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Quarta época

A GRANDE EPOPÉIA DOS CELTAS OS TRIUNFOS DO REI ERRANTE


Títuto: A GRANDE f-popj-\

pleli- épl- 1,1 Ir Títfflo original LA GRANDL 1-N Quinta época


lplql,: Autor: Can ’MarU, Prefácio: Poul Fttqn Tradução: J,,rge Chichorn) Revisão:
OS SENHORES DA BRUMA
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Mutrrnediaeqn&) com - Endereço na Web: w~esqtfflo---orn PRELUDIO - o homem dos tempos antigos............39

Primeira época I - NAS BRUMAS DA AURORA ............47

II - AS TRIBOS DE DANA .............61


OS CONQUISTADORES DA ILHA VERDE
III - LUG DO BRAÇO LONGO ................79
JEAN MARKALE
IV - A GRANDE BATALHA DE MAG-TURED............ 95

A GRANDE EPOPÉIA DOS CELTAS V - A VINGANÇA DE LUG ...............115

Primeira época VI - OS FILHOS DE MILÉ .............131

OS CONQUISTADORES DA ILHA VERDE VII - O ESTRANHO DESTINO DOS FILHOS DE LIR ........ 151

A PUBLICAR: VIII - AS ATRIBULAÇÕES DO JOVEM ANGUS ............ 165

Segunda época IX - DEMÔNIOS E MARAVILHAS ............... 179

OS COMPANHEIROS DO RAMO VERMELHO X - POR AMOR A FINNABAIR .............. 199

Terceira época XI - A TERRA DAS FADAS ..............


OS HERÓIS DOS CEM COMBATES XII - ETAINE E O REI DAS SOMBRAS........229
Deste modo, impelidos para novos horizontes, ela privou a humanidade durante muito tempo de uma importante
Na noite eterna embalados sem retorno, parte de si mesma, pois rejeitava, sem apelo nem agravo, tudo o
que não pertencesse às normas em uso num sistema imutável e
Não seremos capazes, no oceano das idades, incontestável. Não interessa se se tratava de ignorância ou de
De lançar âncora ao menos por um dia? desprezo pela diferença, pois a verdade é que já se ultrapassou
essa fase, Já ninguém hoje duvida que Os construtores dos
LAMARTINE, O Lago megalíticos, que viveram do V ao XI milênio antes da nossa era, e
de quem não se conhece nem o nome nem a língua, foram
A identidade e a especificidade de uma civilização, seja ela antiga extraordinários artesãos de uma civilização brilhante que ocupou
ou moderna, só se tomam reconhecíveis no caso de nela se uma grande parte da Europa, tendo nela deixado marcas
encontrar uma tradição transmitida de geração em geração e que indeléveis. Em termos de obras escritas, apesar disso, nada deles
lhe sirva de testemunha essencial. Esta tradição agrega a memória chegou até nós. Deles ficaram apenas monumentos, assim como
de um povo ou de um grupo de povos que vivem em condições misteriosos símbolos gravados na pedra, os quais, por terem um
equivalentes ou, no mínimo, semelhantes, e pode manifestar-se de conteúdo mais mágico do que escrito, testemunham sem dúvida
modos muito diversos, desde os simples costumes até não apenas um sentido de arte apurado, mas também um
especulações filosóficas muito complexas. Mas, na história da pensamento muito organizado e quase científico. Acontece,
humanidade, sempre se privilegiou a escrita, por esta ser o meio entretanto que o estudo destes símbolos e da arquitetura
mais seguro e mais fiel de conservar a memória do passado. extraordinariamente complexa destes monumentos, a análise e a
Assim se explica que a Grécia seja o país de Hesíodo, Homero, comparação dos diversos objetos arqueológicos contemporâneos,
Ésquilo, Heródoto e Platão, apesar de termos aprendido na escola permitem que se reconstitua a partir de agora, mesmo que de
que a escultura ocupa um lugar privilegiado na civilização que, forma incompleta e conjuntural, uma certa tradição característica
segundo se diz repetidamente, constituem um milagre sem o qual da civilização dita megalítica.
nada teria sido possível.
No que respeita à tradição celta, está-se perante um caso muito
Assim, no caso dos gregos, não se coloca a questão de a sua semelhante. Nunca se pensou negar a existência dos celtas que,
identidade cultural ser reconhecida, pois eles deixaram um bem pelo contrário, foram considerados os únicos predecessores
número suficiente de obras escritas para que possam integrar-se dos Romanos, sendo-lhes atribuídos indiscriminadamente todos os
entre os chamados Povos «civilizados». Mas o que dizer dos vestígios que eram anteriores a estes últimos. Mas é sempre
outros povos que, por qualquer razão, não conheceram a escrita comum um desprezo indisfarçado que se faz referência aos povos
ou nunca a utilizaram? Antigamente, devido à crença ria cujo único defeito parece ser o de não se terem deixado seduzir
«mentalidade pré-lógica», tão cara à escola sociológica francesa pelos encantos da escrita. Há uma realidade incontestável: os
do início do século XX, rejeitava-se uma cultura, que não tivesse celtas não escreveram nada antes de serem cristianizados, ou seja,
escrita, por ser considerada incerta incoerente e Primitiva. Esta antes de monges eruditos e pacientes terem recolhido em
ideologia (palavra que se aplica, sem dúvida, a essa crença), foi a manuscritos preciosos os seus testemunhos orais que estavam em
concretização de um sistema construído sobre a universalidade de risco de desaparecer e que foram salvos do esquecimento. Deste
uma Razão única que justificava qualquer ato de colonização, modo, dispomos de testemunhos que, apesar de incompletos e
cultural ou outra, e de missão,1 fossem quais fossem as intenções; deformados, nos transmitem os vestígios da alma dos povos
celtas. Mas, na verdade, quem foram realmente os celtas? muito tempo, mas era grego e fora utilizado pelos historiadores
gregos por necessidade de classificação. Ora, os gauleses já não se
A verdade obriga a que se diga que sobre eles muito pouco se sentiam à vontade ao serem considerados gauleses, como o
sabe. O certo é que não os podemos considerar um grupo racial ou provam as dificuldades Vércingétorix e as acrobacias oratórias a
étnico delimitado, tão vasto e impreciso é o seu campo de ação, e que teve de recorrer no seu discurso de Bibracte (monte Beuvray),
tão confusa e contraditória é a morfologia daqueles a quem se em 52 antes da nossa era, para tentar assegurar uma coesão
chamou celtas, os quais tanto incluem morenos troncudos e «patriótica» ou «nacional» na coligação de povos que tinham
baixos como louros altos e de olhos azuis. Será mais prudente pegado em armas contra os romanos. Um gaulês era antes de mais
falar-se deles enquanto um povo que fala a língua céltica. membro dum «povo», duma «tribo», portanto duma tuath, e nada
Também é preciso fazer algumas distinções. Os cimbros e os mais lhe interessava para além disso. E foi sempre assim: «Nem
teutões, que foram exterminados por Marius e os romanos, eram os irlandeses, nem os gauleses, nem os baixo-bretões da Idade
sem dúvida de origem germânica, embora tivessem nomes celtas: Média se autodenominaram «celtas». Esta denominação comum,
Cimbros é o combroges gaulês, querendo dizer «do mesmo país» na qual se incluem atualmente os antigos escoceses, os irlandeses,
(e que deu o galês C-vmri); os teutões provêm de uma raça celta os gauleses, os habitantes da Cornualha e os bretões, tem por base
de onde saiu o irlandês tuath, «tribo», e que se reconhece no nome a semelhança das línguas primitivas faladas por estes povos e um
do deus gaulês Teutatès (ou Toutatis), literalmente «pai do povo», vago parentesco étnico.»”’ Esta constatação continua válida e
e no termo genérico atual deutsch, «alemão», o que não deixa de mostra bem as dificuldades que se podem encontrar quando se
ser algo paradoxal. Quanto aos celtas da mesma época, existe tenta definir os celtas, a sua tradição e a sua civilização.
outra dificuldade: a maior parte deles já não fala uma língua
céltica, como o comprovam certos bretões armoricanos (da Alta Os celtas, segundo os autores gregos, apareceram na História por
Bretanha), nove em cada dez irlandeses, para além dos gauleses e volta do ano 500 antes da nossa era. Isso não significa que eles
de outros povos europeus outrora classificados como celtas ou que não constituíssem já nessa altura grupos sociais fortemente
estiveram sob o domínio celta. Além disso, os autores da enraizados em certas regiões da Europa. Neste caso a arqueologia
Antiguidade clássica não estavam mais elucidados do que nós a vem completar as lacunas da História e põe em evidência o
este respeito, confundindo com facilidade celtas e germânicos, ou aparecimento de uma nova forma de civilização na qual o ferro
então fazendo dos primeiros uns vagos «Hiperbóreos», ou mesmo desempenha um papel fundamental. Chamou-se a este período
«Cimérios» que viviam num universo sombrio nas fronteiras de Primeira Idade do Ferro, ou Civilização de Hallstatt, nome de uma
Outro Mundo. A verdade é que os celtas, cuja existência não se estação arqueológica austríaca. É realmente verossímil que o
pode contestar, constituem uns povos quase míticos, ou pelo domínio primitivo dos celtas, dividido em principados
menos mitológico Esse fato também se explica largamente pela independentes, fabulosamente ricos e requintados como no-lo
propensão dos celtas, para confundirem intimamente o real e o provam os móveis funerários dos tumulí, se estendia ao norte dos
imaginário e, assim começaram a fixar a sua história, para a Alpes, entre os montes da Boémia e o Harz, prolongando-se até ao
inventarem deliberadamente em função dos seus mitos sul do Danúbio. Atualmente existe um consenso quanto ao fato de
fundadores. ter sido a partir desta região que os denominados povos celtas
começaram as suas migrações, dirigindo-se, sobretudo para
O certo é que os gauleses da Alésia ficariam muito surpreendidos ocidente, em vagas sucessivas, talvez desde o final da Idade do
se lhes chamassem celtas. Naturalmente, o termo Keltoi existia há Bronze, ou seja, entre 900 e 700 a.C.
Deve reter-se deste fato que os celtas, ou os assim chamados (há latim quinque, diz-se coic em gaélico). O segundo fluxo
quem lhes chame proto-celtas), são principalmente campesinos, migratório ocorreu depois do ano 500 a.C., através de vagas
criadores de gado, agricultores e artesãos. Se mais tarde os vamos sucessivas, tendo sido a última a dos belgas, no século I antes da
encontrar junto ao Atlântico, isso não se deve ao fato de eles nossa era. Este ramo é chamado, com i inclui, além dos
terem procurado aproximar-se do mar, mas por terem sido gauleses e dos belgas, alguma liberdade, britónico, pois gauleses,
obrigados, por razões ainda desconhecidas, a refugiar-se nos os antigos bretões insulares cujos atuais descendentes são os
confins do velho mundo. habitantes da Cornualha e os bretões armoricanos. No plano
lingüístico, classificam-se estes povos como celtas com P, porque
Crê-se que este nó primitivo dos celtas resultou de migrações os seus diversos componentes transformaram, tal como os gregos,
anteriores de povos indo-europeus. Aqui, mais uma vez, é o Q primitivo indo-europeu em som P, como o mostra o mesmo
necessário precisar este termo, que só pode designar exemplo de «cinco» que se diz pemp em galês e bretão, e pente
agrupamentos humanos que falavam uma língua comum - ao em grego.
menos na origem - e que possuíam técnicas e estruturas sociais
idênticas. É esta a única acepção possível do termo, com exceção Foram estes povos, formados provavelmente por pequenas tribos
de todas as outras que incluem uma noção de raça. Assim que se independentes umas das outras, que, no decorrer do primeiro
instalaram no triângulo Boêmia-Áustria-Harz, os celtas milênio antes da nossa era, invadiram a Europa ocidental,
primitivos, ou por causa da superpopulação, ou porque estavam incluindo a planície do Pó (Gália Cisalpina) e o noroeste da
ameaçados por outros emigrantes vindos de leste, ter-se-iam Península Ibérica. Havendo também que referir as expedições que,
dirigido para ocidente a fim de descobrirem novos territórios onde durante o século XI, chegaram a formar nos Balcãs o reino da
se pudessem estabelecer. Este fato nada tem de extraordinário e é Galateia. Entretanto, na Ásia Menor, estas migrações devem ser
comum a muitos outros povos ao longo da História, explicando entendidas nas suas devidas proporções.
que todos os celtas, hoje tão bem enraizados na Europa ocidental
e no extremo do Ocidente, atravessaram o Reno antes de se Estes famosos celtas, fossem quem fossem, não eram numerosos,
instalarem nos países cuja História os reconheceu. constituindo apenas uma elite guerreira, técnica e intelectual. Ora,
os países onde eles se fixaram eram habitados por populações de
Graças ao estudo da distribuição das estações arqueológicas e da que nada se conhece, mas que, com certeza, não foram
sua datação e tendo em consideração marcas toponímicas e raros inteiramente aniquiladas pelos seus dominadores. Bem pelo
vestígios epigráficos, é possível afirmar-se que, o fluxo migratório contrário, os celtas tinham necessidade de mão de obra, ou seja,
dos celtas para a Europa ocidental ocorreu em dois períodos bem de escravos. Fizeram por isso um esforço no sentido de dominar
distintos. O primeiro, cronologicamente, situa-se na chaineira das as populações autóctones, celtizando-as, ou seja, ensinando-lhes a
Idades do Bronze e do Ferro e engloba um grupo de povos que língua e transmitindo-lhes os costumes, a técnica e a religião, o
falavam uma língua céltica ainda próxima do indo-europeu druidismo que era comum ao conjunto dos grupos ditos celtas.
comum, a qual, através de diversos arcaísmos, chegou aos nossos Além disso, os celtas impuseram-lhes as suas estruturas sociais
dias encontrando-se no gaélico da Irlanda, da ilha de Man e da indo-européias, o seu modo de vida e o seu modo de pensar. A
Escócia. Deu-se a este ramo o nome de goidélico ou gaélico, ou partir daí o próprio tempo se encarregou de fazer a sua obra
então de celtas com Q, pois eles conservaram, tal como o latim, o inelutável de assimilação, tomando-se os autóctones os novos
uso do som Q indo-europeu primitivo (por exemplo, «cmco» do celtas, ao mesmo tempo em que os primeiros celtas não deixavam
de ser modificados pelas populações indígenas. Este processo de informações herdadas de um passado sempre apresentado como se
interação - extremamente vulgar - contribuiu para a formação do remontasse à aurora da humanidade, ao que se chama a noite dos
que hoje se chama civilização celta. tempos. Assim sendo, a questão da tradição celta obriga-nos a
pensar como pôde ela ser transmitida se a sua primeira transcrição
Contudo, estas vagas sucessivas de migrações e de misturas nunca data apenas dos primeiros séculos do cristianismo, sendo este
deixaram de provocar deslocamentos internos das populações. Os responsável pelo seu enquadramento. Naturalmente, pode-se
primeiros invasores de língua céltica - chamemos-lhes por lamentar que a falta de escrita seja responsável por não haver
comodidade, gaélicos - foram empurrados ainda mais para testemunhos essenciais para o conhecimento da antiga cultura
ocidente, o que explica a especificidade da Irlanda, isolada nos celta; mas esta não-utilização da escrita, longe de atestar uma
limites extremos do mundo antigo, e tendo conservado, mais do qualquer espécie de incapacidade, resultou duma escolha
que qualquer outro país de dominação celta, as tradições mais deliberada das elites celtas, dos chamados druidas, que eram
arcaicas e reveladoras. «As descobertas arqueológicas sugerem simultaneamente sacerdotes, filósofos, historiadores, poetas e
que os celtas chegaram à Irlanda vindo da Grã-Bretanha, podendo mágicos. Júlio César foi muito claro a este respeito: «Os druidas,
ser traçada a sua rota através de Cumberland de Wigtownshire até diz ele, acreditam que a religião não lhes permite escrever a
se chegar ao nordeste do Ulster».”) É esta a opinião ( Myles Dillon, matéria dos seus ensinamentos (...), pois não querem que a sua
Early Irish literaiure, 1994, p. XI.) do celtólogo irlandês Myles Dillon, que doutrina seja divulgada nem que, por outro lado, os seus alunos,
diverge da de um seu compatriota, O’Rahilly, que aponta um fiando-se na escrita, negligenciem a memória». (De bello gallico, VI, 14).
itinerário direto dos celtas a partir da Gália. No fundo, as duas Eis a razão pela qual, os discípulos dos druidas aprenderam,
teses não são contraditórias, pois pode ter havido diversas durante uma vintena de anos, milhares de versos que resumiam,
migrações como, de resto, os irlandeses da Idade Média diferiam de forma irmernotécnica, o conjunto da tradição celta.
quando procuravam reconstitLir as idades mais recuadas da sua A existência de uma tal tradição oral está largamente comprovada.
história. O Importante é saber que os dois ramos, o gaélico e o O grego Estrabão (IV, 4), afirma que os poetas dos celtas são
britônico, coexistiram durante muito tempo até se diluírem «bardos, ou seja, cantores sagrados». Outro grego, Diodoro de
separadamente na História moderna, depois de terem tido uma Sicilia, transmite detalhes preciosos (V, 29 e 31): «Antes de cada
origem comum. batalha, eles cantam os feitos dos seus antepassados e exaltam as
suas próprias virtudes, enquanto insultam os adversários. Eles
Ora, uma árvore não pode viver se os seus ramos e até a sua folha exprimem-se por enigmas (...) e usam bastante a hipérbole.» O
mais insignificante não forem alimentados pela seiva. A grande latino Pomponius nela observa que «estes povos possuem uma
aventura dos celtas só foi possível porque uma mesma seiva eloqüência muito própria» (111, 2); quanto ao poeta Lucano, este
animou desde a origem o ser social que lhe serviu de ponto de apostrofa os poetas gauleses nestes termos, na Pharsale (1, v, 5o
partida. Esta seiva pode ser identificada com o que se chama a sqq.): «Vós cujos cantos de glória lembram, ao futuro longínquo,
Tradição, ou seja, com o que é transmitido de geração em geração a memória dos fortes antepassados desaparecidos em combate,
para que cada uma destas possa conservar o sentido de uma certa bardos, vós dais largas sem medo à vossa veia fecunda!» Enfim,
identidade e os meios de a exprimir através das sucessivas etapas se fosse necessário um reconhecimento quase oficial, poderíamos
da história. encontrá-lo no historiador grego Poliffio, apesar de tudo, muito
prudente nos fatos a que se refere. Depois de ter pintado um
Em primeiro lugar, esta tradição consiste num corpus de quadro dos povos gauleses da Cisalpíria, afirma convictamente
(11, 17) que «os autores de histórias dramáticas contam a seu fabuloso rei Artur: as supostas aventuras deste e dos seus
respeito lendas maravilhosas». cavaleiros, as peripécias da conquista do Graal, todas as matérias
que atualmente se consideram de origem celta, só chegaram ao
Foram os conflitos que opuseram os romanos aos gauleses da nosso conhecimento, com a exceção de alguns textos gauleses,
Cisalpina, cerca do ano 387 antes da nossa era, que suscitaram graças a versões redigidas em línguas não célticas -
mais comentários a propósito de uma tradição épica que os celtas nomeadamente o francês (dialeto anglo-normando), o inglês e o
transmitiram de geração em geração. Quanto aos acontecimentos alemão. Daqui resulta uma situação no mínimo paradoxal”).
referidos por Tito Lívio, historiador latino, apesar de natural da
Gália Cisalpíria, estão muito mais próximos da lenda do que da Como é óbvio, existem várias versões de epopéias redigidas ou
história e parecem inspirar-se diretamente num fundo tradicional transcritas em línguas célticas, mas são tardias, remontando ao
veiculado pelos próprios gauleses, fundo esse que ele conhecia que se designa por Alta Idade Média. A primeira questão que se
muito bem. «A história das guerras gaulesas, diz Henri Hubert é coloca é sobre a sua autenticidade, ou seja, ignora-se se elas dão
extremamente singular, fabulosa e épica.» E, a este respeito, conta duma realidade cultural celta incontestável, o fato de terem
Camille Jullian, faz notar precisamente que «a derrota dos sido escritas numa conjuntura cristã, com todos os equívocos e
romanos, diz claramente Tito Lívio, deveu-se ao pavor mágico todas as censuras que isso implica, pode suscitar algumas dúvidas
(miraculum) que lhes inspirou o grito de guerra dos celtas. As e, no mínimo, legitimar alguma reserva.
narrações de Tito Lívio, de Apio e de Plutarco, cheias de cor e de
pormenor, precisas, com um extraordinário humor religioso e Seria útil, entretanto, que se esclarecesse em definitivo a noção de
muito favoráveis aos celtas (...), sempre me pareceram inspiradas autenticidade associada à tradição. Na verdade, o que é autêntico
em parte em alguma epopéia gaulesa». na Tradição senão a própria tradição? Por quem foi escrita o
Génesis da Bíblia? Com toda a certeza não a escreveram os que
Trata-se realmente de uma epopéia. A definição clássica do termo, viveram nos primeiros tempos da humanidade, Por quem foram
«narrativa poética de feitos heróicos», não nos impede de escritos os Evangelhos? Corri certeza não os escreveram os
acrescentar que o gênero se refere sempre a fatos de um passado supostos evangelistas. De resto, a Igreja romana, muito prudente a
longínquo, que na sua maioria não podem ser confirmados, mas este respeito, utiliza um termo latino que expressa bem a idéia que
que fazem parte da memória coletiva de um povo ou de qualquer quer transmitir, secundum Johannen (ou Marcuni, ou Lucam, ou
grupo social. A epopéia gaulesa assinalada por Camille Jullian e Mattheum). A palavra secundu nunca quis dizer «por», a tradução
conservada por Tito Lívio na língua latina não pertence francesa oficial, «selon» [segundo não passa de um substituto de
obviamente à história, sendo antes do âmbito da tradição. Quererá «segundo a tradição».
então isto dizer que a tradição celta, por estar inscrita no quadro
de uma civilização que rejeitava a escrita, só pode ser conhecida E, sem querer entrar em exegeses sábias, é preciso contextualizar
através de outras civilizações? Assim parece ser, pois a epopéia os supostos poemas homéricos: Homero nunca existiu
gaulesa em questão só chegou até nós graças aos documentos historicamente, não passando de um nome emprestado a
escritos - pretensamente históricos - que os gregos e os latinos numerosos rapsodos (literalmente «cosedores de cantos»), que
consagraram às guerras travadas por Roma contra os habitantes da tentavam inserir num plano de conjunto inúmeras lendas e
Cisalpina e às expedições celtas nos Bálcãs. O mesmo acontece narrativas herdadas de uma tradição oral com origem na noite dos
com a epopéia bretã (ou seja, da Bretanha insular) à volta do tempos. Ninguém hoje em dia acredita que A Ilíada e A Odisseia
são obras do mesmo autor e que este Homero Do caso, foi manuscritos mais antigos cujo conteúdo se pretendeu conservar
testemunha dos acontecimentos que relata. Estas duas obras não por este à escrita uma ilusão de ter vindo dar pergaminhos ou os
passam de duas versões tardias de lendas orais que dizem respeito papéis velino estão imunes à degradação. Quando os monges as
a deuses e a heróis da Grécia antiga, e é por isso mesmo que elas grandes epopéias do passado, irlandeses passaram para a escrita,
são apaixonantes, pois testemunham irrefutavelmente um passado certos de que haveria quem mais tarde continuaria o seu trabalho.
que, sem elas, teria mergulhado nas brumas do esquecimento. É Não espanta por, só que os documentos de que se dispõe
por isso preciso ter em consideração que as narrativas homéricas atualmente, e aos quais as técnicas científicas modernas
não são mais do que a expressão duma tradição arcaica expressa asseguram uma maior longevidade, não são de modo algum
numa língua Já clássica, e colocada ao dispor de um público que anteriores ao século X. Quanto aos riscos que estas cópias, sejam
já não era contemporâneo do descrito. O mesmo se passa com as de erro e de ou tenham a ver com simplificação como de
epopéias celtas. O fato de elas terem sido escritas depois de os listem o próprio conteúdo, que é o mais importante, é óbvio que
fatos terem ocorrido (se é que estes são reais, o que está longe de eles existem.
ser provado), ou de eles terem sido posteriormente manipulados,
não significa de modo nenhum que a tradição que veiculam não Existem três manuscritos principais no que respeita à epopéia
seja autêntica. Com efeito, quando se fala de epopéia., o problema irlandesa - ou seja, por conseqüência, a mais antiga epopéia celta:
da autenticidade nunca se deveria colocar, pois ela desemboca o Livre de Ia Vache Brune (Leabhar na hUidré), assim chamado
necessariamente num não-senso: neste domínio, nada é verdade por causa da sua encadernação e que, tendo sido escrito antes de
ou falso e tudo existe na forma imaginada, simbólica, codificada, 1106 no célebre recinto monástico de Clonmacnoise, está
testemunhando a realidade profunda de uma civilização. «Se se atualmente guardado na Royal Irish Academy de Dublin; o Livre
tiver em conta as datas, a saga irlandesa é a que nos dá o tipo mais de Leinster (Leabhar Laigen), anterior a 1160, que se encontra
antigo da epopéia celta.». Esta afirmação de Georges Dottin não no Triníty College de Dublin; e por fim o manuscrito dito
pode ser refutada, pois foram os manuscritos irlandeses, escritos Rawlinson B 502, também do século XII, guardado na BodIeian,
em língua gaélica, que nos transmitiram a maioria das narrativas Library de Oxford. Os três possuem o que existe de mais antigo e
épicas cujo estudo interno prova claramente a sua antiguidade, importante na tradição gaélica. Contudo, a Irlanda continuou a
nomeadamente em relação às que foram reunidas nos manuscritos recorrer aos manuscritos não apenas durante a Idade Média, mas
do País de Gales. E sabe-se, graças a este mesmo estudo interno também no decurso do que se chama Tempos Modernos, isto,
dos textos, que foi a partir do século VII da nossa era que os sobretudo com o objetivo de divulgar as obras em gaélico, que
monges irlandeses começaram o seu paciente trabalho de passar tinham estado proibidas ou, no mínimo, escondidas pelo ocupante
para a escrita a tradição oral gaélica que naquela época ainda era a inglês. O nosso conhecimento da epopéia irlandesa pode ser assim
deles. enriquecido graças a um grande número de outros preciosos
manuscritos. Mencionemos século XV (Trinity
Como é óbvio, estes primeiros manuscritos desapareceram, Collenomeadamente o Livre jaune de Lecan, do séc ?), o Livre
devido à ação do tempo, como aconteceu também com os de BaIlymote, também do século XV, (Royal Irish Academy), o
manuscritos que remontam à Antiguidade e à Alta Idade Média. Livre de Lismore, do mesmo século, atualmente na posse de
Não é de crer que os manuscritos conservados nos nossos dias particulares, sem esquecer o Livre de Fermoy, do século XIV,
com tanto cuidado - e com tanto zelo! - nas bibliotecas e nos mais especializado nos textos religiosos cristãos. Outros, menos
arquivos sejam os originais. São simplesmente cópias de importantes, revelam-nos verdadeiras pérolas raras. Ao todo são
uma centena, estando a maior parte deles guardada na Royal Irish conhecido apresentam-se numa forma elaborada e completa: é o
Academy. Só nos podemos maravilhar quando comparamos esta que acontece com a célebre Razzia des Boeufs de CuaIngé,
abundância com a pobreza dos raros manuscritos galeses e à verdadeiro monumento literário que muitas vezes é comparado à
inexistência dos manuscritos bretões anteriores ao século XVI. Se Ilíada e que está centrada no temível guerreiro Cuchulaínn. Este é
não fosse a Irlanda, nada conheceríamos da antiga epopéia dos também o herói de muitas outras histórias episódicas, o que
Celtas. acontece igualmente com a maioria dos atores, sejam «deuses»,
O que contêm estes manuscritos de valor inestimável? A resposta «demônios», humanos ou seres mágicos. Dir-se-ia que as
é simples: «Coleções muito variadas de narrativas em prosa e em personagens das epopéias eram, sobretudo símbolos pré-existentes
verso, tanto sagradas como profanas versando lendas, história e a a todas as narrativas organizadas, esforçando-se por lhes revelar a
hagiografia, poesia bárdica e lírica, tratados médicos e jurídicos, sua significação profunda ao emprestarem-lhes aventuras
tudo em gaélico antigo, médio ou moderno, sem ter que haver a pretensamente históricas. Esta tendência, que parece fundamental
preocupação da classificação. » O que é admirável é a mistura, em todos os celtas, contradiz formalmente a tese de Evhérnère,
numa mesma narrativa, da prosa com a poesia. «Os trechos em segundo a qual os deuses não passam de humanos divinizados.
prosa, cuja extensão depende dos manuscritos, parece que foram a Com efeito, sobretudo nas narrativas que se podem classificar
princípio simples esboços sobre os quais o improvisador podia como mitológicas, os deuses aparecem nitidamente inseridos na
criar à sua vontade; à medida que os poemas iam desaparecendo, história, devido a esta não estar assente em nenhum
esses trechos iam tomando o seu lugar.» (2) Estes esboços são bem acontecimento real. Aqui se encontra outra característica dos
demonstrativos de urna época em que a escrita estava proibida celtas: quando ignoram a história do seu passado ou a
pelos druidas, transmitindo-se a tradição oralmente por meio de esqueceram, inventam-na. Pode mesmo chegar-se mais longe.
versos que os aprendizes estudavam ao longo de vinte anos, Quando eles não estão satisfeitos com a história vivida, negam-na
podendo enriquecer as suas narrativas quando o Julgassem útil. e criam outra, mais de acordo com a sua mentalidade. Nos celtas,
Além disso, na maior parte das vezes, os trechos em verso das é extremamente evidente a predominância do mito sobre a
narrativas épicas estão repletos de arcaismos que em alguns casos realidade quotidiana.
as torna incompreensíveis embora estes últimos comprovem a sua
antiguidade. Considera-se que todas estas narrativas são Mas o que atrás foi dito não deve ser classificado de acordo com
reatualizações de contos tradicionais que remontam ao fundo dos os padrões habituais. As epopéias irlandesas apresentam uma
tempos. O fenômeno é muito particular na Irlanda, pois, no País desordem mitológica real porque faz lembrar uma bruma artística.
de Gales poucos trechos em verso subsistiram nas narrativas em As personagens aparecem constantemente nas narrativas de
prosa e, na Bretanha armoricana, apenas algumas canções natureza histórica, e encontram-se certos pormenores realistas em
dramáticas, os gwerziou, sobreviveram à turbulência da história e contos cuja beleza se centra no sobrenatural, pois na mentalidade
lembram de algum modo as grandes epopéias que deviam ser celta, irlandesa ou outra, não existem fronteiras entre o mundo
cantadas pelos bardos de outros tempos. visível e o invisível. O sobrenatural, como o próprio nome indica,
Estas grandes epopéias encontram-se nos manuscritos irlandeses, não é mais do que o natural visto um pouco mais de cima para que
mas, na maior parte das vezes, na forma de fragmentos, de se possam observar as realidades escondidas. Neste caso, o real,
episódios que podem ser auto-suficientes embora só se tornem que serve de base a qualquer narrativa verossímil, aparece como
realmente compreensíveis quando se ligam uns aos outros. Certas transcendido, como um autêntico surreal, um mundo do
epopéias que têm como personagem principal um herói bem pensamento interior, à imagem do universo do sidh, ou seja, do
Outro Mundo, que, segundo a crença irlandesa, se encontra no extraordinário rigor.
interior de grandes túmulos megalíticos onde vivem deuses e Deste modo, foi redigido antes do ano 1168 o célebre Livro das
heróis. Estes túmulos abrem-se durante a festa de Samain (noite Conquistas (Leabhar Gabala), que é uma espécie de compilação
de Toussaint), o que permite a intercomunicação entre os dois de contos mitológicos ligados aos sucessivos povoamentos da
mundos. O que há de mais natural? Não há maravilhoso na Irlanda, desde as origens até ao advento do cristianismo. Sabe-se
epopéia celta, apenas há fantástico. Com efeito, é o real que, atualmente que na origem desse livro está a escrita em prosa de
passando por sucessivas metamorfoses, se torna fantástico. um cicio de poemas pretensamente históricos atribuídos a um
certo Gilla Caemain, que morreu em 1097 e cuja obra está hoje
Comportamentos estranhos, cenários surrealistas, desordem do perdida. Mas, tal como se encontra, representando o meio
conteúdo e da forma, são algumas características da epopéia intelectual do século XII e tendo a preocupação de provar uma
primitiva dos celtas, em particular da que os gaélicos da Irlanda identidade gaélica face à invasão anglo-norrnanda, esta obra é de
quiseram transmitir a posteridade. Esta desordem não pode deixar um valor imenso pois permite que se tenha uma idéia mais
de surpreender quem vive ainda à sombra - e ao abrigo - da aproximada do encadeamento das diversas narrativas cujo
tranqüilizante lógica aristotélica baseada no verdadeiro e no falso. objetivo era refazer a história da Irlanda de modo a acentuar-lhe a
Mas os celtas nunca conheceram Aristóteles nem quiseram especificidade e o valor. Assim se explica que apareçam diversas
alguma vez obedecer aos seus apelos ao senso comum, tendo referências bíblicas, sentindo os irlandeses a necessidade de se
preferido permanecer na dialética pré-socrática anterior ao agarrarem a uma filiação honrada e quase dividindo com os
milagre grego, e defender, como o fez Héraclito, que «os mesmos romanos na fábula de Eneida, filho de Vênus, e como ocorreu
caminhos que fazem subir fazem também descer». Não é um também na mesma época com os bretões insulares que, pela pena
paradoxo mas uma pura verdade lógica demonstrar que qualquer de Geoffroy de Morrinouth, afirmaram que o seu antepassado
juízo humano depende do seu sistema de referência, por outras epónimo Brutus era um descendente de Eneida, e por isso de
palavras, da polaridade da ação, tudo dependendo do que se essência troiana e divina. Como é evidente tomavam-se os desejos
entende por «alto» e por «baixo». Além disso, os latinos, apesar por realidades, ao mesmo tempo que se conciliava a tradição
de considerados lógicos, empregavam o mesmo termo, altus, para druídica pagã com a tradição judaico-cristã passando pelo Egito e
classificar a altura e a profundidade, o que parece ter caído no pela Grécia. O mesmo acontecerá alguns séculos mais tarde com a
esquecimento. Quanto à desordem surpreendente da epopéia celta, História da Irlanda de Geoffroy Keating que, escrita cerca de
esta não passa de uma aparência enganadora: os poetas e os 1640 e retomada em diversos manuscritos, só foi impressa em
contadores irlandeses sabiam muito bem o que estavam a fazer, 1723 através de uma tradução inglesa. Tanto o Livro das
pois alguns deles reconstituíram o plano de conjunto a partir de Conquistas como a História da Irlanda estão repletos de
contos mitológicos desordenados ou em forma de fragmentos, testemunhos da antiga epopéia celta, que desafia o tempo e o
procedendo assim do mesmo modo que um Chrétien de Troyes e espaço.
outros autores franceses da Idade Média que, através de contos
arturianos aparentemente desprovidos de continuidade, Sendo verdade que estes manuscritos não apresentam a realidade
escreveram e prolongaram a grande epopéia do Graal e da Távola histórica, não deixa de o ser também que contêm numerosos
Redonda. Com efeito, as epopéias irlandesas formam um ciclo elementos filosóficos e metafísicos, assim como reflexões
perfeitamente coerente que, não sendo sempre de fácil sociológicas, que os antropólogos modernos não desdenhariam.
discernimento, aparece, no entanto como um esquema de um Assim, a enumeração e as características dos diversos povos que
ocuparam a Ilha Verde - Ou seja, a Irlanda - desde o dilúvio são os druidas pelos padres, os abades e os bispos junto dos chefes
muito esclarecedoras. Os primeiros invasores, a tribo de dos clãs e das tribos. Esta invasão dos milesianos corresponde ao
Partholon, são de um tipo que se pode classificar como nascimento duma sociedade baseada no equilíbrio entre as duas
vegetativo, preocupando-se unicamente em sobreviver, abrigar-se forças que a compõem, a política (os gaélicos) e a religiosa (os
e procriar, imagem esta que corresponde numa perspectiva druidas, portanto os Tuatha Dê Danann). Esse equilíbrio deriva
simbólica, ao que existe de mais primário na civilização, Os de, após o triunfo dos Filhos de Milé sobre os Tuatha, estes não se
segundos invasores são membros da tribo de Nemed: ora, o nome terem deixado eliminar e, segundo um acordo solene, terem ficado
nemed significa «sagrado», o que indica desde logo, claramente, na posse dos túmulos e das ilhas maravilhosas que rodeiam -
uma reflexão metafísica ou religiosa numa sociedade que até miticamente - a Irlanda, enquanto os gaélicos ocuparam a
então só tinha preocupações materiais. Os terceiros invasores são superfície da ilha. Graças à Incontornável colaboração entre o
os Fir Bolg: também neste caso o nome é significativo, pois fir druida e o rei, absolutamente indispensável para que qualquer
quer dizer «homens» (vide o latim vir) e bolg tem uma raiz indo- grupo possa subsistir, a estrutura da sociedade celta é um
europeu que também deu em latim fulgur, «trovão».”’ Como é verdadeiro modelo de harmonia entre o mundo visível e o
óbvio, os Fir Bolg são sobretudo ferreiros, mestres do fogo e invisível. Além disso, a sociedade descrita na epopéia é composta:
inventores de técnicas artesanais novas, destinadas à guerra ou a por muito que os Tuatha sejam tanto criaturas feéricas como
trabalhos agrícolas. divinas, misturam-se com os seres humanos intervindo nos seus
assuntos. Acontece também que os elementos originários da tribo
Os quartos invasores da Irlanda são os famosos Tuatha Dê de Nemed e dos Fir Bolg estão sempre presentes. E toda esta
Danann, as «Tribos da deusa Dana», deusa-mãe cujo nome está gente se vê constantemente confrontada com um misterioso povo,
associado a numerosos termos vizinhos do Médio Oriente, em o dos Fomore, seres gigantes que, habitando em ilhas longínquas,
particular Tanait, ou também Anáta, assim como a rios como o têm numerosos pontos em comum com os ciclopes da tradição
Don e o Danúbio (Tanaüs). Segundo a tradição, essas tribos helênica e os gigantes da mitologia germano-escandinava. Tal
vieram «das ilhas do norte do mundo», tendo introduzido na como eles, provocam freqüentes distúrbios e atacam sempre que
Irlanda a ciência, a magia e o druidismo. Elas são por isso há uma vaga de conquistadores da Ilha Verde, simbolizando,
detentoras de uma sociedade fortemente hierarquizada à maneira como é evidente, as forças obscuras do inconsciente, os poderes
indo-européia, baseada em princípios mais ou menos teocráticos e da destruição e do caos que devem ser constantemente combatidas
onde predomina uma organização sacerdotal. Além disso, os para assegurar não apenas o equilíbrio mas também a
heróis dos Tuatha Dê Danann são as antigas divindades do sobrevivência de uma sociedade dita civilizada.
druidismo celta triunfante.
Com efeito, os confrontos são constantes. Nada é definitivo, e o
Os quintos conquistadores da lha Verde são chamados, nas retomar dos problemas gerais processa-se ao ritmo das estações e
narrativas, «Os filhos de Milé», ou os «milesianos», surgindo do dos dias. Durante largos períodos de adormecimento, a tensão vai-
Oriente e passando por Espanha. Correspondem precisamente aos se acumulando, cresce, exacerba-se e acaba por se manifestar,
Gaélicos e representam a sociedade irlandesa tradicional, tal como ocorrendo então as guerras, as aventuras expedicionárias, os
a descobriram os primeiros missionários cristãos, e tal como ela acontecimentos imprevistos. Ora, estas crises não são fruto do
era ainda quando da chegada dos anglo-normandos de Henrique II acaso nas narrativas épicas, podendo constatar-se que elas
Plantageneta, apesar de uma cristianização que tentara substitLir coincidem sempre com uma data essencial do calendário celta, o
que demonstra que de certo modo se trata de rituais realizados manuscritos irlandeses formam uma verdadeira saga (termo que
segundo um plano bem determinado e com um significado costuma estar reservado às homólogas escandinavas), análoga à
profundo. As invasões, por exemplo, encontram-se sempre que Honoré de Balzac tentou fazer ao compor os múltiplos
datadas à volta do 1 de Maio, e as guerras, no decurso das quais episódios autônomos da Comédia Humana. Com efeito, nestes
morre um rei, ocorrem à volta do 1 de Novembro. O conjunto últimos encontra-se de tudo um pouco: fragmentos da vida
obedece a um esquema superior que os múltiplos autores das quotidiana, lutas intermináveis pelo poder, a voracidade de
narrativas épicas conheciam perfeitamente, o que faz supor que o tubarões de dentes afiados, o sacrifício de inocentes, histórias de
corpus da epopéia celta da Irlanda exprimia a tradição mais antiga amor de partir corações, assassínios, barbáries, proezas heróicas,
e mais específica dos povos celtas originais que sobreviveram a delírios poéticos ou proféticos, e ainda muitos outros elementos
todas as migrações e a todas as vicissitudes.”’ que são comuns à antiga epopéia celta, assim como ao gemo
romanesco muitas vezes inspirado pelas vozes do invisível.
Sabe-se, com efeito, que o calendário dos celtas estava ordenado
segundo um eixo fundamental que ia da festa de Samain (1 de É um fato inegável que a saga romanesca de Balzac se alimenta
Novembro) à da Beltaine (1 de Maio)”’, ou seja, guiava-se em inconscientemente de mitos existentes na sociedade da primeira
função da entrada e saída do Inverno. A datação das invasões no metade do século XIX. As personagens que encontramos na
fim do Inverno e no começo da estação estival corresponde Comédia Humana e que vão aparecendo, aparentemente em
portanto a uma realidade simbólica, tratando-se de um novo desordem, nos diversos trechos narrativos, são absolutamente
princípio, de um novo nascimento, de um novo ciclo. Quanto à indispensáveis para a coerência do plano de conjunto que foi
morte de um rei no início do Inverno, não há aqui senão a idealizado pelo seu autor. Todas elas representam arquétipos, e
constatação de um certo adormecimento, de uma interrupção das facilmente poderíamos identificá-los com certos heróis, não só da
atividades da função real, guerreira e pastoral, sendo esta última epopéia celta da Irlanda, mas também da epopéia humana em
particularmente importante no caso da Irlanda, pois a Ilha Verde geral. O ingênuo, mas poderoso Rastignac tem o seu
foi sempre e continua a ser o país por excelência da criação de correspondente irlandês em Lug do Braço Longo e no seu
gado, o que explica que a estrutura social dos gaélicos estivesse prolongamento humanizado Cúchulainn; o tímido Rubempré
profundamente dependente da criação de gado, a única verdadeira encontra-se na tocante personagem de Dermot (Diarmaid), e a
riqueza destes povos ainda marcados pelo nomadismo e cujas pobre Esther Gobseck na de Déirdré, tão exaltada por John
fronteiras jamais ultrapassavam os territórios do rei, ou, dito de Millington Syngee é a imagem perfeita da Irlanda oprimida e
outro modo, a sua prosperidade dependia de poderem contar com martirizada. Quanto a Vautrin, ser proteiforrme, é o Thersite
a proteção do rei na sua atividade pastoril. Este é um dado muito grego, o Lóki germano-escandinavo e o Bricriu irlandês, ou seja,
importante a ter conta se quer compreender, na sua expressão uma das imagens fundadoras do Diabo medieval, o próprio
irlandesa, o sentido profundo da epopéia celta. símbolo do Tentador que, para melhor semear a discórdia, se
mascara com as feições benevolentes do deus Ogma da palavra
Há, por conseguinte nesta grande quantidade de narrativas dourada, ou então com as feições dum estranho Côroi mac Dacré
aparentemente independentes uma coerência que deixa supor um que muda de forma e de aspecto sempre que quer enganar um
conjunto de situações regidas pelos costumes e as crenças dos rival. Honoré de Balzac não conhecia rigorosamente nada das
antigos celtas. Uma comparação se impõe desde logo, mesmo que lendas irlandesas, mas o gênio de um artista de qualquer época
pareça paradoxal: as diversas narrativas recolhidas nos traduz-se em encontrar através da sua criação própria os grandes
mitos fundadores da humanidade, os mitos imperecíveis que metafísica encontra-se nos mais pequenos pormenores da epopéia
moldam a estrutura de um pensamento humano e que se e, graças a eles, respira-se uma esperança e uma serenidade que
manifestam através de imagens e de símbolos que remontam à fazem com que cada pessoa encontre o caminho para o pedaço de
noite dos tempos. Além do seu exemplo, outros poderiam ser aqui infinito que lhe coube.
referidos.
Acontece na verdade que os heróis, em algumas peripécias em
Passando adiante, refira-se que do conjunto de episódios que se enredam, estão constantemente nas fronteiras do real e
preciosamente recolhidos pelos transcritores irlandeses, saíram pronto a envolverem-se com um além, sendo a atmosfera
várias personagens com características bem vincadas, com um essencialmente sagrada, embora permeada aqui e ali por alguns
profundo valor simbólico, e com o seu lugar na sociedade elementos realistas. É absolutamente verossímil que estas
irlandesa e na estrutura mental dos celtas. O mínimo que se pode narrativas, independentemente da forma em que chegaram até nós,
dizer é que elas são «cheias de cor» e inesquecíveis, tão forte é o sejam a expressão narrativa, de algum modo romanesca, de
poder de evocação que exercem sobre o imaginário. Apeteceria antigos rituais religiosos, de velhos dramas litúrgicos que,
chamar-lhes «divinas», se este epíteto tivesse um verdadeiro entretanto se perderam e nos quais cada personagem era um
significado no espírito dos contadores: na verdade tudo leva a crer sacerdote, um druida e portanto um deus, ou então aspirava a sê-
que os druidas professavam a existência de um deus único, lo; os atos são às vezes orações mais eficazes que as palavras,
incomunicável e inominável, ao qual por vezes era dada uma sobretudo quando estas são pronunciadas de tal maneira que mal
aparência humana para que pudesse ser inteligível. Com efeito, as se compreende o seu sentido. A regra absoluta é por isso a
personagens «divinas» que deambulam pelas epopéias celtas não superação, pois, na perspectiva celta que encontramos nos textos,
passam de funções divinas materializadas, concretizadas e Deus não é, mas transforma-se, participando todos os seres desta
encarnadas por seres que, apesar de terem características transformação.
perfeitamente humanas, são dotadas de poderes sobrenaturais ou
mágicos, trata-se de homens e mulheres que, por natureza ou Estes seres comportam por isso diversas facetas, não sendo bons
graças a uma paciente iniciação, atingiram um grau muito elevado nem maus: eles serão. Os seus nomes pouco importam, pois
de sabedoria e de poder assimilando funções divinas de que são trocam-se entre si; também pouco importam as suas ações
agentes e donos. aparentemente vis, pois pertencem à sua massa bruta. Eles serão
heróis com o seu lugar na subtil e complexa liturgia que decorre
Quer isto dizer que essas personagens diferem profundamente dos no mundo desde que apareceu o primeiro ser vivo. O jogo
«atores» da epopéia grega, deuses ou semi-deuses, que, começa. Assim se encontram as personagens na abertura da cena,
classificados a título definitivo como imortais, se sobrepõem à ou melhor, nos primeiros degraus do santuário. Na tragédia antiga
ação humana, dominando-a, ou mesmo contrariando-a sempre que era o coro que, apresentando os heróis, abria o ritual. Neste caso,
ela desafia os limites impostos pelo Destino. Os deuses gregos são uma testemunha vem contar o que viu, pois qualquer narrativa
polícias e censores encarregados de manter a ordem numa histórica deve ser Justificada por uma tradição autêntica ou tida
sociedade ideal onde cada pessoa tem um lugar definitivo. Os como tal. Aqui a testemunha é uni homem estranho, Tuân mac
pretensos deuses celtas são treinadores que mostram ao conjunto Cairill, acerca do qual se diz ter vivido várias vidas desde a época
dos seres humanos como se transforma um mundo que ainda mal do dilúvio tomando diversas aparências. Em narrativas análogas,
saiu do caos e se o leva a um estado de perfeição. Esta atitude substitui-o um certo Fintan, filho de Boclira e descendente de
Noé. Pouco importa: era necessário uma testemunha fidedigna e certo sentido se poderia comparar ao Zeus grego e ao Júpiter
encontrou-se uma. Além disso, como estas histórias foram romano. Nuada evoca também o Tyrr germano-escandinavo (e a
redigidas na era cristã, impunha-se a canção da nova religião: esta personagem pseudo-histórica latina Mucius Scaevola), pois perde
canção encarna no monge São Firmen a quem Tuân vai contar o um braço durante uma batalha. Na tradição germano-escandinava
que sabe ou, noutra versão, no célebre santo Colum-Cill (como na tradição latina), a «mutilação» deriva de um juramento
(Colomba). Além disso, mais tarde, quando se tratou de simulado pronunciado com plena consciência para proteger o
transcrever a grande epopéia dos Fiana à volta de Finn e de Oisin mundo divino, mas na tradição celta trata-se antes de uma ferida
(Ossían), foi o próprio São Patrícío, o grande evangelizador da heróica, o problema, no caso dos celtas, consiste em que a
Irlanda, que veio a evocar a grande sombra do herói Caílté, um integridade física do rei anda a par da sua integridade moral: um
dos companheiros de Finn, para lhe contar as aventuras de que ele rei doente ou mutilado não pode reinar, pois se o fizesse o seu
foi ao mesmo tempo testemunha e ator. Acontece, porém, que próprio reino estaria doente ou mutilado, devido a ambos
Cailté tem uma dimensão humana normal e viveu apenas uma constituírem uma unidade. Contudo, como entre os celtas as
vida. Tuân mac Cairill tem um aspecto mais mágico, roçando as fronteiras do real não são claras, há sempre uma maneira de
fronteiras do sobrenatural, fazendo lembrar o bardo galês Taliesin inverter uma situação catastrófica, bastando um braço de prata
que, ao nascer uma segunda vez, adqLiriu um conhecimento para que Nuada readqLira a plenitude das suas funções reais.
supremo, e lembrando também Merlim, o Encantador, da lenda Assim, ele poderá nominalmente levar à vitória as tribos da deusa
arturiana, filho de um diabo, mestre da magia e da profecia, que, Dana contra as forças obscuras - e obscurantístas - representadas
segundo os próprios textos, confia ao eremita Blaise a missão de pelos Fomore, os demônios de um olho único e maléfico que têm
passar para a escrita as aventuras do Santo Graal, de forma a por chefe o gigante Balor, o trovejador.
chegarem à posteridade.
Entretanto, a sociedade representada pelos Tuatha Dê Danam está
Este procedimento permite recuar no tempo e tirar da sombra constituída de forma a refletir a sociedade humana, agrupando,
grandes figuras que vão cumprir o ritual, «recuperando-se» os por vezes de forma elitista e aristocrática, um certo número de
antepassados míticos, como Partholon, o primeiro invasor de uma indivíduos que tanto representam arquétipos de funções sociais,
Irlanda completamente deserta a segLir ao dilúvio, como Nemed, como são de alguma forma especialistas duma arte (podendo esta
o primeiro sacralizador da terra da Ilha Verde, ou como os palavra significar também técnica). O rei Nuada acaba por ser o
invasores sucessivos, até ao famoso Tuhatha Dê Danann, que são eixo de um mecanismo complexo que só pode funcionar se cada
verdadeiramente heróis civilizadores e os pilares da sociedade peça estiver no seu lugar. Um rei que não esteja acompanhado de
celta teórica, Na verdade, estas figuras míticas estão organizadas e guerreiros, de artesãos, de «sábios», de sacerdotes, de mágicos e
hierarquizadas segundo o modelo sociocultural indo-europeu, de poetas, não possui nenhuma relevância. ’Que seria do fabuloso
servindo de fio condutor a tudo o que foi edificado na Irlanda e rei Artur sem os seus cavaleiros e sem o seu adivinho? O mesmo
desejando conservar, apesar da ocupação anglo-normanda, a acontece com Nuada. À sua volta encontramos personagens como
memória dos velhos gaélicos, depositários de toda uma tradição Ogma, o mestre da palavra - aquele Ogrulos que o filósofo grego
de sabedoria e de concepção do mundo. Luciano de Samosata descreveu com correntes que, saindo da
língua, chegavam às orelhas dos humanos - o artífice do bronze
É assim que surge a figura hierática de Nuada, rei das tribos da Credne, o ferreiro Goibniu, o médico Diancecht e muitos outros
deusa Dana, ponto de equilíbrio desta sociedade ideal, e que num artistas que participam numa espécie de conferência onde cada
um tem voto na matéria. De entre eles destaca-se a grande figura jogos, nos seus assuntos e nas suas batalhas. Alguns contos
de Dagda, cujo nome significa literalmente «bom deus», e que populares descrevem-no como estando sempre escondido no meio
tem como apelido Ollathair, isto é, «pai de todos». do arvoredo, pronto a intervir no caso de a ordem do mundo ser
alterada. Este «jovem filho» é, em suma, uma espécie de
Este apelido é precisamente o epíteto de Odin-Wotan, Affiadir, consciência universal, sempre latente no espírito humano e capaz
mas Dagda, ao que parece, apenas tem em comum com o deus de se manifestar tanto para operar grandes milagres como para
germano-escandinavo uma certa ambiguidade do caráter. Do infligir os piores castigos.
mesmo modo que Odin-Wotan é o deus dos contratos e não pára
de troçar deles, Dagda, enquanto «bom deus», possui uma maça Todos estes extraordinários membros da tribo da deusa Dana
muito estranha que mata com uma das suas extremidades e formam uma espécie de sociedade ideal onde predominam as
ressuscita com a outra. Não será ele o equivalente do deus gaulês estruturas celtas. Cada um deles é «rei» nos seus domínios,
Sucellos, que estava sempre armado com um martelo e cujo nome «reina» sobre um palácio maravilhoso, ou sobre um outeiro
significa «aquele que bate»? Ou tratar-se-á de Teutates, ou megalítico; entre eles existem laços que tanto podem ser de
Toutatis, o «pai do povo»? Seja como for, à medida que, com os aliança pura e simples, como familiares ou meramente
séculos, ele se foi «folclorizando», transformou-se no Gargantua contratuais. Após a batalha de Tailtiu e a partilha da Irlanda com
da tradição francesa, que Rabelais tão bem soube recuperar e os milesianos, foi Dagda que, na hierarquia, ocupou o lugar
revalorizar. Trata-se com efeito de um gigante dotado de uma primeiro, como se fosse o rei supremo possuidor de uma
potência sexual fora do comum e de um apetite voraz. Além disso, autoridade moral incontestável e de poderes para exercer a
possui um caldeirão maravilhoso, um dos arquétipos do Graal, no justiça. Esta proeminência encontramo-la também na
qual verte um alimento inesgotável. Mas ele é também um artista personagem de Mananann, filho de Lir, epónimo da Ilha de Man:
no sentido que atualmente se dá à palavra, pois consegue extrair este reina sobre a misteriosa «Terra da promessa», que também
da sua harpa sons que fazem chorar e mesmo morrer, que se chama Tir-na-nOg ou «País da Eterna Juventude», que é na
provocam alegria e riso, ou que adormecem quem quer que os verdade uma espécie de paraíso situado algures em ilhas
ouça. longínquas, a ocidente, evidentemente, ilhas estranhas com uma
vegetação maravilhosa e com grandes espaços conhecidos pelo
E, como Dagda é o «pai de todos», possui diversos filhos, com nome de Mag Mell ou «Planície das Fadas». Acontece, entretanto
quem tem um relacionamento de contornos muito pouco claros. que estes domínios estão situados sob um lago, e às vezes mesmo
Da sua irmã - ou filha - Boann, epónimo do rio Boyne, ele tem, sob o mar: o Outro Mundo, para os celtas, está sempre muito
após manobras perfeitamente delatórias, um filho que se chamará próximo do mundo dos vivos, que nele podem penetrar. No que
Oengus (Angus) e cujo apelido será Mac Oc, ou seja, «jovem respeita às «boas gentes», termo popular que se refere aos seres
filho». Oengus é uma das personagens mais célebres da tradição feéricos, deambulam pelo mundo humano sem quaisquer
gaélica e uma das que mais se enraizou na memória popular. Rei problemas, possuindo o dom da invisibilidade e podendo assumir
feérico, ele é o senhor do caer megalítico mais famoso do mundo, um aspecto humano sempre que o desejem; podem também tomar
o de Newgrange (em gaélico, Sidh-na-Brug ou Brug-na-Boyne), a forma de aves, o que acontece, sobretudo quando se trata de
que serviu de inspiração às grandes lendas da tradição épica mulheres.
irlandesa. E se Oengus tem uma essência divina, não deixa por
isso de se vir misturar com os humanos, intrometendo-se nos seus Entre todas estas personagens, Dagda, Mider, Oengus, Mananann
e muitos outros, há uma que é muito particular e que escapa a o conjunto da comunidade da qual o rei - acessoriamente o marido
qualquer hierarquia: Lug, ao qual estão associados dois epítetos, - é a trave mestra teórica, um pouco como acontece no jogo de
Lanifada, isto é, «braço longo», e Samildanach, «artesão xadrez em que a rainha é a peça de maior mobilidade, mas onde o
múltiplo». Lug constitui a figura da divindade celta mais rei é uma peça fundamental sem a qual se perde a partida. Nas
difundida, não apenas na Irlanda mas em todo o continente narrativas épicas aparecem também mulheres mágicas, e
europeu, devendo-se a ele o nome de várias cidades, como Lyon, frequentemente feiticeiras, como Funinach, primeira esposa de
Laon, Loudun, Leyde e Leipzig, que derivam da antiga Mider, inimiga jurada da bela Etaine, e mais tarde mulheres-
designação Lugudunum, «fortaleza de Lug». É a ele que se refere guerreiras iniciadoras dos jovens e temíveis sacerdotisas
Júlio César, nos seus Comentários, quando menciona um especialistas em manipular os sortilégios. Estas mulheres nunca
Mercúrio gaulês, fazendo notar que se trata do deus mais deixam de viver em plenitude, arcando com as conseqüências dos
venerado de toda a Gália. A sua origem é dupla: ele pertence ao seus atos. Por muito conscientes que estejam do seu poder, não
ramo dos Tuatha Dê Danann pelo lado do pai, e ao dos Fomore esquecem que podem morrer de amor, estando sujeitas às
pelo lado materno, o que faz com que só ele seja capaz, na circunstâncias que lhes alimentou a paixão voraz e ilimitada e aos
segunda batalha de Mag-Tured (Moytura), de enfrentar o avô, caprichos do fado, ou seja, à força de um Destino desconhecido,
Balor, de olho malévolo, e de matá-lo. Além disso, sem que ocupe mas imanente. E preciso não esquecer que a origem da história
nenhum lugar na hierarquia, ele é o organizador por excelência e trágica de amor de Tristão e Isolda, tão célebre no mundo
o artesão da vitória final nesta batalha. Isto se deve ao fato de ele ocidental e chegando a ser considerada o símbolo do amor
ser um deus para além de todas as funções, reunindo o conjunto humano, está claramente inscrita na epopéia celta da Irlanda.
das qualidades que se nos encontram outros deuses; ele é na
verdade o «Múltiplo artesão», tal como o será mais tarde, na lenda A característica mais saliente destas heroínas femininas épicas é
arturiana, Lancelote do Lago, que e a sua imagem heroicizada e apresentarem múltiplas aparências, múltiplos rostos, múltiplos
tomada romanesca. semblantes, geralmente três, tendo em consideração o número
simbólico sagrado dos Celtas, o qual tanto se apresenta com a
Na epopéia celta encontram-se personagens femininas que nada forma de tríade como de triskell, a tripla espiral que, girando à
ficam a dever aos homens. Segundo a tradição, a Irlanda era volta de um ponto central, simboliza por excelência o universo em
habitada, antes do dilúvio, por uma mulher primordial de nome expansão. As heroínas aparecem por isso com inúmeras
Cessair; e a própria Irlanda se tornou uma entidade divina ou aparências e nomes, em diferentes épocas e em encarnações
feérica, Banba, a qual, segundo algumas versões da lenda, teria sucessivas. Refira-se em primeiro lugar a tripla Brigit, que se diz
sobrevivido ao dilúvio, assegurando assim a perenidade da terra filha de Dagda (a não ser que ela não seja sua irmã), e que vem a
situada nos confins do real. Foi também uma mulher, a filha do ser nem mais nem menos que a Minerva gaulesa de quem fala
deus-médico Dianceclit, que, graças à sua ciência e magia, César, deusa das técnicas, das ciências e das artes, que os cristãos
devolveu o poder real ao Nuada vencido, fabricando-lhe um braço recuperaram com o vocábulo «santa» Brígida atribuindo-lhe a
de prata tão eficaz e vivo como o seu braço de carne, e fazendo- fundação do célebre mosteiro de Kildare, antigo lugar de extrema
lhe um «implante» graças a uma extraordinária «operação» importância do culto druídico. Ora, esta Brigit é também, com o
cirúrgica. Acontece, com efeito, que, na perspectiva celta, as nome de Boann, a mãe de Oengus, o Mac Oc que concebeu e deu
mulheres são dotadas de poderes ignorados pelos homens. A à luz durante o espaço temporal da noite de Samain, ou seja,
mulher é sempre a imagem simbólica da Soberania, pois encarna simbolicamente, durante a abolição do tempo, a eternidade. Brigit
encarna a vida eterna, e o seu nome, derivado de Bo Vinda, «vaca precisamente o mesmo dom de se metamorfosearem. Além disso,
branca», mostra bem até que ponto se encontra associada a um é de crer que a mulher feérica que leva um ramo de macieira de
alimento inesgotável, o leite, elemento indispensável aos povos Emain ao herói Bran, filho de Fébal, antes de levá-lo a
exclusivamente nômades e pastores, como era o caso dos celtas. A empreender uma estranha navegação, seja a própria Morrigane,
simbologia do seu nome dará os seus frutos, e Boann toma-se o embora o seu nome não seja pronunciado neste episódio. Porque
rio Boyne (grafia moderna) que fecunda com as suas águas doces não havia de reinar a «grande rainha» nesta terra bem aventurada
um vale verdejante ao redor do qual se situam os grandes outeiros de frutos maduros durante todo o ano e onde não existem a
feéricos, que são domínio dos deuses. E se o nome Brigit (que doença, a velhice e a morte? Seja como for, a ilha misteriosa de
significa «poderosa», «alta», «luminosa») é extremamente Emam Ablach é o equivalente, quer lingüístico quer mitológico,
significativo, Boann, representando a riqueza avaliada em cabeças da ilha de Avalon, a fabulosa Insula Pornorum para a qual
de gado entre os celtas, constitui a alma duma sociedade onde convergem todos os fantasmas da humanidade sofredora.
predominam claramente as tendências ginecocráticas.
Morrigane é bem o tipo de mulher celta vista pelos autores das
O terceiro rosto de Brigit-Boann, o de Morrígan (genítívo de epopéias mitológicas; e, muitas vezes, vamos encontrar este tipo
Morrigu), filha de Ernirias, uma das personagens mais marcantes nas personagens femininas que, na fronteira entre o humano e o
da tribo da deusa Dana, é de difícil apreensão devido aos seus feérico, possuem dons mais ou menos sobrenaturais e o poderoso
contornos pouco claros. O que nela melhor se evidencia, em geis, ou seja, o poder do encantamento mágico que tem o valor de
particular na narrativa da batalha de mag-Tured, é o fato de se obrigação absoluta para aquele ou aquela que dela é objeto. O
tratar de uma divindade guerreira temível para os seus inimigos belo Dermot, filho de O’Duibhné, um dos companheiros de Finn
durante os conflitos enquanto exortava os guerreiros a mac Cool, conhecerá bem esse fenômeno, pois subjuga o geis da
combaterem com encarniçamento. O furor guerreiro de que ela dá bela Grairiné (Grania), perdidamente apaixonada por ele. Os
provas abundantemente desdobra-se num furor sexual desabrido filtros do amor pouco podem fazer face ao encantamento mágico e
que a transforma senão numa divindade do amor, ao menos numa religioso que faz intervir o mundo invisível e faz depender os atos
espécie de deusa do erotismo. A fúria guerreira e a sexual andam humanos das divindades invisíveis. A jovem Etaine,
assim a par, e nos prolongamentos da epopéia celta encontram-se profundamente amada pelo sombrio deus Mider (que tem
numerosas mulheres guerreiras que têm poderes mágicos e são numerosos pontos em comum com Méléagant de Chrétien de
especialistas na arte militar, ao mesmo tempo que são iniciadoras Troyes), não escapa também ao geís lançado pela sua rival
dos futuros heróis, como é o caso, por exemplo, de Cuchulainn ou Furimach, e nada neste mundo a consegue poupar ao longo
de Finn mac Cool. período de turbulências e depois de metamorfoses que a afetarão
profundamente. Apesar disso a aventura de Etaine e de Mider é
O nome de Morrigane (Morrigu) que significa «grande rainha» uma história de amor «normal», na mais bela tradição romântica.
evoca o da «fada» Morgana das novelas arturianas e do ciclo do Na epopéia celta, no entanto, o amor não é um sentimento isolado,
Graal, tratando-se, em qualquer dos casos, do mesmo arquétipo, fazendo parte das grandes mutações que se operam no universo,
ao mesmo tempo guerreiro, sexual e mágico. A Morrigane da tudo se dirige, por entre as diversas peripécias psicológicas, para
epopéia irlandesa toma muitas vezes o aspecto duma gralha, uma dimensão cósmica à qual ninguém consegue escapar. O que é
chamando-se então Bobdh. A analogia com Morgana é evidente, posto em relevo é muito menos a natureza fatal da paixão amorosa
pois ela e as suas companheiras da Ilha de Avalon possuem do que a sua necessidade metafísica. Acima de tudo, procura
transmitir-se a idéia de que, a existir um deus, Ele só pode ser o É nessa universalidade dos sentimentos que se encontra a
amor, pois este constrói o mundo, e a mulher, que é iniciadora por extraordinária riqueza destas epopéias fragmentárias dispersas nos
essência, é capaz de dar, com o seu amor, um segundo vários manuscritos da Idade Média, cujas linhas diretrizes são
nascimento, o nascimento na eternidade, àquele que escolheu agora fáceis de reconstitLir. Para além de nos fazerem refletir,
amar. num plano metafísico, sobre o mundo e sobre as relações entre o
visível e o invisível, essas epopéias testemunham uma
Existe muito a idéia, formada ao longo dos tempos, de que a sensibilidade que em nada é inferior àquela que o romantismo
epopéia não deixa nenhum espaço para a vida afetiva, para o pretendeu inventar. Estas diversas narrativas que nos chegam do
estudo do comportamento psicológico dos heróis, cuja descrição passado têm um valor que vai muito para além de serem um
permanece demasiadas vezes ao nível do exterior, estereotipada testemunho de um mundo imerso em sombras, pois nelas palpita a
segundo as normas do gênero. Naturalmente, as personagens das beleza de histórias que devem ser transmitidas de geração em
epopéias são arquétipos carregados de significação simbólica, mas geração com a plena certeza de que nelas o belo, a bondade e o
não deixam por isso de ser dotadas de reações humanas e por isso salutar andam de mãos dadas. A árvore do conhecimento não
de vida interior. Naturalmente, há um aumento do que se chama poderá apontar as suas ramagens frondosas para o céu se as suas
qualidades, aumento que é indispensável para se pôr em destaque raízes não estiverem ricamente alimentadas pelas sombras que
as ações fora do comum. E verdade que existe também uma deambulam pela terra, como é o caso das dos fantasmas que
simplificação destinada a inserir as personagens e as ações num esperam desesperadamente pelo momento de encamarem. E só a
determinado quadro acessível a um público que não compreende a poesia pode permitir que se cumpra esta subtil operação
profundidade e as subtilezas da psicologia. Apesar disso, não se alquímica.
deve esquecer que os heróis são humanos, mesmo quando são
apresentados como sobre-humanos. E tanto nas narrativas épicas Para que o objetivo se realize, toma-se necessário que se viaje
da antiga Irlanda como nas da antiga Bretanha, são seres humanos para as estranhas fronteiras do real, aí onde o sonho e a realidade
que descrevem outros seres humanos que, ao atravessarem a vida, formam duas vertentes duma mesma e única montanha.
tanto passam por situações de incerteza, de angústia e de grande
sofrimento como, por outro lado, também são capazes de viver Paul Fetan, 1997
grandes alegrias e de desfrutar de momentos de grande felicidade.
O amor de Mider por Etaine comove-nos porque se trata de um
amor que qualquer homem pode ter por uma mulher. O furor
guerreiro com que Lug vinga a morte do pai, não poupando os ADVERTENCIA.
descendentes do seu assassino, é bem demonstrativo do
sofrimento que lhe provoca a injustiça de que o seu pai foi vítima. A narrativa que se segue não é uma tradução nem uma
A estranha paixão de Oengus pela mulher que entrevê através da adaptação de textos originais, ainda menos uma ficção
neblina e o encantamento de Bran, filho de Fébal, quando ouve a romanesca inspirada por temas épicos. Trata-se da reescrita da
voz da rainha das fadas louvar-lhe os encantos da ilha bem grande epopéia dos celtas, tal como é possível reconstituí-la com
aventurada, são sentimentos perfeitamente humanos que qualquer o auxilio de múltiplas histórias contidas nos manuscritos
pessoa poderia sentir. irlandeses da Idade Média, histórias que aparecem como sendo
as mais antigas conservadas da tradição celta. Esta reescrita
obedece a dois imperativos: contar com a máxima simplicidade parte da manhã seguinte até que assomou sobre as suas cabeças
possível, numa linguagem acessível ao maior número de pessoas, um sujeito de compleição imponente, de cabelos brancos e barba
e respeitar integralmente o esquema dramático original. E esse o abundante, que, depois de os ter observado, se dirigiu a Finnen e
motivo por que se fará, em cada episódio, uma referência precisa se ajoelhou diante dele. «Saúdo-te, homem de Deus! » disse ele.
ao texto que lhe serviu de base. As obras do passado pertencem «Permite-me que faça frente ao desafio que lançaste às gentes
ao patrimônio da humanidade, mas torna-se necessário às vezes deste país e que, desse modo, não se possa dizer que o costume
relembrá-las a um Público novo. Era já essa a tarefa dos da hospitalidade foi traído, recaindo a culpa sobre cada um de
transcritores da Idade Média, que aqui volta a ser proposta. nós. Eu não moro longe, e pedi aos meus criados que acendessem
Naquele tempo, o abade Finnen”’, na companhia de seis dos seus o lume para cozer os alimentos no meu caldeirão. Vem, homem
discípulos, percorria a terra da Irlanda para ai pregar o de Deus; tu e os teus companheiros terão uma acolhimento digno
Evangelho e batizar aqueles que ainda não tinham recebido o daquele que vos envia a pregar a sua mensagem aos povos desta
batismo. Um dia acercou-se ele de uma fortaleza que se erguia ilha.» Finnen ergueu-se e cumprimentou o velho. «Quem és tu
numa margem, ao fundo de uma baía, numa região muito isolada que me chamas homem de Deus? És tu também um homem de
do UIster.l’1 Como ele e os seus companheiros estavam cansados Deus ou vens aqui só para me provocar em nome do Inimigo? -
devido à longa viagem, pediram ao chefe da fortaleza que os Eu recebi o baptismo em nome do Senhor, o Deus Todo-
acolhesse. Mas este respondeu que de modo algum daria poderoso, e foi Patrício que derramou sobre a minha cabeça a
acolhimento a vagabundos que incitavam os homens da Irlanda a água da vida eterna», respondeu o velho. «Peço-te que renuncies
abandonarem os seus antigos costumes. à maldição que lançaste às gentes deste país e que venhas a
Perante esta resposta, Finnen ficou furioso e, avançando para a minha casa descansar e procurar conforto». «Mas quem és tu?»,
porta da fortaleza, gritou: «Já que é assim, já que te referes aos insistiu Finnen. «Um homem dos tempos antigos. Já há muito
nossos antigos costumes, eu vou lançar uma maldição sobre o tempo que vim a este mundo, e é por vontade de Deus que
dono deste edifício, assim como sobre todos os que nele habitam cheguei ao dia de hoje para estar diante de ti. Acho que isto te
e toda a população deste país! Por Deus Todo-poderoso, deve bastar. Acompanha-me a minha casa.»
enquanto não me for feita justiça, nada farei para evitar que a
desgraça se abata sobre este país! Nem eu nem os meus «Por Deus Todo-poderoso! », exclamou Finnen, «nem eu nem os
companheiros comeremos qualquer alimento enquanto não for meus companheiros te acompanharemos se não nos disseres
satisfeito o nosso pedido de hospitalidade. Se morrermos, a culpa quem és.» «Nesse caso ouve bem o que te digo. Nunca ninguém
será de quem nos recusou alojamento e de todos aqueles que o tinha desembarcado nesta ilha antes do dilúvio. Conta-se no
segLiram na sua detestável atitude. A vergonha abater-se-á sobre entanto que, quarenta dias antes de as águas subirem, três
todos e terão de expiar as culpas, estendendo-se o castigo pelos mulheres aqui estiveram, tendo o nome de Banba, FothIa e
descendentes até à nona geração. É esse o costume deste país e Eriu”), e diz-se também que elas sobreviveram à inundação. Mas
eu juro que o farei cumprir até às últimas consequências! o que é certo é que esta ilha permaneceu deserta trezentos e doze
anos depois do dilúvio. Só nessa altura é que aqui chegou
Após ter pronunciado estas palavras, Finnen voltou para perto Partholon, filho de Sera, acompanhado de vinte e quatro homens
dos seus companheiros e os sete encaminharam-se para o prado e das suas respectivas mulheres. E eu próprio estava entre esses
existente em frente à fortaleza. Era um sábado de noite. Os vinte e quatro homens.
homens ficaram deitados sobre a erva durante a noite e uma boa
«Partholon e o seu clã estabeleceram-se assim na Irlanda e aqui imersas em nevoeiro e aqueles que não se exilaram foram
viveram muito tempo. A terra era bela e fértil, com grandes sucumbindo sucessivamente. Assim fiquei só, nesta ilha, a tomar
prados onde os gados podiam pastar. E o país agradava-lhes, conta do numeroso gado, e tendo de me refugiar do vento que
porque nele podiam(2) prosperar tranquilamente e sem o receio de vinha do largo e da chuva que me encharcava e me obrigava
animais venenosos. Mas um dia, entre dois domingos, uma muitas vezes a esconder-me debaixo dos carvalhos da floresta.
epidemia abateu-se sobre a ilha e morreram todos os seus
habitantes. Entretanto, como nunca se ouviu falar de um desastre «E mais uma vez fiquei velho, com os membros entorpecidos. Eu
que não tivesse deixado ficar ao menos um único sobrevivente sabia, no entanto que o meu destino ainda não se cumprira, pois
para contá-lo, fiquei eu, a única testemunha dos dias antigos. faltava-me voltar ao UIster já que fora nessa região que eu
mudara de aspecto. Resolvi por isso refugiar-me numa gruta, não
«Eu senti-me extremamente só e passei a deambular de colina em longe daqui, e ficar à espera do que poderia acontecer de
colina e de falésia em falésia evitando os lobos que percorriam as seguida. Foi nessa altura que assisti ao desembarque nesta terra
planícies e as florestas. Errei assim ao acaso durante trinta e da Irlanda daqueles a quem se chama os Homens-Trovão. Eles
dois anos sem encontrar vivalma. Por fim a velhice abateu-se eram muito numerosos e ocuparam esta terra depois de terem
sobre mim e os membros começaram a pesar-me, ficando eu feito frente aos gigantes das ilhas que queriam impedi-los de aqui
fraco e desamparado. Já não conseguia subir as colinas e a certa viver em paz. Assisti a terríveis perseguições nos vales e ao longo
altura, já não me conseguindo mexer, refugiei-me numa gruta à dos estuários, assim como a combates mortais e a caçadas ao
espera da morte. homem na floresta. Mas, por fim, os Homens-Trovão acabaram
por dominar este país. Em dada altura estava eu à entrada da
«Lembro-me como se fosse hoje. Eu estava à entrada da gruta, minha caverna, lembro-me disso como se fosse hoje, e o meu
meio deitado, quando vi chegar Nemed, filho de Agnoman, corpo voltou a mudar de aspecto, passando a ter a forma de um
seguido por vários homens e mulheres. Vi-os tomarem posse da javali. Consigo mesmo lembrar-me que entoei uma canção
ilha e, quando chegaram à entrada da gruta, não me quis inspirado pela maravilha que comigo ocorrera:
mostrar. Eu tinha deixado crescer os cabelos, as minhas unhas
estavam enormes, estava todo grisalho, decrépito e nu, tolhido «Hoje, sou um javali,
pela miséria e pelo sofrimento. Certa vez, depois de uma noite de Sou um rei forte e vitorioso.
sono, ao acordar numa manhã de sol, apercebi-me de que tomara O meu canto e as minhas Palavras eram agradáveis, outrora, nas
a forma de um veado, fato com que o meu espírito se alegrou pois assembléias,
eu voltava a ser jovem. Encantando os jovens e belas mulheres.
O meu carro de combate era belo e majestoso, a minha voz:
«Revestido da minha forma animal, passei a tomar conta dos emitia sons graves e doces,
gados da Irlanda, vendo passar a meu lado grupos de veados Eu era hábil nos combates, tinha um rosto encantador.
arruivados que corriam através de planícies e vales, e através de Mas, hoje, sou um javali negro... »
montanhas até chegarem aos estuários dos rios. Foi essa a minha
vida no tempo de Nemed. Os do seu clã tomaram-se numerosos e «Ora, os Homens-Trovão foram vencidos por outras gentes que
chegaram a formar quatro mil e trinta casais. Mas as gentes de desembarcaram nesta terra na noite anterior às calendas de
Nemed tiveram de combater gigantes que vinham das ilhas Maio. Eu vi essas gentes Incendiarem os navios nas margens e
penetrarem nos vales; e vi-as combaterem os Homens-Trovão nas
planícies. Pertenciam às tribos da deusa Dana cuja origem, «Estive adormecido durante nove dias, ao fim dos quais acordei
segundo se diz, é desconhecida. Mas é provável que eles viessem com o aspecto de um salmão. Atirei-me então à água e comecei a
do céu, pois tinham uma inteligência rara e os seus nadar. Sentia-me bem, com muita energia, e saltei de rocha em
conhecimentos ultrapassavam largamente os dos outros povos do rocha em direção à nascente. Graças à minha habilidade, escapei
universo. durante muito tempo a variados perigos, às redes de pesca dos
pescadores, às garras das aves de rapina que tentavam agarrar-
«Mais uma vez fiquei velho, apoderando-se de mim a tristeza e a me, aos dardos que os caçadores me atiravam, às lontras que me
melancolia. Eu já não era capaz de fazer o que fizera antes. Não perseguiam através da corrente.
me queria misturar com os outros e habitava em cavernas «Mas, um dia, lembro-me muito bem, fui apanhado por um
sombrias e em covas que existiam entre os grandes rochedos. Eu pescador, que me ofereceu como presente à mulher de CarilI, o
fugia de tudo o que mexia, fossem homens ou animais. Lembro- rei deste país. O cozinheiro meteu-me numa grelha, para me
me agora perfeitamente de que me deitei ao comprido no chão e cozer num fogo de ramos secos. A mulher do rei, ao passar perto,
de que passaram à minha frente as formas que já possuíra até ficou cheia de vontade de comer-me e devorou-me, passando eu a
então, o que fez com que a minha tristeza aumentasse. Jejuei habitar no seu estômago. Lembro-me como se fosse hoje, do
então durante três dias, ao fim dos quais senti que já não tinha tempo em que estive no estômago da mulher de Carifi. Lembro-
forças. Mas, sem disso me aperceber, tornei-me um pássaro, uma me também de ter nascido outra vez sob uma forma humana,
grande águia do mar. Fiquei de novo alegre, por perceber que graças à mulher de Carifi. Comecei então a falar como os
poderia percorrer incansavelmente os céus desta ilha voando homens falam, e fui capaz de revelar tudo o que se tinha passado
mesmo rente às nuvens. Foi assim que levantei voo e que pude na Irlanda desde a época do dilúvio. E foi depois do meu novo
testemunhar tudo o que se passava na Irlanda. E eu cantarolava nascimento que me chamaram Tuân, filho de Carlll.»
estes versos:
«Muito bem», disse Finnen. «Agora podemos segLir-te até à tua
«Águia do mar hoje, casa, já que nos ofereces hospitalidade para nos compensares da
Já fui noutros tempos um javali. má conduta e da perversidade dos habitantes deste país.»
Vivi antes entre varas de porcos selvagens, e eis-me agora entre
bandos de pássaros ... » Tuân, filho de CarilI, conduziu então Finnen e os seus discípulos
à sua casa que se erguia sobre uma colina de onde se avistava o
«Que história estranha me contas! », disse Finnen. «E como é estuário. Era uma casa real, cercada por um muro e por uma
possível que agora sejas um homem como qualquer outro?» - «Os paliçada, e guardada por alguns guerreiros armados. Tuân fez
desígnios de Deus são insondáveis», respondeu o velho, «pois o entrar os seus hóspedes, mas quando quis dar-lhes de comer na
futuro a Ele pertence. Fica contudo a saber que foi na forma de sala dos festins, Finnen disse-lhe: «Hoje é Domingo e ainda não
animais que consegui sobreviver a todos os povos que invadiram prestamos homenagem ao Senhor. Não comeremos nem
esta ilha. Também assisti à chegada dos Filhos de Milé e à sua beberemos absolutamente nada enquanto não tivermos cumprido
luta contra as tribos da deusa Dana. Nessa altura tinha eu a o nosso dever.» «Não há problema», respondeu Tuân, «há aqui
forma de pássaro e estava no buraco de uma árvore, junto ao um local para oração. Vem com os teus companheiros e cumpram
rio.» o vosso dever.»
regiões mais longínquas e às margens do grande oceano que
Quando Firmen e os seus companheiros acabaram de celebrar o rodeia o mundo.
ofício de Domingo, segLiram Tuân até à sala de festins. Tuân
pedira aos seus criados para cozerem os alimentos num grande Ora, entre os filhos dos filhos de Adão e da sua companheira
caldeirão, no fogo que se encontrava ateado a meio da sala. A Havali, contavam-se diversas filhas. E estas filhas ocuparam as
volta havia juncos e palha fresca. Finnen, os seus companheiros e planícies e os vales da terra e chegaram às margens do grande
Tuân, filho de CarilI, sentaram-se ao redor do fogo. oceano. Ora, estas filhas eram muito belas, e os filhos de Deus
que, descendo da profundeza dos céus, vinham contemplar a
«Tomai e saciai-vos», disse Tuân. «Por Deus Todo-poderoso! », terra, observaram-nas e ficaram seduzidos por elas.
gritou Finnen, «Nós não comemos nenhum alimento nem Aproximaram-se então e uniram-se a elas, fazendo com que, em
tomamos nenhuma bebida enquanto tu não começares a contar- breve, das filhas de Adão nascessem crianças de grande estatura.
nos o que aconteceu nesta ilha a segLir ao dilúvio. Sê um bom Estes gigantes, por seu turno, uniram-se a outras filhas de Adão e
anfitrião e diz-nos o que sabes, para que possamos apreciar a tua engendraram novos gigantes. E, assim sucessivamente,
generosidade ao mesmo tempo partilharemos contigo o que tu sucederam-se diversas gerações de gigantes que se espalharam
que sabes acerca da história do mundo.» «Com todo o prazer», por toda a terra.
respondeu Tuân.
Nessa altura, Deus compreendeu que o mal provocado por Adão
O anfitrião começou então a narrar as cinco invasões que a ia arruinar toda a sua criação. Triste com esse fato e arrependido
Irlanda sofrera desde os tempos distantes do dilúvio. E, enquanto por ter dado vida a Adão e à sua companheira Havali, resolveu
os seus hóspedes comiam e bebiam, o homem dos tempos antigos então acabar com as criaturas que o ultrajavam, poupando a
falava. Os discípulos de Firmen ouviam o que ele dizia. Foram vida apenas a um homem com quem simpatizava: Noé, um
estes que, mais tarde, contaram tudo o que ouviram aos seus homem justo que venerava o Eterno. Deus preveniu-o de que iria
próprios discípulos, os quais transmitiram a mensagem a novos fazer chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta
discípulos e assim por diante. E é assim que, graças a Tuân, filho noites para destrLir o que havia de mal na criação. E ordenou-
de CarilI, e também ao abade Firmen, nós conhecemos a grande lhe que construísse uma arca, que nela embarcasse um casal de
epopéia dos celtas.(’) cada espécie animal que habitava na terra, nos ares e nos
oceanos, e que depois nela se refugiasse com toda a sua família,
“Depois de terem sido expulsos do Jardim do Éden, Adão e a sua pois graças a ele sobreviveria o que havia de melhor na criação.
companheira Havali, ou seja, Eva, erraram por muito tempo pela
terra em busca de um lugar que os pudesse proteger do calor Então, Noé construiu um barco e reuniu tudo o que deveria ficar
ardente e do frio cortante. Com eles levavam uma pedra verde a salvo da cólera de Deus. Os Livros dizem que Noé tinha três
caída do céu”’ e um ramo da Árvore da Vida. Assim que filhos, Sem, Cham e Japliet. Mas os Livros não dizem que ele
encontraram um lugar propício, aí construíram uma cabana com tinha um quarto filho, de nome Bith, e que este filho tinha uma
pedras e pedaços de argila, e Havah cravou no solo o ramo da filha chamada Cessair. Ora, esta Cessair, quando foi avisada de
Árvore da Vida. Passaram a viver na cabana, criaram gado, que as águas iriam inundar a superfície da terra e engolir tudo o
cultivaram trigo, plantaram vinhas. E tiveram uma numerosa que fosse vivo, à exceção do que estivesse dentro da Arca, tentou
descendência que se espalhou por toda a terra, chegando às escapar ao Destino pelos seus próprios meios. Segundo ela
pensava, devia haver no mundo um lugar onde nenhum homem levou-lhe dezoito dias. Foi a partir daí que ela partiu por mar em
tivesse chegado e que por isso deveria desconhecer qualquer tipo direção à Irlanda, onde só chegou passados nove dias,
de crime ou de mal; além disso, esse lugar, que deveria ser desembarcando na ilha num dia de Sábado.
poupado pelo Dilúvio, jamais deveria ter sido habitado por
serpentes ou por monstros. A pensar nesse país, chamou os Cessair e as suas gentes chegaram à Irlanda quarenta dias antes
druidas e perguntou-lhes onde ele se poderia encontrar. Os do Dilúvio. Mas, dos três navios que tinham partido, dois
druidas refletiram longamente, e disseram-lhe que só um país naufragaram, tendo sobrevivido apenas Cessair e os que seguiam
poderia ser poupado, a Irlanda, pois esta ilha estava situada no no mesmo navio que ela, a saber, cinquenta donzelas e três
lado ocidental do mundo, para norte, do mesmo modo que o homens. Eram estes Bith, filho de Noé, Ladra, o piloto, que,
Jardim do Éden estava situado a oriente, e para sul. segundo se diz, foi o primeiro homem a morrer na Irlanda,
dizendo alguns que morreu de excesso de mulheres e outros que
«Com efeito, acrescentaram eles, estas duas regiões têm muitas foi vítima de um remo que lhe atravessou o corpo, e Fintan, filho
semelhanças tanto no que respeita à sua natureza como à sua de Boclira, o qual, segundo uma certa versão, não terá morrido e
situação sobre a superfície da terra. Assim como o Paraíso não vive ainda entre os povos naturais da Irlanda. O certo é que
pode dar abrigo a animais perigosos, é do conhecimento geral Cessair, as suas cinquenta donzelas e os três homens,
que a ilha da Irlanda não tem serpentes, nem dragões, nem leões, desembarcaram nesta ilha quarenta dias antes do Dilúvio, ou
nem sapos, nem ratos, nem escorpiões, nem quaisquer outros seja, mil seiscentos e cinquenta e seis anos depois do princípio do
animais capazes de fazer o mal, se excetuarmos o lobo. À Irlanda mundo.
chama-se ilha do Ocidente. Mais tarde, os Gregos chamar-lhe-ão
Hyberocl’) e os Romanos, que dominarão o mundo, charnar-lhe- Assim que desembarcaram no solo da Irlanda, disse-lhes Cessair:
ão Occasimi.. A Irlanda está próxima da Ilha da Bretanha mas, «Chegámos a um país que não sofrerá a fúria das águas, pois
no que respeita à sua dimensão, é mais estreita, sendo no entanto encontra-se na extremidade do mundo. Estabeleçamo-nos no
mais fértil. Estende-se desde o norte de África, fica na vizinhança cume das montanhas e construamos casas para nos abrigarmos.
da Ibéria e do oceano Cantábrico, e é este o motivo por que lhe Contudo é meu desejo que, daqui em diante, vocês me chamem
chamarão um dia Hibérnia. Mas também lhe chamarão Scotia diferentes nomes consoante o que eu fizer. Durante o dia, quando
porque será povoada pela nação dos escotos.» «É então para ai o sol brilhar, eu chamar-me-ei Banba. Quando cair a noite, serei
que temos de ir», disse Cessair após ouvir aquelas palavras. Fothla. E quando estiver a dormir, quero que me chamem Eriu.»

