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GRUPOS EXCLUÍDOS, DIREITOS

HUMANOS E MOVIMENTOS
SOCIAIS

Kant, positivismo e pós-positivismo


jurídicos
Aspectos introdutórios
Indivíduo burguês - subjetividade como interioridade (psicológica e
epistemológica) - representações na esfera da consciência – Alberto.
Esse é o quadro em que nasce a razão na Modernidade, de Descartes
até Kant. Hegel, apogeu da razão burguesa, é um pouco diferente,
pois rejeita a noção de representação e de subjetividade até então
(daí porque Marx tomará a Fenomenologia como a primeira crítica
ideológica, ainda que idealista – Alberto.
Minha leitura, como você percebe, é lukácsiana. Eu entendo, com
Lukács, que o processo de ascensão da burguesia e afirmação das
conquistas da razão contra a superstição e a dominação política,
sofre um revés no momento em que a burguesia, em 1848, percebe
que não pode continuar seu projeto sem que ela própria pereça
como classe.
Aspectos introdutórios
 O ponto culminante desse movimento, portanto, é Hegel.
Tanto assim que, a partir de então, renascem os
irracionalismos e os relativismos de toda espécie (filosofias "da
emoção", "do sentimento", relativismos de todo tipo), pois
agora a burguesia tem de jogar fora a razão e lutar contra os
herdeiros do racionalismo hegeliano: ou seja, Marx – Alberto
Esta última observação será muito importante para os direitos
humanos. Há uma forma de ver os direitos humanos
proveniente de Kant e outra proveniente de Hegel. Kant e sua
apropriação pelos positivismos jurídicos (principalmente pós-
positivismo). Hegel e sua apropriação pelas teorias do
reconhecimento.
Aspectos introdutórios
Questões importantes para o tema de hoje:
A) O papel assumido pela razão na obra de Kant e nas
obras dos primórdios do positivismo e do positivismo
jurídico.
B) A universalização do indivíduo em Kant,
importante dado inclusive para compreensão da figura
do sujeito de direito;
C) A formulação segundo a qual nenhum homem deve
ser considerado como um meio, mas deve ser tratado
sempre como um fim em si mesmo.
Aspectos introdutórios
Para demonstrar a tese acima, é interessante perceber que o caráter
dogmático que segue a metafísica formal de Kant também se
encontrará presente no positivismo de Augusto Comte e no
positivismo jurídico em particular.
No entanto, a minha tese é que a teoria kantiana sofre corrupções na
sua construção, o que redundará em diminuições das pretensões da
filosofia com a razão humana. Portanto, até mesmo a lei moral terá
as suas pretensões reduzidas, sendo corrompida a partir de obras de
positivista como Comte, por exemplo.
Esta diminuição das pretensões da razão, como já disse
anteriormente, se faz essencialmente porque há uma mudança
estratégica no seu papel para os fins desejados pelo capitalismo.
Veja-se o exemplo do trabalho e do mérito.
Aspectos introdutórios
Acreditamos que há outro elemento, que tem íntima
relação com a anterior, que é o advento de teorias como
o positivismo de Comte. Em que a razão dogmática
serve, no plano teórico, para substituir a razão posta
por Kant.
O dogmatismo ajuda ainda a simplificar as tarefas do
homem universalizado, que conta com uma ajuda para
saber qual o caminho a ser percorrido, com menores
dificuldades de percurso. A perspectiva da ordem
ajuda no processo.
Aspectos introdutórios
É como se houvesse um empobrecimento das pretensões da
razão, que passa a se acomodar com o fato de que alguns
grandes pensadores da humanidade já postaram quais seriam
os fins pretendidos pela razão, não havendo mais razão que
cada homem o fizesse num percurso individual e difícil.
