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Publicado em Antonio F. Mitre (org.), Ensaios de Teoria e Filosofia Política em Homenagem ao Prof.

Carlos Eduardo Baesse de Souza, pp. 48-83. Belo Horizonte: DCP-UFMG, 1994.

KANT, BURKE E OS “EFEITOS PERVERSOS”:


considerações sobre o papel da tradição no argumento racionalista1

Bruno Pinheiro W. Reis

"O que por razões racionais vale para a teoria,


vale também para a prática."
Immanuel Kant (1793)2

A procura da determinação das repercussões sociais não intencionais das ações


humanas intencionais desde sempre tem constituído, deliberadamente ou não, um dos
principais focos da atividade das ciências sociais teóricas. E desde a publicação do livro de
Raymond Boudon, Efeitos Perversos e Ordem Social, em 1977, vem se tornando
corriqueira na literatura a denominação sintética de "efeitos perversos" para designar o
fenômeno. Infelizmente, talvez este seja o pior nome disponível, pois traz consigo um
juízo de valor ("perversos") que nem sempre se justifica.3 Com efeito, o principal desafio

1
O argumento deste trabalho foi concebido em julho de 1989 para uma apresentação oral no curso de
"Teoria Política I" no Iuperj, lecionado pelo Prof. Luiz Eduardo Soares. Tendo na ocasião iniciado sua
redação, o trabalho ficou inacabado por quase cinco anos, por diversos motivos, tendo sido completado
apenas entre maio e junho de 1994. Devo reconhecer, de partida, que muito de seus eventuais méritos -
se existirem - se deverão à excelente qualidade do curso preparado pelo Prof. Luiz Eduardo, ainda que
nossas opiniões possam eventualmente divergir em alguns pontos. Quero deixar registrada também
minha gratidão aos Profs. Carlos Roberto Drawin e Ricardo Valério Fenati, do Departamento de
Filosofia da UFMG, pois foi através deles que travei meus primeiros contatos com a filosofia, em cursos
que - eu não hesitaria em afirmar - produziram conseqüências extremamente importantes em meus
estudos posteriores. Ao Prof. Fábio Wanderley Reis, finalmente, eu devo, no que tange apenas a este
trabalho, a sugestão do texto de Popper, "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", principal fonte de
inspiração do trabalho, e no qual se estrutura praticamente completo o argumento aqui apresentado.
2
Kant, "Sobre a Expressão Corrente: Isto Pode Ser Correcto na Teoria, mas Nada Vale na Prática", p.
102.
3
Quero avisar o leitor de que ao longo de todo o presente trabalho usarei de modo praticamente
intercambiável as expressões "conseqüências não intencionais da ação intencional", "efeitos perversos",
"efeitos de composição" e "estruturas de contrafinalidade", entre outras semelhantes. Para uma
introdução ao tema, incluindo ilustrações de sua apropriação por autores clássicos, cf. Boudon, Efeitos
2

que a consideração dos efeitos perversos coloca à reflexão sobre assuntos humanos é o
reconhecimento do fato de que ações intencionais individuais, quando agregadas, podem
trazer conseqüências que - "perversas" ou não - não estavam entre os objetivos de nenhum
dos agentes considerados individualmente. Naturalmente, a constatação dessa
possibilidade produz conseqüências de importância incontestável para a filosofia social.
Mas por que Kant e Burke?
No que diz respeito a Kant, o primeiro contato com alguns de seus principais
textos políticos sugere ao leitor a idéia de que faltaria ao pensamento kantiano uma
intermediação "sociológica" entre os níveis individual e universal de sua análise. Segundo
este ponto de vista, Kant teria cometido o pecado de "saltar" imediatamente de uma
definição a priori de ação moral - qual seja, toda ação que obedecesse ao imperativo
categórico segundo o qual se deve agir de forma tal que se possa desejar que a máxima
que orientou a ação em questão possa ser convertida, pela vontade daquele que age, em
lei universal - para a postulação da desejabilidade de sua universalização, num "Reino dos
Fins" imaginário.4 Este salto teria sido necessário para uma definição a priori (não
heterônoma, isto é, não submetida a considerações empíricas) da moralidade, mas o preço
que se pagaria por ele seria a desconsideração, quando da agregação na sociedade das
diversas ações morais, da possibilidade de efeitos de composição perversos.
Acredito, porém, que a afirmação pura e simples de que Kant desconsidera a
existência de efeitos perversos merece ser qualificada, e pretendo fazê-lo adiante. Não
obstante, penso ser basicamente correta a afirmação de que está suposta na filosofia
kantiana da moral uma infinita transparência da realidade, que aparentemente torna
impossível - ou pelo menos desprezível - a ocorrência de conseqüências não intencionais
de uma ação intencional, na medida em que supõe possível a cada agente a avaliação
hipotética dos efeitos decorrentes da universalização das máximas que orientam cada ação
que empreende. Sendo assim, os atores dispõem de um critério a priori para avaliar a
moralidade de sua vontade, ou seja, eles sabem se ela pode ou não ser legisladora
universal. De fato, não cabe na metafísica dos costumes kantiana qualquer distinção à la
Weber entre uma ética dos fins últimos e uma ética da responsabilidade, posto o evidente
caráter empírico (portanto, heterônomo) da ética da responsabilidade.5
Acusação contrária (e, igualmente, apenas em parte procedente), vemos
usualmente ser feita a Edmund Burke. Apontado, inclusive por si próprio, como
tradicionalista e anti-racionalista, graças a seu irado ataque à Revolução Francesa e aos
"filósofos de Paris" escrito no calor dos acontecimentos (em 1790), Burke é usualmente
Perversos e Ordem Social, esp. caps. 1 e 2.
4
Para um enunciado do imperativo categórico e do "Reino dos Fins" pelo próprio Kant, pode-se recorrer
à sua "Fundamentação da Metafísica dos Costumes", 2ª seção ("Transição da filosofia moral popular
para a metafísica dos costumes"), esp. pp. 119-44.
5
Cf. Max Weber, "A Política como Vocação", pp. 142-8.
3

descrito como um ideólogo ultraconservador e irracionalista, que aderia


incondicionalmente às tradições e preconceitos, em oposição permanente aos "artifícios"
da razão.
Chama a atenção, contudo, uma série de semelhanças observáveis entre opiniões
de Kant, de um lado, e de Burke, de outro. Afinal de contas, Kant insiste na necessidade
da obediência à autoridade, apesar do direito à crítica (uso privado e uso público da
razão); duvida da eficácia transformadora de empreendimentos revolucionários em
contraste com mudanças paulatinas que vão tendo lugar permanentemente; e apresenta um
critério enormemente excludente para definir a autonomia de um indivíduo, que lhe
permita participar das decisões políticas.6 São opiniões que à primeira vista mais parecem
vir de um tradicionalista conservador como Burke do que da lavra de um dos maiores
expoentes do iluminismo, como Kant. O objetivo deste trabalho é precisamente sugerir
uma solução para este aparente paradoxo. Primeiramente, procurarei mostrar que Kant
não negligenciou totalmente os efeitos perversos (especialmente em sua filosofia da
história), embora esta constatação não esteja isenta de implicações problemáticas. Em
seguida, procurarei expor o argumento que me parece o mais importante aqui e
demonstrar que Burke não é um irracionalista não sistematizável como parece, mas sim
que ele oferece uma advertência e um desafio aos racionalistas de seu tempo
(especialmente os jacobinos franceses), apontando para uma cisão entre a teoria e a
prática que então o iluminismo tendia a negligenciar e que o racionalismo do século XX
voltou a valorizar, seja através da crescente centralidade da questão dos efeitos perversos
na ciência social contemporânea, seja através da tentativa de se incorporar o elemento
"tradição" à abordagem racionalista da sociedade, a partir do abandono da concepção
positivista de ciência (que toma por meta a descoberta de verdades necessárias).

