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ANÁLISE DO EPISÓDIO:
Inspirado em Homero e Ovídio, o episódio do Gigante Adamastor é o mais rico e complexo episódio do
poema, de natureza simbólica, mitológica e lírica. Ele se compõe de vinte
e quatro estrofes (canto V, 37 - 60), assim distribuídas:
Como se vê, há uma distribuição muito equilibrada das partes: das vinte
e quatro estrofes, quatro destinam-
-se à introdução, transição e epílogo; as vinte restantes, divididas ao meio, apresentam o herói da sequência.
Tanto Vasco da Gama como o Adamastor aparecem como narradores e como personagens.
No plano histórico, simboliza a superação pelos portugueses do medo do “Mar Tenebroso”, das
superstições medievais que povoavam o Atlântico e o Índico de monstros e abismos. Adamastor é uma
visão, um espectro, uma alucinação que existe só nas crendices dos portugueses. É contra seus próprios
medos que os navegadores triunfam.
No plano lírico é um dos pontos altos do poema, retomando dois temas constantes da lírica camoniana: o do
amor impossível e o do amante rejeitado: Adamastor, um dos gigantes filhos da Terra, apaixonou-se pela
nereida Tétis. Não correspondido, tenta tomá-la à força, provocando a cólera de Júpiter, que o transforma no
Cabo das Tormentas, personificado numa figura monstruosa, lançada nos confins do Atlântico.
ENREDO
37 - A viagem da esquadra é rápida e próspera até surgir uma nuvem que escurece os ares, sobre as cabeças
dos navegantes.
Porém já cinco sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca doutrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
38 - A nuvem escura que surgiu vinha tão carregada que encheu de medo os navegantes. O mar, ao longe,
fazia grande ruído ao bater contra os rochedos. Vasco da Gama, atemorizado, lança voz à tempestade
perguntando o que era ela, que ela lhe parecia mais que uma simples tormenta marinha. Repare que o
cenário aterrador fará a imagem do Gigante ainda mais terrível e assustadora.
39 - Vasco da Gama não havia terminado de falar quando surgiu uma figura enorme, de rosto fechado, de
olhos encovados, de postura má, de cabelos crespos e cheios de terra, de boca negra e de dentes amarelos.
Esta passagem é meramente descritiva.
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40 - A figura era tão enorme que poder-se-ia jurar ser ela o segundo Colosso de Rodes. Surge no quarto verso
a introdução da fala do Gigante, cuja voz fazia arrepiar os cabelos e a carne dos navegantes.
Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
41 - O gigante chama os portugueses de ousados e afirma que nunca repousam e que tem por meta a glória
particular, pois chegaram aos confins do mundo. Repare na ênfase que se dá ao fato de aquelas águas nunca
terem sido navegadas por outros: o gigante diz que aquele mar que há tanto ele guarda nunca foi conhecido
por outros.
E disse: "Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar nos longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d’estranho ou próprio lenho:
42 - Já que os portugueses descobriram os segredos do mar, o gigante lhes ordena que ouçam os os
sofrimentos futuros, consequências do atrevimento de cruzar os mares.
Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do úmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo largo mar e pola terra
Que inda hás de sojugar com dura guerra.
43 - O gigante afirma que os navios que fizerem a viagem que Vasco da Gama está fazendo terão aquele cabo
como inimigo. A primeira armada a que se refere Adamastor é a de Pedro Álvares Cabral, que perdeu ali
quatro de suas naus: o dano - o naufrágio – foi maior que o perigo, pois os navegantes foram surpreendidos.
44 - O gigante afirma que se vingará ali mesmo de seu descobridor, Bartolomeu Dias, e que outras
embarcações portuguesas serão destruídas por ele. As afirmações são ameaçadoras, como se verá: o menor
mal será a morte.
Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança.
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus verei, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
45 - É citado D. Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da Índia, e sua vitória sobre os turcos. O gigante
continua ameaçador: junto a ele continua a haver perigo.
46 - Nesta estrofe o gigante cita a desgraça da família de Manuel de Sousa Sepúlveda, cujo destino será
tenebroso: depois de um naufrágio, sofrerão muito.
47 - O gigante diz que os filhos queridos de Manuel de Sousa Sepúlveda morrerão de fome e sua esposa será
violentada pelos habitantes da África, depois de caminhar pela areia do deserto.
49 - O gigante continuaria fazendo as previsões se Vasco da Gama não o interrompesse perguntando quem
era aquela figura maravilhosa. O monstro responderá com voz pesada porque relembraria seu triste
passado.
Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: - Que és tu? Que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado!
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:
50 - O gigante se apresenta: ele é o Cabo Tormentoso, nunca conhecido pelos geógrafos da Antigüidade,
última porção de terra do continente africano, que se alonga para o Pólo Sul, extremamente ofendido com a
ousadia dos portugueses.
Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a africana costa acabo
Neste meu nunca visto promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.
51 - Adamastor diz que era um dos Titãs, gigantes que lutavam contra Júpiter e que sobrepunham montes
para alcançar o Olimpo. Ele, no entanto, buscava a armada de Neptuno, nos mares.
52 - Adamastor cometeu a loucura de lutar contra neptuno por amor a Tétis, por quem
desprezou todas as Deusas. Um dia a viu nua na praia e apaixonou-se por ela, e ainda
não há algo que deseje mais do que ela.
54 - Continua a resposta de Tétis: ela, para livrar o Oceano da guerra, tentará solucionar o problema com
dignidade. O gigante afirma que, já que estava cego de amor, não percebeu que as promessas que Dóris e
Tétis lhe faziam eram mentirosas.
Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano.
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano
(Que é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me, com grandes abondanças,
O peito de desejos e esperanças.
55 - Uma noite, louco de amor e desistindo da guerra, aparece-lhe o lindo rosto de Tétis, única e nua. Como
louco, o gigante correu abrindo os braços para aquela que era a vida de seu corpo e começou a beijá-la.
56 - Adamastor não consegue expressar a mágoa que sentiu, porque, achando que beijava e abraçava Tétis,
encontrou-se abraçado a um duro monte. Sem palavras e imóvel, sentiu-se como uma rocha diante de outra
rocha.
Oh! Que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Que eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E junto dum penedo outro penedo!
57 - Adamastor invoca Tétis, perguntando porque, se ela não amava, não o manteve
com a ilusão de abraçá-la. Dali ele partiu quase louco pela mágoa e pela desonra
procurando outro lugar em que não houvesse quem risse de sua tristeza.
Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quase insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
59 - A carne do gigante se transformou em terra e os ossos em pedra; seus membros e sua figura alongaram-
se pelo mar; os Deus fizeram dele um Cabo. Para que sofra em dobro, Tétis costuma banhar-se nas águas
próximas.
Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês e esta figura
Por estas longas águas se estenderam;
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.
60 - O gigante desapareceu chorando e o mar soou longínquo. Vasco da Gama ergue os braços ao céu e pede
aos anjos que os casos futuros contados por Adamastor não se realizem.
ESTRUTURA DO CANTO V
A estrutura do Canto V é complexa. São muitos e detalhados os fatos relatados pelo poeta.
A armada deixa o porto (1), segue a costa da África (5, 6, 8) até aportar na ilha Santiago, Cabo Verde (9).
Abastecida de provisões e água, a armada dá velas ao vento até a ilha de São Tomé (12). Novamente no mar,
é apanhada por uma tormenta (16), avista terra (24) e, após fundear, os navegantes
desembarcam (26). Em terra entram em contacto com a negra gente (29), que convida
Fernão Veloso para acompanhá-la até a aldeia (30). Segue-se uma breve escaramuça
(33). Os portugueses recolhem-se nas naus, descobrem que estão longe das Índias e
partem (34 a 37).
Cinco dias se passam até que, numa noite, avistam o gigante Adamastor (38).
O gigante conta suas desventuras, até suas carnes transformarem-se em terra dura (38
a 59). O gigante é encontrado no Cabo das Tormentas (50). A armada segue viagem e
aporta novamente, entrando em contacto com nativos amistosos (62, 63). Zarpa, mas
encontra dificuldade para seguir viagem (66). Aporta uma vez mais (68), sendo
recebida com frieza (69).
FOCO NARRATIVO
O Canto V do poema épico "Os Lusíadas" foi escrito em primeira pessoa:
(17) "Vi, claramente visto, o lume vivo"
Até entrar em cena o gigante Adamastor, o texto é narrativo. Depois, consiste de um diálogo indirecto livre;
(41) "E disse - <<Ó gente ousada, mas que quantas."
(49) "Mais ia por diante o monstro horrendo
Dizendo nosso fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: - <<Quem és tu? que esse estupendo"
TEMPO
No canto V, o tempo é rigorosamente cronológico. A ação se desenrola de maneira contínua, desde a armada
partir de Portugal até chegar a Moçambique
(30) "Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,
Todos nus, e da cor escura treva,
Descendo pelos ásperos outeiros,
As peças vem buscar que est'outro leva,
Domésticos já tanto e companheiros,
Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernào Veloso a ir ver da terra o trato
E partir-se com ele pelo mato."