Ela mandou constrLir navios e preveniu os que lhe eram Assim foi. Foram construídas casas no cume das montanhas e a
próximos de que iriam partir por mar na direção do sol poente. floresta começou a ser desbravada. Mas uma doença alastrou, e
Era uma terça-feira quando ela deixou a ilha Meroe, que ficava ao fim de uma semana estavam todos mortos, à exceção de
ao largo do Nilo. Demorou-se sete anos em escalas no Egito e Cessair que permaneceu adormecida. Entretanto, as águas do
levou oito dias a navegar no mar Cáspio. Depois, levou mais céu abateram-se sobre a terra, caindo incessantemente durante
vinte dias para ir do mar Cáspio ao mar Negro. Permaneceu um quarenta dias e quarenta noites. Cobriram as montanhas mais
dia na Ásia Menor, entre a Síria e o mar Tirreno, depois partiu altas, e mataram tudo o que era vivo. Só ficou à superfície das
com a intenção de se dirigir aos Alpes, durando vinte dias a sua águas a Arca em que Noé e os seus tinham embarcado, com um
navegação. Aí chegada, o trajeto entre os Alpes e a Espanha casal de cada espécie animal. Mas o que os Livros não dizem é
que a Irlanda não foi coberta pelo Dilúvio. A ilha estava deixar a sua Pátria porque cometera um crime: matara o pai e a
desabitada, tendo sobrevivido a mulher que dormia e se chamava mãe para permitir que o seu irmão reinasse, mas, ao fazê-lo,
Eriu. Os Livros também não dizem que, na vastidão do oceano, provocara grandes desgraças, sendo assassinados nove mil
no meio do nevoeiro, algumas ilhas também não foram submersas homens numa semana, o que forçou Partholon a fugir o mais
pelas águas. Ora, nestas ilhas viviam gigantes que foram depressa possível na companhia de dez pessoas, entre as quais os
poupados pelo Dilúvio. Foram eles que depois foram chamados seus três filhos e quatro mulheres. Ele deambulou durante um
Fomore, os quais nunca deixaram em paz os povos que se vieram mês na Adalácia, depois levou nove dias para Ir da Adalácia ao
a estabelecer na Irlanda. país dos Goths. Voltou a partir deste país e viajou durante um
mês até chegar a Espanha, demorando mais nove dias até atingir
Entretanto, logo que as águas deixaram de cobrir a terra e esta as costas da Irlanda. Estava-se numa terça-feira, o décimo sétimo
secou, Noé e todos os seus saíram da Arca e procuraram lugares dia da lua, nas calendas de Maio.
onde se estabelecer. Noé tinha consigo três filhos na Arca, os
quais ocuparam as três regiões da terra, a Europa, a África e a «Esta terra sem dúvida é a que mais nos interessa», disse
Ásia. Sem, filho de Noé, instalou-se no que atualmente é a Ásia, Partholon. «As árvores aqui são belas e verdejantes, e a caça
tendo saído dele vinte e quatro raças. Cham foi para África, deve ser abundante. Procuremos um lugar onde nos possamos
descendendo dele quinze raças. Quanto a Japliet, o terceiro filho estabelecer.»
de Noé, apoderou-se da Europa e do norte da Asia, sendo o
patriarca de quinze raças. Deram a volta à ilha e decidiram fixar-se no lugar que lhes
E, pois de Japhet, filho de Noé, que descendem, no nordeste do pareceu mais fértil. Conta-se que é aquele que hoje se chama
mundo, os citas, os armênios e Os Povos da Ásia Menor, assim Mag Inis, a Planície da Ilha. Naquela altura não havia fazendas,
como todos os povos que ocupam, a norte e a oeste do mundo, a nem casas, nem campos cultivados à disposição dos homens, que
Europa e as ilhas que ela tern em frente, no grande oceano. só podiam sobreviver colhendo frutos selvagens ou então
Japliet teve oito filhos, e o oitavo chamava-se Magog. Este teve caçando e pescando no estuário dos rios.
dois filhos que se chamavam Baath e Ibath. Foi deste último, a
saber Ibath, que descenderam os reis que governaram Roma. As casas foram construídas na Planície da Ilha. Quando
Baath teve um filho a quem chamou Fenius Farsaid: dele Partholon partia para a pesca ou para a caça, deixava a mulher,
descendem os citas, dos quais provêm os gaélicos.”’ Mas foi de Elgnat, filha de Lochtach, a tomar conta da casa. E pedia ao seu
Magog, filho de Japliet, que saíram os povos que se vieram a criado Topa para proteger EIgnat, para que ela não fosse
estabelecer na Irlanda antes dos gaélicos, a saber, a tribo de atacada pelos lobos. Na verdade, havia lobos na Irlanda, embora
Partholon, filho de Sera, e a tribo de Nemed, filho de Agnoman, não houvesse na ilha outros animais perigosos. Tão pouco havia
assim como todos os da tribo de Neined que, após terem sido abelhas, pois elas aí não podiam viver. Era tal a
expulsos da Irlanda, aí regressaram mais tarde. incompatibilidade entre as abelhas e a Irlanda que, se alguém
espalhasse areia ou cascalho da Irlanda num qualquer lugar da
Depois do Dilúvio, a ilha da Irlanda permaneceu deserta durante terra onde houvesse colmeias, as abelhas abandonavam-nas
um período de trezentos e doze anos. Foi então que aí chegou imediatamente.
Partholon, filho de Sera, que vinha de um país chamado
Mygdonie, ou seja, Pequena Grécia. Partholon fora obrigado a Entretanto, sempre que Partholon se ausentava, Elgnat deitava
um olhar ardente, cheio de desejo, ao criado. E quanto mais o querem saciar o instinto, não hesitam em segLir o primeiro
olhava, mais desejava tê-lo nos seus braços. Um dia, não carneiro que lhes apareça à frente. Experimenta pôr um copo de
podendo agüentar mais, convidou-o para o seu leito. O criado leite à frente de um gatinho: verás como ele não resiste ao desejo
recusou terminantemente e disse que jamais trairia a confiança de tomar o leite».
do seu senhor, «Es um grande covarde», disse a mulher. «Tens
medo de que Partholon te mate se souber que te deitaste Desenrolou-se pouco tempo depois a primeira batalha da
comigo!» «Eu não tenho medo, senhora, mas não quero trair o Irlanda. Os Fomore, que vinham em barcos do país do nevoeiro,
meu senhor.» vieram atacar Partholon e os que moravam com ele. Eram
No dia seguinte, Elgnat voltou a provocar Topa, e ele voltou a gigantes com forma humana, monstros que tinham uma força
recusar deitar-se com ela. «Já percebi», disse a mulher, «Tu não descomunal apesar de terem apenas uma perna e um braço.
és viril, e por isso não queres deitar-te comigo. Devias ter Comandados pelo seu chefe que se chamava Cichol da perna
vergonha!» curva, combateram Partholon e os seus filhos. A batalha durou
Ao ouvir este insulto, o criado não encontrou outra solução senão uma semana inteira, mas nela ninguém morreu, pois tratava-se
ir provar à mulher de Partholon, na sua cama, que era viril. de uma batalha mágica. Entretanto, Cichol da perna curva feriu
Findo o ato, o homem e a mulher tiveram sede e beberam pelo Partholon num braço, ferida de que este nunca se recompôs.
recipiente que Partholon tinha preparado para quando chegasse. Quando Partholon chegara à Irlanda, esta ilha só possuía três
Ao fim da tarde, quando voltou da caça, Partholon teve sede e lagos e nove rios. Mas durante o tempo em que ele e os seus
bebeu pelo recipiente que tinha preparado. Mas, ao levá-lo à descendentes habitaram no país, sete novos lagos irromperam da
boca, sentiu o gosto da boca de Elgnat e de Topa, e compreendeu terra. E foi quatro anos depois da irrupção do sétimo, que se
o que se tinha passado. Não se contendo de fúria, matou o chama Lough Cuan, que Partholon morreu na velha planície de
pequeno cão da sua mulher, Saímer, tendo sido esta a primeira Elta Edair. Esta planície foi assim chamada porque nenhum
crise de ciúmes da história da Irlanda. braço, nenhum ramo, dela alguma vez saiu. E Partholon morreu
por causa de um veneno que lhe penetrou no corpo através do
«Parece impossível», disse Elgnat indignada, «tu acabas de ferimento que lhe fora infligido por Cichol da perna curva, na
cometer uma grande injustiça, belo Partholon, pois este cãozinho batalha contra os Fomore. Tinham-se passado trinta anos desde
não te tinha feito mal nenhum». «Eu sei», respondeu Partholon, que Partholon chegara à Irlanda, e o princípio do mundo tinha
«mas eu precisava de descarregar a cólera devido à afronta que sido há dois mil seiscentos e vinte e oito anos.
tu me infligiste. Desde que Eva cometeu o pecado da maçã, por
causa do qual a raça humana foi condenada à escravidão e foi Depois da morte de Partholon, a ilha foi dividida pelos seus
expulsa do Jardim do Éden, jamais houve neste mundo um crime filhos, tendo sido esta a primeira partilha da Irlanda. o país
tão grande e tão hediondo como aquele que vós acabais de permaneceu assim enquanto nele viveram os descendentes de
praticar, tu e o meu criado.» Partholon, ou seja, durante quinhentos e vinte anos. Mas abateu-
se sobre eles uma doença nas calendas de Maio, na segunda-feira
«Bom Partholon», disse a mulher, «quando o desejo é muito, é da festa da Beltame. Esta peste fez sucumbir nove mil homens até
difícil resistir à tentação. Olha à tua volta: as vacas parecem-te à segunda-feira seguinte, e ainda mais cinco mil homens e quatro
calmas e tranqüilas quando pastam no prado, mas assim que mil mulheres após essa segunda-feira. Morreram todos, à
aparece o touro ficam cheias de desejo. E as ovelhas, quando exceção de um único homem, Tuân, que era filho de Sdam, filho
de Sera, filho do irmão do pai de Partholon. Deus permitiu-lhe encargos aos homens da Irlanda: estes deviam entregar-lhes
que sobrevivesse, assumindo as mais diversas aparências, desde anualmente dois terços do trigo e do leite que eram produzidos
o tempo de Partholon até aos tempos de Colum-Cill e de Finnen. na ilha e dar-lhes como escravos dois terços dos recém-nascidos.
Foi ele que revelou aos gaélicos o conhecimento da história, as
conquistas que tiveram lugar na Irlanda, as batalhas provocadas Furiosos e sentindo-se ultrajados, os homens da Irlanda não
pelos Fomore, desde a chegada de Cessair a esta ilha até à época sabiam como haviam de suportar o peso de tais encargos.
de São Finnen, o Leproso. Foi com esta intenção que Deus o Reuniram-se por isso em segredo e decidiram atacar os Fomore
manteve vivo até ao tempo dos santos, até ao tempo em que o de surpresa. Na costa havia três mil homens, mas outros três mil
chamaram Tuân, filho de Caffil. embarcaram sob a chefia do filho de Nemed, Fergus da face
vermelha. Não tardaram a chegar a Torinis e, após uma batalha
A Ilha Verde permaneceu deserta durante trinta anos. Então encarniçada, acabaram por tomar de assalto a torre, onde o
desembarcou nela Nemed, filho de Agnoman, que vinha do país próprio Fergus da face vermelha matou Conan. Depois, voltaram
dos citas de onde partira com quarenta navios. Navegaram ao para a Irlanda para comemorar a vitória.
acaso durante um ano e meio no mar Cáspio, mas só um navio
conseguiu chegar à Irlanda, com Nerned e os seus quatro filhos, More, filho de Dela, ficou furioso quando lhe anunciaram o
que chefiavam as hostes. Estabeleceram-se num lugar fértil e aí desastre da Torre de Conan e resolveu vingar-se dos homens da
construíram duas fortalezas reais, tendo sido depois atacados Irlanda que tinham vencido os Fomore e agora recusavam pagar-
pelos Fomore contra os quais travaram uma batalha onde no lhes os tributos.
decurso da qual foram assassinados os dois chefes dos Fomore.
Reunindo sessenta navios, aproximou-se então das costas da
Nemed desbravou doze planícies nesta ilha e nelas fez prosperar Irlanda. Os filhos de Nemed, por seu lado, voltaram a reunir as
a criação de gado. Assim que morreu um dos seus filhos, que se suas hostes e fizeram-se ao mar para irem ao encontro dos
chamava Annind, enterraram-no numa das planícies. Mas, ao ser Fomore. Travou-se então urna batalha encarniçada e sangrenta,
cavada a terra para se fazer a sepultura, jorrou um lago que e uma tempestade afundou os navios dos homens da Irlanda,
inundou todo o país. Em consequência disso, três outros lagos escapando apenas um, que tinha a bordo trinta homens, entre os
surgiram na terra. Nemed não demorou a sucumbir a uma quais Semeon, filho de Sdarn, ele próprio filho de Nemed,
doença que vitimou também dois mil dos seus. Bethach, filho do adivinho larbonel, igualmente filho de Nemed,
com o seu filho Ibath, assim como Fergus da face vermelha, que
Quando os Fomore souberam que Nemed, filho de Agnoman, era o filho mais jovem de Nemed.
tinha morrido, aparelharam as suas frotas e foram combater os
filhos de Nemed. Os chefes dos Fomore eram nessa altura More, Os sobreviventes reconquistaram a Irlanda e foram encontrar-se
filho de Déla, e Conan, filho de Fébar. Este último construíra com Fintan, filho de Boclira, que vivia na encosta de uma
uma grande torre numa pequena ilha, a meio do mar, e era aí que montanha. Fintan tinha a reputação de ser um sábio e um
se reuniam os navios dos Fomore. Esta torre chamava-se Torre vidente, e dizia-se que estava perfeitamente a par do nascimento
de Conan, mas também se lhe chamava Tormis, ou seja, Torre da do mundo e do seu futuro. Quando os filhos de Nemed foram ao
Ilha. E como os Fomore eram mais numerosos que os filhos de seu encontro, Fintam disse-lhes:
Nemed, venceram-nos em combate e impuseram pesados
«Sede bem vindos, homens poderosos e corajosos sobre quem se não podeis habitar. Fugi desta ilha onde sois tão cruelmente
derramou o Espírito.”’ O que vos traz à minha presença? É a oprimidos e escravizados. Não fiqueis aqui por mais tempo e
guerra que aqui vos traz ou o fato de não saberdes qual o rumo a recusai-vos a pagar aos Fomore uns encargos tão pesados. Mas
dar à vossa vida?» «o que nos traz aqui, sábio e prudente Fintan, eu garanto-vos que os vossos filhos e os vossos netos regressarão
é a decisão que temos de tomar por causa dos Fomore. Eles a este país de que vós fugis e eles tomá-lo-ão pela força e com
oprimem-nos desde que nos mataram um grande número de todo o direito. Pois, aconteça o que acontecer, vós sereis sempre
bravos guerreiros, e obrigam-nos a pagar-lhes um pesado tributo os filhos desta ilha e dela sereis para sempre os senhores.»
que não conseguimos agüentar por muito mais tempo.» «o melhor
conselho que vos posso dar, brilhantes filhos de Nemed, é o Combinaram então a maneira como se haveriam de dividir em
seguinte: deveis pôr um fim ao vosso sofrimento e à opressão dos três agrupamentos. Bethach, filho de larbonel, o adivinho que era
Fomore. Por isso deixa esta ilha e ide instalar-vos noutro lugar filho de Nemed, não quis deixar a Irlanda. Permaneceu nela
deste vasto mundo.» durante algum tempo, vindo a sucumbir a uma doença que
assolou o país. Entretanto, as suas dez mulheres sobreviveram-
«É esse o conselho que nos dás, Fintan?», perguntaram os filhos lhe vinte e três anos. Quanto ao seu filho Ibath, deixou a ilha na
de Nemed. «Devemos deixar este país que é nosso’?» «Na companhia do seu próprio filho Baath, e ambos se dirigiram para
verdade», retomou Fintan, «é o único conselho que vos posso as ilhas do norte do mundo. Os seus descendentes são aqueles a
dar. Mas há outra coisa que vos tenho de dizer: não deveis ir quem hoje se chama tribos da deusa Dana. Fergus da face
todos na mesma direção ou por um único caminho, pois é bem vermelha, que era o filho mais novo de Nemed, fez-se ao mar e foi
sabido que um grande ajuntamento de homens é susceptível de para leste com o seu próprio filho que se chamava Bretão, o
provocar conflitos. E impossível que se junte uma multidão sem Príncipe. Desembarcaram na grande ilha que fica próxima da
que daí não resulte uma querela por uma razão ou outra. Além Irlanda e aí se estabeleceram. Os seus descendentes, a quem se
disso, sempre que há um agrupamento de homens armados com chamam bretões, por causa do nome de Bretão, o Príncipe,
lanças e dardos, logo se pensa que o que eles querem é fazer dominaram a ilha até à chegada de dois novos chefes saxões que
guerra. Jamais a paz é possível, na verdade, enquanto sobre a ocuparam as suas terras, empurrando-os para a costa e
terra houver povos que se sentem invadidos por outros que obrigando um grande número deles a exilarem-se no outro lado
chegam depois. Parti por isso, filhos de Nemed, deixai esta ilha e do mar, na península a que se chama Armórica e à qual depois
espalhai-vos pelo mundo.» deram o seu nome.

«Mas para onde havemos de ir, sábio Fintan, filho de Bochra? Quanto a Semeon, filho de Sdarn, filho de Nemed, partiu para sul
Diz-nos para que possamos partir de imediato.» «Vós sois, com à conquista dos países onde o sol é mais quente. Uma tempestade
certeza, muito numerosos», respondeu Fintan. Por isso dividi-vos desviou-o da rota, e fê-lo chegar ao mar Tirreno. Aí foi
em três grupos. Um deles que parta para o norte, o outro para surpreendido por outra tempestade, que o empurrou pelo meio
oriente e o terceiro que siga a direção oposta ao curso do sol, das Ilhas até às costas da Trácia. Aqui o solo era seco e estéril,
mas para sul, para os lados onde há mais calor.» nada nele se podendo cultivar. Apesar disso, Semeon e os seus
Assim falou Fintan, o Sábio, filho de Boctira, aos filhos de companheiros estabeleceram-se naquela região inóspita e
Nemed, que dele se despediram. Mas, antes de partirem, disse- construíram as suas casas com terra seca. Graças a conversações
lhes ele ainda: «Ide pois, filhos de Nemed, deixai este país que já com as gentes daquele país, que não lhes quiseram fazer frente,
concluíram um tratado de paz. Ao clã de Semeon foram transformaram em campos ricos e férteis, em tudo idênticos
atribuídas as propriedades e as terras que ficavam junto ao mar e àqueles que tinham deixado. E, havendo comida em abundância,
em fronteiras distantes, em regiões muito frias, em montanhas as gentes do clã de Semeon multiplicaram-se e aumentaram de
escarpadas e em vertentes de colinas expostas ao vento norte. número até chegarem aos milhares. Mas, vendo os estrangeiros
Foram-lhes também concedidas ravinas profundas e cumes tornarem-se tão numerosos, tão ricos e poderosos, os chefes do
inabitáveis, em regiões inóspitas cujo solo jamais tinha país intimaram-nos a entregar-lhes todos os anos metade das
conhecido colheitas de qualquer tipo. Mas, não querendo suas colheitas e metade dos gados que pastavam nos prados.
desperdiçar a oportunidade que lhes tinha sido concedida, as
gentes do clã de Semeon fizeram grandes sacos com panos e com Nessa altura as gentes do clã de Semeon reuniram-se em
as peles de animais e transportaram grandes quantidades de conselho. Os seus chefes eram os cinco filhos de Dela,
terra arável através dos rochedos nus e áridos que lhes tinha descendente de Nemed, chamando-se Slaingé o mais velho.
cabido em sorte no tratado de paz. Entregaram-se ao trabalho
com tanto afinco e com tanta devoção que daí a pouco tempo «De nada nos serviu fugir da Irlanda para escapar à tirania e aos
aquelas terras estéreis se tinham transformado em planícies tributos dos Fomore... Encontramo-nos agora num país
aprazíveis e férteis onde se cultivava o trigo, a vinha prosperava estrangeiro, expulsos de terras incultas que tornamos férteis, e
e o gado pastava em esplêndidas pastagens. Desse modo, não se estamos sujeitos à mesma tirania e aos mesmos tributos. Chegou
arrependeram de ter deixado a Irlanda e de assim se terem o momento de nos revoltarmos contra a injustiça, pois assim não
furtado aos Pesados tributos que lhes eram impostos pelos podemos continuar» «Tens razão», disse o seu irmão Rudraige.
Fomore. «Não podemos continuar sem reagir e sem fazer valer os direitos
do nosso trabalho.» «Os donos deste país jamais nos darão
Entretanto, quando os chefes e os guerreiros daquele país viram razão», afirmou por seu lado Slainge. «Só nos resta voltar para o
a obra realizada pelos recém-chegados, ficaram maravilhados e mar, levando todas as riquezas que pudermos, e regressar à terra
ao mesmo tempo cheios de inveja de um tal sucesso. Sempre que da Irlanda, pois essa é a terra dos nossos antepassados e temos o
Iam visitar as terras do clã de Semeon, ficavam admirados com direito de a habitar.»
os campos cultivados e com os prados que regurgitavam de
ovelhas e de carneiros. Convenceram-se então de que aquele país Assim que o conselho terminou, todos estavam de acordo quanto
lhes pertencia e que deviam conquistar aquelas terras tão férteis ao que havia a fazer. Construíram barcos com os grandes sacos
aos estrangeiros que nenhum direito tinham sobre elas. Foram que lhes tinham servido para transportar a terra arável através
então falar com as gentes de Semeon e propuseram-lhes, em dos rochedos inóspitos, e é esse o motivo pelo qual eles foram
troca do que lhes tinham dado, outras terras, ainda mais para chamados Fir Bolg ou seja, os Homens dos sacos.”’ Contudo, há
norte, em regiões inóspitas e frias, em terras duras e cheias de quem diga que o nome deriva do fato de eles saberem domesticar
pedras, de solos infestados de serpentes venenosas. E, para o trovão e utilizarem o fogo para fundirem o metal e fabricarem
evitarem entrar em guerra, as gentes de Semeon aceitaram o que as armas e os instrumentos usados para o cultivo da terra.
lhes era pedido e deixaram as terras que tinham tornado férteis. Segundo se pensa, eles roubaram também navios às gentes do
país e juntaram-nos todos no porto onde tinham desembarcado
Mudando-se mais para norte e sem jamais perderem o ânimo, as quando da sua chegada.
gentes de Semeon trataram tão bem as novas terras que as
«Chegou a hora de partirmos», disse então Slainge, que era o lugar combinado. «Agradeçamos aos deuses por nos terem
mais velho do grupo e aquele que era considerado mais sábio guiado com sucesso até este país que é o dos nossos
pelos irmãos. «Lembrem-se que temos sido muito prejudicados antepassados», disseram eles. «Agora devemos partilhar a
pelos habitantes deste país. Temos por isso de nos vingar, sem Irlanda de tal modo que ninguém seja prejudicado. Chamemos o
esquecer que cada um dos nossos homens vale por cem dos sábio Fintan, filho de Boclira, e ele nos dirá como havemos de
deles.» partilhar esta ilha de forma justa.»

Carregaram então para os navios todas as mercadorias e toda a Fintan, filho de Boclira, veio à assembléia de Tara. Após ter
comida que encontraram, matando todos aqueles que os queriam ouvido os Fir Bolg, dividiu a Irlanda em cinco partes que foram
impedir de fazê-lo, e depois arrasaram a região circundante e confiadas a cada um dos filhos de Déla. Todos ficaram satisfeitos
atearam-lhe fogo. Em seguida acumularam o produto do saque com a sentença pronunciada pelo sábio Fintan, e estabeleceram-
nos navios de proa negra que tinham construído com os seus se nas terras que lhes foram atribuídas.
sacos e, por fim, levantaram âncora e desfraldaram as velas.
Foi assim que os Fir Bolg, os Homem-Trovão, chegados de tão
Conta-se que os Fir Bolg, ao deixarem a costa da Grécia, longe, ocuparam as terras da Irlanda. E dominaram esta ilha
possuíam uma frota de mil cento e trinta navios. Na sexta-feira durante trezentos anos.
seguinte, encontravam-se no mar Tirreno e, ao fim de um ano e
três dias, chegaram a Espanha. Os filhos de Nemed, que haviam partido por mar sob o comando
Pediram então aos seus druidas e aos seus adivinhos para os de Ibath, filho de Bethach, rumaram ao norte. Navegaram ao
instruírem e os informarem acerca dos ventos com que teriam de acaso, durante muito tempo, até que desembarcaram num pais
contar na sua viagem à vela através do grande oceano. Deixaram que se diz ser a Beócia. Aí foram muito bem recebidos pelos
Espanha com um vento de sudoeste e navegaram sempre a direito naturais, e, segundo consta, foi aí que eles se iniciaram nas artes,
durante treze dias até avistarem as costas da Irlanda. Mas nas técnicas, na magia e no druidismo. Tomaram-se especialistas
ergueu-se então uma tempestade repentina e violenta que fez com em todas as artes do paganismo ao ponto de superarem, em
que a frota se dividisse em três grupos. O primeiro a pouco tempo, os seus mestres. Foi então que começaram a ser
desembarcar foi o filho mais velho de Déla, Slaingé, no lugar que chamados Tribos de Dana, defendendo certos historiadores que
se veio a chamar Inber Slaingé. Estava-se num Sábado, no eles assim foram designados por causa de três homens muito
Primeiro dia do mês de Agosto. versados na ciência druídica, os três Deuses de Dana, que eram
filhos da mesma mulher-chefe que se chamava Dana. E como eles
tinham tantos poderes como os deuses, as gentes do seu clã
Os outros desembarcaram em diferentes pontos do país. Como
quiseram partilhar o seu nome e o seu poder.
não havia contactos entre os diferentes grupos, foram enviados
mensageiros por toda a Irlanda com a missão de pedir aos
Entretanto, um belo dia, uma grande frota vinda da Síria veio
Homens-Trovão para se juntarem todos no mesmo lugar, na
atacar os habitantes da Beócia. Travaram-se batalhas
fortaleza dos Reis que se encontra em Tara. Os mensageiros
intermináveis, com os homens da Beócia que tinham sido mortos
percorreram a ilha em todos os sentidos e cumpriram a sua
na véspera a voltarem na manhã seguinte para enfrentarem os
missão, de tal modo que daí a pouco tempo todos se reuniram no
seus inimigos. Na origem desta maravilhosa ressurreição estava
a magia que permitia aos homens de Dana inserir demônios nos tinham sido protagonizadas pelos filhos de Nemed, na terra da
corpos que tinham perdido a vida. Deste modo, as gentes da Síria Irlanda e no mundo inteiro.
tinham de lutar todos os dias contra os mesmos adversários, o
que lhes provocava um grande espanto e um enorme transtorno. Um dia, uma certa Eri, uma das mulheres mais nobres das tribos
Foram, por isso consultar os seus próprios druidas, que os de Dana, estava em casa a observar a terra e o mar. o mar estava
aconselharam a estar vigilantes no campo de batalha assim que a calmo e uniforme como uma tábua de madeira bem polida. Ora,
noite caísse: nessa altura deveriam trespassar com um ramo de estando a contemplar a paisagem, Eri ficou muito admirada ao
freixo os cadáveres que os enfrentassem. Se fossem demônios a ver um navio brilhante como prata a navegar diante dos seus
reanimar os corpos, estes cairiam logo e corromper-se-iam olhos. O navio pareceu-lhe de grandes dimensões, mas ela não
rapidamente. As gentes da Síría segLiram este conselho, e conseguia distingLir-lhe a forma. Entretanto, como a corrente o
massacraram um grande número de defensores da Boécia. aproximou de terra, ela pôde examiná-lo melhor.
Quando as tribos de Dana viram que os primeiros iam triunfar
sobre os segundos e se arriscavam a ser perseguidas em seguida, Notou então que havia um homem a bordo, um homem que lhe
os seus chefes reuniram-se e decidiram que era necessário deixar pareceu extremamente belo. Uma cabeleira de ouro caía-lhe
o país o mais depressa possível. Aparelharam os navios, fizeram- sobre os ombros, e um manto com faixas de tecido dourado
se ao alto mar navegando à vela, e, como os ventos eram revestia a túnica, que estava ricamente adornada com bordados
favoráveis, chegaram às ilhas do Norte do Mundo. Aí foram de ouro. Sobre o peito, resplandecia um broche de ouro onde
muito bem recebidos, por serem muito conhecedores e muito estavam incrustadas pedras preciosas. O homem trazia dardos de
hábeis nas artes mágicas, e deram-lhes quatro cidades para que prata com hastes de bronze polido, cinco colares de ouro à volta
pudessem ensinar os jovens do país. Estas quatro cidades eram do pescoço, assim como uma espada cujo punho de ouro estava
Falias, Gorias, Murias e Findias. adornado com círculos de prata e com ornamentos em ouro.
Maravilhada, a mulher saiu de casa e aproximou-se da beira-
Nestas Ilhas do Norte do mundo, as tribos de Dana mar.
multiplicaram-se e tomaram-se tão célebres que se falava delas
por todo o lado. Naquele tempo, o rei das tribos de Dana O homem desceu do barco, pôs os pés em terra e, apercebendo-se
chamava-se Nuada e tinha a seu lado diversos chefes que o de Eri, disse-lhe: «Mulher, será esta a melhor altura para me
aconselhavam com sapiencia: entre eles encontrava-se Ogina, o unir a ti?» «Estou surpresa com o que vêem os meus olhos»,
campeão possuidor de uma força terrível, Credné, o artíficie do respondeu ela. «Pois bem», disse o homem, «não percamos
bronze, que cinzelava belos ornamentos, Goibniu, o ferreiro, que tempo. Peço-te que venhas.» Sem demora, eles estenderam-se no
fabricava armas e instrumentos aratórios, Dianceclit, o hábil chão e, quando terminaram, a mulher começou a chorar.
médico, Mananann, filho de Lir, especialista em arte de «Porque choras?», perguntou ele. «Eu tenho para isso duas boas
navegação, Morrigane, filha de Emnias, grande conhecedora de razoes», respondeu ela. «Vou-me separar de ti e fico desgostosa
cantos guerreiros, e, sobretudo Eochaid Ollathair, mais por isso. Os homens mais belos das tribos de Dana desejaram-me
conhecido por Dagda, ou seja, o bom deus, que percebia melhor sem sucesso, e agora que tu me possuíste, o meu coração
do que ninguém de assuntos de magia e de druidismo. E, em cada pertencer-te-á até ao meu último suspiro.» «Não quero que fiques
uma das quatro cidades em que eles se tinham estabelecido, um a sofrer por minha causa», disse-lhe o homem.
druida ensinava os jovens e contava as proezas que outrora
Tirando o anel de ouro que tinha no dedo do meio, ele enfiou-o desposou Ethné, filha de Balor, o campeão dos Fomore. Da sua
na mão da mulher e recomendou-lhe que jamais o desse ou união nasceu Lug do Braço Longo, que mais tarde se tornou o
vendesse, cedendo-o apenas a quem tivesse um dedo a que o anel herói de todos os homens que se reclamavam das tribos de Dana.
se adaptasse. Mas Lug não foi criado pela mãe pois, logo que as tribos de
Dana chegaram à Irlanda, ele foi confiado a uma mulher dos Fir
«Fica certo de que jamais me separarei dele», respondeu a Bolg que se chamava Tailtiu, a qual foi a sua ama de leite, e de
mulher. «Mas tenho muita pena de não saber quem aqui veio quem ele perpetuou a memória graças aos jogos fúnebres
encontrar-se comigo.» «Revelar-te-ei a minha identidade», disse realizados no mesmo lugar onde ela foi enterrada, ou seja, em
o homem. «Aquele que veio encontrar-se contigo é Elattia, filho Tailtiu, nome dado mais tarde a este sítio.
de Indech, que é um dos chefes de Fomore. Nós vivemos em ilhas
envoltas em nevoeiro e, se me quiseres encontrar, só terás de Houve um tempo em que as gentes das tribos de Dana eram tão
mostrar este anel a quem se cruzar no teu caminho. Posso dizer- numerosas que viveram com dificuldades nas quatro cidades
te também que da nossa relação terás um filho, que se chamará onde residiam. Nuada, que era o seu chefe, reuni-las à sua volta
Eochaid Bress, ou seja, Eochaid, o Belo. Fica a saber que tudo o e, após longas discussões, tomaram a resolução de partir por mar
que se vê de belo na Irlanda e nas ilhas do norte do mundo, sejam e de voltar à Irlanda que era o país dos seus antepassados.
os prados onde pastam os gados, os campos onde se cultiva o Aparelharam cerca de trezentos barcos e prepararam-se para
trigo, as fortalezas edificadas em altos cumes, a cerveja que se uma longa viagem. Levaram consigo objetos maravilhosos, com
bebe nas assembléias, as velas que iluminam as salas de os quais pensavam poder dominar os outros povos da terra. Da
banquetes, as mulheres cujo encanto entontece os homens, os vila de Falias levaram a Pedra de Fail, que foi depois colocada
cavalos que puxam os carros de combate, tudo isso não terá uma sobre a colina de Tara, tendo havido quem lhe chamasse Pedra
beleza comparável à do teu filho. E correrá de boca em boca: do Destino: o seu grito indicava o nome de cada rei que devia
«Eis o belo Bress.». Depois, o homem dos Fomore pediu licença governar a Irlanda. De Gorias foi levada a lança que mais tarde
para se retirar. Regressou para o seu navio prateado e pertenceu a Lug, e a que também se chamava Lança de Assal: era
desapareceu no mar alto de onde tinha saído. Eri, por seu lado, impossível vencer quem quer que a brandisse. De Findías foi
voltou para sua casa. Não tardou a perceber que estava grávida e levada a espada de Nuada, a que também se chamava Caladbolg,
dela nasceu Eochaid Bress, tal como tinha predito Elatlia dos ou seja, «Raio Violento»: a ela ninguém escapava, tal era o seu
Fomore. Oito dias depois do parto, o rapaz parecia ter quinze ímpeto furioso quando saía da bainha. De Murias foi
dias e continuou a crescer mais rapidamente que as crianças da transportado o caldeirão de Dagda, que continha um alimento
sua idade, de tal modo que, com sete anos, tinha a estatura de um inesgotável, e ninguém que ele se servisse deixava de ficar
rapaz de catorze anos. Assim era Bress, filho de Elatha dos saciado.
Fomore e de Eri das tribos de Dana.
As tribos de Dana partiram então das Ilhas do norte do mundo e
Quando as tribos de Dana tiveram conhecimento dos seus feitos, navegaram para a Irlanda. Ao cabo de três dias, três noites e três
os seus chefes reuniram-se e foram aconselhados a conclLir um anos, na segunda-feira da semana do início do mês de Maio,
tratado de amizade com os Fomore. Enviaram então estavam diante da costa de Muga no UIster. Há quem defenda
embaixadores à presença dos Fomore, e selou-se assim uma que as gentes de Dana, que eram da raça de Larbonel, o
aliança entre eles. Foi assim que Cian, filho de Dianceclit, Adivinho, chegaram nas asas de nuvens sombrias e não em
barcos ou navios. O mais certo, no entanto, é que, ao ilha.»
desembarcarem, elas incendiaram os seus navios para que não Ao ouvirem aquelas palavras do druida Cesard, os Fir Bolg
caíssem na tentação de voltar ou de quererem fugir se algum enviaram espiões para vigiarem as gentes que chegavam por
perigo as ameaçasse. As grandes nuvens de fumaça que, a certa mar. Cumprida a missão, os espiões informaram que o grupo dos
altura, obscureceram os céus da Irlanda, fizeram crer que elas recém-chegados era constituída por gente tão bela que Jamais no
teriam sido trazidas por um nevoeiro mágico. Mas a verdade é mundo se vira igual, e que, além de muito bela, possuía armas
que a fumaça ocultou a chegada das tribos de Dana, que se muito poderosas e apetrechos bélicos temíveis, tendo para mais,
foram refugiar no país de Corcu Belgatan, que é agora dotes extraordinários para a música e um comportamento
Cormernara, na província de Coiinaught. exemplar. Segundo os espiões, jamais se vira gente tão temível,
pois todos os guerreiros pareciam ter uma ciência apurada das
Naquele tempo, o rei da Irlanda era Eochaid, filho de Erc, da artes e das técnicas do druidismo e da magia.
raça dos Fir Bolg. Ora, na mesma noite em que as tribos de Dana
desembarcaram, ele teve uma visão durante o sono. Levantou-se Os Fir Bolg reuniram-se em conselho no palácio real de Tara, «É
incomodado e mandou chamar o seu druida que se chamava terrível que não saibamos de onde vem essa gente e o que
Cesard. Logo que este chegou à sua presença, o rei disse-lhe que pretende de nós. Enviemos Sreng, filho de Sengann, ao encontro
um sonho que tivera durante a noite o tinha deixado cheio de dos recém-chegados, pois trata-se de um homem rude e de alta
angústia e de perplexidade. «Que haveis visto vós, ó rei da estatura que conhece muito bem as artes e as ciências. Ele irá
Irlanda?», perguntou Cesard. «Na verdade», respondeu Eochaid, perguntar aos forasteiros quem são e o que pretendem.»
«vi grandes bandos de pássaros negros surgirem das profundezas
do mar e virem na minha direção. Num abrir e fechar de olhos, Streng, filho de Sengann, levantou-se e aprontou-se para a
eles chegaram a terra e misturaram-se conosco, trazendo a partida, equipando-se com o poderoso escudo vermelho-
confusão e a hostilidade aos homens da Irlanda. Então, um dos acastanhado, as duas lanças de madeira muito espessa, a espada
nossos desembainhou a espada e cortou uma asa ao pássaro que, que cintilava, o capacete com quatro chifres e a pesada moca de
de entre todos, me parecia o mais nobre. Agora, ó druida, ferro. Assim equipado, despediu-se da assembléia real e dirigiu-
levanta-te e usa a tua ciência e a tua magia para nos dizeres que se para o sítio onde se tinham entrincheirado as gentes das tribos
significado tem este sonho.» de Dana, no território de Coimaught.

Cesard ergueu-se diante do rei da Irlanda e, graças ao As gentes de Dana vieram recebê-lo na planície, e ficaram muito
conhecimento que tinha das coisas ocultas, falou nestes termos: admiradas com a sua estatura e com o seu péssimo aspecto.
«Não tenho notícias agradáveis a dar-te a ti e a todos os homens «Olhai: um homem vem ao nosso encontro», disseram elas. «Só
desta ilha: vêm ao nosso encontro por mar guerreiros nobres e pode ser um mensageiro que nos vem perguntar quem somos e o
corajosos que nenhuma força consegue deter. Com eles vêm a que desejamos. Mas nós desconhecemos de que raça ele é, talvez
morte e a destruição, pois são gentes hábeis nas artes da magia e seja da raça dos Fomoire.» Dirigindo-se a Bress, filho de Elattia,
do encantamento. Eles lançarão sobre vós nuvens druídicas que disse-lhe: «Vai recebê-lo, pois, embora sejas de sangue real, tens
vos alucinarão e, em cada combate que travardes com eles, sereis um pai que é um Fomore, e por isso poderás com certeza
a parte mais fraca. Fica, pois a saber, rei da Irlanda, que chegou compreendê-lo e dizer-nos em seguida quem ele é.»
a hora de os Homens-Trovão deixarem de ser os donos desta
Bress, filho de Elattia, pegou no escudo, na espada e nas duas também as suas. «Pelo que vejo», exclamou Bress, «são armas de
grandes lanças, deixou o campo das tribos de Dana e avançou pontas largas, pesadas e fortes, poderosas e cortantes! Pobre
para a planície ao encontro de Sreng, filho de Sengann. daquele que por elas for ferido, pois não consegLirá sobreviver!
Aproximaram-se um do outro até o intervalo que os separava ser Como lhes chamas?» » «São lanças de batalha», disse Sreng.
suficiente para que pudessem comunicar entre si. Ficaram a «Com elas não há inimigo que nos faça frente, pois provocam
olhar um para o outro com atenção e curiosidade, admirando-se ferimentos e danos irreparáveis nos adversários abrindo o
ambos com o armamento e o equipamento do que estava em caminho à vitória.» «Acredito bem que sim», disse Bress. «Mas
frente. Achando estranhas as duas grandes lanças de Bress, as minhas armas não são menos eficazes, vais ver. Com elas,
Sreng cravou o escudo na terra de modo a proteger o corpo e o posso espalhar a morte e a destruição entre aqueles que quiser
rosto. Bress fez o mesmo com o seu escudo e saudou Sreng. Este atingir, envenenando-lhes o sangue e fazendo-os desaparecer da
correspondeu à saudação e ambos compreenderam que falavam a superfície da terra.»
mesma língua e que por isso tinham antepassados comuns. «Fico
satisfeito por ouvir palavras tão gentis como as tuas», disse Calaram-se por um bom tempo e continuaram a observar se.
Bress. «Já percebi que os teus antepassados são da raça de «Pois sendo assim», retomou Bress, «e para evitar que os nossos
Nemed, que o céu lhe seja leve.» «Eu também fico satisfeito por parentes tenham a tentação de se destrLir, o melhor será que
constatar que somos da mesma raça e do mesmo sangue», estabeleçamos um tratado de aliança e de amizade.» «De boa
respondeu Sreng. «Fica no entanto a saber que nós somos vontade», respondeu Sreng. Bress, filho de Elattia, das tribos de
homens muito poderosos e que jamais recuámos diante de Dana, e Sreng, filho de Sengann, da tribo dos Fir Bolg, juraram
qualquer inimigo, por muito poderoso que ele fosse.» «o mesmo então aliança e amizade.
acontece conosco», respondeu Bress. «Fica a saber que nada nos
detém e que nunca ninguém levou a melhor sobre nós.» «Não «Onde estavas na noite passada?», perguntou Bress. «Estava na
duvido», disse Sreng, «que o teu povo é corajoso. Se os nossos fortaleza real de Tara», respondeu Sreng. «É lá que estão os
exércitos se chegarem a enfrentar, haverá muitas mortes em nobres e os guerreiros dos Fir Bolg, à volta do rei supremo da
ambos os lados, por muitas artes mágicas que sejam usadas para Irlanda, Eochald, filho de Erc. E tu, de onde vens?» «Eu desci
evitar o derramamento de sangue.» daquela montanha», disse Bress, «onde estão as tribos de Dana e
o seu rei supremo, Nuada, filho de Eclitach. As tribos de Dana
Ficaram a olhar-se por um momento, e depois Bress disse: vieram das ilhas do norte do mundo num manto de nevoeiro e
«Afasta o escudo da frente do teu corpo e do teu rosto para que chegaram à Irlanda graças a uma tempestade desencadeada
eu possa fazer uma descrição do teu aspecto às tribos de Dana.» pelos druidas. É sua pretensão vir habitar nesta ilha, e por isso
«Assim farei», respondeu Sreng. «o meu corpo e o meu rosto seria justo que os Fir Bolg lhes dessem metade dela, para que
estavam escondidos por eu desconfiar das lanças aguçadas que pudéssemos viver em paz.» «Tenho de voltar para Tara»,
ambos trazemos conosco». respondeu Sreng, «e de transmitir as tuas palavras ao rei
supremo da Irlanda. Até se chegar a Tara o caminho é longo,
Sreng afastou o escudo deixando-o cair no chão. Bress fez o portanto tenho mesmo de partir.» «Vai», disse Bress, «mas antes
mesmo, e encaram-se um ao outro longamente. «Mostra-me as toma uma das lanças que eu trouxe comigo. Os Fir Bolg saberão
tuas armas», pediu Bress. «Fá-lo-ei de boa vontade», respondeu assim que tipo de armas possuem as tribos de Dana.»
Sreng, atirando para o chão as suas lanças. Bress deixou cair
Sreng apoderou-se da arma que lhe estendeu Bress, e por seu dos Reféns. Daí elas lançaram enxurradas de magia druídica,
lado, deu-lhe uma das que tinha trazido. «Diz aos Fu- Bolg», nuvens densas de nevoeiro e violentas chuvas de fogo, com gotas
disse Bress, «que só se derem metade da ilha ao meu povo de sangue, que caíram na cabeça dos guerreiros. Assim, durante
poderão evitar a guerra de que sairão derrotados pela certa.» três dias e três noites, os Fir Bolg não consegLiram ter um
«Transmitir-lhes-ei o teu recado», respondeu Sreng. segundo de tranquilidade e de paz, ficando cheios de angústia.