1. As Cautelas de Kant

A obra de Kant tem como desafio permanente a obra de David Hume, que,
indutivista rigoroso, denunciou a impossibilidade da demonstração empírica de um nexo
causal qualquer entre dois fenômenos, a partir da constatação elementar da
impossibilidade da fundamentação de enunciados universais com base em enunciados
particulares, enunciados particulares estes que constituem todo o manancial de
informações que o homem pode obter da experiência e da observação.7 Este ceticismo

6
Cf. Kant, "Resposta à Pergunta: Que é o Iluminismo?", esp. pp. 13-5 e 18-9; "Metaphysics of Morals",
pp. 139-40; "Sobre a Expressão Corrente: Isto Pode Ser Correcto na Teoria, mas Nada Vale na Prática",
esp. pp. 176-90.
7
A obra fundamental de Hume a respeito é sua "Investigação sobre o Entendimento Humano", de 1748.
4

demolidor de Hume encontra em Kant sua melhor resposta, no âmbito da filosofia


racionalista do século XVIII.
De saída, o simples fato de o próprio Kant ter sido um leitor especialmente atento
e motivado de Hume - tendo dito ter sido por ele despertado de seu "sono dogmático" -
deve nos fazer ser cautelosos nas acusações de negligência no trato com questões
empíricas, tão freqüentemente dirigida a Kant. Admitida a idéia de que a causalidade e a
necessidade não podem ser demonstradas empiricamente, Kant defronta-se no entanto -
especialmente perante o advento da física newtoniana - com a realidade palpável de que a
ciência existe, e postula a tese de que a idéia de conexão necessária é imputada à realidade
pelo sujeito cognoscente juntamente com as noções de espaço e de tempo, como condição
necessária de qualquer forma de organização mental da realidade, ou seja, de
conhecimento. Para Kant, diferentemente de Hume, as verdades não são meramente
verdades de fato, mas verdades de razão: necessidade e universalidade são imposições da
busca do saber.
Toda a obra de Kant será norteada pela busca das respostas a três perguntas
básicas: "O que posso saber?", "O que devo fazer?" e "O que me é permitido esperar?". A
primeira delas busca dar conta precisamente do desafio posto por Hume. As duas últimas
se impõem a partir da percepção da irredutibilidade da razão ao seu aspecto cognitivo
"puro", exclusivamente teórico (em oposição a "prático"), irredutibilidade esta decorrente
da concepção da razão como razão interessada, intimamente ligada à ação humana
prática. A mente humana não é mais, como na tradição empirista britânica esposada por
Hume, uma "folha em branco", passiva, sobre a qual vão se superpondo "impressões"
sucessivas, e que pelo hábito atribui interconexões causais aos fenômenos que comumente
observa se seguirem uns aos outros; ela é uma faculdade humana eminentemente ativa,
voluntariosa (ou seja, provida de vontade), que forja os instrumentos de sua apreensão do
mundo e de sua intervenção nele. A razão não é mais, como era em Hume, a escrava cega
dos sentimentos, que seleciona meios de se cumprirem objetivos cuja determinação é
alheia à sua operação, e que julga uma ação antes por seus efeitos que por seus fins.
Agora ela opera no âmbito do que Kant chama de "mundo inteligível" (oposto ao "mundo
sensível" dos fenômenos empíricos, e a ele ligado exclusivamente pelo sujeito, que
pertence a ambos), sendo capaz de reconhecer e determinar autonomamente seus fins a
priori, na forma de um dever moral, expresso no imperativo categórico.
Já aqui se podem levantar alguns pontos que interessam diretamente aos objetivos
do presente trabalho. De início, deve-se notar que a razão tal como concebida em Kant,
embora capaz de definir a priori seu dever moral remetendo-se unicamente ao mundo
inteligível, e que rechaça expressamente qualquer consideração de inclinação ou interesse
pessoal, não é - a não ser que nos restrinjamos a uma leitura bastante superficial de Kant -
5

uma razão descomprometida com a realidade e que "paira" acima do turbilhão de eventos
da história da humanidade. Ao contrário, ela nasce precisamente como razão interessada
conforme dito acima, engajada, e não mais espectadora supostamente "neutra", que tudo
observa e tudo registra. Um segundo aspecto, mais complexo, envolve a sujeição ao
imperativo categórico e a suposição de "infinita transparência da realidade", mencionada
acima. Se levamos em conta o caráter interessado da razão kantiana acima exposto, torna-
se possível pensar que o que parece uma rejeição (ou pelo menos uma desconsideração)
da possibilidade de efeitos perversos de agregação na definição do critério de moralidade
seja, afinal, mera conseqüência da suposição de absoluta visibilidade dos efeitos de uma
ação no plano ideal da metafísica dos costumes. Neste caso, em vez de se ter uma
desconsideração dos efeitos perversos, o que se teria, ao contrário, seria a suposição ideal
de seu imediato e pleno conhecimento antecipado na esfera do mundo inteligível. Esta
leitura me parece autorizada na medida em que há evidente recurso a mecanismo típico de
efeito perverso na filosofia kantiana da história - conforme veremos abaixo -, não havendo
sentido em supor que Kant simplesmente se "esquecesse" da sua possibilidade em sua
filosofia da moral.
Usualmente se afirma que, se em Hume os atos são julgados pelos seus efeitos, em
Kant eles são julgados pelos seus motivos. O que num certo sentido é correto, sem
dúvida. Mas, se levarmos devidamente em consideração o que foi dito no parágrafo acima,
poderemos concluir que em Kant, embora diferentemente de Hume, a moralidade de uma
ação é também avaliada em função de seus efeitos. Só que o que em Hume era uma
constatação empírica a posteriori, em Kant torna-se uma operação mental a priori que se
processa exclusivamente no âmbito do mundo inteligível, mas na qual um ato é avaliado
tendo-se em vista as conseqüências hipotéticas de sua universalização: a vontade pode
ser boa em si mesma, ou "santa", desde que as conseqüências da transformação de sua
máxima em lei universal possam ser desejáveis. Pois o que é o motivo senão a antecipação
mental do efeito? Esta "pequena" diferença tem contudo enormes implicações, na medida
em que, pelo critério kantiano, existe a possibilidade lógica de que uma ação moral (cuja
máxima se possa querer transformada em lei universal) tenha conseqüências desastrosas,
bastando para isso que sua máxima não seja efetivamente universalizada, a despeito do
fato de que todos possam compreender que, se o fosse, todos sairiam ganhando. Este é
precisamente o caso expresso na literatura contemporânea sobre teoria dos jogos através
do célebre "dilema do prisioneiro".8
Conforme fora dito acima, na introdução ao presente trabalho, não é sem
problemas que se processa a imputação à metafísica dos costumes de Kant da
8
A respeito de teoria dos jogos e do "dilema do prisioneiro", uma rápida exposição pode ser encontrada
em meu trabalho "Reflexões sobre a Epistemologia de Popper e o Individualismo Metodológico", esp.
pp. 28-35.
6

consideração dos efeitos perversos, e as ambigüidades surgidas ao longo do parágrafo