O tempo cronológico, só encontra uma breve interrupção quando o gigante Adamastor entra em cena.
ESPAÇO
A acção se processa nas embarcações da armada, nas ilhas Santiago e
São Tomé, costas da África, Cabo da Tormenta e Moçambique. O
oceano ocupa uma posição de destaque na narrativa. Seguindo a
tradição medieval, Camões não se preocupou muito em descrever
minuciosamente o espaço. Ao citar os lugares-comuns partilhados, o
poeta activa os símbolos que constituirão a referência espacial do leitor.
(8) "Passadas tendo já as Canárias ilhas,
Que tiveram por nome Fortunadas,
Entrámos navegando, pelas filhas
Do velho Hespério, Hespéridas chamadas,
Terras por onde novas maravilhas,
Andam vendo já nossas armadas.
Ali tomámos porto com bom vento,
Por tomarmos da terra mantimento."
O narrador do episódio, Vasco da Gama, procura descobrir onde está (26), não se intimida diante do gigante
Adamastor questionando-o (49). Roga protecção a Deus (60) e exorta os marinheiros (90/100).
(49) "Mais ia por diante o mostro horrendo
Dizendo nossos fados, quando, alçado,
Lhe disse eu:- <<Quem és tu? que esse estupendo
Corpo certo me tem maravilhado!>>"
O Gigante Adamastor é robusto, de grande estatura, rosto barbudo, olhos encovados, cabelos crespos boca
negra, dentes amarelos, membros grandes, voz grossa e horrenda (39/40). Revela que foi aprisionado em
virtude de seu amor por Thetis e lamenta seu destino chorando medonhamente (60).
(40) "Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
C'um tom de voz nos fala horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo
A mim e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo."
Camões coloca lado a lado uma personagem histórica e uma mitológica. Vasco da Gama agiganta-se diante
do semideus pelo seu destemor (não foge, questiona-o); Adamastor diminui-se diante do Capitão da
esquadra ao reconhecer-se prisioneiro de seu destino. É impossível deixar de notar como o poeta, através do
confronto de personagens tão singulares, ressalta o antropocentrismo. Ao homem a tudo é permitido, até
mesmo desafiar um semideus.
É por isto que já se disse que os "...heróis de Camões raramente parecem de carne; falta-lhes carácter e
paixões. São em geral estátuas processionais, solenes e impassíveis. Na resolução desta dificuldade de dar
dinâmica e caracteres ao seu poema, o Poeta encontrou a seu favor certas praxes greco-romanas do género
que lhe forneceram protótipos de uma intriga entre deuses apaixonados."
LINGUAGEM
Em Camões a língua portuguesa assume seu perfil nacional. O processo de "desgalização" da língua que
vinha ocorrendo no período anterior (1140-1350) se consolidará na época do poeta. Camões maneja com
habilidade e harmonia um idioma bem definido, capaz de expressar emoções e pensamentos nobres e
elevados.
Ao contrário do que defendem certos autores, não foi Camões que fixou o uso da língua portuguesa, mas o
padrão culto da mesma tal qual era empregado no século XVI. Isto não retira seu mérito, pois através de sua
obra o poeta transformou-se em paradigma indispensável àqueles que pretendem expressar-se através da
língua portuguesa.
Em Camões, a prosódia submete-se ao império da construção poética . Às vezes, o acento tônico é deslocado
para atender aos ditames da versificação. No Canto V a palavra "etiope" aparece duas vezes:-
(32) "Um etiope ousado se arremessa"
(62) "Posto que todos os etiopes erram"
Nos primeiro caso a sílaba tônica recai em "o", na segunda em "i" por necessidade
métrica, porque correspondem respectivamente a 4ª e 8ª sílabas de versos sáficos.
À época de Camões a ortografia não era uniforme. Assim, não há por que ater-se a
este aspecto da obra.
A morforlogia camoniana é basicamente a mesma de nossos dias. Entretanto, a
flexão verbal é vassilante. Assim, o poeta emprega o verbo "consumir" no presente
do indicativo com a grafia "consume" e não "consome".
(2) "E o mundo que com o tempo se consume"
RECURSOS EXPRESSIVOS
Ao longo do poema épico, Camões lança mão de diversos recursos expressivos.
(6) "Onde as aves no ventre o ferro gastam"
Através desta hipérbole, o poeta aumenta a capacidade natural das aves.