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Antologia Fénix

de Ficção Científica e Fantasia


Volume III

Natal

Alexandra Rolo • Álvaro de Sousa Holstein • Ana Luiz • Anton Stark • Carina
Portugal • Carlos Alberto Espergueiro • Carlos Silva • Carol Louve • Daniel
Libonati Gomes • Francesc Barrio • Gabriel Martins • Inês Montenegro • João
Rogaciano • Joel Lima • Luís Corujo • Manuel Mendonça • Marcelina Leandro •
Nuno Almeida • Ricardo Dias • Rui Bastos • Rui Ramos • Samir Karimo • Vitor
Frazão
Antologia Fénix de Ficção Científica e Fantasia – vol. III

Publicado por Fénix Fanzine


E-mail: ez.fenix@gmail.com
www.fenix-fanzine.blogspot.com

©2013, Fénix Fanzine e Autores intervenientes

Coordenação e Organização: Álvaro de Sousa Holstein e Marcelina Gama


Leandro
Capa: Rui Ramos
Concepção do ebook: Marcelina Gama Leandro
Revisão: Rui Alex

1ª edição: Dezembro de 2013

Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem
transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico,
mecânico, fotocópia, gravação, sistema de armazenamento e disponibilização
de informação ou outros, sem prévia autorização escrita da fanzine e dos
autores.

Por decisão dos autores, os textos poderão não seguir o novo Acordo
Ortográfico.
Índice

Introdução.............................................4 [João Rogaciano] - O primeiro natal ao

[Alexandra Rolo] - Biscoitos de Natal. 5 vivo e a cores..................................32

[Álvaro de Sousa Holstein] - Um conto [Joel Lima] - Diálogo no Polo Norte. .34

de Natal.............................................7 [Luís Corujo] - Pinheirinho................36

[Ana Luiz] - Uma Questão de Nervos. .9 [Manuel Mendonça] - Filhós e

[Anton Stark] - Um Último Presente..12 Azevinho.........................................39

[Carina Portugal] - Frio, cada vez mais [Marcelina Leandro] - Missão de

Frio..................................................14 colonização.....................................41

[Carlos Alberto Espergueiro] - Tomar a [Nuno Almeida] - Noite de Surpresas 43

nuvem por Juno..............................17 [Ricardo Dias] - Os Três Fantasmas...46

[Carlos Silva] - Natal no abrigo..........19 [Rui Bastos] - Julgamento de Natal....48

[Carol Louve] - O Presépio................22 [Rui Ramos] - Conto de Natal............50

[Daniel Libonati Gomes] - A Revolução [Samir Karimo] - SANTA CLAUS

Polonórtica......................................25 SIDERAL Y LA GOTA DE ORO

[Francesc Barrio] – Disfraces.............26 NAVIDEÑA...................................53

[Gabriel Martins] - Noite de Sonho....28 [Vitor Frazão] - O Último Natal.........54

[Inês Montenegro] - O Anjo...............30


INTRODUÇÃO

Esta antologia pretende continuar a recuperar, tal como as duas


anteriores, a ficção curta nacional.
Desta vez o tema é o Natal e temos histórias que vão da ficção
científica ao “fantástico nacional”. Ao contrário do que aconteceu com a
antologia anterior, dedicada ao Dia das Bruxas, vulgo Halloween, notou-se
uma maior “dificuldade” na abordagem de um tema que para nós surgia mais
óbvio, “natural”, familiar, quase nos arriscamos a dizer, mais português, dado
que a tradição do Natal, apesar de remontar, tal como é conhecido e
festejado, apenas ao século XIX, com o casamento de D. Fernando II com a
rainha D. Maria II, estar muito presente e mais enraizado que o anglo-
saxónico Halloween.
As submissões que foram chegando abalaram esta nova convicção, o
que veio a resultar em contos que reflectem um ambiente negro e distópico e
um forte sentimento anti Natalício e que apesar de nos surpreenderem vão
estar presentes e, de algum modo, enformar a antologia. Talvez tal não seja
alheio o “estado” do País quer económica e socialmente, quer pela cada vez
mais agressiva influência da cultura alienígena anglo-saxónica.
Para terminar é de referir que o número de submissões tem vindo a
aumentar, desta vez mais de meia centena, o que, queremos crer, se deve
quer a uma continuidade na publicação das antologias, quer a estas terem
conquistado o favor dos criadores e dos leitores.
Seja como for, o importante é que gostem das histórias que vão ler.
Bom Natal.

Marcelina Gama Leandro


Álvaro de Sousa Holstein

Porto, Natal de 2013


[ALEXANDRA ROLO] - BISCOITOS DE NATAL

No Natal, pela manhã,


Pela chaminé desceu…

A pequena Helena cantava a música alegremente no quarto quando


subitamente um som a fez parar. Calçou as pantufas em forma de coelhinho e
desceu as escadas em direcção à sala. A pequena de cabelos castanhos e
encaracolados tinha ainda o pijama com ratinhos e queijinhos vestido por
baixo do roupão vermelho que condizia com as pantufas. Pé ante pé
aproximou-se da porta da sala e abriu-a ligeiramente. Espreitou e viu um
homem gordo de vermelho com um saco onde tinha vários embrulhos. Ao lado
da árvore de Natal estavam biscoitos, com formas de árvores e estrelinhas, e
um copo de leite.
Helena ficou sossegada sem fazer barulho a espreitar, contente por ver a base
da sua árvore a ficar cheia de embrulhos.
O velhote pousou o saco vermelho e pegou no prato e no copo para levar para
o sofá, onde se sentou cuidadosamente para não entornar nada.
Comeu e bebeu. No fim arrotou e caiu para o lado.
Helena, ao ver o que aconteceu, começou a rir e abriu o resto da porta.
Dirigiu-se ao Pai Natal e pegou no prato e no copo.
“Nada de fazer migalhas.” E foi para a cozinha. Subindo para um banquinho
conseguiu chegar ao lava-loiças onde pousou o prato e o copo e esticou-se
para chegar a uma faca.

Peguei num facalhão eeeeee

Voltando para a sala sentou-se à beira da árvore onde começou a


desembrulhar os presentes.
“Yaaaay, mais caixas!” Eram dezenas de tupperwares que ela tinha em redor
e, feliz, batia palminhas com as pequeninas mãos.
Colocou uma mão no bolso do roupão e tirou de lá um elástico para prender o
cabelo. Depois organizou as caixas com grande cuidado e pegou na faca.
“Este ano és mais gordinho, vou ter comidinha para todo o ano.” Disse aos
risinhos para depois recomeçar a cantar a sua música favorita…

No Nata,l pela manhã,


Pela chaminé desceu…
Peguei num facalhão eeeeee
MORREU!
Mateeeeeeei o Pai Nataaaal,
Matei o Pai Natal
Matei o Pai Nataaaaal
e sou feliz!
[ÁLVARO DE SOUSA HOLSTEIN] - UM CONTO DE NATAL

O som da borrasca era um bramido cavo que ameaçava acabar com as


festividades que durante o ano se prepararam para aquela noite em
particular.
Ao contrário do que acontecia todos os anos, a maioria dos
participantes ainda não tinha chegado. Muitos presos em aeroportos, outros
ao abrigo da tempestade nalgum café ou restaurante de estrada, ou mesmo,
os que residiam mais próximos, ainda em casa, esperando uma “nesga” para
sair.
Não havia memória de um tempo assim na época de Natal. Na verdade,
também não havia memória, de um mês de Dezembro tão cheio de notícias
aterradoras, e não eram os costumeiros acidentes rodoviários e ferroviários da
época natalícia, mas um conjunto de narrações de acontecimentos
fantásticos, de relatos passados nas praias da cidade, em que uma quantidade
irreal de artefactos desconhecidos tinha dado à costa.
De estátuas com seres desconhecidos, produto certamente de uma
mente esquizóide, a pedaços de madeira com relevos e pinturas que
desafiavam as leis da física, até um estranho livro, feito de uma qualquer pele
impermeável, pejado de caracteres numa língua desconhecida e que
alternavam de cor aleatoriamente, nada faltava para se antever um mês de
actividade incomum.
Como se não fosse o suficiente, o recém-aparecido Tio Leopoldo,
desaparecido na Amazónia, ia para mais de quarenta anos, tornava tudo mais
fantástico ainda.
Aliás, era ele o único que não estava perturbado com o tempo, as
“aparições” e os artefactos.
As “aparições” eram o único fenómeno que apesar de bizarro, não
assustava e como tal encarado como algo estranho, mas dado o seu “brilho”,
até agradável. Eram uma espécie de fogos-fátuos que tinham passado a
“iluminar” as ruas desde o início do mês.
*****
Com o decorrer das horas lá acabaram todos por chegar e assim o
espírito natalício lá se foi restabelecendo, relegando para um local longínquo
os acontecimentos singulares dos últimos dias.
Pelas dez chegou o último dos parentes e a mesa rapidamente se
encheu.
Quando já todos estavam sentados, o tio Leopoldo levantou-se e
apontando para a última cadeira vazia, disse:
- Hoje temos um convidado especial.
Ficamos todos a olhar para ele.
- Podes entrar – disse o Tio.
Das sombras surgiu um vulto com a tradicional vestimenta de Pai Natal,
encimado por um amável rosto barbado. Só que as barbas eram verdes e
tentaculares.
[ANA LUIZ] - UMA QUESTÃO DE NERVOS

Gunfar cerrou os punhos verdes e inchados, e fechou os olhos. Respirou


fundo tentando anestesiar a dor, e redireccionou os pensamentos para as
longas horas de trabalho que tinha ainda pela frente. Os risos de Toural
interromperam-lhe esta breve fuga introspectiva. Sentiu uma vertigem e
olhou para o canto de onde brotavam aqueles cacarejares lancinantes. Lá
estavam eles, Toural e a sua troupe, ocupados em brincadeiras de mau gosto e
conversas de escárnio e maldizer. Sabia que era o alvo daquele grupo. Mas isso
não era um “privilégio” só seu. Cada elemento o séquito de Toural poderia
transformar-se rapidamente num potencial alvo. Não seria necessário muito
para que tal acontecesse. Bastaria que não marcassem presença no canto.
Olhou para os lados e verificou que estava sozinho. Obviamente.

Estava cansado de tudo isto. Durante séculos, os outros duendes


tinham-se superado em estupidez e maldade, sob a protecção de Toural.
Nunca, nos seus piores pesadelos, Gunfar imaginara isto. Cada um protegia
apenas o seu verde umbigo. A dureza do trabalho era o mal menor, e Gunfar já
nem formava qualquer expectativa sobre os outros, de tão abjectos e
repulsivos se tinham tornado aos seus olhos. Almejava apenas paz.