acima bem o expressam. A postulação de plena transparência da realidade no plano do
mundo inteligível não sobrevive incólume quando transportada ao mundo sensível, e este,
a meu ver, é justamente o ponto central da contribuição de Burke, conforme será exposto
na próxima seção.
Mas, antes, resta ver brevemente a filosofia kantiana da história, imprescindível ao
argumento aqui desenvolvido, posto que é nela que Kant recorre claramente a estruturas
de contrafinalidade, e de forma especialmente clara na quarta proposição de "Idéia de uma
História Universal com um Propósito Cosmopolita".
Nesta obra, Kant abraça uma concepção teleológica da natureza como condição
necessária para se evitar o ceticismo, na medida em que ele parece associar a própria idéia
de lei natural a essa doutrina, que está expressa logo na primeira proposição da obra
("Todas as disposições naturais de uma criatura estão determinadas a desenvolver-se
alguma vez de um modo completo e apropriado."). 9 Esta associação entre lei natural e
teleologia da natureza parece dever-se à concepção de ciência então vigente, que definia
lei científica como o enunciado de uma verdade necessária, acerca da qual se pudesse ter
alguma segurança de que estaria imune à possibilidade de posterior refutação pela
experiência - esta era, por exemplo, a atitude predominante na época a respeito da física
newtoniana. Pensar a natureza como teleologicamente determinada seguramente oferece
maior confiança quanto a isto. Além disso, talvez se possam alegar também, quem sabe
com mais força, razões teológicas inevitáveis a uma época anterior a Darwin, e que
associam indissoluvelmente a idéia de lei natural à suposição de uma teleologia da
natureza. Se há Deus, há desígnio, e a disposição das coisas no mundo é a fiel expressão
da vontade de Deus.
Em seguida, ele afirma, na segunda proposição, que "no homem (como única
criatura racional sobre a terra), as disposições naturais que visam o uso da sua razão
devem desenvolver-se integralmente só na espécie, e não no indivíduo". Na justificação
desta proposição, Kant lança mão de um argumento - mais tarde repetido por Burke -
segundo o qual a razão avança gradualmente, através da aprendizagem e do exercício, na
aquisição do conhecimento. "Pelo que cada homem teria que viver um tempo
incomensuravelmente longo para aprender como deveria usar com perfeição todas as suas
disposições naturais", como escreve Kant; donde se infere a necessidade de se recorrer às
gerações anteriores e ao conhecimento por elas acumulado.10 Uma das acusações mais
insistentes que Burke irá dirigir aos revolucionários franceses será precisamente a de que
eles teriam ignorado este princípio, e de fato o fizeram, a partir de uma oposição simplória
entre tradição e razão, conforme veremos abaixo.
9
Kant, "Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita", p. 23.
10
Idem, pp. 23-4.
7

Após discorrer brevemente, na terceira proposição, sobre a economia de recursos


com os quais a natureza dotou o homem, como se quisesse que ele não desfrutasse de
nenhuma facilidade a não ser aquelas que conquistasse para si mesmo pelo uso da própria
razão,11 Kant chega à proposição crucial para os objetivos do presente trabalho, onde faz
uso evidente de efeitos não intencionais de agregação: "O meio de que a natureza se serve
para levar a cabo desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das
mesmas na sociedade, na medida em que este se torna ultimamente causa de uma ordem
legal dessas mesmas disposições."12 É evidente nesta quarta proposição a tese da
contradição como motor do desenvolvimento histórico, inclusive moral, da humanidade.
Hannah Arendt aponta a presença de mecanismos de contrafinalidade também em "A Paz
Perpétua", onde Kant afirma claramente que, em um bom estado, um homem "mau"
também pode ser um bom cidadão ("homem mau" aqui rigorosamente entendido conforme
a filosofia kantiana da moral, isto é, como aquele que não segue o imperativo categórico;
não se trata daquele que quer o mal, mas daquele que se exime da obrigação de agir
conforme máximas que ele queira ver universalizadas).13 Contestando a tese segundo a
qual o estabelecimento de uma constituição republicana requereria um estado habitado por
anjos, Kant afirmará que mesmo "demônios" - desde que racionais - estabelecerão uma
constituição que, mesmo se cada um quiser secretamente eximir-se do dever de segui-la,
será capaz de controlar a todos em suas disposições particulares conflitantes e produzir
um estado de coisas em que a conduta pública de cada um seja a mesma que se observaria
caso todos tivessem a disposição sincera de cumprimento estrito de seus deveres. Sob
uma boa constituição, portanto, produz-se um resultado para a razão que é como se as
tendências egoístas do homem não existissem, "e assim o homem está obrigado a ser um
bom cidadão, embora não esteja obrigado a ser moralmente um homem bom".14
Na quinta proposição, Kant aborda o tema hobbesiano clássico e aponta o
problema da constituição da sociedade civil e conseqüente administração do direito em
geral como o maior problema da humanidade, a qual se vê forçada pela natureza à
disciplina, à coerção etc..15 Na sexta, afirma a impossibilidade concreta da perfeição na
construção da ordem social (expressando uma "cautela cética" da qual tanto Hume quanto
Burke teriam compartilhado), perfeição esta necessariamente condicionada, ainda, à
existência de uma ordem externa legal entre os estados, conforme está expresso na sétima
proposição.16

11
Idem, pp. 24-5.
12
Idem, pp. 25-7.
13
Arendt, Lectures on Kant's Political Philosophy, p. 17.
14
Kant, "A Paz Perpétua", pp. 146-7.
15
Kant, "Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita", pp. 27-8.
16
Idem, pp. 28-33.
8

Na oitava proposição, Kant afirma que se pode considerar "a história humana no
seu conjunto como a execução de um plano oculto da Natureza, a fim de levar a cabo uma
constituição estatal interiormente perfeita e, com este fim, também perfeita externamente,
como o único estado em que aquela pode desenvolver integralmente todas as suas
disposições na humanidade", numa antecipação da "astúcia da razão" hegeliana que
pretende fundamentar o conteúdo da quarta proposição.17 Kant nitidamente compartilha
um ponto de vista mandevilliano, otimista, típico de seu tempo.
Finalmente, na nona e última proposição, Kant aborda o problema - caro a Burke,
à sua maneira - da oposição entre o caráter construtivista da operação racional, por um
lado, e a objetividade factual do conhecimento, por outro. Diz ele: "um ensaio filosófico
que procure elaborar toda a história mundial segundo um plano da Natureza, em vista da
perfeita associação civil no gênero humano, deve considerar-se não só como possível, mas
também como favorável a esse propósito da Natureza".18 Na justificação desta proposição,
a despeito dos aspectos conservadores de seu pensamento (que incluem a valorização das
mudanças graduais em detrimento da ação revolucionária), Kant atribui às revoluções o
papel positivo de avivar o germe de ilustração que resta sempre nos povos, mesmo nas
piores épocas, de modo a preparar sucessivos estádios de melhoramento. 19 Este ponto
seria retomado em "O Conflito das Faculdades" (o último trabalho de Kant publicado
ainda durante sua vida), onde Kant toma a euforia generalizada observada em torno do
advento da Revolução Francesa como evidência eloqüente da existência de um sentimento
moral intrínseco aos homens, os quais aderem a valores independentemente do fato de
serem ou não diretamente afetados pelos desdobramentos da revolução. 20 Convém,
todavia, não hiperdimensionar este "elogio" kantiano às revoluções. Pois ele é claro
quanto a sua crença - tipicamente "liberal" - no efeito poderoso de mudanças paulatinas
que se vão acumulando ao longo da história, e igualmente claro na condenação enfática do
empreendimento revolucionário e no golpeamento violento de constituições existentes.
Não custa lembrar que até mesmo o próprio Burke considerou a Revolução Francesa a
primeira "revolução completa" na história da humanidade, a primeira "revolução
filosófica".21 É claro que afirmações como essas tinham significado e implicações
completamente diferentes para Burke. Mas, se por um lado é verdade que para Kant a
atitude generalizadamente receptiva das pessoas - inclusive do próprio Kant - frente à
Revolução Francesa é um importante indício de que há um progresso moral contínuo na
história da humanidade, por outro lado devemos observar que esta avaliação da
Revolução não constitui, absolutamente, um juízo moral em todas as suas implicações,
17
Idem, pp. 33-5.
18
Idem, p. 35 (com pequeno reparo à tradução).
19
Idem, p. 36.
20
"The Contest of Faculties", pp. 182-3.
21
Cf. Leo Strauss, Natural Right and History, p. 302.
9

mas sobretudo estético. Trata-se de um julgamento que se justifica se efetuado pelos


espectadores do drama, mas injustificável se nos colocamos no papel dos atores. Como o
enuncia Reiner Schürmann, "in judgment we cannot but approve of the storming of the
Bastille, but in moral reasoning, Kant goes on, our disapproval has to be equally
unmitigated". E cita Kant, em seguida: "The people may not pursue its rights by
revolution, which is at all times unjust."22 A constatação do progresso moral contínuo da
raça humana era uma conclusão necessária em Kant, talvez devido à associação que ele
fazia entre lei natural e teleologia da natureza, esta última tomada como caução da
necessidade das leis científicas. Pois este progresso parece ser condição necessária à
possibilidade de uma teleologia na natureza. Entrando francamente no terreno da
especulação, porém, ocorre-me que talvez seja mais plausível supor que a reação das
pessoas aos princípios da Revolução não seja (ou não tenha sido) condicionada
moralmente (a priori), mas historicamente (portanto, heteronomamente, a posteriori), na
medida em que a Revolução Francesa proclamava princípios que eram em grande medida
desdobramentos de teses com larga presença na história intelectual do Ocidente, com as
quais se convivia, portanto, em alguns casos, havia séculos.

