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RESUMO: A pesquisa dialoga com estudos sobre a obra de arte e a História. Nesse sentido –
a partir das considerações de Roger Chartier sobre o conceito de representação – explora-se a
peça teatral Gota D’água de Chico Buarque e Paulo Pontes (1975) e as determinações do seu
contexto histórico, para a consignação dos significados construídos por seus dramaturgos. As
reflexões de Carlos Vesentini acerca das várias formas que um fato pode se apresentar
auxiliaram a análise das personagens. Foram observadas como integrantes de um processo
conflituoso, em que as particularidades dos interesses compõem uma gama heterogênea de
pensamentos e condutas; seja na busca por uma resistência democrática contra a repressão
militar, seja centrando-se de acordo com o ideal do “milagre econômico”.
ABSTRACT: The research dialogues with studies about work of art and History. In this way
– to depart from Roger Chartier’s considerations about the representation’s concept – explores
Chico Buarque and Paulo Pontes’ play Gota D’água (1975) and the determinations of this
history’s context for the consignment of meanings constructed by the dramatists. Carlos
Vesentini’s reflections about the many ways that one fact can be shown helped to analyze the
characters. They were observed like members of a conflict process, that particularities of
interests compose a heterogeneous’ gamut of thoughts and behaviors; be it in a search for a
democratic resistance against the military’s repression, or centering by the way of the
“economics’ miracle” ideal.
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Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Avenida Jerônimo Maia Santos, 107, apt.
202, Bairro Santa Maria – Uberlândia-MG. CEP: 38408-014. E-mail: dolorespuga@gmail.com
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Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Rua dos Antúrios, 11. Bairro Cidade
Jardim – Uberlândia-MG. CEP: 38412-100. E-mail: rpatriota@triang.com.br
INTRODUÇÃO daqueles que se aventuram a analisar o
texto teatral; de maneira a compreendê-lo
Para trabalhar com o texto teatral
como uma particularidade produzida
como objeto de pesquisa por excelência, há
dentro de um contexto histórico cujo
que se considerar a maneira peculiar em
processo é dinâmico e passível de novas
que foi construída sua estrutura dramática,
explicitações.
principalmente a análise da função da
rubrica, das personagens e das músicas
DESENVOLVIMENTO
para o desenrolar das temáticas abordadas.
Determinadas considerações de Chico Gota D’água pode ser dividida em
Buarque e Paulo Pontes – autores de Gota dois atos e em cada um deles observa-se a
D’água (1975) – são observadas e existência de cinco sets onde acontecem as
examinadas dentro do contexto ficcional da cenas: o set das vizinhas lavando roupa; do
obra, fornecendo-nos possibilidades de botequim; da oficina da personagem Egeu;
investigação acerca das questões que estes da casa de Joana – que quando surge toma
dramaturgos elencaram como relevantes o lugar neutro não ocupado pelos outros
para a discussão da trama. sets – e, finalmente, da casa de Creonte (o
Para esta empreitada, não é possível dono de um conjunto habitacional no Rio
partir das primeiras leituras da peça, uma de Janeiro denominado Vila do Meio-Dia,
vez que as idéias iniciais da obra podem lugar onde mora Joana). O primeiro ato
estabelecer confusas interpretações. reforça, a todo o momento, a traição de
Segundo João das Neves: Jasão para se casar com Alma, filha de
Realizar a passagem da intuição para a Creonte, bem como o sofrimento de Joana
consciência é, pois, o objetivo da análise
do texto. Para que esta passagem possa
e a situação de dívida, pobreza, alegrias e
ser feita é necessário conhecer todas as amarguras dos habitantes da vila. O
características do texto teatral, sua
estrutura, seus ritmos internos, etc. segundo ato ressalta da altivez até o fim
Quanto mais aprofundada for a análise
trágico da rica cerimônia de casamento do
do texto, maior a liberdade criadora de
seus intérpretes e não o inverso. protagonista.
(NEVES, 1987, p.11)
A maneira como o texto foi
Ao interpretar a peça Gota D’água, desenvolvido demonstra a preocupação
dos autores pela valorização da palavra,
situo minha conduta como um possível uma vez que sua estrutura se determinou
por versos, com intuito de reforçar a
apontamento na organização proposta presença popular. Segundo Paulo
pelos autores. É justamente desse modo Pontes: “o verso [...] é capaz de
aprofundar o personagem social e de dar
que se fundamenta a “liberdade criadora” uma dignidade, uma força teatral, que
substitui o diálogo em prosa, naturalista
3
1998, p. 92) Para Adriano de Paula Rabelo, Fica provado que é demais a prestação
Então o seu Creonte não tem solução
“[...] quando os protagonistas surgem em Ou fica quieto ou manda embora toda a
cena, sabe-se bem quem eles são e que gente
Cachorro, papagaio, velho, viúva, filha...
conflitos vivenciam”. (RABELO, 1998, p. Creonte vai dizer que é tudo vagabundo?