Inesperadamente ouviu a forte voz de Saclaus, e como usual, os


duendes assumiram rapidamente as respectivas bancadas de trabalho. Saclaus
entrou, cumprindo o seu papel de supervisão. Gunfar sabia que era apenas um
teatro. Que Saclaus, uma criatura mágica superior, sabia perfeitamente o que
se passava ali. Sabia como todos os humanos se comportavam, logo era
impossível não saber sobre os duendes, que eram de uma casta mágica
inferior e semelhante aos humanos. Mas as encomendas ficavam sempre
prontas a tempo, e logo nunca sentira necessidade de intervir.

Nesse dia, quando entrou, olhou o monte de presentes junto da


bancada de trabalho de Gunfar e disse:
- Então, Gunfar? Atrapalhado? – rindo-se com acinte.
- Eu…. – ia responder, quando olhou para Toural que por detrás das
costas de Saclaus ostentava uma folha onde escrevera: XIBO! - …não. Penso
que as crianças vão ficar muito felizes este ano. - completou.
Esta sua frase foi rastilho de calorosos comentários: sobre a alegria que
reinava entre os duendes, a forma como todos faziam um trabalho fantástico,
e como se vivia ali um espírito mágico, único e especial. Apenas Gunfar se
mantinha em silêncio. Saclaus deu-lhe uma palmadinha nas costas:
- Então? Não está bem? Dizem-me que tem andado nervoso…-
perguntou.
- Não, mestre. Estou bem. Obrigado. – disse Gunfar, agoniado.

*****

Era dia 23 e o ano estava quase terminado. Gunfar sabia que era este o
momento. Não tinha sido fácil arranjar a poção transformadora, mas agora
tinha-a nas suas mãos. Esta era a sua oportunidade. Acreditava que apenas
com magia poderia existir uma hipótese de mudança. Em breve começaria
outro ciclo e ele duvidava que o conseguisse suportar.

Iria servir-se do dispensador de Wass, a bebida quente por excelência


dos duendes. Todos, mais cedo ou mais tarde, acabariam por a beber. O
sentimento de esperança fazia-o sorrir. Já não sorria há tantos anos…e era
demasiado cedo para deixar de sorrir.

De repente, Saclaus materializou-se à sua frente e arrancou-lhe a


poção das mãos.
- O que é que você estava a pensar fazer??? - bradou furioso. Gunfar
não conseguia responder. Escondia a cabeça nas mãos num misto de desespero
e humilhação.
- Você é uma vergonha, uma nódoa para todos os duendes!!! – e
continuou - Onde está o seu espírito de equipa? Acha-se especial??? Você não é
nada!!! Ouviu??? NADA!!!
Olhou-o com firmeza e ordenou fria e secamente:
- Volte I-ME-DIATAMENTE ao trabalho! Não se falará mais nisto!
Entendido?

Saclaus nunca saberia o efeito destas palavras. Durante 150 anos, a sua
reprimenda povoou a mente de Gunfar. Mas um dia, o eco silenciou-se, e em
substituição começou a ouvir duas palavras apenas:
“Poção aniquiladora…poção aniquiladora….poção aniquiladora…”
[ANTON STARK] - UM ÚLTIMO PRESENTE

Faltavam apenas algumas horas para a meia-noite mais mágica do ano e


Nicolau dava os últimos retoques na fatiota, compondo-se diante do espelho.
Oh, sim. Garboso como sempre. Este ano optara por veludo. Fora veludo no
ano em que a conhecera pela primeira vez, afinal de contas. Veludo, botas de
cano alto, e uma túnica sem cinto. Tinha sido uma época esquisita para a
moda, o século quinze. Oh,. bem. Uma recordaçãozinha de um passado feliz,
agora esfarrapado, comido pelas traças. Tal como a túnica, aliás.
Estava tudo tão calmo. Teria sido ilusão sua? Estaria ainda a sonhar, ou
o plano resultara mesmo? Abriu a janela que dava para as oficinas e escutou.
Silêncio.
Paz, finalmente.
Fora tão, tão simples. Um bocadinho no chocolate quente, uma pitada
no perú, algumas doses na tina das bengalinhas de açúcar. E agora dormiam
todos, com pingentes a formarem-se nas pontas das orelhinhas bicudas, por
causa do telhado que tombara quando a caldeira explodira por falta de
supervisão.
Claro que os tinha deixado terminar o carregamento especial de
brinquedos deste ano. Como não podia? Não conseguiria dar conta de todas as
especificidades dos presentes se tivesse que tratar de tudo sozinho. E nenhum
deles o questionara, também. Idiotas alegres, sempre dispostos a cumprir à
risca as suas ordens enquanto houvesse biscoitos de gengibre à mão e cantigas
para cantar. Que teriam dito se ele lhes tivesse dado directamente a dinamite
para colocarem em lugar das pilhas e baterias? Mas agora não havia mais
musiquinha nenhuma para as suas vozes esganiçadas. Não havia mais segredos
para esconderem de si, na única noite do ano em que abandonava o
amaldiçoado buraco do seu desterro. Será que eram eles a abrir-lhe a porta
quando ele se ia? Tarde demais para perguntar. Agora restavam apenas
pequenas estátuas de gelo, farrapos de verde e vermelho, guizos de gorro
perdidos por entre barrotes e escombros. Sangue na neve.
Era tão belo que poderia ter chorado.
Em vez disso presenteou o seu reflexo com um sorriso demasiado largo
que não julgara conseguir expressar. Pela primeira vez, em mil e setecentos
anos estava livre.
Bem, quase. O saco aguardava a postos, e o Livro, o volume mágico que
determinava o comportamento de todas as crianças no mundo, estava
firmemente trancado debaixo do braço. Havia apenas um pormenor a ultimar.
Colocara-a a um canto, virada para outra das janelas, para poder
observar enquanto os duendes caíam um por um. Amarrada e amordaçada,
claro. Não queria que ela fizesse nada de estúpido. De alguma maneira,
porém, vê-la assim relembrava-o de todos os anos felizes, de serões passados
na cama enquanto lá fora uivava o Inverno eterno do Pólo. Estaria ela a
pensar nele, de todas as vezes que…? Que idiota fora.
O chão estalou-lhe debaixo do couro das botas, ao aproximar-se da
mulher. A mordaça estava empapada com lágrimas. Afastou-lhe o pedaço de
tecido da boca. Ela tossiu mas controlou-se, gaguejando.
— Nicolau… Não podes… Pensa, pensa nas crianças. — soluçou ela. —
Não podes fazer isto.
— Não posso? Hohohoh! E quem é que me vai impedir?
— Nicolau… O erro foi meu… Perdoa-me…
— Silêncio! — A mulher gemeu. Nicolau inspirou fundo. — Sempre,
sempre a mesma coisa, Heidi. Onde perdemos nós o romance? É porque não
tenho orelhas tão grandes, ou um rabinho felpudo? — Abanou a cabeça,
afectando alguma tristeza. — Enfim, não importa. Mas, antes de ir, tenho uma
última surpresa para ti, rapariga.
A face da sua esposa contorceu-se numa máscara de horror quando, do
interior do saco, surgiu um revólver. A cadeira da secretária estalou quando a
puxou e se sentou sobre ela, a um palmo da figura amarrada de Heidi, arma
numa mão e o Livro aberto sobre o joelho.
— Diz-me, Heidi. — Esticou-se para a frente, cano do revólver
encostado à testa enrugada da mulher. — Foste uma menina marota?
As folhas douradas do tomo abriram-se por si mesmas. Nicolau leu a
resposta, e sorriu.
Este seria um Natal de estouro.
[CARINA PORTUGAL] - FRIO, CADA VEZ MAIS FRIO

Para lá do vidro, havia algodão a cair do céu. Algodão gelado. Emília


estremeceu e tapou-se melhor, contudo o frio não fugiu. Pegava-se-lhe à pele
como uma doença que a minava, entranhando-se em direcção ao coração.
Um resquício da luz intermitente da Árvore de Natal entrava pela porta
entreaberta do quarto. Havia nela um falso calor, uma falsa promessa de
esperança, um falso carinho. Tudo nela era falsidade, até as prendas debaixo
dos ramos de plástico. Na noite anterior, escapara-se da cama para
desembrulhar uma, descobrindo só uma caixa de sapatos. O embrulho era tão
bonito, e o interior tão vazio. Porque é que era tudo assim?
Encolheu-se sob os lençóis, ficando ainda mais pequena do que já era.
Num momento fugaz, luzes azuis encheram-lhe o quarto. Chegara mais
uma ambulância ao hospital, mas do trenó do Pai Natal não havia sinal.
Porque é que haveria de haver? Ano após anos, não recebera mais que um par
de peúgas velho e gasto que parecia atrair o frio, não afastá-lo. Fora assim
com todas as crianças do orfanato. Os presentes vinham carcomidos de
alguma forma, abandonados por quem já não os queria. Tal como acontecera
com ela no primeiro dia em que entrara no orfanato, dentro de uma alcofa, e
como acontecia agora, deitada num quarto escuro do hospital, sozinha.
Tossiu. Uma dor súbita e terrível apertou-lhe o peito, como se os
pulmões quisessem desfazer-se. O sabor férreo do sangue encheu-lhe a boca.
Soltou um leve soluço e tapou também a cabeça.
– Porque é que não recebeste as minhas cartas? – sussurrou para ninguém,
tremendo dentro do seu esconderijo. – Porque é que nunca vieste?

As renas cavalgavam pelos céus a toda a brida. O trenó oscilava


perigosamente, contudo o Gordo parecia não se importar. A turbulência era
até uma ajuda à minha causa. O laço do sacalhão das prendas soltara-se um
pouco. Forcei a abertura e espremi-me através dela, enquanto os restantes
brinquedos me observavam.
– Vais ser apanhado, tolo! – diziam uns.
– Isso é suicídio, volta para dentro! – rogaram outros.
Não os ouvi, malditos fossem. Não passavam de um bando de egoístas
sem o mínimo de honra de brinquedo. Qualquer criança lhes servia, desde
que os tratassem bem. No fim, alguns acabariam decapitados,
desmembrados, ou pior, abandonados. Não queria saber disso. Seria eu a
escolher a minha criança, não um pacóvio banhoso da Lapónia.
Mal ousei espreitar para fora, o vento e a neve chicotearam-me e só não
me arrancaram da cabeça a fita vermelha porque ela estava bem cosida. Ao
contrário do que muitos pensavam, aquilo não era um enfeite de menina,
mas uma marca de guerreiro.
Espiei o Pai Natal. Ele não se apercebera de nada. Saí, por fim, e
escorreguei pela superfície exterior até à borda do trenó. Debrucei-me,
espreitando as luzes que ponteavam o solo tão distante. Inspirei fundo uma
vez, ganhando coragem. Dei balanço e atirei-me borda-fora.
Pareceu demorar uma eternidade, até o impacto chegar. Um gemido
escapou-se-me, quando me espalmei contra o capot de um carro. Sentei-me
com dificuldade e observei-me. O braço esquerdo começava a descoser-se
junto ao ombro. Ignorei o ferimento. Estava ciente de que poderia ter sido
bem pior.
Rebolei do carro para o manto de neve que cobria o chão. Apesar de
começar a ficar encharcado, era suficientemente leve para não me enterrar
até ao pescoço. Olhei em volta, deixando que fosse o coração a escolher o
rumo a seguir.

