionada com a

formatura e não se calou um segundo durante os vinte minutos que demorámos

a chegar. Às vezes achava graça à sua maneira de gesticular quando estava

entusiasmada com alguma coisa: nesses momentos, por exemplo, as suas mãos

pareciam ter vida própria.

Estacionei o carro o mais perto possível, tanto quanto o enorme aglomerado

de pessoas ali reunidas me permitia. Parecia não serem apenas os alunos da

turma da Noah que ali estavam, mas todas as malditas turmas de finalistas do

Sul da Califórnia.

— Achei que íamos ser poucos — comentou ela, olhando para aquilo, tão

perplexa quanto eu.

— Se poucos for metade dos alunos do estado...

A Noah sorriu com a minha resposta e voltou­-se para a Jenna, que apareceu

naquele instante vestida com a parte de cima de um biquíni e uns calções curtos

que lhe ficavam colados ao corpo como uma segunda pele.

— Vamos beber! — gritou a Jenna.

Num raio de meio metro, toda a gente soltou vivas e levantou os copos no ar.

A Noah abraçou­
-a, soltando uma gargalhada. Quando chegou a minha vez de

a cumprimentar, aproveitei a minha altura e tirei­-lhe o copo da mão, deitando o

líquido para a areia.

— Ei! — protestou, indignada.

— Onde está o Lion? Devia estar aqui — disse, sorrindo abertamente perante

o seu ar irritado.

— Idiota! — replicou, para logo a seguir me ignorar proposita­damente.

A Noah abanou a cabeça e aproximou­-se de mim, rodeando­-me o pescoço com

os braços e pondo­
-se em bicos dos pés para me ver melhor.

— Tens a certeza de que não te vais aborrecer aqui? — perguntou,

acariciando­
-me a nuca com os dedos compridos.

— Tenho. Diverte­
-te, sardas, não te preocupes comigo — respondi,

inclinando a cabeça para pressionar os lábios fechados sobre os seus. Eram tão

carnudos que me deixavam louco. — Vou ver por onde anda o Lion. Quando

tiveres saudades minhas, vem procurar­


-me.
— Já tenho saudades tuas — respondeu, e, nesse preciso instante, a Jenna

puxou­
-lhe um braço para a afastar de mim e a levar para fazerem sabe Deus que

tipo de loucuras.

Olhei para ela com má cara e deixei que se dirigisse aos amigos, que

preparavam os uniformes para a fogueira. Era uma tradição nossa... Ainda me

lembrava do glorioso momento em que também queimara o meu uniforme.

Aproximei­
-me de uma das pequenas fogueiras onde não havia quase ninguém

e fiquei a observar o fogo com as mãos enfiadas nos bolsos, enquanto dava voltas

à cabeça e fantasiava com tudo o que queria fazer com a Noah naquele verão,

com todas as possibilidades que se apresentariam à nossa frente nos próximos

meses.

Avistei imediatamente o Lion, que estava sozinho junto à fogueira mais

afastada. Tinha uma cerveja na mão e olhava fixamente para as chamas, como eu

fizera poucos segundos antes, com a diferença de que ele parecia melancólico e

preocupado. Fui ter com ele para falarmos.

— O que foi, meu? — perguntei, dando­-lhe uma palmada nas ­costas e

tirando uma garrafa de uma das caixas aos seus pés, mas sem a abrir logo.

— Estou a tentar fazer com que o tempo passe mais depressa nesta merda

desta festa — respondeu­


-me e, logo a seguir, bebeu um grande gole de cerveja.

— E estás a fazer isso embebedando­-te? A Jenna já está bastante tocada, e um

dos dois vai ter de conduzir, por isso, se fosse a ti, ia com calma — avisei.

Ignorou­
-me e levou novamente a garrafa à boca.

— Eu nem queria vir, a Jenna é que se irritou logo — explicou, olhando em

frente.

— Ela acabou de se formar, Lion, não a culpes por não entender o que se passa

contigo. Nem eu te entendo.

Ele soltou um suspiro e atirou a garrafa para a fogueira, fazendo­-a partir­


-se em

pedaços.

— A oficina não está a correr tão bem como antes, e a última coisa que quero

é que o meu irmão saia da prisão e veja que não fui capaz de manter o negócio

da família a funcionar...

— Se precisas de dinheiro...

— Não, não quero o teu dinheiro, Nicholas, já tivemos esta conversa mil

vezes. Eu consigo resolver isto, só que as coisas acabaram por não correr como

queria, é só.

Olhei para a expressão do seu rosto e percebi que não me estava a contar a
história toda.

— Lion, antes que te metas num sarilho qualquer...

Ele voltou­
-se para mim, e calei­-me.

— Dantes não tinhas problemas nenhuns em meter­


-te em sarilhos. Que raio

te aconteceu, Nicholas?

Sustive o olhar dele sem pestanejar.

— Raptaram­
-me a namorada, foi o que me aconteceu.

O Lion pareceu arrependido, desviou o olhar sobre o meu ombro e tirou um

cigarro do bolso de trás das calças de ganga.

— Por falar na rainha do pedaço... Vem aí a Noah — anunciou, afastando­


-se

de mim. Dei meia­


-volta e vi que, realmente, a Noah se aproximava com um

grande sorriso nos lábios e o cabelo a ondular ao vento.

Forcei um sorriso e abri os braços quando se aproximou para me abraçar.

Deu­
-me um beijo no peito e a seguir dirigiu­-se ao meu amigo.

— A Jenna anda à tua procura — informou­-o com um sorriso.

— Espetacular — comentou o idiota em tom irónico. O sorriso da Noah

desapareceu, e eu fiquei com vontade de lhe arrancar o mau humor à bofetada.

Sem dizer mais uma palavra, o Lion afastou­-se e começou a caminhar para

onde o resto do pessoal estava reunido. A Noah olhou­-me nos olhos.

— O que tem ele?

Abanei a cabeça e dei­


-lhe um beijo no cabelo.

— Teve um dia mau, deixa­-o estar — aconselhei, inclinando­-me para lhe

beijar o rosto quente da fogueira, antes de me perder no seu pescoço. Há dias

que os meus lábios ansiavam pela sua pele, e a última coisa que queria agora era

vê­
-la triste por uma idiotice sem importância. — Quero­-te — declarei,

beijando­
-lhe a garganta, saboreando a pele e sentindo­-a estremecer com as

minhas carícias.

— Nick — disse um minuto depois de a minha boca começar a descer até à

curva dos seus seios.

Afastei­
-me por um segundo, fascinado com ela, mas percebi que tínha­mos

chamado a atenção de várias pessoas ali por perto. Estavam a olhar para nós,

certamente ansiosas por assistir a um bonito espetáculo erótico.

Resmunguei entre dentes e peguei­-lhe na mão para a levar na direção oposta.

— Vamos passear — propus, afastando­-nos das fogueiras e entrando um

pouco mais na escuridão da noite e no ruído harmonioso do mar. Não havia

lugar melhor do que aquele, e gostava de o sentir com calma, não com todo o
alvoroço daquela festa estúpida.

A Noah estava invulgarmente calada, mergulhada nos seus pensa­mentos, e

preferi não a incomodar. Até que se voltou para mim.

— Posso fazer­
-te uma pergunta? — quis saber, com um toque de nervosismo

na voz.

Baixei os olhos na sua direção e sorri, divertido.

— Claro que sim, sardas — respondi, parando junto a uma árvore que lançara

raízes sob a areia e se erguia, imponente, sobre nós. Sentei­-me ao lado do tronco

e puxei a Noah para o meio das minhas pernas. Assim podia olhá­-la nos olhos

sem o inconveniente da altura. — O que é? — insisti, ao ver que não falava.

Ela olhou para mim e a seguir abanou a cabeça.

— Não é nada, deixa lá, era uma pergunta estúpida — respondeu, evitando

fitar­
-me. Vi que voltava a corar, e a minha curiosidade aumentou

exponencialmente.

— Não digas isso... O que queres perguntar? — insisti, observando­-a com

interesse.

— Não, a sério, é uma estupidez.

— Ficaste vermelha como um pimento e ainda acicataste mais a minha

curiosidade. Desembucha — voltei a insistir.

Detestava que me fizesse aquilo. Queria saber tudo o que pensava ou sentia,

não queria que tivesse vergonha de absolutamente nada; além disso, estava tão

intrigado que não a iria deixar safar­


-se sem me dizer o que lhe passava pela

cabeça.

Os seus olhos cruzaram­


-se com os meus durante alguns segundos e depois

começou a brincar com uma madeixa de cabelo.

— Estava aqui a pensar... Sabes, o que aconteceu na outra noite, quando tu...

— ao falar, ficou ainda mais corada.

Tentei não sorrir. Nunca tínhamos feito nada parecido. Queria levar as coisas

devagar com a Noah, mostrar­


-lhe o sexo a pouco e pouco e, principalmente,

esperar que estivesse preparada.

— Quando te iniciei no sexo oral de forma espetacular? — perguntei,

divertido com a sua reação.

— Nicholas! — exclamou, alarmada, olhando para a esquerda e para a direita,

como se alguém nos pudesse ouvir ali, onde estávamos. — Deus do céu, não

importa, nem sequer sei como me ocorreu falar disto.

Puxei­
-a para mim e obriguei­
-a a retribuir o olhar.
— Tu és a minha namorada, podes falar comigo sobre tudo o que quiseres...

O que tem o que fizemos na outra noite? — insisti, tentando tranquilizá­-la, já

que sabia que ela morria de vergonha destes temas; já reparara nisso quando

deixava escapar uma ordinarice qualquer. — Não gostaste?

Claro que tinha gostado, até tivera de tapar a boca para ninguém ouvir os seus

gritos. Porra, teríamos mesmo de falar daquilo naquele momento? Reparei que

estava a ficar excitado só de me lembrar da ocasião.

— Gostei, sim, mas não é isso — pousou o olhar noutro lado. — Mas...

pergunto­
-me se tu também... queres que, enfim, que te faça o mesmo.

Quase me engasguei com a minha própria saliva.

Os olhos da Noah voltaram a pousar sobre os meus e fitaram­-me, cheios de

vergonha, mas também de desejo. Sim, via o desejo por detrás daqueles olhos

cor de mel e, meu Deus, não podia continuar a ter conversas sobre sexo com a

Noah em lugares públicos. Só de pensar nisso, ficava nervoso...

— Porra, Noah... — disse, apoiando a testa na sua. — Queres matar­


-me do

coração?

Ela sorriu, divertida, e cravou os olhos nos meus.

— Ou seja, sim, já tinhas pensado nisso — respondeu, e afastei­-me dela para

a admirar, alucinado.

— Acho que qualquer tipo com olhos na cara e que te tivesse à frente pensaria

nisso, amor. Claro que já pensei, mas não é algo que tenhamos de fazer se não

for essa a tua vontade.

Ela mordeu o lábio com nervosismo.

— Mas... Não é justo, quero dizer, tu tiveste de passar por isso, e eu...

Soltei uma gargalhada.

— Passar por isso? Quem te ouvir falar há de pensar que é uma tortura —

respondi, tentando entendê­


-la. — Noah... Fi­-lo com todo o gosto; e, mais do

que isso, quando tiver oportunidade, quero repetir.

Os olhos da Noah arregalaram­-se algures entre surpreendidos e excitados. Às

vezes esquecia­
-me de como ela podia ser inocente.

— Então farei o mesmo... — afirmou, decidida, embora eu tenha visto uma

centelha de dúvida no seu olhar.

— Não — abanei a cabeça, olhando para ela divertido. — As coisas não são

assim. Aquilo que eu te faço é independente daquilo que quiseres fazer comigo;

não é uma questão de retribuição. Quando sentires que queres fazê­-lo, fazes,

mas, se esse momento nunca chegar... Enfim, arranjo outra — brinquei. Ela
deu­
-me uma palmada no braço.

— Estou a falar a sério! — respondeu, chamando­-me à atenção.

Tentei ser sério com ela.

— Eu sei, desculpa, mas não quero que faças nada que não queiras fazer, está

bem? — respondi, beijando­


-lhe o nariz.

A Noah pestanejou algumas vezes e voltou a fitar­


-me.

— Então, não te importas?... Não estou a dizer que não quero, só que acho

que... bem, que ainda não estou preparada.

E era por isto que estava apaixonado pela minha namorada. Qualquer outra

rapariga sem personalidade teria cedido só para me deixar contente. A Noah

não era assim. Se não estava segura de alguma coisa, podia fazer o que quisesse

para a convencer, mas ela continuaria a ser fiel a si mesma.

— Anda cá — disse­
-lhe, puxando­-a para mim e beijando­-a como se aquela

fosse a nossa última vez. — A mim, basta ter­


-te ao meu lado, meu amor.

A Noah sorriu com doçura, e, alguns instantes depois, entregámo­-nos um ao

outro de forma épica.


5

Noah

Acabei o secundário. Não sei se já passaram por algo semelhante, mas é uma

sensação maravilhosa; bem sei que ainda me faltava a parte mais difícil, ainda

tinha de ir para a universidade, e, vendo­-o agora com a devida distância, essa

parte seria pior, mas acabar a escola secundária era algo incomparável. Era um

passo em direção à vida adulta, à independência, e era uma sensação tão

gratificante que sentia o corpo todo a tremer enquanto esperava na fila, com os

meus colegas de turma, que chamassem o meu nome.

Chamavam­
-nos por ordem alfabética, por isso a Jenna estava vários lugares à

minha frente. A cerimónia fora organizada na perfeição, com muita elegância,

nos jardins da escola enfeitados com grandes faixas que anunciavam ano de

2016. Ainda me lembrava de como eram as cerimónias na minha antiga escola.

Faziam­
-se todas no ginásio, com um candeeiro decorativo qualquer e pouco

mais. Aqui, até as árvores que rodeavam os jardins tinham sido decoradas. As

cadeiras para os familiares e amigos se sentarem estavam forradas com tecidos

caríssimos, verdes e brancos — as cores oficiais da escola privada —, e as nossas

togas, no mesmo tom de verde, tinham sido desenhadas por uma estilista de

renome. Era uma loucura, um esbanjamento incrível de dinheiro, mas, com o

tempo, aprendera a não me escandalizar com estas coisas: vivia rodeada de

multimilionários, e para eles estas coisas eram normais.

— Noah Morgan! — chamaram­-me ao microfone. Sobressaltei­


-me e subi as

escadas com nervosismo para receber o meu diploma. Olhei para as filas de

familiares com um sorriso radiante e vi o Nick e a minha mãe aplaudirem de

pé, tão felizes como eu; a minha mãe até estava aos saltinhos, como louca, o que

me provocou um enorme sorriso. Cumprimentei a diretora com um aperto de

mão e juntei­
-me ao resto dos finalistas.

A miúda que teve uma classificação média duas décimas superior à minha

subiu ao palco depois de terem acabado a entrega dos diplomas e fez o discurso

final. Foi emocionante, divertido e muito bonito: ninguém teria feito melhor
do que ela. Ao meu lado, a Jenna deixou escapar algumas lágrimas, e eu ri­-me,

para tentar conter a vontade de seguir o seu exemplo. Apesar de só ter estado

naquela escola durante um ano, a verdade é que foi um dos melhores da minha

vida. Depois de ter abandonado definitivamente todos os meus preconceitos,

consegui que esta escola me desse não apenas uma preparação magnífica para a

universidade mas também algumas amigas fantásticas.

— Parabéns, ano de 2016. Somos livres! — entoaram ao microfone os

professores, emocionados e em uníssono.

Todos nos levantámos e atirámos os chapéus ao ar. A Jenna abraçou­-me com

tanta força que fiquei quase sem ar.

— E agora, festa! — exclamou a minha amiga, a aplaudir e a saltar como se

estivesse possessa. Soltei uma gargalhada, e pouco depois estávamos rodeadas de

centenas de familiares que se aproximavam para cumprimentar os filhos.

Despedimo­
-nos por instantes e fomos à procura das respetivas famílias.

Uns braços rodearam­


-me por trás, com força, e levantaram­-me do chão.

— Parabéns, marrona! — disse­-me o Nick ao ouvido, pousando­


-me no chão e

dando­
-me um beijo sonoro no rosto. Voltei­-me e atirei os braços ao seu pescoço.

— Obrigada! Ainda nem acredito! — Admiti com a cara enterrada no

pescoço dele, enquanto os braços me apertavam com vontade.

Antes de lhe poder dar um beijo, a minha mãe apareceu e, metendo­-se entre

nós os dois, abraçou­


-me.

— Acabaste o secundário, Noah! — gritou, como se fosse uma colegial,

enquanto dava saltinhos e me obrigava a fazer o mesmo. Ri­-me ao mesmo

tempo que via o Nick abanar a cabeça com indulgência e rir­


-se de nós. O

William ficou ao nosso lado e, depois de a minha mãe me soltar, deu­-me um

abraço carinhoso.

— Temos uma surpresa para ti — anunciou.

Olhei para os três com desconfiança.

— O que fizeram? — perguntei com um sorriso.

O Nick pegou­
-me na mão e puxou­-me.

— Vamos — disse, e segui os três através do jardim. Havia tanta gente à

nossa volta que demorámos algum tempo a chegar ao parque de

estacionamento.

Para onde quer que olhasse, via carros com laçarotes gigantes, alguns muito

chamativos, de cores brilhantes, outros com bolas atadas aos espelhos. Deus do

céu! Que pais podiam ser loucos ao ponto de comprarem carrões destes a
miúdos de dezoito anos?

Foi então que o Nick me tapou os olhos com uma das suas grandes mãos e me

começou a guiar através do parque.

— Espera, o que estás a fazer? — perguntei, rindo­-me ao tropeçar nos meus

próprios pés. Comecei a sentir um formigueiro inquietante de emoção.

«Não, não podia ser...»

— Por aqui, Nick — indicou a minha mãe, e nunca tinha ouvido a sua voz

tão emocionada. O Nick obrigou­


-me a virar o corpo e parou de andar.

Um segundo depois, a sua mão afastou­-se dos meus olhos, e fiquei,

literalmente, boquiaberta.

— Diz­-me que este descapotável vermelho não é para mim — sussurrei com

incredulidade.

— Parabéns! — disseram o William e a minha mãe em uníssono, ambos com

um sorriso radiante.

O Nick pôs­
-me as chaves em frente ao nariz.

— Acabaram­
-se as desculpas para não me ires visitar — murmurou com

satisfação.

— Vocês estão malucos! — gritei com histeria, quando caí em mim.

Porra, tinham­
-me comprado um Audi...

— Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! — comecei a berrar como uma doida.

— Gostas? — perguntou o William.

— Estás a gozar comigo? — respondi, aos saltos. Meu Deus, estava tão

eufórica que nem sabia o que fazer.

Corri em direção à minha mãe e ao William e abracei­-os com tanta força que

quase os deixei sem ar. Tinha feito alguns comentários sobre precisar de poupar

para comprar outro carro. Infelizmente, o meu avariara umas cinco vezes nos

últimos meses, e as contas da oficina eram tão altas que mais valia comprar um

carro novo. Mas nunca imaginei que me fossem oferecer um Audi!

— Não estou a acreditar nisto, a sério que não — confessei, enquanto entrava

no carro. Era lindo, vermelho e brilhante; para onde quer que olhasse, tudo

parecia reluzir.

Ao meu lado ouviam­


-se gritos de júbilo, porque não tinha sido a única a

receber um carro como presente de formatura: havia mais laçarotes naquele

parque de estacionamento do que numa loja de artesanato.

— É um Audi A5 Cabrio — informou­-me o Nick, sentando­-se ao meu lado.

Abanei a cabeça, ainda em estado de choque.


— É incrível! — exclamei, metendo a chave na ignição e ouvindo o doce

ronronar do motor.

— Tu és incrível — corrigiu­-me ele, e senti um calor dentro de mim que me

levou ao sétimo céu. Perdi­


-me imediatamente no olhar dele e na felicidade que

sentia. A minha mãe teve de me chamar várias vezes para eu reagir. Ao meu

lado, o Nick soltou uma gargalhada.

— Vemo­
-nos no restaurante? — perguntou, enquanto o William o abraçava

pelos ombros.

A minha mãe tinha feito reserva num dos melhores restaurantes da cidade.

Depois de jantar com a família, eu tinha a festa de formatura no Hotel Four

Seasons, em Beverly Hills. Não só tinham contratado o melhor catering e o

maior salão — com capacidade para mais de quinhentas pessoas — como

haviam reservado dois andares inteiros do hotel para podermos lá ficar a dormir

naquela noite: só tinha de voltar para casa no dia seguinte. Era uma loucura, e

inicialmente queixei­
-me bastante, já que tínhamos de ser nós a pagar tudo,

ainda que com desconto, sim, porque o pai de um dos nossos colegas era dono

do hotel, mas, mesmo assim, tinha custado uma verdadeira fortuna.

— Quando me formei, fizemos um cruzeiro e só voltámos para casa cinco dias

depois — contou­
-me o Nick quando lhe revelei o meu assombro perante o que

os meus colegas de turma estavam a planear. Depois daquela resposta, decidi

guardar as minhas opiniões para mim mesma.

Assenti, entusiasmada, cheia de vontade de conduzir aquele carro

maravilhoso. Os assentos eram de couro bege, tudo impecável, ainda a cheirar a

carro novo... um cheiro que até então nunca sentira.

Rodei a chave na ignição e saí do parque de estacionamento deixando a escola

para trás... de uma vez por todas.

— Abranda, Noah, estás­


-te a passar ou quê? — ralhou o Nick no lugar do

passageiro. O vento batia­


-nos na cara, soprava­-nos o cabelo para trás, e eu não

conseguia parar de rir.

O sol estava a pôr­


-se, e a vista que tinha naquele momento era

impressionante; os outros carros passavam ao meu lado, o céu estava pintado de

mil tons diferentes de rosa e laranja, e as estrelas começavam a aparecer no céu

sem nuvens. Estava uma noite de verão perfeita, e sorri ao pensar no mês e meio
de férias que tinha pela frente. Ia poder estar com o Nick, estar realmente com

ele, sem exames, sem trabalho, sem nada... Tínhamos seis semanas para estar

juntos antes de eu me mudar para a cidade, e, ao pensar neste futuro tão

perfeito, não conseguia parar de sorrir.

— Porra, não deviam ter­


-te comprado este carro — lamentou entre dentes, ao

meu lado. Olhei para ele e revirei os olhos, antes de abrandar.

— Está bom assim, avozinho? — disse, picando­-o. Eu adorava velocidade,

não era novidade para ninguém.

— Continuas acima do limite de velocidade — acrescentou ele, olhando para

mim com ar sério. Ignorei­


-o, não ia andar a menos de cem... Cento e vinte era

uma velocidade ótima; além disso, naquela cidade, toda a gente andava a mil.

— Olha, não estás em Nascar... Fazes o favor de abrandar? — orde­


nou­-me um

segundo depois. Disse isto a brincar, eu sabia, mas o sorriso que tinha no rosto

pareceu desvanecer­
-se até desaparecer por completo.

Eu tinha tentado com todas as forças não pensar no meu pai, muito menos

naquele dia. Era um esforço de verdade, mas qualquer coisa o trazia de volta ao

meu pensamento, e, naquela ocasião tão especial, não consegui evitar uma certa

nostalgia por ver todas as minhas amigas com os pais. Não parava de me

perguntar como teria sido a cerimónia se o meu pai não tivesse enlouquecido

e... morrido. Tinha a certeza de que não seria o Nick quem estaria agora ali,

sentado ao meu lado, e de que não me teria pedido para reduzir a velocidade...

Mas que pensamento idiota! O meu pai era alcoólico, um criminoso com

instintos assassinos, tentara matar­


-me... Que raio estava a acontecer comigo?

Como podia sentir a sua falta? Como podia continuar a imaginar uma vida que

nunca tinha existido e que nunca existiria?

— Noah? — ouvi o Nick a chamar­


-me. Sem me aperceber, abrandei a

velocidade até ir quase a sessenta, e os outros carros apitavam­-me e

ultrapassavam­
-me. Abanei a cabeça: perdera­-me novamente dentro de mim

mesma.

— Estou bem — assegurei, sorrindo e tentando regressar ao estado de euforia

em que me encontrava há poucos instantes. Carreguei no acele­rador e ignorei a

pontada que ainda sentia no coração.

Não demorámos muito mais a chegar ao restaurante. Era lindo. Nunca ali

tinha ido e estava desejosa de provar a comida. Tinha dito à minha mãe que me

era indiferente onde íamos jantar, desde que o restau­rante tivesse o melhor bolo
de chocolate: era esta a minha única exigência.

A minha mãe e o William deviam estar mesmo a chegar. Saí do carro, e,

depois de fazer o mesmo, o Nick aproximou­-se. Estava lindo, com umas calças

escuras, camisa branca e gravata cinzenta. Adorava quando o via vestido de

forma tão «empresarial», como costumava dizer. Sorriu como só fazia quando

estava comigo e viu­


-me tirar a toga que ainda tinha vestida. Por baixo, trazia

um vestido rosa­
-claro, que me assentava como uma luva e que tinha figuras

geométricas nas costas que deixavam pedaços de pele à mostra.

— Estás maravilhosa — disse, pousando a mão na parte de baixo das minhas

costas e puxando­
-me para si com delicadeza. Mesmo com os sapatos de salto

alto, continuava a não ser da altura dele. Os meus olhos fixaram­-se nos lábios

dele, em como era atraente, todo ele.

— Também tu — respondi a rir, sabendo quão pouco gostava de que o

elogiasse. Não entendia bem porquê, mas ele ficava genuinamente

envergonhado quando lhe dizia que era bonito. Não era segredo para ninguém;

estávamos no parque de estacionamento há três minutos, e mais de cinco

mulheres se tinham voltado para trás para olhar para ele com descaramento.

Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, calou­-me com um beijo.

— Hoje vamos passar a noite juntos — afirmei quando se separou de mim,

um segundo depois. Este beijo durara muito pouco tempo para o meu gosto.

Os olhos dele fitaram­


-me com desejo.

— Estou a pensar em raptar­


-te para vires viver comigo no meu apartamento

durante o verão inteiro — disse­-me, soltando­-me.

Por um instante, a imagem de nós os dois a viver na mesma casa, mas sem

pais à nossa volta, fez o meu coração sobressaltar-se... Embora fosse uma

loucura, claro.

— Não te diria que não — respondi a rir.

— Eras capaz de vir? — perguntou, encurralando­-me contra o carro. Levei as

mãos ao pescoço dele e abracei­


-o, puxando­-o para mim. Ia dar­
-lhe um beijo nos

lábios, mas ele chegou­


-se para trás, à espera de uma resposta.

Sorri, divertida, desejando continuar com aquele jogo.

— Não me importaria de passar todas as noites contigo, ambos nus... na tua

cama — reconheci, acariciando­-lhe o cabelo com um dos meus dedos.

O Nick fitou­
-me com uma expressão esfomeada. Estava a seduzi­-lo, algo que

descobrira que sabia fazer bastante bem.

— Não comeces algo que não possas acabar — avisou­-me ele, inclinando­
-se
para pousar os lábios sobre os meus; mas desta vez fui eu quem inclinou a

cabeça para trás.

Os nossos olhares cruzaram­-se: o meu, divertido, o dele, perigoso e

terrivelmente prometedor.

Desviei a boca para o pescoço dele e vi que fechava os olhos mesmo antes de os

meus lábios lhe aflorarem a pele. Descobrira que um simples toque da minha

boca num ponto em especial do pescoço dele o deixava completamente

desarmado.

Sabia que não podia deixar­


-me levar: estávamos no meio de um parque de

estacionamento, e os nossos pais deviam chegar em breve, mas desejava­


-o

tanto...

— Esta noite — disse, dando­-lhe minúsculos beijos no queixo, ­baixando até

ao pescoço e deslizando a ponta da língua até chegar à orelha dele — vou ser

tua, Nick.

Então, uma das mãos dele pousou na minha cintura, enquanto a outra subiu

até à nuca, obrigando­


-me a inclinar a cabeça para trás.

— Não preciso que sejas mais minha do que já és — respondeu, antes de me

beijar como desejava desde que ali chegáramos. A sua língua entrou na minha

boca sem pedir licença, investiu contra a minha com uma ­loucura desenfreada,

saboreando­
-me ou castigando­
-me, não sabia bem.

Era incrível o que a sua presença conseguia criar no meu metabolismo. O

contacto dele, de todo o seu corpo, deixava­-me louca. Não importava quanto

tempo se tivesse passado nem que tivéssemos estado todo o dia anterior juntos.

Nunca me cansava dele, nunca ia deixar de sentir esta atração que parecia unir­
-

nos como se fossemos ímanes.

Mas antes de o meu corpo se derreter, ou melhor, antes de se incendiar em

combustão espontânea, a buzina de um carro pregou­-nos um valente susto,

obrigando­
-nos a afastar­
-nos de repente.

— A tua mãe — disse ele com má cara.

— O teu pai — contra­


-ataquei.

A verdade é que ambos nos fulminaram com o olhar.

A minha mãe saiu do carro e avançou na nossa direção.

— Não se importam de se controlar? Estamos num local público — ralhou,

olhando de forma acusadora para o Nick. A verdade é que, ultimamente, olhava

sempre para ele com muito maus modos... Não achava graça nenhuma àquilo,

ia ter de falar com ela. O William apareceu pouco depois.


O olhar que dirigiu ao filho deixou­-me completamente arrepiada.

Quando entrámos no restaurante, percebi que não éramos os únicos a escolher

aquele sítio para festejar a formatura. Vários colegas de turma me

cumprimentaram ao ver­
-nos passar, e eu sorri a todos com alegria. O maître

levou­
-nos a uma mesa que prepararam no terraço. Ficava ao lado da piscina, e

numerosas velas rodeavam tanto a nossa mesa como a de outras pessoas que

preferiram jantar ao ar livre. O local era muito acolhedor, e a música de um

piano soava algures ao longe; só ao fim de alguns minutos me apercebi de que

estavam a tocar ao vivo.

O Nicholas sentou­
-se ao meu lado, e os nossos pais, à nossa frente. Não sei

porquê, mas senti­


-me subitamente constrangida. Uma coisa era comermos uma

piza na cozinha lá de casa, outra bem diferente era sentarmo­-nos todos num

local daqueles para jantar; além disso, há meses que o Nick não ficava para

jantar em família, e quase consegui palpar a tensão que se sentia no ambiente.

Inicialmente, correu tudo muito bem. Como sempre, a minha mãe não

conseguia estar calada nem um minuto. Falámos de tudo, do carro novo, da

universidade, do Nick e do seu trabalho, da nova empresa do William, que eu

sabia que o Nick desejava um dia dirigir... E, aos poucos, comecei a sentir­
-me

mais confortável. Além disso, a minha mãe dirigia­-se a nós como casal, o que

podia ser bastante agradável ou ­irritante, dependendo da perspetiva.

Só depois da sobremesa, depois de ter comido uma fatia de um mara­vilhoso

bolo de chocolate, a minha mãe decidiu revelar algo que, certamente, guardara

durante semanas.

— Tenho outra surpresa para ti — anunciou, quando já ninguém conseguia

comer mais nada. Levei o copo aos lábios, tão satisfeita e feliz que não esperava

de todo a bomba que ela soltou em cima de mim, um segundo depois: —

Vamos as duas fazer uma viagem pela Europa durante quatro semanas!

«Espera lá... como?»


6

Nick

Só pode estar a gozar.

Acho que o olhar que dirigi àquela mulher foi tal que até o meu pai ficou

momentaneamente sem palavras. Ao meu lado, a Noah ficou calada, depois de

olhar para mim por breves segundos.

— Enlouqueceste, mãe? — disse a Noah com um tom de voz suave.

«Por que razão está a fingir? Por que diabo não lhe diz que nem em sonhos

vai passar o verão inteiro sem mim, do outro lado do mundo?»

— Tu estás a crescer e a seguir vais para a universidade... — começou por

dizer a Raffaella sem sequer olhar para mim. Era por isso que continuava a falar,

porque, se olhasse para mim, de certeza que os seus lábios deixariam

imediatamente de se mover, petrificados de terror. — Acho que esta é a última

oportunidade que temos de fazermos alguma coisa juntas e já sei que não ficas

tão contente como eu, mas... — E desatou a chorar.

Bebi um gole de vinho, tentando controlar a minha ira. Por baixo da mesa,

tinha a mão da Noah na minha e acho que a apertava tanto que lhe cortava a

circulação, mas ou a segurava ou perdia de vez a cabeça e ia começar a vomitar

as mil e uma maldições que estava a engolir com tanto esforço.

O meu pai olhou de esguelha para mim durante um breve momento e levou

também o copo aos lábios. Teria sido ideia sua? Teria sido ele a meter esta ideia

peregrina na cabeça da mulher?

Mas por que raio ainda me questionava? Claro que tinha sido ideia dele, era

ele quem ia pagar a maldita viagem.

Foi então que a minha última esperança fraquejou.

— Claro que quero ir contigo, mãe — assegurou a Noah ao meu lado, e as

suas palavras foram como uma bofetada para mim.

Mas será que eu não tinha uma palavra a dizer em toda aquela situação? O

que diabo estava a fazer ali sentado?

Larguei­
-lhe a mão por baixo da mesa; estava a ficar cada vez mais danado: ou
saía dali ou ia acabar por dizer tudo o que tinha para dizer. Mas depois percebi

que, se me fosse embora, não ia resolver nada; noutra ocasião, teria armado uma

cena, mas agora já não podia fazer essas coisas, não se quisesse que me levassem

a sério... Se quisesse que nos levassem a sério, tinha de ficar ali e de dar a

conhecer a minha opinião: não iam afastar­


-me da minha namorada durante um

mês inteiro.

Ao ver que lhe soltava a mão, a Noah virou o rosto para mim. Olhei para ela e

percebi que aquilo a estava a martirizar tanto quanto a mim... Bem, já era

alguma coisa.

Antes de a Raffaella poder continuar, disse:

— Não achas que devias ter falado connosco antes?

Esforcei-me bastante para formular aquela pergunta no tom de voz calmo que

acabara de empregar.

A Raffaella olhou para mim, e, ao ver a expressão com que me fitava, percebi

que qualquer esperança que tivesse de que me aceitasse como namorado da

Noah se esfumara completamente no ar. Ela não me queria com a filha, e o seu

rosto não deixava margem para dúvidas.

— Nicholas, ela é minha filha e acabou de fazer dezoito anos. Ainda é uma

menina, e quero passar um mês de férias com ela, ou será assim tão difícil de

entender?

Antes que eu pudesse falar, a Noah saltou em minha defesa.

— Mãe, eu não sou uma menina, está bem? — respondeu, afas­tando o cabelo

para trás dos ombros. — E não fales assim com o Nick. Ele é o meu namorado e

tem todo o direito de não estar satisfeito com esta viagem.

Não estar satisfeito era um eufemismo, mas deixei­-a continuar a falar.

A Raffaella olhava para a filha, ainda tinha os olhos húmidos por ter estado a

chorar, e, quando assumiu uma expressão de mártir, só me apeteceu vomitar.

— Eu faço a viagem contigo.

«O quê?!»

— Mas, para a próxima, ou vamos todos ou não vou — acrescentou, sem

perceber como as suas palavras eram processadas pelo meu cérebro, que fez com

que, de repente, eu ficasse a ver tudo vermelho.

A mãe dela sorriu, e senti um calor tão grande no corpo que me levantei.

O meu pai olhou para mim, avisando­-me com o olhar.

— Estou de saída — anunciei, tentando controlar a voz. Tinha tanta vontade

de bater em alguém que as minhas mãos se transformaram em punhos. A Noah


levantou­
-se ao meu lado. Não sei se queria que viesse comigo. Estava tão

irritado com ela como com a mãe.

— Senta­
-te, Nicholas — ordenou o meu pai, olhando em volta. Estava sem-­

pre preocupado com a merda das aparências e sempre com aquela expressão de

desilusão no rosto. Comecei a caminhar em direção à saída sem sequer parar

para esperar pela Noah; precisava de sair e de apanhar ar.

Quando cheguei à rua, fui diretamente para o carro, mas apercebi­-me de que

não tinha chave. Aquele não era o meu maldito carro. Voltei­-me e apoiei as

costas na porta do condutor. A Noah vinha a caminhar na minha direção. Os

sapatos de salto alto não a deixavam acompanhar o meu ritmo. Tirei um cigarro

do bolso e acendi­
-o; estava­
-me nas tintas se lhe agradava que fumasse ou não.

Quando finalmente me alcançou, parou, com o rosto corado e os olhos a

procurarem os meus. Fixei o olhar nas pessoas que entravam no ­restaurante.

— Nicholas...

Não disse nada. Ouvi­


-a respirar fundo e desviei o olhar para ela.

— O que querias que fizesse? — perguntou, pondo­-se à minha frente.

Voltei o rosto e soltei o ar que estava a conter. Um mês, um mês sem a Noah.

Todos os planos que tinha feito, as coisas que queria fazer com ela, tudo fora por

água abaixo. Tinha planeado uma viagem, queria levá­-la comigo, visitar alguns

lugares com ela, queria fazer amor todos os dias do verão, aproveitar a sua

companhia, mas ela não hesitara um instante antes de aceitar o presente da mãe.

Magoava­
-me porque acreditava que me devia ter posto em primeiro lugar e não

o fizera.

Fixei os olhos nos dela.

— Dá­
-me a chave. Eu levo­
-te à tua festa.

Ficou calada, a observar­


-me. Sabia que ela queria falar do assunto, mas, à

medida que os segundos passavam, mais danado ficava ao pensar que não a ia

ter durante o verão, que ma tinham roubado, embora fosse só por um mês, e

que não havia nada que pudesse fazer a esse respeito.

Ela suspirou e continuou em silêncio. A seguir, levou a mão ao bolso, deu­-me

a chave do carro e sentou­


-se no lugar do passageiro.

Era melhor assim. Se começasse a discutir comigo, não me responsabilizava

pelos meus atos.


7

Noah

No carro, o ambiente estava de cortar à faca. Ele estava furioso, bem sabia,

via­
-o nos seus olhos.

Entendia perfeitamente que o Nick não achasse graça nenhuma ao facto de me

ausentar um mês inteiro, mas o que podia fazer? A minha mãe tinha organizado

a viagem, já estava paga, e não podia recusá­-la, era a minha mãe. Sempre

tínhamos falado da altura em que eu acabasse o secundário e fosse para a

universidade. Falávamos de ir comprar os móveis para a residência, brincávamos

a dizer que faríamos uma viagem pela Europa, de mochila às costas, para

podermos passar o último verão juntas, enquanto eu ainda fosse a sua menina,

como ela me chamava. Uma parte de mim queria esta viagem, não queria

perder a oportunidade de estar a sós com a mulher que me dera a vida e tudo o

que tinha, não podia recusá­


-la assim sem mais nem menos.

A outra parte de mim, também bastante importante, sentia dores no corpo

todo só de pensar que não ia ver o Nicholas durante quatro semanas inteiras. Eu

também tinha feito planos, também queria passar cada segundo do dia no

apartamento com ele, e mais ainda agora, que em breve teria de começar a

trabalhar e que as viagens a São ­Francisco não iriam durar duas semanas apenas,

como a última que fizera.

Olhei para ele do meu banco. Os olhos do Nicholas iam fixos na estrada, as

mãos agarravam o volante com força. Até tinha medo do que lhe fervilhava na

cabeça, mas não sabia o que fazer ou dizer para que não se zangasse comigo.

— Não vais falar comigo? — acabei por perguntar, armando­-me em forte. Ele

nem sequer olhou para mim, mas vi que as veias do pescoço ficavam tensas ao

cerrar o maxilar com força.

— Estou a tentar não te dar cabo da noite, Noah — disse um segundo depois.

A tentar?

— Nicholas, não me podes culpar por isto, eu não podia recusar­


-me a ir, é a

minha mãe! — exclamei, perdendo a calma.


— E eu sou o teu namorado! — gritou ele, assustando­-me. Pronto, já estava,

íamos acabar a discutir, que era a última coisa que queria fazer naquela noite.

Voltou o rosto para mim, e vi nos seus olhos que havia muitas coisas que me

queria dizer.

— Não faças isso, não me ponhas entre a espada e a parede, não me faças

escolher entre ti e a minha mãe — supliquei, controlando o tom da minha voz.

O Nicholas acelerou, e tive de me agarrar à porta. Depois vi o Four Seasons ao

longe. Uma fila comprida de carros esperava pela sua vez de deixar sair os

ocupantes. À medida que saíam, as pessoas entregavam as chaves aos

empregados do hotel, para estes estacionarem os carros. Vários dos meus colegas

de turma já ali estavam com os seus acompanhantes, e os sorrisos que

ostentavam nos rostos fizeram­-me sentir inveja. O meu já desaparecera, para

não variar.

O Nick parou atrás de um Mercedes e virou­-se para mim.

— Se eu tivesse de escolher, escolher­


-te­-ia sempre a ti — declarou com tanta

frieza que me gelou o sangue. Olhei para ele com incredulidade, magoada com

o seu tom de voz, mas a sentir­


-me culpada pelo que ele queria dizer com isso.

Eu não devia ser obrigada a escolher entre as duas pessoas que mais amava no

mundo, era um amor diferente, completamente distinto: amava a minha mãe

mais do que qualquer outra coisa, mas o amor que sentia pelo Nicholas era

inexplicável, um amor que doía, que adorava, mas que me assustava pela sua

intensidade. Saí do carro e, ao virar­


-me, apercebi­-me de que ele continuava

sentado no lugar do condutor.

— Não... não vais ficar? — perguntei, com voz trémula, através da janela.

Que merda! Ali estavam novamente os sentimentos de abandono, de

dependência... Não queria que me deixasse, precisava de o ter ao meu lado,

queria partilhar aquela noite com ele, era uma noite em que devia ter o meu

namorado comigo.

Ele afastou o olhar do meu e fitou as pessoas que subiam as escadas íngremes,

até à receção.

— Não sei, preciso de estar sozinho — declarou com aquele tom de voz que

eu detestava, que me fazia lembrar o velho Nicholas.

Senti que a raiva se apoderava de mim. Não era justo, não era justo que se

zangasse comigo por causa de algo que não era da minha responsabilidade.

— Vai­
-te lixar, Nicholas! Íamos passar a noite juntos ao fim de mais de três

semanas afastados, e tu vais desperdiçar a oportunidade — retorqui, afastando o


cabelo para trás, cada vez mais furiosa. — Podes ir embora à vontade, vou

divertir­
-me muito mais sem ti!

O grande sacana nem esperou que eu entrasse. Com os pneus a chiar, acelerou

até desaparecer pela saída lateral, a gastar­


-me os pneus, já que o carro era meu.

Como se não bastasse, deixava­


-me ali abandonada, sem maneira de me poder ir

embora se me fartasse da merda da festa.

Encaminhei­
-me para as escadas, onde muitos alunos falavam entre si,

emocionados. Havia ali várias raparigas da minha turma com quem podia

entrar, mas não me apetecia aproximar­


-me delas e fingir que estava muito feliz,

porque não estava: sentia­


-me zangada e magoada.

— Ei, Morgan!

Dei meia­
-volta e deparei­
-me com a cara sorridente do Lion. O meu rosto

iluminou­
-se. A última vez que o tinha visto, senti­-o distante e frio, mas agora

fiquei contente por ver o seu sorriso radiante. À semelhança do que acontecera

com a Jenna — que se transformara na minha melhor amiga e confidente —,

acabara por me afeiçoar bastante ao Lion: era uma pessoa magnífica, carinhosa,

amável e nada intimidante. Inicial­mente, é verdade que me inspirara algum

temor, sobretudo por ser amigo do Nicholas; mas nada podia estar mais longe

da verdade: o Lion era um amor. Dei­-lhe um abraço apertado quando se

aproximou para me cumprimentar.

— Parabéns pela formatura! — disse, soltando­-me logo a seguir.

— Obrigada — agradeci com um sorriso.

— O Nick? — perguntou, procurando em volta. O sorriso desapa­receu do

meu rosto.

— Foi­
-se embora. Discutimos — respondi, cerrando os dentes. Para minha

surpresa, o Lion soltou uma gargalhada. Fulminei­


-o com o olhar.

— Dou­
-lhe meia hora até estar colado a ti como uma lapa... É o máximo de

tempo que consegue estar longe — vaticinou, ignorando o meu olhar assassino

e tirando o telemóvel do bolso.

— Ele que não venha, nem quero olhar para a cara dele.

O Lion revirou os olhos enquanto olhava para o ecrã do telemóvel.

— A Jenna chega daqui a dez minutos. Queres entrar comigo? — ofereceu­


-se

com amabilidade.

Assenti. Quem deveria acompanhar­


-me ao baile de formatura era o Nicholas,

mas quem ficava a perder era ele; eu arranjara­-me propositadamente para o

Nick, comprara a roupa interior numa loja supercara que a Jenna me


recomendara, e agora ele nem sequer a ia ver. Estava tão desiludida e irritada

que acho que até deitava fumo pelos ouvidos.

Ao entrar, encontrámos um vestíbulo impressionante. Havia ali muita gente,

e vi que muitos pais dos meus colegas também tinham decidido ir à festa beber

um copo. Vários homens de uniforme apontavam para onde devíamos ir, e eu e

o Lion seguimos as indicações. Os meus colegas de turma conversavam e riam

animadamente, até que chegámos aos jardins do hotel.

Deus do céu, que espetáculo! Tinham organizado a melhor festa de formatura

de toda a história. O salão estava aberto para o jardim, com muitas mesas altas

com toalhas elegantes de cetim verde a toda a volta da pista de dança que havia

no centro. As mesas estavam decoradas com arranjos de flores deslumbrantes;

eram peónias brancas, se não estava enganada. Da mesma forma, os empregados

de mesa, com fardas elegantes, circulavam com bandejas cheias de aperitivos e

copos de sabe Deus o quê, porque álcool não podia ser.

Olhei para o Lion, que estava tão fascinado e intimidado como eu. Nenhum

de nós tinha crescido rodeado daqueles luxos, e eu tinha a certeza de que ambos

nos sentíamos um pouco fora do nosso ambiente no meio de tanta gente

distinta e rica.

— Este pessoal sabe organizar uma festa — comentou.

— Nem me digas nada — concordei, alucinada com a beleza de tudo aquilo.

O jardim estava iluminado com ténues luzes brancas, e havia flores espalhadas

por todo o lado; o perfume que se insinuava por entre os meus sentidos

subjugara­
-me assim que ali entrara. A típica música de festa ainda não tinha

começado a tocar, mas vi que um grupo de violinos e violoncelos nos dava as

boas­
-vindas ao recinto.

— Ah, aqui estão vocês! — exclamou uma voz conhecida atrás de nós. Ambos

nos voltámos, e a Jenna recebeu­-nos com um sorriso imenso. — Já viram o

pessoal que aqui está? O que vos parece? Não exagerei, pois não? Ou acham que

fiquei aquém? Oh, Deus, não gostam?!

A Jenna tinha sido uma das responsáveis pela organização da festa. Sabia que

passara a maior parte do ano a organizar a formatura, e a verdade era que se

excedera. Se achava que eu e o Lion não tínhamos gostado, era porque as nossas

caras deviam estar deslumbradas com tudo aquilo.

— Porque dizes isso? — respondi, a rir. — É impressionante!

Dei­
-lhe um abraço, dizendo­
-lhe como estava bonita. Claro que se devia tudo à

genética, já que a sua mãe, Caroline Tavish, fora Miss ­Califórnia quando era
jovem, um título que não só lhe abriu mil portas como também levou um dos

homens mais ricos dos Estados ­Unidos a querer casar com ela. O pai da Jenna

era multimilionário, tinha plataformas petrolíferas um pouco por todo o mundo

e passava pouco mais de dois dias por mês em casa, mas, segundo a Jenna,

continuava apaixonadíssimo pela mãe... E como poderia não estar? A senhora

deixava qualquer um de queixo caído. A Jenna herdara o seu tipo de corpo e a

altura, embora o rosto fosse mais caloroso, juvenil e doce do que o da mãe, que,

de tão bonita, conseguia ser imponente.

— Mal posso acreditar que acabámos o secundário! — confessou, saltando e

dando um beijo entusiasmado nos lábios do Lion. Ele olhou­-a com admiração e

pousou a mão na cintura dela, puxando­-a para si. Trocaram algumas palavras

que não consegui ouvir, e, um segundo depois, a Jenna voltou­-se para mim.

Olhou para os lados com o sobrolho ­franzido.

— E o teu Nicholas, onde está?

Revirei os olhos perante a sua mania de lhe chamar isto. O Nicholas não era

meu, pois não? A verdade é que naquele momento não fazia a menor ideia.

— Não sei, nem me importa — respondi, embora na realidade me

importasse, e muito.

A Jenna franziu o sobrolho. Não entendia bem porquê, mas, quando eu e o

Nicholas nos zangávamos ou tínhamos alguma discussão, ela defendia­


-o

sempre. Está bem, conhecia­


-o desde que eram pequenos, mas ela também era

minha amiga, devia ficar ao meu lado e defender­


-me.

— Jenna, superaste­
-te! — exclamou o Lion para mudar de assunto.

A noite começou sem olhar a meios. Alguém, ou melhor dizendo, muita

gente trouxe álcool para o evento, e em menos de uma hora todos os presentes

já estavam embriagados, aos tombos na pista de dança. As luzes eram

intermitentes, e, de repente, dei por mim rodeada por uma enorme quantidade

de pessoas. Irmãos, primos e amigos dos finalistas também tinham vindo à

festa, e fiquei um pouco ansiosa quando dei por mim apertada entre vários tipos

que se encostavam tanto a mim que mal me davam espaço para dançar. Dei­-lhes

um empurrão e saí da pista. Estava a transpirar e aproximei­-me da lateral, onde

um rapaz ser­
via shots aos maiores de idade. Já tinha bebido vários corpos... Não

estava bêbeda, mas tocada.

— Queres um? — perguntou­-me uma rapariga quando o empregado

desapareceu para ir buscar mais gelo. Em cima da mesa havia vários copos de

vidro com um líquido branco espesso e muitos cubos de gelo.


— O que é? — perguntei, receosa.

— Black Russians.

Se ela me tivesse respondido Red French, teria ficado a saber o mesmo. Não

fazia ideia do que aquilo era.

— É um cocktail com vodca, licor de café e natas. Está muito bom; além disso,

dizem que é afrodisíaco — acrescentou, pestanejando várias vezes. Estaria a

meter­
-se comigo?

Era o que me faltava, uma miúda a fazer­


-se a mim! Mas, como tinha

mencionado a palavra «café», esqueci a sua orientação sexual e peguei num dos

cocktails da mesa. Levei a palhinha à boca e provei.

— Bolas, é ótimo! — exclamei. A miúda riu­-se.

A vodca mal se notava, não queimava a garganta, era como estar a beber um

batido de café com um toque mais ousado.

Observei a rapariga mais atentamente. Não a reconhecia, devia ser amiga ou

familiar de alguém. Tinha o cabelo escuro apanhado num rabo de cavalo alto.

Continuei a beber o que acabara de se tornar o meu cocktail favorito. A Jenna

estava a dançar com Lion na pista, e, sem me dar conta, já tinha bebido mais

dois copos e iniciara uma conversa com a rapariga do batido, que, na verdade, se

chamava Dana. Era muito simpática e ou estava demasiado tocada ou era

mesmo muito divertida; estava tão distraída a rir­


-me da sua última piada que o

que menos esperava era que me agarrasse rapidamente na nuca e me espetasse

um beijo nos lábios. Foi tão rápido e tão inesperado que demorei um instante a

afastá­
-la com um empurrão.

— Mas o que estás a fazer? — perguntei, um pouco zonza.

A rapariga riu­
-se, divertida.

— Queria saborear a vodca dos teus lábios — respondeu, como se não fosse

nada.

A situação era tão surreal para mim que fiquei calada por instantes.

— Eu tenho namorado — declarei, uns segundos depois, ou talvez uns

minutos, não sei bem, acho que o álcool já me tinha subido à cabeça. Tinha

mesmo acabado de beijar uma rapariga?

— Acalma­
-te, foi só um chocho — respondeu ela, desviando os olhos para os

pousar em alguma coisa atrás de mim.

Um calafrio percorreu todo o meu corpo.

Senti a sua presença mesmo antes de me voltar para verificar se estava

enganada. O Nicholas estava ali; os seus olhos claros trespassavam­-me ao longe.


Começou a encaminhar­
-se para mim.

— É melhor ires­
-te embora — aconselhei rapidamente a Dana. — De

repente, temia pela sua vida.

Ela soltou uma gargalhada, pegou no seu Black Russian e foi para a pista de

dança. Perdi­
-a de vista no instante em que o Nick se pôs à minha frente.

— Agora gostas de miúdas, é? — perguntou com tranquilidade, mantendo as

aparências.

Não me deixei intimidar.

— Quem sabe? — respondi, irritada. Estava furiosa com ele. Tinha­-me

abandonado, na minha própria festa de formatura; vi­-me sozinha e rodeada de

gente com quem não me apetecia estar, e, ainda por cima, beijaram­-me sem o

meu consentimento.

— O que é que estás a beber? — perguntou ele, tirando­-me o copo das mãos.

Pensei que ia pousá­


-lo na mesa, mas em vez disso, bebeu o cocktail. De

repente, apesar da minha fúria, fiquei morta de vontade de saborear a bebida

nos lábios dele, como aquela miúda fizera comigo. Também queria provar um

Black Russian na boca dele...

— Sabes a quantidade de álcool que isto tem? — disse ele, depois de acabar o

que restava no copo e de o pousar atrás de mim. Observei­-o, a apalpar o terreno,

sem adivinhar o seu estado de espírito... Bem, era evidente que estava irritado,

mas havia mais qualquer coisa no seu olhar.

— Deve ter muito. Se estivesse sóbria, já te tinha mandado para o inferno.

Ele inclinou a cabeça para um dos lados, observou­-me e aproximou o corpo do

meu. Sem me tocar, pousou as duas mãos na mesa que havia atrás de mim e

encurralou­
-me no meio dos seus braços.

Subitamente, senti falta de ar. Os olhos celestes do Nick procuraram os meus.

— Não tens razões nenhumas para estares irritada comigo, Noah — afirmou

ele, muito sério. — Quem vai sair prejudicado disto tudo sou eu, já que tu vais

estar de férias na Europa.

— E eu repito que não foi ideia minha — disse, olhando fixamente para ele.

O Nick respirou fundo e afastou­-se, dando­-me espaço.

— Presumo que isto seja o chamado ponto morto — declarou, com um ar

indecifrável.

Uma parte de mim sabia que ele tinha razões para estar transtornado, mas a

minha raiva parecia ter­


-se tornado o sentimento dominante da noite. Não

queria calar­
-me, não me apetecia ser compreensiva... Talvez porque também
estava transtornada com toda aquela situação. Não fazia parte dos meus planos

ir para a Europa com a minha mãe, e sentia­-me aborrecida e triste por não

poder passar aquele mês com o Nick. Na verdade, estava irritada com a minha

mãe, mas quem estava à minha frente era o Nick, e eu precisava de descarregar

a minha ira sobre alguém.

— Talvez não devesses ter voltado. Disseste que não querias arruinar­
-me a

noite, e é exatamente o que estás a fazer.

O Nick levantou exageradamente as sobrancelhas.

— Queres que me vá embora?

Terei detetado um vislumbre de desilusão nos seus olhos azuis?

— O que me parece evidente é que não vou ficar aqui a discutir ­


contigo.

O Nick observou­
-me demoradamente.

— Acho que já bebeste mais do que a conta, ó espertinha.

Ergui­
-me nos meus sapatos de salto alto e fulminei­-o com o olhar. Sentindo­
-

me poderosa, mas no fundo sabendo que estava a comportar­


-me como uma

criança, estendi o braço, enchi um copo com o ponche que estava em cima da

mesa e bebi­
-o de um só trago. Tinha tanto álcool que quase me saltaram as

lágrimas dos olhos, mas acho que valeu a pena só para ver as veias do pescoço do

Nick incharem a tal ponto que quase se tornava preocupante.

— Estás a comportar­
-te como uma idiota, e quem vai ter de cuidar de ti mais

logo vou ser eu.

Encolhi os ombros e afastei­


-me dele. Fui para a pista de dança, onde estavam

os meus amigos, e comecei a dançar com vigor. A certa altura, o copo caiu­
-me

da mão e molhei os pés de alguém, mas não me importei muito com isso. Um

instante depois, a Jenna veio ter comigo, e continuámos a dançar. Quando os

saltos que dávamos fizeram do meu estômago uma montanha­


-russa, obriguei­
-

me a parar. Os meus olhos começaram a procurar alguém pela sala.

Sabia que o Nick não se tinha ido embora; pelo contrário, continuara a

seguir­
-me com o olhar durante todo o meu triste espetáculo. Não tinha sido

esta a reação que esperara, mas pelo menos não estávamos a discutir.

Até que a certa altura cambaleei perigosamente para o lado, e um braço me

segurou pela cintura. Um braço forte, musculado e lindo... o Nick.

Dei a volta e entrelacei as mãos na sua nuca.

— Vejo que ainda aqui estás — comentei, com os olhos fixos nos lábios dele.

— E eu vejo que mal te aguentas em pé. Se o teu objetivo esta noite era

mexeres­
-me com os nervos, já conseguiste. Parabéns.
Ri­
-me ao ouvi­
-lo dizer «mexer­
-me com os nervos».

— Não era essa a minha intenção, mas, no que diz respeito a mexer, posso

mexer­
-te onde quiseres...

O Nick não se riu; pelo contrário, parecia estar a ponderar o que fazer comigo.

Passei os dedos pelo cabelo dele, enterrando­-os junto à nuca, porque sabia que

adorava que o acariciasse ali. Mas ele segurou­-me nos pulsos e obrigou­-me a

parar.

— Deixa­
-me levar­
-te lá para cima, Noah — pediu­-me, cerrando o maxilar

com força.

Olhei em redor. Algumas pessoas já tinham decidido subir e deviam estar nos

seus quartos, enroladas com alguém.

— Muito bem... Talvez possa ser divertido — aceitei, com um sorriso nos

lábios.

O Nick libertou o ar que sustinha e levou­-me para fora da sala.

— Vai ser tudo menos divertido — disse em voz baixa, para si mesmo, mas

eu ouvi­
-o perfeitamente.

Teria estado a controlar­


-se por haver tanta gente à nossa volta?

Oh, merda!
8

Nick

Saímos do salão onde se celebrava a festa, e, como já tinha ido buscar as chaves,

levei­
-a diretamente para o nosso quarto. Quando entrámos, ficámos a olhar

fixamente um para o outro. Frente a frente, sem sabermos muito bem o que

fazer ou dizer. Eu não sabia se queria continuar irritado ou devorá­-la com beijos.

A Noah parecia enfrentar uma batalha semelhante.

— Então não vai ser divertido, é? — perguntou ela enquanto as mãos

puxavam o fecho do vestido com destreza e o deixavam cair no chão.

Ficou só de roupa interior e saltos altos, que lhe ficavam a matar. Fitei o

conjunto de sutiã e cuecas que trazia... Acho que nunca o tinha visto e fiquei

sem palavras.

Ela cambaleou ligeiramente, e atravessei o espaço que nos separava com dois

passos. Agarrei­
-a pela cintura e peguei nela ao colo para a levar para a casa de

banho, sentando­
-a na sanita.

— Estás embriagada, Noah.

Encolheu os ombros.

— Não o suficiente para não saber que me trouxeste aqui só para me

castigares por ir de viagem para a Europa.

Franzi o sobrolho.

— Quem está a sofrer um castigo esta noite sou eu, sardas, e não o contrário.

— Bem, sei de muitas coisas que podemos fazer para não nos castigarmos

mutuamente.

Não consegui evitar um sorriso. Ali estava ela, meio despida, des­lumbrante,

com o rosto corado do álcool, devido à situação ou fosse ao que fosse, mas não

aguentei mais e segurei o rosto dela com as mãos antes de colar os meus lábios

nos seus. Foi um beijo sem língua, um jogo de lábios, nada mais, um jogo de

que sabia que necessitava naquele momento, para não perder a cabeça.

Quando as mãos dela começaram a desapertar­


-me a camisa, ­afastei­-me.

— Acho que antes te devia dar um duche frio...


A Noah abanou a cabeça.

— Não, não, frio não, estou bem — disse, puxando­-me novamente.

Voltámos a beijar­
-nos, desta feita com mais intensidade. As minhas mãos

subiram pelas suas costas nuas até desapertarem o sutiã. Fiquei embasbacado a

olhar para ela, as sardas chegavam­-lhe aos seios e ao cimo dos ombros. Levei os

lábios até ali e comecei a beijá­-la até chegar ao lóbulo da orelha. Mordi­-o e

suguei­
-o como se fosse um caramelo.

A Noah estremeceu sob o meu toque, e afastei­-me novamente para a olhar nos

olhos.

— Não quero que vás — confessei, pegando nela ao colo e saindo da casa de

banho. As pernas dela fecharam­


-se com força à volta da minha cintura, e senti

que todos os meus músculos se retesavam.

Ela não me respondeu, limitou­-se a beijar­


-me mais uma vez. Deitei­-a sobre a

cama e fiquei levantado sobre ela, para não a esmagar. Comecei a beijar­
-lhe o

maxilar até chegar à concavidade que unia o ombro ao pescoço.­

A Noah moveu­
-se debaixo de mim, procurando roçar­
-se no meu corpo para

aplacar a vontade dos dois. Afastei­-me e deitei­-me ao seu lado. Observei­


-a,

atordoado. A sua respiração acelerara, e o peito subia e descia ritmicamente.

— Podia passar a noite inteira a olhar para ti — declarei, apoiando­-me sobre

o braço direito. Com a outra mão, acariciei­-lhe suavemente as costelas dela,

passei pela barriga lisa e fui subindo até aprisionar o seio esquerdo entre os

meus dedos.

— Nick, vem cá — pediu­


-me, com os olhos fechados e movendo­-se inquieta

sob as carícias da minha mão.

— Quero ver o teu corpo corar com cada uma das minhas carícias, Noah.

Os olhos cor de mel abriram­


-se e cravaram­-se nos meus.

— Mas...

Calei­
-a com um beijo enquanto a minha mão descia até parar junto ao elástico

da roupa interior.

— Não quero que vás para a Europa — repeti, enquanto deslizava a mão por

baixo do tecido.

Ela contorceu­
-se e voltou a fechar os olhos.

Comecei a agitar os dedos e, logo a seguir, percebi que todo o meu corpo

ficava tenso só de ver a expressão do rosto dela. Não havia nada de que gostasse

mais do que aquilo, ver o corpo dela reagir ao meu toque, morder o lábio ou

ouvir os suspiros suaves de prazer que soltava.


Não podia ficar um mês sem ela, não ia aguentar. Adorava ver que estava a

desfrutar das minhas carícias. Fazer amor com ela uma vez desde que voltara de

São Francisco não fora suficiente para nenhum dos dois, e pensar que ela se ia

embora durante um mês inteiro deu­


-me vontade de lhe mostrar como iria sentir

a minha falta.

— Vais viajar? — perguntei­-lhe ao ouvido, enquanto aumentava o ritmo das

carícias.

— Vou... — respondeu e só conseguiu deixar­


-me ainda mais danado.

— Tens a certeza? — insisti, entre dentes, enquanto os movimentos da minha

mão ganhavam força.

Sabia que não a ia deixar terminar, por isso parei no momento mais tenso.

Os olhos dela abriram­


-se como se não entendesse o que acabara de acontecer.

Tinha as pupilas dilatadas de desejo e a boca entreaberta, à espera de soltar um

grito de prazer que nunca chegou.

Não conseguia olhar para ela, fechei os olhos e deixei­-me cair de costas.

Doía­
-me o corpo todo, estava a castigar­
-me também, mas sentia­-me consumido

pela raiva, corroía­


-me de uma forma que nem sabia explicar.

— Porque paraste? — acusou­-me, sem entender.

Como podia explicar­


-lhe como me sentia perdido naquele momento? Como

fazê­
-la entender que, se ela se fosse embora, eu ficaria a viver no inferno?

Não disse nada, e a Noah aproximou­-se de mim até apoiar a cabeça sobre o

meu ombro. Acariciou­


-me por cima da camisa.

— Não quero que esta viagem estúpida seja um problema entre nós, Nick —

disse, quase num sussurro.

Passei a mão pela cara e fitei­


-a finalmente, sem dizer uma palavra.

— Se é assim tão importante para ti, falo com a minha mãe, talvez

possamos...

— Não — interrompi­
-a, taxativo. — Dá­-me só um tempo para me habituar à

ideia... Por muito que te queira ter comigo em todos os instantes do dia, sei que

vai ser impossível, o que não deixa de me enervar... terrivelmente.

Mordeu o lábio, pensativa, e vi no seu olhar que a ideia da viagem também

não lhe agradava nem um pouco... Inclinou­-se e deu­


-me um beijo no rosto.

— Eu amo­
-te, Nick. Amas­
-me? — perguntou, à espera da minha resposta.

— Amo­
-te mais do que a mim mesmo — respondi, sem desviar o olhar,

enquanto lhe acariciava as costas nuas.

— Isso é difícil — respondeu, sorrindo como uma menina.


— És mesmo muito engraçada — retorqui, pondo­-me em cima dela e

prendendo­
-a com os braços.

Beijei­
-a, movendo lentamente os lábios sobre os seus, enquanto ela enterrava

os dedos no meu cabelo.

— Estás cansada? — perguntei, enterrando a boca no seu pescoço.

— Acaba o que estavas a fazer antes — sussurrou.

Eu precisava dela, sentia esta necessidade desde que tínhamos dis­cutido, no

carro, queria que me fizesse sentir que eu era o único, o único que amava e

desejava.

— Queres que faça amor contigo, sardas? — inquiri com um sorriso.

Acabou por me tirar a camisa, com o rosto corado e o desejo refletido nos

olhos bonitos. Pousou os lábios no meio do meu peito e foi subindo até ao

pescoço. Quando a língua me acariciou o maxilar, fiquei tenso e, quando me

mordeu a orelha com uma pressão maravilhosa, imobilizei as mãos junto à sua

cabeça.

Estendeu o pescoço para procurar a minha boca, e deixei­-a beijar­


-me.

Introduzi a língua com movimentos suaves enquanto fazia pressão com a anca.

— Amo­
-te, Nick — declarou, atirando a cabeça para trás quando a minha

mão começou a fazer das suas no corpo dela.

— Eu é que te amo.

E foi assim que acabámos a noite... A fazer a única coisa que nunca nos

causava problemas.
9

Noah

A intensa luz da manhã acabou por me acordar. Tínhamos deixado as cortinas

espessas abertas, e agora tinha uma vista privilegiada sobre as elegantes casas de

Beverly Hills. Ao longe, também se viam os arranha­


-céus do centro da cidade,

rodeados de edifícios mais baixos.

O braço do Nicholas segurava­-me contra o peito, as pernas entre­laçadas nas

minhas. Quase não conseguia respirar, mas adorava estar assim, adorava dormir

com ele: eram as minhas melhores noites. Havia semanas que não dormia um

sono só, sem acordar a meio da noite com os pesadelos.

Voltei­
-me com cuidado até ficar de frente para ele. Era adorável quando

dormia, os traços do rosto serenos, as pálpebras docemente fechadas... Quando o

tinha assim, a dormir ao meu lado, parecia tão jovem. Gostava de saber o que

lhe ia na cabeça. Por exemplo, com o que estava a sonhar naquele instante?

Levantei uma mão com cuidado e acariciei­-lhe a sobrancelha esquerda, sem o

acordar. Estava a dormir tão profundamente que nem se mexeu. Deslizei os

dedos pela maçã do rosto, até chegar ao queixo. Como podia ser tão bonito?

Foi então que um pensamento absolutamente inesperado me inundou a

cabeça: como seriam os nossos filhos?

Já sei, estava a perder o tino, ainda me faltavam muitos anos até me decidir a

formar família, mas ocorreu­


-me de repente a imagem de uma criança de cabelo

escuro. Era evidente que seria lindíssima, com os genes do Nick qualquer

criança seria bonita... Como se comportaria ele com um bebé? Sabia que a única

criança que ele suportava era a sua irmã mais nova, porque já tivera de ralhar

com ele mais de uma vez por ser brusco com as crianças na praia ou em algum

restaurante. De qualquer maneira, faltava imenso tempo para que isso

acontecesse; além disso, também era preciso considerar o pormenor de a

probabilidade de eu não poder ter filhos ser altíssima, por causa do vidro que

espetei na barriga naquela fatídica noite. Pensar nisso deixou­-me triste, e fiquei

grata por o Nick abrir um olho sonolento para olhar para mim.
Sorri.

— Olá, bonitão — disse­


-lhe com um sorriso no rosto quando vi que franziu o

sobrolho, resmungão. Era assim o meu Nicholas. O Nick sem o sobrolho

franzido não era o Nick.

Estendeu o braço e puxou­


-me com bastante força, tendo em conta que acabara

de acordar.

— O que estavas a fazer, sardas? — perguntou, enterrando a cabeça no meu

pescoço e fazendo­
-me cócegas com a respiração.

— Estava só a admirar como és lindo.

Ele soltou um grunhido.

— Por amor de Deus! Não me chames lindo, qualquer coisa menos isso! —

suplicou, levantando a cabeça.

Soltei uma gargalhada perante a sua expressão. Tinha o cabelo despenteado, e

o ar de irritação era o mesmo que uma criança amuada faria.

— Estás a rir­
-te de mim?

O seu olhar sombrio distraiu­-me, mas atirou­-se a mim e começou a fazer­


-me

cócegas.

— Não, não, não! — gritei, a rir e a contorcer­


-me sob as suas mãos. —

Nicholas!

Ele riu­
-se comigo, mas a seguir ataquei­-o também, belisquei­-lhe o estômago

duro com os dedos, e ele deu um salto tão grande que caiu da cama.

— Mãe do céu! — exclamei, com uma gargalhada histérica. Estava a chorar

de tanto rir, e doía­


-me a barriga.

Então, ele levantou­


-se, agarrou­-me por um pé e puxou­-me até à ponta do

colchão; antes que eu caísse, levantou­-me nos braços, pôs­-me sobre o ombro

como se eu fosse um saco de batatas e encaminhou­-se para a casa de banho.

— Agora vais ver — ameaçou, enquanto ligava o chuveiro.

— Desculpa, desculpa! — supliquei, sem conseguir parar de rir.

Não se ralou em meter­


-me debaixo da água fria do duche. Fiquei com a T­
-

shirt colada ao corpo como se fosse uma segunda pele.

— Ai, está gelada! — gritei, afastando­-me do jato de água e começando a

tremer. — Nicholas! — ralhei, mas ele quis brincar comigo, virou a torneira, e

a água quente começou a cair­


-me sobre os ombros.

— Silêncio. Agora que já te divertiste à minha custa, chegou a minha vez —

anunciou, agarrando na T­
-shirt colada ao meu corpo e puxando­-a até ma despir.

Fiquei nua à sua frente.


Os seus olhos percorreram as minhas curvas.

— Acho que esta é a melhor forma de acordar — declarou, inclinando­-se e

apoderando­
-se dos meus lábios.

Meia hora depois, estava sentada na varanda, enrolada numa toalha, com o

cabelo a pingar. O Nicholas estava a pedir que nos trouxessem o pequeno­


-

almoço. A verdade é que me parecia estranho não haver ninguém a gritar nos

corredores: presumira que seria impossível dormir rodeada de estudantes

embriagados, mas enganei­


-me; isso ou as paredes daquele hotel eram

perfeitamente insonorizadas.

Quando o Nick acabou de falar, virei­-me para ele. Também tinha o cabelo

molhado, estava sem T­


-shirt e apenas de calças de fato de treino, que lhe

descaíam da cintura, deixando antever o vale escuro que ia do umbigo até mais

a baixo. Deus, que corpo espetacular! Tinha todos os malditos abdominais bem

marcados e perfeitamente trabalhados. Como raio fazia aquilo? Sabia que ia ao

ginásio e que fazia surf, mas, caramba, aquele corpo era uma obra­-prima do

outro mundo.

— Estás a apreciar­
-me? — perguntou ele, divertido, enquanto se sentava na

mesa, ao meu lado.

Senti­
-me corar.

— Algum problema? — respondi, ignorando que o sol se refletia naquele

instante nos seus olhos azuis.

Dirigiu­
-me o seu sorriso de esguelha que mais me agradava.

— Eu também quero apreciar. Anda cá — pediu, puxando­-me e obrigando­


-

me a sentar no colo dele. Estava nua por baixo da toalha, e, ao sentar­


-me em

cima dela, esta subiu­


-me pelas pernas.

— Não tens nada por baixo? — perguntou ele, num tom de voz que passou

da surpresa à reprimenda em menos de um segundo. Revirei os olhos.

— Não está aqui ninguém, Nicholas — expliquei, exasperada.

Ele olhou para ambos os lados: estávamos sozinhos, a única coisa à nossa

frente era a vista espetacular da cidade.

— Pode haver algum pervertido a observar­


-nos de binóculos neste instante

preciso, daqueles edifícios ali — disse, puxando­-me a toalha. Não se via nada,

era um exagerado.

— Tu é que perdes. Vou vestir­


-me — anunciei enquanto me levantava para

entrar no quarto.
Vi­
-me fixamente ao espelho. Como podia alguém passar de se sentir tão triste

para ser aquela pessoa que me devolvia o olhar? Acho que o amor era mesmo

assim, uma montanha­


-russa de emoções e sentimentos antagónicos: num

segundo, podíamos estar no ponto mais alto possível e, no segundo seguinte, a

arrastar­
-nos pelo chão, sem sabermos sequer como ali chegáramos.

Inclinei­
-me sobre a pequena mala que trouxemos. Não sabia por que motivo

ver a minha roupa ao lado da dele me fez sorrir como uma tonta, mas adorei ver

o meu vestido ao lado da T­


-shirt Marc Jacobs dele.

Peguei nele e vesti­


-o. Era simples, azul­-marinho com florinhas amarelas. Fora

a minha mãe quem mo comprara, e de certeza que custara para cima de um

dinheirão.

Quando comecei a maquilhar­


-me em frente ao espelho, o meu olhar fixou­
-se

numa parte em concreto do meu corpo... Soltei um gemido quando afastei o

cabelo e vi o meu pescoço: tinha dois chupões.

Saí da casa de banho furiosa.

— Nicholas! — gritei. Ele estava a falar ao telemóvel. Tinham finalmente

trazido o pequeno­
-almoço, e ele já começara a comer, sentado na varanda como

se não se passasse nada, a tagarelar tranquilamente com alguém.

O olhar desviou­
-se para mim.

— Espera — disse a quem quer que estivesse do outro lado da linha.

Fiz sinal para o pescoço e para parte da clavícula. Um sorriso absolutamente

imbecil atravessou­
-lhe o rosto. Voltei­-me, irritada, e atirei­-lhe uma almofada.

Ele levantou um braço para se proteger enquanto praguejava em voz alta.

— Eu depois ligo­
-te — disse, desligando o telemóvel. — Que bicho te

mordeu?

Odiava que me marcassem, odiava com todas as minhas forças que me

deixassem marcas na pele. Trazia­


-me más recordações, mais nada.

— Sabes que odeio chupões, Nicholas Leister — afirmei, tentando controlar a

voz.

Aproximou­
-se com cautela, estendeu o braço e afastou­-me o cabelo para

conseguir ver a minha pele.

— Desculpa, não me apercebi — respondeu simplesmente.

Revirei os olhos.

— Pois, está bem — respondi, afastando­-lhe a mão no instante em que

começava a acariciar­
-me a pele. — Já te disse, Nicholas, não gosto de marcas,

não sou nenhuma vaca.


Ele riu­
-se, e senti­
-me tentada a dar­
-lhe um murro.

— Vá lá, sardas, ontem já discutimos o suficiente, vamos continuar a festejar

em paz.

Fiquei muito quieta, mas depois a mão dele chegou à minha nuca e puxou­
-me

a cabeça para trás, obrigando­


-me a olhar para ele.

— Se me perdoares, faço tudo o que quiseres — disse.

— O quê? — perguntei com incredulidade.

O olhar dele escureceu.

— O que quiseres, estou a falar a sério, basta abrires a boca, pedires, e sou

teu.

Sabia o que aquela cabeça pervertida estava a pensar. Sorri, aproveitando a

situação e sentindo­
-me poderosa.

— Está bem — concordei, subindo as mãos pelo pescoço dele. — Há uma

coisa que quero que faças.


10

Nick

— Só podes estar a gozar — respondi de forma taxativa.

Estávamos a estacionar em frente a um refúgio de animais.

— Tu disseste que era o que eu quisesse — respondeu a louca da minha

namorada ao sair do carro, tão feliz como se tivesse cinco anos.

— Estava a referir­
-me a sexo.

A Noah riu­
-se, como se a minha proposta fosse do mais insólito possível.

— Eu sei — afirmou então —, mas, como se trata de mim e não de ti, vais

comprar­
-me um gatinho.

Porra, outra vez a conversa do maldito gato! Eu detestava gatos, eram uns

idiotas, não se lhes conseguia ensinar nada, e, além disso, eram melosos,

passavam o dia inteiro em cima de nós. Preferia cães, caramba, ­preferia o meu

cão, que tinha sido obrigado a deixar em casa do meu pai porque no meu prédio

não permitiam animais de grande porte.

— Já te disse mil vezes que não penso ter um gato no meu apar­tamento.

A Noah cravou os olhos furiosos em mim, atirou o cabelo para trás, e, antes de

começar a tagarelar sem parar, puxei­-a contra o peito e tapei­-lhe a boca com a

mão.

— Não vou comprar um gato. Ponto final.

A sua língua começou a lamber­


-me a mão para que a soltasse, e dei­-lhe um

apertão nas costelas que me fez lembrar de mim próprio naquela manhã. Ambos

morríamos de cócegas.

Soltei­
-a antes que se passasse da cabeça.

— Nicholas! — gritou, ofegante e com as faces coradas.

Levantei as sobrancelhas à espera do que tivesse para me dizer; estava adorável

com aquele vestido azul... Podia arrancar­


-lho ali mesmo, mas contive­-me.

— Encheste­
-me de baba — acusei, limpando a mão às calças.

Ela ignorou o meu comentário e fulminou­-me com os seus olhos de gata.

— Pronto, está bem, se não queres comprar­


-me um gato, compro eu —
respondeu e, logo a seguir, deu meia­-volta sobre os calcanhares para entrar no

inferno de qualquer homem que se preze, sem dúvida.

Exasperado, fui atrás dela, e o cheiro a animal e a excrementos inundou­-me os

sentidos. Ruídos de animais, de hámsteres a correr e de gatos a miar chegaram­


-

me aos ouvidos, e tive de me conter para não arrastar a Noah dali pelos cabelos.

Ignorando­
-me espetacularmente, dirigiu­-se ao empregado que estava atrás do

balcão. Era um jovem, certamente da idade dela, e, assim que a viu, os seus

olhos iluminaram­
-se.

— Em que posso ajudar?

A Noah olhou para mim durante um segundo e, ao ver que eu não tinha

intenção de fazer o que quer que fosse, voltou­-se para o rapaz com indiferença.

— Quero adotar um gato — respondeu com determinação.

Aproximei­
-me dela quando o empregado saiu de trás do balcão com um

sorriso imenso, disposto a vender­


-lhe o mundo inteiro, claro.

— Por aqui — disse, indicando um corredor. — Ainda ontem fomos recolher

uns gatinhos a um parque de estacionamento. Estavam abandonados e não têm

mais de três semanas.

Um «Oh!» infinito de pena saiu dos lábios da Noah. Eu revirei os olhos

enquanto aquele idiota nos levava até uma sala onde havia muitas jaulas com

gatos de todos os tamanhos e cores. Alguns estavam a dormir, enquanto outros

brincavam ou se limitavam a miar como se os estivessem a esganar.

— São estes aqui — anunciou o rapaz fazendo sinal para uma jaula ao fundo

da sala. A Noah foi diretamente para lá como se ali houvesse um tesouro

mágico.

— São tão pequeninos — comentou com aquela voz esquisita que as miúdas

usam quando falam com cachorros ou bebés.

Aproximei­
-me do sítio onde ela estava e vi os quatro gatos ronhosos em cima

de uma manta. Três eram cinzentos com manchas brancas nas patas ou na

cabeça, e o quarto era completamente preto. Transmitiram­-me logo uma

sensação má.

— Estão a brincar — disse o empregado, fazendo também voz de miúda.

Fulminei­
-o com o olhar e aproximei­-me mais da Noah.

— Posso pegar num? — pediu ela, recorrendo a todos os seus encantos

femininos. Só tive vontade de a arrastar imediatamente dali.

— Claro, o que quiser.

E, claro, que gatinho escolheu a Noah?


O preto, como é evidente.

— É o mais calmo de todos. Desde que os trouxemos, ainda não o vi brincar.

Os outros três não paravam quietos, atiravam­-se para cima uns dos outros e

batiam com as patitas na cara dos irmãos. Era evidente que tinham incomodado

o pobre gatinho até mais não.

A Noah encostou o gatito ao peito e começou a fazer­


-lhe festinhas como uma

mãe faz ao seu bebé. Assim que o maldito do gato começou a ronronar, percebi

que não havia nada que pudesse fazer.

Suspirei profundamente.

— Oh, olha para ele, Nick — disse ela, fitando­-me com olhos meigos.

O gato era feio como os trovões, preto, com o pelo arrebitado, mas eu sabia

que a Noah não ia escolher o gato mais bonito ou o mais brincalhão: ia escolher

o desamparado, o que tinha sido posto de parte, aquele que mais ninguém

queria... O que me fez pensar em mim.

— Pronto, está bem, caraças, podes ficar com o gato — cedi.

Um sorriso enorme desenhou­-se no seu rosto.

O funcionário levou­
-nos até ao balcão, e tive de assinar uma série de papéis,

nos quais me comprometia a cuidar do gato e a encarregar­


-me das vacinas e

restantes tretas. A Noah começou a percorrer a loja e, quando voltou, vinha

carregada de tralha para o animal sem nome.

— Vais comprar essas coisas, é? — piquei­-a. Não queria saber nem um pouco

do dinheiro, só queria irritá­


-la.

— Disseste o que eu quisesse — recordou­-me, pousando uma coleira, uns

pratos para comida e uma cama fofa azul em cima do balcão.

O gato do demónio estava numa caixa pequena que nos deram para o

podermos levar para casa.

— Espero que ele se adapte bem a vocês e que se divirtam — desejou­-nos o

empregado, olhando unicamente para a Noah. — Daqui a umas semanas,

quando já tiver crescido um pouco, não se esqueçam de o levar ao veterinário

para ser vacinado e castrado.

Tinha cada vez mais pena do desgraçado do animal.

Dez minutos depois já íamos a caminho do meu apartamento. Ia final­mente

conseguir estar com a Noah e propor­


-lhe aquilo em que andava a pensar há
meses.

Voltei­
-me para olhar para ela, e um sorriso involuntário surgiu no meu rosto.

Parecia a minha irmã quando tinha um brinquedo novo.

— Que nome lhe vais dar? — perguntei, enquanto saía da auto­estrada e me

encaminhava para o quarteirão onde ficava o meu apar­tamento.

— Humm... Ainda não sei — respondeu, acariciando o Sem Nome com

cuidado.

— Não lhe chames Nala ou Simba nem nenhuma dessas mariquices, por favor

— pedi, estacionando no meu lugar. A seguir, saí do carro e fui abrir­


-lhe a

porta.

A Noah nem olhava para mim, tão enamorada estava. Fulminei com o olhar o

animalzinho que me tirara o protagonismo.

— Acho que lhe vou chamar N — anunciou então, enquanto subíamos de

elevador.

— N? — repeti com incredulidade. Deus do céu, perdera a cabeça!

A Noah olhou para mim, sentindo­-se ofendida.

— Sim, N. É a nossa inicial, Nick e Noah — explicou.

Soltei uma gargalhada.

— Acho que o café de hoje te subiu à cabeça.

Ela ignorou­
-me deliberadamente enquanto entrávamos no apar­tamento.

Estava finalmente em casa. Era o único sítio onde me sentia tranquilo, e

adorava ter a Noah só para mim.

— Quando eu não estiver, vais ter de cuidar dele — comentou, soltando o

gato no meio da sala e vendo­


-o começar a investigar o espaço.

— É que nem sonhes. O gato é teu, a responsabilidade é tua — assegu­


rei,

deixando as tralhas todas no chão.

Ela olhou para mim com cara de caso, e puxei­-a na minha direção antes de

recomeçarmos a discutir.

— Só tu consegues fazer com que ceda neste tipo de coisas — afirmei,

inclinando­
-me para lhe beijar o pescoço. A Noah virou­-se para me faci­litar o

acesso. A sua pele era suave e cheirava mesmo bem... Vi as marcas que lá tinha

deixado... Gostava, adorava ver as marcas dos meus beijos na sua pele, mas

jamais o admitiria em voz alta, porque isso me traria muitos problemas.

— E se te disser que adoro a ideia de partilhar um animal de estimação

contigo? — disse então, e cheguei­-me para trás, para poder olhar para o seu

rosto. Ela encolheu os ombros, como se se sentisse culpada. — Ele vai ser nosso.
O nosso gatinho, dos dois. Agora somos os pais dele.

Quando a ouvi dizer aquilo, respirei fundo. Sabia que por detrás daquela frase

se escondia algo muito mais profundo, algo que a perseguia sempre e que me

fazia ferver o sangue.

Dei­
-lhe um beijo terno nos lábios.

— Está bem, eu cuido do K — acedi, segurando­-lhe no cabelo e encerrando o

assunto.

Deu­
-me uma palmada.

— Ele chama­
-se N!

Ri­
-me e peguei nela ao colo para a pousar sobre a bancada.

— Gostava de falar contigo sobre uma coisa — comentei, sentindo­


-me

repentinamente nervoso.

A Noah olhou para mim com curiosidade.

Porra, não fazia a menor ideia de qual seria a sua reação.

— Quero que venhas viver comigo quando começares as aulas na faculdade.


11

Noah

— Estás a falar a sério?

Ir viver com ele? Bastou­


-me ver a sua forma de olhar para mim para perceber

que devia avançar com muita calma quanto a este assunto, ­porque ele estava a

falar a sério, não restavam dúvidas.

O Nick pôs­
-se à minha frente e segurou­-me o rosto entre as mãos.

— Por favor, diz que sim.

Era demasiado, ele não podia pôr­


-me numa situação daquelas. Desci da

bancada e comecei a andar pelo apartamento.

— Nicholas, eu tenho dezoito anos — voltei­-me para olhar para ele, que ficou

parado, ali, de pé, a olhar para mim com o sobrolho franzido. — Dezoito anos

— repeti, caso não tivesse sido clara. Senti que o nervosismo começava a crescer

dentro de mim, porque s sensação de que não estávamos no mesmo nível, de

que ele precisava de mais do que eu lhe podia dar, assustava­-me mais do que

qualquer outra coisa.

— Tu és mais madura do que qualquer miúda da minha idade. Nem sequer

parece que tens dezoito anos, Noah. Não me venhas com isso, é ridículo. Se

vivesses aqui, podíamos ver­


-nos todos os dias, todas as noites — respondeu,

apoiando­
-se contra a bancada e cruzando os braços. — Não queres viver

comigo. É isso? — perguntou um segundo depois.

Bolas... Como lhe podia explicar que não tinha nada que ver com ­querer ou

deixar de querer? Como havia de lhe dizer que me assustava dar este passo

sendo ainda tão jovem? Ou que, na verdade, o que me ­deixava de pé atrás era

que, se vivêssemos juntos, ele acabaria por perceber que eu estava com a cabeça

toda avariada devido ao que me acontecera no passado e, no fim, havia de se

fartar de mim, ou pior, de me deixar.

— Claro que quero — assegurei, aproximando­-me cautelosamente de onde

ele estava. Observou­


-me do alto da sua estatura sem mexer um músculo. — O

meu medo é darmos cabo do que temos agora por avançarmos demasiado
depressa.

O Nicholas abanou a cabeça.

— Isso é uma idiotice, Noah. Não podemos ir depressa de mais porque já

vamos quase à velocidade da luz; contigo as coisas são assim, comigo também.

Tu conheces­
-me, sabes perfeitamente que jamais teria dado este passo com outra

pessoa qualquer, só contigo, e se o faço agora é porque sei que é o mais acertado,

é o que temos de fazer, porque não consigo estar longe de ti... e tu também não

consegues estar longe de mim.

Respirei fundo, tentando acalmar o nervosismo... Viver com o ­Nicholas...

Seria um sonho, realmente, poder vê­-lo todos os dias, sentir­


-me segura a todo o

instante, amá­
-lo a todas as horas.

— Tenho medo de não ser aquilo que esperas que seja — admiti com voz

trémula.

A imobilidade que assumira quebrou­-se, e estendeu a mão para me acariciar o

rosto. Os seus olhos percorreram as minhas feições, com vagar, como se estivesse

a admirar cada um dos meus traços.

— Quero ver esta cara ao acordar — confessou, deslizando o dedo sobre o

meu lábio inferior. — Quero beijar os teus lábios antes de dormir — continuou

com uma voz rouca —, quero que o teu toque seja a última coisa que sinto

quando me deitar. Quero sonhar contigo tendo­-te nos meus braços. Olhar para

ti enquanto estiveres a dormir e cuidar de ti a cada minuto do dia.

Levantei os olhos e vi nos seus que cada uma destas palavras lhe saía

diretamente do coração. Estava a falar a sério, queria­-me ali com ele; senti que o

meu coração começava a bater mais depressa, que ­dentro de mim alguma coisa

se inflamava de felicidade, que me derretia. Como podia amá­-lo tanto? Como

conseguia ele tanto de mim, sem que me pare­cesse difícil dar­


-lho?

— Está bem. Venho viver contigo — aceitei, sem acreditar no que estava a

fazer.

Um sorriso radiante aparece no rosto dele.

— Repete — pediu­
-me, desencostando­-se da bancada e segurando o meu

rosto entre as mãos.

— Venho viver contigo, vamos viver juntos.

Acabaram­
-se os pesadelos, acabaram­-se os medos; com ele ao meu lado,

conseguiria recuperar pouco a pouco, com ele seria capaz de ­superar ­qualquer

coisa. Puxou­
-me o rosto e pousou os lábios sobre os meus. Senti o seu sorriso.

Ele estava feliz, era verdade, sentia­-o, e estava contente por isso.
— Deus do céu, amo­
-te tanto! — exclamou, apertando­-me pela ­cintura,

contra o seu corpo. Abracei­


-o e ri­-me por cima do ombro dele, ao ver que o N

olhava para nós do fundo do corredor, pequenino, preto e com os olhos claros.

Íamos viver os três, eu, o Nick e o N.

Infelizmente, os dias seguintes passaram depressa; a minha mãe ainda não

fazia ideia de que, assim que regressássemos da nossa viagem, eu ia viver com o

Nick, e só pensava contar­


-lhe quando fosse absolutamente necessário. Ele tinha

andado de muito bom humor, mas este estado de espírito foi decaindo à medida

que faltava cada vez menos para me ausentar durante um mês inteiro. Levara

muito a sério a ideia de eu ir viver com ele e já esvaziara metade do roupeiro e

da cómoda para eu ter sítio onde deixar a minha roupa, que tinha levado aos

poucos, às escondidas, sempre que o visitava. O apartamento, que antes era um

pouco masculino de mais para o meu gosto, transformara­-se num sítio mais

alegre: fomos juntos comprar algumas almofadas coloridas, e obriguei­-o a trocar

os lençóis escuros do quarto por outros brancos e muito mais acolhedores. O

Nick andava encantado, claro. Por ele até podia pintar o apartamento todo de

cor­
-de­
-rosa; desde que estivesse ali com ele, tanto fazia. Já tinha levado alguns

dos meus livros favoritos, e a minha mãe parecia ainda não se ter apercebido de

nada.

O calor já se apoderara da cidade. Para trás ficavam os dias em que tínhamos

de vestir camisolas ou calças largas. O Nick levava­-me à praia quase todos os

dias. Tomávamos banho no mar, e até tinha tentado ensinar­


-me a fazer surf, mas

sem sucesso... Não obstante, o dia em que eu e a minha mãe iríamos começar a

nossa viagem chegou finalmente, e agora só voltaríamos a ver­


-nos em meados

de agosto.

Deus do céu, tinha muita vontade de viajar, mas não sabia como conseguiria

estar tanto tempo separada do Nick!

Estávamos no meu quarto, com uma mala de viagem aberta em cima da cama

e o Nicholas sentado na cadeira da minha secretária, a brincar com o N e a

ignorar­
-me deliberadamente. Passava os dias amuado, não queria ouvir falar da

viagem nem de nada que estivesse relacionado com ela, mas eu ia partir dali a

um par de horas, por isso tinha de começar a habituar­


-se à ideia. Já me tinha

tirado coisas da mala e voltado a guardá­


-las umas cinco vezes sem eu me

aperceber; e também escondeu o meu passaporte, que encontrei três dias depois,

entre as suas papeladas de trabalho. Ameaçou­-me que me prendia à cama e até


que, se eu não ficasse em casa, deixaria o N morrer à fome. Eu tentava ignorar o

melhor possível cada uma das suas tentativas de sabotar a viagem, porque sabia

que aquilo lhe custava tanto ou mais do que a mim.

— Aviso­
-te já de que o calor em Espanha é infernal, e como, além disso, não

gostas de marisco, estás desgraçada. A Torre Eiffel, por outro lado, é muito

sobrevalorizada... Quando chegares lá acima, vais perguntar: Afinal, é só isto?

Ah, e em Inglaterra não esperes encontrar nada do outro mundo. O tempo é

horrível, e as pessoas muito sérias e aborrecidas...

— Vais continuar com esse plano insuportável? — interrompi, perdendo as

estribeiras. Aproximei­
-me dele e arranquei­-lhe o N das mãos. Tinha­
-lhe

comprado um brinquedo que deixava o gato louco: o Nick já tinha dez

arranhões no braço.