Assim, os princípios já teriam sido examinados por grandes
pensadores, que já teriam pronunciado as leis gerais – contra
as quais não vale a pena insistir. Tal dogmatismo acentua,
ainda mais, o papel formal do sujeito, que acaba cedendo
àquilo que já se tem como obra definitiva da razão – mais
ainda na mão de alguns, que ditam o que é racional e o que é
irracional.
Kant, razão e o positivismo de Comte
Em Comte, por exemplo, a razão humana irá experimentar um grau de
dogmatismo jamais visto, e que reduz a sua a extensão inicial. Como dito,
insisto, se dá por alguns motivos. Primeiro, pelas tensões do próprio
desenvolvimento da democracia burguesa. No curso do século XIX, quando
surge o positivismo, a revolução burguesa passará do ato revolucionário para a
vida das pessoas, revelando as suas insuficiências na concretiza da igualdade,
liberdade e fraternidade prometidas. Logo, o empobrecimento das pretensões
filosóficas corresponde, no meu sentir, ao fracasso já sentido das promessas da
revolução. O pensamento passa a prometer menos do que prometeu ao
mundo o pensamento de Kant e de Hegel, por exemplo. Assim, mesmo em se
tratando de construções teóricas, estas não podem ficar totalmente infensas
ao mundo – sendo que, mesmo operando no plano normativo do dever-ser -,
há que existir uma acomodação do que realmente se entender por razão
humana. Ou seja, a própria razão prometida pelos filósofos passa a
contemplar a sua real dimensão no mundo.
Kant, razão e o positivismo de Comte
“No estado teológico, o espírito humano, dirigindo essencialmente
suas investigações para a natureza íntima dos seres, as causas
primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam, numa palavra, para
os conhecimentos absolutos, apresenta os fenômenos como
produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais mais
ou menos numerosos, cuja intervenção arbitrária explica todas as
anomalias aparentes do universo. No estado metafísico, que no fundo
nada mais é do que simples modificação geral do primeiro, os agentes
sobrenaturais são substituídos por forças abstratas, verdadeiras
entidades (abstrações personificadas) inerentes ao diversos seres do
mundo, e concebidas como capazes de engendrar por elas próprias
todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste, então, em
determinar para cada um uma entidade correspondente.
Kant, razão e o positivismo de Comte
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a
impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia a procurar a
origem e o destino do universo, a conhecer as causas íntimas dos
fenômenos, para preocupar-se unicamente em descobrir, graças
ao uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis
efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e de
similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus termos
reais, se resume de agora em diante na ligação estabelecida entre
os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo
número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir”
(COMTE, Augusto. Curso de filosofia positiva. Trad. José
Arthur Giannotti. 2ª. ed.. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 4.)
Kant, razão e o positivismo de Comte
‘Toda ciência pode ser exposta mediante dois caminhos essencialmente distintos: o
caminho histórico e o caminho dogmático. Qualquer outro modo de exposição não será
mais do que sua combinação. Pelo primeiro procedimento, expomos sucessivamente os
conhecimentos na mesma ordem efetiva, segundo a qual o espírito humano os obteve
realmente, adotando, tanto quanto possível, as mesmas vias. Pelo segundo, apresenta-se o
sistema de ideias tal como poderia ser concebido hoje por um único espírito que, colocado
numa perspectiva conveniente e provido de conhecimentos suficientes, ocupar-se-ia de
refazer a ciência em seu conjunto” (Idem).
“O modo dogmático, supondo, ao contrário, que todos esses trabalhos particulares foram
refundidos num sistema geral, a fim de serem apresentados segundo uma ordem lógica
mais natural, aplica-se apenas à ciência já suficientemente desenvolvida em alto grau.
Mas, na medida em que a ciência progride, a ordem histórica de exposição torna-se cada
vez mais impraticável, por causa da longa série de intermediários que obriga o espírito a
percorrer, enquanto a ordem dogmática torna-se cada vez mais possível, ao mesmo tempo
que necessária, porque novas concepções permitem apresentar as descobertas anteriores
de um ponto de vista mais direto’” (Idem).