Nessa altura separaram-se, depois de mais uma vez terem «Os nossos druidas são incapazes de nos proteger da magia das
prometido amizade entre si, e cada um seguiu o seu caminho. tribos de Dana», lamentaram-se eles por fim. «Nós proteger-vos-
Quando Sreng chegou a Tara, fizeram-lhe perguntas sobre as emos», responderam os druidas dos Fir Bolg.
gentes com quem se tinha ido encontrar. E fizeram então encantamentos à volta da colina de Tara e
detiveram a magia das tribos de Dana. Nessa altura, os Fir Bolg
«São grandes guerreiros», respondeu Sreng. «São viris e hábeis, reuniram-se em conselho e decidiram preparar-se para o
e têm heróis cruéis e experientes em combate. Usam escudos combate. Reuniram as suas hostes num lugar determinado, com
largos e sólidos, e lanças com pontas afiadas e fustes de madeira todos os seus chefes, todos os seus nobres e todos os seus reis, e
muito sólida. As lâminas das suas espadas são flamejantes e aquele lugar passou a ser chamado Planície de Lia.
ameaçadoras. É melhor que selemos com eles a paz e que lhes
cedamos metade da Irlanda, pois será muito difícil vencê-los.» Os Quando viram os Fir Bolg reunidos, as gentes das tribos de Dana
Homens-Trovão reuniram-se à volta do rei Eochaid e estiveram a reuniram todas as suas hostes e, dirigindo-se para a planície,
analisar durante muito tempo a proposta de Sreng. «Nós não tomaram aí posição. Três dos seus druidas foram enviados ao
daremos metade da Irlanda aos estrangeiros», disseram por fim, encontro dos Homens-Trovão para lhes propor a partilha da
«pois se o fizéssemos eles a segLir apoderar-se-iam de toda a Irlanda em nome da sua origem comum, visto que os Fir Bolg e
ilha e escravizar-nos-iam, a nós, aos nossos filhos e aos nossos as gentes das tribos de Dana eram todos descendentes de Nemed.
descendentes.»
Os três druidas não tardaram a chegar à tenda de Eochaid, filho
Bress, por seu lado, voltou para o campo das tribos de Dana. de Ere, rei supremo da Irlanda. Foram-lhes oferecidos tesouros e
Perguntaram-lhe como era o homem que tinha ido ao seu presentes e perguntaram-lhes o que pretendiam. Eles disseram
encontro na planície, e como eram as suas armas. Mostrando a que tinham vindo propor ao rei supremo a partilha da Irlanda.
lança que lhe dera Sreng, ele respondeu: «É um homem rude, Os Fir Bolg responderam-lhes que Jamais aceitariam fazer uma
poderoso, e vi-o na posse de armas muito poderosas. É grande e tal partilha e que jamais dariam metade da ilha a quem se
corajoso, e nada o atemoriza. Duvido muito que o seu povo nos apresentava daquele modo.
ceda sem luta metade da Irlanda.» «Devemos então preparar-nos «Pois bem», disseram os três druidas de Dana, «Ficai então a
para uma dura batalha», disseram as gentes das tribos de Dana. saber que tereis de vos haver conosco em combate. Quando
Fabriquemos lanças e espadas e construamos fortalezas onde nos quereis iniciar a batalha?» «Precisamos de um tempo»,
possamos refugiar em caso de necessidade.» responderam os Fir Bolg. «Temos de preparar as nossas lanças e
as nossas espadas, e temos de fabricar escudos fortes para nos
As três magas das tribos de Dana, Bobdh, Macha e Morrigane, defendermos.»
foram enviadas a Tara, chegando pouco tempo depois ao monte
Os três druidas voltaram para perto das gentes de Dana e que estas se tomaram verdes e espessas. E todos os homens
anunciaram-lhes que os Fir Bolg não estavam na disposição de feridos que mergulhavam na fonte recuperavam logo a saúde e
dar metade da Irlanda, compreendendo então as gentes de Dana ficavam curados, prontos para voltarem para o combate.
que teriam de travar lutas sangrentas, pois as tribos adversárias
eram tão bravas e corajosas como elas. A batalha na Planície de Na manhã seguinte, Eochaid, filho de Ere, rei supremo dos Fir
Lia foi marcada para quinze dias e um mês depois do início do Bolg, foi-se lavar àquela fonte. Ora, estando ele só, entretido a
Verão, ao meio do dia. As hostes puseram-se em marcha aos fazer abluções, viu por cima de si três homens belos mas terríveis
primeiros raios de sol, e ficaram frente a frente exibindo escudos que, protegidos por escudos, o ameaçavam. «Deixem-me ao
ornamentados com pinturas, lanças majestosas e reais, dardos e menos ir buscar as minhas armas», disse o rei Eochaid, <”Pois
espadas flamejantes. Fatach, o poeta dos Fir Bolg, destacou-se não é justo que venhaís ameaçar um homem só e desarmado.»
dos demais para exteriorizar a fúria que sentia cantando as
glórias dos seus antepassados. Tendo posto um pilar de pedra no Mas os três hornens recusaram o seu pedido e quiseram enfrentá-
meio da planície, apoiou-se nele, enquanto Cairpré, o poeta das lo ali, sem que ele tivesse tempo para se armar. Apareceu então
tribos de Dana, enterrou o seu próprio pilar na outra Sreng, filho de Sengann, um homem grande e forte, de
extremidade da planície e apoiou-se nele para cantar a coragem compleição temível, que se interpôs entre eles. «Não admito que
dos guerreiros do seu povo. Foi a partir daqui que a Planície de um dia se diga», exclamou ele, «que o meu rei indefeso foi
Lia passou a ser chamada Mag-Tured, ou seja, «Planície dos atacado por três jovens presunçosos. É comigo que deveis lutar e
Pilares». não com ele!»

O combate começou então, violento e Implacável, sucedendo-se Os três atacaram-no e sucumbiram imediatamente aos golpes
golpes mortais entre os guerreiros que ficaram com os escudos furiosos que ele lhes infligiu. Com a luta já terminada,
partidos, as lanças tortas e as espadas despedaçadas. O clamor apareceram os Homens-Trovão. Viram os três homens caídos por
tomou-se medonho, e o furor posto na luta pelos guerreiros, na terra, e o rei contou-lhes como Sreng lutara em seu lugar. Então,
vasta planície, parecia aumentar de momento para momento. Ao pegaram em pedras com que encobriram Os três corpos de modo
fim do dia, contudo os homens das tribos de Dana, vencidos, a formar um caer, que desde então passou a ser chamado
tiveram de começar a recuar. Em vez de os persegLirem ao longo Tumulus de Champion. Depois disso, o rei seguiu-os, e
do campo de batalha, os Fir Bolg deixaram-se ficar no seu prossegLiram os combates contra os homens das tribos de Dana.
próprio terreno e cada um dos Combatentes levou à presença de
Eochaid, filho de Ere, rei supremo de toda a Irlanda, uma pedra Ora, eram tão densas as hostes ali concentradas que, por todo
da Planície e a cabeça cortada de um inimigo, com que fizeram lado faiscavam cores resplandecentes como as do nascer e as do
um enorme montículo. pôr-do-sol, campeões dos dois campos, sobre os quais incidia o
sol tinham um aspecto aterrador, indiscriminado, fogoso e
Quanto aos homens das tribos de Dana, ergueram pilares em resplandecente, agitando as suas espadas nos ares em todas as
honra das suas gentes mortas em combate. O médico, que se direções, enterravam as suas lanças no corpo dos adversários e
chamava Dianeccht, fez o que pôde para tratar dos feridos. Por deles faziam jorrar rios de sangue que se derramavam pela erva
seu lado, os médicos de Fir Bolg, tendo consigo ervas curativas, verde da planície, Defendendo-se atrás de filas serradas, os
esmagaram-nas e dispersaram-nas tão bem nas águas duma fonte homens das tribos de Dana lançaram um ataque impetuoso
contra os Fir Bolg. Formaram uma linha de batalha impenetrável Morreram às suas mãos cento e cinquenta guerreiros, tendo ele
e sangrenta, escondendo-se atrás dos seus escudos coriáceos de aplicado nove golpes no escudo do rei Nuada que, por seu lado,
vermelho e pintados com as cores mais variadas. Os guerreiros lhe infligiu nove ferimentos.
mais jovens estavam na linha de frente, pois os mais velhos
foram colocados nos flancos estes para ajudarem e aconselharem A certa altura, os homens das tribos de Dana começaram a
os que combatiam com tanta valentia. Os poetas, os adivinhos e repelir os Homens-Trovão, enquanto na planície se iam
os sábios colocaram-se ao lado dos pilares que erigira, e acumulando os cadáveres. As hostes tremiam como a água de um
puseram em prática toda a magia para tentarem enganar os seus caldeirão que transborda por todos os lados, ou como um rio
inimigos com feitiços e encantamentos. As fúrias, os monstros e cujas águas engrossam quando um exército abre caminho por
os feiticeiros berravam tão alto e com tanta fúria que as suas entre elas para os seus guerreiros poderem passar. E, como os
vozes ecoavam pelos rochedos e pelas cascatas, chegando às próprios reis queriam combater, foi-lhes dado um grande espaço.
cavernas mais profundas da terra. E a própria terra tremia ao Os guerreiros afastaram-se e os servos, atemorizados com aquele
ouvir os gritos horríveis que, naquele dia, se soltaram por toda a espetáculo, puseram-se em fuga. A terra foi calcada pelos heróis
planícíe de Mag-Tured. e com o ardor da luta endureceram as turfas sob os seus pés.
Sreng e Nuada infligiram-se mutuamente trinta ferimentos, e o
Eochad, filho de Ere, o rei supremo dos Fir Bolg e de toda a primeiro infligiu um golpe terrível ao rei das tribos de Dana
Irlanda, encontrava-se mesmo no coração da batalha, assim atravessando com a espada a borda do seu escudo e indo cortar-
como Nuada, o rei de todas as tribos de Dana. Ambos distribuíam lhe o braço direito até ao ombro. Nessa altura, Nuada lançou um
socos violentíssimos à esquerda e à direita, socos que fustigavam grito tremendo de dor.
os corpos, despedaçavam os escudos e as lanças, e cortavam as
cabeças, mais parecendo lenhadores a derrubarem à machadada Ao ouvi-lo, Dagda dirigiu-se para ele e tentou protegê-lo dos
as árvores da floresta. Os heróis andavam de um lado e do outro inimigos que o cercavam. Depois aconselhou-se com os
e, no meio da confusão, lançavam murros impetuosos a tudo o companheiros, e mandaram chamar cinquenta heróis para
que estivesse ao seu alcance, enquanto iam brandindo as lanças proteger o rei, encontrando-se entre eles o médico Diancecht.
cortantes e faiscantes. Nuada foi levado para fora do campo de batalha, e tiraram-lhe o
braço para o colocarem num círculo de pedras. E o sangue de
Estavam também presentes três mulheres, as três magas das Nuada escorreu sobre as pedras.
tribos de Dana, Bobdh, Macha e Morrigane, a filha de Ernmas.
No meio do tumulto, elas lançavam feitiços para ajudar os seus e Entretanto, apesar de Nuada se ter retirado, o combate continuou
imprecações para enfraquecer os adversários. As espadas aceso. Bress, o filho de Elattia, queria vingar o seu rei.
embatiam nas extremidades dos escudos redondos, e lâminas Precipitou-se para o lugar de onde Eochald dirigia a batalha,
incandescentes provocavam poças de sangue que chapinhavam exortando os heróis e dando ânimo aos campeões. Bress atacou-o
debaixo dos pés dos homens. Bress, filho de Elatha, veio furiosamente e ambos, escudo contra escudo, feriram-se nas
combater contra os Fir Bolg. Cento e cinquenta guerreiros partes do corpo a descoberto, enquanto os restantes combatentes
sucumbiram às suas mãos, tendo ele aplicado nove golpes no se mantinham no meio de um cenário caótico, enraivecidos e
escudo do rei Eochaid enquanto este lhe infligia nove ferimentos. tendo de suportar o peso das suas armaduras e dos seus corpos.
Sreng, filho de Sengann, veio combater as tribos de Dana.
Assim que os campeões de Dana vieram em seu socorro, tendo à restantes combatentes foram enterrados em campas. Depois
cabeça Dagda, Ogma, Bobdh Derg, filho de Dagda, Cian, filho disso, Sreng, filho de Sengann, convocou a assembléia dos Fir
de Diancecht, assim como Goibniu, o ferreiro, os Fir Bolg foram Bolg para se aconselhar e decidir o que fazer. Disse aos Fir Bolg
obrigados a deixar o terreno. Quando chegaram a um outeiro que só tinham duas possibilidades: ou deixavam a Irlanda para
que dominava a planície de Tured, Eochaid, filho de Erc, o rei sempre e partiarn para outro país, ou aceitavam partilhar a ilha
supremo dos Fir Bolg da Irlanda, sentiu-se muito fraco. Pediu entre si e as tribos de Dana. «A não ser assim», acrescentou ele,
então a Sreng, filho de Sengann, para lhe vir falar-lhe «Prossegui «teremos de combater até à última gota de sangue. E ficai a
o combate, fazei com que todos os nossos guerreiros continuem a saber que, com os poucos homens que nos restam, não nos será
combater com bravura e tenacidade, até que eu encontre água fácil alcançar a vitória.»
que possa beber e com que possa lavar a cara», disse Eochaid,
«pois tenho a garganta seca e estou a morrer de sede.» «Nós Os Firbolg decidiram não abandonar a Irlanda e combater as
somos pouco numerosos, agora», respondeu Sreng, «mas tribos de Dana até ao último homem em condições de pegar em
asseguro-vos que o combate prossegLirá, aconteça o que armas.
acontecer.»
Então, voltaram a pegar nos grandes escudos quadrados, nas
Sreng reuniu uma centena de homens e preparou-se para lanças envenenadas, nas espadas cortantes de metal azul, e
enfrentar as gentes das tribos de Dana. Mas, assim que os partiram ao encontro das tribos de Dana, sabendo que no
druidas daquelas souberam que o rei da Irlanda estava morto de combate terrível e desesperado que se avizinhava o mais certo
sede, lançaram um feitiço de forma a esconder das suas vistas os era encontrarem a morte. Uma vez chegados ao lugar onde se
nos e os regatos da Irlanda. E ele, por muito que procurasse o encontravam as tribos de Dana, Sreng, filho de Sengann, desafiou
país à procura de uma fonte onde matar a sede, não encontrou Nuada para o combate como vingança pela luta que ambos já
nada. Ora, estando ele a ser perseguido pelos guerreiros das tinham travado. Nuada, como se não tivesse ficado sem braço,
tribos de Dana, aproximou-se de uma margem, num lugar que enfrentou-o cheio de coragem. Com a mão esquerda agarrou nas
hoje se chama o Areal de Eochaid. Aí foi atacado por três armas e avançou para Sreng, dizendo-lhe: «Se o que desejas é
guerreiros, mas defendeu-se energicamente, apesar da sede que o uma luta como deve ser, amarra o braço direito, pois eu perdi o
atormentava, e matou-os aos três. Tendo recebido diversos meu, e assim estaremos em igualdade de condições. Se queres
ferimentos e estando enfraquecido por todos os golpes que que a luta seja justa, é isso o que deves fazer.» «Nada a isso me
sofrera, ele próprio também acabou por sucumbir. E ali mesmo obriga», retorquiu Sreng.
foi enterrado, naquele mesmo areal, debaixo de um montículo
que os Fir Bolg fizeram com pedras para ali levadas. «Nós estávamos em igualdade de condições na primeira luta que
travamos, e esta é a continuação dessa primeira luta. É verdade
Naquela noite, devido ao cansaço e às grandes perdas que que eu te cortei um braço, mas os teus guerreiros mataram o meu
sofreram, os Homens-Trovão estavam consternados e rei, Eochaid, filho de Erc, e eu tenho sangue real. Cabe-me a mim
completamente desanimados. Censuravam-se por não terem vingar a morte do rei supremo da Irlanda, vencendo o rei das
lutado com suficiente ardor e deram sepultura às suas gentes, aos tribos de Dana.» Nessa altura interveio Bress, filho de Elatha:
pais, aos amigos e aos familiares. Para os nobres foram feitos
montículos, erigiram-se pilares em memória dos heróis, e os «Sreng, valoroso guerreiro, lembra-te que nós fizemos um
juramento de paz e de amizade. Eu também tenho sangue real e reuniram-se mais uma vez para decidir o que haviam de fazer na
poderia combater no lugar do meu rei. Mas como estamos unidos Irlanda, tendo-se tornado donos de quase todas as terras da Ilha
por este juramento de amizade, não podemos voltar a encontrar- Verde. Chegaram a acordo unanimemente que era preciso
nos frente a frente. Paremos com isto e façamos a paz.» «Farei fixarem-se nas planícies e nos vales tirando proveito do solo
como dizes, e respeitarei desse modo o juramento feito perante ti, cultivando o trigo e fazendo a criação de gado nos grandes
ó valoroso Bress». respondeu Sreng. «Espero as tuas propostas.» prados situados junto aos rios. Quanto a Nuada, o rei supremo
das tribos de Dana, o médico Diancecht, com a ajuda do artesão
Bress foi-se reunir com os chefes das tribos de Dana e analisou a Credné, fez-lhe um braço de prata dotado de todos os
situação com eles. «Que perdas sofremos?», perguntou Nuada. movimentos da mão em cada dedo e em cada articulação. E
«Nobre Nuada», respondeu Dagda, «juro-te que perdemos muitos Miach, filho de Diancecht, enxertou-lhe o braço, articulação a
guerreiros e muitos campeões nesta batalha. Uma grande parte articulação, nervo a nervo e veia a veia, por três vezes, ficando
de nós, muitos dos nossos irmãos e dos nossos filhos, morreram ele curado ao fim de nove dias. Entretanto, Diancecht ficou
às mãos dos Fir Bolg, e são tão grandes as nossas baixas que tão despeitado com aquela cura e, furioso, brandindo a espada sobre
pouco podemos saber quantas foram. Nós pedimos aos Fir Bolg a cabeça do filho, provocou-lhe um golpe profundo no pescoço. O
para partilharem a Irlanda conosco porque temos origem no rapaz, contudo, curou-se pondo em prática a sua arte. Então,
mesmo clã, o do glorioso Nemed que é uni nosso antepassado. Diancecht voltou a feri-lo e chegou ao osso. O rapaz mais uma
Era uma questão de justiça, e nós tínhamos o mesmo direito que vez curou-se voltando a usar a sua arte. Ainda mais furioso,
eles de habitar este país. Eles não nos quiseram deixar o lugar Diancecht feriu-o uma terceira vez na cabeça e atingiu-lhe o
que por herança nos pertencia, e tivemos de o conquistar pelas cérebro, tendo sido assim que Miach morreu às mãos do próprio
armas, pagando um alto preço com o sangue dos nossos heróis e pai. E este disse que ninguém dali em diante o poderia devolver à
dos nossos guerreiros. Penso que chegou o momento de celebrar vida.
um acordo com os Fir bolg, pois eles já não estão em condições Depois, Diancecht dirigiu-se aos homens das tribos de Dana:
de lutar conosco e seria cometer uma injustiça matá-los até ao «Mesmo no caso de Nuada se apresentar diante de vós com um
último homem». «E a voz da sabedoria que fala pela tua boca, ó braço, ficai a saber todos que este é de prata. Por esse motivo ele
Dagda», disse Nuada. «E, apesar da dor que me provoca a minha passará a ser chamado Nuada do Braço de Prata. Sabei também
enfermidade, apesar da raiva que sinto, prefiro que se firme a paz que qualquer rei que perde uma parte do corpo se toma incapaz
entre nós e os Homens-Trovão. Que Bress vá ao encontro de de reinar, pois a integridade do rei é o que garante a integridade
Sreng, filho de Sengann, e que lhe proponha o fim das do reino. Devemos por isso escolher entre nós qual é o mais
hostilidades e a escolha, pela sua parte, de uma província da digno de ser nosso rei, pois Nuada do Braço de Prata, por muito
Irlanda para habitar com as gentes do seu povo.» mérito que tenha, já não é digno de exercer uma tal função.»

Bress foi falar com Sreng e transmitiu-lhe a proposta dos chefes Os chefes das tribos de Dana reuniram-se em conselho.
das tribos de Dana. Sreng escolheu a província de Connaught. «Diancecht tem razão», disse Nuada. «Eu ja não posso ser o
Então juraram paz e amizade, para eles e os seus descendentes. E vosso rei, pois lamentavelmente perdi o meu braço. “Escolhei,
Sreng, filho de Sengann, reuniu-se com os Fir Bolg que tinham pois, entre vós aquele que vos parecer mais digno de ser o vosso
escapado ao massacre de Mag-Tured, e partiu para Connaught, rei.»
de que tomou posse. Quanto aos homens das tribos de Dana,
Então, após acesa discussão, acabaram por escolher Bress, filho de Dagda. «Oh Dagda!», exclamou ele em alta voz, «por tua
de Elattia, pois ele tinha sangue real, sendo filho de um príncipe honra, quero que uma terça parte substancial da tua ração de
dos Fomore. E assim Bress tomou-se rei da Irlanda durante sete comida me seja dada!» Foi assim que, a partir de então, Dagda
anos, após a batalha de Mag-Tured em que as tribos de Dana passou a dar uma grande parte da sua comida ao sátiro. Apesar
combateram e venceram os Fir Bolg. disso, a ração daquele era abundante, sendo cada bocado de
O saberem que Bress, filho de Elatha, se tomara rei das tribos de comida do tamanho de um grande porco. E como Dagda, apesar
Dana, os Fomore ficaram muito satisfeitos, pois viam nele um dos de privado de um terço da sua ração, continuava a fazer os seus
seus e, por seu intermédio, tudo fariam para impor aos habitantes trabalhos muito duros, ia ficando cada vez mais fraco.
da Irlanda encargos tão pesados como aos seus antepassados
noutros tempos. Assim, enviaram mensageiros a Bress para lhe Um dia, estando a cavar uma fossa, o seu filho Bobdh Derg veio
lembrar que, se a sua mãe era originária das tribos de Dana, já o vê-lo e ficou espantado ao vê-lo tão magro e sem forças. «Que se
seu pai era Elatha, um dos grandes chefes dos Fomore, gigantes passa contigo, ó Dagda?», perguntou Bobdh Derg. «Porque é
que habitavam em ilhas no meio do nevoeiro. que estás com tão mau aspecto?» «Ora», respondeu Dagda,
«Crideribel, o sátiro, exige de mim que lhe dê todas as noites uma
Desse modo, os Fomore fizeram recair pesados encargos sobre terça parte substancial da minha ração». «Vou-te dar um
as tribos de Dana. Os homens da Irlanda deviam-lhes pagar um conselho», disse Bobdh Derg. Tirou a bolsa da túnica e, pegando
imposto sobre o trigo, um imposto sobre o leite e a manteiga, e em três peças de ouro, pô-las na mão de Dagda. «Ouve bem o
um imposto por cada pedra que servisse para constrLir uma que te digo», continuou ele. «Vais meter estas três peças de ouro
casa. Além disso, deviam pagar uma onça em ouro por pessoa, em três bocados de comida que lhe deres, tendo a preocupação
homem ou mulher, adulto ou criança, ou arriscavam-se a que de que sejam os mais belos e mais apetitosos. Cridenbel engoli-
lhes cortassem impiedosamente o nariz. Para cúmulo, o rei Bress, los-á vorazmente, com as peças de ouro dentro, de tal modo que o
desde que soubera que podia contar com os Fomore, abusava em ouro, ao entrar-lhe no corpo, o fará morrer. Irão então dizer a
benefício próprio das suas prerrogativas. Atribuiu terras a si Bress que o sátiro morreu por lhe teres dado uma erva
mesmo, e obrigou os nobres das tribos de Dana a executarem envenenada. O rei, furioso, dará ordens para que tu sejas
trabalhos muito duros em seu proveito. Assim, Ogma, o campeão, castigado com a morte, mas tu defender-te-ás. Dirás que
devia levar diariamente um feixe de lenha para a lareira da casa Cridenbel te pediu os três melhores bocados da tua comida e que,
de Bress; e Dagda, que já lhe havia construído a casa, foi para o satisfazeres, lhe deste três peças de ouro, ou seja, os três
obrigado a constrLir-lhe fortalezas, Com o passar do tempo, melhores bocados. acrescentarás que foi por ter engolido o ouro
cada vez mais os nobres das tribos de Dana viam com maus olhos que Cridenbel morreu.»
os impostos que lhes eram infligidos pelos Fomore, assim como
as injustiças que eram praticadas pelo seu próprio rei Bress, filho Dagda pôs em prática o conselho de Bobdh Derg. Naquela
de Elatha. mesma noite, meteu as três peças de ouro nos três melhores
bocados da sua comida e deu-os a Cridenbel. O sátiro devorou
Certo dia, um cego de nome Cridenbel foi encontrar-se com vorazmente os três bocados e de manhã foi encontrado morto.
Dagda na sua casa real. Era um preguiçoso, um parasita, mas Então, as gentes da casa foram dizer ao rei que o sátiro tinha
costumava dizer sátiras e toda a gente o receava. Ora, Cridenbel morrido porque Dagda lhe dera a comer urna erva envenenada.
pensava que a parte de comida que lhe cabia era muito inferior à Bress chamou Dagda à sua presença e censurou -lhe
veementemente a sua malvadez, ameaçando-o com a morte no somos dois bons médicos», responde. Segundo a narrativa da
caso de se vir a saber que ele era culpado. «Eu não sou «Segunda batalha de Mag-Tured», primeira versão eram eles, o
culpado», respondeu Dagda. «Crideribel pediu-me as três filho e a filha de Dianceclit. Ele chamava-se Oirmiach e ela
melhores partes que me cabiam, e o que eu tinha de melhor eram Airmed. «Se são tão bons médicos», disse o porteiro, «têm de nos
as três peças de ouro. Dei-as por isso a Cridenbel, e não tenho provar. Não vêem que sou zarolho? Pois bem, fazei com que eu
culpa de ele ter morrido pelo fato de o seu corpo não ter tenha um olho no lugar daquele que me falta.» «E para já», disse
suportado o ouro.» «Se assim é», disse o rei, «mandarei abrir o o jovem, «Eu vou imediatamente pôr um olho de gato no lugar do
corpo de Cridenbel para ver se existe ouro lá dentro. Se não olho que te falta». «Ficarei muito satisfeito com isso», respondeu
houver, tu morres, e se houver, ser-te-á poupada a vida.» o porteiro, «e elogiarei os teus méritos em todas as assembléias
desta ilha.»
Abriram a barriga ao sátiro e encontraram três peças de ouro no
estômago, o que serviu para desculpar Dagda, que não tardou a Com efeito, este jovem, que se chamava Oirmiach, e a jovem, que
recuperar força e energias, pois já não tinha de dar uma parte se chamava Airmed, meteram o olho do gato no lugar do que
substancial da sua comida. O perdão dado a Dagda não impediu, estava em falta no porteiro. Mas, mais tarde, o porteiro só ficou
no entanto que este e todos os chefes das tribos de Dana se meio satisfeito, pois quando queria dormir ou descansar, o olho
continuassem a queixar das injustiças de Bress. Queixavam-se abria-se ao mais pequeno chiar de um rato, ao mais leve bater de
amargamente que ele não os deixava dar uso às facas e que asas de um pássaro, ou mesmo ao mais ligeiro sopro de vento nos
nunca lhes oferecia festins onde corressem a cerveja e o ramos das árvores. Pelo contrário, quando tinha necessidade de
hidromel. Nunca havia grandes festas em que os poetas, os observar um grupo de guerreiros ou uma assembléia de nobres à
músicos e todos os tipos de artistas se exibissem para gáudio de volta do caldeirão, o olho fechava-se-lhe e ficava com vontade de
toda a gente. Também não se assistia nunca a grandes dormir e de repousar.
competições onde os campeões pudessem mostrar as suas
habilidades. E todos se interrogavam como se havia de Maravilhado, entretanto, com a arte dos dois jovens, entrou no
ultrapassar esta situação constrangedora.” palácio e foi falar com Nuada do Braço de Prata. Comunicou-lhe
que havia dois bons médicos à porta e que eles tinham acabado
Nuada, pela sua parte, lamentava-se por ter perdido a coroa e o de lhe pôr um olho no lugar daquele que lhe faltava. Nuada
poder real devido à falta do braço, apesar de um braço de prata mandou então que eles entrassem.
lhe ter sido enxertado, permitindo-lhe mover as articulações com
uma extrema suavidade e destreza. Vivia em Tara, com a maior Quando os jovens entraram na grande sala onde estava Nuada do
parte das tribos de Dana, e o porteiro que lhe vigiava a entrada Braço de Prata, ouviram uma espécie de gemido de lamento e de
da fortaleza só tinha um olho. dor. «o que há aqui?», perguntou Oirmiach. «Pareceu-me ouvir o
gemido de um guerreiro que padece de um mal terrível.» «Na
Um dia, andando o porteiro no prado em frente da fortaleza, viu verdade, é um grito de dor e de desespero», disse Airmed.
ao Pé das muralhas dois jovens belos e de estatura nobre. Um «Vejamos se não se trata de um suspiro de um guerreiro que
era homem, o outro mulher, tendo-o ambos cumprimentado após sofre por um escaravelho lhe estar a roer o braço sem que ele
se aproximarem dele. Ele correspondeu ao cumprimento e disso se dê conta.»
perguntou-lhes o que os trazia à fortaleza real de Tara. «Nós
Estenderam Nuada do Braço de Prata numa liteira e quem havia de ser o rei da Irlanda. Alguns observaram que,
examinaram-no com atenção. Airmed acabou por lhe tirar o tendo-lhe sido restituídas uma mão e um braço, Nuada poderia
braço de prata, e de dentro dele saiu um escaravelho que se pôs a reinar de novo sobre o seu povo. Mas outros alvitraram que,
correr por toda a fortaleza. Os homens da casa real vieram então tendo sido atribuído poder real a Bress, filho de Elaffia, este não
ver o que se passava e mataram o bicho. lhe poderia ser retirado sem seu consentimento. Ora, era sabido
de todos que Bress se apegara ao poder e que não o abandonaria
«O braço de prata estava bem articulado», disse Oirmiach, «mas sob nenhum pretexto. «Eu sei o que há a fazer», disse então
não serve ao rei Nuada. Se encontrássemos um braço com igual Dagda. «Peçamos a Cairpré, que é poeta e sátiro, para ir a casa
comprimento e largura, metê-lo-íamos no lugar desse.» Os de Bress e para lhe fazer provocações pondo a nu as suas
nobres das tribos de Dana que se encontravam ao redor de fraquezas e a sua sovinice.»
Nuada ordenaram então aos criados que procurassem entre eles
um braço adequado. Os criados observaram os braços de todos Cairpré, filho de Etaine, que era o poeta das tribos de Dana,
aqueles que ali se encontravam e pediram aos dois jovens para deslocou-se então à casa real que Dagda construíra para Bress.
darem um parecer. Apresentou-se e pediu hospedagem, que lhe foi dada de boa
vontade. Mas Cairpré achou a casa de Bress sombria, muito
Mas estes, fazendo uma ronda por braços sucessivos, não pequena e desconfortável. Nela não havia lareira para se
encontravam nenhum que conviesse. Referindo-se ao braço de poderem aquecer, nem leito para dormir, nem comida em
Moffian, o chefe Porqueiro das tribos de Dana, os criados quantidade suficiente para matar a fome. Trouxeram-lhe três
perguntaram aos médicos: «Este braço serve-vos?» «Esse pequenos pães, que estavam secos e duros. Além disso, em vez de
parece-nos com efeito o mais conveniente», responderam eles. cerveja e de hidromel, deram-lhe água. Comeu os pequenos pães,
Era necessário ainda que o homem aceitasse de boa vontade dar bebeu a água, mas dormiu tão mal na casa real de Bress que
o seu braço ao rei Nuada. «Fá-lo-ei com todo o gosto», disse o acordou na manhã seguinte de muito mau humor. Saiu de casa,
porqueiro, «desde que isso nos ajude a livrarmo-nos da opressão atravessou o pátio e ia pronunciando as seguintes palavras:
dos Fomore e das injustiças de Bress.» Oirmiach disse então à «Que horrível é a casa de Bress, filho de Elatha, pois nela a
sua irmã: «o que preferes? Enxertar o braço nos ombros do rei comida não é servida em pratos de ouro, o leite de vaca não é
Ou ir procurar ervas para permitir que ele se adapte à natureza generosamente distribuído, a cerveja deliciosa não corre a rodos,
da sua carne?» «Prefiro enxertar o braço», respondeu Airmed. e os poetas, os contadores de histórias e os músicos nela não têm
lugar! Que rei é este que não sabe distribLir as suas riquezas?
E, enquanto Oirmiach foi procurar ervas, Airmed pacientemente Daqui em diante, enquanto Bress, filho de Elattia, for o rei
meteu mãos à obra. Com todo o cuidado, enxertou o braço do supremo, não haverá colheitas, as vacas não darão leite, não se
porqueiro no ombro do rei e, assim que o Irmão voltou com as fará cerveja, riem se fará a distribuição de pedras preciosas e de
ervas, ela aplicou-as com tantas cautelas que o braço se ajustou ouro na terra da Irlanda.»
perfeitamente a Nuada. Qualquer pessoa que desconhecesse que
ele perdera um braço em combate não poderia suspeitar que E, pronunciadas aquelas palavras, Cairpré deixou a fortaleza.
aquele braço não era o seu. Mas, apesar disso, não se deixou de Bress ouviu a maldição lançada por Cairpré e, muito assustado,
se lhe chamar rei Nuada do Braço de Prata. foi a Tara encontrar-se com os nobres das tribos de Dana na
Entrementes, os nobres das tribos de Dana puseram-se a debater casa real.
mãe. Ela encaminhou-se para a praia e mandou aparelhar barcos
«Porque é que me obrigaram a ouvir a sátira de Cairpré?», para navegarem para o país dos Fomore. Depois, tirando o anel
perguntou ele. «Um rei deve estar imune a qualquer maldição, de ouro que lhe tinha sido dado por Elattia quando viera ao seu
seja de que tipo for.» «A razão é que tu não te comportas como encontro, estendeu-o para Bress. Bress pô-lo no dedo do meio, ao
um rei», respondeu Dagda. Para além de não seres generoso qual ele se adaptou perfeitamente. Até àquela altura, Eri tinha-o
conosco, fizeste de nos escravos e obrigas-nos a pagar elevados guardado religiosamente, não o tendo vendido ou dado a nenhum
impostos em benefício dos Fomore. «A verdade», acrescentou homem. Apesar disso, muitos guerreiros tinham tentado enfiá-lo
Cian, filho de Diancecht, «é que nós nunca deveríamos ter no dedo, sem êxito, pois aquele anel não se adaptava a nenhum
firmado uma aliança com os Fomore. Eles só nos deixaram dedo dos guerreiros.
conquistar esta ilha aos Fir Bolg para poderem depois dominar- Mãe e filho partiram então para o país dos Fomore, situado
nos e tirarem dividendos da nossa vitória, e tu nada fizeste para numa ilha envolta em nevoeiro. Desembarcaram e avistaram uma
evitar que eles nos prejudiquem.» «Nós fizemos de ti rei», grande planície onde havia varias assembléias. Dirigiram-se
retomou Dagda, «porque, o nosso rei tinha perdido um braço em para aquela que lhes pareceu mais bela, e as pessoas que aí se
combate. Tu tinhas dois braços, mas eles de nada nos valeram encontravam perguntaram-lhes por novidades, respondendo eles
pois não serviram para criar riqueza e prosperidade.» «O que é que tinham vindo da Irlanda. Perguntaram-lhes então se tinham
que eu podia ter feito», perguntou Bress. «Eu digo-vos qual é a cães, pois naquele tempo era costume, sempre que pessoas de
minha opinião», disse Dagda, «Agora que o braço que faltava foi fora chegavam a uma assembléia, realizarem-se competições e
restituído a Nuada, ele deve ser o nosso rei. Pedimos-te que Jogos. «Sim, temos», respondeu Bress, «e temos todo o gosto em
abdiques do trono, pois, devido à sátira que sobre ti foi lançada, que eles participem em jogos com os vossos.» Soltaram então os
o teu reino está condenado a não dar frutos: faltarão as ervas nos cães, e estes fizeram corridas contra os dos Fomore, destacando-
prados para seus animais pastarem, as vacas não darão leite, os se graças à sua imensa velocidade. Perguntaram cristão aos
campos tornar-se-ão estéreis. Se insistires em ser rei, nada de recém-chegados se tinham cavalos e se permitiam que eles
bom poderemos esperar para o nosso reino.» «Nesse caso Competissem com os dos Fomore «Temos», respondeu Bress, «e
abdicarei do trono», disse Bress. «Concedei-me algumas é para uma grande prazer que compitam com os vossos.»
garantias, e reconhecerei Nuada como nosso rei.»
E os cavalos das tribos de Dana foram mais rápidos do que os
Os nobres das tribos deram algumas garantias a Bress, filho de dos Fomoire. Perguntaram então aos recém-chegados se tinham
Elatha, prometendo-lhe que seria sempre bem vindo à casa real e trazido com eles alguém perito em desembainhar a espada. Mas
que jamais deixaria de ser convidado para os festins. Então, ele os companheiros de Bress, apesar de muito se esforçarem, não
pediu um prazo de sete dias, que lhe foi dado, deixando depois a consegLiram ser mais rápidos que os Fomore. Então Bress tentou
casa real de Tara. Mas o pedido de um prazo deveu-se a um a sua sorte, mas assim que pôs a mão na espada o pai reconheceu
desejo de vingança, tendo ele ficado furioso por ter sido privado o anel de ouro que tinha na mão e perguntou-lhe quem era ele. A
do trono que lhe dava o poder de reinar sobre a Irlanda. Foi mãe respondeu por ele, dizendo a Elatha que Bress era um dos
encontrar-se com a mãe, Eri, e perguntou-lhe corno é que havia seus filhos, e em seguida contou-lhe toda a história desde que o
de encontrar o pai, Elatha, filho do rei dos Fomore. guerreiro estrangeiro se fora encontrar com ela.

«Vem comigo, que não terás dificuldade em achá-lo», disse-lhe a O pai compreendeu que o filho estava ali devido a uma situação
grave, e perguntou-lhe: «O que é que te fez deixar o país de que combater aqueles inimigos cruéis e impiedosos. A reunião
és rei?» «O motivo é simplesmente a injustiça e a arrogância com decorria na casa real, enquanto o porteiro se mantinha vigilante
que tratei os meus súditos. Eu privei-os dos seus bens e dos seus no exterior da fortaleza.
alimentos, fazendo-os passar por uma terrível humilhação e por
uma situação extremamente injusta.» «Isso é mau», disse o pai. Ora, ao perscrutar o horizonte, ele viu um exército que,
«Teria sido preferível que o teu reino fosse prospero, pois um avançando pela planície, vinha direito para a fortaleza. Um
reino rico faz do seu rei um homem rico. Além disso, é muito mau jovem destacava-se à frente do exército, parecendo exercer um
ter de ouvir maldições.» «Revoltados comigo» continuou Bress, ascendente sobre os seus companheiros. O rosto brilhava-lhe
«os meus súditos enviaram ao meu encontro um poeta que lançou como a luz do sol, e as suas feições muito amplas resplandeciam
um feitiço sobre o reino que durará enquanto eu for rei.» «Estás como ouro. Vinha montado num cavalo cuja crina era tão bela
a dar-me péssimas notícias», disse o pai, «pois se o teu povo ficar como as ondas do mar e que avançava tão rapidamente conio a
na penúria, não poderá pagar-nos os impostos que lhes nortada fria e cortante da Primavera. Envergava uma armadura
impusemos. E porque é que vieste até aqui, tendo deixado a cintilante e na cabeça tinha um capacete belo e suntuoso que
longínqua Irlanda?» «Vim pedir campeões para me ajudarem», brilhava, estando ornado com uma rica pedra preciosa atrás e
respondeu Bress, «pois é minha pretensão reconquistar o país outras duas à frente. Trazia também uma espada maravilhosa,
pela força.» «Se em tempo de paz não conquistaste o teu país, que matava quem quer que por ela fosse ferido, e que tomava
não será pela força que consegLirás conquistá-lo. Temos de ter fraco como uma mulher em trabalho de parto quem quer que a
uma conversa.» visse reluzir no ardor da luta.,

Então, ele levou Bress à presença do pai, Indech, rei dos Fomore. Destacando-se dos companheiros de armas, o jovem avançou
O rei convocou os nobres e os campeões entre os quais se para o porteiro. «Quem és tu?», perguntou-lhe este. «Chamam-
destacava Balor, filho de Net, que tinha um olho maléfico. me Lug do Braço Longo. Sou filho de Cian, filho de Diancecht, e
Estudaram a situação e concluíram que, a menos que o trono da de EtImé, filha de Balor das ilhas que ficam para lá do nevoeiro.
Irlanda fosse devolvido a Bress, filho de Elattia, eles perderiam Fui criado por Tailtiu, filha de Maginor, dos Fir Bolg.»
todos os privilégios que lhes advinham de tributarem impostos às
tribos de Dana. Os Fomore reuniram por isso uma multidão de «Muito bem», disse o porteiro, «e que desejas tu, filho de Cian?»
homens de todas as ilhas e decidiram partir para a Irlanda. Aí «Quero dirigir-me à assembléia dos nobres e dos campeões das
chegados, os cobradores de impostos reclamariam o tributo tribos de Dana», respondeu Lug. «Isso era bom», disse o
devido e, se os homens de Dana se recusassem a pagar, iniciar- porteiro, «mas fica a saber que ninguém é admitido na
se-ia uma guerra contra eles. E foi assim que a Irlanda viu assembléia da casa real de Tara se não possLir o dom de uma
aproximar-se um exército poderosíssimo e temível, como jamais arte, seja ela qual for. O que é que tu sabes fazer?» «Muitas
se vira. coisas... Sei constrLir vigas para o teto das casas e edificar
paliçadas ao redor das fortalezas.» «Não duvido da tua arte, mas
Entretanto, os nobres e os campeões das tribos de Dana tinham- nós já temos um carpinteiro. Chama-se Luchté, é filho de
se reunido à volta do seu rei Nuada do Braço de Prata, no Luachaid, e serve-nos perfeitamente sempre que queremos
palácio real de Tara. Sabendo que Bress os trairia e que iria edificar entrincheiramentos ou constrLir vigas no teto das
pedir auxilio aos Fomore, tinham decidido preparar-se para casas.» «Eu também sou capaz de forjar relhas do arado e armas
com pontas bem afiadas», replicou Lug. «Sei bater o metal «Tu de nada nos servirias», respondeu o porteiro, «pois temos o
quando ele sai da forja e talhar os objetos à minha maneira.» mais dotado médico do mundo. Chama-se Diancecht, e tanto o
«Não duvido das tuas capacidades», retorquiu o Porteiro, «mas seu filho como a sua filha são capazes de fazer prodígios.» «Sou
já temos um ferreiro que se chama Goibmu, que é inigualável nas também copeiro real», disse Lug. «Num festim sou capaz de
artes do metal.» «Eu também sou um campeão imbatível no distribLir a cerveja e o hidromel por todos os assistentes e de
campo de batalha», disse Lug. «Pois que isso te faça bom acordo com a categoria e o valor de cada pessoa.» «Nós não
proveito! », exclamou o porteiro, «mas nós já temos um campeão precisamos de ti para nada», respostou o porteiro, «pois entre
que se chama Ogma. Sozinho ele é capaz de vencer em combate nós existe um copeiro real que não tem ninguém igual no mundo.
uma centena de homens armados.» «Eu também sou tocador de Ele serve a cerveja e o hidromel com sabedoria, e sem melindrar
harpa», insistiu Lug, «e sei provocar alegria, tristeza e seja quem for. Podes ver, portanto, que há entre nós homens de
sonolência.» «Quanto a isso», objetou o porteiro, «ternos arte e de ciência, homens e mulheres que conhecem todos os
também quem nos satisfaz. Craffine e o nosso tocador de harpa e, segredos do mundo.» «Pois bem! », disse Lug, «vai falar com o
além disso, o nosso protetor Dagda possui uma harpa mágica teu rei e pergunta-lhe se conhece alguém que reuna numa só
com a qual é capaz de provocar todos os estados de espírito. A pessoa todas as qualidades que eu acabo de te enunciar. Se a sua
harpa sai por ela própria da parede a que está encostada e, resposta for afirmativa, eu renuncio a entrar na casa real de
espontaneamente, vem parar às mãos de Dagda. Como vês, não Tara.»
precisamos de ti nesta assembléia real.» «Além disso sou poeta e
contador de histórias», disse Lug. «Conheço as histórias de Então o porteiro entrou na fortaleza e dirigiu-se à casa onde à
tempos passados, e sou capaz de as contar a quem quer que peça volta do rei Nuada do Braço de Prata estava reunida a
para as ouvir. Sou a memória viva das tribos de Dana e de todos assembléia de nobres e de campeões das tribos de Dana. «Rei
os povos do mundo.» «Nós já temos um poeta, Cairpré, filho de supremo», disse ele, «já fora, à entrada da fortaleza, está um
Etame. Ele conhece tudo o que aconteceu no mundo desde a sua jovem guerreiro que diz chamar-se Lug, filho de Cian, e que se
criação, e tem o dom de contar os acontecimentos. Se queres que diz perito em todas as artes que se praticam nesta casa. Nunca vi
te diga, não sei o que poderias fazer por nós.» «Mas também sou nada parecido: é um homem que sabe fazer tudo e que é um
feiticeiro», insistiu Lug. «Conheço os feitiços que são necessários Artesão-Múltlplo.
para congelar as fontes, impedindo a água de flLir, e para evitar
que os homens ouçam o tumulto do combate. Conheço os Então, Nuada pediu ao porteiro para ir buscar o jogo de xadrez
sortilégios que desencadeiam as tempestades e que fazem com de Tara e para fazer uma partida com o jovem guerreiro. O
que as brumas avancem para os inimigos.» «Também nesse porteiro disputou um jogo de xadrez com Lug, e este ganhou a
particular», replicou o porteiro, «nós estamos melhor servidos do partida. Sem perda de tempo, o porteiro foi informar Nuada e os
que qualquer outro povo. Temos entre nós diversos sábios e chefes das tribos de Dana sobre o ocorrido.
feiticeiros que conseguem dominar o vento, a chuva, o mar e a
terra. Temos também três magas, Bobdh, Macha e Morrigane, «Fá-lo, pois entrar na casa real», disse Nuada, «pois
que são as filhas de Errimas. As três têm o dom de lançar feitiços amais ouvi falar em alguém que seja capaz de tantos prodígios.»
durante os combates e de fazer com que caia chuva de sangue O porteiro foi então chamar Lug e fê-lo entrar na fortaleza,
sobre os inimigos.» «Está bem ... », insistiu Lug, «mas eu sou encaminhando-o depois para a casa onde estava reunida a
médico e possuo a arte de sarar as feridas sofridas em combate.» assembléia. Aí chegado, Lug tomou lugar no assento reservado
aos sábios, pois, como era evidente, ele era a pessoa mais sábia ser travado. Foram então reunir-se com ele para o consultarem.
que alguma vez estivera na presença dos nobres e dos campeões
das tribos de Dana. Após refletir durante alguns instantes, Lug perguntou ao ferreiro
Goilmiu que contributo ele lhes poderia dar. «Não te preocupes»,
Entrementes, Ogina foi buscar a grande pedra que se encontrava respondeu Goibrtiu. «Podem os homens da Irlanda estar em
no exterior da casa, e que só podia ser levantada com o esforço guerra durante sete anos, e por cada ferro do dardo que saia da
de vinte e quatro homens; arrastando-a através da casa, haste, ou por cada espada que se parta, eu substitLirei a peça em
depositou-a aos pés de Lug, sendo lançado um desafio a este. falta. Qualquer ponta de armamento que saia da minha forja será
Ora, o jovem guerreiro, sem pronunciar uma palavra, ergueu-se, de tal modo eficaz que o corpo em que penetrar perderá todo o
agarrou a pedra, e com um único movimento levantou-a na vigor. Nem o ferreiro dos Fomore será capaz de tal artifício. Pela
vertical, fazendo-a depois retomar o lugar onde estivera. minha parte, estou pronto para a batalha, e darei todo o apoio a
todos os que estiverem em apuros.» «E tu, Diancecht», retomou
«O jovem guerreiro que toque harpa!», disse então Dagda. Lug, «que podes fazer por nós?» «Não te preocupes: saberei
«Precisamos de música para ficarmos em boa forma.» Lug cuidar de todos os feridos e de os recuperar para as batalhas
segurou a harpa de Dagda que estava encostada à parede e, seguintes, a menos que os matem ou lhes cortem as goelas.» «E
trata-se de um protótipo do célebre «Assento Perigoso», que, na tu, Credné», perguntou Lug ao artíficie do bronze, «que grande
Távola Redonda, está reservado apenas a predestinados. contributo nos poderás dar na batalha?» «Não te preocupes:
Dirigindo-se à assembléia, tocou com tal perfeição uma música fornecerei rebites de dardos, punhos de espadas, bocetes e
sonolenta que todos dormiram um dia inteiro, desde aquela hora guarnições de escudos.» «E tu?», dirigiu-se Lug ao carpinteiro,
até mesma hora do dia seguinte. Depois tocou uma música que «que grande contributo nos poderás dar, frente aos Fomore?»
fazia rir, e todos ficaram alegres e bem dispostos durante muito «Não te preocupes: fornecerei a todos os escudos e as lanças de
tempo. Por fim, tocou uma música triste, e todos mergulharam madeira de que precisarem, e substitLirei instantaneamente as
numa profunda angústia durante a noite e até à mesma hora do armas que ficarem danificadas no ardor do combate.» «E tu,
dia seguinte, lamentando-se e choramingando. Ogma?», interrogou então Lug o campeão, «o que farás na
Quando Nuada do Braço de Prata chegou à conclusão de que o batalha contra os Fornore?» «Não te preocupes: fazendo recuar
jovem guerreiro possuía poderes que ninguém mais tinha, o rei dos Fomore e três novenas dos seus guerreiros, farei com
ponderou um momento e pensou que talvez Lug pudesse libertá- que os homens da Irlanda fiquem desde logo com um terço da
los do jugo dos Fomore que oprimia as tribos de Dana. vitória ganha. Nenhum inimigo conseguirá resistir aos golpes que
Consultou os nobres destas tribos e, a seu conselho, levantou-se eu infligir.» «E tu, Morrigane» dirigiu-se Lug à maga, «que
do seu assento e pediu ao jovem guerreiro para nele se sentar. grande contributo será o teu nesta batalha?» «Não te preocupes:
Lug do Braço Longo sentou-se então no assento real, embora não tudo o que eu quiser alcançarei, graças ao poder dos meus
fosse rei, e Nuada ficou de pé diante dele treze dias e treze noites. feitiços. A minha arte aterrorizará de tal modo os Fomore que a
Depois disso, o rei foi encontrar-se com Dagda e Ogma para lhes planta dos seus pés ficará branca, e os seus campeões morrerão
dizer em segredo que era aconselhável confiar a Lug, filho de uns a segLir aos outros devido à retenção da urina. Quanto aos
Cian, a chefia da guerra que iam travar contra os Fomore. Ogina outros guerreiros, fá-los-ei ter tanta sede que ficarão
e Dagda aprovaram a idéia e foram da opinião de que Lug enfraquecidos, e farei com que todas as fontes fujam deles de
deveria ter a última palavra sobre o modo como o combate devia modo a não poderem matar a sede. E enfeitiçarei as árvores, as
pedras e as elevações de terra de tal modo que, confundindo-as tomarei a dianteira dos homens da Irlanda e serei o primeiro a
com contingentes de homens armados, os inimigos nelas se avançar contra os guerreiros que nos vêm fazer frente. Bater-me-
perderão cheios de terror e de pânico. «E tu, Cairpré, tu que nos ei contra eles com tal vigor que arrasarei, corri sortilégios e com
encantas os ouvidos com os teus cantos melodiosos», interrogou armas, todos aqueles que tentarem resistir. Os ossos dos meus
Lug o poeta, «que surpresa agradável nos reservas nesta adversários transformar-se-ão em migalhas de tanto eu lhes bater
batalha?» «Não te preocupes: frente às hostes dos Fomore com a minha moca, e as migalhas serão dispersas parecendo
cantarei a glória dos nossos pais, os filhos de Nemed. Depois saraiva pisada pelo casco dos cavalos depois de uma tempestade.
enfeitiçá-los-ei e lançar-lhes-ei o glam dicin mais poderoso que No auge da batalha, mesmo se estiver cheio de chagas e de
alguma vez existiu na Irlanda. Desse modo a honra dos Fomore feridas, eu não vos faltarei com a minha assistência e a minha
cairá por terra e eles não resistirão à investida dos nossos, o que, proteção.» «E tu. Mananann, filho de Lir, senhor das ilhas
podes crer, Lug, filho de Cian, sem dúvida se deverá à magia da distantes», perguntou Lug, «que grande feito realizarás na luta
minha arte». contra os Fomore?» «Não te preocupes: agitarei tão habilmente
o meu manto entre os Fomore e os nossos heróis que os Formoire
Então, Lug do Braço Longo virou-se para os diruidas que se nem se lembrarão da razão que os levou até à planície.», por fim,
encontravam na assembléia e perguntou-lhes: «E vós, druidas Lug virou-se para Nuada do Braço de Prata. «E tu, Nuada»,
das tribos de Dana, que proezas fareis durante a batalha?» «Não dirigiu-se-lhe ele, «rei supremo da Irlanda, que proeza irás
te preocupes: desencadearemos tantas tempestades e tantas protagonizar na batalha contra os Fomore?» «Não te
chuvas de fogo sobre os Fomore que eles nem serão capazes de preocupes», respondeu Nuada. «Na qualidade de vosso rei
levantar a cabeça e sucumbirão às mãos dos vigorosos estarei entre vós, mas não combaterei. Estarei, no entanto em
guerreiros que investirão contra eles. E se isso não for suficiente, condições de dar de comer a todos os guerreiros que estarão sob
faremos desaparecer as fontes, os rios e os lagos da Irlanda para a tua chefia, e não deixarei que a fome ou a sede se instalem
que os Fomore não possam saciar a sede que lhes secará as entre eles enquanto durar a batalha.»
gargantas durante a batalha. Essas são as proezas que faremos,
ó sábio Lug do Braço Longo, filho de Cian.» «E tu, Craftiné», Foi assim que na casa real de Tara, no meio de uma assembléia
continuou Lug, dirigindo-se ao harpista, «que feito porás em de nobres e de chefes das tribos de Dana, Lug do Braço Longo,
prática nesta batalha?» «Não te preocupes: tocarei músicas e filho de Cian, falou com todos eles na intenção de preparar a
melodias tão doces aos nossos guerreiros que eles mergulharão grande batalha que tinha de ser travada para acabar com a
num repousante sono até à manhã seguinte. Depois disso, irei escravidão imposta pelos Fomore. E o discurso que ele fez
combater e matarei o maior número de inimigos possível.» «E tu, perante todos foi de tal modo convincente, que o seu espírito mais
Bobdh Derg, filho do valente Dagda». prosseguiu Lug, «que parecia o de um rei ou de um príncipe. Passou-se isto uma
podemos esperar de ti?» «Não te preocupes: irei combater e logo semana antes da festa de Samain.
na minha primeira investida farei com que caiam a meus pés,
vítimas dos meus golpes, mais de uma centena de guerreiros Findo isto, Lug separou-se daqueles nobres e chefes das tribos de
Fomore. E não deixarei de os persegLir para os eliminar e para Dana e marcaram um encontro para a véspera de Samain. Mas,
Os matar até ao último dos seus homens.» «E tu, Dagda, o mais antes de deixar a assembléia, Lug, pediu a Dagda para que
sábio de nós todos», continuou Lug, «que proezas nos reservas estivesse atento a chegada dos Fomore, que deveria ser
durante a batalha contra os Fomore?» «Não te preocupes: retardada o mais possível de modo a que o combate pudesse ser
preparado com todas as cautelas. E Dagda prometeu a Lug Saindo então do ribeiro que corria para o Ulster, Morrigane
satisfazer o seu pedido, pois ele era o protetor das tribos de avançou para Dagda. Trazia consigo um vestido vermelho cor de
Daria e devia, acontecesse o que acontecesse, velar pela sangue, nove tranças saiam da sua cabeleira. «Desata os meus
proteção do seu povo. cabelos», disse ela. Dagda pegou nas tranças, desatou-as uma a
uma, e a cabeleira de Morrigane, que era negra como as penas
Dagda mandara constrLir uma casa no norte, no vale de Etin. E do corvo, caiu sobre os ombros e escorreu ao longo do corpo até
como ele combinara encontrar-se aí com uma mulher, não se roçar ao de leve na cintura. Estendendo-se na relva, chamou-o:
demorou em Tara, partindo apressado para norte de forma a «Agora vem.»
estar em casa no dia e à hora que havia combinado.
Dadga deitou-se a seu lado e ela apertou-o contra as suas coxas.
Perto de casa, à entrada do vale, corriam dois ribeiros, um para Aquele lugar onde eles se uniram chama-se agora Leito do Casal.
oeste, na direção de Connaught, e o outro para norte, em direção Terminado o ato, Dagda levantou-se e disse: «Vou deixar-te, pois
ao UIster. À chegada, Dagda viu a mulher a lavar-se, banhando tenho a missão de identificar o lugar onde estão estabelecidos os
delicadamente o pé direito no ribeiro que corria para Connaught Fomore, devendo depois retardá-los o mais possível para que as
e o pé esquerdo no que corria para o Ulster. Esta mulher era nem tribos de Dana se possam preparar para a batalha.» «Eu posso
mais nem menos do que Morrigane, filha de Eminas, a maga das ajudar-te», disse Morrigane. «Estás a ver o bando de pássaros
tribos de Dana. negros que voam por cima das nossas cabeças? Eles vêm de leste,
Ora, ao observar o espanto de Dagda por vê-la lavar os pés em e se voam na direção do sol poente, é porque um terrível exército
dois ribeiros diferentes, ela disse: «Não te admires. Assim eu os assusta. Não é difícil perceber de onde eles vêm, tão
envio os meus sortilégios para Connaught e para o Ulster, pois desnorteados: vêm da planície de Scene, Junto ao Woral. Foi aí
será na confluência destas duas províncias que se travará a que os Fomore desembarcaram em massa e é aí que estão as suas
batalha contra os Fomore.» «Podes vir falar comigo por um hostes.» «Nesse caso, vou à planície de Scene», disse Dagda.
momento?» perguntou Dagda. «Não é altura para isso», disse «Observarei os seus movimentos e verei o que posso fazer para
Morrigane. «Parece-me que temos outra coisa a fazer, como lhes retardar a expedição. E tu, o que vais agora fazer?» «Em
ficou combinado.» «Está bem», disse Dagda, «Mas foi a teu primeiro lugar, vou esperar por um momento propício»,
pedido que marquei o encontro aqui. Porque é que temos sempre respondeu Morrigane, «depois intrometer-me-ei entre os Fomore
de nos encontrar em segredo, às escondidas de todos, sem o e pedirei para ver o rei. Deixar-me-ão passar porque sou uma
conhecimento dos homens das tribos de Dana?» «Tu sabes mulher bela e atraente, e entrarei na tenda do rei Indech. Quando
perfeitamente que eles não suportariam saber que estou em tua ele quiser saciar os seus desejos comigo, farei com que o seu
companhia. Se o soubessem, teriam um ciúme mortal que se coração se Parta e os seus rins se diluam em sangue. Nessa
abateria sobre ti.» «No entanto», disse Dagda, «eu não sou o altura, irei mostrar os restos do rei às tribos de Dana e, tomando
único homem que tem a honra de se poder encontrar contigo.» «É conhecimento de que os Fomoré perderam o rei, elas partirão
verdade, Dagda, mas ninguém o deve saber. Pois, aos olhos dos para a batalha com uma coragem acrescida.».
homens das tribos de Dana, eu sou livre, e todos esperam ser
desejados por mim. Haveria muitos corações destroçados e Nisto, Dagda separou-se de Morrigane e dirigiu-se diretamente
inconsoláveis se os meus encontros fossem conhecidos.» para a planície de Scene. Chegando aí, ficou a observar
demoradamente a atividade dos Fomore, e depois decidiu ir ao
encontro dos guardas pedindo-lhes para falar aos Fomore sobre disse Dagda. E pôs-se a comer deliciando-se com as papas de
as convenções que deveriam ser respeitadas na batalha. farinha e a carne. Os Fomore observavam-no cheios de
curiosidade, e troçavam do modo como ele devorava o conteúdo
Conduziram-no então à presença de Indech, rei dos Fomore que da sua colher. Quando repararam que ele rapava o fundo, por
o recebeu com deferência, pois sabia que Dagda era um sábio não estar ainda satisfeito com tudo o que havia dentro da fossa,
entre os homens de Dana. Falaram sobre o lugar onde deveria ficaram embasbacados, pois nunca tinham visto ninguém com
decorrer a batalha e do dia em que ela se deveria iniciar. Depois, tanta gula.
o rei, querendo tratar o hóspede com todas as honras, ordenou
aos criados e aos cozinheiros que lhe dessem de comer. Entretanto, Dagda sentia-se entorpecido, estando a sua barriga
tão curva como o maior caldeirão que alguma vez existira na
Os Fomore começaram por lhe dar a beber grandes quantidades casa do rei. Deitou-se no chão e não tardou a adormecer,
de cerveja e de hidromel, podendo ele saciar-se à sua vontade. enquanto os Fomore à sua volta não paravam de se rir e de se
Depois prepararam-lhe uma papa de farinha pois sabiam que era divertir à sua custa. Diziam eles: «Se todos os heróis das tribos
um alimento da sua preferência, mas ao fazê-lo, tinham em mente de Dana são como este, como é que nos havemos de espantar que
troçar dele e pôr a nu a sua gulodice. Para o satisfazerem eles não nos queiram dar o trigo e o gado que, na qualidade de
encheram então o caldeirão do rei que era muito grande, vassalos, nos devem?» E acrescentavam: «Pelo que estamos a
cabendo nele cinco homens fortes, com leite fresco, farinha e ver, será para nós uma brincadeira vencê-los pelas armas!» Por
banha, em idênticas proporções. E como isso não era suficiente, fim Dagda acordou, não sabendo onde estava. Ao ver que os
deitaram para dentro do caldeirão cabras, carneiros e porcos Fomore troçavam dele, ficou furioso. Estava tão entorpecido que
que cozeram com a papa de farinha. Depois, como era impossível preferiu não dar troco à zombaria deles. Depois de se despedir,
comer de uma vez toda a comida do caldeirão escaldante, fizeram começou a caminhar para a assembléia de Tara para contar o
uma cova no solo e deitaram para lá tudo o que ele continha. que vira e a experiência por que passara.