Emília deu um salto assustado, quando ouviu a janela a correr para trás.
Espreitou para fora dos lençóis, deparando-se com algo peculiar. Um urso de
peluche perscrutava o quarto. Febre, era isso. As enfermeiras tinham dito que
quando era demasiado alta poderia dar-lhe alucinações.
Hesitou, antes de afastar a coberta para trás, sentando-se. Mal a viu, o
urso escondeu-se, ficando somente a espreitá-la com dois olhinhos negros,
como se a temesse.

Cautela, muita cautela. A humana aproximava-se, curiosa. Observei-a.


Tinha poços fundos em redor dos olhos. O corpo oscilava ao caminhar.
Estendeu as mãos e pegou-me. Não lhe senti calor, estava tão gelada quanto
eu. E os pulsos eram tão magros… Parecia uma boneca de porcelana
quebradiça. Sorriu-me, ao aproximar-me do rosto para ver melhor. Não
consegui evitar também um sorriso.
A pequena abraçou-me, não se importando que lhe molhasse a camisa de
dormir, e levou-me para a cama. Aconchegou-me contra si. Beijou-me a
cabeça com um carinho estranho. Senti os lábios gretados arrepanharem-me
o tecido, e adorei aquela sensação. A sensação de que era desejado, não
como um simples brinquedo, mas como uma verdadeira companhia.
– Obrigada, ursinho – murmurou-me, antes de adormecer.
O gelo que entrava pela janela sobrepôs-se ao falso calor do quarto. Ela
ficou fria, cada vez mais fria, e dessa sensação já não gostei. Apercebi-me do
último expirar a fugir-lhe do corpo. Senti quando a alma se extinguiu.
Escondi o rosto contra a almofada. Um urso de peluche não deveria ser capaz
de chorar, mas eu chorei.
[CARLOS ALBERTO ESPERGUEIRO] - TOMAR A NUVEM POR JUNO

Tomar a nuvem por Juno é uma característica comum ao comum dos


mortais.
Naquela tarde a aparição de centenas de trenós de Pai Natal foi
encarada como mais uma campanha publicitária de uma qualquer cadeia de
brinquedos e nada havia que levasse a pensar que tal não fosse mesmo assim.

Era a primeira vez depois da última grande depressão que a cidade via
iluminações e que o espectro de mais carestia pareceu longínquo. Claro que a
realidade era bem outra, mas animar os espíritos é uma forma de terapia que
não pode ser subvalorizada, pois os seus efeitos são, o mais das vezes,
efectivos.
A campanha de Natal com os Pai Natal em trenós alados estava a
contribuir também para a melhoria da disposição geral.
Para as meninas, as vermelhuças figuras, entregavam bebés que
pareciam crianças reais, aos rapazes, pistolas e carabinas com design
futurista, aos papás tablets e às mamãs reluzentes telemóveis.
A euforia era geral.
Com o espalhar da notícia, todos afluíram para os locais de entrega.
Uma confusão generalizada instalou-se e mesmo as forças de segurança se
juntaram à mole humana que tentava obter um dos presentes.
Não foi necessária uma hora para que todo o aparelho produtivo
estivesse completamente parado.
Depois de obterem as respectivas prendas, em vez de voltarem ao local
de onde tinham vindo: escritórios, escolas, fábricas, hospitais, etc., cada um
dos presenteados sentiu o impulso de voltar directo para casa e assim durante
longas horas imensas filas se criaram e entupiram as estradas de todo o
planeta.

Pai! Pai! – gritava João – Olha como a minha espingarda lança raios.
Manuel agastado pela gritaria do filho, lá teve de tirar os olhos do seu
tablet novo, onde se começara a desenhar uma imagem de uma criança.
– Espera! –gritou em resposta.
No écran um João azul e escamudo olhava para ele de arma em punho.
Estanho – pensou – e nesse momento olhando para o filho, uma luz banhou-o.
***
- Caro comandante, a frota já pode desembarcar a infantaria. O recurso
a um arquétipo benigno e universalmente conhecido, resultou às mil
maravilhas. O planeta é nosso.
A cauda reptilínea mudou de azul para um verde intenso, demonstrando
o prazer de GougNuMat, ao ouvir as palavras do subordinado.
[CARLOS SILVA] - NATAL NO ABRIGO

Era Natal em casa de Simão.

Fazia precisamente, naquele dia, 25 de Dezembro, quarenta anos desde


que as primeiras bombas mutagénicas haviam caído e mudado o Mundo. Os
filhos e as filhas de Simão acordaram em simultâneo, como acontecia todos os
dias à mesma hora, sentindo nos ossos que era preciso meter mais uns toros
na salamandra. Os bebés começaram a chorar de frio e de fome. Um a um, os
filhos e as filhas foram-se aproximando das meias de lã penduradas na
salamandra, coçadas e já quase sem cor, e mergulharam a mão no seu
interior, retirando a ração do dia.

Os mais velhos começaram por abrir as persianas de aço que os


protegiam durante a noite, deixando a ténue claridade entrar no abrigo.
Nevava. Como todos os dias, desde o começo do Inverno Nuclear Eterno.
Ninguém se lembrava de alguma vez ter visto o Sol, mas já todos tinham
ouvido Simão falar dele: uma fogueira, mais brilhante do que todas as que já
tinham visto, a flutuar num céu azul e sem nuvens. Os mais novos bebiam-lhes
as palavras, os mais velhos sacudiam a cabeça, sabendo que esse tal “Sol” era
tão real como o “Pai Natal” que lhes enchia as meias todas as noites durante
o sono.

O ancião entrou na sala, a passos curtinhos e fracos, envergando o robe


verde sobre o corpo seco. As crianças deram gritos de alegria, rodeando o
velhote com os presentes recebidos.

- O Pai Natal trouxe-me uma lata de feijão! – disse um.

- A mim trouxe-me um quebra-nozes – disse outro com tristeza,


exibindo duas pedras. – Se me portar melhor hoje, amanhã também vou
receber comida?

Simão sorriu e passou a mão pelo cabelo cheio de piolhos do neto, ou


filho, já não sabia bem, enquanto o olhar percorria a sala, recaindo sobre
cada um dos seus descendentes, carcomidos pela fome, frio, cancros e outras
doenças. Cada um sabia a sua função e apressava-se a cumpri-la. Os dias eram
curtos e tinham de ser aproveitados ao máximo. Havia remendos a fazer,
madeira para cortar, animais para caçar, locais para explorar, defesas a
levantar.

Laurinda, a primeira das esposas de Simão e sua irmã, entrou no


dormitório. Na mão, trazia a vela com que acenderia todas as outras.
Começou, como sempre, pelas em torno do Presépio: o projecto megalómano
que começara na infância de Simão e que contava já com dezenas de milhares
de figuras apinhadas em torno de um menino Jesus de porcelana. Todos os
dias havia sempre alguém que trazia mais uma figura, só pelo prazer de ver o
velhote a sorrir. Iluminada a multidão, era a vez da Árvore de Natal, o enorme
pinheiro plantado no centro do abrigo, enfeitada com toda a quinquilharia
brilhante que de uma maneira ou de outra sobrevivera ao apocalipse. À noite,
os filhos e as filhas retornaram a casa, entregaram o que haviam encontrado
naquele dia a Simão e reuniram-se à mesa para comer.

No fim da Ceia, Laurinda trouxe o Bolo-Rei. Um pão duro e seco, em


forma de rosca, permeado às vezes com frutas secas, outras com nada, e
repartiu igualmente pelos filhos e filhas com idade de já dormirem com Simão
e Laurinda. Uma a uma, as fatias eram tiradas e comidas. A quem calhasse o
Brinde, ficava livre de tarefas no dia seguinte; a quem saísse a Fava, passaria
a noite na rua, a defender o abrigo dos mutantes.

Chegado o fim do dia, a salamandra foi mais uma vez cheia de toros e
todos se apressaram a enfiar no respectivo molho de mantas remendadas.
Todos excepto Simão, que foi encher as meias de lã, para que a sua família
possa encontrar os presentes do dia seguinte.

Na rua, um dos seus filhos lutava pela vida contra uma horda de
mutantes selvagens, gritando por uma ajuda que nunca viria. Não importa. É
só uma noite. No dia seguinte calhará a Fava a outro.

Há quarenta anos atrás, num bunker a vários quilómetros de


profundidade, a mãe de Simão limpara-lhe as lágrimas e dera-lhe um beijo na
testa. “O Natal não tem de acabar só porque amanhã é dia 26, querido”
dissera-lhe a mãe. “Podemos repetir tudo de novo amanhã, se quiseres. O
Natal é quando o homem quiser.”

Na casa de Simão, era Natal todos os dias.


[CAROL LOUVE] - O PRESÉPIO

O primeiro Natal que passavam juntos.

“Não temos presépio”, disse ela tristemente enquanto montavam a


árvore.

“Para que queres um presépio? Não somos religiosos.”

“A minha mãe montava sempre um.”

E assim, nessa tarde, ele comprou um presépio. Viu um que lhe pareceu
muito engraçado à vinda para casa, muito barato também. Estava numa
banquinha de rua, no meio de uma miríade de outras traquitanas natalícias. O
vendedor, enrolado num capote e num grande cachecol, olhara-o
desconfiadamente. Depois sorriu e vendeu-lho. “Aproveite bem!” dizia ele
“Aproveite bem!”

A chegar, começou a colocar as figuras em cima do móvel da televisão.


Encontrou na caixa das bolas de Natal um tapetezinho a imitar relva e usou-o
como cenário para a natividade. Primeiro colocou a casinha, a manjedoura
onde o menino deveria nascer. Ajeitou o burro e a vaca e logo à frente os pais
orgulhosos. Num berço de palhinha, muito pequenino, ficou a criança. Os reis,
montados em seus camelos, foram postos a caminho, do lado esquerdo.
Pontuou o espaço verde com ovelhas sorridentes e um par de pastores.
Finalmente, coroou toda a cena com um anjo que, não sendo luminoso, dava
um certo ar de anunciação final ao que estava a acontecer dentro da
manjedoura. Olhou para o seu trabalho: ia ser uma bela surpresa quando ela
chegasse. Iria ficar tão feliz! Afastou-se um pouco. Algo lhe parecia estranho.
Estava tudo no local certo, cada uma das personagens fazendo o seu papel,
imóveis e serenas. Mas parecia que aquele cantinho ao lado do televisor
emanava uma electricidade estática, daquelas que faz arrepiar os cabelinhos
da nuca.