Antes que lhe virasse as costas, obrigou­-me a sentar no seu colo, com o N

entre nós.

Olhou para mim muito sério, como se estivesse a ponderar dizer o que

realmente lhe ia na cabeça.

— Não vás — disse. Eu revirei os olhos. Outra vez não.

— Anda, N, ataca! — pedi ao gato, levantando­-o e pondo­-o à frente da cara

do Nick. Ele franziu o sobrolho. — Pronto, é melhor portares­-te bem, gatinho,

não queremos que este louco te atire para um buraco qualquer. — Aproximei­
-

me dele e dei­
-lhe um beijinho na cabecinha escura e peluda.

O Nicholas observou­
-me, tenso.

— Agora vais ignorar­


-me, é?

— Se já respondi à mesma pergunta umas dez mil vezes, sim — respondi,

fitando­
-o. Deus, como ia sentir falta daquele olhar, das mãos, do corpo, de todo

ele!... — Gosto pouco de me repetir.

Levantou o sobrolho, irritado com as minhas palavras, obviamente.

— Larga lá o gato e olha para mim — pediu­-me, tirando­-me o N das mãos e

pousando­
-o no chão. Fitei­
-o, preparada para discutir.

— Não quero que faças nada estúpido ou perigoso — avisou­-me, agarrando­


-

me com força nas ancas, como se assim pudesse obrigar­


-me a ficar com ele. —

Não bebas e não fales com desconhecidos.

— Mas tu ouves o que dizes? — Libertei­-me das suas mãos e afastei­-me. Por

que razão tinha de ser tão ciumento e controlador? Não suportava aquilo. Será

que não confiava em mim, porra?

Comecei a enfiar coisas na mala sem sequer olhar para ele e, quando a enchi,
puxei o fecho... Merda, não fechava!

Afastou­
-me a mão e puxou o fecho com força, fechando a mala por mim.

Ouvi­
-o suspirar ao meu lado.

— Vou ter saudades tuas.

Olhei para ele e vi que estava abatido.

— O que vou fazer sem ti? — perguntou, perdido.

Respirei fundo para me acalmar. Segurei o seu rosto entre as mãos, pus­-me em

bicos dos pés e fitei os olhos dele.

— Eu volto antes de te dares conta, e depois vais ter­


-me só para ti; quando

voltar, mudo­
-me para a tua casa — prometi, esperando que aquilo o animasse

um pouco.

As mãos dele acariciaram os meus braços, de cima a baixo, com cuidado.

Como era ele capaz de mudar tão depressa de atitude?

— Eu amo­
-te, sardas, não quero que te aconteça nada de mal e fico doente só

de pensar que não vou poder cuidar de ti quando estiveres fora.

Senti um calor dentro de mim. Ia ter tantas saudades dele, tantas.

Dei­
-lhe um beijo ternurento nos lábios.

— Eu também te amo, e vai correr tudo bem...

Vi nos seus olhos que as minhas palavras não eram suficientes e compreendi

então que esta viagem seria uma prova crucial para a nossa relação. Não sabia

como iríamos reagir estando tanto tempo separados.


12

Nick

Levei­
-as ao aeroporto. O meu pai despediu­-se em casa, porque tinha de ir

trabalhar. Não achava graça nenhuma ter de passar a minha última hora com a

Noah tendo a mãe dela no banco de trás do carro, mas, mais uma vez, tive de

engolir os meus pensamentos. Aquela viagem não me agradava nem um pouco,

já o deixara bem claro, mas não havia nada que pudesse fazer.

Olhei para a Noah pelo canto do olho; ia calada e pensativa no seu lugar.

Insistira em trazer o bendito gato com ela e acariciava­-o distraidamente

enquanto olhava pela janela. Estendi o braço e agarrei­-lhe na mão, para a levar

com a minha à alavanca das mudanças. Sentia um vazio no peito e odiava aquela

sensação. Porra, era só um mês, também não seria tragédia nenhuma! Quando

me tornara tão desesperadamente dependente dela?

Não estava certo, não podia enlouquecer por não a ver durante um mês, tinha

de levar isto com mais calma. Esta separação seria um teste para vermos como

aguentaríamos estar afastados. Olhei para ela de esguelha, e ela sorriu, embora

eu tenha visto tristeza no seu olhar.

A mãe dela tinha um enorme sorriso no rosto, estava felicíssima. Por que

razão não era um problema para ela ficar longe do marido durante um mês?

Não entendia e, inconscientemente, apertei a mão da Noah ainda com mais

força.

Quando chegámos ao aeroporto LAX, estacionei no parque e tirei as malas da

bagageira, enquanto a Raffaella foi buscar um carrinho. A Noah aproximou­


-se

de mim rapidamente e deu­


-me um beijo nos lábios.

— O que estás a fazer? — perguntei, tentando parecer divertido, embora não

estivesse.

— Estou a beijar­
-te antes que a minha mãe volte — respondeu. Será que não

pensava beijar­
-me quando estivéssemos dentro do aeroporto, com a mãe?

Guardei as minhas opiniões para mim, sabendo que a beijaria as vezes que me

apetecesse e onde me apetecesse.


Meia hora depois, já tínhamos feito o check­-in das malas, e a Raffaella insistiu

em ir para a porta de embarque. Ainda faltava uma hora para o voo, mas aquela

mulher era exasperante.

— Vai tu à frente, mãe. Eu preciso de estar um momento a sós com o

Nicholas antes de me ir embora — disse a Noah. Como resposta, a mãe franziu

o sobrolho.

Olhou para mim, para a Noah e, por último, para o gato. A forma como o

fitou, com nojo, despertou em mim o instinto protetor.

Era o nosso gato.

Despediu­
-se finalmente de mim e foi­-se embora, deixando­-nos sozinhos.

Pus um braço sobre o ombro da Noah e puxei­-a para mim. Beijei­-a no

cocuruto da cabeça enquanto nos encaminhávamos devagar para o controlo de

passageiros.

— Não devia estar a sentir­


-me tão triste, Nicholas — confessou.

Baixei o olhar e observei­


-a demoradamente. Caramba, era verdade! Não

devíamos estar tão abatidos, era só um mês... Havia casais que não se viam

durante um ano inteiro. Não queria que a Noah se fosse embora triste, não

queria vê­
-la sofrer, e muito menos por causa de algo que a devia deixar feliz.

Recriminei­
-me por insistir tanto em que não fosse. Se tivesse apoiado esta

viagem desde o princípio, talvez agora ela não estivesse tão angustiada e com

aquela tristeza no olhar.

— Não fiques triste, sardas — disse, apertando­-a contra o peito. O N miou,

incomodado por se sentir comprimido entre os dois. — O calor de Espanha é

fantástico, e a Torre Eiffel é linda. Vais adorar — assegurei, e um sorriso

apareceu­
-lhe no rosto. — Vemo­-nos quando voltares. Eu e este bicho estaremos

à tua espera — disse, apontando para o N.

— Por favor, cuida bem dele, Nicholas, e não te esqueças de lhe dar comida,

nem lhe dês mais vinho para beber, por amor de Deus — pediu­-me, realmente

preocupada.

— Foi só uma vez, e o gato adorou — respondi, beliscando­-a.

Ela revirou os olhos e abraçou o gatinho contra o peito.

— Toma, pega nele — disse­-me, entregando­-mo. Segurei­-o com uma mão e

com a outra agarrei o rosto da Noah, trazendo­-lhe os lábios até aos meus.

— Amo­
-te — declarei, depois de saborear os lábios dela pela última vez num

mês.

Um sorriso desenhou­
-se no seu rosto.
— Eu amo­
-te mais.

Fiquei a vê­
-la a ir­
-se embora e senti um nó no estômago. O cabelo comprido

apanhado num rabo de cavalo alto, as pernas vestidas com uns calções... Ia

deixar os tipos loucos por essa Europa fora. Respirei fundo, tentando acalmar­
-

me. Agora ficávamos só nós os dois, eu e o N.

Assim que entrei em casa, fiquei em baixo. Deixei o gato solto para fazer o

que lhe apetecesse e olhei para o apartamento com nostalgia. Não tinha ideia do

que havia de fazer durante aquelas quatro semanas sem ela; tinha consciência de

que a minha vida mudara de uma forma inima­ginável. Nem sequer conseguia

lembrar­
-me do que era estar solteiro, sem alguém ao meu lado. Era como se

estivesse a olhar através de um vidro fosco, como se houvesse um antes e um

depois da Noah Morgan.

O apartamento estava impecável. Não que a Noah fosse obcecada por

limpezas, mas no dia anterior tinha ficado um pouco histérica e dera cabo de

tudo o que não estivesse no seu lugar, uma coisa rara que só fazia quando estava

stressada com alguma coisa, como fui observando ao longo dos últimos meses.

Ficava nervoso por saber que ela estava a milhares de quilómetros de

distância, a atravessar o país naquele preciso instante, com destino a Nova

Iorque, de onde depois partiriam para Itália. Nunca tive medo de aviões. Ao

longo da minha vida apanhei mais voos do que consigo recordar, mas agora que

a Noah estava lá em cima... Fiquei surpreendido ao perceber as imagens e

pensamentos que me enchiam a cabeça. Tinha medo de que o avião tivesse uma

avaria, de que caísse no meio do mar, de que houvesse um atentado... As

possibilidades eram infinitas, e não podia fazer nada para calar aquele receio que

sentia no meio do peito.

Cinco horas depois, o toque do meu telemóvel despertou­-me do sonho

inquieto em que tinha caído sem me aperceber. Acordei desorientado.

— Nick? — disse a voz da Noah do outro lado da linha.

— Já chegaram? — perguntei, tentando recompor­


-me.

— Sim, estamos no aeroporto. Este lugar é imenso; tenho muita pena de não

poder parar e visitar a cidade. Deve ser incrível. — Ela parecia estar feliz, e isso

deixou­
-me um pouco mais animado, embora já tivesse muitas saudades dela.

— Eu reservo Nova Iorque — disse­-lhe. E a Noah soltou uma g


­ ar­
galhada.

— O quê? — perguntou, e consegui ouvir o alvoroço que a ro­deava.

Imaginava homens de fato com as suas pastas a chegarem à cidade que nunca
dorme, mães com filhos chorosos e aborrecidos, a voz feminina a falar pelos

altifalantes, dirigindo­
-se às pessoas atrasadas que estavam prestes a perder os

seus voos...

— Quero ser eu a mostrar­


-te Nova Iorque, era o que queria dizer — apressei­
-

me a esclarecer. Levantei­
-me do sofá e fui até à bancada da cozinha.­

— Promete­
-me que vimos aqui juntos, Nick, no inverno, quando houver

neve — disse, emocionada, do outro lado da linha.

Sorri como um idiota ao imaginar­


-me com a Noah em Nova Iorque, juntos, a

percorrer as ruas, a parar nos cafés... Havíamos de beber chocolate quente e de

subir ao Empire State Building, e, quando estivéssemos lá em cima, beijava­


-a

até ficarmos os dois sem fôlego.

— Prometo, amor — sussurrei.

Ouvi quando alguém a chamou ao longe: a mãe, obviamente.

— Tenho de desligar, Nick — disse apressadamente. — Ligo­-te quando

chegarmos a Itália. Amo­


-te!

Antes que tivesse oportunidade de lhe responder, já ela tinha d


­ esligado.

A Noah chegou sã e salva a Itália, mas só recebi uma chamada breve, porque,

segundo ela, se continuássemos a falar, ia gastar uma fortuna. Queria dizer­


-lhe

que não se preocupasse com a conta do telemóvel, mas ela insistiu que

falaríamos por Skype quando estivesse ligada ao wi­-fi do hotel. O problema era

que, com o fuso horário, tínhamos muitas horas de diferença, e, quando eu

estava a dormir, ela estava acordada, e vice­-versa.

Os dias foram passando, e as chamadas através do Skype foram­


-se

transformando em resumos breves do que fizera durante o dia. Quando me

ligava, estava sempre exausta, por isso quase nem cinco minutos falávamos.

Odiava aquilo, odiava estar tão longe dela, não lhe poder tocar, não poder falar

durante horas, mas tinha prometido a mim mesmo que não iria estragar­
-lhe a

viagem. Por isso, quando falávamos punha sempre a minha melhor cara,

embora por dentro estivesse a amaldiçoar o dia em que a deixara partir.

Dediquei a maior parte do tempo a ir ao ginásio e a surfar e, ao fim de

semana, ia ver a Madison. No sábado a seguir à partida da Noah, peguei no

carro e fui diretamente para Las Vegas. O Lion quis vir comigo, e, como

passámos a semana inteira sem nos vermos, fiquei contente por me acompanhar.

A Maddie já conhecia o meu melhor amigo, e os dois davam­-se muito bem.

— Não sei como vais fazer para aguentar mais três semanas sem a Noah —
comentou o Lion quando estávamos na autoestrada. Só chegá­
vamos a Las Vegas

à noite, por isso só ia ver a minha irmã no dia seguinte. Tínhamos reservado um

quarto no Hotel Caesers, já que, apesar de lá termos ido para ver a minha irmã

de seis anos, não íamos deixar de passar pelo casino e beber uns copos... Afinal,

estávamos em Las Vegas.

Quando ele me relembrou das semanas tortuosas que tinha pela frente,

fulminei­-o com o olhar.

— O que queres que te diga? — perguntou, levantando as mãos. — Ainda só

se passaram dois dias desde que a Jenna foi naquele estúpido cruzeiro com os

pais, e eu já estou a subir pelas paredes, apesar de ela regressar daqui a cinco

dias.

Era a primeira vez que a Jenna ia de férias e deixava o Lion em casa. No ano

anterior, tinham vindo connosco para as Bahamas, e ela fora apenas um fim de

semana com os pais para a casa dos Hamptons. Parecia que este ano todos os

pais tinham combinado dar­


-nos cabo da vida, levando as nossas namoradas para

longe de nós.

— Estou desejoso de que a Noah vá viver comigo. Quando o fizer, acabam­


-se

estas parvoíces, e a mãe dela há de levar a nossa relação mais a sério — disse,

apertando o volante com mais força. Eram três da tarde em Los Angeles, por

isso a Noah devia estar a dormir. Como gostaria de estar na cama com ela neste

mesmo instante!...

O Lion ficou calado, o que era uma coisa rara nele, e observei­-o com

curiosidade pelo canto do olho.

— O que se passa contigo? — perguntei, vendo que o seu humor piorara.

Neste momento, nenhum dos dois estava grande companhia.

Ele continuou a olhar pela janela.

— Gostava de ter um sítio para poder levar a Jenna a viver comigo, sabes, um

lugar que estivesse à altura dela, não o apartamento de merda onde vivo —

disse, de repente.

Fiquei surpreendido por ele dizer uma coisa daquelas. Desde que o conhecia, e

já lá iam mais de cinco anos, nunca o ouvira queixar­


-se de dinheiro, nem uma

única vez. Vínhamos de mundos completamente diferentes: eu tinha um fundo

fiduciário em meu nome e ganhava um bom ordenado com o trabalho no

escritório de advogados. Nunca precisei de me preocupar realmente com

dinheiro, não foi assim que fui educado, tive sempre tudo enquanto crescia, mas

sabia que era duro conseguir alguma coisa quando não se tem um pai
milionário a amparar­
-nos as quedas. No ano em que vivi com o Lion, percebi

que as coisas não caem do céu, que as pessoas podem passar realmente mal para

conseguirem ter dinheiro para comer. O Lion trabalhava durante grande parte

do dia na oficina que o avô lhe deixara. Não podia contar com o irmão mais

velho, que dali a pouco tempo ia sair da prisão, onde já tinha estado duas vezes,

por isso era o Lion quem tinha de pagar todas as despesas da casa e da oficina.

Eu participava nas corridas de carros, nos combates e em tudo o resto porque,

por um lado, gostava de o fazer, mas, por outro, porque assim podia ajudar o

Lion. Éramos irmãos, embora viéssemos de lugares diferentes e, por vezes, como

agora, a diferença abissal que havia entre nós revelava-se muito claramente.

— Sabes que a Jenna não se importa nada com o lugar onde vives, Lion —

salientei, sentindo­
-me mal. Ele não devia estar a passar por aquilo, não devia

pensar assim, não havia ninguém que merecesse mais do que ele viver com

tranquilidade e sem problemas. Além de que a Jenna jamais seria um encargo

para ele; à semelhança do que acontecera comigo, de certeza que a Jenna tinha

uma conta em seu nome que só estava à espera de que fizesse vinte e um anos

para poder usar tranqui­


lamente. Por amor de Deus, o pai dela era um magnata

do petróleo!...

— Mas importo­
-me eu. Achas que não sei as coisas a que ela está habituada?

— recriminou­
-me com o tom de voz. — Não lhe vou conseguir dar nem

metade daquilo de que ela precisa.

— Nem tudo na vida se resume a dinheiro — afirmei.

O Lion soltou uma gargalhada.

— Disse o menino rico.

Tudo bem, ele estava a passar­


-se, e em qualquer outra ocasião tê­-lo­
-ia

mandado à merda ali mesmo, mas sabia que, por detrás daquela conversa, havia

um sentimento sincero e profundo, algo que o estava a afetar realmente.

Não lhe respondi, e ele não disse mais nada. Continuámos a viagem em

silêncio, a ouvir música, e nem sequer parámos para almoçar.

Quando chegámos a Las Vegas, os ânimos mudaram: era impossível não nos

deixarmos afetar por aquele ambiente, as pessoas, os ­lugares, as luzes, o hotel...

O Caesars era impressionante, praticamente uma cidade, com lojas das melhores

marcas e tudo... As miúdas ficavam doidas ali. Não era a mesma coisa que estar

em Itália, mas tínhamos de admitir que aquele espaço estava muito bem

arranjado. O nosso quarto ficava na ala oeste do hotel, que era imenso, e ainda
tivemos de caminhar bastante para lá chegar.

— O que queres fazer? — perguntou o Lion, saindo para a varanda e

acendendo um cigarro.

— Vamos beber um copo — respondi. Não queria dizê­-lo em voz alta, mas

sempre que ia ver a Madison ficava um pouco desanimado; odiava

simplesmente saber que a minha mãe estava tão perto de mim, não o suportava.

Descemos e fomos para um dos muitos bares do hotel, que ficava perto do

casino. O Lion era muito bom com cartas, e tinha a certeza de que ia querer

jogar algumas partidas antes de voltarmos para o quarto. Já era bastante tarde, e

eu estava cansado por ter conduzido até ali, mas diverti­-me mais do que devia e

bebi alguns copos de rum envelhecido, que a pouco e pouco me acalmaram a

ansiedade e o mau humor.

— Apetece­
-te jogar? — perguntou­-me o Lion meia hora depois, quando já

estávamos os dois bastante animados.

— Vai tu, eu prefiro ficar aqui — respondi, enquanto pegava no telemóvel

para ver se tinha alguma mensagem da Noah.

Pouco antes, enviara­


-lhe uma mensagem meio a brincar, meio a sério, a

perguntar se precisava de que lhe enviasse alguma coisa para se lembrar de

mim. Há quase dois dias que não falávamos, e, se não estava enganado, ela devia

ter chegado havia pouco a Londres.

A Noah tinha­
-me respondido.

Guardar algo que me ajude a lembrar de ti seria admitir que te poderia


esquecer.

Revirei os olhos.

Agora precisas de citar Shakespeare para falar comigo? Não te ocorrem


palavras tuas?

Um segundo depois, ela ficou online, e senti um calor dentro de mim que

surgia apenas quando se tratava dela.

Só estou aqui há duas horas e já estou mergulhada na cultura literária deste


país, por isso, se não gostas das minhas mensagens românticas, não te envio
mais nenhuma, idiota.

A mensagem continuava com uma série de emojis irritados, o que me fez

sorrir.
Quando voltares dessa viagem estúpida, dar­-te­-ei mais do que mensagens
românticas. Não irás precisar de nenhum escritor morto. Tu e eu somos
poesia viva, amor.
Não fazia a menor ideia do que iria fazer para passar as duas semanas e meia

que me restavam.

Na manhã seguinte, levantei­


-me cedo e fui tomar um duche, para ter boa cara

quando fosse buscar a Madison. Depois disso, encontrávamo­-nos com o Lion ali

e logo decidiríamos o que fazer.

Conduzi para fora da zona turística daquela cidade de loucos até chegar ao

parque que havia junto à urbanização de ricaços onde a minha irmã vivia. Saí do

carro e pus os óculos de sol, lamentando­-me por ter bebido um copo a mais na

noite anterior. O meu humor, já de si delicado nesses últimos dias, não estava

para brincadeiras e muito menos para surpresas desagradáveis; por isso, quando

me apercebi da mulher alta que trazia a minha irmã pela mão e se encaminhava

na minha direção, tive de respirar fundo várias vezes e lembrar­


-me de que tinha

pela frente uma menina de seis anos — só isso me impediu de entrar

novamente no carro e de desaparecer dali sem olhar para trás.

A mulher alta e loura que vinha na minha direção era a última pessoa que

queria ver.

— Nick! — gritou a minha irmã, libertando­-se da minha mãe e desatando a

correr na minha direção. Não fiz caso da dor de cabeça que aquele tom agudo

que só a Madison conseguia alcançar me provocava e, assim que ela chegou

junto a mim, levantei­


-a no ar.

— Olá, princesa! — cumprimentei, abraçando­-a e ignorando a minha mãe,

que parara à nossa frente.

— Olá, Nicholas — disse ela com timidez, mas mantendo uma postura

altiva, como era habitual. Não mudara muito desde a última vez que a vira, há

cerca de oito meses, quando ela e o estúpido do marido descuraram os cuidados

à minha irmã e fizeram com que ela fosse parar ao hospital com uma

cetoacidose diabética.

— O que fazes aqui? — perguntei com brusquidão, pousando a Maddie­ ao

meu lado. A minha irmã pôs­


-se entre nós, pegou­-me numa mão e estendeu o

outro braço para segurar a da minha mãe.

— Até que enfim, estamos os três juntos! — exclamou, muito feliz. Não sei

quantas vezes já me tinha pedido que a fosse visitar a sua casa, quantas insistira
para ir brincar com ela no seu quarto ou que fosse às suas festas de anos. Todos

os pedidos da Maddie tinham um único propó­sito: eu e a minha mãe estarmos

juntos.

— Queria falar contigo — respondeu­


-me ela, tensa, mas tentando não o

mostrar. Estava impecavelmente vestida, com o cabelo louro curto puxado para

trás e um diadema ridículo na cabeça. Era igual às mulheres que viviam no meu

bairro, igual a todas as mulheres que ela detestava e desprezava por serem tão

simplórias. Mas o seu aspeto nunca a impedira de ser tratada como uma abelha-

rainha por parte de todos os homens que tinha conhecido: todos a idolatravam e

todos queriam deitar­


-se com ela.

— Não me interessa nada do que tenhas para me dizer — respondi, tentando

que o tom da minha voz não revelasse quanto me afetava vê­-la, como odiava tê­
-

la ali tão perto.

As recordações da minha infância começaram a surgir na minha mente: a

minha mãe a aconchegar­


-me os lençóis na hora de dormir, a minha mãe a

defender­
-me do meu pai, a minha mãe à minha espera aos domingos, com

bolos... Mas depois destas recordações vieram outras... As que não queria

reviver.

— Por favor, Nick...

— Nick! — interrompeu a Madison. — A mamã disse­-me que hoje quer vir

connosco.

Os meus olhos voltaram­


-se para aquela mulher, e presumo que o olhar que lhe

lancei a fez recuar, porque se apressou a dizer:

— Madison, é melhor irem só vocês os dois. Tenho de ir ao cabeleireiro, meu

anjo. Vemo­
-nos logo à noite — disse, inclinando­-se para lhe dar um beijo no

cimo da cabeça. Achei estranha a forma como a tratava. Talvez estivesse à espera

de que fosse fria com ela ou de que demonstrasse simplesmente alguma

indiferença, tudo menos esta doçura com que a tratou. Sim, a minha mãe podia

ser uma pessoa doce, mas também podia ser uma grande cabra.

A Maddie não disse nada, ficou apenas a observar­


-nos. Queria ir­
-me embora o

quanto antes e tive de me socorrer de todo o meu autocontrolo quando a minha

mãe deu um passo em frente e depositou um beijo rápido no meu rosto. Mas

que merda era aquela? O que diabo queria ela?

— Cuida­
-te, Nicholas — disse ela, antes de virar costas e partir pelo mesmo

caminho por onde viera.

Não lhe dediquei nem mais um segundo da minha atenção. Voltei­-me para a
minha irmã e esbocei o maior sorriso que consegui.

— A que tortura chinesa me vais submeter hoje, minorca? — perguntei,

levantando­
-a do chão e pondo­
-a por cima do ombro. Ela começou a rir, e

percebi que a expressão de tristeza que tinha ainda há uns segundos já se

esbatera. Ela nunca ficaria triste quando estivesse comigo, tinha feito esta

promessa a mim mesmo anos antes, no instante em que a conheci.

O Lion estava à nossa espera à porta do hotel; vi pela sua cara que estava com

uma ressaca igual à minha e não pude evitar rir­


-me quando a Maddie saiu do

carro a correr para o abraçar, gritando com a sua vozinha infernal.

Ele levantou­
-a no ar e segurou­-a por um pé, deixando­-a de cabeça para baixo.

Ri­
-me enquanto a Madison gritava como se estivesse possuída. Só um louco

poderia deixar uma minorquinha como a minha irmã entregue a dois latagões

como eu e o Lion.

— Para onde vamos, senhorita? — perguntou o meu amigo àquele

monstrinho de grandes olhos azuis e cabelo louro cor de ouro.

A Maddie observou­
-me, emocionada, olhando para todos os lados sem se

decidir. As possibilidades eram infinitas, estávamos na capital da diversão.

— Podemos ir ver os tubarões?! — exclamou, aos saltos.

Revirei os olhos.

— Outra vez? — Já tínhamos ido ao aquário umas mil vezes, mas, ao

contrário das meninas da sua idade, a Madison adorava encostar­


-se ao vidro do

aquário dos tubarões assassinos e provocá­-los do seu lado.

Depois de almoçarmos, fomos ao aquário. A minha irmã estava feliz e corria

de um lado para o outro. Enquanto o Lion a vigiava e ambos faziam palermices

em frente a um tubarão­
-branco que me provocava um medo fenomenal, peguei

no telemóvel para ver se a Noah me tinha enviado alguma mensagem, mas

nada.

Decidi usar a minha pulga mais adorável para a espicaçar.

— Ei, anda cá, minorca!

A Maddie fulminou­
-me com os seus olhos azuis.

— Eu não sou minorca — protestou, zangada.

«Como queiras», foi o que quis dizer.

— Vamos mandar uma fotografia à Noah, anda.

Assim que mencionei o nome dela, os olhos da Maddie iluminaram­-se. Acho

que devia ser esta a minha cara sempre que falava dela ou estava com ela.
Preparei o telemóvel para tirar uma selfie e peguei na pequenita ao colo.

— Deita a língua de fora, Nick, assim — sugeriu a espertinha, antes de deitar

a língua minúscula para fora. Ri­-me, mas imitei­-a, e foi assim que tirámos a

fotografia.

Tenho saudades tuas, sardas, e este monstrinho que está aqui comigo
também. Amo­-te.
13

Noah

A primeira coisa que fiz naquela manhã ao acordar foi ligar o tele­móvel. Na

noite anterior, tinha ido dormir sem poder responder à última mensagem do

Nick.

Abri as mensagens e vi que me enviara outra havia quatro horas. Quando vi a

fotografia que me mandou, sorri como uma idiota: ele e a Maddie apareciam a

deitar a língua de fora e a sorrir para mim. Estava tão bonito, com o cabelo

preto despenteado... E aquela menina tão parecida com ele e ao mesmo tempo

tão diferente... Sabia que sempre que voltava de uma das suas visitas à Maddie

vinha desanimado e ficava várias horas em baixo, de mau humor.

Tinha tantas saudades dele. Sentia uma vontade terrível de ouvir a sua voz e

de o ter ao meu lado.

Por sorte, a minha mãe tinha o seu próprio quarto, por isso estava sozinha

quando marquei o número de telefone dele. Esperei ansiosamente que

atendesse... Já era tarde nos Estados Unidos. Presumia que já estivesse a dormir,

mas, mesmo assim, esperei impacientemente por ouvir a voz dele.

— Noah? — respondeu ao quinto toque.

— Tenho tantas saudades tuas — disse­-lhe, simplesmente.

Ouvi­
-o levantar­
-se e imaginei­-o a acender o candeeiro da mesa de cabeceira, a

passar a mão pela cara, a acordar para mim.

— Não me acordes para dizer uma coisa dessas, sardas — protestou, soltando

um grunhido. — Diz­
-me que te estás a divertir à grande, que nem sequer

pensas em mim, porque, se não for assim, esta viagem estúpida não faz sentido

nenhum.

Sorri, triste, e apoiei a cabeça na almofada.

— Sabes que estou a adorar, mas sem ti não é a mesma coisa — respondi,

sabendo que, apesar do que ele dizia, gostava de me ouvir dizer que sentia a sua

falta. — Como correu com a Maddie? — perguntei, desejando tê­


-lo

acompanhado. Adorava ter ido com ele e ver como era com a irmã: um Nick
completamente diferente, mais doce e paciente, divertido e protetor.

Fez­
-se um momento de silêncio antes de me responder.

— Foi a minha mãe quem ma veio trazer — disse­-me num tom de voz que já

conhecia bem de mais. — Se a tivesses visto... toda altiva, como uma Barbie de

quarenta anos, a tentar que a trate como ela não merece, à frente da minha

irmã.

«Merda, a mãe.» Ainda me lembrava o estado em que ele tinha ficado depois

de a ver no hospital daquela vez que a Maddie tinha adoecido. O desespero na

sua voz, os olhos húmidos por a ter visto depois de tantos anos...

— Ela não devia ter forçado a situação dessa maneira — comentei, irritada.

Compreendia que a mãe quisesse recuperar o contacto com o Nick. Afinal, era

seu filho, mas não daquela forma, pondo­-o entre a espada e a parede.

— Não sei que diabo ela quer, mas eu sei que não quero voltar a vê­-la, não me

interessa saber nada sobre ela ou sobre a sua vida. — A sua voz estava

claramente aborrecida, mas também continha alguma tris­teza, embora a

escondesse bem. No entanto, eu conhecia­-o o suficiente para saber que uma

parte de si ansiava por descobrir o que a mãe tinha para lhe dizer.

— Nicholas... Não achas que?... — comecei por dizer, com cautela, mas ele

interrompeu­
-me de imediato.

— Nem vás por aí, Noah, não, nem pensar nisso, não voltes a tentar sequer.

Não vou falar com aquela mulher, não vou voltar a estar no mesmo sítio que

ela. — O seu tom de voz fazia­


-me medo. Eu insinuara uma única vez que talvez

devesse encontrar­
-se com a mãe, deixar que ela se explicasse ou, pelo menos,

tentar manter uma relação cordial, mas ele ficou furioso. Havia ali qualquer

coisa que ele não me estava a contar, sabia que ele não a odiava daquela maneira

só porque ela o abandonara quando era pequeno, o que, por si só, era uma coisa

terrível, claro, mas acontecera mais alguma coisa que ele não me ia contar.

— Muito bem, desculpa — concordei, tentando acalmá­-lo.

Ouvi a sua respiração agitada do outro lado da linha.

— O que gostava agora era de poder afundar­


-me em ti, de esquecer esta

merda toda e de fazer amor contigo durante horas; maldita a hora em que te

foste embora.

Senti borboletas esvoaçar dentro da minha barriga ao ouvi­-lo dizer aquilo;

estava aborrecido, mas as palavras dele incendiaram­-me por dentro. Eu também

queria estar nos seus braços, deixar que percorresse o corpo com os lábios, sentir

as mãos prender­
-me contra o colchão, com firmeza, mas sempre com uma
ternura e um cuidado infinitos...

— Lamento que esta viagem seja tão horrível para ti, a sério que sim. Eu

também gostava de estar contigo aí, agora — respondi, tentando chegar a ele

com as minhas palavras, embora soubesse que o Nicholas era o tipo de pessoa

que precisava de contacto físico para se sentir bem, amado... Não sabia se as

minhas palavras seriam suficientes para o fazer compreender quanto o amava e

como me sentia mal por saber que ele estava a sofrer com a história da mãe sem

ter ninguém a quem pudesse recorrer a não ser a mim, porque ele não falava

daquele assunto com mais ninguém, nem mesmo com o Lion.

— Não te preocupes comigo, Noah, estou bem — afirmou, um segundo

depois. Uma parte de si queria que eu aproveitasse a viagem,­ a outra queria

recriminar­
-me por o ter deixado sozinho.

Ouvi a minha mãe a acordar no quarto ao lado. Deixámo­-nos dormir até tarde

e, se quiséssemos fazer tudo o que planeáramos, tínhamos de nos despachar.

— Tenho de ir — disse­
-lhe, desejando poder ficar horas a falar com ele.

Do outro lado da linha, fez­


-se silêncio.

— Cuida­
-te. Amo­
-te — disse finalmente e desligou.

Por muitas saudades que tivesse do Nicholas, a viagem estava a ser alucinante.

Mal podia acreditar na sorte que tinha em estar em todos aqueles lugares

maravilhosos. Tinha gostado muito de Itália; fomos visitar o Coliseu romano e

andámos pelas ruas, comemos tortellini e o melhor gelado de framboesa que já

provara na minha vida. Agora estávamos em Londres há dois dias e não podia

estar mais apaixonada pela cidade. Tudo nela me parecia saído de um romance

de Dickens. Além disso, todos os livros que lera ao longo dos anos se passavam

nesta metrópole. A maior parte eram romances históricos, de época, nos quais as

mulheres pas­
seavam em Hyde Park de carruagem ou a pé, sempre seguidas por

damas de companhia, claro. Os edifícios eram elegantes, antigos, mas lindos e

cheios de classe. Piccadilly era um formigueiro de gente: executivos com os seus

casacos e pastas, hippies com gorros coloridos ou então turistas como eu, que

percorriam o trânsito humano e admi­ravam as luzes daquela rua maravilhosa.

Fiquei fascinada com o Harrods, mas também saí de lá horrorizada com os

preços, embora presumisse que, para alguém como os Leister, não seria

problema um bombom de chocolate custar dez libras.

A minha mãe estava encantada com tudo; partilhava o meu entusiasmo, mas

estava já mais acostumada àquelas coisas, porque já visitara muitos lugares com
o William. Tinham passado duas semanas em lua de mel, em Londres e depois

no Dubai. Era evidente que a minha mãe estava num nível superior ao meu;

apercebi­
-me de que reagíamos de forma muito diferente às coisas que víamos.

Eu passava­
-me com tudo e ficava deslumbrada com as coisas mais simples; a

minha mãe ria­


-se de mim, mas, no fundo, sabia que, por muitos sítios que

tivesse conhecido, iria sentir­


-se sempre uma sortuda por termos tudo o que

tínhamos agora.

Os dias foram passando — já tinham decorrido três desde a minha última

conversa com o Nicholas —, e já estávamos há quase duas semanas em viagem;

ainda nos faltava visitar França e Espanha, e até então nunca tivera de partilhar

quarto com a minha mãe. Dormíamos sempre em suites com dois quartos

separados, mas em França confundiram a reserva, e acabámos por partilhar não

só o quarto mas também a cama.

— Estás a gostar de Paris? — perguntou a minha mãe enquanto tirava os

brincos, já de pijama vestido; eu estava embrulhada numa ­toalha, com o cabelo

a pingar, porque acabara de tomar banho.

— A cidade é linda — respondi, enquanto me vestia. Já com a roupa interior,

voltei­
-me para o espelho onde a minha mãe estava a pentear­
-se e vi que os seus

olhos se fixavam durante uns segundos na cicatriz do meu estômago.

Não devia ter ficado com tão pouca roupa à frente dela; sabia que ela ficava

triste de cada vez que via a prova daquela noite em que quase me tinham

matado. Vi nos seus olhos que as más recordações lhe vinham à memória e quis

fazê-la regressar a pensamentos mais alegres, antes de se culpar por algo de que

não fora responsável.

— Já falaste com o Nicholas? — perguntou­-me, um minuto depois, quando

entrei na cama de pijama e esperei que ela acabasse de pôr aqueles cremes todos

que tinha trazido consigo.

— Sim, manda­
-te cumprimentos — menti, tentando disfarçar. A rela­
ção

entre a minha mãe e o Nicholas não estava a passar pelo seu melhor momento,

por isso tentava sempre falar deles nas conversas que tinha com um e com o

outro.

A minha mãe assentiu, pensativa.

— És feliz com ele, Noah? — perguntou então.

Não estava à espera daquela pergunta e fiquei calada durante alguns instantes.

A resposta era fácil: claro que era feliz com ele, mais do que com qualquer outra

pessoa. Mas depois lembrei­


-me de que, naquela altura em que fomos às
Bahamas e ainda não namorávamos, o Nick me fizera a mesma pergunta: se era

feliz. E a minha resposta fora que sim: ali, com ele, era feliz. E quando não

estávamos juntos? Era feliz quando não estava com ele? Estaria completamente

feliz agora, naquele quarto, a quilómetros de distância dele, apesar de saber que

me amava e que dali a pouco tempo estaríamos novamente juntos?

— O teu silêncio é preocupante.

Desviei os olhos que fixara algures e percebi que a minha mãe interpretara

mal o meu mutismo.

— Não, não é isso. Claro que sou feliz com ele; eu amo­-o, mãe — apressei­-me

a esclarecer.

A minha mãe observou­


-me de sobrolho franzido.

— Não me pareces muito convencida — afirmou, e julguei ver um certo

alívio no seu olhar.

— O problema é que o amo de mais — disse­-lhe então. — A minha vida sem

ele não faria o menor sentido, e é isso que me assusta.

A minha mãe fechou os olhos durante um instante e a seguir voltou a

encarar­
-me.

— Isso não tem lógica nenhuma.

Claro que tinha. Estava a falar muito a sério. Sentia­-me a salvo com o

Nicholas, ele protegia­


-me dos pesadelos, dava­-me a segurança que me faltara ao

longo de toda a vida: era a única pessoa a quem podia contar os meus

problemas. Por isso, quando não estávamos juntos, sentia que perdia um pouco

o controlo sobre mim mesma, sendo inundada por pensamentos que nem

deviam existir e sentindo coisas que não devia sentir.

— Tem toda a lógica do mundo, mãe, e pensei que tu, mais do que qualquer

outra pessoa que conheço, compreendesses, porque vejo quão apaixonada estás

pelo William.

A minha mãe abanou a cabeça.

— Mas estás enganada em relação a uma coisa: nenhum homem deve ser a

razão da tua existência, estás a ouvir? — De repente, a cor desapareceu do seu

rosto e fitou­
-me de modo inquietante. — Durante muito tempo, a minha vida

girou em torno de um homem que não mereceu um minuto sequer do meu

tempo. Quando estava com o teu pai, acredi­tava que só ele poderia suportar­
-me.

Cheguei a pensar que ninguém me poderia amar, que não poderia viver sem ele

ao meu lado.

O meu coração começou a bater, acelerado. Foram muito poucas as vezes que a
minha mãe me falou do meu pai.

— A dor que ele me infligia não tinha nada que ver com o medo de ficar sem

ele... Os homens como o teu pai metem­-se na nossa cabeça e fazem o que

querem com ela. Nunca deixes que nenhum homem se apodere da tua alma,

porque não sabes o que ele vai fazer com ela, se a vai guardar e venerar ou se a

vai deixar mirrar entre os seus dedos.

— O Nicholas não é assim — assegurei, com as emoções à flor da pele. Não

queria ouvir aquelas coisas da boca da minha mãe, não queria que me dissesse

que era grande a probabilidade de o meu coração voltar a ficar despedaçado. O

Nicholas amava­
-me e jamais me deixaria, não era como o meu pai, nunca seria

como o meu pai.

— Só estou a tentar explicar­


-te que primeiro estás tu e só depois as outras

pessoas... Deves sempre pôr­


-te em primeiro lugar, e, se sentires que a tua

felicidade depende de um rapaz, tens de repensar as coisas; os homens vão e

vêm, mas a tua felicidade é algo que só tu podes cultivar.

Tentei impedir que estas palavras me afetassem, que não entrassem em mim,

mas não consegui, porque as deixei entrar. Aquela noite foi um claro exemplo

disso.

Tinham­
-me prendido as mãos e vendado os olhos com um tecido, impedindo que a luz

entrasse. O meu coração batia, descompassado, um suor frio percorria­-me o corpo, e a

minha respiração, acelerada com o medo, denunciava um iminente ataque de pânico.

Estava sozinha, não havia ali mais ninguém; a escuridão infinita rodeava­-me, e com

ela a razão de todos os meus medos. Então, de repente, tiraram­-me a venda, as cordas já

não me amarravam as mãos, e uma luminosidade intensa entrava por uma enorme

janela. Fui para a rua a correr, passei por um corredor infinito, mas tinha dentro de

mim uma voz que me dizia que não devia continuar a fazê­-lo, porque do outro lado do

corredor não havia nada de bom à minha espera.

Mesmo assim, saí dali e, ao dar uma volta sobre mim mesma, encontrei muitos Ronnies

a apontar­
-me armas. Parei, assustada, a tremer, vendo o suor molhar­
-me a T­
-shirt .

— Já sabes o que tens de fazer... — disseram­-me todos os Ronnies em ­uníssono.

Voltei­
-me para uma arma que estava em cima de uma caixa vermelha de madeira,

pousada no chão. Com as mãos trémulas, preguei na arma e, depois de uns segundos de

hesitação, levantei­
-a como uma profissional, destranquei­-a e voltei­-me para enfrentar a

pessoa que estava ajoelhada no chão, mesmo à minha frente.

— Não o faças, Noah, por favor... — pediu­-me o meu pai, a chorar, ajoelhado no
chão, enquanto olhava para mim, aterrorizado.

A minha mão começou a tremer, mas não recuei.

— Lamento, pai...

O estrondo do disparo levou-me a abrir os olhos, mas não fora isso a acordar­
-

me; quem me acordou foi a minha mãe, que me sacudia, assustada.

— Deus do céu, Noah! — exclamou com um suspiro, ao ver­


-me abrir os

olhos.

Levantei­
-me, ainda meio desorientada. Estava transpirada e tremia como varas

verdes. Os cobertores estavam enrolados à volta do meu corpo, como se quisesse

afogar­
-me enquanto dormia, e só quando levei as mãos ao rosto percebi que

tinha estado a chorar.

— Tive um pesadelo... — disse, trémula.

A minha mãe observou­


-me com o medo refletido nos olhos azuis.

— Desde quando tens pesadelos assim? — perguntou, olhando para mim

como se, de repente, alguma coisa tivesse mudado. Os seus olhos já não estavam

em paz, aquela expressão voltara a aparecer... aquela expressão.

Não lhe ia dizer que os pesadelos eram algo normal na minha vida, uma coisa

de que só conseguia esquivar­


-me quando estava com o Nicholas. Não queria

que ela se preocupasse, não queria admitir que sonhava matar o meu pai, que

era eu quem puxava o gatilho, que fazia com que o sangue dele se espalhasse

pelo chão...

Levantei­
-me da cama e fui diretamente para a casa de banho. Mas a minha

mãe agarrou­
-me o braço com força e fez­-me parar.

— Desde quando, Noah?

Precisava de me afastar dela, precisava de apagar da memória a sua expressão

de preocupação. Não queria que ela se sentisse mal outra vez, não queria que

ninguém soubesse o que me estava a acontecer.

— Foi só desta vez, mãe. Deve ser por estarmos num quarto novo... Já sabes

que fico sempre nervosa em lugares desconhecidos.

A minha mãe olhou­


-me de sobrolho franzido, mas não me prendeu quando

me libertei da sua mão e me fechei na casa de banho.

Queria ligar ao Nicholas, só ele conseguia acalmar­


-me, mas não queria ter de

lhe explicar o que acontecera quando estava tão longe e sabendo que ele não

fazia ideia dos meus pesadelos recorrentes.

Molhei o rosto com água e simulei um gesto tranquilizador. Quando voltei a


entrar no quarto, ignorei o olhar desconfiado da minha mãe e voltei a deitar­
-me

entre os lençóis.

«Não o faças, Noah, por favor...»

As palavras do meu pai continuaram a ecoar na minha cabeça até que, não sei

como, consegui adormecer.

Faltavam cinco dias para voltar para casa. Estava esgotada, não só física como

mentalmente. Precisava desesperadamente de dormir durante vinte e quatro

horas seguidas e só conseguiria fazê­-lo com os braços do Nick à minha volta.

Por sorte, não voltara a ter de partilhar o quarto com a minha mãe, mas as

minhas olheiras eram a marca perfeita para ela não esquecer o que acontecera.

Também tinha o pequeno problema de ainda não lhe ter dito que ia viver com

o Nick. Sabia que ia ficar furiosa comigo, mas a minha decisão estava tomada, e

não havia nada que ela pudesse fazer para eu mudar de ideia.

A minha mãe estava mais receosa do que o habitual; era como se pressentisse

que alguma coisa não estava a correr como desejava, que algo estava mal. Eu

desviava as suas perguntas intrusivas para assuntos neutros, mas sabia que,

assim que puséssemos um pé na Califórnia, Troia consumir­


-se­-ia em chamas.

Era por isso que estava a contar os dias para voltar a ver o Nick. Com ele ao

meu lado conseguiria enfrentar a minha mãe.

Depois de tantos anos, e com o meu pai morto, a minha mãe era incapaz de

me proteger, porque tudo o que me fazia mal estava dentro da minha cabeça, no

meu interior... E eu não fazia a menor ideia de como o poderia superar.


14

Nick

Só faltavam dois dias para a Noah voltar. Acho que nunca na minha vida ansiara

tanto ver alguém. Os meus sentimentos dividiam­-se entre querer devorá­-la com

beijos e estrangulá­
-la por se ter ido embora, deixando­-me aqui, e não sabia o

que faria primeiro.

Das últimas vezes que tínhamos falado, achei­-a um pouco estranha. Disse­-me

que estava cansada e que morria de vontade de me ver, e eu contava as horas

para esse momento chegar. Arrumara o apartamento — que estava um nojo —,

comprara comida e até limpara o gato com toalhitas húmidas, ficando com o

braço cheio de arranhões e contando até cem para não mandar a bolinha de pelo

pela varanda.

Queria que, quando ela chegasse, passássemos a melhor noite das nossas vidas,

queria que se lembrasse do que perdia quando se ia embora e me deixava para

trás, queria que a sua vida dependesse da minha tanto quanto a minha dependia

da dela.

Tinha passado a maior parte daquele mês metido em casa e no trabalho, a

adiantar os estudos; queria acabar o curso o mais depressa possível. Se me

dedicasse verdadeiramente às cadeiras que me faltavam, ia conseguir acabar

antes do tempo e, se tudo corresse bem, conseguiria que o meu pai me levasse

finalmente mais a sério.

Na noite seguinte, quando vinha a sair do duche enrolado numa toalha para

tentar não molhar o chão todo, tocaram­-me à campainha.

Praguejei entre dentes e fui abrir a porta, a pingar o chão todo: era o Lion.

— Preciso da tua ajuda — disse­-me, entrando sem sequer pedir licença.

Voltei­
-me para ele enquanto empurrava a porta com o pé. O Lion estava com

um aspeto que dava pena. Há uma semana que não o via, e a pessoa que tinha

agora à minha frente não tinha nada que ver com o meu amigo.

— O que diabo te aconteceu? — perguntei, enquanto me aproximava do sofá,

onde ele já se sentara. Não me devolveu o olhar e, em vez disso, levou as mãos à
cabeça com um gesto desesperado.

Estava despenteado e pouco limpo, como se não tomasse banho há dias. O

olhar que me dirigiu mostrou­-me que, embora não estivesse bêbedo, tinha

bebido.

— Meti­
-me em sarilhos.

Merda... Aquilo não augurava nada de bom. Os problemas do Lion eram,

normalmente, problemas a sério, não brincadeiras.

— Sabes que há um ano e meio deixei de vender... — começou por dizer, e,

assim que ouvi a palavra «vender», percebi logo do que se tratava.

Peguei numas calças que estavam em cima do sofá e vesti­-as.

— Não me digas que voltaste a essa merda, Lion! — exclamei, ­cortante.

O Lion passou a mão pela nuca e fulminou­-me com o olhar.

— O que queres que te diga? Não podia recusar a oportunidade de ganhar

tanta pasta... O Luca está a viver comigo, e o grande idiota queria fazer o

negócio, mas, como acabou de sair da prisão, não ia correr o risco de ser outra

vez apanhado...

— Então ele não corre o risco e tu corres? És mesmo idiota. Se não tiveres

cuidado, quem vai acabar com os costados na prisão és tu!

— É que nem te passe pela cabeça estares pr’aí a julgar­


-me! — gritou ele,

pondo­
-se de pé. — Tu tens tudo!

Levantei­
-me, controlando a vontade que tinha de lhe dar um murro, porque

era meu amigo e sabia que estava com problemas de dinheiro, mas era para isso

que serviam as corridas e os combates. Eram ilegais, claro, mas não era

propriamente o mesmo que vender droga, porque, se o apanhassem, podia

arranjar mais de dez anos de prisão.

— Em que tipo de problema estás metido? — perguntei, tentando manter a

calma.

O Lion olhou para todo o lado; os seus olhos verdes, que contras­tavam de

forma gritante com a pele bronzeada, cravaram­-se nos meus um segundo

depois.

— Tenho de entregar um pacote em Gardens, esta noite. A entrega devia ter

sido feita na praia, seria uma coisa rápida, mas ligaram­-me a dizer que agora

tenho de ir à merda daquele bairro.

Porra, Nickerson Gardens era dos piores bairros de Los Angeles. Uns anos

antes, tinham-nos feito uma cruz ali, a mim e ao Lion, por nos termos metido

numa briga enorme. Se não tivesse sido a ajuda do meu pai, tinham­-nos feito a
folha aos dois e, por isso, jurámos nunca mais lá pôr os pés.

— Não estás a pensar que vou contigo...

— Será rápido. Entregamos esta porcaria e voltamos logo para aqui, meu.

Porra! Eu não queria problemas, já não os procurava, pelo menos agora que

tinha a minha vida tão encarreirada. Desde o que aconteceu ao Ronnie e ao pai

da Noah que jurei não voltar a meter­


-me em sarilhos e ainda menos arrastar a

minha namorada comigo. A culpa do que aconteceu ao Ronnie, e de tudo o que

se seguiu, era minha. Nada daquilo teria acontecido se eu não tivesse deixado

que a Noah se metesse comigo naquele mundo.

— Eu não vou, Lion — anunciei, parando e olhando para ele, deixando a

minha intenção bem clara.

Ele pareceu ficar surpreendido e, no instante seguinte, zangado.

— Mas é um suicídio entrar ali sozinho, tu sabes... Ao menos fica a vigiar do

carro enquanto eu faço a entrega. Disseste que éramos irmãos, para o bem e para

o mal; pois agora preciso de ti.

«Porra, pá.»

— É só entregar um pacote? — perguntei, sabendo que me ia arrepender

daquilo.

O rosto dele iluminou­


-se.

— Entrego­
-o e vimos embora logo a seguir, meu, juro — disse, levantando­
-se

do sofá. Isto fazia­


-me lembrar quando tinha ido viver para a casa dele e

começara a acompanhá­
-lo nas suas cenas. Naquela altura éramos muito mais

novos e irresponsáveis; eu não queria voltar a dar cabo de tudo. Agora havia

muito mais em jogo, não podia regressar àquele mundo, já não podia.

— Eu conduzo — ofereci­
-me, pegando nas chaves, mas com vontade de o

mandar passear. Porém, o Lion sempre estivera ao meu lado quando mais

precisara dele. Preferia que não continuasse metido naquele mundo, mas não

havia nada que pudesse fazer. O meu pai tinha­


-lhe oferecido trabalho na

empresa, mas ele recusara. A oficina do avô era a sua vida, e não queria deixá­
-la.

Ao recusar a oferta do meu pai, renunciara à única oportunidade de ter uma

vida melhor, uma vida sem problemas.

A Noah chegava na noite seguinte, por isso tinha tempo de sobra para fazer o

que o Lion queria, voltar para casa, tomar banho e estar pronto para a ir buscar

ao aeroporto. Com as chaves na mão, saí do apartamento sem olhar para trás.

Enquanto entrávamos no carro e saíamos do estacionamento, o silêncio era

total.
— Obrigado por vires comigo, Nick — disse então o Lion, com o olhar fixo

na janela.

— A Jenna sabe que andas a traficar droga?

Senti que ficou tenso perante a alusão à namorada.

— Não sabe e nunca vai saber — respondeu, taxativo. Era claramente um

aviso. Não planeava meter­


-me na vida dele, mas mexia­-me com os nervos que

me envolvesse nos seus problemas.

À medida que fomos entrando em Gardens, recordações que preferia esquecer

inundaram­
-me o pensamento... Ronnie, os seus amigos, as corridas, o sequestro

da Noah e o cabrão do pai dela a apontar­


-lhe uma arma à cabeça... Todas estas

porcarias estavam naquele bairro, e eu jurara que não voltava a pisar aquele

chão.

— Vira à direita — indicou­


-me, quando chegámos a um cruzamento que eu

conhecia muito bem.

— A entrega não é no Midnight, pois não? — comentei, nervoso, enquanto

virava.

O Midnight era o bar onde os pulhas todos da cidade se juntavam para

traficar. Era uma espécie de bar­


-discoteca, frequentado por gente do mais reles

possível. Quando éramos mais novos, deu­


-nos para nos juntarmos a um grupo

dali; fizemos todo o tipo de barbaridades até que as coisas começaram a ficar

feias. Demos por nós de armas na mão, a acompanhar um tipo que passava coca

a gente com muito dinheiro. Foi nesse momento que decidi que chegava. Claro

que não é fácil sair assim, sem mais nem menos. A tareia que nos deram ainda

me estava gravada na memória; acho que me partiram três costelas, e foi,

verdadeiramente, a gota de água. Pouco depois soube que a minha mãe tinha

tido a minha irmã e fui obrigado a voltar a viver com o meu pai. Desde então,

não voltara a pôr um pé naquele sítio.

— É, mas já te disse que é uma coisa rápida. Entrego­-lhes o pacote, eles

pagam­
-me, e vamos embora.

Parei o carro na esquina do bar. Dali podia ver as pessoas entrar e sair. Não

tinha o menor interesse em encontrar­


-me com algum idiota do passado. Fechei

as mãos com força sobre o volante, enquanto o Lion saía do carro e se

encaminhava em direção à porta.

Às vezes punha­
-me a pensar naquela altura da minha vida e não conseguia

entender como tinha chegado àquele ponto, e agora, quando tinha finalmente

tudo aquilo de que precisava, quando sabia o que era amar alguém mais do que
qualquer outra coisa no mundo, mais até do que a mim mesmo, via­
-me

novamente envolvido naquelas tretas.

Esperei, impaciente, que o Lion voltasse, mas ele nunca mais vinha, e comecei

a ficar nervoso. Já se tinham passado quinze minutos, e, se o que me tinha dito

era verdade, devia ter demorado, no máximo, cinco minutos a fazer o que tinha

de fazer.

Praguejando entre dentes, tirei a chave da ignição e saí do carro, batendo com

a porta. À medida que me aproximava da porta do bar, os dois matacões que

estavam à entrada fitavam­


-me.

— Onde pensas que vais? — perguntou um deles, pondo­-se à minha frente.

— Venho na boa, OK? — respondi, parando e contando até dez. — Venho só

buscar um amigo.

Antes de ele ter tempo para me responder, um tipo com piercings na cara saiu e

ficou a olhar para mim.

— Deixa­
-o entrar.

O gorila olhou­
-me de alto a baixo e afastou­-se.

Arregacei as mangas enquanto entrava, sabendo que aquilo não ia acabar bem.

As minhas suspeitas não eram infundadas; segui o tipo dos piercings até uma sala

ao fundo da discoteca e encontrei o Lion ali, caído no chão, com um olho negro

e o lábio rebentado.

Senti que o meu corpo se retesava e os punhos se fechavam automaticamente.

— Olhem quem temos aqui — disse uma voz que eu conhecia bastante bem.

Era o Cruz, o amigo do Ronnie, o mesmo que me dera uma tareia naquela noite

em que eu fora suficientemente estúpido para me enfiar sozinho num beco de

um bairro parecido com aquele. Bastou­-me olhar para ele, e todas as recordações

do que aconteceu com a Noah me assaltaram. Tinha tentado com todas as

minhas forças deixar aquelas tretas para trás, concentrar­


-me no futuro, na Noah,

em protegê­
-la, em trilhar um caminho diferente daquele que começara a

percorrer quando era adolescente... Mas agora, ao ver o Lion ali, caído no chão,

ao ver aquele filho da puta rodeado de malnascidos como ele... Toda a raiva que

tinha contido dentro de mim nos últimos meses pareceu vir à tona.

— Eu sabia que era uma questão de tempo até vires cá parar outra vez —

declarou o Cruz, encostando­


-se a uma mesa atrás de si. O cabelo escuro já não

estava rapado, mas apanhado num pequeno rabo de cavalo. Tinha os braços

todos tatuados, e os seus olhos denunciavam que estava pedrado, se calhar até se

injetara com alguma coisa. — O teu amigo deve­-nos dinheiro, filhinho do


papá, e fez bem em trazer­
-te para pagares a dívida dele.

O meu olhar passou do Cruz para o Lion em meio segundo. Este último nem

olhava para mim. Tinha os olhos inchados e cravados no chão.

— Eu não te devo porra nenhuma, imbecil. Podes ir pensando noutra forma

de recuperares o teu dinheiro, porque de mim não vais receber um cêntimo.

Controlei cada uma das minhas palavras. Não fazia ideia de como conseguiria

sair dali. O Lion parecia derrotado, e, no fundo de toda a minha ira, num

recanto qualquer da minha mente, senti­-me mal por ele, por ver que continuava

metido naquelas cenas a que eu tinha conseguido fugir; apesar disso, naquele

momento estava tão danado com ele que só me apetecia bater­


-lhe, por ter sido

um idiota e por me ter arrastado para os seus malditos problemas.

O Cruz afastou­
-se da mesa e aproximou­-se lentamente de mim.

— Sabes uma coisa... foi uma pena o Ronnie ter acabado na cadeia; claro que

para mim foi perfeito, tudo o que ele tinha agora é meu... Por isso, ouve­
-me

com atenção — disse, parando a meio metro da minha cara —, eu não sou tão

estúpido como ele. O imbecil do teu amigo deve­-me três mil dólares. São três

mil dólares que cobrarei em dinheiro ou em sangue, a escolha é tua: ou me dás

o dinheiro e o assunto fica resolvido por aqui... ou certifico­-me de que nunca

mais ninguém vai conseguir reconhecer a merda da cara dele.

Cerrei o maxilar, controlando­-me, e só conseguia pensar numa coisa: Noah.

Não ia arranjar problemas, não ia andar à bulha com aquele cabrão... Pensei na

Jenna e em como reagiria se visse o Lion num estado pior do que aquele em que

já estava.

— Não tenho três mil dólares comigo, não sou um cabrão de um traficante

como tu.

O Cruz soltou uma gargalhada, e os amigos imitaram­-no.

— Não te preocupes com isso. Aqui ao lado há uma caixa automática,

podemos ir todos juntos. O que te parece?

Respirei fundo para não lhe partir a cara ali mesmo e voltei­-me para me

dirigir à porta. Sabia que vinham atrás de mim, e, na verdade, era até melhor

afastarmo­
-nos daquele lugar. A probabilidade de sair daquele subúrbio sem

mais problemas depois de lhe dar o dinheiro eram diminutas. Mas, se

estivéssemos na rua... era outra coisa.

Já lá fora, mal senti o ar fresco da noite, o meu olhar percorreu rapidamente o

espaço que me rodeava. Havia grupos nas esquinas, um ou outro vagabundo e

duas prostitutas a falar com três homens num carro. Mal via a hora de sair dali.
O Lion pôs­
-se ao meu lado enquanto os seis, eu, ele, o Cruz e três amigos dele,

nos encaminhávamos para a caixa automática, a duas ruas de distância.

— És um idiota — disse­
-lhe, pisando o chão com força e reprimindo a

vontade que tinha de lhe partir a cara; não queria saber se era o meu melhor

amigo.

— Eles enganaram­
-me — desculpou­-se, e a seguir cuspiu para o chão. —

Disseram­
-me que tinha de lhes entregar a coca que não vendesse e pronto, mas

agora estão a pedir­


-me o dinheiro daquilo que não vendi. São uns cabrões de

merda.

— Tens um problema para resolver que é bem mais importante do que estes

idiotas, e é bom que comeces a fazê­-lo — respondi, avançando quando

chegámos à caixa automática.

O Cruz aproximou­
-se. Já estava a perder a paciência com ele, por isso

encarei­
-o e contive­
-me para não lhe dar cabo da fronha.

— Já me estás a irritar... Afasta­-te ou juro por Deus que te dou uma cara

nova.

O Cruz sorriu, mas levantou as mãos e afastou­-se. Sabia que ele só se estava a

controlar porque queria o dinheiro. Peguei no cartão e marquei o código.

Marquei a quantidade de dinheiro e desejei poder levantar tudo de uma vez e

sem mais problemas. Assim foi: três mil dólares. Três mil dólares que ganhara a

trabalhar no duro durante as duas semanas em que estive separado da Noah.

— Aqui está. Tenta não voltar a meter­


-te no meu caminho — ameacei,

enquanto lhe dava o dinheiro.

O Cruz contou as notas, e um sorriso divertido aflorou­-lhe os lábios.

— Nunca te devias ter ido embora, Nick. Enquadras­-te melhor aqui do que

julgas... essa cena toda de menino bem­


-comportado que tens mantido

ultimamente não condiz contigo.

Sorri, controlando­
-me com todas as forças, e virei­-lhe as costas com a intenção

de ir embora sem olhar para trás.

— Ah, e, já agora... — acrescentou. — Foi muito fácil para mim fugir pela

porta da frente daquela discoteca onde tinham a tua namorada, antes que a

polícia lá chegasse... Como está a Noah?

Foi naquele momento que perdi todo o autocontrolo.

O meu punho voou tão rapidamente que só tive consciência de que tinha

chocado com os maxilares dele quando o vi caído no chão. Os pés moveram­


-se

depressa e puxaram­
-me para baixo também. O primeiro murro chegou um
segundo depois e acertou­
-me em cheio do olho esquerdo.

— Não voltas a dizer o nome dela, filho da puta!

Levantei o corpo e pus­


-me em cima dele. Os meus punhos esmurraram

repetidamente a cara daquele imbecil.

Mas logo a seguir senti que me davam um pontapé por trás, junto às costelas.

— Vou­
-te matar, cabrão de merda!

Ouvi as palavras do Cruz e, antes de ter tempo para reagir, já tinha três tipos

de pé, em cima de mim, a dar­


-me pontapés. Agarrei no primeiro tornozelo que

me apareceu à frente e puxei com toda a minha força. De repente, tudo era uma

confusão de braços e pernas, murros e sangue. A adrenalina corria­-me nas veias

e impedia­
-me de sentir qualquer dor. Estava cego de raiva. Ouvir o nome da

minha namorada na boca daquele pulha acendera o fogo da minha ira.

Pus­
-me em cima do tipo que me tinha batido e comecei a dar­
-lhe murros no

estômago. Pelo canto do olho, vi que o Lion estava à bulha com os outros dois.

Não iríamos durar muito tempo, éramos dois contra quatro, e o Lion estava nas

últimas. Eu conseguia enfrentar dois tipos na boa, até três, mas quatro?

Também eu tinha os meus limites.

Uma joelhada acertou­


-me em cheio no queixo, e fiquei com a visão toldada.

Caí no chão, de barriga para cima, e levei um pontapé no estômago que me

deixou sem ar. Tentei levar oxigénio aos pulmões, mas foi impossível.

— Tenta não voltar aqui... Porque será a última coisa que farás.
15

Noah

A minha viagem acabara finalmente. Tinha visitado lugares magníficos, nadado

nas melhores praias, comido e provado todo o tipo de pratos tradicionais, mas,

quando o avião vindo de Nova Iorque pousou as rodas na pista do aeroporto de

Los Angeles, a única coisa que sentia era júbilo, júbilo e um nervosismo que me

corroía o estômago.

Mal se ouviu o sinal para soltarmos o cinto de segurança, pus­


-me de pé. A

minha mãe revirou os olhos, mas ignorei­-a; agradeci o facto de viajar em

primeira classe e de poder ser das primeiras pessoas a sair. Quando as portas se

abriram, fui diretamente para a manga que me levaria ao terminal. Voltei­


-me

com impaciência quando vi que a minha mãe tardava em sair. Que diabo estava

a fazer?

Por sorte, como tínhamos feito escala em Nova Iorque, não tive de voltar a

passar pelo controlo de passaportes, por isso percorri apenas o corredor

comprido e desci pelas escadas rolantes. Eram sete da tarde em Los Angeles, e a

primeira coisa que vi foi a luz acolhedora do entardecer, que, por instantes, me

turvou a vista. O William estava ali.

Mas onde estava o Nick?

O meu olhar perscrutou todo o aeroporto enquanto as escadas desciam, até

que não tive outro remédio senão aproximar­


-me do pai do meu namorado.

Ele sorriu­
-me e abriu os braços para me dar um abraço, embora o sorriso não

lhe chegasse aos olhos. Não queria ser mal­-educada, mas não era ele quem tinha

vontade de abraçar.

— Olá, forasteira — disse­


-me, quando o abracei brevemente.

— Onde está o Nicholas?

Olhou para mim por um instante, mas, quando estava prestes a responder­
-me,

viu a minha mãe.

Ela correu até ele a abraçar. Fiquei a olhar para os dois sem perceber nada.

Quando se separaram e depois de ele lhe dar um beijo na boca, obrigando­-me a


desviar os olhos, viraram­
-se os dois para mim.

— Onde está o Nick? — perguntou a minha mãe, tal como eu própria fizera

antes.

O Will voltou a pousar os olhos nos meus e encolheu os ombros como quem

diz: «Estavas à espera de quê?»

— Mandou­
-me uma mensagem a dizer que não podia vir cá buscar­
-te e que te

ligava assim que conseguisse.

Aquilo não fazia sentido nenhum.

— Não te disse mais nada? — perguntei, com incredulidade. A minha alegria

estava a dissipar­
-se como o ar num balão furado... Sentia­-me invadida pela

desilusão.

O William abanou a cabeça, e virei­-lhe as costas, enquanto ele e o Steve

recolhiam as malas. Peguei no telemóvel e fiz a primeira chamada.

Foi diretamente para as mensagens. Desliguei antes que o meu silêncio

ensurdecedor ficasse gravado.

Por que motivo não tinha vindo buscar­


-me? Estaria a trabalhar? Se assim

fosse, teria vindo de qualquer maneira, já o tinha feito nos meus anos, deixara

tudo para me vir ver...

Teriam estas semanas em que estivemos separados feito com que não se

importasse tanto comigo como dantes?

Por amor de Deus, mas que raio estava eu a pensar? Claro que se importava!

Tínhamos falado, e ele disse que estava ansioso por me ver...

Voltei a marcar o número de telefone dele.

— Nicholas, estou no aeroporto, e tu não estás aqui. O que acon­


teceu?

Deixei a mensagem no atendedor e guardei o telemóvel no bolso das calças de

ganga. Voltei­
-me para a minha mãe, que não largava o William, e fui ter com o

Steve enquanto saíamos do aeroporto e nos encaminhávamos para o carro. O

Steve sabia sempre onde o Nick estava. Na verdade, sabia sempre onde toda a

gente estava, era o segurança p


­ rivado da família Leister.

— Sabes o que aconteceu, Steve? — perguntei­-lhe, olhando para ele

fixamente. Sabia que o Nicholas confiava nele. Sempre que acontecia alguma

coisa, ele ligava ao Steve e também lhe pedia para me ir buscar quando surgia

alguma coisa que o impedia de ir pessoalmente ou quando se queria assegurar

de que chegava a casa sã e salva.

O Steve desviou o olhar, e percebi que se passava alguma coisa que ninguém

me queria contar. Agarrei­


-lhe no braço e obriguei­-o a olhar para mim.
— Mas o que raio se está a passar?

— Não vale a pena ficares alarmada, Noah. O Nicholas está bem. Depois de

te levar para casa, ele entra em contacto contigo.

Tinha chegado há menos de meia hora e já sentia vontade de o estrangular.

Que raio de jogo era aquele?

A viagem até casa durou uma eternidade, e gostava de ter ido diretamente

para o apartamento do Nick. Não fazia ideia do que se estava a passar, mas não

estava a gostar daquilo nem um bocadinho. Sabia por que motivo o Steve não

me dizia nada. Já era tarde, e de certeza que o Nicholas queria que eu ficasse em

casa aquela noite... Passava­


-me pela cabeça todo o tipo de coisas, a maior parte

más.

Quando chegámos, a noite já tinha caído. Uma parte de mim desejava vê­
-lo

ali, à minha espera, e que tudo aquilo não tivesse passado de uma brincadeira de

mau gosto. Ele não retribuíra as minhas chamadas, e já estava a ficar

preocupada... Ou irritada, ainda não sabia ao certo.

— Noah, faz outra cara, por favor, estás a regressar de uma viagem, não do

manicómio.

Tinha a certeza de que a minha mãe estava a adorar aquilo tudo. Uma parte de

si queria ver quantas vezes o Nicholas me podia desiludir. Estava à espera de

que o deixasse, de que acontecesse alguma coisa que fosse a gota de água, mas

estava muito enganada.

Fui para o meu quarto sem sequer lhe responder. Peguei no telemóvel e

liguei­
-lhe outra vez. Já lhe ligara do caminho e, depois, do carro. E o pior de

tudo era que o Lion também não atendia o telemóvel, e a Jenna muito menos.

Ao quinto toque, atendeu finalmente.

— Noah — disse simplesmente.

— Onde estás?

Ouvi atentamente, mas não escutei nada além da sua respiração funda, como

se estivesse a ponderar o que haveria de me dizer a seguir. Senti um medo

invadir­
-me o coração... Um medo irracional porque não percebia nada do que

estava a acontecer.

— Estou bem, desculpa. Aconteceu uma coisa, e por isso não pude ir buscar­
-

te. — A voz dele tinha um tom lamentoso, lamentoso e duro.

— Estás bem? Estão todos bem? O Lion e a Jenna não me atendem o telefone

— disse, enquanto me sentava na cama. Ouvir a voz dele acalmava­-me um


pouco.

— Estou ótimo — respondeu, mas não acreditei nele. Passava­-se alguma

coisa, e ele não me queria dizer o que era.

— Vou agora mesmo para o teu apartamento — anunciei, determinada, e

levantei­
-me.

— Não.

A voz dele foi tão ríspida que fiquei parada onde estava, com a mão na

maçaneta da porta.

— Nicholas Leister, ou me dizes imediatamente o que se passa ou juro por

Deus que te arranco todos os cabelos que tens na cabeça.

Fez­
-se silêncio do outro lado da linha.

— Lamento, mas não estou para estas coisas — disse então, num tom de voz

que não me agradou nem um pouco. — Fica em casa e espera que te ligue.

E desligou.

Olhei para o telemóvel como se tivesse acabado de levar uma bofetada.

Marquei o número dele tão depressa que quase parti o ecrã.

Estava ocupado.

Mas, que diabo, com quem estava ele a falar agora? Como se atrevia a

desligar­
-me o telefone na cara?

Dirigi­
-me imediatamente à mesa de cabeceira, onde guardava as ­chaves do

Audi. Não estavam lá.

Seria uma brincadeira ou quê?

Saí do meu quarto e corri até à cozinha. Abri a gaveta onde guardávamos as

chaves suplentes, mas não vi nenhuma do meu carro. A minha mãe e o William

não estavam em lado nenhum, e nem queria imaginar o que estariam a fazer.

O meu carro estava na rua? Nem me ocorrera verificar. Fui até à porta de casa,

mas o Steve saiu nesse instante do seu escritório com o telemóvel na mão e uma

expressão de aviso nos olhos.

— Estavas a falar com ele? — perguntei, olhando para o telemóvel e

acusando­
-o um segundo depois, com o dedo.

— Noah, ele pediu­


-me para não te deixar sair de casa. Amanhã explica­
-te

tudo.

Soltei uma gargalhada que até a mim pareceu estranha. O Steve parecia

constrangido, mas eu sabia que ele ia respeitar a vontade do Nick.

— Já é tarde. Descansa que amanhã já o vês.

Uma treta é que descanso.


— Está bem, tens razão.

O Steve pareceu aliviado e observou­-me demoradamente enquanto eu dava

meia­
-volta e começava a subir as escadas. Se este tipo pensava que me podia

impedir de sair de minha própria casa, estava bem enganado. Entrei no quarto,

disposta a esperar o tempo que fosse preciso. Andei de um lado para o outro

com nervosismo e tirei o telemóvel.

Não há nada que justifique o que estás a fazer. Quando nos virmos, vais
pagá­-las.

Por sorte, respondeu­


-me de imediato.

Não sejas violenta. Amo­-te. Descansa e vemo­-nos em breve.

«Vemo­
-nos em breve?»

Entrei na casa de banho para tomar banho, estava asquerosa depois de tantas

horas de voo. Vi as horas; eram nove da noite. Não pensava tentar fugir de casa

antes das onze. Ri­


-me da minha própria expressão, «fugir», como se estivesse na

cadeia.

Ia matá­
-lo...

Quando já estava mais ou menos apresentável, embora com o cabelo ainda

molhado, fui até ao corredor. Não se ouvia nada. A verdade é que nunca se

ouvia nada naquela casa. Era enorme. O meu plano consistia em ir até à

garagem subterrânea e levar o meu antigo carro. Era verdade que já avariara mil

vezes, mas tinha pena de o vender ou deitar fora, melhor dizendo. Eu sabia que

aquela lata velha ainda me haveria de ser útil.

A porta que dava para a garagem ficava nas traseiras da casa, por isso não

precisava de passar pela entrada nem pelo escritório do Steve. Desci as escadas

fazendo o menor barulho possível e sorri ao ver o meu querido carro ao lado do

BMW da minha mãe. Também ali estava uma mota; a verdade é que nunca me

ocorrera perguntar de quem era, e ainda me senti tentada a levá­-la, mas não

sabia onde estavam as ­


chaves e tinha a certeza de que o Nicholas me mataria se

me visse chegar a sua casa às tantas da noite com uma mota que nunca

conduzira na vida.

Entrei no carro e peguei no comando que abria as portas da garagem. Dei

novamente graças a Deus pelo facto de a casa ser tão grande que ninguém me

ouviu sair.

Tinha quase uma hora de viagem pela frente, por isso liguei a música bem
alta para despertar e abri as janelas, desejando estar a conduzir o meu

descapotável e não aquele carro, que, no máximo, conseguia andar a noventa à

hora.

Sabia que era uma imprudência ir para a estrada àquela hora, principalmente

depois de ter estado vinte horas sem dormir, mas não queria saber; a vontade de

ver o Nicholas e a sensação de que se passava algo de errado ultrapassavam tudo

o resto.

O caminho pareceu­
-me interminável, e, quando finalmente cheguei ao

quarteirão onde ele morava, senti que estava cada vez mais nervosa. Não só

porque ia vê­
-lo depois de um mês de ausência, mas porque sabia que ele ia ficar

aborrecido comigo por ter ido até ali sozinha, àquelas horas da noite.

Entrei no elevador, mas depois percebi que não trouxera as chaves que ele me

tinha dado. Bolas... Ia ter de tocar à campainha, à uma da manhã. Com o

coração a bater a mil à hora, bati também eu à porta... À porta, não toquei à

campainha. Não sabia porquê, mas pareceu­-me mais sensato. Dei umas

pancadas suaves, nada dramáticas. Uma parte de mim já estava a tentar acalmar

as águas antes mesmo de o ver.

Ninguém abriu.

Voltei a bater, desta feita com mais força, e vi luz por baixo da porta. Estaria a

dormir? Ouvi um palavrão do outro lado da porta e logo a seguir um insulto.

Até que a porta finalmente se abriu, e ali estava ele.

Acho que nada me poderia ter preparado para o que vi. Tive de suster a

respiração. As minhas mãos dirigiram­-se imediatamente à boca, sufocando um

grito. Ele não esperava ver­


-me ali, e agora entendia porquê.

— Porra, Noah — resmungou, enquanto apoiava a testa na ombreira da

porta. — Não és capaz de fazer aquilo que te peço, nem uma maldita vez na

vida?

— O que te fizeram? — perguntei, num sussurro abafado. Deus do céu...

Tinha o rosto cheio de hematomas, o olho esquerdo carregado de pus e com um

tom esverdeado. E exibia o lábio rachado, completamente rasgado.

Levou uma mão à cabeça e depois estendeu o braço para me puxar; de seguida,

fechou a porta com o pé.

— Eu disse­
-te para ficares em casa!

Agora que ali estava, agora que o via, entendia por que motivo não fora

buscar­
-me. Estava desfeito, tinham­-lhe dado uma tareia descomunal... Senti que

o meu coração acelerava não só com medo de ver o corpo dele maltratado
daquela forma mas porque a felicidade de o encontrar, a fantasia do reencontro

depois de semanas sem nos vermos, desapareceu diante dos meus olhos, de

forma desoladora.

Fitei o seu peito nu, que tinha uma ligadura à volta das costelas...

Tinham­
-no magoado... magoaram­-no de maneira horrível, a ele, ao Nick, ao

meu Nick.

— Não olhes assim para mim, Noah — pediu­-me então. A seguir, virou­
-me

as costas e levou novamente a mão à cabeça.

Eu não sabia o que dizer. Ficara sem palavras. Aquilo era a última coisa de

que eu precisava, a última coisa que os meus olhos queriam ver era o meu

namorado ferido. Para mim, uma tareia não era apenas uma tareia: era muito

mais do que isso, algo muito pior... Que despertava recordações que, maldita

seja, não queria desenterrar.

Aproximou­
-se de mim.

— Não chores, porra! — exclamou, e senti os seus dedos no meu rosto, a

limpar­
-me as lágrimas que me caíam dos olhos.

— Não estou a perceber... — confessei, e era verdade. Não entendia o que se

estava a passar, por que razão ele estava magoado; estava atordoada, nada correra

como eu esperara.

O Nicholas puxou­
-me e abraçou­-me. Até tinha medo de lhe tocar, não queria

magoá­
-lo, mas os meus braços contornaram­-no instintivamente, e senti os

lábios a pousarem sobre a minha cabeça.

— Tive tantas saudades tuas — disse e senti a outra mão a acariciar­


-me o

cabelo enquanto cheirava o aroma do meu champô... Os seus dedos seguraram

no meu rosto, e abri os olhos para o fitar. Tinha o olho esquerdo meio fechado

com o inchaço, o que não me deixava ver aquela cor azul­-celeste que me

apaixonava tanto. Só via dor e sofrimento... Quando se inclinou para me beijar,

afastei­
-me.

— Não — recusei, com medo.

Fechei os olhos com força e fui assaltada pelas recordações, pelas malditas

recordações... A minha mãe agredida, o meu pai a morrer, eu a sangrar no chão,

à espera de que ela voltasse...

Dei meia­
-volta e levei as mãos ao rosto para o esconder.

— Porque fazes isso, Nicholas? — perguntei, abafando a voz com as mãos.

Voltei­
-me para ele. Odiava chorar, sobretudo à frente de outras pessoas e por

causa de algo que podia ter sido certamente evitado. Ele obser­vou­-me, imóvel,
creio que ainda magoado por ter recusado o seu contacto.

— Porque não podes ser um namorado normal? — recriminei, num tom

lastimoso. Estava magoada, magoada com tudo aquilo, por o ver naquele estado

e porque a minha fantasia se evaporara no ar.

A dor que se refletiu no seu rosto ao ouvir as minhas palavras fez­-me sentir

culpada, mas não tinha a menor intenção de as retirar. Tinha de certeza voltado

às lutas para ganhar dinheiro ou então apanhara simplesmente uma bebedeira e

acabara por se envolver em alguma zaragata. E de certeza que o Lion e a Jenna

também estavam metidos naquilo. Por isso nenhum dos dois me atendera o

telefone.

— Não devias ter vindo — criticou ele, controlando o tom de voz. Ai, agora

já conseguia controlar­
-se? Agora era tarde. — Quis evitar que tivesses de passar

por isto, mas nunca fazes caso do que te digo!

— Não podes dar­


-me uma ordem e ficar à espera que me limite a obedecer­
-te

sem sequer receber uma porcaria de uma explicação, ­Nicholas! Fiquei

preocupada contigo.

— Porra, Noah, eu tinha os meus motivos!

— O teu motivo é teres levado uma tareia?!

Olhou para mim com a respiração acelerada, e eu dei meia­-volta sem saber o

que devia fazer: debatia­


-me entre a raiva que sentia por ele ter voltado para

aquele mundo que eu odiava e a vontade de o abraçar com força e de nunca mais

o largar. Sabia que estava prestes a desabar e não queria que isso acontecesse ali,

à frente dele.

A sua mão contornou o meu braço quando comecei a encaminhar­


-me para a

porta, mas puxei­


-o para me libertar.

— Não me toques agora, Nicholas, estou a falar a sério!

Ao ouvir­
-me, os seus olhos soltaram fagulhas.

— A sério? Não nos vemos há um mês...

— Não quero saber! Neste momento, nem sequer te reconheço. ­Pensava que

ias estar à minha espera no aeroporto, com um sorriso nos lábios, mas sou uma

idiota, uma estúpida que espera alguma coisa de alguém que promete mundos e

fundos quando é evidente que não vai cumprir as suas promessas.

— Nem me deixaste explicar!

— Que explicação me vais dar? Que foste contra uma porta?

Fulminou­
-me com o olhar, e eu cruzei os braços, à espera de que se explicasse.

Um silêncio desconfortável adensou­-se na sala, até que o Nick começou a


percorrer o espaço que nos separava.

— Não me toques — repeti, desta vez muito a sério.

Ele parou. Ficámos os dois a suster o olhar do outro, sem saber o que dizer a

seguir.

— Não é o que tu pensas — sussurrou então. — Tive de ajudar o Lion, que

teve uns problemas.

As palavras dele entraram na minha cabeça com lentidão.

— Que tipo de problemas? — perguntei, enquanto fixava o olhar na ferida

aberta que tinha nos nós dos dedos.

Deu um passo em frente, avisando­-me com o olhar. Deixei que se

aproximasse, e, ao ver que eu não recuava, o Nick levantou as mãos e tomou­


-me

o rosto nelas.

— De dinheiro. Ouve­
-me, Noah. Eu não queria que nada disto tivesse

acontecido, juro­
-te, sardas — sussurrou, descendo até à minha altura e cravando

os olhos nos meus. — Desde que te foste embora que estou à espera deste dia.

Tinha ido comprar comida, limpei o apartamento todo, até dei banho ao gato e

tudo. Por favor, acredita em mim. Só queria ver­


-te, era a única coisa que me

importava.

Senti o aroma do seu corpo a inundar­


-me os sentidos, o seu toque morno no

meu rosto, e aquela dor que sentia no peito acalmou num ápice, porque, apesar

de ele ser o culpado por me sentir assim, também era o único que conseguia

fazê­
-la desaparecer.

Respirei fundo e, quando ele aproximou a testa da minha, fechei os olhos,

tentando acalmar­
-me. Receosa, levei as mãos ao rosto dele.

— Amar­
-te é a coisa mais complicada que fiz na vida — admiti.

— Amar­
-te é a coisa mais bonita que fiz na minha.

Suspirei. Era impossível ficar zangada com ele.

— Estou a morrer de vontade de te beijar — disse­-me então. Estava a pedir­


-

me licença.

Demorei uns segundos a responder.

— Então beija­
-me.

Um instante depois, senti o seu sorriso nos meus lábios.


16

Nick

Tinha dado cabo de tudo; o medo no rosto dela ao olhar para mim confirmava­
-

o, mas já nada me importava. Ela estava ali, comigo, outra vez, e morria de

vontade de a beijar.

Quando encostou os lábios suaves aos meus, senti uma pontada de dor no

maldito corte que tinha. Mesmo assim, não me afastei dela. Só que a Noah deve

ter reparado, porque se afastou de repente.

— Magoei­
-te? — perguntou, perscrutando o meu rosto com uns olhos

felinos, aqueles olhos adoráveis, rodeados de pestanas húmidas com as lágrimas

que eu a fizera chorar, outra vez.

— Não — respondi, distraído, baixando as mãos para a sua cintura e

puxando­-a novamente para mim. — É maravilhoso. Ando há semanas a desejar

beijar­
-te assim.

A Noah olhou para mim de sobrolho franzido e chegou­-se para trás, sem me

deixar alcançar os seus lábios.

— Queixaste­
-te de dor — afirmou, segurando­-me o rosto entre as mãos.

O quê?

— Não me queixei.

— Queixaste, sim — insistiu, e o dedo desceu pela maçã do meu rosto,

percorrendo­
-me com delicadeza o lábio inferior. Cerrei os maxilares com força.

Sim, doía­
-me, mas não era nada quando comparado com a dor de não lhe poder

tocar durante dias, de não a beijar e de não fazer amor com ela. — Vou tratar­
-te

da mão — anunciou então, determinada.

Empurrou­
-me e afastou­
-se da minha mão. Gostaria de estar mais ágil, de

conseguir puxá­
-la para mim, pô­
-la sobre o ombro e levá­-la para o meu quarto,

mas tinha uma costela quase partida, e os médicos tinham­


-me dito para não me

levantar da cama... E ali estava eu, sem fazer caso do que me aconselhavam,

como sempre. Observei­


-a enquanto se dirigia para a cozinha. Finalmente, o

meu apartamento parecia ter vida. O gato saiu sabe Deus de onde e começou a
esfregar­
-se contra os pés da Noah.

— Olá, N, gatinho lindo! — exclamou ela, efusiva, agachando­


-se para pegar

no bicho ao colo. Sentei­


-me numa cadeira da cozinha enquanto observava a

minha namorada fazer caretas ao nosso gato ao mesmo tempo que procurava o

estojo de primeiros socorros. Quando o encontrou, encaminhou­-se na minha

direção e sentou­
-se virando a cadeira de frente para mim.

— Estás linda — disse e fiquei deliciado ao ver que corava.

— Já não posso dizer o mesmo de ti.

Sorri e senti dores em partes do rosto que nem sabia que existiam.

— Dá­
-me a mão — pediu com doçura.

Fiz o que me mandava e, enquanto a via limpar a ferida, que na verdade só

tinha sangue, reparei que ainda estava mais bonita do que quando se fora

embora. O cabelo estava mais avermelhado, com ­madeixas louras aqui e acolá, e

a pele, bronzeada pelo sol, tinha um tom alaran­jado que realçava os traços do

seu rosto. Os lábios ficavam sempre inchados depois de chorar... E depois de nos

envolvermos. Enquanto os observava, não consegui deixar de pensar em todas as

coisas que tinha vontade de lhe fazer. Queria aqueles lábios sobre o meu corpo,

as mãos nas minhas costas...

— Estou a falar contigo, Nicholas — disse­-me mais alto, arrancando­-me ao

meu sonho acordado.

— Desculpa, estavas a dizer o quê? — perguntei, tentando controlar o desejo

que se acendia dentro de mim.

— Perguntei­
-te como está o Lion.

O Lion... Nem queria ouvir falar no nome dele.

— Esteve várias horas nas urgências, mas está bem, já está em casa.

O olhar da Noah estava fixo nos meus ferimentos enquanto os limpava e

desinfetava...

— E a Jenna? — perguntou, enquanto se inclinava para a bancada para pegar

numa tesoura.

Ao fazê­
-lo, ofereceu­
-me um primeiro plano dos seus seios, e tive de respirar

fundo para me acalmar. Tínhamos mesmo de falar daquilo agora? A verdade é

que não queria saber da Jenna para nada. Sim, ela sabia o que tinha acontecido

— não lhe dissemos, claro, que andávamos a tra­ficar droga ou, ainda, que o

namorado andava metido nisso — e agora ela estava a cuidar do Lion.

— Está com ele, certamente a moer­


-lhe a cabeça até mais não — respondi,

impaciente por que terminasse o curativo e me olhasse de uma vez por todas.
Parecia nervosa. Apercebi­
-me disso pela forma como guardava e alinhava as

coisas no estojo.

— Quero saber exatamente o que aconteceu, quem te fez isto, Nick. Quem te

deixou a cara neste estado?

— Não te preocupes com isso, Noah, está bem? Não voltará a acontecer.­

— Não quero saber disso, mas preciso que me contes — respondeu, olhando

fixamente para mim.

— E eu quero fazer amor contigo — respondi sem hesitar.

E ali estava o seu olhar, cravado no meu exatamente como eu queria.

— Não podes — respondeu, levantando­-se com a voz ligeiramente trémula.

Puxei­
-a para a trazer até ao meio das minhas pernas. Os olhos estavam à altura

dos meus.

— Sabes que posso sempre — afirmei, pousando uma mão nas costas dela e

puxando­-a mais para mim.

Ela olhou para mim, hesitante, percorrendo os meus ferimentos até parar no

abdómen, envolvido pelas ligaduras.

— Não, Nicholas, estás ferido. Tenho a certeza de que nem sequer consegues

respirar sem que te doam as costelas — recusou, detendo as minhas mãos com

as suas quando comecei a levantar­


-lhe a T­
-shirt .

Porra, queria lá saber das dores que sentia no corpo. Tinha uma dor muito

mais forte que precisava de acalmar.

— Não te preocupes comigo, sardas, o prazer será mais forte do que a dor,

garanto­
-te — afirmei, tirando­-lhe a T­
-shirt e deixando­-a à minha frente só de

sutiã. Só de olhar para ela fiquei excitado.

Quando comecei a beijá­


-la acima do peito, senti que o coração lhe batia

loucamente. O batimento era tão forte no pescoço que até se via o sangue

percorrer as veias, a prepará­


-la para mim.

Acariciei­
-lhe as costas com as mãos. Já me tinha esquecido de como era suave,

perfeita... Às vezes nem conseguia acreditar na sorte que tinha. Quando a

minha mão parou sobre o fecho do sutiã, ela chegou­-se para trás, afastando­
-se

dos meus braços.

— Porra — disse sem pensar.

— Não, Nicholas, não quero magoar­


-te — insistiu, olhando para mim,

martirizada.

Soltei uma gargalhada.

— Não olhes para mim assim — avisou­-me, apontando­-me o dedo, que


agarrei de imediato.

Peguei na sua mão pequena e levei­-a até aos lábios. Beijei­-lha, mordi­-lhe a

ponta dos dedos e captei a resposta no seu corpo. Quando fez um movimento

para se afastar, os meus braços seguraram­-na rapidamente. Com a força das

minhas pernas, obriguei­


-a a ficar à minha frente, onde a queria. A minha boca

dirigiu­
-se ao seu pescoço, e beijei­-o naquele sítio que sabia que ela adorava.

Quando a minha língua ocupou o lugar dos lábios, deixou escapar um suspiro

entrecortado.

As mãos dela contornaram o meu pescoço e enterraram­-se no cabelo, e

naquele momento percebi que ganhara a batalha. Comecei a beijar­


-lhe a parte

de cima do peito, e as mãos dela desceram pelas minhas ­costas. Estendi os

braços para a abraçar, e ela ficou com o peito exatamente no sítio onde o queria.

O corpo estremeceu, e cravou­


-me as unhas na pele. Sibilei, não sei se de dor ou

de puro prazer carnal, mas ela nem me deu tempo para perceber, porque se

escapou dos meus braços.

— Nicholas, não podes! — exclamou, excitada e irritada. Assim estava eu

também.

Que treta! Estendi o braço para a alcançar, mas ela afastou­-se com a

determinação refletida nos malditos olhos cor de mel.

— Sabes perfeitamente como isto vai acabar, sardas, por isso podes afastar­
-te

de mim, obrigar­
-me a perseguir­
-te, o que só me fará doer mais o corpo, ou

então podes vir aqui agora mesmo e acabar com estas parvoíces.

Uma expressão de ira atravessou­-lhe o rosto.

— Queres ver quão depressa consigo sair por aquela porta?

— Quero foder.

O rosto dela ficou ainda mais corado. Não estava claramente à espera daquela

resposta, e uma parte de mim sorriu interiormente ao ver o seu olhar.

— Estás a ficar muito mal­-educado, sabias? — contra­-atacou, sem se

aproximar de mim.

Um sorriso diabólico apareceu­


-me no rosto.

— Sempre fui mal­


-educado, sardas, só tento controlar­
-me contigo, embora

não me facilites muito a vida.

Estava a chegar ao limite da paciência.

Peguei nas mãos dela com força, levantei­-me, inclinei­-me sobre ela e enfiei­
-

lhe a língua na boca. Doía­


-me o lábio, mas não queria saber. Já tivera

ferimentos piores do que aquele, e naquela noite nada me ia impedir de beijar a


Noah. Já tinha esperado demasiado tempo.

Um segundo depois, correspondeu com o mesmo entusiasmo que eu. A sua

língua começou a acariciar a minha, primeiro em círculos lentos, depois com

desespero. As suas mãos pequenas agarraram o meu peito, e fiz um esgar de dor.

Ela interrompeu o beijo e olhou para mim, assustada.

— Para — pedi­
-lhe antes que ela pudesse dizer alguma coisa. — Vou fazer

amor contigo daqui a menos de cinco minutos, por isso, poupa as tuas palavras.

Ficou calada, e, no fundo, percebi que tinha tanta vontade como eu. Pareceu

pensar durante um instante e compreendeu finalmente que não havia nada a

fazer. Em vez de irmos para o quarto, pegou­-me na mão e obrigou­


-me a sentar

no sofá.