Quando Dagda viu a refeição que lhe tinham preparado, Mas a barriga estava tão grande que lhe era difícil caminhar,
começou por se queixar dizendo que não estava habituado a ser tendo de parar várias vezes. Estava com um aspecto deplorável,
servido de forma tão rude e altiva. Mas o rei dos Fomore foi ter pois a saliência das nádegas aparecia à mostra por baixo da
com ele e ameaçou-o de morte se não comesse tudo o que estava túnica, e o seu membro viril, que era comprido, estava
na fossa. Segundo ele, desse modo Dagda não se iria queixar de perfeitamente escancarado. Arrancara um ramo duma árvore e
que os Fomore não sabiam tratar bem os seus hóspedes. servia-se dele como se fosse uma bengala, mas era tanta a força
com que se apoiava nele que ia deixando atrás de si um risco
Percebendo que não poderia recusar, Dagda pegou na colher, profundo que daria para traçar a fronteira de uma província.
que era de tal maneira grande que um homem e uma mulher se
poderiam deitar ao fundo dela. E cada colherada que ele tirava Quando estava a chegar a um vale, viu uma jovem a lavar-se num
da fossa obrigava-o a devorar meio-porco, um pernil de ovelha ribeiro. Como ela era muito bela, com tranças na cabeça e
ou de cabra formas muito atraentes, encheu-se de desejo por ela. Disso se
apercebendo, a moça não o rejeitou, e deitaram-se na erva, perto
«Que saborosa deve ser a carne, se o cheiro não me engana ... », do ribeiro. Apesar disso, Dagda estava tão pesado que não
conseguiu unir-se à jovem, que se ergueu e fez troça dele. devem e que reconheçam Bress como rei supremo. Se eles
aceitarem estas nossas últimas propostas, se nos pagarem o
Furioso e com ímpetos violentos, Dagda quis bater na insolente, tributo, abster-nos-emos de os combater e voltaremos para as
rnas ela furtou-se e começou a correr. Dagda levantou-se com nossas ilhas. Mas se eles recusarem, terão de travar um combate
dificuldade e, percebendo que não poderia apanhá-la, lançou-lhe mortal e de desaparecer desta terra da qual passaremos a ser os
pedras, mas não a atingiu. Então, enfurecido, jurou vingar-se únicos senhores.»
massacrando todos os Fomore que apanhasse pela frente na O rei dos Fomore deu ordens para que uma vintena dos seus
batalha, pois eram eles os culpados pela sua vergonhosa homens mais corajosos e cruéis se preparassem para partir para
situação. A seguir, retomou a marcha em direção a casa real de Tara com o fim de reclamar o tributo devido aos Fomore e de
Tara. obrigar os homens de Dana a reconhecerem Bress, filho de
Elatha, como rei supremo. Os emissários agruparam-se sem
Enquanto isto acontecia, os Fomore, depois de terem preparado perda de tempo e puseram-se a caminho, chegando a Tara pouco
as lanças, as espadas e os escudos, reuniram-se à volta do rei, tempo depois. Ao ver aquele grupo impertinente e de mau aspecto
Indech, cheios de coragem e de determinação, prontos para aproximar-se das muralhas da fortaleza, o porteiro, aterrado,
avançarem sobre a planície de Tured onde tinham combinado perguntou o que desejava. Assim que lhe foi dada uma resposta
com Dagda travar a batalha. «Os homens da Irlanda são uns foi, apressado, ter com Nuada e informou-o das pretensões dos
convencidos, por se atreverem a querer combater contra nós», Fomore, que exigiam a sua parte das colheitas, de gado e de
disse Indech. «Tenho a impressão que eles ficarão reduzidos a objetos preciosos, assim como a devolução da coroa a Bress,
migalhas e que os seus ossos serão poeira no dia a segLir à filho de Elattia.
batalha.» «Rei supremo», interveio então Bress, filho de Elatha,
«seria bom que fizéssemos uma última tentativa para evitar a Furioso, Nuada deu um salto e exclamou: «Vai-lhes dizer que os
confrontação.» «És covarde?», gritou Indech. «Tens medo de filhos de Dana nunca mais voltarão a pagar tributos aos Fomore,
medir forças com os guerreiros das tribos de Dana?» «Claro que e Bress, filho de Elatha, nunca mais será o rei supremo da
não, rei supremo», respondeu Bress. «Se falo assim, é no Irlanda.» Acrescentou: «Nós combateremos no dia combinado na
interesse de todos. Pelo que me toca, estarei a vosso lado no planície de Tured, e eliminaremos todos os Fomore, pois eles não
combate e, aconteça o que acontecer, portar-me-ei como um rei. têm nenhum direito sobre esta terra e nós queremos libertar-nos
Mas se exterminarmos os homens da Irlanda, esta ilha ficará da escravidão que nos é imposta por estrangeiros. Manda-os
deserta e não haverá mais ninguém para cultivar os campos e voltar para perto dos seus, e diz-lhes para se prepararem para
para criar o gado. Que ganharíamos com isso? As vossas sofrerem uma derrota vergonhosa que lhes trará toda a
próprias terras são ilhas no meio do nevoeiro, e é de todo o infelicidade do mundo!»
interesse para vos manter os homens da Irlanda sob o vosso
domínio para que eles criem riqueza e comida em abundância. O porteiro transmitiu a mensagem, e os Fomore, sem insistirem,
Seria de todo o interesse para vós que Os homens da Irlanda, regressaram para junto das hostes do rei Indech. Entrementes,
temendo o vosso poder, permitissem que eu Voltasse a sentar-me apareceu Lug, filho de Cian. Informado do que acabara de
no trono, pois assim eu poderia dar-vos o que vos Pertence.» acontecer e, tomando conhecimento das exigências do
«Penso que tens razão», disse Indech. «Mandemos uma vintena adversário, ficou negro de raiva. «Como?», gritou ele. «Vocês
de homens à Irlanda para lhes pedir que paguem o que nos sofreram durante largos anos a opressão dos Fomore, que vos
impuseram a escravatura, e deixaram partir sãos e salvos os mais Tuirenn tinham todos herdado um ódio feroz pelos membros da
cruéis e perversos deles?» «Não tínhamos alternativa», família de Diancecht.
respondeu Nuada. «Eles vieram na qualidade de mensageiros e
era dificil impedi-los de voltar para junto dos seus.» «Mas como Ora, os filhos de Tuirenn, tendo visto e reconhecido Cian na
me enfurecem os vossos escrúpulos!», rugiu Lug. «Deviam tê-los planície de Murthemné, logo disseram entre si que tinham ali
tomado como reféns ou tê-los massacrado para que não uma oportunidade há muito sonhada para se livrarem de um filho
pudessem combater-vos na batalha que se avizinha. Eu vou de Diancecht, já que ele estava só e indefeso em frente a três
persegui-los e fá-los-ei pagar um preço bem alto pela audácia e jovens corajosos e determinados. Também disseram entre si que,
pelas suas pretensões!» «Não faças isso!», interveio então Cian, se Cian perdesse a vida naquela aventura, fariam recair a
filho de Dianceclit. «Não te compete a ti, meu filho Lug, responsabilidade sobre os Fomore. E decidiram então atacá-lo
persegLir esses malfeitores. O teu lugar é aqui, entre os chefes sem piedade. Cian compreendera muito bem as suas intenções e,
das tribos de Dana, que se preparam para travar a batalha mais percebendo que corria perigo de vida, murmurou para si mesmo:
violenta que alguma vez se viu. Serei eu a ir atrás desse bando «Se os meus dois irmãos estivessem aqui, nós lutaríamos
execrável!» rijamente e não teríamos dificuldade em desembaraçar-nos
E, antes de alguém poder reagir, Cian saltou para cima de um destes três. Mas eu não os tenho comigo, estou só, por isso o
cavalo e este começou a galopar a toda a velocidade no encalço melhor que tenho a fazer é fugir. Eles que esperem e nunca mais
dos Fomore. Dois dos seus irmãos, chamados Cti e Ceithenn, me poem os olhos em cima.» Ao ver-se depois cercado por uma
decidiram acompanhá-lo para o ajudarem, mas não conseguiram vara de porcos, não hesitou e bateu em si mesmo com uma
apanhá-lo e dirigiram-se para sul ao passo que ele fora para varinha druídica, adqLirindo então o aspecto de um porco e
norte. Quanto aos Fomore, tinham um grande avanço e Cian, começando a esgaravatar no chão como faziam os outros porcos.
desesperado por chegar perto deles, ia-se consolando a pensar «Que estranho», disse Brian, filho de Tuirenn, aos irmãos.
que, ao menos, os teria pela frente na batalha a travar na «Vocês não viram, como eu, um dos filhos de Diancecht a
planície de Tured, podendo aí vingar-se deles. Arrepelou então atravessar a planície?» «Vimos, na verdade», responderam eles,
caminho com a intenção de entrar em Tara. «e reconhecemo-lo. E impossível que tenha desaparecido sem
motivo. Desde que vejo planícies e vales aprendi a saber
Atravessou a planície de Murthemné e logo viu três jovens distingLir o que existe do que não existe. Estou bem em crer que
armados a virem ao seu encontro. Reconheceu neles, sei como ele desapareceu: bateu em si mesmo com uma varinha
imediatamente, os três filhos de Tuirenn, que se chamavam Brian, druídica de ouro e transformou-se num porco, misturando-se com
lucharba e luchar. os desta vara- E, neste mesmo momento, nas nossas barbas, ele
prepara-se para fugir com os seus semelhantes.» «Estamos com
Ora, havia Já muito tempo que os membros da família de pouca sorte», disseram os dois irmãos, «pois esta vara pertence a
Diancecht e os da família de Tuirenn se detestavam, chegando uma das tribos de Dana e não podemos matar todos os porcos, já
mesmo a odiar-se mortalmente. Eram sem conta as batalhas em que seríamos censurados por isso. Além disso, mesmo que o
que se tinham confrontado, e onde quer que se encontrassem, fizéssemos, é certo que o porco druídico nos escaparia.» «Tu não
alguns deles tombavam por terra, embora todos eles fizessem és muito inteligente», respondeu Brian, «e vejo que de nada te
parte das tribos de Dana e descendessem de Nemed. Mas era serviu a lição que recebemos nas ilhas do norte do Mundo. Tu
mais forte a incompatibilidade entre eles, e os três filhos de nem sequer és capaz de distingLir um animal druídico de um
animal natural.» E, dito isto, os três irmãos começaram a flagelá-lo com pedras
que arremessavam violentamente, sem piedade e compaixão,
Quando acabou de pronunciar estas palavras, Brian bateu nos fazendo do corpo do herói uma massa informe e repelente.
seus irmãos com uma varinha mágica e druídica que trazia Cavaram depois uma fossa e enterraram-no. Mas a terra não
sempre consigo, e deu-lhes a forma de dois cães muito magros, aceitou este assassínio e atirou o corpo para a superfície. Os
ágeis e rápidos que, soltando latidos fortes, se precipitaram sobre filhos de Tuirenn enterraram-no uma segunda vez, mas a terra
a vara e a dispersaram. Depois, investiram sobre um dos porcos, voltou a rejeitá-lo. E eles, enterrando-o seis vezes de seguida,
precisamente aquele em que se transformara Cian, e este seis vezes de seguida a terra o rejeitou. Só à sétima vez, enfim, o
refugiou-se junto de uma mata de aveleiras, esperando não ser corpo ficou encerrado dentro da terra. Então, os filhos de
visto; mas, por efeito de artes mágicas, Brian, adivinhando a sua Tuirenn deixaram a planície de Murthemné e dirigiram-se para a
intenção, brandiu a sua lança e bateu-lhe no peito com ela. planície onde estava planeado travar-se a grande batalha contra
os Fomore.
«Porque me bateste desta maneira, sabendo quem eu era e que
estava indefeso?», perguntou o porco. «Eis uma voz humana! », Entretanto, as tribos de Dana tinham escolhido o seu campo
gritou Brian. «Não me enganei e os meus dois cães druídicos não sobre uma colina que dominava a planície e de onde se podia
desfloraram a reconhecer-te.» «E verdade», admitiu o porco, «eu vigiar os movimentos e os gestos dos Fomore. E todos os dias
era um homem antes de adquirir esta forma. Sou Cian, filho de havia lutas entre eles, não Participando nelas nem reis nem
Dianceclit. Poupa-me a vida, suplico-te, e serei teu criado, nobres, mas apenas guerreiros muito rijos e temerários. Os
ficando ao teu serviço na batalha contra os Fomore.» «Juro por Fomore estavam espantados com o infortúnio que sobre eles se
todos os espíritos do ar», gritou Brian, «que se a tua alma abatera. As suas armas, fossem dardos ou espadas, deterioraram-
voltasse sete vezes para o teu corpo, eu a caçaria sete vezes!» se sem motivo aparente, e os seus guerreiros morriam sem que
«Então», disse Cian, «faz-me um favor» «Como queiras», disse voltassem no dia seguinte. Em contrapartida, era o contrário o
Brian. «Deixa que eu volte a ter a forma humana». «A vontade», que acontecia com as gentes das tribos de Dana: as suas armas,
disse Brian, filho de Tuirenn, «pois muitas vezes custa-me mais quando porventura sofriam danos, logo apareciam intactas e
matar um porco do que um homem.» refeitas no dia seguinte, tão poderosas e mortíferas como antes.
O grande artífice que tornava aquilo possível era o ferreiro
Cian adquiriu então a sua forma natural. «Enganei-te», disse ele, Goibilu, que não parava de fabricar espadas, lanças e dardos,
«pois se me tivesses matado na forma de um porco, o meu filho bastando-lhe dar três pancadas para fazer o seu serviço. O
apenas poderia reclamar o preço de um porco. Mas, ja que me carpinteiro Luclité forjava hastes também com três pancadas,
queres matar na minha forma natural, terás de o recompensar sendo a terceira para as polir e as inserir no encaixe da lança ou
com o preço de um homern, o que te ficará multo caro devido à do dardo. Quando as armas eram postas ao lado da forja, ele
minha categoria, as minhas ações e aos meus méritos. E serão as lançava os anéis nas hastes, e já não era necessário ajustá-las.
armas com que me matardes que servirão de testemunho da Quanto ao artífice do bronze Credné, também fabricava pregos
minha morte ao meu filho.» (’) «Não serás então morto com as com apenas três pancadas, sem ter depois necessidade de os
nossas espadas», disse Brian, «mas com pedras que apanharemos ajustar. E os guerreiros que tinham sido feridos ou mortos em
do chão.» combate voltavam no dia seguinte para o seu posto, o que se
devia a Diancecht que, com o seu filho Oirmiach e a sua filha
Airmed, lançara um feitiço na Fonte da Saúde. Nesta fonte se Entre os Fomore encontrava-se um jovem guerreiro chamado
banhavam os homens, mortos ou feridos, ficando com a saúde Octriallach, que era um dos filhos do rei Indech. O jovem
restabelecida logo que dela saíam. Esta fonte chama-se Lusmag, aconselhou os Fomore a pegarem numa pedra e a atirarem-na à
ou seja, Planície das Ervas, pois Diancecht a ela deitou urna Fonte das Ervas, situada a norte do lago e a oeste da planície de
haste de cada erva que crescia na Irlanda. Há quem sustente, no Tured. Os Fomore dirigiram-se para ai, um apos outro, e cada
entanto, que estas plantas, trezentas e sessenta e cinco ao todo, um atirou uma pedra para a fonte que ficou assim cheia, de tal
são as que cresceram no túmulo de Miach, filho de Dianceclit, forma que não era possível mergulhar nela. E desde então, neste
assassinado pelo pai devido a ciúmes, por ter enxertado tão lugar, ergue-se um outeiro a que se chama Tumulus de
perfeitamente o braço de prata do rei Nuada. Airmed, a filha de Octriallach.
Dianceclit, tinha posto estas ervas no seu manto e tinha-as
lançado na Fonte da Saúde. Mas Dianceclit, sempre movido por Quando chegou a hora da grande batalha, os chefes reuniram-se
ciúmes, tinha misturado tão bem estas ervas que só ele conhecia de ao lado e do outro. Os Fomore saíram do seu campo e
a virtude particular de cada uma. formaram batalhões ínvulneráveis e indestrutíveis. Fosse um
Compreendendo por fim o que se estava a passar, os Fomore chefe ou um simples guerreiro, todos envergavam uma armadura,
encarregaram um dos seus de ir ver a disposição das hostes das e tinham um capacete na cabeça, uma lança aguçada na mão
tribos de Dana e de tentar descobrir como eles eram capazes de direita, uma espada bem afiada à cintura, e um escudo largo e
fazer tantos prodígios. Coube a Ruadan, filho de Bress e de Brig, sólido aos ombros. Atacar os Fomore, naquele dia, na planície de
filha de Dagda, e que, por consequência pertencia mais ao clã de Tured, era como bater com a cabeça contra uma rocha, por a
Dana do que ao dos Fomore, ir espiar o campo adverso. No rnão num ninho de vespas, ou ficar exposto a um fogo ardente.
regresso, ele contou aos Fomore as proezas que vira serem feitas
pelo ferreiro, pelo carpinteiro, pelo artífice do bronze e pelos Os chefes das tribos de Dana ergueram-se e prepararam-se para
médicos reunidos à volta da fonte, e cofiaram-lhe então a missão o confronto. Mas, como Lug do Braço Longo deixara a casa real,
de ir matar o ferreiro. Nuada do Braço de Prata disse aos que ali estavam: «Não é
conveniente deixarmos o nobre Lug do Braço Longo, filho de
Ruadan pediu a Goibniu um dardo, ao artífice do bronze pregos e Cian, ir combater correndo assim o risco de ser ferido. Penso que
uma haste ao carpinteiro, sendo satisfeito o seu pedido. E, logo deveríamos impedi-lo de se envolver na carnifícina.» «Tens
que se viu na posse do dardo, Ruadan voltou-se e atingiu Goibniu razão», concordou Ogina, «mas todos nós sabemos que ele nos
com a arma, ferindo-o gravemente. Goibniu arrancou a arma da poderá conduzir à vitória. Que nos poderá acontecer, se ele não
carne e, voltando-se para Ruadan, furou-o dum lado ao outro, estiver conosco?» «Nada receemos quanto a isso», respondeu
entregando este último a alma ao pai que estava em frente, no Nuada, «os nossos heróis não têm receio algum quando estão
exército dos Fomore. Brig veio então chorar o filho, dando diante das armas dos inimigos, e sei que eles saberão resistir à
primeiro um grito e lamentando-se depois. Crê-se que foi nesta fúria desta raça cruel dos Fomore, mesmo se Lug não estiver
altura que, pela primeira vez, se ouviram choros e lamentações presente Para nos dar o exemplo e nos guiar. Seria mais
na Irlanda. Goibniu, por seu lado, foi mergulhar na Fonte das conveniente que ele ficasse resguardado, pois ele é o nosso
Ervas e, recuperando rapidamente, reapossou-se da forja e estratega e o nosso mestre cheio de sabedoria.» «Mas», disseram
retomou o trabalho. os nobres das tribos de Dana, «Lug nunca aceitará ficar
resguardado.» «Eu vou revelar-vos um plano», continuou Nuada
do Braço de Prata, «antes de começarmos a combater, devemos «Tu sabes muito bem que é o barulho de uma batalha o que
organizar um grande festim com muita cerveja fresca, deliciosa ouvimos. Peço-te, Crafliné, que me desamarres os laços, para
para os campeões. Faremos este festim em homenagem a Lug e que eu possa ir à frente de batalha guiar os nossos homens à
com ele presente. Ele, cheio de alegria, beberá em excesso até vitória.» «Eu não tenho a força nem a coragem suficientes para
ficar bêbedo. E nós, logo que o vejamos inconsciente, atá-lo-emos desatar os laços, ó Lug», respondeu Craffiné, «pois foram mãos
e amarrá-lo-emos firmemente com correntes de metal azul aos de heróis e a força de guerreiros que te amarraram aos pilares.»
grandes pilares plantados na terra que sustentam a tenda dos Então, Lug sacudiu o corpo com uma tal força e energia que
festins. Desse modo, a batalha decorrerá sem a sua presença, e derrubou os pesados pilares que estavam presos ao chão, e em
não correrá risco de vida.» «o teu plano é sensato e inteligente», seguida, apenas com os seus braços robustos, ergueu as
disseram os chefes das tribos de Dana, «e concordamos em pô-lo correntes pesadas e azuis. Depois, sem grandes dificuldades,
em prática.» conseguiu desembaraçar-se delas e precipitou-se para a porta,
começando a correr para o lugar onde se defrontavam os
Assim fizeram. Preparam a tenda dos festins e reuniram-se à exércitos. O alando provocado pela sua corrida foi tal que não
volta de Lug e de Nuada. Lug bebeu tanta cerveja espumante e houve combatente que não ficasse a vê-lo aproximar-se com uma
curativa que não demorou a ficar ébrio e alegre. Os assistentes mistura de medo e de espanto. A sua aparência era tão
tocaram depois harpa e gaitas de foles, assim como outros impressionante que ambos os exércitos deram um passo atrás.
instrumentos, embalando o real guerreiro com o excesso de Então, Lug foi juntar-se às tribos de Dana e deteve-se diante de
bebida e com a suave melodia. Depois, Craftiné pegou na sua Nuada do Braço de Prata. «Tu cometeste um erro terrível, ó
harpa e, dedilhando as suas nove cordas, tocou até o jovem herói real!», gritou ele. «Pensavas travar a batalha e libertar a
guerreiro ficar em repouso absoluto, profundamente adormecido. Irlanda sem que eu pudesse ter uma palavra a dizer? Foi uma
Então, os nobres das tribos de Dana apressaram-se a acorrentar imprudência terdes iniciado esta batalha sem terdes tempo para a
o herói. Amarraram-no com firmeza aos pilares bem presos à preparar. Regressai pois ao acampamento e esperai pelo sinal
terra, sem que ele disso se pudesse aperceber. As hostes puseram- que eu vos enviar no momento que achar mais apropriado para
se logo em seguida em andamento, prontas para combaterem eliminar a raça dos Fomore e libertar a terra da Irlanda dos seus
pelo rei supremo da Irlanda, Nuada do Braço de Prata, tendo opressores.»
ficado apenas Craftiné, o harpista, para vigiar Lug do Braço
Longo. Então, os chefes e os guerreiros das tribos de Dana voltaram ao
acampamento, passando-se a noite sem que houvesse mais
Há muito tempo que decorria o combate, e era grande o tumulto qualquer escaramuça entre os guerreiros dos Fomore e os das
quando Lug despertou. «o que se passa, meu amigo Craftlné?», tribos de Dana. Entretanto, Morrigane, filha de Ertimas, chegara
perguntou ele. «Como é que eu estou amarrado a estes pilares e ao campo dos Fomore e entrara na tenda de Indech, o seu rei
ouço gritos da batalha que se desenrola fora da tenda?» «Não supremo. E ao sair, nas mãos manchadas de sangue, trazia os
sei», respondeu Craffiné. «Com efeito, também ouço os gritos dos rins do rei, que exibiu altivamente aos Fomore para lhes mostrar
Fomore e os feitiços de Morrigane que sobre eles lança, os que já não tinham chefe. E, sem perda de tempo, entrou no
sortilégios de que só ela tem o segredo. E, tal como tu, ouço acampamento das tribos de Dana.
Goibinu que bate com a forja, mas não sei o que se passa do lado
de fora desta tenda.» «Mentes!», replicou Lug do Braço Longo. Na manhã seguinte, Lug do Braço Longo fez sair os guerreiros
para o campo e encheu-os de coragem. Disse aos homens que pele branca, e a túnica, ampla e confortável, possuía diversas
deveriam lutar com coragem e que mais valia morrer do que cores. O seu avental muito largo e belo estava revestido de ouro
continuar a viver debaixo da escravatura, tendo de pagar fino e possuía franjas, colchetes, com bordados em prata, tendo
pesados tributos como até ali tinha acontecido. Depois, diante de um cinto tão bem guarnecido que nem a espada mais afiada do
todos os chefes, nobres e guerreiros, Lug fechou um olho e, de pé mundo o poderia trespassar. Lug envergava também uma
sobre uma perna, entoou um canto enquanto circulava por entre armadura em ouro espesso, com belas maçãs onde estavam
os guerreiros das tribos de Dana. incrustadas pedras preciosas, e para se proteger trazia um largo
escudo de madeira vermelha revestida a ouro. Nas mãos
Os guerreiros de ambos os lados lançaram um imenso clamor ao segurava a espada, muito longa e fina, escura e muito cortante;
partirem para o combate. Encontraram-se no meio da planície de brandia a lança que tinha ferro envenenado, uma lança larga,
Tured, liunia luta de corpo a corpo, e um grande número de temível, de cinco pontas, da qual ninguém conseguia escapar.
homens bravos e generosos logo caíram no campo de batalha. A Mas, sobretudo, ele trazia consigo a sua moca usada em
carnificina foi enorme dando lugar, mais tarde, a imensas batalhas, de ferro muito sólido, e a sua funda que lhe permitia
sepulturas neste lugar. Sentimentos como a vergonha e o sentido arremessar poderosas bolas de ferro que nunca falhavam o alvo.
da honra ali se misturaram à pior ferocidade que se possa
imaginar. Correram abundantes rios de sangue na pele branca Era de todo este aparato bélico que se fazia acompanhar o
dos belos guerreiros que, cortados pelas espadas, lutavam poderoso protetor do país, o valoroso Lug do Braço Longo,
encarniçadamente, aplicando golpes implacáveis com as suas sempre pronto a fazer frente a quem quer que se intrometesse no
lanças muito afiladas. O fragor da luta foi desmedido, atirando- seu caminho e a inspirar os guerreiros das tribos de Dana com o
se os guerreiros uns contra os outros com um grande alarido de seu exemplo de homem forte e poderoso, que nunca vacilava
lanças e de espadas. Por todo o lado ecoava um grande estrondo: perante os inimigos. Nele se misturavam a fúria do leão
o grito dos guerreiros respondia ao ruído dos escudos que enraivecido, o bramido das vagas do mar no momento das
embatiam uns nos outros, as espadas silvavam nos ares indo ao grandes tempestades, e o ronco do oceano de espumas azuis e
encontro de carne humana, o estalo das armaduras misturava-se verdes quando se abatem sobre a areia. E os guerreiros de Dana
com o ruído dos dardos. No choque brutal dos corpos os seguiam-no no seu ímpeto feroz, capaz de fazer estremecer o
membros superiores misturavam-se com os inferiores num mundo.
cenário infernal. Os heróis caíam uns a seguir aos outros, e o
chão estava escorregadio sob os seus pés devido ao sangue Daí a pouco, Lug do Braço Longo encontrou-se diante de Balor,
derramado. As cabeças batiam umas nas outras, provocando o campeão dos Fomore que era o pai de Ethné, ela própria mãe de
estalido dos ossos do crânio e espalhando os miolos na erva Lug. Balor era poderoso e temível, e nunca ninguém o tinha
ensanguentada. E o rio transportava cadáveres que, levados pela vencido. Tinha um olho maléfico, que só se abria durante os
corrente para os lagos, aí se amontoavam. combates. Nessa altura quatro homens eram obrigados a erguer
a pálpebra com um croque bem delicado. Aqueles que fossem
No meio daquela massa humana, Lug do Braço Longo semeava a atingidos pelo olhar deste olho não lhe podiam resistir, ficando
morte e a destruição. Envergava um equipamento maravilhoso, paralisados pelo medo. O sortilégio deste olho devia-se a um
desconhecido, que sem dúvida provinha do País da Promessa. feitiço que Balor recebera quando ainda era jovem. Os druidas
Tinha uma camisa de linho, bordada com um fio de ouro sobre do seu pai tinham posto a ferver um caldeirão onde deitaram
ervas mágicas, o feitiços, e ele, ao abrir uma janela, recebera no tempestade e de onde saíam chuvadas cheias de veneno. Ainda
olho o vapor envenenado que se libertava do caldeirão. A partir por cima, o calor que emanava da bala da funda, os fumos, os
de então passou a ser chamado simplesmente Balor do olho vapores que a rodeavam, os feixes de faíscas que a cravejavam,
maléfico. queimando a pele, impediam quern quer que fosse, mesmo os
mais bravos, de se aproximarem do lugar onde Lug do Braço
Quando ficou diante de Balor, Lug do Braço Longo pediu-lhe Longo se encontrava diante do seu avô Balor, o campeão
para mandar suspender a batalha, para que a vida dos Fomore invencível dos Fomore.
fosse poupada e eles pudessem voltar sãos e salvos para as suas
ilhas rodeadas de nevoeiro. Acrescentou que não era por medo Contudo, Lug, com extrema destreza e rapidez, segurou a bala de
que falava assim, mas para pôr cobro a uma batalha que já fizera ferro ardente e, tendo-a colocado na funda, fê-la rodar à volta da
um grande número de mortos e de feridos. Balor virou-se então sua cabeça e arremessou-a com toda a força na direção de Balor.
para aqueles que o rodeavam, dizendo: «Companheiros, levantai- Apesar da distância que os separava, o tiro foi tão certeiro que o
me a pálpebra, para que eu possa ver o palrador que se dirige a projétil atravessou a pele muito dura de Balor e lhe esvaziou
mim com tanta impertinência.» completamente a órbita do olho perverso. Os Fomore, que
assistiam à terrível luta do seu campeão contra Lug do Braço
Ergueram-lhe a pálpebra, e Balor começou a contorcer-se à volta Longo, viram o olho maléfico que, depois de ter atravessado o
de Lug para o provocar. Um arrepio de medo percorreu o filho crânio de Balor, foi cair junto deles, matando logo ali três
de Cian quando viu a sombria cavidade injetada de sangue negro novenas de homens. Entretanto, aproveitando a confusão Balor
que, muito aberta, observava as tribos de Dana. Mas, fugiu.
prudentemente, Lug evitou olhar para o olho de Balor e chamou
Goibniu, pedindo-lhe para lhe trazer uma pedra de funda terrível, Então interveio Morrigane, filha de Ernmas, mostrando aos
arrasadora, maravilhosa, que conseguisse atingir o olho de Balor guerreiros das tribos de Dana os despojos que arrancara de
e eliminá-lo. Indech, rei dos Fomore. Contou-lhes a proeza que acabara de
fazer e encorajou-os a combater os Inimigos até à sua destruição
Goibniu imediatamente pediu ajuda aos seus filhos adotivos que total. Então, e sem perda de tempo, os heróis das tribos de Dana
se Puseram em movimento e o secundaram à volta da forja. Ao lançaram um assalto furioso aos Fomore onde pereceram, além
pedido do tutor, os filhos ergueram-se de imediato e puseram de Elatha, filho de Indech, diversos campeões vindos das ilhas
mãos à obra, cheios de vontade e de determinação. Acenderam o imersas em nevoeiro.
fogo da forja e fizeram a mais terrível e mortífera bala para Logo depois, Bress, filho de Elatha, saiu das fileiras dos Fomore
funda que alguma vez se viu. Ao sair da forja, a bala era tão e pôs-se diante de Lug, com a intenção de vingar o pai.
pesada e escaldava tanto que nem conseguiram pegar nela, sendo Começaram a combater furiosamente, e Bress, batendo em Lug
necessário o próprio Goibrim para a transportar até à presença com o seu escudo, provocou-lhe três ferimentos, mas Lug não
de Lug do Braço Longo. deixou de responder e corfi o rebordo do seu infligiu-lhe golpes
tão violentos que Bress estava enfim em grandes apuros quando
Ora, naquele momento era grande o desespero de Lug, pois não os Fomore vieram em seu socorro. Dando três gritos poderosos
havia guerreiro que não tivesse sido ferido pelo olho maléfico de contra Lug, eles fizeram chover sobre ele um feixe de lanças e de
Balor, um olho que soprava ventos violentos como os de uma dardos, mas ele evitou-os e fê-los cair por terra, pisando-os
depois até os transformar em bocados de ferro contorcido. Mas acabou por ceder, cortando-lhe Lug a cabeça. A segLir, Lug
esta manobra de diversão permitira que Bress escapasse sem ser afastou-se, levando consigo o despojo envolto em cabelos, e foi
ferido e depois se confundisse com os seus, não conseguindo Lug depositá-lo no fuste de um pilar de pedra que existia nas
encontrá-lo, proximidades. Mas a cabeça esteve aí pouco tempo, pois estava
tão quente que fez com que a pedra rachasse e se dividisse em
Entretanto, os homens das tribos de Daria investiram de novo quatro antes de cair por terra. Então, Lug colocou-a num ramo
contra os Forriore e não tardaram a encosta-los à parede. bifurcado de aveleira e voltou rapidamente para perto do corpo
Desnorteados, aqueles ficaram desorganizados e, abandonando a de Balor», disse ele, «o conselho que me deste não era muito
planície de Tured, dirígiram-se para o mar com a esperança de amigável. Se eu o tivesse seguido, a minha cabeça teria sofrido
reembarcar e de fugir o mais depressa possível da ilha da ainda mais do que o pilar de pedra.» E, sem perda de tempo, ele
Irlanda. No meio deles, Balor tentava recompor-se da grave voltou a partir, levando consigo a cabeça de Balor.
ferida que lhe fora infligida por Lug do Braço Longo.
Entre os Fomore, que iam sendo massacrados, apenas subsistiam
Lug, entretanto, não desistiu de perseguir ferozmente Balor, os que adquiriram a forma de pedras e de pilares na planície,
massacrando sem dó nem piedade todos aqueles que, em fuga, se mas poetas, deixou de avançar em sua direção e de os ameaçar,
atravessavam a sua frente. Acabou por apanhar Balor junto à mesmo tendo Lug não deixão a forma humana e Lug do eles
costa e aí lançou-lhe um grito de desafio. Balor, voltando-se, mudado de aparência. Eles tomaram o exacto de prometeu que
tentou defender-se, mas Lug, com o seu dardo, perfurou-lhe o lhes faria um favor se lhe revelassem o número de mortos.
peito de lado a lado. «Lembra-te que sou o teu avô», gritou Balor
para Lug, «e que a tua mãe é Ethné do rosto doce». «Eu também «Eu não sei o número de escravos e de plebeu, das perdas entre
sou filho de Cian, filho de Diancecht, e pertenço às tribos de os Fomore, mas sei, que entre os senhores, nobres campeões, que
Dana!», replicou Lug. «Por favor, não me humilhes!», implorou caíram em combate, cinco deles são filhos de reis e os grandes
Balor. «As tuas palavras nada valem!», respondeu-lhe Lug. «Já reis dos Fomore, Quanto aos plebeus e aos escravos que
não te estás a humilhar quando me pedes para te poupar a vída?» acompanhavam os nobres e os chefes, pois todos os chefes
«Eu não te peço que me poupes a vida», replicou Balor, «peço-te traziam as suas gentes, só posso revelar o número daqueles que
apenas que me deixes satisfazer um desejo.» «o que desejas, vi tombarem com os meus próprios olhos, quanto aos outros,
então?» «Pois bem, é o seguinte: se me derrotares e me matares, aqueles que ou seja, três mil seiscentos e vinte e sete, ter visto só
quando me cortares a cabeça, peço-te que a coloques sobre a tua poderão ser enumerados quando se souber, o número de estrelas
própria cabeça. Desse modo, o meu valor guerreiro e as minhas céu, os grãos de areia na praia, as gotas nos campos, ou os
virtudes andarão contigo, não havendo entre os meus relâmpagos na tempestade.»
descendentes quem eu estime tanto como a ti te estimo!»
«SegLirei o teu conselho, mas de acordo com a minha Quando Lug do Braço Longo deixou os poetas e voltou para
consciência», respondeu Lug. perto das tribos de Dana, viu num relance Bress, filho de Elatha,
tentando esconder-se atrás de um rochedo. Avançou logo para
Cheios de fúria, aproximaram-se um do outro e começaram a ele e ameaçou-o,1» gritou. «Foi por tua culpa que sofreram com
lutar com violência, ferindo-se mutuamente com as espadas e os a espada. «Maldito seja, sofremos a opressão dos
dardos que flamejavam diante deles, até que Balor, sem forças, Fomore e que fomos obrigados a travar esta sangrenta batalha!»,
«É melhor que não me mates e que me poupes a vida!», exclamou a vida a segLir à batalha da planície de Tured.
Bress. «A sério», respondeu Lug. «o que se ganharia?» «Se a
vida me for poupada, eu farei com que as vacas da Irlanda A segLir, Lug foi juntar-se a Dagda e a Ogma, o homem forte,
tenham sempre leite em abundância». «Vou consultar os meus que encontrara a espada do rei dos Fomore. Naquela altura ele
sábios para saber qual é a opinião deles», respondeu Lug. Lug tirava-a da baínha e limpava-a. Então, a espada contou o que
foi à presença de Maffiné para saber a sua opinião e repetiu-lhe vira e testemunhara Pois, naquele tempo, as espadas tinham o
o que ouvira da boca de Bress a respeito das vacas da Irlanda. costume, assim que eram desembainhadas, de revelar as proezas
«Não devemos poupar-lhe a vida por esse motivo2», «Pois ele que tinham feito ou que tinham testemunhado. E assim que se
não nenhum poder sobre as vacas da Irlanda, nem sobre a explica que haja hoje sortilégios nas espadas. É preciso ter em
quantidade de leite que elas possam dar» respondeu Maffiné. Lug consideração que naquele tempo os demônios falavam por meio
voltou depois ao encontro de Bress, e dIsse-lhe: «Não há motivo das armas, sendo essa a razão por que era frequente os homens
para te poupar a vida, pois tu não tens nenhum poder sobre as adorarem as armas.
vacas e sobre a sua produtividade.» Bress lançou um feitiço e Lug, Dagda e Ogma ergueram pilares aos heróis que tinham
Lug perguntou-lhe então: «Há algum outro motivo que Possa caído em combate e gravaram neles inscrições. Depois
justificar que a tua vida seja poupada?» «Sim, evidentemente», Morrigane, a maga, ’veio juntar-se a eles. «o que vês?»,
disse Bress. «Se me pouparem a vida, haverá sempre teria a perguntou-lhe Dagda. «Neste momento veio a vitória e o triunfo»,
Irlanda uma colheita por estação.» respondeu ela, «mas também vejo que o tempo futuro traz muitas
desgraças. O mundo deixará de me interessar, Pois os Verões
Lug foi de novo consultar MailIné. «Devemos poupar a vida a não terão flores, as vacas não darão leite, as mulheres não terão
Bress», perguntou ele, «se assegurar aos homens da Irlanda uma pudor, os homens não terão coragem, as árvores não darão
colheita por estação?» «Não», respondeu Maffiné, «pois a frutos e os mares não terão peixes. Nada será como dantes: os
realidade é bem diferente: nós temos a Primavera para lavrar e velhos prestarão juramentos falsos, os homens atraiçoar-se-ão
semear, o início do Verão para que o trigo se fortaleça e uns aos outros, os filhos roubarão os pais... É esse o mundo de
amadureça, o começo do Outono para a colheita e o Inverno amanhã, mas hoje as tribos de Dana podem cantar vitória.»
para comer. Não faz nenhum sentido essa idéia de uma colheita
por estação.» E Morrigane, filha de Errimas, foi por toda a Irlanda para
anunciar que as tribos de Dana tinham vencido os Fomore das
Lug foi de novo falar com Bress, «Tu não serás poupado», disse- ilhas do nevoeiro na grande batalha da planície de Tured.1’1
lhe ele, «pois já temos o que nos propões.» «Isso não é bem
assím», retorquiu Bress, «e se me deixardes viver, eu digo-vos-ei CapítuloV
como se lavra, semeia e faz a colheita, que são três coisas que
vos ignorais.» «Se tu mas revelares», disse Lug, «poupo-te a Depois da vitória das tribos de Dana sobre os Fomore na
vida». «Pois bem», disse Bress,1 planície que passou a chamar-se Mag-Tured, Lug do Braço
Longo encontrou dois irmãos do seu pai, Cu e Ceithenn, ambos
«E preciso lavrar à terça-feira, lançar a semente à terra à terça- filhos de Dianceclit, e perguntou-lhes se tinham visto Cian na
feira e fazer a colheita à terça-feira.» batalha. «Não, não o vimos», responderam eles. «Fomos no seu
E por causa desta artimanha é que Bress, filho de Elatha, salvou encalço seguindo o rasto dos Fomore que tinham vindo a Tara
exigir o pagamento do tributo, mas não chegámos a encontrá-lo, e depois, escavando a terra com as unhas, recolocou aquele
pois rumámos a sul ao passo que ele se dirigiu para norte. Por debaixo daquele tumulus. Em seguida erigiu um pilar no qual foi
isso, não voltámos a vê-lo.» «Os Fomore tê-lo-ão matado?», gravada uma inscrição que tinha o nome de Cian em ogham e
perguntou Lug. «Pensamos que não», responderam Cu e que explicava o modo traiçoeiro como ele fora morto pelos filhos
Ceithenn, «Pois os Fomore dirigiram-se para sul, e não é de Tuirenn. Por fim, continuou Lug: «Juro que o crime
provável que se tenham encontrado.» «Vamos procurá-lo», disse abominável aqui cometido não ficará impune, embora ainda
Lug do Braço Longo. tenhamos de atravessar um longo período de grande infelicidade.
Por muito tempo a Irlanda continuará a ser dilacerada por lutas
Cavalgaram os três até ao lugar onde os seus caminhos devem fratricidas, não havendo paz para ninguém. No que me toca,
ter divergido e, apontando bem para norte, acabaram por se sinto-me profundamente consternado pela morte que os filhos de
encontrar na planície de Murthemné. «Estou convencido de que o Tuirenn deram a meu pai, o valoroso filho de Diaricech1.»
meu pai já não está vivo», disse Lug, «e juro que nunca mais
como e bebo nada enquanto não souber de que modo ele E logo em seguida Lug despediu-se dos dois irmãos de Cian: «Ide
morreu.» juntar-vos àqueles que rejubilam com a vitória das tribos de
Dana, mas peço-vos que não reveleís a ninguém o que aqui se
Ora, estando eles a chegar a um outeiro que se erguia no meio da passou enquanto eu próprio o não fizer.»
Planície, a terra pôs-se a falar. Disse ela a Lug que naquele
mesmo lugar, Cian, apanhado pelos filhos de Tuirenn, tinha Alguns dias mais tarde, Nuada do Braço de Prata, rei supremo
adquirido a aparência de um porco. Disse também que ele tinha da Irlanda, convocou o conjunto das tribos de Dana para se
morrido às mãos deles depois de ter retomado a forma natural e reunirem na fortaleza de Tara. Quando chegou, Lug do Braço
que se encontrava enterrado debaixo do outeiro. Longo sentou-se, cheio de nobreza e com uma auréola de honra
ao pé de Nuada, em frente de todos os chefes e de todos os nobres
Então, Lug e os dois irmãos de Cian puseram-se a cavar debaixo que ali se encontravam. Olhando em volta, viu os filhos de
do outeiro. Descobriram o corpo e viram os inúmeros ferimentos TLireinn. Os três eram famosos pelo seu valor e beleza, pela sua
que lhe tinham provocado a morte. «Ele foi morto de forma agilidade e destreza. Todos eles tinham ajudado à vitória sobre
desleal», disse Lug. «Esses ferimentos devem-se a pedras os Fomore, e eram muito considerados por todos. Lug a certa
arremessadas pelos filhos de Tuirenn, que mataram o meu altura pediu a palavra, que lhe foi concedida, concentrando-se
querido pai de forma covarde e abominável.» nele todas as atenções.

Curvando-se, Lug beijou duas vezes o corpo do pai, depois «Que assunto quereis tratar, ó filhos de Dana?», perguntou ele,
endireitou-se com um ar cheio de nobreza, e disse aos «Escolhe tu o assunto», responderam eles. «Pois bem», começou
companheiros: «Tenho o coração destroçado pelo que aconteceu Lug, «vou colocar-vos uma questão: que vingança cada um de
ao meu pai. Custa-me muito não o ter podido ajudar quando vós gostaria que fosse aplicada sobre quem fosse culpado de ter
estava refém dos filhos de Tuirenn, mas juro que tudo farei para matado o vosso pai?» Pronunciadas estas palavras fez-se um
que estes malditos assassinos paguem muito caro a perversidade silêncio e foi o rei da Irlanda o primeiro a falar: «A alguém que
que cometeram contra um dos seus, um herói das tribos de tivesse matado o meu pai eu não infligiria uma morte de um único
Dana.» Lug entoou então um canto fúnebre sobre o corpo do pai dia, mas uma pena muito mais dura de suportar. Se tivesse poder
para isso, todos os dias eu arrancar-lhe-ia um membro seu corpo Lug.» «E a seguinte», Prosseguiu Lug, «Peço-vos três maçãs,
até ele cair a meus pés.» uma pele de porco, uma lança, dois cavalos e um carro, sete
porcos, um pequeno cão, um espeto de assar e três brados num
Todos os nobres das tribos de Dana foram da mesma opinião, monte. É esse o pagamento que vos exijo pela morte do meu pai.
tanto os filhos de Tuirenn como os outros. «Constato», disse Lug, Se ele vos parece excessivo, torná-lo-ei mais leve, mas se vos
«que todos são da mesma opinião, inclusive aqueles que mataram parece ao vosso alcance, parti de imediato em sua demanda.»
o meu pai. Portanto exijo que me paguem um desagravo pelo «Na verdade», respondeu Brian, filho de Tuirenn, «nós não o
sucedido, já que todos os homens das tribos de Dana pertencem achamos muito pesado, o que me faz pensar que poderás estar a
ao mesmo clã e descendem do mesmo antepassado. Se eles me preparar uma traição contra nós. Ele seria mais pesado, com
derem uma satisfação, não violarei o direito que obriga o rei da efeito, se exigisse de nós trezentas mil maças, a mesma
Irlanda a proteger todos os seus hóspedes. Mas não respondo quantidade de peles de porco, cem lanças, cem cavalos e cem
pelos meus atos se eles recusarem dar uma satisfação pelo carros, cem suínos, cem cães, cem espetos de assar, e cem brados
assassínio que cometeram, e nesse caso não permitirei que num monte.» «Nesse caso», continuou Lug, «mantenho o preço
abandonem a casa real de Tara sem se terem havido comigo.» que tendes a pagar. Dar-vos-ei a garantia dos chefes das tribos
«Se tivesse sido eu a matar o teu pai», disse o rei da Irlanda, de Dana, nada mais vos pedirei e não vos trairei. Exijo-vos, no
«veria com muito bons olhos apaziguar-te.» entanto, que me dêem a mesma garantia.»

Os filhos de Tuirenn puseram-se então de lado a falar entre si. «E Os três filhos de Tuirenn juraram então que pagariam o que lhes
a nós que se refere Lug», disseram luchar e lucharba. «Pelos era pedido, e deram como garantia Nuada, rei supremo da
vistos, ele procurou saber do pai o veio a saber como Cían foi Irlanda, assim como Bobdh Derg, filho de Dagda, e alguns dos
morto na planície de Murthemné. «Muito bem», respondeu Brian, chefes que ali se encontravam. «Sendo assim», disse Lug, «e
«que ele esteja furioso, que nós façamos uma confissão na tendo eu as vossas garantias, dar-vos-ei agora a conhecer o que
presença de todos os nobres espera que aceitará das tribos de me deveis trazer.» «Nós íamos interrogar-te a esse respeito»,
Dana, e, uma vez que isso aconteça, não aceita de nossa parte o disseram os filhos de Tuirenn. «Pois então ouvi com atenção»,
desagravo.» «Se ele pedir uma confissão», disseram dois deles, disse Lug, «as três maçãs que vos peço são as três maçãs do
«nós falaremos, mas pensamos que te cabe a ti fazê-la em voz Jardim das Hespérides, que se encontra a leste do mundo. Só
alta, pois és o mais velho.» essas maçãs me poderão satisfazer, pois são as melhores e as
Então, Brian, filho de Tuirenn, ergueu-se e, diante de todos os mais belas de toda a terra. Têm a cor do ouro bem polido, e a
nobres e chefes das tribos de Daria, interpelou Lug nestes cabeça de uma criança de um mês não é maior do que cada uma
termos: «E a nós que tu acusas, ó Lug, filho de Cian. Quando delas. Sabem a mel quando as comemos, e não deixam amargor
falas de assassínio e de desagravo, é a nós que te referes, pois nem acidez na boca. Além disso, não diminuem de tamanho
pensas que nós os três atacamos o filho de Diancccht. Não quando as comemos, mesmo que o façamos todos os dias. Aquele
confessaremos nada, mas também não fugiremos às que consegLir colher uma destas maçãs terá conseguido cometer
responsabilidades e estamos prontos a compensar-te pela morte a maior proeza do mundo, pois a maçã pertencer-lhe-á para
de Cian como se nós próprios tivéssemos cometido o crime.» sempre. E eu sei que, segundo uma profecia desse longínquo país,
«Assim sendo», disse Lug, «vou então dizer-vos a compensação serão três jovens corajosos e arrojados idos do oeste da Europa
que me devereis dar» «Diz-nos lá qual é essa compensação, ó que delas se apoderarão pela força.»
vos Peço? São os porcos que estão na posse de Easal, rei das
«A pele de porco que vos peço», continuou Lug, «é a pele de Colunas de Ouro. Eles têm a particularidade única de, ao serem
porco que pertence a Tuis, rei da Grécia. Esta pele é curativa e mortos de noite, serem encontrados vivos de manhã. E quem
cura todos os feridos e todos os doentes que por ela sejam comer um pedaço deles, nunca fica doente nem com má saúde.»
revestidos, por muito grave que seja o seu estado, e desde que «o pequeno cão que vos peço chama-se Failinis, e pertence ao rei
tenham ainda um sopro de vida. Este porco tinha uma loraidh. Tem a particularidade de todos os animais que o
excepcional virtude: se o fizessem atravessar um rio, a água deste observam não Poderem continuar de pé e terem de se deitar no
transformava-se em vinho durante nove dias. Qualquer ferida que chão. Tal como aos Porcos de Easal, ser-vos-á muito difícil ficar
ela tocasse cicatrizava, mas, a crer nos druidas da Grécia, só a de posse dele. O espeto de assar que vos peço é um dos que
sua pele, e não ele possuía esta virtude. Morto o porco e esfolado servem às mulheres de Fianchair para preparar a comida. Mas é
a pele, esta foi conservada desde então. Estou certo de que não quase impossível conseguir ficar em poder dele, tal é o cuidado
vos será fácil apoderar-vos dela, pois está vigiada e muito bem que as mulheres tem para não o perderem. Quanto aos três
guardada. E sabeis que lança vos exijo?» «Não o sabemos», bardos no monte que vos peço, são os brados no monte de
responderam os filhos de Tuirenn. «Tu é que tens de no-lo dizer.» Miodchain, nos países do norte. Ora, tanto Miodcham como as
«Pois bem», prosseguiu Lug, «é a lança envenenada de Pisear, suas danças proíbem quem quer que seja de dar brados naquele
rei dos Persas. Trata-se de uma arma mágica que é capaz de monte. Foi na casa dele que o meu pai fez a sua aprendizagem, e
cometer as proezas mais extraordinárias do mundo. E de tal se eu tiver a fraqueza de vos perdoar o vosso crime, é certo que
modo escaldante que, em tempo de paz, a sua cabeça fica Miodchain não vos perdoará. E essa pois a compensação que vos
continuamente mergulhada num caldeirão de água fria. A não ser exijo pela morte de meu pai.» Os filhos de Tuirenn
assim, a povoação onde se encontra arderia e ficaria destruída. permaneceram em silêncio, enchendo-se de angústia.
Com efeito, ser-vos-á muito difícil apoderar-vos dela. Agora, Abandonaram a assembléia e foram falar com o pai para lhe
sabeis quais são os dois cavalos e o carro que desejo receber de contar o que se passara, e para o pôr a par da compensação
vós?» exigida por Lug do Braço Longo pelo assassínio de Cian, filho de
Diancecht. «Trazeis-me más notícias», disse Tuirenn. «lreis
«Não o sabemos, pois cabe-te a ti dizer-nos». «Pois bem, são os passar por grande perigos se partirdes em busca do que vos pede
dois cavalos maravilhosos de Cobar, o rei da Sicilia. Tanto a Lug. Mas não tendes outra alternativa, e é preciso reconhecer
terra como o mar lhes servem para cavalgar, e é frequente vê-los que ele tem razão, pois haveis cometido o pior crime que se pode
a galopar sobre as ondas. Não há cavalos mais rápidos e cometer. Mas previno-vos: vós não consegLireis alcançar tudo
resistentes do que eles. Também não há nenhum carro tão sólido isso sem os poderes maravilhosos de Mananann ou do próprio
e tão belo como aquele a que eles andam atrelados. Além disso, Lug. Aconselho-vos, pois o seguinte: pedi emprestado o cavalo de
quanto mais se matam estes cavalos, mais eles renascem, e cada Mananann, que atualmente está ao serviço de Lug. Lug não vo-lo
vez mais belos e mais sãos do que antes, desde que, pelos menos, poderá emprestar e recusará o vosso pedido, pois o cavalo não
se juntem todos os seus ossos. É minha convicção que não vos lhe pertence. Então pedir-lhe-eis a barca que Mananann também
será fácil obtê-los, pois estão guardados com todo o cuidado nas lhe emprestou, e como ele não poderá recusar um segundo
cavalariças do rei. pedido de empréstimo, terá de vo-la emprestar. E ficai a saber
que a barca vos será mais útil do que o cavalo.»
«Agora», continuou Lug, «Sabeis quais são os sete porcos que Os filhos de Tuirenn foram então encontrar-se com Lug do Braço
Longo, saudaram-no e disseram que não poderiam compensá-lo dispõem de armas ligeiras e, quando as usarem contra nós só
se ele próprio os não ajudasse. E suplicaram-lhe então que lhes teremos de usar da máxima prudência e de estar atentos. E, assim
emprestasse o cavalo de Mananann. que os nossos inimigos estiverem desarmados, lançar-nos-emos
sobre as macieiras, apoderando-se cada um de nós de uma maçã.
«É impossível», respondeu ele, «o cavalo não me pertence.» Quanto a mim, se puder, apoderar-me-ei de duas, trazendo uma
«Então», disse Brian, fillho de Tuirenn, «empresta-nos a barca de nas garras e a outra no bico.»
Mananann.» «Desta vez não posso recusar o vosso pedido.
Levem-na», disse Lug. «E onde está ela?» «Em Brug-na-Boylle.» luchar e lucharba aprovaram este plano. Então, Brian bateu
neles e em si mesmo com uma varinha mágica e druídica e,
Quando ficaram de posse da barca, os filhos de Tuirenn foram tomando os três a forma de belos falcões rápidos e possantes,
despedir-se do pai, que ficou triste e desolado ao vê-los partir, voaram ao encontro do Jardim. Os guardas viram-nos e, depois
pois sabia que a empresa estava condenada ao fracasso, mesmo de terem gritado, mas em vão, para tentarem detê-los,
com a barca de Mananann. Etimé, filha de Tuirenn, acompanhou dispararam sobre eles uma chuvada espessa de armas que tinham
os irmãos ao porto e, aí, entoou para eles um canto lamuriento veneno na ponta. Os filhos de Tuirenn estavam tão atentos que
em que deplorava que os filhos de Tuirenn tivessem cometido um evitaram todas as setas e, seguindo o plano de Brian, foi-lhes
tal crime contra o pai de Lug e por isso fossem condenados a fácil lançarem-se sobre as macieiras depois de os guardas terem
errar pelo mundo em busca de coisas impossíveis de obter. gasto todas as suas munições. Logo depois levantaram voo, sãos
e salvos, e dirigiram-se para a barca de Mananann.
Os três irmãos embarcaram e alcançaram o alto mar. «Que rota
vamos tomar?», perguntaram os dois irmãos mais novos. «Vamos A notícia daquela grande proeza logo se espalhou pela cidade e
procurar das maçãs», respondeu Brian, «pois foi o primeiro por todo o país. Ora, o rei das Hespérides tinha três filhas
pedido que nos foi feito.» extremamente conhecedoras e hábeis nas artes mágicas.
AdqLirindo a forma de três grifos, elas persegLiram os falcões
Apontaram então a barca de Mananann na direção do Jardim até ao mar, lançando-lhes raios de fogo muito ardentes.
das Hespérides, e a barca seguiu a sua rota na crista das ondas, «Estamos numa situação multo delicada», disse Brian, «e se não
cruzando o oceano. Como cortou caminho, daí a pouco chegou a descobrirmos um truque, seremos calcinados - mas já sei o que
um porto, na costa das Hespérides. temos que fazer.»

Assim que chegaram, Brian perguntou aos irmãos: «Como é que Batendo com a varinha mágica e druídica nos irmãos e
nos havemos de aproximar do Jardim das Hespérides? Suponho nele Próprio metamorfosearam-se imediatamente em cisnes
que há uns campeões e uns guerreiros armados que não estarão brancos que num salto chegaram ao mar, de tal forma que os
na disposição de nos deixarem lá entrar, estando acompanhados grifos, sobrevoando-os, nem repararam neles. Então, os filhos de
do próprio rei. Não nos devemos esquecer, apesar disso, do nosso Tuirenn subiram para a barca e retomaram o aspecto humano.
próprio valor, e de que os venceremos em caso de termos de lutar
contra eles, embora com grandes custos e correndo o risco de Depois disso, decidiram partir para a Grécia para se
perdermos a vida.» Proponho-vos pois que assaltemos este apoderarem, a bem ou pela força, da pele de porco. A barca de
jardim sob a forma de falcões fortes e rápidos. Os guardas só Mananann conduziu-os velozmente até à vizinhança do palácio
real. «Que forma tomaremos quando nos apresentarmos na corte impertinência pedir-me essa pele. Fica a saber que, por nada
do rei?», perguntaram os irmãos mais novos ao mais velho. «Na deste mundo, a dana aos poetas e aos artistas, ou sequer aos
nossa própria forma», respondeu Brian, «mas far-nos-emos nobres e aos príncipes, a não ser que fosse obrigado a isso. Mas,
passar por poetas e artistas da Irlanda, para que sejamos para te recompensar, fica certo de que consinto em te oferecer
recebidos com todas as honrarias.» uma quantidade de ouro que vale três vezes a pele de porco bem
esticada. «Que sejas recompensado pela tua generosidade, ó
Os três irmãos pentearam os cabelos à maneira de poetas e rei», respondeu Brian. «Mas previno-te: sou de tal modo
foram bater à grande porta da cidade. O porteiro perguntou-lhes desconfiado que só aceitarei o ouro que me ofereces se ele for
quem eram e o que queriam. «Somos artistas da Irlanda», pesado e convenientemente medido à minha frente, pois não
responderam eles, «e vimos a esta cidade recitar um poema ao acredito em ninguém.»
rei.» O porteiro foi avisar o rei. «Eles que entrem», respondeu o
soberano, «pois e para nos uma honra receber artistas O rei deu ordens aos seus servos e aos seus intendentes para que
estrangeiros.» levassem Brian e os irmãos à casa do tesouro onde seria pesado e
O rei deu ordens, também, para que a corte fosse preparada com medido o ouro. Mas, quando estavam a chegar àquela casa,
toda a magnificência, para que, ao regressarem ao seu país, os Brian apoderou-se da pele com um movimento rápido da mão
artistas da Irlanda pudessem transmitir a sua admiração pelos esquerda e dobrou-a cuidadosamente com a intenção de a levar;
méritos e a opulência do rei da Grécia e dos nobres que o em seguida, desembainhando a espada, golpeou com tal violência
rodeavam. Os filhos de Tuirenn foram então conduzidos até um o homem que o acompanhava, que o rachou ao meio. Depois,
grande salão decorado com belas tapeçarias bordadas. Serviram- apertando a pele contra si, abriu caminho por entre os criados e
lhes bebidas e estavam maravilhados, pois jamais tinham visto os intendentes, vindo juntar-se a ele os seus dois irmãos. O rei e
uma casa tão esplendorosa e nunca tinham sidos recebidos com os seus guerreiros precipitaram-se sobre eles, mas, após um
tanta pompa em nenhum outro lugar. violento e sangrento combate, o rei morreu às mãos do próprio
Brian, enquanto os dois irmãos massacraram vários adversários
Pouco depois, os poetas do rei ergueram-se para declamarem os à sua volta, de tal modo que ninguém conseguiu evitar que eles
seus poemas aos forasteiros. Quando acabaram, Brian pediu aos saíssem da cidade e regressassem à barca de Mananann.
irmãos para fazerem o mesmo, mas estes recusaram com o
pretexto de que só sabiam combater. Por esse motivo, Brian Puseram-se no alto mar em pouco tempo e só pararam de
avançou sozinho ficando diante do rei e da assembléia. Fez-se um navegar quando chegaram às costas da Pérsia. Aí, Brian e os
grande silêncio em sua honra, e ele cantou um poema que seus irmãos voltaram a adqLirir a aparência de poetas vindos da
terminava com este verso: Irlanda, e foi nessa qualidade que eles foram apresentados na
casa do rei. Este recebeu-os muito bem e pediu-lhes para
«A pele de um porco, riqueza sem igual, é a riqueza que eu peço. cantarem. Brian improvisou então um canto em que se fazia
» referência, de propósito, à lança de Pisear, rei dos Persas.

«o teu poema é muito bom», disse-lhe então o rei, «mas o que «o teu poema é muito bom», disse o rei, quando Brian acabou de
significa esta alusão à pele de porco? Eu elogiar-te-ia o poema cantar, «mas não percebo porque é que nele mencionas a lança,
de boa vontade se não fosse essa alusão, pois é uma grande ó poeta da Irlanda.» «Eu explico-te, nesse caso», respondeu
Brian, «é porque quero como recompensa a lança maravilhosa «Ouçam bem o que vos digo», disse Brian. «Peguemos nas nossas
que está em Vosso poder.» «É muito pouco delicado, o teu armas e no nosso traje de viagem, e vamos comunicar ao rei que
pedido», disse o rei. «E tens muita sorte por eu não te matar deixaremos de estar ao seu serviço se não nos mostrar a sua
imediatamente diante dos nobres e dos príncipes deste país! » parelha de cavalos.»
Ouvindo estas palavras, Brian lembrou-se que tinha apanhado
duas maçãs no Jardim das Hespérides. Pegou numa e Os irmãos aprovaram, e os três, depois de se arrumarem,
arremessou-a contra o rei com tanta violência que ela lhe apresentaram-se perante o rei da Sicília. Este perguntou-lhes por
atravessou o cérebro. Depois, desembainhou a espada e começou que motivo estavam em traje de viagem. «A razão é simples, ó
a massacrar todos aqueles que estavam ao seu alcance, fazendo rei», disse Brian. «Nós somos mercenários da Irlanda, mas não
os seus irmãos o mesmo. Descobriram então a lança, com uma nos basta servir os reis da terra quando há guerras e conflitos.
ponta mergulhada no caldeirão Para evitar que a casa ficasse em Também somos seus confidentes e seus conselheiros,
brasa. Apoderaram-se dela, assim como do caldeirão, e especialmente quando eles possuem tesouros preciosos. Ora,
regressaram à pressa para a barca. desde que aqui estamos, temos sido tratados de uma forma bem
displicente. Sabemos que tu tens os dois melhores cavalos e o
Depois voltaram para o alto mar e não tardaram a avistar em melhor carro do mundo, mas evitaste falar-nos deles e mostrar-
frente a fortaleza do rei da Sicília. Brian disse aos irmãos que se no-los. É esse o motivo que nos faz querer partlr.» «Fazeis mal
apresentariam sob a forma de três mercenários da Irlanda que em querer partir», respondeu o rei, «pois, de todos os
vinham com a intenção de se pôr ao serviço do rei. Assim, sem mercenários que tenho ao meu serviço, sois vós quem mais eu
terem necessidade de combater, saberiam, ao fim de algum estimo. Ficai a saber que, se logo no primeiro dia mo tivésseis
tempo, em que lugar estavam guardados os cavalos e o carro que pedido, eu ter-vos-ia mostrado os cavalos e o carro. Mas já que
costumavam ser usados nos combates. E, entrementes, foram-se reprovais a minha atitude, vou imediatamente satisfazer o vosso
aproximando da elevação de terra atrás da qual se erguia a vila. pedido.»

O rei, os príncipes e os nobres da sua casa formaram um cortejo O rei ordenou aos seus criados que fossem buscar os dois cavalos
muito bem organizado para irem ao seu encontro. Os filhos de e os atrelassem ao carro, e a ordem foi cumprida num abrir e
Tuirenn prestaram homenagem ao rei da Sicília, e este fechar de olhos. Brian ficou então a ver os cavalos com toda a
perguntou-lhes quem eram, de onde vinham e o que pretendiam. atenção, em seguida deteve o carro, agarrou o cocheiro e,
«Nós somos mercenários da Irlanda», respondeu Brian, «e arremessando-o contra um rochedo próximo, esmagou-lhe o
ganhamos a vida ao serviço de todos os reis da Terra.» «Quereis crânio. Depois, saltando ele próprio para dentro do carro,
ficar ao meu serviço?», perguntou o rei. «Sim, é esse o nosso aplicou um golpe tão violento ao rei que o deixou prostrado e
desejo.» inanimado. Seguiu-se uma luta rija e impiedosa que envolveu os
Fizeram um contrato e firmaram uma aliança com o rei da guardas do rei, as gentes da cidade e os três irmãos, que
Sicília. Mas, ao fim de quinze dias e um mês na fortaleza, ainda deixaram atrás de si um banho de sangue antes de voltarem para
não tinham conseguido obter nenhuma informação sobre os dois a barca de Mananann com os dois cavalos e o carro.
cavalos e o carro. «Este contrato de nada nos está a servir, pois
não fizemos nenhuns avanços até agora», disse Brian. «Que Dali se deslocaram velozmente para o país de Easal com a
pensas então que devemos fazer?», perguntaram-lhe os irmãos. intenção de se apoderarem dos porcos maravilhosos que lhes era
exigido por Lug do Braço Longo. Ora, o rei Easal estava ao par precisardes de lutar»
das proezas feitas pelos filhos de Tuirenn, e também ele veio em
pessoa recebê-los quando se aproximaram da sua fortaleza. Os filhos de Tuirenn agradeceram ao rei Easal e partiram com
«Porque vindes a este país?», perguntou-lhes ele. «Por causa de ele para o país de loraldh. O país estava bem defendido, pois já
uma Injustiça que cometemos», respondeu Brian, «e porque era do conhecimento geral que os filhos de Tuirenn tinham
temos de pagar um desagravo, faltando-nos agora levar os teus massacrado muita gente nos países por onde tinham passado.
porcos. Se no-los deres de livre vontade, partiremos Assim, encontravam-se por todo o lado diversos homens armados
pacificamente e muito gratos pela grandeza da tua ação. Mas se prontos para se baterem contra quaisquer estrangeiros que, sem
te recusares a no-los dares, não deixaremos por Isso de os levar, motivo, por ali aparecessem.
custe o que Custar, após lutas sangrentas em que muitos dos teus
perderão a vida.» «Seria uma péssima idéia entrarmos em luta O rei Easal identificou-se e entrou pacificamente naquela terra,
por causa dos porcos», disse o rei. «Vou-me aconselhar.» depois foi ao lugar onde estava o seu genro, o rei de loraidh, e
contou-lhe as viagens e as aventuras dos filhos de Tuirenn. «Por
O rei foi então consultar os sábios e os adivinhos. Todos foram que motivo os trouxeste ao meu país?», perguntou o genro. «Para
da Opinião de que era preferível dar os porcos aos filhos de te pedir o cão que te Pertence», respondeu o rei Easal. «Por
Tuirenn do que resistir aos seus ímpetos furiosos, vindo dizer- todos os deuses do céu!», indignou-se o rei de loraidh, «não seria
lhes o rei que permitiria que eles levassem os seus porcos. Os justo que eu reconhecesse a três guerreiros o direito de se
filhos de Tuirenn ficaram encantados, pois era a primeira vez que apoderarem do meu cão sem antes lhes ter dado luta.» «Não
lhes era dada uma parte da compensação sem que tivessem de deves proceder com tanta intolerância», retomou o rei Easal. «A
lutar por ela, expondo-se assim a riscos. O rei levou-os à noite a tua atitude irá trazer-te muito sofrimento e infelicidade.»
sua própria residência, fazendo com que eles fossem tratados
com toda a deferência e fossem satisfeitos todos seus desejos, Apesar das advertências do sogro, o rei de loraidh recusou voltar
providenciando para eles todas as comodidades e dando-lhes de atrás na sua decisão. O rei Easal voltou então para perto dos
comer e de beber. filhos de Tuinenn e contou-lhes o que se passara. «Sendo assim»,
disse Brian, «seremos obrigados a lutar.»
Na manhã seguinte, os porcos foram levados a sua presença, e Os guerreiros de loraidh avançaram sobre os filhos de Tuirenn e
disse o rei: «Aqui está o que procuráveis com tanto empenho. A estes foram cada um para seu lado, aplicando cada um deles
partir de agora estes Porcos são vossos. Que caminho ides agora golpes Violentos a todos os que apareciam à sua frente. Diante de
tomar? Que mais deveis adqLirir para completardes as cláusulas Brian abriu-se uma clareira, tal era a violência com que ele
do desagravo?» «Falta-nos ir ao país de loraidh», respondeu esmurrava os adversários, e estes punham-se em fuga mas ele
Brian, «e trazer de lá o cão que pertence ao rei. É um cão diante perseguia-os e massacrava-os sem piedade. Os dois irmãos eram
do qual se deitam todos os animais selvagens.» «Posso pedir-vos também impiedosos, um de cada lado, e lutavam heroicamente
um favor?», perguntou o rei Easal. «Certamente, e nós satisfazê- provocando um banho de sangue. Lutou-se corpo a corpo,
lo-emos de boa vontade, Pois estamos-te muito reconhecidos». durante várias horas, e não cessavam os murros, os pés furiosos
«Pois bem», disse o rei Easal. «Acontece que a minha filha e implacáveis. Por fim, Brian dominou o rei de loraidb mas, em
desposou o rei de loraidh, que por isso é meu genro. Aceitai que vez de lhe aplicar um golpe fatal, amarrou-o e exibiu-o preso
vos acompanhe, e eu farei com que fiqueis de posse do cão sem perante as suas hostes, antes de o levar à presença do rei Easal.
«Aqui Easal!», gritou ele. «E juro-te, pela minha honra está o teu por isso enviados mensageiros por toda a ilha, e estes acabaram
genro, rei pelo valor das minhas armas, que me teria sido mais por encontrá-lo, vindo ele para a assembléia dos chefes e dos
fácil matá-lo do que trazê-lo assim amarrado à tua Presença, Se nobres das tribos de Dana.
lhe poupei a vida, foi em atenção a ti e pela consideração que me
mereces. Toma este homem e faz dele o que te aprouver.» Quando ele chegou à pequena saliência de terra em frente à casa
real de Tara, os filhos de Tuirenn apresentaram-lhe o que ele lhes
O rei Easal ordenou que o combate terminasse-se libertou o exigia. Depois de ver com todo o cuidado as maçãs de ouro, a
genro na condição de que ele daria o cão aos filhos de Tuírenn, pele de Porco, a lança, os cavalos e o carro, os sete porcos e o
condição que ele aceitou. Depois, chegou-se a uma paz baseada pequeno cão, Lug exclamou: «Espero que os chefes das tribos de
numa amizade infalível. Então, os filhos de Tuírenn despediram- Dana vossos fiadores, pois, se assim não fosse, eu matar-vos-ia
se do rei Easal e do rei de loraidh, e muito felizes, voltaram com aqui imediatamente por não terem cumprido as vossas
o cão paira a barca de Mananann. promessas.» «o que dizes?», perguntaram os filhos de Tuirenn.