Ele estava certo, ela adorou. Sempre que passava por ali sentia um
arrepio, mas ela estava feliz e era isso o que interessava mais. Rapidamente
chegou a véspera de Natal. Estava tudo preparado, a árvore, as bolas
coloridas, as prendas debaixo da árvore, os laços brilhantes rodeando cada
objecto. E o presépio. Ainda lá estava. Nada naquela noite o poderia fazer
sinistro, mas a verdade é que ele se sentia desconfortável com as figuras a
olhar para ele.

Chegou a meia-noite, brindaram com um beijo. Antes de começarem a


abrir os presentes, ela parou-o com um gesto. Agarrou-lhe os pulsos, depois a
cara, afagando a sua face. Os seus olhos cintilavam, como a estrela da árvore.

“Meu amor. Tenho uma notícia para te dar que vai ser o teu presente
de Natal preferido. Dentro de nove meses… Seremos três!”

Ele iniciou um sorriso, aquele que deveria ser o maior dos últimos
tempos. Mas, sem se aperceber dessa fatalidade, o seu olhar desviou-se para
o presépio. Todas as figuras estavam viradas para ele. Os seus olhos de barro
estavam fixos nos seus. E todas elas se riam dele. O sorriso desfez-se.

“Maria! Quem é o pai dessa criança!”

“O que estás a dizer, o meu nome não é Maria!”

“Maria, responde-me!”

Começou a abaná-la pelos ombros. Quem era o pai daquela criança? Ela
chorava, os seus olhos já não eram estrelas, ela chorava e dizia “Meu deus,
meu deus”, ela tentava pará-lo, mas nada o podia parar.

“Foi Deus? Foi Deus, Maria? Porque fizeste isto ao teu José?”

Levantou-a do sofá, sempre a dar-lhe safanões, estava possesso, estava


furioso. A sua mente estava em branco, só conseguia ver as figuras do
presépio de mãos na barriga a rir-se dele, tinha sido traído, tinha sido trocado
por deus. E só pensava nisto quando agarrou na cabeça dela e a atirou para o
canto do móvel, aresta afiada, sentiu algo a partir-se debaixo da sua mão e no
momento seguinte era só sangue, sangue que se espalhava pelo chão de tacos,
sangue que empapava o tapete de arraiolos, sangue que parecia nunca mais
parar, já estava a chegar aos presentes, já estava a tingir a árvore.
Olhou para o que tinha feito e deixou-se cair no chão molhado. Todas
as figuras do presépio apontavam para ele.

“Jesus não vai nascer!” diziam eles “Jesus não vai nascer!”
[DANIEL LIBONATI GOMES] - A REVOLUÇÃO POLONÓRTICA

Enquanto trabalhava na fábrica de brinquedos, Plik, um dos duendes


operários, teve uma súbita iluminação e gritou, cheio de animosidade:
— Senhores! Por que trabalhamos aqui? Alegria de crianças? Bobagem!
Quem ganha os agradecimentos? O velho Nicolau! É, amigos, façamos uma
greve!
“GREVE!”, os outros empregados acompanharam Plik. Com o auxílio dos
mais avançados robôs de combate que eles haviam construído, bonecas foram
quebradas, carrinhos destruídos e toda a fábrica não demorou a cair em
ruínas. Papai Noel observava tudo, tristonho. Resolveu perguntar aos seus
queridos ajudantes o que os aborrecia tanto.
— Ora, Noel, que pergunta idiota! Exploração, isso é que é esse
trabalho! Tu comandas essa fábrica e nos dá o que em troca? Casa e comida? E
que comida? Doces?! É absurdo! Chegou o momento da revolução do
proletariado!
— Mas o que querem então? Quais são as vossas petições? — Indagou o
bom velhinho.
— Queremos igualdade de direitos!
Olhando-os com piedade nos olhos, o gordinho vermelho de barba
branca apertou um botão e um alarme soou. Renas com as bocas espumando
apareceram juntamente com a guarda pessoal do velho de roupa cor de
sangue, assim aconteceu o massacre. Corpos para todos os lados, de ambos os
lados da disputa, contudo um lado foi mais forte. Não foi o dos
revolucionários. Plik, apesar de tudo, sobreviveu: “isso não dá certo”, pensou.
Até hoje os duendes estão fazendo brinquedos.
[FRANCESC BARRIO] – DISFRACES

Santa Claus lleva desde las 10 de la mañana en la puerta del supermercado


repartiendo caramelos a todos los niños que pasan por la calle. Doce horas de
“hou, hou, hou”. Doce horas de tintineos de campana. Doce horas de burlas
adolescentes, de ilusiones infantiles y de desidia personal. Doce horas, con
una hora para comer y ocasionales descansos para ir a mear y fumar algún
pitillo. Por fin ya termina la jornada.
Santa Claus entra en la tienda. Saluda a las chicas que ya están cerrando caja
y se dirige al almacén, al cuartucho donde guarda sus cosas. Por el camino se
cruza con el encargado. Conversación banal. Cruce de palabras
imprescindible. Pero prescindible. Por supuesto, no le dice lo que piensa. Ni
de él, ni de la tienda, ni de la mierda de trabajo que le toca. Sonrisa hipócrita
por sonrisa hipócrita.
Santa Claus se dispone a quitarse el disfraz y volver a ser hombre.
Desgraciado. Como en un ritual, se va despojando de las piezas del uniforme,
depositándolas ordenadamente en su taquilla. Lo último, la gran barriga falsa.
“Hou, hou, hou”. Tan solo resta un hombre en calzoncillos y camiseta imperio.
Triste.
El Hombre Triste se viste con un viejo traje y un abrigo ajado. Uno de los
calcetines tiene un gran agujero por el que asoma un pulgar. Un cliché. De un
bolsillo saca un móvil que no está de moda ni es elegante y comprueba que no
tiene ningún mensaje. Tampoco tiene ninguna llamada perdida. Nadie lo ha
echado de menos. Ya lo sabía, aunque nunca pierde la esperanza. Pero siente
la desesperación.
El Hombre Triste sale del cuartucho, cruza el almacén, saluda a las chicas que
revolotean recogiendo y al encargado. Que te den... Y sale a la calle. Una
noche fría y oscura. Camina unos metros hasta la parada del autobús.
Abarrotado, como siempre. Viaja hasta el extrarradio. A su hogar, donde todo
sigue igual.
El Hombre Triste llega a su portal. Abre la puerta de la calle. Saluda a la
vecina que lo espía desde un bajo. Sonrisa hipócrita. Váyase a la mierda
señora. Sube la escalera hasta su quinto piso. No, no hay ascensor. Es un viejo
edificio de tercera en un barrio de cuarta. Llega a su apartamento y el gato
tiene hambre. Él también, pero primero deja el abrigo tirado sobre una silla y
se encierra en la habitación. Se desviste. Como siguiendo un ritual. Deja cada
pieza de ropa sobre la cama, ordenadamente. Y se planta ante el espejo,
como cada noche, desnudo. Levanta los brazos hasta su cogote buscando la
cremallera y la baja con dificultad. Se atasca un poco, como siempre. Del
disfraz de Hombre Triste sale un corpachón barrigudo. Luego es el turno de
quitarse la máscara liberando el rostro de un anciano con una frondosa barba
blanca.
Santa Claus observa su cuerpo desnudo reflejado en el espejo. Hou, hou, hou.
Vaya mierda de vida.
[GABRIEL MARTINS] - NOITE DE SONHO

A noite prosseguia fria mas acolhedora. A lua exibia-se cheia e abraçava todos
os seus caminhantes, como se estivesse a desejar-lhes a tal noite feliz que se
espera numa véspera de Natal. A maioria apressava-se para chegar a casa e
festejar a consoada em família, mas alguns apenas caminhavam para quebrar
o gelo que se apoderava dos seus corpos, com receio de adormecerem nas
ruas uma última vez. Muitos dirão que para eles este é um dia como todos os
outros, mas muitos estarão enganados.
Por entre a multidão caminhante, havia apenas uma figura que se encontrava
imóvel, ou melhor, imutável. A sua presença não era notada e nem o vento
glacial era capaz de lhe arrancar um suspiro ou tremor, por mais pequeno que
fosse. Silencioso mantinha o seu olhar fixo numa janela. Sorrateiramente uma
voz surgiu-lhe nas costas.
— Desconhecia que eras um entusiasta das épocas festivas.
O vigilante moveu-se, não por curiosidade, mas por cortesia. Não existe face
que lhe seja desconhecida, neste ou noutro mundo qualquer. Quem se
aproximava na sua forma de criança, irrequieta e falsamente cândida, era o
espírito dos sonhos.
— Boa noite Sonho. Por aqui tão cedo? Esta noite todos se deitam mais tarde.
— Há sempre alguém no meu mundo e os passeios nocturnos daquele que tudo
sabe intrigam-me sempre. A que devemos a honra, Destino?
Enquanto respondia, Sonho deixava-se perder no olhar do seu conhecido.
Destino não possui olhos, mas antes vários universos dentro de si. Ao abrir as
pálpebras, a luz das estrelas e do cosmos, emanavam com um poder tal que,
se ficássemos muito tempo a olhar para eles, poderíamos ir a qualquer lado.
Sonho adorava a sensação.
— Conhecer e viver são duas coisas diferentes, tu que mexes com a fantasia
devias saber a distinção — respondeu-lhe Destino voltando novamente a sua
atenção para a janela que observava. — Estás a ver esta casa à nossa frente?
Está quase a acontecer.
Sonho virou a sua atenção para a mesma janela, onde, sentada, uma mãe
conversava seriamente com o seu filho.
— Está a contar-lhe que o Pai Natal não existe — disse Destino com um olhar
brilhante.— Presta atenção, o seu olhar está a ficar cristalino, a sua face
vermelha, mas não chora. Está zangado não porque lhe mentiram, mas porque
neste momento se apercebeu que não há mais nada no mundo, não existe
magia, não há o impossível — aproximou a sua face da de Sonho, envolvendo-o
quase por completo. — Por vezes gosto de sair e ver a chama nos seus olhares
apagar, porque são estes pequenos momentos que os aproximam de mim e do
caminho que vão seguir.
Sonho ouvia sossegado, a sua face era serena e imperturbada, ele conhecia a
entidade com quem conversava e sabia que ela não tinha qualquer poder
sobre ele. A criança sentava-se agora sozinha a olhar para a janela e enquanto
a sua mãe abandonava a sala, também Destino abandonou Sonho, sem uma
despedida, ou uma nota final.
Enquanto caminhava em direcção à janela, Sonho ouviu uma nova voz
familiar, gritando pelo seu nome ao longe. Era o espírito da floresta que
saltava e rodopiava na sua direcção.
— Alguma ocasião especial para te encontrar pela cidade? — questionou-o
Sonho.
— Ouvi que ia nevar hoje — disse alegremente enquanto, despenteava, com as
mãos castanhas o seu farto cabelo verde — Não é todos os dias que neva em
Lisboa.
Não, não é todos os dias, mas acontece. Pensou Sonho sorrindo.
— Então e tu, a trabalhar?
— Ainda não — respondeu-lhe Sonho encostando a mão na janela. — Por vezes
gosto de vir aqui ver a chama no olhar dos deuses iluminar-se, é nesse
momento que eles acreditam que tudo sabem, que tudo controlam, não
imaginando que um dia vão estar enganados, porque eu vou estar sempre
aqui.
A criança do outro lado espreitava para fora. Não podia vê-lo - ainda estava
acordada - mas por alguma razão encostou a palma da sua mão onde Sonho
tinha a dele. Começou a nevar.
[INÊS MONTENEGRO] - O ANJO

O anjo despertou do seu vaguear com um bocejo.