— O que estás a fazer? — perguntei, mais excitado do que nunca.

— Vamos fazer isto à minha maneira.

Os seus olhos felinos brilharam de desejo.

— Tu só sabes fazer como te ensinei, sardas.

Empurrou­
-me as costas em direção ao sofá e sentou­-se no meu colo, com uma

perna de cada lado. Agarrou o cabelo com uma mão e puxou­-o todo para trás do

ombro.

— Estive em França. Aprendi coisas novas.

Não achei graça nenhuma àquele comentário. Fulminei­-a com o olhar.

— Não sejas parvo — disse­


-me então e tirou o sutiã com um movimento só.

Os seios ficaram mesmo à minha frente, e perdi a capacidade de raciocínio. —

Agora vais ficar aqui, muito quietinho.


17

Noah

Era verdade que não o queria magoar, mas também precisava de estar assim

com ele. Queria que me acariciasse com as mãos, com os dedos hábeis, que me

beijasse por todo o lado, em todos os sítios proibidos. Que me tomasse para si e

que se esquecesse de todas as outras.

— Esta vai ser a única vez que terás o controlo, por isso, aproveita­-o bem —

disse­
-me o grande convencido. Mas estava mais do que excitado. Sentia­-o por

baixo de mim, duro como uma pedra.

— Isso é o que vamos ver — respondi, inclinando­-me para lhe beijar o

maxilar. Ia tentar evitar os lábios dele, pois não queria provocar­


-lhe dor, mas

seria difícil. Encorajava­


-me o facto de termos de avançar com cuidado. Queria

que fizéssemos amor com toda a liberdade, queria que me dominasse com o seu

corpo, como tanto gostava que fizesse, que me levantasse ao colo, que o roçar da

nossa pele nos provocasse prazer e não dor. Mas ter o controlo, para variar,

também era muito excitante.

Passei a língua pela barba incipiente, até chegar à orelha direita. Cheirava

maravilhosamente bem, a Nick, a homem...

As mãos apoderaram­
-se dos meus seios, e soltei um suspiro entrecortado

quando mos apertou com firmeza, provocando um prazer intenso que me fez

estremecer.

As minhas mãos desceram pelo estômago dele. Deus do céu, tinha um corpo

tão bem trabalhado!... Senti os seus músculos sob a ponta dos meus dedos.

Queria beijar cada centímetro daquela pele. Os dedos pararam mesmo por cima

das calças, e sorri quando o corpo do Nick estremeceu por inteiro enquanto lhe

mordiscava o pescoço e o maxilar.

— Não sejas má, sardas, não vou esperar muito mais — avisou­-me, com as

mãos na minha cintura, mas detive­-o antes de ele fazer o que sabia que iria

fazer.

Sorri e afastei­
-me. Deslizei as mãos pelas calças e despi­-as, ficando só de roupa
interior. Os olhos dele escureceram com desejo.

— Se bem me lembro, havia uma coisa que gostavas que te fizesse —

comentei, querendo que ele ficasse nervoso, desejando que perdesse o controlo

sobre si mesmo.

Então vi que os seus olhos se cravaram nos meus, fixamente, prendendo­-me

por instantes no seu olhar.

— Hoje não — respondeu e vi como lhe custava dizer aquilo.

Desapertei o primeiro botão das calças dele.

— Porque não?

A respiração do Nick descontrolou­-se completamente.

Tirei­
-lhe as calças e comecei a acariciar­
-lhe o corpo devagar. Fechou os olhos

com força. Sabia que, se continuasse a fazer aquilo, ele não ia durar muito mais:

havia um mês que não fazíamos amor, e tinha a certeza de que não aguentaria

muito mais tempo.

— Porque, quando o fizeres, não te vou deixar ir embora.

Ao ouvir aquelas palavras fiquei quieta, tentando recuperar o controlo da

situação.

Ele inclinou­
-se para a frente, enquanto um sorriso diabólico lhe aparecia no

rosto.

— É bom que faças o que te digo — disse ele, e a mão puxou­-me a roupa

interior para baixo, deixando­


-me completamente nua à sua frente.

Os olhos dele pareciam percorrer cada centímetro do meu corpo, e fiquei

grata por ter ultrapassado a vergonha que sentia no princípio. Não há nada

como confiar plenamente noutra pessoa, mostrar­


-lhe todas as nossas

inseguranças e ver como não apenas as aceita como as adora.

— Um dia vou ser eu a controlar tudo e vou deixar­


-te louco — disse, de

forma hesitante, enquanto os lábios dele começavam a beijar­


-me a barriga e os

dedos me tocavam o ponto mais sensível.

— Tu deixas­
-me louco só por respirares, Noah — admitiu, aproxi­mando­
-se

ainda mais.

Empurrei­
-o suavemente para trás até ele ficar encostado ao sofá e pousei as

duas mãos nos seus ombros. Sentei­-me no colo dele, estremecendo com o

contacto da sua pele. A boca do Nick reclamou a minha e, quando nos unimos

para nos beijarmos com desespero, levantou­-me com cuidado pela cintura e

guiou­
-me até entrar aos poucos dentro de mim. Fechei os olhos com força

enquanto me deliciava com o contacto dele, com o seu corpo dentro do meu...
— Agora é a tua vez — disse, entre dentes, obrigando­-me a abrir os olhos.

Agarrei­
-me a ele e comecei a subir e a descer, primeiro devagar, deixando que

o meu corpo se habituasse novamente à sensação de o ter dentro de mim depois

de um mês de ausência.

— Estás a dar cabo de mim, Noah — gemeu, pousando as mãos na minha

cintura e obrigando­
-me a movimentar­
-me mais depressa.

Tentei evitar a força dos braços dele. Queria ir devagar, queria aproveitar e

prolongar o prazer ao máximo, mas ele não deixava: os braços no meu corpo,

mesmo magoados, continuavam a ser mais fortes do que eu.

— Porra, Nicholas — queixei­


-me, quando estava quase a atingir o orgasmo.

— Mais devagar!

Ele desencostou­
-se do sofá e juntou o rosto ao meu. Os olhos subju­garam­-me,

silenciaram­
-me, e a sua mão dirigiu­-se ao centro do meu corpo, para me tocar

naquele ponto que me fazia morrer de prazer.

— Assim — disse, e inclinou­-se para me morder o lábio.

Cristo... Era tudo demasiado, as palavras dele, a mão a acariciar­


-me, o sexo a

entrar e a sair de mim... O meu corpo precisava de se libertar, tantas semanas

sem ele, a ter pesadelos, o desencanto de não o ter visto no aeroporto, o medo de

o ter encontrado com a cara desfeita... Fui eu quem acabou por acelerar o ritmo.

Ele soltou um gemido de prazer profundo quase ao mesmo tempo que eu

soltava um grito desesperado, e, depois de várias ondas de prazer infinito,

chegámos juntos ao orgasmo.

— É aqui que tenho de estar todos os dias.

Baixei os olhos e puxei­


-o para a minha boca. Beijou­-me sem se importar com

a dor, sem se preocupar com nada. Estávamos novamente juntos, e essa era a

única coisa que nos importava.

Naquela manhã, quando abri os olhos, senti cócegas no nariz. O N estava a

lamber­
-me a cara. Sorri e, ao levantar­
-me, vi que estava sozinha no quarto e que

a luz que entrava pela janela surgia num ângulo estranho... Passei a mão pelos

olhos, desorientada, tentando lembrar­


-me de onde estava, em que país, em que

cama, e de como ali chegara.

A aparição do Nick à porta, de tronco nu e só de calças de desporto, foi a

melhor visão que podia ter tido na vida.

— Menos mal. Já começava a ficar preocupado — disse ele com o ombro

encostado à ombreira da porta.


Olhei para a janela, depois para ele e novamente para a janela.

— Que horas são?

— Sete — respondeu, entrando no quarto —, da tarde — acrescentou com

um sorriso.

Arregalei os olhos com surpresa.

— Estás a gozar?

O Nick sentou­
-se ao meu lado na cama.

— Dormiste mais ou menos catorze horas.

Deus do céu... Estava a dar­


-me cabo do juízo, o maldito jet lag!

— Bolas, preciso de tomar um duche.

Levantei­
-me da cama e fui diretamente para a casa de banho. Estava com um

ar horrível, tanto que fechei logo a porta, não fosse o Nicholas querer meter­
-se

no duche comigo. Esta coisa de viver com ele ia ser muito difícil, porque de

manhã eu era um ser do outro mundo e tinha medo de que deixasse de gostar

de mim se me visse com cara de louca todas as manhãs. Ao acordar, ele parecia

um Deus grego, mais do que isso, ficava ainda mais bonito com cara de sono.

Meti­
-me debaixo da água quente e deixei que me molhasse o cabelo outra vez.

À medida que a água me despertava os sentidos, fui acordando e comecei a

libertar­
-me daquela sensação de torpor.

Quando saí do duche, só encontrei uma toalha para me enrolar. Saí a pingar

para procurar a roupa, e foi então que ouvi a porta bater, seguida de gritos.

— Onde está ela?

«Merda, a minha mãe.»

Tentei correr novamente para a casa de banho, para ver se ela não me apanhava

nua, mas intercetou­


-me a meio do caminho.

— Como te atreves? — Gritou. — Como te atreves a desaparecer assim,

durante horas?

Olhei para ela, horrorizada. Já tínhamos discutido muitas vezes, mas nunca a

tinha visto tão furiosa. O Nicholas apareceu e pôs­-se mesmo à minha frente,

tapando­
-me a vista.

— Tem calma, Raffaella. A Noah não fez nada de mal.

Vi os músculos das costas dele tão tensos como as cordas de uma guitarra, e o

ar, já de si pesado, tornou­


-se irrespirável.

— Afasta­
-te dela, Nicholas — ordenou a minha mãe, tentando ­manter a

calma, mas fracassando.

Dei um passo para o lado, e a minha mãe cravou em mim os olhos inundados
de raiva.

— Veste­
-te imediatamente. Vamos embora daqui.

Não sabia o que fazer, estava atordoada por ver a minha mãe tão descon­trolada

pela primeira vez em tantos anos.

— A Noah não vai a lado nenhum — disse o Nick com tranqui­lidade. Foi

então que apareceu o William, que acabara de entrar.

— Que diabo se passa aqui? — perguntou, furioso, olhando primeiro para a

minha mãe e depois para nós. — Quem te fez isso, Nicholas? — inquiriu,

olhando com horror para os hematomas.

— O teu filho está descontrolado, e eu não o quero perto da Noah — disse a

minha mãe. De repente, voltou­-se para o Nick e, com a mesma raiva com que

falara comigo, disse­


-lhe: — Tu és violento, metes­-te em brigas, tens amigos do

mais reles possível, e não vou tolerar que metas a minha filha nesses meios

horríveis! Nem pensar!

— Mãe, para com isso! — gritei, contendo a vontade de lhe dizer algo bem

pior. — Desculpa não te ter avisado de que ia sair, mas não podes entrar por

aqui adentro e...

— Claro que posso e vou continuar a fazê­-lo. És minha filha, por isso, pega

nas tuas coisas, veste­


-te e vai para a porcaria do carro!

— NÃO! — gritei, e senti­


-me completamente malcriada, mas não admi­
tia

que me dissesse o que podia e não podia fazer. Já não era uma criança.

— Tu foste raptada, Noah! — vociferou a minha mãe como resposta. — Já te

sequestraram uma vez, e pensei que tinha acontecido algo semelhante agora.

Quase morro do coração — confessou, e os seus olhos encheram­-se de lágrimas.

— Desculpa, mãe — repeti e sentia­-o de facto, mas ela não podia perder as

estribeiras daquela forma, já não tinha o direito de o fazer. — Mas, dentro de

pouco tempo, não vais poder saber onde estou a cada minuto do dia. Não podes

ficar nesse estado sempre que não souberes onde estou.

O olhar da minha mãe cravou­-se no meu.

— Veste­
-te e vamos para casa — pronunciou cada palavra muito devagar e

sem admitir resposta.

Não me queria ir embora dali, era a última coisa que me apetecia fazer, mas

percebi que a minha mãe estava à beira de um ataque de histeria. Precisava de a

afastar do Nick, principalmente porque dali a pouco tempo ia ter de lhe dizer

que vinha viver com ele.

— Espera por mim no carro, já desço — disse­-lhe finalmente. Ao meu lado, o


Nicholas praguejou. A minha mãe fez de conta que não o ouviu e saiu para o

corredor com o William. Um segundo depois, ouvi­-os fechar a porta.

— Não vás embora, Noah. Se fores, só lhes estás a dar razão — disse­-me o

Nick, furioso.

— Não viste como ela está? Ou saio agora ou ainda vai ser pior.

Ele suspirou, resignado.

— Não vejo a hora de viveres aqui.

Até tinha medo de dizer isto à minha mãe.

— Já não falta muito.

Apertou­
-me entre os seus braços e, com o rosto encostado ao seu peito, não

consegui evitar pensar que uma parte de mim lhe estava a mentir.
18

Nick

Quando a vi ir embora, senti que a raiva que estava a reprimir dentro de mim se

derramava como a lava de um vulcão. Estava tão cansado daquela porcaria

toda... As palavras da Raffaella não me saíam da cabeça.

«Está descontrolado, e eu não o quero perto da Noah.»

Fui diretamente para a cozinha, para tentar acalmar­


-me.

«És violento, metes­


-te em brigas!»

Amaldiçoei o momento em que decidi ajudar o Lion.

«Não vou tolerar que metas a minha filha nesses meios horríveis!»

Se quisesse que a minha relação com a Noah resultasse mesmo, ia ter de

mudar. Estávamos prestes a dar um grande passo, um passo decisivo no nosso

relacionamento, para mostrarmos a toda a gente que aquilo era a valer. Por isso

tinha tanta vontade de que ela viesse viver comigo, já que ninguém parecia

levar­
-nos a sério. Às vezes sentia que as poucas pessoas que sabiam da verdade

faziam apostas nas nossas costas para ver quanto tempo nos aguentávamos sem

acabar o namoro, para ver quanta pressão éramos capazes de aguentar.

Peguei no telemóvel, que estava em cima da bancada.

Tinha uma mensagem da Jenna.

O Lion está bem. Temos de falar. Sabes perfeitamente que não acre­dito
numa palavra do que me disseram. Sei que estás com a Noah, mas preciso
de me encontrar contigo. Quando tiveres um bocado, liga­-me.

Sabia que isto ia passar e também que seria relativamente fácil mentir à

Jenna. Podia inventar uma história qualquer em que ela acreditaria, mas não era

isso que ia fazer. O Lion estava a meter­


-se em areias ­movediças, em terrenos

demasiado perigosos para o deixar ir sem me preocupar. A Jenna precisava de

saber que o Lion não estava bem.

Mandei­
-lhe uma mensagem a dizer que podíamos ver­
-nos dali a uma hora e

fui tomar um duche. Tinha o corpo feito num oito, e as feridas pareciam piorar
à medida que as horas passavam. Senti um calor no peito ao recordar como a

Noah se preocupara comigo, como cuidara de mim, como sofria ao ver­


-me todo

escavacado... Nunca ninguém me tinha feito sentir assim. O meu pai ficava

zangado quando me via aparecer em casa com marcas de brigas, e o mais normal

era só voltar a dirigir­


-me a palavra quando as nódoas negras já tivessem passado;

naquela altura, por vezes, metia­-me em escaramuças exatamente por causa

disso, só para o irritar e o manter longe de mim.

Saí do duche, vesti umas calças de ganga e uma T­


-shirt e tomei um

comprimido antes de sair de casa. O carro da Noah estava estacionado em frente

ao meu prédio.

Porra, a mãe obrigou­


-a a ir com eles no carro, não queria nem imaginar o que

lhe estavam a dizer de mim... Senti­-me maldisposto, detestava a ideia de que

lhe estavam a fazer a cabeça contra mim. O meu maior medo era que a Noah

acabasse por se render à vontade da mãe, que perce­besse finalmente que eu era

uma pessoa com quem não devia estar. Nesse instante, recebi outra mensagem

da Jenna.

Estou a chegar.

Pouco depois, estava a estacionar no Starbucks que havia no centro comercial,

a quinze minutos de minha casa.

Ao ver a Jenna do outro lado da janela, sentada num dos sofás do café, percebi

que tinha de ter muito cuidado com a maneira como ia contar as coisas à minha

amiga. Mal entrei, o seu olhar furioso fulminou­-me. Sentei­-me à frente dela,

tentando não fazer nenhum esgar de dor, mas os seus olhos estavam bem atentos

a qualquer expressão do meu rosto.

— Vocês os dois são mesmo uns perfeitos idiotas, sabias? — disse, pousando

na mesa o batido ou lá o que era aquele líquido verde.

— Não sei por que motivo isso agora te surpreende — respondi

simplesmente. Sentia o sangue a ferver, porque não queria que ela continuasse a

pensar que eu era o mesmo Nick de há um ano. Eu tinha mudado ou pelo

menos gostava de acreditar que sim; o namorado dela, por outro lado,

continuava a ser um idiota.

— Acham mesmo que vou acreditar que isto tudo aconteceu por causa de um

jogo de póquer com aqueles imbecis? — perguntou então, o que me deixou

calado durante alguns segundos. Póquer? Mas de que diabo estava ela a falar?
— Principalmente sabendo quão mal vocês jogam... têm de parar de se juntar

aos gangues, Nicholas!

O Lion tinha­
-lhe mentido... Espetacular!

— Olha, Jenna, hoje não estou a ter um dia nada bom — comentei, tentando

não me zangar e ainda menos irritar­


-me com ela. — O Lion já é crescidinho e

sabe o que faz; ele está preocupado com dinheiro, por causa da oficina e por ti

— acrescentei, sem a fitar diretamente nos olhos. — Mais cedo ou mais tarde,

há de perceber o que é melhor para ele; mas, entretanto, tens de o deixar fazer as

coisas à maneira dele, porque não é fácil sair deste mundo; além de que, dentro

de pouco tempo, começam as corridas, e sabes que isso nos deixa a todos um

pouco tensos... O Lion sabe o que tem de fazer.

— Corridas? Achei que este ano não iam participar em nada disso, Nicholas.

«Merda, não devia ter dito nada!»

— E não vamos, estava a dizer que o pessoal dos gangues está nervoso; aquela

cena de ontem foi uma briga estúpida que acabou pior do que pensámos. Não te

preocupes.

Ela observou­
-me de sobrolho franzido, mas pareceu aceitar a minha

explicação. Depois, os seus olhos observaram o espaço em redor, como se se

tivesse apercebido de que faltava alguma coisa ou alguém.

— Onde está a Noah?

— Como podes verificar, não está comigo — disse, irritado.

A Jenna ficou mais séria ainda.

— O que lhe fizeste?

Soltei uma gargalhada amargurada.

— És muito rápida a presumir que fui eu quem fez alguma coisa de mal, não

és?

O olhar da Jenna foi o suficiente para me aperceber de que não era só a mãe da

Noah que achava que eu não era bom para ela, apesar de a Jenna normalmente

ficar do meu lado.

— Já viste a tua cara? Ela deve estar destroçada. Parece que não ­consegues

perceber nada, Nicholas... — disse, hesitando por instantes. Presumo que o

meu olhar estava a ter algum efeito nela, porque teve de ganhar coragem para

continuar a falar. — Se continuares assim, vai acabar por te deixar.

— Cala­
-te.

A Jenna baixou os olhos, mas um segundo depois voltou a fitar­


-me.

— A Noah é a minha melhor amiga. Ao longo destes anos, contou­-me coisas


que nem sei se tu sabes, mas a violência é algo que ela não consegue suportar. O

estado da tua cara, os ferimentos... Sabes perfeitamente que recordações

despertam nela.

— Porra, Jenna, eu não planeei nada disto, está bem?

— Acorda, Nicholas! — respondeu­-me, levantando a voz. — A Noah não

está bem, ela tem pesadelos. Há pouco tempo, o meu irmão mais novo acertou­
-

me com uma daquelas bolinhas de fogo no olho, que ficou negro. Quando a

Noah me viu, ia tendo um ataque, pensou que me tinham batido. Nessa noite,

ela dormiu em minha casa, e havias de ver como se agitava entre os lençóis. Eu

não disse nada, mas acho que percebeu que sei, porque nunca mais quis ficar a

dormir comigo.

Abanei a cabeça.

— Eu já dormi com a Noah mil vezes. Ela dorme como um bebé. Isso é

apenas a imaginação. A Noah está ótima.

Senti o sangue ferver­


-me nas veias... Não tinha ido ali para ouvir aquelas

merdas todas. A Noah estava bem. Sim, sabia que os ferimentos a perturbavam,

por isso não a tinha ido buscar ao aeroporto e planeara passar vários dias sem a

ver, para que não me encontrasse naquele estado, mas ela não tinha pesadelos.

Se tivesse, eu saberia. Quem devia preocupar­


-se com o namorado era a Jenna,

não eu. Quem andava a traficar droga era o Lion, e tudo porque a Jenna não

tinha noção de que a vida dele e a sua eram completamente incompatíveis.

Levantei­
-me, antes de dizer alguma coisa de que viesse a arrepender­
-me.

— Eu até posso ter os meus problemas com a Noah, Jenna, mas os teus

problemas com o Lion não são menos importantes — declarei, olhando­-a nos

olhos. — Se fosse a ti, deixava de me meter onde não sou chamada e

preocupava­
-me com o meu namorado.

— O meu namorado está como está por andar contigo.

Libertei todo o ar que estava a conter.

— Vai à merda, Jenna — e fui­


-me embora.

Depois de andar uma hora às voltas de carro, sem rumo, enquanto pensava em

tudo o que a Jenna e a mãe da Noah me tinham dito... cheguei à conclusão de

que tinha de fazer ouvidos de mercador. Não podia esperar outro tipo de reação

das pessoas que me rodeavam: tinha conseguido criar aquela imagem de mim, e

seria difícil mudá­


-la; estava a custar­
-me imenso tentar fazer com que me

levassem a sério. Não ­


obstante, apesar de a Noah ainda desconfiar de mim,
sabia que acreditava que eu podia ser uma pessoa melhor. A Noah amava­-me,

estava apaixonada por mim. Sabia que ela não pensava como a Jenna ou como a

mãe e que nunca me diria as coisas que estas me tinham dito. Eu já lhe

mostrara que podia ser melhor...

Estacionei o carro em frente à praia e comecei a caminhar à beira­-mar

enquanto o sol se punha no horizonte. Havia mais gente a passear os cães e um

ou outro casal que aproveitava a solidão daquela zona. Deixei que o ruído das

ondas me tranquilizasse, deixei que todos os meus medos e todas as

inseguranças que tinha a respeito da minha relação com a Noah voltassem para

o lugar onde as guardava bem escondidas.

Um instante depois, quando pensei que as minhas emoções já estavam

controladas, o meu telemóvel tocou. Atendi sem sequer ver quem era, pensando

que seria a Noah. Do outro lado da linha, fez­-se silêncio.

— Olá, Nicholas.

Não podia ser. De todas as pessoas que me podiam ligar...

— Que diabo queres e porque estás a ligar­


-me para o telemóvel?

— Sou tua mãe e preciso de falar contigo.

Pensei imediatamente na Madison e tive de parar de andar, com o coração na

garganta.

— Aconteceu alguma coisa à minha irmã?

— Não, não, a Maddie está bem — respondeu a Anabel.

— Então não temos nada para conversar.

Ia desligar.

— Espera, Nicholas! — pediu­-me, e esperei sem dizer uma palavra.

— Mas que raio queres? — perguntei novamente.

Antes de me responder, fez­


-se silêncio durante alguns segundos.

— Quero falar contigo. Só uma hora, num café qualquer. Há muitas coisas

que ficaram por esclarecer entre nós, e não consigo suportar a forma como

continuas a viver a tua vida, a odiar­


-me dessa maneira.

— Odeio­
-te porque me abandonaste. Não há mais nada a dizer. — E

desliguei sem ouvir a sua reação.

Toda a raiva que tinha tentado conter regressou. A minha mãe era a pior coisa

que me acontecera na vida. Eu era assim por causa dela. A minha relação com a

Noah seria completamente diferente se eu tivesse tido um bom exemplo de

comportamento. Teria sabido tratar melhor as mulheres, confiar mais nelas. A

Anabel Grason não tinha absolutamente nada para me dizer, nada que falar
comigo... E agora ligava­
-me porque queria ver­
-me?

Senti­
-me ultrapassado pela tensão que acumulara ao longo daquele maldito

mês; todas as discussões, as inseguranças, a tristeza e a solidão que sentira sem a

Noah, o facto de a ter desiludido não estando no aeroporto para a receber, como

ela queria, tudo me ultrapassou. Corri como um louco pela praia fora, até

conseguir parar de pensar.


19

Noah

O caminho de regresso a casa fez­-se num silêncio confrangedor.

Assim que o William estacionou em frente a casa, saí do carro e fui disparada

para o andar de cima. Não queria falar com a minha mãe; na verdade, não

queria falar com ninguém. Desde que chegara, tudo correra mal: não ver o Nick

no aeroporto, encontrá­
-lo depois em casa, naquele estado lastimoso, a discussão

que tivemos, logo a seguir a briga com a minha mãe e ouvir em primeira mão o

que ela pensava dele... Precisava de me afastar de todos, precisava de espaço.

Quando entrei no meu quarto, a primeira coisa que vi foi um grande envelope

em cima da cama: era da universidade. Abri­-o e senti um nó no estômago ao ver

os papéis sobre a residência. Quando preenchera a candidatura, muitos meses

antes, assinalara com uma cruz a opção de partilhar quarto na residência

universitária. Fora esse o meu plano desde o início, viver com uma colega de

quarto num dos dormitórios do campus, mas agora tudo mudara, porque

decidira ir viver com o Nicholas e tinha de ligar para a universidade para o

comunicar.

Temia o momento em que o contaria à minha mãe. Ela ia matar­


-me, e uma

parte de mim, a mesma que ainda continuava a ser uma menina, estava

assustada por lhe revelar que, logo no primeiro ano de universidade, ia partilhar

um apartamento com o meu namorado.

Não podia acreditar que dali a duas semanas me ia embora... Se pudesse, teria

feito as malas naquele instante e saído dali, mas ainda ia ter de aguentar mais

uns dias. A minha mãe precisava de aprender a estar sem mim; além disso,

tinha a certeza de que o William queria poder viver só com ela, já que, desde

que ali chegáramos, só tínhamos causado problemas, sobretudo eu.

Peguei em todos os impressos e guardei­-os na gaveta da secre­tária. Vesti o

pijama, mas não tinha sono, já que tinha estado a dormir durante o dia, e

meti­
-me na cama, disposta a não pensar em nada.
Claro que tive dificuldade em adormecer e, quando consegui, os pesadelos

regressaram. Sabia que andava à procura do Nick entre os lençóis da minha

cama, sabia que, assim que o sentisse ao meu lado, os meus medos

desapareceriam, mas ele não estava comigo, não estava ali para me proteger...

O sol brilhava de forma ofuscante; por um instante, não sabia onde estava, mas, de

imediato, situei­
-me no sonho que estava a ter.

O meu pai encontrava­


-se comigo.

— Há ocasiões na vida, Noah, em que as pessoas farão coisas de que não vais gostar...

Por exemplo, quando a mãe não faz aquilo que o pai lhe diz, o pai castiga­-a, não é

verdade? — perguntou o meu pai, enquanto estávamos ali os dois, sentados, a observar

as ondas quebrar­
-se contra a falésia.

Assenti enquanto o ouvia. Dizia­-lhe sempre que sim a tudo o que me perguntava, e

para mim era fácil porque as perguntas dele eram quase sempre de retórica, não precisava

de pensar na resposta certa, porque ela estava sempre implícita na pergunta.

— Isso é porque a tua mãe não sabe o que lhe convém, não entende que só eu sei o que é

melhor para ela.

O meu pai pegou­


-me pela cintura e sentou­-me no seu colo.

— Tu és a minha menina, Noah, és a minha pequenina e vais fazer sempre o que eu te

disser, certo?

Assenti, fitando os olhos do meu pai, que eram iguais aos meus, com a mesma cor de

mel, só que os dele estavam vermelhos do álcool.

— Então, diz­
-me, da próxima vez que te mandar afastar e deixar ficar a mãe onde

ela está, o que vais fazer?

— Vou para o meu quarto — respondi, num sussurro quase inaudível.

O meu pai assentiu, satisfeito.

— Nunca me desobedeças, pequena... Não quero ter de fazer alguma coisa de que

depois me venha a arrepender... Contigo não. Afinal, tu e eu estamos juntos, não

estamos?

Assenti e sorri quando o meu pai pegou numa corda que estava no chão e começou a

entrelaçá­
-la com rapidez e desenvoltura.

— Será sempre este o nó que nos une, tão forte que nunca ninguém o poderá soltar.

Olhei para o nó de oito que ele me obrigara a fazer tantas, tantas vezes...

Só me deixava parar quando o nó estava perfeito.

No dia seguinte, levantei­


-me cheia de olheiras. Tinha passado uma noite
horrível, e não ajudou nada que o pequeno­-almoço fosse do mais confrangedor

possível. O William comeu sem dizer uma palavra, e a minha mãe olhava para

mim com má cara, mas sem falar, folheando o jornal sem ler uma linha. Uma

parte perversa do meu cérebro perguntou­-se como seria largar naquele preciso

instante a bomba de que ia viver com o Nicholas, mas só de pensar em fazê­


-lo

quase vomitei de nervos.

Agradeci que o meu telemóvel começasse a tocar. Estava à espera de que o

Nicholas me ligasse, por isso saí apressadamente da cozinha, ignorando o olhar

cáustico da minha mãe enquanto atendia a chamada.

— Sim?

— Estou a falar com a Noah Morgan? — perguntou uma voz de mulher do

outro lado da linha.

— Sim, quem fala? — respondi, subindo as escadas, dois degraus de cada vez.

Fez­
-se um breve silêncio que me obrigou a parar à porta do meu quarto.

— O meu nome é Anabel Grason. Sou a mãe do Nicholas.

Desta vez fui eu quem ficou calada. Anabel, a mesma mulher que era, em

parte, culpada pelos meus problemas e pelos da pessoa que mais amava na vida,

a mesma que o abandonara, aquela que o meu namorado não queria ver nem

pintada.

— O que deseja? — perguntei, fechando­-me no quarto.

O silêncio prolongou­
-se durante uns segundos e foi seguido de um suspiro.

— Preciso de te pedir um favor — respondeu finalmente do outro lado da

linha. — Sei que o Nicholas não me quer ver, mas isto é ridículo. Preciso de

falar com ele, e tu podes ajudar­


-me. És a namorada dele, não és?

O seu tom de voz era tão amável que me deixava desconfiada. Sentei­-me na

cama e fiquei subitamente nervosa.

— Eu não vou fazer nada que o Nick não queira. Este é um assunto que têm

de resolver entre os dois. Lamento, senhora Grason, mas, como deve

compreender, não sou grande admiradora sua e, na verdade, acho que o

Nicholas está muito melhor longe de si.

Pronto, estava dito, e não ia retirar uma palavra... Esta mulher tinha

abandonado o filho, o Nick, o meu Nicholas de doze anos. Deixara­-o sozinho

com um pai que estava demasiado ocupado a criar um império, deixara um

menino sozinho, sem lhe dar qualquer explicação, e agora aparecia com a

intenção de recuperar a relação? Esta mulher não estava boa da cabeça.

— Sou a mãe dele. É impossível ele estar melhor longe de mim. As coi­
sas
mudaram, e quero voltar a vê­
-lo.

Não planeava ceder. Já tinha tentado falar com o Nick acerca da mãe, e ele

deixou bastante claro que não devia meter­


-me nesse assunto. O tema Anabel era

um não categórico para ele, e eu já o conhecia o suficiente para saber que não

iria mudar de opinião.

— Lamento, mas o Nicholas é taxativo a este respeito: não a quer ver, senhora

Grason.

— Então encontra­
-te tu comigo, só eu e tu. O Nicholas não precisa de saber, e

podemos encontrar­
-nos onde quiseres.

O quê? Eu não podia fazer aquilo, o Nicholas matava­-me; se eu falasse com a

mulher que ele mais odiava no mundo, a mulher que mais mal lhe tinha feito,

iria sentir­
-se traído... Nem morta o faria.

— Não está a compreender. Eu não quero encontrar­


-me consigo e não penso

mentir ao Nicholas.

Estava a ser dura e clara. Acho que todo o stresse dos últimos dias estava a vir

à superfície. Da mesma forma, sentia necessidade de defender o meu namorado,

de evitar que alguém lhe fizesse mal, incluindo eu própria.

Ouvi a Anabel respirar fundo antes de continuar a falar.

— O que se passa é o seguinte — disse ela mudando para um tom de voz

bastante desagradável. — A minha filha de seis anos tem um pai que passa

metade da semana a viajar por todo o mundo. Eu não posso estar com ela o dia

inteiro e sei que o Nicholas tem vontade de ficar com a irmã durante algumas

semanas no seu apartamento; por mim, não há qualquer problema, mas o meu

marido nem quer ouvir falar no assunto. Se fizeres o que te peço, se te

encontrares comigo e me ajudares a arranjar maneira de reconstruir a relação

com o meu filho, eu deixo que ele fique com a Madison quando o meu marido

estiver ausente. Mas, se não me ajudares, farei o possível para que o Nicholas

nunca mais volte a ver a irmã.

Porra. A Maddie era tudo para o Nicholas. Não podia acreditar que aquela

mulher estava a fazer ameaças com uma coisa daquelas. Seria esse o tipo de

relação que queria ter com o filho? Baseada em enganos e chantagens? Senti o

sangue ferver de raiva. Tinha vontade de lhe desligar o telemóvel na cara, de

deixar bem claro o que pensava da sua proposta, mas estávamos a falar da

Maddie. Por vontade do Nicholas, ele até a teria a viver sempre consigo. Já

tinha falado com advogados, o pai tentara conseguir que o deixassem ficar com

ela por algumas semanas, mas não havia nada que se pudesse fazer... Sabia que
me estava a meter na boca do lobo, que ia acabar por me arrepender daquilo,

mas não podia permitir que aquela mulher separasse a Maddie do Nick.

— Onde quer que nos encontremos? — perguntei, odiando­-me por deixar

que me manipulasse.

Quase consegui vê­


-la a sorrir do outro lado da linha.

— Vou transmitir ao Nicholas que para a semana pode ficar com a Maddie.

Encontramo­
-nos quando eu a levar. Não te preocupes, será o nosso segredo.

Ninguém precisa de saber de nada.

— Eu não quero mentir e vou acabar por lhe contar. Asseguro­-lhe que não vai

achar graça nenhuma. Isto que está a fazer comigo, a chantagear­


-me, vai

resultar exatamente no oposto daquilo que espera. O Nicholas não é pessoa para

perdoar com facilidade, e a senhora foi a pessoa que mais o magoou em toda a

vida.

A Anabel Grason demorou uns segundos a responder­


-me.

— Não conheces todas as versões da história, Noah, e as coisas nem sempre

são como pensamos ou como nos disseram que eram.

Não conseguia continuar a falar com aquela mulher.

— Mande­
-me a morada do local onde se quer encontrar comigo.

Desliguei sem esperar pela sua resposta e atirei­-me para cima da cama,

olhando para o teto e sentindo­-me mais culpada do que alguma vez me sentira

na vida.

Pouco depois, a minha mãe veio à minha procura para me dizer que nessa

noite ela e o Will iam a uma gala de beneficência do outro lado da cidade e que

não passariam o serão em casa. Propôs­-me convidar a Jenna para não ficar

sozinha em casa, e eu assenti sem lhe dar grande atenção. Quem queria convidar

para dormir comigo era o Nick, mas uma parte de mim tinha medo de lhe

ligar, não fosse ele reparar que lhe estava a esconder alguma coisa. Passei o resto

do dia com o coração dividido, mas, ao ver que ele também não me ligava,

acabei por ir para a cama, resignada a voltar a passar a noite a sós com os meus

pesadelos.
20

Nick

Depois das palavras da Raffaella, da conversa com a Jenna e do telefonema da

minha mãe, passei um par de dias completamente paralisado. O que mais me

assustava era elas poderem ter razão. Eu não era um namorado perfeito. Bolas,

até há pouco tempo nunca tinha sido namorado de ninguém! Quando a minha

mãe me abandonou, jurei que nunca mais sentiria nada por ninguém, nunca

mais daria a ninguém o poder de me magoar, não planeava voltar a

experimentar aquele sentimento de rejeição.

Mas tudo mudara com a Noah, e uma parte de mim morria ao pensar que

alguma coisa poderia correr mal entre nós, que ela não estivesse bem comigo e

que acabasse por fazer o mesmo que a minha mãe fez: deixar­
-me.

O facto de, durante aqueles dias, ela não me ter ligado também não ajudou

muito a acalmar aqueles pensamentos. Não entendia por que razão a Noah não

me ligara para a ir ver, já que soubera pelo meu chefe que o meu pai tinha

ficado uma noite do outro lado da cidade e uma única chamada me ajudara a

confirmar que era verdade que a Raffaella tinha ido com ele, ficando a Noah

sozinha em casa. Não posso negar que inicialmente fiquei irritado, mas, ao cair

da noite, lembrei­
-me das palavras da Jenna: «A Noah não está bem, tem pesa-­

delos.» A única maneira de tirar estas palavras da cabeça era provar­


-lhe que não

era verdade, por isso, peguei nas chaves e saí.

Saí do carro numa escuridão absoluta. A casa do meu pai estava mergulhada

na penumbra. Ninguém tinha acendido as luzes do alpendre, coisa que não me

agradou nem um pouco. Entrei com a minha própria chave. Apressei­-me a

subir ao primeiro andar e comecei por pensar que a Noah não estava ali quando

vi luz por baixo da porta dela; mas depois ouvi­-a, e estava a chorar. Abri a porta

com o coração nas mãos. Não podia ser verdade. O quarto dela estava às escuras,

e ela mexia­
-se, agitada,
­ por baixo dos cobertores. Apressei­-me a ligar o

interruptor, mas a luz não se acendeu. Merda, devia ter havido uma falha de

eletricidade.
Aproximei­
-me da Noah e, ao vê­-la de perto, percebi que tinha o rosto

molhado pelas lágrimas, as mãos apertavam­-se tanto uma contra a outra que

uma delas sangrava por ter enterrado as unhas na pele. Olhei para ela

completamente aturdido. Ignorei o alarme que soou dentro de mim e sentei­


-me

ao seu lado.

— Noah, acorda — pedi­


-lhe, afastando­-lhe o cabelo, que se colara ao rosto

molhado.

Não serviu de nada. Continuava a dormir e mexia­-se como se uma parte de si

quisesse deixar de ver aquilo com que estava a sonhar, o que quer que fosse que

a deixava naquele estado de desolação e medo.

Abanei­
-a, primeiro devagar e depois com mais insistência: não parecia

conseguir acordar.

— Noah — chamei, aproximando­-me do seu ouvido. — Sou eu, o Nicholas,

acorda, estou aqui.

Fez um ruído, e vi que as suas mãos se transformavam em punhos, apertando

ainda mais as unhas sobre a pele, magoando­-se. Raios!

— Noah! — chamei, levantando a voz.

Foi então que os seus olhos se abriram de repente. Estava completamente

horrorizada. A única vez que a tinha visto assim foi na noite em que os cabrões

dos miúdos da escola a fecharam no armário às escuras. Os seus olhos pareceram

percorrer o quarto todo até pousarem em mim; nesse momento, pareceu

perceber que o que tinha sonhado era apenas isso, um pesadelo. Lançou­-se para

os meus braços, e senti o seu coração bater loucamente dentro do peito.

— Acalma­
-te, sardas — tranquilizei­-a, abraçando­-a com força. — Estou aqui,

foi só um sonho mau.

A Noah enterrou o rosto no meu pescoço, e fiquei em pânico quando o seu

corpo começou a tremer e soltou uns soluços que me dilace­raram a alma. Que

diabo estava a acontecer? Peguei nela e sentei­-a no meu colo. Queria que

olhasse para mim. Precisava de compreender o que se estava a passar.

— Noah, o que foi? — perguntei, tentando disfarçar o medo na voz. —

Noah, Noah, para! — ordenei, vendo que a minha pergunta só a fez chorar

ainda mais. Há muito, muito tempo que não a via chorar assim.

Reclinei­
-a para trás e segurei­-lhe o rosto entre as mãos. Os seus olhos

evitaram os meus durante uns segundos, mas levantei­-lhe o queixo e obriguei­


-a

a olhar para mim.

— Há quanto tempo tens estes pesadelos? — perguntei, entendendo que o


que a Jenna me dissera era verdade: a Noah não estava bem. Amaldiçoei­-me por

ter achado que tanto o meu passado como o dela tinham ficado para trás.

— Foi só desta vez — respondeu, com a voz trémula —, não sei o que me

deu...

Limpei­
-lhe as lágrimas com as costas da mão e, ao ouvi­-la, soube

imediatamente que me estava a mentir.

— Noah, podes contar­


-me — disse, odiando saber que não confiava em mim.

Ela abanou a cabeça e parecia começar a acalmar.

— Fico contente por estares aqui — sussurrou.

— A sério? — perguntei. Ainda não entendia por que motivo não me ligara.

A Noah devolveu­
-me o olhar franzindo o sobrolho.

— Claro que sim... — afirmou, apoiando o rosto na minha mão e olhando

para mim como se acreditasse mesmo no que dizia. — Desculpa o que a minha

mãe te disse. Sabes que não é verdade — murmurou, levantando os braços e

pondo­
-os em volta do meu pescoço.

Observei­
-a, inseguro. Não queria saber o que a mãe dela pensava.

Preocupava­
-me saber que a Jenna tinha razão, que a Noah não estava bem e,

acima de tudo, que não confiava o suficiente em mim para ser sincera sobre o

que se passava consigo...

Peguei­
-lhe na mão e pu­
-la entre os dois, para ela ver os golpes na palma. Ela

baixou o olhar, brevemente atordoada, mas sem se surpreender muito. Aquilo já

tinha acontecido mais do que uma vez.

— É por minha causa? — perguntei, debatendo­-me para manter a

compostura e tentando deixar de lado todas as coisas que faziam a Noah reviver

as más recordações da infância... O meu rosto ainda estava marcado pelos

ferimentos que me infligiram no dia em que ela regressara da Europa. Eu era

uma recordação constante de que a violência não desaparecera da sua vida, e tive

de me controlar imenso para não me ir embora naquele segundo, já que era

evidente que a minha presença lhe fazia mais mal do que bem.

— Claro que não — respondeu automaticamente. — Nicholas, não dês a isto

mais importância do que aquela que tem. Foi só um pesadelo, e...

— Não foi só um pesadelo, Noah — respondi, tentando controlar o meu

temperamento. — Devias ter visto o teu estado. Parecia que te estavam a

torturar... Diz­
-me com que estavas a sonhar, por favor, porque sei que isto já

aconteceu mais do que uma vez.

Os seus olhos arregalaram­


-se com a surpresa de me ouvir dizer aquilo.
Levantou­
-se e afastou­
-se um pouco de mim.

— Foi só uma vez — assegurou, virando­-me as costas.

Levantei­
-me da cama.

— Uma merda é que foi só uma vez! — exclamei com brusquidão.

Por que razão me estava a mentir?

— Nick! — exclamou também, voltando­-se para mim. Estávamos no meio da

escuridão. Só a luz que entrava pela janela atenuava um pouco o negrume. —

Isto não tem nada que ver contigo.

Queria acreditar nela: mais do que isso, uma parte de mim sabia que aquilo

tinha que ver com o que passara desde a infância, só que eu pensava que tudo

isso tinha acabado quando o cabrão do pai dela morrera. Descobrir que, afinal,

ainda havia demónios que a atormentavam estava a matar­


-me. Aproximei­
-me

dela tentando tranquilizar­


-me a mim e a ela. Olhou­-me com desconfiança, mas

deixou que me aproximasse.

— Ouve­
-me — disse, pousando as mãos nos seus ombros. — Quando

estiveres preparada, quero que me contes tudo. — Odiei que esse momento não

fosse aquele em que estávamos. — Sabes que estou aqui para ti. Odeio ver­
-te

mal, Noah. Só quero saber o que posso fazer para que te sintas melhor.

Os seus olhos humedeceram­-se. Nestes últimos dois meses, a Noah tinha

chorado mais do que eu alguma vez poderia ter imaginado... dantes nem sequer

chorava... e, para ser sincero, não sabia o que era pior.

Puxei­
-a na minha direção e apertei­-a entre os meus braços. Era tão pequenina,

comparada comigo... Detestava a ideia de que havia alguma coisa a atormentá­


-

la. Afastou­
-se de mim alguns centímetros e, segurando o meu rosto, obrigou­
-

me a baixar o olhar e a cruzá­


-lo com o seu.

— Tens de parar de pensar que isto é culpa tua, Nick — sussurrou com os

olhos húmidos de lágrimas, mas simplesmente deslumbrantes. Quando nos

olhávamos assim, sentia que fazíamos parte de algo único, que ela me pertencia:

era capaz de matar por aquele olhar. — Tu és a única pessoa que traz paz à

minha vida, a única com quem me sinto a salvo.

— Mas, então, tens medo de quê? — não consegui evitar perguntar.

O seu olhar mudou e vi que a transparência de uns instantes atrás se escondia

atrás do muro que continuava a erguer­


-se entre nós, apesar de todas as vezes em

que já o tentara derrubar: voltava a levantar­


-se com todo o vigor, quando falava

em certas coisas.

Mas não pude insistir no assunto, nem esperar que ela me respondesse, porque
o ruído de alguma coisa a partir­
-se no andar de baixo nos assustou a ambos.

— O que foi isto? — perguntou a Noah, desviando o olhar para a porta,

novamente com o medo espelhado no rosto.

Voltei­
-me e pus­
-me entre ela e a porta. Deve ter sido certamente o Steve ou a

Prett.

— Quem mais está cá em casa? — perguntei, mantendo a calma.

O silêncio instalou­
-se por instantes.

— Mais ninguém, só nós — respondeu a Noah, e senti que se aninhava nas

minhas costas.

«Merda.»
21

Noah

Apesar de ter ficado petrificada de medo ao ouvir algo partir­


-se no andar de

baixo, a verdade é que, por instantes, agradeci a interrupção.

«Tens medo de quê?»

Esta pergunta era tão complicada, abarcava tantas áreas da minha vida, e

podia responder­
-lhe de tantas formas diferentes, que se transformara na pior

pergunta que alguém me podia fazer, sobretudo quando era o Nicholas a fazê­
-

la. Se começasse a enumerar todos os medos que continuavam a existir na

minha mente, podia arranjar grandes problemas, porque havia coisas que era

melhor deixar enterradas bem no fundo de mim, embora algumas começassem

agora a vir à superfície e a dificultar­


-me a vida.

— Diz­-me que ligaste o alarme, Noah — pediu o Nicholas, aproxi­mando­


-se

da porta fechada e entreabrindo­-a para poder espreitar em silêncio e escutar

atentamente.

— Nós temos alarme? — perguntei, sentindo­-me como uma idiota e

começando a ficar verdadeiramente assustada.

O Nicholas fulminou­
-me com o olhar.

— Porra, Noah! — exclamou simplesmente e saiu para o corredor, fazendo­


-

me sinal para que ficasse onde estava.

Não fiz caso e colei­


-me a ele, escutando atentamente. Durante alguns

segundos, não se ouviu nada, a não ser a nossa respiração, mas depois

começámos a ouvir umas vozes... masculinas.

O Nicholas voltou­
-se depressa, segurou­-me no braço, e entrámos novamente

no meu quarto. Quando levou o dedo aos lábios, indicando­-me para ficar calada,

fitei­
-o, aterrorizada.

— Dá­
-me o telemóvel — pediu­-me num sussurro, tentando parecer calmo,

embora percebesse que estava a ser difícil.

Assenti, mas, um segundo depois, praguejei.

— Merda, deixei­
-o ao pé da piscina! — lamentei­-me, também em voz baixa.
Como podia ser tão estúpida? Tinha sempre o telemóvel comigo e, agora que

precisávamos dele, deixara­


-o lá fora, no jardim.

— O meu está lá em baixo, no aparador ao lado da porta.

O cérebro dele começou a trabalhar a toda a velocidade.

— Ouve­
-me — disse então, segurando­-me o rosto entre as mãos. — Quero

que fiques aqui. — Abanei a cabeça. — Porra, Noah, ficas aqui que eu vou

buscar o telefone que está no quarto do meu pai e ligar para a polícia!

— Não, não, fica comigo — supliquei, desesperada.

Deus do céu, estava tão assustada... Nunca me vira envolvida num assalto

nem nada parecido; o sequestro fora horrível, é verdade, mas isso não significava

que me tivesse tornado mais forte na altura de enfrentar este tipo de situações,

muito pelo contrário. Tinha tanto medo que as mãos me tremiam.

— Nicholas, eles cortaram a eletricidade, não vais ter ligação — disse, caindo

em mim.

Antes que ele me pudesse responder, ouvimos novamente vozes, desta feita

mais perto de nós. O Nicholas calou­-me tapando­-me a boca com a mão, e foi

então que ouvimos claramente as vozes dos tipos a subir as escadas.

Permanecemos em silêncio durante um minuto que pareceu uma eternidade,

até que as vozes pareceram afastar­


-se. Isso significava que, em vez de estarem no

nosso corredor, se tinham dirigido ao quarto dos nossos pais.

O Nick voltou­
-se para mim, observou­-me durante um instante, e o que quer

que viu no meu rosto pareceu deixar bem claro que teria de me levar consigo

para onde fosse.

— Põe­
-te atrás de mim e não faças barulho — avisou. Logo a seguir, abriu a

porta e saiu para a escuridão do corredor. Aquilo era de mais para mim; vi­
-me

novamente envolvida na penumbra, que me trazia recor­dações de situações que

não queria reviver e que só aumentavam o medo que tinha da escuridão. Se

pensasse bem, nada de bom acontecia às escuras... bem, havia uma coisa, mas

não era a altura para pensar nisso.

Por sorte, o quarto do Nicholas ficava mesmo do outro lado do corredor.

Entrámos rapidamente, e ele fechou a porta à chave. Fiquei quieta, no meio da

divisão, enquanto o via a revirar o armário. Foi então que tirou um estojo de

uma espécie de cofre.

— O que tens aí? — perguntei, sentindo que o medo me impedia de respirar

com facilidade.

— Nada — respondeu, enquanto se aproximava da janela e a abria. Espreitou


e, quando o fez, vi o que lhe saía do cós das calças de ganga.

— Que diabo fazes com uma arma, Nicholas? — Tive de me con­trolar para

manter a voz baixa.

Ele voltou­
-se, olhando para mim com seriedade.

— Quero que saias por esta janela, Noah — ordenou, ignorando a minha

pergunta. — A árvore tem bastantes ramos. Não vais ter dificuldade em descer.

As lágrimas ameaçaram cair­


-me novamente pelo rosto abaixo. Olhei para ele,

abanando a cabeça... Não podia arriscar­


-me, não podia cair novamente por uma

janela... Não, não conseguia simplesmente fazer aquilo outra vez.

— Nicholas, não consigo — confessei num sussurro quase imper­cetível,

sufocado pelas lágrimas.

Por que raio estava o destino tão determinado em fazer­


-me reviver coisas que

eu desejava desesperadamente esquecer?

— Porque não? — perguntou ele com incredulidade, observando­-me como se

eu estivesse louca, como se não tivesse consciência de que corríamos perigo, de

que estávamos em casa de um milionário, e não de uma pessoa qualquer, de que

nos tinham cortado a eletricidade e de que isso provava que andavam a planear

este assalto há muito tempo, porque deviam saber que o William estaria fora,

assim como os membros do pessoal.

Limitei­
-me a devolver­
-lhe o olhar, e logo a seguir o rosto do Nick iluminou­
-

se de clarividência. Aproximou­-se de mim e segurou­-me a face entre as mãos.

— Noah, não é o mesmo que saltar pela janela, amor — disse com uma voz

calma, embora os seus olhos se desviassem para a porta do quarto durante uma

fração de segundo. — Quando era miúdo, desci mil vezes por aquela árvore.

Não vais cair nem te vais magoar.

Sabia que o que ele estava a dizer fazia sentido, mas sentia­-me paralisada pelo

medo. As janelas, saltar por elas... As consequências de ter saltado de uma no

passado tinham sido devastadoras para mim. As minhas mãos pousaram

inconscientemente no meu ventre, no sítio onde tinha a cicatriz.

O Nicholas viu, seguiu o meu gesto com o olhar, e detetei uma tristeza

atravessar­
-lhe o rosto, apesar de ter dado o seu melhor para a disfarçar. Por

enquanto, aquele tema era tabu: eu não falava dele, o Nick também não...

Apesar de termos de o fazer, num futuro próximo.

— Por favor, Noah, faz isto por mim — pediu­-me, desesperado. — Não

posso permitir que voltem a fazer­


-te mal.

Tentei pôr­
-me no seu lugar... Se me acontecesse alguma coisa, ou se as pessoas
que se tinham metido ali em casa nos vissem, não fazia ideia do que poderia

acontecer. Subitamente, senti medo pelo Nicholas. Sabia como ele era e tinha a

certeza de que, naquele preciso instante, estava a tentar controlar­


-se para não

sair pela porta fora e pôr­


-se em perigo; que, embora estivesse ali comigo, isso só

tinha um significado: importava­-se mais comigo do que com qualquer coisa

que aquela gente pudesse fazer ou roubar.

— Desce tu primeiro que eu vou atrás — disse­-lhe, tentando controlar as

emoções. Sabia que, se descesse primeiro, o mais provável era o Nicholas virar­
-

se para os enfrentar, e, vendo que ele tinha uma arma, o medo de que lhe

acontecesse alguma coisa superou qualquer outro que pudesse ter até ao

momento.

Ele fulminou­
-me com os olhos claros, e percebi que tinha acertado na mouche.

A sua intenção não fora descer comigo por aquela janela.

— Às vezes tenho vontade de te estrangular — ameaçou, embora logo de

seguida me tenha dado um beijo rápido nos lábios.

Fiquei grata pelo facto de a casa ser suficientemente grande para ninguém nos

ouvir falar, embora o fizéssemos em sussurros.

O Nicholas saiu pela janela com toda a facilidade, e eu aproximei­-me para o

ver a descer. A árvore estava a uns três metros do chão. Ao espreitar para fora, as

recordações do meu acidente regressaram para me atormentar. Quando tinha

saltado por aquela janela, não tivera tempo sequer de assimilar o que estava a

fazer... Lembro­
-me de que estava tão assustada que nada me parecia mais

importante do que sair daquele inferno de escuridão e maus­-tratos. O meu pai

transformara­
-se naquele monstro que todas as crianças temem quando são

pequenas, só que naquele momento não tinha uma mãe que me pudesse dizer

que tudo não passava de um pesadelo: o monstro existia de verdade, e fora

obrigada a saltar por uma janela para fugir dele.

O Nick não demorou muito a chegar à relva por baixo da árvore e fez­
-me

sinal para que me apressasse a segui­-lo. Olhei para trás, ­assustada, quando ouvi

um ruído do outro lado do quarto. Sem pensar, pus as pernas de fora da janela e

agarrei­
-me aos ramos. Precisava de descer antes que nos vissem. Ver o Nick lá

em baixo, preparado para me agarrar se eu caísse, ajudou­-me a acalmar.

Quando, poucos minutos depois, me abraçou, senti que voltava a respirar com

facilidade.

— Vamos — disse, puxando­-me para o jardim das traseiras. — Onde está o

teu telemóvel?
Olhámos os dois em todas as direções, com medo de que aparecesse alguém na

escuridão da noite.

Felizmente, estava exatamente onde o tinha deixado, em cima de uma

espreguiçadeira, mas não foi só o telemóvel que encontrámos. Thor, o cão que

ambos adorávamos, estava caído ao lado da piscina, a pouco mais de um metro

de distância. Nem nos apercebemos de que não o ouvíramos ladrar, e senti

formar­
-se imediatamente um nó de medo no estômago. O Nicholas foi a correr

em direção ao cão e encostou um ouvido ao seu peito. Levei a mão à boca para

abafar o meu horror.

— Está vivo — declarou, e soltei todo o ar que estava a conter. Aproximei­


-me

e ajoelhei­
-me ao lado dele. O cão respirava de forma ­rítmica, como se estivesse a

dormir, e não tinha sinais de ferimentos.

— Puseram­
-no a dormir com sedativos — comentou o Nick, acariciando­
-lhe

a cabeça.

Inclinei­
-me sobre ele e dei­
-lhe um beijo no pescoço peludo.

— Vamos, Noah, aqui podem ver­


-nos — disse o Nick e puxou­-me pela mão,

obrigando­
-me a deixar ali o Thor.

O Nick pegou no telemóvel e arrastou­-me atrás de si até chegarmos à parte de

trás da casa da piscina. Puxou­-me até eu ficar encostada à parede e pôs­-se à

minha frente, claramente para me proteger com o seu corpo. Estar assim,

naquela posição, fez­


-me lembrar da noite da minha festa de anos e pensei na

ironia que era termos de nos esconder novamente ali para não nos verem.

Os olhos dele não se afastaram dos meus enquanto marcava o número de

emergência. O Nicholas explicou exatamente o que estava a acontecer e onde

nos tínhamos escondido. Informaram­-no de que uma patrulha ia a caminho e de

que não devíamos sair do nosso esconderijo. Quando desligou, abraçou­-me e

deu­
-me um beijo no cocuruto da cabeça.

— Estás bem? — perguntou, chegando­-se para trás para poder olhar para o

meu rosto. — Aqui ninguém nos vai ver. Não te vai acon­
tecer nada.

Estava num estado de nervos tão intenso que senti as mãos começarem a

tremer. O pesadelo, saber que o Nicholas me ouvira, o que me dissera depois e

ter saltado pela janela... Só tinha vontade de me enroscar no chão e de esperar,

muito quieta, que tudo voltasse à normalidade. Precisava de fugir das más

recordações.

— Dás­
-me um beijo? — perguntei, evitando a sua pergunta. Sentia a
adrenalina correr­
-me pelas veias e só ia ficar descansada quando visse a polícia

chegar.

Ele pareceu estranhar o meu pedido, mas, mesmo assim, inclinou­-se para

pousar os lábios sobre os meus. A sua intenção fora dar­


-me um simples beijo,

mas eu entrelacei os dedos atrás da nuca dele e incentivei­-o a aprofundar o

carinho. O Nicholas pegou em mim ao colo e encostou­-me à parede. Sabia o

que estava a acontecer, toda a frustração desde o dia em que nos voltámos a ver

depois de um mês separados, a discussão com a minha mãe, as dúvidas... Tudo

se estava a resolver naquele preciso instante.

O Nick travou o beijo quando reparou que a situação nos estava a fugir ao

controlo, e eu abracei­
-o, deixando que continuasse encostado a mim. As minhas

mãos tocaram em alguma coisa entalada no cós das suas calças, e ele deu um

passo atrás, afastando­


-se completamente de mim.

Ficámos a olhar um para o outro em silêncio, durante um minuto, com os

pulmões a trabalhar com esforço. Vi que tirava qualquer coisa das costas e que

voltava a guardá­
-la para não o atrapalhar. Ao ver a pistola prateada, estremeci.

— Não devias ter isso contigo — avisei quando se afastou.

Antes que me pudesse responder, ouvimos as sirenes dos carros da polícia.

Aproximou­
-se de mim e segurou­-me o rosto entre as mãos.

— Agora, por favor, não te afastes de mim.

Assenti e peguei­
-lhe na mão para enfrentarmos o que nos esperava lá fora.

O Nicholas não se afastou de mim um único segundo. Quando saímos do

nosso esconderijo, encontrámos dois carros da polícia; junto à porta, formara­


-se

um grande rebuliço, e alguns vizinhos aproximaram­-se com medo, para verem o

que tinha acontecido. Os ladrões que nos tentaram assaltar eram dois.

Apanharam­
-nos com a mão na massa, e não conseguiram fugir. O pior de tudo

era que estavam armados, o que me fez lembrar que o Nick também tinha uma

arma.

Observei­
-o, calada, ao seu lado, enquanto ele falava com os polícias e lhes

explicava tudo o que tinha acontecido, como descemos pela janela. Os agentes

anotaram tudo nos seus blocos e disseram­-nos que devíamos ir à esquadra

prestar declarações.

— Podem fazer isso amanhã, senhor Leister — disse o polícia, olhando para

mim com preocupação. — Agora é melhor descansarem.

— Espero que eles apodreçam na prisão — disse o Nicholas, desviando o


olhar do polícia para o carro­
-patrulha que saía naquele momento de nossa casa.

Depois disto e de várias conversas de cortesia com os vizinhos, a polícia e o

resto das pessoas foram­


-se embora. Liguei à minha mãe para lhe contar o que

tinha acontecido.

— Diz ao Nick que fique em casa contigo esta noite — pediu­-me, e, embora

tenha ficado surpreendida, senti um calor e uma sensação de gratidão no

estômago. — Voltamos para casa logo que seja possível.

Quando desliguei, o Nick arrastou­-me para dentro de casa, fechou a porta à

chave e marcou o número do alarme que eu nem sabia existir. Explicou­


-me

onde estava e como se ligava. Jurei que nunca mais o deixaria desligado.

— Vamos para a cama — disse, pegando­-me na mão e subindo as escadas.

Fomos para o quarto dele, e deu­


-me uma T­
-shirt de pijama lavada. Mudámos

de roupa em silêncio, completamente absortos nos nossos pensamentos.

— Se eu não tivesse decidido vir cá... — comentou de repente, e vi o medo

atravessar o seu rosto. Vi as imagens que há pouco me haviam passado pela

cabeça agora refletidas no rosto dele. — É por isso que quero que vivamos

juntos, para te poder proteger, para estar contigo sem­pre que precisares de

mim.

Via­
-o com toda a clareza... A segurança que ele me transmitia, como me

sentia bem quando sabia que ele estava por perto. O que ele dizia era verdade:

precisava dele, era nele que confiava, ele era a cura para os meus pesadelos, ele

afugentava os meus demónios.

— Vou contar à minha mãe, Nick, prometo­-te — assegurei, afastando

qualquer dúvida que pudesse restar na minha mente. Tudo estava claro para

mim; era com o Nicholas que eu devia estar. Um sorriso genuíno apareceu no

seu rosto, beijou­


-me os lábios e abraçou­-me com força. Era estranho estar ali, no

quarto dele. Tínhamos partilhado poucos momentos entre aquelas quatro

paredes, porque ele saíra de casa pouco depois de começarmos a namorar, mas

lembrei­
-me da primeira vez que fizemos amor... Como estava nervosa e quão

bonito fora. Ele tratara-me como se eu fosse de vidro... Agora, as nossas relações

íntimas eram muito, muito diferentes... À medida que o tempo passava, tudo

parecia tornar­
-se mais intenso, como se precisássemos de mais e não

soubéssemos como ultrapassar o desejo.

— Anda — disse­
-me simplesmente.

Fiz o que me pedia, deitei­


-me na cama e aninhei­-me por baixo dos cobertores;

agarrei­
-me a ele como uma lapa e deixei que me abraçasse, com a cabeça
apoiada no seu peito. O Nicholas apagou a luz, e a última coisa de que me

lembro é de que estava a sonhar, mas desta vez com algo muito mais belo: com

ele.
22

Nick

Acordei com a Noah a sussurrar­


-me ao ouvido.

— Nick — chamou em voz baixa —, acorda.

Não abri os olhos. Limitei­-me a grunhir, e, em resposta, a língua dela

começou a percorrer o meu maxilar de forma suave e sedutora.

«Oh, merda.»

— Nick — repetiu, enquanto a mão me descia pelo peito e parava

brevemente sobre o pelo escuro que me subia até ao umbigo.

Estremeci, mas decidi continuar com o jogo.

— Estou cansado, sardas. Se queres alguma coisa, terás de te esforçar mais.

Não costumava ter a Noah a tentar chamar­


-me a atenção desta forma; pelo

contrário, era quase sempre eu que a assaltava quando tinha oportunidade, e

gostei daquela inversão de papéis.

— Bem, então vou ter de procurar outro — disse­-me, captando

imediatamente a minha atenção e pondo­-me em estado de alerta. Senti­


-a

afastar­
-se, abri os olhos e saltei para cima dela tão depressa que nem teve tempo

de fugir. Comprimi­
-me com força contra o corpo dela e deliciei­-me com o roçar

da minha ereção contra o tecido suave da sua roupa i


­ nterior.

A Noah inspirou profundamente e cravou os olhos nos meus. Meti a mão por

baixo da T­
-shirt e apertei­
-lhe suavemente um dos seios nus.

— Ainda agora acordámos, sardas — disse, acariciando­-a enquanto a minha

boca se fundia no pescoço dela. — A que se deve este ataque logo de manhã?

— Estou a fazer uso dos teus deveres de namorado — respondeu, movendo as

ancas para cima e para baixo e suspirando com hesitação contra o meu ombro

despido.

— Podes fazer uso dos meus deveres de namorado quando qui­seres, mas agora

para quieta — ordenei, imobilizando­-a em cima da cama. Deus, sentia­-a tão

pequena debaixo de mim!... Só tinha vontade de a devorar com beijos, devagar,

até já nem me lembrar do seu nome. — Sabes que os nossos pais podem já ter
chegado, certo?

Eu não queria saber dos nossos pais para nada, mas queria que ela esperasse

um pouco mais até lhe dar aquilo que desejava. Como resposta à minha

pergunta, rodeou­
-me a cintura com as pernas e comprimiu­-se suavemente

contra mim.

— Desde quanto te importas com isso? — perguntou, irritada.

Sorri na penumbra, e, antes de me aperceber, a mão dela desceu até alcançar as

minhas calças. Tentou metê­


-la lá dentro, mas detive­-a, antes que me fizesse

perder o controlo.

— Se bem me lembro, da última vez quem teve as rédeas foste tu, sardas, e

agora estás a tentar fazer o mesmo? Quem te deu auto­rização?

— Autorização? — repetiu levantando as sobrancelhas. — Com essa esperteza

toda, ainda vais ficar sem sexo.

Ri­
-me enquanto enterrava a cara no ombro dela e a mordia e, por instantes,

perdi a cabeça.

— Não te vais arrepender de me ter acordado, amor — assegurei, tirando­-lhe

o pijama e acariciando­
-lhe o corpo até chegar onde queria estar. Beijei­
-lhe

docemente as pernas, as coxas, e contei até dez, tentando controlar­


-me. A Noah

mexeu­
-se, inquieta, suspirando silenciosamente, e reparei que as mãos se

fechavam com força, amarrotando os lençóis, confirmando que o que lhe tinha

dito estava a transformar­


-se em realidade. — Olha para mim — pedi­-lhe.

Quando os nossos olhos se cruzaram, já não fui capaz de os desviar mais.

— Meu Deus!... — exclamou.

— Gostas? — perguntei e então ouvi barulho do outro lado da porta.

Praguejei entre dentes e deitei­-me em cima da Noah, tapando­


-a

completamente com o meu corpo e puxando o edredão por cima dos dois.

— Mas o que estás a fazer? Estava quase a... — tapei­-lhe a boca com a mão no

preciso instante em que a porta do meu quarto se abria com rangido.

— Nicholas? — chamou a voz da Raffaella na penumbra.

Raios!

— Estava a dormir, Raffaella — respondi, esperando que não reparasse que

estava agitado. A Noah retesou­-se debaixo de mim, como uma pedra.

— Desculpa, queria só agradecer­


-te teres ficado com a Noah.

Comprimi o corpo contra o dela e reparei que estava a tremer, indo ao meu

encontro quase instintivamente. Os olhos fecharam­-se com força.

— Não tens nada que agradecer. Jamais a teria deixado sozinha — assegurei,
a sorrir na escuridão e a acariciá­-la com a mão. Olhou para mim, assustada, e

tive de me controlar muito para não soltar uma ­gargalhada.

— Eu sei — respondeu a Raffaella tranquilamente. — Bem, vou deixar­


-te

dormir. Eu e o teu pai gostávamos que hoje tomássemos o pequeno­-almoço

todos juntos. Vou acordar a Noah.

— Ótimo — respondi, enquanto fazia uma careta de dor ao sentir os dentes

da Noah a cravarem­
-se selvaticamente no meu braço. A mãe fechou a porta, e

ela deu­
-me finalmente um murro forte no ombro.

— Idiota! — acusou­
-me, irritada.

Ri­
-me outra vez e calei­
-a com um beijo. Introduzi a língua entre os seus

lábios apertados e saboreei­


-a inteira enquanto os meus dedos continuavam a

tocar a sua pele. A irritação dela desapareceu tão depressa quanto mais rápidos

eram os movimentos da minha mão.

— És um safado — disse, fechando os olhos com força e aproveitando as

minhas carícias.

— Um safado com sorte. Anda cá — disse, enquanto tirava a roupa interior e,

sem esperar mais, a abraçava com força. Grunhi contra a almofada quando a

senti contra mim. A Noah murmurou algo ininteligível, e comecei a mover­


-me

sem perder tempo.

— Por favor, Nicholas, preciso de terminar... — sussurrou, abraçando­


-me

com tanta força que me cravou as unhas nas costas. Deixara­


-a a meio do

processo, por isso agora voltei a acariciá­-la enquanto continuava a movimentar­


-

me por cima do seu corpo.

Quando a senti suspirar, parei alguns segundos para me concentrar e

prolongar o momento em vez de me deixar cair com ela.

Tapei­
-lhe a boca com a mão para ninguém a ouvir e recomecei, desta vez mais

devagar, à espera de que recuperasse.

Não havia nada que se comparasse com aquilo, senti­-la assim, pele com pele,

sem nenhuma barreira. Desde que a Noah tomava a pílula que tudo era

magnífico.

— Mais um, Noah — pedi­


-lhe, investindo cada vez mais depressa. — Vamos

chegar lá juntos.

Foi o que fizemos... Chegámos juntos àquela libertação espeta­cular que nos

deixou exaustos durante minutos. Ficámos muito quietos na cama, a respirar,

agitados, e a tentar recuperar o fôlego.

— É o que te acontece quando me atacas de manhã — comentei, ao lado do


seu pescoço.

— Para a próxima já não me esqueço.

Tinham­
-se passado meses desde que tomara o pequeno­-almoço com o meu pai

na cozinha. Acho que foi pouco depois de a Noah vir do hospital por causa do

sequestro. Repetir a experiência foi muito estranho. A Raffaella­ também ali

estava, por isso foi um pequeno­-almoço de família.

Não queria que eles percebessem o pouco que me apetecia estar ali; além

disso, a Noah ficava triste quando me via aborrecido com a mãe, por isso tentei

mostrar­
-me tranquilo. A Noah estava ao meu lado, a brincar com os cereais em

vez de os comer. Ouvia­


-se a rádio de fundo, como sempre, e, quando o meu pai

e a Raffaella se sentaram à nossa frente, percebi que não era apenas um

pequeno­
-almoço de família.

— Bem... — começou por dizer o meu pai, com os olhos a viajarem entre

mim e a Noah. — Como vão as coisas? Daqui a pouco tempo vais para a

faculdade, Noah. Tens tudo preparado?

— Claro que não, ainda nem comecei — respondeu ela, levando uma colher

cheia de cereais à boca.

Fiquei tenso ao ver que não dizia nada sobre ir viver comigo... Aquele

momento era tão bom como qualquer outro, mas não deu a menor indicação de

que fosse essa a sua intenção.

— Já sabes quem vai ser a tua companheira de quarto? — perguntou a mãe, e

a Noah quase se engasgou. Estendi a mão e comecei a dar­


-lhe pancadinhas

suaves nas costas.

— Ainda não — respondeu com voz rouca.

Raios, só me apetecia sair dali para fora.

A Raffaella olhou para o meu pai, e depois puseram­-se os dois a olhar

fixamente para nós.

— Queríamos falar convosco — começou ele por dizer. — Acho que nos

últimos meses não nos comportámos propriamente como uma família...

Tivemos vários desentendimentos e queremos resolver os problemas que

existem entre nós para podermos dar­


-nos todos um pouco melhor.

Não estava nada à espera de ouvir aquilo. Fixei o olhar no meu pai e pousei a

chávena de café na mesa. Era todo ouvidos.

— Vão aceitar de uma vez por todas que estamos juntos? — per­
guntei, sem

hesitações.
A Raffaella levantou­
-se da cadeira, e o meu pai lançou­-lhe um olhar de aviso.

— Aceitamos que vocês são jovens, que gostam um do outro e que... —

começou por dizer a Raffaella.

— Nós amamo­
-nos, mãe, é mais do que gostarmos simplesmente um do

outro — declarou a Noah, intervindo na conversa.

A mãe comprimiu os lábios e assentiu.

— Eu compreendo isso, Noah, a sério que sim, e sei que vocês acham que vos

tenho andado a dificultar a vida, que não aceito a vossa relação, e talvez até

tenham razão... Mas vocês são muito novos, e os quase cinco anos que têm de

diferença representam muitíssimo, principalmente tendo em conta que acabaste

de fazer dezoito anos, Noah — salientou a mãe, concentrando­-se nela. — A

única coisa que vos peço é que levem as coisas com calma. Nick, espero que

saibas compreender que a minha filha ainda tem muitas experiências para viver,

que está prestes a começar a faculdade. Eu gostava muito que ela pudesse

divertir­
-se e experimentar, que tirasse o máximo partido de uma situação que

nunca sonhei conseguir proporcionar­


-lhe.

Retesei­
-me e reparei que a raiva começava a arder em fogo lento.

— Estás a dizer que por estar comigo ela não se diverte, que não a vou deixar

aproveitar os tempos de faculdade?

— A Raffaella só está a pedir­


-vos que não centrem toda a vossa vida um no

outro. Ainda têm muitas coisas para ver e para fazer. Não queremos que

avancem demasiado depressa na vossa relação — interveio o meu pai, tentando

acalmar as águas. — Mas vamos falar do que nos trouxe aqui — continuou ele,

suspirando profundamente. — Queremos fazer uma combinação convosco, uma

espécie de acordo de paz. O que vos parece?

— Eu não vou fazer acordos de nada: a Noah é a minha namorada, e não há

mais nada sobre o que falar ou a negociar.

O meu pai respirou fundo, e eu sabia que estava a controlar a vontade que

tinha de começar a disparatar.

— Então preciso que nos façam um favor, e, em troca, prometemos que não

nos metemos mais na vossa relação.

— Que tipo de favor? — interrompi, com vontade de ir de uma vez ao cerne

da questão.

O meu pai parecia estar a ponderar a melhor forma de abordar a questão.­

— Daqui a um mês celebra­


-se o sexagésimo aniversário das Empresas Leister.

Vamos dar uma festa onde comparecerá todo o tipo de pessoas, incluindo o
presidente. Todo o dinheiro angariado será doado a uma ONG que alimenta

pessoas em países do terceiro mundo. É um acontecimento vital para a empresa,

Nicholas, tu sabes perfeitamente do que estou a falar, e, agora que estamos a

lançar novos projetos, é muito importante que apresentemos uma imagem forte

e unida, que apareçamos em frente à imprensa e aos convidados como uma

equipa.

— Eu sei como a festa é importante, também colaborei na organização —

disse com o sobrolho franzido —, mas não entendo o que tem isso que ver com

a minha relação com a Noah.

— Pois é muito simples: se vocês aparecerem na festa enquanto casal, já podes

imaginar as parangonas na imprensa... Tudo se centrará em vocês e no escândalo

da relação. Não, Nicholas, não me interrompas — deteve­-me quando percebeu

que eu queria rebater o que acabara de dizer. — Sei perfeitamente que, apesar

de não lhe acharmos muita graça, a vossa relação é plenamente aceitável. Vocês

são irmãos apenas por afinidade, mas há muitas pessoas que não verão a coisa

assim. Tenho de apresentar uma imagem familiar sólida, e, se vocês aparecerem

enquanto casal, essa imagem acabará por ser manchada pela confusão e

desagrado de muitos dos convidados que irão estar na festa. Estou a falar das

pessoas mais velhas, gente com muito dinheiro, que não aceita bem certo tipo

de comportamentos.

— Isto é ridículo. Ninguém vai reparar em nós. Por amor de Deus, ninguém

se importa com o que fazemos ou deixamos de fazer.

— Isso até seria verdade se nos últimos anos não te tivesses apresentado com

todo o tipo de raparigas que aparecem todos os dias nas revistas cor­
-de­-rosa.

Nicholas, sabes perfeitamente que sempre despertaste o interesse da imprensa.

Basta ver como te recebem em cada um daqueles eventos sociais estúpidos onde

decides marcar presença.

A Noah olhou para mim pelo canto do olho, e praguejei entre dentes. Mas

que raio!

— Estás a pedir­
-me que vá à festa sozinho e que finja que a Noah é apenas a

minha maldita irmã mais nova?

— Estou a pedir­
-te que vás à festa com uma amiga tua e que os dois se

mantenham afastados durante uma noite. A Noah também podia levar alguém.

Posamos como uma família perante a imprensa, jantamos, entabulamos

algumas conversas, fazemos as nossas negociações impor­tantes com os

convidados e, a seguir, vai cada um para a sua casa e amigos como antes.
Antes de eu explodir, a Noah decidiu intervir:

— Parece­
-me bem — concedeu, e fulminei­-a com o olhar.

— Só podes estar a gozar. Não vais a uma festa tão importante como esta com

um parolo qualquer que julgue que estás solteira. Nem pensar.

A Raffaella, que até então tinha estado calada, abriu a boca:

— Vês, Nicholas, é exatamente a isto que me refiro quando te digo para

levares as coisas com calma: é só uma festa. O teu pai está a explicar­
-te como é

importante, e até parece que a Noah vai casar com o amigo que levar. Por amor

de Deus. Se quiser, até pode ir sozinha, para nós é indiferente.

Respirei fundo várias vezes e levantei­-me.

— Nós vamos, posamos para a imprensa como tu queres, mas deixa­


-me

avisar­
-te de que, daqui a algum tempo, quando se souber da nossa relação,

quem vai passar por mentiroso és tu, pai.

Saímos juntos para o jardim das traseiras, ambos mudos. Eu estava tão

irritado que me deixei ficar a olhar para as ondas do mar a ­quebrarem­-se contra

a falésia que ficava ao fundo de nossa casa, tentando acalmar­


-me. Senti os braços

da Noah a abraçarem­
-me por detrás e o rosto a encostar­
-se com ternura às

minhas costas. Pus a mão por cima das suas e senti­-me um pouco melhor.

— Não é caso para tanto, Nick — disse­-me ela, dando cabo de ­qualquer

hipótese de tranquilidade. Voltei­-me para trás e olhei para ela muito sério.

— É, sim, para mim é... Não suporto que as pessoas pensem que não és

minha, Noah.

— Mas sou, tu sabes que sou. É só uma festa estúpida. No máximo, vamos lá

estar um par de horas. Não lhe atribuas mais importância do que aquela que

tem.

Abanei a cabeça e segurei­


-lhe o rosto entre as mãos.

— Tem toda a importância do mundo. É a última vez que cedo numa situação

destas — beijei­
-a antes que pudesse dizer alguma coisa. — Só tenho vontade de

gritar que estou contigo para todo o mundo ouvir e não entendo por que razão

não sentes o mesmo.

Ela encolheu os ombros e sorriu.

— Eu estou­
-me nas tintas para o que o mundo pensa. Tu sabes que sou tua, e

isso devia ser suficiente.

Suspirei e beijei­
-lhe a ponta do nariz. «Devia ser, mas não é...», pensei para

comigo. As coisas tinham de começar a mudar.


23

Noah

Tinha combinado encontrar­


-me naquela tarde com a Jenna. Há mais de um mês

que não a via, desde que tinha partido para a Europa, e invadia­-me a sensação

de que ela me estava a evitar. Acabara por aceitar que a fosse visitar a casa, e era

o que estava a fazer nesse instante.

Esperei à porta e não pude evitar admirar o jardim imenso que tinham. Ao

contrário dos Leisters, eles não tinham um portão particular, e o jardim dava

diretamente para a rua, se bem que fosse preciso caminhar um bom pedaço para

chegar à porta de casa. Tinham uma série de árvores muito altas com baloiços

amarelos e um lago pequeno com rãs e flores bonitas do lado direito da casa, o

que lhe dava um ar onírico. Quase todas as mansões daquela urbanização eram

incríveis, mas a da Jenna tinha um toque especial, algo que tinha a certeza

dever­
-se a ela.

— Entre, menina Morgan — disse a Lisa, a empregada doméstica. Sorri­


-lhe

como resposta.

— A Jenna está no quarto? — perguntei. Ao fundo ouvia­-se o barulho de

videojogos, o que confirmou que os irmãos estavam em casa.

— Sim, está à sua espera — respondeu. E desapareceu a correr quando o

barulho de alguma coisa a partir­


-se encheu o espaço.

Ri­
-me e encaminhei­
-me para as escadas. Ao contrário do que acon­tecia em

minha casa, as escadas ficavam numa sala à parte, para lá de um salão decorado

com elegância e de um bar com centenas de garrafas de licores diversos que

pareciam tentar­
-nos a ficar por ali.

Quando bati à porta do quarto da minha amiga e entrei, encontrei­-a rodeada

de malas, com montes de roupa no chão, sentada de pernas cruzadas no seu

tapete de zebra. Tinha o cabelo apanhado no alto da cabeça num carrapito solto.

Quando me viu, apareceu­


-lhe um sorriso no rosto, e levantou­-se para me dar

um abraço.

— Tive tantas saudades tuas, loirinha — confessou, largando­-me um instante


depois sem dizer mais nada. Fiquei surpreendida por não desatar aos saltos

como uma maluca ou por não me arrastar imediatamente para a sua cama para

começar a falar e a fazer perguntas. Vi no seu rosto que havia qualquer coisa que

a preocupava, algo que não a deixava ser como era, enérgica e divertida.

— O que estavas a fazer? — perguntei, tentando disfarçar a minha

preocupação.

A Jenna olhou em redor, distraída.

— Ah, isto! — respondeu, sentando­-se novamente no chão e convidando­


-me

a fazer o mesmo. — Estou a decidir o que vou levar para a universidade. Nem

acredito que falta tão pouco.

Ao contrário de todas as vezes em que falámos sobre a universidade, a nossa

independência e o que faríamos para nos visitarmos uma à outra, agora parecia­
-

me mais preocupada do que ansiosa por se ir embora.

— Eu ainda nem comecei a fazer as malas... — contei­-lhe e fiquei nervosa

sabendo que dali a pouco tempo iria ter de enfrentar a minha mãe e dizer­
-lhe

que ia viver com o Nick. Também tinha de o explicar à Jenna, mas alguma

coisa me disse que não era o momento indicado.

Ajudei­
-a durante uns minutos a dobrar T­
-shirts e, embora morresse de vontade

de lhe perguntar o que tinha acontecido, dediquei­-me a olhar em volta,

distraída.

O quarto da Jenna era o oposto do meu: enquanto o meu era azul e branco e

convidava à tranquilidade e ao relaxamento, o da Jenna tinha as paredes

pintadas de rosa­
-fúcsia e os móveis eram todos pretos. Numa das paredes havia

um grande manequim com imensos colares ao pescoço, que já tentáramos

desembaraçar em mais do que uma ocasião, principalmente porque eram

lindíssimos e porque queríamos usá­-los. Porém, os nossos esforços foram em

vão, e os colares passaram a ser decorativos. Numa das outras paredes, havia um

sofá branco e preto com um padrão de zebra, que condizia com o tapete e que

nos convidava a ver televisão no ecrã de plasma afixado na parede em frente.

Como no meu quarto, também havia um quarto de vestir, só que naquele

momento estava um desastre.

A música de Pharrell Williams soava em fundo, e, mais uma vez, achei

estranho que não estivesse a trautear a letra das canções. Observei­-a durante

mais alguns segundos. Desde quando a Jenna Tavish passava mais do que cinco

minutos em silêncio? Pousei no chão a T­


-shirt que estava a dobrar.

— Podes começar a contar­


-me o que se passa — disse num tom um pouco
mais duro do que queria usar em início de conversa.

Surpreendida, a Jenna levantou os olhos do chão e cravou­-os em mim.

— Estás a falar de quê? Não se passa nada — respondeu. Não ­obstante,

levantou­
-se, virou­
-me as costas e encaminhou­-se para a cama, que era imensa,

mas que naquele momento estava a transbordar de roupa interior e de revistas

de moda.

Olhei para ela com o sobrolho franzido.

— Jenna, já nos conhecemos bem... Nem sequer me perguntaste como foi a

viagem. Sei que se passa alguma coisa contigo... — incentivei, levantando­-me e

aproximando­
-me dela. Não gostava de a ver assim, não gostava de que a minha

amiga, a minha melhor amiga, alegre e vivaça, estivesse tão deprimida.

Quando afastou a cabeça de um papel que tinha nas mãos, vi que os seus olhos

estavam húmidos.

— Discuti com o Lion... nunca o tinha visto assim. Ele nunca me tinha

gritado daquela maneira. — Uma lágrima caiu­-lhe pelo rosto, e aproximei­-me

dela, surpreendida com o que me estava a contar.

O Lion era um doce de pessoa, por vezes bastante idiota, como o Nick, mas

continuava a ser um doce. Andava sempre com a Jenna nas palminhas das mãos.

Não entendia o que poderia ter acontecido para terem discutido.

— E zangaram­
-se porquê? — perguntei, temendo que tivesse sido por causa

da tareia do outro dia, quando o Lion se metera naquele sarilho... e acabara por

envolver também o meu namorado. Contudo, decidi deixar esse assunto de

parte.

A Jenna abraçou as pernas e apoiou a cabeça nos joelhos.

— Decidi que não vou para a Berkley — disse­-me, então.

Abri os olhos com surpresa. A Jenna trabalhara arduamente para poder ir para

a universidade onde o pai estudara e que, em boa verdade, era uma das melhores

do país.

— O que estás a dizer? Mas porquê?

A Jenna bufou, enfadada.

— Estás a olhar para mim como se eu estivesse a cometer um crime, como o

Lion fez — respondeu, soltando o cabelo e voltando a apanhá­


-lo no cimo da

cabeça. Fazia isto sempre que estava nervosa ou aborrecida. — A UCLA é tão

boa como muitas outras universidades; tu vais estudar lá, o Nicholas também

está prestes a acabar o curso lá...

— Está bem, Jenna, mas entrar na Berkley não é fácil... Além de que podes
continuar a ver o Lion ao fim de semana. São Francisco não fica assim tão

longe...

— Eu não posso ir para São Francisco! — exclamou, desesperada. — Não sei

o que se passa ultimamente com o Lion, mas ele anda esquisito... E não

pretendo ir viver para outra cidade sem saber que está tudo bem entre nós.

Assenti. Compreendia perfeitamente o seu ponto de vista.

— O que te disse o Lion? — perguntei.

— Ficou furioso, parecia louco. Disse­-me que era uma idiota por mudar de

universidade só por causa dele, que não ia ­permitir que o meu futuro fosse

afetado pela nossa relação — a voz da Jenna quebrou­-se, e fiquei a olhar para

ela, angustiada. — Ameaçou que me deixava!

Arregalei os olhos de surpresa. Mas que diabo?...

— Ele não te vai deixar, Jenna. És livre para fazeres aquilo que quiseres. Ele

nunca te deixaria, e muito menos por uma coisa destas.

A Jenna abanou a cabeça, limpando as lágrimas com as costas da mão.

— Tu não estás a entender. Ele mudou, está muito diferente, não sei o que se

passa com ele, mas está obcecado em ganhar dinheiro... Aquela cena do outro

dia... — disse, abafando um soluço. — Devias ter visto a cara dele, Noah,

embora, enfim, o Nicholas também não tenha saído muito bem da tareia. Eles

podiam ter matado o Lion, e tudo por causa de...

Os olhos dela cruzaram­


-se com os meus e deixou a frase a meio.

— Por causa de quê, Jenna?

A minha amiga olhou para o lado antes de se levantar, pegar num monte de

roupa e pousá­
-la ao lado de uma das malas que se encon­travam abertas no chão.

Fiquei com a impressão de que não queria olhar para mim.

— Nada, só não gosto que o Lion se meta nestes sarilhos, não gosto que

continue e fazer as mesmas coisas que ele e o Nick faziam no ano passado...

— Mas eles já não fazem, Jenna, mudaram. O Nicholas mudou — declarei,

tentando ignorar a voz minúscula que me avisava de que a Jenna acabara de se

referir ao Nick.

A Jenna voltou­
-se para mim e soltou uma gargalhada.

— Já não fazem! — respondeu, olhando­-me com incredulidade. — O

Nicholas continua metido nos mesmos sarilhos de sempre...

Fiquei muito quieta e senti uma pressão no peito que me deixou sem ar por

momentos.

— Estás a falar de quê, caramba? — perguntei, irritada, mas sem saber muito
bem porquê. Não planeava permitir que a Jenna descarregasse o seu mau humor

em mim e muito menos no Nick. O que estava a dizer não passava de um

chorrilho de mentiras.

Ela pareceu arrependida por ter largado a bomba, mas mesmo assim

continuou a falar.

— Os nossos namorados são uns idiotas, continuam metidos nessas merdas

todas e fazem­
-nos acreditar que as abandonaram por nossa causa!

— E abandonaram, Jenna. O Nicholas já não se dá com essa gente, mudou!

A Jenna soltou uma gargalhada, mas desta vez o som parecia quase cruel.

Naquele instante, não reconheci a minha amiga, não sabia quem ela era, assim,

a atacar o meu namorado sem motivo nem lógica, como se ele tivesse a culpa de

que o Lion criticasse a sua decisão sobre que universidade escolher.

— Tu és mais ingénua do que eu pensava, Noah, a sério, não sabes nada.

Aproximei­
-me dela. Estava a começar a ficar sem paciência.

— O que é que eu não sei?

A Jenna comprimiu os lábios durante uns segundos.

— Eles pretendem voltar às corridas — disse com uma voz amar­


gurada. —

Os dois. Na semana que vem. Ele não te contou nada?

Fiquei sem palavras.

— O Nick nunca voltaria às corridas, não depois do que aconteceu no ano

passado — afirmei um instante depois, taxativa.

— Bem, é só uma questão de tempo até o veres com os teus próprios olhos.

Acabei por me vir embora de casa dela. Não queria continuar a conversar com

a Jenna nem a ouvir o que ela tinha para dizer. O Nicholas não ia voltar àquelas

corridas. Ambos tínhamos prometido que não íamos cometer novamente aquele

erro. Por causa das corridas, tinha granjeado o ódio do Ronnie, que quase me

matara, sem contar que ele tinha ajudado o meu pai a sequestrar­
-me. O que

inicialmente até fora divertido transformara­-se em algo terrível e perigoso, e

por isso não acreditava numa única palavra do que a Jenna me dissera.

Quando cheguei a casa, já eram quase horas de jantar. Entrei tentando não

fazer barulho e ouvi a minha mãe na sala. Não me apetecia falar com ela, por

isso fui para a cozinha, peguei numa salada que estava no frigorífico, numa

Coca­
-Cola Zero e subi as escadas quase a correr. Quando pousei tudo em cima da

cama, o meu telemóvel começou a tocar.

Outra vez um número desconhecido.


Merda, só podia ser uma pessoa. Deixei que tocasse, sentindo o coração

acelerar dentro do peito. Ainda me sentia muito culpada por ter dito à mãe do

Nicholas que me encontraria com ela para beber alguma coisa e falar dele nas

suas costas, mas a assistente social tinha ligado ao Nick para lhe dizer que a

mãe decidira deixá­


-lo ficar com a irmã durante alguns dias, e ele ficou num

estado de felicidade imenso. Já não havia volta a dar. A Maddie só chegava na

quinta­
-feira, ainda faltavam dois dias, mas eu sabia que, mal aquela mulher

pusesse os pés em Los Angeles, havia de me querer ver.

O telemóvel voltou a tocar, mas preferi não atender. Foi então que recebi uma

mensagem de texto.

Vemo­-nos no Hilton de LAX ao meio­-dia.


A.

Merda, a Anabel Grason acabara de me enviar uma mensagem para o

telemóvel. Apaguei­
-a mal a li. Não queria que houvesse qualquer prova do que

estava prestes a fazer. Sentia­


-me terrivelmente mal, mais do que isso, sentia que

estava a trair o Nicholas, e no fundo era exatamente isso que estava a fazer.

Ainda assim, além de querer que a irmã passasse alguns dias com ele sem a

assistente social nem horários para cumprir, uma parte de mim também queria

saber o que aquela mulher tinha para me contar, qual era o seu interesse em

ver­
-me, se não fosse para conhecer o próprio filho através de mim.

Peguei no telemóvel e respondi com uma única palavra.

OK.

Depois daquilo, perdi o apetite e a pouca dignidade que ainda me restava,

pelo menos no que dizia respeito àquela mulher.

— Vá lá, Noah, escolhe um — pediu­-me o Nicholas com desespero, depois

de estar há um bom bocado com o catálogo de cores à minha frente, sem

conseguir escolher.

— Eu pintava­
-o de bege — propus, depois de dar muitas voltas.

O Nick revirou os olhos.

— Para pintar de bege, mais vale deixar ficar a parede verde e pronto —

respondeu, tirando­
-me o catálogo das mãos.

— Verde? — repeti com nojo. — Como podes pintar um quarto de menina

de verde?
A mulher que nos estava a ajudar, esperando pacientemente que

escolhêssemos uma cor para o quarto da Maddie, decidiu que estava na hora de

intervir.

— O verde está muito na moda, embora, se ainda não têm a certeza... De

quantos meses está? — perguntou, olhando para a minha barriga com um

sorriso.

Demorei uns instantes a perceber o que estava a insinuar.

— Como? Oh, não, não! — neguei.

Ao meu lado, o Nicholas ficou subitamente sério e fitou a fun­cionária.

— Achei que... — disse ela, olhando do Nick para mim e depois para a

minha barriga.