Ora, enquanto isto acontecia, Lug do Braço Longo, que possuía o Lug do Braço Longo mediu-os de alto a baixo com um ar de
dom de saber o que se passava muito longe, tomou conhecimento desprezo e disse com uma voz forte, de modo a que o ouvissem
dos feitos extraordinários dos filhos de Tuirenn. Desse modo, todos aqueles que estavam presentes na assembléia: «Onde estão
ficou a saber que eles tinham sido bem sucedidos em todas as pois o espeto de assar e os três brados que vos pedi? Parece-me
provas que ele lhes tinha imposto, ficando por isso muito bem que não estão incluídos entre o que me trouxestes ... »
amargurado. Recitou então um sortilégio no vento e lançou um
feitiço druídico tão poderoso aos filhos de Tuirenn que eles se Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos de Tuirenn ficaram
esqueceram de que deviam ainda duas partes da compensação a aterrorizados e lembraram-se de repente que tinham perdido a
Lug. E este fez com que eles tivessem um desejo incontido de memória. Deixaram Tara e dirigiram-se a casa do pai em Dun
voltar a ver o mais depressa possível a Irlanda. Edair”>. Contaram-lhe as suas aventuras e o modo como Lug do
Braço Longo os tratara diante da assembléia, ficando Tuirenn
Assim, a barca de Mananann levou-os a Brug-na-Boyne. Quando muito entristecido e angustiado. Passaram juntos aquela noite e
desembarcaram, informaram-se sobre a as de manhã dirigiram-se para o porto, mas já não podiam
dsemPbrlaetiaasdeaesntcriobnotrsadveaDnuanmaa. Disseram- embarcar na barca de Mananann, pois tinham-na entregue a
lhes que o rei Nuada do Braço de prata os chamara para uma Lug. Ethné, a irmã deles, estava em sua companhia,
reunião na fortaleza de Tara e, sem perda de tempo, deslocaram- acompanhando-os quando estavam em terra. E, quando chegou a
se para aí com tudo o que tinham conseguido obter para pagar a hora do embarque, entoou um canto de lamento que lamentava a
compensação. Deram-lhes as boas vindas e o rei perguntou-lhes má sorte dos filhos de Tuirenn.
se tinham obtido o que era reclamado por Lug do Braço Longo.
«Temos tudo», respondeu Brian, «e estamos prontos para lhe Depois de terem ouvido o canto da irmã, os filhos de Tuirenn
apresentar o que pediu.» içaram as velas do barco e partiram para o alto mar. O espeto de
assar objeto da sua demanda estava na ilha de Fianchair, mas
Mas Lug não estava ali, pois soubera do regresso dos filhos de nenhum deles conhecia a localização desta ilha, e o barco em que
Tuirenn à Irlanda e queria que a vingança fosse completa. Foram agora viajavam não podia levá-los por si mesmo ao destino que
eles queriam alcançar. A única coisa que eles sabiam era que
aquela ilha estava sob o mar. Demoraram vários meses até chegarem à ilha onde se erguia o
monte de Miodchain. Quando aí chegaram, Miodchain viu-os e
Navegaram ao acaso durante um quarto do ano, fazendo veio ao seu encontro, pois cabia-lhe a tarefa de impedir que
perguntas a todos os que com eles se cruzavam, e acabaram por alguém desse três brados naquele monte. Ao vê-lo, Brian não
descobrir que a ilha de Fianchair estava a pouca distância da hesitou em atacá-lo, e lutaram durante muito tempo. Por fim,
embarcação. Fazendo esta avançar sobre a crista das ondas, Miodchain caiu morto, mas deixou três filhos que, por seu lado,
tentaram achar o caminho que levava à ilha e, passadas algumas vieram lutar contra os três filhos de Tuirenn. Depois de uma luta
semanas, souberam que ela estava mesmo debaixo deles, violenta e impiedosa, os filhos de Miodchain golpearam os
bastando-lhes mergulhar para a alcançarem. «Eu vou sozinho», corpos dos filhos de Tuirenn com as suas lanças, mas estes, sem
disse Brian aos irmãos, «pois na qualidade de mais velho sou se deixarem atemorizar e desafiando a própria morte,
responsável por vocês.» atravessaram de lado a lado os filhos de Miodchain com as suas
armas, fazendo-os cair sem vida por terra. Então, os três filhos de
Deixaram-no então ir, e ele entrou na cidade que se erguia Tuirenn deram três brados nos montes e, apesar de terem sofrido
debaixo do mar. Aí estava um grupo de mulheres a coser e a graves ferimentos, voltaram para o barco e desfraldaram as
bordar, podendo ele aperceber-se, entre os numerosos objetos velas. «Não podemos morrer antes de chegarmos à Irlanda»,
que elas tinham à volta, de um espeto de assar. Então, sem fazer disse Brian aos irmãos, «pois temos de pagar a Lug do Braço
barulho, Brian aproximou-Se dos espetos, agarrou num e dirigiu- Longo a compensação que nos pediu.»
se para uma porta, mas de repente todas as mulheres presentes
começaram a rir. «Que ação corajosa Navegaram, assim, durante várias semanas até avistarem a
Irlanda, e atracaram o barco diante da fortaleza de Bem Adair.
1. Ou seja, na colina de Howth, na extremidade nordeste da baía de Dublin.
Tuirenn veio recebê-los à costa, e, vendo-os num triste estado,
ficou desolado e desesperado. «Pai», disse debilmente Brian,
acabas de realizar!», disse por fim uma delas a Brian. «Fica a
«estão aqui conosco o espeto de assar e os três brados que demos
saber que, se tivesses vindo com os teus irmãos, nenhuma de nós
no monte de Miodchain. Trouxemos o que Lug nos pediu para o
permitiria que levassem o espeto. Muito pelo contrário,
recompensar pelo assassínio do pai. Leva-lhe o que trouxemos e
precipitando-nos sobre vós, arrancar-vos-íamos os olhos e
pede-lhe emprestada a pele de porco do rei da Grécia, para que
castrar-vos-íamos. Mas, como vieste só, sem defesa e como não
possamos sarar os ferimentos e salvar a vida. Vai depressa,
nos agrediste, não nos opomos a que leves o espeto. Admiramos a
porque estamos esgotados, mas não queríamos morrer sem
tua bravura, e por isso te deixamos partir.»
Voltar a ver a Irlanda e sem pagar o preço do que nos era
Brian agradeceu-lhes e despediu-se delas. Depois, deixou a
exigido.»
cidade e foi ter com os irmãos a bordo do barco, ficando eles
satisfeitos por o verem voltar são e salvo. Içaram as velas e
Tuirenn partiu imediatamente à procura de Lug do Braço Longo
voltaram para o alto mar em direção ao norte, dirigindo-se para
e encontrou-o em Tara, no meio de uma assembléia dos nobres e
o monte de Miodchain, o antigo mestre de Cian, filho de
dos chefes das tribos de Dana. Deu-lhe o espeto e os três brados
Dianceclit. Nesse monte deveriam dar três brados, levando-os
dados no monte de Miodchain e, diante de toda a assembléia,
aos três para Lug, filho de Cian.
pediu-lhe emprestada a pele de porco do rei da Grécia para
salvar a vida dos três filhos. «Isso não está estipulado no acordo Esta sua filha era tão bem dotada fisicamente que nenhuma outra
que fizemos», respondeu Lug, «Fico muito satisfeito por os teus mulher se lhe comparava, e a sua beleza fazia Com que tivesse
filhos terem cumprido a sua obrigação e por terem pago a varios pretendentes. Contudo, o seu aspecto e a admiração que
compensação que me deviam pelo assassínio do meu pai, mas despertava tinham-na tomado tão orgulhosa que rejeitava todos
não me interessa nada o que lhes possa acontecer. De modo aqueles que se lhe declaravam, julgando-os indignos da sua
nenhum te emprestarei a pele de porco do rei da Grécia.» categoria e do seu encanto,
Naquele tempo, o grande Héracles acabara de enfrentar o
Então, Tuirenn voltou para o lugar onde deixara os filhos, que terrível gigante Geryon, que tinha três cabeças e três corpos.
estavam deitados, quase sem forças, a bordo do barco, e Depois de uma luta impiedosa, ele matara o monstro e levara
anunciou-lhes a resposta de Lug. «Leve-me à presença de Lug, ó consigo a sua manada de vitelas. Foi então que ele deixou a
meu pai», disse Brian, «e eu suplicar-lhe-ei que me ceda a pele Eriteia, levando consigo as vitelas, e errou proximamente através
de porco que faz sarar todas as feridas e cura todas as doenças.» da Céltica, em busca de um lugar onde pudesse constrLir uma
cidade. Chegou por fim a casa do pai de Celtiné, que o recebeu,
Tuirenn levou-o então a Tara. Quando chegou à casa real, disse lhe deu belas pastagens e o convidou a estabelecer-se no seu
Brian a Lug do Braço Longo: «Nós cometemos um crime contra o reino.
teu pai, e tu exigiste de nós uma compensação que foi satisfeita.
Deixa por isso que curemos as nossas feridas.» «Isso não faz Ora, logo que viu Héracles, a bela Celtiné apaixonou-se por ele,
parte do nosso acordo», disse Lug com firmeza. «Vós cumpristes Pois, segundo pensava, um homem com aquele porte e uma
a obrigação, tendes salvo a vossa honra, mas nada mais posso presença tão distinta tinha por força de lhe estar destinado. Por
fazer por vós. E nada me obriga a salvar a vida dos assassinos do infelicidade, Héracles não parecia prestar-lhe atenção, estando
meu pai,» muito ocupado com as suas vitelas. Imaginou então uma
Após ouvir a resposta de Lug, Brian pediu ao pai para o levar de artimanha e, uma noite, escondeu os animais numa caverna cuja
volta para o barco onde os irmãos jaziam, e, subindo para bordo, entrada só ela conhecia.
foi deitar-se ao lado deles. E logo os três irmãos perderam a
vida, deles se libertando a alma. Tuirenn ergueu um pilar para os Héracles ficou consternado quando soube do desaparecimento da
filhos e aí gravou os nomes deles em ogham. E Ettiné, filha de sua manada, e jurou a si mesmo que a havia de encontrar o mais
Tuirenn, entoou um cântico fúnebre pelos seus três irmãos. depressa possível. Ele calcorreou então os vales mais escondidos
e secretos, sem encontrar a mais pequena pista sobre o seu
Assim se vingou Lug do Braço Longo dos filhos de Tuirenn, paradeiro; pelo caminho ia interrogando as pessoas que
fazendo-os pagar pelo assassínio que perpetraram contra a encontrava, sem nunca receber uma resposta que lhe pudesse
pessoa do seu pai, Cian, filho de Dianceclit.1’1 indicar o caminho certo a tomar. Então, a bela Celtmé veio ao
seu encontro. «Eu sei onde estão as tuas vitelas», disse ela, «Mas
Capítulo se quiseres saber onde elas estão, terás de aceitar as minhas
condições.»
Em tempos muito distantes, havia um rei muito poderoso que
exercia a sua autoridade sobre um país a que hoje se chama Héracles acedeu, e ela guiou-o até â caverna onde se
Céltica. E este rei tinha uma filha a quem dera o nome de CeItmé. encontravarn as vitelas. Louco de alegria, Héracles levou-as
para um belo prado mas, chegada a noite, tinha de se sujeitar às alegria. O rei, divertido e encantado com Os seus versos, pediu
condições impostas pela jovern, que se traduziam em se unir a uma bolsa de ouro a um dos seus criados e atirou-a aos pés do
ela. E como ele começava a deixar-se seduzir pelos seus poeta que corria atrás do seu carro. O poeta apanhou a bolsa,
encantos, não teve dificuldade em aceitar unir-se a ela. mas continuou a correr enquanto entoava outro canto, dizendo
que o rastro deixado na terra pelo carro do rei eram raios que
Da ligação entre ambos nasceu um filho a quem chamaram faziam prenunciar uma grande quantidade de ouro e de
Celtos, em homenagem à mãe. Este filho não tinha igual entre as benefícios para os homens.
gentes do país, pois era de uma coragem e de uma robustez
invulgares. Chegado à idade adulta e tendo herdado o reino dos Entretanto, à medida que cresciam as riquezas, a população ia
seus antepassados, conquistou uma grande parte dos territórios aumentando, até que chegou o dia em que as colheitas já não
vizinhos e destacou-se graças a inúmeros atos heróicos. E, como eram suficientes para garantir a alimentação de todos, tornando-
forma vincar bem o seu poder, deu o seu nome aos povos que se por isso difícil governar tanta gente. Assim, o rei Ambigat,
ficaram sob o seu domínio, estendendo-se depois este nome a sucessor de Luern, que se sentia envelhecer e que queria aliviar o
todos os países dos celtas. reino do excesso de população, chamou à sua presença dois
Os seus descendentes reinaram num clima de paz e de filhos da sua irmã, Bellovèse e Ségovèse, Jovens corajosos e
prosperidade, construindo vastas fortalezas para se defenderem empreendedores. Anunciou-lhes a sua intenção de os enviar para
de eventuais invasões. Bravos e generosos, os soberanos fizeram- novas terras e pediu-lhes, com este propósito, para determinarem
se rodear de artistas e de poetas. Um dos soberanos, chamado o número de homens que queriam levar com eles, devendo evitar-
Luern, fazia os possiveis para receber benesses do seu povo, e se qualquer revolta entre as populações com as quais iriam
quando passava de carro pelos campos, atirava ouro e prata entrar em contato.
para a multidão de homens e mulheres que o seguiam ou que se
chegavam à beira dos caminhos para o ver passar. Em certas Bellovèse e Ségovèse escolheram então os homens que os
alturas, ele ordenava que para um certo recinto preparado para deveriam acompanhar; depois foram convocados os druidas, os
o efeito se encaminhassem grandes quantidades de bebidas sábios, os adivinhos, e perguntaram-lhes qual seria o melhor
preciosas e de provisões, de tal modo que, durante vários dias, se destino a dar a estes dois grupos. Os druidas, os sábios e os
podia entrar livremente no recinto e ficar regalado com os adivinhos, depois de se reunirem, disseram: «Segundo pensamos,
acepipes que eram servidos ininterruptamente a quem quer que impõem-se duas direções, uma para a floresta herciniana e a
chegasse. outra para Itália. Isto deve-se a que as regiões mais férteis da
Germânia se encontram perto da floresta herciniana, numa
Um dia - tendo sido a data marcada com grande antecipação - o região a que os antigos chamavam Orcinia. Quanto à Itália, o
rei Luern ofereceu um grande festim a todos os poetas e músicos seu clima e os seus vales muito férteis permitem cultivar a vinha,
do país. A festa foi de arromba e durou várias horas. Os convivas o que será uma fonte de grande riqueza. «Muito bem», disse o rei
começavam a pedir licença para se retirarem quando chegou um Ambigat, «mas falta-me saber qual dos meus sobrinhos vai para
poeta, que se atrasara bastante. Vendo que a festa estava no fim, oriente e qual vai para sul.» Tiraram à sorte, sendo atribuída a
o poeta apareceu diante de Luern e entoou um canto em que Itália a Ségovèses e a floresta herciniana a Bellovèse.
prestava homenagem à magnificência do rei, ao mesmo tempo Bellovèse partiu então com um grande número de homens,
que lamentava que o atraso o tivesse privado de uma grande cavaleiros e soldados de infantaria, com carros de combate e
pesadas carroças para transportarem os víveres e os despojos. A primeira expedição dos gauleses foi comandada por
No entanto, como não encontraram na floresta herciniana o que Cambaulès. Tendo penetrado até à Trácia, os gauleses no entanto
esperavam, os druidas do grupo preconizaram que se seguisse não ousaram atacar os povos que existiam para além desse
para sul, seguindo a mesma rota dos pássaros que voavam território. A expedição seguinte, realizada por aqueles que
naquela direção e passavam para além de altas montanhas. Foi tinham seguido Cambaulès, foi composta por um exército
assim que este grupo de celtas, que a si mesmos se chamavam poderoso de soldados de infantaria e de cavaleiros que se
gauleses, gente brava, temível e audaciosa, conseguiu subir ao dividiram em três corpos, o primeiro confiado a Cerethrios, o
cume vertiginoso dos Alpes e chegar a lugares tão frios que se segundo a Breno e Cichorios, o terceiro a Bolgios. Este último
diria serem inacessiveis. partiu imediatamente para fazer guerra aos macedónios.

Na etapa seguinte, aquele grupo chegou à llíria, cujos habitantes Os gauleses possuíam um equipamento bélico que enchia de
levavam uma vida de ócio e passavam o tempo sentados à mesa espanto os povos por cujas terras passavam. Na verdade, como
em festins intermináveis. Os gauleses, procurando uma maneira armas defensivas eles usavam escudos que lhes desciam da
de se desembaraçarem deles com um mínimo de custos, cabeça até aos pés, ornando-os cada um a seu gosto. Como estes
decidiram então tirar partido da sua intemperança: cada um escudos serviam não só para defesa como também para
deles devia convidar um Iliriano para a sua tenda, e sentando-o a ornamento, alguns soldados tinham gravado neles figuras de
uma mesa muito bem fornecida de comes e bebes misturaria entre bronze em alto relevo trabalhados com muito requinte. Os
a comida uma certa erva que desarranja os intestinos. E, graças capacetes de bronze possuíam partes salientes que davam um
a este estratagema, os gauleses tornaram-se donos do país, sendo aspecto fantástico àqueles que os usavam. Alguns destes
vários os ilirianos que sucumbiram em estado de fraqueza, capacetes tinham chifres e outros possuíam efigies com pássaros
enquanto outros se atiravam para os rios devido a não e animais de todas espécies em relevo, Além disso, os guerreiros
aguentarem a incontinência infernal dos intestinos. sopravam trombetas bárbaras que, graças a um truque de
fabrico, provocavam um ronco descomunal que aumentava ainda
Mas há também quem defenda que os ilirianos pereceram por mais o grande tumulto existente no decurso das batalhas.
terem sido víturias da vingança do deus Apolo, o qual terão
ofendido com a sua gula e a sua indolência. Antes de começarem Estes povos tinham uma tal reputação e exibiam um -aparato tão
os combates contra os gauleses, sofreram calamidades naturais, grande que chegou a haver reis que, sem serem atacados,
tempestades e chuvas diluvianas. E aqueles que consegLiram simplesmente ao ouvirem o seu nome, lhes compraram a paz a
escapar às inundações e à traição dos gauleses, encontraram preço de ouro. Só Ptolomeu, rei da Macedónia, não mostrou
depois outros tormentos, pois a terra produziu uma enorme medo ao saber que eles se aproximavam. Revoltado com os seus
quantidade de rãs, cuja putrefação e estado de decomposição crimes atrozes e com os seus parricídios, atreveu-se a marchar
deterioraram as águas do país, Pior ainda, devido aos miasmas ao encontro deles com um punhado de guerreiros
que saiam da terra, o ar tornou-se tão infecto que apareceu uma desorganizados, como se pudesse fazer frente a um tão poderoso
peste de tal modo mortífera que todos foram obrigados a exército. Os gauleses, cujo rei era Bolgios, enviaram
abandonar o país. E os gauleses não quiseram continuar por mensageiros a Ptolomeu para saber da sua disposição e para lhe
muito tempo nesta região maldita. perguntar se queria comprar a paz, e este último vangloriou-se
perante os seus por ter levado os gauleses a pedir a paz. E levou
a presunção ao ponto de afirmar, diante dos emissarios, que não cheios de determinação, invadiram a Macedónia. Enquanto
poderia haver paz se os gauleses não1 depusessem as armas e saqueavam os campos, Sóstenes veio atacá-los com as suas
não entregassem os seus chefes, pois só confiava neles se hostes, mas estas eram pouco numerosas e a maior parte dos
estivessem desarmados, jovens que as compunham receavam a ferocidade e a reputação
dos gauleses. Assim, estes últimos, resolutos e confiantes,
Quando os mensageiros voltaram para o seu campo e contaram o facilmente os fizerem dispersar por todo o país. Os macedóníos
que se tinha passado, os gauleses puseram-se a rir e exclamaram voltaram então a fechar-se no interior das muralhas das suas
cheios de desprezo que o rei da Macedónía não tardaria a saber cidades, e Breno pôde a partir daí entreter-se a saquear à sua
se era por medo ou por piedade que lhe tinha sido oferecida a vontade as regiões vizinhas.
paz. E a determinação da nação dos gauleses para combater,
aumentou consideravelmente. Alguns dias mais tarde, os dois Entretanto, o saque acumulado parecia bastar aos gauleses, cuja
exércitos enfreritaram-se, e os macedónios foram destroçados. satisfação lhes refreou o ímpeto, fato que desagradou a Breno. O
Ptolomeu, que sofreu graves ferimentos, foi feito Prisioneiro, objetivo deste era ir muito mais longe e descobrir um país onde
depois puseram a cabeça dele na ponta de uma lança e exibiram- ele e os seus pudessem prosperar e viver num clima de
na à volta do campo de batalha para convencer os macedónios de tranquilidade. Por isso, não descansou enquanto não convenceu
que não tinham salvação possível. as suas gentes a pegarem em armas contra os gregos. Para as
convencer fez discursos muito eloquentes em que mostrava de um
Quando voltou da perseguição feita aos fugitivos, Bolgios juntou lado a Grécia derrotada e sem forças, e do outro a sua audácia
os Prisioneiros e, entre eles, escolheu os mais fortes e válidos que era responsável pela opulência das cidades, a riqueza dos
para serem imolados, manifestando desse modo o seu templos e grandes quantias de ouro e de dinheiro.
agradecimento pela vitória aos deuses. Foram poucos os
macedónios que escaparam, tendo sido quase todos mortos ou Para convencer os gauleses a seguirem-no, Breno fez desfilar
capturados. Quando na Macedónia se soube deste desastre, os perante as assembléias do povo prisioneiros gregos de cabeça
habitantes concentraram-se nas cidades e fecharam as suas rapada que ele escolhera entre os mais enfezados e os mais
entradas. A consternação era geral, mas um dos principais macilentos e que eram seguidos pelos seus homens mais
chefes, que se chamava Sóstenes, decidiu reagir e resistir aos corpulentos e robustos - desse modo podia dizer que guerreiros
invasores. Juntou uma grande parte dos Jovens e, cheio de tão possantes nada tinham a recear de inimigos tão frágeis e
entusiasmo e de determinação, chegou a deter o avanço dos indefesos.
gauleses que, muito entretidos a celebrar entusiasticamente o
triunfo, tinham perdido o espírito ofensivo. Entrementes, o outro Assim, Breno conseguiu formar um extraordinário exército de
chefe gaulês, que se chamava Breno, dirigira--se para a Grécia, cento e cinquenta mil soldados de infantaria e de dois mil e
que tencionava Ocupar. Quando soube que as hostes quatrocentos cavaleiros. Cada senhor possuía dois lacaios que
comandadas por Bolgios tinham vencido os Macedónios, mas seguiam atrás dele: se perdia um cavalo, um dos lacaios dava-lhe
tinham parado de avançar, ficou indignado por eles o seu e, se ele morria, um deles substituía-o no combate. E, se
negligenciarem de forma tão inglória um despojo valioso que morressem dois, havia um terceiro para prosseguir a luta. Os
continha todos os tesouros do Oriente. Juntou então quinze mil gauleses chamaram a esta espécie de milícia trimarkesia, termo
cavaleiros e cento e cinquenta mil soldados de infantaria que, derivado da palavra marka que, na língua celta daquele tempo,
significava cavalo. Com este equipamento, Breno comandou, confronto ficou marcado, por sua vontade, para o dia seguinte,
muito seguro de si, o seu exército até à Grécia. ao nascer do sol. Os gregos avançaram para o Combate muito
bem organizados e em silêncio absoluto. Cansados pela longa
Breno era extremamente audaz e experiente, sendo mesmo perito viagem, os gauleses não estavam na sua melhor forma nem
em artimanhas e, em expedientes de todo o gênero para enganar estavam bem armados, bem pelo contrário. Tendo apenas
o adversário. Uma noite, em vez de se deixar intimidar pela escudos em seu Poder viram-se na contingência de se atirarem ao
destruição das pontes do rio Sperchios, teve a idéia brilhante de inimigo como uma força bruta, parecendo feras ferozes a
enviar dez mil hornens para a foz do rio. Queria ele que os seus atirarem-se as suas presas.
homens atravessassem para a outra margem sem os Gregos
saberem. Naquele lugar, com efeito, o rio não tinha uma corrente Apesar de duramente atingidos por machados e por espadas
tão forte, e prolongava-se para o interior dos campos, formando cortantes, nem por isso se rendiam e não perdiam o ar
aí um verdadeiro pântano. Ora, entre estes dez mil homens, uns ameaçador e obstinado que lhes era característico. Lutaram
sabiam nadar perfeitamente, e outros tinham unia estatura encarniçadamente, até ficarem completamente sem forças e não
imponente, tendo Breno apenas o problema da escolha, pois os houve entre eles quem não fizesse das tripas coração e não
celtas tinham uma compleição sem igual entre todos os outros retirasse dos golpes mortais infligidos pelos gregos as forças
povos. Foi assim que, naquela noite, uma parte do destacamento necessárías para lhes responder da mesma moeda, provocando
conseguiu atravessar o rio a nado, enquanto a outra parte o várias mortes entre eles.
atravessou sem perder o pé, o que não estava ao alcance de
pessoas mais pequenas. Entretanto, os atenienses cercaram-nos tão bem pelos flancos que
os invasores não consegLiram sair dos desfiladeiros onde se
Entretanto, Breno dera ordens aos habitantes das redondezas do tinham reunido, ficando numa situação muito delicada. Ao verem
golfo Maliaque para construírem uma ponte no rio Sperchios, e que a situação era desesperada, os seus chefes deram ordens
aqueles tinham-se apressado a fazê-lo, incitados pelo medo que para recuar, mas a fuga foi tão precipitada que numerosos
tinham daqueles guerreiros armados que os obrigavam a guerreiros, caindo uns sobre os outros, morreram esmagados.
trabalhar dia e noite. Quando a ponte ficou concluída, os Outros dos fugitivos meteram-se pelos pântanos que naquele
gauleses atravessaram o rio e avançaram para Heraclea, lugar eram vizinhos do mar, e os gauleses na debandada
pilhando todas as habitações que encontravam e matando todos perderam tantos homens como na batalha.
os homens que se lhes atravessavam no caminho, deixando os
seus corpos espalhados pelos campos. Mas o mais importante Mas Breno nem assim desistiu. Passados sete dias, novas hostes
para Breno não era conquistar Heraclea. Para ele o objetivo gaulesas puseram-se em marcha para desta vez tentarem passar
principal era expulsar a guarnição das muralhas que protegiam a o monte Oeta, Breno pretendia que elas seguissem por um
cidade, pois se isso não fosse conseguido, não conseguiria pequeno atalho que levava a Trachine, cidade que Daquela época
alcançar a passagem das Termópilas. estava em ruínas, mas sob a qual existia um templo devotado a
Após violentos combates, Breno conseguiu pôr a guarnição em Palas, que os habitantes da região tinham enriquecido com
fuga. Passando sem problemas as muralhas de Heraclea, numerosas oferendas. O objetivo dos gauleses consistia em,
continuou a marcha Para as Termópilas e resolveu atacar os seguindo através daquele atalho escondido, chegar ao cimo da
gregos que estavam preparados Para lhe oferecer resistência. O montanha e aproveitar para saquear o templo.
Os gregos não demoraram a saber que os gauleses seguiam este
O objetivo, no entanto, não era fácil de alcançar, pois os Etólios caminho, conduzidos pelos habitantes de Heracica e pelos
guardavam as passagens e sem que nada o fizesse prever Eníanes. Breno deixara o seu lugar-tenente Kikorios no
surpreenderam os gauleses, destroçando-os. Estes entraram em acampamento e, acompanhado de quarenta mil homens, seguia
panico e uma grande parte deles quis pôr-se em fuga, sendo os guias.
Breno o único a não perder a coragem. Pensou ele que, se
conseguisse obrigar os Etólios a voltarem para trás, o caminho Quis o acaso que, naquele dia, um nevoeiro espesso cobrísse o
ficaria aberto para chegar ao desejado objetivo. Assim, formou monte Eta de tal forma que nem se conseguia ver o sol. Por isso
um destacamento de quarenta mil homens e de oitocentos os Fócios que estavam na região só se aperceberam do inimigo
cavaleiros, entregando o comando a um chefe muito corajoso quando este lhes infligiu o primeiro ataque. Gerou-se então uma
chamado Milé e ao seu lugar-tenente Orestorios. Ordenou-lhes enorme confusão, com as vidas a correrem um grande perigo, e
que atravessassem o rio Sperchios e a Tessába, e que fossem pôr enquanto uns procuravam desesperadamente tapar a passagem
o país dos Etólios a ferro e fogo. aos gauleses, outros tentavam fazer manobras de diversão, mas,
no fim, cercados por todos os lados, abandonaram as suas
Foram estas tropas que devastaram a cidade de Callion e aí posições e espalharam-se em todas as direções, deixando o
perpetraram um massacre pavoroso. Os sexos viris foram todos adversário dono do terreno, Breno não perdeu tempo. Ordenou
mutilados, Os velhos foram passados pelo fio da espada, as que se marchasse imediatamente sobre Delfos, dizendo
crianças de tenra idade arrancadas ao seio das mães e repetidamente para aqueles que o acompanhavam que era uma
decapitadas; e àquelas que pareciam rnelhor amamentadas os tarefa dos deuses fazer tesouros para os oferecerem aos
gauleses bebiam-lhes o sangue e saciavam-se com a sua carne,”’ humanos. Um dia, aliás, estando no interior de um templo, nem
As mulheres e as jovens que tinham o senso da honra sequer deu atenção às oferendas em ouro e prata que aí estavam
entregaram-se voluntariamente à morte para evitarem a fúria dos depositadas, apoderando-se simplesmente das imagens de Pedra
vencedores, Outras, obrigadas a sentir na pele todas as e de madeira, o que provocou uma enorme rísota: como era
indignidades que se possam imaginar, foram depois alvo de possível que os Gregos pudessem dar às divindades formas
chacota por parte dos seus carrascos, que eram completamente humanas que eram fabricadas com materiais perecíveis?
insensíveis à piedade e ao amor.
Quando os Etólios que defendiam as Termópllas souberam o que Sem esperar que Kikorios se lhe juntasse, Breno, acompanhado
se passava no seu país, partiram imediatamente em socorro dos de Milé, precipitou-se então para o santuário de Delfos. Sabendo
seus compatriotas e deixaram que os gauleses ficassem livres da notícia, todas as cidades da Fócida enviaram auxílio: Anfísia
para fazerem o que muito bem lhes apetecia. deu quatrocentos homens de infantaria; os Etólios, apesar de já
terem alguma experiência, apenas forneceram um pequeno
Passando as Térinópilas podia alcançar-se o cume do monte Eta número de guerreiros; e as outras cidades enviaram para Delfos
por dois atalhos distintos: um, muito estreito e difícil, levava ao o número máximo de guerreiros que conseguiram reunir para
cimo de Trachine; o outro, mais acessível à passagem de um tentarem evitar a pilhagem que Breno pretendia levar a cabo.
exército, atravessava as terras de Emanes. Breno escolheu este
último para a sua expedição, Breno hesitou ao ver o santuário: deveria ordenar o ataque
imediatamente ou, pelo contrário, deveria conceder aos seus
homens uma noite de descanso, já que estavam esgotados pela trovões, acompanhados de clarões contínuos que aterrorizaram
viagem? Dois dos chefes gauleses que se lhe tinham juntado na os assaltantes e impedirarin que eles ouvissem as ordens dadas
expectativa de um saque inimigo muito proveitoso pelos seus chefes. Os raios, que frequentemente caíam sobre eles,
queriam que se atacasse imediatamente o que, recolhido na não se limitavam a matar aqueles que atingiam, mas igualmente
defensiva, dava sinais de fraqueza. Mas os guerreiros gauleses, reduziam a cinzas os que estavam perto deles, assim como as
fartos de privações e maravilhados por este país repleto de suas armas. Para completar o quadro, no céu apareceram heróis
alimentos e de vinhos, tinham posto de lado os seus estandartes e de tempos antigos que costumavam devolver a coragem aos
estavam eufóricos pelo sucesso alcançado e por terem Gregos e lhes mostrava como combater os inimigos. Mesmo os
encontrado urna inesperada abundância. Espalhados pelos sacerdotes do santuário se envolveram na batalha e se colocaram
campos, os gauleses colhiam os mais diversos frutos e saciavam o na frente de combate, gritando que deus os tinha vindo defender e
estômago e os sentidos com o que havia para comer e beber. que tinha sido visto a atravessar as espessas nuvens que
envolviam as montanhas.
Breno esforçou-se por reagrupá-los e por lhes fazer ver o
magnífico saque que se lhes oferecia, improvisou discursos Parecia que todo o universo estava em fúria. Os gauleses, depois
inflamados, exaltando o ouro maciço das estátuas, os carros que de terem passado por tantos reveses e por tantas angústias
se distinguiam ao longe, e garantia a pés juntos que o valor durante o dia da batalha, tiveram uma noite ainda mais negra,
destes objetos ultrapassava tudo o que se poderia imaginar. pois a enorme quantidade de neve que caiu tornou o frio ainda
Excitados pela sua eloquência e embriagados pelas orgias a que mais insuportável. E os gauleses chegaram mesmo a acreditar
se tinham entregue, os gauleses acabaram, por aceitar partir que as Virgens Brancas das profecias se tinham virado contra
para o combate. eles, de tal modo eram fustigados por rabanadas de vento e por
borrascas de neve.
Pressentindo o perigo iminente, os habitantes de Delfos
perguntaram ao deus se era necessário retirar dos templos os Depois, como se todos os elementos tivessem cumprido o seu
tesouros que ai se encontravam, e se era preciso mandar as papel, soltaram-se do monte Parnaso grandes pedras, ou antes
mulheres e as crianças para cidades vizinhas, melhor revoadas de rochas inteiras que, caindo sobre eles, esmagaram
fortificadas, onde pudessem estar em segurança. Pela voz da não um ou dois de cada vez mas trinta e quarenta. E o sol só se
Pítia, o deus ordenou que as oferendas e os ornamentos dos ergueu quando os gregos, que se tinham refugiado na cidade, a
santuários ficassem nos seus lugares, pois ele mesmo, com as deixaram, enquanto os Fócios, por seu lado, desciam das
Virgens Brancas suas companheiras, se encarregaria de as ter montanhas geladas. Só os guardas de Breno e os homens de elite,
sob a sua guarda. No templo do deus encontravam-se, com efeito, muito robustos e rijos, resistiram ao ataque, embora estivessem
duas capelas bem antigas, uma consagrada a Palas Pronaos e a enregelados e exaustos. Ao verem o seu chefe gravemente ferido e
outra a Artémis, e estas duas deusas, de acordo com o oráculo, numa situação desesperada, estes últimos não hesitaram em
secundavam Apolo. cobrir-lhe o corpo e em transportá-lo, atitude esta que provocou
uma debandada geral.
A fúria dos deuses não tardou a manifestar-se contra os gauleses.
Para começar, o terreno ocupado pelas suas tropas sofreu um Na fuga, foram surpreendidos pela noite e acamparam, passando
abalo que durou uma grande parte do dia. A segLir, ribombaram então, por momentos de pânico, palavra esta que designa medo,
crendo-se que eles estavam a ser inspirados pelo deus Pã em chamados Gálatas.
pessoa. O pavor da noite fê-los passar por um falso alarme,
quando um grupo de guerreiros pensou ouvir um galope que se No que respeita a Milé e aos seus companheiros, estes tomariam
aproximava e que os vinham atacar por trás. O medo logo outra direção e, depois de várias atribulações, chegaram a um
contagiou os outros, e todos empunharam as respectivas armas, porto e decidiram deixar o país. Depois de terem trocado uma
dividiram-se em diversos grupos e guerrearam-se entre si, parte do saque por barcos, fizeram-se ao mar e chegaram às
plenamente convencidos de que enfrentavam os Gregos. costas de Creta. Contudo, ficaram aí pouco tempo, pois não
foram bem recebidos pelos habitantes do país. Então,
O pâníco criado foi de tal ordem que, tendo eles esquecido a sua embarcaram de novo e navegaram até ao Egito, onde morreu
própria língua, acreditavam que as palavras que ouviam eram Milé, tendo-se tornado o seu filho Bréogan o chefe do clã a que
dos gregos. Acresce que, no meio da escuridão, não conseguiam mais tarde se chamou Filhos de Milé.
distinguir nem reconhecer a forma dos seus escudos, apesar de
serem muito diferentes dos de seus inimigos. Assim, todos eles de Mas, não lhes interessando o país do Egipto, decidiram todos
uma forma ou de outra passaram a noite enganados e foram partir. Andaram então ao acaso pelo mar Tirreno, e acabaram
poucos os que conseguiram voltar para o campo de Heraclea por desembarcar na Sicília, mas não Permaneceram aí muito
quando a luz do dia irrompeu. tempo Pois os seus druidas e os seus adivinhos tinham-lhes dito
para navegarem o mais possível para oeste, para os países onde
Breno perdeu muitos milhares de homens naquela aventura, o sol se põe sobre as vagas do oceano. Voltaram Por isso para o
tendo sido ele mesmo ferido por três vezes. Sabendo que não mar, com diversos navios, e acabaram por chegar à costa de
tinha muito tempo de vida, chamou ao seu leito de morte os seus Espanha. E foi aí que morreu Bréogan, filho de Milé, que deixou
principais lugares-tenentes e pediu-lhes que acabassem com ele, oito filhos, os quais foram Os chefes dos Filhos de Milé que
assim como com todos os feridos, que incendiassem todas as quiseram dar a estes um país digno do seu valor.
carroças, alcançassem um porto e voltassem o mais depressa
possível para o país de origem, Ordenou também que o comando O filho mais velho de Bréogan dava pelo nome de Ith. Mais do
do que restava das tropas fosse entregue a Kikorios e a Milé, e que os irmãos, estava decidido a descobrir os países
depois de se embriagar apunhalou-se a si próprio, assim maravilhosos cujas virtudes o irmão Amorgen, que era poeta,
perdendo a vida o chefe desta expedição que se aventurou pelas tanto enaltecia nas suas visões proféticas. Um dia, com muito
montanhas e pelos vales da Grécia. esforço ele subiu ao cume de uma montanha. O tempo estava
muito claro, Permitindo que se estendesse o olhar até muito
Por ordem de Kíkorios, ele foi sepultado e tirou-se a vida aos longe, e ele olhou ria direção do Poente. Vislumbrou então uma
feridos, assim como a todos aqueles que, em grande número, terra verdejante que tinha uma aparência sedutora. Desceu à
tinham adoecido devido ao frio e à fome. Depois, de comum pressa a montanha e foi contar aos irmãos o que vira. Mas
acordo com Milé, Kikorios reuniu os homens que pertenciam ao Brégu, filho de Bréogan, troçou dele, dizendo que a terra que vira
seu clã e dirigiu-se corn eles para o mar, tendo ainda de travar não podia ser senão uma nuvem suspensa no céu. Mesmo assim,
várias batalhas para abrir carninho e chegar aos barcos. Uma Ith insistiu levou-os a todos ao cimo da Montanha de
vez embarcados, ele e os seus deixaram-se conduzir pelo vento, e onde avistara a terra maravilhosa. «Tinhas razão», disseram Os
chegaram às costas da Ásia. E são eles que, desde então, são filhos de Bréogan, «trata-se de uma terra onde Poderemos levar
uma bela vida a criar animais e a viver da agricultura, Vamos começou a declinar para o horizonte. Mas, por muito que eles
Pois preparar a partida de Modo a alcançá-la por mar.» olhassem em volta, não viam nenhum vestígio da torre de vidro e
dos seus misteriosos habitantes. Então, recomeçaram a
Durante várias semanas, Os filhos de Milé construíram navios e navegação seguindo a direção do norte, Aportaram na Irlanda na
ocuparam-se, preparando-os para se poderem abastecer de praia que confina com a planície que hoje se chama Mag Ilha, em
provisões e de água doce. Quando terminaram os Preparativos, memória de Ith, o primeiro dos filhos de Milé a desembarcar
levantaram âncora e partiram à vela. E os ventos empurraram- naquele lugar. O segundo a desembarcar ali foi o seu irmão
nos a toda a velocidade pelo meio do oceano que cerca o mundo, Amorgen do joelho branco, o poeta, que, ao pousar o seu pé em
ameaçando levar terra, entoou o canto seguinte:
Os barcos para o fundo e lançar os seus tripulantes nos abismos
onde reinam as trevas da noite. «Mar tão piscoso e brilhante, terra fértil, bosques em vales, com
bandos imensos de pássaros, mar rude com vagas brancas,
Os Filhos de Milé já navegavam há vários dias quando foram estuários profundos com centenas de salmões, írrupção de peixes,
envolvidos por uma bruma. Como o vento caíra, andaram muito mar de peixes infinitos, rios abundantes em água, terra fértil e
tempo à deriva Sobre as ondas. Mas, de súbito, viram para lá da verdejante ... »
bruma uma luz débil que Parecia brilhar a Partir do vazio. Todos
tentaram perceber que luz seria aquela e começaram a Os filhos de Milé tinham chegado em trinta e seis navios. Quando
desesperar acreditando estar no fim do mundo, quando todos tinham desembarcado, vieram pessoas falar-lhes e
vislumbraram a silhueta de uma torre no meio do mar e lânçaram aperceberam com espanto, de parte a parte, que falavam a
então na sua direção com todas as suas forças e chegaram ao pé mesma língua, ou seja, o gaélico, passando então a tratar-se
de uma torre imensa que, muito direita dentro mar, ia abraçar o afavelmente. Os Filhos de Mílé quiseram saber o nome da ilha e
céu. Ficaram estupefatos quando viram que a torre era de vidro e a identidade dos seus habitantes. <Vós estaís na ilha de Elga»,
que, no seu interior, subiam e desciam homens que pareciam não responderam os outros, «e pertencemos às tribos de Dana.
lhes dar atenção. Atualmente temos três reis, Mac Cuill, Mac Cecht e Mac Greine,
filho de Cermat, filho de Dagda, e os seus três reinos são Banba,
Os filhos de Milé gritaram o mais alto que puderam para chamar FothIa e Eriu.»”
a atenção dos desconhecidos. Estes olharam-nos, mostraram-se
indiferentes à sua presença, e não disseram nada. Então, os filhos Depois de combinarem o que haviam de fazer, os Filhos de Milé
de Milé perguntaram-lhes quem eram e que torre era aquela, mas decidiram enviar um dos seus a presença dos reis das tribos de
no outro lado da muralha de vidro os outros, sem pronunciarem Dana para lhes perguntar se se podiam estabelecer numa parte
uma palavra, continuaram entretidos com o que estavam a fazer, da ilha para a cultivarem e aí fazerem a criação de gado. E como
como se nada tivesse acontecido. A luz desapareceu então, e a tinha sido Ith a coaduzi-los até ali, foi-lhe confiada aquela
bruma encerrou-os numa estranha obscuridade que os encheu de missão, partindo ele imediatamente com uma quinzena de
angústia. homens.

Entretanto, a bruma não tardou a dissipar-se, tão depressa como Naquele dia, os chefes das tribos de Dana estavam reunidos em
se formara. Eles encontravam-se bem no alto mar, e o sol Tara, na casa real, para resolverem o conflito que opunha Mac
Cuill aos seus dois irmãos, Mac Cecht e Mac Greine. Estes dois que este crime fique impune», disse Eber Donn, o irmão mais
últimos acusavam Mac Cuill de ter ficado com a maior parte dos velho de Ith. «Vamos imediatamente pedir aos reis das três tribos
tesouros de Fiachma, filho de Delbaeth, que morrera pouco de Dana que seja feita justiça.»
antes. Quando Ith chegou a Tara, o porteiro fê-lo entrar na casa
real, e os reis deram-lhe as boas vindas expondo-lhe depois os Puseram-se então a caminho tomando a direção de Tara. Pelo
motivos daquela disputa. caminho encontraram Banba, uma das três rainhas. Ao vê-los
aproximarem-se, ela disse-lhes: «Se viestes a esta ilha com o
«Seria conveniente que houvesse um clima de amizade», disse Ith, propósito de vos apoderardes dela, ficai a saber que as estrelas
«pois nenhum país pode ser feliz e próspero se não houver não vos estão favoráveis.» «E por necessidade que aqui
concórdía e fraternidade entre aqueles que o governam, A vossa estamos», respondeu Amorgen, o poeta. «Mas com que direito te
ilha é boa e verdejante, com pastagens aprazíveís; o trigo, o permites pronunciar palavras tão nefastas? «Fazei-me um favor»,
peixe, os cereais são aqui abundantes. O calor e o frio não são disse Banba. «Qual?», perguntou Amorgen. «Gostava que o meu
excessivos e nada vos falta. Deixai-vos, pois de quezílias e nome fosse dado a esta ilha» «E como te chamas, e de que raça
partilhai equitativamente os tesouros que vos fazem guerrear uns és tu?», perguntou Amorgen. «Chamam-me Banba», respondeu
contra os outros. Pela minha parte, só vos peço uma coisa: ela, «e sou da raça de Adão. Sou mais velha que Noé. Durante o
que permitis que nos estabeleçamos numa das vossas regiões. dilúvio estava no cume da montanha, e as vagas do oceano não
Podeis ficar certo de que a trataremos bem, cultivando-a e me atingiram» Os druidas dos Filhos de Milé lançaram então um
criando animais, ficando-vos muito gratos por todo o bem que encantamento, e Banba afastou-se sem que eles lhe fizessem o
nos fizerdes.» «Tens razão», disseram os reis, «quando nos dizes favor.
que é muito triste andarmos em disputas por causa de tesouros
que não são dignos disso. Quanto a ti, volta para perto dos teus e Mais adiante, encontraram FothIa, a segunda das três rainhas.
diz-lhes que em breve concluiremos um tratado entre nós.» Ela dirigiu-se-lhes nos mesmos termos de Banba, e eles
desembaraçaram-se dela voltando a lançar encantamentos.
Ith disse-lhes adeus e, satisfeito por ter cumprido a sua missão, Depois, pondo-se de novo a caminho, encontraram a terceira
voltou para o lugar onde os filhos de Milé tinham desembarcado. rainha, esposa de Mac Greme, que dava pelo nome de Eriu. «ó
Entretanto, os chefes das tribos de Dana começaram a conspirar guerreiros», exclamou ela ao vê-los, «sede bem-vindos a esta
nas suas costas. Diziam que ele era filho de um dos reis do ilha. Há muito que os nossos profetas anunciaram a vossa vinda.
mundo, e que viera espiá-los com o objetivo de se apoderar de Esta ilha será vossa para todo o sempre e não haverá terra tão
toda a ilha, sendo necessário impedir que aquelas gentes se magnífica no mundo inteiro. Nenhuma raça será tão numerosa
instalassem naquelas terras que as tribos de Dana tinham como a vossa.» «A profecia é boa», disse Amorgen do joelho
conquistado mercê do seu valor, da sua bravura e da sua branco. «Gostava que se desse o meu nome a esta ilha»,
tenacidade. Combinaram então matar Ith e puseram-se em sua respondeu ela. «Pois bem», disse Arnorgen, «então que o teu
perseguição, ferindo-o gravemente. Ith conseguiu ainda chegar à nome seja o seu principal nome.»
presença dos filhos de Milé e teve tempo para lhes contar o que
se passara, mas morreu logo de seguida. Muito consternados, os E ern seguida chegaram a Tara. Eber Donn e os irmãos foram
seus irmãos e os outros filhos de Mílé fizeram-lhe uma sepultura recebidos pelos três reis, e protestaram com veemência contra o
junto da qual erigiram um marco funerário. «Não permitiremos crime que fora cometido contra Ith, pois este levara-lhes uma
mensagem de paz e não possuía quaisquer propósitos agressivos a magia das tribos de Dana.»
ou mal intencionados.
Eber Donn desembainhou a espada e apontou-a para o céu. «Por
Os reis estiveram muito tempo a ponderar e depois determinaram deus!», exclamou ele, «eu juro que trespassarei com o fio da
o seguinte: os filhos de Milé deveriam voltar para os seus barcos minha espada todos aqueles que vivem nesta ilha.» O vento
e levantar âncora, e se num prazo de três dias conseguissem mudou de direção e empurrou então os barcos dos Filhos de Milé
aportar de novo, toda a ilha passaria a pertencer-lhes. Se, pelo para a costa onde aportaram pouco depois. «Repara», disse
contrário, ao fim de três dias, os Filhos de Milé não Amorgen, «que o nosso poder druídico vale mais do que o das
conseguissem aportar, a ilha continuaria na posse exclusiva das tribos de Dana. Voltámos à Irlanda antes dos três dias que nos
tribos de Dana. Pensavam os três reis que os Filhos de Milé tinham aprazado e temos agora o direito de nos apoderarmos de
nunca mais voltariam, pois os druidas lançariam tantos toda a ilha.»
encantamentos contra eles que os impeliriam muito para longe de
terra. «Nós vamos pensar», disse Eber Donn. «Que pensa Pegaram nas armas e em todos os seus apetrechos e puseram-se
Amorgen desta proposta?» «Parece-me razoável», respondeu a caminho de Tara. Entretanto, os chefes das tribos de Dana já
Amorgen. «Até que distância iremos?», perguntou Eber Donn. sabiam do seu regresso à Irlanda, tendo-se reunido à pressa na
«Iremos para além de nove vagas.» casa real de Tara, Estavam aí os três reis, Mac Cuill, Mac Cecht
e Mac Grein, assim corno Mananann, filho de Lir, Goibmu, o
Os Filhos de Milé deixaram então a fortaleza de Tara e ferreiro, Díancecht, o médico, Lug do Braço Longo, filho de
dirigiram-se para sul até ao porto de Seria, na foz do rio Felle, Cian, Dagda, a quem também chamavam Eochaid Ollathaír, e
onde tinham ficado os seus barcos. Embarcaram neles, Bobdh Derg, filho de Dagda. Estudaram aprofundadamente a
levantaram âncora e navegaram para além da nona vaga. Os situação, mas não consegLiram encontrar nenhuma forma para
druidas das tribos de Dana e todos os poetas lançaram-lhes então evitar o conflito que fatalmente os iria opor aos Filhos de Milé.
encantamentos, de tal modo que os ventos empurraram os navios «Temos de partilhar o país com eles», disse Dagda. «É
para muito longe da Irlanda, enchendo de angústia os seus impossível», responderam os três reis. «Temos de os expulsar
tripulantes por se acharem no alto mar. desta terra, pois nós somos os únicos donos desta ilha.» «Nós
fizémos um acordo com eles», disse Lug, «e devemos respeitá-lo.
«E um vento druídico que nos empurra para tão longe», disse Segundo esse acordo, se eles conseguissem aportar a esta ilha
Eber Donn. «Vejam se o vento sopra debaixo dos mastros.» antes dos três dias combinados, tornar-se-iam os donos da
Olharam com atenção e viram que o vento aí não soprava. Irlanda. Respeitemos, pois os nossos compromissos e retiremo-
«Paciência», disse Erech, um dos filhos de Milé que pilotava o nos para os nossos domínios feéricos. Aí seremos sempre nós a
barco de Eber Donn; «só temos de pedir a Amorgen para se opor mandar, aconteça o que acontecer, e eles não conseguirão
a este vento druídico.» Erech era filho adotivo de Amorgen e aproximar-se de nós sem que o saibamos.» «Além disso»,
chamou-o. «É uma vergonha para todos os nossos homens de acrescentou Mananann, «temos o poder de nos tornarmos
arte», disse Eber Donn, «termos de suportar durante tanto tempo invisiveis, e poderemos por isso errar pelo mundo sem que
a afronta que nos é infligida pelos druidas da Irlanda. «Não», alguém possa suspeitar da nossa presença.»
respondeu Amorgen, «não é uma vergonha, mas os nossos
homens nada podem fazer enquanto tu mesmo nada fizeres contra Mas os três reis das tribos de Dana mostraram-se irredutíveis e
exigiram dos seus companheiros que se envolvessem numa luta celebrarem a paz, pois a magia dos Filhos de Milé era muito
sem quartel contra os Filhos de Mílé que diziam descender de superior à deles. Deste modo Dagda e o seu filho Bobdh Derg, na
uma mesma linhagem que eles, a linhagem dos filhos de Nemed. companhia de Mananann, filho de Lir, foram encontrar-se com os
Deste modo propuseram que se formasse um exército e que este Filhos de Milé para lhes proporem uma forma de partilharem a
se opusesse com vigor, tanto pelo poder mágico como pelo das Irlanda. Começaram por se sentar em frente a uma fogueira,
armas, às pretensões dos Filhos de Milé de ocuparem toda a partilharam os alimentos que tinham sido passados pelo lume,
Irlanda. Por fim, todos aceitaram, uns com melhor vontade do depois beberam cerveja e hídromel, sendo por fim celebrado um
que outros, enfrentar os invasores e evitar que eles se acordo.
apoderassem da Ilha Verde. O destino assim determinaria o que Eber Donn e os seus Irmãos fizeram prevalecer a Idéia de que as
viesse a acontecer, e todos juraram que se conforimariam com o tribos de Dana eram culpadas de um crime contra Ith, filho de
resultado do conflito. Bréogan, que era rei, e, naquelas condições, deveriam pagar uma
grande compensação, naquele caso a Irlanda inteira. Mas as
As tribos de Dana reuniram todos os homens disponíveis, que não tribos de Dana de modo algum queriam abandonar esta ilha que
eram muitos, e confiavam, sobretudo no poder mágico dos seus noutros tempos tinham conquistado e por isso chamaram o sábio
druidas que lhes prometiam a vitória sem a perda de vidas Fintan, filho de Bochra, que falou a uns e a outros e demonstrou
humanas. As tropas reagruparam-se longe de Tara, num lugar que era preferível celebrar a paz do que continuar com guerras
que se chamava Tailtiu em honra da ama de leite de Lug do até ao fim dos tempos. Fíntan e Amorgen prepararam então os
Braço Longo, e onde este mandara que ela fosse enterrada. Aí em termos de um tratado cujo juramento deveria ser feito em nome
honra dela Lug do Braço Longo realizava-se jogos e, festas que dos deuses protetores: os Filhos de Milé ocupar-se-iam da
se desenrolavam dez dias antes do início do mês de Agosto e dez superfície da Ilha Verde, encarregando-se do cultivo da terra e
dias depois, e chamavam-se esses jogos e festas Lugnasad, ou da criação de animais, enquanto as tribos de Dana se retirariam
seja, «Assembléia de Lug», nome que passou a designar o mês de para o mundo dos tumulus e para pequenas ilhas que existem ao
Agosto. largo da Irlanda.
Foi, pois em Tailtiu que se enfrentaram as tribos de Dana e os
Filhos de Milé. Como o exército dos primeiros era pouco Deste modo, cada tribo estaria no seu domínio, o que não
numeroso, os seus druídas lançaram encantamentos e incitaram impediria que houvesse contato entre os membros de uma e
as tropas a oporem-se aos invasores, Mas os druidas e os poetas outra. Nomeadamente foi determinado que as gentes das tribos de
dos Filhos de Milé não demoraram a perceber que os seus Dana poderiam, se fosse esse o seu desejo, deixar o mundo
inimigos recorriam à magia, e por isso lançaram também eles invisível e vir fazer companhia aos Filhos de Milé, podendo por
encantamentos. Desse modo, daí a pouco tempo todos viram que sua vez os Filhos de Milé visitar o domínio das tribos de Dana
os belos exércitos das tribos de Dana se tinham transformado em todos os anos, enquanto durasse a festa de Samain, o tratado foi
arbustos e em torrões de turfa, o que não impediu que os três reis celebrado sob juramento e solenemente por ambas as partes.
Mac CuilI, Mac Cecht e Mac Greine sucumbissern às mãos dos Deste modo as tribos de Dana retiraram-se para o domínio
Filhos de Milé. obscuro dos tumulus e para as ilhas que rodeiam a Irlanda,
enquanto as tribos dos Filhos de Milé se espalharam por todo o
Privadas dos seus chefes, as gentes das tribos de Dana foram país, construindo aí fortalezas, cultivando a terra e cuidando de
aconselhar-se com Morrigane, que lhes disse que era altura de belas pastagens para os animais que tinham levado consigo.
Terminou assim a batalha de Tailtiu, com grande satisfação de pronunciar uma palavra. A sua atitude chocou de tal modo os
ambas as partes, e começou então na Irlanda o reinado dos chefes que, depois de terem confirmado solenemente Bobdh Derg,
Filhos de Milé, aqueles a quem hoje se chama gaélicos. todos pensaram numa maneira de o castigar pelo seu desdém e
pela sua descortesia.
Depois da batalha de Tailtiu e a partilha da Irlanda entre as
tribos de Dana e dos Filhos de Milé, ambas se organizaram de Alguns chefes chegaram mesmo a propor que se deveria
acordo com os seus costumes antigos e as suas leis ancestrais. Os persegui-lo até sua casa, incendiar a sua fortaleza e matá-lo com
Filhos de Milé confiaram o poder real a dois dos filhos de uma lança e uma espada como se ele fosse um criminoso. E não
Bréogan, Eber Donn, o mais velho, e Eremon, o mais novo. Eber era realmente um criminoso, por ter recusado inclinar-se perante
ficou com o sul da Ilha Verde, cabendo a Eremon a soberania do o rei que tinha sido designado pelas tribos de Dana como sendo o
norte. Mas os dois irmãos não se entenderam e daí a pouco melhor para as conduzir? «Não posso acatar a vossa proposta»,
travaram uma batalha sangrenta. Eber Donn foi morto, e Eremon respondeu Bobdh Derg, «Lir é um guerreiro corajoso, sempre
tornou-se o rei supremo de toda a Irlanda, organizando grandes pronto a lutar até às últimas consequências por uma causa que
festas na casa real que se situava no interior da grande fortaleza lhe tenha sido confiada, e o fato de não se inclinar perante mim
de Tara. não impede que eu seja o rei das tribos de Dana.»
As tribos de Dana, por seu lado, e de acordo com o que ficara
acordado com os Filhos de Milé, tinham-se refugiado nos Assim falou Bobdh Derg e, para provar a sua estima e deferência
domínios féericos, debaixo dos tumulis, em cavernas profundas por Lir, elegeu Mananann, filho de Lir, para seu principal
no interior da terra, em palácios que construíram no fundo de conselheiro. Mananann aconselhou-o então sobre a melhor
lagos, assim como nas ilhas que rodeavam a Irlanda. E como os maneira de distribuir as tríbos de Dana pelo território da
seus três reis haviam perecido na batalha de Tailtíu, reuniram-se Irlanda, de acordo com a partilha combinada com os Filhos de
um dia para designar aquele que reinaria entre elas. Milé. Segundo ele, era preciso dispersar as tribos pelos tumulis e
fixá-las também nas colinas e nas planícies mais distantes e
Tiveram de escolher entre os seus diversos heróis, tais como isoladas. Em seguida, Bobdh Derg distribuiu os chefes e os
Mananann, filho de Lir, ou o grande Dagda, ou o ferreiro nobres em seus domínios. Depois Mananann, que era um hábil
Goibniu, ou Mider de Bri Leith, irmão de Dagda, ou ainda Bobdh mágico e um perito em ciências druídícas, conferiu a todos o dom
Derg, filho de Dagda. Quanto a Lug, filho de Cian, este decidira da invísibílidade, o Festim de Goibniu e os porcos de Mananann:
jamais voltar a ser rei, Preferindo manter-se completamente livre graças ao dom da invisíbilidade, só eles se podiam ver uns aos
para fazer o que muito bem lhe aprouvesse. outros; o Festim de Goibniu evitava que sentissem o avançar da
idade; quanto aos porcos de Mananann, estes asseguravam-lhes
Ora, depois de acesas discussões, as gentes de Dana decidiram comida eternamente pois, mortos ao entardecer e comidos
dar o Poder real a Bobdh Derg, filho de Dagda, tendo em conta durante a noite, voltavam a estar vivos na manhã seguinte.
tanto a sua nobreza como a sua sabedoria herdada do pai. Este
fato provocou o despeito de Lir, que reinava no tumulis de Além disso, Bobdh Derg ensinou aos chefes e aos nobres das
Fimiachaid, já que ele esperava ver atribuída a coroa ao seu tribos de Dana como fazer as suas residências feéricas e como
próprio filho, Mananann. Contrariado, ele abandonou por isso a construir as suas fortalezas de modo a parecerem as da Terra da
assembléia das tribos de Dana sem se despedir de ninguém e sem Promessa, às vezes chamada Emain Ablach, e que está perdida
algures no meio do vasto oceano. Deste modo os chefes das tribos agradar.» «Não me é fácil fazer uma escolha», respondeu Lir,
de Dana, em sinal de gratidão, convidaram Bobdh Derg a visitar «pois todas elas são muito belas e de grande nobreza. De
as suas residências assim que elas estivessem prontas, e a assistir qualquer modo, penso que seria conveniente escolher a mais
ao festim que realizariam para celebrar a Festa do Tempo, altura velha.» «Assim sendo», disse Bobdh Derg, «a mais velha é Aeb,
que era escolhida para prestar homenagens e tributos. que será por isso tua esposa, se for esse o teu desejo.» «E esse o
meu desejo», afirmou Lir.
E assim foi. Entretanto, Lir foi vítima de uma grande desgraça: a
sua mulher, mãe de Mananann, morreu ao fim de uma doença Desposou então Aeb naquela noite, e ficou a viver na casa de
que durou três anos. Este infortúnio custou-lhe muito, pois Bobdh Derg durante quinze dias. Depois levou a mulher para a
devotava à falecida mulher um amor profundo e sincero, sua fortaleza, não sem antes ter prometido a todos os chefes das
chorando amargamente a sua morte. A notícia espalhou-se por tribos de Dana que os convidaria para a grande festa das
toda a Irlanda e chegou à residência de Bobdh Derg na altura em núpcias. Ach deu-lhe dois filhos, uma moça e um rapaz, que se
que este estava reunido com os chefes das tribos de Dana. «Se Lir chamaram Finula, ou seja, Espádua Branca, e Aedh, ou seja,
aceitar a minha amizade», disse Bobdh Derg, «eu poderei Fogo. Ao fim de um certo tempo, ela voltou a engravidar e, desta
atenuar-lhe o sofrimento provocado pela morte de quem ele vez, deu à luz dois filhos que se chamaram Conn e Fiachra. Aeb,
amava. Tenho aqui, na minha casa, três jovens muito graciosas, contudo, morreu no parto, fato que voltou a mergulhar Lir numa
de ótima aparência e famosas em toda a Irlanda, Aeb, Aifé e grande amargura e tristeza.
Ailvé, todas filhas de Awnm, rei de Arann. Elas estão sob a minha
guarda e proteção, pois foram-me entregues na condição de eu A notícia desta triste ocorrência não demorou a chegar a casa de
ser o seu pai adotivo. Que pensais disso? “Se eu lhe propusesse Bobdh Derg, e todos os que aí se encontravam deram três gritos
uma delas para esposa, o nosso diferendo ficaria resolvido...» para lamentar a perda da filha adotiva. Mas, quando acabaram
de a chorar, Bobdh Derg disse: «o amor que tínhamos pela nossa
Os chefes e os nobres das tribos de Dana acharam a idéia filha e a amizade que nos liga àquele a quem a entregámos como
excelente. Foram então enviados a Lir mensageiros da parte de esposa fazem com que nos sintamos muito consternados pela sua
Bobdh Derg para lhe perguntarem se gostaria de firmar um perda. Mas a amizade por Lir ter-se-á como dantes, pois dar-lhe-
acordo de amizade com o rei recebendo dele para esposa uma ei outra mulher, Alfé, irmã da defunta.
das suas filhas adotivas. Lir ficou encantado com a oferta que lhe Quando soube desta oferta, Lir veio buscar a segunda jovem no
foi feita e pôs-se a caminho, no dia seguinte partindo da sua casa lago Derg, casou com ela imediatamente e levou-a com ele para
da Colina Branca, com cinquenta carros muito belos, em direção a casa da Colina Branca. Aifé estimava profundamente e tratava
ao Lago Derg onde Bobdh fixara a sua residência e construíra a muito bem os quatro filhos da sua irmã mas, na verdade, ninguém
sua fortaleza. Aí chegado, foi muito bem recebido e viu-se no mundo poderia deixar de o fazer, tão cheios de graça eles
rodeado das mais lisonjeiras atenções. eram. O próprio Bobdh Derg muitas vezes ia a casa de Lir para
os ver, e levava-os para passarem uns tempos com ele, pois
As três filhas de Awnm, rei de Arann, estavam sentadas no mesmo achava muito agradável a sua companhia.
assento que a rainha, mulher de Bobdh e sua mãe adotiva que
nutria por elas um imenso amor «Lir», disse Bobdh Derg, «estão Naquele tempo, as tribos de Dana celebravam a Festa do Tempo
aqui as filhas do rei Arann. Podes escolher a que mais te debaixo dos outeiros e das colinas feéricas, cabendo a cada um
dos chefes convidar, alternadamente, os outros para a sua mágica e druídica, ela transformou-os em quatro cisnes
residência, Ora, chegou a vez de Lir receber na Colina Branca os graciosos e brancos. «Parti agora, filhos do rei», disse-lhes ela.
chefes e os nobres das tribos de Dana, que foram chegando e «Parti e errai pelo vasto mundo. Haveis sido condenados a uma
ficando encantados com a beleza e dos filhos de Lir, que a todos terrível aventura e todos aqueles que vos amam sofrerão por isso.
enchiam de alegria e de comprazimento. Era costume deles Doravante será entre os pássaros que se ouvirão os vossos gritos
dormirem no mesmo quarto do pai e, quando Lir se levantava, de e os vossos lamentos.» «Bruxa!», exclamou Finula. «Tu tocaste
manhã, ia sempre deitar-se por alguns momentos ao lado deles. em nós sem te termos feito mal, mas podes ter a certeza de que
pagarás muito caro pela tua maldade e pela tua desfaçatez, e no
Mas este comportamento de Lir teve como consequência fazer fim nada te poderá valer! Díz-nos só por quanto tempo teremos
com que Aifé ficasse extremamente enciumada com os filhos da de suportar o feitiço de que somos vítimas.» «Se quereis saber,
sua irmã, ao ponto de os ciúmes se transformarem em despeito e di-lo-ei, mas isso só servirá para aumentar a vossa mágoa e a
em ódio. Então, um ano Aifé adoeceu e fez-se passar por vítima vossa angústia», respondeu Alfé. «Conforme é meu desejo, o
de uma febre que, decidindo então livrar-se daqueles que a vosso feitiço durará enquanto a Mulher do Sul não tiver
faziam adoecer e provocavam ciumes. Assim, um dia ela encontrado o Homem do Norte. E já que não resistis à
aparelhou o seu carro, convidou as quatro crianças para a curiosidade, sabei que nenhum amigo nem nenhum poder vos
acompanharem à casa de Bobdh Derg, e quando elas se sentaram poderá livrar da forma em que vos transformei enquanto vós não
a seu lado Aifé fez com que os cavalos se dirigissem para o lago tiverdes vivido trezentos anos no Lago Derg, trezentos anos no
Derg. Mas Finula estava contrariada, pois suspeitava que Alfé Mar de Moyle, entre a Irlanda e a Escócia, e trezentos anos na
lhes queria fazer mal, tendo-lhes um ódio de morte, e um sonho angra de Doninann. Apesar da vossa aparêncía, mantereis a
tinha-lhe mesmo revelado que a irmã da mãe projetava vingar-se vossa linguagem e cantareis a música doce dos palácios feéricos,
daqueles que lhe provocavam insuportáveis ciúmes. que é de tal modo límpída e suave que adormece todos aqueles
que a ouvem. Ficareís pois novecentos anos a terde suportar na
Ora, Aifé fez o carro parar num vale e ordenou aos criados: superfície das águas o vento glacial e o sol escaldante. E essa a
«Matai os filhos de Lir, pois eles roubaram-me o amor do seu minha vingança, filhos de Lir, por me terdes privado do amor do
pai, e eu dar-vos-ei como recompensa tudo o que houver de vosso pai.»
melhor neste mundo.» «Não podemos obedecer-te», responderam Voltando a subir para o carro, ela ordenou que se prosseguisse a
os criados, «poís estas crianças são dignas de todo o respeito e viagem. Assim, ela continuou o percurso até à casa de Bobdh
amor. Um dia, rainha, pagarás por essa tua intenção tão Derg onde foi muito bem recebida pelos chefes e pelos nobres das
perversa.» tribos de Dana, admírando-se no entanto Bobdh, filho de Dagda,
por ela não ter trazido as crianças. «A razão é simples», disse
Então, como os criados se recusavam terminantemente a fazer ela. «Lir já não te ama e não te quer confiar os seus filhos, com
mal aos filhos de Lir, Aifé empunhou uma espada e quis ela medo de que não tomes bem conta deles, na sua ausência.» «Isso
mesma praticar o crime, faltando-lhe, no entanto a coragem no surpreende-me», disse Bobdb Derg, «pois sei que Lir tem a
derradeiro momento e dando por isso ordens para que a viagem máxima confiança em mim e me confiaria com toda a boa
prosseguisse. Quando chegaram ao pé do Lago Derg, ela vontade os seus filhos que amo tão profundamente como se
mandou as crianças tomarem banho no lago. Mas, ainda eles não fossem os meus próprios filhos.»
tinham mergulhado nas águas e, batendo-lhes com uma varinha
Mas ele pensou com os seus botões que a mulher o estava a razão e a memória?» «o sortilégio que se abateu sobre nós»,
enganar e por isso apressou-se a enviar mensageiros para a casa respondeu Finula, «não nos perrnite que vivamos com qualquer
de Lir, na Colina Branca. Ao ver estes chegarem, Lir perguntou- outro ser humano e por isso deveremos Permanecer nestas águas.
lhes o que os levava ali, Mas resta-nos a nossa linguagem, e podemos entoar músicas
suaves, iguais às que se ouvem nos palácios feéricos. Se
«E por causa das crianças», responderam eles. «Como?», Passardes a noite perto do lago, adormecereis embalados pela
admirou-se Lir. «Elas não foram para a casa de Bobdh Derg na suave melodia dos nossos cantos.»
companhia de Aifé?» «Não», responderam os mensageiros. «E
diz Aifé que tu é que não quiseste que elas fossem para a casa do Lir e aqueles que o acompanhavam, interromperam então a sua
filho de Dagda, com medo de que ele não tomasse conta delas.» Viagem e acomodaram-se naquele lugar para passar a noite.
Ao ouvir aquelas palavras. Lir ficou muito perturbado, pois Apuraram os Ouvidos ao canto dos cisnes, e as horas passaram
pensou logo que Aífé devia ter feito algum mal aos seus filhos. por eles com uma extrema doçura. Mas, na manhã seguinte, Lir
Assim, logo pela manhã seguinte, aparelhou o carro e tomou a anunciou aos cisnes que tinha de partir, mas que jamais os
direção que levava ao Lago Derg. Quando estava a chegar às esqueceria. Depois, prosseguiu o seu caminho até ao Palácio de
proximidades do lago, os quatro cisnes aperceberam-se dos Bobdh Derg.
cavalos e do carro, e disse Finula para os seus irmãos: «Que seja
bem vindo este grupo que se aproxima do lago, pois os homens Foi aí acolhido com todas as honras e com toda a benevolência,
que dele fazem parte são nobres e poderosos. Nas suas feições há mas o filho de Dagda censurou-o por não ter levado os filhos com
muita tristeza e mágoa, e sem dúvida estão aqui por andarem à ele, «Ora essa!», respondeu Lir, «Por certo não seria eu a
nossa procura. Aproximemo-nos da margem, pois aqueles que se recusar-me a trazer os meus filhos a tua casa, bem Pelo
acercam de nós, são Por Certo Lir e as gentes da sua casa.» contrário. Foi Aifé, a tua filha adotiva, irmã da mãe deles, que
lançou sobre eles um sortilégio, fazendo com que se
Lir, entretanto, fez parar o carro e aproximou-se da beira do transformassem em cisnes brancos no Lago Derg, o que pode ser
lago. Viu os cisnes virem ao seu encontro e, espantado por eles comprovado por todas as gentes da Irlanda. Agora eles são
terem uma voz humana, perguntou-lhes a razão de um tal cisnes embora mantenham a razão, o espírito, a voz e a
mistério. «Eu vou-te contar», disse Finula. «Os quatro cisnes que linguagem que encontramos nos seres humanos.» Perante esta
vês são os teus próprios filhos, e foi a tua mulher, irmã da nossa notícia, Bobdh Derg ficou possesso de raiva mandando chamar
mãe, que, toda enciumada, nos metamorfoseou para que nos Aifé, censurou-a veementemente pela má ação que praticara. «A
perdêssemos,» «Há uma forma de vos fazer voltar à forma tua maldade terá um preço muito alto», disse-lhe ele, «e Por teres
normal?» «Não há. Ninguém pode fazer nada por nos, ao menos mudado a aparência dos filhos de Lir, espero que sejas tu mesma
enquanto não tivermos passado pela prova do tempo, que deverá vítima de um sortilégio semelhante. Diz-me qual é a Pior das
manter-nos nesta situação durante novecentos anos. Vê bem a formas em que gostarias de ser transformada! » «A pior de todas,
nossa triste sorte.» segundo penso», disse ela, «seria a de um demónio do ar.» «Pois
bem», exclamou Boddh Derg, «nesse caso é essa a forma que
Ao ouvir estas palavras, Lir e as suas gentes Soltaram três tomarás!»
grandes gritos de dor e de lamento. «Quereis vir conosco para a
nossa terra», Perguntou ele, «já que conservais a linguagem, a Ele tocou-lhe logo de seguida com a sua varinha mágica e
druídica, e Aifé transformou-se de repente num espírito maligno confundiram-se com o céu e tomaram a direção do Mar de
do ar. Então misturou-se com o sopro do vento, e permanece com Moyle, situado entre a Irlanda e a Escócia. Ao desaparecerem
esta forma até à consumação dos séculos, como castigo pelo nas alturas, deixaram com uni nó na garganta quem as via
crime perpetrado na pessoa dos filhos de Lir. partir, e data desse dia a proibição na Irlanda de matar cisnes.