2. As Teorias de Burke

Não é difícil identificar a presença de estruturas de contrafinalidade nos textos de


Edmund Burke, particularmente em sua crítica da Revolução Francesa. Muito pelo
contrário, a associação tradicional entre a atenção a conseqüências não intencionais e o
argumento burkeano faz com que talvez o maior desafio para aqueles que dão importância
à consideração do papel dos efeitos perversos na vida social seja demonstrar que não
necessariamente o reconhecimento da presença de efeitos não antecipados nos
desdobramentos de uma ação qualquer têm de nos levar a um conservadorismo extremado
como o de Burke. É claro que esse reconhecimento nos leva, sim, a um certo ceticismo
diante das possibilidades de êxito de reformas sociais revolucionárias. Mais precisamente,
nos levaria a duvidar da possibilidade de qualquer líder político poder realizar mudanças
de grande alcance na sociedade tal como ele as tenha concebido mentalmente. Todavia,
creio que isto não redunda necessariamente na aceitação acrítica das tradições, do que é
dado e existente, e creio mesmo que o próprio Burke, a despeito da forma como ele

22
Schürmann, "Introduction: On Judging and Its Issue", pp. 5-6. Kant também escreveu, com mais
ênfase: "It is certainly agreeable to think up political constitutions which meet the requirements of
reason (particularly in matters of right). But it is foolhardy to put them forward seriously, and
punishable to incite the people to do away with the existing constitution." (Kant, "The Contest of
Faculties", p. 188.)
10

próprio apresenta seu argumento, não estaria pronto a ser um tradicionalista a todo custo,
aderindo incondicionalmente a qualquer tradição ou costume. Pelo contrário, embora seja
evidente que em Burke a tradição possui valor intrínseco, penso ser também válido afirmar
que Burke não estaria disposto a aderir a qualquer tradição, mas sim a algumas tradições
bastante específicas da Europa - e, mais precisamente, da Grã-Bretanha - de seu tempo, 23 e
essa adesão específica só pode estar fundada racionalmente, por meio de argumentos
fundados na razão, mais que na experiência, a despeito do fato de ele gostar de afirmar o
contrário a respeito de suas Reflexões sobre a Revolução em França.24 Em suma, Burke
seria autor de uma concepção sistematizável da política, isto é, de uma teoria política, a
despeito de suas críticas aos teóricos, não podendo, em última análise, ser considerado um
irracionalista.
Nada disso o transforma, é claro, num dogmático iluminista: seus escritos
enunciam com ardor apaixonado teses que vieram a se tornar pilares fundamentais do
pensamento conservador ao longo dos últimos dois séculos. Mas é precisamente este uso
continuado e ubíquo de seus argumentos que acaba por denunciar da maneira mais
flagrante o caráter teórico, universalizável em princípio, destas idéias.
Pelo menos um destacado teórico, Leo Strauss, na parte final de seu clássico
Natural Right and History, aponta decididamente na direção da possibilidade de
sistematização teórica da obra de Burke. Para Strauss, embora Burke não tenha escrito
"um único trabalho teórico sobre os princípios da política [...], ele aderiu ao longo de toda
a sua carreira aos mesmos princípios", que teriam animado tanto sua atuação em favor dos
colonos americanos e dos católicos irlandeses quanto seu ataque à Revolução Francesa.25
Talvez pelo caráter prático de suas preocupações e escritos, Burke não teria hesitado,
segundo Strauss, em inclusive usar a linguagem do direito natural moderno sempre que lhe
pareceu útil. Assim, apesar de sua ênfase declarada na "experiência", Burke teria falado de
"estado de natureza", "direitos naturais" ou "direitos do homem", bem como do "contrato
social" (social compact) e do "caráter artificial da comunidade social", em diversas
passagens de sua obra (embora tenha sublinhado também que a sociedade é um todo
historicamente condicionado, e não uma trading company mantida por contrato). 26 Assim,
Burke entenderá "direitos naturais" como direitos existentes no estado de natureza (por
sua vez entendido como um estado de barbárie original, em que o homem se apresenta em
23
Digo isto por que em algumas passagens Burke parece "se trair" a respeito, como por exemplo em
Reflexões sobre a Revolução em França, p. 112, em que fala especificamente da religião cristã como
"nossa glória e nosso orgulho", e teme "que alguma superstição grosseira, perniciosa e degradante venha
tomar seu lugar".
24
Idem, p. 223, onde ele se refere às suas opiniões sobre os acontecimentos na França como um conselho
"não ao gosto deste século de luzes [...] mas apenas como o fruto tardio e maduro da simples
experiência".
25
Strauss, Natural Right and History, p. 295 (tradução minha).
26
Cf. Isaiah Berlin, "La Contra-Ilustración", pp. 72-3.
11

sua crua natureza, ainda não afetado de maneira alguma por virtudes decorrentes do
processo de civilização dos costumes). Basicamente, os direitos naturais para Burke
consistirão no direito de cada homem à autodefesa ("a primeira lei da natureza") e ao
enunciado e defesa de suas próprias causas ("to assert his own cause"), consubstanciados
no direito à busca da felicidade. Tais direitos só poderão estar efetivamente garantidos no
âmbito da vida civilizada, o que faz Burke concluir que todos os elevados desejos de
nossa natureza apontam para o abandono do estado de natureza rumo à sociedade civil:
"not the 'state of rude nature' but civil society is the true state of nature".27
O propósito da sociedade civil é, portanto, proteger os direitos do homem, e
particularmente, o direito de buscar a felicidade. Mas, prossegue Strauss, a felicidade só
poderá advir da virtude - das restrições, segundo Burke, "impostas pela virtude sobre as
paixões". Donde a sujeição "à razão, ao governo, à lei". Como não há ação isolada,
desprovida de efeitos sobre outros homens, tampouco pode existir ação desprovida de
significado moral. "A vontade do homem deverá sempre estar sob o domínio da razão, da
prudência, da virtude", diz Strauss.28 Logo, raciocinará Burke, o governo fundamenta-se
sobre os deveres (do homem para com o estado ou a sociedade) e não sobre os direitos
("imaginários") do homem.
Creio ser quase desnecessário chamar a atenção do leitor a esta altura para a
proximidade substantiva dessa elaboração da postura de Burke com relação a algumas das
mais relevantes teses kantianas.29 Também quando toma, por exemplo, as regras morais
como limites da liberdade de ação do poder, Burke tem necessariamente de recorrer a
concepções a priori. A despeito das peculiaridades inegáveis do pensamento burkeano,
está claro que ele se inscreve perfeitamente dentro da tradição do pensamento ocidental,
uma tradição racionalista e iluminista. Freqüentemente criticando-a, sim, adotando ênfases
diversas de vários pensadores que lhe eram contemporâneos, sem dúvida, porém sempre,
inequivocamente, dialogando com esta tradição, perfeitamente inserido no leito deste rio,
herdeiro de uma tradição cética que, afinal de contas, acompanha a filosofia ocidental
desde o seu nascedouro helênico.
A distância de Burke em relação aos iluministas típicos do século XVIII começa a
se tornar mais visível em seus passos seguintes. Colidindo frontalmente com a tradição
27
Strauss, Natural Right and History, pp. 296-7. Citação extraída da p. 296.
28
Idem, p. 297 (tradução minha).
29
Bastaria lembrar a passagem (acima referida) de "A Paz Perpétua" destacada por Hannah Arendt, em
que Kant afirma que uma boa ordem jurídica deverá ser capaz de obrigar os cidadãos ao cumprimento
do dever jurídico (embora, naturalmente, por definição não possa obrigá-los ao cumprimento do dever
moral). Além disto, é bastante conhecida a máxima de Kant "raciocinai, mas obedecei", enunciada a
propósito da distinção entre uso privado e uso público da razão em "Resposta à Pergunta: Que É o
Iluminismo?", p. 13. Sobre as relações entre direito e coação em Kant, pode-se recorrer a Norberto
Bobbio, Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant, pp. 74-9 (esp. pp. 75-8), bem como às pp.
147-52 (esp. pp. 151-2), para a sua teoria da obrigação política, aí incluída a necessidade de se
compatibilizar a total liberdade no uso público da razão com a estrita obediência à lei, ainda que injusta.
12