Kant, razão e o positivismo de Comte
“A tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos
conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela
ordem dogmática, a única conveniente ao aperfeiçoamento de nossa
inteligência” (Idem).
Segundo Comte, seria inconcebível cada homem realizar novamente todo
o percurso já realizado anteriormente pelos ‘gênios superiores’ da
humanidade durante “uma longa série de séculos”. Afinal “é claro que é
mais fácil e mais curto aprender do quer inventar”, sendo que seria
impossível o desenvolvimento da humanidade “se pretendêssemos sujeitar
cada espírito individual a percorrer sucessivamente os mesmos caminhos
intermediários que teve de seguir necessariamente o gênio coletivo da
espécie humana’. Daí resta clara a razão da dogmática enquanto elemento
inerente ao método positivista” (Idem).
Kant, razão e o positivismo de Comte
A razão, enquanto lei moral a ser perseguida por todos
os homens na sua construção, é corrompida em Comte
e passa a ser obra de alguns poucos homens, que os
demais devem seguir. A razão de uma elite do
pensamento, que deve ser seguida por todos os demais.
Uma redução das pretensões kantianas, compreensível
na necessidade de se manter os ideais de um processo
revolucionário que, em poucos anos de existência,
começava a esgotar a sua potencialidade.
Kant, razão e o positivismo de Comte
Não haverá tempo para se explicar aqui, mas a tese é a seguinte: o
pensamento burguês mais refinado da construção e consolidação
inicial da revolução burguesa já contém em si os próprios
elementos para que, a partir dele, seja gerado um pensamento
que tenta manter a revolução burguesa decadente e, ao mesmo
tempo, elementos para os seus supostos “contrários”.
Os autores burgueses, não raras vezes, lutam contra as
concepções forjadas por eles como se elas mesmas não fossem
herdeiras de pensamentos burgueses de origem, como se elas
estivessem sempre em disputa entre si – e não como se fossem
uma tentativa desastrosa de salvar o que a corrente anterior não
conseguiu na construção teórica: o próprio capitalismo.
Kant, razão e o positivismo jurídico de
Kelsen
Para se entender este caráter dogmático, nada melhor do que
recorrermos àquele que lutou pela pureza do direito. Assim como o
positivismo em geral, a sua vertente jurídica assenta-se numa
explicação do nada, tem a si mesma como começo e fim. O caráter
dogmático exsurge de uma perspectiva a-histórica, já que deslocada
da totalidade construída a partir da produção. Ninguém melhor do
que o próprio autor da teoria pura para explicar os motivos desta
tentativa. A figura do Barão de Münchaussem, descrita por Michel
Löwy para o positivismo, se lhe aplica perfeitamente também aqui:
quando em situação de perigo, o positivismo jurídico se vale de suas
próprias forças, sem qualquer auxílio externo, para se retirar da
areia movediça, como fez Münchaussem , puxando-se pelo próprio
cabelo.
Kant, razão e o positivismo jurídico de
Kelsen
Preocupado com a contaminação a que o direito estava exposto
decorrente do contato em especial com a política, Kelsen é
categórico já no início do prefácio à primeira edição de sua obra
Teoria pura do direito, escrito em maio de 1934: “Há mais de duas
décadas que empreendi desenvolver uma teoria jurídica pura, isto
é, purificada de toda a ideologia política e de todos os elementos de
ciência natural, uma teoria jurídica consciente de sua
especificidade (...) Importava explicar, não as suas tendências
endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências
exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar
tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência:
objetividade e exatidão.” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito.
Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000)
Kant, razão e o positivismo jurídico de
Kelsen
Assim, em vista de seu caráter antirrevolucionário (...), o
positivismo jurídico vem carregado de uma carga ideológica da
burguesia já conservadora. Encontra-se envolto na ideia de que a
norma é produto de um processo democrático, que, por ter
passado por todo o procedimento da democracia burguesa, não
merece questionamentos, devendo ser incondicionalmente aceita.