E vai escorraçar, sozinho, todo mundo?
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Pra isso precisava ter outra virilha
Porém, em meio às primeiras Não é?...
Amorim – Tem boa lógica...
discussões dos vizinhos, surge, no set da Egeu – Falei?...
oficina, a personagem Egeu. Ele é um dos Amorim – Sei não.
Amorim sai do set da oficina; mestre
principais responsáveis por transformar o Egeu volta ao seu rádio [...].
(BUARQUE; PONTES, 1998, p. 35-36)
argumento da trama de Gota D’água de
tragédia amorosa a, igualmente, tragédia O papel de Egeu na trama de Gota
social; uma vez que além de ser traída por D’água fica ainda mais destacado quando,
Jasão, Joana também deve algumas com o intuito de defender a idéia de que os
prestações de sua casa a Creonte. Vizinho habitantes da Vila do Meio-Dia não
de Joana que sobrevive do trabalho de deveriam pagar a prestação como protesto,
consertar eletrônicos, Egeu – segundo busca convencer a personagem Boca
Paulo Vieira (1989) – é o mentor do Pequena a entrar no movimento. Este,
conflito ideológico da Vila do Meio-Dia. diferentemente da maioria da população,
Deste modo, esta personagem servirá de sempre consegue pagar suas contas em dia.
apoio aos dois grupos de vizinhos, uma vez Egeu – Pois é, Boca Pequena
Tá todo mundo pendurado. Uma centena
que compartilha da dor de Joana e, ao de famílias sem poder pagar. Mas você
é um dos poucos que se arranja, não sei
mesmo tempo, divide o sentimento de por que...
injustiça social pelas imposições de Boca – Eu sou esparro de boate de
turista,
Creonte à cota de altos juros nas habitações carregador de uísque de contrabandista,
vice-camelô, testemunha de punguista,
do vilarejo. Egeu seria, então, a
sou informante de polícia, chantagista,
representação do intelectual lutando pela mas vigarista nenhum diz que eu não
presto
resistência democrática. desde que, como todo cidadão honesto,
Os dois grupos [de vizinhos] param um no fim do mês pago as minhas contas à
tempo e meditam; depois retomam suas vista
atividades, enquanto o primeiro plano Egeu – Já pagou a casa esta vez?...
passa para a oficina. Boca – Já separei
Egeu – Pois eu vou te dizer: se só você porque é sagrado. Como santo em
não paga procissão
você é um marginal, definitivamente, Não precisa pedir pra fazer o que sei
Mas imagine só se, um dia, de repente que é meu dever...
ninguém pagar a casa, o apartamento, a Egeu – Pelo contrário: pague não
vaga Boca – Que é isso, mestre, eu sou
Como é que fica a coisa? Fica diferente madeira de lei
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Egeu – Pois ouça, Boca, não pague nem da Vila do Meio-Dia, ele é a mais ousada
um tostão
Se ninguém paga, é que não tem de onde representação das pessoas que buscam
tirar sobreviver a qualquer custo. Seu caráter e
Se você paga, vai tirar toda a razão
de quem tem todas as razões pra não suas atitudes dificultam a construção de
pagar
Boca – Que merda, mestre... uma idéia definida de dever e honestidade,
Egeu – Merda sim ou merda não? uma vez que, embora pague suas contas à
Boca Pequena fica um tempo coçando a
cabeça; depois de hesitar um pouco, vista – e por isso se encaixa no discurso e
aperta a mão de Egeu e parte para o set
do botequim; mestre Egeu retoma seu
na lei do sistema de Creonte para o
trabalho, consertando o rádio [...] “cidadão honesto” – pratica muitas ações
(BUARQUE; PONTES, 1998, p. 37)
ilegais para conseguir dinheiro suficiente e
A personagem Boca Pequena foi em dia. O próprio nome Boca Pequena já
apontada de maneira a enfatizar a idéia indica a fama da personagem: trata-se de
plural que os autores da peça possuíam de um “fofoqueiro” que age sob os seus
“povo”. Há que se levar em conta que os interesses; seja ao lado das idéias de Egeu,
dramaturgos buscaram mostrar a seja em favor de Creonte, contando-lhe
heterogeneidade existente dentro do tudo o que ocorre no conjunto
próprio conceito, permitindo-nos enxergar, habitacional; inclusive os planos do
pela riqueza do texto teatral, a variedade de primeiro para unir a população contra o
condutas, pensamentos, angústias e dono da vila.