Aquela mulher achou que eu estava grávida e que tínhamos ido escolher a cor

do quarto do bebé. Do nosso bebé... Por amor de Deus, por que teria de passar

por aquilo? Senti um nó no estômago.

— Estamos a escolher a cor do quarto da minha irmã de seis anos — disse o

Nicholas, pousando o catálogo em cima do balcão. — Por acaso temos cara de

quem está prestes a ser pais? A minha namorada só tem dezoito anos, e eu vinte

e dois. Por que não pensa um pouco antes de tirar conclusões estúpidas?

Arregalei os olhos, surpreendida. De onde viera aquela fúria toda?

— Eu... Desculpe, não... — Compreendia a desorientação da mulher. O

Nicholas estava a dirigir­


-lhe aquele olhar que costumava lançar­
-me quando eu

fazia alguma coisa que o tirava do sério.

— Não há problema. Olhe, vamos escolher o branco. Pode dizer aos pintores

para começarem amanhã de manhã bem cedo — indiquei, tentando acalmar os

ânimos. O Nicholas fuzilou­


-me com os seus olhos azuis, mas não disse mais

nada.

Depois de pagarmos, saímos da loja no meio de um silêncio confrangedor.

Não aguentei muito tempo e, quando chegámos ao carro dele, agarrei­-o pelo

braço, obrigando­
-o a olhar para mim.

— Podes dizer­
-me o que se passa contigo?

O Nicholas evitou o meu olhar, o que só fez com que a ­angústia que ­sentia

dentro de mim crescesse de forma vertiginosa. Aquele medo... De não ser

suficientemente boa para ele... estava sempre presente. O assunto dos filhos era

uma coisa na qual nem me permitia pensar, simplesmente não podia, pelo

menos por enquanto, porque sabia que, assim que o fizesse, desabaria e, quando

me deixasse cair nesse buraco, não sabia se voltaria a conseguir sair dele.
— Não suporto gente que se intromete onde não deve, só isso — respondeu,

segurando­
-me o rosto e dando­
-me um beijo doce na testa.

Sabia que me estava a esconder alguma coisa; mais do que isso, sabia

exatamente o que o preocupava... Mas não o queria ouvir, pelo menos naquele

momento.

Abracei­
-o e apoiei o rosto no peito dele antes de pôr a minha melhor cara.

Ignorei o medo que ameaçava sair para a luz do dia em ocasiões como esta e

entrei no carro como se as palavras ditas não tivessem sido pronunciadas.

Depois disto, passámos a tarde a comprar os móveis para o quarto. Tudo

chegaria no dia a seguir; além disso, se queríamos que o quarto esti­vesse pronto

antes de quinta­
-feira, tínhamos de montar tudo em vinte e quatro horas. O

Nick estava emocionado, via­


-o nos seus olhos, na felicidade com que escolhia as

coisas. À exceção do incidente da falsa gravidez, fora muito divertido ir com o

Nick às lojas de crianças.

Comprámos alguns brinquedos e uma cama individual azul. O Nick decidira

que o quarto devia ter os mesmos tons do meu, que era neutro e não demasiado

piroso. Quando chegámos a casa dele, estava esgotada e atirei­-me para cima da

cama mal entrei. Senti que o corpo dele se colava às minhas costas com cuidado,

apertando­
-me contra o colchão, mas deixando­-me espaço para respirar. A boca

aproximou­
-se da minha orelha e fez­-me estremecer.

— Obrigado por fazeres isto comigo — sussurrou, antes de me dar beijos

quentes no pescoço.

Com a cara encostada ao colchão, não conseguia ver o rosto dele, mas deixei­
-

me levar simplesmente pela sensação da sua boca na minha pele. Afastou­-me o

cabelo para o lado com uma mão e começou a beijar­


-me a nuca...

Suspirei, gostando do seu contacto, como sempre.

— Ontem estive com a Jenna — disse­-lhe, de repente, para ver como ele

reagia à alusão à minha melhor amiga. A boca dele parou, ficou tenso, e a seguir

senti o peso do seu corpo levantar­


-se. Voltei­-me na cama e apoiei­-me pelos

cotovelos para o observar. Vi que estava de costas, que tirara a T­


-shirt e a deixara

cair no chão.

— Fico contente — respondeu, uns segundos depois.

Franzi o sobrolho quando ele foi para a casa de banho, quase atirando com a

porta. Levantei­
-me e entrei sem me dar ao trabalho de bater.

Ele estava com as mãos apoiadas no lavatório e levantou a cabeça quando me

ouviu entrar.
— Estivemos a falar... — continuei, inicialmente hesitante. — Sabes?

— E então? — perguntou, fulminando­-me com os olhos azuis.

«Por que razão está a falar comigo naquele tom?»

— O facto de te pores logo na defensiva só confirma que é verdade aquilo que

a Jenna me disse que vais fazer — disse, imitando o tom de voz dele.

Ele pôs­
-se à minha frente.

— E o que vou eu fazer, posso saber? — perguntou, de mau humor.

Detestava que me falasse assim. Já me tinha arrependido de trazer o assunto

para cima da mesa, mas, se era verdade que pretendia regressar às corridas...

Fitei o seu tronco nu, as marcas de nódoas negras que ainda se viam... Isto

tinha de acabar.

— Não podes continuar a fazer as coisas que fazias antes, Nicholas — disse­
-

lhe, medindo as palavras. — A Jenna disse­-me que o Lion pretende voltar às

corridas...

Contornou­
-me para entrar na banheira, sem sequer olhar para mim.

— O Lion pode fazer o que lhe apetecer, já é crescidinho, não te parece?

— Ou seja, tu não vais com ele? — insisti, para ficar mais tranquila.

Ele trespassou­
-me com o olhar.

— Não, não vou — negou, cravando os olhos em mim. — E, since­ramente,

neste momento estou­


-me nas tintas para o que a Jenna diz de mim e da nossa

relação.

Isto irritou­
-me.

— O que importa aqui não é a Jenna, mas que nunca devias ter­
-te metido

naquela alhada com o Lion! Prometeste­-me que essas coisas tinham acabado!

— E acabaram! Noah, a sério, já te expliquei. O Lion estava em apuros, e eu

limitei­
-me a ajudá­
-lo. — O Nick suspirou e aproximou­-se de mim. Abraçou­
-

me com força. A seguir, sussurrou: — Nunca pensei que podíamos perder o

controlo da situação, mas não vou voltar a cometer o mesmo erro, está bem?

— Não quero mais sarilhos, Nick, não quero que te metas em mais situações

perigosas. Prometes? — pedi­-lhe, arqueando o corpo quando a sua boca

começou a beijar­
-me o pescoço.

— Prometo.
24

Nick

Quando abri os olhos naquela manhã, a primeira coisa que vi foi o rosto da

Noah a escassos centímetros de mim. Tinha a cabeça no meu ombro e o corpo

quase todo sobre o meu. Tive de me conter para não desatar a rir. Parecia ter

tentado escalar o meu corpo e ter ficado a meio do caminho.

Afastei­
-lhe uma madeixa do rosto e deixei que o meu polegar roçasse

suavemente na sua pele cheia de sardas... aquelas sardas que me deixavam louco

e que se espalhavam não só pelo seu rosto, mas pelos seios, pelos ombros

esbeltos e pelo fundo das costas... Adorava saber que era o único que conhecia

aquele corpo na perfeição, o único que sabia onde ficava cada sinal, cada marca,

cada curva e cada cicatriz.

Fixei­
-me na sua tatuagem, no pequeno desenho que tinha por baixo da orelha,

o mesmo que eu tatuara no braço. Quando decidi fazê­-la, foi porque me

agradou a força que uma coisa tão simples pode ter se o entrelaçarmos de

determinada maneira, mas agora aquele nó significava muito mais do que isso,

agora achava que tinha sido por causa dela que me decidira por aquele

desenho... Era ridículo pensar nisso, mas a ideia não parava de me dar voltas na

cabeça, a ideia de que talvez ambos tivéssemos escolhido aquela tatuagem

porque sabíamos que íamos acabar por nos encontrar...

O meu telemóvel começou a tocar. Estendi o braço e peguei nele. Era a Anne,

a assistente social da Maddie. Ainda me custava a crer que a minha mãe me

tivesse deixado ficar com a minha irmã no fim de semana dos meus anos, mas

não planeava queixar­


-me. Este ano não haveria festas, nem striptease, nem nada

do outro mundo: este ano passaria o meu dia especial com as duas miúdas que

mais amava nesta vida.

A pequenita estava emocionada por vir ter comigo, e eu não podia estar mais

feliz. Falei com a Anne durante alguns minutos para saber a que horas chegava

o voo e onde nos íamos encontrar e desliguei com um sorriso radiante no rosto.

Ia finalmente poder estar com a minha irmã como sempre desejara.


Os pintores chegaram pouco depois: pedira­-lhes para virem antes das sete,

porque tinha de sair para o escritório às oito e meia. Quando lhes mostrei o

quartinho, prometeram­
-me que acabavam a pintura num par de horas.

Não achava graça nenhuma deixar a minha namorada a dormir com aqueles

tipos ali em casa, por isso, antes que eles começassem a trabalhar, fui acordá­
-la.

— Noah, acorda — chamei, dando­-lhe pequenos toques no ombro.

Ela emitiu um grunhido e continuou a dormir. Comecei a vestir­


-me, olhando

para o relógio que se encontrava na mesa de cabeceira. Tinha de sair já ou ia

chegar atrasado.

— Noah! — insisti, levantando o tom de voz. Os olhos dela abriram­


-se,

ensonados e aborrecidos, depois de a chamar quase aos gritos, porque não

acordava.

— Sabes o que significa a palavra «férias»? — respondeu, dando a volta

debaixo dos lençóis e escondendo a cabeça por baixo da minha almofada.

Porra. Não tinha tempo para aquilo.

Peguei no telemóvel. O Steve atendeu ao terceiro toque, desperto e alerta,

como sempre.

— Nicholas.

— Preciso que venhas ao meu apartamento e fiques com a Noah até os

pintores acabarem o trabalho.

Ao ouvir­
-me dizer aquilo, a Noah abriu os olhos.

— Estás a gozar, não estás? — respondeu, levantando­-se e esfregando os olhos

como se tivesse quatro anos.

Não, não estava mesmo a gozar.

— Vou sair agora mesmo — informou­-me o Steve do outro lado da linha.

— Espero por ti aqui — respondi e desliguei.

A Noah cruzou os braços e olhou para mim, aborrecida.

— És um caso do foro psiquiátrico.

Sorri, ignorando o seu tom mal­-humorado, enquanto continuava a vestir­


-me.

Ia chegar tarde, mas não queria saber: estava fora de questão deixar a Noah

sozinha com dois tipos que não conhecia de lado nenhum.

— Só estou a cuidar de ti — afirmei, tentando dar o nó na gravata.

— Eu sei cuidar de mim sozinha — respondeu, levantando­-se da cama e

contornando­
-me para entrar na casa de banho.

Suspirei ao ouvir a água do duche correr. Podia irritar­


-se quanto quisesse, mas

havia demasiados loucos no mundo para eu correr estes riscos, muito menos
com ela. Já a tinham sequestrado uma vez, não ia permitir que voltasse a

acontecer.

Saiu do duche dez minutos depois, embrulhada numa toalha e com o cabelo a

pingar.

— Ainda aqui estás?

Sorri, divertido. Ela ficava arrebatadora quando estava zangada.

— O Steve está a estacionar, por isso já me posso ir embora descansado... Não

me vais dar um beijo?

Ela estava terrivelmente sexy. Aproximei­-me para lhe dar um beijo que a

deixasse com as pernas a tremer.

— Vou molhar­
-te — avisou, dando um passo atrás.

— Molhas sempre — respondi, com um sorriso trocista.

— És indecente — replicou, mas vi que o aborrecimento estava a fraquejar e

que me observava com os seus bonitos olhos cor de mel.

Agarrei­
-a pela nuca e puxei­
-a para mim. Inseri a língua na sua boca e, quando

as coisas começaram a aquecer, tocaram à campainha. A Noah tentou puxar­


-me

pela gravata, mas afastei­


-me, tinha pressa, não podia perder mais tempo.

— Tenho de ir — anunciei, virando as costas e dirigindo­-me à porta. Quando

estava a fechá­
-la, os olhos dela cravaram­-se nos meus e, um segundo depois,

deixou cair a toalha sobre o chão de madeira.

Jesus!

Cheguei à empresa mesmo a tempo. O meu escritório ficava ao fundo do

corredor, e fui diretamente para lá, sem parar sequer para beber um café. Sabia

que o meu pai planeava lá ir nesse dia, e esperava que não me visse a chegar

tarde... Senão punha­


-me a servir o café ao pessoal.

O que não esperava era encontrá­-lo no meu gabinete... A falar tranquilamente

com uma rapariga que eu nunca vira na vida. Estava sentada na minha cadeira e

sorria educadamente depois de o meu pai lhe ter dito qualquer coisa. Quando

entrei, ambos se voltaram para mim. O meu desconcerto transformou­-se em

irritação quando vi uma segunda secretária, colocada do outro lado do

escritório, junto à janela... À minha janela.

— Olá, filho — cumprimentou o meu pai com um sorriso agradável.

Pelo menos estava de bom humor, que novidade!

— O que se passa aqui? — perguntei, fazendo sinal para a rapariga e para a

secretária no canto.
O meu pai franziu o sobrolho.

— A Sophia é a filha do senador Aiken, Nicholas. Decidiu fazer o estágio

aqui na empresa; fui eu quem lhe ofereceu o lugar.

Olhei para a filha do senador com os olhos semicerrados. Não fazia a menor

ideia de qual fora a oferta que o meu pai lhe fizera. Presumo que lhe interessava

ter uma boa relação com o pai dela, embora ainda não entendesse o que eu tinha

que ver com tudo aquilo.

— Tu estagiaste durante bastante tempo, estás prestes a terminar o curso, e eu

disse à Sophia que adorarias ajudá­


-la a integrar­
-se neste nosso universo.

«Mas que grande treta, não!»

A Sophia lançou­
-me um sorriso seco, que percebi ser mais de inimizade do

que outra coisa qualquer. Espetacular, a aversão era mútua. O meu pai

observou­-nos durante alguns instantes, suponho que irritado com o meu

silêncio, mas demasiado bem­


-educado para dizer o que quer que fosse.

— Bem, Sophia, espero que gostes de estar aqui. Se precisares de alguma

coisa, tens o meu número, senão, basta falares com o Nick.

— Obrigada, senhor Leister, tê­-lo­-ei em conta e agradeço profundamente a

oportunidade: sempre quis trabalhar para as Empresas Leister, acredito que os

setores a que a sua empresa decidiu dedicar­


-se são cruciais para a expansão e

prosperidade do negócio. Conheço bem as leis. Podem conquistar novos

mercados, e tenho a certeza de que, com a ajuda do seu filho, poderemos fazer

coisas magníficas.

Para mais, era graxista, embora o seu pequeno discurso lhe tenha saído muito

bem. O meu pai olhou para ela com ar de aprovação e despediu­-se antes de sair,

não sem antes me lançar um olhar de aviso.

— Nota­
-se que és filha de um político — disse, olhando fixamente para ela.

— Estás na minha cadeira, podes ir saindo.

A Sophia sorriu e levantou­


-se com cuidado. Não consegui evitar observá-la.

Cabelo negro, pele bronzeada, olhos castanhos e pernas compridas. Trazia uma

saia cinzenta travada e uma camisa branca, imaculada. Sim, senhor, tinha pela

frente uma verdadeira filhinha do papá.

— Não te deixes enganar pelo meu aspeto, Nicholas. Vim para ficar.

Franzi o sobrolho e decidi ignorar o seu comentário. Sentei­-me na minha

cadeira, abri a correspondência e comecei a trabalhar.


25

Noah

A Maddie chegava dentro de dois dias, e tínhamos de acabar o seu quarto.

Tinha dito à minha mãe que ia ali ficar durante alguns dos dias em que a

menina estivesse com o Nick e, como não queria que a nossa relação ficasse

ainda mais tensa, comportei­


-me como uma boa menina e fui para casa depois de

me assegurar de que o quarto da Maddie não tinha tralha e estava pronto para

receber os móveis, que seriam mon­tados e colocados nos respetivos lugares. O

Nicholas teria de se encarregar disso, porque eu só o voltaria a ver depois de

falar com a Anabel Grason.

Os dois dias seguintes passaram depressa. Acho que, quando queremos que o

tempo não passe, que as horas se arrastem o mais possível, estas passam a voar.

Então, sem ter tido tempo para me mentalizar, naquela manhã a Maddie e a

mãe chegavam. Estava nervosa e sabia que o Nicholas também sentia o mesmo.

Mandou­
-me uma série de fotografias a perguntar se gostava do quarto, se a irmã

ia gostar, se devia mudar os móveis de lugar, se não seria melhor pôr a cama por

baixo da janela em vez de no canto, se a cómoda seria suficiente e se ela gostaria

tanto do comboio telecomandado como ele.

Ri­
-me, divertida, do outro lado da linha.

— Nick, ela vai adorar; além disso, a tua irmã só te quer ver a ti, não se

interessa pelo quarto novo.

Ele ficou em silêncio.

— Estou muito nervoso, sardas, nunca passei mais de um dia com a minha

irmã. E se de repente começar a chorar porque tem saudades de casa? Ela é

pequenina, eu sou um calmeirão, às vezes não sei lidar com estas coisas.

Sorri ao espelho que tinha à minha frente. Adorava quando ficava tão

preocupado; era sempre tão seguro de si, tão autoritário e mandão, que só tinha

vontade de o abraçar quando baixava a guarda e mostrava que por baixo daquela

couraça tinha um coração meigo e fraterno.

— Vou tentar estar contigo durante a maior parte do tempo — respondi,


sentando­
-me na cama e fitando as vigas de madeira.

— Como? Não vais ficar o fim de semana todo? — perguntou de repente,

mudando de tom e pondo­


-se muito sério.

Mordi a língua. E nesse instante bateram à porta do meu quarto.

— Podemos falar um pouco? — perguntou a minha mãe enquanto entrava no

quarto e me observava tranquilamente.

Assenti, pela primeira vez agradecida por a minha mãe ter interrompido uma

conversa com o Nick.

— A minha mãe precisa de falar comigo. Ligo­-te amanhã, está bem?

Desliguei antes de me arrepender. Deixei o telemóvel ao meu lado, em cima

do colchão, e observei a minha mãe enquanto começava a deambular pelo

quarto. Parecia distraída e também um pouco abatida. Nenhuma das duas

andava em maré de sorte. Nas últimas semanas, mal tínhamos falado, e, quando

ela soubesse o que planeava fazer, as coisas ainda iam ficar piores.

— Falta­
-te muito para acabares de fazer as malas?

Sabia que a minha mãe estava a apalpar terreno. Eu nunca fazia malas antes da

véspera da partida e herdara este costume dela. Não entendíamos por que

motivo as pessoas precisavam de semanas para selecionar roupa, guardá­-la na

mala e fechá­
-la, mas abanei a cabeça com a intenção de aproveitar a sua

tentativa de aproximação para lhe comunicar que, agora que a irmã estava de

visita, ia ficar com o Nick.

— Está quase. Olha uma coisa, mãe... — comecei por dizer, mas ela

interrompeu­
-me.

— Sei que estás ansiosa por sair de casa, Noah — declarou, pegando numa

das minhas T­
-shirts e começando a dobrá­-la, distraída.

Quando vi que os seus olhos se humedeciam, respirei fundo.

— Mãe, eu não...

— Não, Noah, deixa­


-me dizer­
-te uma coisa: sei que os últimos dias têm sido

difíceis, que não nos temos dado muito bem desde que voltámos da Europa.

Acredita que entendo que estás apaixonada e que queres passar todo o teu

tempo com o Nicholas... Mas gostava que isto — disse, apontando entre as duas

— não se tivesse estragado. Sempre tivemos uma boa relação, sempre contámos

tudo uma à outra, e, quando namoravas com o Dan — fiz uma careta ao ouvir o

nome do meu ex­


-namorado, mas deixei­-a continuar —, até vinhas a correr para

o meu quarto para me contares como tinha corrido a noite e que coisas

românticas ele te tinha dito, lembras­-te?


Assenti, meio a sorrir, percebendo onde aquilo ia parar.

— Agora que se aproxima o momento em que tens de sair de casa, queria só

dizer­
-te que tentei dar­
-te o melhor que pude; queria mesmo que considerasses

esta casa como sendo o teu lar. Sempre quis que vivesses aqui, rodeada de todas

estas oportunidades. Quando eras pequena, sonhava ver­


-te num quarto como

este, com mais brinquedos e livros do que alguma vez poderia imaginar dar­
-te...

— Mãe, sei que fui insuportável quando decidiste vir morar para cá, mas

agora entendo por que motivo o fizeste, e não tens de me dar explicação

alguma, está bem? Deste­


-me tudo o que estava ao teu alcance, e sei que para ti

é difícil veres­
-me com o Nicholas, mas eu amo­-o.

A minha mãe fechou os olhos ao ouvir­


-me dizer isto e forçou um sorriso.

— Espero que um dia te tornes uma escritora magnífica, Noah. Sei que vais

conseguir, e é por isso que quero que aproveites todas as oportunidades que a

vida te apresentar. Estuda, aprende e goza bem os anos de universidade, porque

vão ser os melhores da tua vida.

— Assim farei — sussurrei, com um sorriso, embora me sentisse um pouco

culpada por não conseguir ser completamente sincera com ela e contar­
-lhe do

Nick.

Na manhã seguinte, acordei cedo. Estava muito nervosa e desci para tomar o

pequeno­
-almoço enquanto tentava não pensar muito no que ia fazer. A Maddie

chegava dali a poucas horas, e não havia a menor possibilidade de a sua mãe

recuar. Repeti mil vezes para mim mesma que estava a fazer aquilo por ele, que

não era imperdoável, mas uma parte de mim, uma parte oculta e profunda,

tinha vontade de conhecer a Anabel e de saber o que ela queria do Nick, por

que motivo decidira aban­


donar o filho.

Quase não consegui comer: deixei a torrada simples a meio e bebi café com

leite. O Nick dissera­


-me que ia encontrar­
-se com a Maddie à mesma hora que

eu me encontraria com a sua mãe, por isso tinha algum tempo até ele começar a

perguntar­
-se onde eu estava. Estaria ocupado a dar o almoço à Maddie, e, assim

que me fosse possível, acabava com a maldita reunião clandestina.

Sabia que o restaurante do Hilton era muito chique e também tinha

conhecimento de como a mãe do Nick gostava de gastar dinheiro. Era apenas

mais uma mulher de multimilionário que gostava de apregoar quantos iates,

cavalos e mansões tinha espalhados pelo mundo. Por isso mesmo, e pretendendo

não chamar a atenção, escolhi uma saia de cintura alta, rodada, azul­-clara, com
um top amarelo da Chanel que já tinha há bastante tempo. A Jenna tinha­
-me

oferecido umas sandálias brancas Miu Miu, muito bonitas e muito caras, há que

dizê­
-lo, mas que neste conjunto ficavam perfeitas. Acho que era uma das únicas

vezes em que me vestira dos pés à cabeça com roupa de marca, mas não queria

deixar que aquela mulher me intimidasse. Toda a gente sabia que uma mulher

bem vestida é uma mulher poderosa.

Quando cheguei ao Hilton, um homem elegantemente vestido aproximou­


-se

do meu descapotável. Saí e dei­-lhe a chave, rezando para que não me fizesse

nenhum risco no carro. As minhas sandálias faziam barulho no chão de pedra, e

subi as escadas que me levariam à porta giratória do hotel. Lá dentro, encontrei

uma receção muito elegante, com pequenos cadeirões estrategicamente

distribuídos por tapetes finos de tom bege e castanho­-claro. Ao fundo da sala

havia umas escadas enormes que se dividiam em duas, como em minha casa.

Não fazia ideia de onde deveria dirigir­


-me, por isso aproximei­-me da receção,

onde duas raparigas bem vestidas me sorriram com amabilidade.

— Em que posso ajudá­


-la, minha senhora? — perguntou uma delas, e vi que

os seus olhos fitavam a minha roupa com admiração. Acho que devia estar a

perguntar­
-se como podia uma miúda da sua idade estar do outro lado do balcão,

à sua frente, e ter tudo o que eu tinha. Às vezes agradecia não ser daquelas

pessoas que ligavam muito a roupas de marca e a dinheiro. Nunca quis nada

disso, nunca o desejara sequer, era uma pessoa de natureza simples e não

hesitaria um segundo em dar toda a roupa que trazia àquela rapariga.

— Tenho um almoço marcado com Anabel Grason... Não sei se deixou

alguma indicação para mim... — expliquei, hesitante. A rapariga consultou o

computador e assentiu com um sorriso.

— A senhora Grason está à sua espera no Andiamo. Se percorrer este corredor,

encontrará as portas à direita. Desejo­-lhe um bom almoço.

Sorri, agradecida, e caminhei, tentando não vacilar. Quando cheguei às portas

que a rececionista me indicou, recebi uma mensagem no telemóvel. Abri­


-a

antes de entrar: era uma fotografia do Nicholas com a Maddie, no McDonald’s.

Sorri ao ver que a Maddie não tinha dois ­dentes à frente. Deus do céu, nem

queria imaginar o que o ­


Nicholas devia estar a dizer à pobre miúda! Ainda com

um sorriso no rosto, mandei­


-lhes uma mensagem a dizer que dali a pouco já

estaria com eles. A seguir, desliguei o telemóvel.

Quando entrei no restaurante, olhei em volta com nervosismo. O Andiamo

era um lugar acolhedor e despretensioso, mas muito elegante: cadeiras cor de


chá com leite, toalhas brancas sobre mesas quadradas com talheres brancos e

guardanapos grená, assim como bonitas plantas decorativas. Mal entrei pela

porta, senti o cheiro da massa ­acabada de fazer, e o aroma do pesto fresco

inundou­
-me os sentidos.

Quando vi a Anabel, respirei fundo e fui ter com ela. Estava, como já

imaginava, vestida com elegância, com um fato de calças bege e uma bonita

blusa preta. Trazia também uns saltos enormes e por isso ficava muitos

centímetros mais alta do que eu. Quando me aproximei, sorriu­-me, e estendi­


-

lhe a mão antes que a situação se tornasse confrangedora: não fazia ideia de qual

seria o cumprimento quando nos reuníamos às escondidas com a mãe do nosso

namorado, a mesma que o abandonara há dez anos.

— Olá, Noah — disse com amabilidade.

— Senhora Grason — respondi com educação.

Ela sentou­
-se, fazendo sinal para a imitar.

— Fico muito contente por teres aceitado o meu convite — afirmou. A seguir

levou o copo de vinho aos lábios pintados de vermelho.

Pronto, assim começava. Respirei fundo.

— Mais do que um convite, foi um suborno — respondi com uma calma

fingida.

Não planeava fraquejar.

Os olhos azuis­
-celestes cravaram­-se nos meus, com a mesma expressão dos do

filho, e senti um calafrio percorrer­


-me a espinha.

— És uma rapariga muito bonita, Noah, embora tenha a certeza de que o

sabes; se não fosses bonita, o meu filho não se tinha apaixonado por ti, claro.

Forcei um sorriso educado. Aquele comentário irritava­-me, como se a minha

relação com o Nick fosse uma coisa meramente superficial e vazia. Para aquela

mulher, todas as relações deveriam basear­


-se na beleza... Todo o dinheiro que

investira para aparentar ter trinta anos era uma boa prova disso.

— Tenho a certeza de que podemos conversar sobre trivialidades durante

horas, senhora Grason, mas fez­-me vir aqui por um motivo concreto, e gostaria

que fosse direito ao assunto — disse, tentando ser o mais bem­


-educada possível,

embora me estivesse a custar muito. As minhas suspeitas confirmavam­-se: não

gostava daquela mulher, nem nunca iria gostar. — Queria que lhe fizesse um

favor. Diga­
-me do que se trata.

A Anabel sorriu, talvez com admiração. Pareceu­-me ter gostado de eu ter sido

tão direta como ela.


— Quero recuperar a relação com o meu filho, e tu vais ajudar­
-me — disse,

sem rodeios. Tirou da mala de marca um envelope fechado e entregou­-mo. O

papel era espesso e luxuoso, cor de marfim, e nele vinha escrito o nome do

Nicholas com uma caligrafia muito bonita. — Só preciso de que te assegures de

que o Nicholas lê esta carta.

Olhei para ela com desconfiança. Não fazia ideia de como poderia convencer o

Nick a lê­
-la. Além disso, entregar­
-lhe este sobrescrito signi­ficaria contar­
-lhe

que me tinha encontrado com a mãe, e não ia fazer isso nem morta.

— Lamento, mas não sei como uma simples carta a vai ajudar a recuperar­ o

seu filho. A senhora abandonou­-o — respondi, sabendo que estava a olhar para

ela com ódio, o mesmo que sentia quando alguém fazia mal a alguma das

pessoas que amava, não conseguia evitar.

— Quantos anos tens, Noah? — perguntou­-me então, deixando o envelope

em cima da mesa.

— Dezoito.

— Dezoito — repetiu, saboreando a palavra e sorrindo daquela forma

angelical que ficaria bem a uma menina de seis anos, mas não a alguém como

ela. — Eu tenho quarenta e quatro anos... Já ando neste mundo há muito mais

tempo do que tu, vivi muito mais do que tu, por isso, antes de me julgares

como estás a fazer agora, para e pensa que és apenas uma criança e que o pior

que te aconteceu na vida deve ter sido arrancarem­-te de tua casa para te

trazerem para uma mansão na Califórnia.

— A senhora não sabe nada da minha vida — declarei com uma voz gélida.

A imagem do meu pai morto ocorreu­-me ao pensamento, e senti uma pontada

de dor no peito.

— Sei muito mais do que pensas — afirmou. — Sei até coisas que não sabes e

que não desejarias saber nunca, mas posso mudar isso facilmente com um par de

telefonemas.

Apareceu­
-lhe um sorriso diabólico no rosto. Pegou na carta que pousara na

mesa, levantou­
-se e pôs­
-se ao meu lado. Com um movimento muito elegante,

enfiou a carta na minha mala, que eu deixara pendurada nas costas da cadeira.

— Certifica­
-te de que o Nicholas a lê — sussurrou. — Senão, farei com que

toda esta fantasia que estás a viver, todas as riquezas que te caíram do céu, se

transforme em fumo.

Pus­
-me de pé como se tivesse levado um choque elétrico.
— Não volte a entrar em contacto comigo — disse, tentando controlar as

minhas emoções, porque ela acabara de me ameaçar, e eu nem sabia exatamente

com o quê.

— Não te preocupes. Não tenho qualquer intenção de voltar a fazê­-lo. Mas,

repito: se não queres viver o teu pior pesadelo, assegura­-te de que que fazes o

que te pedi.

Virei­
-lhe as costas e saí do restaurante sem sequer parar para pensar na ameaça

implícita encerrada nas suas últimas palavras. Atravessei a receção do hotel e fui

para a rua.

Tinha sido uma tonta, uma imbecil por me ter encontrado com aquela

mulher. O Nicholas avisou­


-me, falou­-me dela, de como era cruel, e eu, como

uma estúpida, deixei que me enganasse; para mais, dissera todas aquelas

mentiras, porque eram apenas isso: mentiras às quais não ­planeava dedicar nem

um segundo do meu tempo. Uma vez na rua, tirei a carta da mala, rasguei­-a em

mil pedaços e espalhei­


-os por todos os caixotes do lixo que ali encontrei.

Para mim, aquele encontro nunca tinha acontecido.


26

Nick

A Noah tinha o telemóvel desligado. Esteve assim toda a tarde, e começava a

preocupar­
-me... Tentei não deixar a minha ansiedade atingir níveis que não

trariam nada de bom a esta situação. A minha irmã estava comigo, a Anne

trouxera­
-a, como prometido, e sentia­-me muito feliz por poder ficar com ela só

para mim durante quatro dias. Não ia deixar que nada estragasse esses

momentos com a minha pequenina, de maneira nenhuma, e a Noah... Bem,

preferia pensar que tinha ficado sem bateria.

— Nick! — gritou a Maddie, chamando a minha atenção com aquela sua

vozinha tão característica. Voltei­-me para ela; estávamos em Santa Mónica, no

cais. Sempre falara daquele sítio à Maddie, da praia, das atrações, dos meninos a

subirem na roda gigante e a verem o mar quando estavam lá no alto... Naquele

instante, a minha irmã mais nova, ao contrário do que faria qualquer criança

normal, estava com a cabeça encostada ao vidro de um dos muitos aquários que

mostravam moluscos e animais marinhos. Aproximei­-me dela.

— Mad, se lhes tocares, eles podem magoar­


-te com as pinças — ­avisei.

Estávamos na parte da loja onde se vendiam alguns destes animais. Agarrei na

Maddie pela cintura e tirei­


-a dali. Lá fora já anoitecia, e, inseguro, comecei a

perguntar­
-me a que horas ela deveria jantar e ir para a cama.

— Tens frio, minorca? — perguntei, antes de tirar o meu casaco e de me

agachar para lho pôr por cima.

Um sorriso divertido apareceu­-lhe nos lábios carnudos.

— Estás contente por eu estar aqui? — quis saber, e vi nos seus olhos

inocentes que a minha resposta lhe importava mais do que devia.

Sorri antes de puxar o fecho do casaco. Parecia um pequeno fantasma com

aquele casaco que quase chegava ao chão, mas era melhor isso do que adoecer.

— E tu estás contente por estares aqui? — perguntei, enquanto arrega­çava as

mangas.

— Claro que sim — respondeu, emocionada. — Tu és o meu irmão favorito,


nunca te disse?

Soltei uma gargalhada. Como se tivesse mais irmãos!...

— Não, nunca me tinhas dito, mas tu também és a minha irmã favorita, por

isso é perfeito, não é?

O sorriso que me ofereceu chegou­-me, literalmente, ao coração.

— Queres andar na roda gigante? — propus, e a sua resposta entusiasmada

perfurou­
-me novamente os tímpanos.

O cais estava cheio de gente, de famílias, e o ruído das ondas ao longe

convencia­
-nos a ficar ali para sempre. O entardecer estava lindo, e, mesmo no

instante em que me preparava para pegar no telemóvel e tentar contactar a

Noah, senti­
-a. O meu olhar encontrou­-a no meio da multidão. Um sorriso de

orelha a orelha apareceu no seu rosto, e percebi que o meu devia estar com uma

expressão semelhante.

— Ei, Maddie! — chamou a Noah, deslumbrante como sempre e chamando a

atenção da minha irmã, que não demorou um segundo a ir ter com ela a correr.

— Noah! — gritou, feliz, e ri­-me ao vê­-la correr para ela. A minha alegria

ainda foi maior quando vi a Noah baixar­


-se até à altura da Maddie e levantá­
-la

do chão num abraço doce.

A Maddie tinha­
-se habituado à Noah mais facilmente do que eu pensava, não

que a Noah não fosse um amor, quero dizer, era a Noah, mas a Mad não era uma

menina muito fácil, há que dizê­-lo. Eu amava­-a, era minha irmã, mas por vezes

também podia ser um pouco insuportável e antipática: não se dava bem com

toda a gente, não gostava que lhe invadissem o espaço pessoal se não tivesse

confiança suficiente na pessoa e, para ser sincero, tinha de reconhecer que

também era um pouco mimada, enfim, como são todas as meninas de seis anos

a quem os pais compram absolutamente tudo. Era a minha princesinha das

trevas, como gostava de lhe chamar. Mas a Noah adorava a Maddie, e vice­-versa,

por isso não havia problema.

Quando cheguei ao pé delas, a Noah dirigiu­-me um olhar que achei um

pouco estranho, como se estivesse aliviada por me ver, ou algo parecido. Sorri­
-

lhe e puxei­
-a para mim, com a Maddie entre os dois.

— Noah, nós íamos à roda gigante. Vamos os três! — A Maddie ­tentou

descer do colo dela, mexendo as pernas para que a pusesse no chão, e a seguir foi

a correr em direção às atrações. Sem desviar o olhar, pus o braço sobre os ombros

da Noah e dei­
-lhe um beijo na cabeça enquanto seguíamos a minha irmã.

— Estás bem? — perguntei.


— Claro! A tua irmã está maravilhosa — respondeu, mudando rapidamente

de assunto.

— Sem dois dentes? — perguntei, divertido. — Tive de me controlar para

não me meter com ela, sardas.

A Noah riu­
-se, mas não teceu nenhum comentário a este respeito. Havia algo

de estranho nela, mas deixei passar. Encontrámo­-nos com a Maddie na roda

gigante, e comprei bilhetes para os três. A minha irmã começou a falar sem

parar, contando­
-lhe, na sua linguagem infantil, todas as coisas que tínhamos

feito, como tinha sido andar de avião e como estava feliz por estar ali. A Noah

conversava com ela, divertida, e sorria de cada vez que olhava para mim.

Estava prestes a anoitecer e quase não se sentia frio, o ar estava apenas um

pouco mais fresco. Não havia uma única nuvem no céu, por isso o pôr do sol era

maravilhoso dali, do ponto em que nos encontrávamos. Sem dizer nada, a Noah

encostou­
-se a mim e sentou­
-se ao meu colo, com o olhar fixo no mar e no sol

que se escondia. Rodeei­


-a com um braço e apertei­-a contra as minhas costelas.

Olhar para a Noah era a coisa mais bonita do mundo, mais do que qualquer

ocaso no mar. Percebendo que estava a olhar para ela, fixou os olhos nos meus e

sorriu­
-me como só ela sabia fazer.

A Maddie adormeceu no carro. Não me admirei, estava acordada desde muito

cedo, e para ela o dia fora cheio de novidades. Era de noite e, enquanto seguia

na autoestrada, com a Noah em silêncio ao meu lado, não pude evitar recordar a

conversa que tinha tido com o Lion naquela manhã.

O meu amigo tinha­


-me ligado para dizer que as corridas seriam na segunda­
-

feira seguinte. Depois do sequestro da Noah, eu afastara­-me do grupo e dos

problemas das ruas: não queria que essas coisas afetassem a minha vida e, menos

ainda, que pusessem a vida da minha namorada ou da minha família em perigo.

Não obstante, também tinha o Lion, que, infelizmente, ainda vivia nesse

mundo e que eu não podia tirar de lá, pelo menos enquanto ele não quisesse

sair. Não que ele gostasse daquele ambiente, mas era dinheiro fácil e rápido, por

isso tinha­
-me pedido para o acompanhar e correr por ele, como sempre

tínhamos feito. Ofereci­


-me para lhe fazer um empréstimo, mas o Lion era

demasiado orgulhoso para aceitar. Decidira ajudá­


-lo só porque sabia que ele

precisava de dinheiro e também porque, à exceção do ano anterior, nunca

tínhamos tido nenhum problema. Sempre adorara carros e gostava muito de

correr de noite, no meio do deserto, de sentir a adrenalina, a velocidade, a


sensação vitoriosa depois de ganhar...

Se a Noah soubesse daquilo, matar­


-me­-ia. A Jenna já a tinha deixado com a

pulga atrás da orelha, e, embora eu achasse que a conseguira convencer de que

estava afastado dos esquemas do Lion, tinha de fazer alguma coisa para ela

deixar de estar tão alerta. O Lion jurara­-me que a Jenna não sabia quando eram

as corridas, além de que seria uma coisa rápida: íamos, corríamos, ganhávamos e

voltávamos para casa. Sem problemas.

A única coisa que me ocorria fazer para a Noah não desconfiar de nada era

combinar qualquer coisa com ela na segunda­


-feira. Podia convidá­
-la para jantar

num restaurante qualquer do outro lado da cidade, o mais afastado possível das

corridas, e, enfim... Deixá­


-la plantada à minha espera. Inventaria uma boa

desculpa para justificar a minha ausência, mas pelo menos assim assegurava­
-me

de que ela estava o mais longe pos­sível de mim, a salvo num lugar bonito. Ia

ficar estupidamente zangada comigo, mas depois, quando voltasse, eu

recompensava­
-a.

Satisfeito com o meu plano, saí do carro e fui abrir­


-lhe a porta.

— Está tudo bem, sardas? — perguntei, acariciando­-lhe o rosto e afastando­


-

lhe uma madeixa da cara. Tinha estado ausente toda a tarde e, agora que a

minha irmã já estava a dormir, podia concentrar­


-me mais nela. Observei como

estava bem vestida.

— Estou cansada, só isso — respondeu, saindo do carro sem sequer olhar para

mim.

— O que é que eu fiz desta vez, Noah? — perguntei, analisando

mentalmente cada coisa que fizera e dissera desde que nos encontrámos no cais.

Um sorriso divertido aflorou o seu rosto, e fiquei um pouco mais tranquilo.

— Não fizeste nada, tonto — respondeu, e respirei com calma quando se

voltou para mim, me segurou o rosto entre as mãos e se pôs em bicos dos pés

para me beijar os lábios. Antes que se afastasse de mim, desci a mão até à sua

cintura e apertei­
-a contra o meu corpo. Ela não aprofundou o beijo, por isso fi­
-

lo eu: abri­
-lhe os lábios e saboreei­-a com gosto.

Ela retribuiu­
-me o beijo, mas achei­-a distraída.

Quando me afastei, fiquei novamente a olhar para ela.

— Estás a esconder­
-me alguma coisa, e vou descobrir o que é — comentei,

meio a brincar, e larguei­


-a.

Abri a porta de trás do carro e sorri como um idiota ao ver aquela menina tão

bonita a dormir encostada a um coelho de peluche espantoso. Soltei o cinto de


segurança e peguei nela ao colo. Fechei o carro e, depois de tirar a pequena mala

que a Maddie tinha trazido, subimos para o meu apartamento, com a Noah ao

meu lado.

Não queria acordar a minha irmã, por isso meti­-a logo na cama.

— Dorme bem, princesa — disse, enquanto lhe dava um beijo no rosto.

Quando saí e fechei a porta, encontrei a Noah à minha espera, encostada à

parede em frente ao quarto. Precisávamos de falar, e fiquei contente por ser ela a

dar o primeiro passo.

— Vens tomar banho comigo? — propôs­-me com um sorriso ­caloroso.

Sorri, peguei­
-lhe na mão e levei­-a para a casa de banho. Abri a água quente

para encher a banheira. Voltei­


-me e aproximei­-me dela.

— Hoje estás muito bonita... Muito elegante com essa roupa — observei,

enquanto lhe retirava o elástico do cabelo com cuidado, ­passando-o como seda

pelo pescoço. — O que andaste a fazer toda a manhã? Além de me ignorares,

claro.

Os olhos dela fixaram­


-se nos botões da minha camisa, e, com os dedos

trémulos, começou a desabotoá­-los um a um. Segurei­-lhe nas mãos,

impedindo­
-a e sentindo uma pontada de ansiedade ao perceber que havia

alguma coisa que não me estava a contar.

— Andei por aí com a minha mãe — respondeu, levantando o rosto e

olhando­
-me fixamente nos olhos. — Fiquei sem bateria no telemóvel, por isso

não vi as tuas chamadas.

Assenti e deixei que continuasse o que estava a fazer. Quando me tirou a

camisa, inclinou­
-se para a frente e fechei os olhos ao sentir os seus lábios mesmo

acima do meu coração.

As carícias da Noah não tinham comparação possível, eram uma sensação tão

incrível... Faziam­
-me sentir tão bem... Em paz comigo mesmo. Eram a minha

droga pessoal, feita à minha medida e gosto, para me deixar completamente

louco. Abri os olhos e segurei­


-lhe nas mãos quando estas começaram a subir até

ao meu pescoço. Queria­


-a comigo na banheira, descontraída, e, depois, sim,

podia averiguar que diabo se passava com ela.

Despi­
-lhe o top e a saia, e a sua pele parecia brilhar. A seguir, baixei­-me e

descalcei­
-lhe as sandálias. Ela tinha um corpo ­incrível, atlético, nem demasiado

voluptuoso nem excessivamente magro: era tão bonita que podia passar horas a

admirá­
-la.

Com um sorriso que fez com que alguma coisa se agitasse dentro de mim,
tirou o sutiã e as cuecas para entrar para a banheira. Queria avisá­-la de que a

água estava muito quente, mas ela não fez qualquer gesto de dor, limitou­-se a

afundar­
-se nela, que a tapou até aos ombros. Não demorei a segui­-la e, quando

se chegou para a frente para poder sentar­


-me atrás dela e a envolver nos meus

braços, cerrei os dentes com força, escaldando imediatamente a pele.

— Porra, Noah! — queixei­


-me, aguentando uns segundos até o meu corpo se

habituar. — Não te queima?

— Hoje não — respondeu, com ar distraído, enquanto colhia espuma entre os

dedos e a observava, entretida.

Encostei o rosto à orelha dela, e ficámos um pouco em silêncio, a apreciar a

sensação agradável de estarmos juntos, descontraídos e tranquilos. Eu sabia que

se passava alguma coisa. Por vezes, ela estava tão envolvida nos seus próprios

pensamentos que daria tudo para saber o que lhe ia na cabeça.

— Posso fazer­
-te uma pergunta? — disse, arrancando­-me aos meus devaneios.

— Claro.

— Mas tens de prometer que me vais responder.

A minha mão, que estava sobre o seu estômago, começou a desenhar pequenos

círculos junto ao umbigo dela. Percebia o que estava a fazer, mas tinha

curiosidade em saber o que me queria perguntar, por isso con­cordei, não sem

antes sentir um pouco de prazer. Sorri quando vi que ela suspirava de forma

entrecortada quando a minha mão desceu um pouco mais do que devia.

— Achas que o teu pai amava a tua mãe? Quero dizer, antes de se

divorciarem, claro.

Não estava à espera daquela pergunta, e, em vez de perceber o que lhe passava

pela cabeça, fiquei ainda mais desconcertado.

— Presumo que a tenha amado, sim... Embora em quase todas as recordações

que tenho ou eles andavam à briga ou o meu pai estava fora, a trabalhar... A

minha mãe não era uma mulher fácil, mas ele também não se ficava atrás —

respondi, recordando todas as vezes que o meu pai estivera longe de nós,

alegando que tinha muito trabalho ou estava demasiado cansado. — Quando eu

era pequeno, até cheguei a pensar que todos os pais viviam longe de casa e que

só voltavam quando tinham fome ou sono. Claro que, à medida que fui

crescendo e visitando as casas dos meus amigos, vi que não era assim, que estava

enganado e que os pais podiam ser maravilhosos. O pai de um dos meus amigos

de escola ia levá­
-lo e buscá­
-lo todos os dias, e, no regresso a casa, paravam

sempre para lanchar bolos e jogar basebol no campo da urbanização... Eu tinha


tanta inveja dele. Foi nessa altura que percebi que muitos pais faziam atividades

com os filhos.

Fiquei a olhar em frente, perdido nas minhas recordações, e só quando a Noah

se voltou para trás e olhou para mim me apercebi de que a minha mente me

transportara para outro tempo. Forcei um sorriso e deixei que me beijasse

quando segurou no meu pescoço e os nossos lábios se juntaram.

— Não te devia ter perguntado nada — desculpou­-se.

Cheguei a cabeça para trás e observei­-a.

— Podes perguntar­
-me tudo o que quiseres, Noah. A minha vida não foi um

conto de fadas, mas foi quase, quando comparada com as coisas que acontecem

por esse mundo fora. Nem toda a gente nasce a querer ser pai, e muitos

fracassam quando tentam.

Não ia lamentar­
-me por ter tido pais conflituosos. A minha infância não fora

ideal, mas não ia queixar­


-me, muito menos à Noah. Ela tinha pena de mim,

via­
-o nos seus olhos tão bonitos, apesar de ser ela a ganhar o prémio da maior

história de terror. O meu pai podia ter sido um cabrão egoísta quando eu era

pequeno, mas nunca tentara matar­


-me. Por vezes, a minha cabeça trazia­
-me

imagens passadas que eram más, imaginava a Noah um pouco mais velha do

que a Maddie, a esconder­


-se do próprio pai, a ver­
-se obrigada a saltar por uma

janela... Como podia ela reservar um segundo sequer do seu tempo a

compadecer­
-se da minha história?

— Achas que existem famílias normais e simples? — perguntou. — Sabes a

que me refiro, como aquelas famílias dos filmes, com pais normais, que

trabalham e cuja única preocupação é pagar a hipoteca ao fim do mês.

Seria isso que a preocupara durante toda a tarde? Será que a mãe lhe tinha

dito alguma coisa naquela manhã? Senti­-me tomado de um sentimento de raiva

só de pensar que a Raffaella pudesse ter estado a encher­


-lhe a cabeça contra a

nossa relação. Fiquei a pensar durante uns segundos.

— Nós vamos ser esse tipo de família. O que te parece? Embora não

precisemos de nos preocupar com a hipoteca, claro.

A Noah soltou uma gargalhada, e tive vontade de lhe mostrar que estava a

falar a sério.

— Agora é a minha vez de te fazer uma pergunta — disse, e os olhos dela

procuraram os meus. Sorri. — Onde queres fazer amor, na banheira ou na

cama?
27

Noah

Não conseguia tirar da cabeça as palavras da mãe do Nick.

A sua ameaça assustava­


-me, mas não queria continuar com aquilo, não queria

seguir por aquele caminho que sabia não conseguir percorrer sozinha. Sentia­
-me

culpada por ter rasgado a carta. Não tinha qualquer direito de o fazer, porque

não era minha, mas nem queria pensar que aquela mulher pudesse magoar mais

o Nick. O que dissera ele de manhã a respeito dos pintores? Que me queria

proteger? Pois bem, era exatamente isso que eu estava a fazer por ele.

Concentrei­
-me no Nicholas, como sempre: ele era o meu medicamento, a

minha distração, o meu porto seguro. Obrigou­-me a dar a volta, e agradeci o

tamanho daquela banheira.

— Onde queres fazer amor, na banheira ou na cama? — perguntou­-me com

um olhar sombrio, embora tenha percebido que precisava do meu contacto,

ainda mais agora, que andara a remexer no seu passado. Eu também precisava

dele, porque, se me pusesse a dar voltas àquele assunto, ia acabar por descobrir

verdades que preferia que ficassem escondidas... Pelo menos por enquanto.

Sentou­
-me sobre as suas pernas, e as nossas bocas voltaram a unir­
-se com

doçura. Naquele momento, precisávamos um do outro, porque o dia tinha sido

intenso para os dois, embora em sentidos diferentes.

Com as mãos nas minhas costas, inclinou­-se sobre mim e saboreou a minha

boca com veneração. As minhas mãos foram subindo pelos seus ombros até

pousarem sobre o rosto áspero e húmido da água que nos rodeava. O cheiro dele

inundou todos os meus sentidos e aqueceu­


-me por dentro.

— És tão linda — disse em voz baixa, para a minha pele a ferver. A boca dele

separou­
-se dos meus lábios e começou a percorrer o maxilar, dando­
-me

pequenas mordidelas, até chegar ao pescoço. As mi­nhas mãos desceram pelo

peito dele, pelos abdominais, até que me abraçou com força para que todo o

nosso peito estivesse em contacto, pele com pele, sem qualquer espaço entre

nós. — Tão quente, tão suave... — ia dizendo, à medida que a língua saboreava
a minha pele nua e húmida.

Inclinou­
-me para trás enquanto eu soltava um suspiro hesitante, e senti as

mãos subir e descer pelas minhas costas, a boca apoderar­


-se do meu seio

esquerdo, provando a minha pele sensível, ávida das suas carícias. Levantei­-me e

fechei as pernas em volta das ancas dele. Ele procurou a minha boca com a sua,

e repetimos a mais antiga das danças, as nossas línguas envolvidas uma na

outra...

— Olha para mim — disse­


-me então, afastando­-se. Ao abrir os olhos, vi que

os dele estavam fixos no meu rosto, tão azuis como sempre, mas com algo

diferente neles, algo difícil de exprimir por palavras. — Amo­-te e vou amar­
-te

para toda a vida — declarou, e eu senti que o meu coração paralisava, que

parava de bater para depois recomeçar a sua corrida frenética; sem desviar os

olhos dos meus, levantou­


-me devagar com o braço que me rodeava a cintura e

pousou­
-me mesmo em cima dele, movimentando­-se com uma lentidão infinita

e uma doçura quase tão palpável como as suas palavras. Quando me penetrou,

abri a boca para soltar um gemido, mas os seus lábios silenciaram­-me com um

beijo profundo.

— Sentes? Sentes esta ligação? Fomos feitos um para o outro, meu amor —

sussurrou­
-me ao ouvido, enquanto se movia suavemente, estabelecendo um

ritmo lento que me estava a deixar doida. As palavras continuavam a pairar na

minha cabeça, enquanto ele me dava prazer como só ele conseguia fazer.

«Amo­
-te e vou amar­
-te para toda a vida.»

— Promete­
-me — disse, quando um medo horrível se apoderou do meu

corpo e da minha alma, o medo de o perder, um medo infinito de não ter para o

resto da vida o que estava a experimentar naquele momento.

Os olhos dele, negros de desejo, voltaram aos meus, perdidos, sem saber a que

me referia.

— Promete­
-me que me vais amar para sempre — quase implorei.

Sem me responder, levantou­-se da banheira arrastando­-me consigo, com as

mãos a segurarem­
-me com força nas coxas. Envolvi­-o com os braços e enterrei o

rosto na cova do seu pescoço, mordendo o lábio inferior para não gritar ao

senti­
-lo tão profundamente dentro de mim enquanto me levava para o quarto,

os dois a pingar e a molhar tudo. Deitou­-me na cama sem se afastar de mim por

um instante.

— Não há promessa que valha — assegurou, enquanto a nossa respi­ração

agitada se sincronizava. Estava prestes a rebentar, e ele sabia, as suas mãos


satisfaziam cada ponto do meu corpo que precisava do seu contacto — porque

tu me cativaste... Eu sou mais teu do que meu; farei tudo o que me pedires,

tudo o que quiseres — disse, olhando­-me fixamente. — Prometo­-te, meu amor.

E foi assim, com estas palavras e com o seu corpo colado ao meu, que deixei

de sentir frio.

Os dias seguintes foram maravilhosos. Foi incrível partilhar todos os

momentos possíveis do Nicholas a viver com a irmã, momentos que nunca teria

podido experienciar devido à distância e às poucas horas de visita que lhe

concediam. No dia do aniversário do Nick, fomos à Disney, e, embora fosse um

lugar para crianças e tivéssemos passado o dia atrás da Maddie, adorei ver o

Rato Mickey e a sua pandilha can­tarem o «Parabéns a Você» ao Nick. Um ano

antes, nesta data, tínhamos começado a namorar, e, se alguém me dissesse que

um ano depois estaria a olhar para ele com umas orelhas de rato, a comer um

bolo de chocolate em forma de princesa da Disney, diria que estavam loucos.

Mas os dias iam passando depressa, e pouco depois chegou a hora de levar a

Maddie ao aeroporto. A assistente de bordo que ia tomar conta dela até a irem

buscar ao aeroporto em Las Vegas estava à espera junto ao controlo de

passageiros. Depois de passarem tanto tempo juntos, a despedida foi muito

mais dura do que imaginavam.

— Estás bem? — perguntei, quando saímos para irmos buscar o carro ao

parque de estacionamento. Os dedos dele apertaram­-me a mão com força.

— Hei de ficar — respondeu­


-me simplesmente.

Não quis insistir porque sabia que o Nick não gostava muito de falar, muito

menos quando se tratava dos seus sentimentos. A irmã era o seu ponto fraco, e

saber que se tinha ido embora para ficar com os pais, que mal tinham tempo

para ela, não ajudava muito. Entrámos no carro em silêncio, e só cerca de dez

minutos depois se decidiu a dirigir­


-me a palavra.

— Deixo­
-te em casa? — perguntou.

Um alarme disparou dentro de mim. A Jenna tinha­


-me ligado no dia anterior,

enquanto o Nick dava banho à Maddie, para me contar que descobrira que as

corridas iam ter lugar na segunda­


-feira. Na altura não quis acreditar nela, mas,

se fosse verdade, o Nick não haveria de querer ter­


-me por perto. Estive prestes a

dizer­
-lhe que não, que ficava a dormir com ele, mas não podia abusar da

paciência da minha mãe, que já estava suficientemente aborrecida comigo.

Além disso, tinha de acabar de fazer as malas, porque só faltavam cinco dias
para ir para a faculdade. Tinha de falar com a minha mãe, embora ainda andasse

a dar voltas à cabeça, ponderando contar­


-lhe só quando já tivesse saído de casa e

estivesse ­
instalada em casa do Nick, quando já não houvesse como voltar atrás.

Era uma ideia arriscada, mas preferia enfrentar a minha mãe ao longe a contar­
-

lhe pessoalmente.

— Sim, deixa­
-me em casa — respondi, enquanto olhava pela janela, tentando

decidir o que fazer a respeito das corridas. Quando chegámos a casa, estacionou

junto à entrada, e pensei que saía comigo, pelo menos para cumprimentar o pai,

mas nem sequer desligou o motor. No entanto, não foi isso que me deixou

desorientada, mas o que me disse a seguir:

— Queres jantar fora amanhã?

Voltei­
-me para ele, surpreendida.

— O quê?

Um sorriso que não lhe chegou aos olhos apareceu então no seu rosto.

— Tu e eu... Juntos, num restaurante bonito... Queres? — perguntou,

estendendo o braço e ajeitando­-me uma madeixa atrás da orelha. Fiquei

surpreendida. Por aquela não esperava, não se a Jenna estivesse certa a respeito

da data das corridas.

— Vens buscar­
-me?

Ele desviou o olhar para a casa.

— Acho que não vou poder, trabalho o dia inteiro... É melhor encontrarmo­
-

nos no restaurante.

Quando se voltou para mim, não encontrei uma centelha de dúvida, parecia­
-

me sincero. Afinal, talvez a Jenna se tivesse enganado. Apareceu­-me um sorriso

no rosto. Detestava ter desconfiado do Nick. Ele não me mentiria. Não ia às

corridas, não sem me contar, e muito menos depois de tudo o que acontecera.

— Muito bem. Então encontramo­-nos lá — disse, pousando a mão na porta.

— Ei! — exclamou ele, detendo­-me antes que eu saísse do carro. Voltei­


-me

para trás. — Obrigado por teres ficado comigo estes dias. Não teria sido a

mesma coisa sem ti.

Pousei a mão no rosto dele e acariciei­-o antes de me inclinar e de o beijar.

Quando prolongou o beijo, só fui capaz de rezar para ele não me estar a mentir.

No dia seguinte, à tarde, a Jenna veio a minha casa. Nunca a tinha visto tão

deprimida. Ela e o Lion não estavam nada bem, e não ajudava que a minha

amiga estivesse completamente certa de que as corridas iam acontecer naquela


noite. Quando lhe contei que o Nick me convidara para ir jantar ao Cristal, um

restaurante elegante na cidade, o seu olhar revelou incredulidade.

— Sei o que estou a dizer, Noah, e tenho quase cem por cento de certeza de

que os idiotas dos nossos namorados vão meter­


-se em sarilhos esta noite.

Suspirei enquanto procurava um vestido bonito para usar. Já estava cansada de

tentar convencer a Jenna de que o Nicholas não me men­tiria e muito menos

que me faria ir até um restaurante se não planeasse encontrar­


-se ali comigo.

— Como estão as coisas com o Lion? Ele continua aborrecido contigo? —

perguntei, mais para mudar de assunto do que por outra coisa qualquer.­

A Jenna estava sentada na poltrona em frente ao meu toucador e estava pálida,

contrastando com o vermelho das unhas.

— Se por aborrecido queres dizer que, neste momento, a nossa relação se

resume a desatarmos aos gritos e depois cairmos na cama a foder como uns

loucos, então, sim, acho que continua aborrecido comigo.

— Tu és tão bruta! — respondi, surpreendida com a sua forma de falar,

embora também não me chocasse assim tanto: a Jenna não era tão betinha como

as pessoas pensavam. Mas, não obstante o seu tom despreocupado, sabia que ela

estava mal, que se sentia destroçada e que a história das corridas a deixava mais

nervosa do que queria deixar transparecer. Se a teoria da Jenna estivesse certa, o

Lion pretendia correr nas corridas todas para ganhar dinheiro, sem se importar

com o facto de as pessoas que frequentavam aquelas competições ilegais quase o

terem matado da última vez que ali tínhamos estado. E não era só isso. Desde

então, tínhamos muito mais consciência de que, se o Lion continuasse por

aqueles caminhos, o mais provável era acabar na cadeia, como o irmão.

— É verdade, no outro dia vi o Luca — comentou, levantando­-se do sofá e

começando a mexer distraidamente nos cabides. Parei um instante e olhei para

o reflexo dela ao espelho.

— Como é ele? — perguntei, com cautela.

— Para ser sincera, pareceu­


-me muito simpático, embora tenha um certo ar...

Não sei, fiquei com a pele arrepiada quando o conheci — admitiu, parando

junto a uma T­
-shirt branca, simples. A Jenna estava em todo o lado menos ali, a

olhar para a minha roupa, e já andava assim há mais de um mês, ausente. — É

muito bonito, não tanto quanto o Lion, mas é evidente que os pais deviam ser

pessoas atraentes... Tem os mesmos olhos verdes, mas acho que o olhar dele

esconde muitas coisas, coisas que o Lion não quer que eu saiba porque, quando

me viu entrar em sua casa, no outro dia, quase me correu a pontapé.


A sua voz estremeceu um pouco ao proferir a última frase. Aproximei­
-me

dela. Odiava ver a tristeza da minha amiga; a Jenna de antes era o oposto desta

que tinha agora à frente. Onde estava o seu sorriso constante, o brilho nos olhos

e os disparates que andava sempre a dizer? Só tinha vontade de dar um bom

pontapé no rabo do imbecil do Lion.

— Porque não vens jantar comigo e com o Nick esta noite? — propus,

sabendo que ele não se importaria com isso. A Jenna era sua amiga, de certeza

que me iria ajudar a animá­


-la um pouco.

A Jenna olhou para mim e abanou a cabeça, frustrada.

— Continuas a pensar que ele vai jantar contigo?

Respirei fundo antes de lhe responder.

— O Nicholas não me mentiria, Jenna. Não me deixaria plantada num

restaurante.

Ela ponderou a minha resposta durante uns instantes.

— Então está bem... Mas só vou contigo para não ficares sozinha, quando esse

idiota não aparecer, como te prometeu; assim, podemos ir as duas buscá­-los.

Abanei a cabeça, embora não conseguisse evitar uma pontada de insegurança

quando a ouvi dizer aquilo.

Algumas horas depois, já tínhamos tomado banho e estávamos a acabar de nos

arranjar. A Jenna não estava com paciência, e tive de a convencer a preparar­


-se,

porque não íamos propriamente jantar a um McDonald’s. Acabou por vestir uns

calções de couro pretos e uma blusa branca com umas sandálias rasas. Eu escolhi

um vestido preto justo e uns sapatos brancos com um pouco de plataforma.

Deixei o cabelo solto e maquilhei­-me, desta vez realçando os lábios.

A reserva está no meu nome. Esperem por mim, e bebemos um copo.

Mostrei a mensagem à Jenna, que me ignorou enquanto saíamos do meu

quarto.

Íamos demorar mais ou menos uma hora a chegar ao restaurante. A reserva

para três estava no nome do Nick, como ele dissera. O espaço era muito

agradável, com mesas pequenas de estilo francês e uma ilumi­nação ténue e

romântica. Achei graça estar ali com a Jenna, rodeadas de velas, e também tive

dificuldade em imaginar­
-me ali com o Nick. Aquele lugar era demasiado piroso

para ele. A Jenna começou a brincar quando os casais à nossa volta nos

observaram, um pouco incomodados.


— Anda, dá­
-me a mão, Noah. Talvez caiam uns quantos confetes destes

candeeiros por cima das nossas cabeças — disse, aproximando­-se de mim e

insinuando­
-se descaradamente. Ri­-me enquanto bebíamos um copo de vinho

branco, à espera de que o Nick chegasse.

Quando já estávamos há mais de quarenta minutos à espera, deixei de achar

graça às brincadeiras e comecei a sentir um aperto no estômago que me

indispôs.

O barulho do meu telemóvel a vibrar arrancou­-me ao mutismo, e li a

mensagem de sobrolho franzido.

Desculpa, sardas, mas não vou conseguir ir jantar esta noite. Estamos
atulhados em trabalho, e, se não acabo os relatórios que me pediram, ainda
digo adeus à bolsa. Por favor, não fiques zangada. Depois compenso­-te...
Janta com a Jenna, e divirtam­-se esta noite.

Senti um fogo crescer dentro de mim, algo que estava a conter desde os

primeiros vinte minutos de espera. Não podia acreditar que fossem idiotas ao

ponto de pensar que um estratagema destes ia dar resultado.

Levantei os olhos para a Jenna, que, apesar de tudo, me olhava com alguma

pena.

— Onde diabo vão ser essas corridas?


28

Nick

Assim que carreguei em «Enviar», soube que aquilo ia acabar mal. ­Saímos nesse

instante do meu apartamento. Nem tudo naquela situação me agradava, mas

uma parte de mim sentia a adrenalina percorrer todo o meu sistema nervoso,

algo de que, no fundo, sentia falta. Não que a minha vida não estivesse

fantástica nesse momento, estava, mas os combates, as cor­ridas e as loucuras que

costumava fazer proporcionavam­-me uma válvula de escape que era muito

difícil de abandonar. Dizia a mim mesmo que estava a fazer aquilo pelo Lion,

mas também o fazia por mim, porque o desejava; mais do que isso, porque

precisava. Todas as recordações que falar da minha mãe me trouxera, a

despedida da minha irmã no aeroporto, a sensação de que a Noah me estava a

esconder qualquer coisa e saber que não ia ser capaz de curar os seus pesadelos

deixaram­
-me num estado de nervos constante, e também não ajudava nada

saber que toda a gente nos queria ver separados.

Repeti várias vezes que ela estava a salvo com a Jenna, longe de toda aquela

porcaria, de todos, de mim... E em segurança. Não queria que ela estivesse

comigo nessa noite... Havia momentos em que precisava simplesmente de estar

sozinho, e esse era um deles.

Vesti o casaco e subi para a mota. O Lion e o Luca iam levar os carros até ao

local, por isso combinámos encontrar­


-nos lá. Este ano, as corridas não eram no

deserto, mas na cidade. O trajeto não era muito longo, mas as apostas eram

incrivelmente altas; se ganhássemos, ficávamos com uma quantia avultada, e o

Lion bem precisava do dinheiro.

Enquanto passava de mota pelos vários grupos de pessoas, a música estava no

volume máximo. Muitas delas soltaram gritos de viva quando me viram chegar,

e, mal senti que estava de volta ao meu grupo, a adrenalina começou a correr­
-

me pelas veias. Não podia negar que sentira saudades daquilo.

— Olhem só quem aqui está! — gritou o Mike, o primo do Lion,

aproximando­
-se de mim.
Cumprimentei­
-o com um punho enquanto desmontava e deixava o capacete

em cima do banco.

— Então, meu? — disse, observando tudo o que tinha à minha volta. Há

muito tempo que não via aquelas pessoas, e, pouco depois, todas elas me

rodeavam. Brincavam comigo, puxavam­-me o cabelo, bebiam como umas

esponjas, e a música estava tão alta que me fazia doer os ouvidos.

O Lion apareceu uns minutos depois, e todos soltaram vivas para ele também,

quando o viram aparecer com o carro, um Lamborghini que eu alugara para a

ocasião. Tudo isto me fez lembrar as corridas do ano anterior, quando o meu

demónio louro correra contra o Ronnie e lhe ganhara, surpreendendo­-nos a

todos e quase me matando do coração, claro. Jamais esqueceria como estivera

incrível naquela corrida; a Noah sabia correr, e vê­-la em ação deixou­


-me

igualmente excitado e irritado.

Enquanto as pessoas à minha volta dançavam e faziam idiotices à espera da

chegada do resto do pessoal, peguei num cigarro e encostei­-me à mota.

Precisava de saber se a Noah estava bem e se tinha chegado a casa.

Não me respondera à mensagem anterior, e isso não augurava nada de bom.

De certeza que ficara aborrecida comigo, mas estava com a Jenna, por isso não

era a mesma coisa que tê­


-la deixado plantada, sozinha, no meio de um

restaurante romântico... Pois não?

Não lhe podia ligar porque iria ouvir a barulheira que me rodeava, por isso

decidi enviar­
-lhe mais uma mensagem.

Que tal o jantar? Já estás em casa?

Dei uma passa no cigarro e, um minuto depois, vi a sua resposta.

De pijama e deitada.

Suspirei de alívio ao tirar aquele peso de cima dos ombros. Com a Noah em

casa, podia descontrair e concentrar­


-me no que tinha de fazer naquela noite, ou

seja, correr, ganhar e despedir­


-me daquele mundo para sempre.

O Lion fez­
-me sinal, e reunimo­-nos com um tipo chamado Clark, que

concebera o percurso das corridas. Pusemo­-nos em círculo à sua volta, e ele

explicou­
-nos onde começava e terminava o percurso. Desta vez havia quatro

corredores: o prémio era grande porque era preciso pagar para entrar — nada

mais nada menos que cinco mil dólares por pessoa —, mas quem ganhasse
levava tudo, além do que conseguisse com as apostas, claro.

— Se não houver problemas, estarão de volta em dez minutos. Temos as zonas

todas prontas para serem interrompidas, mas a bófia pode aparecer a qualquer

instante, e isso já não controlo — explicou o Clark, olhando para os quatro

participantes. Os outros dois eram bastante bons e pertenciam ao antigo grupo

do Ronnie e do Cruz.

Já o tinha visto, estava junto a uma esquina, rodeado dos seus companheiros

de grupo, todos tão broncos como ele. Odiava aquela gente, mas uma parte de

mim queria vingar­


-se pelo que acontecera na outra noite, queria fazê­-lo pagar,

não em murros, mas com dinheiro, algo que eles tanto valorizavam e desejavam.

— Encontramo­
-nos aqui dentro de dez minutos — disse o Clark. A seguir,

aproximei­
-me do Lion e do irmão.

— Não acho que seja muito complicado ganhar, mas não quero problemas. Se

as coisas começarem a ficar difíceis, abandonamos, perce­beram? — avisou. O

Luca ia como copiloto do Lion. Eu, pelo contrário, preferia ir sozinho porque

detestava ter alguém ao meu lado nas corridas: distraía­-me e não conseguia

dominar completamente o carro. Ambos assentiram, e voltámo­-nos, prontos

para ir buscar os carros.

Foi quando um clarão de luz me chamou a atenção. O meu corpo percebeu o

que era antes de os meus olhos se cravarem no Audi vermelho que acabava de

chegar. O meu coração parou de bater, e, quando as suas pernas compridas

saíram do carro, toda a adrenalina que sentira antes se esvaiu do meu corpo.

— Não me fodam! — exclamou o Lion atrás de mim.

Reparei que os meus pés aceleravam o passo e que a respiração se

descontrolava ao ver a Noah ali, rodeada daquela gente de merda. As minhas

passadas tornaram­
-se cada vez maiores, desejando encurtar a distância que nos

separava e chegar ao pé dela antes de qualquer outra pessoa. Os olhos dela

cravaram­
-se nos meus, ao longe. Cruzou os braços e fulminou­-me com uma

expressão de ódio. Quando cheguei à sua frente, contive­-me para não a enfiar no

carro à força e sair dali em menos de um segundo, mas a mão dela voou tão

depressa que, quando me apercebi, me tinha dado uma bofetada seca na cara.

— És um mentiroso! — gritou, por cima do barulho da música e do alvoroço

das pessoas.

Respirei fundo para me acalmar, mas não consegui.

— Entra no carro — ordenei entre dentes, procurando manter a calma.

— Nem penses, Nicholas! — respondeu, estendendo as mãos à frente do


corpo para me dar um empurrão. Impedi­-a, segurando­-lhe nos pulsos. — É que

nem te passe pela cabeça! Não te passe pela cabeça ordenares­-me o que quer que

seja!

Empurrei­
-a contra o carro e imobilizei­-a com o meu corpo.

— Quero que entres no carro e te vás embora por onde vieste em menos de

três segundos, estás a ouvir? Não quero saber quão zangada estás, porra, não

devias estar aqui. Terei de te recordar do que aconteceu da última vez?

Os olhos dela arderam contra os meus. Estava tão furiosa que tive de controlar

a vontade de a abanar por ser tão teimosa. Não importava que eu estivesse ali, a

mim não me faziam mal; conseguia aguentar qualquer merda, mas a Noah? O

medo de que alguém voltasse a fixar­


-se nela, de que alguém a reconhecesse... Os

meus olhos desviaram­


-se instintivamente para o sítio onde o Cruz estava a

beber com os amigos, e percebi que ainda não a tinham visto.

— Claro que não tens de me recordar de nada! Eu também lá estava,

lembras­
-te? — respondeu, mexendo o corpo para se afastar de mim, mas sem

conseguir. Apesar de se debater e da tensão do momento, apercebi­-me da

maneira como estava vestida... não podia ter arranjado uma roupa mais

chamativa?

— Para com isso. Maldita sejas — ordenei, agarrando­-lhe as mãos com uma

das minhas, enquanto a outra lhe segurava o rosto para que me encarasse. —

Isto não é uma brincadeira, Noah, preciso que te vás embora.

— Se não vieres comigo, não vou a lado nenhum — disse, desafiando­


-me

enquanto empinava o queixo e me obrigava a soltá­-la.

Apoiei os dois braços no carro, a respirar fundo enquanto a Noah ficava

resguardada na espécie de escudo que se formava entre ela e o resto das pessoas.

Voltei o rosto e cheirei a sua pele para me acalmar. Desta vez, as suas mãos

livres decidiram não me tocar e ficaram caídas, inertes ao lado do corpo.

— Não devias estar aqui — sussurrei, aproximando a boca da sua orelha, e

ambos sentimos o calafrio que percorreu a pele dela.

— Nem tu.

Afastei­
-me apenas o suficiente para olhar para o rosto dela. Estava

ligeiramente maquilhada e usava um vestido curto que deixava as pernas à vista

de toda a gente. Arranjara­


-se para mim... E eu deixara­-a plantada para

participar em corridas ilegais.

Respirei fundo várias vezes.

— Desculpa, sardas — pedi, colocando as mãos na sua cintura. O tecido do


raio do vestido era tão fino que parecia tocar­
-lhe a pele. Entre isto e a fúria dela,

estava a morrer para a beijar e saber que me perdoava.

Quando me inclinei para o fazer, virou a cara de lado.

— Não suporto que me mintas — disse.

— Eu sei. Não voltarei a fazê­-lo.

— Não acredito em ti — respondeu.

Respirei fundo mais uma vez, tentando não mostrar como as suas palavras me

magoavam.

— Estas são as últimas corridas em que vou participar. Podes perguntar ao

Lion, ainda esta manhã lho disse. Acabou­-se, Noah... Só o faço agora como

despedida e porque sei que o Lion precisa do dinheiro.

— Não podes continuar a fazer isto por ele, Nicholas — respondeu, mas na

sua voz não havia raiva, e, sim, preocupação. — Sei que gostas dele como se

fosse teu irmão, mas estive a falar com a Jenna, e ele já não é a mesma pessoa; o

facto de continuares a apoiá­


-lo nestas coisas só vai fazer com que tudo piore.

Tinha razão. Eu estava a avançar com a minha vida, enquanto ele cavava a sua

própria sepultura. Ou saíamos daquilo juntos ou ele acabaria por se afundar na

miséria com aqueles tipos, como o Cruz e o seu próprio irmão, o Luca.

Estendi os braços para a Noah e puxei­-a para mim. Nunca deixaria que ela

tivesse medo por mim, nunca mais. Acabava ali.

— Vou fazer tudo para que o Lion abandone isto comigo — assegurei e

senti­
-me pleno de felicidade quando a Noah encostou o rosto ao meu. Sabia que

esse gesto de carinho queria dizer que me perdoava.

Subi a mão pelas costas dela e dei­-lhe um beijo carinhoso no rosto,

acariciando­
-a cuidadosamente com a ponta do nariz desde a maçã do rosto ao

lóbulo da orelha.

— Vai para casa, por favor; assim que isto acabar, também vou.

A Noah ficou calada, e interpretei o seu silêncio como concordância.

Voltei a cabeça e vi que os três corredores já estavam a falar com o Clark.

— Tenho de ir.

Ela assentiu, dei­


-lhe um beijo nos lábios e, antes de ir ter com os rapazes,

esperei até a ver com a Jenna junto ao Audi, prontas para se irem embora. Só

depois fui ter com eles.

— Boa sorte a todos e vemo­


-nos na meta — disse ao Lion, repetindo o que ele

me dizia sempre quando era eu a correr sozinho.

Vi o sorriso no seu rosto, embora, antes de ele voltar para o carro, também
tenha visto qualquer coisa que me fez ter um mau pressentimento.

Fui até ao lugar onde tinha o Lamborghini estacionado, entrei e liguei o motor.

O Lion entrou no carro que o Luca trouxe e conduziu até à partida. Uma

rapariga vestida com a parte de cima de um biquíni e uns calções minúsculos já

estava no meio da pista com duas bandeirolas levantadas. A cidade estava

iluminada atrás dela, à espera de nos ver passar pelas suas ruas, cortadas a mais

de cento e noventa quilómetros por hora. Tudo tinha de ser feito depressa e

bem, senão isto podia acabar muito mal...

Foi então que, no último minuto, quando já começara a contagem decrescente

e as minhas mãos apertavam o volante, a porta do carro se abriu e a Noah

entrou para o lugar do copiloto, sentando­-se ao meu lado.

— O que diabo fazes aqui?

O disparo que dava início à corrida soou bem alto, e as bandeirolas desceram:

a corrida começara.
29

Noah

Quando a Jenna me disse como iam ser as corridas, senti­-me invadida por um

medo horrível, por isso, quando vi o carro do Nick em fila, preparado para sair,

desatei a correr e, sem pensar nas consequências, entrei para o lugar do copiloto.

O Nick fitou­
-me, primeiro surpreendido e depois enraivecido. Tive tanto medo

que desviei o olhar para a alavanca das mudanças e meti a primeira com rapidez,

obrigando­
-o a concentrar­
-se no que tinha de fazer.

— Vamos, acelera, Nicholas!

Ainda bem que os seus reflexos eram incríveis, porque nem sei como fez para

arrancar e pôr­
-se ao lado dos outros carros, que tinham uma pequena vantagem

sobre nós.

— Vou­
-te matar, estás a ouvir? — gritou, metendo a quarta e pondo­-se no

meio da estrada. Dali a pouco estaríamos na cidade, e sabia que tinha de me

calar e de o deixar concentrar­


-se.

Os olhos desviaram­
-se para o meu corpo durante um segundo quase

impercetível.

— Põe o cinto!

Dei um salto no banco e fiz o que me pedia.

Deus do céu, aquilo ia sair­


-me tão caro, sabia­-o bem, mas precisava de estar

ali com ele: aquela corrida não era como aquela em que eu participara no ano

passado. Não importava quantas vezes lhe tivesse pedido que não o fizesse. O

Nicholas tomava as suas próprias decisões, e às vezes deixava­-me fora delas. Esta

decisão fora minha: se ele corria, eu também corria; se ele se punha em perigo,

eu fazia o mesmo e não queria saber do que ele teria para me dizer. Quando

chegasse a hora, arcaria com as consequências.

— Eu disse­
-te para te ires embora! — vociferou, dando um murro no volante.

Estava furioso, mas eu também estava, não me ia deixar ­intimidar por ele. As

coisas não eram assim, e queria mostrar­


-lhe que, se ele continuasse naquele

mundo, eu estaria ao seu lado e, se isto ajudasse a que o deixasse para trás, então
valia a pena correr o risco.

— E eu decidi que não ia — respondi, fixando o olhar na rua. A minha

ousadia fê-lo cerrar o maxilar, fazendo inchar as veias do pescoço de uma forma

assustadora, por isso agarrei­


-me involuntariamente ao assento.

Chegámos à primeira curva, e os meus próprios pés mexeram-se como se

estivessem nos pedais do carro. Gostava tanto de correr que o meu corpo era

adrenalina pura, e naquele momento queria tomar o lugar do Nick, queria

pegar no volante e mostrar a todos como era boa, embora da última vez não

pudesse ter­
-me saído pior, mesmo que tivesse ganhado a corrida.

Apesar de o Nick ser muito bom, neste momento só via uma pessoa que não

compreendia o mal que aquilo nos podia causar. Não impor­tava que outras

coisas acontecessem. O Nicholas continuava a ter aquela tendência para se

envolver em coisas más e arrastava­-me com ele. Eu tinha deixado as corridas e

tudo o que me fazia lembrar o meu pai... Custou­-me muito, e agora estava ali

novamente, a odiar­
-me por gostar tanto de uma coisa que tinha conseguido

arruinar a minha família.

A minha cabeça começou a desligar­


-se dos problemas e a concentrar­
-se

unicamente nos carros que tínhamos pela frente, pela frente e não atrás:

estávamos a perder.

— Tens de acelerar, Nicholas.

A veia no seu pescoço inchou ainda mais, e mordi o lábio de ner­


vosismo.

— Não posso acreditar que vou a cento e sessenta contigo aqui no carro.

«Por amor de Deus, isto é uma corrida, não um passeio no parque!»

— Mas este carro consegue andar a duzentos, por isso prego a fundo, senão

vamos perder.

— Cala­
-te! — ordenou, voltando a virar o rosto para mim.

Fechei a boca e deixei­


-o estar. Sentia­-me tão nervosa que me tremiam as mãos.

Observei­
-o em silêncio enquanto o via manusear a alavanca das mudanças,

acelerar quase até chegar aos duzentos quilómetros por hora e assim conseguir

alcançar os outros. O Lion ia na dianteira, e os outros dois estavam mesmo à

nossa frente. A próxima curva era a única oportunidade que teria de os

ultrapassar, e rezei para que a fizesse bem. Se perdêssemos, não só me mataria

como ainda me culparia pela derrota.

Foi então que as coisas mudaram e que vi, horrorizada, aparecerem mais carros

à frente de um dos adversários: o último troço do percurso não devia estar

cortado, por isso íamos enfiar­


-nos numa estrada aberta ao trânsito. Não gostei
nada daquilo, não queria que ninguém saísse ferido de uma corrida ilegal... Não

devia acontecer.

— Merda! — resmungou o Nick entre dentes, enquanto fazia outra curva e

evitava dois carros que iam a setenta quilómetros por hora. Com uma manobra

espetacular, passou o carro que ia em segundo lugar. Não pude evitar

emocionar­
-me.

O Lion era o único que estava à sua frente e, apesar de o segundo lugar

também ter um prémio em dinheiro, a minha veia competitiva queria ganhar.

O Nicholas fez uma curva de forma incrível, há que dizê­-lo, e tive de me

agarrar ao tablier para não ir contra a porta. Ficámos mesmo atrás do Lion.

Estávamos perto, mas não o suficiente... Dei um grito quando o Nick entrou na

faixa contrária para poder ultrapassar um camião que nos buzinou. Nem eu

teria sido tão ousada, mas serviu para diminuirmos a distância. Se nos

adiantássemos no próximo cruzamento, poderíamos chegar em primeiro lugar.

— Vamos, Nick! Temos de ganhar! — gritei, sem me conseguir ­conter.

Os olhos dele desviaram­


-se para mim, furiosos, e, naquele instante, quando

nos faltavam poucos metros para alcançar o carro do Lion e do irmão e para o

ultrapassar na curva, o ponteiro do acelerador começou a descer dos duzentos e

vinte.

— O que estás a fazer? — gritei, incrédula, virando o corpo todo para ele e

observando, horrorizada, o Lion recuperar os metros que c


­ onquistáramos.

— Estou a dar­
-te uma lição — respondeu ele, pisando novamente o

acelerador, mas não nos serviu de nada: o Lion acabara de cruzar a meta.

Respirei fundo, muito indignada.

— Não posso acreditar nisto... Podíamos ter ganhado!

— Este dinheiro vai todo para o Lion. Só tínhamos de conseguir ficar em

primeiro e segundo lugar, não importa a ordem — disse ele ao cruzar a meta.

Parou o carro com uma travagem, e preparei­-me para o que aí vinha, mas de

repente umas luzes chamaram a sua atenção, e virou­-se para olhar pelo vidro

traseiro. O som das sirenes ecoou no ar, e o rosto do Nick transfigurou­-se.

— Não me lixem! — exclamou, acelerando outra vez, enquanto, infringindo

todas as regras de trânsito, fazia uma curva e entrava na faixa que estava mesmo

ao nosso lado. O ruído das buzinas dos carros e os gritos dos transeuntes

assustaram­
-me, e só depois percebi o que estava a acontecer.

O telemóvel do Nick começou a tocar.

— Atende — ordenou­
-me, concentrado na estrada —, está no meu bolso
esquerdo.

Inclinei­
-me sobre ele e meti a mão no bolso das calças de ganga, até pegar no

telemóvel.

— Põe em alta­
-voz — grunhiu.

Fiz o que me dizia, e a voz de alguém que não conhecia ecoou dentro do carro.

— Meus, a bófia vem aí! Apanharam­-nos, isto é uma loucura!

— Não me fodas, Clark. Disseste que tinhas tudo controlado!

— Eu sei. Não faço ideia do que aconteceu. Alguém deu com a língua nos

dentes. Tens de sair da estrada agora!

— Onde está a minha mota?

Do outro lado da linha, ouviam­-se ruídos de todo o tipo: ao que ­parecia,

tinham­
-nos apanhado no descampado, e agora iam naquela ­direção. Achei que

tínhamos alguma vantagem, mas estava tão assustada que nem era capaz de

pensar com clareza. Agora via como tudo aquilo era perigoso e também me

lembrei de que o Nicholas era um idiota por ter vindo. Devia ter feito o que lhe

pedi. Devíamos ter ido embora, os dois.

— O Toni levou­
-a para o sítio do costume. Já sabes o que tens de fazer. Se

fores rápido, acho que não te apanham. — O Nicholas pegou no telemóvel que

estava em cima da minha perna, desligou a chamada e atirou­


-o com maus

modos para cima do tablier.

Ficámos em silêncio.

— Nicholas... Não nos podem apanhar — comentei, aterrorizada; se fossemos

apanhados, as consequências seriam terríveis. Para começo de conversa, eu já

não podia ir para a universidade, e, para ele, que já tinha antecedentes, seria

ainda pior. Se o prendessem, nem o pai seria capaz de o tirar desta alhada.

— Ninguém nos vai apanhar — assegurou, em voz baixa. Acelerou e meteu­


-

se por umas ruas que eu não conhecia. Parecia muito seguro do sítio para onde

se dirigia, e eu limitei­
-me a rezar para que houvesse alguma saída. Os carros da

polícia vinham atrás de nós. Sabia­-o porque ouvi o ruído das sirenes, mas ainda

estavam demasiado longe para verem a matrícula do carro.

Continuámos até o Nick virar para uma rua secundária. Não demorámos

muito a chegar a uma rua cheia de pavilhões industriais e filas de garagens

numeradas; ele virou para uma rua de terra enlameada e, ao chegar à frente do

número 120, tirou qualquer coisa do porta­-luvas. Quando a porta se abriu,

meteu o carro lá dentro; a mota que tinha visto na garagem de nossa casa estava

ali.
— Sai do carro — ordenou, e nem me passou pela cabeça desobe­
decer­
-lhe.

Ao sair, vi que havia ali algumas caixas e móveis velhos: devia ser o armazém

dos monos dos Leisters, e o Nick devia usá-lo em ocasiões como aquela.

Pegou numa lona que estava em cima de uma mesa e tapou rapidamente o

carro. Levantou­
-se uma nuvem de pó que quase não me deixava ver, e comecei a

tossir, afastando­
-me do carro. Percebi então que ele estava atrás de mim;

agarrou­
-me pela cintura, e o que senti a seguir foram as minhas costas a chocar

com o carro. Segurou­


-me o rosto com uma das mãos.

— Agora vais fazer tudo o que eu disser, Noah. Estou a falar muito a sério —

largou­
-me, destilando raiva por todos os poros da pele. — Se não fosse a merda

do teu trauma, deixava­


-te aqui sozinha para aprenderes de uma vez por todas a

não te meter na porcaria dos meus assuntos.

Tive de pestanejar várias vezes, surpreendida pela dureza das suas palavras e

pela vontade que tinha de chorar. Por mais razão que tivesse, o responsável por

estarmos naquela situação era ele; ele é que decidira voltar àquele mundo de

merda. Engoli o orgulho e assenti, porque naquele momento o mais importante

era não nos apanharem.

Puxou­
-me até chegarmos à mota. Só havia um capacete, e o Nick apressou­
-se

a pôr­
-mo na cabeça. Os seus olhos demoraram­-se um instante a mais sobre os

meus, e não soube interpretar o que lhe ia na cabeça. Subiu para a mota, e eu

montei­
-me atrás. Inclinei­
-me contra o seu peito e abracei­-lhe o corpo com as

mãos. De seguida, saímos para a noite fria.

A minha fúria aumentava a cada minuto que passávamos na estrada. Não

podia crer que estava numa mota, a fugir da polícia e a aguentar com toda a

raiva do Nick quando fora ele que nos pusera naquela situação. Senti que as

minhas mãos se retesavam sobre o estômago firme dele e que o seu corpo reagia

de imediato. Uma das suas mãos voou em direção às minhas a apertou­-as com

força.

«O que raio significava aquilo?»

Dez minutos depois, vi que dobrava uma esquina e parava numa bomba de

gasolina.

— Não te mexas — ordenou­-me sem sequer olhar para mim, enquanto

desmontava e se afastava para pagar a gasolina.

Aproveitei a ocasião: desmontei de um salto, tirei o capacete e afastei­-me o

máximo possível. Não queria nem olhar para ele.


— Noah! — gritou­
-me. Ouvi­-o deixar o que estava a fazer e vir atrás de mim;

vi­
-o aproximar­
-se e desatei a correr. Não queria tê­-lo à frente, não queria que

me tocasse nem que me gritasse, só tinha vontade de me afastar dele o mais

possível.

Naquela noite, fora ele a ultrapassar os limites, não eu.

Corri até chegar à parte de trás de um edifício em construção. Puxei a

vedação, que estava entreaberta, e entrei. O Nicholas não conseguia passar por

ali, nem pensar, por isso parei quando o ouvi travar do outro lado e voltei­
-me

para ver os olhos dele fitarem­


-me, descontrolados.

— Sai daí.

— Não.

Agarrou a vedação e, quando levantou a cabeça, percebi que estava mais

zangado do que alguma vez o vira durante todo o ano em que namoráramos.

— Achas que não consigo saltar a merda desta vedação? — desafiou­-me,

claramente a pensar como haveria de o fazer.

— E o que queres fazer depois de saltares, Nicholas? — respondi, levantando

a voz e sentindo que o meu corpo começava a tremer de frio. Não só a

adrenalina começava a desaparecer como as palavras que o Nicholas me dissera

ecoavam agora na minha cabeça, como se tivessem ficado presas em modo de

repetição.

Parou por instantes, talvez porque não sabia o que fazer a seguir.

Levei as mãos aos braços para tentar resguardar­


-me do frio. Queria ir para

casa, tinha vontade de me ir embora e não me apetecia que fosse ele a levar­
-me.

— Porra, Noah! — gritou­


-me, explodindo finalmente. — Disse­-te para te

ires embora! Nunca fazes o que te digo! Podiam ter­


-nos apanhado hoje,

podíamos estar neste momento na merda de uma cela, e eu estaria a

enlouquecer ao ver o que te tinha feito!

— Alguma vez te passou pela cabeça que não és a única pessoa que faz parte

desta relação? Que tudo isto funciona nos dois sentidos? Que eu também me

preocupo contigo e que estou farta de que me ­mintas, de que me deixes fora das

tuas coisas?

— Eu sei cuidar de mim mesmo, ao contrário de ti, que não fazes a menor

ideia!

Abri os olhos, incapaz de acreditar no que estava a ouvir.

— Eu não sei cuidar de mim? — gritei, enquanto me aproximava da vedação

para ficar em frente a ele. — E tu sabes cuidar de alguém? É que eu cuidei de


mim e da minha mãe desde que tinha cinco anos! Tu, pelo contrário, a única

coisa que conseguiste fazer foi embebedares­-te, drogares­-te e meteres­-te em

merdas ilegais até a tua vida se resolver!

O Nicholas recuou, obviamente surpreendido pelos meus gritos, mas eu

estava fora de mim: naquela noite receara por ele, pelos dois, porque ele

arriscara tudo, tudo o que tínhamos, tudo o que nunca sonhei poder ter.

— Só estou a tentar proteger­


-te! Mas tu não me deixas — respondeu,

claramente magoado.

Levei as mãos à cabeça.

— Talvez tenha de me proteger, sim, mas de ti... — murmurei entre

lágrimas, angustiada por finalmente dizer aquilo que guardava dentro de mim

há tantos meses. — Estás sempre a dizer que vais mudar, que vais deixar estas

coisas todas para trás... Mas não o fazes, Nicholas!

Ele retribuiu­
-me o olhar, incrédulo.

— Pelo menos tento. Deixei tudo por ti, tentei ser melhor, mas tu, pelo

contrário, pões­
-te em perigo e não confias em mim. Há coisas que não me

contas. Achas que não sei?

— Estás a referir­
-te à «merda do meu trauma»?

O Nicholas suspirou, fechou os olhos e, quando voltou a fitar­


-me, percebi que

tinha acabado de transpor um limite importante.

— Não quis dizer isso.

Ri­
-me sem vontade.

— Mas é o que pensas — disse simplesmente, enquanto lhe virava as costas e

me afastava para o extremo oposto.

— Noah, sai daí, por favor — implorou, enquanto todos os meus medos se

atropelavam no peito e as lágrimas me subiam aos olhos, sem poder fazer nada

para as impedir. — Porra!

