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“Cigarro de papel apagado nos lábios, ele olha as duas canoas em frente da
casa. Alpargatas, calça rota já sem cor, agasalho velho e gorro alaranjado, ele
caminha sem pressa na linha da maré. Tem o rosto marcado pelo vento, pelo
sal, pelo sol, pelo tempo e acostumado com poucas e pequenas emoções. Não
parece incomodado com a chuva fina e insistente que disfarça o contorno da
serra do mar, em frente à sua casa, nesta manhã na baía dos Pinheiros.
Sua casa é simples como ele. Não tem porta nem janela, o chão é de terra
batida. Só um cômodo com meia dúzia de bancos toscos e baixos, meia dúzia
de pratos, facas, garfos e colheres. Uma cartucheira e uma balança. Dispensa
pequena e a cama: um estrado levantado do chão e coberto por uma esteira
encostada no fundo. O fogão são três pedras sobre o chão. Isso, no pé do morro
do rio Real ainda coberto pela mata original da ilha de Superagui.
(...)
A relação com este grupo, que se tinha articulado na luta da Juréia, havia
contribuído de fato para que os direitos dos posseiros seculares do lagamar não
fossem expulsos da terra. O único trecho do litoral brasileiro ainda não
devassado pela BR-101, graças à ação deste grupo. Era uma alternativa - achei
que valeria a pena me inserir num movimento que levantava uma bandeira para
uma causa legítima, e comum. Teoricamente, por um ideal comum e nada mais.
Não era meu objetivo vir a ser presidente da Fundação. Fui pego de surpresa
pela inesperada eleição do Fábio como deputado federal e a decisão Roberto
Klabin de assumir o comando do Instituto Florestal. Sobrou para mim. O
capital que tínhamos conquistado com todas as bandeiras levantadas e com os
consequentes 40 mil votos para o Fábio, sintetizando a vitória deste grupo, não
poderiam ser jogados fora, na lata de lixo.
E eu, na figura do seu Acyr, - um dos caiçaras que conheci criança e que
continua vivo e meu amigo, com quase 90 anos de idade na sua baía dos
Pinheiros, - mative-me solidário com a cultura que vi ser destruída a partir dos
anos 70. Uma solidariedade e fascínio, talvez procura insana, que se estende ao
amanhã de todas as comunidades que de certa forma vivem fora da História. E
que por isso são mais puras e autênticas do que nós – seres urbanos desligados
do movimento da lua, das marés, dos ventos... da Terra, a nossa casa.
“Amanhã, visita ao cerco. Vem o gaivota. Vai dá pouco, tempo ruim e fora da
época. Arrastão na baía. Barco já tenho, só falta a rede. Mas é cara e proibido.
Não deixa, criar. Mas dá camarão e o preço é bom. É por isso. Ninguém
respeita. Todo mundo pesca de tudo quanto é jeito. Arrasta tudo quanto é tipo
de rede. Se prejudica, o peixe vem rareando. Isso era coisa de louco, há uns 20
anos. Pode voltar. É só deixar...O tempo vai melhorar, a lua entrou sem chuva.
O vento tá virando. Vai dar para montar o cerco novo, no rio. Queria oito. A
família tá grande. Disnei, Maurício, a Dina, moça trabalhadora... Tem aquela
terra em Paranaguá. Beira d'água, uns 30 alqueires. Dava pra pôr uns bois,
muita galinha, plantar. E tem a pesca. Preço bom. Preciso duma reserva.
Amanhã ”
E termino aqui a minha história (versão) até agora com a SOS, com os sonhos
do seu Acyr por um amanhã melhor, no início da luta por sua terra, em 1983 –
uma das bandeiras vitoriosas da Fundação SOS Mata Atlântica.