Quanto a Bobdh Derg e aos nobres das tribos de Dana, voltaram O Mar de Moyle era um lugar inóspito e terrível para nele se
ao Lago Derg e aí se instalaram para ouvirem o canto dos cisnes. viver. Quando os filhos de Lir viram a vasta costa aparecer
E os Filhos de Milé, que tinham reparado na beleza destes diante deles, senfiram a humídade e o frio colar-se-lhes ao corpo
cantos, costumavam também deslocar-se para ali vindos de todos e ficaram cheios de medo e de angústía. Todas as provações que
os cantos da Irlanda. Na verdade, na Ilha Verde, nunca houve já tinham passado pareciarn-lhes uma brincadeira quando
música que se pudesse comparar à dos quatro cisnes. E os cisnes comparadas com as que previam. Certa vez, estando a ser
contavam também histórias e entretinham-se a conversar todos os fustigados por uma grande tempestade, disse Finula aos
dias com os homens e as mulheres que tinham conhecido no irmãos: «A noite que se aproxima será terrível e vem lá uma
passado, quer tivessem sido os seus antigos mestres ou os seus tempestade tão forte e violenta que corremos o risco de nos
antigos parceiros de jogo, E, todas as noites, eles entoavam a separarmos uns dos outros. Devemos Por isso marcar um lugar
música suave do país feérico, de tal modo que, por muitas de encontro para o caso de o vento e a tormenta nos
mágoas e tristezas que alguém tivesse, adormecia cheio de paz e dispersarem.»
de bonomia. Ao ouvir-se o canto dos quatro cisnes, a felicidade
era plena. Decidiram então encontrar-se na Ilha das Focas, pois todos
conheciam a sua localização. Ao aproximar-se a meia-noite, o
As tribos de Dana e dos Filhos de Milé reuniram-se nas rnargens vento redobrou de violência, aumentou o rumor das vagas, os
do Lago Derg durante trezentos longos anos. Ao fim desse tempo, clarões da trovoada incendiaram os céus, e o furacao que então
disse Finula aos seus irmãos: «Sabeis que já se cumpriu o tempo se abateu sobre o céu e os mares foi de tal ordem que os filhos de
que deveríamos passar aqui? Amanhã deveremos partir.» Lir se dispersaram pelo vasto oceano sem que pudessem saber do
paradeiro de uns e outros. Por fim a tormenta acalmou e a terra e
Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos de Lir ficaram cheios de o céu encheram-se de bonança, achando-se Finula sozinha no
Pena, pois a possibilidade de falarem com os seus conhecidos, Mar de Moyle. Então, ao ver que os seus irmãos tinham
familiares o amigos, permitia-lhes suportar a sua sina sem terem desaparecido, entoou um canto de lamento e de desespero.
um grande sofrimento. Além disso, sabiam que estavam
condenados a ir para regiões muito inóspitas, fustigadas por Depois, Sem perda de tempo, dirigiu-se para a Ilha das Focas e
ventos cortantes que vêm do norte. Na manhã seguinte, os três Passou aí toda a noite. Ao nascer do sol, quando perscrutou o
irmãos e a irmã vieram pela última vez falar aos seus dois pais, a horizonte, viu aproximar-se com dificuldade o irmão Conn, caída
saber Lir, o pai natural, e Bobdh Derg, o pai adoptivo. Disseram- com a cabeça e a penugem desalinhada, Ela acolheu-o muito bem
lhes adeus, e Finula entoou um canto de tristeza em que e deu-lhe o máximo de conforto que pode. Pouco depois, veio
lamentava ter de partir para paragens desconhecidas e afastadas também, em péssimo estado, Fíachra, que meio encharcado,
das que amava. Quando Finula acabou de cantar, os quatro tremia de frio e sofria terrivelrnente. Finula protegeu-o com a
cisnes levantaram vôo e, batendo as asas vivas e velozes, sua asa e murmurou: «Ficaríamos muito contentes se Aedh viesse
ao nosso encontro ... » cicatrizadas. Já recuperados, começaram então logo de manhã a
voar até às costas da Irlanda e da Escócia mas, todas as noites,
Pouco depois, lá apareceu Aedh, de cabeça erguida e as penas antes do pôr-do-sol, tinham de voltar ao Mar de Moyle.
secas, pois encontrara uma gruta para se abrigar. Finula
recebeu-o muito bem e, para reconfortar os três, colocou Aedh Um dia, quando sobrevoavam as costas da Irlanda, chegaram à
debaixo do peito, Conn debaixo da asa branca e Fiachra debaixo foz do Boyne e viram aí um grupo de cavaleiros de belo porte,
da asa esquerda, aconchegando-os a todos debaixo da sua ricamente vestidos de branco, que montavam cavalos muito ágeis
penugem que a todos aqueceu. e rápidos. «Sabeis quem são estes cavaleiros, filhos de Lir?»,
perguntou Finula. «É bem possível que sejam Filhos de Milé ou
«Ah, meus irmãos! », exclamou ela, «Foi terrível a noite que membros das tribos de Dana.»
passámos, mas esperam-nos outras ainda mais cruéis!»
Aproximaram-se da margem do rio para identificarem os belos
E, com efeito, eles tiveram de permanecer durante muito tempo cavaleiros que, ao aperceberem-se deles, também se
no Mar de Moyle, resistindo ao frio e às privações, e sendo aproximaram Para estabelecer conversação. Estavam entre eles
visitados muitas vezes pela neve. Jamais eles tinham passado tão dois filhos de Bobdh Derg,
mal! Choraram e gemeram lamentando a triste sina, fustigados
pelo frio da noite, pela neve muito espessa e pelo vento glacial Aedb do espírito ágil e Fergus o Sábio, e com eles havia também
que lhes cortava a pele e lhes chegava aos ossos! Depois de dois nobres das tribos de Dana. Tinham deixado a casa de Bodh
terem penado nesta situação durante um ano inteiro, abateu-se Derg para irem à de Lir onde iria ser celebrada a Festa da Idade.
sobre eles uma noite ainda pior: estavam então na Ilha das Os cisnes identificaram-se então como sendo os filhos de Lir e os
Focas, a água gelava à sua volta e, como estavam sobre as nobres das tribos de Dana, muito satisfeitos Por encontrá-los,
rochas, as suas patas, as asas, as penas começaram a enregelar, deram-lhes as boas vindas e quiseram saber da sua sorte. Depois,
colando-se de tal modo à pedra que nem conseguiam fazer um Finula quis saber notícias de Lir, de Bobdh Derg e de todos os
movimento. Após fazerem um grande esforço para se libertarem, chefes do povo feérico.
finalmente conseguiram-no, mas deixaram sobre a rocha a pele
das patas, muitas penas e a extremidade das asas. «Ah, filhos de «Estão todos bem de saúde e mantêm as suas qualidades, como
Lir», disse Finula, «é muito triste a situação em que nos quando vós estáveis entre nós», responderam-lhes. «Vivem nos
encontramos, pois a água salgada provoca-nos uma dor intensa mesmos lugares e amanhã reúnem-se no palácio do vosso pai, na
ao tocar-nos, e apesar disso estamos condenados a não deixar o Colina Branca. Aí se celebrará a Festa da Idade num clima de
mar: além disso, corremos o risco de morrer se o sal penetrar grande alegria e felicidade, apesar de se lamentar a vossa
através das feridas que temos por todo o corpo.» ausencia, pois ninguém sabia em que e que vós vos havíeis
tomado desde a vossa partida do Lago Derg». «Ah, oxalá tenhais
Voltaram para a corrente marítima de Moyle com o sal a melhor sorte do que nós», disse Finula. «Desde então e até hoje
provocar-lhes dores intensas, estando condenados a penar passámos por terríveis e inimagínáveis provações, e sofremos
naquela situação aflitiva. E permaneceram junto à costa, intermináveis tormentos no fluxo e no refluxo das marés.»
sofrendo atrozmente até ao dia em que se acharam E logo a seguir ela entoou este canto:
completamente curados, com as penas saradas e as feridas
«Paira uma grande alegria no palácio de Lir Aí bebe-se cerveja e os trezentos anos que lhes tinham sido aprazados, dizendo Finula
hidromel, Contudo, fria é a noite quando descansam os quatro por fim: «Chegou a hora da partida. Dirijamo-nos agora para o
filhos do rei. De nada nos valem os nossos tetos Pois só as penas palácio da Colina Branca, onde vive o nosso pai com as suas
nos cobrem o corpo. gentes.»

Noutros tempos, os nossos vestuários eram de púrpura, bebíamos Os irmãos ficaram todos contentes e os quatro levantaram voo,
o doce hidromel; mas hoje o que temos para beber e comer e a parecendo que o ar tinha ficado mais suave e mais leve. Assim,
areia e a salgada onda do mar daí pouco tempo eles chegaram à Colina Branca e nela
pousaram, mas ficaram muito espantados e cheios de angústia ao
Tivemos outrora leitos bem macios feitos de penas de pássaros; verem que aqueles lugares estavam completamente desertos. Só
mas hoje os nossos leitos são rochas nuas que as vagas não se viam aí outeiros verdes e pedras dispersas forradas com
conseguem atingir, » urtigas. Os quatro então chegaram-se uns aos outros e todos eles
deram três gritos de dor e de lamento. Depois, Finula entoou este
Entoado este canto, os pássaros despediram-se dos cavaleiros e canto:
desapareceram nos confins do céu, Os nobres das tribos de Dana
puseram-se em marcha na direção do palácio de Lir, na Colina «Oh que triste! Tudo está deserto! Nem um teto, nem um lar!
Branca, e contaram a todos as provações por que tinham passado
os cisnes e como era triste a sua sina. «Nada podemos fazer por O meu coração enche-se de amargura ao ver no que se tornou
eles», disseram os chefes e os nobres, «mas ficamos contentes por este lugar Nem um cão, nem uma matilha, nem uma mulher, nem
saber que ainda estão vivos e temos a certeza de que serão salvos uma sombra, nunca tinhamos visto este lugar assim quando Lir o
no fim dos tempos.» nosso pai, nele reinava.
Os filhos de Lir, por seu lado, voltaram para o lugar onde viviam
no Mar de Moyle, onde ficaram tanto tempo quanto aquele que já Já não há taças nem bebidas inebriantes na sala iluminada, nem
aí tinham passado. Mas, um dia, Finula avisou os irmãos que jovens cheios de alegria nas salas de festas, durante osfestins.
precisavam de partir. «É chegada a hora em que deveremos Quando penso nos outros tempos o meu Coração pesa-me, e e
deixar este lugar maldito e partir para a angra de Dorimann. com uma grande magoa que veio este lugar deserto e
Mas esperam-nos outras provações, pois aí não teremos nenhum abandonado esta noite. »
lugar para aterrar nem nenhum abrigo contra as tempestades.
Partamos apesar disso nas asas do vento gelado, pois temos de Entretanto, Os filhos de Lir passaram aquela noite no lugar onde
cumprir a nossa triste sina.» se erguera o palácio do pai e onde eles tinham crescido. E aí
entoaram a doce música do povo feérico. Ao amanhecer,
Deixaram o Mar de Moyle e, chegados à angra de Dorrinann, levantaram voo, ergueram-se nos céus e viajaram para a ilha de
viveram uma vida cheia de desgraças e de tormentas. Certa vez, Clare. Quando lá chegaram todos os pássaros do país se
tendo o mar gelado à volta deles, imobilizou-os completamente. reuniram à sua volta, passando a chamar-se Lago dos Pássaros
Perante o lamento dos três irmãos, Finula consolou-os o melhor aquele lago onde se encontravam.
que pôde, lembrando-lhes que seriam salvos quando chegasse o
tempo da sua libertação. Viveram na angra de Dormiann durante Ora, aquele era o tempo em que o bem-aventurado Patrício tinha
levado a fé de Cristo para a Irlanda e o seu discípulo, que se mas estes voltaram com a notícia de que o santo eremita se
chamava Mohévog, se tinha estabelecido na ilha de Clare onde recusava a separar deles.
construíra um cemitério. Ao fim da primeira noite que passaram
nesta ilha, os filhos de Lir ouviram o som do sino que soava perto Então, a rainha Déoch ficou furiosa, de cabeça perdida, e jurou
dali. Ficaram muito espantados e cheios de medo, Pois jamais que não passaria nem mais uma noite com o rei se ele não lhe
tinham ouvido um som como aquele. Ouviram o som do sino trouxesse imediatamente à sua presença os pássaros que tanto
enquanto ele durou e em seguida puseram-se a entoar em surdina desejava. Lergnen foi por isso pessoalmente falar com Moliévog e
a doce música dos palácios feéricos. perguntou-lhe se era verdade que tinha recusado dar os cisnes.

Ao ouvir aqueles tons suaves, Mohévog, encantado com a tristeza «É absolutamente verdade», respondeu Moliévog o rei Lergnenn
daquele canto, pediu a Deus que lhe mostrasse quem era capaz ficou enraivecido. Entrou na capela onde estavam os cisnes e
de entoar aquela música tão bela que ele jamais ouvira antes. E, pegou neles, junto ao altar, preparando-se para os levar à rainha
na noite seguinte, teve um sonho que lhe revelou que os cantores com dois em cada mão. Mas mal ele tinha posto a mão neles,
eram os filhos de Lir. Na manhã seguinte, deslocou-se ao Lago caiu-lhes a penugem e, em vez de cisnes, apareceram diante dele
dos Pássaros e, vendo Os quatro cisnes na superfície das águas, três velhos magros e enrugados e uma velha decrépita, todos eles
aproximou-se da margem para ficar perto deles. «Sois os filhos descarnados e sem pinga de sangue. E Lergnenn ficou de tal
de Lir?», perguntou ele. «Somos», responderam eles. «Deus seja modo horrorizado com aquele espectáculo que se pôs em fuga.
louvado», disse Mohévog, «Pois o amor que tenho Por vós é que Então, disse Finula a Moliévog: «Santo homem, é altura de nos
me trouxe até esta ilha, que escolhi em vez de todas as Outras. baptizares, pois não vamos ficar muito tempo neste mundo.
Agora, filhos de Lir, vinde a terra e confiai em mim e seu Quando morrermos, cava a nossa sepultura e põe Conn no meu
sofrimento acabou e ficareis debaixo da minha proteção.»* Eles flanco direito e Fiactira no meu flanco esquerdo. Quanto a Aedh,
obedeceram-lhe, e Mohévog levou os para o Senipre que põe-no diante de mim, entre os meus dois braços. Apressa-te, pois
Moliévog celebrava missa, eles estavam prese seu eremitério. Os o nosso tempo está a chegar ao fim.»
quatro ficavam sentados em segurança e ao abrigo do frio e
tempstades. Mohevog mndou um hábil ferreiro fazer umas Moliévog sem demoras batizou os quatro filhos de Lir, e eles
correntes de prata brilhantes e meteu umas entre Aedh e Finula, e morreram daí a pouco tempo. Então, Mohévog enterrou-os de
outras entre Conn e Fiachra. E os quatro entoaram admiráveis acordo com as instruções que Finula lhe dera. Erigiu um pilar de
cantos que lhe encheram o coração de alegria. pedra na sepultura e gravou nele os seus nomes em ogham.
Depois, entoou umas orações para que os infelizes filhos de Lir
Naquele tempo, o rei de Connaught era Lergnenn, filho de conquistassem finalmente a paz eterna.”’
Colmann, e a rainha era Déoch, filha de Fingliinti. Eram o
Homem do Norte e a Mulher do Sul de que Aifé falara quando
lançara o seu sortilégio sobre os filhos de Lir, tendo previsto que Capitulo VIII
eles se encontrariam. Ora, ao ouvir falar nos cisnes, a mulher
ficou ansiosa por possuí-los. Pediu a Lergnenn para ir buscá-los, O tempo em que Bobdh Derg reinava sobre as tribos de Dana, os
e o rei respondeu-lhe que iria pedir a Moliévog para lhe confiar principais chefes do povo feérico visitavam-se frequentemente
os pássaros. Enviou então mensageiros ao encontro de Moliévog, entre si, encontrando-se nomeadamente para celebrarem em
conjunto a Festa da Idade. Entre os chefes havia um que era mais que ele se perdesse na escuridão da noite e andasse ao acaso por
famoso do que todos os outros, Eochaid Ollathair, pai do rei e um longo período de tempo, pensando apesar disso que a sua
mais conhecido pelo nome de Dagda. Este chefe era respeitado viagem só durara um dia e uma noite, o que o poupou às agruras
por todos, pois era capaz de fazer grandes prodígios como da fome e da sede.
desencadear tempestades ou apaziguá-Ias. Além disso, Dagda
era também capaz de proteger as colheitas, e fazia com que os Então, Dagda foi encontrar-se com Boann, e uniram-se com
gados tivessem sempre pastagens muito ricas, vindo-lhe daí o grande prazer de ambos. Foi tão profícuo o resultado da união
nome Dagda, que significa «deus bom». E as gentes das tribos de que daí a nove meses Boann deu à luz o rapaz mais belo e mais
Dana, quando precisavam de um conselho, nunca deixavam de o perfeito do mundo. «Que nome lhe vamos dar?», perguntou
consultar acerca dos acontecimentos do futuro, pois ele aliava as Dagda. «Chamernos-lhe Angus, ou seja, Escolha Unica»,
qualidades de adivinho às de mago. respondeu Boann, «pois ele é o fruto da minha união contigo,
tendo sido esta a única escolha da minha vida.»
Um dia, Elcinar deu um grande festim na sua residência de Brug-
na-Boyne e Dagda não pôde deixar de estar presente, pois O filho de Boann e de Dagda foi assim chamado Angus, mas ern
Elcinar era seu irmão, e seria uma grande desonra, perante as seguida passou a ser chamado com mais frequência Mac Oc, ou
tribos de Dana, se não prestasse homenagem a quem lhe era tão seja, «jovem rapaz», pois era o filho mais recente de Dagda e
próximo e possuía, sem dúvida, o mais belo palácio de toda a possuía todas as qualidades do pai, além de ter a beleza da mãe.
Irlanda, o festim durou três dias e três noites. Quando Elcmar voltou da viagem, o parto de Boann já ocorrera
há muito tempo, mas, longe de imaginar o que se passara, ele
Ora, Elcinar tinha uma mulher que se chamava Boann, e a beleza continuou convencido de que apenas estivera um dia e uma noite
desta era tal que, ao vê-Ia, Dagda ficou obcecado com a idéia de ausente da sua casa de Brug-na-Boyne.
a possuir. Por isso, ficou à espreita do momento propício para a
encontrar sem ninguém ver e, quando a ocasião surgiu, declarou- Antes do regresso de Elciriar, entretanto, Dagda enviara o filho
se-lhe sem vergonha nem reservas. «Eu unir-me-ei a ti de boa para ser educado na casa de Mider, no outeiro de Bri Leith. A
vontade», respondeu Boann, «mas receio o que possa fazer escolha recaíra sobre Mider porque nele Dagda depositava toda
Elciriar, pois ele é um mágico hábil e vingar-se-á de mim sem dó a confiança e sabia que ele daria ao rapaz a melhor educação
nem compaixão.» «É verdade que ele é um mágico hábil», disse possível entre os rapazes mais nobres de toda a Irlanda. Deste
Dagda, «mas eu sou mais hábil do que ele, e sei como o manter modo Angus, durante muitos anos, foi entregue aos cuidados de
longe de tudo o que nos diz respeito. Confia em mim, mulher, e Mider, em Bri Leith. Mider tinha um grande campo de jogos em
nada receies.» frente da sua residência de Bri Leith, e albergava nesta cento e
cinquenta rapazes e cento e cinquenta moças que tinham sido
Naquela mesma noite, Dagda pediu a Elciriar para levar uma confiados aos seus cuidados pelos chefes das tribos de Dana e
mensagem da sua parte a Bress, filho de Elattia, que vivia na cujos chefes dos Fir Bolg que habitavam ainda na Irlanda. Angus
Planície da Ilha. Na manhã seguinte, Elciriar deixou assim o era o grande campeão, pois tinha uma força e uma habilidade
palácio de Brug para levar a cabo a sua missão. Mas, tendo-se Inigualávels, e Mider tratava-o com tanto afeto como se ele fosse
ele afastado um pouco, Dagda lançou-lhe grandes encantamentos seu filho.
para que ele estivesse ausente durante um ano. Dagda fez com
Ora, um dia, Angus entrou em conflito com Triath, filho de Fébal, casa do meu pai, para que ele me reconheça e assim eu deixe de
do clã dos Fir Bolg e um dos chefes dos Jogos realizados por estar sujeito aos insultos dos Fir Bolg.»
aqueles que estavam a ser educados no outeiro de Bri Teith.
Triath era também um dos filhos adotivos de Mider, que tinha por Mider partiu então com o filho adotivo ao encontro de Dagda.
ele muita consideração. Triath acabara de criticar Angus por ter Quando chegaram a Uisnech de Meath, no centro da Irlanda,
ajuizado mal sobre o vencedor duma partida, e o jovem onde naqueIa época vivia Dagda, encontraram-no a meio de uma
enfurecera-se. «Só me faltava ter de levar lições do filho de um assembléia dos chefes e dos nobres das tribos de Dana. Mider
servo!», gritou ele. chamou-o e pediu-lhe Para se retirar por um pouco para
conversar com o jovem que o acompanhava. Dagda deixou a
Acontece que Angus pensava que Mider era seu pai e que iria assembléia o foi logo ter com eles. «Pois bem, que deseja este
herdar dele a posse de Bri Leith, mal podendo suspeitar do seu jovem guerreiro que nunca aqui tinha vindo?» «É seu desejo ser
parentesco com Dagda. Mas, ao ser injuriado, Triath reconhecido pelo pai», respondeu Mider, «e que lhe sejam dadas
sobressaltara-se e retorquira: «E a mim só me faltava ter de terras, pois não é justo que o teu filho nada tenha tendo tu vastos
suportar que me levante a voz um mercenário que nem conhece o domínios em toda a Irlanda.» «Concordo contigo, e fico muito
pai nem a mãe!» satisfeito por poder dar as boas vindas a um filho», disse Dagda,
«Acontece, no entanto que não tenho nenhuma terra livre nos
Ao ouvir aquelas palavras, Angus ficou espantado e estonteado, e meus domínios para poder satisfazer o seu desejo.» «Tu não
foi logo ter com Mider, pois queria saber se correspondiam à podes, no entanto recusar terras ao teu filho», insistiu Mider. «Eu
verdade as palavras de Triath. «Que se passa?», perguntou-lhe sei», disse Dagda, «preciso apenas de um tempo para encontrar
Mider ao vê-lo chegar com um ar sombrio e com os olhos uma solução, e depois o seu desejo será satisfeito.»
marejados de lágrimas. «Estou muito ofendido com Triath, o filho
de Fébal», respondeu Angus. «Ele atirou-me à cara que não Dagda foi aconselhar-se com Mananann, filho de Lir, e, depois
tenho pai nem mãe.» «Isso é falso», disse Mider. «É verdade que de ter exposto o caso, ponderaram os dois sobre o procedimento
eu não sou teu pai, embora te tenha criado com um amor de pai, a tomar. «Eu dar-lhe-ei de boa vontade o domínio de Brug-na-
mas Posso assegurar-te que tens um pai e uma mãe.» «Então», Boyne», explicou Dagda, «mas como havemos de consegui-lo de
disse Angus, «Peço-te que me digas quem é a minha mãe e onde Elcinar? Ele nunca o quererá dar ... » «Talvez se consiga alguma
poderei encontrar o meu pai.» «A tua mãe é Boann, a mulher de coisa...», respondeu Mananann. «Ouve bem o que te digo sobre o
Elcirtar de Brug-na-Boyne, e o teu pai não é Elcrnar, mas que temos a fazer: Elciriar convidou os chefes e os nobres das
Eochaid Ollathair, mais conhecido pelo nome de Dagda. Foi ele tribos de Dana para a celebração da Festa da Idade na casa de
que me incumbiu de te educar, às escondidas de Elciriar, para Brug-na-Boyne, na véspera do próximo samain. Faz com que o
que este não ficasse ofendido por teres nascido na sua ausência. teu filho te acompanhe e eu pela minha parte farei com que lhe
É esta a verdade, meu rapaz, e não quero que me censures por te seja atribuído o domínio de Brug, com o próprio consentimento
não ter revelado mais cedo as tuas origens. Era preciso antes de de Elcinar, e sem que alguém possa opor-se»
mais proteger a tua mãe, pois se Elcinar tivesse tido
conhecimento do que se Passou, ter-se-ia vingado dela.» «Muito Deste modo, Mananann, Dagda e Angus partiram juntos para as
bem», disse Angus, «fico-te grato por me revelares que não sou margens do Boyne, que tinham a erva seca coberta de orvalho.
um rapaz sem pai e sem mãe. Agora, vou-te pedir que me leves a Foram aí recebidos com todas as honrarias, e na sala do festim
havia palha e rosas frescas para que eles pudessem dispor de o teu escudo púrpura e sobre a tua espada que agirás
todo o conforto. A sala era bela e suntuosa: o chão era de bronze, rigorosamente de acordo com o que te direi.» Angus prestou o
de uma porta à outra, placas de bronze branco ornamentavam as juramento que Mananann exigia dele. «Muito bern», continuou
paredes, e havia animais de todos os géneros finamente Mananann, «fica a saber que Elemar não é o dono legítimo desta
esculpidos a decorarem os leitos. Elernar dera ordens aos seus residência e que o território de Brug não deverá continuar na sua
criados para irem aos lugares mais remotos da Irlanda pescar e posse. Quando voltarmos para a sala para nos regalarmos com
caçar pássaros e outros animais, em honra dos visitantes. Os as bebidas do festim irás ter com Elcinar e, desembainhando a
chefes das tribos de Dana sentaram-se para o festim, Bodgh Derg tua espada, ameaçá-lo-ás de morte, mas nada lhe farás, desde
ao meio, Mananann à direita e Dagda à esquerda. Mais que ele prometa satisfazer a tua vontade que se traduzirá em
afastados, encontravam-se Mider e Angus, com Elemar e ficares senhor de Brug por um dia e uma noite. Ele não poderá
Goibniu. recusar e, assim que se tiver esgotado o tempo, ele pedir-te-á
para voltar a ser o senhor de Brug, e tu dirás simplesmente que o
Os convivas sentiam-se felizes e estavam de bom humor, pois tempo no mundo se mede por dias e noites, e que ele nada mais
eram obsequiados com os melhores manjares e as melhores tem aqui a fazer, pois deu Brug por uma eternidade.»
bebidas que se possa imaginar. Vieram músicos recordar-lhes
Outros tempos, e reeitaram-se poemas em que se exaltavam Voltaram todos para a sala do festim, e Angus seguiu à risca o
grandes proezas das tribos de Dana quando tinham guerreado conselho de Mananann. Elcinar deixou-o ser senhor de Brug por
contra os Fir Bolg e os Fomore. Depois, todos se foram divertir uma noite e um dia. Mas, consumado aquele tempo, quando
no prado em frente à fortaleza e, nessa altura, Manannan chamou reivindicou a devolução do seu domínio, Angus lançou-lhe um
Angus à parte para que pudessem falar sem serem ouvidos. «Esta encantamento mágico e ordenou-lhe que abandonasse Brug o
casa é muito bela, ó Angus», disse Mananann, «e nunca vi mais depressa possível. E, ao ouvir aquela ordem, Elcinar
nenhuma tão bela na Terra da Promessa. Que bem situada ela compreendeu que não tinha alternativa senão partir.
está, num lugar tão aprazível, nas margens do Boyne, e na
fronteira das cinco províncias! Se estivesse no teu lugar, Angus, E assim Elcinar saiu da sua casa com todas as
não ficaria descansado enquanto esta residência não fosse suas gentes, tanto homens como mulheres. Ninguém que se
minha, e lançaria encantamentos sobre Elcinar para o intimar a encontrasse na assembléia poderia evitar aquela situação, nem
deIxá-la imediatamente de forma a poder ficar na sua posse. poderia protestar contra a injustiça, pois o encantamento era tão
Estamos na véspera de Samain e como sabes, durante a noite de poderoso que a todos afectava por igual, sendo impossível fugir-
Samain, o tempo deixa de existir. Bastar-te-á por isso pedir a lhe. Mas, assim que à noite se viu no prado cheio de humidade,
Elemar que te deixe ser senhor de Brug durante uma noite e um Elemar lamentou-se perante a mulher e todos os que o rodeavam:
dia: ele estará tão entretido com a bebida que nem se aperceberá «Que desgraça se abateu sobre vós, que pertenceis à minha
de que, no decurso da festa do Samain, uma noite e um dia família e ao meu clã. É muito triste que tenhais de deixar Boyne e
equivalem a uma eternidade.» «Porque me dás esse conselho?», Brug, e sentireis uma grande mágoa e um grande sofrimento
Perguntou Angus. «Eu explico-te o motivo», respondeu quando estiverdes muito longe daqui, exilados em países
Mananann. «Como o teu pai quer que adquiras terras, desconhecidos. Como é evidente, foi Mananann quem
encarregou-me de te instruir sobre o que há a fazer.» «Nesse maldosamente ensinou Angus a agir daquela forma. Ali, estou tão
caso», disse Angus, «seguirei o teu conselho.» «Jura então sobre consternado e tenho o coração tão partido que nem me importo
se tiver de morrer!”
Entretanto, antes de deixar aqueles lugares, Elcmar chamou Angus levantou-se e interrogou os criados, mas nenhum deles
Dagda para perto de si e perguntou-lhe: «ó Dadga, tu que és o vira a beldade, e ninguém lhe soube dizer para onde ela fora. Ele
mais sábio de todos nós, que pensas da ação perversa de que fui voltou a deitar-se mas ja não conseguiu adormecer, tantas vezes
vítima?» «Penso que a ação não foi perversa, mas justa», o visitava a imagem graciosa da jovem. E assim ele permaneceu
respondeu Dagda. «Daqui para a frente é a este jovem guerreiro até de manhã, altura em que se encontrava muito enfraquecido e
que a terra pertence. Ele apanhou-te de surpresa, num dia de paz triste. A forma que entrevira de noite, sem que lhe pudesse tocar
e de amizade, e permitiste que ele fosse senhor dos teus domínios ou falar, pô-lo doente e a partir daí perdeu a vontade de comer.
porque te atemorizaste perante ele. Mas vou dar-te uma Entretanto, na noite seguinte, a exaustão fê-lo cair num sono
compensação: conceder-te-ei uma terra que não te será menos profundo, e voltou a vê-Ia, tendo ela nas mãos, desta vez, o mais
proveitosa que a de Brug.» «Que terra é?», perguntou Elcmar. belo címbalo que alguma vez vira. Ela tocou-lhe música, e depois
«Vou-te dizer: trata-se de Cletech, e dos três vales ficam em desapareceu da mesma maneira como aparecera. Angus ficou
volta. Fica a pouca distância daqui. Os jovens do teu clã poderão acordado o resto da noite e, de manhã, não quis comer. E todas
vir distrair-se na terra de Brug todos os dias, e tu poderás as noites aconteceu o mesmo: a jovem aproximava-se do seu leito
consumir os frutos da Boyne como antes.» «É bom que seja quando adormecia, mas logo lhe fugia ou lhe tocava uma música
assim», disse Elcmar. que o adormecia rapidamente.

Ele partiu em seguida para a colina de Cletech e mandou Isto durou um ano inteiro, fazendo com que Angus ficasse cada
construir aí uma fortaleza. Angus, o Mac Oc, por seu lado, vez mais fraco. E, como ele não confidenciava a ninguém os
permaneceu na residência de Brug-na-Boyne.(2) motivos da sua doença, todos à sua volta estavam muito
preocupados. Vieram vários médicos da Irlanda, mas nenhum
soube identificar a doença nem receitar os medicamentos
Angus dispôs da sua nova residência como muito bem entendeu. apropriados para o curar. Então, chamaram Fingen, o melhor
O intendente de Elemar não tinha seguido aquele, e veio médico do Ulster que conseguia fazer um diagnóstico certeiro de
apresentar-se ao seu novo senhor, com a mulher e o filho. Angus qualquer doença simplesmente olhando para o doente, e que, ao
disse-lhe que manteria todas as suas funções, e que ficaria sob a ver fumo a sair de uma casa, ficava logo a saber quantos doentes
sua proteção. E, desde então, o intendente foi-lhe devotado, havia lá dentro. Graças a esses seus dotes o tinham chamado à
fazendo os possiveis para que no palácio de Brug tudo corresse residência da Brug.
pelo melhor.
Ora, depois de ter examinado Mac oc com toda a atenção, não
Ora, uma noite dormia Angus serenamente, e teve de súbito uma conseguiu apesar disso identificar a doença de que ele padecia.
visão surpreendente. Em sonhos viu uma moça que vinha ao seu Então, Angus pediu que o deixassem ficar a sós com Fingen, e
encontro e se punha à sua cabeceira. Era sem qualquer dúvida a contou-lhe o que se tinha passado, insistindo muito na beleza da
mais bela jovem que alguma vez existira em toda a Irlanda. jovem que o vinha visitar todas as noites.
Angus quis agarrá-la com os braços para a trazer para a cama,
mas ela, com um salto, afastou-se até se confundir com a «o teu sofrimento é realmente atroz, pois amas profundamente
escuridão. uma mulher que está sempre ausente», disse Fingen. «É ela que
me põe doente», disse Angus. «Adoeceste gravemente», continuou Pois deve ser agora o pai a tentar encontrar uma cura para ele.»
Fingen, «porque não quiseste partilhar o teu segredo.» «Eu não o
podia fazer, pois quem iria acreditar que uma jovem de rara Foram então enviados mensageiros a Dagda. Este deu-lhes as
beleza, extremamente distinta, me vem visitar com um címbalo boas vindas e perguntou-lhes que bons ventos os levavam ali.
todas as noites e me toca música maravilhosa, sendo por isso que «Ora!», exclamaram eles, «o teu filho Angus está muito doente e
fiquei doente? E haverá cura para uma tal doença?» «Acredito Boann, a sua mãe, pediu que o vás visitar!»
que se encontrará uma solução», respondeu Fingen. «É óbvio Então Dagda apressou-se a tomar o caminho de Brug-na-Boyne,
que esta jovem vem ter contigo porque te ama profundamente. e Boann deu-lhe as boas vindas quando o viu vir ao seu encontro.
Porque a não vais procurar? Envia mensageiros a Boann, tua «Deves aconselhar o teu filho», dlsse-lhe ela, «pois está tão fraco
mãe, e pede-lhe para te vir falar.» e tão incapacitado para se mexer que nem sabemos como lhe
havemos de salvar a vida! Peço-te que o ajudes, pois está
Partiram então ao encontro de Boann, que estava na casa de profundamente apaixonado por urna jovem que o vem visitar
Cletech, e ela foi informada de que o seu filho estava doente. Ela todas as noites, mas que desaparece assim que ele acorda.
apressou-se e foi a Brug-na-Boyne, onde foi recebida por Fingen. Percorri a Irlanda de um canto ao outro, durante um ano, mas
«Eu estou a tentar curar o teu filho», disse este, «pois ele padece todos os meus esforços foram em vão. Que podemos fazer por ele,
de uma grave doença.» sábio Dagda, que conselho lhe podemos dar?» «De nada valeria
Fingen explicou-lhe o que provocava o enfraquecimento de Mac eu falar», disse Dagda, «pois não posso fazer mais do que tu.» «E
Oc, que estava a morrer por ter visto em noites sucessivas uma verdade», disse Boann, «mas tu és o mais sábio e o mais
jovem de grande beleza que lhe tocava música. «Eu penso», solicitado dos chefes das tribos de Dana. Manda consultar Bobdh
continuou Fingen, «que num caso destes só a mãe pode fazer Derg, o teu filho mais velho, pois ele é o nosso rei supremo. Ele
alguma coisa por ele. Se amas o teu filho, dá uma volta por esta deve saber melhor do que ninguem como se há-de ajudar Mac
ilha para saber se existe alguma jovem com a aparência que nos Oc.»
é descrita por Angus. A única maneira de o curar é encontrar a Dagda enviou então mensageiros para o Outeiro de Femen onde
jovem e levá-la à sua cabeceira.» nessa altura vivia Bobdh Derg, e este acolheu-os com muito boa
vontade. «Sede bem vindos à minha residência, caros servos de
Boann prometeu a Fingen que partiria sem demora a procura da meu pai Dagda», disse-lhes ele. «Que motivo vos traz aqui?» «o
beldade por toda a Irlanda, mas foi em vão que ela percorreu as estado preocupante de Angus, filho de Dagda», responderam
várias províncias, durante um ano, perguntando por ela a todas eles. «Há dois anos que ele está doente por ter visto uma jovem
as pessoas que encontrava: nem as gentes das tribos de Dana durante o sono, e a visão fê-lo perder a saúde. Ora, nós não
nem as dos Filhos de Milé lhe souberam indicar a existência de sabemos onde se encontra, na Irlanda, a Jovem beldade que ele
alguém que se parecesse com a jovem referida por Mac Oc. ama profundamente e que todas as noites lhe vem cantar músicas
Voltou por isso para Brug-na-Boyne muito desiludida e, mais muito suaves. Por isso te convocamos, ó rei, da parte de Dagda,
uma vez, foi falar com Fingen. «Não encontrei ninguém», disse para que mandes procurar em toda a ilha essa jovem de beleza
ela, «e estou muito preocupada com o que pode acontecer ao meu lnigualável.» «Ide dizer a Dagda, meu pai», respondeu Bobdh
filho. Que podemos fazer agora?» «Bem», disse Fingen, «já que Derg, «que a mandarei procurar, mas que preciso do prazo de
nem a própria mãe conseguiu descobrir um remédio para o seu, um ano para tentar encontrá-la.»
mal, deve mandar-se procurar Dagda para que fale ao seu filho,
Ao fim de um ano, os mesmos mensageiros voltaram a agarrar, e agora que a vejo em pleno dia, não posso aproximar-
apresentar-se na casa de Bobdh Derg, no Outeiro de Femen. me dela? A minha tristeza é agora muito maior.» «Ouve-me»,
«Vasculhei por toda a Irlanda», disse-lhes o rei, «e começava a disse Bobdh Derg. «Vou dar-te um conselho: esta moça é Caer
desesperar quando encontrei, no lago Bel Dracon, a jovem que Ibormaith, e o seu pai é Ethal Aribual do Outeiro de Uaman, na
procurais. Ide levar a notícia a Dagda, dizei-lhe que estou pronto província de Connaught. A única maneira de te aproximares dela
para levar Angus a esse lago para poder reconhecer aquela que e de a conquistares é falares com o pai dela. Mas ele só admitirá
viu durante o sono.» dar-te a filha se for forçado a isso ou se estiver debaixo do efeito
Sem perda de tempo, os mensageiros regressaram à residência de de algum encantamento.»
Dagda. «Temos boas notícias», disseram eles, «a jovem foi
encontrada! E Bobdh Derg manda dizer que está pronto para Angus e as suas gentes deslocaram-se então à residência de
receber Angus e para o levar ao pé dela para que a possa ver e Dagda, indo Bobdh Derg com eles. Boann encontrava-se lá, na
reconhecer.» companhia de Dagda, e Angus contou-lhes o que vira, descreveu-
Angus deslocou-se então de carro até ao Outeiro de Femen, onde lhes a moça, cuja beleza elogiou, referiu a figura tão distinta que
um grande festim lhe foi oferecido em jeito de boas vindas. Ao fim ela tinha, e lamentou que fosse tão inacessível e tão difícil de
de três dias e três noites de festividades, Bobdh Derg disse por conquistar. «Quem é ela afinal?», perguntou Dagda.
fim: «Chegou o momento de irmos ao lago Bel Dracon. Deves ver
a jovem para saberes se é a que te aparece em sonhos.» «Pelos deuses!», respondeu Dagda, «com muita pena minha,
nada posso fazer por ti, meu filho, pois esta moça não está sob o
Partiram então para o lago Bel Dracon e, entre as colinas, viram meu domínio. Ninguém conseguirá conquistá-la sem o
um espectáculo impressionante, pois havia aí cento e cinquenta consentimento de seu pai, e eu sei que ele só a cederá pela força
jovens, todas elas de uma beleza inigualável, divertindo-se nas ou se estiver debaixo do efeito de encantamentos.» «Era
margens do lago, rindo, cantando e folgando exuberantemente. conveniente», disse Bobdh Derg a Dagda, «que tu em pessoa
Formavam pares tendo a ligá-las uma corrente de prata, exibiam fosses a casa de Ailill e Maeve, pois é na sua provincia que se
colares de prata, à volta da cintura tinham correntes de ouro, e encontra a moça. Se tu lhes pedires ajuda, talvez eles possam
os seus cabelos eram de uma beleza estonteante.”’ Apesar de se fazer alguma coisa por ti.»
parecerem umas com as outras, de entre elas destacava-se à
primeira vista uma que era mais alta alguns centímetros. «Olha Sem demora, Dagda partiu então para a província de Connaught,
aquela ali», disse Bodh Derg a Mac Oc. «Não é a que te visitou com uma escolta de pelo menos sessenta carros e na companhia
em sonhos e te veio tocar música muito suave?» «Sim, é ela», do seu filho Angus. O rei e a rainha deram-lhes as boas vindas, e
respondeu Angus, «reconheço-a bem. Vou falar-lhe ... » «Isso não passaram uma semana inteira a festejar por entre comidas e
é possível», respondeu Bobdh Derg, «pois ela não depende da bebidas com que os presenteavam.
minha autoridade e ninguém se pode aproximar destas jovens.
Nada mais posso fazer por ti e não lhe podes falar, muito menos a «Porque haveis vindo?», perguntaram por fim Aílill e Maeve.
podes levar contígo. «Vou explicar-vos», respondeu Dagda. «Encontra-se nesta
província uma moça por quem o meu filho se apaixonou, mas
«Que hei-de então fazer?», perguntou Angus. «Eu estava doente com a qual não se Pode relacionar nem pode conquistá-la, o que
por poder vê-Ia só à noite, e por ela me fugir quando a queria lhe provoca uma profunda tristeza e mágoa. Vim a vossa
presença para vos perguntar de que modo se poderá chegar perto «Eu não devo traí-la», respondeu Ethal.
desta moça e conquistá-la.» «Quem é ela?», perguntou Ailifi.
«Caer Ibormaith, a filha de Ethal Anbual.» «Ora!», exclamou Então, Ailill ergueu-se e, desembainhando a espada, brandiu-a
Aílifi, «nós não temos nenhum poder sobre ela, mas mesmo assim sobre a cabeça de Ethal Aribual. «Eu arranco-te a cabeça se não
tudo faremos para que o teu filho a conquiste.» falares!», gritou ele. «Estou a ver que não me resta alternativa
senão falar», suspirou Ethal, «pois estais decidido a matar-me.
«Nesse caso», disse Dagda, «convém que chames o teu pai para Sabei então que na próxima festa de Samain ela estará com uma
que Possamos falar com ele.» «Assim farei», prometeu Ailifi o forma de pássaro no lago Bel Dracon, tendo na sua companhia
intendente de Ailill partiu imediatamente para o Outeiro de um maravilhoso grupo de cisnes. Todos estarão à superfície das
Uaman e, assim que se encontrou na presença de Ethal Aribual, águas, e será possível falar-lhes a partir da margem, Em
disse-lhe: «Venho da parte do rei Ailill e da rainha Maeve pedir contrapartida, quem quiser aproximar-se deles, não poderá ter a
para que os vás visitar pois pretendem falar-te.» «Não irei», forma humana.» «Está bem», interveio Dagda, «já sei o que hei-
respondeu Ethal, «pois sei muito bem o que eles pretendem. Fica de fazer.»
pois a saber que jamais darei a minha filha ao filho de Dagda.»
Foi então firmada a paz entre Ailill, Dagda e Ethal, sendo este
O intendente voltou para a fortaleza de Ailill e de Maeve e último posto em liberdade. Depois, Dagda e o filho voltaram para
contou-lhes palavra por palavra o que lhe dissera Ethal Aribual. Brug-na-Boyne. Mac Oc estava agora muito feliz, pois sabia que
«Que ímpertínente!», exclamou Aillil, «juro que a bem ou a mal o pouco faltava para conquistar a donzela por quem se apaixonara
traremos até nós, nem que tenhamos de humilhar os seus e cuja ausência o martirizava.
guerreiros!»
Ailill juntou então um grupo de homens armados que se pôs a Na noite anterior à festa de Samain, ele dirigiu-se então para as
caminho com a escolta de Dagda, Chegaram ao Outeiro de margens do lago Bel Dracon, sendo acompanhado pelo pai.
Uaman e, após terem lutado contra as gentes de Ethal Aribual, Aproximou-se da água e viu um maravilhoso grupo de pássaros
penetraram no outeiro e saquearam-no, com tal proveito que no brancos que cruzavam serenamente o lago e que estavam ligados
regresso levavam consigo sessenta cabeças de guerreiros e Ethal entre si por correntes de prata, tendo a coroá-los arcos de ouro.
Aribual como prisioneiro. Angus, com a forma humana, chamou a moça pelo seu nome e um
pássaro veio ao seu encontro. «Quem me charna?», perguntou
Quando chegaram pouco depois à fortaleza de Cruachan, Ailill ela. «E Angus, filho de Dagda, quem te chama. Peço-te, Caer,
disse a Ethal: «Dá a tua filha ao filho de Dagda.» «Não o farei», que venhas comigo, pois o meu amor por ti é tão grande que não
respondeu Ethal Aribual. «Para mais, mesmo que o quisesse não conseguiria viver nem mais um minuto se não viesses comigo
o poderia fazê-lo, pois o poder que a domina é muito mais forte para a minha residência.» «Eu não posso seguir alguém que
do que o que eu tenho sobre ela.» «Que poder é então esse que a possui a forma humana», respondeu o pássaro, e afastou-se.
domina?», perguntou Ailill. «Acontece muito simplesmente que
ela está sob o efeito de um sortilégio. Durante um ano inteiro, ela Então, Dagda tocou no filho com uma varinha mágica e druídíca,
tem a forma de um pássaro e no ano seguinte retoma a forma e Mac Oc tomou imediatamente a forma de um cisne majestoso.
humana, e ninguém consegue mudar essa situação.» «Muito «Bela Caer», gritou Angus, «podes agora vir comigo?» «Posso,
bem», disse Ailill, «e em que ano ela tem a forma de pássaro?» com certeza, mas na condição de me dares a tua palavra de
honra que me deixas voltar amanhã para o lago,» «Eu Prometo», «Julgo que devemos saudá-lo e recebê-lo bem, pois ele tem um
respondeu Angus, antes de se abraçar a ela. porte nobre e não revela nenhuma hostilidade contra nós.»

Naquela noite, eles dormiram juntos na forma de cisnes e, na Quando o guerreiro desconhecido chegou ao pé das gentes de
manhã seguinte, deram várias voltas ao lago e uniram-se Connaught, estas saudaram-no e deram-lhe as boas vindas.
fisicamente varias vezes. Depois ergueram-se no ceu, sempre na «Agradeço-vos a recepção calorosa», disse o desconhecido. «o
forma de pássaros brancos, e viajaram para Brug-na-Boyne. Aí, que te traz aqui?», perguntou-lhe Loégairé. «A esperança de que
em terra firme, Caer retornou a forma humana: nunca fora tão me possais ajudar» «De onde vens e quem és?», voltou Loégairé
bela, e Angus estava no auge da felicidade. Puseram-se os dois a a perguntar. «Sou das tribos de Dana», respondeu ele, «e chamo-
cantar a música suave dos palácios feéricos, e todos aqueles que me Fiaclina, filho de Rété. Sou um chefe respeitado entre os
ouviam aquela música ficavam a dormir durante três dias e três meus.» «Se é ajuda o que pretendes de nós», disse Loégairé, «nós
noites. E a moça ficou a partir de então a viver com Angus no dar-ta-emos de boa vontade se tios disseres o que pretendes.» «o
palácio de Brug-na-Boyne. motivo que aqui me traz é o seguinte: a minha mulher foi-me
raptada por Eochaid, filho de Sâl, que a levou para a sua
Desde então uma grande amizade passou a ligar Affill e Maeve, fortaleza. Inconformado, eu fui atrás do raptor, que morreu às
rei o rainha de Connaught, a Angus, o Mac Oc, último filho de minhas mãos. Entretanto, a minha mulher refugiou~se em casa
Dagda. E as gentes das tribos de Dana, assim como os Filhos de de um filho do seu irmão, GolI, filho de GoIb, cuja fortaleza se
Milé, ficaram todos muito felizes, de tal modo que os seus poetas, encontra no centro da Planície Agradável, e ele não ma quer
inspirados por esta história, nunca mais deixaram de compor devolver. Já o combati em sete batalhas, mas em todas elas fui
belas músicas e de escrever narrativas que partem os corações derrotado e não conseguiu reaver a minha mulher. Hoje,
mais sensíveis. travaremos uma batalha contra GolI, mas são poucas as nossas
possibilidades de a vencer se não tivermos ajuda. Por isso vos
CapítuloIX venho pedir auxílio, homens de Connaught, e estou disposto a
recompensar qualquer um de vós que se junte a mim e venha
Certa vez, os homens de Connaught estavam reunidos junto ao combater ao lado dos meus homens.»
Lago dos Pássaros, na planície de Aé, tendo sido preparado para
eles um grande festim que durou toda a noite. Ao romper da alva, Ditas estas palavras, o estranho deu meia volta e desapareceu na
eles levantaram-se e foram passear pelas margens do lago, vendo bruma, ficando os homens de Connaught a contemplá-lo
de súbito um homem írromper através da bruma: cobria-o um enquanto deixava os limites da terra firme e entrava lentamente
manto de púrpura com cinco dobras, e na mão segurava dois nas águas do lago com as quais se confundiu.
dardos de cinco pontas, tendo ao ombro um escudo de bossa de
ouro; à cintura trazia uma espada de punho de ouro, e uma bela «Seria para nós uma vergonha se não ajudássemos este
cabeleira dourada vinha pousar-lhe suavemente sobre os ombros. homem!», exclamou Loégairé.

«Vêem o homem que se aproxima?», perguntou Loégairé, filho de Cinquenta guerreiros dirigiram-se então para o lugar onde
Crimthann, um dos mais belos e nobres guerreiros de Connaught. tinham visto Fiachria desaparecer e, entrando nas águas e
descendo até à profundeza do lago, foram juntar-se a ele
dispostos a ajudá-lo. Ao verem diante deles uma fortaleza e, no daquela aventura, convidou Loéagairé e os seus cinquenta
prado, dois exércitos frente a frente, puseram-se ao lado de homens para um festim na sua residêncla. «Não sei como te
Fiachria, filho de Rété, que estava na fileira da frente. manifestar a minha gratidão», disse Fiachria a Loegairé, «mas
vou fazer-te uma proposta: fica comigo neste país e governemo-lo
«Agora que aqui chegámos», disse Loégairé, «preparemo-nos em conjunto, tu e eu. Tenho uma filha que se chama Der Greine
para fazer frente ao chefe dos cinquenta guerreiros que estão e, se ela te agradar, poderás desposá-la.»
diante de nós.» «Aqui estou», disse GolI, filho de GoIb, «e aceito
o desafio que me lançais! Lutemos, pois, se é esse o vosso Mandaram chamar a moça, cuja beleza e belo porte muito
desejo!» agradaram a Loégairé. Fiachria deu então a mão de Der Greine
a Loégairé e passaram a noite juntos. Por seu lado, os cinquenta
E começou logo ali uma violenta batalha, ao fim da qual guerreiros que tinham acompanhado Loégairé tiveram cada um a
Loégairé e os cinquenta homens que o acompanhavam foram os sua mulher, sendo escolhidas as mais nobres jovens do país. E
claros vericedores, deixando caídos sobre o campo de batalha todos ali permaneceram um ano inteiro.
Goll e os seus cinquenta guerreiros. Depois, avançaram e «Nós gostávamos de ter notícias do nosso país», disse então
saquearam tudo o que encontraram pela frente. «Onde se Loégairé a Fiachria. «Permiti que partamos.» «Se é esse o vosso
encontra a tua mulher?», perguntou Loégairé a Fiachna. «Na desejo, não vos contrariarei», respondeu Fiachria. «Mas devo
fortaleza, no meio da Planície Agradável», respondeu Fíachna, advertir-vos de uma coisa: ide de cavalo para o vosso país, mas
«mas tem a protegê-la um poderosíssimo contingente de homens assim que aí chegardes, de modo algum deveis pousar os pés.
armados.» «Fica então aqui», disse Loégairé, «enquanto eu lá
vou com os meus cinquenta homens.» Eles foram então às cavalariças de Fiachria onde escolheram
cavalos robustos e ágeis, deixaram a fortaleza, atravessaram
Foram então à fortaleza da Planície Agradável e viram o grupo bosques e plametes, e pouco depois encontravam-se nas margens
numeroso de homens que a guardava. Não se deixando intimidar, do Lago dos Pássaros. Ora, precisamente naquele dia os homens
investiram contra ele e, combatendo com valentia, abriram uma de Connaught estavam reunidos num festim, e Crimthann, pai de
passagem que dava para o interior da fortaleza. À entrada desta Loégairé, encontrava-se entre eles, Todos se lamentavam então
Loégairé gritou: «Nada vos pode valer! Os vossos chefes já de não terem notícias dos homens que tinham partido no ano
foram mortos, e GolI, de GoIb, morreu. Estamos na disposição de anterior.
lutar até vos termos morto a todos, Libertai, pois a mulher que
tendes como refém e em troca pousaremos as armas e poupar- Assim, quando viram Loegaire e os seus cinquenta guerreiros a
vos-emos a vida.» dirigirem-se na sua direção, surgindo das profundezas do lago,
ficaram todos contentes e foram recebê-los para lhes dar as boas
Aqueles que estavam no interior da fortaleza pediram um tempo vindas. «Não se aproximem!», exclamou Loégairé. «Viemos aqui
para responder, e Loégairé acedeu ao seu pedido. Retiraram-se para nos despedirmos de vós.» Trocaram então diversas
para ponderar e, pouco depois, a mulher saiu da fortaleza a informações sobre o ocorrido no ano em que tinham estado
entoar um canto de lamento pelo fato de terem morrido tantos separados. «Não nos deixes», pediu Crimthann, «pois no reino de
guerreiros por sua causa. Loégairé pegou-lhe pela mão e Connaught tu podes ter tudo o que desejas: ouro, prata,
conduziu-na até Fiachria que, muito contente com o sucesso pastagens férteis para o gado, cavalos rápidos e as mais nobres
mulheres de toda a ilha.» de Dana ficaram impacientes e acabaram por lhes impor provas
susceptíveis de desequilibrar a balança a favor de um ou de
Mas nem Loégarré nem nenhum dos seus cinquenta outro. «Já que sois tão fortes», disseram-lhes um dia, «fazei pois
companheiros quis ficar a viver no reino de Connaught, e depois com que os vossos porcos fiquem um ano sem comer, veremos
de se despedirem dos familiares e dos amigos, voltaram para as então qual das duas varas é a mais resistente.»
águas do lago. Pouco depois, entraram na fortaleza onde
Loégairé partilhava o poder com Fiachna. Rucht e Friuch lançaram encantamentos sobre os porcos que
tinham ao seu cuidado e, ao fim de um ano, ambas as varas
Este poder, entretanto, só era exercido sobre as tribos de Dana tinham não só sofrido por causa da falta de comida como os
que viviam no Connaught, pois Ailill e Maeve eram por seu lado porcos de Munster tinham emagrecido tanto como os de
rei e rainha dos Filhos de Mité. Segundo fora estipulado a seguir Connaught. «Pelo mal que fizestes passar os porcos», disseram-
à batalha de Tailtíu, estes últimos povoavam o território da lhes, «mais vale que deixais de cuidar deles!» E a ambos foi
Irlanda enquanto as tribos de Dana se estabeleceriam nos retirada a atividade de porqueiro. Além de ficarem estupefatos e
outeiros, sob as colinas e debaixo das águas dos lagos, não consternados, Rucht e Friuch não conseguiram resolver o seu
podendo as suas gentes ser vistas pelos Filhos de Milé senão problema de saber qual deles era o mais hábil. Decidiram então
quando o desejassem, pois tinham o dom da invisibilidade. mudar de forma durante um ano e rivalizar durante este período
Vivendo de acordo com o que tinha sido combinado entre eles, os para saber qual deles venceria melhor as dificuldades. E, de
dois povos mantinham excelentes relações e respeitavam-se comum acordo, tomaram a forma de corvo.
mutuamente.
Ao longo do ano, sobrevoaram a Irlanda e enfrentaram diversas
Ora, nesta época em que partilhava com Loégairé a soberania dificuldades. Mas, por muitas lutas violentas que fizessem entre
sobre as tribos de Dana que viviam em Connaught, Fiactina tinha si, não havia maneira de qualquer um deles ganhar vantagem ao
um hábil porqueiro chamado Rucht e este Rucht tinha uma outro. No dia primeiro do ano seguinte, compareceram perante a
relação de amizade com o porqueiro das tribos de Dana que assembléia de Munster, tendo voltado a adquirir a forma humana
residiam no Munster, o qual, de nome Friuch, não lhe ficava assim que pousaram no chão.
atrás em habilidade e reputação, Assim, sempre que faltavam
bolotas em Munster, Rucht convidava Friuch a levar a sua vara Foram recebidos com boas vindas e perguntaram-lhes o que
de porcos a Connaught e, por seu lado, quando faltavam bolotas tinham feito durante o ano sob a forma de pássaros. «Na
em Connaught, Friuch convidava Rucht para a apanha de bolota verdade», disseram eles, «não tendes motivo algum para estardes
em Munster. satisfeitos e para nos desejardes as boas vindas. Obrigaste-nos a
tentar demonstrar qual de nós é o mais hábil, mas não se chegou
Além desta entreajuda, os dois homens também costumavam a nenhuma conclusão. Devemos lembrar-vos que, por causa das
encontrar-se de tempos a tempos para fazerem jogos mágicos e provas que nos impusestes, haverá muitas mortes e a Irlanda terá
de prestídigitação. Ambos eram de uma habilidade inigualável, e muitas razões para se lamentar,»
as tribos de Dana procuravam saber qual deles era o melhor.
Mas, como não havia vencedor nem vencido nos torneios que Quiseram logo saber se eles se estavam a referir a uma guerra
realizavam, sendo de igual valor os dois concorrentes, as gentes em particular, obtendo como resposta: «Não o podemos dizer,
mas o certo é que todos os povos desta ilha, sejam as tribos de sua força e resistência. Um era o campeão de Ochall, que era o
Dana ou os Filhos de Milé, serão vítimas do que está para rei do Outeiro de Femen, em Munster, e o outro o campeão de
acontecer. Ninguém conseguira evitar um grande sofrimento e Fergria, que era o rei do Outeiro de Nento-sob-as-águas, em
duras penas e o sangue dos homens correrá nos rios e nos lagos. Connaught. Todas as campanhas levadas a cabo pelas gentes de
Agora, para satisfazer a vossa exigência e para ficarmos a saber Ochall, ficavam a cargo do seu campeão e o mesmo acontecia em
qual de nós é o mais hábil, iremos mudar de forma durante mais relação às campanhas realizadas pelas gentes de Fergria em
um ano inteiro.» Nento-sob-as-águas. A fama dos dois campeões espalhou-se
E imediatamente, deixando a assembléia, foi cada um para seu rapidamente pela Ilha Verde, sem que alguém soubesse de onde
lado. Um dirigiu-se para o Shamion, onde mergulhou eles tinham vindo.
transformando-se num Peixe enorme. O outro partiu para o
Suir(’) onde mergulhou e, por seu lado, também transformou num Entrementes, Ochall decidiu deslocar-se com as suas gentes à
enorme peixe. Depois, ambos, através dos nos, dos lagos e do assembléia que os homens de Connaught estavam a realizar junto
mar, nadaram ao encontro um do outro. Passaram metade do ano ao lago Raich, o cortejo de Ochall era notável: nele seguiam sete
no Sharmon e a segunda parte no Suir, e procuraram não se ferir vezes vinte carros e sete vezes vinte cavaleiros, e os cavalos, de
nem se cansar enquanto se perseguiam mutuamente. uma única cor, tinham riscas prateadas sobre o corpo. Várias
mulheres desmaiaram ao ver aquele cortejo, pois nunca na vida
Um dia, estando os homens de Connaught reunidos numa tinham visto um espectáculo tão esplendoroso. Quando
assembléia nas margens do Lago dos Pássaros, assistiram a um chegaram, os homens de Ochall deixaram Os carros e os cavalos
espectáculo extraordinário: dois peixes enormes lutavam nas no prado, sem ninguém a vigiá-los.
aguas com uma extrema violência, de tal modo que faíscas saíam
das suas escamas que mais pareciam espadas num combate cruel. Os homens de Connaught vieram ao seu encontro e deram-lhes as
E as faíscas, muito vivas e incandescentes, chegavam até às boas vindas, perguntando-lhes depois qual era o motivo da visita.
nuvens. «Nós viemos», respondeu OchalI, para realizar provas convosco
«fazer jogos para vermos quem é mais forte de
Ao fim de lutarem sem piedade diante dos homens de Connaught entre nós.» «Assím seja», responderam os homens de Connaught.
durante algum tempo, os dois peixes saíram do lago e, sobre a
margem, readquiriram a forma humana, sendo reconhecidos Durante todo o dia se fizeram jogos no prado e ao anoitecer
como os dois porqueiros. Fiachria foi então até perto deles e deu- juntaram-se todos num festim que durou até meio da noite. Mas,
lhes as boas vindas. «Não nos deveis dar as boas vindas», no dia seguinte, Ochall disse aos homens de Connaught:
responderam eles, «pois de nada valem as nossas lutas, que, «Estamos muito satisfeitos, mas agora eu quero que um de vós
como pudestes ver, são terrivelmente violentas. Continuamos sem lute contra o meu campeão, que se chama Rinn.» «Manda vir o
saber qual de nós é o melhor e tomaremos agora uma nova forma teu campeão.»
para pormos à prova a nossa habilidade.»
Ochall chamou Rinn, e este postou-se diante dos homens de
Após terem ficado à conversa durante algum tempo, despediram- Connaught que, ao vê-lo, ficaram de tal modo assustados que não
se de Fiachria e dos homens de Connaught e partiram cada um ousaram desafiá-lo, convencendo-se antecipadamente que iriam
para seu lado. Tornaram-se então dois campeões famosos pela ser derrotados.
Ora, naquele mesmo momento, todos viram um cortejo que se ganhasse vantagem ao Outro. Mais uma vez foram se mudando
aproximava, vindo do norte. Nele havia três vezes vinte cavalos para forma habitual, ou seja, a dois porqueiros Rucht e Fruich.
atrelados a carros e tres vezes vinte homens que montavam «vejam até onde nos levou a vossa loucura», disseram então.
cavalos negros, parecendo que cavalgavam sobre o mar. Estavam «Quisestes que lutássemos para pôr à prova a nossa valentia, e
todos mal vestidos e mal armados, e os cavalos que montavam, foi nisto que deu o desafio que nos lançastes. Porque quereis
magros e sujos, pareciam arrastar-se penosamente. Perante saber qual de nós é o melhor, atraístes grandes males e penas
aquele cenário tão miserável, puseram-se todos a rir, embora o para nós os dois, o que acarretará grandes males para esta ilha
cortejo tenha sido depois muito bem recebido e tenha sido no futuro.» «Que quereis dizer com isso agora», perguntaram-
Perguntado àqueles que o compunham o que desejavam. «Eu sou lhes então. «Acontece que no futuro uma guerra terrível e
Fergria, do Outeiro de Nento-sob-as-águas», respondeu sangrenta se abaterá sobre esta ilha, e isto por causa da nossa
orgulhosamente o chefe do cortejo. «Vim aqui com as minhas rivalidade. Como resultado dela muita dor e miseria se
gentes Para competir convosco. Entre os meus companheiros, espalharão pelos guerreiros desta ilha, sejam eles das tribos de
tenho um campeão tão poderoso que duvido que alguém deseje Dana ou dos Filhos de Milé. Melhor teria sido por isso se não
enfrentá-lo.» «pois bem», responderam os homens de Connaught, tivésseis incentivado a disputa entre nós doís.» «Nesse caso»,
«outro grupo antecipou-se ao teu, o de OchalI, do Outeiro de disseram os homens de Connaught, «o melhor será ficarmos por
Femen, e trouxe um campeão de tal forma temível que ninguém se aqui e considerarmos que tendes igual valor. Porque não pomos
atreve a enfrentá-lo.» «Façamos com que lutem um contra o um fim às disputas declarando-vos a ambos vencedores?» «Já é
outro», disse Fergita. demasiado tarde», mais deixaremos de nos bater um contra o
responderam eles, «e ja que fostes vós que quisestes que assim
Ao ver o campeão recém-chegado, que se chamava Faebal, a fosse»
assembléia ficou aterrorizada, e desmaiaram vinte homens de
medo e de emoção. Nenhum dos homens de Connaught teria Os dois deixaram a assembléia e desapareceram sem se saber
aceito o desafio, mas Rinn, o campeão de Ochali, ergueu-se exatamente que rumo tomavam, transformando-se em minhocas e
imponente e muito seguro de si e foi ao encontro de Faebal, «Eu mergulhando nas águas. Um deles foi para a fonte de Uaran
lutarei contra o teu campeão!», exclamou ele na direção de Garan, em Cormaught, e dizia chamar-se Tumue a quem o
Fergria. interpelava. O outro foi para o ribeiro do Glass Gruin, em
Cuaingé no UIster, e dizia chamar-se Crunniuc.
E, com efeito, atiraram-se um ao outro com uma incrível
ferocidade, durando o combate três dias e três noites. Um dia, o chefe da província do Ulster chamado Maga, filho de
Tão violenta foi a luta, os ferimentos provocados em ambos não Daré, velo banhar-se no Glass Gruind e viu, sobre uma pedra,
paravam de aumentar, ficando os corpos todos ensanguentados e um pequeno animal colorido que parecia uma minhoca. O animal
cheios de nódoas negras. Por fim tomou-se a decisão de os chamou Maga pelo seu nome, e ele, cheio de medo, quis sair dali
separar, por se recear que pudessem morrer de exaustão. Mas, imediatamente. «Não te vás», disse o animal. «Tens todo o
após um breve repouso, mudaram de aspecto e interesse em ficara conversar comigo, pois poderei dar-te alguma
metamorfoscaram-se em hediondos demônios do rio e depois informação preciosa «A felicidade está ao teu alcance, Maga,
arremessaram-se um contra o outro dando urros medonhos. E a filho de Daré. «o quê?», perguntou Maga, muito espantado.
luta que se seguiu durou três dias e três noites sem que jamais um Existe um barco cheio de tesouro, e ele está à tua espera no lugar
em que o curso de água se lança no mar. Se não acreditas em levava um vaso de bronze branco, para lhe a facilitar as
mim, vai ver com os teus próprios olhos.» Então Maga foi ao abluções. Mergulhou então o vaso na nascente e um pequeno
longo do rio até ao estuário, e aí viu um barco que tinha animal que lhe pareceu uma minhoca ficou preso dentro do
naufragado. Como não viu ninguém a bordo, entrou para dentro recipiente. Ela ficou a examiná-lo durante algum tempo, pois
dele e descobriu que estava cheio de jóias, de taças de ouro, e de tinha uma forma estranha e era multicolor, Ora, de súbito, o
urna grande quantidade de pedras preciosas. Depois de ter animal pôs-se a falar: «Rainha, tu és poderosa e respeitada, mas
ordenado as suas gentes para recolherem o tesouro e para o um dia faltar-te-á qualquer coisa e tu entrarás numa guerra
levarem para casa, Maga voltou rio acima ao encontro do lugar terrível para conseguires obter aquilo que te faltar.» «Que queres
onde vira o pequeno animal. «Pois bem», disse aquele, «acreditas tu dizer com isso, verme tão pequeno e insigníficante?»,
agora na minha palavra>» «Acredito», respondeu Maga. «Mas perguntou a rainha, cheia de surpresa. «Na verdade, ao invés de
quem és tu, que tens um aspecto tão esquisito e que me revelas ser um verme insignificante, sou capaz de tomar todas as formas
coisas escondidas?» «Já ouviste falar de Rucht e de Friuch, os que quero. Mas o destino está feito de tal modo que jamais
porqueiros de Connaught e de Munster?» «Já, e sei que a disputa encontrarei a paz enquanto for vivo. Queres saber quais foram as
entre eles nunca acabará pois são os dois igualmente habilidosos. formas que tomei desde que os homens da Irlanda me
enfeitiçaram?» «Fala, pequeno verme, e diz-me o que sabes.»
«Eu sou um dos porqueiros. Mas que relação têm contigo»
embora hoje tenha esta forma e seja conhecido por Crurinitic. Ele contou-lhe então que a razão da disputa com o seu amigo, as
Vou agora dizer-te outra coisa, Maga, filho de Daré: amanhã metamorfoses por que ambos tinham passado e as lutas
uma das tuas vacas virá beber água ao rio e, ao fazê-lo, erigolir- intermináveis que tinham travado sem nunca se conseguirem
me-á. Então ela engravidará e dará à luz um vitelo de belo porte livrar delas. «Mas», disse Maeve, «quando é que tu e o teu
e de cor negra que se chamará o Moreno de Cuaingé, Fica camarada conseguirão descansar?» «o desfecho está próximo, e
também a saber que amanhã, na fonte do Connaught, uma outra tu terás nele uma palavra a dizer, ó Maeve. Fica a saber que,
minhoca, parecida comigo, também será engolida por uma das amanhã, uma das tuas vacas virá matar a sede a esta nascente e,
vacas que pertencem ao reino Maeve. Também esta ficará ao beber água, engolir-me-á. Ela ficará grávida e dará à luz um
grávida e dará à luz um vitelo que, graças aos seus magníficos jovem touro dotado de uns cornos tão magníficos que se chamará
cornos, se chamará o Belo Cornudo de Aé. Virá por fim o dia em o Belo Cornudo de Aé. E fica também a saber que no Ulster, no
que dois touros provocarão uma guerra Glass Gruind, se encontra neste momento uma minhoca em tudo
terrível. Os dois touros acabarão por se enfrentar nessa guerra, e semelhante a mim. Amanhã ela será engolida por uma das vacas
nenhum sobreviverá a ela. Assim concluirão as nossas provas no de Maga, filho de Daré, que parirá um touro negro que se
futuro, Maga, filho de Daré, e isto é tudo o que te posso dizer.» chamará o Moreno de Cuaingé. E tu, rainha Maeve, desejarás
esse touro, porque ele será tão soberbo e poderoso como o Belo
Então, o pequeno verme muito colorido desapareceu na Cornudo de Aé. E nenhum touro da Irlanda se atreverá a mugir
profundeza das águas do Glass Gruind, deixando muito pensativo depois de o Moreno de Cuaigné e o Belo Cornudo de Aé o terem
e melancólico Maga, filho de Daré. feito.»