iluminista, para Burke o direito universal à autopreservação e à busca da felicidade não


implicam o direito de escolher os meios para esses fins, ou seja, não implicam o direito
universal à participação política, pois, tendo os homens direito a um bom governo (que
garanta seus direitos "naturais"), isto não significará, segundo Burke, o governo da
maioria, uma vez que não há conexão necessária entre bom governo e soberania popular
universal. Para Burke, portanto, a raiz da legitimidade não é o ato do contrato, ou a
autonomia dos indivíduos contratantes no momento de sua celebração, mas a
comprovação histórica (experimentada) da eficácia de uma ordem por ele instituída.30
E aqui vale a pena observar que - assim como Kant foi por ele fortemente
influenciado - Burke parece compartilhar algumas teses de seu contemporâneo David
Hume, em particular o papel por este atribuído ao "hábito". (Certamente haverá mesmo
quem diga que Burke não passa de um leitor de Hume que aplica suas teses à Revolução
Francesa.) Mais rigorosamente empirista que seus antecessores, Hume rompera com o
esquema conceitual contratualista típico das obras de Hobbes e Locke, preferindo
substituir o recurso a um "estado de natureza" por exercícios contrafactuais. Assim,
considera provável que, em vez de um contrato entre iguais, tenha sido um estado de
guerra que tenha propiciado a oportunidade para que pela primeira vez - inclusive através
da fraude e de roubos - um homem ganhasse ascendência sobre as multidões, assentando-
se portanto o governo não sobre um ato de razão livremente celebrado, mas antes sobre
um juízo de conveniência mais ou menos generalizado - uma "opinião", que em princípio
pode se revelar fugaz. Segundo Hume, o governo, portanto, "dado que se assenta na
opinião, nunca pode subverter outras opiniões que estejam tão profundamente enraizadas
quanto o seu título de domínio".31 Devidamente enraizada, uma opinião pode tornar-se -
ou dar origem a - um hábito, que, dentro do esquema humeano, é o princípio em que se
encontram a razão e a sucessão aleatória dos eventos na história. O hábito funciona,
assim, como uma espécie de "filtro" histórico da razão, desempenhando nos escritos
políticos de Hume um papel similar àquele que desempenha em sua crítica ao princípio da
indução, quando imputamos nexos causais a eventos que nos habituamos a ver
ocorrerem associadamente.32 No hábito fundam-se todas as nossas expectativas do futuro,
e Hume revela assim a precariedade de nossos conhecimentos. O hábito é, de qualquer
maneira, e a despeito das suas precariedades, o fundamento básico da racionalidade. A
aceitação deste esquema conceitual obviamente faz com que políticas reformistas de
"ajuste" sejam em princípio mais aconselháveis que as grandes empreitadas
revolucionárias. E este é, rigorosamente, o argumento de Burke apresentado no parágrafo

30
Idem, pp. 297-9.
31
Hume, "Ensaios Morais, Políticos e Literários", p. 230 ("Da Origem do Governo").
32
Hume, "Investigação sobre o Entendimento Humano", seção VII ("Da Idéia de Conexão Necessária"),
pp. 158-67.
13

acima. A mera existência de uma determinada ordem política, se não a torna


definitivamente inatacável, já constitui de qualquer maneira um argumento em seu favor,
pois ela foi como que "selecionada" pela história, e consagrada pelo hábito das pessoas.
Proclama Burke, orgulhosamente: "Fazemos respeitar nossas instituições civis da mesma
forma que a natureza nos ensina a reverenciar os indivíduos: de acordo com a sua idade e
o exemplo de seus antepassados." E um pouco adiante, falando do preconceito - principal
portador das tradições - como algo bom porque "filtrado" pela história: "Graças ao
preconceito, a virtude se torna hábito [...] e o dever, uma parte de nossa natureza." 33
Preconceitos devem ser prezados, pois - embora as "águas da ciência" devam ser sempre
revolvidas - a prática deve se manter tão próxima quanto possível da tradição e dos
exemplos, uma vez que os costumes, os hábitos, são o maior suporte que têm os
governos, já que o consentimento nunca advém do cálculo ou da ponderação. 34 É
apressado, portanto, ver no pensamento de Burke uma oposição pura e simples entre
preconceito e razão. Há explicitamente uma espécie de "racionalidade do preconceito" que
justifica, racionalmente (ainda que não a priori), a adesão a ele.35
Não por acaso, Leo Strauss chega a apontar em Burke um precursor de idéias de
Hegel, pois também nele o real e o racional se superpõem na história: em Burke por um
processo "funcionalista" de seleção natural, em Hegel como um processo projetado
teleologicamente.36 Para Strauss, a "redescoberta da história" que se atribui a Burke é
fruto, antes de tudo, de sua atenção à distância entre teoria e prática - enunciada de
maneira explícita na frase supracitada em que ele fala na necessidade de se revolverem as
águas da ciência ao passo que se mantenha a prática tão fiel quanto possível à tradição e
aos exemplos. Enquanto a teoria lida com o universal e imutável, e com operações lógicas
reversíveis, a prática tem de se ocupar de fenômenos particulares e necessariamente
mutáveis, e - mais grave - tragicamente irreversíveis. E o grande perigo associado a uma
atitude intelectualista diante do mundo advém do risco de que a preocupação com o
universal e o geral nos torne cegos para com o particular e o único. Mesmo a história,
nesse caso, tem valor bastante limitado como guia eventual de nossa ação prática, pois