A ideia da pureza do direito, portanto, ao invés de ser neutra,
como pretendia Kelsen, é, na sua origem, altamente ideológica, ou
mais, esta intimamente ligada à naturalização da democracia
burguesa. Rende homenagens a esta democracia, embora queira
escondê-lo - afinal deseja fazer crer que qualquer norma,
produzida por qualquer regime político, possa ser preservada em
sua pureza.
Kant, razão e o positivismo jurídico de
Kelsen
Há que, segundo Kelsen, se expurgar a ideologia do direito, retirar o seu
caráter político, e isto não é ideológico?!? Isto seria simples exercício de
objetividade!!! Um dever-ser descomprometido a partir de um ser artificial.
Enfim, a total ruptura com qualquer perspectiva histórica. Em suma, aqui
reaparece o caráter dogmático já existente nas proposições de Comte, antes
referidas: ‘a tendência constante do espírito humano, quanto à exposição dos
conhecimentos, é, pois, substituir progressivamente a ordem histórica pela
ordem dogmática, a única conveniente ao aperfeiçoamento de nossa
inteligência’. O direito como produto, descolado da história, do
aperfeiçoamento de nossa inteligência, não havendo sentido realizar
novamente o percurso de todos que concretizaram uma mais daquelas
perfeitas obras que a humanidade poderia ter imaginado: a de que o direito é a
forma mais bem acabada de solução dos conflitos e de pacificação social, já
que existe e sempre existiu na história da humanidade!
Kant, razão e o positivismo jurídico de
Kelsen
A democracia burguesa como aquele dever-ser inexoravelmente alcançável pela via do
direito. A naturalização desta modalidade de democracia como produto do fim da história,
obtido pela concretização do direito em sua mais completa tradução: imaculado, revestido
do manto da pureza. Uma democracia como a burguesa demanda um direito puro – em
que todos possam ser identificados como livres, iguais e proprietários, de forma indistinta,
para vender a sua força de trabalho livres de qualquer pressão ideológicas. Ou seja, para
que o fetiche do sujeito de direito assuma o seu caráter mais completo é indispensável uma
teoria à sua altura, ou seja, a teoria pura do direito.Neste instante nunca é demais
relembrar o percurso feito pelo positivismo de Comte, que, concebendo um estágio
superior da humanidade com o advento da razão retoma, a partir dela, a uma perspectiva
duplamente dogmática: o conteúdo metafísico que inclui o culto à razão. No plano das
formas, direito e religião separados, de forma distinta do que se dava no modo de
produção feudal (em que apareciam fundidos). No seu aspecto material (conteúdo), não
obstante, o direito assume uma veste metafísica, quase religiosa, assemelhando-se à
inversão promovida na trilha percorrida pelo positivismo comtiano (da teologia para a
razão, originariamente proposta, para o retorno ao misticismo teológico)”.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas

Feitas estas digressões iniciais sobre o positivismo jurídico em geral e sua
relação com o dogmatismo da razão, a sua relação com a metafísica formal,
resta-nos investigar a relação da matriz kantiana com as escolas pós-positivistas
do direito.

Não raro encontramos um autor de direitos humanos que usa a já surrada frase
da “Metafísica dos costumes” segundo a qual o homem não deve ser percebido
nunca como um meio, constituindo sempre um fim em si mesmo.

Na aula anterior, explicamos o significado desta expressão. Agora vejamos se, à
luz das mais modernas teorias, do pós-positivismo jurídico ela se sustenta.