No mesmo momento, e naquele mesmo dia, a rainha Maeve foi-se Depois de pronunciar estas palavras, o pequeno verme de
refrescar à nascente de Uaran Garan no Connaught. Nas mãos múltiplas cores saltou para fora do vaso e desapareceu nas
profundezas da nascente. E a rainha Maeve voltou muito cercada por um lago. «Não vamos a essa casa», disse o cativo.
pensativa para a fortaleza de Cruachan. «A banheira que nela existe só deve servir para tomar banho,
para se refrescar o corpo ou para se lavar a louça depois de uma
Ao anoitecer daquele mesmo dia, Ailill e Maeve encontravam-se noite de sono. Vamos a outra.»
em casa, no interior da fortaleza, com todos os seus parentes, a
cozerem a comida no caldeirão. E tendo o rei e os seus Entraram então noutra e o cativo afirmou que aí havia com que
guerreiros feito na véspera dois prisioneiros, disse ele: «Aquele saciar a sede, pousando-o Néra no chão. Naquele lugar havia,
que for capaz de ir pôr o rebento de um vime à volta do pé de um com efeito, banheiras para se refrescar o corpo e para se tomar
dos cativos terá uma recompensa à sua escolha.» banho, mas não havia torneiras. No meio da sala encontrava-se
também uma cuba com lixívia. Depois de ter bebido um gole de
Escura como breu estava aquela noite. Todos os homens cada um dos recipientes para a água, o cativo soprou a última
quiseram vencer o desafio, mas todos logo voltaram sem terem gota sobre os habitantes da casa, que morreram todos, Depois
conseguido pôr o rebento de vime à volta do pé do cativo, na casa disso, Néra levou o prisioneiro para a casa das torturas.
das torturas, pois tinham muito medo dos fantasmas que
rodeavam a fortaleza. Então o jovem Néra ergueu-se e disse: Mas Néra viu então um cenário surpreendente: no lugar da
«Pois bem, irei eu, e vencerei o desafio que nos lanças.» «Se fortaleza, estava a colina queimada à sua frente e, entre um
assim for», disse Allill, «terás a minha espada de punho de ouro.» montão de cabeças metidas em estacas, reconheceu as cabeças de
Ailill, de Maeve de todos os seus familiares.
Néra envergou então uma sólida armadura e dirigiu-se para a
casa onde estavam os prisioneiros. A armadura, contudo, caiu- Entretanto, como uma multidão de guerreiros se confundia com a
lhe três vezes, dizendo-lhe um dos prisioneiros: «Tens de por um sombra, ele seguiu-os até penetrar no interior do outeiro. Uma
prego na armadura, ou jamais ela deixará de cair no chão.» Néra vez aí chegados, todos aqueles homens foram mostrar ao rei as
pôs então um prego na armadura e conseguiu segurá-la. «Es cabeças que levavam consigo. Néra, por seu lado, deixou-se ficar
corajoso», disse o cativo. «Sem dúvida», respondeu Néra, «e isso prudentemente para trás, ocultando-se. «o que é que fizestes ao
permitir-me-á obter como prêmio a espada de punho de ouro do homem que vos acompanhava?», perguntou-lhes o rei. «Não lhe
rei Ailil.» «Ouve», disse ainda o cativo, «já que és tão corajoso, fizemos nada, pois não estava com os outros». «Trazei-o à minha
põe-me às costas para que eu possa ir beber água contigo. Eu presença para que lhe possa falar.» Trouxeram Néra à presença
estava cheio de sede quando para aqui me trouxeram.» «Sobe do rei, que lhe perguntou: «Como vieste até aqui?» «Não o sei»,
para as minhas costas», respondeu Néra. «Mas onde é que te hei- respondeu Néra. «Eu segui os guerreiros que assaltaram e
de levar-te» «A casa mais próxima.» incendiaram a fortaleza.» «Está bem», disse o rei,
acrescentando: «Vai àquela casa onde te espera uma mulher.
Ao aproximarem-se da casa mais próxima, viram-na de súbito ser Diz-lhe que eu é que te mandei ao seu encontro e traz-me todos
cercada por uma corrente de fogo. «Não há nada de bom para os dias um feixe de lenha.»
nós nesta casa», disse o cativo, «pois onde existe fogo falta a E assim foi. A mulher deu-lhe as boas vindas, e ele dormiu com
discrição. Vamos à outra que está mais perto de nós.» ela naquela noite. E todos os dias, desde então, ele levava um
feixe de lenha à casa do rei. Mas todos os dias ele via um cego
Mas quando chegaram ao pé da casa mais próxima, viram-na ser que, carregando às costas um coxo, saía da casa do rei e se
dirigia para um muro em frente da casa. «É aqui?», perguntava o próprio poderás vir aqui sempre que quiseres. Agora parte, vai
cego. «É sim», respondia o coxo, «Agora vamo-nos embora.» ter com os teus.»

Muito espantado com aquela estranha cena, Néra acabou por Depois de colher áleas-rosas, alho selvagem e morangos, Néra
perguntar à mulher o que sabia ela àquele respeito. «o coxo e o dirigiu-se para a fortaleza, tendo a impressão de que
cego vão observar a coroa que se encontra escondida no muro», permanecera três dias no outeiro. Ora, ao chegar a casa
respondeu ela. «A coroa é um diadema de ouro que o rei põe encontrou aí Ailiii e Maeve, assim como os seus familiares, à
durante as festas, pois é mágica e dá poder a quem a ostenta. volta do caldeirão. «Cumpriste, o que te pedi?», perguntou Ailill.
Esconderam-na no muro para que ninguém, a não ser o rei, lhe «Cumpri», respondeu Néra, «mas vivi aventuras muito estranhas.
possa tocar.» «Mas porque e que aqueles dois vão juntos Fui a um belo país onde havia grandes tesouros, pedras
assegurar-se de que a coroa está sempre lá?», perguntou Néra. preciosas, ricos ornamentos, comidas muito saborosas e bebidas
«A explicação é simples: como um é cego e não vê nada, e o inebriantes. Mas os habitantes desse pais na proxima noite de
outro é coxo e não consegue andar, o rei fica certo de que a Samain vêm matar-vos e incendiar a fortaleza, a não ser que vós
coroa não será furtada.» «Uma coisa ainda me intriga», mesmos ides na véspera destruir o outeiro.» «Nesse caso», disse
continuou Néra. «Gostava de saber o que se passou no dia em Ailill, «nós iremos já sem falta atacá-los antes que eles nos
que entrei no outeiro. Pude observar que a fortaleza de Cruachan venham atacar. Ainda bem que fizeste esta viagem, ó Néra. Como
tinha sido destruída e incendiada, e que as gentes do teu povo recompensa pelo que fizeste ganharás a espada de punho de
mataram Ailill e Maeve, assim como todos os que lhe são ouro.»
próximos.» «Isso não é exato», respondeu a mulher. «Foi um
exército de sombras que foi à fortaleza. Mas o que viste acabará Três dias antes do Samain, Ailill avisou Néra de que ele deveria
por acontecer se não puseres os teus de sobreaviso.» «Mas ir então proteger a mulher e os seus bens. Néra voltou então ao
como?» «Levanta-te e vai ter com eles. Eles estão sempre de outeiro, e a mulher deu-lhe as boas vindas. «Vai agora a casa do
volta do caldeirão, cujo conteúdo ainda não foi comido. Diz-lhes rei», disse-lhe ela, «pois eu fui lá todos os dias levar um feixe de
para se manterem em guarda, na próxima noite de Samain, pois lenha em teu lugar, fingindo que estavas doente. E segura nos
os homens do outeiro deverão atacar nessa altura a fortaleza de braços o teu filho.»
Cruachan e todos os que aí se encontrarem. O que viste ainda
não aconteceu. Aconselha também Ailill e Maeve a virem atacar Néra tomou o filho nos braços, e depois foi levar um feixe de
o outeiro na véspera de Samain, pois há muito tempo foi lenha à casa do rei, como se nada tivesse acontecido. Ailill e
profetizado que este outeiro seria destruído por Ailill e Maeve, os Maeve reuniram os homens de Connaught e foram atacar o
quais se apoderariam da coroa do rei Bnun. Esta coroa outeiro. Depois de o destruírem, levaram consigo todas as
conceder-lhes-á a supremacia sobre todos os outros povos da riquezas que nele existiam. E foi assim que Ailill e Maeve
Irlanda.» «Mas eles pensarão que estou a inventar histórias se obtiveram a coroa de Briun que lhes conferiu a supremacia sobre
lhes disser que vim a este outeiro», disse Néra. «Leva contigo todos os outros povos da Irlanda.
frutos de verão», disse a mulher. «Fica também a saber que estou
grávida de ti e que darei à luz um rapaz. Quando o teu povo vier Néra, por seu lado, voltou para o outeiro com a sua mulher, o
destruir o outeiro, envia-me uma mensagem a avisar-me, para filho e o gado, ficando aí a viver desde então.
que eu possa refugiar-me num abrigo, com o teu gado. E tu
Naquela mesma altura, em Munster, reinava um rei chamado Depois de muito errarem, descobriram um belo lugar na planície
Failbe e dois filhos, Rib e Ecca. Tendo tido o desgosto de Failbé de Arbthenn. «Eis o lugar que nos interessa», disse Rib aos seus
que tinha de perder a mulher, Failbé desposara uma Jovem de companheiros. «Esta bela planície rica e verdejante será
grande beleza que se chamava EbIlu. Ora, esta EbIlu andava a excelente para a criação de gado, terá sempre alimento em
deitar o olho ao filho mais novo, Ecca, por quem estava abundância. E nós poderemos saciar a sede à nossa vontade
loucamente apaixonada. Ela enchia-o de atenções e manifestava nesta fonte que brota do solo em direção ao ceu.»
por ele tanto interesse que o rapaz acabou por perceber que
aquela afeição, longe de ser a que uma mãe tem por um filho, era
antes filha do desejo. Estabeleceram- se então na planície de Arbthenn, decididos a
residir aí para sempre. Mas, naquela mesma noite, quando iam
Ecca passou então evitar encontrar-se com Ebliu, pois não queria buscar água à fonte, esta transbordou bruscamente e inundou-os
provocar qualquer transtorno ao pai. Muitas vezes ia a caça com a todos. E foi a partir de então que passou a haver um lago no
os jovens da sua idade e chegava o mais tarde possível à casa meio da planície de Arbthenn.
real, mas isso de nada lhe valia, pois Ebliu fazia-lhe esperas e
arranjava sempre maneira de lhe dar a entender o quanto estava Por seu lado, Ecca, Ebliu e todas as suas gentes continuaram a
apaixonada por ele. Assim, tornou-se inevitável que Ecca se dirígir-se para norte, mas não encontraram nenhum lugar onde
tenha deixado seduzir por Ebliu e se tenha deitado no seu leito de se estabelecer. Andaram assim durante vários dias, parando
amor. apenas algumas horas à noite para descansarem os membros
fatigados e cuidar dos cavalos esgotados por puxarem carros
Durante algum tempo a relação passou despercebida a toda a muito pesados, Chegados por fim ao vale da Boyne,
gente. Mas, um dia, entrando o rei Failbé de surpresa no quarto, encontraram-se num prado que ficava na vertente de uma colina
viu a mulher e o filho juntos na cama. Foi tão grande a sua onde se situava o outeiro de Brug, que tinha um brilho muito
mágoa e a sua dor que pensou matar os dois logo ali, mas acabou incandescente ao pôr-do-sol.
por se acalmar e ordenou-lhes que abandonassem Munster
imediatamente. «Estamos muito cansados e Ja não conseguimos andar», disse
Ecca. «Fiquemos aqui, pois este lugar é fresco e aprazível, e
Deste modo Ecca, filho de Failbé, deixou o país do pai na poderemos montar as nossas tendas no sopé da colina, abrigados
companhia de Ebliu, com toda a criadagem que o servia. E o seu do vento.»
irmão mais velho, Rib, que não se dava bem com o rei Failbé, foi
atrás dele. Começaram a instalar-se mas, no alto do outeiro, Angus, filho de
Dagda, tinha estado a vê-los e ficara furioso por os intrusos
O grupo de exilados dirigiu-se para norte, esperando encontrar estarem a instalar-se nos seus domínios sem sequer se terem dado
aí um lugar aprazível para se estabelecer. Mas os druidas que os ao trabalho de lhe pedir autorização. Assim, deixando a sua casa,
acompanhavam disseram-lhes que não era conveniente que os ele veio ao encontro de Ecca que, após lhe ter censurado a sua
dois irmãos ficassem a morar na mesma residência. indelicadeza, intimou-o a partir imediatamente com as suas
Decidiram por isso separar-se e, enquanto Ecca continuou o seu gentes, pois não estava disposto a permitir que estragassem
caminho para norte, Rib e as suas gentes dirigiram-se para leste. aqueles pastos puros que cobriam a encosta. Feita a intimação,
voltou para Brug. pedras preciosas de todas as cores. «Cedo-te este cavalo sem
pedir nada em troca», disse ele a Ecca, «mas devo prevenir-te de
Como caía a noite, Ecca decidiu adiar a partida, preferindo uma coisa. Este cavalo não pertence a nenhuma raça que tu
esperar pela manhã para retomar a viagem. Montaram as tendas conheças e terás de ter o cuidado de o não deixar nunca parar,
rapidamente e, como todos estavam fatigados, dormiram seja dia ou noite. Não o deixes nunca descansar, pois, se o
profundamente. fizeres, isso causará uma grande catástrofe, a qual te será fatal a
Ainda estavam mergulhados no sono quando Angus apareceu no ti e aos teus.»
meio deles, mais furioso do que nunca. Lançou um encantamento
sobre Os cavalos de Ecca e de Ebliu, e todos os cavalos Os exilados, sem perda de tempo, retomaram a viagem e Viram
morreram imediatamente. «Procedeste muito mal, ó filho de maravilhados que o cavalo, na verdade, puxava sozinho todos os
Dagda», disse-lhe Ecca. «Nós não tencionávamos prejudicar-te e carros sem fazer um grande esforço. Entraram no Ulster e daí a
estávamos apenas a descansar até de manhã, Pois todos nós pouco avistaram uma planície muito verdejante rodeada de
estamos exaustos.» «Eu não vos dei permissão para que colinas, a planície de Neagh. «Eis um belo lugar para nos
ficásseis», gritou Mac Oc. «Sois vós os culpados por eu ter estabelecermos», disse Ecca. «Aqui existe erva em grande
lançado um encantamento sobre os vossos cavalos para os matar. abundância para criarmos o nosso gado, e o terreno é tão plano
Se tendes algo a lamentar, é a vossa presunção.» «Tu procedes que não teremos dificuldade em construir aqui as nossas casas.»
mal ao nos repreenderes tão vilmente!», replicou Ecca com
veemência. «Além de não respeitares os deveres de hospitalidade, Descarregaram os carros, mas, absorvidos pela tarefa,
privaste-nos dos nossos cavalos. Quem é que agora nos puxara esqueceram-se de vigiar o cavalo. No momento em que este
os carros com tudo o que têm dentro?» «Vós mesmos puxarei os parou uma fonte jorrou então do solo, lançando para o ar jactos
carros!», respondeu Angus. de água que se projectavam torrencialmente nos céus. Ecca
lembrou-se então da advertência de Angus e, muito perturbado
Então eles começaram a arrumar as tendas e quando tudo ficou com o fenómeno que provocara, mandou construir sem demora,
pronto, puseram-se corajosamente a puxar os carros. Mas como com pedras de grandes dimensões, uma casa à volta da fonte com
o terreno não era plano, tiveram uma grande dificuldade para os uma porta que vedava o caminho às águas torrenciais. Deste
fazer avançar, Angus observava-os a partir da sua casa, com um modo, a água deixou de correr e de inundar os terrenos vízinhos,
ar irónico, e disposto a dar-lhes outra reprimenda se não e Ecca decidiu edificar a sua própria casa perto da fonte para
deixassem a sua terra. Mas depois, vendo-os fazer um esforço tão melhor a vigiar.
desmedido, teve pena deles, desceu a colina e foi ao seu encontro.
«Esperai!», gritou ele. «Vou dar-vos um cavalo para vos Todos puseram mãos à obra e, Ecca encarregou uma criada da
compensar dos que matei. É um cavalo forte e poderoso que vos sua confiança de vigiar a fonte, ordenando-lhe que tivesse sempre
permitirá puxar todos os carros ao mesmo tempo.» a porta rigorosamente fechada, excepto quando as gentes da
fortaleza fossem buscar água à fonte.
Angus foi a Brug e voltou de lá com uma magnífico cavalo
cínzento, de pêlos brilhantes, a crina prateada e as patas Construiu-se assim uma cidade ao redor da fortaleza de Ecca e
robustas e ágeis. Trazia o belo animal arreios de prata este, com as suas gentes, dedicaram-se à criação de gado que ia
guarnecidos com fivelas em ouro onde estavam incrustadas pastar na erva abundante da planície onde também se cultivava o
trigo. Ebliu deu a Ecca duas filhas que se chamaram Ariu e
Libane. Numerosos chefes do UIster vieram visitar Ecca e
prestaram-lhe homenagem, tendo ele tanto sucesso que ficou
soberano de metade da província. E todos elogiavam as
excelentes qualidades de Ecca, filho de Failbé.

Quando chegou à idade de casar, Ariu desposou um poeta de


nome Curnan, que cheio de boa vontade percorria o país de lés a
lés recitando ou cantando profecias que pareciam desprovidas de
qualquer sentido: por esse motivo lhe chamaram Curnan, o
Simples. Curnan repetia constantemente que um dia um lago
surgiria por causa da fonte, sendo por isso urgente fazer barcos.
«Vejo esta planície cheia de morte e destruição», dizia ele. «Vejo
jactos de água a saírem da terra, jactos impetuosos e torrenciais.
Vejo o nosso chefe e todos os seus hóspedes engolidos pela fúria
das águas, Também vejo Ariu, a minha amada, levada pelas
vagas. Oh!, nem sequer a posso salvar. Todos morrerão nesta
planície, à excepção de Libane e de eu próprio. Que triste
destino... E vejo Libane a leste e a oeste: ela nadará muito, muito
tempo no vasto oceano, passando perto de costas misteriosas e de
ilhotas obscuras, e perto de grutas profundas imersas nas aguas.
Esta cidade desaparecerá, e só eu ficarei para chorar os que
partiram ... !» Era este o lamento que Cuman o Simples
constantemente entoava àqueles com que se cruzava, mas
ninguem o queria ouvir e todos lhe voltavam as costas quando o
viam aproximar-se.

Ora, um dia, a mulher que estava encarregue de vigiar a fonte


esqueceu-se de fechar a porta. Logo a água saiu da casa de
pedra e invadiu a planície, formando um grande lago que se
chama Lough
. vestidos com túnicas multicolores e com mantos brilhantes, e
seguiam o grupo três druidas coroados com díademas de prata
Naquele tempo havia um jovem herói chamado Fraech, que era o revestidos a ouro.
homem mais belo de toda a Irlanda e Bretanha. Tinha por pai
Idach de Connaught e por mãe Befinn, irmã de Boann, das tribos Quando se aproximavam de Cruachan onde residiam Ailill e
de Dana. Befinn oferecera-lhe dez vacas feéricas, brancas e com Maeve, a sentinela que estava na torre da fortaleza viu-os
orelhas vermelhas, e que produziam leite em grande abundância. desembocar na planície e foi anunciar ao rei e à rainha, aos
Na casa onde vivia encontravam-se cinquenta filhos de reis, todos gritos: «Vem ao nosso encontro uma companhia como nunca se
da mesma idade, com a mesma estatura e o mesmo aspecto que viu desde que reinais sobre Connaught. Juro pelo deus protector
ele, e encontravam-se também três harpistas muito talentosos. A da minha tribo que jamais se viu companhia tão brilhante e rica:
fortuna de Fraech era imensa, e a sua reputação estendia-se vêm com tal ligeireza e com tal aparato que nunca vi nada igual!
muito para além do Connaught. Quanto aos malabarismos e às habilidades que exibe o jovem que
se encontra no meio da companhia, ultrapassam tudo o que se
Acontece que Finnabair, filha de Ailill e de Maeve, que reinavam possa imaginar: ele atira o dardo para a frente e, antes que a
então naquela província, de tanto ouvir falar nas excelentes arma atinja o solo, sete cães com correntes de prata seguram-na
qualidades de Fraech, se apaixonou por ele sem nunca o ter em pleno ar.»
visto. Tendo chegado aos ouvidos de Fraech as pretensões da
jovem em relação à sua pessoa, ele decidiu então ir conhecê-la. A Ao ouvirem tão grande elogio, as gentes que se encontravam na
este respeito falou com as suas gentes, que lhe deram todo o fortaleza de Cruachan precipitaram-se para as muralhas para
apoio. «Mas», acrescentaram elas, «antes de ires para casa de poderem ver o grupo que se aproximava, e foi tal a pressa e a
Ailill e de Maeve, vai falar com a irmã da tua mãe e pede-lhe sofreguidão que várias pessoas ficaram esmagadas, tendo
para te dar presentes feéricos.» morrido dezesseis. Depois, o espectáculo que todos viram foi
impressionante: os membros do grupo deixaram os cavalos soltos
Fraech foi então à residência desta última, que se chamava pelo prado e libertaram os caes que, começando a correr
Boann e o recebeu com benevolência, dando-lhe o que ele lhe velozmente, num instante, às vistas das muralhas de Cruachan,
pediu: cinquenta capas, azuis como as costas de um escaravelho, caçaram sete gamos e sete raposas. Depois, os cães partiram
que estavam ornadas com broches vermelhos, cinquenta túnicas para um pântano e trouxeram de lá sete lontras que depositaram
brancas com adornos de animais em ouro e prata, cinquenta à porta das muralhas. Então, os membros do grupo sentaram-se
broquéis de prata com orlas vermelhas salientes, pedras na erva fresca e ficaram à espera.
preciosas que brilhavam à noite como raios de sol, e cinquenta
espadas de punho de ouro. Da casa de Boann, ele trouxe também Foram da parte de Ailill e de Maeve perguntar-lhes quem eram e
cinquenta cavalos que tinham como pendentes do pescoço sinetas de onde vinham, e responderam que Fraech, filho de Idach,
de ouro, e exibiam caparazões de púrpura, arreios de ouro e de desejava visitá-los. Disso foram então avisados o rei e a rainha,
prata decorados com figuras de animais e munidos de cinquenta dizendo Aílill: «Sejam bem vindos, com todo o vosso séquito!»
chicotes em latão branco que tinham na ponta colchetes de ouro;
trouxe ainda sete cães de caça equipados com correntes Fizeram-nos entrar e foi-lhes dada uma casa para repousarem.
prateadas, sete tocadores de trompa de cabelos longos dourados, Nela encontraram, da lareira ao muro, sete leitos dourados com
um frontão de bronze e divisórias de teixo vermelho à volta dos Dagda em honra deles. Com efeito, aquela, quando do
quaís corriam cintas de bronze. Sete cintas de cobre partiam nascimento deles, tinha provocado tristeza quando das primeiras
também, do caldeirão até ao tecto da casa. Esta, feita de abeto, dores da mae, provocara sorrisos e regozijo com o parto dos dois
era coberta com ripas e tinha dezasseis janelas com caixilhos em primeiros filhos, mas induzira ao sono quando do nascimento do
cobre. terceiro, pois o trabalho de parto foi muito penoso e a mãe
adormeceu. Quando esta acordou, quis comemorar o que sentira
Um caixilho de prata, e a seguir um frontão, uniam as travessas durante os seus partos.
da casa e cercavam-na de uma porta à outra.
Quanto a Maeve e a Fraech, jogaram xadrez durante três dias e
Após dependurarem as armas nas paredes da casa, Fraech e os três noites, sem sequer darem pela escuridão, pois das pedras
seus companheiros começaram a retirar das arcas pedras preciosas desprendia-se uma luz muito suave. Por fim, Fraech
preciosas. E quando Ailill e Maeve vieram cumprimentá-los e levantou-se. «Basta», disse ele, «que já ganhei esta partida, seja
dar-lhes as boas vindas, falaram de diversos assuntos durante qual for a jogada que fizeres a seguir. E não fiques aborrecida se
bastante tempo, dizendo-lhes depois a rainha: «É meu desejo te pedir para deixarmos de jogar.» «Desde que te encontras nesta
jogar xadrez com este jovem.» «Pois bem, se o desejas, que se casa», respondeu Maeve, «nunca os dias me pareceram tão
faça a tua vontade», concordou o rei, «mas entretanto seria bom compridos!» «Não admira», replicou Fraech, «estamos a jogar
que se fosse preparando uma refeição para os nossos hóspedes.» há três dias e três noites! »

Trouxeram um jogo de xadrez. O tabuleiro era esplêndido, todo Maeve ergueu-se, envergonhada por ter deixado os jovens sem
em bronze branco, com os cantos em ouro, e as peças eram de comer, mas disseram-lhe que eles tinham sido servidos com
ouro e de prata. Maeve começou a jogar com Fraech e, enquanto grande fartura. Então, ela pediu que lhes dessem ainda mais
decorria a partída, as gentes da casa coziam os alimentos. «Diz comidas e bebidas, para que se saciassem. Depois, Aílill e ela
agora aos teus harpistas para nos tocarem qualquer coisa», disse chamaram Fraech à parte e perguntaram-lhe qual era o motivo
Ailill a Fraech, e este ordenou aos harpistas: «Começai a tocar.» que o tinha levado a Cruachan. «Eu queria visitar-vos»,
respondeu Fraech. «E uma grande honra para nós», disse Ailill,
As harpas estavam guardadas em sacos de pele de lontra, «e estamos muito felizes por te conhecermos. Fica a saber que
debruados a couro escarlate com ouro e prata incrustados. As gostamos muito de te ter aqui conosco.» «Nesse caso ficarei
harpas eram de ouro, de prata e de bronze branco tendo em convosco uma semana», disse Fraech.
relevo as figuras de pássaros e de cães. Quando se tocava nas
cordas, as figuras corriam às voltas ao redor dos homens. Os Assim, durante uma semana ele ficou alojado na fortaleza de
harpistas começaram a beliscar as cordas, e provocaram um tal Cruachan. Os seus companheiros iam caçar todos os dias e
sofrimento e uma tristeza tão grande que morreram doze homens traziam caça em abundância, vindo visitá-los as gentes de
da casa de Ailill e de Maeve. Connauglit. Mas Fraech estava muito aborrecido por não ter
encontrado Finnabair, pois viajara por causa dela, estranhando
Estes músicos, excelentes melodistas, eram irmãos, e chamavam- que Ailill e Maeve não lha tivessem apresentado.
se Lamuriento, Risonho e Adorrnecedor. Eram assim chamados
de acordo com as diferentes melodias que tocara a harpa de Ora, uma manhã, Fraech levantara-se logo aos primeiros raios
de sol e, quando foi ao pátio lavar-se na fonte, viu Finnabair sempre que de ti necessitarmos numa expedição guerreira. Caso
tomar a mesma direção na companhia de uma criada. aceites as nossas condições, a nossa filha será tua.» «Pela minha
Imediatamente ele tomou-lhe as mãos e disse-lhe: «Vem falar espada e pelas minhas arrnas!», exclamou Fraech, «nem mesmoa
comigo, pois se aqui me encontro é por tua causa.» «Eu sei», Maeve de Cruachan eu darei um tal dote!» E, irado, deixou-os e
respondeu ela, «e ficaria muito feliz na tua companhia, mas isso abandonou a casa.
não é possível. O meu pai e a minha mãe pediram-me que me
escondesse de ti» «Aceitas fugir comigo?», perguntou Fraech. Ailill e Maeve retomaram a conversa. «A situação agravou-se»,
«Isso seria uma atitude insensata, pois sou filha de um rei e de disse Ailill, «pois agora ele é capaz de levar a nossa filha à força,
uma rainha. Quero no entanto que saibas que Isso não significa o que nos encherá de vergonha e de desonra perante os reis e os
desprezo por ti, pois a tua riqueza e a tua reputação são nobres da Irlanda. A meu ver, mais vale que acabemos com ele
suficientes para que a minha família consentisse em obteres a antes que nos deixe ficar mal.» «Isso não seria justo», disse
minha mão. Além disso, era contigo que eu preferia ficar, pois Maeve, «pois ele é nosso hóspede, e temos o dever de lhe prestar
amo-te desde que comecei a ouvir falar de ti. Toma este anel, que assistência e de o proteger. Matá-lo só serviria para nos
servirá para nos manter unidos. A minha mãe deu-me para o desonrar.» «Eu agirei de tal forma», disse Ailili, «que evitarei
guardar, e se perguntar porque não o trago comigo direi que o que a desonra caia sobre nós.»
perdi.»
Os dois imediatamente saíram da fortaleza e viram os cães na
Separaram-se logo em seguida, mas Ailill e Maeve foram caça. Estava-se a meio da tarde e os caçadores dirigiam-se para
prevenidos de que a sua filha se encontrara com Fraech. «Receio o lago para se refrescarem, seguindo-os Affill e Maeve.
muito», disse o rei, «que a nossa filha fuja com esse jovem.» «Disseram-me», disse Ailill a Fraech, «que és um nadador
«Poderíamos dar--lhe a nossa filha com todas as honras na excelente. Mergulha no lago para que possamos admirar o teu
condição de ele aceitar dar um bom dote e se se comprometer a talento.» «Como é o lago?», perguntou Fraech. «E igual aos
acompanhar-nos quando tivermos de fazer uma expedição outros», respondeu Ailifi. «Não tem nenhuns perigos e nele é
guerreira.» Naquele mesmo momento, Fraech entrou em casa. «A frequente tomarem-se banhos.»
vossa conversa é secreta’?», perguntou ele. «Se o fosse, não
poderias nela participar», respondeu Allifi. «Gostaríamos que Deixando o cinto na margem. Fraech despiu-se e mergulhou nas
nos dissesses o que desejas.» «Nesse caso, serei lesto a dizer-vos águas Ailill aproximou-se, baixou-se, pegou no cinto, abriu a
o que desejo», disse Fraech, que perguntou em seguida: «Quereis bolsa que estava dele pendente, onde descobriu o anel de
dar-me a mão da vossa filha» Finnabair, e reconhecendo-o imediatamente, atirou-o com um
gesto brusco para um lugar distante do lago. Entretanto, Fraech,
Ailill e Maeve entreolharam-se muito sérios. «Nós dar-te-ernos a sem nunca deixar de nadar, estivera sempre, a observar aquela
sua mão», afirmou Ailill, «desde que aceites dar-nos o dote que te cena. Seguiu o anel com os olhos e viu um salmão saltar para
pedir.» «o que desejas então?» «Três vintenas de cavalos de cor fora da água e engoli-lo, Sem perder tempo, precipitou-Se para o
acinzentada, com freios em ouro e prata, doze vacas leiteiras com peixe, agarrou nele, transportou-o para terra e pô-lo num lugar
capacidade para darem leite, cada uma delas, a cinquenta escondido da margem, no meio dum canavial. Depois, quando se
pessoas, e tendo cada uma delas um veado branco com orelhas preparava para sair do lago, gritou-lhe AiIiII: «Um instante! Vês
encarnadas. Peço-te também que jures que nos acompanharás aquela sorveira, naquele lado do lago? Acho muito bonitas as
suas bagas. Antes de vires ter conosco, vai lá e traz-me um transportassem para a fortaleza.
ramo.»
«Curem-no!», gritou ele, «e preparem-lhe um banho para que
Fraech nadou até ao outro lado do lago, chegou perto da possa lavar as feridas. Dêem-lhe também um caldo para que se
sorveira, arrancou-lhe um ramo, e transportando-a sobre um possa recompor.» Disse depois para Maeve: «Eu não deveria ter
ombro, nadou de volta ao encontro do rei. Enquanto isto procedido daquela maneira, pois o rapaz não tem culpa nenhuma
acontecia, Finnabair aproximara-se do lago e estivera a apreciar e, além disso, ele demonstrou muita coragem. Estou arrependido
os movimentos muito belos e ágeis de Fraech a nadar: nunca ela de ter procedido tão mal. Quanto à nossa filha, traiu-nos
vira um corpo tão branco, com uma cabeleira preta tão levando-lhe a espada. Os seus lábios calar-se-ão antes de
harmoniosa, e um rosto tão delicado, com os olhos azuis e os amanhã à noite, pois já não é possível tolerar tanta audácia e
lábios bem vermelhos. O coração acelerou-se-lhe e pôs-se a presunção.»
sonhar.
Entraram depois na fortaleza. Fraech estava a tomar banho,
Entretanto, Fraech aproximou-se da margem e arremessou o havendo mulheres à sua volta a esfregarem-no e a lavarem-lhe a
ramo da sorveira aos pés de Ailifi. «Estas bagas são cabeça. Deram-lhe a beber um caldo, depois retiraram-no da
magníficas!», gritou ele. «Nunca eu vi bagas iguais a estas. Peço- banheira e deitaram-no numa boa cama.
te, Fraech, que nos vás buscar outro ramo.»
Naquele mesmo instante, ouviu-se um grande lamento que se
Fraech deu meia volta e começou a atravessar o lago. Mas, espalhou por toda a Cruachan, e viu-se de seguida no prado três
quando chegou a meio, sentiu que, vindo do fundo, um monstro o cinquentenas de mulheres vestidas com túnicas de purpura, com a
estava a atacar. «Atirem-me a espada!», bramiu ele, «Estou a ser cabeça coberta com toucados e trazendo nos pulsos braceletes de
atacado por um monstro!» prata. Logo alguém foi mandado perguntar-lhes por que se
lamentavam daquela maneira e quem eram. «Nós lamentamo-nos
Mas, com medo de Ailill e de Maeve, ninguém se atreveu a atirar- por causa de Fraech, o filho de Idacha e de Befinn de quem é o
lhe uma arma. Então, Finnabair despiu-se num abrir e fechar de filho favorito, e o jovem mais amado de todas as tribos de Dana.»
olhos a atirou-se às águas com a espada de Fraech. Ao ver a
filha ter aquela atitude, Ailill disparou contra ela um dardo de Fraech, que ouvira o lamento, pediu para o deixarem ir ao
cinco pontas. O dardo atravessou as duas tranças da moça, mas encontro daquelas mulheres. «Reconheço entre os lamentos o da
Fraech agarrou-o com a mão direita e voltou-o contra Ailill com minha mãe e das mulheres de Boan», disse ele. Transportaram-
uma tal precisão que a seta atravessou o vestido púrpura do rei. no então para o prado, no exterior da fortaleza, e logo que o
Finnabair estendeu então a espada para Fraech, que exclamou: viram, as mulheres rodearam-no e levaram-no, desaparecendo na
«ó Finnabair, tu és mesmo a branca aparição”’ que me vem bruma que repentinamente se levantara e que cobria Cruachan.
salvar!»
Mas, no dia seguinte, quando a tarde ia a meio, viram Fraech
De posse da espada, Fraech cortou logo a cabeça do monstro e voltar na companhia das cinquenta mulheres. Estava curado de
arremessou-a para a margem. Estava no entanto exausto, com o todas as feridas e já vencera a fatiga. As mulheres que o
corpo branco cheio de feridas, ordenando Ailill que o acompanhavam eram todas da mesma idade, da mesma estatura,
igualmente belas, e tinham um aspecto feérico, não sendo está», respondeu Finnabair. «Nesse caso», replicou AiIIII, «vai
possível distinguir umas das Outras. Pouco faltou para que as procurá-lo. Se o não encontrares, juro-te que te faço a alma sair
pessoas morressem esmagadas, tal foi a precipitação quando do corpo!» «Isso não é justo!», Protestaram os presentes. «Tens
quiseram contemplá-las de perto. Elas deixaram Fraech à porta aqui riquezas suficientes para que nem dês pela falta do anel.»
do pátio principal e, depois de se despedirem dele, regressaram «Estou disposto a dar à tua filha objectos Preciosos como esse»,
pelo mesmo caminho por onde tinham vindo. Mas como, ao interveio Fraech, «pois ela salvou-me a vida, e estou-lhe muito
afastarem-se, elas continuaram a entoar o lamento com um grato por isso.» «Não insistas», disse Ailifl. « Se ela não trouxer
sentimento profundo, todas as pessoas que se encontravam o anel que lhe peço, nenhuma jóia que lhe dês a poderá salvar»
naquele momento no Pátio ficaram loucas. E é desta história que «Assim vou procurá-lo.» disse Finnaair «Não», gritou AiliII.«eu
provém o «Lamento das Fadas, muito conhecido de todos os sei muito bem que se deixares esta sala, desapareces da minha
músicos da Irlanda.”’ vista para sempre. Se pensas que escapas assim tão facilmente,
enganas-te. Mas permito que mandes alguém procurá-lo em teu
Fraech entrou imediatamente na casa de Ailill e de Maeve lugar.»
juntou-se toda a assembléia para o acolher e para lhe dar as
boas vindas, parecendo que ele vinha de outro rnundo.”’ o rei e a Finnabair incumbiu então a sua criada daquela tarefa. «Eu juro
rainha também se levantaram e exprimiram o seu pelo deus protector da minha tribo», disse Finnabaír, «que se o
arrependimento, pedindo-lhe desculpas pelo que lhe tinham feito. anel for encontrado, não ficarei nem mais um minuto em teu
Ele, por seu lado, saudou-os e fez as pazes com eles, começando- poder, e que farei a partir de então o que muito bem entender»
se depois os festejos. Entretanto, Fraech mandou chamar um «Se se encontrar o anel», exclamou Ailifi, «serás livre até de te
jovem do seu sequito dizendo-lhe: «Vai à margem do lago, a um encontrares com o rapaz das cavalariças.»
lugar onde eu estive no meio de um canavial e onde deixei um
salmão, Leva-o a Finnabair e pede-lhe para o preparar e para o Naquele momento, a criada entrou com um prato nas mãos. No
cozer bem. Diz-lhe também que o anel se encontra no interior do prato todos viram um salmão bem temperado e cozido,
peixe. Creio que ele nos poderá ser muito útil esta noite.» condimentado com mel e especiarias, estando o anel de ouro
sobre o salmão. Ailill e Maeve olharam-no muito espantados, e
Ailill e Maeve, comprazendo-se com a música e a bebida, não depois olharam para Fraech, que levou a mão ao cinto. «Parece-
tardaram a ficar embriagados. Então, o rei pediu ao seu me», disse ele, «que quando mergulhei no lago, a teu pedido,
intendente para lhe trazer as suas jóias, que foram, expostas à deixei o cinto na margem. No cinto havia uma bolsa pendente e
sua frente. «Que maravilha!», exclamaram os convidados. dentro dela estava este anel. Se realmente tens ainda uma réstia
«Nunca vimos uma riqueza igual!» Ailill ordenou então: de decência, Ailill, diz-nos o que fizeste ao anel.» o rei defendeu-
«Mandem vir Finnabair!» se o melhor que pôde, muito embaraçado:

Pouco depois, exibindo um vestido debruado ela «Este anel pertencia-me e dei-o a Finnabair, mas soube que ela o
apresentou-se perante o pai e toda a assembléia. «Minha flha», tinha dado. Foi por isso que, quando mergulhaste no lago, o tirei
disse-lhe o rei, «onde está o anel que a tua mãe te deu no ano da tua bolsa e o atirei à água. O que me espanta é vê-lo aqui. Por
passado para o guardares? Ainda o tens? Se o tiveres, traz-mo tua honra, ó Fraech, explica-nos este prodígío,» «É muito simples
para que todos possam admirar a sua beleza.» «Não sei onde ele ... », respondeu Fraech. «Ao dar-me este anel, a tua, filha ficou
comprometida comigo, o que te deixou incomodado. Enquanto encarregarei de te arranjar uma que te convenha.» «Não me
nadava, vi-te pegar nele e atirá-lo à água, e vi depois o salmão interessa o que dizes», disse Fraech, «pois de qualquer modo
engoli-lo. Nessa altura agarrei o salmão e escondi-o na margem, partirei em busca de Finnabair e das minhas vacas.»
de forma dissimulada. Ainda há pouco, antes do festim, mandei
buscá-lo para o dar à tua filha e foi ela que, ao mandar cozer o Deixou então a mãe e, acompanhado de três novenas de homens,
salmão, descobriu o anel. Assim se explica que ele esteja agora de um falcão e de um cão puxado pela trela, pôs-se a caminho e
perante ti.» chegou à província do UIster, onde encontrou Conall Cemach
com quem fez amizade. Disse-lhe este, acompanhando-o na sua
Aílill, terrivelmente perturbado, olhou para Maeve que se demanda: «A tua missão está condenada ao fracasso, pois
mantinha calada, e depois fixou o olhar em Fraech sem ser capaz prevejo que terás de passar por muitos tormentos e por muito
de falar. «Rei Ailill», continuou Fraech, «todos os que estão aqui sofrimento.» «Acompanhar-me-ás, seja qual for o perigo?»,
presentes ouviram as palavras que pronunciaste ainda há pouco. perguntou Fraech. «Nunca recusei ajuda a um amigo»,
Tu disseste que, se o anel fosse encontrado, ela poderia partir, respondeu Conall. «Acompanhar-te-ei para onde quer que vás.»
nem que fosse com o moço das cavalariças, segundo as tuas
próprias palavras.» «Tu sabes muito bem», exclamou Finnabair, Juntos atravessaram então o mar e o norte da ilha da Bretanha,
«que só a ti trago no coração!» «Pelos vistos», suspirou Ailill, entraram no mar de Wight, erraram muito tempo na Gália e por
«tenho mesmo de te dar a minha filha. Exigir-te-ei no entanto fim avistaram as montanhas dos Alpes. Quando aí chegaram,
uma única coisa: que jures acompanhar-nos em todas as viram uma moça que pastava carneiros.
expedições guerreiras em que necessitemos da tua ajuda.»
«Vamos falar-lhe», disse ConalI, «enquanto as nossas gentes
Fraech ficou assim na fortaleza de Cruachan e dormiu com a esperam aqui por nós. Sem dúvida, ela poderá prestar-nos
donzela. Na manhã seguinte, despediu-se do rei e da rainha de informações sobre este país.» Foram então falar a moça que, ao
Connaught e, com todas as suas gentes e Finnabair, regressou saber que eles vinham da Irlanda, começou a chorar. «Porque
para a sua residência. choras?», perguntou Fraech. «A minha mãe veio da Irlanda, tal
como vos», respondeu ela, «mas podeis ter a certeza de que não
Pouco tempo depois, a pedido de Ailill e de Maeve, ele veio está cá de sua livre vontade. Estais num país horroroso e terrível,
ajudá-los numa expedição guerreira. Mas, logo que regressou, povoado por jovens guerreiros cruéis e traiçoeiros que andam
soube que lhe tinham roubado as vacas e que a sua mulher por todo o lado a roubar tesouros, vacas e mulheres.» «Qual foi a
desaparecera. Foi a mae que lhe veio anunciar: «A tua ausência última coisa que roubaram?», perguntou ConaIl. «Eles roubaram
não foi nada feliz, pois provocar-te-a um grande sofrimento. a mulher e as vacas de Fraech, filho de Idach, de Connauhgt, na
Roubaram as tuas vacas e levaram Finnabaír. Três das tuas Irlanda. A mulher encontra-se na fortaleza que existe lá em cima,
vacas estão na Escócia do norte, no território dos Pictos. E as e as vacas vão agora pastar para a encosta da montanha.» «o
outras, assim como a tua mulher, estão nas montanhas dos Alpes. que e que nos aconselhas?», perguntou Fraech. «Penso que
(’) «Eu vou à procura dela!», exclamou Fraech. «Não vás!», devereis ir-vos encontrar com aquela mulher que está a levar as
disse a mãe, «pois se o fizeres a tua vida correrá um grande vacas a pastar. Dizei-lhe por que estais aqui e ela, que veio da
perigo. Eu dar-te-ei outras vacas.» «Mas, e Firinabair?» «Na Irlanda, saberá aconselhar-vos melhor do que eu.»
Irlanda há mulheres tão belas e nobres como ela e eu própria me
Apressando-se, Fraech e Conall foram então ao encontro da fecho todos os dias antes de cair a noite. Vós entrareis assim na
mulher que tomava conta das vacas na encosta da montanha. Ela fortaleza assim que os guardas estiverem a dormir e em seguida
deu-lhes as boas vindas e perguntou-lhes de onde vinham: «Nós fareis o que muito bem entenderdes.»
vimos da Irlanda», respondeu Fraech, «e queremos resgatar a
mulher que está na fortaleza, assim como as vacas que nos foram Esperaram então que a noite caísse e foram para a porta da
furtadas. Sabes como havemos de entrar naquele lugar?» fortaleza. A serpente, com um pulo medonho, atirou-se a eles,
mas Conall teve tempo de lhe apertar a cabeça com o cinto,
Ouvindo aquelas palavras, a mulher deu três gritos de lamento. adormecendo-a. Então avançaram, mataram os guardas,
«Ah», exclamou em seguida, «é o infortúnio que vos traz a este libertaram Finnabair e fugiram levando as jóias mais preciosas
país. A fortaleza está guardada por uma serpente monstruosa que que encontraram na fortalez. Atearam um grande fogo cuja luz se
só deixa entrar quem conhece. Aos estranhos ela devora sem propagou por toda a montanha, e partiram apos reunirem as
piedade, jamais tendo escapado alguém com vida. Mas quem sois vacas de Fraech. Em seguida, não demoraram a chegar a um
vós afinal, tão temerários ao ponto de acreditardes que podeis porto e partiram por mar com Finnabair e as vacas que Befinn
entrar na fortaleza?» «Este é Fraech, filho de Idach, de dera a seu filho.
Connaught, e eu sou Conall Cernach, companheiro do Ramo
Vermelho no Ulster. Finnabair, filha de Alill e de Maeve, é a No entanto, faltavam três e por esse motivo se dirigiram para o
Prisioneira que está na fortaleza, e as vacas dadas a Fraech pela território dos pietos do norte, na Escócia. Após passarem por
sua mãe, Befinn, das tribos de Dana, estão no meio dessas que grades dificuldades, conseguiram encontrar o lugar onde se
guardas.» encontravam as vacas, apoderaram-se delas e saquearam a
fortaleza do que as roubara. Feito isso, dirigiram-se para a costa
Ao ouvir aquelas palavras, a mulher não se conteve e, pondo os e navegaram até às costas da Irlanda, onde aportaram num lugar
braços à volta do pescoço de Fraech, manifestou uma enorme chamado Bennchur.
alegria. «Que se passa?», perguntou Conall, muito surpreendido
com aquele comportamento, «Eu vou explicar-vos», respondeu Nessa altura, após terem renovado o seu juramento de amizade,
ela. «Se estou tão feliz, é porque está próxima a hora em que a Fracch e Conall Cernach separaram-se. Conall voltou para a sua
fortaleza será destruída. fortaleza, e Fraech, na companhia de Finnabair, atravessou a
ilha com o seu gado e dirigiu-se para sua casa onde ja ninguem o
Com efeito, circula pelo país uma profecia que diz que tu deverás esperava.”’
pôr um teimo aos nossos infortúnios. Segundo essa profecia,
bastar-te-á apertar o cinto à volta da cabeça da serpente para CapítuloXI
que esta adormeça imediatamente.» «Isso é mesmo verdade?»,
admirou-se Conall. «Nesse caso, não percamos tempo.» Em um belo dia do início do Verão, Bran, filho de Fébal, andava
«Esperai», disse a mulher, «pois os guerreiros que guardam a a passear sozinho pelos campos que se estendiam em frente da
fortaleza são tão perigosos como a serpente. E melhor esperar sua fortaleza. Estava um dia de sol e soprava uma ligeira brisa.
pela noite. Vou para minha casa mas, esta noite, não mungirei as De súbito, Bran ouviu uma música vinda de trás de si. Voltou-se
vacas, e farei de conta que as vitelas precisam de mamar toda a para saber quem estava a tocar, mas, assim que se voltou, a
noite. Deixarei a porta entreaberta, pois sou sempre eu que a mesma música continuou a ouvir-se nas suas costas. Isto durou ai
um tempo, até que, embalado pela extrema melodia e harmonia sem cessar, as palavras que ela cantara, Ficou toda a noite sem
daquela música, ele deitou-se na relva e adormeceu, conseguir dormir, e de manhã, muito cedo, foi ter com um druida
que tinha fama de ser muito sábio e que residia no país de
Quando despertou, Bran viu perto de si um ramo duma macieira Corcomroe, druida chamava-se Nuca. Bran perguntou-lhe qual
com flores brancas que não se distinguia facilmente de outros era o significado do canto que ouvira e da presença da mulher
ramos, e levou-o para a fortaleza. Quando os Filhos de Milé misteriosa na grande casa da sua fortaleza. «Não é difícil de
chegaram à sala onde se ia realizar o festim, uma mulher perceber», respondeu o druida. «Esta mulher veio de Emain, ou
apareceu vestida com um traje muito leve. Avançando para Bran, seja, da Ilha das Macieiras. E, ao apresentar-te um ramo de
ela começou a cantar: macieira de Emain, estava a convídar-te para te ires encontrar
com ela nesse lugar.» «A sério?», admirou-se o filho de Fébal.
«Eis um ramo da macieira de Emain que te trago, semelhante aos «E onde se situa esta ilha de que me falas?» «A ilha situa-se
outros. Ele tem ramos menores de prata branca e sobrancelhas algures no vasto oceano, para os lados onde o sol mergulha nas
de cristal conifiores. Ela vem duma ilha longínqua ao redor da ondas. Não se conhece a sua exacta localização e ninguém lá
qual brilham os cavalos marinhos viajando na espuma das ondas. consegue ir sem a ajuda de um guia.» «Nesse caso, que hei-de
fazer?», insistiu Bran.
Quatro colunas suportam esta ilha, são quatro colunas de bronze
que brilham ao longo dos séculos no mundo, num lugar onde «Queres mesmo ir ter com a mulher à Ilha de Emain?» «Não
brotam numerosas flores. quero outra coisa», respondeu Bran, «poís desde que me visitou
que não consigo pregar o olho a pensar que nunca mais a vejo.»
É uma terra de bondade e de beleza onde abundam os cristais e
as pedras preciosas. O druida pôs-se a meditar longamente, e depois indicou a Bran o
dia em que poderia começar a construir um barco, especificando
O mar arremessa a vaga contra a terra e nela deposita os cabelos mesmo o número de homens que o deveriam acompanhar a saber
de cristal da sua crina. Aqui não se conhece a dor nem a perfidia: dezasseis, nem mais um, ou de contrário ele poderia sofrer graves
reveses. Por fim indicou-lhe o dia mais conveniente para partir e
Nem mágoa, nem desgosto, nem morte, nem doença, nem, o porto de onde deveria sair,
fraqueza,
Bran regressou então a casa e, no dia marcado pelo druida Nuca,
Pois vive-se sob o signo de Emain, Beleza de uma terra ordenou que se começasse a construir um barco com três cascos.
maravilhosa Onde tudo é maravilhoso e onde a bruma não tem Feito o barco, selecionou os familiares que o poderiam
igual ... » acompanhar na arrojada viagem. Entre eles, encontrava-se um
certo German, de quem Bran gostava tanto como se fosse seu
Assim que terminou o canto, a desconhecida afastou-se, e irmão, assim como Nechtân, filho de ColIbran, que era um
ninguém soube para onde ela foi. Mas levava com ela o ramo da grande conhecedor da arte de navegar, Reunindo o grupo que o
macieira, que por si mesmo saltara das mãos de Bran para as iria acompanhar, Bran levou-o ao porto de Cloghan para aí se
dela sem que ele o conseguisse evitar, Bran ficou muito fazerem os últimos preparativos para a viagem.
impressionado pelo que acontecera, e ocorriam-lhe ao espírito,
Embarcaram no dia marcado pelo druida Nuca, e ainda mal
tinham içado as velas e começado a afastar-se da costa, quando Os irmãos, sentindo-se culpados, não responderam, e os outros
os três irmãos de Bran chegaram à praia e daí começaram a companheiros de Bran, cheios de angústia, mantiveram-se
gritar muito alto para que os fossem buscar. «Voltai para casa! também em silêncio. Andaram assim ao sabor das correntes
», gritou-lhes Bran, «pois não posso levar a bordo mais homens durante três dias e três noites, sem verem terra. Ao fim do quarto
do que os previstos!» «Nesse caso», responderam eles, «vamos dia, ouviram um ruído proveniente de nordeste. «É o ruído de
atirar-nos à água, seguiremos no teu encalço, e podes ter a ondas a baterem na costa», disse Bran. «Dirijamo-nos para lá,
certeza de que acabaremos por nos afogar se não nos aceitares a pois estou certo de que aí descobriremos alguma coisa.»
bordo! »
Não demoraram muito até avistarem terra. Quando estavam a
E, no mesmo instante, eles atiraram-se à água e nadaram para o tirar à sorte quem iria a terra, um enorme enxame de formigas,
largo, Vendo que estavam decididos a cumprir a ameaça, Bran cada uma delas do tamanho dum potro, surgiu na praia e
deu ordens para que se desse meia volta e, com medo que se avançou para o mar. Era muito visível que estas formigas
afogassem, permitiu que subissem para bordo. gigantes pretendiam alcançar o barco e devorar a tripulação.
Bran ordenou aos seus homens que remassem com todas as
Nesse dia, remaram até ao anoitecer, pois o vento não era forças e conseguiram então ficar fora do alcance das formigas,
suficiente para fazer avançar a embarcação. Quando a noite caía passando novamente três dias e três noites à deriva no Mar sem
avistaram duas pequenas ilhas rochosas totalmente desprovidas saberem onde se encontravam.
de vegetação e com duas fortalezas em cima. Ouviram uma
algazarra vinda de lá, que era provocada por pessoas que Ora, na manhã do quarto dia, avistaram à luz do sol uma ilha
falavam alto e que se vangloriavam de ter praticado ctos alta e grande, com terrenos suspensos nas alturas, Havia fileiras
heróicos. «Nós podemos aportar e perguntar-lhes se conhecem a de árvores em cada um dos terrenos e, nos ramos, estavam
direção da Ilha das Macieiras», disse Diuran, o Poeta. «Tens dependurados pássaros. Bran e os seus companheiros
razão», respondeu Bran. «Vamos falar-lhes, pois devem saber aconselharam-se sobre o que havia a fazer, mas não chegaram a
coisas que nós ignoramos.» nenhuma conclusão. Então Bran decidiu ir a terra sozinho não
tendo aí nenhum percalço. Caçou dois pássaros e levou-os para o
Mas, enquanto pronunciavam aquelas palavras, um vento barco, proporcionando a toda a tripulação uma excelente
fortíssimo abateu-se sobre o barco e deixou-o desgovernado refeição. Logo depois voltaram para o mar.
sobre as ondas. Depois de terem andado ao sabor do vento e das
ondas durante toda a noite, já não viram pela manhã nem a ilha Ao meio do dia avistaram outra Ilha que lhes pareceu grande e
nem terra firme, ignorando completamente onde se encontravam. arenosa. Quando se preparavam para aí acostar, viram um
monstro que parecia um cavalo, mas que tinha as patas de um
«Tudo isto é por vossa culpa», disse Bran aos irmãos. «Vós cão, o pêlo todo eriçado e unhas pontiagudas. Era visível que o
subistes para o barco contrariando as determinações do druida monstro estava preparando-se para saltar sobre eles e os
Nuca que me avisou que eu poderia sofrer graves reveses no caso devorar.
de ter mais de dezasseis homens a bordo. Agora só nos resta
deixar o barco à deriva e ver para onde ele nos leva.» Bran ordenou que se navegasse para o largo o mais depressa
possível, mas quando o monstro percebeu que estavam a fugir sentir sede e fome quando descobriram outra ilha que tinha uma
dele, correu pela areia e começou a arremessar calhaus contra o grande falésia que caía a pique sobre o mar e que estava coberta,
barco. E apressando-se o mais que podiam, os navegadores no cimo, por uma densa floresta. Bran desembarcou na ilha e,
conseguiram escapar-lhe. embrenhando-se na floresta, arrancou um ramo de urna árvore.
O ramo esteve nas suas mãos durante três dias e três noites,
Pouco tempo depois avistaram outra ilha, Bran designou German enquanto o barco dava voltas à ilha, e ao quarto dia apareceram
para ir explorá-la, mas pediu para acompanhá-lo, dizendo que o três maçãs na ponta do ramo. Todos partilharam entre si as
risco era menor se fossem dois. Assim que desembarcaram, maças e saciaram-se delas.
caminharam com muita atenção e foram dar a um grande prado
onde observaram enormes pegadas no terreno que pareciam ter Também passaram na proximidade de uma pequena ilha, baixa e
sido deixadas pelos cascos de cavalos. Havia também, espalhada muito bela de se ver, onde avistaram grandes animais parecidos
por toda a parte, grandes cascas de noz. E como também havia com cavalos. Cada animal mordia o flanco de outro arrancando-
casas em ruínas, chamaram os seus companheiros para virem ver lhe um pedaço de carne com pele, de tal modo que rios de sangue
com os seus próprios olhos o que eles estavam a ver. Este carmesim escorriam das feridas e derramavam-se sobre o chão.
espectáculo, no entanto, assustou-os, Pois não conseguiram Os navegadores afastaram-se a toda a velocidade, sentindo-se
compreender o que poderia ter provocado aquelas pegadas e cada vez mais fracos e desamparados, pois não tinham nada para
aquelas ruínas, de tal modo que apressaram-se a voltar para o comer.
barco.
Ora, no momento de maior aflição, avistaram uma nova ilha onde
Quando já se tinham afastado da costa, avistaram uma multidão se destacavam numerosas árvores cobertas de frutos, mormente
de cavalos, de um tamanho enorme, que se dirigiam para o mar, grandes maçãs de cor dourada. Havia pequenos animais
montados por uma raça de homens magros e negros que os vermelhos que se poderiam tomar por porcos selvagens debaixo
incitavam com altos gritos. Os navegadores não duvidaram de das árvores, às quais, batendo-lhes com as patas, faziam cair as
que havia ali uma conspiração de demônios e de fantasmas e maçãs. Depois, comiam-nas com uma imensa satisfação.
afastaram-se a toda a velocidade daquele lugar maldito. Enquanto isso, diversos pássaros banhavam-se nas ondas perto
da ilha e quando, ao anoitecer, os animais vermelhos se
Chegaram depois a outra ilha que tinha na costa uma casa com retiraram para as suas cavernas, eles voaram para as arvores e
um grande pórtico nas traseiras. Havia também uma porta que começaram a debicar os frutos. «Parece que estamos com sorte»,
dava directamente para o mar, com uma batente de pedra com disse Bran. «Se estes animais vermelhos e estes pássaros comem
uma abertura por onde as vagas lançaram um salmão. com tanto prazer os frutos das árvores, isso significa que também
Desembarcaram então e entraram na casa. Esta estava deserta, nós poderemos comer esses frutos. Vamos pois abastecer-nos a
mas nos seus quatro cantos havia quatro leitos, comida e um terra.»
recipiente de vidro que continha uma bebida aparentemente
inebriante. Eles comeram e beberam o que encontraram, e depois Desembarcaram na praia e estranharam que o solo fosse tão
voltaram para bordo sem terem visto vivalma. quente debaixo dos pés. Na verdade, aquele calor tornou-se tão
insuportável que tiveram de regressar à pressa ao barco; apesar
Voltaram a navegar ao acaso por muíto tempo e começavam a disso, ainda tiveram tempo de levar com eles uma grande
quantidade de maçãs que lhes permitiram ter alimento para
vários dias. Mas, às escondidas, o irmão apoderou-se dum colar e, no mesmo
instante, o gato, que tinha estado tranquilamente a saltar de um
Quando a comida começou de novo a faltar e eles mal podiam pilar para outro, atirou-se a ele como uma flecha implacável e o
respirar devido ao mau cheiro do mar, acostaram numa ilha infeliz ficou de tal modo em brasa que se transformou num
estreita na qual se erguia uma fortaleza rodeada duma muralha montão de cinzas, o gato voltou então para junto de um dos
muito branca, corno se tivesse sido construída com cal ou com pilares e Bran tentou acalmá-lo com palavras muito suaves, ao
giz, e tão alta que quase chegava à nuvens. Como havia uma mesmo tempo que pos o colar no seu lugar. Os navegadores
porta aberta na muralha, eles atravessaram-na e viram grandes voltaram depois para o barco, muito entristecidos por terem
casas também brancas. Entraram na que lhes parecia maior e perdido um companheiro.
encontraram-na sem ninguém, apenas com um gato que saltava
sobre uns pilares que existiam nos quatro cantos da sala. Ao ver Andaram de novo três dias inteiros no mar e por fim avistaram
os recém-chegados, o gato não pareceria minimamente uma ilha que estava dividida em duas partes iguais por uma
assustado, pois continuou a saltar como se não estivesse ali paliçada. Num lado pastava um rebanho de cabras brancas, e do
ninguem. Aos olhos dos recém-chegados, entretanto, outro um rebanho de cabras negras, enquanto um homem muito
apresentaram-se outras coisas. Havia três filas de objectos numa robusto andava de um lado para o outro a separar os animais.
das paredes da casa, indo de uma porta à outra: uma de broches Quando ele agarrava uma cabra branca e a atirava por cima da
dourados e prateados pregados à parede por alfinetes; a outra de paliçada, o animal tomava-se negro ao tocar no solo, e se o fazia
cordões de ouro, tendo cada um a dimensão de um círculo de a uma cabra negra, esta tornava-se branca.”’
cobre; e a última, por fim, de grandes espadas, com Pedras
preciosas incrustadas nos punhos de ouro. Avançando pela sala, Ao verem aquele espectáculo, Bran e os seus companheiros
eles viram no meio, no fogão, carne assada, toucinho cozido, e assustaram-se. «Devemos desconfiar daquele sortilégio», disse
grandes taças cheias até cima de uma bebida de cheiro Bran. «Vamos fazer uma experiência: deitemos qualquer coisa
agradável. «Isto é para nós?», perguntou Bran, voltando-se para negra no lado das cabras brancas para ver o que acontece.»
o gato.
Pegaram então num ramo cuja superfície estava enegrecida e
O gato olhou-o por um instante, e depois continuou entretido a atiraram-no para a parte da ilha onde se encontravam as cabras
saltar de um pilar para outro. Bran percebeu então que aquela brancas, ficando o ramo branco instantaneamente.
refeição tinha sido preparada a pensar neles e comeram e Arremessaram depois um outro ramo que era branco para o lado
beberam até se fartarem, adormecendo depois nuns leitos que ali das cabras negras, e o ramo tornou-se negro. «Na verdade»,
se encontravam. Na manhã seguinte, quando acordaram, disse Bran, «esta experiência é elucidatíva. Devemos deixar este
deitaram as bebidas em bilhas e juntaram os restos de comida lugar tão estranho, ou arriscamo-nos a ter alguma má
para os levarem com eles. Mas, quando estavam de partida, disse experiência.»
um dos irmãos de Bran: «Eu gostava de levar um destes colares.»
«Não faças isso», disse Bran, «pois desconfio que esta casa está Pouco tempo depois, avistaram outra ilha na qual estavam
a ser vigiada. Estes objectos foram postos aqui para despertarem reunidas grandes multidões de homens e de mulheres. Tanto eles
a nossa cobiça.» como elas eram inteiramente negros, quer fisicamente quer no
vestuário que envergavam. Tinham fitas igualmente negras placa de vidro, ela encheu o balde numa fonte que jorrava água
amarradas à volta da cabeça e não paravam de se lamentar. «Um debaixo da ponte. Depois, parecendo que nem tinha reparado na
de nós deve ir ter com eles e perguntar-lhes porque se lamentam presença de Bran e dos seus companheiros, voltou para trás e
daquela maneira. E devemos aproveitar para lhes perguntar qual entrou na fortaleza. «Que alguém venha falar a Bran, filho de
a rota a tomar para a ilha que desejamos alcançar.» Fébal!», gritou em voz muito alta Diuran, o Poeta. A mulher, que
acabara de entrar, reabriu a porta e olhou para fora. «É mesmo
O acaso designou o segundo irmão de Bran para desempenhar Bran, filho de Fébal?», perguntou ela com um tom ironico antes
aquela missão. Ele foi a terra e dirigiu-se para as gentes de de voltar a desaparecer no interior da fortaleza.
negro, mas assim que chegou perto delas, corneçou também a
lamentar-se. Bran mandou então dois homens buscá-lo, mas Rastejando, Bran e os seus companheiros chegaram à porta de
estes, ao invés de o reconhecerem entre os outros, puseram-se bronze e começaram a bater nela com as espadas e os escudos na
igualmente a chorar e a lamentar-se. Bran disse então: «Que vão esperança de que a viessem abrir. Mas o bronze transformou o
lá quatro homens com correntes e que os tragam à força. Para barulho que faziam numa música muito suave que os fez dormir
terem êxito não deverão olhar para a terra, e deverão cobrir o até de manhã.
nariz e a boca para evitarem respirar os miasmas da ilha e
apenas verem aqueles que vão buscar!» Quando acordaram, viram a mesma mulher sair da fortaleza com
o balde na mão. Ela fez o mesmo que no dia anterior, indo encher
Diuran, Nechtân, German e o terceiro irmão de Bran foram a o balde à fonte que existia debaixo da ponte. Nechtân não se
terra e, com infinitas, precauções, acorrentaram os dois homens conseguiu conter: «Que alguém venha falar a Bran, filho de
que tinham ido buscar o primeiro. Mas não conseguiram Fébal!», gritou ele.
descobrir este, de tal modo ele já se confundira com os outros.
Quando perguntaram aos dois resgatados o que tinham visto, eles A mulher pareceu não ter ouvido nada mas, ao fechar a porta,
responderam que não se lembravam de nada. E, cheios de mágoa voltou-se e disse simplesmente: «Bran, filho de Fébal, parece-me
por terem perdido o segundo irmão de Bran, os navegadores muito belo.» E desapareceu no interior, voltando então Bran e os
deixaram a toda a pressa as costas da ilha das lamentações. seus companheiros a bater à porta de bronze com as suas armas.
Mas ao fazerem-no, provocaram música e esta prostrou-os até à
Não tardaram a avistar outra ilha de muito pequenas dimensões, manhã seguinte. Estiveram assim durante três dias e três noites,
onde existia uma fortaleza, com uma porta aparentemente de sem comer nem beber. Na manhã do quarto dia, a mulher dirigiu-
bronze, não se podendo entrar nela senao por uma ponte de se a eles. Era muito bela, e trazia um manto branco, um colar de
vidro. Bran e os seus companheiros desembarcaram e dirigiram- ouro à volta do pescoço, e um diadema de prata sobre os cabelos
se para a fortaleza, muito decididos a falar com os que nela negros. Calçava sandálias de prata branca que realçavam a
deviam habitar. Mas, assim que puseram os pes na ponte de delicadeza dos seus pés, e no manto tinha pregado um broche
vidro, caíram todos para trás, sendo incapazes de se manter de prateado guarnecido com ouro. E o manto, batido ao de leve pela
pé na superfície muito escorregadia.” brisa matinal, deixava ver uma camisa de seda muito fina sobre a
pele branca. «Sê bem vindo, Bran, filho de Fébal», disse ela.
Estavam naquela situação embaraçosa quando viram uma
mulher sair da fortaleza com um balde na mão. Levantando uma Em seguida, ela pronunciou o nome de cada um dos
companheiros de Bran. «Hã muito tempo», disse ela, «que perguntou então Nechtân. «Sim», concordou Diuran, «mas como
sabíamos que vós viríeis. Mas, nobre Bran, não fiques ofendido havemos de propor-lhe isso sem a ofender?»
por não poderes entrar nesta fortaleza.»
A mulher voltou na manhã seguinte, trazendo comida no cesto e
Guiou-os até uma grande casa que se encontrava na costa, bebida no balde. Diuran disse-lhe: «És capaz de provar que
sobranceira ao mar, e ela própria trouxe o barco deles para a gostas de Bran dormindo com ele? Porque não passas aqui esta
areia. Ao entrarem na casa, eles viram um leito para Bran e noite, para que isso aconteça?» «Como é que podeís fazer uma
outro para três das suas gentes. Logo a seguir, a mulher deixou- tal proposta a esta mulher?», gritou Bran furioso. «Eu seria
os e voltou para a fortaleza. incapaz de fazer uma tal proposta! Nós só queremos saber, ó
mulher, que direção devemos tomar para chegarmos a Emaín
«Então», perguntou Diuran a Bran, «esta mulher não é a que Ablach, a Terra das Fadas, onde me espera aquela que me foi
viste na tua residência e a que procuramos há tanto tempo?» levar um ramo de macieira.»
«Não, não é», disse Bran, «e esta ilha não é aquela de que
andamos em demanda. Não há aqui macieiras, e nada nela se A mulher começou a sorrir, e disse: «Amanhã terás uma resposta
parece com a descriçao que me foi feita pela mulher antes de para a tua questão.»
reaver o ramo da macieira de Emain.» «É pena», disse Nechtân,
«pois esta mulher é muito bela e ganharias muito em ter uma Naquela noite, Bran e os seus companheiros adormeceram
esposa da sua beleza.» profundamente na casa. Mas, ao acordarem, repararam que
estavam no barco, no meio do mar. Nunca mais eles viram a ilha
Dito isto, ela voltou, trazendo-lhes um cesto que tinha dentro o misteriosa, nem a fortaleza, nem a ponte de vidro, nem a casa
que parecia queijo ou leite coalhado. Distribuiu o alimento por onde, junto à costa, tinham dormido, nem a mulher que lhes tinha
todos, e todos se regalaram com ele. Em seguida, encher o balde servido comidas e bebidas deliciosas.
na fonte debaixo da ponte de vidro e deu o seu conteúdo a Bran.
Depois foi encher o balde a pensar nos outros e, quando viu que Sentiram-se terrivelmente deprimidos e de nada valeu Bran tentar
estavam todos saciados, deixou-os e voltou para a fortaleza. consolá-los dizendo-lhes que aquelas aventuras eram etapas
necessárias para poderem chegar a Emain: por muito que ele se
«Realmente», disse Nechtâm a Bran, «esta mulher seria uma esforçasse, uma profunda tristeza e um sentimento de desamparo
esposa digna de ti.» «Não foi ela que me veio trazer o ramo de acompanhava-os enquanto o barco andava ao sabor das ondas.
Emain», respondeu Bran. De súbito, avistaram uma ilha de onde Provinham ruídos
estranhos, semelhantes aos que fazem os ferreiros quando batem
Na ausência de Bran, entretanto, os seus companheiros não com a bigorna dos seus martelos. Aproximaram-se e viram, com
deixavam de trocar impressões. Começavam a ficar fatigados de efeito, quatro ferreiros que ali trabalhavam. Estavam perto da
tantas viagens infrutíferas e, não sabendo como regressar à costa, quando ouviram um dizer: «Estão ao vosso alcance?»
Irlanda, não lhes parecia má idéia ficarem algum tempo naquela «Estão», respondeu outro. «Mas que gentes são aquelas?» «São
ilha onde eram tratados com tantas atenções. uns garotos», disse um terceiro. «E num pequeno barco»,
acrescentou um quarto.
«E se pedíssemos a esta mulher para dormir com Bran?»,
Ouvindo aquela troca de palavras, Bran ficou muito inquieto. do maior boi da manada, e atirando-se a ele devorou-o num
«Fujamos daqui», disse ele, «mas sem fazer o barco dar meia instante. Nisto todos os outros bois da manada se puseram a fugir
volta. Rememos para trás de modo que eles não se apercebam da numa correria louca. Perante aquele espectáculo, Bran e os
nossa fuga.» companheiros ficaram apavorados, ainda mais porque o barco
não poderia deslocar-se muito depressa naquelas águas. Mas,
Remaram então em sentido inverso. O primeiro homem que ultrapassados os momentos de angústia, conseguiram deixar
falara na oficina perguntou aos outros: «Já chegaram ao porto?» aquelas perigosas paragens e viram-se num mar normal, apesar
«Não», respondeu o segundo. «Eles estão imóveis e não da água parecer parada. Por muito que tentassem remar com
avançam.» Pouco depois, o primeiro ferreiro retomou a palavra: todo o vigor, durante várias horas o barco não avançou. Por fim,
«Que estão eles agora a fazer?» «Penso», disse o segundo, «que levantou-se o vento, a vela enfunou-se, e voltaram a deslizar
estão a preparar-se para fugir, Pois estão mais longe do porto do sobre as ondas.
que estavam ainda há pouco.»
Acostaram daí a pouco a uma ilha coberta de árvores que
Então os ferreiros precipitaram-se para a costa, segurando nas pareciam salgueiros ou aveleiras, com frutos maravilhosos e
mãos enormes massas de ferro vermelho e arremessaram-nas em grandes bagas. Sacudiram alguns ramos e depois tiraram à sorte
direção ao barco. As massas não os atingiram mas o mar a toda para ver quem provaria os frutos, sendo escolhido Bran. Este
a volta começou a ferver enquanto os remadores faziam um esmagou algumas bagas numa taça e bebeu o sumo, caindo então
esforço do para se porem longe dali. num sono profundo que durou até ao outro dia àquela mesma
hora. Entretanto, os seus companheiros mostravam-se
De repente, num instante eles começaram a navegar num mar preocupados, sem saberem se ele estava vivo ou morto, pois uma
que parecia de vidro esverdeado. As águas eram tão límpidas que espuma vermelha apareceu-lhe na comissura dos lábios. Ele, no
os navegadores podiam ver as pedras no fundo. Mas não se via entanto, acordou fresco e bem disposto, e disse-lhes: «Podeis
nenhum animal, nenhum peixe, nenhum monstro debaixo do tomar o sumo, Pois é excelente.»
barco, nem se via nada entre os rochedos a não ser cascalho e
areia de cor verde. Navegaram assim durante muito tempo, Juntaram então todos os frutos que puderam para levar para
maravilhados com a beleza e a transparencia esplendorosa da bordo, certos de que com eles poderiam obter um sumo agradável
água. e inebriante,