33
Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, pp. 70 (com mudanças na tradução) e 108.
34
Strauss, Natural Right and History, p. 310.
35
É interessante notar como a obra de Hume pôde produzir impactos bastante diferentes sobre autores
com outras inclinações, como nos mostra Isaiah Berlin, em "Hume y las Fuentes del Antirracionalismo
Alemán", particularmente no que diz respeito ao teólogo e filósofo prussiano Johann Georg Hamann,
um dos principais porta-vozes da "contra-ilustração" alemã - curiosamente, também natural de
Königsberg, assim como Kant, de quem foi contemporâneo e amigo, e que fez uso diametralmente
oposto da obra de Hume. Há, não obstante, semelhanças de relevo entre teses de Hamann e algumas
afirmações de Burke, assim como é inegável que Burke - com suas "diatribes antiintelectualistas" - tenha
de fato exercido forte influência sobre outros escritores românticos e anti-racionalistas posteriores como
Herder, Jacobi, Möser, Schelling etc., como também nos lembra Berlin, "La Contra-Ilustración", pp. 66-
8.
36
Strauss, Natural Right and History, p. 319.
14

cada circunstância é única por definição. Burke discutia, portanto, menos os princípios em
si do que a sabedoria - a prudência - em sua aplicação. Postulava uma abordagem mais
propriamente "política", contra uma abordagem legalista dos problemas, pelo simples fato
de que a realidade nunca pode ser tão simples quanto a teoria. 37 A melhor constituição,
portanto, não deverá ser produto artificial da atividade consciente de um legislador ou
corpo legislativo. Ao contrário, a boa ordem política tem de se desenvolver e se alicerçar
paulatinamente; tem de ser "resultado não intencional de causação acidental" de ações
dirigidas para os mais variados fins. Burke traz assim para a gênese da boa ordem política
o mesmo tipo de argumento de "mão invisível" que, menos de duas décadas antes, havia
sido formulado pela economia política de Adam Smith para explicar a prosperidade
econômica das nações.38
A ciência de se construir o bem-estar da nação, dirá Burke, requer mais
experiência do que aquela que um indivíduo pode adquirir durante a vida.39 Logo, sendo
resultado da ação da providência, a ordem será infinitamente superior em sabedoria ao
resultado da reflexão. Mas importa ressaltar, com Strauss, que Burke tem uma visão
"secularizada" da providência: pois esta pode ver funcionalidade no mal, dando
acolhimento a argumentos de tipo mandevilliano que se estruturam em torno da
possibilidade de que vícios privados venham a produzir a virtude pública, num claro - e
decisivo - rebaixamento das metas da ação humana.40 Talvez seja útil aqui lembrar ainda
uma vez a passagem referida por Hannah Arendt - e a que já me reportei acima - em que
Kant se refere, em "A Paz Perpétua", à possibilidade de que mesmo "demônios" - desde
que racionais - venham a construir uma boa constituição e se tornarem bons cidadãos,
ainda que continuem moralmente "maus".
Para se resumir em poucas palavras a visão de Strauss, pode-se dizer que a teoria
política abandona com Burke o problema do que "deve ser" e passa - numa conversão que
eu diria de sabor "sociológico" - a estudar "como é" a realidade. Passa-se de uma visão
eminentemente jurídico-normativa do estudo da política para uma abordagem mais
descritiva, positiva. Passa-se da "filosofia do direito" aos germes da atual "sociologia
política", como resultado (ainda que não antecipado) do esforço de recuperação do gap
entre teoria e prática. Para Strauss, como foi dito, a "descoberta da história"
freqüentemente atribuída a Burke é antes a reafirmação da distinção entre teoria e
prática.41 Ao constatar a impossibilidade de se passar diretamente (e sem danos) de uma à
outra (em qualquer que seja a direção), Burke confere nova centralidade ao tema da
prudência, essa deusa do "lower world" da prática, como ele mesmo diz. Mas o crucial
37
Idem, pp. 303-7 e 309-10.
38
Idem, pp. 313-5.
39
Burke, Reflexões sobre a Revolução em França, p. 90.
40
Strauss, Natural Right and History, pp. 316-7.
41
Idem, pp. 319-21.
15

para os fins do presente trabalho é constatar que uma não existe sem a outra; nenhuma é
possível em "estado puro". Nenhuma teoria pode ser absolutamente indiferente ao que
ocorre no mundo sensível; e nenhuma práxis é sequer possível sem o recurso a
conceptualizações abstratas que conformem a compreensão que o ator possui da situação
em que se insere. Mesmo esse mundo da prática, portanto, absolutamente não pode ser
compreendido sem o recurso à teoria. Kant o sabia muito bem, e isto não o impediu,
como vimos, de pagar o seu tributo à prudência e à devida cautela que sempre expressou
ao tratar de assuntos, digamos, "práticos".

3. Conclusão: Racionalismo Crítico e Tradições

Não se trata aqui, naturalmente, de pretender afirmar que não há diferenças entre a
filosofia de Kant e a visão que Burke tinha da política, o que seria um claro absurdo.
Trata-se antes de chamar atenção para o fato de que, se compreendemos adequadamente
o ethos racionalista (particularmente do modo como é enunciado pelo racionalismo crítico
de Karl Popper), impõe-se reconhecer o papel crucial desempenhado pela tradição na vida
social - ainda que, diferentemente da visão mais extremada que temos das idéias de Burke,
não estejamos dispostos a sacrificar em seu altar qualquer valor ou meta que abracemos.
Neste sentido, podemos interpretar o núcleo da posição de Burke como um sensato
acolhimento dessa recomendação de prudência "sociológica" perante as possibilidades de
mudança intencional das relações sociais - acolhimento este perfeitamente compatível com
a adoção de um parti-pris racionalista. Daí poderemos igualmente explicar o
conservadorismo que Kant expressa em suas opiniões sobre a conduta política prática, que
talvez parecesse a alguns um tributo pago pelo grande filósofo a preconceitos e costumes
típicos de sua época. Nada disso, porém. Pois sua filosofia da história embute claramente
estruturas de contrafinalidade, sendo a evolução da humanidade fruto fundamentalmente
de conseqüências não intencionais. E isto, veremos, é apenas fruto de um racionalismo
conseqüente e informado, distante do jacobinismo irrefletido dos revolucionários franceses
tão acidamente criticados por Burke.
Conforme foi lembrado por Raymond Boudon na epígrafe ao primeiro capítulo de
seu livro Efeitos Perversos e Ordem Social, para Popper "a tarefa principal das ciências
sociais teóricas [...] consiste em determinar as repercussões sociais não intencionais das
ações humanas intencionais".42 A vinculação explícita feita por Popper entre esta posição e
suas teorias epistemológicas - acrescida da tradicional associação existente entre
estruturas de contrafinalidade e o argumento conservador de Edmund Burke - fez com

42
Boudon, Efeitos Perversos e Ordem Social, p. 7.
16

que muitos acreditassem que, adotada uma concepção popperiana da ciência, isto
implicaria necessariamente a adoção de um "burkeanismo" conservador em política. Nem
todos concordariam, porém. Para José Guilherme Merquior, por exemplo, "é inequívoca a
inclinação reformista da política de Popper, mesmo se seu tom cauteloso transmite uma ou
duas notas de prudência desiludida".43
O trabalho em que Popper aborda mais diretamente a discussão aqui empreendida
é uma conferência intitulada "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", pronunciada em
Oxford em 1948, na qual ele se dirige diretamente a o que chama de "desafio" lançado por
Burke aos racionalistas.44 Segundo Popper, se para Burke a tradição deve ser aceita
acriticamente como um dado, e valorizada por si só, para o racionalista a tradição - como
de resto qualquer outra coisa - deve ser objeto de crítica, para ser aceita ou rejeitada. O
que não tem cabimento, por outro lado, é uma postura que, por ser racionalista, se
pretenda antitradicionalista por princípio, já que este mesmo racionalista antitradicionalista
estará necessariamente aderindo (ainda que inconscientemente) a uma tradição
racionalista, que tem tradicionalmente repetido argumentos antitradicionalistas - entre
outros, naturalmente. Segundo Popper, o desafio de Burke não poderá ser adequadamente
refutado pelo racionalismo enquanto este aceitar a oposição pura e simples entre
racionalismo e tradicionalismo. Popper a rejeita abertamente e chama atenção para nossa
inevitável adesão a múltiplas tradições. Somente conscientes da existência destas
inevitáveis tradições a que necessariamente subordinamos nossos hábitos mais arraigados
é que estaremos em condições de tomá-las criticamente, aí incluída "a nossa valiosa
tradição racionalista".45
Constatada, portanto, a ubiqüidade das tradições - presentes como parte
corriqueira da vida social e não mais como "fantasmas" irracionais a perseguirem as
gerações sucessivas, toldando-lhes as mentes de preconceitos e impedindo o florescimento
da "verdade" -, cumpre reconhecer que está posta diante do racionalismo a tarefa de
elaborar uma teoria racional da tradição, que a tome como um fato social como outro
qualquer. Para Popper uma teoria da tradição deveria ser, em primeiro lugar, uma teoria
"sociológica" (no sentido de que busque dar conta de conseqüências não-intencionais
produzidas por efeitos de agregação de ações individuais intencionais, ou, por outra, que
procure explicar fenômenos sem recorrer à "teoria conspiratória da sociedade"),
consciente do fato de que uma tradição raramente é deliberadamente criada, sendo
43
Merquior, O Liberalismo, pp. 179-80.
44
A vinculação específica entre a epistemologia popperiana e um certo individualismo metodológico em
ciências sociais pode ser encontrada também em K. Popper, "A Lógica das Ciências Sociais",
contribuição de abertura ao Congresso dos Sociólogos Alemães que teve lugar em Göttingen em 1961.
Consistindo em 27 teses e uma sugestão de trabalho, o texto foi replicado por Theodor W. Adorno,
dando origem a uma polêmica que ficou célebre e que teve prosseguimento nos anos seguintes em
trabalhos de Jürgen Habermas e Hans Albert.
45
Popper, "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", pp. 147-9.
17