Inicialmente, deve-se constatar que as teorias que concretização o pós-
positivismo jurídico são diversas. No entanto, colhe registrar que as mais
destacadas passam por uma análise do ordenamento jurídico com um
redobrado interesse pelos princípios. Além disto, centram-se na possibilidade
de princípios diversos entrem em conflito, observada situação concreta.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas

Em artigo no qual analisamos a questão dogmática, fizemos questão de constar o seguinte: “Não
nos ateremos aqui ao fato de que supostamente existam representantes de várias escolas pós-
positivistas - até mesmo porque partimos, guardadas as especificidades, da mesma constatação
de David Harvey. Quando Harvey analisa o pós-modernismo, constata que, na realidade, a partir
da lógica de acumulação do capital, não há uma ruptura ou solução da continuidade na passagem
do que se entende por modernidade para a pós-modernidade. Diríamos que, assim como não há
qualquer ruptura significativa entre o modernismo e o pós-modernismo, não há qualquer
descolamento, na perspectiva da dogmática, a ser destacado entre o que se entende por
positivismo jurídico e pós-positivismo. Estamos diante de fenômenos provenientes da mesma
matriz, embora o último seja apresentado com roupagem supostamente mais progressista, na
essência, é tão conservador quanto o primeiro. Assim, em ambos os casos, sob o aspecto da
forma, se encontra marcante a lógica do sujeito de direito, com todos os seus traços
característicos – sujeito igual e livre para vender a sua única mercadoria, a força de trabalho”. A
despeito da observação anterior, faremos questão aqui de analisar as duas vertentes mais
conhecidas do pós-positivismo antes destacada, exatamente para a percebermos a partir de suas
dificuldades de serem totalmente adaptadas ao pensamento kantiano, com algumas variações,
neste caso específico, que merecem destaque como se verá.
 
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
De um lado, há uma teoria que se centra no sopesamento ou
ponderação dos conflitos em disputa, com destaque para o
instante da elaboração da lei. O seu maior exponencial é
Robert Alexy. De outro, há uma teoria, que, nos últimos anos,
perdeu significativo espaço, em especial no Brasil. Nesta, se
identificaria o núcleo do direito fundamental em disputa e ele
seria preservado, jamais poderia ser atentado, não havendo
que se falar em conflito de princípios. Como estas duas teorias,
disputaram, por muito tempo, a primazia no plano do pós-
positivismo jurídico, iremos nos ater a elas.
Já de início, algumas questões remetem a algumas perguntas,
que precisam ser respondidas:
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Tudo isto parte de um exercício que tem raízes kantianas?
Coisas como lei moral, autonomia, heteronomia, imperativo
categórico, enfim toda esta diversidade de pressupostos que
fundam a metafísica formal estariam presentes?
A noção de que a lei como fruto do consenso geral, apta,
portanto, a resguarda a liberdade a partir da sua própria
limitação estaria presente?
Seria possível falar-se em que, na solução de um conflito de
princípios, estaria preservada a ideia de que o homem é um fim
em si mesmo, não podendo, em hipótese alguma, aparecer com
um meio para se alcançar um fim? O mesmo poderia se dar na
teoria do núcleo do direito fundamental?
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Percebe-se que não há como se conceber, aqui também, que o pós-
positivismo nada mais é do que um dos resíduos tóxicos
produzidos a partir de uma corrupção, necessária para a adequação
às sutis mudanças na sempre mesma relação de produção
capitalista e sua noção de sujeito de direito, da promessa kantiana.
Assim, embora partindo supostamente de pretensões kantianas,
com promessas de que concretizará a sua máxima de que “o homem
não é meio, mas fim em si mesmo”, as teorias pós-positivistas
trazem em si todas as tensões típicas do pensamento burguês –
acentuadas pelo fato de que, cada vez mais, a qualquer ser humano
fica evidenciado que a lógica do capital possui sérios limites.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
 Portanto, ao promover a ponderação para a solução do conflito de princípios, enreda-se
numa trama negocial, que demonstra não somente a sua fragilidade como a de teorias
como a do consenso geral rousseauniano.