Receoso, lançou um olhar aos céus, confirmando que a distracção ou
passara despercebida, ou fora genuinamente perdoada pela bondade da noite
feliz que se avizinhava: o Filho, não carne de Sua carne, mas espírito do Seu
espírito, estava para nascer.
“E de facto” pensou, relanceando os olhos sobre o palheiro, “pouco
deverá faltar agora.”
A mulher escolhida, uma moça jovem e confiante, cuja alma muito
almejava a tarefa maternal, jazia sob as palhas, aguentando como podia as
contracções que anunciavam a chegada da criança. Desde o rebentar das
águas que o marido se afadigava como podia – para gáudio do anjo, que
manhosamente se divertia com a azáfama desgovernada.
O pensamento sombrio, no entanto, apagou-lhe o bom humor. A
consciência culpada por ter falhado em encontrar uma acomodação mais
adequada ao Filho do seu Senhor pesava-lhe na consciência. E se a jovem não
aguentasse as dores do parto? O Menino cresceria sem mãe! Ceder a própria
vida ao sopro do Filho seria uma nobreza, um gesto para sempre recordado…
E, no entanto, um crime pelo qual ele teria de ser o acusado.
O anjo não desejava ser o causador indirecto da dor de outrem. Não
fora concebido para o querer.
O zurro do burro anunciou a desgraça eminente, quase como um
profeta de mau agoiro. O boi acompanhou-o, mugindo, inquieto pelo
desespero que se alongava naqueles minutos. Não restavam dúvidas ou
esperança, nem ao anjo nem ao marido: a mulher não sobreviveria.
Nesse momento, o anjo hesitou. A ideia cruzara-lhe a mente,
tentadora, mas era também um receio temeroso. Nunca nada de semelhante
havia sido feito até ao momento. Talvez obtivesse os resultados desejados,
talvez falhasse e os arrastasse a ambos num rodopio desconhecido em tudo
pior do que a morte certa…
A decisão impôs-se. Era urgente ceder à tentativa – quem era ele face a
tudo o que todos eles representavam? Não era aquela, também, a sua
essência?
“Senhor!” pensou, uma única invocação enquanto se despenhava sobre
o corpo da mulher, unindo-se-lhe num sacrifício de vida no momento preciso
em que aos gritos do parto se juntavam os berros saudáveis da criança.
José balbuciava, pouco se atrevendo a acreditar no milagre. A esposa,
tão perto que se encontrava de o abandonar no mundo terreno, retornava
agora com as cores no rosto e um sorriso de alegria ao segurar o Filho a quem
ele mesmo cortara o cordão umbilical e lhe colocara nos braços, sujo de
sangue e gritando a sua vida.
E mais alto, nos confins do céu, a estrela do anjo iluminava-se em
exultação, chamando pastores e reis Àquele que lhes era digno de adoração.
[JOÃO ROGACIANO] - O PRIMEIRO NATAL AO VIVO E A CORES

A neve caíra durante todo o dia e fazia um frio de rachar. Eu tiritava,


certo que nem a melhor rameira do bar de alterne do Silva me conseguiria
aquecer. Puxei duas fumaças do meu cigarro, enquanto lia a obra de arte que
acabara de produzir na minha nova máquina de escrever. Merda, esqueci-me
de um erre em “recurso”…
Uma forte batida na porta arrancou-me a estes profícuos pensamentos.
- Entre! – Berrei, atirando a folha impressa para dentro da gaveta semi-
aberta.
Um vulto surgiu à porta e encaminhou-se para mim. Protegeu os olhos
para se livrar do foco de luz projectado do meu candeeiro de secretária.
Examinei o visitante de alto a baixo: estatura média, olhos injectados de
sangue e uma auréola de malignidade ensopando toda a sua pessoa.
- Tire esta porcaria da minha vista e ouça-me com atenção! – Exigiu,
sentando-se na cadeira vaga, sem esperar o meu convite.
O meu olhar alternou entre o visitante e a pistola que me espreitava
dentro da gaveta semi-aberta da minha secretária.
- Estou à espera. – Disse-lhe. Esmaguei a beata do cigarro no cinzeiro,
sentindo vontade de fazer o mesmo com o repugnante ser que ali estava.
- Pois, não o farei esperar… - Sorriu, mostrando uns estranhos, mas bem
tratados, dentes - O meu patrão quer contratar os seus serviços de detective,
mas o assunto é… digamos… fora do habitual…
- Desembuche! – Na minha cabeça idealizava que um bom serviço seria
partir-lhe as fuças à coronhada.
- Ok – anuiu. - Hoje, pelas 23H59 locais, deverá descer aos subterrâneos
romanos que existem no subsolo de Lisboa. Estará activo um buraco-verme
que lhe proporcionará um atalho para um outro local, no passado. Nessa era,
deverá eliminar um casal: um jovem carpinteiro que viaja com a sua esposa
grávida, impedindo-os de entrar na cidadela…
- Bom, chega de brincadeiras – disse-lhe, ameaçadoramente, enquanto
sentia um arrepio subir-me pela coluna vertebral. – Sei eu lá o que são essas
catacumbas e esses buracos-verme…
- O meu patrão manda-lhe dizer que sabe que você é um foragido, de
outra dimensão, que se encontra escondido aqui, no planeta Terra, neste ano
de 1930.
- Não sei quem lhe deu essa informação errada … - argumentei,
sentindo ganas de o estrafegar.
- A informação é correctíssima, como bem sabe. Não adianta negar. –
Insistiu, olhando-me nos olhos. Nesse instante, tive a certeza de quem era o
meu odioso visitante, e como sabia tudo aquilo sobre mim. – Por isso, ou faz o
que foi exigido, ou os seus perseguidores serão informados da sua localização
actual!
- E, se eu aceitar a tal missão, deverei eliminar o tal casal antes de
entrar em… – fiz um esforço de memória, procurando recordar o que lera nas
enciclopédias - … em Belém da Judeia, na Palestina, é isso?!
- Vejo que já entrou no espírito natalício do pedido e que já
compreendeu qual o alvo…
Não chegou a finalizar a frase. Num ápice, apoderei-me da minha arma
e disparei-lhe um tiro no meio da testa. Por momentos, ficou pasmado, depois
transmutou-se e a sua verdadeira essência apareceu, soltando terríficos urros,
para de seguida se desfazer, volatilizando-se. O pobre demónio não sabia que
as munições do revólver eram de prata pura, benzida.
Olhei em volta pela última vez. De todos os locais e épocas por que
viajara, com o precioso dispositivo que roubara – e, pelo qual, era procurado -
este tinha sido aquele local que mais apreciara: encarnar o papel de um
detective, como num policial noir!
Agora, em novo salto de época, não poderei voltar a usar o dispositivo
roubado, senão o patrão do demónio iria atrás do rasto deixado pelo aparelho.
Ah, mas já sei o que fazer: vou usar o tal buraco-verme e, bem instalado em
Belém da Judeia, assistir ao primeiro Natal, ao vivo e a cores.
[JOEL LIMA] - DIÁLOGO NO POLO NORTE

O Pai Natal cofiou as longas barbas brancas. Como deveria celebrar aquele
seu novo centenário? Já muitos haviam decorrido desde que fora investido no
cargo e sempre assinalara a efeméride de modo original e adequado às
circunstâncias. A última vez, recordava-se, acontecera poucos anos depois do
Grito do Ipiranga naquele enorme país da América Latina em que lhe
chamavam “Papai Noel” e, como habitualmente, comemorara o centenário
com uma prenda muito especial; na circunstância, duas bonecas de porcelana
– uma branca, outra de cor - para uma mulatinha de seis anos que vivia em
Salvador da Baía.
Agora, porém, os tempos eram outros; desde que surgira a Fada
Electricidade, os prodígios sucediam-se: o telégrafo, o cinema, a telefonia, a
estonteante cavalgada dos transportes em terra, no mar, no ar...O armazém da
mansão polar também sentira o Progresso. Vinte anos antes, só quase lá havia
bonecas e bonecos de todos os tamanhos e feitios. Depois do Armistício, fora a
invasão dos soldadinhos de chumbo e, em seguida, as inovações tinham passado
de excepção a regra costumeira. Continuava a haver carros de corda, mas eram
cada vez mais os comboios eléctricos com as suas vias férreas, as suas
passagens de nível, as suas estações miniaturais.
Porque não utilizar um daqueles recentes inventos do Homem para fazer
feliz uma criança? Por exemplo, o telefone, instalado havia pouco, porque fora
preciso recrutar centenas de cães e de trenós para que os postes e as linhas
chegassem até ao Polo.
Decidido, o Pai Natal pegou no aparelho – um modelo muito especial que
até permitia chamadas automáticas – e compôs um número ao acaso. O acaso
era de regra naquelas ocasiões; tanto poderia ir parar a França como à
Cochinchina ou até mesmo à Zululândia, se já lá houvesse algum telefone. A
ligação não foi fácil e o bom velho teve de esperar mais de meia hora antes
que, do outro lado, alguém respondesse. O Pai Natal estava com sorte: pela
voz, o seu interlocutor parecia ser muito jovem e falava Inglês – o que sossegou
o ancião que, embora poliglota, receava os dialectos e amontoara, à sua volta,
dezenas de dicionários da Biblioteca Boreal.
- Daqui fala o Pai Natal - apresentou-se. - Que idade tens tu, rapaz?
- Dez anos.
- Excelente. Então é mesmo contigo que eu quero falar. Vives numa
cidade?
- Não, vivo no campo. O meu pai é fazendeiro.
- Muito bem. Foste o escolhido para uma prenda especial e, por isso,
quero oferecer-te um presente de arromba. Que me dizes a uma
bicicleta para passeares pelas redondezas?
- Não, não preciso.
- Não precisas? ... Que querias tu?... Um automóvel? Um avião? Um
dirigível?...
- Nada disso. Também não preciso.
- Ah, já percebo...Os outros miúdos andam a meter-se contigo e tu
gostavas de lhes fazer frente. As armas são proibidas pelo regulamento,
mas posso dar-te um capacete de couro e um peitilho de esgrima... Ou
até umas luvas de boxe.
- Não, Pai Natal. Também não preciso.
- Essa agora... Afinal que queres tu?
- Umas botas... A minha mãe já me fez o fato e a capa, mas ainda faltam
as botas encarnadas.
- Botas encarnadas?... O Carnaval ainda vem longe, mas seja...Queres
umas botas encarnadas e é isso que irás ter... Diz-me lá como te chamas.
- Os meus pai são os Kent e eu chamo-me Clark. Clark Kent.
[LUÍS CORUJO] - PINHEIRINHO