Sentei­
-me no chão e abracei as pernas com as mãos. Não queria que ele me

visse a chorar, por isso enterrei a cabeça nos braços.

— Noah! — gritou, desesperado, e ouvi a vedação chiar quando ele lhe deu

um pontapé. — Sai daí!

Levantei a cabeça e fiquei ali parada, a olhar para ele. Ele parecia desesperado,

mas eu também estava, porque tinha muitas coisas guar­dadas dentro de mim e

não tinha segurança suficiente para saber se, quando ele as soubesse, me

continuaria a amar da mesma forma. Tudo o que fazia só conseguia fechar­


-me

mais em mim mesma.


— Agora não quero estar perto de ti! — gritei com todas as forças. — Fazes­
-

me mal!

A dor toldou o seu rosto, e os braços puxaram a vedação com força, tentando

soltá­
-la. Pus­
-me de pé. Era uma loucura.

— E tu a mim, porra! — respondeu, dando um pontapé na vedação, vendo

que não conseguia soltá­


-la. — Dei tudo o que tinha para estar contigo,

absolutamente tudo, abri­


-me a ti... E agora vens dizer­
-me que te faço mal?

Fiquei calada. Não ia explicar­


-lhe por que motivo me fazia mal. Se ele não era

capaz de perceber sozinho, a nossa relação nunca iria a lado nenhum.

— Então, vai­
-te embora! — respondi, furiosa. Peguei num ladrilho que

estava por ali solto e atirei­


-o contra a vedação com toda a minha força. Nem

chegou a bater nela. — Se não somos capazes de fazer com que isto funcione,

vai­
-te embora, Nicholas!

Virou­
-me as costas e praguejou em voz alta. Depois de alguns minutos em

silêncio, voltou a olhar para mim, e o seu rosto era outro.

— Ouve, desculpa, a sério. Fui um imbecil, mas acobardei­-me ao ver­


-te nas

corridas. Estava furioso, continuo a estar, mas também sei que, se não tivesse

ido, não estaríamos agora nesta situação.

— E como achas que me senti quando te vi ali, Nicholas?

— Eu sei, está bem? Entendo... Mas, por favor, não aguento estar longe de ti,

preciso que saias daí.

Respirei fundo e limpei as lágrimas com o braço.

— Não resolvemos nada, sabes isso, não sabes? — disse, quase num

murmúrio.

Ficou calado, a olhar simplesmente para mim, e este olhar bastou para os

meus pés decidirem por mim. Aproximei­-me do sítio onde ele estava e

esgueirei­
-me pelo buraco da vedação. A mão dele puxou­-me, e uns segundos

depois fui rodeada pelos seus braços, que me aper­taram contra o corpo como se

lhe doesse fisicamente não me ter colada a si. Respirei o aroma do corpo dele, e

os batimentos do meu coração acalmaram­-se quase de imediato. Como podia ser

ele a minha doença e ao mesmo tempo a minha cura?

— Deixaste­
-me plantada — acusei, magoada. Não conseguia rechaçar a

desilusão que sentia.

— Queria que ficasses o mais longe possível de mim — respondeu.

— Disseste­
-me uma vez que não fomos feitos para estarmos sepa­rados —

sussurrei, com a voz trémula.


— E não fomos. Fui um idiota. Não vale a pena. As corridas não valem a pena

se o risco for perder­


-te.

Ia responder­
-lhe, mas naquele instante alguma coisa começou a vibrar entre

nós. O Nick tirou o telemóvel do bolso e afastámo­-nos alguns centímetros.

Esperei enquanto ele escutava atentamente e fiquei preocupada quando

franziu o sobrolho.

— Tem calma, Lion — disse, praguejando entre dentes. — Sim... Sim,

consigo tirá­
-la de lá, não te preocupes. Estou aí em menos de vinte minutos.

Senti uma pontada de medo quando o Nick guardou o telemóvel no bolso de

trás e olhou para mim.

— Prenderam a Jenna.
30

Nick

Quando chegámos à esquadra de North Hollywood, o Luca e o Lion estavam

encostados ao carro, o mais velho a fumar, e o mais novo com a cabeça entre as

mãos. Quando me viu, o olhar do Lion pareceu iluminar­


-se, embora me fizesse

pena vê­
-lo assim.

— O que aconteceu? — perguntou a Noah, aproximando­-se do Lion

enquanto tirava o capacete, que lhe ficava demasiado largo. Quando me juntei a

ela, segurei no capacete e enfiei­-o no braço. — Como a apanharam?­

— A polícia chegou primeiro ao descampado, o que nos faz pensar que

alguém deu com a língua nos dentes, obviamente — explicou o Lion e

acercou­
-se de mim. — Se apanhar o gajo que fez isto, juro­-te que o mato!

— Tem calma — disse­


-lhe, tentando pensar no que podíamos fazer. Podia

ligar ao meu pai, mas, caramba, se ele soubesse o que tinha acontecido naquela

noite, nem conseguia imaginar o que faria. Os meus olhos pousaram

momentaneamente na Noah, e pensei como a mãe dela iria reagir se soubesse o

que tínhamos feito.

— Onde está a Jenna? Está presa? — continuou a perguntar a Noah, com a

clara intenção de entrar na esquadra. Dei um passo em frente, apressando­-me a

impedi­
-la.

— Nem sonhes, Noah, não quero que ponhas um pé ali dentro. Fica aqui e

espera com o Lion enquanto eu faço umas chamadas.

A Noah e o Lion olharam fixamente para mim e, para variar, decidiram dar­
-

me ouvidos. Procurei nos contactos do telemóvel e ocorreu­-me de imediato um

nome. Era a última pessoa a quem pensaria pedir ajuda, mas, já que tínhamos

chegado a este extremo... O telemóvel tocou durante aquilo que me pareceram

horas, até que atenderam.

— Por que diabo estás a ligar­


-me às quatro da manhã, Leister? — perguntou

uma voz sonolenta do outro lado da linha.

Respirei fundo e engoli o orgulho.


— Sophia, preciso da tua ajuda.

Meia hora depois, continuávamos à espera de que a minha ditosa colega de

trabalho decidisse aparecer. Recorrera a ela porque sabia que tinha contactos

naquela zona. O pai vivia numa das grandes urbani­zações próximas, e, além

disso, naquele momento era ela quem estava a ficar com os casos pro bono, e já

estava habituada a resolver questões em que os menores de idade infringiam a

lei. Se bem me lembrava, ainda na semana anterior tinha livrado um

adolescente de ir para a prisão por posse de droga e ainda conseguira que não

incluíssem os antecedentes no seu registo criminal. A Sophia Aiken podia ser

intragável, mas sabia o que fazia.

Um carro todo-o-terreno branco apareceu na esquina, e percebi que era ela.

Pedi à Noah e aos meus amigos que ficassem no carro e me deixassem resolver

aquilo. Não sabia com que humor a Sophia iria aparecer e preferia enfrentá­
-la

sozinho. Pelo pouco que o Lion me contara, tudo acontecera muito depressa: a

Jenna não teve tempo sequer de entrar no carro, apanharam­-na enquanto toda a

gente fugia. Não fora a única a ser detida, mas agora não podia preocupar­
-me

com mais ninguém, toda a gente sabia o que arriscava ao assistir a corridas

ilegais, mas agora a prioridade era a minha amiga.

Por sorte, tinham levado o carro da Noah, e o Clark assegurou­-me de que no

dia seguinte o levariam a casa do meu pai. Era só o que me faltava, a polícia ter

anotado a matrícula do carro da Noah e ela acabar metida numa alhada.

Afastei­
-me do carro do Lion e aproximei­-me da Sophia.

— Ficas a dever­
-me um favor tão grande que não viverás anos suficientes para

me compensares — disse ao sair do carro, impecavelmente vestida, ainda que

trouxesse o cabelo apanhado num rabo de cavalo um pouco desalinhado.

Fiz um esforço enorme para não revirar os olhos.

— Obrigado por teres vindo — disse, fazendo a minha melhor cara. Ela

parecia estar a gostar da situação, porque não demorou nem um instante a

sorrir­
-me com superioridade.

— Não acredito que acabaste de me agradecer — comentou, olhando para

mim com um ar divertido e perverso. — Acho que gostava de o ouvir outra vez.

Dei um passo na direção dela.

— Se tirares a minha amiga dali, agradeço­-te ainda mais.

Presumo que a minha expressão fosse espetacular, porque os olhos dela

desviaram­
-se dos meus e dirigiram­-se ao carro do Lion, onde estavam os três,
incluindo o Luca, à espera com nervosismo.

— Não sei em que sarilhos estás metido, Leister, mas juro­-te que, a cada dia

que passa, me sinto mais intrigada.

Os olhos dela fitaram­


-me com curiosidade, e tive de me socorrer de todas as

minhas forças para não a mandar à merda.

— Podes safar a minha amiga ou não?

— Como se chama ela, posso saber?

Duvidei, por instantes.

— Jenna Tavish.

Os olhos dela arregalaram­


-se.

— Tavish? Da Empresa Petrolífera Tavish? Esses Tavish?

Assenti e fiquei nervoso.

— Estás a gozar comigo, não estás? — perguntou, irritada, embora já

desconfiasse de que o ia fazer. — Chamas­-me a mim, uma estagiária, para tirar

a filha de um dos principais magnatas do petróleo da cadeia?

— Não queremos que ninguém saiba disto. Temos de ser discretos. Além

disso, ela não fez nada, só estava no lugar errado, na hora errada — respondi,

rezando para aquilo não acabar mal.

A Sophia soltou uma gargalhada enquanto procurava qualquer coisa na mala.

— Se cobrasse um dólar de cada vez que um delinquente me diz isso...

— A minha namorada não é nenhuma delinquente, estás a ouvir? —

protestou o Lion, aparecendo atrás de mim.

Voltei­
-me para ele e pousei uma mão no seu peito.

— Tem calma, Lion. A Sophia veio ajudar­


-nos, não é verdade, Soph? — disse,

tentando acalmar os ânimos.

Ela olhou para nós com um sorriso condescendente, primeiro dirigido a mim,

depois ao Lion, e, mal vi o olhar de superioridade que nos lançou, percebi o que

estava a pensar.

— Eu ajudo­
-vos — anunciou, dirigindo­-se aos dois —, mas não ­voltas a

chamar­
-me Soph, porque, aí sim, vamos ter um problema.

Ri­
-me ao ver a seriedade com que o disse. Bolas, as mulheres das novas

gerações vinham com as armas bem carregadas. A minha namorada que o

dissesse!

A Sophia ordenou­
-nos que ficássemos ali fora enquanto ela fazia uma chamada

após outra. Depois do que me pareceu uma eternidade, entrou na esquadra, e

todos ficámos na rua, à espera de que ela fizesse o que era necessário.
A Noah continuava no carro, e aproveitei para ir até à janela. Parecia esgotada

e suja, depois de ter estado sentada no chão, rodeada de pó.

— Estás bem, sardas? — perguntei, vendo o Luca roncar no banco da frente,

sem se importar minimamente com o que estava a acontecer à sua volta.

A Noah assentiu em silêncio, sem olhar para mim, mas não pude fazer grande

coisa a esse respeito, porque a seguir a porta da esquadra abriu­-se, e a Jenna

saiu, toda suja, despenteada e com um pequeno golpe na maçã do rosto direita.

A Noah abriu a porta e desatou a correr na sua direção.

A Sophia vinha atrás dela, com um sorriso satisfeito, fitando­-me apenas a

mim. Sorri­
-lhe ao longe e fiquei a observar enquanto entrava no carro e se ia

embora pelo mesmo caminho por onde viera. Afinal, talvez não fosse assim tão

intragável.

A minha tranquilidade não durou muito, porque o barulho de uma bofetada

sonora rasgou o silêncio da noite. Quando me virei, o Lion tinha a mão

encostada ao rosto e olhava para a Jenna, desesperado.

«Merda!»

— Não quero voltar a ver­


-te! Estás a ouvir? — gritou­-lhe ela, enquanto as

lágrimas lhe caíam pelo rosto.

A Noah procurou o meu olhar, como se quisesse pedir­


-me ajuda, mas ficámos

ambos boquiabertos, à espera da reação do Lion.

— Desculpa, Jenna, ouve...

— Não! — gritou ela, dando um passo atrás. — É que nem te atrevas a pedir

desculpa! Juraste­
-me que tinhas acabado com estas coisas. Estive o verão inteiro

à espera de que mudasses, de que, por uma vez na vida, fizesses o que era mais

acertado! E estou farta!

Aproximei­
-me deles sem saber muito bem o que fazer. Entendia o ponto de

vista da Jenna, mas também o do Lion.

— Fui uma estúpida — disse ela, a soluçar — fizeste­-me sentir culpada por

ser quem sou, por ter o que tenho; tentei ficar sempre ao teu lado, fazer tudo o

que estivesse ao meu alcance para continuarmos juntos, e a única coisa que

conseguiste foi fazer­


-me sentir que não estou à tua altura, quando a verdade é

exatamente o contrário!

O Lion parecia estar desesperado e perdido; quando se aproximou dela e viu

que a Jenna voltava a afastar­


-se, vi a mágoa refletida no seu rosto.

— Jenna, só estou a tentar dar­


-te o melhor que posso... estou a juntar

dinheiro.
Esta foi a gota de água para a Jenna, que deu um passo em frente e o

empurrou com todas as forças, enquanto as lágrimas continuavam a cair.

— Eu não quero saber do dinheiro para nada! Estava apaixonada por ti! Não

entendes? Por ti, não pelo estúpido do teu dinheiro!

O Lion agarrou­
-lhe os braços com força enquanto ela lhe batia no peito.

— Deixaste que me prendessem... — acusou­-o, destroçada. — Dantes nunca

me deixavas sozinha, eu era a pessoa mais importante para ti...

— E continuas a ser, Jenna, eu amo­-te — declarou o Lion, tentando fazer com

que olhasse para ele.

A Jenna abanou a cabeça e, quando levantou o rosto de forma que todos a

víssemos, percebi que não ia sair nada de bom da sua boca.

— Tu não fazes ideia do que é amar alguém. — Os braços soltaram­-se do

Lion, e deu três passos atrás. — Não vou deixar que me arrastes contigo.

— Jenna... — A voz do Lion soou quebrada, e vi claramente que seria o

último prego no caixão do meu amigo.

A Jenna procurou a Noah com o olhar.

— Quero ir para casa.

Ao meu lado, a Noah avançou para lhe dar um abraço. Aproximei­-me do

Lion.

— Meu — disse­
-lhe, pousando uma mão no seu ombro; aparentava estar

completamente atordoado. — Eu levo­-as a casa, não te preocupes, está bem?

O Lion olhou para mim sem me ver, e a Noah acompanhou a Jenna até ao

banco de trás do carro.

— Toma as chaves da mota. — Lancei­-as ao Luca, que tinha observado a cena

inteira como mero espectador, embora o seu olhar não se desviasse um segundo

do rosto do irmão. Apanhou as chaves no ar. — Olha pelo teu irmão esta noite

— acrescentei, entrando para o lugar do condutor.

Gostava de ter ficado com o Lion, mas sabia que naquele momento o melhor

que podia fazer era pôr as duas raparigas que tinha no banco de trás a salvo e

rezar para que, no dia seguinte, ambas encarassem as coisas de forma diferente.

A Noah decidiu ficar a dormir com a Jenna, e, quando lhe fui dar um beijo de

despedida, reparei que se mostrou fria e distante. O que acontecera fora um

aviso claro do que podia suceder se não tivéssemos cuidado, e tinha a certeza de

que a Noah estava a pensar a mesma coisa.

Temi que, naquela noite, tanto eu como o meu amigo tivéssemos ultrapassado

um limite que nem sequer sabíamos existir.


Passei os dois dias seguintes com o Lion. Estava num estado que fazia pena,

bêbedo e sujo, enterrado no sofá de sua casa. Além disso, a desarrumação e a

sujidade acumuladas faziam aquela casinha parecer uma pocilga. O Luca parecia

estar perfeitamente à vontade na sua antiga casa e aproveitava o estado

deplorável do irmão para fazer tudo o que lhe dava na gana. Apesar de ter

passado quatro anos na prisão, continuava a ter todos os maus hábitos de antes,

e eu nem queria pensar na influência que ele podia exercer sobre o Lion.

— Devias tomar um duche, meu, estás a tresandar — disse ao Lion enquanto

punha num saco todo o lixo que havia espalhado sobre o sofá e a mesa imunda

no canto da sala. Estava a ficar irritado com aquilo. Não tinha nada que andar a

limpar esta merda, mas engoli o azedume e ajudei­


-os.

— Deixa­
-me em paz, foda­
-se, só me apetece embebedar­
-me e perder a

consciência.

Larguei o saco, exasperado.

— Ouve, Lion, já se passaram dois malditos dias, está bem? Não te estou a

dizer para te esqueceres do que aconteceu, mas já está na hora de levantares o

rabo do sofá, caraças.

— A Jenna deve estar destroçada, e a culpa é toda minha, tudo porque não

sou suficientemente bom para ela... Maldito dinheiro e malditas classes

sociais...

— É preciso seres um idiota para andares enrolado com a filha de um

magnata... — Foi esta a fantástica contribuição do Luca para a conversa. O Lion

atirou­
-lhe com uma lata de cerveja vazia à cabeça.

Tinha de fazer alguma coisa para aqueles dois idiotas voltarem a ficar juntos:

por muito lixado que o Lion estivesse, ele não era a mesma pessoa se não tivesse

a Jenna.

— Se achas que a Jenna está caída na cama a chorar por ti, estás muito

enganado — disse, lavando as mãos no lava­-louça. Isto chamou a sua atenção, e

o Lion ergueu­
-se no sofá para olhar para mim. — Ela está na praia com a Noah.

Vão sair pela última vez com os colegas de turma, antes de irem todos para a

universidade.

— Estão com os betinhos daquele maldito colégio de imbecis?

Levantei as sobrancelhas, olhando para ele com condescendência.

— Não olhes assim para mim! São todos uns idiotas mimados. Tu és o único

que se safa. — Deu um salto do sofá e foi para a casa de banho. — Dá­-me cinco

minutos.
Deixei o saco do lixo no chão e sorri, divertido, para o Luca. Pelo menos

consegui que ele se levantasse do sofá. Já valia a pena por me ter chamado

betinho idiota e imbecil mimado.

Tenho de confessar que também não achei muita graça ao facto de a Noah

estar na praia a beber com os colegas de turma. E, por mais que lhe tivesse

prometido que a deixava em paz, uma parte de mim usara a Jenna e o Lion

como pretexto para ir ver se estava tudo bem com ela... Se estava tudo bem

connosco, para ser mais exato. Desde a noite da confusão que não nos víamos, e

não sabia bem como estavam as coisas entre nós. Precisava de a ver e de falar

com ela.

A pequena reunião era na casa de uma das colegas da Noah, Elena qualquer

coisa, que tinha a sua própria praia privada... enfim, como toda a gente ali.

Estacionei à porta da casa dela e vi que havia ali carros a mais para que aquilo

fosse só uma pequena reunião. Quando entrámos, estavam ali mais de cem

pessoas, quase todas de fato de banho. A música ecoava muito alta por todas as

salas. O Lion parecia tão deslocado no meio de toda aquela gente que o obriguei

a ir para o jardim das traseiras.

Ali, junto à orla marítima, tinham acendido duas fogueiras, e um grande

grupo de pessoas estava sentado à volta do lume, a assar m


­ arshmallows e a beber

diretamente das garrafas.

— E eu a pensar que estava a chorar. Olha para ela... — comentou o Lion,

apontando para duas raparigas que vinham a caminhar pela beira­


-mar, agarradas

uma à outra com uma garrafa que parecia ser de tequila.

A Jenna e a Noah. Ótimo.

Ao aproximarmo­
-nos delas, quando nos viram, ficaram imóveis como pedras.

A seguir, desataram a rir à gargalhada.

— Olha só quem temos aqui, Noah, o imbecil número um e o imbecil

número dois — disse a Jenna a sorrir, enquanto levava a garrafa à boca e fazia

uma careta de nojo. Estavam as duas vestidas com calções muito curtos e a parte

de cima do biquíni.

Vi o Lion aproximar­
-se da Jenna com cuidado.

— Ouve, Jenn, podemos falar? — perguntou ele, subitamente ­nervoso.

A Jenna olhou para ele como se estivesse a analisar um inseto ao microscópio.

— Lamento, imbecil número dois, mas não me apetece — disse, cambaleando

perigosamente para um dos lados.


— Então eu é que sou o imbecil número um? — respondi, contrariado, e a

Noah encolheu os ombros.

— Às vezes és — afirmou, mas deixou­-me pôr­


-lhe um braço à volta da

cintura.

— Posso pelo menos levar­


-te a casa? Já bebeste de mais, Jenna — ofereceu o

Lion, que a segurou quando achou que ela ia cair.

— Larga­
-me! — gritou ela, afastando­-se e caindo de traseiro na areia.

A Noah mexeu­
-se entre os meus braços para a ajudar.

— Deixa­
-a, Lion!

Observei a cena com cuidado. Conhecia o meu amigo quase tão bem como a

mim mesmo. Estava tão irritado com aquela situação que não estranhei a sua

reação. Eu teria feito o mesmo.

Agachou­
-se com dificuldade e pôs a Jenna sobre o ombro.

— O que estás a fazer?! Larga­


-me, Homo erectus! — protestou ela,

enlouquecida, deixando cair a garrafa na areia, mas sem conseguir livrar­


-se do

Lion, apesar de todo o seu empenho.

— Podes fazer­
-me todos os insultos intelectuais que quiseres, mas vens

comigo.

A Noah voltou­
-se para mim com as faces rosadas.

— Faz qualquer coisa! — pediu­-me, e agarrei­-a com força quando vi que

estava decidida a intervir.

— Ela chamou­
-lhe Homo erectus. Não posso envolver­
-me depois disto. Nós, os

homens, também temos o nosso orgulho, sabias?

A Noah fulminou­
-me com o olhar, e eu ri­-me, enquanto a segurava pelos

joelhos e a levava para a fogueira menos concorrida.

— Tens de os deixar conversar, sardas; senão nunca se irão entender.

A Noah estava a tremer de frio, e a bebedeira deixou­-a esquecer­


-se da

irritação, porque, quando me sentei com ela no meu colo, aninhou­-se entre os

meus braços e deixou que nos aquecêssemos com o lume.

— Estou com os copos — reconheceu.

— Não me digas! Nem tinha reparado — respondi com sarcasmo.

— E continuo chateada contigo...

Observei­
-a e acariciei­
-lhe as costas com delicadeza.

— Já imaginava... Posso fazer alguma coisa a esse respeito?

— Podes continuar a acariciar­


-me assim — respondeu, depois de um instante

de silêncio, e um calafrio percorreu­-lhe todo o corpo. Afastei­-me dela e despi o


casaco. Com cuidado, obriguei­-a a enfiar os braços nas mangas; depois puxei o

fecho para cima. Um segundo depois, apoiou a cabeça no meu ombro, e senti a

sua respiração contra o pescoço.

— Amanhã faz um ano... — disse com melancolia, e o lábio tremeu

ligeiramente.

— Faz um ano de quê? — perguntei sem compreender, mas ela fechou os

olhos e adormeceu.

Levantei­
-me e levei­
-a ao colo até ao carro. Já tinha festejado o suficiente. Não

fazia ideia de onde estava o Lion, mas não podia continuar a ser eternamente a

sua ama­
-seca. Ele saberia o que fazer. Liguei o carro e levei a Noah a casa. Ela

estava tão embriagada que nem queria imaginar a ressaca que teria no dia

seguinte. Acho que era de esperar que bebesse, tinha dezoito anos, mas nunca

gostava de a ver assim.

Embora muito contrariado, decidi ficar a dormir na casa do meu pai. Dali a

um par de dias, eu e a Noah estaríamos a viver juntos no meu apartamento, e eu

já contava os minutos que faltavam.


31

Noah

Não ia ser um dia bom, percebi­-o mal abri os olhos de manhã. Não só por causa

da ressaca, da dor de cabeça e da vontade incrível que tinha de vomitar mas

porque fazia um ano que o meu pai morrera por minha causa.

Saí da cama a sentir o estômago queixar­


-se de todo o álcool que engolira na

noite anterior e fui a cambalear para a casa de banho, tomar um duche. Nem

sabia como tinha chegado ao meu quarto. Bebi tanta tequila que acho que o que

me corria nas veias era álcool e não sangue. Lembrava­-me de ter visto o Nick

chegar... e o Lion também.

Ia ter de ligar à Jenna para saber como tinha acabado a noite, mas hoje não...

Hoje não queria falar com ninguém, queria recolher­


-me no meu quarto com os

meus demónios interiores e chorar pelo pai, que nunca me amou, pela pessoa

que tentou matar­


-me e pela menina que nunca con­seguiu fazer com que ele a

amasse.

Sei que era uma idiota por continuar a pensar nele, mas as suas palavras e a

culpa viviam comigo mesmo depois da sua morte e não desa­pareciam; os

pesadelos faziam parte das minhas noites e, por vezes, perseguiam­-me durante o

dia.

Tinha amado o meu pai. Será que isso fazia de mim um monstro? Seria um

monstro por ter amado uma pessoa que batia na minha mãe e que a magoava

todos os dias? Estaria louca por continuar a pensar que, se me tivesse

comportado de forma diferente, o meu pai continuaria vivo?

Fechei os olhos, deixei que a água caísse sobre mim e passei a esponja pelo

corpo. Sentia­
-me suja por dentro... Odiava aqueles pensamentos. Por vezes

parecia que tinha outra pessoa dentro de mim, a obrigar­


-me a ser masoquista, a

comportar­
-me de uma maneira que nem eu nem o meu falecido pai

merecíamos. Porque ele não merecia as minhas lágrimas, não merecia sequer

que sentisse pena dele...

Era indiferente quantas vezes me levara ao parque ou a pescar... Não


importava que me tivesse ensinado a conduzir quando ainda mal chegava aos

pedais. Não interessava se adorava vê­-lo correr e ganhar.

Ele fora meu pai, e a minha mente infantil, a minha mente pueril retorcida,

obrigara­
-me a olhar para o outro lado de cada vez que aquele homem maltratava

a minha mãe. Não compreendia a minha forma de pensar ou de agir, tentava

analisar­
-me a partir de outra perspetiva, mas nada fazia sentido.

Nos meses que passei no lar de acolhimento, tive muitas saudades da minha

mãe, claro, mas também dele... Tinha saudades de que me tratasse melhor do

que a ela; de uma forma horrível, tinha gostado de ser diferente, de ver que o

meu pai nunca me fazia mal, que me amava mais do que qualquer outra pessoa,

que eu era especial para ele... Claro que, no fim, tudo se desmoronou, porque

ele acabou por me magoar também... E muito.

As recordações, as conversas, voltaram a mim sem que pudesse fazer nada para

o remediar.

— Tu és má! — gritou­
-me uma das meninas do lar de acolhimento. Naquela casa

horrível e com pais a fingir, que não nos amavam nem cuidavam bem de nós, éramos cinco

meninas e um rapazinho.

— Tu roubaste­
-me a boneca! — gritei­-lhe, tentando fazer­
-me ouvir por cima do choro

da menina loura que estava ao nosso lado. — Se te portares mal, recebes um castigo.

Nunca ninguém to ensinou?

— Não voltas a bater­


-lhe! — A menina morena, a das tranças muito bonitas,

continuava a acusar­
-me com o dedo sujo espetado, enquanto abraçava a irmã de quatro

anos, que chorava com a bochecha vermelha, depois da bofetada que eu lhe tinha dado.

As outras duas meninas, que tinham sete e seis anos, respetivamente, puseram­-se atrás

da Alexia, a morena das tranças. Odiava ver que gostavam dela e de mim não. Eu só

tinha reclamado uma coisa que era minha. Aquela menina tirara­-me a boneca à força.

Teria de pagar por isso ou não?

Era o que acontecia quando alguém se portava mal.

— Tu és má, Noah, e ninguém gosta de ti — disse a Alexia. Era quase tão alta como

eu. Éramos as mais velhas da casa, mas ela tinha um olhar feroz que eu não era capaz

de imitar. Apesar de ter batido àquela menina, eu só queria que fôssemos amigas.

Tentara explicar que, quando eu acabasse de brincar,­ ela podia ficar com a boneca,

podíamos partilhá­
-la, mas ela tirara-ma, ­arrancara­-ma das mãos. — Ninguém fala

mais com ela — ordenou, voltando­-se para as outras. — A partir de agora, ficas

sozinha, porque as meninas abusadoras como tu não merecem que ninguém goste delas. És
má e és feia!

Senti as lágrimas inundar­


-me os olhos, mas não me permitia chorar. O meu pai sempre

o deixara bem claro: só os fracos choram. A minha mãe era fraca porque chorava, eu não.

— És má! És má! És má! És má! És má!

As meninas uniram­
-se todas no coro, até a pequena que estava a chorar e que agora

sorria e cantarolava com as outras. Agarrei com força na boneca e saí dali a correr.

Saí do duche com a intenção de apagar estas recordações. Olhei­-me ao espelho

e fitei a minha tatuagem. O meu dedo percorreu­-a: era pequena, mas tinha um

significado enorme. Respirei fundo, tentando acalmar­


-me. Não queria que tudo

aquilo me ultrapassasse. Tivera o seu tempo, e não podia deixar que voltasse a

afetar­
-me.

Nesse instante preciso, bateram à porta da casa de banho.

— Noah, sou eu, o Nick — disse.

Fechei os olhos com força e contei mentalmente até três. Aproximei­-me da

porta e deixei­
-o entrar. Não sabia que tinha dormido ali. ­Virei­
-lhe as costas,

enrolada na toalha, e peguei no creme que estava numa prateleira. Não queria

companhia. Naquele dia precisava de estar sozinha.

— Estás bem? — perguntou, aproximando­-se lentamente, a apalpar terreno.

— Dói­
-me a cabeça — respondi, contornando­-o e saindo para o meu quarto.

Sabia que ele vinha atrás de mim, mas só esperava que com­preendesse que não

era um bom dia para mim. Por vezes éramos capazes de perceber os estados de

alma um do outro, e esperava que ele o conseguisse agora.

Entrei no closet e vesti uma T­


-shirt com uma publicidade qualquer que tinha

trazido quando me mudei para ali. Era das poucas coisas que ainda não tinha

enfiado nas malas que iria levar para a faculdade. Aquela T­


-shirt e umas calças

de ginástica. Era o que iria vestir nesse dia.

Senti­
-o atrás de mim quando estava a tirar a toalha da cabeça e o cabelo

húmido me caiu pelos ombros. Agarrou­-me no braço e virou­-me para que

olhasse para ele.

— Estás bem? — repetiu, enquanto a mão me afastava o cabelo molhado.

— Estou cansada e de ressaca, mais nada — respondi, verificando que,

naquele momento, ele era o meu oposto. Com umas calças de ganga Levi’s, uma


-shirt branca Calvin Klein e o cabelo despenteado, parecia um modelo de

passarela.

— Preparei­
-te qualquer coisa para comeres antes de me ir embora — disse,
beijando­
-me o rosto. — Gostava de ficar aqui contigo e de passar a tarde a ver

um filme, mas tenho de ir trabalhar.

Suspirei de alívio. Não queria que me visse naquele estado; não estava boa

companhia, ia acabar por o assustar.

Dei um passo em frente e beijei­-lhe a boca. Foi um beijo doce e paciente. A

zanga que tivéramos no dia da corrida continuava no meu pensamento, as coisas

que tínhamos gritado um ao outro, a sua maneira de me atirar à cara que não

confiava nele... Mas, se sentia que nem eu conseguia entender estas coisas, como

poderia contá­
-las ao Nick? Sabia que ele percebia que alguma coisa não estava

bem, e uma parte de mim morria por procurar consolo nos seus braços, mas não

podia... Tinha medo de lhe contar certas coisas e não queria que ficasse

desiludido comigo ou que me julgasse.

Foi­
-se embora, preocupado, e eu tentei forçar um sorriso para ele ficar

tranquilo. Não sei se consegui.

Há muito tempo que não passava horas em frente à televisão, a ver Friends e a

comer chocolate. Apesar de um estudo científico qualquer dizer que comer

chocolate libertava endorfinas de felicidade, comigo não estava a resultar: só

contribuía para que ficasse com uns quilos a mais.

Este era o meu dia negro e, por mais que inicialmente tivesse querido que o

Nick fosse trabalhar, agora sentia a sua falta e precisava desesperadamente de

um abraço.

Fiquei surpreendida quando vi toda a parafernália que tinham montado na

cozinha quando desci para ir buscar um sumo... e mais chocolate. A minha mãe

trazia um vestido bonito e sandálias, até se tinha maquilhado, e, quando vi o

William entrar com calças e camisa de trabalho, percebi que alguma coisa se

passava.

— Estão à espera de alguém para jantar?

A minha mãe, que estava a dar instruções à Prett, voltou­-se para mim e

olhou­
-me de cima a baixo com o sobrolho levemente franzido.

— O senador Aiken e a filha vêm jantar cá a casa.

«O senador?»

— Por algum motivo especial? Ias dizer­


-me alguma coisa? — Normalmente,

a minha mãe avisava­


-me com antecedência deste tipo de situações, a menos que

não quisesse que eu estivesse presente.

— É um velho amigo do Will, e querem fundar uma empresa juntos. Como


estavas maldisposta, pensei que quisesses ficar lá em cima — acrescentou

enquanto tirava o avental que trazia atado à cintura.

Menos mal.

— Sim, a verdade é que prefiro saltar o jantar a ficar sentada a conversar com

um velho e com a filha — disse, um pouco mais resmungona do que pretendia:

estava com uma telha dos diabos.

A minha mãe lançou­


-me um olhar intimidante, que evitei o melhor que

pude.

— Vou dizer à Prett para te preparar qualquer coisa para o jantar.

— Não te preocupes, não tenho fome — respondi, dando meia­-volta sobre os

calcanhares e regressando ao meu quarto. Um pouco hesitante, peguei no

telemóvel para ligar ao Nick. Sabia que ele ia trabalhar no dia a seguir e que

não planeava ir lá a casa, mas também sabia que bastaria uma chamada para que

viesse, se lhe pedisse.

Tinha dúvidas, mas precisava mesmo de ouvir a sua voz, e marquei o número

dele.

— Olá, sardas — cumprimentou­-me do outro lado da linha.

— Olá. O que estás a fazer? — perguntei, apalpando o terreno.

Ouvi afastar o telemóvel da orelha e falar com alguém. Também ­captei um

riso feminino e, um segundo depois, a voz do Nick a res­mungar por causa de

uma canção horrível.

Senti o corpo imediatamente tenso.

— Onde estás? — perguntei, um pouco mais seca do que pretendia, intrigada

por saber com quem estava.

— Neste momento, estou a entrar pela porta — respondeu, e ouvi um portão

a abrir­
-se ao fundo.

— Qual porta?

— Como assim, qual porta? Da casa do meu pai.

Arregalei os olhos de surpresa.

Ele estava ali?

Desci as escadas e fui recebê­


-lo com o coração apertado. ­Queria vê­
-lo

imediatamente... Parecia que alguém o enviara através de ­correio expresso.

Nem parei para pensar no que as suas palavras significavam nem nas vozes de

mulher que ouvira pelo telemóvel. Saí de casa com a intenção de me atirar para

os braços dele, mas, em vez disso, deparei com ela: a rapariga que tinha tirado a

Jenna da cadeia.
Fiquei parada junto à porta.

Vinha vestida com elegância, com uma saia travada, preta, até aos joelhos, e

uma blusa de marca cor­


-de­
-rosa pálido. Os sapatos eram, sem sombra de

dúvida, uns Manolo Blahnik e faziam­-na parecer quase tão alta como o Nick.

Quem diabo era aquela rapariga?

Os olhos do Nick pousaram em mim, e vi que passavam imediatamente do

assombro ao afeto.

Imobilizei­
-me, com a porta aberta e a corrente de ar a fustigar­
-me a cara e o

carrapito solto que tinha feito no alto da cabeça.

Recuei ligeiramente para eles entrarem.

— Noah, apresento­
-te a Sophia Aiken, minha colega de trabalho — disse o

Nick, enquanto dava um passo em frente e me beijava o rosto.

A Sophia olhou para mim com um sorriso curioso nos atraentes lábios

carnudos e estendeu­
-me a mão com as unhas tão bem arranjadas como as da

minha mãe.

— Muito prazer, Noah.

Cumprimentei­
-a, intimidada, sentindo­-me completamente des­locada.

Sem me dar tempo para responder, a minha mãe apareceu no papel de anfitriã

maravilhosa que era e aproximou­-se para cumprimentar os recém­-chegados.

Enquanto o fazia, os seus olhos desviaram­-se na minha direção, como se não

tivesse planeado que fosse a sua filha tão desalinhada a abrir­


-lhes a porta.

Que diabo estava a acontecer ali?

— O teu pai ainda não chegou, Sophia. Se quiseres ir para a sala beber

qualquer coisa, o Nick prepara­-te uma bebida.

A Sophia concordou e seguiu a minha mãe.

Antes que o Nick fosse atrás dela, fuzilei­-o literalmente com o olhar. Agora

que o choque inicial passara, só sentia raiva, raiva e uma vontade horrível de

chorar.

— Porque não me disseste que vinhas?

O Nick parecia tão confuso quanto eu, e os seus olhos desviaram­-se do meu

rosto para a T­
-shirt , para as calças.

Deus do céu... Por favor. Eu acabara de abrir a porta à filha do senador

naqueles preparos?

— Pensei que a tua mãe te tinha dito... Ligaram­-me hoje à tarde a pedir que

convidasse a Sophia para jantar cá em casa, porque o pai dela quer conhecer­
-me

e sei lá mais o quê. Pensei que sabias. No outro dia, com aquela cena toda da
Jenna, não tive oportunidade de ta apresentar.

— Ninguém me disse que vinhas; se soubesse, não tinha dito que não queria

jantar com eles — respondi enquanto ouvia a minha mãe falar com a Sophia na

sala. — Não vou entrar assim... Vou para a cama e, quando isto acabar, falamos.

Nem dei três passos antes de o ter à minha frente.

— O que se passa contigo? Vá lá, sobe, muda de roupa e vem jantar... Só

aceitei esta merda porque pensei que estarias aqui. Não sei quais são os planos

deles, mas não vou ficar para ali a falar de banalidades.

Ergui as sobrancelhas e olhei para ele, aborrecida.

— Isso não é problema meu, Nicholas — respondi, tentando manter um tom

de voz calmo. — Além disso, porque nunca me falaste dela? Parecem ser muito

amiguinhos.

O Nick parou por um instante de sobrolho franzido. Olhou para o sítio onde

a Sophia e a minha mãe estavam a conversar e depois voltou a concentrar­


-se em

mim.

— Oh, oh! Estás com ciúmes? — perguntou, revirando os olhos.

Quase sem pensar, dei­


-lhe um murro no braço.

— Que conversa é essa?

O Nicholas soltou uma gargalhada que só fez que com ainda ficasse mais

mal­
-humorada.

— Por amor de Deus! Ela é só uma betinha insuportável que quer arranjar

um lugar na empresa do meu pai, para não ter de trabalhar para o dela. Não

posso acreditar que estás com ciúmes.

— Não estou com ciúmes, idiota! — sibilei, enquanto o contornava para

subir as escadas e ir para o meu quarto.

— Se não desceres para jantar, vou buscar­


-te ao teu quarto e trago­-te pelos

cabelos — ameaçou, na brincadeira. — Vê lá como preferes, meu amor.

Se um olhar matasse, acho que a esta hora o Nicholas já estaria a sete palmos

de terra.

Olhei para o meu reflexo ao espelho com frustração. Não fazia tenção de me

arranjar para aquele maldito jantar, nem pensar. Não me ia arranjar por causa

dela.

Despi a T­
-shirt esburacada e deixei­-a caída no chão enquanto via o que poderia
usar sem desfazer as malas que estavam no quarto de vestir. Acabei por me

decidir por umas calças de ganga pretas, justas, simples, daquelas que vestimos

para ir ao cinema, e por uma T­


-shirt branca a dizer I ♥ CANADÁ.
Sorri para mim mesma. De certeza que o senador ia adorar.

Desfiz o carrapito e substituí­-o por um rabo de cavalo alto, lavei o rosto e pus

batom nos lábios. Era o máximo que planeava arranjar­


-me naquela noite. A

Sophia podia vestir Chanel à vontade, se quisesse. Eu ficava bonita com

qualquer coisa... Pelo menos era o que a minha avó me dizia.

Quando desci para a sala, ainda com um humor de cão, há que dizê­-lo, ouvi a

voz de um homem que nunca ouvira antes. Os cinco, o William, a minha mãe,

o Nick, a Sophia e o pai dela, encontravam­-se à volta do bar da sala a conversar

amistosamente enquanto o Will servia bebidas. Vistos assim, de longe,

pareciam todos saídos de uma revista; muito distintos, altos e elegantes. Olhei

para os ténis que calçara e não consegui evitar sentir­


-me uma intrusa.

A minha mãe foi a primeira a ver­


-me e arregalou um pouco os olhos quando

fitou a minha T­
-shirt , mas, antes que tivesse tempo de me recambiar ao quarto,

o Will apercebeu­
-se da minha presença e deu­
-me as boas­-vindas com um

sorriso.

— Noah, anda, aproxima­


-te. Apresento­-te o meu amigo de faculdade, o

Riston. Esta é a minha enteada, a Noah; Noah, o meu amigo Riston.

Ao contrário da filha, o Riston não podia ser mais americano: louro, de olhos

claros como a minha mãe, com as costas largas e tão alto como o Nick. Só pude

ver que tinha os mesmos olhos rasgados e a pequena covinha no queixo da

Sophia... As covinhas sempre me pareceram encantadoras nas raparigas, mas,

agora que via uma no queixo dela, já não achava tanta graça.

Sorri e estendi­
-lhe a mão. Reparei no Nick, ao meu lado, mas, em vez de o

sentir caloroso e protetor, desta vez parecia que tínhamos uma barreira a

separar­
-nos.

Não demorámos muito a passar à sala de jantar, onde a Prett tinha organizado

uma mesa melhor até do que a do Natal, festividades que a família Leister

decidira ignorar até eu e a minha mãe virarmos o seu mundo de pernas para o

ar. Ainda me lembrava de como fora divertido ver o Will e o Nick com gorros

de Pai Natal e também o sobrolho franzido do Nick quando o obriguei a

decorar a mansão com um pinheiro enorme e grinaldas. O espertalhão

divertira­
-se imenso a pendurar aze­vinho nos locais mais escondidos da casa.

Para grande aborrecimento meu, e porque o meu prato fora posto no último
instante, fiquei sentada ao lado do senador, com a Sophia e o Nick à minha

frente... ao lado um do outro.

Deus do céu... por que razão tinha tantos ciúmes? Era por me sentir tão mal

ao comparar­
-me com ela?

Passaram o jantar inteiro a falar não sei de que projeto que parecia

entusiasmar bastante a Sophia. Ela falava de leis, de números e de estatísticas

com a mesma paixão com que eu falava das irmãs Brontë ou de Thomas Hardy.

E, para minha infelicidade, o Nick também parecia ­entusiasmado. Vi nos seus

olhos que o projeto lhe interessava realmente, e eu nem sequer era capaz de

acompanhar a conversa... Ficava enjoada com tantos números e sentia­-me uma

perfeita idiota. O William não parava de a elogiar e de se dirigir aos dois como

se formassem uma equipa. Todos pareciam olhar para eles como se fossem um

brinquedo novo, e comecei a sentir um formigueiro muito desagradável no

estômago.

Até que, no fim do jantar, o senador Riston pareceu reparar em mim.

— E tu, Noah, em que escola andas?

A sua pergunta conseguiu fazer com que um calor intenso crescesse dentro de

mim e me subisse ao rosto.

Era assim tão óbvio que não fazia a mais pequena ideia do que eles estavam a

falar? Que não era tão adulta como a sua filha e que tinham de me fazer

perguntas por pena, no fim da conversa, como fazem às crianças quando lhes

perguntam se a escola está a correr bem?

— Acabei o secundário em junho passado, por isso estou prestes a ir para a

universidade — respondi, levando aos lábios o único copo de sumo da mesa.

Os olhos do Nick cruzaram­


-se com os meus, e senti uma pontada de dor no

peito.

Não podia partilhar os seus projetos porque nem sequer fazia ideia de que eles

existiam. O Nick não falava comigo sobre trabalho, porque sabia que não o

podia ajudar em nada... Naquele instante, a Sophia inclinou­-se para ele e disse­
-

lhe qualquer coisa ao ouvido. Não sei o que foi, mas o Nick sorriu e observou­
-

me.

De que diabo estavam a falar?

O comentário seguinte do senador chegou­-me vindo de muito longe.

— ...vais adorar a residência universitária. É a parte mais divertida da

faculdade...

O meu olhar virou­


-se para o senador.
— Na verdade, vou viver com o Nicholas — disse, numa voz tão calma que

só comecei a sentir­
-me zonza quando o silêncio se apoderou da sala,

interrompido apenas pelos talheres que a minha mãe deixou cair sobre o prato.

O Nick levantou os olhos arregalados na minha direção e, de seguida, voltou­


-

os para os nossos pais.

O senador parecia um pouco perdido e olhou na minha direção, depois na do

Nick... Parece que alguém se esquecera de lhe dizer que éramos namorados.

A Sophia não parecia surpreendida, o que ainda me aborreceu mais. Se sabia

que estávamos juntos, por que diabo não se manteve afastada dele? Depois de

ter largado aquela bomba, deixei que os meus olhos se desviassem por instantes

para a minha mãe, mas arrependi­-me de imediato: ia morrer naquela noite, era

evidente.
32

Nick

Quando fitei a Noah, depois de a Sophia me ter dito que fazíamos um casal

lindo, a última coisa que esperava era que ela fosse dizer aquilo.

Todo o meu corpo ficou tenso: o silêncio que se abateu sobre nós quando a

Noah disse finalmente que vinha viver comigo só foi interrompido pela sua

cadeira a arrastar­
-se no chão antes de se levantar.

— Se me dão licença, não me sinto muito bem e acho melhor ir deitar­


-me —

disse, pálida. Saiu da sala sem esperar que lhe respon­dêssemos. A mãe

preparou­
-se para se levantar, mas o meu pai segurou­-lhe na mão e sussurrou­
-lhe

qualquer coisa em voz muito baixa. A Raffaella trespassou­-me com os seus

olhos azuis, e, de repente, senti­-me zonzo.

Na verdade, estava feliz por a Noah ter decidido finalmente contar à mãe o

que lhe andava a pedir desde o início do verão, mas esta não tinha sido a melhor

forma. Precisava de falar com ela. Sabia que alguma coisa não estava bem, por

isso aceitara o convite para a porcaria do jantar, porque me oferecia uma

desculpa para a ver e ficar a dormir mais uma vez lá em casa. Por muito que

detestasse aquele lugar, adorava tomar o pequeno­-almoço com a Noah e beijá­


-la

antes de ir trabalhar. Além disso, alguma coisa me dizia que, além dos ciúmes

que parecia sentir da Sophia — o que era um sentimento ridículo e sem o

menor fundamento —, havia mais qualquer coisa importante que não me estava

a contar.

Quando também fiz um gesto para me levantar, o meu pai também me

advertiu com o olhar para que ficasse onde estava. A Sophia, que se apercebeu

do que acontecera, arranjou rapidamente outro tema de conversa, e a situação

deixou de parecer tão incómoda... até que ouvi a porta da rua fechar­
-se com

estrondo.

«Merda!»

Levantei­
-me sem me importar com nada e fui a correr até à entrada. Quando

saí para o alpendre, vi que a Noah estava a tirar o descapotável do seu lugar de
estacionamento e, sem olhar para trás, a percorrer o caminho de acesso a casa a

toda a velocidade.

O que estava ela a fazer?

Entrei em casa para pegar nas chaves que deixava sempre na mesa de entrada.

A Raffaella apareceu vinda do nada, e o olhar que me lançou foi tal que tive de

parar por uns instantes antes de sair.

— Nós pedimos­
-vos que fossem devagar — acusou­-me, olhando­-me de uma

forma completamente nova. Acho que tinha acabado de perder qualquer tipo de

afeto que ela pudesse ter por mim.

— Raffaella...

— Pedimos­
-vos e prometemos que, se fossem discretos, não nos metíamos

mais na vossa relação — insistiu, dando um passo na minha direção. —

Presumo que o acordo se tornou obsoleto.

Que diabo significava aquilo?

— Vai atrás dela e trá­


-la de volta... Hoje não é o melhor dia para ela estar

sozinha.

Algo se iluminou no meu cérebro quando me disse aquilo.

— O que queres dizer?

A Raffaella olhou para mim de forma impassível.

— Faz hoje um ano que foi sequestrada... um ano que o pai morreu.

Não fazia a menor ideia de para onde ela podia ter ido. Andava às voltas como

um perfeito idiota, ao mesmo tempo que não parava de me recriminar por ter

sido tão cego. No dia anterior, quando estava embriagada, dissera­-me que fazia

um ano. Caramba! Por isso estava naquele estado... Como podia ter­
-me

esquecido daquela data? Ainda me lembrava do terror nos seus olhos quando a

arma lhe apontou diretamente para a cabeça, ainda me lembrava de o meu

coração quase me saltar do peito ao ouvir o tiro... O tiro que, por breves

segundos, achei que ele tinha dado à Noah. Não, esse pesadelo tinha ficado no

passado, enterrara­
-o no fundo da minha mente, não queria voltar a recordá­-lo.

Porém, era evidente que ela não tinha esquecido nada. Os pesa­delos

continuavam a existir, por mais que o negasse, e tinha a certeza de que ainda

dormia com a luz acesa quando eu não estava com ela. Mas o pai estava morto,

já não existia. Já ninguém lhe podia fazer mal. Porque não enterrava as más

recordações de uma vez por todas?

Foi então, depois destes pensamentos, que julguei saber onde poderia estar a
minha namorada. Senti um calafrio percorrer­
-me o corpo todo.

Virei rapidamente na direção do cemitério. Quando cheguei e vi que o carro

da Noah era o único parado no estacionamento, respirei de alívio e apressei­


-me

a sair. Nunca tinha estado ali; os antepassados dos meus pais repousavam num

jazigo do outro lado da cidade. Ter ali os entes queridos custava uma pequena

fortuna, mas, agora que via pela primeira vez um cemitério público, achava que

talvez valesse a pena o investimento.

Enquanto estava naquele local sagrado, apercebi­-me da frescura da noite e de

que a Noah saíra só com a roupa que trazia ao jantar. Tive de me conter para

não soltar uma gargalhada quando a vi com aquela T­


-shirt , e acho que ainda a

amei um pouco mais, se fosse possível, pela sua simplicidade e beleza

maravilhosa. Ela não precisava de se arranjar para ser bonita, e provava­


-mo

todos os dias.

Comecei a caminhar por entre as lápides, à procura do apelido ­Morgan.

Muitas estavam deterioradas, e eram poucas as que tinham flores ou algum sinal

de que as pessoas se lembravam dos seus defuntos, que repousavam por baixo.

Vi­
-a imediatamente. Ali estava, sentada na relva em frente a uma lápide que

não conseguia ler ao longe. Observei­-a durante uns instantes antes de me

aproximar. Abraçava as pernas com força e, quando a vi a limpar as lágrimas às

costas da mão, aproximei­


-me, encurtando a distância num ápice.

Ela ouviu­
-me a chegar, porque se levantou depressa, com os olhos muito

abertos, vulneráveis e perdidos. Limpou as lágrimas rapidamente e, quando

decidiu olhar para mim, julguei ver até uma certa expressão de culpa.

— O que fazes aqui? — não consegui evitar perguntar. Não entendia por que

motivo fora visitar a sepultura do homem que quase a matara.

A Noah ficou calada, e um arrepio percorreu­-lhe o corpo. Dei um passo,

enquanto tirava o blusão. Avisei­-a com um olhar de que não valia a pena

protestar e pus o blusão por cima dos seus ombros.

— Não me devias ter seguido — disse finalmente, sem se atrever a olhar­


-me

nos olhos outra vez.

— É uma mania que tenho... Sobretudo quando a minha namorada decide

largar uma bomba durante um jantar e desatar a fugir logo de seguida.

Acho que ainda vi a tal expressão de culpa atravessar­


-lhe o rosto, antes de se

recompor de imediato.

— Eu estava a mais naquele estúpido jantar, e tu parecias estar muito

divertido.
Não ia deixar que se safasse assim. Por muitos ciúmes que tivesse tido da

Sophia, aquilo não tinha nada que ver com ela ou com o facto de irmos viver

juntos, era algo muito mais importante e grandioso do que isso.

— Por que razão vieste aqui, Noah? — voltei a perguntar, dando um passo na

sua direção e desejando com todas as minhas forças ser capaz de a entender. —

Explica­
-me porque estás a chorar a morte de um homem que tentou matar­
-te,

explica­
-me, porque acho que vou enlouquecer a tentar perceber isto tudo

sozinho.

Os olhos dela afastaram­


-se de mim e focaram a lápide. De repente, senti­
-a

nervosa.

— Vamos embora — pediu­


-me então, avançando para me segurar na mão. —

Quero ir embora, por favor. Leva­-me para minha casa ou para a tua, não me

importo — insistiu, puxando­


-me o braço para a seguir.

A sua reação surpreendeu­


-me. Parecia que queria esconder­
-me alguma coisa.

Instintivamente, desviei o olhar para a sepultura do pai.

A lápide era nova e estava muito limpa, e por cima tinha uma jarra de vidro

com flores amarelas e cor de laranja que a faziam destacar­


-se das restantes,

cheias de sujidade e ervas daninhas. A inscrição, desenhada com uma letra

elegante, dizia o seguinte:

JASON NOAH MORGAN

(1977-2015)

O TEMPO PODE CURAR A ANGÚSTIA DAS FERIDAS QUE DEIXASTE,

MAS A AUSÊNCIA DO TEU SER VAI PERSEGUIR­-ME PARA SEMPRE

ENQUANTO DURMO.

Sobre o mármore imaculado, por baixo destas palavras, estava gravado o

desenho do nó de oito.
33

Noah

O Nicholas não devia ter visto aquilo.

Senti o bater do meu coração acelerar até atingir praticamente um ritmo

febril; quando decidiu por fim olhar para mim, vi que estava completamente

perdido. E assustado. Não gostei nada do seu olhar.

— Não é o que julgas — disse, dando um passo atrás. Era disto que andava a

fugir desde o início, era isto que não queria que ele soubesse...

— Então explica­
-me, Noah... Juro que estou mesmo a tentar entender­
-te.

Acho que nunca me esforcei tanto para entender alguma coisa, mas estás a

torná-lo muito difícil.

Senti­
-me envergonhada, porque aquele assunto era meu, só meu... Não queria

que ninguém me julgasse, muito menos o Nicholas.

— O que queres que te diga, Nick? — respondi, tentando controlar a

vontade que tinha de chorar e que ameaçava voltar a encharcar o meu rosto com

lágrimas. — Era o meu pai...

— Ele tentou matar­


-te — respondeu, evidentemente confuso. — Maltratava

a tua mãe, Noah. Não consigo entender... Tens sau­dades dele?

O olhar dele era tão franco que me derreteu o coração. Era óbvio que queria

pôr­
-se no meu lugar, mas também se tornara dolorosamente claro que não

conseguia fazê­
-lo, e era isso que nos separava, o que eu temia que acabasse por

nos separar mesmo.

— Não serias capaz de entender, Nicholas, porque nem eu sei controlar aquilo

que sinto; não é que tenha saudades dele, é algo diferente... Sinto­-me culpada

por as coisas terem terminado daquela forma, é isso... No fundo, ele... Houve

uma altura em que ele me amou.

O Nick deu três passos até chegar a mim. Segurou­-me o rosto entre as mãos

com ternura e olhou­


-me fixamente.

— Não penses assim, Noah — disse com suavidade e, ao mesmo tempo, com

firmeza. — Nada do que aconteceu foi culpa tua. O problema é seres demasiado
boa pessoa, caramba! Não és capaz de o culpar porque ele era teu pai, e entendo

isso, está bem? Mas não tiveste culpa nenhuma do que aconteceu... Foi ele

quem determinou a sua sentença quando te apontou aquela arma...

Determinou­
-a quando te pôs as mãos em cima naquela noite, quando tinhas dez

anos.

Abanei a cabeça. Não fazia a menor ideia de como lhe explicar o que sentia

dentro de mim, porque tudo era uma enorme contradição... Ele tinha­-me feito

mal... Mas então e todas as vezes que me abraçara, todas as noites que me levara

com ele para a pista e em que tínhamos corrido a toda a velocidade... Quando

me ensinou a pescar... Ou quando me ensinou a fazer o nosso nó?...

O Nicholas fechou os olhos com força e encostou a testa à minha.

— Continuas a ter medo dele, não é? — perguntou, abrindo os olhos. —

Continuas a ter medo, apesar de ele estar morto. Ainda achas que lhe deves

alguma coisa. Sentes­


-te culpada e é por isso que vens aqui, que escreveste este

epitáfio e lhe trazes estas flores que ele não merece.

O meu lábio começou a tremer... Sim, tinha medo dele... Tinha mais medo

dele do que de qualquer outra pessoa, porque esse sentimento era quase tudo o

que conhecera dele.

Não me apercebi de que a minha mão subiu em direção à tatuagem, até o

Nick colocar a sua mão sobre a minha e a afastar.

— Porque a fizeste?

Suspirei, tentando acalmar­


-me, mas não me serviu de nada. Sabia

perfeitamente por que razão a tinha feito.

Olhei para os olhos do Nick e vi o meu reflexo neles... Era um reflexo que não

tinha nada que ver comigo.

— Quando amarras uma pessoa com demasiada força... ela esforça­-se por se

libertar ou fica amarrada para sempre. Eu sou das que ficam amarradas para

sempre.

O Nicholas franziu o sobrolho e olhou­-me com impotência. Acho que era a

primeira vez que ficava sem palavras.

Aproximei­
-me e rodeei­
-o com os braços. Não queria que ele se sentisse assim,

muito menos por mim; eu lidava bem com os meus problemas, ele não tinha de

se preocupar comigo.

— Eu acho que precisas de ajuda, Noah.

Afastei­
-me quando me disse aquilo.

— O que queres dizer?


Antes de continuar a falar, olhou­-me com cautela.

— Acho que podias falar com alguém imparcial... Alguém que possa ajudar­
-

te a compreender as coisas que sentes, que te ajude com os ­pesadelos...

— Tu ajudas­
-me — interrompi de imediato.

O Nicholas abanou a cabeça. Subitamente parecia tão triste...

— Não, não ajudo... Não sei como o fazer, não sei como posso levar­
-te a

compreender que não há nada que devas temer.

— Quando estou contigo, sinto­-me a salvo. Tu ajudas­-me, Nick. Não preciso

de mais ninguém.

Ele levou as mãos à cabeça. Parecia estar a ponderar o que dizer a seguir.

— Preciso que faças isto por mim — disse­-me então. — Preciso de te ver

feliz para também eu poder ser feliz; preciso que não tenhas medo do escuro

nem do teu pai, que já morreu, e, principalmente, preciso que deixes de

acreditar que tens o dever de o amar ou defender porque, Noah, o teu pai era

um homem violento e abusador, e nunca ninguém vai conseguir mudar isso,

nem tu, percebes?

Abanei a cabeça devagar. Sentia­-me perdida... Não sabia o que responder

porque era a primeira vez que admitia aqueles sentimentos em voz alta e agora

estava a acontecer exatamente o que eu receava: ele estava a julgar­


-me.

— Não estou louca — assegurei, afastando­-o com um empurrão.

O Nicholas negou rapidamente.

— Claro que não estás, meu amor, mas passaste por coisas que a maior parte

das pessoas nem sequer consegue imaginar e acho que não sabes bem como as

ultrapassar... Noah, só quero que sejas feliz, está bem? Vou estar sempre ao teu

lado, mas não posso lutar contra os teus demónios; essa é uma coisa que tens de

fazer sozinha.

— Indo a um médico de malucos? — respondi com maus modos.

— Indo a um psicólogo, que não é um médico de malucos — corrigiu­


-me

com doçura, enquanto voltava a aproximar­


-se de mim. — Eu também fui,

sabias? Quando era pequeno... Depois de a minha mãe se ir embora, comecei a

ter insónias, mal dormia e não comia... Andava tão triste que não era capaz de

ultrapassar aquilo sozinho. Às vezes, falar com alguém que não nos conhece

ajuda­
-nos a ver as coisas de outras perspetivas... Faz isto por mim, sardas,

preciso que, pelo menos, tentes.

Parecia tão preocupado comigo... E eu, no fundo, sabia que ele tinha razão.

Não podia continuar assim, a ter medo do escuro e com estes pesadelos a
perseguirem­
-me quase todas as noites...

— Por favor.

Observei­
-o durante alguns instantes e, de repente, senti­-me muito grata por o

ter ao meu lado. Sabia que sem ele não me teria atrevido a tomar aquela decisão.

— Está bem, eu vou.

Senti o seu suspiro de alívio nos meus lábios quando se inclinou firmemente

para me beijar.

Não queria voltar para casa. A minha mãe estaria furiosa, e a última coisa que

queria agora era enfrentá­


-la.

— Dei cabo de tudo, não dei? — disse, esfregando a cara com as mãos

enquanto voltávamos no carro dele.

Senti os seus dedos acariciar­


-me a nuca enquanto mantinha os olhos na

estrada.

— É uma maneira de o dizer, mas pelo menos fizeste­-o.

Voltei­
-me para o observar. Meu Deus... Íamos viver juntos, mesmo. Estava

feito e era iminente. Se quisesse, podia pegar nas minhas coisas naquele mesmo

dia, sair porta fora e começar uma vida nova ao lado dele.

O Nick estacionou em frente à entrada. Ao que parecia, o senador e a filha já

se tinham ido embora, porque os únicos carros que ali estavam eram os do Will

e da minha mãe. O meu ficara no cemitério... O Nick fora taxativo e não me

deixara regressar sozinha; disse­-me que o Steve ia lá buscá­-lo no dia seguinte.

Sem querer sair e ainda com uma angústia incomodativa no meio do peito,

apoiei o cotovelo na porta e a cara no vidro. O dia fora horrível.

— Anda cá — disse o Nick, puxando­-me e obrigando­-me a sentar no seu

colo, com os pés pousados no meu assento. Abraçou­-me, e apoiei a face na cova

do seu pescoço. — Vai correr tudo bem, amor.

Fechei os olhos e deixei que as suas palavras me acalmassem.

— Sobre a Sophia... Sei que não devia ter ficado assim, mas foi ela que tirou a

Jenna da cadeia, e tu nem sequer me tinhas dito que tinhas uma colega de

trabalho...

— Não tens nada com que te preocupar, Noah. Não sinto absolutamente nada

pela Sophia, nem por alguém que não sejas tu... Como podes sequer ter pensado

uma coisa dessas?

Virei um pouco o pescoço e pousei os lábios na pele suave da sua clavícula. Ele

cheirava tão bem... Sentia­


-me tão segura nos seus braços... Entre aqueles braços
fortes que me protegiam de todos e que, ao mesmo tempo, me embalavam

como se pudessem esmagar­


-me.

— Fica comigo esta noite — sussurrei, sabendo que isso implicava ele

enfrentar o pai logo de manhã.

— Claro que fico — respondeu, e senti que me tiravam um peso enorme de

cima.
34

Nick

De manhã, saí de casa muito cedo carregado com duas malas da Noah. Não

tinha tempo para lidar com os nossos pais antes de ir trabalhar; também não

queria que me dessem cabo da felicidade por saber que já tínhamos começado a

sua mudança e que dali a pouco tempo eu e a Noah estaríamos finalmente a

viver juntos.

Mal cheguei, dirigi­


-me imediatamente à sala do café. Mal tinha tido tempo

de tomar o pequeno­
-almoço e estava esfomeado. Quando estava a terminar a

segunda chávena e a limpar a boca com um guardanapo, a Sophia apareceu.

Observei­
-a, sabendo que na noite anterior a deixara pendurada, embora isto

não fosse propriamente responsabilidade minha; além disso, estava com o pai.

Cumprimentei­
-a com a cabeça e passei ao seu lado fazendo tenção de sair da

sala.

Ela meteu­
-se à minha frente e olhou­-me com ar de desafio.

— Sabes o que é mais divertido do que convidarem­-te para um jantar a que

não te apetece nadinha ir e em que ainda por cima te deixam sozinha com o teu

pai, o teu chefe e a mulher deste?

Tive de morder o lábio para não me rir. A verdade é que, posto nestes termos,

até tinha graça. Uma parte de mim gostou de a ver tão chateada.

— Sou todo ouvidos, Aiken — disse, encostando­-me à mesa e cruzando os

braços.

— O facto de, entre os três, terem passado o tempo inteiro a enumerar

idiotices sobre seres um bom advogado, teres um futuro brilhante à tua frente,

teres-te transformado num filho responsável e maduro...

O sorriso que se formara no meu rosto desapareceu quase de imediato.

— O que raio estás a dizer?

A Sophia ergueu as sobrancelhas e contornou­-me para se aproximar da

máquina do café. Voltei­


-me, à espera de resposta.

— Ao que parece, o meu pai acha uma excelente ideia eu e tu trabalharmos


juntos, futuramente... e creio que sabes ao que me refiro quando digo

«trabalhar».

Arregalei os olhos, sentindo um calor intenso dentro de mim.

— Que parvoíces te meteram na cabeça? O meu pai disse que eu era um filho

responsável e maduro? Não sei o que andaste a fumar antes do jantar, mas de

certeza que o ouviste mal: o meu pai não me suporta.

A Sophia voltou­
-se novamente para mim enquanto os lábios pintados de

vermelho bebiam um gole de café com uma lentidão deliberada.

— O meu pai adora arranjar­


-me namorados. Aparentemente, é o seu

passatempo favorito, e meteu na cabeça que o par ideal para mim seria o filho

do William Leister; se bem que não tenha sido apenas ele a apoiar a ideia, mas

também a tua madrasta. Quem a ouvisse falar de ti diria que te adora, embora

suspeite que isso tem mais que ver com o facto de não achar a menor graça a

andares enrolado com a filha dela... E menos ainda a irem viver juntos.

Cerrei os punhos com força. Não acreditava no que estava a ouvir. Aquela

mulher ia acabar comigo. Como se atrevia a insinuar que eu podia sequer vir a

interessar­
-me pela Sophia, ainda por cima quando tenho a filha dela como

termo de comparação? Que tipo de mãe tenta que o namorado da filha se

envolva com outra mulher?

Apertei o copo de plástico entre os dedos, transformando­-o em algo inútil e

tentando controlar a raiva que ameaçava enlouquecer­


-me. Não só nos tinha

manipulado como nos faltara ao respeito.

A Sophia aproximou­
-se com uma expressão um pouco mais des­contraída.

— Nota­
-se que a amas, Nick — disse, apoiando a mão no meu antebraço. —

Mas digo­
-te por experiência própria que ter uma relação que tantas pessoas

estão dispostas a destruir... não costuma acabar bem.

Dito isto, foi­


-se embora sem mais uma palavra.

Lavei as mãos e a cara enquanto tentava acalmar­


-me e ignorar, mais uma vez,

todas as coisas que ameaçavam acabar comigo e com a Noah. Desde a noite

anterior, em que tinha percebido que a Noah ainda estava afetada com o que

acontecera com o pai, sentira­


-me dominado por um medo difícil de ignorar.

Uma coisa era lutar com unhas e dentes ­contra as pessoas que estavam

determinadas em fazer com que um de nós ­acabasse a relação, mas outra

bastante diferente era lutar contra a Noah e contra os seus fantasmas. E, agora

que compreendia que ninguém, a não ser nós os dois, conseguiria que a nossa

relação seguisse em frente, não pude evitar temer que não nos estivéssemos a
empenhar o suficiente. Eu conseguia aguentar tudo, continuaria a lutar até ao

fim, jamais deixaria de o fazer, amava aquela miúda com tal desespero que só de

pensar nela ficava louco, mas e se a Noah se deixasse influenciar por outras

pessoas? E não só por pessoas... E se, afinal, aquele muro que ela abanava de vez

em quando, mas que nunca se decidia a derrubar, se erguesse mais alto ainda,

impedindo­
-me de chegar até ela da maneira que sabia ser necessária?

Tinha apenas uma coisa muito clara: a Noah era a única que podia afastar­
-me

de si, só ela e mais ninguém.

À última hora da tarde, o meu chefe apareceu à porta. A Sophia já estava a

guardar as suas coisas na pasta, e eu a desligar o portátil.

— Tenho uma boa notícia para vocês — anunciou, olhando para nós com um

sorriso.

— Estou a morrer de curiosidade — respondi com sarcasmo. Era sabido que

eu e o Jenkins nos odiávamos de morte. Basicamente porque ele estava a ocupar

o meu lugar até eu ter experiência suficiente para o substituir e porque ele sabia

perfeitamente que aquele lugar que o deixava tão convencido era apenas

provisório.

A Sophia parou e olhou para ele com um brilho peculiar no olhar. A Sophia

adorava o nosso chefe e, ao contrário de mim, desdobrava­-se para fazer o seu

trabalho na perfeição para assim poder subir na empresa e ter um cargo mais

importante.

— Houve duas baixas no caso Rogers, que vai a julgamento amanhã, e

pediram­
-nos para enviarmos alguém daqui. Se bem me recordo, tu, Nicholas,

querias este caso, mas deixaste­-o porque, para continuares nele, terias de ficar

em São Francisco. Pois bem, o trabalho mais difícil está feito, e basta

apresentá­
-lo perante o tribunal e colaborar com a defesa. Será tudo bastante

rápido, e tenho a certeza de que poderão aprender muito com um caso destes.

— Isso é fantástico, chefe. Quando temos de comparecer? — A Sophia parecia

estar tão emocionada que não me surpreenderia se começasse aos saltinhos.

— Marquei­
-vos bilhetes para a primeira hora da manhã.

«Merda!»

— Tão depressa? Não podias avisar­


-nos com um pouco mais de tempo. Temos

vida para além disto, sabias?

O Jenkins ignorou o meu tom de voz e continuou a falar com calma.

— Embora te custe a aceitá­-lo, o mundo não gira à tua volta, ­Nicholas. O


caso vai a julgamento amanhã à tarde, por isso têm de lá estar o mais cedo

possível. Se não concordas, estou convencido de que o teu pai vai adorar ouvir as

tuas queixas.

Pus­
-me de pé lentamente e apoiei os punhos na secretária.

— Recomendo­
-te que não puxes dos galões do meu pai em ocasiões como

estas, J, porque não tenho a certeza de que gostasses de comer betão.

Um esgar de desagrado formou­-se no rosto dele, e percebi que estava a abusar

do meu poder de filho do chefe, mas era isso ou partir­


-lhe a cara. E, se o fizesse,

aí sim, íamos ter problemas sérios.

— Um dia, alguém te vai dar um banho de realidade, Nicholas, e, quando

esse dia chegar, vou adorar estar no público, a assistir. — Voltou­-se para a

Sophia sem me deixar responder. — Estejam às cinco no aeroporto, e é bom que

não deem cabo disto, porque, se o fizerem, alguém vai parar ao olho da rua!

Dito isto, foi­


-se embora, deixando­-me com vontade de lhe virar a cara do

avesso.

O rosto da Sophia apareceu em frente a mim, e tive de focar a visão para

perceber o que me estava a dizer.

— ...sou eu quem vai acabar por pagar as favas, estás a ouvir? Controla­
-te,

porque eu não vou perder o meu trabalho por tua causa!

Ignorei deliberadamente o que dizia e saí do gabinete batendo com a porta.

Quem ia agora dizer à Noah que eu tinha de ir para São Francisco com a

mesma rapariga de quem ela tinha tantos ciúmes e a quem os nossos pais

tinham tentado juntar­


-me?
35

Noah

O silêncio no qual a minha mãe parecia estar a refugiar­


-se não augurava nada de

bom. Esta calma antes da tempestade preocupava­-me. Enquanto eu continuava

a fazer as malas, a acabar de empacotar tudo, a Jenna dedicava­-se a enumerar as

coisas más que podiam acontecer se fosse viver com o Nick. Foi então que

percebi que tinha de começar a ignorar todas as pessoas que queriam opinar

sobre a minha relação.

A Jenna tinha ligado o seu modo antirromantismo; desde que terminara com

o Lion, deixara de chorar desalmadamente para passar a ser uma feminista

empedernida, assegurando que nós, mulheres, éramos muito capazes de

continuar com as nossas vidas sem um homem ao nosso lado, que o mundo

atual estava à nossa disposição para o aproveitarmos e que não devíamos ter

nenhum tipo de amarra. Além disso, havia alguns dias que a sua frase favorita

era «o Lion que se lixe».

— Estava tão animada com a ideia de irmos para a mesma faculdade para

sairmos à noite, irmos às residências e fazer tudo o que as caloiras universitárias

fazem — disse ela, ajudando­


-me a meter coisas em caixas.

— Mas eu vou para a faculdade, Jenna, só que, em vez de dormir numa

residência, durmo com o meu namorado.

A Jenna revirou os olhos.

— Como se o Nicholas te deixasse ir às festas até às tantas da manhã...

Levantei os olhos e fitei­


-a.

— O Nick não é meu pai, posso ir onde eu quiser — respondi, ­determinada.

— Isso é o que dizes agora, mas, quando deres por ti, serás uma daquelas

amigas que nunca ninguém vê porque passa o tempo todo com o namorado.

Soltei uma gargalhada amarga.

— Como tu fazias até há poucas semanas?

A Jenna ficou a olhar para mim com um dos meus livros na mão.

— Acabar com o Lion foi a melhor coisa que me podia ter acontecido —
declarou, e percebi que estava a tentar convencer­
-se a si mesma. — Agora faço o

que quero, não discuto com ninguém, exceto com os idiotas dos meus irmãos

mais novos. Não tenho de me sentir culpada por ser quem sou, o que quer dizer

que arrendei um dos melhores quartos da residência, daqueles que custam uma

pipa de massa e têm a sua própria cozinha... Sim, sim, estás a ouvir bem E sabes

o que comprei hoje? — perguntou, levantando a saia comprida e justa que

trazia. — Estás a ver estas sandálias?

Assenti, desejando que se conseguisse recuperar... À sua maneira.

— Sabes quanto custaram?

— Não sei nem quero saber — comentei, levantando­-me do chão e dobrando

um cobertor para o pôr na caixa.

— Custaram seiscentos dólares. Sim, senhor! Gastei esse dinheiro todo numas

sandálias que daqui a um par de semanas já não vou poder usar porque vai estar

frio e vou molhar os pés todos.

— Faz sentido — concordei, entrando no seu jogo.

— Claro que faz, porque, apesar de ter aprendido imenso ao ver o meu ex­
-

namorado trabalhar arduamente, a desunhar­


-se para manter o trabalho e a casa,

e, mesmo sabendo que o dinheiro não cresce nas árvores e que há muitas pessoas

a passar mal, também sei que quase todas, se estivessem no meu lugar, fariam

exatamente o que fiz. Por isso, por que motivo tenho de ser idiota e não

aproveitar o facto de ter nascido em berço de ouro? — Levantei os olhos para a

observar. — Porque tenho tudo o que quero, não tenho? Posso comprar o que

quiser, posso escolher para que universidade quero ir; mais do que isso, sabias

que o meu pai decidiu comprar um avião privado? Sim, sim, é isso mesmo.

Quando quiseres ir a algum lado, avisa­-me... Porque sou milionária, e, ao que

parece, o dinheiro é a única coisa que importa...

A voz dela quebrou­


-se no fim da frase e dei um passo em frente.

A Jenna limpou rapidamente a lágrima que lhe caíra pelo rosto, atraiçoando­
-

a, e apontou­
-me com o livro que tinha nas mãos.

— Estou perfeitamente bem — afirmou, taxativa.

Eu e a Jenna tínhamos uma coisa em comum, que era não gostarmos de falar

abertamente dos nossos sentimentos, ao contrário de muita gente, por isso, se

chorávamos, era porque nos sentíamos realmente mal; a Jenna tinha de estar

mesmo triste e desiludida para chorar assim à minha frente.

— Sei que não queres falar disto, Jenn, mas acho que não passa de uma

separação passageira. O Lion ama­


-te loucamente, e tu sab...
— Não vás por aí, Noah — interrompeu­
-me de forma brusca. — A nossa

história acabou. Não tenciono voltar àquele círculo vicioso. Pertencemos a

mundos diferentes. Por isso, é melhor esqueceres o assunto. Agora só quero

ouvir falar de quanto nos vamos embebedar todas as sextas­-feiras e de quantos

rapazes giros vamos conhecer.

Quis recordar­
-lhe que estava comprometida, mas deixei passar. Se naquele

momento precisava de uma amiga foliona ao seu lado, então era isso que eu ia

ser. Sempre em doses moderadas, óbvio.

Não demorou muito a ir­


-se embora, e aproveitei para ligar ao Nick. Ainda

não tínhamos falado desde que se fora embora, na noite ­anterior, e precisava de

saber a que horas me vinha buscar no dia seguinte. Ainda queria levar mais

algumas coisas e preferia contar com a sua forma física antes de me pôr a

carregar tudo sozinha.

A chamada foi diretamente para as mensagens, por isso deixei uma a dizer que

ia precisar da ajuda dele no dia seguinte e que me ligasse quando a ouvisse.

Quando estava prestes a despir­


-me para tomar banho e a seguir ir para a cama,

para passar a última noite naquela casa, a minha mãe apareceu no meu quarto, e

a expressão que encontrei no seu rosto fez­-me preparar para uma bela discussão.

— Estava à espera de que viesses falar comigo e me confessasses que o que

disseste ao jantar era apenas uma piada de mau gosto.

— Não é nenhuma piada, mãe — comentei, cruzando os braços.

A minha mãe olhou para todas as malas e caixas espalhadas pelo chão do

quarto, prontas para as levar.

— Fiz o possível para não interferir na tua relação com o Nicholas; mais

ainda, estava disposta a suportá­-la, mas tu ultrapassaste todos os limites ao nem

sequer pensares em mim ou no William, e não vou tolerar que o faças.

Não gostava da sua maneira de falar: parecia que estava a dirigir­


-se a uma

desconhecida e não a mim e compreendi como estava zangada. As suas palavras

não fizeram mais do que avivar a minha ira por ver que se intrometia na minha

vida.

Estava farta daquilo.

— Isto não é uma coisa que precise de discutir contigo, é a minha vida, e tens

de aprender a deixar­
-me cometer os meus próprios erros e a tomar decisões

sozinha.

— Será a tua vida quando fores capaz de ser independente e tiveres um

trabalho que te pague as contas, estás a ouvir?


Fiquei calada. Fora um golpe baixo, e ela sabia. O dinheiro de que falava nem

sequer era dela.

— Mas foste tu quem me trouxe para cá! — gritei, compreendendo para onde

se encaminhava aquela conversa. — Pela primeira vez na vida, estou feliz,

encontrei alguém que me ama, e tu és incapaz de te alegrares por mim!

— Não vou deixar que vás viver com o teu meio­-irmão aos dezoito anos!

— Sou maior de idade! Quando vais entender isso?

A minha mãe respirou fundo várias vezes.

— Não vou entrar neste jogo, não vou discutir contigo, de maneira nenhuma,

e vou deixar apenas uma coisa bem clara, Noah: se fores viver com o Nicholas,

podes esquecer a faculdade.

Arregalei os olhos, sem conseguir acreditar no que estava a ouvir.

— O quê?

A minha mãe olhou­


-me fixamente, sem uma centelha de dúvida no olhar.

— Não te vou pagar o curso nem te vou dar dinheiro para...

— Quem paga isso tudo é o William! — gritei, fora de mim. A minha mãe

estava a comportar­
-se como uma desconhecida. Que diabo estava ela a dizer?

— Já falei com o William. És minha filha, e ele vai concordar com o que eu

decidir fazer contigo: se lhe disser para não te dar um tostão, ele não dá.

— Tu enlouqueceste completamente — disse, sentindo a pressão das suas

palavras.

— Achas que podes ter tudo, mas não é assim. Uma pessoa dá­
-te a mão, e tu

queres um braço, e não vou consentir que o faças.

— Candidato­
-me a uma bolsa de estudos, porque vou viver com o Nicholas;

tu podes ficar com o teu dinheiro e com o do teu marido, para mim tanto faz.

A minha mãe abanou a cabeça. Olhava para mim como se eu tivesse cinco

anos. Estava a começar a sentir um calor intenso dentro de mim, um calor que

se avivava ao ver que ela estava a falar a sério.

— Ninguém te vai conceder uma bolsa de estudos. Perante a lei, és enteada

de um milionário. Para de dizer disparates e de te comportares como uma

criança malcriada.

— Não posso acreditar que me estás a fazer isto — exclamei, sentindo uma

dor no peito.

Ela pareceu vacilar quando senti o lábio tremer ligeiramente. Era a última

coisa de que precisava agora.

— Acredites ou não, só quero o melhor para ti.


Soltei uma gargalhada.

— Tu és mesmo egoísta! — atirei­-lhe. — Estás sempre a dizer que fazes isto

tudo por mim; quando me obrigaste a mudar de país para te casares com um

desconhecido, prometeste­
-me um futuro brilhante, e, agora que tenho

finalmente o que sempre desejei, quando estou finalmente feliz, arrancas­


-me

tudo das mãos, ameaças tirar­


-me a única coisa que te pedi, a que mais me

importa desde que aqui chegámos, há um ano.

— Terás tudo o que queres. Basta que vás viver para uma maldita residência.

Até parece que, se o fizeres, nunca mais vais voltar a ver o Nicholas. Além

disso, tenho a certeza de que isto não foi ideia tua!

— Não, não foi! Eu já tinha tomado a minha decisão! — acusei­-a e afastei­


-me

dela, dirigindo­
-me ao outro lado do quarto. — Se me obrigares a fazer isto,

jamais te perdoarei.

A minha mãe parecia nem ouvir as minhas palavras, porque se limitou a olhar

para mim de braços cruzados e sem o menor ar de dúvida.

— A faculdade ou o Nicholas, a decisão é tua.

Não demorei dois segundos a dar a minha resposta.

— O Nicholas.

Meia hora depois, já tinha carregado as malas para o carro. Não conseguia

acreditar que a minha mãe tivesse feito chantagem comigo, para mais em

relação ao Nicholas. Enfiara­


-se no seu quarto, e não a voltara a ver. Acho que

nem sequer tinha consciência do quanto eu estava a falar a sério. Estava tão

irritada que me foi absolutamente indiferente sair da casa dos Leisters sem olhar

uma única vez para trás. Havia um Leister em particular que me importava

mais do que toda aquela porcaria que a minha mãe parecia querer entre nós as

duas.

Haveria de arranjar uma solução, arranjaria o dinheiro de alguma forma, nem

que tivesse de trabalhar de noite.

Sentada no carro, ainda na garagem de casa, liguei ao Nick. Desde que a

minha mãe se fechara no seu quarto que tentara falar com ele. Agora, atendia

finalmente o telemóvel.

— Desculpa, sardas, achei que conseguia regressar a tempo, mas não

consegui.

Fiquei calada, sem perceber absolutamente nada.

— Estás a falar de quê? Onde estás?


— Tive de vir hoje de manhã bem cedo para São Francisco. Deram­-nos um

caso muito importante, e achei que ia conseguir apanhar o voo da noite, mas

acho que ainda vou ter de cá ficar alguns dias.

Senti uma dor estranha no peito. Ele não estava ali... Não estava ali para me

dar um abraço e dizer que ia correr tudo bem.

A dor deu lugar a um sentimento mais fácil de ultrapassar, e tudo o que

acumulara naquele dia saiu num instante.

— Estás em São Francisco e nem te deste ao trabalho de me ligar a contar?

— Tinha pensado regressar ainda hoje, mas achei que não fosse importante.

Estás a gritar comigo porquê?

Fiquei a ver tudo vermelho à minha frente, vermelho­-fogo.

— E se fosse eu a viajar para outra cidade sem dizer nada? O que terias feito?

Sabia que estava a descarregar nele tudo o que me tinha acontecido, mas,

numa altura como aquela, precisava de o ter comigo. Deixara tudo para ir viver

com ele, e ele nem sequer ia estar em casa para me rece­ber, para me ajudar com

as malas. Não estava cá, não estava, e essa era a única coisa que me importava!

— Porra, está bem! Compreendo o teu ponto de vista, mas deram­-nos a

notícia à última da hora.

— Deram­
-nos? — perguntei, sentindo um nó formar­
-se no meu estômago.

O Nicholas ficou calado durante uns segundos.

— Estás com ela, não estás?

— É minha colega de trabalho, mais nada.

Um ciúme incontrolável apoderou­-se de toda a minha razão e ­raciocínio.

— Meu Deus, por isso não me disseste nada!... Sabias que ia ficar aborrecida.

Ouvi­
-o praguejar do outro lado.

— Podes acalmar­
-te? Estás a comportar­
-te como uma criança.

— Vai à merda — disse e desliguei a chamada.

Atirei o telemóvel para o lugar do passageiro e dei um murro no volante,

sentindo­
-me uma perfeita idiota. Era assim que as coisas iam ser dali para a

frente? Ele ia para São Francisco com a Sophia, enquanto eu ficava no

apartamento dele, sem dinheiro e sem poder estudar?

Porra! Tudo estava a complicar­


-se depressa de mais, e o medo de não poder ir

para a faculdade fez com que me saltassem algumas lágrimas dos olhos. Não

hesitara um segundo em escolher o Nicholas, mas a minha mãe tinha razão

numa coisa: ele tinha quase mais cinco anos do que eu... Dali a pouco estaria a

trabalhar a tempo inteiro e herdaria a empresa do pai. E eu?


Eu não tinha absolutamente nada e não queria que fosse o Nicholas a pagar­
-

me tudo. Se ficasse a viver naquele apartamento, perderia muito mais do que o

meu curso: perderia a minha independência, porque tinha a certeza de que, se

lhe pedisse, o Nick me ajudava, mas com que cara me levantaria da cama todas

as manhãs sabendo que o meu namorado pagava não apenas a renda do

apartamento mas também o meu curso?

Sempre fora uma pessoa independente e, se a minha mãe não se tivesse casado

com o Will, de certeza que podia ter pedido uma bolsa para estudar numa

universidade qualquer... Agora, por ser enteada de alguém tão importante,

ninguém me daria um cêntimo, e estudar nos Estados Unidos não era barato.

Por mais que me matasse a trabalhar, ia endividar­


-me até ao pescoço...

À medida que a raiva se ia diluindo e dava lugar à angústia, percebi que, por

mais que quisesse viver com o Nick, por mais que desejasse ficar ali com ele,

acordar todos os dias ao seu lado, não podia fazê­-lo enquanto não fosse

completamente independente. Nisso a minha mãe estava certa: mesmo que

fosse maior de idade, se não tivesse dinheiro para começar a minha vida, quem

teria a última palavra era ela.

Se encarasse a questão a partir desta perspetiva, ir viver com ele era uma

loucura. A renda do apartamento era sete mil dólares. Eu já achara um absurdo

quando ele me dissera, já me sentira constrangida por saber que não iria

conseguir dividir as despesas. Nem sequer conseguia pagar a renda mensal de

um quarto...

O meu telemóvel não parava de tocar.

Olhei para o ecrã e vi que tinha chamadas perdidas do Nick e da minha mãe.

O que ia fazer? A pergunta da minha mãe ecoava­-me na cabeça, uma e outra

vez.

A resposta era evidente: ir viver com o Nick ia ter de esperar... Pelo menos,

por enquanto.

Saí do carro e voltei ao meu quarto. Procurei a carta de admissão à residência

na gaveta onde a deixara e li toda a informação que ela continha. Devia ter

confirmado a reserva havia uma semana, para me atribuí­rem um quarto. Senti

que estava a sufocar. Que diabo ia fazer agora? Sentei­-me na cama. Senti o

coração bater a toda a velocidade e tinha cada vez mais dificuldade em respirar.

Estava a asfixiar, dominada pelo medo.

«Acalma­
-te. Tem de haver uma solução.»
Naquele momento, ouvi a porta de casa. O Will voltara mais cedo do

trabalho, e a minha mãe ia dizer­


-lhe que eu preferira ir viver com o Nick, em

detrimento do curso. Respirei fundo. Já que me iam separar dele, o mínimo que

podiam fazer era arranjar­


-me uma residência. Decidida, limpei as lágrimas com

a mão e saí do meu quarto, disposta a pôr a minha vida em ordem.

Na manhã seguinte, ao acordar, senti­-me estranha. No dia anterior,

levantara­
-me feliz por saber que ia partilhar casa com o meu namorado e agora

sentia apenas um nó no estômago por saber que viveria com uma perfeita

desconhecida. Na noite anterior, depois de comunicar a minha decisão à minha

mãe e ao Will, este tinha feito algumas chamadas e conseguira arranjar­


-me um

sítio onde viver. Disse­


-me que não conseguira encontrar um apartamento só

para mim, mas um lugar numa residência de luxo onde ia ter o meu próprio

quarto e partilhar a cozinha com outra rapariga. O Will parecia satisfeito com

aquilo, por isso imaginei que era o melhor a que podia aspirar.

Levantei­
-me e liguei o telemóvel. O Nick deixara de me ligar por volta da

uma da manhã, embora eu tivesse desligado o telemóvel muito antes. Por

muito infantil que fosse, uma parte de mim culpava­-o por não ter estado ali

comigo... Não conseguia evitar, estava a morrer de ciúmes e também angustiada

com todo aquele assunto da minha mãe e da faculdade.

Esperei até o Will sair de casa e só então saí do meu quarto para ir tomar o

pequeno­
-almoço. Não me apetecia vê­-lo, nem a ele nem à minha mãe. Quando

estava a acabar de beber o café, recebi outra chamada do Nick e desta vez decidi

atender.

— Olá — atendi, nervosa, enquanto roía uma unha.

Ouvi o silêncio do outro lado da linha.

— Achas razoável passares a noite inteira sem atender as minhas chamadas?

Tudo bem, sabia que a conversa não ia ser agradável, mas não estava disposta a

aguentar a ira dele, não nesse dia.

— Nenhum de nós é razoável, por isso não consigo responder à tua pergunta.

— Não te liguei para discutir contigo, Noah, por isso não vou entrar neste

jogo. Só queria dizer­


-te que regresso daqui a cinco dias. As coisas aqui não estão

a correr como nos fizeram crer.

— Cinco dias? — perguntei, tendo consciência de quão devastada a minha

voz soava.

— Eu sei. Nem sequer vou estar aí quando começares a faculdade, e peço


desculpa por isso, está bem? Não fazia parte dos planos mudares­-te sozinha,

muito menos teres de ficar no apartamento sem eu lá estar, mas não pude fazer

nada.

Respirei fundo, tinha de lhe dizer, tinha de confessar que não ia viver com ele,

mas tinha medo da sua reação; era capaz de ligar à minha mãe ou de cometer

uma loucura. Sabia que ia ser um murro no estômago e, por isso, preferi deixar

o assunto por ali; quando ele chegasse, contava­-lhe pessoalmente. A conversa

acabou um pouco tensa, tanto da minha parte como da dele, e, quando

desligámos, senti­
-me mergulhar numa tristeza profunda.

Duas horas depois, a Jenna e o pai vieram buscar­


-me. Estava demasiado

irritada com a minha mãe para lhe pedir ajuda na mudança, por isso, quando a

Jenna se ofereceu, não pude recusar, com toda a gratidão. Só tinha visto o

senhor Tavish em duas ocasiões — ele passava a vida a viajar pelo mundo —,

mas sabia que adorava a Jenna e que por isso cancelara todas as suas reuniões

para levar a filha à faculdade. Não parecia aborrecido por ter de me ajudar a

enfiar quase tudo no seu Mercedes. Não sei como conseguimos meter todas as

minhas coisas e as da Jenna no carro, mas lá consegui aninhar­


-me, um pouco

apertada, e pôr o cinto, na esperança de chegar àquela que seria a minha nova

residência.

Eu já tinha estado na Universidade da Califórnia. O Nick estudava ali, por

isso já fora muitas vezes a festas das fraternidades ou apenas visitá­-lo. Nessas

ocasiões, levei sempre um livro comigo e passei horas a estudar na biblioteca

gigantesca, maravilhada por saber que, arrumados naquelas estantes, havia mais

de oito milhões de livros. Sabia que a biblioteca ia ser um dos meus lugares

favoritos, mas toda a universidade era incrível. De tijolo vermelho e com

imensos jardins, era uma das mais importantes dos Estados Unidos. Entrar ali

não tinha sido fácil. Tivera de me esforçar ao máximo para conseguir uma vaga

e estava orgulhosa por não ter recorrido aos conhecimentos do Will para a obter.

Agora que ali tínhamos chegado, não consegui deixar de sentir um certo pesar

por não estar a partilhar o momento com a minha mãe. Devia ter sido ela a

trazer­
-me à minha residência, não o pai da Jenna, e também teria gostado que o

Nick ali estivesse para me mostrar a faculdade e poder sentir de alguma forma

aquela felicidade que via refletida em todos os alunos que me rodeavam. A

Jenna estava feliz, mas também via tristeza no seu olhar.

Onde estavam os nossos namorados?


36

Nick

Estava sentado no vestíbulo do hotel onde nos encontrávamos hospedados. Não

havia wi­
-fi nos quartos, pelo que fora obrigado a descer até à receção e partilhar

o meu tempo com gente desconhecida. Já era tarde, por isso peguei no

telemóvel para verificar, pela quarta vez, se a Noah me mandara uma mensagem

de boa noite. A forma como a nossa conversa terminara no dia anterior não me

agradava nada, e, embora só começasse as aulas no dia seguinte, queria desejar­


-

lhe boa sorte para o primeiro dia. Era evidente que devia estar a tentar dormir e

que talvez até estivesse a ter pesadelos. Gostava de saber que era o único que

conseguia fazer com que não os tivesse e que era por isso que detestava dormir

sozinha.