 Vejam: se um princípio, ainda que no caso concreto, tiver que fazer vergar o outro, onde se
encontra a razão perseguida por Kant? O homem não tem nada mais de seguro a
perseguir, não há uma lei moral a ser realizada? Não há leis universais a serem enunciadas
por cada homem, já que elas podem ser negociadas a qualquer tempo, observadas
situações concretas? Ela sofre uma flexibilização, pelo fato de que o tal mundo “pós-
moderno” exige esta flexibilização, segundo conveniências da situação concreta. A
história passa a se resumir a situações concretas de tensão, com as suas soluções
imediatistas? Poderia se dizer que o princípio afastado – decorrente da razão – se
encontra ainda lá, mas apenas cedeu a vez no caso concreto. Ora, a contingência
determinando a lei moral, a partir de uma heteronomia, não é certamente o que Kant
desejou, como vimos, ao eleger os imperativos categóricos. Não há inclinações, ou
interesses que devam fazer ceder a lei moral, sob pena de autorizarmos o uso do homem
pelo homem como um meio.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Prefere-se a razoabilidade à razão? A razoabilidade passa
a ser uma razão instrumentalizada, com pretensões bem
mais modestas que a razão kantiana? Se razão foi
instrumentalizada, como fazer com o homem como fim
em si mesmo? Num conflito entre direitos sociais e
direitos individuais, por exemplo, poder-se-ia propugnar
pela derrota da dignidade humana, ainda que pareça que
ela teria assumido uma dimensão coletiva (deixo de dar o
medicamento em um ato normativo, desprestigiando um
ser humano, pois pretendo maximizar as possibilidades
da política pública para todos os demais).
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
O fracasso do projeto da razão está descortinado e o que pretensamente
tem raiz kantiana não passa de uma caricatura, uma sombra da teoria
de Kant. Mas por que motivo isto se dá? A resposta nos parece mais
simples do que se imagina. O mundo das representações apresentados
por Kant, com o deslocamento do objeto para o sujeito, tende a
distanciar a relação entre ambos, concebendo possibilidades de um
mundo cada vez mais aparente, cada vez menos essente. Ou melhor
cada vez menos decorrente da relação objeto em si e objeto para si,
propugnada por Hegel e posta em outra perspectiva por Marx.
Mas e se a solução não fosse adotar a teoria de Alexy, mas a da outra
corrente que defende que não há conflito entre direitos fundamentais,
devendo-se, nesta aparente contradição entre ambos, preservar-se o
núcleo do direito fundamental?
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Esta teoria não consegue vencer no mundo das contradições do
capital – já que engessaria os direitos fundamentais e seus
fundamentos, não possibilitando que eles participassem, já como
mercadorias, do processo de trocas. A negociação travada entre
princípios nada mais é do que a troca promovida entre “dignidades”,
embora se diga que a dignidade não é ponderada nunca, mas
utilizada como parâmetro para se dosar a ponderação. Diz-se que o
princípio a ser preservado é o que mais se aproxima deste elemento
de dosagem (a dignidade, o que, na aparência, tentar preserva a
noção de dignidade posta por Kant, mas não o consegue, na medida
em que o homem aparecerá, em algum momento, como meio e não
fim em si mesmo). Neste momento, é indispensável que se tenha em
mente dois conceitos kantianos: reino dos fins e dignidade.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Destes conceitos, percebe-se que o que se encontra presente na ponderação a
atribuição, no reino dos fins, de um preço na perspectiva de troca de
equivalentes (a troca de equivalentes do capitalismo, constata por Marx,
aparece já aqui, embora a partir de uma ideia de valores distinta do valor
trabalho marxiano). Não há, na ponderação, a noção de dignidade
pretendida por Kant, mas de preço no reino dos fins. O homem aparece
como um meio, que tem um preço – o que conspira contra o ideal do reino
dos fins, em que a dignidade não poderia jamais aparecer como um
modulador de interpretação, mas é sempre um fim a ser alcançado em
qualquer hipótese. A razão prática ditando os desígnios da razão pura. A
experiência superando o “a priori”, no exercício da ponderação, e corroendo
com o exercício metafísico, com o seu ideal, de que cada homem estará apto,
no reino dos fins, a enunciar a lei moral em que nenhum homem será
utilizado como meio, sendo sempre um fim em si – ou seja, que todo homem
tem dignidade, e não preço.