portanto fruto de conseqüências não-intencionais de ações intencionais. Em segundo


lugar, esta teoria deveria ter como objetivos básicos saber como surgem e - o que é mais
importante - como se mantêm as tradições, bem como pesquisar qual a função em geral da
tradição na vida social (talvez seu objetivo mais importante).46
Quando reflete sobre este último ponto, a posição de Popper sobre a tradição se
aproxima bastante de uma visão burkeana. Pois para Popper as tradições - com a
rotinização que acarretam sobre inumeráveis aspectos de nossa vida cotidiana - têm como
principal função introduzir regularidades e, conseqüentemente, alguma rotina e
estabilização de expectativas à vida social. Se se imagina uma situação de total ausência
de quaisquer tradições, sem a existência de qualquer referência "tradicional" para o
comportamento das pessoas, o que se terá, segundo Popper, é uma situação de ansiedade
e terror, em que tudo o que for "previsível" estará suspenso. É difícil mesmo afirmar que
teríamos algo que se pudesse chamar uma sociedade, pois de fato este experimento
mental é rigorosamente o mesmo que Hobbes leva a cabo para conceber no Leviatã o seu
"estado de natureza".47 Assim, tudo o que se pode plausivelmente supor é que a suspensão
das tradições redunde na mesma "guerra de todos contra todos" prevista por Hobbes. E
aqui Popper se aproxima de Burke ao constatar que, do ponto de vista da função social
das tradições, no âmbito de uma teoria sociológica da tradição, a simples existência de
tradições talvez seja mais importante que os eventuais méritos peculiares a cada uma
delas.48
A visão de Popper começa a mostrar a marca pessoal de seu autor quando nos
perguntamos por que a suspensão das tradições daria lugar à ansiedade, ao pânico ou à
insegurança. Pois o que ocorre, segundo Popper, não é absolutamente a substituição à la
Burke do conforto da confiança na sabedoria de gerações sucessivas do passado pelo frio
e imprevisível cálculo racional de mentes variadas. Ao contrário, e diferentemente tanto de
Burke quanto do próprio Hobbes, o que se teria seria a própria suspensão da
possibilidade de qualquer cálculo racional. Se não podemos prever o que acontecerá,
se não conhecemos o nosso contexto, então não temos informação suficiente que nos
permita reagir de uma maneira que se possa dizer racional.

46
Idem, pp. 150-2.
47
Assim Luiz Eduardo Soares descreve o exercício da formulação do estado de natureza por Hobbes: "O
experimento mental hobbesiano consiste na reunião de respostas a algumas perguntas, tais como: quais
os efeitos da aproximação de seres humanos entregues inteiramente à sua própria natureza e, portanto,
dispondo de liberdade irrestrita para usar seus poderes individuais, segundo suas respectivas
conveniências e de acordo com a necessidade de defender sua sobrevivência individual? O que
ocorreria aos seres humanos se subtraíssemos de seu convívio tudo o que resulta da presença
organizada da sociedade e se extraíssemos deles todas as marcas dessa presença, inclusive as mais
minúsculas e desprezíveis?" (L.E. Soares, "A Estrutura do Argumento Contratualista", p. 131, grifo
meu.)
48
Popper, "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", p. 156.
18

E aqui cabe uma digressão rápida sobre o racionalismo crítico popperiano.


Segundo Popper, a idéia que Burke faz do racionalismo (e com ele seus contemporâneos
revolucionários) é não só equivocada, como também impossível como prática. Pois
Popper estende ao procedimento racional científico a exortação burkeana de que é
necessário utilizar o que nossos antecessores fizeram - só que em Popper isto decorre,
paradoxalmente, de uma atitude racionalista e ainda antiindutivista, bastante diferente da
posição de Burke. Para compreender este ponto é útil lembrar que para Popper as teorias
científicas são mitos, que somente se diferenciam dos mitos pré-científicos pelo fato de
virem acoplados a uma tradição crítica inaugurada na Grécia entre os séculos V e VI
a.C.. Esta exposição à crítica por si só já leva a uma atitude analítica que transforma os
"mitos científicos" em algo diferente, mais preciso, mais minuciosamente descritivo e -
acima de tudo - mais mutáveis e, portanto, mais passíveis de correção e aperfeiçoamento
que os outros mitos. Assim, o conhecimento científico progride fundamentalmente através
do exercício da crítica, do diálogo contínuo entre teorias diversas - enfim, do contato
permanente de cada teórico com a tradição de sua disciplina, da invenção de novas
respostas para os problemas levantados por cada teoria, respostas estas que por sua vez
levantarão necessariamente novos problemas a serem enfrentados. Contrariamente ao que
prega o indutivismo ortodoxo radicado em teses enunciadas eloqüentemente (ainda que
não originalmente, como sublinham alguns) por Francis Bacon, a ciência não procede da
observação pura e simples, que cola impressões sucessivas sobre uma mente - concebida
como uma "folha em branco" - livre de preconceitos.49 Pelo contrário, para Popper a
atividade científica - mais proximamente de Kant que do empirismo - supõe uma mente
interessada na solução de problemas específicos - inteirada, portanto, de um contexto
que lhe é externo. A partir deste envolvimento - interessado, e portanto necessariamente
portador de preconceitos e de um ponto de vista próprio - o cientista procurará elaborar
(não importa como) novos "mitos" (teorias) que deverão responder aos problemas
colocados e inevitavelmente levantar novos. Como ilustra o próprio Popper, o bom
conselho a ser dado a um jovem cientista não é "Observe o que existe à sua volta", mas
sim "Procure saber o que se discute hoje na ciência; descubra onde estão surgindo
dificuldades e se interesse pelos desacordos - essas são as questões que você deve
abordar".50 Se fizéssemos o contrário, não passaríamos, segundo Popper, do ponto a que
teriam chegado Adão e Eva (ou o homem de Neandertal). Assim, Popper se aproxima de
Burke ao reconhecer o tributo que cada pensador, cada idéia, paga à sua tradição e à sua
história. Esta associação da ciência com o enfrentamento de problemas com que um
homem concretamente se depara ao longo de sua vida estabelece um nexo indissolúvel
entre cada idéia e o contexto em que se gerou. Só pode ser racional o que é histórico, o
49
Sobre Bacon, pode-se recorrer a John Losee, Introdução Histórica à Filosofia da Ciência, pp. 73-81.
50
Popper, "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", p. 155.
19