1008 dC
De casaca e calças de lã ruiva com rebordo de pêlo branco e botas pretas, o
rubicundo Ingmar Haraldsson Barba Branca foi dos primeiros a sair do Drakkar
rumo à colina sobre o rio. E lá vai ele de longo barrete na cabeça e grande
saco às costas. Mais uma temporada de comércio, rapina e conquista! - Por
Loki, aqueles escurinhos lá em cima vão dar belos escravos! A menos que lhe
parta os crânios! Muahahahahaha!
O seu riso ecoou nos ouvidos da milícia de Menendo Gunsalvis.
Os portogalaicos já conheciam a fama dos vikings e já os tinham avistado no
farol de Brigantia. Deus, na Sua Misericórdia, pacificou os Maometanos e fez
com que os moçárabes da Estremadura beirã viessem em apoio aos cristãos do
Norte. Nenhum queria ser escravo, ou ver os seus filhos tornados eunucos e as
filhas rameiras. Haveria luta!
As forças vikings, cegas de avidez, descuraram enviar batedores e puseram-se
em marcha, num desafio aos cristãos. Hoje iriam dormir cheios do vinho do
sul e satisfazerem-se com trigueiras fêmeas!
O arauto levantou a bandeira do Dragão, ex-libris do Conde, e seixos e
varapaus começaram a voar em direção aos elmos nórdicos. Em breves
momentos, as machadas, gládios, lanças, martelos, chuços, mocas e escudos
entrelaçavam-se entre si e a carne, ossos e entranhas. O sangue jorrava e
todos o recebiam como um baptismo!
Menendo, apeado do cavalo à força por uma brigada de berserks, foi logo
trucidado. Vendo a morte do seu líder, os galaicoportucalenses, com raiva no
coração, saltam em recuperação do corpo.
Ingmar tenta forçar a linha de combate para alcançar o cavalo do morto, uma
bela prenda para o Rei da Skania. Isso só enfurece mais os cristãos, que o
identificando na garupa, lhe dão caça.
A intentona de pilhagem correu mal, e os vikings começam a tentar fugir de
regresso para o drakkar. São agora os portogalaicos que pilham os Vikings
caídos e fazem prisioneiros os que ficam para trás.
Ingmar é levado prisioneiro à Condessa Viúva, que pega na espada para o
matar.
A cabeça do viking rola pelo terreno mas ainda consegue amaldiçoar, sob o
céu que se enegrece - O MEU SANGUE ESPALHA-SE NESTA TERRA E EU
RENASCEREI EM YGGDRASIL. Nenhum humano se me conseguirá opor!!!!!

Hoje
O pinheiro de Natal trazido para casa foi logo decorado. Entretanto a noite
vem e cobre com sono os seus habitantes.
As luzes piscam e reflectem-se nas bolas e fitas de Natal. Ofélia passeia-se
pela sala, saltando de um lugar para outro em busca de petiscos. Mas aquela
coisa triangular de cheiro estranho e com brilhos multicolores intriga-a. Os
seres que lhe dão comida fazem coisas estranhas, comentava ela para os seus
longos bigodes. Já a Zuzu fica parada a olhar para lá. Ou será que já está em
transe? Essa lanzuda sempre foi dada a longas contemplações, só
interrompidas pelos donos ou pelas tropelias das outras malucas. A Julieta,
atolambada, foi logo cheirar a árvore e ver se era coisa comestível... E cuspiu
parte para o chão.
De repente a árvore assume um halo de luz malévolo à sua volta. As luzes e
enfeites caem pelo chão, enquanto no meio dela surge uma imagem envolta
em fumo electrizante. É Ingmar Haraldsson, agora com a cabeça debaixo do
braço que comanda a Yggdrasil que destrua todos os que se puserem à sua
frente, no meio de inúmeros impropérios.
Ofélia vê aquilo e reage prontamente, mostrando as garras e soprando para o
mostrengo. Julieta já se põe a ladrar e tenta atirar-se contra o viking, talvez
em busca de festinhas ou lhe dar umas lambidelas. Zuzu, mais sabida da vida,
rosna à árvore e tenta fazê-la tombar.
Ofélia passa à iniciativa e atira-se feita pantera, rasgando o tronco enquanto
afia as unhas. Julieta colecciona agora os ramos que vai mordendo e
arrancando.
Ingmar, impotente e resignado, é atirado assim de volta para o submundo.
Não contou com a resistência de duas cadelas e uma gata.
Quanto aos humanos, quando acordaram apenas viram a sala toda de
pantanas!
[MANUEL MENDONÇA] - FILHÓS E AZEVINHO

Mesa que é mesa, no Natal, tem filhós e azevinho. Se minhota terá também
formigos e demais guloseimas da região e um Alvarinho para “regar”. Claro
que o bacalhau, o polvo e o capão não podem faltar. Assim como um Porto ou
Madeira antes da deita à lareira. Mas na aldeia, nesta aldeia, mais uma
iguaria é comum, apesar de absolutamente desconhecida fora dela. Mesa de
Natal sem o “sangue do bicho”, não é mesa. Com ele faz-se um excelente
empadão que se acompanha com boa broa de milho amarelo e um Vinhão que
vem lá dos lados dos Arcos.
***
A agitação é sempre comum quando chega a hora de ir ordenhar o
filisteu que é como todos alcunharam, Ygort, demónio-mor do 5º grau da
Legião Cinza, das legiões Infernais. Para este dignatário, o Natal, é sempre o
pior dia do ano.
***
- Anda António. Está na hora de ir mugir o bixo. – disse Carlos para o
cunhado.
- Já bou. - Raio de home que não tem trambelho - Tem calma home que
o bixo não fuge.
- Pois não fuge, mas sem o sangue não fazes o empadão e o ano não
será bô. Serão pragas atrás de pragas. Parece que já te não lembras como era
dantes de o apanhar.
- Lembro sim e ainda hoje dou graças ao Senhor por no-lo ter dado. Mas
a pressa não nos leva a lado algum. Tem calma que já lá o vamos mugir.
***
Desde que o tinham capturado que Ygort andava a magicar como havia
de se livrar daqueles malditos humanos. Uma coisa era certa, nunca mais
entraria em apostas estúpidas como a que o tinha levado ao cativeiro: encher
um frasquinho de água benta na pia baptismal da Igreja da Paróquia. Ao
princípio tudo parecia estar a correr de feição, até que uma gota do líquido
lhe caiu num dos cascos e ficou logo ali paralisado. Depois uma longa noite
que culminou na sua captura pela manhã, não sem antes estar sujeito a tratos
de polé pelas beatas que foram abrir a Igreja. Nem o abade o conseguiu salvar
às garras daquelas megeras.
Hoje estava preparado para retaliar e se tudo corresse como planeado,
deixá-lo-iam em paz e poderia regressar aos Infernos.
***
- Carlos que raio se passa com o bixo?
- Sei lá António. Mas que não lhe sai sangue das tetas, não sai.
- Estamos desgraçados Carlos.
- Tem calma home que tudo se ajeita. Isto com porrada já esguicha de
novo.
Ygort, ao ouvir a palavra porrada e vendo Carlos a ir buscar o
marmeleiro, de imediato se arrependeu da brilhante ideia que teve.
Ao longe ouviu-se uma voz gritar: - Então o sangue?
Nem teve tempo de ouvir mais nada, tal a paulada que levou nos
cornos.
***
- Hoje ainda está melhor que o costume.
- Eu bem te disse António que não existe mal que uma boa cacetada
não cure.
- Tenho de te dar razão. O maldito bixo bem que estava capaz de nos
estragar o Natal e as colheitas.
***
Ygort, com uma enorme dor de cornos, rogava pragas e prometia que
quando voltasse para junto do seu Senhor Lucifer havia de o convencer a
acabar com aqueles labregos e sobretudo com o Natal.
Ao longe os cânticos, amaciados pelo vinho, não o deixavam esquecer a
noite em que se encontrava.
[MARCELINA LEANDRO] - MISSÃO DE COLONIZAÇÃO

7º Ciclo planetário, 3º Planeta do Sistema Uni-Estrelar


Diário de Bordo
Encontramo-nos no sétimo ciclo planetário, desde a nossa chegada ao
terceiro planeta do sistema Uni-Estrelar número 27. Todas as directivas que
trouxemos na missão de colonização foram cumpridas e terminadas. Deixo
aqui o relato dos últimos preparativos antes do lançamento da nave que
levará no seu interior a cápsula com o diário de bordo da missão.
Tal como pretendido, durante a missão, foram espalhados os diferentes
elementos biológicos nos vários ambientes existentes no planeta, foi feito o
levantamento dos minerais existentes e as amostras seguem correctamente
embaladas na nave. O planeta encontra-se povoado a cerca de 97,4% com os
elementos naturais transportados na nossa nave.
O Imediato Eva preparou a capsula segundo os manuscritos,
programando o Auto piloto com a rota de retorno de onde partimos – Olimpos.
Dentro de momentos, despedir-nos-emos do último elemento que nos liga à
nossa civilização. Nestes últimos instantes não conseguimos deixar de pensar
no que o futuro reserva a esta nova civilização, de como esta colonização se
desenrolará, do que se saberá daqui a centenas de ciclos estrelares. Se
seremos reconhecidos como Pais desta civilização, se se comemorará a
chegada a este planeta inóspito. Se o progresso e o conhecimento que
trazemos trarão uma melhoria civilizacional a este mundo que está prestes a
nascer, sem memórias nem falhas.
Eu e o imediato Eva formaremos doravante a civilização que nascerá
neste planeta. Faremos hoje uma celebração que pretendemos se torne
regular em cada ciclo estrelar. Comeremos apenas o que os elementos
naturais produziram desde que os plantamos para comemorar este início,
alguns tubérculos já se encontram com tamanho suficiente e talvez um belo
Gadus. Sem os nossos equipamentos que irão de volta na nave, aqueceremos
os alimentos em água, com a ignição de fogo manual.
O nome ideal para a nossa celebração será nātālis, vulgarmente
traduzido por nascer.
O imediato Eva sugeriu um nome peculiar para o planeta, a que eu
acedi prontamente: Terra.
Comandante Adão
[NUNO ALMEIDA] - NOITE DE SURPRESAS