contradições das personagens, Outra figura que se destaca em
representantes da multiplicidade popular. Gota D’água, pelo problema que
Todos sabiam do sofrimento de encontramos em buscar estabelecer uma
Joana. Durante a trama, muitos diziam idéia estável de “povo”, é Cacetão. Sem
estar ao seu lado, afinal viviam na pobreza agir sob atitudes tão ilícitas como Boca
como ela. Outros comemoravam o feito de Pequena, Cacetão é uma personagem
Jasão, afirmando que, ao se articular com social igualmente complexa, porque se
Creonte, ele havia escolhido, para ele, a trata de um gigolô que sobrevive do
opção correta. Outros ainda tinham receio dinheiro de uma viúva.
de que, se conciliando com Creonte, Jasão Primeiro plano para botequim, onde já
iria se esquecer de ajudar a população da se ouvem os primeiros acordes e o ritmo
de uma embolada
vila. Cacetão – (Cantando)
Depois de tanto confete
Entretanto, o caso de Boca Pequena Um reparo me compete
é ainda mais instigante. Apesar de sofrer as Pois Jasão faltou a ética
Da nossa profissão
mesmas injustiças que os outros habitantes Gigolô se compromete
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Parece até que nossa casa foi roubada... como água para o pessoal da vila. Enfim,
[...]
Jasão – Eu só não gosto planta-se a idéia de que a comunidade
de deixar este fim de mundo sem levar “anda sempre para frente” na esfera
tudo o que sempre foi pra mim a vida
inteira econômica, e isso significaria,
Uma alegria ou outra, um pouco de
saudade, conseqüentemente, avanços no setor social.
meus filhos, minha carteira de A partir do discurso de Creonte,
identidade,
cada bagulho, meu calção, minha comparando o prestígio e a importância de
chuteira,
a mesa do boteco, o time de botão,
um homem que domina no campo
tanto amigo, tanto fumo, tanta birita econômico – o que representa
que dava pra botar na sala de visita
mas ia atrapalhar toda a decoração... perfeitamente também uma autoridade
(BUARQUE; PONTES, 1998, p. 45; 46; política – ao símbolo da cadeira,
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demonstra-se, por meio de um simples
Durante sua conversa com Alma,
objeto, todas as funções que Jasão deverá
Jasão se vê diante de um impasse: escolher
aprender se quiser se regozijar das
se conservar com os costumes populares e
riquezas.
com seu samba, ou se estabelecer
Creonte – Escute, rapaz,
definitivamente a favor dos dominantes. A você já parou pra pensar direito
o que é uma cadeira? A cadeira faz
personagem que simboliza o o homem. A cadeira molda o sujeito
convencimento de Jasão pelo lado dos pela bunda, desde o banco escolar
até a cátedra do magistério
poderosos é justamente Creonte. Este é a Existe algum mistério no sentar
que o homem, mesmo rindo, fica sério
representação do poder, de todas as Você já viu um palhaço sentado?
formas. Como dono do conjunto Pois o banqueiro senta a vida inteira,
o congressista senta no Senado
habitacional, Creonte é o símbolo da e a autoridade fala de cadeira
[...] Sentado está Deus-Pai,
riqueza e, por isso mesmo, do controle do o presidente da nação, o dono
povo. Como tal, esta é a personagem que do mundo e o chefe da repartição
O imperador só senta no seu trono
impõe o que é certo e o que é errado; o que que é uma cadeira co’imaginação [...]
(Tempo) Pois bem, esta cadeira é a
deve ser feito, o que não deve. Ele se
minha vida
coloca como representante da população e Veio do meu pai, foi por mim honrada
e eu só passo pra bunda merecida [...].
preocupado com o social e com seus (BUARQUE; PONTES, 1998, p. 49;50)
avanços – um bicheiro; espécie de
Esta fala destaca com clareza que,
“protetor” e “amigo” da comunidade que
apesar de ser comum àquele momento o
sofre com a miséria: auxilia o time de
desejo de todos pela possibilidade do
futebol com uniformes, doa as fantasias da
“milagre” de um enriquecimento fácil, pela
Escola de Samba para o carnaval, bem
garantia de uma boa moradia própria, de
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muitos bens e de uma vida de confortos – e, por isso restaria, para ela, seu
idéia construída por Creonte justamente posicionamento de repressão.3
por meio de seu discurso –, o domínio e o Nesse ínterim, Creonte deixa bem
direito à “sentar-se na cadeira do poder” (o claro que é necessário impor a ordem para
verdadeiro “trono”) era uma realidade de que ocorressem as melhorias almejadas
poucos. Creonte, a partir de sua eloqüência pela população da vila. As pessoas deviam
buscava se mostrar prestativo às obedecer a suas regras, sobretudo
necessidades da população do vilarejo, aceitando a expulsão de Joana do conjunto
aproveitando-se de suas carências e habitacional, tida como “arruaceira”, ao
sonhos. Com isso, persuadiu a todos a ameaçar com vingança e morte aqueles que
comprar, a prazo, as moradias do conjunto concebiam o poder. Há referência a uma
habitacional, “vendendo”, juntamente das principais características do período da
àquelas residências, a idéia da ditadura militar, isto é, a ordem acabou por
confraternização do “povo”, com o se tornar justificativa em nome do
carnaval, o futebol, as festas. progresso, investindo em uma combinação
Com intenções de manter-se no de autoritarismo e crescimento econômico.