Mas logo depois ela transformou-se numa espécie de nuvem leve Estavam os navegadores para partir quando viram uma grande
e sem consistência, e eles chegaram a pensar que o barco se iria nuvem vir na sua direção. Mas logo eles repararam que se
afundar. Olhando por sobre as águas viram um belo país tratava de um grande pássaro e, aterrorizados com a idéia de que
verdejante e o tecto de fortalezas. Avistaram também um animal ele ia aprisioná-los com as suas garras monstruosas, puseram-se
monstruoso nos ramos de uma árvore e gado bovino em campos a correr em busca de abrigo, atravessando um bosque até se
existentes à volta. Um homem amado com uma espada e um encontrarem no centro da ilha. Havia aí um pequeno lago na
escudo, quando se apercebeu do grande animal no ramo da extremidade do qual pousou o pássaro, que tinha no bico um
árvore, começou a correr desenfreadamente. O monstro, então, ramo tão colossal como um carvalho, mas de uma especie
estendeu o pescoço para fora das folhagens, aproximou o focinho desconhecida. O ramo possuía diversos galhos muito grandes dos
quais pendiam, como se fossem frutos, cachos de uma espécie de recuperarmos as energias.» «Tens de ter cuidado», gritou Bran,
bagos amarelos, que mal se viam através das folhas, por serem «poís pode ser perigoso à que o pássaro contaminou as águas e
estas muito frescas e abundantes, quem nele se o banhar pode ficar infectado!» «Se ele se banhou,
também eu o posso fazer!», replicou Diuran, acrescentando:
Bran e os companheiros ficaram com os olhos fixos no pássaro, a «Vou
ver o que ele iria fazer. Mas ele não se mexia e, vendo melhor,
repararam que tinha a plumagem em péssimo estado, podre e Tendo dito aquelas palavras, despiu-se e mergulhou nas águas
comida pelos bichos. Um dos homens aproximou-se com cuidado onde ficou durante algum tempo, dando depois duas ou três
do pássaro, e este permaneceu imóvel; depois voltou para perto braçadas para chegar à margem. E, naquele dia, os olhos
dos companheiros e todos se preparavam para partir quando brilharam-lhe como nunca, os dentes jamais tinham sido tão
apareceram por cima deles duas grandes águias, que por sua vez sãos, e nenhum mal parecia ser capaz de o atormentar. Apesar
se puseram perto do pássaro enorme. Depois de urna leve pausa disso, nenhum dos seus companheiros quis seguir o seu exemplo,
para repousarem, as águias puseram-se a dar bicadas na sua e voltaram todos para o barco, contentando-se em levar para
plumagem, como que para o aliviar dos parasitas que o bordo as bagas vermelhas colhidas no bosque.
infestavam.
Na manhã do dia seguinte, estando a navegar calmamente, viram
Assim estiveram as duas águias até meio do dia. Em seguida, com grande espanto um homem a guiar um carro puxado por
começaram a comer as bagas do ramo, antes de novamente se dois cavalos por cima das ondas. O desconhecido dirigiu-se para
porem a dar bicadas na plumagem decrépita do vizinho, o barco e entabulou conversa com Bran. «Sê bem vindo, Bran,
arrancando-lhe as penas em pior estado. Por fim colheram os filho de Fébal, a ssim corno todos os teus, espantou-se Bran. «E
frutos, esmagaram-nos contra pedras e atiraram-nos ao lago, companheiros.» «Como é que me conheces?», quem és tu?» «Sou
fazendo com que a água criasse espuma e ficasse toda amarela. Mananann filho de Lir, das tribos de Dana, e vim ao teu encontro
Então o grande pássaro ergueu-se e, dirigindo-se para o lago, para te anunciar que em breve alcançarás o objetivo que
foi-se banhar, ao mesmo tempo que as duas águias levantaram persegues». «Mas», admirou-se Bran, «que prodígio é esse que te
voo e desapareceram do mesmo modo misterioso como tinham permite galopar os teus cavalos sobre o mar?» «As coisas nem
aparecido no céu. sempre são o que parecem», respondeu Manannan «Tu achas
maravilhoso que o teu barco seja capaz de navegar sobre as
Passado um instante, o grande pássaro saiu do lago e, depois de águas mas, a meus olhos, o que tu chamas mar é uma planície
se sacudir vigorosamente, ficou imóvel na margem como se florida sobre a qual se desloca o meu carro puxado por dois bons
quisesse dormir. Cada vez mais intrigados com o seu cavalos. O que te parece um mar claro, ó Bran, filho de Fébal, é
comportamento, Bran e os companheiros n ão se atreviam a para mim uma aprazível planície com flores encantadoras.
aproximar-se dele, limitando-se a observá-lo através do ramo das Enquanto tu vês vagas à tua volta, eu, nesta planície imensa e
árvores. E por fim o grande pássaro lá se moveu, agitando as maravilhosa, vejo gado a pastar tranquilamente na erva verde e
asas e levantando voo, num instante, tão veloz e imponentecomo macia seja Verão ou Inverno. Os peixes que vês através das
quando chegara, e desapareceu na mesma direção de onde viera. ondas são para mim pássaros que cantam no ramo das árvores, e
«Parece evidente», disse Diuran, o Poeta, «que ele veio aqui a espuma das vagas é para mim como frutos de todo ano. Sim,
restaurar forças. Vamo-nos também banhar no lago para Bran, o teu barco navega sobre o alto de um bosque, roçando na
copa da árvores, cheio de frutos maravilhosos de frutos muito os três irmãos tinham desaparecido, a ordem era reconstituída.
odoríferos, de frutos perfumados, cujas folhas são da cor do mais Com alguma mágoa, Bran decidiu então abandonar este terceiro
puro ouro.» irmão na ilha dos Bem Humorados e voltaram para o alto mar
remando corajosamente.
Bran e os seus companheiros ouviam cheios de espanto o que
lhes dizia Mananann. Este deu várias voltas ao barco, com os Pouco depois, ficaram em frente duma grande ilha onde se
cavalos a galoparem em grande estilo e a atirarem chuviscos destacava uma vasta planície, com belos bosques abundantes em
brancos na direção das velas.1 árvores floridas e um grande planalto coberto por uma erva
macia. Junto ao mar erguia-se uma grande fortaleza, alta e
«Agora devo deixar-vos», disse Mannanan. Bem sei que ja imponente. Atracaram o barco e dirígiram-se para ela. A porta
passastes muito frio, fome e sede. mas talvez as privações fossem estava aberta e entraram para o pátio, onde havia uma casa que
necessarias para conseguirdes finalmente avistar a Ilha das tinha também a porta aberta. Olhando para o interior, viram
Mulheres através da bruma. É muito frequente, na verdade, dezessete leitos ricamente ornamentados com tapeçarias. Viram
passar-se perto do que se pretende sem se dar conta disso. Adeus, também dezesseis moças que preparavam um banho. Não se
Bran, filho de Fébal, e que os teus companheiros e tu remem com atrevendo a entrar, sentaram-se no pátio, em frente da soleira da
todas as vossas forças para a ilha das Mulheres, Emain, que é tão porta.
aprazível para quem a visita. Não estais longe, e chegareis à ilha
antes do pôr-do-sol.» Quando o sol começava a declinar no horizonte apareceu uma
mulher montada num cavalo de raça. A cavaleira envergava uma
Dito isto, Manannan desapareceu das suas vistas por entre uma capticha azul, um manto de púrpura bordado, pulseiras com
fascinante nuvem de espuma. Puseram-se então todos a remar gravações em ouro, e sandálias de prata. Desceu do cavalo em
com energias renovadas, cheios de confiança e de esperança frente deles e logo uma das dezesseis moças pegou na montada
Assim foi ate que chegaram a uma ilha que, prudentemente, se pelas rédeas e levou-a para a cavalariça. Então a mulher
limitaram a contornar. Viram nela grupos de homens e de avançou para Bran, que nela reconheceu aquela que lhe levara o
mulheres que se riam a gargalhada e que, mesmo depois de ramo de macieira de Emain e depois o fizera ouvir a música das
olharem para Bran e os seus companheiros, continuaram a fadas.
conversar e a dar grandes gargalhadas. «Claro que esta não é a
ilha das Mulheres», disse Bran. «Mas temos de saber que gentes «És bem vindo, ó Bran, filho de Fébal», disse ela. «Há muito
são essas e o que e que as faz rirem-se daquela maneira.» tempo que eu aguardava este momento. Foi a esperança de te
receber nesta ilha que me levou a ir visitar-te na tua fortaleza. Os
Tiraram à sorte para escolher quem iria a terra, e o acaso elegeu teus companheiros são também bem vindos por terem tido a
o terceiro irmão de Bran. Este desembarcou e, assim que chegou coragem de te acompanhar nas tuas longas aventuras por mar.
ao pé dos que se riam, começou também a rir como eles. E por Pois não é realmente fácil descobrir esta terra em que reino só,
muito que os seus companheiros o chamassem, não respondia, em paz e harmonia, sem mágoas, tristezas ou doenças. Mas agora
limitando-se a olhá-los e a fazer troça deles. Então, Bran que aqui estais, entraí nesta casa.»
lembrou-se das advertências do druida Nuca: em caso algum Após entrarem na casa, Bran e os seus companheiros tomaram
deveria levar mais de dezesseis companheiros a bordo. Agora que banho em grandes banheiras que estavam preparadas para eles.
Depois, a rainha sentou-se com as suas dezesseis companheiras regressamos a casa?» «Não sejas inconveníente», respondeu
ao redor num lado, enquanto Bran ficou no lado oposto com os Bran, «pois em lado algum levaremos uma vida tão agradável
seus dezesseis companheiros à sua volta. Levaram a Bran um como a que aqui levamos.»
prato de prata cheio de manjares requintados e um copo de vidro
cheio até cima de um licor muito saboroso. Serviram também urn Entretanto, Os companheiros de Bran começaram a murmurar e
prato e um copo a três dos seus companheiros. Quando a acusar o seu chefe, dominado pela rainha da ilha, de não os
acabaram de comer e de beber, a rainha levantou-se e disse: querer levar de volta para o seu país. «Muíto ama Bran esta
«Como vão dormir os meus hóspedes?» «Como te aprouver», mulher», disse German, «e sendo assim, deixemo-lo com ela e
disse Bran. «Pois então», disse a rainha, «que cada um escolha a regressemos nós à Irlanda.»
mulher que tem diante de si e a leve para a cama consigo.» E
porque na casa havia dezessete quartos equipados cada um com Ora, Bran estivera a ouvir a conversa, e disse-lhes: «De modo
um bom leito, os dezesseis companheiros de Bran deitaram-se algum partíreís daqui sem mim. Se realmente pretendeis voltar
com as dezesseis filhas da rainha, e ele próprio foi dormir com a para o vosso país, e se, mantiverdes esse vosso propósito, ficai a
rainha. saber que irei convosco, pois o dever de um chefe é estar sempre
com os seus companheiros.»
Na manhã seguinte, disse a rainha a Bran: «Fica comigo nesta
ilha, ó Bran, filho de Fébal, e jamais ficarás velho. Serás sempre Prepararam então em segredo a partida. Um dia, tendo ido a
tão jovmi como és hoje, e a tua vida não terá fim. E os prazeres rainha presidir a uma assembléia do seu povo, Bran e os seus
de que desfrutaste na noite passada, desfrutá-lo-ás todas as embarcaram no barco e navegaram para o largo, mas a rainha,
noites. Fica, pois ja perdeste muito tempo a correr de ilha em ilha que nesse mesmo instante voltava para a fortaleza, viu o barco
entre perigos e grandes, tormentas. «Mas quem és tu afinal?», afastar-se com Bran e os seus companheiros. Ela foi então a
perguntou Bran. A rainha desatou a rir e disse: «Que importa cavalo até à beira-mar, e atirou Um novelo para dentro do barco,
isso? Já me deram tantos nomes que nem sei qual e o que tenho. agarrando-o Bran e ficando com ele colado à mão. Nessa altura,
Contenta-te em saber que estou do teu lado e que daqui para a a rainha só teve de Puxar o fio do novelo para fazer os fugitivos
frente nada de mal te poderá acontecer. Todos os habitantes voltarem para o porto. «Porque partís desta maneira?»,
desta ilha me respeitam e respeitam os meus hóspedes. Sou a perguntou-lhes ela. «Ao menos Podíeis-me ter prevenido, em vez
rainha e todos os dias aplico a justiça para que nunca deixem de de fugirem como ladrões»
ter uma vida calma e feliz, sem guerras e sem conflitos de Como todos abaixaram a cabeça sem saberem o que dizer, Bran
qualquer espécie. acabou por tomar a palavra: «Os meus companheiros queriam
rever o seu pais e eu não podia deixá-los partir sozinhos.» «o teu
Ditas estas palavras, a rainha despediu-se de Bran e saiu para o sentimento é nobre, Bran, filho de Fébal», disse a rainha, «mas
grande prado existente em frente da fortaleza, para se reunir com sabíeis vós que grandes perigos vos esperavam? Se quereis Partir
o seu povo. Bran e os seus companheiros permaneceram nesta para a Irlanda, podeis fazê-lo amanhã logo pela manhã, mas
ilha durante os três meses de Inverno, parecendo-lhes que estes devo prevenir-vos do seguinte: nunca deveis descer do barco e
três meses tinham durado três anos. Mas, ao fim desse tempo, pôr os pés em terra, aconteça o que acontecer.»
Neclitân, filho de ColIbran, ficou cheio de saudades. «Estamos
aqui há multo tempo», disse ele um dia a Bran, «Porque não Partiram no dia seguinte, depois de se despedirem da rainha da
ilha e das suas dezesseis companheiras, e, estando o vento enquanto Elcmar. irmão de Dagda na colina de Cletech a sul,
favorável, não demoraram a avistar as costas da Irlanda onde também observava aquela cena.
acostaram num lugar chamado desde então o Regato de Bran.
Ora, realizava-se então uma grande assembléia na costa, e A certa altura os rapazes começaram à bulha, e Angus correu
perguntaram- lhes quem eram. para os separar antes que a luta Provocasse sangue quando
Mider os fosse tentar pacificar. «Sai daqui!», gritou-lhe ele, com
Bran respondeu, mas as pessoas de terra não compreenderam as medo que Elcitiar descesse e fosse também meter-se no meio
suas palavras. Ele insistiu, dizendo com toda a exatidão quem daquela confusão. «Elcmar está aborrecido contigo desde que tu
era, onde residia, e que reis reinavam sobre o país. «Não o expulsaste de Brug. Eu próprio vou acalmar estes rapazes
conhecemos esses de quem nos falas», responderam elas. Então estouvados!»
um velho avançou para a borda da água. «Ouvi contar, na minha
infância, que aí há uns trezentos anos, um chefe chamado Bran, Angus foi então meter-se no meio dos jovens que se esmurravam
filho de Fébal, partiu para o mar e nunca mais voltou. És tu? e tentou acalmá-los, mas não foi fácil e, no meio da confusão
Pareces-me bem jovem para poderes ser aquele que dizes ser.» gerada, um dos rapazes atirou uma ponta de aveleira contra
«Sou eu, apesar de poderes duvidar da minha palavra», disse Mider, ferindo-o num olho. Então, Mider aproximou-se de Angus,
Bran, «e os meus companheiros estão aqui para servir de magoado e furioso, mostrando-lhe o sangue que corria do olho.
testernunhas.»
«Era melhor eu não te ter vindo visítar!», gritou ele. «Já estou
Naquele momento, Nechtân, filho de ColIbran, não se contendo, arrependido da minha viagem, Pois sinto-me humilhado com o
saltou para fora do barco. Mas mal os seus pés tocaram na terra que aconteceu! Esta ferida, no entanto, não me impedirá de ver o
ele ficou feito em cinzas, como se tivesse estado sepultado há país em que me encontro, e não estou certo se conseguirei voltar
séculos. para o meu ... » «As tuas palavras são injustas, ó Mider»,
respondeu Angus, «e ofendem-me muito. Vou pedir a Diancecht
Então, Bran entoou um lamento por Nechtân, filho de ColIbran. para vir tratar de ti. Ele curar-te-á e poderás depois voltar a ver
Depois, após ter contado as suas aventuras às pessoas que este país com tanta clarividência como se fosse o teu.» Mac Oc,
estavam ali na costa, despediu-se delas, mandou içar as velas e sem perda de tempo, foi encontrar-se com Diancecht e disse-lhe o
logo o seu barco desapareceu na bruma. Ninguém a partir dali o que esperava dele. Diancecht acompanhou-o a Brug e tratou
voltou a ver, mas toda a gente sabe que Bran, filho de Fébal, se imediatamente de curar Mider, cujo olho ficou bom. «Excelente»,
encontra na Terra das Fadas, algures no vasto oceano, junto da disse Mider, «poderei agora comprazer-me com a minha viagem,
grande rainha Morrigane, filha de Ernma.”’ pois estou curado.» «E ainda será melhor», retomou Angus, «se
ficares aqui durante um ano, até à próxima festa de Samain.
Um dia, Mider de Bri Leith, das tribos de Dana, decidiu fazer Serás meu hóspede e terás o prazer de visitar a minha terra e de
uma visita ao seu filho adotivo, Angus, filho de Dagda, que ele conviver com os meus amigos.» «Eu só fico», respondeu Mider,
criara e por quem tinha uma grande afeição. Assim, por alturas «se for compensado da humilhação que sofri e da vergonha por
da festa de Samain, ele deslocou-se até à residência de Angus, em que passei.» «E como desejas ser compensado?», perguntou Mac
Brug-na-Boyne, e encontrou aí Mac Oc ocupado a observar, oc. «Eu só te peço o seguinte: um carro no valor de sete jovens
numa colina, grupos de rapazes que brincavam na encosta, escravas, um manto a meu gosto e a moça mais bela da Irlanda.»
«Eu tenho o carro e o manto que pretendes», disse Angus. «Mas
também quero a moça mais sábia e mais bela de todas as que Foi de novo ter com o pai, expôs-lhe a situação, e Dagda fez com
existem na lrlanda», insistiu Mider. «Onde se encontra ela?» «No que doze grandes rios se formassem no pais de Echraide antes de
Ulster. Trata-se de Etaine, filha de Ecliralde, rei do nordeste. Ela se irem lançar no mar em grandes estuários, coisa que jamais se
é sem dúvida nenhuma a mais sábia e bela moça de toda a vira até então. Quando o trabalho ficou concluído, Angus voltou
Irlanda.» a casa do rei Ecliraide e reclamou-lhe a mão de Etaine. «Pelo
deus que protege a minha tribo», disse o rei, «ainda não é desta
Mac Oc pôs-se a caminho do Ulster e chegou Sem perda de que te dou a mão da minha filha, pois se eu ta desse, amanhã já
tempo onde residia o rei Ecliraide. Deram-lhes as boas vindas, e nada poderia obter de ti.» «Que mais queres então?», perguntou
ao fim de três noites perguntaram-lhe o que o levava ali, ao que Mac Oc. «Eu digo-te o que pretendo: quero o equivalente ao peso
ele respondeu que desejava a mão de Etalne, a filha do rei. «Não da minha filha em ouro e em prata. Caso consigas trazer-me o
a terás», respondeu Echraide, «pois, se ta der, nada mais que te peço, poderás levar Etaine.» «Terás o que pedes»,
conseguirei de ti, devido aos teus poderes mágicos. E se a minha respondeu Angus.
filha for desonrada, ninguém das tribos de Dana me quererá
pagar uma compensação por isso.» «Garanto-te que isso não Chamaram a donzela e pesaram-na na casa de Echralde. Então,
corresponde à verdade», disse Angus. «E se te recusas a dar-me Angus fez trazer o equivalente ao seu peso em ouro e prata e
a tua filha, posso comprar-ta agora mesmo.» «Assim está bem», deu-o a Echralde. «Agora estás satisfelto?», perguntou ao rei.
disse o rei. «Quanto tenho de pagar por ela?» «o que eu te peço é «Acho que já tive de pagar um bom preço pela tua filha, e que eu
o seguinte: quero que desbraves nas minhas terras doze planícies saiba nunca ninguem pagou um preço tão alto por uma donzela
que estão cobertas de floresta, para que nelas haja boas irlandesa.» «Podes levá-la», respondeu Ecliraíde, «mas lembra-
pastagens para os meus gados, e para que nelas se construam te que és o responsável pela sua honra e pela sua saúde.»
casas, façam jogos e se realizem assembléias.» «Eu atenderei ao
que me pedes», respondeu Mac Oc. Mae Oc levou então Etaine consigo para Brug-na-Boyne onde o
esperava Mider. Ao vê-lo, Etaine ficou tão encantada com a sua
Em vez de voltar para casa, ele foi ter com o pai, Dagda, ao qual boa aparencia e com a sua beleza que se apaixonou por ele
contou o que se passara. Dagda prometeu-lhe então que o imediatamente. Mider, por seu lado, ao ver as feições finas da
trabalho exígido por Ecliraíde seria levado a cabo e, deste modo, donzela e a elegância do seu corpo, ficou muito bem
no dia seguinte começou o desbravamento das doze planícies. impressionado e também se apaixonou.
Findo o trabalho, Angus foi de novo encontrar-se com Echraide e
reclamou-lhe a mão de Etaine. Etaine e Míder acabaram por dormir juntos naquela noite. No
dia seguinte, Angus deu a Mider o manto e o carro que lhe
«Tu não a terás», disse o rei, «a não ser que transformes em doze prometera, e Míder, aparti de então muito satisfeito, ficou um ano
rios tudo o que este país possui de nascentes, de pântanos e de inteiro na companhia do seu filho adotivo em Brug. Concluído
turfeiras de tal modo que as águas possam ir lançar-se ao mar. este tempo, Mider anunciou a Mac Oc a sua intenção de voltar
Assim, serão drenadas as minhas terras que darão peixes em para a sua própria residência, no outeiro de Bri Leith. «Não
abundância às tribos e às famílias do meu país.» «Isso será posso impedir-te de o fazeres», disse Angus, «mas toma bem
feito», respondeu Mac Oc. conta da mulher que levas contigo. A que lá te espera é muito
poderosa e perita em Pois, foi educada por Bresal, um olhos brilhavam como pedras preciosas na escuridão. O perfume
dos druidas mais sabedores das tribos de Dana.» que dela emanava era tão agradável que fazia passar a fome e a
sede a todos os que dela se aproximassem. As gotinhas
Mac Oc, na verdade, tinha pouca confiança em Fuamnach, segregadas pelas suas asas curavam todos aqueles que ficassem
mulher de Mider. Ela era a filha de Beothach, do clã de larbonel, doentes ou se sentissem debilitados. Ela acompanhava Mider
e, graças às lições de Bresal, conhecia melhor do que ninguem os onde quer que ele fosse, sem jamais o deixar, e ele regozijava-se
sortilégios e sabia lançá-los sobre quem lhe desagradasse. com a sua presença, pois sabia que Etaine estava do seu lado
tendo adquirido aquela forma. Ora, como ele a amava
Depois de se ter comprometido a tomar conta dela, Mider partiu profundamente, nunca se interessou por outra mulher enquanto a
com Etaine para o outeiro de Bri Leith, onde foram recebidos por mosca esteve com ele, e sentia-se saciado só de a contemplar.
Fuamilach que lhes deu as boas vindas. Em seguida, ela contou Adormecia ao som do seu zumbido, e ela encarregava-se de o
ao marido o que se passara nos seus domínios enquanto estivera acordar sempre que se aproximava alguém cuja presença lhe
ausente. «Vem, Mider>, disse ela, «para que eu te mostre a casa desagradava. Quando Fuamnach ouviu falar da mosca que tanto
e as extensões de terra que possuis, e para que a filha do rei extasiava Míder, compreendeu imediatamente que se tratava de
possa contemplar as tuas riquezas.» Etaine. Tratou então de Ir Visitar Mider, mas Por uma questão de
segurança fez-se acompanhar a Brug-na-Boyne Por três chefes
Mider fez então uma ronda completa pelos seus domínios e das tribos de Dana, a saber Dagda, Ogma e Lug do Braço Longo.
Fuamnach mostrou-lhe, assim como a Etaine, tudo o que fora
feito ao longo do ano. Depois, levou-os para casa e fê-los entrar Mider censurou vivamente Fuamnach e disse-lhe que, se ela não
no quarto onde dormia. «Só mulheres nobres têm acesso a este estivesse rodeada de três responsáveis pela sua segurança, a não
quarto», disse ela a Etaine, «e fica a saber que agora podes deixaria partir viva. Ela retorquiu que não tinha nenhum remorso
dispor dele à tua vontade.» pela ação praticada, que preferia fazer o bem a si mesma do que
a qualquer outra pessoa, e que, fosse qual fosse a forma que
Mas logo que Etaine se sentou na borda da cama, Fuamnach tomasse Etaine, nunca deixaria de a importunar. E, dito isto,
bateu-lhe com uma varinha de aveleira púrpura e transformou-a lançando encantamentos que lhe tinham sido ensinados pelo seu
numa poça de água que se estendeu por toda a casa. Feita a mestre, Bresal, desencadeou um vento druídico que envolveu a
malvadez, Fuamnach saiu o mais depressa possível dali e Mosca num grande turbilhão o a arremessou violentamente para
desapareceu da fortaleza para se refugiar na residência do seu fora da fortaleza de Bri Leith. E o vento era tão forte e terrível
pai adoptivo, o druida Bresal. que a infeliz Etaine não conseguiu encontrar nem lugar, nem
copa de árvore, nem cume de colina, onde pousar durante sete
Entretanto, o calor da lareira e do ar, e a fermentação do solo, anos, ficando refém dos rochedos à beira mar e das grandes
atuaram de tal forma sobre a poça de água espalhada pela casa vagas que vinham rebentar na praia. Mas, um dia, ela bateu em
que ela se transformou num verme, o qual pouco depois se tomou Mac Oc, quando este passeava no prado que dominava a
uma mosca purpura. Esta mosca tinha uma cabeça humana, e fortaleza do Brug-na-Boyne, e Mac Oc reconheceu Etaine na
jamais no mundo se vira um inseto tão belo como aquele. O som forma de mosca púrpura.
da sua voz e o zumbido das suas asas produziam uma música
mais suave ainda que a das harpas e das gaitas de foles, e os seus Ele deu-lhe as boas vindas e, dando-lhe guarida nas pregas do
seu manto para a proteger do vento que continuava a soprar,
levou-a para o interior da fortaleza. Aí ele colocou o insecto na
sua câmara de sol que estava sempre inundada de luz e que
continha ervas com multo bom cheiro e Propriedades
maravilhosas. E, a partir de então, ele dormia todas as noites ao
lado dela e cuidava dela com todo o carinho para que pudesse
reaver as suas cores e a suas energias.
Ora, Fuamnach, ao ouvir falar dos cuidados com que Angus quem sou responsável!»
tratava Etaine, na sua residência de Brug enviou-lhe um
mensageiro para lhe pedir que fosse a Bri Leith onde ela própria E, atirando-se a ela, cortou-lhe a cabeça e voltou depois para
se deslocaria para fazer a paz com Mider e o seu filho adotivo: se Brug-na-Boyne levando aquela consigo.
eles aceitassem a proposta de paz, ela devolveria a Etaine a
forma humana. Muito satisfeito com aquela proposta, Mae Oc foi Etaine, por seu lado, foi criada com todo o carinho por Etar em
logo ao seu encontro. Inber Cichmaine, onde estava rodeada de cinquenta filhas de
chefes. Etar dava-lhes de comer e vestia-as para que pudessem
Mas Fuamnach, ao invés de ir para Bri Leíth, foi direita a Brug e, estar constantemente a tomar conta de Etaine. Esta cresceu cheia
entrando na fortaleza, dirigiu-se logo para a câmara de sol. Aí de sabedoria e de beleza, e todos os homens do UIster elogiavam
lançou uns terríveis encantamentos, e o vento druídico, as suas qualidades e o seu encanto.
arrebatando o insecto do lugar onde estava, pô-lo a errar por
cima da Irlanda. Depois de suportar muito frio e muita chuva, a Um dia, quando as jovens se banhavam no estuário, viram um
mosca acabou por cair em estado de grande fraqueza no tecto cavaleiro que, saindo das águas, se dirigiu para elas. O cavaleiro
duma casa onde homens e mulheres do UIster se preparavam montava um cavalo escuro muito ágil, imponente e grande, com a
para começar a beber. Etaine estava de tal modo subnutrida e crina e a cauda frisadas. Cobria-o um manto verde cujas dobras
debilitada que adquirira a forma de uma mosca normal, e foi muito largas, com um broche de ouro saliente, caiam sobre uma
naquele estado que, passando através do buraco da chaminé, camisa fina ornada de bordado vermelho. Segurava na mão uma
entrou na taça de ouro que a mulher de Etar, um dos campeões lança de cinco pontas inteiramente guarnecida de ouro, e ao
do UIster, segurava numa das mãos. Esta, sem dar por isso, ombro trazia um escudo de prata bordado a ouro, Uma fita
engoliu-a com a bebida e ficou grávida naquela noite, dando à prendia-lhe os cabelos louros para impedir que eles caíssem
luz, nove meses depois, uma moça chamada Etaine, filha de Etar. sobre o rosto. Ele deteve-se diante das donzelas e entoou-lhes um
canto estranho que elas não compreenderam, embora tenham
Entretanto, Mider e Anger, tendo estado à espera de Fuamnach ficado encantadas com a beleza do cavaleiro e se tenham logo
sem que ela aparecesse, tinham ficado preocupados. «É evidente apaixonado por ele. Apesar disso, ele deixou-as, ficando elas sem
que ela nos fez cair numa armadilha», disse Mae Oc. «Se ela saber de onde viera e para onde ia aquele que era Mider e que
souber que Etaine está em minha casa, é capaz de lhe ir fazer viera de Bri Leith para contemplar Etaine, pois jamais ele a
mal. Devo por isso regressar urgentemente a Brug.» esquecera e jamais a amara tanto como agora.

Quando chegou à fortaleza, não encontrou Etaíne na câmara de Naquele tempo, o rei supremo da Irlanda era Eochaid Airem,
sol. Compreendeu então que Fuamnach ali estivera e que de novo filho de Fimi. Ora, naquele ano que se seguiu à sua subida ao
desencadeara um vento druídico para levar o insecto dali para trono, ele mandou que se anunciasse por toda a Irlanda que em
fora. Furibundo, partiu então no encalço de Fuamnach e Tara se realizaria um festim durante a festa de Samain. Todos os
encontrou-a precisamente no momento em que ela se preparava nobres e reis dos Filhos de Milé deveriam aí deslocar-se, pois
para entrar na casa do druida Bresal. «Maldita mulher!», gritou aproveítar-se-ía aquela ocasião para Se tratar de negócios e
ele. «Serás castigada pelo crime que cometeste, pois não posso para se fixarem os impostos que deveriam ser pagos ao rei
admitir que tenhas desonrado e posto em perigo a mulher por supremo. Mas os homens da Irlanda responderam que não iriam
ao festim de Tara enquanto o rei que os convocava não tivesse bem torneados e delicados, e muito brancos e redondos eram os
urna esposa digna de si. Na verdade, Eochaid Airem não era joelhos,
casado, e não havia chefe ou nobre da Irlanda que não honrasse
o festim de Tara tendo uma mulher a seu lado. Eochaid enviou Eochaid Airem, maravilhado com toda aquela harmonia,
então os seus servos e os seus mensageiros a todas as províncias aproximou-se da donzela e cumprímentou-a, tendo ela
em busca de uma mulher que fosse digna do rei supremo. Quando correspondido ao seu cumprimento. Depois, ele perguntou-lhe
voltaram, os enviados disseram-lhe que tinham encontrado quem ela era, e ela respondeu que era Etaine filha de Etar,
apenas uma mulher que correspondia exactamente ao ideal que campeão do UIster.
ele perseguia: Etaíne, filha de Etar, no UIster.
«Donzela, queres casar comigo’?», perguntou-lhe ele. «E quem
Na esperança de a ver, o próprio Eochaid Airem se deslocou és tu?» «Eu sou Eochaid Airem, rei supremo da Irlanda, e vim
então ao lugar onde lhe tinham indicado que estava a moça e, ao pedir-te em casamento.» «Não devo ser eu a dar-te uma resposta,
atravessar um vale verdejante, viu uma donzela junto a uma mas sim o meu pai». disse ela.
fonte, Com um pente de prata magnífico a sobressair de enfeites
dourados, ela lavava-se num tanque de prata ricamente O rei foi logo encontrar-se com Etar, e este concordou em lhe dar
ornamentado com quatro pássaros de ouro e pedras preciosas. A a filha se ele tivesse um bom dote para lhe dar. Eochaid deu-lhe
donzela estava vestida com um belo manto púrpura claro, tendo sete jovens escravas e uma magnífica manada de vacas brancas,
broches de prata e um alfinete de ouro a cintilarem sobre o peito. e levou Etaine para Tara.
Cobria-lhe o corpo uma camisa comprida de seda verde bordada
a ouro, com ouro e prata acolchetados, e o sol derramava tons Ao saberem que o rei arranjara uma esposa, os homens da
maravilhosos pela roupa que trazia vestida. No alto da cabeça Irlanda foram ao festim de Tara. Chegaram quinze dias antes do
tinha duas tranças douradas, e quatro ganchos mantinham-nas Samain e permaneceram quinze dias depois de terminado o
separadas, havendo uma pérola de ouro no alto de cada uma festim. Ficaram espantados com a beleza e a elegância de Etaine
delas. e não paravam de a elogiar, dizendo que nunca um rei da Irlanda
tivera uma mulher tão perfeita.
Naquele instante a moça soltava os cabelos para se lavar e,
segurando-os com as mãos, em seguida fê-los caírem sobre os Entretanto, Eochaid Airem tinha um irmão que se chamava Ailill
seios. As mãos eram mais brancas que a neve nocturna e as Anglonnach. E quando este viu Etaine pela primeira vez, no
maçãs do rosto mais vermelhas que uma dedaleira púrpura. A festim de Tara, apaixonou-se imediatamente por ela. Não parava
boca era fina e sem defeitos, e os dentes brilhantes como pérolas. de a contemplar e de suspirar, de tal forma que a mulher acabou
Os olhos eram mais cinzentos que o jacinto. Vermelhos e finos por lhe perguntar: «Para quem olhas, ó Ailill? Só o amo’* Pode
eram os lábios, leves e suaves os ombros, ternos, doces e brancos suscitar olhares tão profundos e suspiros como os teus!»
os braços. Os dedos eram longos, magros e brancos. As unhas
eram muito belas, de um vermelho pálido. O ventre era feérico, Ailíll, muito envergonhado, recriminou-se a si mesmo e evitou daí
mais branco que a neve ou a espuma do mar. As coxas eram em diante olhar para Etaine. Mas, tendo partido os homens da
macias e brancas, a barriga da perna estreita e muito elegante, Irlanda a seguir ao festim de Tara, Ailill pelo contrário deíxou-se
os pés finos, imaculados e brancos; os calcanhares eram muito ficar, sendo acometido de um estado de grande fraqueza devido
ao ciúme, a inveja e ao despeito que o minavam. Preocupado com espinho dilacerante que me rasga a alma e me destrói todo por
ele, Eochaid Airem, o seu irmão, mandou chamar o seu médico, dentro! O meu amor, que tem as dimensões da terra inteira e do
Fachtna. O médico auscultou o peito de AffilI, e este suspirou céu infinito, tortura-me noite e dia e flagela-me a alma que vive
profundamente. «Penso que não estás doente», disse Fachtna. no meio de sombras e de trevas! Não podes imaginar como me
«Tu foste acometido do que me parece ser uma espécie de consumo a lutar contra as sombras que não param de me visitar e
inveja,» de me torturar, ó mulher!» Assim falava cheio de mágoa Ailill
Anglonnac, filho de Finn, irmão do rei supremo da Irlanda,
Ao ouvir aquelas palavras, Ailill ficou cheio de vergonha e evitou Eochaid Airem. E, depois de se ter pronunciado, escondeu o rosto
dizer ao médico o que o atormentava, não podendo por isso ser com vergonha por estar apaixonado pela mulher do irmão. «É
curado. Ora, Eochaid Airem devia partir no seu périplo real uma pena que tenhas ficado tanto tempo sem dizer a origem do
pelas províncias da Irlanda, mas Preocupava-o tanto a saúde do teu mal», murmurou Etame, «pois poderíamos tê-lo curado há
irmão que disse a Etaine: <Mulher, trata do meu irmão e presta- muito tempo.» «Tu poderias curar-me completamente, se o
lhe toda a assistência que puderes, pois ele parece-me bem desejasses», disse Ailifi. «Eu quero», retorquiu Etaine. «Esta
doente. E, se Por infelicidade, ele morre, tu mesma faz-lhe a noite, quando todos forem dormir, vem ter comigo à casa que se
sepultura e escreve o seu nome em ogham na laje neste )ugar.» encontra fora da fortaleza. Eu estarei lá e farei com que fiques
curado.»
Tendo incumbido Etaine de cuidar de Ailili, Eochaid começou Aillil teve muito cuidado para não dormir, naquela noite. Mas,
então o seu Périplo por todas as províncias da Irlanda. Etaine, chegado o momento de partir para o encontro, foi visitado por
por seu lado, ia todos os dias à cabeceira de Affill para lhe lavar um sono profundo e dormiu até de manhã. Etame, por seu lado,
a cabeça e lhe dar de comer. Mas Affill piorava de dia para dia, e tendo-se dirigido para a casa fora da fortaleza, viu chegar um
Etaine receava que ele morresse. «Ouve», disse-lhe ela uma homem fraco e fatigado, parecido com Ailill, mas ela percebeu
noite, «às vezes fico a pensar que a tua doença é provocada por que não era ele. «Não foi contigo que marquei um encontro»,
um pensamento que não tens coragem de confessar. Estou certa disse ela, «mas com um homem a quem prometi curar, pois está
de que se mo confessares, poderei fazer alguma coisa para te muito doente devido à paixão que tem por mim.» «o encontro que
cura,> <Oh mulher!». respondeu Aiffil, «tu poderias fazer marcaste com esse homem não seria conveniente», disse o
alguma coisa para me curar mas eu não me atrevo a revelar-te a desconhecido, «e garanto-te que aquele que esperavas amanhã
causa do meu mal.» «Diz-me o teu segredo» «Não to direi», estará curado. Fui eu que o fiz dormir e vim no seu lugar para te
obstinou-se AffiL poupar à desonra e à vergonha.» «Mas quem és tu?», perguntou
Etaine. «Não me reconheces? Quando eras Etaine, filha de
No entanto, ao fim de alguns dias de muita insistência da parte Ecliraide, pertencias-me, e desde então nunca deixei de te amar.
dela, ele decídiu-se a falar, «Se queres saber a causa do meu Tu sabes bem que me chamo Mider de Bri Leith. «Se é como tu
mal», disse ele, «vou-to revelar: és tu. Desde que te vi pela dizes, o que é que então nos separou?», perguntou Etaine. «Os
primeira vez, fiquei de tal maneira apaixonado que deixei de ser artifícios de Fuaninach e os encantamentos do druida Bresal.
senhor do meu coração e dos meus sentimentos. E uma situação Não te lembras, ó Etaine, a mais amada e a mais digna de ser
bem triste, ó mulher do rei, pois o meu corpo e o meu espírito amada?» «Lembro-me, na verdade», disse Etaine, «mas tudo isso
estão doentes e nada me pode curar a não ser que tu própria me está envolto numa névoa muito distante, parecendo que sombras
sirvas de remédio. Nem podes imaginar como o meu amor é um aparecem à minha frente sem que eu consiga apreender o seu
sentido. E que farás tu para curar Ailill Anglonnach?» «Eu fá-lo- «tu curaste-me, e não sei como te agradecer.» «Eu sei como
ei passar por um sonho que o levará a pensar que te teve nos poderás agradecer-me», disse ela. «Basta que não fales a
braços durante toda a noite. O mulher tão amada, virás ninguém sobre o que se passou esta noite entre nós.»
comigo?» «E para onde me levas?», perguntou Etaine.
Passados alguns dias, Eochaid Airem voltou do seu périplo real
Então, Mider entoou este canto: pelas províncias da Irlanda. Ao ver o irmão curado, ficou muito
contente e agradeceu a Etaine o tratamento que lhe dera. Então,
«o bela mulher tão amada, virás comigo para a terra tão amada Ailill Anglonnach voltou para sua casa e nunca mais ficou
onde se ouvem músicas, doente. No dia seguinte, Eochaid Airem levantou-se muito cedo e
subiu ao terraço de Tara para contemplar a planície que se
Onde sobre os cabelos se levam coroas de primaveras, onde, da estendia sob o brilhante sol de Verão. Ao olhar ao redor da
cabeça aos pés, o corpo é da cor da neve, onde ninguém Pode fortaleza viu aproximar-se um estranho guerreiro, que vestia
ficar triste ou sentir-se infeliz, urna túnica púrpura e cuja cabeleira loura caía em ondas até aos
ombros- o guerreiro tinha os olhos brilhantes e a lança de cinco
Onde os dentes são brancos e as sobrancelhas são negras, onde pontas. No pescoço contas azuis, e na mão segurava um
as faces são vermelhas como as dedaleiras em flor? A Irlanda é escudo de prata bordado a ouro e com pedras preciosas nele
bela, mas Poucas paisagens são tão belas como as que verãs na incrustadas. Eochaid não o reconheceu, mas sabia que aquele
grande planície onde te levarei. homem não tinha estado na noite anterior na sala de festins de
Tara. «Bem vindo, guerreiro que não conheço», disse Eochaid-
A cerveja da Irlanda é Jorte, mas a cerveja da Grande Terra é «Eu conheço-te», respondeu o outro. «Tu és Eochaid Airem, rei
ainda mais inebriante. E um país maravilhoso o que já conheces- supremo de toda a Irlanda.» «Tens razão, mas corno te chamas’»
nele os jovens nunca envelhecem e correm rios de hidromel, nele «o meu nome não é muito conhecido entre os Filhos de Milé. Fica
os homens são encantadores, perfeitos, e o amor não é proibido... a saber que me chamo Mider

O mulher tão amada, quando chegares ao meu pais passarás a «E que desejas?» perguntouu Eochaid, «eu sou tigo», respondeu
levar uma coroa de ouro no cimo da cabeça, comerás porco o guerreiro. «Na verdade», «Gostava de jogar xadrez com Mider
fresco todo o ano, tomarás cerveja e leite, ó mulher, bela mulher de Bri Leith.» retorquiu, Sou muito bom no jogo de xadrez, e
tão amada, virás comigo? quando me desafiam para uma parti nunca recuso. Mas a rainha
ainda está a dormir, e o tabuleiro e as peças estão nos seus
«É impossível», respondeu Etaine. «Estou casada com o rei aposentos.» «Não importa», respondeu o guerreiro, «eu tenho
supremo da Irlanda e não o Posso deixar.» «E se eu conseguir aqui um jogo de xadrez que não tem menos valor.»
que o rei da Irlanda me dê a tua mão, virás comigo?» «Sim»,
respondeu simplesmente Etaine. Então Mider desapareceu, sem Era verdade o que dizia, pois tinha em seu poder um tabuleiro de
que Etaine soubesse o rumo que ele tomara. prata com cada canto iluminado por uma pedra preciosa. Depois,
retirou as peças que eram de ouro dum saco com malhas em
De manhã, ela viu Ailill Angloninach vir ao seu encontro com um bronze, e pousou o tabuleiro sobre o terraço. «Agora podemos
óptimo aspecto e um olhar radioso. «ó mulher!», exclamou ele, jogar», disse ele. «Eu não jogo se não houver um prémio», disse
Eochaid. «E qual será o prémio?», perguntou Mider. «É-me responsabilidades. »
indiferente.» «Pois bem», disse Mider, «se tu ganhares o prêmio
serão cinquenta corcéis acinzentados com as cabeças malhadas e Assim, quando Mider apareceu no terraço para propor a Eochaid
vermelhas, as orelhas pontiagudas, o peito largo, as narinas uma nova partida de xadrez, foi este a impor as condições em
muito abertas, as patas muito finas e poderosas, fogosas, rapidas, caso de vencer, a saber, retirar todas as pedras de Meath,
fáceis de atrelar, e também cinquenta rédeas esmaltadas. Se eu construir uma estrada sobre os pântanos de Larriraige e plantar
perder, os corcéis estarão aqui amanhã à terceira hora.» Os dois uma floresta no vale de Breifné. «Isso é muito», disse Mider,
homens começaram então a jogar. Eochaid ganhou a partida e «mas mesmo assim aceito as condíções.» Voltaram a jogar e
Míder retirou-se, levando o jogo de xadrez. No dia seguinte, Eochaid ganhou a partida. «Amanhã terás o que pediste», disse-
quando Eochaid andava pelo recinto da fortaleza de Tara, viu lhe Mider, «mas não deixes que nenhum homem ou mulher saia
Mider aproximar-se do terraço. Não sabia de onde ele vinha nem da fortaleza antes do sol nascer.» «Eu prometo», disse Eochaid,
como conseguira, satisfeito ao ver que Mider trazia consigo um «ninguém sairá da fortaleza antes do nascer do sol.»
grupo de cinquenta cavalos acinzentados com as
rédeas esmaltadas. Mas, ao invés de manter a promessa, o rei mandou o seu
intendente ver o que se passava. O homem saiu então da fortaleza
Chegar ali, mas ficou muito satisfeito com isso «Está bem», disse e foi observar os movimentos de Mider. Viu uma multidão de
ele, «mantiveste a palavra.» «o que é prometido é devido», disse homens a trabalharem arduamente na construção da estrada,
Mider. «Vamos jogar outro jogo hoje?» «Por mim está bem», outros a recolherem pedras, e ainda outros a plantarem árvores.
respondeu o rei, «na condição de que haja um prémio.» «Isso Voltou imediatamente para Tara e contou a Eochaid os grandes
nada tem de mais. Se ganhares esta partida, dar-te-ei cinquenta trabalhos que estavam a ser feitos durante a noite para que a
vacas brancas de orelhas vermelhas, cinquenta porcas com bojo promessa fosse cumprida. E acrescentou que nunca vira no
cinzento, cinquenta espadas com protecção em marfim, e mundo um poder mágico tão poderoso como aquele que
cinquenta mantos sarapintados. O que pensas?» «Concordo em testemunhara.
absoluto», respondeu Eochaid.
Estavam a conversar quando viram aproximar-se o grande
Fizeram uma partida, Eochaid ganhou, e no dia seguinte Mider guerreiro de cabelos louros e de olhos azuis. Tinha um cinto à
voltou com tudo o que tinha prometido. E assim foi durante volta do tronco e parecia furioso. Eochaid ficou um pouco
vários dias: Mider perdia regularmente, e Eochaid ia assustado, mas deu-lhe as boas vindas. «Pouco me importam as
acumulando as suas riquezas na fortaleza de Tara. tuas gentilezas», respondeu Mider com aspereza. «As tarefas que
me pedes para executar e as exigencias difíceis, Eu estava
Entretanto, o intendente do rei estava muito admirado com tantos realgências que me fazes são demasiado duras de cumprir o
tesouros acumulados em tão pouco tempo. Interrogou Eochaid, e combinado para te agradar, mas tu mente na disposição, acalma-
este contou-lhe como ganhava aquelas riquezas. «E muito te», disse o rei. «Eu tentarei ser abusas da situação.» «Vamos ao
estranho», disse o intendente. «Aconselho-te a não confiares jogo?», pedirei algo mais compreensivo na proxima vez».
neste homem, pois parece-me que ele tem poderes mágicos. Na «Fazernos Outro perguntou Mider. «De boa vontade», respondeu
próxima vez, não deixes que seja ele a propor o prêmio. Impõe- Eochaid- ’<Mas qual será o prémio?» «o que decidir o
lhe tu pesados encargos, e veremos como ele assume as suas vencedor», disse Mider. «Eu aceíto», disse oa vontade para
contigo, pois desse modo o rei, «o que prova a minha boa boas vindas.
vontade nada fica combinado previamente.»
Jogaram novamente, mas, desta vez, Míder ganhou deixando a «Estou aquí», disse Mider, «para reclamar o prêmio combinado e
Eochaid muito embaraçado, «Que prémio desejas?», perguntou. se não mo deres perderás a honra.» «Um rei da Irlanda não pode
E Mider respondeu, «Quero a tua mulher, Etaíne, filha de Etar dar a mulher a outro», respondeu Eochaid. «Posso dar-te tudo o
que foi minha mulher antes de ser tua.» «Nesse caso Eochaid que me pedires, mas é impossível que Etaine parta contigo esta
acabou Por dizer «Dá-me um prazo» «Eu dou» volta daqui a um noite.» «Tu prometeste-ma», disse Mider, «e deves liquidar a tua
dia e eu cumprirei o meu compromisso. dívida perante todos os homens da Irlanda.» «Eu não te darei
Etaine», disse Eochaid com um ar muito ríspido. «Não me
Mider partiu, deixando Eochaid numa grande angústia, o rei assustas», respondeu Mider. «Ninguém se pode furtar às suas
desconfiava que Mider tinha deliberadamente criado aquela obrigações e muito menos um rei. Eu próprio não tive de liquidar
situação catastrófica de que dificilmente conseguiria sair corno os compromissos assumidos, apesar de todas as dificuldades por
vencedor. Entretanto, nao tinha intenção nenhuma de perder que tive de passar?» «É verdade», acabou por ter de admitir
Etaine e de a dar a Mider, de tal forma que após muito refletir, Eochaid,
resolveu não cumprir com as suas obrigação. Então Mider voltou-se para Etaine. «Mulher», disse-lhe ele, «é
verdade que me acompanharás, se o rei supremo da Irlanda o
Que por esse motivo no dia combinado, Eochaid Aírein reuniu ao consentír?» «Sim», respondeu Etaine. «Eu prometi-to.» «Mas eu
seu lado todos os guerreiros da Irlanda em redor, em Tara, a não ta entrego!», gritou Eochaíd furibundo. «Cometes perjúrio»,
elite dos seus homens, cercando a fortaleza disse Míder, «e todos os homens da Irlanda são testemunhas de
que não tens palavra.» «Apenas consinto que tomes Etaíne nos
Além disso, Eochaid Providenciou de a forma que a casa onde braços e lhe dês três beijos», disse Eochaid. «Farei então como
estava com Etaine ser defendida por horda de tropas, homens dízes», disse Mider.
armados e determinados a resistir a
quem quer que quisesse chegar a rainha. As portas da fortaleza Míder segurou as armas com a mão esquerda e, com a direita,
assim poderes mágicos sabia que o homem de grandes chefes e os envolveu a cintura de Etaine e deu-lhe três beijos. Depois, sem
senhores que rodeavam o rei naquela noite, e servia pois Eocha, pronunciar uma palavra, fê-la passar por um orifício do tecto
não faltaria ao encontro marcado, Etaine As medidas tomadas desapareceram na noite.
não impediram, apesar de tudo, que Mider, aparecesse, sem se
saber como, no meio da casa. Ele era extremamente belo, mas a Os guerreiros que rodeavam por não terem podido impedi-lo, ele
todos pareceu que naquela noite estava ainda mais belo do que pertence às tribos de Dana», alguém disse, «e as tribos de Dana
era habitual, com os cabelos louros, os olhos azuis e o manto vivem nos outeiros da Irlanda. Com certeza ele refugiou-se com a
ornado com pedras preciosas e um broche de ouro. O coração de rainha no outeiro mais próximo.»
Etaine estremeceu ao vê-lo assim, no meio de uma assembléia
que lhe era hostil, mas ficou calada, limitando-se a encher os Eochaid partiu então, com a elite dos homens da Irlanda, para o
copos de cerveja e de hídromel. Estavam todos estupefatos por outeiro mais próximo de Tara, do lado oeste, o de Bart Finn.
ele estar ali, no meio da sala, quando todas as entradas lhe Quando aí chegaram, o rei ordenou que se escavasse o solo do
estavam vedadas. Mas Eochaíd avançou para ele e deu-lhe as outeiro até se conseguir desalojar os fugitivos. Escavou-se toda a
noite, vasculharam-se os mais recônditos recantos do outeiro,
mas não se encontrou nada nem ninguém, pois os homens das
tribos de Dana tinham o poder de se tornar invisíveis àqueles que
não eram do seu povo. Mas, de manhã, viram aproximara-se uma
mulher já velha. «Que procurais vós aqui, homens da Irlanda?»,
perguntou ela. «Procuramos Etaine, a mulher do rei da Irlanda,
que acaba de ser levada», responderam eles. «o homem que foi
encontrar-se convosco e que levou a vossa rainha não é daqui»,
respondeu ela. «Se desejais encontrá-lo, deveis dirigir-vos para a
resídência de Bri Leith.»

Rumaram para norte e, ao entardecer daquele dia, chegaram ao


outeiro de Bri Leith. Escavaram o solo toda a noite e de manhã
perceberam que todo o esforço tinha sido em vão. Apesar disso,
voltaram a escavar durante todo o dia, e, quando o sol já
declinava para o horizonte, viram dois cisnes brancos que, lado a
lado, se erguiam no céu, Por um instante os pássaros
sobrevoaram as suas cabeças e depois, rumando a norte,
perderam-se na bruma.

A partir deste tempo distante, quando a tarde cai e uma bruma


leve sai das turfeiras, ouve-se muitas vezes o canto dos dois
cisnes brancos que nadam à superfície das águas calmas de um
lago ou de um rio. Têm um canto tão harmonioso que é
impossível reter as lágrimas ao ouvi-lo, pois é a música das fadas
que se eleva no ar por entre os últimos raios de sol. Quando
menos se espera, vê-se os dois pássaros levantar voo, sobrevoar
por um breve instante na bruma, e desaparecer. E todos sabem
que é Etaine, a bela rainha de Tara, que, na companhia de Mider
de Bri Leith, rei das Sombras, vai percorrer o céu sobrevoando a
Ilha Verde em direção ao país da Eterna onde os frutos são
doces, a tristeza e nem a dor existem e onde as árvores têm flores
que nunca murcham.
Outra obra de Jean Markale publicada pela ÉSQUILO:

O CRISTIANISMO CELTA e as suas sobrevivências populares

Como foram os celtas cristianizados?

O que é que sobreviveu da antiga religião druídica?

É respondendo a estas e outras interrogações que Jean Markale


analisa este fenómeno histórico apaixonante que foi a emergência
do cristianismo celta. Nascido na Bretanha, na Irlanda e na ilha
da Bretanha de uma fusão entre o druidismo e o cristianismo,
esta espiritualidade aceita a mensagem de Cristo conservando ao
mesmo tempo muitas das características da tradição céltica:
Monaquismo, santos heróicos, integração das mulheres no culto,
bispos errantes, peregrinações pro amore Dei...

Ainda hoje, nas zonas rurais - essencialmente na Bretanha - Jean


Markale tem descoberto sobrevivências populares deste
cristianismo celta no culto dos santos, assim como nas festas
tradicionais e nos santuários.

Combatido pela Igreja de Roma - foi mesmo, por vezes,


considerado herético - o cristianismo celta influenciou
profundamente o conjunto do cristianismo e constitui uma chave
fundamental para compreender o «cristianismo português».
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