João esperava impaciente pela chegada do velho. Sustinha a respiração,


atento ao mais pequeno ruído que denunciasse a sua vinda, mas atrás do sofá
onde se tinha escondido, apenas conseguia ouvir o lento crepitar das últimas
brasas na lareira e o silvo agudo do vento que corria do lado de fora das
janelas.
- Talvez ele não venha - sussurrou-lhe a irmãzinha, aconchegada ao seu lado.
- Não sejas parva! Claro que vem.
Ele espreitou pelo vidro baço e contemplou o céu azulado onde milhares de
pontos luminosos piscavam alegremente, mas nada mais se via. Nem pássaros,
nem aviões, nem trenós voadores.
- Tem de vir...
Era mais uma prece que uma crença. Pousou o olhar no prato ao seu lado,
onde as bolachas de chocolate haviam sido cuidadosamente dispostas até
formarem um pequeno monte uniforme, e sentiu o estômago roncar.
- Estás bem?
- Claro que sim! - ele virou rapidamente a cara para que ela não pudesse ver
as lágrimas que ali se formavam - Porque é que não havia de estar?
As últimas brasas morreram e toda a sala ficou imersa numa escuridão quase
total, apenas atenuada pelo luar pálido que entrava pela janela e pelas
dezenas de luzes que piscavam em todos os tons do arco-íris na grande árvore
de Natal. O único som a quebrar o silêncio foi o roncar do seu estômago vazio.
- Se calhar tens razão... - admitiu finalmente.
Esticou as pernas dormentes e começou a cambalear em direção ao quarto
frio e deserto que partilhava com a irmã quando ouviu o mais leve raspar de
botas no telhado.
- Será...? - perguntou a pequena.
Algo volumoso a descer pela chaminé, aterrando com botas pesadas sobre o
carvão ainda morno.
- É! - gritou o João em resposta com um sorriso rasgado nos lábios, ainda
antes da grande figura vermelha e branca surgir por entre a nuvem de fuligem
levantada pela aterragem.
- Ho-ho-ho! - troou uma voz grave mas acolhedora - Feliz Natal!
João correu em direção ao velho com o prato de bolachas bem erguido à sua
frente, quase tropeçando nos próprios pés na ânsia de cumprimentar o
visitante.
- São para mim? - perguntou o velho, surpreendido.
João acenou vigorosamente com a cabeça.
- Parece que temos aqui um bom rapazinho - elogiou o homem entre
dentadas, despenteando carinhosamente os cabelos rebeldes do rapaz -
Deixa-me ver o que tenho aqui para ti.
Levou uma mão enluvada ao grande saco vermelho que carregava às costas,
mas o presente que procurava teimava em fugir-lhe. As mãos pareciam
pesadas e desajeitadas. Subitamente sentia-se bastante cansado. Uma dor
aguda pareceu espetar-lhe o estômago e a sua visão começava a enevoar-se.
- O que é que se passa...?
Olhou para o rapaz e percebeu que também ele mudava. A pele tornava-se
esverdeada e rígida como couro, os dedos cresciam até lembrarem longas
lanças encimadas por unhas afiadas e os pequenos olhos castanhos tornavam-
se grandes e amarelos. Malévolos.
O duende saltou sobre ele, derrubando-o com a força do impacto. O velho
tentou defender-se, protegendo a cara com os braços carnudos, mas o duende
afastou-os com facilidade, detentor de uma força inesperada para um corpo
tão pequeno e esguio. Durante todo o tempo a sua irmã observava, ainda
demasiado jovem para participar na luta, esperando ansiosamente pela
refeição. O duende cortou o ar com a mão, as garras afiadas como facas
apontadas à garganta mole do velho, e este soube que o seu fim chegara
finalmente.
Uma pancada seca e o duende tombou, inerte, no chão. Outra pancada, e a
sua irmã caiu também.
- Está bem, Pai Natal? - perguntou o pequeno elfo, largando a frigideira e
ajudando o mestre a levantar-se - Por pouco não chegava a tempo.
- Maldito duende - resmungou o velho, massajando a cabeça magoada - Cada
ano estão mais atrevidos.
- O que fazemos com eles?
O homem pensou durante um momento.
- Mete-os no saco - decidiu por fim, um sorriso maroto a surgir por entre a
barba hirsuta - Foram meninos muito maus este ano, acho que precisam de
uma lição.
[RICARDO DIAS] - OS TRÊS FANTASMAS

Ebenezer Scrooge festejava o Natal em casa do seu sobrinho. O velho, que


apenas dias antes fora a personificação da avareza e do azedume, estava
totalmente transformado. Transbordando alegria e bonomia, era agora o
mostruário vivo das melhores qualidades que compunham o espírito natalício –
generosidade, compaixão, amor pelo próximo.
A partir do éter entre as realidades, três figuras espectrais observavam-no,
enquanto ele abraçava os seus parentes.
– Meus irmãos, parece-me que a missão foi um sucesso – declarou o Fantasma
do Natal Passado, enquanto os seus contornos se esbatiam e assumia a sua
verdadeira forma.
– Diria que sim – respondeu o Fantasma do Natal Presente, enquanto se
convertia ao seu verdadeiro aspecto – Mas será que se vai manter desta
maneira?
– Nada é certo… – interpôs o Fantasma do Natal Futuro, transfigurando-se –
Até há pouco, tudo indicava que o futuro do avarento Scrooge ia ser um poço
de miséria. Agora, aparentemente irá ser muito mais brilhante. Há esperança.
– Só o tempo dirá, é verdade. Mas sinto-me satisfeito, de qualquer modo –
disse o primeiro – E este indivíduo realmente precisava da nossa intervenção.
– De facto – concordou o segundo – Quando o Jacob Marley intercedeu por
Scrooge junto de nós, achei que ele estava a exagerar.
– Não estava. A alma de Scrooge estava demasiado carregada de escuridão
para ele se salvar sem ajuda. O que o tornou o objecto perfeito para a nossa
intervenção – confirmou o terceiro espírito – Aliás, foi preciso que
interviéssemos os três, quando normalmente um de nós basta. E atrevo-me a
dizer que o teatro todo que o Marley fez a passar-se por alma condenada foi
muito importante para levarmos a bom termo a nossa missão…
– Sim, de facto… Há anos que andamos nisto… Todos os anos, a produzir
milagres de Natal, sozinhos ou em grupo.
– Muitos anos… Desde quando?
– Desde o princípio, irmãos. Estávamos lá quando tudo começou. Não me
digam que se esqueceram.
– Foi um início modesto – lembrou Gaspar.
– Mas um início para recordar – disse Baltazar – E para perpetuar. É por isso
que é tão importante que continuemos. Seja com o nosso próprio rosto ou
com outras faces.
– E continuaremos – concordou Belchior – Celebrámos o Natal enquanto éramos
vivos, continuámos a fazê-lo mesmo quando deixámos de viver… E nunca
deixaremos de o fazer. É o nosso destino. Levaremos sempre a essência de
Natal a quem mais precisar, sempre.
E os fantasmas dos Reis Magos desvaneceram-se, satisfeitos com o que
conseguiram nesse Natal, mas com a certeza que o seu trabalho nunca estaria
terminado.
[RUI BASTOS] - JULGAMENTO DE NATAL

Tinha capturado o Pai Natal. Após anos e anos de planeamento e


coordenação a nível mundial, nada podia tirar essa satisfação a Luís Sousa, o
director de operações. Tinha sido preciso recorrer a gaiolas quânticas do fluxo
temporal, e sacrificar a vida de meia dúzia de inocentes e outros tantos
agentes, mas tinha conseguido.
E agora ia finalmente assistir ao julgamento do velho de barbas
brancas.
Luís sabia que poucas coisas no seu futuro lhe poderiam agradar mais
do que aqueles momentos. Quase que lhes conseguia sentir o doce sabor a
vingança.
«Silêncio no tribunal!» gritou a voz do juiz, amplificada até encher por
completo o auditório cheio de pessoas, e se sobrepor ao imenso burburinho.
Milhares de bocas calaram-se em simultâneo, todos os olhos dirigidos de
imediato para os grandes ecrãs que projectavam a imagem do juiz em ultra-
definição. O resto do mundo, em casa ou reunido na rua, assistia expectante.
Da primeira fila, Luís conseguia ver a forma como os nanorobôs da
cadeira do arguido, borbulhavam à espera de entrar em acção.
«Tragam o arguido!» gritou novamente o juiz. Ansioso, Luís mal se
conseguia mexer. Ergueu os olhos muito lentamente até à cara do juiz de voz
artificialmente portentosa. A vontade de Luís era saltar para o palco e tomar
o seu lugar, julgar o velho por todos aqueles anos a desprezá-lo, por todos os
pedaços de carvão que recebeu na sua meia, por...
Passos. Pesados, arrastados. Um leve tilintar. Um zumbido. Luís virou a
cabeça ao mesmo tempo que finalmente se fez silêncio. De cabeça baixa e
rodeado de uma rede electromagnética, o Pai Natal acabara de entrar na sala,
seguido por dois guardas, que o dirigiam com impulsos dos seus bastões
sónicos.
A roupa vermelha, o largo cinto negro, a barba branca como a neve e o
aspecto rechonchudo eram inconfundíveis, apesar da tristeza e solenidade
que pareciam afligi-lo. Luís estava a viver o melhor momento da sua vida.
Sem que fossem precisas mais ordens, os guardas aproximaram o Pai
Natal da cadeira e desligaram a rede que o prendia, depois de lhe apontarem
os bastões à cabeça. Obrigaram-no a sentar e esperaram que os nanorobôs o
prendessem completamente, antes de saírem do palco. As luzes e as câmaras
concentraram-se todas de imediato naquela cara bonacheirona, sem que o
velho desse o mais leve sinal de vida.
O resto do julgamento foi como um sonho. O tempo passou demasiado
depressa. Ali estava o Pai Natal, humilhado, finalmente enfrentado com os
séculos de discriminação atroz que tinha cometido. Num mundo em que a
discriminação racial e sexual demorara tanto a abolir, o velho atrevia-se a
manter a sua instituição de discriminação comportamental. Quem era ele
para decidir quem se portava bem e quem se portava mal? Quem era ele para
decidir que uma criança que não se porte bem não recebe prenda? Pior só
quando lhes deixa carvão, humilhando-os, como tinha feito a Luís durante a
maior parte da sua infância... Mas isso acabava ali!
O resultado foi o esperado. O Pai Natal foi declarado culpado e
sentenciado a prisão perpétua, ao som dos urros triunfantes de uma plateia
semi-enlouquecida. Finalmente um futuro melhor para os seus filhos e para os
seus netos!
Finalmente, Luís tinha-se vingado.
Quando o foi visitar à cadeia, sabia que era apenas uma demonstração
de poder, uma hipótese demasiado apetecível de humilhação. Mas não
hesitou. Encontrou-o cabisbaixo num canto da sua cela, e ainda sem dizer
uma única palavra.
«Então,» começou Luís, orgulhoso, satisfeito, feliz, «estás a gostar?»
O ar miserável do homem dos presentes era fantástico. Aquele estava
sem dúvida a ser o melhor Natal da vida de Luís, e a visão à sua frente a
melhor prenda, sem sombra de dúvida.
«Ainda bem que gostaste!» exclamou o Pai Natal, que ergueu
rapidamente a cabeça, exibindo um sorriso enorme. «Feliz Natal, Luís!»
[RUI RAMOS] - CONTO DE NATAL

- Tens a certeza que queres prosseguir com o plano?