Para mim, era um alívio ter concordado em consultar um psicólogo, e andei a

investigar na Internet sobre traumas de infância e como os ultrapassar. Tinha

uma lista com os melhores psicólogos da cidade e já ligara a cinco deles para

falar sobre este assunto. Queria que a Noah fosse ela própria, sem medos nem

nada que a impedisse de ser comple­tamente feliz, e, se tivesse de pagar os olhos

da cara pelas horas de terapia, era o que ia fazer.

Por vezes pensava no que ela tinha sofrido às mãos do pai e sentia um calafrio

percorrer­
-me as costas. A minha mão fechou­-se num punho quase sem me

aperceber e tive de respirar fundo para me acalmar. Naquele instante, vi a

Sophia aparecer pelo canto do olho, com o Mac debaixo do braço e aqueles

óculos de massa pretos que, por um qualquer motivo inexplicável, me faziam

sorrir: ficavam­
-lhe terrivelmente mal.

— O que fazes, Leister?

— Aiken — respondi, voltando a olhar para o meu ecrã.

Só olhei para ela durante um segundo, mas vi que se sentava ao meu lado no

enorme sofá branco. Estávamos ali juntos há dois dias, e tinha de admitir que

não era como imaginara ao princípio. Podia parecer ­super­ficial e bastante

convencida, mas não era nada assim. Mais ainda, quando queria, era muito
divertida. Como estava rodeada de homens — éramos cinco a trabalhar neste

caso, e ela a única mulher —, fazia o possível para não chamar a atenção. Não

queria que a tratassem de forma especial.

— Não te apetece sair para jantar comida de plástico? — perguntou­


-me,

depois de estar a mexer no portátil e de o fechar de repente.

Ergui as sobrancelhas e olhei para ela.

— Tu comes comida de plástico? — perguntei, guardando o tele­móvel no

bolso. Tinha zero notícias da Noah. — Não acredito que saibas sequer o que

isso é.

Fez cara de caso, guardou o portátil na pasta e levantou­-se, revelando que não

estava de saltos altos, mas com umas sandálias brancas simples.

— Apetece­
-me comer um Big Mac e, mesmo que não queiras vir, vou sozinha.

Só te convidei porque a comida aqui é uma porcaria, por isso, a decisão é tua:

vens ou não?

Hesitei por instantes, mas ela tinha razão: a comida ali era péssima.

— Está bem, mas aviso­


-te já de que hoje não estou muito boa companhia —

acedi, levantando­
-me e encaminhando­-me para a entrada. A Sophia pôs­-se ao

meu lado, e percebi que, sem os sapatos de salto alto que usava sempre, até era

baixinha.

Soltou uma gargalhada.

— Nem hoje nem nunca, Leister. Acho que, desde que te conheci, nunca te vi

descontraído uma única vez. Devias ver­


-te ao espelho.

Ignorei o comentário, e fomos para o parque de estacionamento.

— O que achas que estás a fazer? — perguntei quando a vi tirar as chaves da

mala.

— Quem alugou o carro fui eu, Nicholas — respondeu.

— Lamento, minha linda, mas quem conduz sou eu — disse, enquanto lhe

tirava as chaves da mão tão depressa que nem se apercebeu.

Para minha surpresa, o meu gesto não provocou qualquer discussão. A Sophia

encolheu os ombros e sentou­


-se no lugar do passageiro.

Para compensar, deixei­


-a escolher a música, e fomos o caminho todo do hotel

ao restaurante a ouvir canções dos anos oitenta. Lá fora o tempo estava bastante

agradável, embora em São Francisco fizesse mais frio do que estávamos

habituados em Los Angeles. Apesar de muitas pessoas embirrarem com as ruas

íngremes da cidade, para mim era o que a tornava especial, isso e as casas

coloridas, todas com um ar muito distinto e muito agradáveis à vista.


Pretendia levar a Noah a visitar a cidade. Havia muitos sítios que ­queria que

ela conhecesse... Desde que namorávamos, só a tinha podido levar às Bahamas, e

era melhor nem me lembrar de como as coisas tinham acabado.

Evitei parar de pensar nela durante algum tempo. Estacionei o carro em frente

a um restaurante que tinha descoberto quando estivera em São Francisco

durante uma semana.

— Isto não é um McDonald’s — observou a Sophia ao meu lado,

desapertando o cinto de segurança.

— Eu não como McDonald’s — respondi, desligando o carro e rindo­


-me

quando me olhou com má cara. — Vá lá, Soph. Aqui fazem os melhores

hambúrgueres caseiros da cidade; se não fosse bom, não te tinha trazido.

— Já te disse mil vezes para não me chamares Soph — protestou. De seguida,

saiu do carro, e imitei­


-a.

— Desculpa, Soph.

Desatei a rir ao ver a sua cara, mas decidi deixá­-la em paz. Um empregado de

mesa atendeu­
-nos de imediato, e sentaram­-nos numa mesa afastada, do outro

lado do restaurante. Não gostei que presumissem que éramos um casal, mas não

podia entrar na cabeça das pessoas e controlar o que pensavam, por isso ignorei

o assunto.

— Espero que os hambúrgueres daqui sejam melhores do que o CBO, porque

senão vou ficar mesmo danada.

No fim, teve de engolir as suas próprias palavras, porque, como eu já previa,

os hambúrgueres estavam maravilhosos.

— Então vão acabar por viver juntos? — perguntou­-me, depois de falarmos

de tudo um pouco, principalmente de trabalho, até que, sem nos apercebermos,

começámos a falar da Noah. — Apesar de os pais dela não deixarem?

— A mãe — corrigi e prossegui. — Parece que toda a gente se esquece de

que ela é maior de idade e de que tem liberdade para tomar as suas próprias

decisões.

A Sophia assentiu, embora fizesse um gesto antagónico.

— Mas ela é uma criança, Nick — afirmou, levando a bebida aos lábios.

— A maturidade das pessoas não se resume à porcaria de um número, mas às

experiências vividas e às coisas que aprendemos com elas.

— E ninguém te diz o contrário, mas não te podes esquecer de que ela está

prestes a começar a universidade. Vai querer fazer as coisas que qualquer­ miúda

da idade dela faz, e, se não me engano muito, tu pareces ser o típico namorado
controlador.

Pousei os cotovelos na mesa e apoiei descontraidamente o queixo nas mãos.

— Eu só cuido do que é meu, mais nada.

A Sophia pareceu ficar enojada com as minhas palavras.

— Isso é uma forma de pensar extremamente machista, Nick, ela não é tua.

Comprimi os lábios com força.

— Vais fazer­
-me um discurso feminista, Soph?

— Enquanto mulher que tenta singrar numa empresa liderada

exclusivamente por homens, até podia fazer, mas não é essa a questão. O teu

problema é confiança: se estivesses verdadeiramente seguro de quanto ela te

ama, não estarias a esforçar­


-te tanto para a levares para tua casa, contrariando

toda a família. Na minha opinião, é uma jogada bastante estúpida da tua parte.

— Ela precisa de me ter ao seu lado, e eu também preciso dela, não há mais

nenhum motivo oculto.

A Sophia abanou a cabeça e cravou os olhos nos meus.

— Só sei que a última coisa que queria era ter­


-te como namorado.

— Eu sou o namorado com que todas as raparigas sonham, minha linda —

respondi, olhando fixamente para ela. Começou a rir, e eu sorri. Obviamente

não era o melhor namorado, nem de longe nem de perto, mas pelo menos

esforçava­
-me.

Aquilo deu­
-me uma ideia.

— Para veres como sou bom namorado — disse, pegando no tele­móvel e

entrando no motor de busca. — O que te parecem rosas azuis? São bonitas, não

são?

A Sophia revirou os olhos enquanto eu fazia a encomenda. Atualmente, a

tecnologia facilitava­
-nos muito a vida.

— Maravilhosas — disse ela, levando o copo aos lábios.

Cliquei em «Comprar», inseri a morada e escrevi uma pequena m


­ ensagem.

Quando guardei o telemóvel no bolso, ela tinha um sorriso divertido no rosto.

— Uma dúzia de rosas azuis? — perguntou.

— Duas dúzias. É bom repetir a mensagem, assim fica mais vincada.

— E qual é a mensagem? Que és um imbecil prepotente?

Ignorei as suas palavras.

— Que a amo mais do que qualquer outra pessoa.

Depois de jantar, regressámos ao hotel. Não obstante os meus reparos e

mesmo sabendo que, se o dissesse em voz alta, poderia arranjar muitos


problemas, a Sophia não era má companhia. O Lion estava enfronhado nos seus

problemas, e a Jenna era a melhor amiga da Noah, por isso eu acabara por ficar

sem nenhum amigo imparcial com quem falar das minhas coisas. Não que eu

fosse muito falador, mas gostava de conversar com a Sophia e de descobrir que

havia pessoas que tinham uma vida normal. Pelo que me contara, os pais

continuavam casados, tinha um irmão mais velho que era um arquiteto de

sucesso, e o pai era um político respeitado pela maioria dos partidos

democráticos, talvez um futuro presidente. Quem saberia como estas coisas

podiam correr?

Era agradável poder fugir um pouco a todo o drama que normalmente invadia

a minha vida, e a sua companhia conseguiu fazer­


-me descontrair, olhar para os

problemas a partir de outra perspetiva. As coisas não me corriam assim tão

mal... Com a Noah a viver comigo, tudo seria mais fácil; pelo menos, ela

poderia dormir mais descansada, e, se fizesse o que lhe pedira, um dos melhores

psicólogos iria ajudá­


-la a enfrentar os problemas com o pai, já falecido. As

coisas só podiam melhorar, e estava desejoso de regressar e de lhe mostrar que

haveríamos de conseguir, que conseguiríamos lutar contra todos, que juntos

fazíamos a melhor equipa de todas.


37

Noah

O meu primeiro dia de faculdade foi melhor do que esperava. O ambiente

universitário era algo que se entranhava nas veias e que não podíamos ignorar.

Para onde quer que olhasse, havia gente jovem, a rir, a tirar móveis dos carros

para levar para as residências, pais a despedir­


-se e panfletos sobre festas, festas e

mais festas.

O meu horário era bastante razoável, com disciplinas que finalmente me

interessavam, não com aquelas coisas absurdas que tínhamos de aprender no

secundário, como, por exemplo, as leis de Newton ou como se alcançou a

independência. Eu queria livros, literatura, queria escrever e ler. Estava

finalmente rodeada de gente que amava o mesmo que eu, e os professores,

alguns mais intimidantes do que outros, conseguiam fazer com que sentíssemos

aquela agitação nervosa no estômago.

Tenho de admitir que, por instantes, gostei de estar sozinha. Não queria falar

com ninguém, pelo menos com ninguém que conhecesse; não queria falar com a

minha mãe, com a Jenna ou com o Nicholas, embora as razões para não me

apetecer comunicar com ele fossem diferentes. Por vezes, deixar tudo para trás e

começar do zero faz­


-nos ver que não há uma única porta aberta, mas também

muitas janelas.

Mal tinha visto a Jenna desde que ela me deixara na residência, porque ela

tinha aulas completamente diferentes das minhas: a Jenna Tavish queria estudar

Medicina, algo que não condizia nem um pouco com ela, mas que desejava

desde que era pequena. Só falávamos por mensagem, e contou­-me que andava

ocupada à procura de uma companheira de casa que quisesse pagar a renda, o

que era uma barbaridade: não ia ter grandes dificuldades, já que os ricaços

abundavam por todo o lado.

Depois de sair da aula, de ter conhecido os professores e de me convidarem

para jantar com algumas pessoas da residência, decidi passar pelo apartamento

do Nick, principalmente para me assegurar de que o N tinha comida suficiente


e também para ir buscar as coisas que ainda ali tinha. Tinha tentado adiar

aquela tarefa o mais possível porque me deixava triste ir buscar as minhas

coisas, mas queria fazê­


-lo antes de ele voltar. Sabia que ia ser um inferno e

preferia ter tudo para estar perfeitamente instalada na minha residência antes de

o enfrentar; assim, também evitava a tentação de mandar tudo para o diabo e

voltar para casa do meu namorado.

Não demorei muito a reunir as poucas coisas que me faltavam... Quando as

tinha todas empilhadas junto à porta, percebi que já era tarde para voltar para a

residência. Sabendo que estava a fazer asneira e que devia deixar de me agarrar a

algo que não podia ter — pelo menos por enquanto —, enfiei­-me na cama do

Nick, deitei­
-me do seu lado e abracei a almofada, inspirando aquele aroma que

só ele tinha e que provocava reações instantâneas no meu corpo.

Naquele instante, recebi uma mensagem no telemóvel.

Parece que decidiste ignorar as minhas mensagens. Quando chegar,


falamos.
Dorme bem, sardas.

Suspirei.

As coisas estavam estranhas, sobretudo por minha causa. Senti um nó no

estômago e quase lhe liguei para confessar por que motivo não quisera falar com

ele. Esperei que achasse que já estava a dormir e por isso não ia responder, pus o

telemóvel debaixo da almofada e fechei os olhos, na esperança de conseguir

descansar.

O ruído da campainha acordou­-me na manhã seguinte. Olhei em volta, um

pouco desorientada, para ver onde estava. A campainha voltou a tocar, e saltei

da cama enrolada num lençol. Quase caí ao tropeçar no tecido, mas cheguei

finalmente à porta.

Ao abrir, vi um ramo de rosas gigante.

— É a Noah Morgan? — perguntou a voz do homem cuja cara estava

escondida atrás daquele ramo espetacular.

— Sim, sou — lá consegui dizer.

— É para si — disse, dando um passo em frente. Deixei­-o entrar, atordoada

com o que os meus olhos viam. O homem deixou o ramo impressionante em

cima da mesa da sala e tirou um bloco de recibos do bolso de trás das calças.

— Pode assinar aqui, por favor — pediu­-me com amabilidade.


Assinei e, quando ele se foi embora, fiquei a olhar para as rosas com um nó na

garganta. Traziam um bilhete e, ao lê­-lo, tive de recorrer a todas as minhas

forças para não chorar.

Ambos sabemos que estas pieguices não são muito a minha onda, mas
amo­-te do fundo do meu coração e sei que, quando chegarmos, vamos
poder começar algo novo e especial. Viver contigo é um desejo que tenho
desde que começámos a namorar, e um ano depois consegui finalmente o
que queria. Espero que o teu primeiro dia tenha sido magnífico e desculpa
não ter podido estar contigo, para ver os teus professores renderem­-se ao
teu talento. Vemo­-nos daqui a uns dias. Amo­-te, Nick.

Peguei no telemóvel que estava em cima da mesa e liguei­-lhe.

— Olá, meu amor — cumprimentou­-me com um tom alegre.

Sentei­
-me no braço do sofá com o olhar fixo nas flores magníficas. Eram

lindas, de um tom azul­


-celeste que me fazia lembrar dos olhos do Nick. Nem

sequer sabia que havia rosas daquela cor.

— Estás louco — disse, com a voz trémula.

Ouvi muito barulho do outro lado da linha, principalmente de t


­ rânsito.

— Louco por ti, sim. Gostaste das flores?

— Adorei, são lindas — declarei, com vontade de me atirar para os braços

dele e de me esconder de tudo.

— Que tal foi o teu primeiro dia de aulas?

Contei­
-lhe por alto o que tinha feito, evitando falar da residência ou da minha

colega de apartamento; a verdade é que nunca tivera muito jeito para ocultar

informações e, por isso, quis abreviar a conversa antes que ele descobrisse

alguma coisa.

— Tenho de desligar, senão vou chegar tarde — disse, mordendo o interior da

bochecha.

— Sei que se passa alguma coisa contigo, não sei se é por causa da Sophia ou

por eu ter tido de vir para cá no dia em que mudaste de casa, mas vou redimir­
-

me, está bem?

Despedi­
-me dele rapidamente e pus o telemóvel por baixo da almofada do

sofá. Sentia­
-me terrivelmente mal, porque lhe estava a mentir e também porque

ia ser a responsável por ele ter uma enormíssima deceção quando voltasse e

percebesse que, afinal, não íamos viver juntos.

Odiei­
-me por tudo aquilo, vesti­-me rapidamente, pus comida e água nos
pratos do N para durarem alguns dias e tirei as minhas últimas coisas do

apartamento. Ao apagar as luzes, soube que seria uma tragédia quando ele

voltasse e não me visse ali.

Tinha três dias para pensar num plano persuasivo.

Passei os dois dias seguintes de uma aula para a outra e a sair com alguns

colegas. Só falei com a minha mãe uma vez porque me ameaçou que, se não lhe

atendesse o telemóvel, apareceria na faculdade. Não tínhamos resolvido nada.

As coisas entre nós continuavam na mesma e assim permaneceriam durante

muito tempo, pelo menos até me sentir capaz de lhe perdoar por ter feito uma

chantagem daquelas comigo.

Estava sentada na cafetaria da faculdade a conversar com a Jenna, que

conseguira finalmente encontrar uma colega de casa, que se chamava Amber e

trabalhava numa empresa de informática da cidade. Conciliava as aulas com o

emprego, onde ganhava o suficiente para viver com a Jenna, o que era dizer

bastante.

— Quando volta o Nick? — perguntou a Jenna, enquanto eu acabava a

minha salada.

— Amanhã à noite — respondi em voz baixa. Não queria falar daquilo.

A Jenna olhou para mim, divertida: por alguma razão retorcida, achava um

piadão à situação em que eu me encontrava.

— E ele já sabe que vives com uma desconhecida num apartamento do

campus?

Levantei os olhos e fitei­


-a, mal­
-humorada.

— Vai saber quando eu lhe contar. Não quero falar do Nick. Diz lá outra vez

qual é o plano para esta noite, que não me lembro muito bem.

A Jenna revirou os olhos, mas animou­-se rapidamente.

— A festa é de uns rapazes da minha turma, que vivem numa fraternidade, e

é para dar as boas­


-vindas ao início do ano. Tanto quanto sei, hoje há várias

festas, e toda a gente está a ansiar pela da Faculdade de Medicina. Vou estar

rodeada de médicos bonitos e de um monte de gente que compreende que a

medicina é o futuro da humanidade, não a física ou a literatura... sem ofensa,

claro — acrescentou, quando olhei para ela com má cara.

— Está bem, vou contigo, mas, no máximo, à meia­-noite vou para casa; tenho

de ter as baterias carregadas para enfrentar o Nick amanhã à noite.

A Jenna riu­
-se, pegou nos livros e levantou­-se da mesa.
— Vemo­
-nos daqui a umas horas, então. Põe­-te bonita! — Piscou­-me o olho

e saiu a bambolear as ancas daquela maneira que fazia os rapazes todos voltarem

a cabeça para a admirar. A Jenna solteira era uma novidade para mim: namorava

com o Lion desde que a conhecera, e parece que antes de estar com ele era uma

pessoa muito liberal.

Ao contrário das últimas festas a que tinha ido — todas em casas imensas,

junto à praia, com gente de muito dinheiro —, nesta podia finalmente

relacionar­
-me com pessoas de diferentes origens, tanto geográficas como sociais:

era o lado bom de andar numa faculdade pública que não era elitista. Nunca me

sentira completamente à vontade rodeada de milionários porque nunca o fora e

continuava a não ser, apesar de a minha mãe insistir no contrário, e gostei da

sensação de encaixar finalmente em algum lado. Não demorei muito a

encontrar a Jenna, que estava com a Amber num canto da cozinha a beber

cerveja. Os meus olhos arregalaram­-se de surpresa quando a vi com uma

Budweiser na mão. Teria adorado tirar uma fotografia para lhe atirar à cara

depois, mas vi­


-a tão bem integrada que me escusei a comentários maldosos.

— Noah — disse o meu nome assim que me viu entrar. Aproximei­-me dela, e

deu­
-me um daqueles seus abraços capazes de estrangular alguém.

Era a primeira vez que via a Amber, e pareceu­-me uma rapariga com um

estilo meio amalucado como a Jenna, mas mais reservada, se é que isto faz

sentido. Sorriu­
-me com alegria enquanto abanava a cabeça ao som da música e

conversava de forma sedutora com um dos rapazes que estavam ao seu lado.

Pouco depois, também eu já tinha bebido umas quantas cervejas e, sem me

aperceber, vi­
-me no meio de cinquenta estudantes bêbedos aos saltos no meio

da sala, de onde tinham afastado todos os móveis. A música estava muito alta, e

quase não se ouvia mais nada. A Jenna saltava e vinha contra mim enquanto

abanava as ancas. A Amber já desaparecera havia algum tempo com o rapaz

musculado.

— Tenho de parar um pouco, Jenn! — gritei­-lhe quando o pessoal começou a

assobiar no início de uma canção que estava na moda. — Vou para a cozinha!

A Jenna assentiu, na verdade a ignorar­


-me espetacularmente, e juntou­-se a

outro grupo para dançar.

Na sala estava um calor infernal; arregacei as mangas e passei a mão pela testa.

Quando cheguei à cozinha, estavam a fazer uma ronda de shots.

— Ei, tu, caloira! — gritou­


-me um rapaz do outro lado da cozinha. — Este é
pelas miúdas bonitas!

Todos os rapazes do círculo beberam o seu shot, gritando e rindo. Ri­


-me

também, mas fui discretamente para o outro lado da cozinha. Encostei­-me à

mesa e, antes de conseguir pegar no telemóvel para ver as horas, o rapaz que me

gritara estava à minha frente.

— Toma, estou a ver que tens sede — disse, entregando­-me um copo

pequeno com um líquido cor de âmbar.

— Não acredito que isto me tire a sede, mas obrigada — respondi, aceitando

o que me oferecia e bebendo­


-o a seguir. O álcool queimou­-me a garganta, e fiz

uma careta de nojo. O rapaz começou a rir e vi, pelo canto do olho, que se

encostava ao meu lado, despreocupadamente.

— Como te chamas? — perguntou­-me, enquanto pegava num copo e o

enchia com água.

— Noah — respondi, sentindo a cabeça a andar à roda. Não devia ter bebido

aquele shot, as cervejas já me chegavam.

— Eu sou o Charlie — apresentou­-se de forma amigável. — Estamos juntos

na turma de Literatura. Não sei se te lembras de mim, sou aquele que

normalmente está a dormir na fila de trás.

Ri­
-me com o seu comentário e admiti que sim, que achava já o ter visto nas

aulas.

— O que te traz por aqui? Estás muito longe das festas shakespea­rianas,

embora seja evidente que os rapazes de ciências são muito melhores do que os

amantes de literatura, não achas?

Sorri e descontraí ao verificar que era decididamente gay.

— A minha amiga está em Medicina. Vim com ela — expliquei, encolhendo

os ombros.

O Charlie parecia feliz por estar a falar comigo porque passou os dez minutos

seguintes a falar e a comentar coisas sobre as nossas aulas e colegas. Fiquei

contente por travar amizade com alguém da minha turma, já que detestava

sentar­
-me sozinha e as únicas palavras que trocara com o resto dos colegas não

iam muito além de olá e adeus.

Estava a rir à gargalhada com um comentário inquietante sobre um dos nossos

professores quando os seus olhos se desviaram para a porta da entrada. Um

rapaz acabara de chegar e, segundos depois, olhou para nós.

— Espetacular. Estás a ver aquele rapaz?

Assenti ao ver que olhava para nós com má cara.


— Não faças caso de nada do que ele vai dizer a seguir.

Nem tive tempo de lhe perguntar nada, porque o rapaz alcançou-nos em

passo largo.

— Tu és imbecil?!

— Pronto, era disto que estava a falar — disse­-me entre dentes.

Sorri.

— Então? Comporta­
-te. Está uma dama presente — censurou o Charlie, com

um sorriso no rosto.

— Estou farto de servir de tua ama­-seca, estás a ouvir? O que estás a beber?

Olhei para os dois disfarçadamente. Se não me tivessem deixado no meio

deles, ter­
-me­
-ia afastado. O Charlie era louro, um pouco mais alto do que eu e

de constituição magra; aquele rapaz que acabara de chegar, pelo contrário, era

uma cabeça mais alto do que nós, também era louro e tinha os olhos verdes, cor

de musgo. Parecia querer estar em qualquer sítio menos ali, rodeado de

adolescentes, porque era evidente que já não o era.

— Estou a beber água, idiota. — O rapaz alto não acreditou e arrancou­-lhe o

copo da mão, aproximando­


-o do nariz para o poder cheirar.

O Charlie parecia estar divertido e satisfeito com tudo aquilo.

— Se deixares de rosnar como um cão raivoso, posso apresentar­


-te a minha

nova amiga. Noah, este é o meu irmão Michael; Michael, esta é a Noah.

O Michael não parecia nem remotamente interessado em mim, mais do que

isso, diria até que me olhou com desagrado, como se eu fosse uma má

companhia para o irmão ou algo do género.

Antes de poder dizer o que quer que fosse, o meu telemóvel começou a tocar.

Desculpei­
-me com um aceno e fui para a rua, onde podia ouvir melhor. Quando

vi que tinha quinze chamadas perdidas do Nicholas, o meu coração parou de

bater. Assim que voltei a ver o seu nome no ecrã, atendi.

— Onde estás, Noah?


38

Nick

Peguei nas chaves e saí do apartamento, batendo com a porta. Nada. Não havia

ali absolutamente nada, nem as malas da Noah, nem a roupa, nem sequer as

poucas coisas que ali costumava deixar quando passava a noite comigo. Percebi

que estava a ficar furioso, não só porque ela não estava ali mas porque não

atendera nenhuma das minhas últimas chamadas. Havia três horas que não

sabia nada dela, e não planeava ligar à mãe para lhe perguntar onde estava. Algo

me dizia que era melhor mantê­-la afastada de tudo aquilo, porque, se estivesse a

acontecer aquilo que eu pensava...

— Em que festa? — grunhi ao telefone, esperando que me dissesse

exatamente onde estava.

— Podes acalmar­
-te? — respondeu­
-me, e ouvi que se afastava do ruído

ensurdecedor da música.

«Se posso acalmar­


-me?»

— Acalmo­
-me quando te vir e quando me explicares que raio está a acontecer

— disse, entrando no carro e ligando o motor.

— Acho que não te vou dizer onde estou.

Parei com a chave na ignição. «Estaria a gozar comigo?»

— Noah, diz­
-me onde estás — pedi­-lhe com uma calma fingida.

A música mal se ouvia; agora já conseguia escutar a sua respiração agitada do

outro lado.

— Já te disse, estou numa festa.

— Rua, número, edifício... Onde?

Ouvi­
-a suspirar, e, um minuto depois, disse­-me onde podia ir ­buscá­-la.

Tinha um mau pressentimento em relação àquilo tudo e só estava à espera de

chegar ao pé dela para que o negasse. Tinha vindo mais cedo para casa, quis

fazer­
-lhe uma surpresa, levá­
-la a jantar para compensar os dias em que não

pudéramos estar juntos. Em vez disso, ao chegar a casa, encontrara o

apartamento vazio, à exceção das flores que lhe enviara, que estavam a murchar
em cima da mesa.

Não demorei muito a chegar e vi­-a mal dobrei a esquina. Estava encos­tada ao

carro, com os braços cruzados sobre o peito. Quando me viu, levantou-se e

olhou para mim com nervosismo. Estacionei à frente e saí.

Respirei profundamente para me tentar acalmar. Agora que a via e que

verificava que estava sã e salva, já conseguia pensar com um pouco mais de

calma.

Aproximei­
-me dela com um passo decidido, mas não fiz o que desejava fazer

desde que me tinha ido embora, não, limitei­-me a olhar para ela com vagar. Ela

ficou calada, embora tenha percebido que o meu silêncio a enervava.

— Vamos — disse, virando­


-lhe as costas sem sequer lhe tocar. — Apetece­
-me

um chocolate quente.

— Espera, o quê? — perguntou com incredulidade.

Abri a porta do passageiro do meu carro, à espera de que ela se a


­ proximasse.

— Pelo visto, tens muita coisa para me contar, e não me apetece falar aqui,

enquanto morres congelada e estremeces meia bêbeda.

Apesar de estar a tentar controlar­


-me, a recorrer a todas as minhas forças para

não ceder à tentação de explodir, vê­-la ali, meio tocada, incrivelmente atraente e

sem mim, irritava­


-me sobremaneira, muito mais do que me atrevia a admitir.

A Noah aproximou­
-se com o passo vacilante e entrou no carro. Nunca a vira

assim, e aquilo só me preocupou ainda mais.

Fechei­
-lhe a porta, contornei o carro e sentei­-me no lugar do condutor. Liguei

o aquecimento no máximo, arranquei e procurei uma cafetaria aberta vinte e

quatro horas. A cena do chocolate quente era apenas a treta de uma desculpa

para a tirar da rua. Estava a tremer, não sei se de frio se por causa daquilo que

me estava a esconder, mas todas as chamadas que ignorara começavam agora a

ter um sentido completamente diferente do que presumira no início.

— Nicholas... prefiro ir para casa — comentou quando viu que continuava na

estrada sem fazer o desvio.

Ignorei as suas palavras e continuei a conduzir.

— Pensava que gostavas de chocolate quente — disse apenas, virando para a

direita e entrando noutra rua.

Senti o olhar da Noah cravado no meu rosto.

— Para de agir como se não se passasse nada. Sei que estás zangado, está bem?

Por isso, podes parar.

— Porque havia de estar zangado? Porque desde que fui para São Francisco
não me atendes o telemóvel? Ambos sabemos que adoras deixar­
-me fora de

mim. Só espero que isto não seja uma espécie de castigo por me ter ido embora.

Vi que se agitava, inquieta, e optei por manter o rosto imperturbável,

continuando a conduzir.

A estrada estava quase vazia... Era normal, tendo em conta que eram quase

duas da manhã. Se há umas horas me tivessem perguntado o que estaria a fazer

naquele momento, não me passaria pela cabeça nada daquilo, muito menos com

a Noah ao meu lado, tão longe de mim quanto o banco do carro lhe permitia.

Acabei por estacionar numa cafetaria de qualidade duvidosa. Ainda nem tinha

desligado o motor, já a Noah saíra do carro e entrara no pequeno

estabelecimento sem mim. Por um instante, não pude evitar compará­-la com a

Sophia. A Noah tinha uma personalidade tão forte como a minha e, mesmo

sabendo que neste caso eu tinha razão, era incapaz de se controlar. Fui atrás dela

e sentei­
-me no lugar que escolhera: uma mesa pequena, afastada das outras, com

vista para a autoestrada.

Tinha o olhar cravado na mesa e não parecia muito disposta a conversar. A

empregada de mesa aproximou­-se, e pedi um chocolate quente para ela e um

café para mim. Estava a tentar acalmar as águas, porque era muito estranho não

a estar a devorar com beijos depois de ter estado quatro dias sem a ver, mas a ira

contida e aquilo que me estava a esconder instalaram­-se entre nós como um

oceano impossível de atravessar. Ao ver que continuava calada, decidi que seria

eu o primeiro a falar. Acabaram­-se os jogos.

— As tuas coisas? Onde estão?

Ela levantou finalmente o olhar, e pude ver os seus olhos cor de mel. Tinha­
-se

maquilhado, e as pestanas, além de parecerem enormes, projetavam uma

sombra curiosa sobre as maçãs do rosto. Os lábios rosados abriram­


-se

ligeiramente, hesitantes, mas, antes de me poder responder, a empregada de

mesa reapareceu com o nosso pedido.

A Noah fechou a boca e segurou a chávena quente entre as mãos. Esperei uns

minutos.

— Vais dizer alguma coisa?

Passaram­
-se mais alguns segundos, até que decidiu falar.

— Discuti com a minha mãe — anunciou em voz baixa. Apoiei as costas no

espaldar do banco e esperei que continuasse.

Desta vez, quando olhou para mim, vi que estava a recorrer a todas as suas

forças para não chorar. Fiquei tenso e esperei.


— Não vou viver contigo, Nick — anunciou, um minuto depois.

Olhei para ela fixamente, à espera de uma explicação que não chegou.

— O que estás a dizer, Noah?

— A minha mãe obrigou­


-me a escolher entre pagar­
-me os estudos ou ir viver

contigo, e eu...

— Não me escolheste — terminei a frase por ela.

— Escolhi, sim, está bem? Disse à minha mãe que não queria saber. Que ia

viver contigo, mas não posso fazê­-lo, Nicholas...

Abanei a cabeça. Estava farto daquela porcaria toda.

— É evidente quais são as tuas prioridades.

Levantei­
-me, e a Noah fez o mesmo. Atirei uma nota de vinte para cima da

mesa e preparei­
-me para sair do café sem sequer olhar para trás.

— Nicholas, espera! — pediu­-me, e esperei. Parei, mas só porque sabia que

não a podia deixar ali. — O que querias que fizesse? Não tenho dinheiro, como

tu, não posso pagar o meu próprio curso, nem bolsa de estudos me dão...

Aquilo era ridículo. Voltei­


-me para ela.

— Não me venhas com essa conversa, Noah! — respondi bruscamente. Lá

fora não havia absolutamente ninguém. Só se ouvia o barulho dos carros a andar

na autoestrada a mais de cem à hora e o rugir do vento. — Sabes perfeitamente

que isto não aconteceu por causa da tua mãe. Ela não te impediria de

estudares... O problema é que não és capaz de lhe fazer frente. Tens muitas

outras opções. Não devias ter saído sem falares antes comigo!

A Noah olhou para mim, a abanar a cabeça.

— Eu conheço­
-a, Nicholas. Ela está decidida a afastar­
-me de ti, e não vou

deixar que o faça, mas não vou deitar o meu futuro por terra por algo que

decidimos precipitadamente e que pode esperar.

— Mas eu não quero esperar! — gritei, perdendo o controlo. — Quero que

estejas comigo, Noah, não com a tua mãe, não com o meu pai, não com uma

amiga, quero, de uma porra de uma vez por todas, que sejamos um casal de

adultos que tomam as suas decisões em conjunto, sem que a tua mãe ou o meu

pai se metam na nossa vida! ­


Quero­-te comigo, quero­-te na minha cama todas as

noites, todas as manhãs!... Se estás comigo, quero que estejas comigo e com

mais ninguém.

Os olhos dela arregalaram­


-se de surpresa.

— É por isso que me queres em tua casa? — perguntou, incrédula, subindo o

tom de voz para condizer com o meu. — Para me poderes vigiar? Que merda de
relação é esta, Nicholas?

Levei as mãos à cabeça. Era a última coisa que esperava; as coisas estavam

finalmente a começar a correr bem, íamos estar juntos sem ninguém se

intrometer na nossa vida, e agora parecia que tudo voltara ao que era antes, mas

ainda pior: a Noah já não viveria em casa do meu pai, mas no campus, rodeada

de imbecis, numa zona onde as violações aconteciam quase todos os dias.

— Se não confias em mim, isto não faz o menor sentido — declarou, e

voltei­
-me para a observar. A voz quebrou­-se na última palavra. Dei um passo

em frente e segurei­
-lhe o rosto entre as mãos.

— Isto não tem nada que ver contigo — disse, aborrecido com esta minha

faceta, amaldiçoando­
-me por ser assim. — Quando não estás comigo, imagino

todo o tipo de coisas, não consigo controlar a minha imaginação, parece que é

alguma coisa que tenho dentro de mim, mas só descobri isto há pouco tempo.

Acontece quando penso em ti porque te amo. A última pessoa que amei tanto

como te amo a ti magoou­


-me, e agora vou odiá­-la para sempre; não consigo

evitar comparar­
-te com ela.

Não acreditava que tinha acabado de lhe dizer isto.

— Nicholas, eu não sou a tua mãe — afirmou ela, taxativa. — Não vou a

lado nenhum.

As imagens da minha mãe a sair de casa invadiram­-me o pensamento. Nunca

tinha voltado a confiar numa mulher, nunca. Jurei a mim mesmo que jamais

deixaria alguém entrar, jurei que nunca iria amar alguém, principalmente

porque não acreditava no amor, não depois de ter visto como era a relação dos

meus pais. E agora que tinha a Noah... Não conseguia evitar temer que ela

fizesse o mesmo comigo; ela era minha, não a podia perder. Não ia aguentar.

Aproximei­
-me até que os nossos olhares se encontraram.

— Foste­
-te embora da minha casa — sussurrei sobre os seus lábios.

A Noah ficou quieta onde estava, presumo que à espera de que eu dissesse

mais alguma coisa. Tirei as mãos dos seus ombros e retrocedi alguns passos.

— Não sei como vamos resolver isto.


39

Noah

Percorremos o trajeto até ao apartamento do Nicholas num silêncio ­absoluto.

Ele não disse uma palavra, nem sequer olhou para mim. Quando chegámos, fui

atrás dele, tentando tranquilizá­-lo. Sentia­-me culpada por tudo aquilo, apesar

de a causa da nossa separação ter sido a minha mãe... Não conseguia evitar

sentir que a cada dia que passava o Nick se afastava mais de mim. Os meus

problemas e a minha mãe estavam a meter­


-se entre nós, e não sabia o que fazer

para o resolver. Tentava tomar as decisões de forma objetiva, baseando­-me no

que era melhor para os dois, mas nada saía como eu queria.

Quando chegámos ao apartamento, o silêncio era insuportável. ­Preferia ouvir

as suas queixas àquilo, porque significava que estava a dar voltas à cabeça com

algo sem sequer me interrogar. Vi­-o atravessar a sala e meter­


-se no quarto.

Fiquei ali, no meio da casa, indecisa. ­Queria mesmo continuar a discutir com

ele? Talvez tivesse sido melhor pedir­


-lhe que me deixasse na residência, mas não

quis esfregar­
-lhe na cara que já me mudara para outro sítio. Sem ele. Além

disso, não suportava a ideia de me ir embora sem resolver aquilo. Não queria

que a minha mãe levasse a sua avante, que era separar­


-nos definitivamente.

Não ouvia absolutamente nada do outro lado da porta, e, alguns minutos

depois, enchi­
-me de coragem e aproximei­-me, entreabrindo­-a um pouco.

O Nick estava sentado aos pés da cama. Tinha tirado a T­


-shirt e tinha os

antebraços apoiados sobre os joelhos, um cigarro na mão direita. Quando me

ouviu entrar, levantou os olhos do chão para o meu rosto.

Fiquei calada a olhar para ele, e o Nick fez o mesmo. Estávamos separados

apenas alguns metros, mas, de repente, pareciam­-me um abismo. Sentia tanto

medo, tanta solidão, que atravessei aquele espaço até me colocar entre as pernas

dele e o obrigar a levantar a cabeça para olhar para mim.

— Não deixes que isto nos separe. — Foi a única coisa que me ocorreu dizer,

porque só tinha percebido que estávamos ambos tão mal quando o Nick me

dissera aquelas palavras, meia hora antes.


O Nick baixou o olhar para o meu estômago, e vi que se preparava para levar

novamente o cigarro aos lábios. Com uma mão, agarrei­-lhe no pulso e com a

outra tirei­
-lhe o cigarro. Observou­-me de sobrolho franzido enquanto o apagava

no cinzeiro que tinha ao seu lado. Então, sentei­-me no seu colo, com uma perna

de cada lado, e segurei­


-lhe o rosto entre as minhas mãos, para que olhasse para

os meus olhos.

— Preciso que me deixes sozinho, Noah — disse num sussurro tão baixo que

achei que ouvira mal. As minhas mãos dirigiram­-se até à nuca dele. Queria

enterrar os dedos no seu cabelo, tirar­


-lhe aquela angústia dos olhos, aquela raiva

que parecia estar a tentar controlar com todas as suas forças. A mão dele

levantou­
-se para agarrar as minhas, impedindo­-me de continuar a acariciá­
-lo.

— Não brinques comigo; agora não.

As suas palavras foram duras, frias, e essa frieza prolongou­-se quando se

levantou da cama e me contornou sem me tocar. Pus­-me de pé para olhar para

ele de frente.

— Magoei­
-te ao ir­
-me embora, e agora estás assustado porque não vou estar

aqui, mas não podes ignorar­


-me desta forma! Não podes!

Ele voltou­
-se com os olhos a lançar chispas.

— Ignoro­
-te porque estou a tentar controlar­
-me!

O seu grito sobressaltou­


-me, mas tentei manter a calma. O Nicholas inspirou

profundamente e voltou a falar.

— Podia ajudar­
-te a pagar as propinas da faculdade — afirmou, olhando para

mim muito sério.

Fechei os olhos e inspirei profundamente. Já sabia que ele ia dizer aquilo, mas

não podia aceitar.

— Sabes perfeitamente que não deixaria que o fizesses — respondi.

— Estou a apresentar­
-te uma solução que nos deixaria a ambos felizes. Por

que motivo não entendes que as tuas decisões nos afetam aos dois, não só a ti?

— respondeu, quase a gritar.

— Porque eu não ficaria feliz com essa solução, Nicholas! — disse,

procurando manter a calma, mas fracassando redondamente. — Se viver contigo

implicar estar em guerra com a minha mãe e o teu pai e ainda por cima

depender economicamente de ti, ia acabar por odiar estar aqui contigo... Não

vês?

— Não, claro que não vejo! Só te vejo a ti, rodeada de gente que não eu. É

isso que vejo!


— Nunca te dei motivos para teres ciúmes de mim, e essa é a verdadeira razão

que te deixa neste estado.

— Não me venhas com coisas. Tu és igual.

Tentei pensar como lhe poderia explicar que os ciúmes eram um sentimento

aceitável, até certo ponto.

— Eu tenho mais motivos do que tu. Já estiveste com mais mulheres do que

as que conseguirias contar; eu, pelo contrário, dei­-te tudo, sabes que sou tua em

todos os sentidos da palavra, e, mesmo assim, continuas sem confiar em mim.

— Quando começaste a namorar com alguém como eu, sabias com o que

contavas. Não posso mudar o meu passado.

O espaço que havia entre nós estava a dar cabo de mim. Claro que sabia com o

que contava quando começara a namorar com ele, mas não era uma coisa que

tivesse escolhido, acontecera simplesmente. Apaixonara­-me por ele de forma

incontrolável, mas isso não impedia que as coisas que ele fazia ou tinha feito me

afetassem como o afetavam a ele.

— Sem confiança, uma relação não vai a lado nenhum, e tu sabes.

Os seus olhos ensombraram­


-se quando se fixaram nos meus.

— Eu não preciso de confiar, só preciso de te ter ao meu lado.

Apesar de estar tão irritado, entendia o que queria dizer.

— Estou aqui agora, não estou?

O Nicholas abanou a cabeça.

— Não estás completamente. Nunca estás completamente, Noah — acusou e

depois deu alguns passos com a intenção evidente de sair do quarto.

— Estou aqui, Nicholas! — exclamei, notando que os meus olhos se

humedeciam.

Não sabia o que ele queria de mim: dera­-lhe tudo o que tinha, tudo o que

podia dar.

— Não, não estás! — gritou, voltando­-se para mim.

— Estou com tudo o que te posso dar neste momento.

— Pois, então, acho que vai chegar um dia em que não será suficiente.

Fiquei a olhar para ele e a sentir um medo horrível. Ali estava, o que sempre

receara: não ser suficientemente boa para ele.

— É injusto seres tu a chorar — disse alguns segundos depois, sem desviar os

olhos de mim.

— Choro porque não te posso dar o que tu queres e porque tenho medo de

que acabes por te fartar de mim — confessei, controlando o soluço que me ficou
preso na garganta.

Não suportava ver que o desiludira. Queria ir­


-me embora porque ia acabar por

desabar e não podia fazê­


-lo à frente dele.

— É melhor ir­
-me embora — anunciei, limpando o rosto com a mão e

olhando para o outro lado.

Ouvi o Nicholas respirar fundo várias vezes e atravessar o quarto antes de me

segurar o rosto entre as mãos e de me beijar. Foi tão intenso que me agarrei com

força aos seus braços para me conseguir manter de pé.

— Nem em mil anos me fartaria de ti — murmurou contra os meus lábios e,

com um gesto rápido, empurrou­-me para a cama e pôs­-se em cima de mim.

Voltou a beijar­
-me, e, apesar das palavras bonitas, senti que estava diferente

comigo. A forma de me tocar, de me beijar, de me tirar a roupa transformou­


-se

mais numa luta contra si mesmo do que num ato de amor entre os dois. Eu

tinha­
-o magoado ao ir­
-me embora, e isso tinha consequências. Os beijos

intensificaram­
-se, e pouco depois a sua boca começou a traçar um caminho

indefinido de beijos quentes e pequenas mordidelas no meu pescoço, nos seios e

até chegar às minhas coxas.

— Nick... — disse, num sussurro entrecortado.

O Nicholas não me ouvia, estava perdido no meu corpo, perdido a beijar cada

centímetro de pele despida que estivesse ao seu alcance.

— Não quero falar mais, Noah — silenciou­-me, tirando­-me as cuecas com

uma mão e pondo­


-se entre as minhas pernas —, já dissemos tudo o que

tínhamos para dizer.

Os seus lábios foram ao encontro dos meus e escolhi esquecer­


-me de tudo.

Não conseguia dormir.

Ao meu lado, o Nick respirava lentamente, mergulhado num sono profundo

enquanto me apertava com força contra as costelas. As mãos contornavam­-me o

corpo, assegurando­
-se de que quase não conseguia mexer­
-me. Observei­
-o

enquanto dormia e senti uma pontada de nos­talgia no peito.

A noite anterior fora tão intensa, tanto física como emocionalmente, que me

deixara destroçada. Fui à casa de banho para lavar o rosto e vol­


tar a ser uma

pessoa, mas, quando me olhei ao espelho, alguma coisa chamou a minha atenção

e me despertou de repente.

— Não posso crer — disse, aborrecida.

Tinha vários chupões espalhados pelo corpo.


Saí da casa de banho e fui ter com ele numa onda de fúria. Estava acordado e

observou­-me da cama, com uma expressão imperturbável.

— Porque fizeste isto? — perguntei, sem me mexer de onde estava.

O Nicholas ignorou a minha pergunta, levantou­-se, vestiu as calças de

desporto e foi para a casa de banho sem dizer uma palavra. Dirigi­-me a ele.

— É isto que vamos fazer agora? — perguntei, vendo que pousava as mãos no

lavatório e deixava cair a cabeça. — Castigar­


-nos?

Aquilo levou-o a olhar para mim.

— O facto de te beijar é um castigo para ti?

Abanei a cabeça. Não ia deixar que desse a volta ao assunto.

— Sabes que odeio marcas. — Era das coisas que mais detestava e ainda ficava

mais zangada porque ele as fizera sabendo que me aborrecia. — És um idiota —

disse simplesmente. O Nick ergueu as sobrancelhas.

— E tu, uma convencida. Entende de uma vez por todas que nem tudo vai ser

como queres.

Soltei uma gargalhada irónica.

— Por favor! Na tua vida, nunca ninguém te disse não a nada, por isso estás a

castigar­
-me, porque sou a primeira e a única.

O Nick ignorou o meu comentário e aproximou­-se com cautela.

— Nisso tens razão... És a primeira e a única.

Ambos sabíamos que não era verdade.

— Desculpa, está bem? Não pensei quando o estava a fazer. Deixei­-me levar

pelo calor do momento. Por favor, podes parar de encarar isto como uma coisa

má? Afinal, são só beijos, os meus beijos...

Suspirei, frustrada. Não queria voltar a discutir com ele. A noite anterior fora

suficiente.

— E se fosses tu? Gostavas? — perguntei, erguendo uma sobrancelha e

deixando que ele se aproximasse de mim. Ajeitou­-me uma madeixa atrás da

orelha.

— Estás a gozar? — disse, forçando um sorriso. — Amo a tua boca. Não há

nada de que goste mais do que de uma marca que me faça lembrar o que fizeste

comigo.

Aquilo não me convenceu.

— E deixavas que te marcasse? — perguntei, observando­-o fixamente. — De

qualquer maneira?

Ele olhou para mim enquanto tentava adivinhar o que me passava pela cabeça.
— Estás a falar de alguma coisa indecente, sardas?

Achei graça à sua resposta, e, por mais que detestasse que me fizesse os

chupões, a nossa vida já era demasiado tensa para acrescentar mais um motivo

de discussão. Forcei um sorriso e tirei­-o da casa de banho.

— Deita­
-te na cama — ordenei.

O Nick olhou para mim, desconfiado, mas fez o que lhe pedi. Abri uma

gaveta da mesa de cabeceira e sentei­-me sobre a sua barriga.

— O que vais fazer? — perguntou­-me, com um brilho negro nos olhos.

— Nada que te tenha passado por essa mente perversa. — Dito isto, levei o

marcador aos lábios e tirei a tampa com os dentes.

O Nick abriu os olhos de surpresa.

— É que nem a brincar — opôs­-se, levantando as mãos e segurando­-me os

pulsos.

Sorri.

— Oh, sim, vais deixar­


-me fazer o que quiser e vais ficar quieto — respondi,

fazendo força com os braços para que me largasse.

O corpo dele rodou sobre o meu e encurralou­-me contra o colchão.

— Se não queres meter­


-te em sarilhos, pousa isso onde estava — ­avisou, mas

vi nos seus olhos que estava a achar graça.

O marcador continuava na minha mão, e fazia tenção de o usar.

— Pensa que é uma coisa que te vou fazer, só eu e mais ninguém. Nunca

desenhei no corpo de ninguém e acho que é uma coisa bonita e especial.

A cabeça dele levantou­


-se sobre mim e olhou­-me, primeiro com curiosidade,

depois com interesse.

— Esta é a tua ideia de algo bonito e especial?

— Qualquer coisa que eu faça com o teu corpo é bonita e especial — afirmei

com um sorriso nos lábios.

— Passaste demasiado tempo comigo, é evidente — comentou e voltou a

rebolar sobre a cama, obrigando­-me a sentar em cima dele, mesmo onde eu

queria estar.

— Sê meiguinha — avisou, pousando as mãos nas minhas coxas ­despidas.

Aquilo era muito divertido e, contrariado ou não, estava a ajudar­


-me a deixar

de lado toda a carga emocional que parecíamos ter acumulado nas últimas

horas. Inclinei­
-me sobre ele e comecei a fazer desenhos no seu peito. Um

coração por cima dos peitorais, um smiley feliz no ombro, um «Amo­-te» sobre o

coração... Pouco a pouco, fui começando a sentir­


-me inspirada e desenhei todas
as coisas que sentia por ele... recordei a carta e as rosas e fiquei com o coração

encolhido. Apesar de aquilo ser, aparentemente, um castigo, depressa se

transformou numa carta de amor que estava a escrever na sua pele. Os olhos

dele não se afastaram do meu rosto por um instante que fosse, e as mãos

limitavam­
-se a desenhar círculos sobre a minha pele enquanto eu trabalhava,

decidida e com a minha melhor caligrafia, sobre o seu corpo escultural. Queria

mostrar­
-lhe quanto o amava, queria que entendesse que para mim não havia

mais ninguém senão ele.

A tinta parecia estar a apagar a dor e a recuperar a cumplicidade.

Com um sorriso rasgado, peguei no pulso dele e escrevi a minha última

mensagem: «És meu.»

Para sempre.
40

Nick

Não afastei os olhos dela nem uma única vez enquanto deixava que fizesse o que

quisesse com o meu corpo. Esta frase podia ser o sonho de qualquer homem, e

nunca me passara pela cabeça utilizá­-la para deixar que me desenhassem

palermices na pele, mas observá­-la à vontade, como fazia naquele instante, era

algo que não tinha preço. Estava tão absorta a espalhar tinta na minha pele e a

escrever nela que não tinha consciência de como a achava incrivelmente bonita.

Tinha o rosto corado e os olhos um pouco inchados por ter chorado na noite

anterior. Sei que não devia ser tão duro, mas gostava da maneira como os olhos

dela ficavam depois de chorar... Dava­-me vontade­ de a beijar­ até ao fim dos

tempos. Aproveitei o seu estado de concentração para assimilar cada um dos

seus gestos e também para lhe acariciar as pernas e as coxas enquanto

continuava entregue à sua tarefa.

Quando a minha mão baixou mais do que devia, pousando em lugares

proibidos, os olhos da Noah procuraram os meus e impediram mais

movimentos.

— Quietinho — ordenou com um sorriso divertido, para depois fixar o olhar

no meu pulso. Deixei­


-a estar enquanto desenhava uma última coisa na minha

pele.

— Acabei — anunciou, tapando o marcador e baixando o rosto para me beijar

suavemente os lábios. Isto de estar imóvel durante tanto tempo com ela meio

despida em cima de mim foi uma verdadeira tortura.

Segurei­
-a pela cintura e fi­
-la rodar até ficar por cima dela.

— E agora, o que devo fazer? — perguntei, suportando o peso do corpo com

os antebraços, para não a esmagar. A mão subiu até ao meu rosto e acariciou­
-me

a pele com delicadeza.

— Sair daqui e mostrar a minha obra­-prima ao mundo inteiro — respondeu,

com um brilho divertido nos olhos. Encostei as ancas às dela, sentindo­-a tão

débil debaixo de mim, tão pequena e tão incrivelmente perfeita... Quando me


apercebi de que esses momentos não iam acontecer com a frequência que eu

desejava, senti um nó instalar­


-se na garganta. Ia ter de a deixar ir embora, viver

na faculdade, rodeada de imbecis que fariam de tudo para chamar a sua atenção.

De repente, nem os meus beijos nem nada do que ela pudesse dizer­
-me me

pareciam suficientes para ter a certeza de que ninguém ma podia tirar.

Só de pensar que a podia perder... magoava­-me muito, fazia­-me medo, uma

sensação dilacerante que me oprimia o peito, como se tivesse dois gigantes

sentados em cima do meu coração. Desde que a minha mãe me abandonara que

não experimentava aquela sensação; fechara­-me tanto ao resto das pessoas,

negara­
-me sentir o que quer que fosse... e agora sentia-me completamente

vulnerável, exposto a esta rapariga incrível que me destruíra o coração.

Foi então que vi o que desenhara no meu pulso e senti um formigueiro doce e

quente apoderar­
-se de todo o corpo. Eu era seu... Escreveu­-o, deixou­-o gravado

na minha pele, e percebi que nada me deixaria mais feliz do que pertencer­
-lhe

de corpo e alma.

Percebi que o meu olhar se ensombrou, inundado pelos sentimentos e pelo

desejo irracional de a conservar ali comigo, ao meu lado, para sempre. Não

conseguia controlar como me sentia nem como o amor por ela continuava a

crescer em passos de gigante.

— Vou deixar­
-te ir embora... Por agora — esclareci, ao ver que pestanejava,

surpreendida —, mas sabes que isto não vai durar muito. Quando quero

alguma coisa, sardas... acabo sempre por conseguir, não importa quem tenha de

atropelar.

Semicerrou os olhos e agitou­


-se, inquieta, por baixo de mim.

— Também me atropelavas?

A pergunta distraiu­
-me por instantes.

— No teu caso, levo­


-te no meu coração, amor; não há lugar mais seguro.

Sorriu, e levantei­
-me da cama para começar a vestir­
-me.

— Não vais tomar banho? — perguntou enquanto eu vestia uma T­


-shirt .

— Isso é uma indireta? Cheiro mal ou algo do género? — perguntei, a sorrir

para as botas enquanto acabava de prender os atacadores.

A Noah ainda tinha a minha T­


-shirt vestida e o cabelo despenteado.

Chegávamos sempre atrasados a todo o lado, e não entendia por que motivo ela

não se arranjava enquanto eu fazia o mesmo. Mas ali estava: sentada na minha

cama, a observar­
-me, divertida.

— Achei que irias a correr apagar o meu Monet — comentou, ­captando a


minha atenção.

Sorri e pus­
-me à sua frente, aos pés da cama. O pé dela repousava

tranquilamente nos lençóis brancos, impoluto e perfeito, como todas as partes

do seu corpo.

— Usarei com orgulho os desenhos que fizeste em mim, sardas. São teus. Vou

deixá­
-los aqui até se apagarem. — Estendi o braço e peguei­-lhe no pé,

pousando­
-o sobre o meu peito e massajando o tornozelo. Observou­-me com

perspicácia. — Até porque este elefante aqui — disse, levantando a T­


-shirt e

apontando para os meus abdo­minais — dá­


-me um ar de macho muito

interessante.

Os olhos dela fixaram­


-se no ponto em que a minha pele ficara a descoberto, e

um sorriso divertido apareceu­


-lhe no rosto. Puxei­-a pelo tornozelo até ao fundo

da cama, e a T­
-shirt subiu­
-lhe até à parte de baixo dos seios. O estômago dela,

liso e esculpido, ficou à mostra, para o poder contemplar naquela roupa interior

de renda branca que me provocava taquicardia.

— Vês alguma coisa de que gostes? — perguntei, inclinando­-me e beijando­


-a

com ternura no umbigo.

Ela fechou os olhos por um instante. Como podia cheirar tão

maravilhosamente bem?

— Vejo­
-te a ti — respondeu simplesmente.

Mas não tínhamos tempo para aquilo; peguei nela ao colo, com um sorriso de

superioridade, as suas pernas a rodearem-me as ancas. Tinha de a tirar daquele

quarto.

Atravessei o corredor até chegar à cozinha. Sorri e sentei­-a na bancada. Fez um

esgar de dor ao sentir o mármore frio, mas deixei­-a ali enquanto tirava as coisas

do frigorífico para preparar o pequeno­-almoço. Senti os seus olhos acompanhar

cada um dos meus movimentos.

Peguei numa taça de fruta, espremi algumas laranjas e bati uns ovos para fazer

mexidos.

— Posso ajudar? — perguntou, mas eu abanei a cabeça.

— Deixa­
-me fazer­
-te o pequeno­-almoço uma última vez — respondi, sem

conseguir evitar dirigir­


-lhe um olhar fulminante. Encolheu­
-se na bancada e não

disse mais nada.

Quando tudo estava preparado em cima da pequena ilha da cozinha, voltei a

pegar nela e sentei­


-a no meu colo. O braço enrolou­-se ao meu pescoço e,

enquanto brincava, distraída, com o meu cabelo, dei­-lhe de comer, absorto nos
meus próprios pensamentos. Ela comia o que lhe dava, também absorta naquilo

que lhe ia pela cabeça.

Tinha consciência de que, por mais que tentássemos disfarçar, o que

acontecera na noite anterior continuava presente entre nós como um fantasma.

Nervoso, inclinei­
-lhe a cabeça para trás e juntei os meus lábios aos seus,

saboreando na sua boca deliciosa a laranja acabada de espremer.

Ficou surpreendida com o meu impulso, mas correspondeu ao beijo. A língua

enroscou­
-se na minha ao mesmo tempo que o meu braço a rodeava com força e a

puxava contra mim.

Quando me afastei, encostei a testa à sua, e os nossos olhares cruzaram­-se. Os

olhos dela tinham aquela cor de mel que me derretia, e senti uma urgência

irracional em trancá­
-la no quarto e nunca mais a deixar sair.

— Eu amo­
-te, Noah... Nunca te esqueças disso.

O olhar dela brilhou de forma incrível enquanto os dedos me acariciavam as

maçãs do rosto e o lábio inferior. Parecia estar perdida nos seus pensamentos, e,

quando se preparava para afastar a mão, agarrei­-a e levei­-a aos lábios. Beijei cada

um dos nós dos dedos com cuidado e, a seguir, deixei­-a continuar a comer o que

tinha no prato.

Se antes estava pensativa, agora tinha­


-a perdido por completo.

— A que horas tens aulas? — perguntei, sem conseguir aguentar mais o seu

silêncio.

— Ao meio­
-dia e meia.

— Eu levo­
-te.

Depois de deixar a Noah na faculdade, encontrei­-me com o Lion e obriguei­


-o

a acompanhar­
-me a um certo lugar.

— A Noah vai matar­


-te — assegurou o meu amigo, enquanto aca­bavam o

que estavam a fazer.

— Não gostas? — perguntei com um sorriso trocista, sentindo­


-me

incrivelmente bem.

Tinha ficado perfeito.

— Estás a amolecer, e isso vai acabar por prejudicar a tua reputação, vais ver

— acrescentou, enquanto pegava na bola de basquetebol de brincar e tentava

acertar no cesto pendurado na porta.

Ignorei o seu comentário e levantei­-me. Precisava de resolver outros assuntos

também.
— Não sou eu quem anda por aí a chorar pelas esquinas, Lion — recordei­-lhe,

ignorando a pontada de culpa. O Lion agora andava a armar­


-se em durão, como

se não se importasse com nada nem ninguém, e eu que nem me atrevesse a

mencionar um certo nome começado por J, senão é que o caldo se entornava.

— És um imbecil — respondeu, atirando a bola e fazendo­-a ressaltar numa

esquina.

Peguei no casaco, vesti­


-o e saí, sabendo que o Lion viria atrás de mim.

O meu carro estava estacionado mesmo ali ao lado. Entrámos, e, quando

estava a fazer marcha­


-atrás, percebi que ele estava a pensar em alguma coisa.

— Estou a ponderar vender a oficina — anunciou.

Voltei­
-me para ele.

— O quê?

A oficina era a coisa mais importante que o Lion tinha, era o seu negócio, uma

herança de família. O meu amigo manteve o olhar fixo na estrada, abanando o

pé com nervosismo.

— Quero resolver as coisas com quem tu sabes — comentou.

Revirei os olhos.

— Acho que, se nem sequer és capaz de dizer o nome dela, as coisas não estão

muito bem encaminhadas.

— Isso é porque continuo zangado com ela — admitiu, soltando um suspiro.

— Mas o pai ligou­


-me, ontem à noite.

Desviei os olhos da estrada para olhar para ele com incredulidade.

— E o que te disse?

— O senhor Tavish sempre me tratou muito bem. Não olha para mim como

os outros ricaços todos, se é que me entendes... É um tipo impecável.

O Greg Tavish era um grande homem e educara os filhos de uma maneira

impecável. A Jenna tinha aquela personalidade porque nunca lhe faltara nada.

Quando éramos miúdos, até eu tinha inveja dela.

— Depois... Estivemos a conversar, sabes, primeiro porque ele queria saber

por que razão a filha já não falava de mim lá em casa e depois porque a Jenna

passara duas noites seguidas a chorar sem parar.

Olhei para ele de esguelha e vi que, apesar de não gostar da ideia de a Jenna

estar a sofrer, era um alívio para ele saber que a separação também a estava a

magoar e que ele não era o único a sofrer com ela.

— Disse­
-me que me dá trabalho na empresa, que tenho de começar por baixo,

claro, e de fazer um exame, mas que, com os anos, posso ir progredindo na


carreira. Este tipo é uma máquina, Nick, devias tê­-lo ouvido falar... Parece tão

seguro, tão inteligente... É normal que a Jenna o adore, sabes? Quem não

adoraria um pai assim?

Olhei fixamente para o carro que ia à nossa frente.

— Não dizes nada?

O meu pensamento desviara­-se por terrenos obscuros. Não podia evitar

comparar o meu pai com o Greg ou a forma como ele e a mulher aceitavam a

relação da Jenna com o Lion, e ele era só um miúdo de rua, um tipo corajoso,

claro, mas, feitas as contas, era um rapaz sem recursos, sem estudos. O pai da

Jenna aceitava­
-o como ele era, e eu tinha de lutar com unhas e dentes para que

me acolhessem na minha própria família.

— Acho que é a melhor coisa que te podia ter acontecido, amigo — respondi

com um sorriso.

Observei­
-o e, pela primeira vez em muitos anos, vi que se sentia seguro. Os

olhos verdes do meu melhor amigo brilhavam com uma calma absoluta.
41

Noah

Passei os três dias seguintes sem ver o Nick. Mantivemo­-nos em ­contacto,

falávamos à noite, e ele mandava­-me mensagens que me faziam corar nas aulas,

mas não conseguimos encontrar tempo para nos vermos.

Nesses dias, saí com a Jenna. Não íamos para a discoteca, nem dançar a lado

nenhum, mas nos arredores da faculdade havia vários bares que eram muito

agradáveis, desde que chegássemos antes das horas de ponta, altura em que era

impossível encontrar mesa. Naquele momento, estava com a Jenna e a Amber, a

sua colega de casa, no Ray’s, um bar que estava na moda. Tínhamos ido cedo e

por isso conseguimos uma das melhores mesas. A poucos metros de distância,

um grupo de rapazes jogava bilhar, e era por de mais evidente que tentavam

chamar a nossa atenção. Três raparigas bonitas sem nenhum rapaz connosco era

motivo suficiente para quererem meter conversa.

A Amber não parava de dizer que estava apaixonada por um deles, um ruivo,

magro e um pouco desalinhado, mas bastante giro. Achava graça ao facto de,

em menos de cinco segundos, já ter feito o filme todo na cabeça.

— Acho que vamos chamar Fred ao primeiro, sabes, sempre gostei muito do

Harry Potter, e de certeza que os nossos filhos vão herdar o cabelo ruivo do

pai...

— Aproxima­
-te dele e diz­
-lhe que já sabes como se vai chamar o vosso

primeiro filho. De certeza que vai ficar caidinho por ti — incentivou a Jenna,

que ainda não parara de beber e parecia enojada com todos os olhares que

recebíamos do sexo oposto.

— Olha, Noah, há ali um que não tira os olhos de ti — comentou a Amber,

ignorando a Jenna e voltando­


-se para mim. Não pude evitar olhar para trás, à

espera de ver o Nick.

Encontrei uns olhos completamente diferentes: não era o Nick, não tinha

nada que ver com ele, e, como dizia a minha nova amiga, não tirava os olhos de

mim. Era alto, louro e segurava o taco de bilhar como se fosse apenas mais um
dos membros do seu corpo. O mais engraçado era que a cara dele não me era

estranha. Desviei o olhar e voltei a fitar as minhas amigas.

— Talvez seja da minha turma, mas não me lembro dele — comentei,

encolhendo os ombros.

A Jenna espreitou para o observar descaradamente.

— Eu já vi este tipo em algum lado. Acho que a sair da cafetaria do complexo

de Biologia, e digo­
-te já, com toda a certeza, que não está no primeiro ano.

Mais do que isso, acho que é professor... Olha, se calhar dá alguma das tuas

aulas ou algo do género!...

Uma aula? Nem pensar.

Olhei disfarçadamente para ele por entre o cabelo. Estava concentrado no

jogo, inclinado sobre a mesa e a apontar para uma bola qualquer. Assim, pude

observá­
-lo com maior liberdade. Não, tinha a certeza de que não era professor,

era demasiado novo para isso, embora não tanto para ser caloiro. Tentei

espremer o cérebro para me lembrar de onde o conhecia, mas não consegui.

Alguns minutos depois, abandonámos o assunto e continuámos a falar de

trivialidades.

— Olha, trazes­
-me outro copo? — pediu a Jenna algum tempo depois.

Disse­
-lhe que sim, e, quando vi que não havia muita fila, aproveitei para ir à

casa de banho. Para lá chegar, tinha de passar pelas mesas de bilhar. Já me tinha

esquecido do tipo misterioso, por isso fiquei muito surpreendida quando ele me

intercetou a meio do caminho e me obrigou a parar.

— Olá — cumprimentou simplesmente, observando­-me com curiosidade.

— Olá — respondi, fixando o seu rosto e lembrando­-me imediatamente de

onde o tinha visto: fora naquela festa onde estivera presente com a Jenna, na

mesma noite em que o Nick voltou de São Francisco e me foi buscar à rua.

— Desculpa, não queria abordar­


-te assim, mas acho que estavas com o meu

irmão há uns dias, numa festa, ou estou enganado?

— Estava, sim, somos da mesma turma — respondi.

Assentiu. Não me lembrava do seu nome, mas ainda recordava os maus modos

com que nos tinha falado.

— Queria pedir­
-te um favor. O meu irmão é especialista em desaparecer sem

dar sinais de vida. Se o vires nas aulas, podes pedir­


-lhe que me ligue? É

importante.

Disse­
-lhe que sim enquanto ele tirava a carteira e procurava qualquer coisa lá

dentro.
— Sei que é pedir muito, mas não conheço mais nenhum dos colegas de

turma dele... Se alguma vez achares que ele está estranho ou que não está bem,

podes ligar­
-me para este número?

Aceitei o cartão que me estendia.

— Claro que sim. Não te preocupes — respondi, ao vê­-lo tão angustiado. —

Mas ele não tem nenhum problema, pois não?

Gostava bastante do Charlie e não queria perdê­


-lo como amigo. Graças a ele,

nos últimos dias tinha­


-me divertido como há muito não fazia; adorava o seu

sentido de humor constante e o facto de se rir de toda a gente, até de si mesmo,

mas sem qualquer maldade.

O irmão do Charlie sorriu sem mostrar os dentes, o que presumi ser uma

forma clara de demonstrar que não queria falar no assunto.

— Nenhum problema com que devas preocupar­


-te.

A sua resposta podia parecer antipática, mas disse­-o num tom de voz tão

transparente e amigável que não consegui evitar retribuir o sorriso, antes de ele

desaparecer por onde tinha vindo.

Ao baixar os olhos, li o cartão e senti a pele toda arrepiada.

michael o’neil

Psicólogo/Psiquiatra

(323) 634­-7721

Não demorei muito a voltar para a residência; estava cansada e não conseguia

deixar de pensar no que o irmão do Charlie dissera. O assunto do psicólogo

estava na minha lista de tarefas pendentes. O Nick pedira­-me que o fizesse por

ele, e, apesar de ter dito que sim, detestava a ideia de ter de me abrir com um

desconhecido, de falar dos meus medos e assuntos íntimos. Não era o tipo de

pessoa que tivesse facilidade em contar os seus problemas e muito menos a

quem não conhecia. Ainda assim, tinha consciência de que os pesadelos

continuavam, e o meu medo do escuro estava presente diariamente. Sabia que

era uma coisa que não podia continuar a adiar, mas não gostava nada da ideia de

alguém me analisar, me julgar ou dizer que estava completamente louca. A

minha mãe tentara levar­


-me ao psicólogo em mais do que uma ocasião, até

quando era criança, mas eu chorava tanto durante as consultas que ela acabara

por desistir. Comprara­


-me luzes suaves para pôr no quarto, e era assim que

dormia até agora. Claro que os pesadelos eram algo relativamente novo que
surgira por ter visto o meu pai morrer.

Meti­
-me na cama e voltei a olhar para o cartão dele. Seria uma espécie de

sinal? O tal Michael parecia ser boa gente e, mais importante do que isso, não

era demasiado velho, o que me deixava um pouco mais segura, já que assim as

consultas podiam passar por simples conversas entre amigos. Primeiro queria

falar com o Charlie; além disso, queria saber por que motivo o irmão estava

preocupado com ele, embora não estivesse preparada para contar os meus

problemas ao Charlie.

Sabia que, se acabasse por lhe contar, ele haveria de arranjar uma desculpa

qualquer para me convencer de que o irmão não seria um bom psicólogo para

mim, por isso decidi finalmente ligar ao Michael e perguntar­


-lhe que tipo de

terapia fazia.

No dia seguinte, depois das aulas da manhã, arranjei um tempinho e liguei ao

Michael. Contei­
-lhe o meu problema por alto, sem especificar muito, e ele

disse­
-me que era um dos psicólogos do campus. Trabalhava para a universidade

há dois anos e incentivou­


-me a marcar uma consulta. Eu não sabia nada do

Charlie, porque não aparecera naquela manhã, mas assegurei que ele não

costumava ir às aulas da manhã.

Apesar dos nervos, senti­


-me um pouco aliviada por ter dado aquele pequeno

passo; agora só me restava ir ver como me saía, e sobretudo ver se me sentia à

vontade com ele para lhe contar as minhas coisas.

Passei o resto da manhã na cafetaria da faculdade. Tinha um nó no estômago,

estava nervosa, por isso pedi só uma chávena de café e peguei num dos livros

que tínhamos de ler para as aulas. O ambiente da cafetaria era um pouco

angustiante, por isso escolhi uma das mesas mais afastadas.

Só depois de algum tempo senti que uma impressão estranha se instalava no

meu estômago; como se o meu corpo fosse capaz de o sentir. Levantei os olhos e

vi­
-o: o Nick estava ali, a entrar na cafetaria com um copo descartável de café

numa mão e o Mac na outra. E o pior é que não fui a única a aperceber­
-se da sua

chegada. As cinco raparigas que estavam na mesa ao lado da minha, e que não

paravam de falar, começaram a cochichar e a olhar para ele descaradamente.

Olhei em volta, observando atentamente a partir da minha posição privilegiada,

e verifiquei que as miúdas da mesa ao lado não eram as únicas a olhar para o

meu ­
namorado. O Nick passou por entre as pessoas e sentou­-se numa mesa

onde um grupo de rapazes o recebeu com as costumeiras palmadas nas costas.

— Deus do céu, é lindíssimo! A sério, basta­-me olhar para ele e fico toda
nervosa — confessou uma das miúdas ao meu lado.

Fiquei tensa quase de imediato.

— É o meu futuro marido. Por isso, podes afastar os olhos dele — disse­-lhe, e

todas se riram. Não tinha consciência de que o Nick era obviamente visível para

as outras pessoas. Era dolorosamente bonito. Bastava ver como se vestia, calças

descaídas sobre as ancas, T­


-shirts que ficavam coladas ao corpo, realçando os

braços musculados... e o pior de tudo: levava os ­óculos de ler, aqueles que lhe

davam um ar incrivelmente atraente, os mesmos que achava que só usava

quando estava comigo no apartamento.

Uma parte de mim queria ir ter com ele a correr e reclamá­-lo para mim, mas

nunca tivera aquela posição de vantagem para poder observar como se

comportava quando não estava com ele.

Sinceramente, parecia não se importar muito com os colegas de mesa. Estes

não paravam de armar confusão enquanto ele parecia concentrado no que estava

a ler no computador. Duas raparigas aproximaram­-se da mesa e olharam para

ele de forma provocadora. Uma delas disse­-lhe qualquer coisa. O Nick levantou

os olhos e sorriu. Um calor intenso começou a acender­


-se dentro de mim.

— Algum defeito tem de ter — comentou outra rapariga ao meu lado.

— O único defeito que tem é atirar­


-se a tudo o que mexe. Não o queria como

namorado. Além disso, bastava­-me tê­-lo à frente para não conseguir pronunciar

uma palavra. Havia de me transformar numa perfeita idiota, é o que vos digo.

Como se tivesse ouvido aquelas palavras, o Nick levantou a cabeça do

computador, e os seus olhos cruzaram­-se com os meus ao longe. Podia ter­


-me

feito de tonta ou distraída, mas queria que ele me visse, queria ver o que fazia

agora que eu estava no seu território, na sua faculdade, onde toda a gente o

conhecia e falava dele.

Um sorriso divertido surgiu nos seus lábios. Eu, pelo contrário, ­continuei a

olhar para ele.

— Ele está a olhar para nós — anunciou alguém na mesa ao lado, e ouvi­-as rir

como umas tontas.

O Nick levantou­
-se, pegou nas suas coisas sem afastar os olhos dos meus e

encaminhou­
-se para a minha mesa. Tive plena consciência de que muitas

miúdas o seguiam com o olhar.

Voltei a concentrar­
-me no livro e esperei para ver o que fazia. Ouvi

claramente a cadeira ao lado da minha mexer­


-se enquanto se sentava ao meu

lado.
— Olá — disse simplesmente e, sem esperar pela minha resposta, agarrou na

minha cadeira e virou­


-a até ficarmos frente a frente, com as minhas pernas

quase encostadas aos joelhos dele.

As miúdas da mesa ao lado observavam­-nos, estupefactas.

Olhei para ele e senti borboletas na barriga. Não conseguia evitar: a sua

presença deixava­
-me as hormonas numa revolução, como acontecia com todo o

setor feminino.

— Olá — respondi, um pouco tensa. Estava habituada a que as mulheres

olhassem para ele. Mas nunca tinha ouvido o que diziam a seu respeito, nem

como era senti­


-lo do lado de cá. Claro que também olhavam para ele quando

estávamos juntos, mas não faziam comentários que eu conseguisse ouvir. Agora,

ficara a saber que havia uma fila de miúdas ansiosamente à espera de que eu

metesse a pata na poça para poderem ocupar o meu lugar.

«Não o queria como namorado... atira­-se a tudo o que mexe.»

Fixei novamente os olhos no livro. Estava demasiado nervosa por saber que

toda a gente nos observava; além disso, detestava ouvir o que as pessoas diziam

dele, como se fosse uma pessoa frívola, superficial, que era bonito e mais nada.

O Nick era muito mais do que um corpo.

— Bem, é a isto que chamo uma receção calorosa, sim, senhor — disse ele,

tocando­
-me no cabelo.

Voltei a olhar para ele e franzi o sobrolho.

— Não sabia que tinhas aulas hoje nem que estarias aqui. Podias ter dito

qualquer coisa.

As miúdas ao nosso lado não paravam de cochichar e de rir e já me estavam a

começar a enervar.

— Não planeei vir cá, mas tinha um trabalho para entregar. Como não

vivemos juntos, tenho muito tempo livre. — Os olhos dele fitaram­-me daquela

forma sóbria que me fazia lembrar o que estava a perder por não partilharmos o

mesmo teto.

— Não sabia que eras tão popular na faculdade — comentei, mudando de

assunto, porque não queria voltar à mesma discussão.

O Nick desviou os olhos para as miúdas da mesa ao lado. Nem queria que

olhasse para elas.

— Estás com ciúmes? — perguntou, concentrando­-se novamente em mim.

Preferi não responder à sua pergunta, por isso debrucei­-me sobre a mesa e

puxei­
-lhe a T­
-shirt , para se aproximar de mim.
— Acho que há aqui demasiadas pessoas que não fazem ideia de quem sou —

admiti, deixando que os olhos dele percorressem o meu rosto. Um sorriso

divertido desenhou­
-se nos seus lábios sedutores.

— Não há mal nenhum em reclamares o que é teu, amor.

Estas palavras foram o suficiente para mim. Unimos os nossos lábios num

beijo delicioso. O silêncio que se fez na mesa do lado serviu para pôr finalmente

um sorriso nos meus lábios. A minha intenção era apenas dar­


-lhe um beijo

intenso, mas o Nick parecia ter outros planos. Sentou­-me ao seu colo sem se

afastar de mim um centímetro e, então, entreabriu­-me os lábios, empurrando­


-os

com a língua, e deixei que invadisse a minha boca.

Nesta posição, estava de costas para quase toda a cafetaria, por isso as pessoas

deduziam o que estávamos a fazer, mas sem chegarmos a dar um grande

espetáculo. O Nick mordiscou­


-me o lábio inferior, sugou e voltou a pressionar a

boca contra a minha, como se quisesse selar o nosso amor.

Quando me afastei, verifiquei que tudo aquilo o divertia bastante e também

que a excitação lhe escurecia os olhos.

— Adoro demonstrações públicas de afeto — confessou, desenhando círculos

constantes com o polegar no fundo das minhas costas. Estremeci.

Foi então que senti o toque de qualquer coisa estranha na minha pele. Franzi

o sobrolho e obriguei­
-o a mexer o braço para o poder ver: tinha uma ligadura

branca a tapar o pulso.

— O que te aconteceu? — perguntei, horrorizada.

Pareceu hesitar durante uns segundos, e a minha inquietação foi aumentando.

— Nada, não te preocupes.

A minha mente foi assaltada por imagens do Nicholas a meter­


-se noutra

briga. Procurei outros sinais de violência, mas o seu rosto estava impecável, sem

um arranhão. Olhei para os nós dos dedos, mas também não vi nódoas negras.

— Por que motivo tens uma ligadura no pulso, Nicholas? — per­


guntei,

mudando o tom de voz e ficando séria.

Atirou a cabeça para trás, e um sorriso que não soube interpretar muito bem

apareceu no seu rosto.

— Não te passes nem nada parecido, está bem?

Franzi o sobrolho e agarrei­


-lhe no pulso.

— O que fizeste?

Um sinal de alarme ecoou dentro de mim.

— Podes ver por ti mesma — disse­-me, incitando­-me a levantar a ligadura.


Fi­
-lo sem esperar um segundo, e ali, um pouco inchada, mas claramente

visível, estava uma tatuagem.

— Meu Deus! — exclamei com a voz entrecortada.

O Nick acabou de tirar a ligadura e deixou­-a sobre a mesa.

— Acho que não vale a pena tapá­


-la, não achas?

Sobre a sua pele bonita estava escrito a preto, imitando a minha caligrafia, a

mesma frase que escrevi no seu corpo três dias antes: «És meu.»

— Diz­
-me que isto não é uma tatuagem — supliquei, com o coração

encolhido.

— A sério que pensaste que ia deixar que isto se apagasse? — respondeu,

observando o pulso com orgulho.

— Enlouqueceste, Nicholas Leister! — respondi, sentindo uma série de

emoções contraditórias. Uma tatuagem era uma coisa para sempre, uma marca

na pele que o recordaria eternamente de mim... Estas duas palavras

reclamavam­
-no como meu.

— Estavas gravada na minha pele muito antes de ter feito esta tatuagem; isto

é só uma recordação tua que trarei comigo para sempre, sardas. Não lhe dês

mais importância do que a que tem.

Nesse momento senti medo. Compreendi quanto aquilo significava, e, não

obstante as suas palavras bonitas, uma pressão que me era familiar comprimia­
-

me o peito e dificultava-me a respiração.

— Tenho de ir — anunciei, começando a levantar­


-me, mas o braço dele

segurou­
-me onde estava.

O Nick semicerrou os olhos e observou­-me com seriedade.

— Estás a passar­
-te com isto, e não foi essa a minha intenção — reconheceu,

claramente desiludido.

Abanei a cabeça; de repente sentia que me faltava o ar e que precisava de ir

para a rua. Parecia­


-me que toda a gente estava atenta ao que ia fazer a seguir.

— Uma tatuagem é para toda a vida, Nicholas — disse, com um nó na

garganta. — Vais arrepender­


-te de a teres feito, sei que vais. O que vais fazer se

um dia ela se transformar numa recordação má, num fantasma que te persegue?

Vais arrepender­
-te e vais odiar­
-me porque ela te vai fazer lembrar de mim

mesmo que não queiras... — Os lábios dele silenciaram­-me com um beijo

rápido. Embora parecesse terno, senti a tensão do Nick sob o meu corpo e a

dureza dos lábios contra os meus.

— Há alturas em que não sei mesmo o que fazer contigo Noah, a sério que
não sei.

Vi­
-o pegar no portátil sem olhar para mim e ir­
-se embora por onde tinha

vindo.

Merda... Será que tinha magoado os seus sentimentos?

Nessa noite não consegui dormir. O olhar desiludido e magoado do Nick não

me deixou pregar olho; sentia­-me culpada por me ter comportado daquela

maneira, por ter reagido assim. Foi nesse instante que percebi que precisava

mesmo de falar com alguém, precisava de ajuda, para poder ser aquilo que o

Nick esperava de mim.

Na manhã seguinte, tive a minha primeira sessão de terapia com o Michael

O’Neil.

— Fala­
-me um pouco de ti, Noah. Porque achas que precisas da minha ajuda?

A consulta com o Michael não foi como imaginara. Não havia um sofá no

meio da sala, objetos estranhos, nem nada parecido: era um gabinete simples,

com uma secretária num dos cantos, dois cadeirões pretos com uma mesinha de

centro e almofadas brancas acolhedoras. As cortinas da janela enorme estavam

abertas e deixavam entrar uma luz valorosa. O Michael ofereceu­-me chá e

bolachas, e senti que tinha cinco anos.

Falei­
-lhe brevemente da minha infância, da relação que tivera com o meu pai

e dos problemas que ele tinha com a minha mãe. A minha intenção não era

revelar os meus segredos todos logo na primeira sessão, mas o Michael era

muito bom a obter informações sem que me apercebesse. Quase sem dar por

isso, já lhe tinha contado o episódio que me fizera saltar da janela e o trauma

que tinha com a escuridão; da mesma forma, contei­-lhe que fora obrigada a

deixar a minha casa havia pouco mais de um ano para me mudar para Los

Angeles e também lhe falei do Nick. Afinal, era por causa dele que ali estava.

— Tens namorado? — perguntou, parando de escrever no bloco de notas.

Assenti, mexendo­
-me inquieta no cadeirão.

— Fala­
-me da tua relação com ele.

A sessão passou a voar e mal me deu tempo para lhe contar muito mais.

— Olha, Noah, esta hora serviu para te conhecer um pouco melhor, mas não

tivemos tempo para mergulhar mais profundamente em nada... Gostava que

começasses a vir duas horas por semana. Pelo que me contas, o que mais te

preocupa é a tua nictofobia, e isso pode resolver­


-se com terapia. Ficarias

surpreendida com a quantidade de pessoas que sofrem do mesmo problema, por


isso não tens nada de que te sentir envergonhada.

Gostava de lhe dizer que não sentia vergonha, que odiava simplesmente ter

este bloqueio mental quando as luzes se apagavam. Não sabia ao certo se aquela

hora com ele tinha servido para alguma coisa, mas a verdade é que me sentia

confortável ali, e isso era muito importante.

O Michael levantou­
-se e acompanhou­-me até à porta.

— Foi um prazer conhecer­


-te, Noah, e espero mesmo poder ajudar­
-te.

Retribuí o sorriso. A sua forma de falar, tão calma, e a maneira como olhava

para mim transmitiam­


-me uma tranquilidade quase absoluta. Acho que era

bom no seu trabalho.


42

Nick

Olhei para os edifícios que tinha à minha frente. Às vezes, olhar de uma altura

daquelas podia ser quase embriagante; outras, fazia­-nos sentir superiores, ali a

observar as pessoas sem elas se aperceberem, o trânsito noturno, os últimos raios

de sol... Sempre gostara de alturas; às distâncias, pelo contrário, já não achava

tanta graça. Estava há algum tempo a dar voltas à cabeça, a pensar, a tentar

entender por que motivo por vezes era tão difícil conseguir aquilo que desejava.

Muitas pessoas podiam criticar­


-me por dizer isto, porque a verdade é que não

me faltava absolutamente nada, mas havia uma coisa em particular que me

cativara, alguém, melhor dizendo, e não sabia o que fazer para assegurar que ela

ficaria ao meu lado, independentemente do que viesse a acontecer.

A cara dela ao ver a tatuagem não foi a que eu esperara; também não achava

que ia dar saltos de emoção, mas nunca imaginei que a encarasse com medo. O

medo nunca entrava no meu pensamento, não fazia parte dos meus planos; era

muito difícil assustar-me com alguma coisa.

A Noah vivia com medo, já o admitira, e eu não podia fazer nada a esse

respeito para a ajudar. A minha presença conseguia pô-la a dormir sem ter

pesadelos e acalmava os seus demónios, mas não os fazia desaparecer. Temia que

aqueles demónios acabassem por ser também meus, porque toda a gente tinha o

seu limite... Eu, como homem, tinha os meus limites muito bem delineados,

mas estes pareciam redefinir­


-se ao som daquela pessoa que me deixava

completamente louco.

Queria conhecê­
-la por inteiro, e, quando achava que o tinha conseguido fazer,

ela surpreendia­
-me com alguma coisa que não estava preparado para encaixar.

Nessa altura, tinha de voltar à estaca zero.

«O que vais fazer se um dia ela se transformar numa recordação má, num fantasma

que te persegue? Vais arrepender­


-te e vais odiar­
-me porque ela te vai fazer lembrar de

mim mesmo que não queiras...»


Como podia ter­
-me dito isto? Não tinha já deixado bem claros os meus

sentimentos por ela, não era óbvio que o meu mundo girava prati­
camente à

sua volta?

Olhei para o contrato que me tinham enviado naquela manhã. Ganháramos o

caso Rogers; um novato como eu conseguira conduzir e ganhar um caso que já

todos tinham dado como perdido. O Jenkins mandara­-nos, a mim e à Sophia,

para que perdêssemos, para assim provar que ainda não estávamos preparados

para assumir casos mais complicados... Defendia o seu lugar com unhas e

dentes, mas, com este estratagema, saíra­-lhe o tiro pela culatra.

Ali estava o papel que sempre quisera ler. Ofereciam­-me dois anos de estágio

num escritório que não tinha ligações com o do meu pai, em Nova Iorque, com

apartamento pago e um salário de quatro mil dólares por mês, que seria

renegociado no fim do estágio. Era uma oportunidade única, uma possibilidade

de começar sozinho, por mim mesmo, pelos meus êxitos e méritos, sem

depender do meu pai.

E ali estava outra vez... Aquele rosto bonito, o rosto pelo qual mataria e daria

a vida: Noah.

Peguei no contrato e meti­


-o numa gaveta. Não havia mais nada a pensar sobre

aquele assunto.
43

Noah

Silêncio.

Era isto que havia entre mim e o Nicholas e não era algo de que estivesse à

espera. Estava sentada na minha cama, a olhar fixamente para o telemóvel e a

pensar no que poderia fazer ou dizer para justificar o meu comportamento do

outro dia. Tinha saudades dele e assolava­-me o medo de que tivesse finalmente

esgotado a sua paciência.

Fazendo das tripas coração, comecei a escrever­


-lhe uma mensagem... Mas logo

a seguir apaguei­
-a e decidi ser corajosa e ligar­
-lhe diretamente. Esperei, ansiosa,

até alguém atender.

— Sim?

Era uma voz de mulher.

Três batimentos cardíacos e a seguir o barulho do sangue a latejar­


-me nos

ouvidos.

— O Nicholas está?

A minha voz estava embargada e, não fosse pela raiva que me cegava, tinha

desligado mal ouvisse a voz da Sophia.

Ela confirmou, e, uns minutos depois, ouvi a sua respiração do outro lado da

linha.

— Noah.

Noah... Ao que parecia, a «sardas» já não existia.

Naquele momento, senti­


-me tão longe dele que me doeu o coração.

— O que estás a fazer com ela?

Não fora minha intenção fazer­


-lhe aquela pergunta assim, sem mais nem

menos.

— Estou a trabalhar.

Respirei fundo, tentando encontrar uma forma de me ligar a ele, mas

tinham­
-se passado quatro dias sem que nenhum dos dois tivesse dado sinais de

vida, e era a primeira vez que isto acontecia. Estava perdida, porque não
entendia o que estava a acontecer.

«A tatuagem.»

Tinha falado daquilo com o Michael; ultimamente, ia à consulta quase todos

os dias, e falávamos de tudo. Nunca fora capaz de me abrir com um

desconhecido, mas com ele conseguia, e a ideia de esperar um pouco e de ver o

que acontecia com o Nick fora sua.

Disse­
-me que pressionar nunca era bom e que o melhor seria esperar que a

irritação passasse em vez de deixar que ela falasse por mim.

Pois bem, ali estávamos, a falar. Mas não era exatamente a conversa ou a

receção que esperara.

— Nick...

— Noah...

Falámos os dois ao mesmo tempo e ambos nos calámos para ouvir o que o

outro ia dizer. Noutra situação, teria sido divertido, mas não agora, não quando

o sentia a quilómetros de distância.

— Quero ver­
-te — disse, ao perceber que ele não tomava a iniciativa.

Ouvi­
-o afastar­
-se do barulho que o rodeava. Devia ter­
-se fechado numa divisão

qualquer.

— Desculpa não te ter ligado — disse, um segundo depois. — Tenho estado

ocupado com o aniversário da empresa...

— Eu estou a ter consultas num psicólogo — disse sem pensar, depois de um

silêncio que nenhum dos dois quis interromper. Não sei por que motivo disse

aquilo assim de repente, talvez porque sentia que tinha de lhe explicar que, não

obstante a minha atitude, estava disposta a melhorar e a mudar por ele.

— Como? Desde quando? Porque não me contaste nada?

— Estou a contar­
-te agora.

— Mas não podes ir a um psicólogo qualquer, Noah. Eu já tinha procurado,

já tinha falado com os melhores psicólogos da cidade, e tu agora vais...

— Nicholas, o que importa quem seja? Está a ajudar­


-me, e é novo, trabalha

aqui na faculdade. É mais como se estivesse a falar com um amigo do que outra

coisa qualquer.

— Com um amigo?

O tom de voz dele passou de frio a gélido em poucos segundos.

— Chama­
-se Michael O’Neil, é irmão de um colega da minha turma, e

disse­
-me que se...

— Os psicólogos da faculdade são uns fedelhos mal pagos que não têm a
menor ideia do que andam a fazer. Que idade dizes que ele tem?

Era incrível.

— Que importância tem isso?

— Acredita em mim, tem muita. Que raio pode saber um tipo que se

licenciou há dois dias? O que pode ele saber acerca do que está a acontecer

contigo?

— Ele tem vinte e sete anos e está a ajudar­


-me... É a única coisa que te

deveria importar.

— O que me importa és tu e o que é melhor para ti, e asseguro­-te que um

psicólogo da faculdade não vai saber o que fazer quando começares a contar­
-lhe

o que se passa contigo.

— O que queres insinuar com isso?

— Estou a dizer que quero que deixes as consultas com esse idiota e que me...

Não conseguia continuar a ouvi­-lo. Desliguei o telemóvel e tentei respirar

fundo para me acalmar. Como raio se transformara aquela conversa em mais

uma discussão?

Peguei no casaco de cabedal, calcei as botas e fui para a sala, onde a minha

companheira de casa estava distraída, a ver televisão. O nosso apartamento era

bastante acolhedor, com dois quartos, casa de banho ­partilhada e uma sala com

kitchenette. Não me podia queixar. Pelo menos o William­ dera­-se ao trabalho de

me arranjar um sítio agradável para viver. A minha colega de casa chamava­


-se

Briar, e, agora que já convivera algumas semanas com ela, podia dizer, sem

quaisquer rodeios, que era bastante promíscua. Não que andasse vestida de

forma provocante nem nada disso, mas tinha simplesmente um dom que fazia

com que qualquer tipo com olhos na cara a quisesse levar para a cama, e ela

acedia, maravilhada. O seu cabelo ruivo era lindo, mais vermelho do que cor de

laranja, e tinha uns olhos verdes e exóticos. Era alta e esbelta e, segundo me

contara, trabalhava como modelo para muitas marcas conhecidas. Os pais eram

realizadores famosos em Hollywood, e ela sabia que mais cedo ou mais tarde

acabaria a trabalhar com eles.