que responde a uma determinada circunstância. Assim, tanto as tradições como as teorias
científicas cumprem a função de introduzir algum ordenamento no caos aparente de nossa
experiência sensível. Mas de Burke Popper se afasta de maneira importante ao insistir em
que a evolução da ciência se dá acima de tudo pela crítica de teorias anteriores e seu
posterior abandono em favor de novas e melhores teorias. Para Popper, "na ciência há
muito menos acumulação de conhecimento do que uma transformação revolucionária de
teorias científicas".51 E um processo análogo pode-se observar no que diz respeito às
tradições, pois também elas poderão ser modificadas pela crítica.
Esta afirmação abre uma fresta pela qual - mesmo levando-se em conta a
consideração dos efeitos perversos tanto por Popper quanto por Kant e Burke - se pode
compreender melhor a louvação da Revolução Francesa por Kant (que em princípio, como
vimos, condenava revoluções). Se aceitamos que revoluções teórico-filosóficas encontram
ecos na história sensível, podemos supor que Kant (assim como eventualmente Popper),
mesmo desaprovando o ato revolucionário, constate realisticamente sua inevitabilidade
histórica, e venha eventualmente a saudar calorosamente o advento de uma revolução que
venha instaurar princípios racionais de governo rumo aos quais a humanidade deveria
inexoravelmente caminhar. Conclusão que se torna ainda mais natural se nos lembramos
da quarta proposição de sua "Idéia de uma História Universal com um Propósito
Cosmopolita", em que enuncia explicitamente o crucial papel desempenhado pelo
antagonismo social na construção de uma ordem legal racional e justa - reconhecendo de
maneira inquestionável a presença de estruturas de contrafinalidade na história e, o que é
mais, o papel positivo que podem desempenhar, abrindo assim a possibilidade de que
mesmo ações imorais possam contribuir para o "plano oculto da natureza" e o advento da
boa ordem do "Reino dos Fins".52 Assim como Kant pôde ser receptivo à Revolução
Francesa, certamente podemos imaginar Popper, em nome do advento da "sociedade
aberta", dando boas-vindas aos acontecimentos - todavia trágicos - que tiveram lugar na
Romênia em dezembro de 1989.
A vulnerabilidade teórica de qualquer costume ou valor frente à crítica
compreensivelmente terá despertado forte ansiedade em espíritos mais conservadores, o
que certamente ajuda a explicar "a intolerância altamente emocional que caracteriza todo
tradicionalismo", e da qual o ataque de Burke à Revolução Francesa constitui exemplo
eloqüente.53 É possível que uma angústia parecida tenha induzido Hannah Arendt a
anunciar o fim da autoridade no mundo contemporâneo, como resultado de um processo
secular que teria solapado a religião e a tradição. 54 A constatação de Popper (e - por que

51
Idem, ibidem.
52
Kant, "Ideia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita", pp. 25-7.
53
Popper, "Rumo a uma Teoria Racional da Tradição", pp. 157-8.
54
Arendt, Entre o Passado e o Futuro, cap. 3 ("Que é Autoridade?"), pp. 127-8.
20

não lembrá-lo? - também de Fernand Braudel, expressa naquilo que ele batizou de "vida
material")55 da presença universal de múltiplas e imemoriais tradições a nos conformar os
mínimos hábitos cotidianos, embora não refute as preocupações de Arendt, introduz-lhe
qualificações importantes quanto à afirmação da originalidade de nossa época. Arendt
parece, em certa medida, identificar simplesmente a tradição e a autoridade ao âmbito do
"irracional", deixando de reconhecer que a razão supõe a adesão a algumas tradições
específicas, bem como a lealdade a algumas autoridades próprias. Como nos lembra Carl
Friedrich, a oposição da "razão" ao método da autoridade deixa de reconhecer que a
argumentação racional depende de autoridade (ou seja, supõe a decisão de se acatar a
"autoridade" do melhor argumento). 56 Ainda segundo Friedrich, o desespero de Arendt
pelo fim da autoridade
"resulta da falácia histórica que considera o presente totalmente novo e inteiramente
diferente de tudo o que ocorreu antes. Na realidade, a autoridade tem tido seus altos e
baixos, pelo fato de a capacidade para a elaboração racional variar conforme uma
comunidade nasce, cresce, se transforma, se desintegra e é reconstituída. O ponto de vista
de Arendt também resulta de uma noção não-histórica de que houve um tempo em que tudo
corria bem, quando um dado código, amplo e universal, prevalecia. Os pensadores gregos
e romanos teriam ficado muito surpreendidos ao ouvirem dizer que esse era o seu tempo."57
Por outro lado, Friedrich sublinhará a tese, ignorada por Burke e também por
Hobbes, de que, uma vez recusada, uma autoridade dificilmente poderá ser restabelecida.
Nem pela força, nem por qualquer outro meio rápido. Tanto Burke quanto Hobbes,
porém, despenderam suas melhores energias exortando inutilmente o público ao
reconhecimento da autoridade de uma forma de governo que este mesmo público, com ou
sem razão, não queria mais tolerar. Se é verdade que as revoluções invariavelmente

55
Originariamente elaborada em seu monumental Civilisation Matérielle, Économie et Capitalisme, é
com estas belas palavras que Braudel, em A Dinâmica do Capitalismo, apresenta sua concepção da "vida
material":
"Parti do cotidiano, daquilo que, na vida, se encarrega de nós sem que o saibamos sequer: o
hábito - melhor, a rotina - mil gestos que florescem, se concluem por si mesmos e em face dos
quais ninguém tem que tomar uma decisão, que se passam, na verdade, fora de nossa plena
consciência. Creio que a humanidade está pela metade enterrada no cotidiano. Inumeráveis
gestos herdados, acumulados a esmo, repetidos infinitamente até chegarem a nós, ajudam-nos a
viver, aprisionam-nos, decidem por nós ao longo da existência. São incitações, pulsões, modelos,
modos ou obrigações de agir que, por vezes, e mais freqüentemente do que se supõe, remontam
ao mais remoto fundo dos tempos. Muito antigo e sempre vivo, um passado multissecular
desemboca no tempo presente como o Amazonas projeta no Atlântico a massa enorme de suas
águas agitadas.
"Foi tudo isso que tentei captar sob o nome cômodo - mas inexato, como todas as palavras de
significação excessivamente ampla - de vida material. Bem entendido, trata-se de uma parte
apenas da vida ativa dos homens, tão profundamente inventores quanto rotineiros."
(Braudel, A Dinâmica do Capitalismo, pp. 13-4.)
56
Friedrich, Tradição e Autoridade em Ciência Política, p. 49.
57
Idem, pp. 60-1.
21

fracassam em seus objetivos mais ambiciosos, também é necessário reconhecer o idêntico


fracasso das tentativas de restauração que sempre se lhes seguem.58
Importa reter, enfim, ao final deste percurso um tanto tortuoso, a impossibilidade
(de que Burke nos adverte, a despeito dos exageros retóricos em que se perde grande
parte de seu texto) da passagem imediata e "transparente" da teoria à prática, sem
consideração minuciosa dos efeitos perversos - que são, no entanto, inesgotáveis. Daí o
imperativo que se impõe da observância de uma "cautela cética" irrecusável no exercício
moralmente responsável do poder. Daí também que se justifica a afirmação popperiana de
que efeitos perversos devem constituir o principal objeto das ciências sociais, pois eles são
o principal "elo fraco" da corrente entre teoria e prática: pudemos constatar acima como o
que Burke chama de "providência", "preconceitos" etc. são precisamente conseqüências
não intencionais resultantes da agregação e da superposição de uma miríade infindável de
fenômenos históricos, que podem descer até os mais corriqueiros hábitos. E a importância
fundamental da obra de Popper reside acima de tudo no fato de que - ao resolver, pela
ruptura da vinculação da idéia de ciência com o estabelecimento de verdades necessárias,
o problema da indução legado por Hume - pôde absorver a crítica burkeana sem incidir no
anti-racionalismo e seus habituais corolários obscurantistas e antidemocráticos.

58
Idem, pp. 126-7. Pelo mesmo raciocínio, Friedrich traça perspectivas pessimistas para a restauração da
autoridade acadêmica nas universidades, após as rebeliões estudantis ocorridas no final dos anos 60.
22

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