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
QUANTO AO REINTO DOS FINS - “O conceito segundo o qual todo ser racional deve
considerar-se como legislador universal para todas as máximas da sua vontade para,
deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas acções, leva a um outro conceito
muito fecundo que lhe anda aderente e que é o de um reino dos fins” (“Fundamentação
da metafísica dos costumes”, p. 79). “Seres racionais estão pois todos submetidos a esta
lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros
simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si. Daqui
resulta porém uma ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objectivas
comuns, i.e. um reino que, exactamente porque estas leis têm em vista a relação entre
seres uns com os outros como fins e meios, se pode chamar um reino dos fins (que na
verdade é apenas um ideal)” (Idem, p. 80) Como cada um deve legislar, enunciando a
lei moral, “o dever não pertence ao chefe do reino dos fins, mas sim a cada membro e a
todos em igual medida” (p. 80). QUANTO À DIGNIDADE: “No reino dos fins tudo tem
um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr em vez
dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e portanto não permite equivalente, então te ela dignidade” (p. 81)
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Por fim, a outra teoria. Embora a teoria do núcleo do direito
fundamental se apresente como mais honesta com o pensamento
kantiano, não há como a tal teoria vencer no capitalismo. O
exemplo mais patente desta assertiva foi a derrota do princípio do
não-retrocesso social patrocinado por autores como J.J. Gomes
Canotilho – autor que sequer o defende mais, como se percebe do
prefácio à segunda edição de sua tese de doutorado em que fala do
filho enjeitado. Aliás, este princípio mostra o nível de idealismo e
das dificuldades de que a idealização, com a subtração da história,
cria dificuldades para o próprio materialismo. Fica lançada a
ideia, mas não pretendo esgotá-la (ficando para uma próxima
oportunidade enfrentá-la de forma mais intensa).
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Veja-se, ainda, que, para qualquer teoria pós-positivista, há
um problema maior decorrente da porção do direito que se
dá na experiência: a forma como o direito passou a ser obra
mais constante de um juiz ativista, que não assenta as raízes
de sua dicção na vontade geral ditada pela escolha
democrática. Embora o dado de experiência não possa ser
tido de forma isolado, no caso do direito, ele é percebido
por Kant (que, a meu ver, não enfrenta o problema com a
profundidade que mereceria, para fins de que esta obra da
razão, o direito, que é grande parte proveniente da razão
prática pudesse ser conciliado com a razão pura).
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Desta forma, ainda aqui, quando se fala em pós-positivismo, há um
problema anterior. A nossa liberdade, em Kant, é restringida pela
vontade dos outros, a partir de um ato de escolha legislativa que
encerra a vontade geral. No caso do juiz, quando faz a ponderação
(ainda que se possa discutir os limites desta possibilidade na teoria
de Alexy, ela se dá no plano dos fatos, com o aumento do ativismo
judicial no mundo inteiro), a lei moral fica sensivelmente
fragilizada e submetida, ainda mais, a subjetivismos na sua própria
consolidação. Não à toa que autores como Dworkin se esforçam
para preservar a integridade dos princípios, nestes casos, por ideias
como a do “romance escrito por várias mãos” (o direito como uma
obra coletiva, inclusive com a participação do trabalho de Hércules
promovido pelos juízes neste processo).
Kant, razão e escolas pós-positivistas
jurídicas
Enfim, todos tentando salvar algo que se
encontra à deriva: O direito enquanto
produto da razão humana (mesmo que, com
o positivismo jurídico, estejamos já lidando
com uma razão com pretensões mais
modestas, também à deriva, na medida em
que busca sobreviver ao irracionalismo
patrocinado pela lógica de acumulação do
capital).

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