Não era de admirar: se tivesse aquela cara, também havia de querer ser atriz,

mas a Briar tinha um ar de «não quero saber de nada» que chegava a ser

preocupante. Falava bastante comigo e era simpática, mas eu ainda não a

compreendia muito bem.

— Arrufos de namorados? — perguntou­-me com indiferença enquanto

inspecionava uma unha e a pintava de seguida com verniz vermelho­-sangue.


Fui até ao frigorífico e tirei uma lata de Coca­-Cola. Não que precisasse de

cafeína para ficar mais alterada, mas era um movimento reflexo, nem sequer

tinha sede; só não conseguia estar quieta. Aquela última conversa com o Nick

mexera muito comigo.

— Não quero falar disso — respondi, num tom bastante brusco. Os olhos da

Briar cravaram­
-se em mim, e senti­-me imediatamente ­culpada.

Não que fôssemos amigas nem nada parecido, mas ela sempre fora simpática

comigo. Suspirei e contei­


-lhe brevemente o que se passava com o Nick. A

verdade é que estava a sentir falta de amigas, porque, desde que viéramos para a

faculdade, a Jenna andava na sua bolha e, além disso, vivia do outro lado do

campus. Não lhe falei do psicólogo, obviamente, mas contei­-lhe da tatuagem e

da minha reação.

— Caraças, uma tattoo! Ele está caidinho por ti, não? — comentou,

sentando­
-se num dos bancos que estavam à volta da mesa da cozinha. Brinquei,

distraída, com a lata de Coca­


-Cola enquanto decidia o que lhe podia contar.

— O que se passa entre nós é diferente de tudo o que já senti por qualquer

outro rapaz... É intenso, sabes? Uma palavra dele é capaz de me levar ao céu ou

de me enterrar nas profundezas.

A Briar olhava para mim com atenção.

— Só me senti assim uma vez, por uma pessoa que acabou por se revelar um

manipulador mentiroso que estava a brincar comigo... — as suas palavras foram

sinceras, e, enquanto as dizia, tirou a pulseira de prata que usava sempre no

pulso direito de forma descuidada. — Entendo perfeitamente quando dizes que

as coisas podem ser intensas.

Arregalei os olhos ao ver as marcas no seu pulso. Os nossos olhares cruzaram­


-

se, e vi nela muito do que via em mim quando me olhava ao espelho.

Os lábios da Briar desenharam um sorriso.

— Não é caso para tanto. É divertido ver como as pessoas olham para mim

depois de lhes contar que tentei suicidar­


-me — disse, voltando a pôr a pulseira.

— É um sinal de fragilidade, sim, mas tentei fazer isto e estou aqui, a falar

contigo, sem qualquer tipo de arrependimento. A vida às vezes é uma merda, e

cada um tenta levá­


-la o melhor que pode.

Não sabia muito bem o que dizer. Entendia­-a; entendia­-a melhor do que ela

podia imaginar. Achava estranho falar daquele assunto sem qualquer pudor...

Eu demorara dez anos até conseguir mostrar a cicatriz que tinha na barriga.

Marcas na pele... Recordações infinitas de momentos que nunca queríamos


reviver.

— Gosto da tua tatuagem — disse ela, e apercebi­-me de que estava a tocar

nela. Às vezes fazia­


-o sem me dar conta.

— Às vezes pergunto­
-me o que me passou pela cabeça quando decidi fazê­-la.

A Briar sorriu, levantou a T­


-shirt e mostrou­-me as costelas. Escrito a preto

numa caligrafia linda, podia ler­


-se uma mensagem que me tocou no coração:

Keep Breathing. Continua a respirar.

Compreendi imediatamente o sentimento por detrás daquelas ­palavras.

— Agora é o momento em que nos abraçamos e juramos ser amigas para

sempre — disse ela, baixando a T­


-shirt e rindo­-se de forma des­preocupada.

Era evidente que eu não fora a primeira pessoa a quem contara aquilo.

Conhecíamo­
-nos há pouco tempo, e a forma como falava do seu passado deixava

claro que, na verdade, não procurava a comiseração de ninguém. Mostrava os

seus demónios sem reservas, e percebi que o fazia para que ninguém a pudesse

conhecer plenamente. Sabia que escondia muitas ­coisas, e agora, ao vê­-la com

outros olhos, compreendi que pertencia àquele lado da vida onde nem tudo é

cor­
-de­
-rosa.

— Queres ir dar uma volta? — perguntei, sem saber sequer o que estava a

dizer.

Observou­
-me, surpreendida.

— Essa não é a reação habitual das pessoas depois de me ouvirem contar que

tentei matar­
-me, Morgan — brincou, esboçando um sorriso, determinada a

tratar­
-me pelo meu apelido. Ainda não a ouvira dizer o meu nome uma única

vez. — A maior parte das pessoas desvia os olhos e procura mudar de assunto, e

tu queres pagar­
-me um copo?

Encolhi os ombros.

— Eu não sou como o resto das pessoas e não disse que te ia pagar copo

nenhum.

A Briar soltou uma gargalhada e desceu do banco.

— Gosto de ti... Vamos dar uma volta, então.

Sorri e fui até ao meu quarto.

Compreendi então que não era a única que tinha problemas, não era a única

rapariga a quem tinham feito mal. Falar com a Briar fez­-me sentir muito

melhor do que imaginara.

— Com qual daqueles dois tipos davas uma cambalhota?


Estávamos no bar mais próximo do campus. A Briar era uma espécie de salvo­
-

conduto para entrar nos que eram reservados. Um simples olhar permitiu que

nos deixassem passar sem termos de ficar na fila.

— Tenho namorado, lembras­-te? — respondi, levando a palhinha do copo aos

lábios.

O empregado de bar estava a convidar­


-nos a beber desde que ali entráramos.

A Briar fez um gesto de indiferença com a mão.

— Esquece lá os namorados, estamos a falar hipoteticamente.

Olhei para um grupo de rapazes que estavam numa mesa contígua e que não

tiravam os olhos de nós. Não era de admirar, duas raparigas sozinhas num bar, e

logo a Briar, que não parava de lhes lançar olhares...

— Para lá de fazer isso. Só vais conseguir que venham ter connosco — pedi­
-

lhe, quando piscou descaradamente o olho a um dos rapazes mais bonitos.

— Aí vêm eles — disse, com um sorriso radiante. Tinha os dentes muito

direitos e brancos. Notava­


-se que vinha de uma família com dinheiro, mas,

apesar disso, não tinha nada que ver com o pessoal que conhecia da minha

escola. A Briar parecia diferente de todas as raparigas que já conhecera.

Não queria que os rapazes nos abordassem porque não podia ignorá­
-los

enquanto a Briar os provocava explicitamente. Mas, mesmo assim, foram dois

os rapazes que decidiram sentar­


-se à nossa mesa sem sequer pedirem licença.

— Olá, lindas — cumprimentou o louro, para quem a Briar tinha estado a

olhar com olhos sonhadores.

O outro tinha o cabelo escuro e fez­-me lembrar o Nick. Aquilo não estava

certo, e começava a sentir­


-me incomodada.

Depois de dez minutos de conversa informal sem a menor profun­didade, a

Briar começou a beijar o louro. Eu, pelo contrário, continuava a dizer ao amigo

que tinha namorado e que queria que me deixasse em paz.

— O teu namorado não está aqui, e sei que gostas de mim. Deixo­-te nervosa,

confessa — disse, aproximando­-se ainda mais.

Comprimi os lábios com mais força.

— Não vou repetir — ameacei, agora mais irritada do que deveria. — Não

quero absolutamente nada contigo, não me despertas o menor interesse,

entendes? Agora, baza.

A mão dele voou para o meu joelho, e dei­-lhe uma palmada, levantando­-me.

— Mas será que, além de idiota, és surdo? — gritei­-lhe por cima do volume

da música.
— Porque não fazes como a tua amiga e descontrais?

Olhei para a Briar, que se afastou do louro para me dirigir um olhar

significativo.

— Ninguém vai saber de nada, Morgan.

Era ridículo.

— Vou­
-me embora.

Saí da mesa, maldizendo a hora em que decidira ir àquele antro estúpido. Não

me surpreendeu que a Briar não viesse atrás de mim: já me mostrara que cada

um era livre de fazer o que lhe apetecesse.

Fui para a rua para respirar um pouco de ar. Estava mais embriagada do que

pensara inicialmente. Não devia ter bebido tanto sem sair do mesmo lugar.

Agora o mundo inteiro andava às voltas.

Decidi ligar o telemóvel para chamar um táxi que me viesse buscar. Ao fazê­
-

lo, vi que tinha várias chamadas perdidas do Nick. Irritara­-me imenso com a

conversa do psicólogo, e decidi não lhe responder, mas de repente percebi que

estava farta de me zangar com ele. Tínhamos de nos encontrar e de resolver os

nossos problemas cara a cara. Decidi mandar­


-lhe uma mensagem com a morada

do bar.

Estou aqui. Podes vir buscar­-me? Temos de falar.

Recebi a resposta dele logo a seguir.

Chego em cinco minutos.

Não demorou muito a chegar, e, quando vi o seu Range Rover esta­cionar no

passeio em frente, não soube muito bem o que fazer. Não sabia em que ponto

nos encontrávamos ou como deveria proceder porque, depois das últimas

discussões, as coisas estavam muito estranhas entre nós. Optei por ficar onde

estava enquanto ele saía do carro.

No instante em que ele atravessava a estrada na minha direção, ouvi alguém a

gritar o meu nome. Era o tipo do bar.

— Não queres voltar a entrar? Estava só a brincar — disse o rapaz,

alcançando­
-me antes do Nicholas.

Voltei­
-me para o Nick no momento em que me contornou a cintura com um

braço e empurrou o rapaz com a outra mão.

— Afasta­
-te. — A voz dele era tão gélida como a temperatura daquela noite.
Senti um calafrio.

O rapaz levantou os olhos para o Nick.

— Quem és tu?

— Sou o tipo que te vai partir a cara se não te afastares da minha namorada.

Ao ouvir quão zangado estava, fiquei tensa.

Contrariado, o rapaz moreno recuou.

— Enquanto me provocava ali dentro, não falou em ti um segundo que fosse.

Arregalei os olhos, estupefacta. Grande imbecil...

O Nick largou­
-me a cintura e deu um passo em frente.

— Se não me desapareceres da frente em menos de um segundo, vais arranjar

um belo sarilho, estás a ouvir?

Pronto, a coisa estava a descontrolar­


-se. Avancei e peguei na mão do Nick.

— Vamos embora, por favor — pedi­-lhe em voz baixa.

Não queria que ele andasse à bulha, queria ir­


-me embora o mais depressa

possível.

O imbecil do bar parecia ter percebido que ficaria a perder porque era

evidente que, se ambos lutassem, quem ia acabar a comer terra era ele. Foi então

que a porta se abriu e que o ruído abafado da música chegou à rua. Vi a Briar

sair de mão dada com o amigo louro do imbecil.

— O que se passa aqui? — perguntou, encaminhando­-se para nós. O Nick

demorou um segundo a mais a virar­


-se para eles.

O seu corpo retesou­


-se imediatamente, e vi que aquilo não ia acabar bem.
44

Nick

Fixei os olhos na rapariga que acabara de sair do bar.

Briar Palvin.

Não podia acreditar.

O tipo que a trazia pelo braço largou­-a e apressou­-se a ir ter com o colega. Eu

estava tão zangado que seria capaz de andar à bulha com ­quatro gajos, se fosse

preciso, mas ver a Briar perturbou­-me terrivelmente. O rosto dela também

revelou surpresa, mas afastei o olhar e concentrei­-me naqueles dois cabrões.

— O que estavas a dizer que fazias, ó imbecil?

Cerrei o punho com vontade de lhe calar a boca com um murro. Se achava

que, lá porque agora eram dois, me ia acobardar... estavam muito enganados. O

único motivo que me impedia de lhes deixar a boca a sangrar no chão era a

miúda que me agarrava com força no braço.

— Nicholas, por favor — insistiu a Noah.

O louro deu um passo em frente, invadindo o meu espaço.

— Aconselho­
-te a afastares­
-te — disse, controlando o tom de voz.

— Senão o quê? — O outro idiota pôs­-se ao lado do amigo. Seria tão fácil

deixá­
-los aos dois de rastos no chão, mas não era isso que queria. Não era o

momento nem o local certos, muito menos à frente da Noah.

Desviei os olhos para a Briar e vi que se aproximava com o segurança, que

tinha ido buscar à porta do bar. O tipo corpulento observou­-nos com má cara

até parar ao nosso lado.

— Vão­
-se embora daqui, se não querem que chame a polícia — disse,

desviando o olhar de mim um segundo depois. — Os três.

Os tipos pareceram ficar intimidados, e eu aproveitei para evitar uma situação

de onde só sairia com os punhos magoados e uma briga ainda maior com a

Noah.

Tinha um problema mais importante para resolver, principalmente quando vi

que a Briar se aproximava da Noah e enlaçava o braço no seu. Procurei


desesperadamente qualquer coisa que pudesse dizer àquela miúda de cabelo

ruivo como fogo. O olhar dela era completamente indiferente.

— Não nos vais apresentar, Morgan? — perguntou, com uma voz angelical

que eu sabia que só usava quando lhe convinha.

A Noah olhou para mim com nervosismo, enquanto mordia o lábio. Tive

vontade de lhe puxar o lábio para que não se magoasse, mas as pala­vras que

saíram da sua boca fizeram com que todos os alarmes do meu corpo se ligassem

ao mesmo tempo.

— Nick, esta é a minha nova companheira de casa, a Briar; Briar, este é o meu

namorado, o Nicholas.

Demorei uns segundos a mais a levantar a mão e a aceitar a que ela me

estendia.

Não podia acreditar que aquilo estivesse a acontecer. A Briar Palvin era a

última rapariga que eu escolheria para partilhar casa com a Noah não só por ser

como era mas porque conhecera o pior de mim, e, quando digo o pior, quero

referir­
-me ao pior mesmo.

— É um prazer. Nicholas?... — perguntou, à espera de que lhe r


­ espondesse.

Franzi imediatamente os lábios.

— Leister — quase rosnei.

Como se ela não soubesse o meu nome... Não entendia porque estava a fazer

de conta que não me conhecia. Além disso, a última coisa que queria era que a

Noah tivesse outra razão para pôr a nossa relação em causa. A Briar Palvin

pertencia ao meu passado, e era lá que ia ficar.

— Já estávamos de saída — comentei, pegando na mão da Noah e puxando­


-a

em direção ao carro.

— Espera — pediu­
-me a Noah, soltando­-se. — Estás em condições de

conduzir, Briar? — perguntou, preocupada.

Só me apeteceu pegar na Noah e metê­-la na bagageira. Sempre preocupada

com quem não devia. Esta miúda podia conduzir, sim, e, se não estivesse em

condições de o fazer, havia de arranjar uma forma de chegar a casa sã e salva. Eu

sabia muito bem do que a casa gastava.

— Sim, não te preocupes, vai lá e resolve as coisas com o teu rapaz —

respondeu num tom de voz baixo, mas consegui ouvi­-la.

A Noah sorriu­
-lhe, como se tivessem sido amigas a vida inteira; entrei no

carro e liguei o motor fazendo tenção de não a ouvir mais.

Quando olhei para ver a Noah virar­


-lhe as costas e entrar no lugar do
passageiro, o meu olhar e o da Briar cruzaram­-se. Os seus olhos verdes felinos

revelaram mais do que poderia esperar, e, ao ver o sorriso no seu rosto, percebi

que tinha de afastar a Noah dela.

Fizemos o trajeto mergulhados num silêncio sepulcral. Há muito tempo que a

Noah não me via tão zangado e tão disposto a digladiar­


-me. Prometera­-lhe que

não me envolvia em mais lutas, mas custava­-me muitíssimo deixar essa minha

faceta para trás. Nunca fui um rapaz tranquilo, e ver aquele idiota tão perto

dela...

Quando desliguei o motor, voltei­-me para olhar para ela. A Noah agitou­-se no

assento, inquieta.

Afastei­
-lhe uma madeixa do rosto com a mão. Não se mexeu, mas, quando lhe

acariciei o lóbulo da orelha com os dedos, ficou com a pele arrepiada. Um

segundo depois, olhou para mim, e os seus olhos dirigiram­-se ao meu pulso. Vi

algo estranho na sua expressão e suspirei profundamente.

— Fiz a tatuagem porque quis, Noah. Gosto destas palavras, principalmente

por virem de ti. Se, além disso, juntarmos que foste tu quem as desenhou na

minha pele...

— Posso ver? — perguntou.

Estendi o braço até que ela me pegou no pulso com cuidado e o virou,

deixando a pele exposta. Depois, com os olhos fixos na tatuagem, começou a

seguir o que ali escrevera com o dedo.

Senti um calafrio.

— Gosto dela — declarou finalmente, e os olhos voltaram a cravar­


-se nos

meus.

Enquanto me perdia no seu olhar, soltei lentamente o ar que tinha guardado

nos pulmões. Por que motivo era tão complicado amá­-la? Se ela deixasse,

seríamos perfeitos um para o outro; se a Noah não tivesse estes medos todos,

seria capaz de a amar sem dúvidas ou condições.

Estendi o braço e puxei­


-a para mim, mas ela deteve­-me pondo a mão no meu

peito. Baixou os olhos, e por momentos tive a impressão de que o seu coração

parava de bater.

— Fazemos sempre a mesma coisa, Nicholas — queixou­-se, olhando­


-me

agora nos olhos.

— Fazemos o quê? — perguntei, tendo noção do tom que imprimia às

minhas palavras.
A Noah desviou o olhar e fitou as luzes que tínhamos à nossa frente.

— Não podes reagir como reagiste ao telefone e logo a seguir vires ter

comigo, como se não fosse nada, dar­


-me quatro beijos e querer que esqueça

tudo.

Ao ver que ficava calado, voltou­-se novamente para mim.

— Estou a consultar um psicólogo por tua causa, estou a fazer terapia, a

contar a minha vida a um desconhecido por ti. O que te preocupa? Que ele seja

novo e que, como tu próprio disseste, eu esteja demasiado lixada para ele me

poder ajudar?... O problema é que estás com ciúmes.

— Não são ciúmes, porra, só quero que estejas bem. Quero o melhor

psicólogo para ti, Noah, não um gajo qualquer.

— Queres controlar tudo, Nicholas, e há coisas que escapam ao teu controlo.

Sou eu quem decide a quem contar as minhas coisas ou em quem confiar. Mas, a

ti, a única coisa que preocupa é que o psicólogo seja um homem. Há homens

por todo o lado, não podes isolar­


-me numa bolha! Se eu tivesse consultas com

uma mulher, não estarias assim.

— Só quero o melhor para ti. Quero que te curem de uma vez por todas,

porra!

Os seus olhos arregalaram­


-se de surpresa e incredulidade, mas um segundo

depois fitaram­
-me com mágoa.

«Merda.»

— Que me curem? — repetiu em voz baixa, mas a voz quebrou­-se na última

sílaba. Sem me dar sequer tempo de a agarrar, saiu do carro e atirou com a

porta.

Saí o mais depressa que consegui e, quando a alcancei, ela estava a marcar um

número no telemóvel.

— Estás a ligar a quem? — perguntei, aproximando­-me dela.

Os seus olhos reluzentes das lágrimas fizeram­-me parar de imediato.

— Noah... Não era isso que queria dizer.

Tentei falar num tom de voz conciliador.

— Afasta­
-te de mim — ordenou­-me, dando um passo atrás, com o telemóvel

no ouvido e a outra mão estendida. — Eu não estou doente, Nicholas. Não

posso acreditar que me disseste isso.

«Merda, merda!»

Dei mais um passo em frente.

— Já te disse para te afastares!


Praguejei entre dentes, enquanto a ouvia dar a morada a alguém.

— Noah, ouve­
-me — pedi, quando meteu o telemóvel no bolso.

Voltou­
-se para mim a deitar fogo pelos olhos.

— Isto não é nada fácil para mim, Nicholas! Estou a fazer tudo o que me é

possível para ficar bem, para que a nossa relação funcione, e não queres

entender­
-me. Limitas­
-te a atirar­
-me coisas à cara, não confias em mim, e estou

farta!

As suas palavras magoavam­-me, eram como estacas no meu coração: cada

palavra uma estaca.

— Não queria dizer isso, Noah — desculpei­-me, procurando que se

acalmasse. — Não estás doente, nunca pensei isso de ti, só quero que melhores,

que não tenhas medo, que deixes de fugir de mim, é a única coisa que quero.

— Queres que melhore, desde que seja nas tuas condições, ­Nicholas! —

respondeu, abraçando os braços despidos. — Isto é uma loucura... Quem precisa

de ajuda és tu! Vês ameaças onde elas não existem!

Aproximei­
-me dela sem me importar que os seus pés continuassem a afastar­
-

se de mim e que os olhos me dissessem para ficar onde estava.

As minhas mãos agarraram os seus braços, e baixei­-me para ficar à sua altura.

— Estás a fazer a mesma coisa outra vez, a arranjar uma desculpa qualquer

para te afastares de mim. Porque fazes isso?

A Noah abanou a cabeça e fechou os olhos.

— Acho que precisamos de um tempo — reconheceu, olhando para o chão.

Segurei­
-lhe o queixo com os dedos e obriguei­-a a olhar para mim.

— Não estás a falar a sério.

Nos seus olhos brilhavam as lágrimas que ainda não tinha chorado.

— Acho que ambos precisamos de ver as coisas com algum distanciamento,

precisamos de sentir a falta um do outro, Nick... Porque neste momento não te

reconheço, não nos reconheço. Só vejo ciúmes por todo o lado, e isso não é bom.

— Não faças isto, não te afastes de mim. — Pus as mãos nas faces dela,

segurei­
-lhe o rosto e baixei a cabeça para tocar com os meus lábios nos seus.

— Só uns dias, Nicholas — disse ela. — Dá­-me tempo para assimilar tudo o

que se tem passado: sair de casa, do teu apartamento... Começar a falar do meu

passado, desfazer­
-me de recordações dolorosas, sentir que não sou suficiente para

ti...

A voz quebrou­
-se na última palavra, e envolvi­-a nos meus braços, apertando­
-a

com força.
— Tu és tudo aquilo de que eu preciso, meu amor. Por favor, não me impeças

de estar contigo, não me prives disto — supliquei, inclinando­-lhe a cabeça para

trás e beijando­
-a de verdade, com um carinho infinito, mas também com uma

paixão inesgotável. O corpo dela estremeceu, e eu afastei­-me.

— Acredito que ambos temos de resolver os nossos problemas, Nicholas, e

gritar um com o outro não ajuda nada. Tens de aprender a confiar em mim, e eu

tenho de deixar de fugir daquilo que me fazes sentir... Porque te amo de mais,

Nick. Amo­
-te tanto que me dói.

Senti que me faltava o ar. Não podia deixar que se fosse embora assim, não

podia sair dali sem ela, enquanto a via a engolir as lágrimas.

— Por isso mesmo, estarmos separados não vai servir de nada. Não fomos

feitos para estarmos separados, lembras­-te? — disse, limpando uma lágrima

que se escapara, sem autorização, dos seus olhos tão bonitos.

— Preciso de pensar... Preciso de saber o que quero, o que estou a perder

neste momento, porque a única coisa que sou capaz de fazer é pensar em ti, e,

embora uma parte de mim saiba que preciso de ti, há outra que está a

desaparecer. Nicholas, sinto que não existe Noah sem ti, e não pode ser assim,

não posso depender de ti desta maneira, porque, se o fizer, vou acabar por me

perder a mim mesma... Não vês?

O que eu via era uma miúda linda e destroçada por minha causa, porque não a

conseguia fazer feliz. Porque não era capaz? O que estaria a fazer de mal? O que

fora feito daquele tempo em que a Noah me brindava com sorrisos todos os

dias? Onde ficara o brilho especial que recebia quando os nossos olhares se

cruzavam?

Será que ela tinha razão? Estaria eu a mudá­


-la?

Nesse instante, umas luzes iluminaram­-nos por trás. A Noah olhou na sua

direção, e percebi que estava prestes a chorar, a chorar mesmo.

Respirei fundo e tentei pôr os meus sentimentos de parte.

— Dou­
-te uma semana, Noah — afirmei, fazendo os seus olhos

compreenderem a seriedade das minhas palavras. — Dou­-te uma semana para

sentires a minha falta com todas as fibras do teu ser, sete dias para te

aperceberes de que o teu lugar é comigo e com mais ninguém.

Ficou parada, e inclinei­


-me para beijar aqueles lábios sensuais, a boca

maravilhosa, que me pertencia; abracei­-a com força, transmitindo­-lhe o meu

calor, o desejo que sentia por ela, a dor que me atormentava por a deixar partir.

Quando me afastei, estávamos ambos ofegantes.


— Sete dias, Noah.

Vi­
-a entrar no carro. Só quando vi um clarão vermelho me apercebi de que

quem a viera buscar fora a Briar.

O medo de que falara fez com que me arrependesse de imediato de a ter

deixado ir embora.
45

Noah

Olhei fixamente para a chávena que tinha entre os dedos. O fumo erguia­-se em

espirais e aquecia­
-me o rosto. Estava cada vez mais frio na cidade, o verão já

ficara para trás e, enquanto via os marshmallows a derreterem no meu chocolate

quente, tive de fazer um esforço para compreender o que o Michael insistia em

demonstrar. Falar com ele estava a ajudar­


-me, ou pelo menos assim julgava,

embora cada palavra que ele dizia me deixasse mais confusa a respeito da minha

relação com o Nicholas.

— Sempre tive medo do escuro — estava a dizer­


-lhe naquele momento —,

sempre senti que estava debaixo de água, a afundar­


-me cada vez mais, sem ser

capaz de vir à superfície. Só consegui voltar a respirar quando conheci o Nick,

só aí pude voltar à superfície. Como é que isso pode ser uma coisa má? Como

pode ser prejudicial para mim?

O Michael levantou­
-se da cadeira e aproximou­-se do cadeirão onde eu estava

sentada. Observou­
-me demoradamente.

— Tens de conseguir nadar sozinha, Noah; o Nicholas não pode ser o teu

eterno salva­
-vidas. Ou aprendes a nadar ou, mal ele se distraia, voltas a

afundar­
-te.

Tinham­
-se passado seis dias. Seis longos dias em que não diri­gimos uma

palavra um ao outro. Inicialmente, o Nick tentou entrar em contacto comigo, e

faltou pouco para me esquecer do afastamento e lhe implorar que viesse ver­
-me

ao apartamento, que me envolvesse nos seus braços...

— Estás a sair­
-te muito bem, Noah, estás a ouvir o que te digo, a aprender a

viver sem ele, e só assim, quando aprenderes a caminhar sozinha, poderás voltar

a andar ao lado de alguém.

Respirei fundo. Acabávamos sempre a falar do Nick, e eu queria que ele me

ajudasse com os meus medos, com os pesadelos...

Levantei­
-me, pousei a chávena na mesa e dirigi­-me à janela. Lá fora já era

quase de noite, e vi passar alguns estudantes que deviam ter tido aulas à tarde.
— Eu só quero ser... normal — confessei, sem querer voltar­
-me nem ver a sua

reação às minhas palavras.

Foi então que senti que me segurava um braço com a mão. Obrigou­-me a

voltar, e os seus olhos procuraram os meus.

— Noah, tu és normal, só passaste por situações que de normal têm muito

pouco, entendes? Estás a extrapolar os teus medos e inseguranças para a tua

relação sentimental com o Nicholas, e é por isso que tento fazer­


-te ver que o

relacionamento que manténs com ele não é bom para ti.

Libertei­
-me e fui sentar­
-me no cadeirão.

— Não quero falar mais do Nick.

O Michael suspirou e voltou a sentar­


-se à minha frente. Reparei que se

demorou um pouco mais a consultar as suas anotações.

— Vamos falar de como passaste as últimas noites. Fizeste o que te

aconselhei?

Assenti, apesar de me ter servido de pouco. Os pesadelos continuavam a

colar­
-se aos meus sonhos, e ainda não era capaz de apagar a luz para poder

dormir às escuras.

— O medo que tens está diretamente relacionado com o que aconteceu com o

teu pai. Tu própria me contaste que, antes de ele te atacar, te fechavas no teu

quarto às escuras e te sentias protegida. De certa forma, o teu pai conseguiu

reverter essa situação para o extremo oposto, e é por isso que te afeta tanto; uma

coisa que para ti era um ambiente conciliador e protegido transformou­-se no

teu maior pesadelo.

Detestava recordar aquela noite, odiava voltar a sentir as mãos dele sobre a

minha pele, os dedos a puxar­


-me pelo tornozelo e a imobilizar­
-me com força

contra o colchão. Fechei os olhos com força e cerrei os punhos contra as pernas.

— A pessoa que te deveria proteger atraiçoou­-te. Era um adulto, alguém que

sabia o que estava a fazer; tu, pelo contrário, eras uma menina indefesa. Estavas

sozinha, ninguém te ajudou, Noah, e fizeste o que podias para fugir, foste

corajosa e não hesitaste, lutaste por ti mesma quando mais ninguém foi capaz

de o fazer.

Abri os olhos e pensei na minha mãe. Na forma como ela enfrentou os ataques

dele sem nunca conseguir ter um resultado positivo; na verdade, só conseguiu

fazer com que fossem piorando. Ao observá­-la, aprendi que às vezes era melhor

ficar calada, aceitar as coisas que nos gritavam... O meu pai sempre me disse

que o fazia por causa dela, que eu não era uma menina má, por isso nunca me
tocava.

— Ele amava­
-me, nunca me devia ter feito mal...

Na manhã do sétimo dia, acordei com uma sensação estranha na barriga. Era o

último dia da nossa separação, e não sabia se estava preparada para ele. Por um

lado, todas as células do meu corpo o queriam ver, mas, por outro, aquele

afastamento estava a ajudar­


-me a repensar muitas coisas. Decidi ir ao escritório

dele para ver se aquele período de tempo fora ou não suficiente.

Fiquei nervosa assim que entrei nas Empresas Leister. Ao sair do elevador,

uma mulher de meia­


-idade indicou­-me como chegar ao escritório do Nick.

Nunca tinha estado ali e sentia­-me pequena como uma formiga. Ali, tudo

reluzia, e as paredes eram de vidro. No centro, depois de passar pela receção,

havia um vestíbulo enorme com sofás brancos sobre um tapete preto intenso.

Cinzentos, brancos, pretos... Por que motivo aquela paleta de cores não me

surpreendia?

Foi então que o vi.

O gabinete dele era de vidro, e não estava sozinho. Senti um nó na garganta

ao ver a Sophia sentada na secretária dele. Do ponto em que encontrava,

conseguia ver as maçãs do rosto dela erguidas porque estava a sorrir, e falava

enquanto gesticulava com as mãos. O Nick parecia exasperado, mas estava a

tentar conter o riso por causa do que ela estava a dizer.

Aproximei­
-me da porta, e foi então que ele me viu.

Através do vidro, vi­


-o levantar­
-se da cadeira, a Sophia voltar­
-se para mim e o

sorriso desaparecer do seu rosto, quando o Nick veio receber­


-me.

— Noah — disse simplesmente, depois de me abrir a porta.

Não soube muito bem o que dizer. Todas as minhas inseguranças e o ciúme

terrível voltaram a apoderar­


-se de mim. Não conseguia evitar: ela era perfeita...

perfeita para ele.

— Olá, Noah. Que bom voltar a ver­


-te — cumprimentou a Sophia, com um

sorriso de orelha a orelha.

Retribuí o melhor que pude.

O Nick não tirava os olhos de mim.

— Não te importas de nos deixar um pouco a sós, Soph?

«Soph.»

A Sophia assentiu e saiu do gabinete.

Aproximei­
-me da secretária do Nick, e ele fez o mesmo, pegou numa folha de
papel que estava por cima das outras e guardou­-a numa gaveta. Depois carregou

num botão, e as paredes começaram a escurecer. Em menos de quinze segundos,

já não conseguia ver nada do que havia para lá daquelas quatro paredes.

Foi então que as suas mãos me rodearam, o calor que o seu corpo emanava

envolveu­
-me por completo, e puxou­-me a trança para trás para poder pousar os

lábios sobre os meus. Não aprofundou o beijo; pelo contrário, obrigou­-me a

recuar alguns centímetros para conseguir olhar para o meu rosto, para o meu

corpo e para os dedos trémulos.

— Tive tantas saudades tuas, sardas — confessou com os olhos fixos nos

meus, carregados de um sentimento estranho, difícil de definir.

Senti­
-me asfixiar e, de repente, a única coisa que queria fazer era sair dali e

voltar a ouvir o Michael dizer que eu era capaz de lidar com qualquer coisa, que

quem tinha de enfrentar os meus medos era eu, que era forte, inteligente, que

nunca nada nem ninguém poderiam derrubar­


-me... Bastou­-me vê­
-lo ali com ela

para que toda a minha autoestima voltasse a ficar de rastos.

— Que papel é esse que guardaste na gaveta? — perguntei, mais para me

distrair do que por outra coisa. Reparei que ficou subitamente tenso.

— Nada, são coisas de trabalho — respondeu, retirando importância ao

assunto. — Noah... Diz­


-me que esta porcaria de pausa já acabou, porque estou

prestes a enlouquecer. Deixaste de atender as minhas chamadas, de ler as

minhas mensagens...

— Precisava de tempo para pensar — disse, e reparei que a minha voz soou

dura e distante.

O Nick observou­
-me de sobrolho franzido.

— Noah... O que tens?

Abanei a cabeça, vi os seus olhos bonitos preocupados comigo e percebi que

não estava preparada.

— Preciso de mais tempo.

Os dedos dele pararam a carícia que estavam a fazer. A pele deixou de estar

em contacto com a minha, e, de repente, senti­-me pequena ao seu lado. Ele

levantou­
-se e olhou­
-me fixamente, de cima.

— Não.

— Nicholas, eu...

— Estive sete dias sem te ver, dei­-te tempo para pensar, nem sei que raio tens

tanto para refletir...

Afastou­
-se e foi até à janela que havia atrás da sua secretária. Antes que
pudesse dizer alguma coisa, a porta abriu­-se atrás de mim, e a Sophia entrou.

Bastou um olhar para se aperceber de que as coisas não estavam a correr bem.

— Eu... Desculpem interromper, mas precisam de ti na sala de reunião, Nick.

O Nicholas aproximou­
-se da porta, olhou para a Sophia e depois para mim.

— Espera por mim aqui.

Quando o Nick saiu do escritório, eu e a Sophia ficámos mergulhadas num

silêncio confrangedor.

Vi que se aproximava da sua secretária e se sentava.

— Podes sentar­
-te, se quiseres. Posso oferecer­
-te um café ou outra coisa?

Disse­
-lhe que não e fiquei onde estava.

— Noah... Acho que sei por que motivo estás assim... Mas é uma

oportunidade única para ele, eu daria fosse o que fosse por aquele cargo, e Nova

Iorque não fica assim tão longe. Há muita gente que mantém relações à

distância, e seriam só...

— Espera lá... o quê?

O meu coração começou a bater com força contra as costelas, de tal forma que

julguei que me ia saltar do peito.

— O que disseste? — perguntei, dando um passo em frente.

As palavras que tinham acabado de sair da sua boca começaram a repetir­


-se no

meu cérebro como uma canção macabra.

«Oportunidade», «Nova Iorque», «relação à distância»...

A Sophia olhou para a secretária do Nick, logo a seguir para mim, e os seus

olhos abriram­
-se de surpresa. O rosto começou a tingir­
-se de um escarlate

intenso.

— Eu... achei que o Nick...

— De que oportunidade estás a falar?

Abanou a cabeça.

— É melhor perguntares­
-lhe a ele, Noah, nem devia ter dito nada, mas pensei

que... que ele te tinha dito. Principalmente tendo em conta como estão a ser

insistentes.

— O Nicholas não me disse nada, mas, já que começaste, agora acaba. De que

diabo estás a falar?

Sabia que não tardaria muito a explodir e preferia não o fazer à sua frente.

Queria ir­
-me embora, mas primeiro precisava de saber que raio se passava.

— Uma das melhores empresas de Nova Iorque ofereceu­-lhe um contrato de

dois anos; o facto de termos ganhado o caso Rogers chamou a atenção de muita
gente, de gente importante, e, embora eu gostasse muito de dizer que o mérito

era meu, a verdade é que, se não fosse o Nick, não teríamos conseguido ganhar.

Nem sequer sabia que tinham ganhado o caso, não sabia que o ­Nicholas

estava interessado num trabalho em Nova Iorque e muito menos que se tratava

de um contrato de dois anos...

Precisava de me ir embora dali. Queria sair antes que o Nicholas voltasse.

— Diz ao Nicholas... Diz­


-lhe que tive de me ir embora, que não estava a

sentir­
-me muito bem...

Antes de sair porta fora, a Sophia agarrou­-me por um braço e fitou­-me com os

seus olhos castanhos de pestanas imensas. Os saltos faziam­-na mais alta do que

eu, e não gostei da sensação, não gostei nem um pouco.

— Sei que não queres que ele se vá embora... Mas devias apoiá­-lo nisto, Noah.

A raiva apoderou­
-se de todo o meu ser, e consegui libertar­
-me com um único

safanão.

— É que nem te passe pela cabeça dizeres­-me o que devo ou não devo fazer

com o meu namorado.

Não demorei dois minutos a entrar no elevador e a sair do edifício.

Dois anos? Estava a planear ir­


-se embora durante dois anos e deixar­
-me ali? E

por que motivo ela sabia o que se passava e eu não?

«Devias apoiá­
-lo nisto, Noah.»

Por que motivo o Nick era incapaz de confiar em mim? Porque não podíamos

contar tudo um ao outro, sem medo do que pudéssemos dizer?

Quando saí do parque de estacionamento, carreguei a fundo no ­acelerador e

pestanejei com força, tentando que as lágrimas não me impedissem de ver a

estrada.
46

Nick

Demorei pouco mais de dez minutos a sair do gabinete e a livrar­


-me do

Jenkins. O grande cabrão não parava de insistir que eu era um idiota se

recusasse o emprego que me tinham oferecido em Nova Iorque, que tinha de

aceitar, que isso faria arrancar a minha carreira e sei lá mais o quê. A verdade é

que, para ele, era ouro sobre azul porque, se me fosse embora, livrava­-se de mim

e ainda teria a costa livre para subir na empresa do meu pai: matava dois

coelhos de uma cajadada. A sua conversa distraiu-me e, quando cheguei ao meu

gabinete, já só encontrei a Sophia.

— Há quanto tempo se foi embora? — perguntei, parando à porta.

— Há cinco minutos, mas, Nick — disse ela, obrigando­-me a parar e a olhar

para ela. Alguma coisa no seu tom de voz me levou a fazê­-lo —, contei­-lhe da

proposta de Nova Iorque e acho que ela não gostou muito.

— Fizeste o quê?

A Sophia devolveu­
-me o olhar com nervosismo.

— Pensei que estavam a discutir por causa disso; desculpa, meti a pata na

poça, mas não foi minha intenção...

«Porra!»

Saí do escritório e fui diretamente para o parque de estacionamento. Entrei no

carro e pus­
-me a caminho da faculdade.

Não podia acreditar que a Sophia lhe tivesse contado. Aquele assunto estava

encerrado. Já não sabia como fazer perceber a toda a gente que a proposta não

me interessava, que não planeava ir a lado nenhum. A Sophia ficara

especialmente zangada quando lhe disse que não pensava ir­


-me embora. Não

estava louco, sabia perfeitamente a oportunidade que estava a recusar, mas não

me interessava, não ia deixar a Noah ali, nem pensar, nem que me contratassem

para ir trabalhar para a Casa Branca. Quando soubera, o Jenkins tinha­-me dado

na cabeça; passei dez minutos a dizer­


-lhe que não ia a lado nenhum, e ele a

recriminar­
-me e a dizer que eu era um perfeito idiota. Ainda por cima, agora
tinha de enfrentar a Noah, num momento da nossa relação que eu sabia que

podia ser catastrófico. Esta situação estava a fugir ao nosso controlo.

Liguei­
-lhe para lhe dizer que ia ao seu apartamento, para lhe explicar tudo,

mas, como já era seu costume, ignorou todas as minhas chamadas. Quinze

minutos depois, estacionei à frente da residência e saí enquanto pensava numa

forma de me explicar e evitar que tudo isto alimentasse as coisas que me atirara

à cara. A última coisa que queria era que este tempo que insistia em pedir­
-me

se prolongasse indefinidamente.

Maldita Sophia por ter dado com a língua nos dentes.

Bati à porta três vezes e esperei que ma abrissem. Não foi a Noah quem o fez.

«Merda.»

— Leister — disse a Briar com a voz melosa. Trazia um camiseiro simples e o

cabelo ruivo apanhado num carrapito no alto da cabeça; no seu rosto brilhava

aquele sorriso que me trazia tão más recordações.

— A Noah está? — perguntei, olhando para trás dela, quase sem lhe prestar

atenção.

— Está no quarto — limitou­-se a responder enquanto se afastava para eu

entrar.

Menos mal, não fora assim tão difícil. Ignorei­-a até chegar ao quarto da Noah,

mas, ao abrir a porta, encontrei­-o vazio.

Quando me voltei, a Briar observava­-me com um sorriso diabólico no rosto.

Tinha­
-se sentado na bancada da cozinha, e o camiseiro subira­-lhe pelas coxas.

— Esqueci­
-me de que afinal não está cá... Desculpa, a minha memória é

muito má.

Ignorei­
-a e dirigi­
-me para a porta, mas, quando fui para a abrir, apercebi­
-me

de que estava fechada à chave.

Fechei os olhos, tentando impedir que a minha fúria se apoderasse do pouco

bom senso que me restava.

— Abre a porcaria da porta.

— Continuas a ser o mesmo mal­-educado de sempre.

Desceu da bancada e abriu o frigorífico.

— Queres beber uma cerveja? — ofereceu, com os olhos a percorrerem­-me o

corpo dos pés à cabeça. — Ou talvez te ofereça outra coisa... Julgo que a fase da

cerveja ficou no passado, estou certa?

A última coisa que queria naquele momento era um confronto com aquela

miúda. Raios! Tinha tentado ignorar o facto de a Noah partilhar casa com a
Briar, mas sabia que mais cedo ou mais tarde ia acabar por me cruzar com ela.

Só não esperava que fosse exatamente naquele dia.

— Briar, não vou entrar no teu jogo, nem hoje nem nunca. Abre a porta.

Encostou­
-se à bancada e tirou as chaves do sutiã.

— Queres as chaves? — sussurrou de forma lasciva. — Vem cá ­buscá­-las.

Dando dois passos, fiquei mesmo à sua frente. Os olhos verdes, selvagens,

observaram­
-me, divertidos, mas eu sabia o que havia por detrás daquela

expressão. A Briar odiava­


-me, e tinha razões para isso.

— Dá­
-me as chaves, Bri — ordenei, sustendo a respiração. — Não brinques

comigo, sabes que não és capaz.

As minhas palavras conseguiram que o sorriso desaparecesse dos seus lábios.

— Pensei que nunca mais voltaria a ver­


-te.

Fechei os olhos, tentando acalmar­


-me.

— Nem eu... E muito menos que vivesses com a minha namorada, Briar...

Não lhe podes contar nada, estás a ouvir?

A amargura atravessou­
-lhe o rosto, e fiquei momentaneamente calado.

— Preocupa­
-te que o que lhe possa contar lhe abra os olhos, Nick? —

perguntou a Briar Palvin com uma cara inocente, uma das mil caras diferentes

que tinha e que eu descobri, uma após outra.

Se a Noah soubesse... De repente, tive medo.

— Eu amo­
-a — confessei, tentando fazê­-la ver que estava a ser

completamente sincero.

As minhas palavras foram recebidas com um esgar de desagrado.

— Tu não sabes amar ninguém e muito menos esta miúda. Não a mereces.

Sabe Deus que não a merecia, era verdade. Mas não precisava daquilo, agora

não. Não queria estar a remexer em recordações antigas. Não queria voltar a

sentir a culpa que me atormentara outrora. Tinha deixado tudo aquilo para trás,

mesmo antes de voltar a viver com o meu pai, um ano antes de conhecer a

Noah, mas a Briar nem devia estar ali, fora­-se embora e jurara nunca mais

regressar. Que diabo estava ali a fazer outra vez?

— Até podes ter razão, mas vou ficar com ela até me dizer que já não me

quer.

A Briar observou­
-me com incredulidade. A sua mão levantou­-se e tocou ao de

leve com os dedos no meu rosto.

— Ama­
-la — disse, como se fosse algo impossível. — Como pude pensar que

serias diferente?
Quando a mão começou a acariciar­
-me o cabelo, segurei­-lhe o pulso e

obriguei­
-a a afastar­
-se.

— Não sou a mesma pessoa que conheceste há três anos, mudei.

Um sorriso desenhou­
-se nos seus lábios carnudos.

— Quem nasce filho da puta morre filho da puta, Nick.

Puxei­
-a com força, perdendo as estribeiras durante três segundos infinitos.

Com a outra mão, obriguei­


-a a largar as chaves e depois recuei, respi­rando

fundo e tentando acalmar­


-me.

Voltei a fitá­
-la, e uma pontada de dor e de culpa misturou­-se com a raiva.

— Sei que não te vai servir de nada... Mas desculpa aquilo que te fiz, lamento

mesmo tudo o que aconteceu.

— Sentires­
-te culpado só te beneficia a ti, Nick, a mim não faz nada. Agora,

sai daqui.

Não precisou de me pedir duas vezes. Mas, antes de sair, escrevi um bilhete à

Noah e deixei­
-o debaixo da sua almofada. Tinha tomado uma decisão.
47

Noah

Quando saí das Empresas Leister, fui logo para casa do Charlie. Não queria ver

ninguém que pudesse convencer­


-me de que não tinha motivos para estar furiosa

com o Nicholas. Não queria ouvir a Jenna dizer­


-me que me compreendia, mas

que o Nick tinha todo o direito de ponderar aceitar uma proposta de trabalho

pela qual muitas pessoas matariam.

Queria ser egoísta, quando se tratava do Nick, tinha de ser egoísta. Dois anos

separados... Não nos víamos há uma semana e íamos quase enlouquecendo.

Nunca tinha estado em casa do Charlie, mas tinha­


-o trazido uma vez de carro

e sabia a morada. Quando toquei à campainha, ouvi um ruído atrás da porta, e

ele abriu­-ma num estado que já conhecia bastante bem: estava embriagado.

— Noah? — disse, pronunciando o meu nome corretamente, embora os seus

olhos estivessem vermelhos e tresandasse a álcool.

— Olá... Importas­
-te de que te acompanhe?

Afogar os meus medos e inseguranças em álcool era exatamente o oposto do

que devia fazer, mas um copo ou outro não faria mal a ninguém.­

O Charlie sorriu e convidou­


-me a entrar. Passámos o dia enfiados no quarto

dele e fizemos todo o tipo de confidências acompanhados de uma garrafa de

tequila. Contei­
-lhe o que tinha acontecido com o Nick, e ele confessou que

estava naquele estado porque o namorado o deixara. Também me falou do seu

vício do álcool, algo que me fez sentir imediatamente culpada: embebedar­


-me

com ele não ajudava nada a tratar a sua dependência, embora, em minha defesa,

deva dizer que ele já estava bastante bebido quando me abriu a porta.

— Se o meu irmão me vir assim, mata­-me — disse a certa al­tura. — Ele acha

que as suas terapias de merda me podem ajudar quando, na verdade, quem

devia fazer terapia era ele... Quando quer, é um imbecil, sabias? Não fazes ideia

de como foi crescer com ele depois de a nossa mãe morrer...

Fiquei com pena de que não fosse o miúdo alegre e sem problemas que

aparentara ser de início. Não sabia nada deste lado da sua vida e percebi que
toda a gente tem segredos que não quer revelar a ninguém.

Quando me apercebi de que beber álcool não ia resolver nada, propus­-lhe que

comêssemos alguma coisa e víssemos um filme. Morremos de riso a ver o Shrek,

e durante umas horas esqueci­


-me de tudo o que estava relacionado com o Nick.

Há muito tempo que não tinha um amigo com quem pudesse partilhar

momentos simples como aquele. A Jenna era muito maluca, os nossos­ planos

consistiam quase sempre em ir a festas ou às compras, era raro ficarmos

sossegadas no sofá.

Já era quase de noite quando a porta do apartamento se abriu e o Michael

entrou com cara de caso. Não esperava vê­-lo e apercebi­-me de imediato de que

ele também morava ali. O Charlie vivia com o irmão porque mal tinha dinheiro

para pagar a faculdade.

Não sei por que motivo fiquei nervosa. Talvez porque estivesse habituada a

vê­
-lo no consultório e porque ele conhecia quase todos os meus segredos, medos

e inseguranças. Os olhos dele percorreram a sala até se fixarem em mim. Algo

estranho lhe passou pelo rosto, e levantei­-me do sofá. Parecia prestes a

repreender­
-nos. Já tínhamos deixado de beber há horas. O Charlie até fora

tomar um duche frio e parecia bastante sereno, por isso rezei para que o Michael

não se apercebesse do que tínhamos estado a fazer.

O Charlie apercebeu­
-se da tensão repentina que pareceu inundar o ambiente.

— Tudo bem, maninho? — disse, em jeito de cumprimento. — Que­res­ ver

um filme connosco?

O Michael começou a tirar as coisas que trazia no saco do supermercado e a

pousá­
-las em cima da bancada.

— Já comeram alguma coisa? — Foi a sua resposta. Nem sequer me

cumprimentou, e, como tudo aquilo me pareceu muito desconfortável,

preparei­
-me para me ir embora.

— Acho que é melhor ir andando — comentei, pegando na minha mala, que

estava no sofá.

O Michael olhou fixamente para mim antes de falar.

— Trouxe coisas para fazer o jantar. Podes ficar. Assim, podes também

contar­
-me por que motivo decidiste faltar à consulta. Estive à tua espera até às

sete.

Merda! Esqueci­
-me completamente... Por isso estava tão estranho. Deixara­
-o

plantado.

Pelo canto do olho, vi a forma como o Charlie nos observava e a seguir disse
qualquer coisa sobre limpar o quarto.

Que oportuno.

Aproximei­
-me da bancada de mármore onde o Michael estava a pousar­ as

compras de forma bastante despreocupada.

— Desculpa, nunca mais me lembrei.

Ele ficou calado durante uns segundos, e depois um sorriso amável espalhou­
-

se nos seus lábios.

— Não te preocupes, na próxima sessão pomos a conversa em dia. Gostas de

risotto de cogumelos?

De repente, parecia tão relaxado, completamente diferente de como entrara

em casa e da maneira como olhara para mim há uns segundos. Assenti e pousei

a mala na cadeira, decidindo que era melhor ficar ali. Não lhe ia fazer a desfeita

depois de o ter deixado à minha espera na consulta.

Pus um avental e ajudei­


-o com os cogumelos e com o molho. O Charlie não

sabia nada de cozinha e dedicou­-se a importunar­


-nos e a meter o dedo na panela

quente.

Sentámo­
-nos no chão da sala, na mesa de centro, e comemos enquanto

conversávamos sobre trivialidades. Foi agradável ver o Michael descontraído

mas também estranho vê­


-lo assim, fora do seu ambiente de trabalho. Parecia

mais jovem e cozinhava maravilhosamente: o risotto estava de comer e chorar por

mais. Foi interessante trocar receitas com ele.

Naquela noite, voltei para casa com um sorriso tímido nos lábios, tinha

passado uma noite descontraída e divertida; há muito tempo que não me sentia

assim. Com o Nick era tudo tão intenso, um simples olhar seu deixava­-me com

o corpo todo tenso, uma carícia dos seus lábios como se me doesse o estômago.

Era uma daquelas situações em que queremos mesmo fugir de uma coisa

muito intensa, passar nem que seja algumas horas numa bolha onde mais

ninguém pode entrar, desligar o telemóvel e esquecer tudo, simples­mente. Não

sentir nada. Estar a sós connosco e com mais ninguém.

Essa noite fora assim. Conseguira respirar fundo, pudera ser apenas a Noah, e

não a Noah de alguém, mas, mal entrei no meu apartamento e fui para o

quarto, encontrei o bilhete do Nick.

Peguei nele com nervosismo e comecei a ler.

Vou dar­-te mais tempo. Se é disso que precisas, se é isso que tenho de fazer
para que percebas que te amo a ti e a mais ninguém, é isso que vou fazer. Já
não sei que mais posso fazer para que acredites em mim, para que percebas
que quero cuidar de ti e proteger­-te para ­sempre. Não vou a lado nenhum,
Noah. A minha vida e o meu futuro são contigo, a minha felicidade depende
exclusivamente de ti. Para de ter medo: serei sempre a tua luz no meio da
escuridão.

Ao ler as suas palavras, o coração encolheu­


-se, e senti­-me ainda mais culpada

pelo que o estava a fazer passar. O Nick ia renunciar a um trabalho único por

minha causa...

Fui para a sala buscar uma garrafa de água e atirei­-me para o sofá de qualquer

maneira. A verdade é que estava desfeita. Tinha medo de que, se o Nick ali

ficasse, no futuro acabasse por me atirar à cara a oportunidade que desperdiçara

por mim. As palavras da Sophia continuavam a ecoar­


-me na cabeça — «Devias

apoiá­
-lo nisto, Noah.» — Deus! Por que raio se metia, porque falava como se se

importasse com ele? Por que razão o Nick lhe contara acerca disto e a mim não?

Odiava a Sophia, odiava­


-a mesmo. Sabia que o sentia por motivos infundados,

mas, em mim, o que falava mais alto era o ciúme, o ciúme de ver alguém que

era perfeito para ele e logo a seguir olhar para mim ao espelho e saber que eu era

exatamente o oposto.

Não sei durante quanto tempo estive ali sentada no sofá, mas devo ter

adormecido. Quando a luz que entrava pelas janelas me acordou, apercebi­


-me

de que não estava sozinha.

Ao levantar­
-me com cuidado no sofá, vi que um par de olhos me observava. A

Briar estava sentada com uma chávena de café nas mãos.

— Bom dia — disse, com um sorriso estranho.

— Oh, adormeci aqui — desculpei­-me.

— Tens correio — anunciou, estendendo­-me um envelope branco.

Li­
-o depressa e apercebi­
-me de que me esquecera completamente daquele

assunto. Era o convite para a gala do sexagésimo aniversário das Empresas

Leister.

— Merda!

A Briar tirou­
-me o papel da mão e leu­-o.

— Esta é a tal gala de que os media andam a falar há quase um mês?

Não fazia ideia se falavam ou não, mas, de qualquer maneira, assenti. Era a

maldita festa onde eu e o Nick deveríamos fazer de conta que éramos apenas

dois irmãos que gostam um do outro e que se respeitam. Porra, este era o pior

momento possível para irmos a um evento daqueles, ainda mais quando


estávamos zangados.

— Chiça, a altura não podia ser pior! — exclamei, levantando­-me da cadeira e

enchendo uma chávena de café.

A Briar observou­
-me com um brilho estranho nos olhos.

— Diz aqui que podes levar um acompanhante, mas, se não estou enganada,

neste momento tu e o teu namorado não se falam, certo?

Mais ou menos, era mais complicado do que isso, mas esquecera­-me da parte

do acompanhante. O Nick tinha­


-me dito que íamos sozinhos, por isso presumi

que ia ter de aguentar a maldita festa na companhia de um namorado com

quem estava de candeias às avessas, ao lado dos nossos pais, com quem mal

falava, e rodeada de gente que nunca vira na vida.

— A verdade é que não sei em que ponto estamos, mas não, não vou com

ele... — Apoiei a cabeça nas mãos e fechei os olhos com força. A festa era

naquele fim de semana, e alguma coisa me dizia que até lá não iria conseguir

resolver os meus problemas com o Nick.

— Se quiseres, posso ir contigo... — propôs a Briar alguns segundos depois.

Levantei a cabeça e fitei­


-a. — A sério, não me importo. Além disso, em eventos

como estes, há sempre a possibilidade de conhecer pessoas influentes... Já sabes

que não há nada como um bom contacto. Estaríamos a fazer um favor uma à

outra: eu faço­
-te companhia para não morreres de tédio e, em troca, talvez

conheça algum agente ­


importante.

Ponderei o que ela dizia e não me pareceu má ideia. Era evidente que seria

melhor aparecer com ela do que sozinha.

— A sério que não te importas? Vai ser uma seca, e vou ter de desempenhar o

papel da filha perfeita, cumprimentar toda a gente e tirar fotografias estúpidas.

Ela sorriu, mostrando­


-me os bonitos dentes brancos. Quando sorria, parecia

um anjo caído do céu... A Briar deixava­-me completamente desconcertada.

Ainda não era capaz de a decifrar.

— Não me importo nem um pouco. Quem me está a fazer um favor és tu.

Dito isto, rodou sobre os calcanhares e entrou no seu quarto.

Só faltavam dois dias para que fosse obrigada a ver o Nick na gala dos

Leisters, e não fazia ideia de como íamos agir um com o outro. Surpreendia­
-me

a verdadeira distância que mantinha da minha pessoa, e uma parte mais

insegura interior dentro de mim perguntou­-se se haveria algum motivo oculto

para o fazer.
«São só mais dois dias, Noah, dois dias. Dentro de dois dias vais vê­-lo, e tudo

voltará a ser como antes.»

Não parei de repetir estas palavras e tentei distrair­


-me com a compra do

vestido e restantes coisas para a gala. O protocolo exigia que as mulheres fossem

de vestido comprido e salto alto. Naquela tarde, tinha ligado à Jenna, e

estávamos a passear e a conversar enquanto olhávamos para as montras do

centro comercial.

— Era para ir, mas há uma semana que o Lion me liga todos os dias, insiste

que quer ver­


-me, que quer levar­
-me a jantar para falarmos e ver como estou... O

que hei de fazer, Noah? Tenho tantas saudades dele que até dói, mas tenho

medo... Tenho medo de que volte a magoar­


-me, de que tudo continue a ser

como sempre foi.

Ouvi a minha amiga e não consegui evitar comparar­


-me com ela. Apesar de

eu e o Nick não termos acabado — nem sequer queria considerar essa

possibilidade — esta separação parecia estar a definir um antes e um depois na

nossa relação.

— Tens de ir, Jenna. O Lion merece que, pelo menos, ouças o que tem para te

dizer. Já estão separados há mais de um mês, está na hora de porem as cartas em

cima da mesa. Por muito que insistas em que estás melhor sem ele, ambas

sabemos que não é verdade.

A Jenna começou a morder os lábios de forma compulsiva, e um sorriso

aflorou­
-lhe no rosto.

Aqueles dois tinham sido feitos um para o outro, e não entendia como não o

percebiam.

Experimentei pelo menos vinte vestidos. A minha mãe autorizara­-me a pagar

as compras com o cartão de crédito que tinha para emergências. A verdade é

que pensara ir com um vestido emprestado, mas queria ir à festa descansada.

Assim, naquele momento, andava a passear por lojas de roupa da C


­ hanel, da

Versace, da Prada... Como se não tivesse problemas nenhuns com dinheiro. Uma

parte de mim preparou­


-se para comprar um vestido de marca em segunda mão,

que custava metade do valor, e assim podia ficar com o resto para pagar a renda,

a comida e outras coisas básicas da vida. No entanto, desisti da ideia, já que

tinha a certeza de que a minha mãe iria acabar por descobrir quando fosse ver o

extrato do cartão.

Acabámos por entrar finalmente na Dior, uma loja que deixava a Jenna doida.

Os preços eram uma loucura, mas deixei­-me levar pela minha amiga e fiz de
conta que não estava a comprar o vestido para mim, mas a cumprir uma tarefa.

O mal de entrar naquele tipo de lojas é que pode sempre acontecer­


-nos o pior:

apaixonarmo­
-nos por um vestido. Estava no meio da loja, num manequim, e,

mal entrei, os meus olhos colaram­-se a ele.

— Deus do céu, Noah... É este, é o teu vestido — disse a Jenna ao meu lado,

tão estupefacta como eu.

Observei o tecido cinzento­


-pérola, toquei com os dedos na seda suave e vi

como era bonito.

— Tens de experimentar — disse a Jenna, e, um segundo depois, tinha uma

funcionária da loja a tratar­


-me como se eu fosse uma estrela qualquer de

Hollywood. Levaram­
-nos para uma sala contígua e ajudaram­-me a vesti­-lo. A

parte de cima tinha uma espécie de corpete com pequenos diamantes prateados.

A saia caía em cascata até ao chão, realçando o meu corpo e marcando cada

curva como se fosse água a cair­


-me sobre a pele. Além disso, tinha uma racha

numa das pernas que me chegava quase à anca. Meu Deus, era simplesmente

perfeito.

Quando saí do provador, a Jenna arregalou muito os olhos e ficou especada a

olhar para mim.

— Puxa, estás incrível!

Baixei os olhos e peguei na pequena etiqueta que estava presa ao lado das

costelas. Quase me engasguei ao ver o preço.

— Custa cinco mil dólares, Jenna.

Os olhos dela não revelaram a menor surpresa.

— Então e estavas à espera de quê? Isto não é a GAP. Tens de estar à altura,

ouve o que te digo, o teu vestido será um dos mais normais. E estás divinal,

Noah. A sério, acho que vou chorar.

Revirei os olhos e voltei a ver­


-me ao espelho.

O vestido era lindo, e o tom cinzento contrastava na perfeição com a pele

bronzeada e a cor do meu cabelo. Era um vestido para uma ocasião especial,

para exibir à frente das câmaras... À frente do Nick.

Sim, queria decididamente observar a cara do Nicholas quando me visse

chegar com um vestido tão bonito. Se a gala ia ser o dia do reencontro depois de

duas semanas quase sem nos falarmos... como a Jenna tão bem dissera, eu tinha

de ir espetacular.
48

Nick

Faltava um dia para a gala, e eu e a Noah não tínhamos voltado a falar. Estava

preocupado, com ela, connosco. Sentia uma pressão no peito que não me

deixava trabalhar. Naquela manhã, o meu pai tinha passado pelo meu gabinete

para me entregar os convites para a gala do dia seguinte e recordara­-me aquilo

que nos pedira, a mim e à Noah, há cerca de um mês. Odiava vê­-la depois de

tantos dias sem lhe tocar ou abraçar e ter de fazer de conta que não éramos nada

um para o outro. Era como se tudo fosse uma piada de muito mau gosto. O

meu mau humor era percetível. Qualquer pessoa que estivesse em contacto

comigo se apercebia de que eu já tivera tantas discussões com o resto do pessoal

que só ainda não me tinham despedido porque o meu apelido era Leister.

— Aluguei três carros para nos levarem amanhã à gala, um para mim e para a

Ella, um para a Noah e para a amiga que ela vai levar e outro para ti e para a

Sophia.

Os meus olhos levantaram­


-se imediatamente dos papéis que estava a ler, meio

distraído.

— O que disseste?

O meu pai lançou­


-me um olhar que me dizia que, naquela manhã, eu não fora

o único a acordar com os pés de fora.

— Foi o Aiken que me pediu, Nicholas, e não estou disposto a discutir o

assunto. Ele não pode estar presente amanhã: a Sophia vai em sua representação,

e ele pediu­
-me que entrasse com a nossa família.

— E ela sabe disso? — perguntei, levantando­-me e fechando a porta do

escritório com estrondo. — A Sophia disse­-me que não ia à gala, que ia para

Aspen amanhã de manhã.

O meu pai tirou os óculos e apertou a cana do nariz.

— Isso foi antes de o Riston ter de ir a Washington tratar de um assunto

importante. Não pode estar presente, e é por isso que a Sophia vai no seu lugar.
O Riston pediu­
-me que fosses seu acompanhante, e, como é evidente, disse­
-lhe

que sim.

Abanei a cabeça, sabendo dos problemas que aquilo me iria causar.

— Podemos ir no mesmo carro. Mas não vou ser seu acompanhante.

O meu pai observou­


-me com indulgência. Estava a dizer palermices. Se

aparecêssemos no mesmo carro, tanto fazia se os convites eram individuais.

Toda a gente pensaria que estávamos juntos... inclusive a Noah.

— Vais arranjar-me problemas com a minha namorada — acusei, entre

dentes.

O meu pai suspirou e encaminhou­-se para a porta.

— A tua relação com a Noah já te está a custar demasiado, filho... Se ela não é

capaz de aguentar que chegues a uma festa com uma amiga, acho que devias

repensar uma série de coisas.

Ignorei as suas palavras e deixei que se fosse embora. Não podia permitir que

a Noah chegasse à gala e me visse com a Sophia, tinha de lhe contar antes. A

última vez que tivera notícias dela fora quando me enviara uma mensagem de

texto a dizer «Obrigada». Tinha prometido que lhe dava espaço, mas, se não lhe

explicasse o que ia acontecer com a Sophia, faltar àquela promessa ia ser o

menor dos meus problemas. Levantei­-me, peguei na chave do carro e dirigi­


-me

para o seu apartamento.

Tive a sorte de chegar ao quarteirão do seu prédio no preciso instante em que

ela chegava pela outra entrada. Estacionou o carro ao lado do meu, e os olhos

arregalaram­
-se de surpresa quando me viu sair. Tenso, esperei pela sua reação.

Aproximou­
-se de mim com cautela até parar e me fitar com ner­vosismo.

— Fico contente por ver que continuas aqui e não estás em Nova Iorque.

Virou­
-me as costas e subiu as escadas que davam acesso ao bloco de

apartamentos. Bolas, continuava zangada comigo? Praguejei entre dentes e fui

atrás dela, disposto a resolver e a encerrar aquele assunto de uma vez por todas.

Fitei o vestido que trazia e entretive­-me com as suas curvas enquanto se

debatia para abrir a porta. Nunca a tinha visto com aquele vestido: era amarelo

com flores pequenas espalhadas pelo tecido.

Conseguiu finalmente abrir a porta... Podia tê­-la ajudado, mas estava

distraído a ver o gingar do vestido sobre o seu traseiro.

Ao entrar, voltou­
-se para trás e comprimiu os lábios com força.

— Para de olhar para o meu rabo, Nicholas Leister.


Soltei uma gargalhada e fechei a porta atrás de mim. Olhei para o

apartamento e escutei atentamente para ver se algum ruído denunciava a

presença da Briar, mas não havia sinal dela.

— Gosto do teu vestido, mais nada — admiti, olhando intensamente para

ela. Deus, odiava aquele vestido, odiava a forma como se colava ao peito dela,

como dançava sobre os seus joelhos.

A Noah olhou­
-me com condescendência e pousou a mala que trazia em cima

da bancada da cozinha.

Aproximei­
-me dela à espera de que dissesse mais alguma coisa. Vi que estava

nervosa e não esperava encontrá­-la assim.

Era a Noah e conhecia­


-a como as palmas das mãos.

Observei­
-a, entretido, enquanto ela abria o frigorífico e tirava duas cervejas.

— Queres? — perguntou, e vi que o seu rosto corava, de nervosismo ou talvez

porque eu estava literalmente a comê­-la com os olhos.

— Claro — respondi, estendendo a mão e roçando ligeiramente com os dedos

nos dela ao aceitar a garrafa.

Tive plena noção do calafrio que este pequeno toque lhe provocou, mas fingi

não dar por nada. Estava ali para acalmar os ânimos, para falar com ela e

explicar­
-lhe sobre Nova Iorque, embora, na verdade, a única coisa em que

conseguia pensar era em meter­


-lhe as mãos por baixo do vestido e fazê-la

estremecer de verdade.

Baixei a garrafa até à beira da bancada e, com um golpe seco, fiz saltar a

carica; depois levei a garrafa aos lábios. A Noah observou­-me fixamente, baixou

o olhar para a sua cerveja e, por instantes, pareceu ficar um pouco perdida.

Sorri suavemente. Bebi mais um gole e aproximei­-me dela.

— Toma, sardas — disse, entregando­-lhe a minha garrafa e pegando na sua

para a abrir da mesma maneira.

Sabia que com aquele movimento conseguira encurtar significativamente a

distância entre nós.

Os seus lábios vacilaram, mas levou a garrafa à boca e deixou que o líquido

frio lhe escorresse pela garganta. Olhei, hipnotizado, para o seu pescoço, que se

contraía ligeiramente para receber a ­cerveja. ­Respirei fundo, procurando não

reduzir a distância que nos separava. Alguma coisa me dizia que ainda não era o

momento, se quisesse receber uma resposta agradável da sua parte. Mas mesmo

assim não conseguia controlar aquela vontade de a devorar com os olhos.

Nervosa, afastou­
-se de mim e foi para o sofá; não parecia muito segura quanto
ao que deveria fazer a seguir e pôs­-se a arrumar as revistas. Encostei­-me à

bancada e fiquei a observá­


-la.

A Noah continuou a arrumar coisas à toa, e mantive­-me em silêncio. Fiquei

assim durante uns minutos, até que se voltou para mim, ­deixou as revistas em

cima do sofá e atirou o cabelo para trás dos ombros, ­exasperada.

— Para de olhar para mim!

Sorri, divertido.

— Estás a deixar­
-me sem opções, amor. Não te posso tocar, não posso olhar

para ti... Ser teu namorado está a transformar­


-se numa tortura completa.

Cruzou os braços e ficou a olhar para mim, irritada e nervosa.

— O que vieste aqui fazer, Nicholas?

Fitei­
-a durante uns segundos. Estávamos separados por um par de metros,

mas sentia­
-a a quilómetros de distância de mim, o que não me agradava nem

um pouco. Tinha tantas saudades dela... Sabia que prometera dar­


-lhe espaço,

que só ia contar­
-lhe pessoalmente a cena da Sophia, mas antes queria assegurar­
-

me de que estávamos bem. Ou tão bem quanto poderíamos estar.

— Sei que disse que te dava espaço, mas precisava de te ver, nem que fosse

apenas durante meia hora — expliquei.

Ela olhou para mim com a incerteza espelhada no rosto. Acho que nunca a

tinha visto tão perdida. Veio na minha direção, mas deixou um espaço

demasiado grande entre nós. Avancei um passo, mas ela recuou ligeiramente,

até bater com as costas na bancada.

— Porque não me contaste? — perguntou então, e a sua voz soou

amargurada.

A pergunta não foi de todo inesperada. Sabia que o que mais a aborrecera em

toda aquela questão sobre Nova Iorque fora ter sabido por outra pessoa.

— Porque nunca fez parte dos meus planos ir para onde quer que fosse, pelo

menos sem ti.

Ela mordeu o lábio com nervosismo, e tive vontade de lho puxar, mas não

sabia se seria boa ideia tocar­


-lhe... Pelo menos para já.

— Então, se eu fosse contigo... Aceitarias...

Não era uma pergunta, e a verdade é que nunca pusera sequer a hipótese.­

— Estou bem como estou agora, Noah. Gosto do sítio onde trabalho e do

rumo que o meu futuro irá levar. — Não me agradava especialmente herdar a

empresa do meu pai, já que ainda ia ter de trabalhar para ele um horror de anos,

mas era apenas um detalhe insignificante, quando comparado com o que


presumia ser trabalhar para uma empresa Leister.

Os olhos da Noah procuraram os meus, e tentei decifrar o que lhe estava a

passar pela cabeça.

— Nem sequer me vais perguntar?

Franzi o sobrolho.

— Queres vir comigo para Nova Iorque?

— Não.

— Então? — respondi, soltando um suspiro de frustração e atirando a cabeça

para trás.

— Não quero ir, obviamente, porque ainda agora entrei para a uni­ver­sidade,

aqui. Passou­
-se apenas pouco mais de um ano desde que saí do Canadá, mas...

Sei que é uma coisa importante para ti, Nicholas, por isso... Acho que estaria

disposta a fazê­
-lo por ti.

Baixei a cabeça devagar e voltei a olhar fixamente para ela.

— Farias isso por mim? — perguntei, tentando encontrar alguma coisa no

seu rosto que me dissesse o contrário. Mas pela sua forma de olhar, percebi que

estava a ser sincera.

— Nicholas... Eu amo­
-te — confessou, num sussurro. — As coisas agora

podem não estar muito bem... mas, se me pedisses e fosse importante para ti,

dir­
-te­
-ia que sim, que iria contigo para qualquer lugar, e tu sabes isso.

Uma vaga de amor infinito inundou­-me o centro do peito, aquele buraco oco

na minha alma que estivera tão vazio durante as duas semanas em que

estivéramos separados. Caramba! A distância magoava­-me tanto!

Dei um passo em frente, invadindo completamente o seu espaço pessoal. A

minha mão pousou na cintura dela e apertei­-a com força, quase beliscando-lhe

as costelas, tal era a ânsia que tinha de a fazer perceber o que faria e daria para

estar com ela e de a fazer feliz.

A Noah susteve a respiração, e julguei ouvir o seu coração acelerar.

— Obrigado — murmurei.

Levantei a outra mão até ao seu pescoço e agarrei­-lhe o cabelo. Queria cheirar

o seu aroma, recordar aquela essência que só ela parecia possuir.

Encostei a ponta do nariz ao queixo e ao pescoço dela, inalando devagar e

fechando os olhos logo a seguir.

Ouvi a sua respiração acelerar quase ao mesmo tempo que a minha. A mão

agarrou­
-me o braço, e todo o seu corpo tremeu ao sentir­
-me tão perto de si.

— Tenho tantas saudades tuas — disse junto à sua orelha. — Adoro a ideia
de quereres vir comigo, mas não vou aceitar este trabalho, pelo menos agora.

Quero ficar aqui, e sei que tu também queres. É exatamente isso que vamos

fazer, está bem?

Não esperei que me respondesse. Pus­-lhe a mão na nuca e beijei a covinha do

seu pescoço. Ela deixou escapar um suspiro entrecortado. Rocei ligeiramente a

ponta da língua pela clavícula acima até chegar ao lóbulo da orelha, que mordi

com meiguice. A Noah soltou todo o ar que estava a conter, e reparei que o meu

corpo reagia às respostas que o dela me dava. Afastei­-me durante um instante e

observei­
-a demoradamente. A excitação e o desejo eram tão evidentes que tive

de me controlar para não a devorar ali mesmo.

— Já tiveste tempo suficiente? — perguntei.

— Não... Não sei.

Não gostei da resposta... Talvez precisasse de lhe recordar o quanto sentia a

minha falta.

— Não vou fazer nada que não queiras, amor — sussurrei, pousando­-lhe as

mãos na cintura. — Vou devagar, até me dizeres para parar.

Ela não disse nada, e ergui­-a para cima da bancada com um movimento

rápido. Abri­
-lhe as pernas com delicadeza e coloquei­-me entre elas.

Sorri para a tranquilizar, já que tinha a sensação de que estava muito nervosa.

Percebia que se tinham passado muitas coisas entre nós e que não tinha estado à

altura, principalmente no último mês, por isso aproveitara essas duas semanas

para tentar entendê­


-la, para tentar perceber o que estava a fazer de mal.

Levei as mãos ao rosto dela e acariciei as sardas que me deixavam louco. Fui

delineando o contorno do seu maxilar, dos seus lábios car­nudos, com os dedos...

Por baixo do tecido do vestido, o peito da Noah movia­-se com uma velocidade

evidente. Em qualquer outra ocasião, já a teria despido, levado para o quarto, e

as minhas mãos já estariam sobre todos aqueles sítios que tanto amava.

Mas não planeava cometer o mesmo erro. Queria ir devagar, assegurando­


-me

de que ela se sentia confortável a cada instante.

— Quero beijar­
-te.

Olhou para mim em silêncio, mas tive a sensação de que não ia ­recusar, de

que o desejava tanto quanto eu.

— Vou beijar­
-te.

Colei os meus lábios contra os seus, com força, com desejo, e deliciei­-me com

a pressão da minha boca na dela, numa ligação única que fez desaparecer tudo o

que existira de negativo nos últimos dias. Mordi o seu lábio inferior para depois
o acariciar com a língua e voltar a apertar com força. Os lábios dela eram a

perdição de qualquer homem, e eu não era exceção. Levei a mão até à nuca e

aproximei­
-me mais dela, obrigando­-a a reclinar­
-se para trás e a apoiar­
-se no

meu braço estendido. A minha boca afastou­-se dela para voltar a reclamá­-la, um

instante depois. Dessa vez, inseri a língua e procurei a sua, desesperado. Ela

correspondeu, veio ao meu encontro, e o seu sabor, a sua reação, fizeram-me

perder o pouco controlo que me restava.

As minhas mãos percorreram todo o seu corpo, sem poder fazer mais nada,

enquanto a Noah se endireitava e apertava as pernas para me puxar para si com

avidez. Os braços rodearam­


-me o pescoço, e fundimo­-nos num abraço passional

que só podia resultar numa coisa.

As minhas mãos desceram para a bainha do vestido, e puxei­-o para cima das

coxas, enrolei­
-o à volta das suas ancas.

Afastei­
-me da Noah e inclinei­-me para lhe beijar as pernas... Fui subindo

pelas coxas, dando beijos quentes e cuidadosos, para não ­deixar marcas. As mãos

da Noah puxaram­
-me e obrigaram­-me a levantar a cabeça. A sua boca estava

novamente sobre a minha, e respirei o seu desespero, a sua ânsia de me tocar.

Com cuidado, levantei­


-a da bancada, segurei­-a pelas pernas e caminhei, com

ela enrolada às minhas ancas, até chegar ao seu quarto. Fechei a porta e dirigi­
-

me para a cama. Com uma mão, acariciava­-me o cabelo e, com a outra,

agarrava­
-se ao meu pescoço. Pus­
-me em cima dela e fui subindo o vestido até o

despir pela cabeça.

— Odeio este vestido — confessei, deixando­-o cair de qualquer forma sobre a

cama.

— É novo — disse ela, puxando­-me a nuca para baixo e enterrando os lábios

no meu pescoço. Mordeu­


-me e chupou­-me a pele, e respondi com um gemido.

— É maravilhoso.

A minha língua acariciou­


-lhe o maxilar, e os dentes mordiam suavemente a

cova da garganta.

A Noah riu­
-se.

— Mentiroso.

Observei o seu corpo, aquele corpo que parecia ter sido desenhado para mim,

o mesmo que só eu tinha acariciado, tocado, beijado.

— Era capaz de passar horas a olhar para ti, Noah. És linda, em todos os

sentidos da palavra.

Ela não disse nada, limitou­


-se a olhar para mim enquanto eu tirava a T­
-shirt
com uma mão e me deixava cair sobre o seu tronco despido. Tinha um sutiã de

renda tão fina... que era como se não estivesse a usar nada.

Pousei os lábios sobre o tecido fino e senti que ficava tensa sob as minhas

mãos.

— Nick...

Pronunciou o meu nome, ofegante, e senti­-me impelido a continuar.

Com cuidado, comecei a beijar­


-lhe o estômago, devagar, enquanto lhe

acariciava o corpo com os dedos, de cima a baixo, até chegar à cova do joelho e

lhe levantar a perna, obrigando­-a a rodear­


-me a cintura. Pus­-me à sua altura e

movi as ancas sobre as dela.

Uma onda de prazer invadiu­


-nos a ambos. Já se tinha passado demasiado

tempo.

Foi então que a Noah se mexeu. Empurrou­-me até me obrigar a recostar­


-me e,

com um movimento rápido, sentou­-se em cima de mim. O cabelo louro caía­


-

lhe sobre um ombro, e ajustou as madeixas teimosas atrás da orelha.

Vi nos seus olhos que estava a travar uma batalha interior e decidi parar.

As minhas mãos desceram pelas suas pernas e fiquei a olhar para ela, até que

falou por fim.

— Acho... que não é boa ideia continuarmos. Sinto que, se o fizermos...

vamos estar a atirar borda fora tudo o que tentámos resolver nas últimas duas

semanas.

Senti que quem estava a falar não era ela, mas o maldito psicólogo que a

tratava. Fora ele a incentivá­


-la a afastar­
-se de mim durante aquelas duas

semanas, e ver as reações do seu corpo às minhas carícias, ver nos seus olhos

quanto desejava continuar... confirmou apenas as minhas suspeitas.

Levantei­
-me da cama ainda com a Noah ao meu colo e encostei o rosto ao seu.

— Queres parar? — perguntei, e uma parte de mim desejava que dissesse que

não.

Os olhos dela pareciam ponderar. A mão aproximou­-se do meu maxilar, e os

lábios baixaram para beijar os meus.

— Não quero, mas é o melhor que podemos fazer, pelo menos por agora.

Respirei fundo. A nossa respiração estava agitada devido aos últimos beijos.

Assenti e dei­
-lhe um beijo no nariz.

— Queres que me vá embora?

Vi algo parecido com medo atravessar­


-lhe o rosto.

— Não, fica.
Este pedido parecia ser muito mais do que isso. Sorri e levantei­-a até a pôr de

pé, ao lado da cama.

— Tens fome?

Tínhamos pedido sushi e naquele momento estávamos deitados no tapete da

sala... Na televisão passava um filme terrível que deixámos de ver mal começou

a dar.

Eu tinha as costas apoiadas contra o sofá, e a Noah estava sentada à minha

frente com as pernas cruzadas e um sorriso trocista no rosto.

— Não acredito — disse ela, encolhendo os ombros.

Ergui as sobrancelhas e pus­


-me de pé. Estendi­-lhe a mão para que a segurasse.

— Vou mostrar­
-te. Anda.

Levantou­
-se e esperou que afastasse um pouco os móveis para ­arranjar espaço.

A seguir, dirigi­
-me ao leitor de música e procurei os clássicos.

A primeira música que me apareceu foi um clássico de Frank Sinatra: «Young

at Heart.»

Perfeito.

— Aproxima­
-te, pequena desconfiada.

A Noah observou­
-me, divertida e apreensiva.

Aproximei­
-me dela, rodeei­
-lhe a cintura com um braço e entrelacei os dedos

nos seus. Olhei­


-a por instantes e depois comecei a mexer­
-me. Levei­-a comigo,

como me tinham ensinado, como fazia desde que tinha pelo menos dez anos.

Inicialmente, pusemo­
-nos a dançar devagar, até que a Noah se soltou um

pouco mais e pude conduzi­


-la com desenvoltura.

— Não acredito que estás a dançar comigo, na sala, ao som de uma canção do

Frank Sinatra. O que andaste a fumar, Nick?

Sorri e obriguei­
-a a afastar­
-se do meu corpo para depois voltar a puxá­
-la

contra mim, desta vez com as costas junto ao meu peito. Embalei­-a nos meus

braços enquanto nos movíamos cada vez mais devagar... A cabeça dela

repousava no meu ombro, enquanto a apertava contra mim. Beijei­-lhe a cabeça

e a seguir voltei a virá­


-la de frente para mim.

Subitamente, senti­
-me como no início da nossa relação. Não sei como

explicar, mas a Noah estava a sorrir, via­-a descontraída, e eu era um reflexo do

seu estado de espírito. O meu mau humor desaparecera, e sentia urgência em

recordar aquele momento: ela nos meus braços, a dançar junto a mim como se

os nossos problemas se tivessem esfumado subitamente depois de estarmos dias


sem nos vermos...

Desci as mãos pelas suas costas e apertei­-a com força. Segurei a sua mão contra

o meu coração, os nossos pés a moverem­-se devagar, sem roçarmos um no outro,

deixando­
-nos simplesmente embalar pela música...

— Eu amo­
-te — disse, sentindo cada palavra, cada letra.

A Noah não respondeu, limitou­-se a apertar­


-me a mão com mais força,

beijou­
-me o centro do peito e continuámos assim... a dançar, até que a canção

chegou ao fim.

Estivemos algum tempo a dançar; na verdade, estávamos abraçados, a ondular

ao ritmo da música. Só quando senti que todo o seu peso repousava sobre o meu

peito percebi que a Noah tinha adormecido. Pus um braço por baixo dos seus

joelhos e levantei­
-a ao colo.

— O que estás a fazer?... — perguntou, de olhos entreabertos. — Quero

continuar a dançar... Gosto tanto.

Sorri enquanto abria a porta do quarto e a levava ao colo, devagar.

— E danças muito bem, sardas, principalmente quando não te aguentas de

pé.

Deixei­
-a na cama, e ela voltou­-se um pouco até abrir os olhos e me fitar.

Tirei a T­
-shirt e as calças de ganga, sempre sem parar de olhar para ela.

— Ficas aqui — percebeu, e um sorriso maravilhosamente doce desenhou­


-se

nos seus lábios.

— Fico aqui — concordei, enfiando­-me debaixo dos lençóis. Tapámo­-nos, e

ela aninhou­
-se contra mim, pousando a cabeça no meu peito.

— Agora dorme, meu amor.


49

Noah

Sentia­
-me como se estivesse a flutuar entre nuvens brancas, no meio do

entardecer. Sentia o calor dos raios de sol sobre o meu corpo e a impressão

morna de ter descansado tão profundamente que a minha mente estava a ter

dificuldade em regressar à realidade. Estava mesmo bem, por dentro e por fora.

O frio que sentira nos últimos dias parecia ter desaparecido e, quando

finalmente me senti capaz de abrir os olhos, devagar, percebi porquê: dois faróis

azul­
-celeste, lindos e sensuais, fitaram­-me de volta. Senti uma vontade urgente

de os fechar. Tamanha intensidade sem pré­-aviso não era boa notícia para as

minhas hormonas, já de si confusas. A mão dele estava tranquilamente pousada

nas minhas costas e começou a desenhar círculos sobre a minha pele quente.

— Há quanto tempo estás acordado?

Um sorriso apareceu nos seus lábios bonitos.

— Desde que começaste a ressonar, mais ou menos há uma hora.

Olhei para ele, irritada, peguei na almofada e atirei­-lha à cabeça. O meu

movimento foi patético, porque ainda não estava completamente acordada.

Virei­
-me na cama a resmungar e fiquei de costas para ele. Sem esperar um

segundo, o corpo do Nick colou­-se ao meu e puxou­-me para o seu peito. Uniu

as mãos de ambos em frente à minha cara e olhei para os nossos dedos

entrelaçados. Agora não o podia ver, mas entretive­-me a observar os seus dedos

brincarem com os meus.

— Tenho sentido a tua falta na minha cama.

Eu também sentia falta, Deus do céu, era do que mais saudades tinha. Era

incrível o que pode acontecer num colchão entre duas pessoas que se amam, e

não estou a falar apenas de sexo, mas de uma forma geral; o quarto é o lugar das

confissões, das carícias a meio da noite, da confiança, o lugar onde os complexos

ficam de lado, pelo menos quando se está realmente apaixonado. Havia

qualquer coisa de mágico em dormir com alguém e partilhar o lugar dos

sonhos. Embora não tivesse tocado nele durante a noite, tinha a certeza de que o
meu corpo e a minha mente estariam tranquilos por saberem que ele estava

perto...

Virei a mão dele para um lado e vi a tatuagem. E gostei de ver aquelas

palavras na sua pele. Gostei mesmo, porque tinham sido escritas por mim. Era

eu que o levava para fazer aquelas loucuras, porque estávamos apaixonados...

Perdidamente apaixonados.

Na noite anterior, quando dançámos e senti o bater do seu coração junto ao

ouvido... foi tão especial que tive medo de que acabasse. Não queria que aquele

momento chegasse ao fim, por isso aguentei até os meus olhos e o meu corpo

perderem a batalha. O Nick da noite anterior era o Nick por quem me

apaixonara, o Nick que amava com loucura. Era nestes momentos que percebia

que tínhamos sido feitos um para o outro. Queria pensar que já tínhamos

deixado o passado para trás, que, se continuássemos a lutar, conseguiríamos ir

em frente; era o que mais desejava neste mundo, e estava disposta a fazer o que

fosse preciso para o conseguir.

Mas, então, por que motivo não conseguia tirar da cabeça que o que

acontecera na noite anterior, assim como aquele momento tão íntimo entre os

dois logo pela manhã, era a calma que precedia a tempestade?

O Nick voltou-me para ele e pôs­-se em cima de mim.

— Estás muito calada... Não estava a falar a sério quando disse que

ressonavas, sabes isso.

Sorri e levantei a mão para afastar uma madeixa que lhe caía sobre os olhos.

— Gostei de dançar contigo.

Ofereceu­
-me um sorriso, aquele que tanto adorava e que ele mostrava poucas

vezes.

— Bem te disse que sou um excelente dançarino.

Revirei os olhos.

— Convencido devia ser o teu segundo nome — disse, afastando o rosto

quando se preparava para me beijar. Ri­-me quando me apertou as costelas e me

fez saltar com cócegas.

— Eu não tenho segundo nome. Isso é para os toscos.

— Eu tenho um segundo nome, ó espertinho.

Escondeu o rosto no meu pescoço e vi que se ria à minha custa.

— Noah Carrie Morgan. Santo Deus! A tua mãe só podia estar bêbeda. Não

vais vingar­
-te de mim com os teus poderes, pois não?

Empurrei­
-o com todas as minhas forças, mas não se mexeu um milímetro.
Sim, tinha lido o maldito romance do Stephen King, e, não, a minha mãe não

tinha escolhido aquele nome por achar que eu iria acabar por ser uma miúda

odiada e perturbada, só me dera aquele nome porque era o da minha avó.

— Idiota! — exclamei, rindo­-me e deixando o meu corpo mole sobre o

colchão.

Ele calou­
-se, então, levantou­
-se e olhou fixamente para mim.

— Adoro todos os teus nomes, sardas.

Deu­
-me um beijo no rosto e libertou­-me da sua prisão. Quando já não o tinha

em cima de mim, consegui levantar­


-me da cama. Tinha de tomar um duche.

Peguei nas coisas de que precisava enquanto o Nick se vestia ao meu lado,

observando­
-me pelo canto do olho. Subitamente, estava muito calado, e olhei

para ele com curiosidade. Quando eu ia a sair para a casa de banho, ele

segurou­
-me a mão e puxou­
-me para si enquanto se sentava na beira da cama.

Agarrou­-me pela cintura e levantou a cabeça para me fitar durante uns

segundos.

— Tenho de te contar uma coisa... E não quero que fiques zangada. — Franzi

o sobrolho e olhei para ele com receio. — Amanhã não vou à gala sozinho.

Bem, acho que era a última coisa que esperava que dissesse.

— O que queres dizer com isso?

Tinha plena consciência de que o tom da minha voz mudara

consideravelmente; mais do que isso, a temperatura do quarto baixou vários

graus de um momento para o outro.

— Tenho de ir com a Sophia.

A foi assim, de repente, que voltámos ao princípio.

— Ontem vim cá para te contar pessoalmente. Não quero que fiques zangada.

Vamos apenas como colegas de trabalho, mais nada.

— E porque não me disseste antes? — perguntei, irritada.

— Porque estávamos tão bem e tinha tantas saudades tuas...

Fitei­
-o. Não queria que fosse com ela... Era só o que me faltava, agora que

sentia que as coisas me estavam a fugir das mãos. Por outro lado, talvez

estivesse na altura de agir mais com a cabeça do que com o coração, como o

Michael me dizia tantas vezes...

— Muito bem. Faz o que tiveres de fazer e, quando acabares, falamos.

Dei meia­
-volta para ir para a casa de banho, mas, antes de conseguir sair, o

Nick pôs­
-se à minha frente.

— Amanhã, quando isto tudo acabar, vamos para longe daqui, o fim de
semana inteiro. Vamos e resolvemos as nossas coisas, porque sabes tão bem

quanto eu que nunca olharia para outra mulher.

Soltei uma gargalhada amarga.

— Da próxima vez que me fizeres uma cena de ciúmes, lembra­-te do que

acabaste de dizer.

Pareceu aceitar a minha resposta.

As suas mãos seguraram o meu rosto, e olhou­-me nos olhos com um brilho

especial nos seus.

— Eu amo­
-te, e não há mais ninguém no meu pensamento, só tu.

Fechei os olhos, deixei que me beijasse e, quando se foi embora, enfiei­-me na

casa de banho.

Tentei fazer ouvidos moucos a todos os pensamentos negativos que

regressavam para me atormentar, todos os pensamentos em que trabalhara

durante duas semanas, todas as coisas que me esforçara por ignorar, tentando

mudar para me sentir melhor comigo mesma, mais segura, mais corajosa. Não

podia regressar à casa de partida, não, não o faria. Por isso mesmo, deixei os

meus fantasmas de lado e fiz um esforço para confiar no Nick.

Ora, uma coisa sabia: estaria tão arrebatadoramente provocante que o idiota

do meu namorado não iria conseguir tirar os olhos de mim.

Na manhã da gala diverti­


-me na companhia da Brair e da Jenna, que não

paravam de falar, de rir e de tornar aquele dia muito mais alegre do que

esperava. A Jenna tinha mandado vir a senhora que a costumava pentear a ela e

à mãe sempre que iam a este tipo de eventos e, enquanto esperávamos que

chegasse a minha vez, o meu apartamento transformou­-se num verdadeiro salão

de beleza.

Fizemos manicure e pedicure, depilei o corpo absolutamente todo e tomei um

banho com sais de rosas para deixar a pele a cheirar mara­vi­lhosamente bem.

Hidratei a pele com um óleo de amêndoas que a minha mãe me comprara há

milénios e que em certa ocasião fizera com que o Nick me dissesse que tinha

vontade de me lamber o corpo inteiro.

Sorri quando me vi ao espelho em roupa interior. Tinha o conjunto mais

provocante que consegui encontrar, e jurei que depois daquela gala ia dar ao

Nicholas a melhor noite da vida dele, a melhor. Seria tão inesquecível que,

enquanto vivesse, nunca mais olharia para outra mulher.

— É este o vestido? — perguntou a Briar enquanto o tirava do ­armário.