- Sabes que não há escolha. Este momento foi projectado há muito. Chegou a
hora de o concretizar.

- Mas sabes o que te espera? Vai ser muito duro, não poderemos proteger-te.

- Não te preocupes, meu amigo. Estou preparado.

- Revolta-me saber que tudo será em vão. A mensagem irá ser adulterada,
desprezada e, por fim, esquecida. O nosso sacrifício será inútil.

- Enganaste. Apesar de todas as más interpretações e deturpações, as


sementes encontrarão solo fértil.

- Gostava partilhar do teu optimismo.

- Devias ser mais confiante. Sabes que este universo foi criado com defeito, é
como um disco riscado, condenado a repetir sempre o mesmo trecho da
música, num ciclo interminável. As nossas visitas são um empurrãozinho para
que consigam avançar para a faixa seguinte.

- Então porque é que repetem os mesmos erros, vezes sem conta?

- Porque o disco é de fraca qualidade, está todo riscado, logo, são precisos
muitos empurrões para chegarem ao final.

- Se fosse a ti poupava-nos ao trabalho, destruía este “disco” e esquecia que


alguma vez existiu.

- Qual seria a piada disso? E além do mais, há sempre alguém que merece ser
salvo. No meio do caos, alguns conseguirão quebrar os grilhões deste mundo e
inspirar os outros à liberdade. São necessárias muita paciência e persistência
para ensinar aos que ficaram por cá aprisionados, o caminho da Salvação.

- Ah, pensei que era por seres masoquista que insistias em regressar.

- Ah! Ah! Ah! Rio-me com prazer da tua frontalidade.

- Ainda bem que alguém consegue achar graça a esta situação.

- Desculpem interromper, acabei de ser informado que as nossas forças


conseguiram abrir uma passagem nas fileiras dos arcontes.

- Óptimo! Avancemos sem mais demora.

Uma estrela surgiu no céu, brilhante como nunca vira na sua vida. Apressado,
o velho sábio consultou os seus papiros e cartas celestes, mas nenhuma dava
conta daquele novo astro irradiante. Seria possível? A estrela da profecia?

- Criado! Vai chamar-me os mestres Baltazar e Melchior, eles que se reúnam


comigo na torre de observação ocidental.

- Sim, meu amo!

- Não tens vergonha na cara! Como te atreves a invadir de novo o meu reino?
Quantas vezes terei que te escorraçar, até que aprendas a lição?

- Sempre mal disposto.

- Claro, sempre que vens, causas a maior das confusões e acabas por me
roubar umas tantas almas.
- Vá Lu, não sejas desmancha-prazeres. Vais dizer-me que estás com medo de
perder contra mim, ainda por cima, jogando em casa?

- Conheço bem de mais as tuas manhas para me deixar levar pela tua conversa
mole.

- Fazemos assim, deixas-me passar sem mais contendas entre as nossas forças
e prometo que desta vez me deixo capturar, torturar e matar. Até te deixo
escolher o método de execução.

- Olha que depois da última, não te vou facilitar a vida.

- Fica descansado, deixo à tua imaginação. Faz de mim o que quiseres, desde
que me deixes nascer mais uma vez no teu mundo. Temos negócio?

- Sim, negócio fechado.

- Aos teus pés, nos prostramos, Menino Deus, Salvador do Universo. Trazemos-
te um presente que foi confiado à guarda da nossa Ordem.

- O Golem Divino – o Homúnculo de ouro, incenso e mirra, criado no início dos


tempos para transmitir os conhecimentos necessários a cada nova encarnação
vossa, para que possais cumprir o vosso destino neste mundo.

- Guardai-o longe dos olhares indiscretos, e acima de tudo, dos nossos


inimigos, pois o conhecimento que contém não pode cair nas suas mãos.

- No Egipto encontrareis refúgio e a entrada para o Templo da Sabedoria. Este


Golem será o vosso guia e mentor pelos Labirintos tenebrosos deste Mundo,
confiai e tende fé.
E assim começou uma nova Era, um novo salto em frente num disco que ainda
tem muitos riscos para vencer antes de chegar ao final.
[SAMIR KARIMO] - SANTA CLAUS SIDERAL Y LA GOTA DE ORO NAVIDEÑA

Santa Claus estaba pilotando su nave Laponius cuando le avisan que estaban
acercándose al arbolado Planeta NAVIDATE.
Poco tiempo después, él y sus compañeros bajan del buque flotante y ven una
torre igual a la que los indios veneraban. Ésta tenía una sustancia amarillenta
– era ácido aguafiestero sulfúrico.
Tras un momento de estupefacción donde la admiraban, se espabilaron y
vieron dicha pócima descomponiendo los espíritus navideños humanos. Pero
uno de ellos estaba bien vivo y le dijo a Santa: ¡Buscad la gota de oro
navideña!
Entonces Claus se acordó de esta leyenda que su padre, Jasón, le había
contado y así fue a por ella.
Por el camino se enfrentó a un monstruo con cabeza de murciélago y torso de
serpiente, a unas aladas sirenas vampiras cuyos besos eran mortales y sus
miradas letales.
Sin embargo en el planeta Nochebuena encontró a Sinbad Nadal, el
astromarino contador de historias, que le indicó el camino hacia el
Archipiélago orbital de las Reinas Mágicas, primas de los Reyes Magos.
En cuanto llegó, habló con Nadia, Hubb y Amnd. Estas tres magas conocían el
secreto necesario para hacer la Gota de Oro Navideña.
Nadia tenía un bote de Esperanza, Hubb un tarro de Amor y Amn una caja de
Seguridad.
Las tres echaron estos ingredientes en una marmita, los mezclaron bien e
hicieron un embrujo. De pronto tenían en sus manos la gota de oro navideña.
Se la dieron a Santa Claus. Éste y sus amigos gnomos se marcharon de este
planeta. Llegaron al NAVIDATE donde vertieron ese líquido exquisito y así el
espíritu navideño volvió a ser lo que era, acabando con la maldición del Brujo
Antinoeleskko.
[VITOR FRAZÃO] - O ÚLTIMO NATAL

“...ainda não encontrou os responsáveis pelo furto. Segundo nos foi


possível apurar, este é apenas a terceira invasão comprovada de uma área
protegida, desde a entrada em vigor do Acordo Internacional de Segregação
Ambiental. Aprovado em 2249, o Acordo…”
Um rápido movimento do indicador silenciou o locutor e desactivou o
rádio, devolvendo-lhe a melodia monótona da rua.
Lentamente, Mr. Clay forçou as articulações desgastadas para tocar na
relva do jardim do Hospital Central. Plástico. Apenas plástico. Um nobre
esforço para manter a ilusão que a Terra não se tornara um planeta artificial,
povoado apenas por escassos, isolados e fortemente protegidos fiapos de
natureza.
A verdade não o surpreendia, mas entristecia. Ao contrário das últimas
gerações, o magnata centenário lembrava-se como era tocar em verdadeiras
plantas e animais, não patéticas imitações. Tais memórias tornavam aquilo
que os mercenários roubaram da 53ª Reserva Natural ainda mais valioso.

Os esterilizados e minimalistas corredores brancos do hospital tinham


sido animados com hologramas de decorações natalícias.
“Mais uma ilusão” pensou, ao entrar no quarto estéril. A insurreição
contra as mentiras institucionalizadas rapidamente foi abafada perante a
visão da cama-casulo.
A enfermeira cumprimentou-o, simpática e prestável, enquanto iniciava
o protocolo de abertura do casulo, mas Mr. Clay mal a ouvia. Para ele, no
quarto apenas existia a esposa. A sua bela, doce, centenária e condenada
mulher, que só podia ver vinte minutos, no máximo trinta, por dia. Nem
mesmo os incríveis avanços da medicina podiam subjugar a Morte, apenas
adiá-la.
Assim que a enfermeira cumpriu o pedido de privacidade, saindo, Clay
desactivou os sensores ambientais da divisão e sentou-se ao lado da esposa.
- Ei, boneca, como é que te sentes hoje? – perguntou suavemente,
agarrando-lhe a mão.
- Mark? Cansada, tão cansada. As drogas já não ajudam como antes…
- Lamento, Elly. – Destroçado, encostou a frágil mão dela ao rosto,
incapaz de imaginar um mundo sem o calor do seu toque. – Eu… O médico diz
que…
- Eu sei, querido, eu sei. Não te preocupes. Ei, ei, então? Não chores.
Foram bons anos, não vamos gastar o que resta com lágrimas.
- Tens razão. Desculpa.
- Sempre, tolinho. As luzes… Já é Natal?
- Sim, Véspera. Os miúdos devem vir amanhã, mas quero dar-te a
prenda hoje.
- Seu malandro, é algo que os miúdos não possam ver?
Clay não conseguiu evitar rir perante o sorriso travesso da mulher.
Ninguém lhe arrancava uma gargalhada como ela.
Nenhum deles verbalizou aquilo que ambos sabiam. Seria o último Natal
juntos. Ao fim de quase cem anos, o peso dessa realidade era monstruoso.
- Lembras-te do nosso primeiro beijo, boneca?
- Como podia esquecer? Debaixo do azevinho, na Festa de Natal da
empresa.
- Estava tão nervoso…
- Eu sei. Eras adorável, meu tolinho.
- Que me dizes a um passeio pela Avenida das Memórias? – sugeriu,
tirando do bolso do casaco uma pequena caixa hermeticamente selada.
Na trémula mão não tardou a surgir um pequeno e delicado ramo de
azevinho.
- Mark, o que foste fazer? Se as Forças de Defesa Ambiental
descobrem…
- Com o castigo posso viver, mas não com a culpa de negar-te a
despedida que mereces.
- Oh, Mark…
- Elly, não posso devolver-te tudo o que me deste, pelo menos deixa-
me...
A frágil mão da esposa acariciou a sua. As palavras tornaram-se
desnecessárias. Por preocupada que estivesse com a consequência da pequena
loucura, Mrs. Clay não conseguia resistir a comemorarem o último Natal,
juntos, como o primeiro.
O mundo tornara-se irreconhecível, mas o calor nos lábios do casal era
o mesmo desse longínquo Natal em que deram o coração um ao outro, debaixo
do azevinho.

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