Assenti ao mesmo tempo que olhava de relance para o carro. A minha mãe

mandara­
-me uma mensagem a informar que o carro nos viria ­buscar e levar até

à quinta onde a festa iria decorrer. Estava a ficar muito nervosa. Não sabia como

devia agir nem o que fazer quando lá chegasse, mas tentei deixar os meus medos

de parte e suspirei, aliviada, quando a cabeleireira da Jenna apareceu. A Briar

insistiu em pentear­
-se sozinha. Já estava habituada às muitas passadeiras

vermelhas a que os pais a levavam.

Eu sentei­
-me numa cadeira e deixei que a espalhafatosa mulher chamada

Becka me fizesse um penteado bonito. Encaracolou­-me o cabelo todo e depois

apanhou­
-o numa série de tranças enredadas de forma espetacular. Aguentei

todos os puxões porque sabia que ia ficar incrível. Uma hora e meia depois,

sorri para o meu reflexo no espelho.

— Adoro — declarei, voltando­-me para poder ver o penteado de todos os

ângulos. A Jenna pegou no vestido e deu­


-mo. Vesti­-o com cuidado, apreciando

o roçar delicioso da seda contra a pele.

— Vais causar sensação — disse a Jenna, entregando­-me a pequena bolsa que

tinha na mão, onde só cabia o telemóvel e um batom.

Dei­
-lhe um abraço rápido.

— Resolve as coisas com o Lion, Jenn. Ele ama­-te. Não te esqueças disso. —

A Jenna assentiu, e saí para ir buscar a Briar.

A minha companheira de casa tinha um bonito vestido bege que, colado ao

seu corpo voluptuoso, não deixava muito à imaginação. O cabelo caía em ondas

que apanhara de um dos lados da cabeça. Estava linda.

Despedimo­
-nos rapidamente da Jenna e saímos para entrar no carro alugado

que nos esperava. Fiquei surpreendida ao ver que o motorista não era um

desconhecido, mas o Steve, que estava muito elegante.

Quando nos viu descer as escadas, sorriu e estendeu­


-me uma caixinha

retangular.

— Do Nick — disse, com cara de caso.

Olhei para a caixa e para o bilhete que o Steve me entregou com ar de poucos

amigos.

A Briar observou­
-me com curiosidade quando pousei ambas as coisas em cima

do banco, ao meu lado, sem sequer as abrir.

— Não queres saber o que ele te comprou?

Abanei a cabeça e fixei o olhar na estrada. Tinha de ter a mente fria. Quando a

noite acabasse, falaríamos de tudo e, nessa altura, poderia permitir­


-me abrir o
coração.

A quinta ficava nos arredores da cidade, e o tempo que demorámos a chegar

só fez aumentar o meu nervosismo. Observei, deslumbrada, que todas as árvores

que ladeavam o caminho até ao local da festa estavam iluminadas com luzes

brancas. Uma fila de limusinas esperava que os convidados da festa saíssem

junto à porta da mansão branca. Quando o carro parou, um homem de uniforme

abriu­
-nos a porta, e tive de con­trolar todas as minhas inseguranças. Ajudaram­
-

me a sair, e senti que trinta pares de olhos, pelo menos, se fixavam em mim.

— Boa noite, meninas — cumprimentou­-nos o homem, e vi que tocava no

aparelho que trazia no ouvido e dizia qualquer coisa que não consegui perceber.

A minha mãe instruíra­


-me a só parar para tirar fotografias quando estivesse

com ela e com o Will. Quando o homem me indicou para onde devia ir, tive de

me voltar para a Briar.

— Não vou perder esta oportunidade — declarou ela, olhando para o local do

photocall com um interesse quase calculista.

— Tens a certeza de que não te importas de ficar sozinha?

A Briar revirou os olhos e virou­-me as costas. As suas pernas elegantes

começaram a dirigir­
-se para o aglomerado de pessoas, e percebi que não

precisava de me preocupar com ela.

O homem mostrou­
-me o caminho e levou­-me até ao ponto em que muitos

jornalistas entrevistavam outras tantas pessoas: senti­-me assombrada com tanta

gente, até os meus olhos se cruzarem com os da minha mãe... Não nos víamos

desde a noite em que saíra de casa, um mês antes, e, apesar de se ter passado

tempo suficiente para ter deixado os problemas de lado, mal a vi, percebi que

ainda tínhamos muito para falar e resolver.

— Estás linda, Noah — exclamou ao ver­


-me e inclinou­-se para me dar um

abraço rápido.

A minha mãe parecia uma estrela de cinema: tinham­


-lhe ondulado o cabelo e

apanhado as madeixas com um travessão lindo de prata e brilhantes. O vestido

era cor de vinho e fazia­


-a parecer muito mais nova do que era na realidade.

Sempre me espantara a forma como man­tinha a forma, porque não era nada

adepta de dietas restritas nem nada do género.

— Obrigada. Tu também estás — respondi, desviando os olhos e vendo o

William numa esquina, a falar com jornalistas da revista Los Angeles Times.

No sítio onde estava, um pouco em segundo plano, mas ainda assim de frente
para as pessoas, pude observar que os carros continuavam a chegar, deixando

sair convidados muito elegantes. Ao meu lado, a minha mãe falava com quem

passava num tom de voz elevado. Estava tudo uma loucura, e começava a ficar

angustiada. Apresentavam­
-me mais pessoas do que tinha capacidade para

memorizar, e tivemos de esperar que o William acabasse de falar com todos os

jornalistas para tirar a porcaria das fotografias de família.

Uma agitação entre os fotógrafos fez­-me fixar o carro que acabara de parar

junto à passadeira. A porta abriu­-se, e o meu coração parou de bater por um

instante. Ali estava ele, e, Deus do céu, como não enlouquecer ao olhar para ele?

O Nicholas desceu da limusina, com uma expressão séria e profissional, apesar

dos gritos dos fotógrafos. Apertou o botão do casaco e estendeu a mão à rapariga

que vinha com ele no carro. A Sophia Aiken saiu com um vestido preto

espetacular, justo e incrivelmente sensual. Observei­-os de longe, sentindo uma

vontade súbita de vomitar.

Desviei o olhar e foquei­


-me na direção oposta. Naquele momento, o William

afastou­
-se dos jornalistas e veio cumprimentar­
-me. Há que dizer, o Will estava

radiante de felicidade. Presumo que fosse a sua noite... De tanto pensar em

mim, não percebera como aquilo era importante para ele.

— Obrigado por fazeres isto, Noah. Estás linda — disse, sorridente.

Assenti, ignorando a irritação que começava a apoderar­


-se de mim a toda a

velocidade. Depois de lançar mais um olhar, vi que o Nick dizia qualquer coisa

à Sophia antes de se afastar dela e vir ter connosco.

Quando os nossos olhares se cruzaram, senti, literalmente, centenas de

borboletas a voar incessantemente no meu estômago. Os olhos do Nick

arregalaram­
-se mais do que a conta quando viu o meu vestido. E, porra... Ele

estava de smoking.

Antes que cometesse uma loucura, virei­-lhe as costas e concentrei­-me nos

jardins impressionantes, nas luzes dos jornalistas... Aquela não era uma

apresentadora de televisão conhecida? E não era aquele o ator que ia entrar no

novo filme do Spielberg?

Senti o calor do Nick alguns minutos depois, de uma maneira que todo o meu

corpo estremeceu com o simples roçar do casaco dele contra as minhas costas. O

Will e a minha mãe estavam mesmo à sua frente, e ambos olharam para o

recém­
-chegado.

— Olá, filho — cumprimentou o William, distraído, enquanto a mulher se

aproximava para lhe dizer qualquer coisa. A minha mãe sorriu­-lhe, tensa e
voltou­
-se também para a mulher que lhe explicava como iam tirar as

fotografias.

Continuei a fitar os jardins. Sem dizer absolutamente nada, um dedo do Nick

acariciou­
-me desde o ombro até ao pulso, de forma muito subtil mas

incrivelmente tentadora.

Voltei­
-me para ele com a intenção de o avisar com o olhar de que o melhor

que podia fazer naquela noite era deixar­


-me sossegada: nem toque, nem olhares,

nem beijos, nem nada que se parecesse. Porém, todos os meus avisos me ficaram

atravessados na garganta quando o vi ali tão perto, mesmo à minha frente, mais

imponente do que nunca.

A sua boca não disse nada, mas o olhar confessou tudo. Senti que não

demorou cinco segundos a despir­


-me, como se com o percorrer simples dos seus

olhos pelo meu corpo eu pudesse sentir o toque dos seus dedos na pele, a carícia

dos seus lábios, húmidos e deliciosos em cada recanto nu.

«Meu Deus, para com isso. Não penses nisso agora.»

Sem dizer uma palavra, inclinou­-se e deu­


-me um beijo no rosto.

Fechei os olhos um instante e inspirei o aroma familiar do perfume dele, que

se misturava suavemente com o cheiro a tabaco. Teria estado a fumar por se

sentir tão nervoso como eu?

— Estás linda — sussurrou­


-me ao ouvido antes de se afastar e fazer de conta

que não se passava nada.

Contornou­
-me para se aproximar dos jornalistas. Eu fiquei ali, imóvel,

atordoada e a segui­
-lo com o olhar. Ele começou a responder às muitas

perguntas que lhe faziam, e eu fiquei a observá­-lo, ao longe. A forma como se

movia, como conversava com todas aquelas pessoas que queriam saber do filho

dos Leisters, a segurança de todos os seus movimentos...

Afastou­
-se dos jornalistas durante um instante para ver qualquer coisa no

telemóvel. Logo a seguir, o meu telemóvel vibrou dentro da bolsa.

O Nick já guardara o seu e respondia a mais perguntas dos jorna­


listas. O pai

fora ter com ele, e agora muitas câmaras se concentravam em ambos.

Baixei os olhos para o ecrã do telemóvel.

Vou despir­-te esse vestido tão lentamente que hoje vai ser a noite mais
longa e maravilhosa da tua vida.
Um calor absolutamente inoportuno inundou­-me dos pés à cabeça e instalou­
-

se no meu rosto. Olhei para ambos os lados para me certi­ficar de que ninguém
se apercebia de como as suas palavras e a sua mera ­presença me tinham afetado.

Deixaram­
-nos entrar finalmente no salão enquanto os empregados serviam

copos de champanhe e aperitivos em bonitas bandejas de vidro. Se se reparasse

com atenção, via­


-se vidro por todo o lado. E velas... eram centenas de velas e de

luzes suaves brancas a criar um ambiente convidativo onde podíamos passar

uma noite inesquecível.

Aproveitando o facto de as pessoas estarem a conversar umas com as outras, o

Nick veio ter comigo disfarçadamente.

— Gostaste do meu presente? — perguntou ele, caminhando ao meu lado até

deixarmos os jornalistas para trás.

Precisava de me afastar dele. Tínhamos prometido que, quando tudo aquilo

acabasse, resolveríamos as coisas, e precisava de que aquela noite terminasse o

mais depressa possível.

— Não quero presentes, Nicholas, quero que esta noite acabe e quero

esquecer que vieste com outra mulher.

Suspirou e preparou­
-se para levantar a mão, com a clara intenção de me

acariciar, até se aperceber de que não podia fazê­-lo. A mão fechou­-se no ar e

transformou­
-se num punho ao lado do corpo. Desviei o olhar, frustrada com a

situação, com tudo aquilo.

— Posso mandar isto tudo à merda, Noah. Posso fazê­-lo. O que mais quero

neste momento é enterrar os dedos no teu cabelo e beijar­


-te até ficar sem ar...

Por isso, basta uma palavra tua e mando tudo pelos ares.

Mordi o lábio sabendo que era capaz de o fazer. Se lhe pedisse, se lhe dissesse

como essa noite ia ser difícil para mim, ele fá­-lo­-ia com toda a satisfação.

Mas o Will pediu­


-nos que nos comportássemos, e eu não iria permitir que os

nossos pais ficassem ainda mais contra nós.

— Estou bem — assegurei, desejando poder dar um passo em frente naquele

instante para que os seus braços me envolvessem com força. Sentia muito a falta

dele, sentia falta dos nossos momentos, das carícias, dos beijos, do tempo em

que éramos só o Nick e a Noah. Duas semanas era demasiado tempo, e a noite

anterior não fora suficiente para matarmos as saudades e resolvermos tudo de

uma vez por todas.

Apercebi­
-me de que a minha mãe nos observava, a alguns metros de distância.

Estava a chamar­
-nos à atenção, maldita fosse, e o Nick era o recetor de todos os

seus olhares.

— Tens de te ir embora. Estão a olhar para nós, e a última coisa que quero é
que nada disto, afinal, tenha servido para alguma coisa.

O Nick olhou disfarçadamente para ambos os lados e depois voltou a fixar o

seu olhar intenso em mim.

— São só algumas horas. Prometo que, mais tarde, me dedico a ti de corpo e

alma... Até tudo voltar a ser como antes.

As suas palavras ficaram suspensas entre nós durante uns segundos infinitos.

«Até tudo voltar a ser como antes.»


50

Nick

Afastei­
-me dela, contrariado. Por mim, tinha­
-lhe pedido que entrasse no carro

comigo e ido embora. Não queria estar ali. Estava­-me nas tintas para o que o

meu pai nos tivesse pedido. Naquele momento, o mais importante para mim

era recuperar a Noah, e não ia conseguir fazê­-lo se tivesse de passar o serão com

a Sophia.

Desde que a vi, percebi que essa noite ia ser uma tortura. As pessoas

voltavam­
-se para olharem para ela. Tinha plena consciência de que estava a

chamar a atenção de todos os presentes, porque estava incrivelmente bonita,

tanto que me doía olhar para ela. Toda ela resplandecia, a pele, o cabelo, os

olhos, o rosto e o corpo naquele vestido que lhe caía como uma luva. A cintura

estava tão estreita que me custava pensar se conseguia respirar dentro do

corpete, mas, porra, só para olhar para ela, já valia a pena o desconforto.

Sentia formigueiro nos dedos com a ânsia de lhe tocar, de a beijar, chupar,

saborear e amar durante horas. Sentia tanto a falta dela que não sabia que diabo

estava a fazer a perder tempo em toda aquela farsa.

Atravessei a sala e parei por uns instantes para pegar num copo trazido por

um empregado. Levei­
-o aos lábios sem demora.

Sabia que tinha sido uma perfeita estupidez ir com a Sophia; era a última

coisa que fazia pelo meu pai: acabaram­-se os favores, os joguinhos idiotas para

me separarem da minha namorada.

Antes de irmos para o salão principal, onde iriam servir o jantar, se fariam os

discursos e, no fim, assistiríamos à atuação de uma das melhores orquestras do

país, deparei com uns olhos verdes brilhantes. Fiquei surpreendido. Parei uns

instantes antes de me aproximar com cautela do local onde ela estava, num

canto da sala junto a uma das pequenas mesas altas que havia espalhadas por ali.

— O que fazes aqui? — perguntei à Briar, quase praguejando entre dentes.

Sorriu com ar divertido, mas os seus olhos não conseguiam esconder o seu

rancor venenoso.
— Foi a Morgan que me trouxe. A sério que vieste com outra mulher, mesmo

debaixo do nariz dela? — disse, olhando por cima do meu ombro. Voltei­
-me

devagar e vi a Sophia a conversar com alguns membros da direção da empresa.

Alguns eram amigos íntimos do seu pai, por isso conhecia­-os bastante bem e

sentia­
-se à vontade com eles. A Sophia ­deixara bastante claro que não queria

causar­
-me quaisquer problemas com a Noah; mais do que isso, insistiu em vir

sozinha, mas não lhe podia fazer aquilo, não depois de o senador ter pedido ao

meu pai que viéssemos juntos.

De qualquer maneira, ambos sabíamos que entre nós existia apenas uma

bonita amizade profissional. Ela metera água ao contar à Noah a proposta de

Nova Iorque, e as suas desculpas tinham sido tão sinceras que não tinha dúvida

de que a última coisa que queria de mim era que tivéssemos mais do que uma

simples relação de trabalho.

— É minha colega de trabalho e, além disso, o que te importa, Briar? Porque

vieste? Ambos sabemos que é o último lugar onde querias estar.

O semblante dela ficou tenso, e os seus olhos percorreram a sala de forma

involuntária.

— Parece­
-me evidente que este mundo continua a ser igual ao que sempre

foi. A diferença é que já não sou tão ingénua. No outro dia disseste­-me que

tinhas mudado. Pois bem, eu também mudei. Os dias em que me deixava

enganar já se foram, por isso não penses por um instante sequer que tenho medo

de estar aqui.

Fechei a boca e observei­


-a com calma. Não podia meter­
-me naquele assunto

outra vez. Se tinha aceitado o convite para vir à festa, presumia que as suas

palavras fossem verdadeiras. Olhei em volta, para as pessoas importantes que

andavam por ali, a falar, a beber e a vangloriar­


-se de feitos infinitos, competindo

entre si para se destacarem das demais. Olhei finalmente para a Briar, para o

ódio oculto atrás daquela fachada de mulher dura que parecia querer mostrar a

todo o custo.

Antes que tivesse oportunidade de lhe responder... alguma coisa, ou melhor,

alguém chamou a minha atenção. Os meus olhos desviaram­-se até à entrada

principal, e senti que todo o meu mundo se agitava perigosamente.

A Anabel Grason acabava de chegar.

A minha mãe estava ali.

Que diabo fora ali fazer?

Cerrei o punho com força e afastei­-me da Briar, em direção à extremidade


oposta da sala. Não acreditava que aquela mulher tivesse a lata de se apresentar

ali nessa noite. Merda! Porquê? Por que raio tinha vindo? Senti uma pressão no

coração que quase me fez vomitar.

Rodei sobre os calcanhares e, de repente, vi tudo vermelho. Antes que pudesse

cometer uma loucura, o vulto do meu pai materializou­-se, vindo do nada,

fazendo­
-me parar completamente onde estava. Enquanto olhava para ambos os

lados, segurou­
-me no braço e levou­-me até junto de uma das janelas. O sol já se

pusera, e a luz que entrava vinha da iluminação do jardim e da lua que se

deixava ver em intervalos regulares por entre as nuvens, a aproximar­


-se a grande

velocidade.

— Acalma­
-te, Nicholas.

Olhei para ele, para a sua expressão séria, os olhos fixos nos meus tentando

captar a minha atenção, mas a única coisa que via era aquela mulher que odiava

mais do que qualquer outra coisa na vida.

— Que diabo está ela aqui a fazer? — quase gritei, e o meu pai afastou­-me

ainda mais dos convidados com um empurrão.

— Não sei, mas eu resolvo. Ouve, Nicholas, tens de te acalmar, ­percebes?

Não podes armar um espetáculo por causa disto.

Fixei os olhos do meu pai e, por um instante, senti­-me perdido no azul das

suas pupilas, mais escuro do que o azul dos meus olhos, que eram claros como

os da minha mãe.

O meu pai suplicou­


-me com o olhar e pousou a mão no meu rosto por uns

instantes.

— Eu falo com ela, não precisas de o fazer.

Assenti, deixando que, por uma vez, o meu pai assumisse o controlo da

situação. Não a queria ver, não queria falar com ela, só desejava que ela estivesse

o mais longe possível dali. Não obstante, todos sabíamos que, se viera, era

porque queria dizer alguma coisa — já tentara entrar em contacto comigo. Mas

não importava o que nos quisesse comunicar, de certeza que não era nada bom.

O meu pai tentou transmitir­


-me uma calma que nem ele sentia e a seguir

virou­
-me as costas para se perder por entre os convidados.

Procurei a Noah com o olhar e vi que estava a conversar amigavelmente com

um grupo de pessoas. Não sabia que o perigo estava por perto, mas, antes de

poder fazer alguma coisa, como agarrar­


-lhe na mão, abraçá­-la com força e

metê­
-la num carro para sairmos dali a correr, apareceu outra rapariga no meu

campo de visão.
— Devias ouvir os membros da direção falar de ti, Nick. É evidente que as

notícias correm depressa, e todos se perguntam quando irás aceitar o

testemunho do teu pai. — A Sophia sorriu­-me com doçura, e mal consegui

responder com um assentimento. — Estás bem?

Pois sim, estava no inferno.

Os meus olhos voltaram a percorrer a sala à procura da Briar. Não a vi em

lado nenhum, e a ansiedade começou a apoderar­


-se de cada partícula do meu

ser. Eram demasiados problemas no mesmo lugar.

Antes que pudesse responder à minha colega, as pessoas come­çaram a dirigir­


-

se para a sala onde se serviria o jantar. Tentei acalmar­


-me e pus a mão na cintura

da Sophia, para a conduzir até aos nossos lugares na mesa.

Ao entrar no salão, fiquei grato pela iluminação ténue, porque me sentia tão

perturbado que a última coisa que queria era ter focos de luz sobre a cabeça. A

mesa da minha família estava no centro, perto do palco onde a orquestra tocava,

onde seriam feitos os discursos e onde também se faria o pequeno leilão que

reverteria para a ONG que a empresa apoiava desde os primórdios. Ao chegar

ali, vi que a Noah já estava no seu lugar ao lado da mãe. Estava sozinha, porque

a Briar tinha desaparecido. Quando me viu aparecer acompanhado da Sophia, os

seus olhos desviaram­


-se com mágoa.

«Merda.»

Enquanto a Sophia cumprimentava educadamente a Noah e as restantes

pessoas da mesa e antes de conseguir sentar­


-me, chegou­-me aos ouvidos a voz da

única pessoa que me sentia feliz por ver naquela noite. Virei­-me.

— Onde está o meu neto? Aqui está o orgulho de qualquer avô sem juízo!

Ao ver o meu avô Andrew aproximar­


-se lentamente da mesa, não pude evitar

que um sorriso se espalhasse pelos meus lábios. As pessoas estavam tão

distraídas a falar e a procurar os respetivos lugares que não se aperceberam da

chegada do único homem por quem não sentia nenhum tipo de rancor.

Andrew Leister tinha oitenta e três anos e era o criador daquele império. O

seu escasso cabelo grisalho fora outrora tão negro como o meu e o do meu pai.

O meu avô tinha muitas coisas em comum com o meu pai, mas não tinha a sua

frieza, e era o mais parecido com um pai de verdade que eu alguma vez tivera.

Todas as recordações desagradáveis que a minha mãe me obrigara a reviver

naqueles escassos minutos desapareceram ao serem substituídas pelos instantes

em que a minha única preocupação era montar a cavalo na quinta do meu avô,

pescar no lago e encontrar a rã mais asquerosa para pôr dentro do armário do


meu pai, só para o irritar.

O meu avô.

Estendi­
-lhe a mão, e ele, com o seu jeito brusco, puxou­-me com força para si

até me apertar entre os braços.

— Quando pensavas ir visitar­


-me, filho do demónio?

Ri­
-me e afastei­
-me dele, olhando­-o com alegria.

— O Montana é longe, velhote.

Grunhiu, irritado, e olhou­


-me fixamente de alto a baixo.

— Antigamente, ninguém te conseguia tirar de lá; agora, só queres saber das

tuas praias estúpidas e do surf! Bah! — resmungou, contornando­-me até

encontrar uma cadeira. — De que vale termos netos se depois se transformam

em típicos betinhos americanos?

Soltei uma gargalhada e fiquei grato por mais ninguém a não ser a Noah, que

não tirava os olhos de nós, ter ouvido aquele comentário. O meu avô tinha

vindo de Inglaterra aos vinte e seis anos para começar a empresa neste país. Por

muito tempo que ali tivesse passado, nunca deixava de me recordar que as

minhas raízes não eram americanas, e ai de mim se não dissesse que era inglês.

O meu pai chegou nesse instante e olhou para o meu avô com uma expressão

algures entre o contrariada e o carinhosa.

— Pai — disse, estendendo­-lhe a mão. O meu avô não o puxou para um

abraço como fez comigo, limitou­-se a observá­-lo e a semicerrar os olhos com

interesse.

— Então, onde está a tua nova mulher, que ainda não me ­apresentaste?

O meu pai revirou os olhos enquanto a Raffaella olhava para os dois. O último

ano fora tão intenso que nem tivéramos tempo de visitar o meu avô; agora que

ele estava ali, apercebi­


-me de como sentia a sua falta.

A Noah levantou­
-se e procurou o meu olhar. Vi que estava constrangida

quando o meu pai a chamou para a apresentar ao pai como a sua nova enteada.

Esta apresentação deveria ter sido muito diferente: para começar, devia ter sido

eu a fazê­
-la, e tê­
-la­
-ia apresentado como o amor da minha vida.

O meu avô sorriu­


-lhe, meio distraído, até se fixar na Sophia.

— Não me apresentas a tua namorada, Nicholas?

O sorriso da Sophia, que se mantivera educado enquanto as apresen­tações

decorriam, desapareceu de imediato e dirigiu­-se à Noah. Olhei para ela e

apressei­
-me a esclarecer a situação.

— A Sophia não é minha namorada, avô, é minha colega de trabalho. É a filha


do senador Aiken.

O meu avô assentiu.

— Ah, é bom que não sejas namorada dele, realmente. Não quero o meu neto

metido na política e muito menos na do teu pai.

A Sophia ficou um pouco surpreendida, mas depois soltou uma garga­lhada. A

Noah pareceu encarar o meu avô com melhores olhos, e de seguida todos

ocupámos os nossos lugares.

Foi o amigo do meu pai, Robert Layton, membro da direção, quem fez a

apresentação do aniversário da empresa. Toda a gente levantou o seu copo de

champanhe para brindar a sessenta anos de trabalho árduo. Logo de seguida,

começaram a servir o jantar. O meu olhar dirigiu­-se à sala para ver onde estava a

minha mãe, mas havia ali tanta gente que não a consegui encontrar.

Quem achei que estava estranha foi a Raffaella. Mal tocara na comida e

parecia tensa enquanto levava o copo de champanhe aos lábios. A Noah, por sua

vez, conversava animadamente com o meu avô, a quem parecia estar a causar

boa impressão. Também falava com a Briar, que aparecera há instantes com os

olhos vidrados e o rosto ligeiramente corado: o álcool que devia ter bebido

começava a notar­
-se, o que só conseguiu acentuar a minha ansiedade e o meu

nervosismo.

Quando acabámos a sobremesa, o vulto elegante e esbelto da minha mãe

decidiu marcar presença. Fiquei tenso enquanto a observava aproximar­


-se, até

que parou mesmo ao lado da Noah.

Fez­
-se silêncio entre toda a minha família, mas a Noah ficou quase lívida ao

ouvir a voz da minha mãe nas suas costas.

— Boa noite, família Leister. Parabéns pelo aniversário.


51

Noah

O meu coração parou de bater quando ouvi aquela voz. Fiquei tão quieta que,

por instantes, achei que tinha sido imaginação minha, mas bastou um olhar

rápido ao Nicholas para confirmar que ouvira bem.

A Anabel Grason estava ali.

Virei o rosto o suficiente para a ver pôr­


-se ao meu lado e senti os meus

pulmões ficarem sem ar.

— Fico muito contente por os ver a todos, em especial a si, Andrew. Deve ser

um orgulho ter criado um império destes.

Olhei para o avô do Nick, com quem estava a ter uma conversa muito

interessante sobre os desaires do país e a literatura inglesa, mas agora via a sua

expressão tensa, embora com um sorriso amigável nos lábios finos e enrugados.

— Também fico contente por te ver, Bel. Já se passaram anos desde a última

vez que nos cruzámos.

Os meus olhos pareciam debater­


-se quanto à pessoa para quem deviam olhar

primeiro, se para o Nicholas, que parecia estar prestes a cometer um homicídio,

se para o seu avô ou para a minha mãe, em quem de repente se centraram todos

os meus sentidos. Ela estava tão branca como os guardanapos na mesa, e a sua

postura denunciava que estava tensa como as cordas de um violino.

Antes que a Anabel pudesse responder com algum comentário falso e

desprovido de emoção, o William arrastou a cadeira para trás e, com os olhos

cravados na ex­
-mulher, decidiu tomar as rédeas do assunto.

— Temos de falar, e acho que será melhor fazê­-lo em privado.

A Anabel virou o corpo esbelto no vestido vermelho­-sangue e sorriu de forma

tensa e claramente estudada.

— Certamente que a Raffaella gostaria de estar presente.

A minha mãe levantou os olhos e cravou­-os nela de modo absolutamente

ameaçador.

— Aconselho­
-te a não ires por aí; não é o momento, nem o lugar.
Mas que diabo se estava a passar?

De repente tive medo. Medo de que as suspeitas que acalentava desde o dia do

almoço com aquela mulher viessem a revelar­


-se ver­dadeiras.

O Nick captou a minha atenção, os nossos olhares cruzaram­-se no espaço que

nos separava, e foi nesse mesmo instante que anunciaram ao microfone que a

pista de dança estava aberta.

A música começara a ouvir­


-se à nossa volta, e as pessoas levantaram­-se para ir

para a pista dançar. Nos seus rostos viam­-se sorrisos e um profundo

desconhecimento da crise familiar que se estava a desenrolar mesmo por baixo

dos seus narizes: tinham apenas de dançar e apro­veitar a festa.

Sabia que precisava de afastar o Nick da mãe; de repente, aquilo

transformou­
-se no meu objetivo principal. Virei­-lhe as costas e apro­ximei­-me

do Nick entrelaçando os dedos nos seus. Pareceu ficar perdido por instantes,

baixou o olhar para as nossas mãos, e puxei­-o para a pista de dança. Não fazia

ideia do que pensavam as pessoas da nossa mesa do facto de termos saído para

dançar juntos, nem se era óbvio que a forma como olhávamos um para o outro

era tudo menos fraterna, mas naquele momento a única coisa que me importava

era assegurar­
-me de que o Nick estava bem.

Procurei o olhar dele com o meu, mas estava tão tenso que o desviou para o

outro lado da sala. Olhei na mesma direção e senti uma pontada no estômago

quando vi o William entrar numa das salas contíguas ao salão da gala com a

minha mãe e a ex­


-mulher.

— O que achas que eles têm para conversar? — perguntei, sentindo um nó na

garganta.

O Nick baixou os olhos, como se acabasse de se aperceber de que estávamos

juntos.

— Não sei nem quero saber.

Imaginava o estado em que devia estar; já o vira assim, tenso, em algumas

ocasiões e sabia que o mais provável era que acabasse por explodir, de uma

maneira ou de outra.

Levei­
-lhe a mão ao rosto e obriguei­-o a olhar para mim. Subitamente, senti

que o encontro que tivera com aquela mulher há alguns meses fora o pior erro

que poderia ter cometido na minha vida. Bastava ver o estado em que o Nick

estava para saber que a simples presença da mãe lhe ­provocava uma dor

incomensurável.

Se ele soubesse que me tinha encontrado com ela...


— Nicholas, tenho uma coisa para te contar... — comecei por dizer, com um

ligeiro tremor na voz. Não sabia como iria reagir, mas, com a mãe a poucos

metros de nós e claramente disposta a fazer uma cena, tive medo de que ela

revelasse o nosso encontro e sabia que, se o Nick soubesse por ela... não me

perdoaria.

O Nick chegou a cabeça um pouco para trás e olhou para mim.

— O que é?

Respirei fundo, tentando acalmar­


-me e encontrar as palavras ade­
quadas, mas

então alguém nos interrompeu. A Sophia apareceu ao nosso lado com o rosto

toldado de preocupação.

— Nicholas, acho que é melhor ires ver dos teus pais.

Afastámo­
-nos e olhámos os dois para ela, depois para a porta.

— Eu vou — ofereci­
-me, procurando manter a calma.

O Nicholas puxou­
-me o braço com força.

— Não — disse, taxativo.

— Ela a mim não me afeta, Nicholas. Escusas de a ver.

O Nicholas parecia estar prestes a perder as estribeiras.

Voltei­
-me para a Sophia.

— Não o deixes aproximar­


-se daquela porta.

Antes que o Nick pudesse fazer alguma coisa, escapei­-me da sua mão e

comecei a atravessar o salão.

Mal me aproximei da porta, comecei a ouvir os gritos. Ainda hesitei por um

instante, sem saber se deveria ou não entrar, mas, ao recordar a expressão da

minha mãe, como ficara tensa... sabia que ela precisava de mim. Aquela mulher

podia ser terrível.

Abri a porta com cuidado, e os três, o William, a Anabel e a minha mãe,

viraram­
-se para olharem para mim com os rostos alterados pela discussão que

claramente estavam a ter. A Anabel estava ao pé da janela e parecia muito

satisfeita com a conversa, o William parecia estar prestes a desmaiar, e a minha

mãe... A minha mãe estava sentada num dos sofás, com ar de quem queria

desaparecer para nunca mais voltar.

— Oh, que maravilha! Entra, Noah. Acho que devias ouvir o que tenho para

dizer.

Ao ouvi­
-la, a minha mãe mudou de atitude, levantou­-se e pôs­-se entre nós as

duas.

— É que nem te passe pela cabeça meteres a minha filha nisto! Não te
atrevas!

O William aproximou­
-se da minha mãe e começou a pousar­
-lhe um braço nos

ombros, mas então aconteceu algo impossível: a minha mãe sacudiu­-o de forma

violenta e, com um golpe seco, deu­


-lhe uma bofetada na cara. Fiquei

petrificada: aconteceu tudo tão depressa que nem ouvi a porta abrir­
-se atrás de

mim e umas mãos a pousarem sobre os meus ombros.

— Não voltas a tocar­


-me! — A minha mãe virou as costas ao William e

acorreu na minha direção.

— Noah, temos de sair daqui agora.

O Nicholas contornou­
-me para se pôr entre mim e a minha mãe.

— Mas que diabo está a acontecer aqui?

Foi a vez de a Anabel abrir a boca. Afastou­-se um pouco da janela e parecia

estar a adorar aquilo tudo, principalmente o facto de a minha mãe ter

esbofeteado o homem que ela nunca amara.

— O que está a acontecer é que venho reclamar o que é meu, mais nada.

O William soltou uma gargalhada amarga, recomposto da bofetada e mais

irritado do que nunca.

— A única coisa que queres é o maldito do dinheiro, e, agora que te vais

divorciar do estúpido a quem chamas marido, vens aqui espalhar as tuas

mentiras para arruinar uma coisa que nem tu nem ninguém ­conseguiram

impedir, que é eu amar esta mulher mais do que alguma vez poderás imaginar.

A minha mãe voltou­


-se com as lágrimas quase a transbordar dos olhos e ficou

parada à minha frente, com os dedos a tremer e o olhar fixo no marido.

A Anabel olhou para a minha mãe com uma expressão de nojo.

— Todos os dias me pergunto como foste capaz de me enganar durante anos

com uma colegial que a única coisa que queria era encontrar quem a salvasse do

inferno que ela própria criara.

Expirei de forma entrecortada. O que tinha ela acabado de insinuar? A Anabel

continuou:

— Ages como se fosses o melhor pai do mundo, deitas­-me à cara que

abandonei o Nicholas aqui, mas tu não me deste opção! Acabaste com o que

tínhamos por causa dele e ainda tiveste a lata de me querer deixar no olho da

rua.

O William soltou uma gargalhada.

— Eu pedi­
-te o divórcio muito antes de conhecer a Raffaella. O Nicholas

ainda nem seis anos tinha. Disse­-te que já não te amava, prometi que não te
faltaria nada, mas não aceitaste. Quiseste continuar com a farsa que era o nosso

casamento, quiseste continuar a viver debaixo do meu teto, e eu aceitei por

amor ao nosso filho.

O Nicholas ouvia os pais discutir como se a sua vida dependesse disso. Parecia

estar a receber respostas que nunca obtivera e a querer finalmente entender por

que tudo acabara da forma que ele sabia, por que motivo tivera de crescer sem a

mãe.

— Ela está a falar de quê? — perguntei à minha mãe, olhando para ela sem

perceber nada. Afastei­


-me do Nick e fitei o William. De repente, vi­
-me

envolvida em algo que não fazia sequer ideia de que existia. Duas famílias

enredadas de uma forma inimaginável e com conse­quências terríveis.

— Tu e a Raffaella conhecem­
-se há anos? — perguntou o Nick ao meu lado,

incrédulo.

A Anabel voltou­
-se para ele e fitou­-o, surpreendida. Logo a seguir, olhou para

mim.

— Não lhe entregaste a carta, pois não?

Senti o coração começar a acelerar vertiginosamente. O Nick baixou os olhos

para os meus e fitou­


-me, sem entender.

Abanei a cabeça, e as palavras ficaram­-me presas na garganta.

— Eu...

— Eu e a Noah tivemos um encontro interessantíssimo há uns meses. É

incrível o que alguém pode fazer por uns trocos e com uma curiosidade

mórbida, não é verdade, Noah?

A Anabel parecia completamente fora de si. O Nicholas deu um passo atrás e

olhou para mim com a incredulidade espelhada no rosto.

— Isso não é verdade! — gritei àquele diabo em forma de mulher. —

Nicholas, não é o que estás a pensar. Só aceitei encontrar­


-me com ela porque ela

ameaçou não te deixar ver a Maddie, mais nada. Só o fiz por isso.

— Encontraste­
-te com ela nas minhas costas e não me disseste nada?

O olhar do Nicholas cravou­-se no meu coração porque até agora nunca me

fitara com uma dor tão profunda. Sabia que o tinha atraiçoado ao encontrar­
-me

com a mãe, mas nunca o fizera por curiosidade ou por dinheiro, apenas por ele.

A única coisa que aquela mulher queria era afastar­


-me dele, e a sua mera

presença deixava o Nick tão transtornado que parecia incapaz de me ouvir.

— Nicholas, ouve­
-me...

Não me deixou sequer completar a frase. Afastou­-se de mim e lançou­-nos a


todos um olhar carregado de ódio antes de sair da sala e bater com a porta.

Voltei­
-me para o diabo em pessoa que estava atrás de mim.

— Só veio aqui para lhe fazer mais mal do que já fez!

— Quem lhe fez mal foste tu, quando não cumpriste o que te pedi.

A Anabel parecia imperturbável com tudo o que estava a acontecer à sua

volta. Mais do que isso, estava tranquila e suficientemente calma para continuar

a distribuir golpes por todos. A sua expressão endureceu ao ouvir o Nick bater

com a porta, e os olhos voltaram a fixar­


-se no William com determinação.

— Vim aqui informar o pai da minha filha de que a menina é sua e, por isso,

deve encarregar­
-se dela.

Por momentos, não fui capaz de perceber o que estava a ouvir. Olhei para ela,

depois para o William, que levou as mãos à cabeça, e, por fim, olhei para a

minha mãe, que estava desfeita e completamente atordoada depois de ter dado

uma bofetada à última pessoa que alguma vez a magoaria.

Foi então que tudo começou a fazer sentido.

O William deu um passo em frente e pôs­-se entre as duas.

— Sabes uma coisa, Anabel? És uma puta mentirosa, e não acredito numa

única palavra do que dizes.

A Anabel abriu a mala e tirou uns papéis lá de dentro. Mostrou­-os como se

fossem barras de ouro, e eu fiquei simplesmente a ver a telenovela desenrolar­


-se

à minha frente.

— É um teste de ADN. Tive sempre as minhas suspeitas, mas nunca quis

fazer o teste com medo de que o Robert me deixasse. Agora que me provou que

é exatamente igual a ti, vai tentar tirar­


-me tudo, e não tenciono permiti­-lo. A

Madison é tua filha e tens de tomar conta dela.

Olhei para a minha mãe, que estava parada sem dizer uma palavra. As

lágrimas começaram a cair­


-lhe pelo rosto, e eu não sabia se era porque acabara

de saber que o marido tinha uma filha ilegítima ou porque, uma vez que já

estavam juntos, tivera de a atraiçoar para a Anabel engravidar.

O William arrancou­
-lhe os papéis da mão e olhou para eles sem dizer uma

palavra. Passaram­
-se alguns segundos até levantar os olhos.

— Isto é mentira. Toda esta merda é uma mentira. Não apre­sen­tei nenhuma

prova de ADN para fazeres estes testes, por isso podes desa­parecer­
-me da frente

antes que chame a segurança e te levem daqui a pontapé.

A Anabel sorriu com segurança.

— Estes testes são verdadeiros, e não foi nada complicado arranjar quem
entrasse em tua casa e conseguisse uma prova de ADN. Quando te ligaram a

dizer que a tua casa fora assaltada, não achaste estranho só te terem roubado

uma escova de cabelo?

Meu Deus... Os ladrões que entraram em nossa casa naquele verão... Não

podia acreditar, era uma loucura. A Anabel contratara­-os e depois pagara­-lhes

certamente a fiança para saírem da cadeia. Devem ter tido facilidade em

esconder a escova da polícia.

O William ficou a olhar para ela sem palavras, porque a bomba que acabara

de largar era tal que ninguém conseguia dizer nada.

Foi então que a Anabel se voltou para mim e cravou os olhos nos meus.

— E tu estás aí a julgar­
-me. Não posso crer que te atreves a fazê­-lo.

Franzi o sobrolho e dei um passo na sua direção.

— Não merece ser mãe de ninguém. É isso que penso de si.

Ela soltou uma gargalhada e fitou a minha mãe.

— E és precisamente tu a dizer­
-me uma coisa dessas, quando foi a tua mãe

quem te deixou em casa sozinha com um pai que quase te matou enquanto ela

se atirava ao meu marido num hotel de cinco estrelas?

Arregalei os olhos ao ouvir aquelas palavras.

A minha mãe avançou e pôs­


-se à minha frente.

— Sai daqui!

A Anabel soltou uma gargalhada seca e observou­-me com uma expressão de

pena.

— Eu deixei o meu filho com o pai porque achava que era o melhor para ele,

mas nunca na vida o teria deixado nas mãos de um agressor.

A minha mãe levou a mão à boca e começou a soluçar de forma descontrolada.

A Anabel atravessou a sala e saiu sem olhar para trás. Voltei­-me para a minha

mãe à espera de que ela negasse o que aquela mulher acabara de dizer.

— Mãe?... — Só me apercebi de que a voz se quebrara quando a palavra me

saiu da garganta.

— Noah, eu...

Seria possível que aquela bruxa tivesse dito a verdade? Que a minha mãe e o

Will se conheceram muito antes de se casarem? Que o meu pai estivesse pronto

para me matar porque a minha mãe estava fora com outro homem?

— Disseste... disseste que estavas a trabalhar... — respondi, e as lágrimas

começaram a cair­
-me pelo rosto, impedindo­-me de ver o que havia à minha

volta.
A minha mãe tentou aproximar­
-se de mim, mas os meus pés foram

retrocedendo para manter a distância.

— Noah, nunca pensei que aquilo pudesse acontecer... Tens de acreditar em

mim... Eu nunca, eu sempre... Eu sempre me senti culpada do que aconteceu,

mas...

— Como foste capaz? — gritei, enxugando violentamente as lágrimas. —

Como pudeste deixar­


-me sozinha com ele?

O William pôs­
-se ao lado da minha mãe, e juro por Deus que naquele

momento o odiei com todas as minhas forças, de tal maneira que julguei nunca

na vida vir a ser capaz de lhe perdoar.

— Noah, acalma­
-te. Nenhum de nós quis que aquilo acontecesse. Não

esperávamos que...

Levei as mãos à cabeça sem acreditar no que me estavam a dizer. A neblina

que sempre cobrira a minha vida estava finalmente a dissipar­


-se, mas revelava

um cenário muito pior do que o que eu conhecia.

— Nunca pensei vir a dizer isto, mas a Anabel Grason tem razão: és pior do

que ela, e nunca te vou perdoar, porque arruinaste a minha vida, a minha

infância, destruíste­
-me a mim.

Não deixei que dissessem mais nada, limitei­-me a dar meia­-volta e procurei

uma porta para sair dali. Saí com estrondo e a limpar as lágrimas com os dedos;

devia estar com a maquilhagem toda esborratada... De repente, percebi que não

tinha maneira de voltar para casa, precisava que alguém me fosse buscar.

Tirei o telemóvel da pequena bolsa com nervosismo e vi que tinha quatro

chamadas da Briar.

Não sabia como conseguiria sair dali ou explicar o que tinha acontecido, mas

tentei acalmar­
-me, porque continuar a dar voltas a algo inevitável não fazia

sentido. A minha mãe arrecadava o prémio de pior mãe da história, e eu

precisava de me pôr dali para fora. Precisava do abraço da única pessoa que

podia consolar­
-me naquele momento, mas essa pessoa fora­-se embora, a

encarar­
-me com o mesmo ódio com que olhara para a mãe.

Liguei ao Nick com o coração apertado. Tinha o telemóvel desligado, algo que

não costumava acontecer. Atirava­-me sempre à cara que eu nunca lhe atendia o

telemóvel, e percebi então que ele estava para lá de zangado comigo: para o

Nicholas, o facto de eu me ter encontrado com a mãe era uma verdadeira

traição.

Não podia acreditar como tudo se complicara tanto em tão pouco tempo. Não
acreditava no que a minha mãe tinha feito, como me mentira durante anos

sobre o motivo pelo qual me deixara sozinha, sobre a sua relação com o

William, sobre tudo. E agora, ainda por cima, a Madison era filha do Will?

Como ia o Nick encarar isso?

Estava tão stressada que agradeci o instante em que a Briar entrou pela porta.

Ao ver­
-me ali, o seu rosto imobilizou­-se, aproximou­-se a correr até onde eu

estava e deu­
-me um abraço.

— Morgan?

Deixei­
-me cair no sofá, e ela sentou­-se ao meu lado.

— Lamento imenso, Noah... — disse a Briar, pondo um braço sobre o meu

ombro.

— Nem acredito no que aconteceu... — comecei por dizer, sem ser capaz de

escolher as palavras certas; nem conseguia contar nada à Briar porque ela não

fazia ideia da história da minha família, da minha.

— Gostava de te ter avisado... a sério que sim, mas ele é mesmo assim. Já o

fez comigo e agora contigo. O Nicholas é incapaz de amar alguém.

Os meus pensamentos detiveram­-se por instantes, e a minha cabeça

levantou­
-se devagar, até que os meus olhos encontraram os da Briar. Franzi o

sobrolho sem entender o que dizia. A Briar levantou a mão e limpou as

lágrimas que continuavam a cair­


-me pelo rosto.

— Tive esperança de que não tivesses visto, mas... é evidente que sim.

Agarrei­
-lhe na mão, afastando­-a do meu rosto, e fitei o seu, tentando perceber

o que estava a dizer.

— Estás a falar de quê? — perguntei, enquanto um novo e terrível medo

parecia ressurgir no centro do meu coração.

— Queria contar­
-te... Mas depois vi como o amas e decidi não abrir a boca; só

que agora, depois de ver que se foi embora com ela, Morgan, não podes permitir

que faça contigo o que fez comigo. Ele não tem o direito de te enganar assim, à

frente de toda a gente.

Abanei a cabeça e senti as mãos começarem a tremer.

— Ele foi um cabrão, Morgan, desde o início. Pediu­-me que me calasse, que

não te contasse nada, e concordei porque acreditei mesmo que estava

apaixonado por ti, mas, depois de o ver enrolar­


-se com ela, não pretendo

continuar a mentir...

Senti que o meu coração ameaçava despedaçar­


-se, porque, se estivesse a ouvir

bem, se o que a Briar dizia fosse verdade...


— Ele foi­
-se embora com a Sophia? — A minha voz quebrou­-se na última

palavra, e a Briar ficou a olhar para mim como se tentasse entender por que

motivo eu estava tão perdida.

Ela nem sequer se apercebera de que acabara de largar, não uma bomba, mas

duas, porque eu não estava a chorar pelo Nick, chorava pela minha mãe, mas a

Briar simplesmente...

Levantei­
-me, e ela fez o mesmo.

— Tu também dormiste com ele?

A Briar ficou em silêncio durante uns segundos, e não precisei de mais para

saber que era verdade.


52

Nick

Saí daquela sala tão zangado que, por um instante, a música, as pessoas, as velas

e os empregados me deixaram completamente desorientado. A minha cabeça

estivera tão longe de toda aquela farsa que ver as pessoas felizes, a beber e a

dançar, me deixou fora de mim.

A Noah tinha estado com a minha mãe. Encontrara­-se com ela. Meu Deus,

como podia tê­


-lo feito?

Só de pensar que tinha ouvido as coisas que aquela mulher dizia, ficava fora de

mim. Eu deixara bem clara a minha posição em relação à minha mãe: não

falávamos dela, não a mencionávamos, não a víamos, nada, ponto final.

Ainda por cima, acabara de saber que o meu pai mantivera uma aventura com

a Raffaella desde que eu era pequeno. Tinha de repen­


sar tudo, porque não era a

mesma coisa a minha mãe ter­


-me abandonado porque sim ou porque o marido a

andava a enganar. Sempre acreditara­que tivesse acontecido o contrário, que fora

ela a ir­
-se embora para magoar o meu pai. Mas agora tudo deixara de ser tão

claro.

A minha vida, desde que nasci, fora uma mentira; uma mentira em que

nenhum dos dois, nem ele nem ela, haviam sido capazes de deixar­ os seus

problemas de lado para me porem a mim em primeiro lugar.

De repente, a Sophia apareceu à minha frente com uma expressão preocupada

no rosto, e, por um instante, perguntei­-me como se sen­tiria uma pessoa que não

tem outro tipo de preocupação senão subir na hierarquia do trabalho. A Sophia

era uma rapariga completamente livre. Tinha sido tão fácil falar com ela,

conversar sobre trivialidades e passar o tempo sem dramas...

— Estás bem, Nicholas?

Voltei­
-me e fitei a Sophia, com a sua pele morena, o cabelo negro, os olhos

escuros. O que pensaria a Noah se eu fizesse alguma coisa nas suas costas? Como

se sentiria se também lhe desse uma facada?

A Sophia continuava a falar, mas eu nem a ouvia... De repente, a raiva


consumia­
-me, o ódio infinito que sentia por toda a gente, menos pela Noah, já

não era tão fácil de controlar, porque a luz ao fundo do túnel desaparecera,

porque a Noah voltara a fazer o que lhe parecera bem, sem ter em conta o que

eu pudesse ter a dizer sobre o assunto ou simplesmente os meus desejos. Estava

tão irritado, tão zangado com ela e com a minha mãe, que nem sequer me

apercebi do que estava a fazer antes de os meus lábios chocarem de forma brusca

com os da miúda que estava à minha frente.

Senti­
-me estranho e esperei um instante para que a sensação vertiginosa que

sentia sempre que beijava a Noah me invadisse, mas não aconteceu, senti apenas

a minha pele contra a dela, o que me deixou ainda mais furioso.

Com uma mão, puxei a Sophia para o meu peito e apertei­-a contra mim

enquanto enterrava a outra mão no seu cabelo, lhe metia a língua na boca e

procurava aquele sabor que me consumia, que me derretia: nada. Porra, não

senti nada. Então, ela pareceu aperceber­


-se do que eu estava a fazer e

empurrou­
-me.

— O que estás a fazer?!

Os meus olhos fixaram­


-se nos dela, analisaram­-na meticulosamente,

procurando quem não estava à minha frente.

«Merda!»

A Sophia pareceu ficar sem palavras.

Levei as mãos à cabeça e bebi de um trago o conteúdo de um copo que estava

ao meu lado. O álcool queimou­-me a garganta, mas eu já estava habituado ao

seu fogo.

— Tenho de sair daqui.

Liguei ao Steve para que esperasse por mim na rua quando eu saísse. Pedi por

favor à Sophia que se fosse embora da festa — era o melhor — e prontifiquei­


-

me a apagar todas as provas do que acabara de fazer. A Sophia parecia aturdida e

um pouco zangada, mas fez o que lhe pedi. Pegou na bolsa, saiu comigo e, uma

vez na rua, entrou num dos ­


muitos carros que aguardavam os convidados. Ao

sair, uma rajada de vento húmido fustigou­-me o rosto e, ao levantar os olhos

para o céu, vi­


-o escuro e ameaçador.

Desci as escadas sem conseguir sequer dirigir um sorriso tenso aos fotógrafos

que ali estavam e passei em frente aos valets e outros funcionários à procura do

Steve, que estava à minha espera ao fundo da rua. Quando cheguei ao carro, abri

a porta para me sentar no banco de trás, com vontade de desaparecer.


— O que aconteceu, Nicholas? — perguntou o Steve, saindo do recinto e

olhando em frente, com seriedade.

O Steve estava comigo desde que me conhecia como gente, era quem me ia

buscar à escola, quem me levava a todos os jogos, quem estava comigo quando

não podia contar com os meus pais. Tinha por ele um carinho especial e, por

momentos, desejei poder abrir­


-me e contar­
-lhe o que sentia.

Com a cabeça em tantos sítios diferentes, demorei a encontrar a pequena caixa

que estava no banco e o bilhete que, naquela noite, pedira ao Steve para

entregar à Noah. Pus ambas as coisas no bolso do casaco e fiquei a olhar pela

janela por um instante. Tinha deixado a Noah sozinha com a víbora da minha

mãe e com os nossos pais; viera­-me embora sem sequer deixar que se explicasse

e, para cúmulo, beijara a Sophia em frente a todos os convidados. De repente,

senti náuseas e peguei no telemóvel. Tinha­


-o desligado há algum tempo,

quando saíra da sala, e, quando o liguei, vi que tinha uma chamada perdida da

Noah, cerca de vinte minutos antes. Tinha­


-me comportado como um

verdadeiro imbecil... Marquei o número dela e esperei que me atendesse, mas

não o fez; na verdade, agora tinha o telemóvel desligado. Senti um mal­-estar

repentino no estômago.

— Steve, volta para a festa... Tenho de tirar a Noah daquele inferno.

Não demorámos muito a chegar. Pelo que pude ver, a cerimónia continuava a

decorrer como planeado, e, naquele momento, o meu pai estava no palco a fazer

o discurso que tantas vezes ensaiara. Perscrutei a sala para a encontrar, mas foi

em vão... Também não vi a Raffaella. Não queria pensar por que motivo a

minha mãe montara aquele espetáculo todo nem porque mentira ao dizer que a

Noah se encontrara com ela em troca de dinheiro. Eu sabia perfeitamente que a

Noah era incapaz de se deixar chantagear, muito menos por dinheiro.

A cada minuto que passava, sentia­-me mais culpado por me ter ido embora.

Se o que a Noah me dissera era verdade, só se encontrara com a minha mãe para

que deixassem a Maddie ficar comigo. Porra, tinha sido um idiota!

Comportara­
-me como um autêntico cabrão!

Sentindo uma ansiedade cada vez maior, meti­-me no meio das pessoas, que

agora levantavam os copos de champanhe num brinde coletivo. A seguir, ouvi a

música voltar às colunas, depois de tudo ter estado em silêncio durante uns

minutos, e as pessoas também recomeçaram a conversar. Nesse instante, uma

cabeleira ruiva apareceu no meu campo de visão: Briar. Aproximei­-me dela,

determinado.
— Ando à procura da Noah. Viste­-a?

A Briar soltou uma gargalhada e fitou­-me com ódio.

— Ai agora andas à procura dela? Tu és do pior! — exclamou, abanando a

cabeça. — Houve um momento em que até acreditei em ti, sabes? Acreditei

que talvez tivesses mudado mesmo... Uma minúscula parte de mim, a que, ao

contrário das outras todas, não te odeia com todas as forças, até ficou feliz por ti

ao ver que, embora tenhas os teus problemas, conseguiste perceber o que é amar

alguém de verdade.

— Mas estás a falar de quê? — disse, dando uns passos vacilantes na direção

dela.

Os seus olhos verdes avisaram­-me de que não era boa ideia continuar a

aproximar­
-me.

— Sabes uma coisa? Da última vez que falei com o teu pai, ele até tinha

razão. Disse­
-me que não eras capaz de amar ninguém, que o ódio que guardavas

dentro e ti era tão grande que nunca haveria lugar para mais nada, muito menos

para uma miúda de dezanove anos com um bebé a caminho.

Cerrei o maxilar com força.

— Agora percebo que ele tinha razão... Porque a Noah amava­-te de verdade,

Nicholas, e tu não foste capaz de corresponder a esse amor... Não conseguiste

amar­
-me, não pudeste perdoar os teus pais e agora também não vais ser capaz de

a amar a ela, porque sabes perfeitamente que ela é melhor do que tu, em todos

os sentidos.

— Onde está a Noah, Briar?

Não acreditava que me estivesse a atirar aquilo tudo à cara. Outra vez. A Briar

não fazia ideia do que eu tivera de passar e de como lamentava todos os dias o

que o meu pai a obrigara a fazer.

A Briar fora mais um dos meus casos. Nunca fizera tenção de que fosse mais

do que isso. Pensava que para ela também era algo passageiro. A Briar não era

nenhuma santa — antes de estar comigo, esteve com metade dos rapazes do

campus —, mas depois percebi que tinha estado apaixonada por mim. Quando

descobrira que estava grávida, viera a minha casa contar­


-mo, e o meu pai

percebera. Sem que pudesse fazer alguma coisa a esse respeito, obrigara­-a a

abortar para evitar o escândalo. A Briar era uma miúda com problemas: desde

criança que vivia num ambiente tão tóxico como o meu, com pais que não

tinham cuidado dela e que não lhe tinham dado aquilo de que precisava. O que

acontecera entre nós acabou por dar origem a uma crise nervosa de proporções
tais que tiveram de a internar numa clínica onde já estivera uma vez. Tentara

entrar em contacto com ela, depois de sair do meu próprio inferno, procurara

pedir­
-lhe perdão mil vezes, mas fora impossível: tinha tentado matar­
-se e ainda

era muito nova; os médicos proibiram­-me terminantemente de me aproximar

dela, com medo de que voltasse a tentar.

— Lamento tudo o que aconteceu, Briar... Nunca te quis magoar, não te

quero magoar agora, nem a ti nem à Noah, por isso, por favor, diz­-me onde ela

está.

O rosto dela contraiu­


-se num esgar antes de me olhar diretamente.

— Ela sabe que a andas a enganar com a Sophia e também sabe o que se

passou connosco... Foi­


-se embora, Nicholas, foi­-se embora há mais de uma hora.

Foi nesse instante que um medo irracional invadiu todo o meu corpo e me

deixou petrificado onde estava, com o coração prestes a saltar­


-me do peito.

— Meu Deus, o que foste fazer?


53

Noah

Não me lembrava de como tinha entrado no táxi nem sequer de o ter chamado.

Naquele momento só conseguia concentrar­


-me em tentar inspirar e expirar,

porque estava a ter um ataque de ansiedade tão terrível que o peito me doía

como se estivessem prestes a arrancar­


-me o coração.

Não conseguia deixar de pensar em tudo o que se tinha passado na última

hora. Parecia a protagonista de um filme de terror psicológico. Descobrir que a

minha mãe me mentira durante quase toda a vida dilacerara­-me por dentro,

mas, quando a Briar me contou que o ­Nicholas me tinha enganado, que deixara

que eu convivesse com alguém com quem andara durante meses, que

engravidara e que depois obrigara a fazer um aborto foi de mais para mim. Não

o consegui suportar.

Estaríamos mesmo a falar do Nicholas? Como poderia ele ter­


-me feito uma

coisa daquelas? Como podia ter­


-me mentido, rir­
-se de mim, fazer de conta que

não se conheciam? Como tinham conseguido manter aquela farsa e porquê?

Nunca na minha vida sentira nada tão forte, tão horrível. Nunca até àquele

dia me sentira tão atraiçoada por todos, porque toda a gente me traíra, todas as

pessoas que eu amava: a minha mãe, o William, o Nick, até a Briar... Pensava

que éramos amigas, pensava que...

Com as mãos trémulas, tirei o telemóvel da bolsa. Precisava de ter a Jenna

comigo, ao meu lado, porque não fazia ideia de como iria resolver aquilo. Não

via forma de recuperar de um golpe daqueles.

— Está bem? — perguntou­-me o taxista, a olhar para mim pelo espelho

retrovisor.

Se estava bem? Estava a morrer.

A Jenna não atendia o telefone, e depois a fotografia do Nick apareceu no

ecrã. Fiquei a olhar para ele com uma dor infinita, algo muito mais lancinante

do que alguma vez sentira ao ver a sua imagem, naquela fotografia onde

estávamos os dois, juntos, a sorrir para a câmara. Aquela dor transformou­


-se
num ódio irracional que ocupou a minha alma, um ódio dirigido a ele e a

qualquer outra pessoa que me quisesse fazer mal.

Já tinha sofrido o suficiente, não merecia aquilo, não merecia. Como podiam

ter­
-me enganado? Como podia ele deitar fora tudo aquilo por que tínhamos

passado?

Foi então que percebi que aquilo ia acabar comigo. Tudo o que tinha feito,

tudo o que suportei para poder estar à altura, para o merecer... Tudo se desfez

em estilhaços.

— Chegámos — anunciou o taxista, quando um trovão retumbava no céu,

fazendo­
-me estremecer.

Paguei e saí do carro.

Como a Jenna não me atendeu as chamadas, só me restava uma pessoa a quem

podia recorrer: fui diretamente para o átrio dos apartamentos e toquei à

campainha do número dezoito.

Quem me recebeu não era propriamente quem esperava, mas, naquele

momento, qualquer um dos dois servia. O Michael desceu para me abrir a

porta, e os seus olhos arregalaram­-se quando me viu ali, comple­tamente

destroçada e quase sem conseguir respirar. Não queria saber se só o conhecia há

um par de semanas: tinha­


-me ajudado e, mais importante do que isso,

conhecia­
-me melhor do que qualquer outra pessoa, porque me abrira com ele

como não fizera com quase ninguém.

Olhei para ele sem o conseguir focar, por causa das lágrimas, e dei um passo

em frente, deixando­
-me cair contra o seu peito. Os seus braços apertaram­
-me

com força, e, naquele momento, naquele preciso momento, o meu coração caiu

e desfez­
-se em mil pedaços.

Três horas depois, abri os olhos num quarto completamente desconhecido.

Tinha uma dor de cabeça tão forte que por uns segundos me custou concentrar­
-

me em qualquer outra coisa que não fosse a dor. Mas não era só a cabeça que me

doía, havia mais qualquer coisa que me escapava... Algo que não entendia. Foi

então que a verdade se abateu sobre mim como um balde de água fria.

Reparei que as lágrimas me voltavam a cair pelo rosto, embora em silêncio,

para não piorar as coisas nem acrescentar mais dramatismo ao momento. Porém,

não era preciso acrescentar mais nada: fora tudo dramático, do princípio ao fim.

Toda a gente me avisara, todas as pessoas que me conheciam me tinham dito

que um dia aquilo iria acontecer, e ali estava eu, ferida até às profundezas do
meu ser, por não ter sido capaz de o ver e aceitar a tempo.

Encostei­
-me nas almofadas e olhei em volta, em busca de uma distração; vi

que havia velas acesas em cima da mesa de cabeceira. Pensei em levantar­


-me,

mas, antes de poder fazê­


-lo, a porta abriu­-se, e ali estava o Michael, com uma

chávena de algo fumegante nas mãos. Achei estranho vê­-lo de calças de pijama,

com uma T­
-shirt cinzenta, simples, mas o mais estranho de tudo foi perceber

que, na verdade, estava na sua cama, metida entre os lençóis, depois de ter

estado a chorar durante horas enquanto ele me abraçava.

— Olá! — disse, entrando no quarto e sentando­-se ao meu lado. —

Preparei­-te um chá com mel e limão. Deves ter a garganta feita num oito

depois de chorares tanto.

Assenti enquanto aceitava a chávena e levei­-a aos lábios. Estava tão atordoada,

tão perdida, que não sabia o que dizer ou fazer. Mexi um pouco as pernas por

baixo dos lençóis e percebi que não tinha o vestido, mas uma T­
-shirt grande,

branca, de algodão.

O Michael parecia ponderar o que deveria dizer, e bastou um olhar para

perceber que estava ainda mais tenso do que eu. Baixei a cabeça, fitando o fumo

que subia da chávena, e senti os dedos do Michael limparem­-me as lágrimas

com delicadeza.

— Ele não merece que derrames mais uma lágrima, Noah, nem mais uma.

Sabia que o que ele estava a dizer era verdade, mas não estava a chorar por

mim ou por ele: estava a chorar por nós, pelo Nick e pela Noah, pelos dois...

Porque já não existíamos, pois não? Porque não ia ser capaz de lhe perdoar... Ou

ia?

Fixei os olhos na chuva que batia contra a janela. Passara­-se muito tempo

desde que vira chover assim... A última vez fora em Toronto, antes de toda a

minha vida ficar de pernas para o ar, antes de me apaixonar, antes de tudo.

— Acho que, de qualquer maneira, iria acontecer... — afirmei em voz baixa,

mais para mim do que para que o Michael ouvisse.

As minhas palavras pareceram ficar suspensas entre nós.

— O que disseste?

A pergunta foi tão brusca que tive de desviar os olhos para o fitar.

— Não é a primeira vez que me acontece. Parece que não sou capaz de fazer

com que os homens me amem... Não consegui ­fazê­-lo com o meu pai, nem com

o meu primeiro namorado, o Dan. Enganou­-me com a minha melhor amiga, e

agora a história repete­


-se... Neste momento, pergunto­-me se será por isso que
passei tanto tempo a fugir do que se passava com o Nick. Uma parte de mim

sabia que ia acabar por acontecer e queria proteger­


-me desta dor...

De repente, o Michael aproximou­-se da cama, tirou­-me a chávena das mãos e,

sem que pudesse impedi­


-lo, beijou­-me os lábios com uma força que me pregou

às almofadas onde estava recostada.

Pestanejei várias vezes, completamente perplexa, até que se afastou de mim

para me olhar com uma expressão de raiva... Raiva e mais qualquer coisa.

— És uma idiota se pensas que não mereces ter alguém que te ame, és uma

idiota se pensas que tiveste culpa de alguma coisa má que te aconteceu na

vida... — Acariciou­
-me o cabelo. — Não fiz um bom trabalho contigo, Noah,

não o fiz em momento nenhum...

E assim, sem mais, voltou a pousar a boca na minha, e eu senti­-me tão

perdida que deixei que o fizesse. A minha mente pareceu desligar­


-se do meu

corpo, que era o que queria fazer desde que entrara naquele táxi. De repente, as

mãos do Michael estavam em todo o lado, e, talvez por um impulso reflexo, as

minhas começaram a mover­


-se com as dele.

O toque dele era diferente, os beijos tão distintos que não sei dizer se gostava

ou não deles, porque já não me encontrava naquele lugar, não sabia o que estava

a acontecer, porque a minha mente e o meu coração estavam no chão, debaixo

da cama, às escuras, à espera de que alguém voltasse com uma luz e me tirasse

daquele poço tão fundo.

Por volta das cinco da manhã, quando acordei, o meu cérebro parecia ter

regressado do sítio para onde se ausentara para começar a funcionar e fazer­


-me

crer no que acabara de se passar. Foi como se alguém me tivesse batido com um

maço mesmo no meio do peito, um golpe tão forte, tão certeiro, que tive de sair

da cama quase de rastos até chegar à casa de banho e vomitar.

Sentia­
-me doente, realmente doente, como se dentro do meu corpo hou­vesse

um vírus a devorar a vida que me restava. Fitei o meu corpo: ainda tinha a T­
-

shirt branca, mas a minha roupa interior desaparecera. Fragmentos do que

acontecera com ele no quarto começaram a vir­


-me à cabeça sem que conseguisse

fazer nada para os impedir. As mãos dele, a sua boca, o corpo despido contra o

meu...

«Oh, meu Deus!»

Tive outra náusea e fui obrigada a pôr­


-me de joelhos em frente à sanita para

vomitar durante alguns minutos que me pareceram uma eternidade. Depois,


apoiei o rosto ao lado do lavatório e comecei a chorar novamente; não sabia

quantas lágrimas derramara nas últimas horas, nem percebia como ainda me

restavam tantas. De repente, senti uma vontade imensa de tirar aquela T­


-shirt ,

de tomar banho com água a ferver e esfregar o corpo com a esponja mais áspera

que conseguisse encontrar... Desejava com todas as minhas forças poder

limpar­
-me por dentro e por fora, enroscar­
-me depois sobre mim mesma na cama

e esperar que o tempo passasse e que conseguisse levantar­


-me.

Comecei a recolher as minhas coisas como se fosse uma espécie de robô

programado, tudo sem fazer barulho. Não queria voltar a usar o vestido da

festa, mas também não podia sair do quarto nua. Acabei por me decidir por

uma camisola do Michael que estava em cima de uma cadeira. Queimaria

depois o maldito vestido e a camisola... Atiraria para as chamas tudo o que

vestira naquela noite, incendiaria todas as recordações e tudo aquilo em que ele

tivesse tocado, porque, meu Deus, eu deixara que ele me tocasse, que fizesse

muito mais do que isso...

Tive de ligar o telemóvel para chamar um táxi e, ao fazê­-lo, comecei a receber

as notificações de várias chamadas. A maior parte era do Nicholas, e reparei que

nas últimas seis horas me ligara de cinco em cinco minutos... a Jenna e a minha

mãe também me tinham telefonado...

Semicerrei os olhos e ignorei­


-os a todos. Chamei um táxi e saí do apartamento

do Michael sem fazer barulho.

Chovia muito, e não demorei a ficar encharcada, mas, como me sentia suja,

deixei que a água me limpasse, o que me fez sentir bem. Tentei esquecer­
-me de

tudo durante alguns minutos e concentrar­


-me simplesmente nos pingos de

chuva a atingirem-me o rosto.

O som da buzina do táxi despertou­-me da minha letargia, e apressei­-me a

entrar para o banco de trás. Por minha vontade, naquele instante, ter­
-me­
-ia

metido num avião com destino ao Canadá, sem olhar para trás, para poder estar

num lugar onde as recordações do meu ex­-namorado e das suas ex­-namoradas

não estivessem presentes, mas antes disso teria de ir ao apartamento.

Demorei pouco a chegar — afinal, o Michael também vivia no c


­ ampus — e,

quando saí do táxi e vi quem me esperava sentado nas escadas da entrada, quase

desmaiei.

Não... Não podia estar com ele... Merda, precisava de sair dali.

Mas o Nicholas já me tinha visto, e, antes que pudesse dizer ao taxista para

fazer marcha­
-atrás e sair por onde tinha entrado, as mãos do Nick já estavam a
abrir a porta do táxi e a puxar­
-me para a rua.

— Noah, por favor, andei à tua procura a noite inteira como um louco. Pensei

que te tinha acontecido alguma coisa, pensei... — Vi­-o tão desesperado, e eu

estava tão desfeita, que por instantes deixei que me abraçasse, quase me deixei

envolver nos seus braços e quase lhe implorei que me levasse para longe dali,

para qualquer lugar onde não pudesse sentir­


-me como me sentia naquele

momento. Mas, depois, os motivos que me tinham deixado naquele estado

regressaram à minha mente com toda a força e atingiram­-me mais uma vez,

desta feita com mais inten­


sidade porque agora ele estava ali à minha frente.

Tinha­
-o comigo e podia ver, não apenas imaginar, o que acabara de perder.

Sacudi­
-me tão depressa e com tanta força que, por instantes, nem o Nick foi

capaz de me segurar, mas tentou de novo: agarrou­-me quando já estava perto da

porta da residência e segurou­-me a cabeça entre as mãos, para me obrigar a

olhar para os olhos dele.

— Ouve­
-me, Noah, por favor, tens de me ouvir.

Estava mesmo desesperado... A chuva já acalmara um pouco, mas, de

qualquer maneira, estávamos ambos molhados e cheios de frio.

— Noah, foi tudo um mal­


-entendido estúpido. Andei à tua procura por todo

o lado porque sabia o que estavas a pensar, e eu estava a mor­rer por dentro só de

imaginar que acreditavas que te tinha traído...

Pestanejei várias vezes sem entender o que estava a dizer.

— Fui um imbecil, está bem? Fui estúpido, um perfeito idiota por te ter

deixado sozinha esta noite com tanta coisa a acontecer com os nossos pais. E,

sim, podes odiar­


-me porque dei um beijo à Sophia, mas...

As suas palavras conseguiram alcançar a minha alma, e naquele momento quis

livrar­
-me das suas mãos: acabara de admitir à minha frente que era verdade, que

a tinha beijado, que me traíra com ela.

— Larga­
-me! — gritei, mas só consegui fazer com que me agarrasse com mais

força ainda.

— Porra, Noah, eu jamais te trairia!

Abanou­
-me com força, e os meus olhos levantaram­-se do chão enlameado e

molhado para lhe conceder um pouco de atenção.

— Foi só um beijo estúpido, um beijo estúpido que lhe dei com raiva porque

estava furioso contigo e, sim, fui um cabrão porque me ­aproveitei dos ciúmes

que tens da Sophia para me poder vingar de ti. Mas, na verdade, não quero

vingar­
-me de ti, Noah, deixei­
-me levar por aquele Nicholas de há anos, aquela
pessoa que me ajudaste a deixar para trás, e juro por Deus que nunca mais vou

deixar que ele volte a aparecer. Foi o pior erro que cometi na minha vida. E

sabes porquê? Porque agora que voltei a beijar outra mulher percebi que estou

tão desesperadamente apaixonado por ti que nunca mais vou conseguir beijar

alguém e sentir o que sinto quando te beijo a ti. Se não estiver contigo não

sinto nada, se não estiver contigo acho que nem tenho alma...

A minha cabeça começou a analisar o que me estava a dizer, enquanto um

medo terrível começava a ocupar o lugar da dor.

— Não foste para a cama com ela? — perguntei, com a voz invulgarmente

rouca.

O Nicholas afastou a cabeça para trás e deixou que a água lhe escorresse pelo

rosto durante um segundo.

— Odeio que me perguntes isso, mas vou ser claro contigo porque entendo

que tudo aconteceu tão depressa que mereces uma explicação. — Nesse instante

olhou para mim fixamente, como se quisesse imprimir a maior seriedade

possível às suas palavras. — Nunca, e insisto, nunca te enganei com ninguém,

nunca me passou pela cabeça fazê­-lo, nem nunca se irá passar, Noah.

Senti um alívio imenso que foi como um bálsamo que se espalhou por cada

um dos recantos destroçados da minha mente e do meu coração.

— Mas, então... A Briar disse­-me que... — comecei por dizer.

— Noah, a minha história com a Briar foi uma merda, e, sim, devia ter­
-te

contado logo, mas nós estávamos tão mal, a nossa relação estava à beira do

precipício, e não quis piorar as coisas contando­-te que engravidei a tua colega

de casa quando éramos uns miúdos e muito menos que o meu pai a obrigou a

abortar para evitar um escândalo. Tive medo de que não entendesses. Aconteceu

tudo tão depressa que perdi o controlo da situação, e quem teve de pagar as

consequências foi a Briar...

Teria sido o pai do Nicholas a obrigá­


-la a abortar? A Briar dera­-me a entender

que tinha sido ele.

— Não foste para a cama com ela?

O Nicholas praguejou e voltou a olhar­


-me com firmeza.

— Não fui para a cama com ninguém, só contigo, Noah. Mas percebo que

ainda não conquistei a tua confiança e entendo, a sério que sim. Mas podemos

resolver isto, juntos podemos ultrapassar isto.

A minha cabeça começou a dar voltas e mais voltas... Seria tudo mentira? O

Nicholas não me teria enganado?...


Senti um alívio tão grande que as lágrimas voltaram a cair­
-me pelo rosto até o

Nicholas me puxar para o seu peito e me abraçar com força.

Demorei um instante a retribuir o abraço, porque o meu cérebro tivera de

parar de odiar o amor da minha vida para voltar a amá­-lo loucamente em menos

de um segundo.

— O que vou fazer contigo, Noah? — perguntou, enquanto a mão me

acariciava o cabelo molhado e as costas de cima a baixo.

Estava tão congelada e atordoada que, quando o Nick me pediu para

entrarmos no apartamento, assenti simplesmente e deixei que me c


­ onduzisse.

Quando entrámos e vimos que a sala estava como a tinha deixado havia menos

de dez horas, comecei a sentir uma onda de pânico crescer dentro de mim.

Havia copos por todo o lado, de quando as miúdas ­vieram ajudar­


-me a vestir,

roupa espalhada pelos sofás e sapatos no chão, maquilhagem... Estava tudo

numa desordem tal que me afastei do Nick e me pus a arrumar de forma

compulsiva.

— Noah, o que estás a fazer?

— Só preciso de arrumar isto... Preciso de limpar... Preciso... — As mãos do

Nick obrigaram­
-me a parar e voltaram­-me para si.

— Tem calma, Noah, está bem? — Os seus olhos percorreram­-me de cima a

baixo, e de repente senti medo, tanto medo de que percebesse o que tinha feito

que voltei a sentir náuseas. — Estás a tremer de frio, e eu também estou

congelado. Vamos tomar um duche quente e depois vamos para a cama, pode

ser? Amanhã podemos continuar a conversar sobre isto...

Comecei a abanar a cabeça. A culpa estava a matar­


-me por dentro. O que mais

queria naquele momento era tirar aquela roupa e meter­


-me debaixo de água,

mas não podia fazê­


-lo à frente do Nicholas. Não conseguia sequer olhar para a

cara dele.

Ele acabara de me confessar que não me enganara com ninguém, que nunca

lhe tinha passado pela cabeça. Tinha beijado a Sophia, sim, mas o que era um

beijo depois de ter acreditado que fora para a cama com ela? Nada.

— Nicholas, eu...

Os seus olhos observaram­


-me com preocupação, e apercebi­-me do momento

exato em que ele teve consciência do estado em que eu estava e do que trazia

vestido.

— Onde estiveste estas horas todas, Noah? — Não parecia estar a acusar­
-me

de nada, só me observava com curiosidade. — A Jenna passou a noite a ligar­


-te,
como eu, e até falei com o teu amigo da faculdade... Onde estavas?

Comecei a abanar a cabeça e fechei os olhos com força, como se assim pudesse

salvar­
-me do que estava prestes a acontecer.

— Eu... Eu... — Nem sequer era capaz de dizer uma frase inteira.

E, antes que o Nicholas pudesse tirar as suas próprias conclusões, o telemóvel

que tinha entre os dedos começou a tocar com uma música ridícula que só

intensificou aquela situação incrivelmente surreal.

O Nicholas pegou no telemóvel para ver quem me estava a ligar.

— Porque é que ele te está a ligar? — A sua voz era tão gélida que nem

precisei de levantar os olhos para olhar para ele.

Deus, estava tão tenso que, inconscientemente, dei um passo atrás.

— Porque é que ele te está a ligar, Noah?

— Nicholas, eu...

Bastou um só olhar para ele perceber o que tinha acontecido.

— Diz­
-me que o que estou a pensar não é verdade — pediu, com a voz tão

estrangulada de medo que teria dado qualquer coisa, fosse o que fosse, para

desaparecer daquele lugar, para desaparecer do mundo, para deixar

simplesmente de existir. — Por favor, diz­-me que isso que tens vestido não é

roupa dele, diz­


-me que as imagens que estão a invadir a minha cabeça são

apenas fruto da minha imaginação... Diz­-me, Noah! — O seu grito e as mãos a

agarrarem os meus braços com força arrancaram­-me à minha paralisia, e acabei

por ficar a olhar para ele enquanto as lágrimas me caíam pelo rosto e chegavam

ao chão, ao sítio onde eu devia estar caída naquele momento, o lugar para onde

os meus demónios, as minhas desconfianças e todos os meus problemas me

arrastaram.

— Desculpa — pedi tão baixinho que nem percebi se me ouviu. Mas ouviu,

porque nesse instante largou­


-me como se a minha pele o queimasse, como se, de

repente, não fosse capaz de me tocar...

— Não... Não fizeste isso. É mentira. — Começou a andar pela sala, com as

mãos na cabeça, a agarrar o cabelo escuro com desespero, até que se voltou

novamente para mim e se aproximou para segurar o meu rosto entre as mãos.

— Por favor, por favor, Noah, não me castigues por isto. Já te pedi perdão,

não brinques com a minha sensatez. Diz­-me só que é mentira, diz­-me... Por

favor. — A sua voz quebrou­


-se na última palavra, e foi o suficiente para saber

que acabara de nos destruir aos dois. Se antes achava que a minha dor era tal

que o coração iria parar de bater, agora, ao ver a dor dele, ao ver o que lhe tinha
feito, percebi que aquilo ainda era pior... Embora seja muito doloroso quando

nos partem o coração, é infinitamente mais difícil fazer o mesmo à pessoa que

amamos com toda a nossa alma.

— Nicholas... Fui uma estúpida... Pensei... Eu pensei... Desculpa, Nick,

desculpa — disse com a voz afogada em lágrimas e segurando o rosto dele entre

as mãos.

Mas ele não deixou... Todo o seu corpo se retesou e, segurando­-me nos pulsos,

evitou que lhe tocasse. Cravou os olhos nos meus.

— Foste para a cama com ele? — A sua voz continha tanta dor que agradeci

ter os olhos turvos de lágrimas e não conseguir ver, por instantes, o seu rosto

destroçado. — Responde­
-me, maldita!

As suas palavras atingiram­


-me como facas a cravarem­-se no meu estômago.

Estava enojada comigo mesma... De tal maneira que achei que ia voltar a

vomitar, ali mesmo; nunca na vida me sentira tão suja... Ele percebeu­-o, viu

tudo no meu rosto, e eu já não era a mesma, nunca mais seria.

Sem dizer uma palavra, virou­-me as costas e saiu do meu apartamento.

Fiquei ali durante uns segundos, a olhar para o vazio que ele deixara à minha

volta, e aquele breve lapso de tempo foi o suficiente para decidir que não o

podia perder, porque o Michael fora um erro imenso, um erro que o Nicholas

me ia perdoar, tinha de perdoar, porque ele me amava, e eu amava­-o também.

Recusava­
-me a aceitar que a nossa história acabasse depois de saber que tudo

aquilo em que acreditara era mentira... Tinha de o fazer perceber que não

passara de um erro, que podíamos ultrapassá­-lo: percebi que seria a batalha

mais dura da minha vida, mas ia ganhá­


-la, tinha de ganhar.

Saí do apartamento a correr e desci as escadas o mais depressa que consegui.

Ao sair, vi­
-o a afastar­
-se pela rua e gritei o seu nome. O Nicholas parou e

voltou­
-se para olhar para mim. Não demorei muito a alcançá­
-lo, mas tive de

parar a um metro de distância. O Nicholas que tinha à minha frente não era o

mesmo que eu conhecia: estava destroçado, eu dera cabo dele, e a realidade

daquele feito acabou definitivamente comigo.

A chuva caía sobre nós, encharcando­-nos, congelando­-nos, mas não queria

saber, já nada me importava. Sabia que tudo estava prestes a mudar, sabia que o

meu mundo estava quase a desabar.

— Já não há volta atrás. Nem sequer consigo olhar para a tua cara...

Lágrimas de desolação caíam­-lhe pelo rosto. Como lhe podia ter feito uma

coisa daquelas? As palavras cravaram­-se na minha alma como facadas que me


despedaçavam.

— Nem sei o que dizer — admiti, tentando controlar­


-me, tentando dominar

o pânico que ameaçava abater­


-se sobre mim. Ele não podia deixar­
-me... Não o

faria, pois não?

Os olhos do Nick cravaram­


-se fixamente nos meus, com ódio, com desprezo,

com uma expressão que nunca pensei poder dirigir­


-me.

— Está tudo acabado entre nós — sussurrou com a voz desfeita mas firme.

E, com estas cinco palavras, o meu mundo mergulhou numa escuridão

profunda, tenebrosa e solitária... Uma prisão desenhada à minha medida. Mas

eu merecia, desta vez merecia.


Epílogo

... Duas semanas depois

O barulho das máquinas e o cheiro desagradável que acompanhava todos os

hospitais obrigou­
-me a levantar e a ir para a sala de espera. Nunca gostei

daqueles sítios e, se fosse por mim, estaria em qualquer lugar menos ali.

Sentei­
-me na cadeira e abracei os joelhos com as mãos. Fora a minha posição

preferida nos últimos dias, e, como fazia quando me metia debaixo dos

cobertores, fechei os olhos e deixei que a minha mente divagasse por locais onde

preferia nunca mais voltar. Ainda conseguia ouvir a voz da Jenna do outro lado

da linha, a exigir­
-me respostas que não estava preparada para dar, logo a seguir

a do William, que, furioso, me dizia que o filho fora preso por agressão.

Não demorei muito tempo a chegar ao local onde tudo se passara, e acho que

se passariam muitos anos até que aquela imagem do Nicholas me desaparecesse

da memória. O Michael fora levado de ambulância, com o corpo e o rosto todos

pisados. O Nicholas partira­


-lhe duas costelas. Ainda conseguia ver os polícias a

levarem­
-no no carro de patrulha e o sangue a escorrer­
-lhe do lábio e dos nós dos

dedos. O Michael defendera­


-se, claro, mas não o suficiente para enfrentar um

Nick completamente enlouquecido. Quem o empurrara para aquilo fora eu, a

culpa fora novamente minha.

Lembro­
-me de que a Jenna apareceu atrás de mim, e, naquele preciso

instante, as minhas pernas cederam sob o peso do meu corpo. Ela e o Lion

agarraram­
-me antes que caísse, levaram­-me para casa dela de carro e cuidaram

de mim toda a noite. O Lion foi para a esquadra e ligou ao William; entretanto,

a Jenna abraçou­
-me na cama, enquanto eu me libertava de todas as lágrimas

que ainda restavam em mim. Depois dessa noite não voltei a chorar, porque

estava tão destroçada que já nada, nem mesmo as lágrimas, conseguia acalmar a

minha dor.

E agora estava ali, a visitar o homem que prometera ajudar­


-me e que agora era

o responsável pelo estado de desespero absoluto em que me encontrava.

Suspirei no instante em que o meu telemóvel vibrou em cima da cadeira de

plástico onde o pousara.

Era o Will.

— Acabou de sair, Noah — anunciou, e pus­-me imediatamente de pé. —


Tive de recorrer a todos os meus contactos, mas, ao que parece, o O’Neil retirou

as queixas... Presumo que afinal tinhas razão e que resultou falares com ele.

Senti um alívio enorme percorrer­


-me todo o corpo.

— Está livre? — perguntei, sem acreditar.

O William respirou fundo do outro lado da linha e imaginei­-o com o rosto

cansado e inundado de preocupação, mas finalmente aliviado pelo facto de o

filho não acabar na cadeia por causa da enteada.

— Sim, mas foi por pouco.

Assenti e levei a mão à boca. Sentei­-me na cadeira do hospital. A chamada

desligou­
-se, e os meus olhos focaram a parede em frente.

Se o Nicholas tivesse acabado na cadeia por minha causa, jamais me perdoaria;

se já me custava horrores levantar­


-me de manhã para ir ao hospital, não teria

conseguido suportar mais esse peso sobre os meus ombros.

A Jenna apareceu no corredor com dois cafés e um saco nas mãos.

— Trouxe­
-te qualquer coisa para comeres, e não vou continuar a aguentar o

teu negativismo, estás a ouvir? Vais comer e é já.

Sem prestar muita atenção ao que estava a dizer, aceitei o café das suas mãos e

bebi um pequeno gole. O líquido quente não conseguiu aquecer­


-me o corpo:

agora parecia que andava sempre fria, congelada por dentro e por fora; não

importava quantos cobertores pusesse em cima de mim, faltava­-me sempre

qualquer coisa, o mais importante.

— O Nick está livre — disse­-lhe, num sussurro.

A Jenna arregalou os olhos de surpresa e suspirou profundamente, como eu

tinha feito quando soubera.

— Porra... Menos mal!

Assenti, desviando novamente o olhar.

— Noah... — começou por dizer a Jenna num tom apaziguador, mas eu não a

queria ouvir, não queria que ninguém falasse comigo, que tentassem animar­
-

me. Naquele momento só queria afundar­


-me na minha infelicidade e isolar­
-me

de toda a gente. — As coisas vão melhorar, está bem? O Michael está bem, está

a recuperar sem problemas, e o Nick está livre da prisão. Conhecendo o

William como conheço, nem com antecedentes ele vai ficar. Alegra­-te um

pouco, por favor.

Os meus olhos desviaram­


-se para a mão que segurava o café. Um bonito anel

de prata com um pequeno diamante branco adornava o seu dedo anelar.

Também devia sentir­


-me culpada por aquilo, porque, na noite em que todo o
inferno se desatara, o Lion pedira a Jenna em casamento, e ela tivera de o deixar

para me vir buscar e enfrentar tudo o que se tinha passado.

Apesar de eu estar completamente ausente da realidade, não conseguia ignorar

o brilho que parecia esconder­


-se no seu olhar quando olhava para o Lion ou

admirava o anel de noivado. Ficava feliz por ela, a sério que sim, mas a sua

felicidade só avivava a dor no meu coração dilacerado.

Eu nunca iria ter aquilo, muito menos depois de tudo o que se passara. Agora,

ao ver o que perdera, tinha consciência de como fora idiota. O meu medo de

que me magoassem não permitira que me amassem de verdade, porque o Nick

me amara com toda a sua alma, e eu enxotara­-o uma e outra vez até acabar por o

arrastar comigo para as trevas onde estava quase sempre mergulhada.

Era isso que mais me magoava, porque eu estava acostumada à dor. Embora a

receasse e tentasse fugir dela o melhor que sabia, quando a sentia, era capaz de a

aguentar. O que era insuportável para mim era lidar com a dor dele.

Todas as vezes que me disse que me amava, todas as ocasiões em que

discutimos por palermices, todos os beijos roubados, as carícias, o amor que ele

conseguira sentir só por mim... tudo acabara por se transformar no seu próprio

pesadelo.

Naquela tarde, a Jenna levou­-me a casa. Não voltara a ver a Briar desde a

noite da gala, e, quando cheguei ao apartamento, as suas coisas já lá não

estavam. «É melhor assim», disse para mim mesma. A Briar fazia parte de um

passado do Nick que eu nem devia conhecer, porque nunca teve nada que ver

comigo. Agora entendia que o passado devia ficar lá atrás, encerrado, porque, se

o deixássemos regressar, era capaz de nos consumir o presente.

Tirei os sapatos enquanto a Jenna se atarefava na cozinha, insistindo em que

eu devia comer qualquer coisa. Não conseguia comer nada. O nó que tinha no

estômago era tão grande que não deixava espaço para comida. Meti­-me na cama

e, ao apoiar a cabeça na almofada, ouvi um papel a amarrotar­


-se. Peguei nele e

senti uma pontada de dor no peito quando vi que era o bilhete que o Nick me

escrevera.

Com os dedos trémulos, abri­


-o e voltei a ler as suas palavras.

Vou dar­-te mais tempo. Se é disso que precisas, se é isso que tenho de fazer
para que percebas que te amo a ti e a mais ninguém, é isso que vou fazer. Já
não sei que mais posso fazer para que acredites em mim, para que percebas
que quero cuidar de ti e proteger­-te para sempre. Não vou a lado nenhum,
Noah. A minha vida e o meu futuro são contigo, a minha felicidade depende
exclusivamente de ti. Para de ter medo: serei sempre a tua luz no meio da
escuridão.

Fechei os olhos com força.

«Não vou a lado nenhum.»

«A minha vida e o meu futuro são contigo.»

«A minha felicidade depende exclusivamente de ti.»

Levei o bilhete ao coração e apertei­-o com força.

«Serei sempre a tua luz no meio da escuridão.»

Abracei o meu próprio corpo, sabendo que aquelas palavras já não

significavam nada. O Nicholas deixara­-o bem claro. Não queria voltar a ver­
-me,

nunca mais. Recusara-se a deixar­


-me visitá­-lo na prisão e não atendia as minhas

chamadas.

Para ele, eu já não existia.


Agradecimentos

Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todas as pessoas que me pediram

esta segunda parte com entusiasmo. Inicialmente, estava previsto que Culpa

Minha fosse um livro único, e, depois de quase um ano de bloqueio, de começar

histórias e de as deixar a meio, percebi que tinha de escrever esta continuação.

A história do Nick e da Noah não havia terminado, e, quando me dediquei a

ela, não consegui parar.

Em segundo lugar, agradeço às minhas editoras, Rosa e Aina. Obrigada por

me ajudarem a transformar este livro no que é agora. Não foi fácil escrever

Culpa Tua ao estilo do Wattpad, entregando capí­tulos todas as semanas sem

conseguir trabalhar no romance como deve ser, pelo menos como estava

habituada. Conseguiram fazer com que ficasse perfeito, e as personagens

continuam fiéis a si mesmas. Adoro esta nova versão!

À equipa de desenho, muito obrigada pelas capas originais incríveis:

conseguiram fazer o Nick perfeito, e achei que seria impossível. Excederam­


-se.

Estou apaixonada!

Obrigada à minha agente, Nuria. Sabes que sem ti estaria perdida neste

mundo literário em que me meti sem dar por isso.

Obrigada à minha prima, Bar, por me deixares ler­


-te todas as mudanças mil e

uma vezes, por me dizeres sempre o que pensas e, ainda, por te dares ao

trabalho de o fazeres sem magoares os meus sentimentos. Todos os teus

conselhos me ajudaram a fazer desta história o que ela é. Não sei o que faria sem

a tua ajuda. Quem me dera que estivesses mais perto e pudesses partilhar

comigo aquilo que tanto amamos: a leitura.

À minha família, obrigada pelo vosso entusiasmo, apoio e vontade de ler.

Amo­
-vos muito!

Garri, és o irmão mais velho que nunca tive. Obrigada por seres como és e por

teres entrado na minha família para sempre. Não tenho palavras para descrever

quanto gosto de ti.

Ali, obrigada por seres a amiga que nunca falha, por estares sempre presente

para mim e por acreditares em todos os meus sonhos e ambições. Somos muito

diferentes, mas não sei o que faria sem ti.

Aos meus culpados, obrigada. Continuo sem conseguir acreditar que se

apaixonaram pelas minhas personagens. Obrigada por todo o amor que me dão
nas redes sociais, pela vossa paciência e por me permi­tirem ter uma família que

morro por poder conhecer um dia. Adoro­-vos a todos!

E, por último, obrigada a todos vós, que compraram Culpa Minha logo que

saiu. Quando a minha editora me disse que praticamente todos os exemplares se

tinham vendido em quatro dias, quase tive um enfarte. Obrigada, obrigada,

obrigada!

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