controle, Creonte discute com Jasão que Enquanto isso, no momento em que
não concorda com aquilo que Egeu estava surge Joana, ela embala um longo diálogo
fazendo. Para o dono da Vila do Meio-Dia, com as vizinhas, divulgando seus planos de
sonegar as dívidas das casas não era se vingar de Jasão, Creonte e Alma.
correto. Dessa forma, manda Jasão Durante a revelação da tragédia, as
convencer o mentor do movimento de mulheres ficam espantadas e buscam
protesto a desistir da ação, e afirma que, convencê-la a não prosseguir com suas
para aqueles que estão no poder, às vezes é idéias. Logo, Joana desabafa o que pensa
preciso ter hora para ser amigo e hora para sobre seus próprios filhos. Eles, por receio
ser o autoritário. Dizendo isso, revela seus das vizinhas, passam a se tornar um dos
planos de expulsar Joana, uma vez que, principais alvos do ódio da protagonista.
pelas pragas rogadas com seus hábitos de Joana – (Falando com ritmo ao fundo)
Ah, os falsos inocentes!
umbanda e seu atraso com seis prestações, Ajudaram a traição
Creonte a considerava perigosa. Na São dois brotos das sementes
pelo sucesso da música que toca a todo Carlos amava Dora que amava Lia que
amava Léa que
tempo na rádio. amava Paulo que amava Juca que amava
Ainda no primeiro ato da peça, Dora que amava...
Carlos amava Dora que amava Rita que
duas outras canções se apresentam dentro amava Dito que
amava Rita que amava Dito que amava
do contexto temático: “Flor da Idade” e Rita que amava...
“Bem-querer”. Por meio da primeira Carlos amava Dora que amava tanto que
amava Pedro que
música em questão, os vizinhos, que se amava a filha que amava Carlos que
amava Dora que
encontram no botequim, descrevem a Jasão amava toda a quadrilha...
como se encontra a Vila do Meio-Dia amava toda a quadrilha...
amava toda a quadrilha...
desde o momento em que ele partiu para se (BUARQUE, 2004, p. 112)
casar com Alma. O protagonista, após a
Ao aprofundarmos nos sentidos de
conversa com Egeu, vai visitar seus antigos
“Flor da Idade” podemos perceber, ao
companheiros.
início da música, a representação dos
A gente faz hora, faz fila na Vila do
Meio-Dia hábitos mais comuns do povo do vilarejo.
Pra ver Maria As festas no botequim, as bebidas, os
A gente almoça e só se coça e se roça e
só se vicia namoros com as “Marias”, a característica
A porta dela não tem tramela
A janela é sem gelosia bucólica das casas, das comidas e dos
Nem desconfia cheiros. Posteriormente, os vizinhos de
Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o
primeiro amor Jasão lhe apontam o que ocorre com as
à realidade de todo o povo. Eis a dama e Pra você ficar um pouco mais
Há que me afagar com a calma
seu drama que envolvem Jasão e todos os A calma, a calma, a calma dos casais
outros moradores do conjunto habitacional.
E quando o meu bem-querer ouvir
A última parte da canção se refere O meu coração bater demais
Há de me rasgar com a fúria
aos amores mal resolvidos que fazem parte A fúria, a fúria, a fúria assim dos
da tragédia de Chico Buarque e Paulo animais
Pontes como um todo. Não apenas pela E quando o seu bem-querer dormir
Tome conta que ele sonhe em paz
traição de Jasão, mas também pelo amor Como alguém que lhe apagasse a luz
não correspondido de Cacetão por Joana, Vedasse a porta e abrisse o gás
(BUARQUE, 2004, p. 111)
que se declara no momento em que ela se
encontra mais sozinha para lutar contra a A música esboça a figura de Jasão.
Após a conversa com Egeu, Jasão com Joana em meio à pobreza, à cobrança
que teve com Creonte. Essa ambigüidade presente na ansiedade da vida de toda a
partir da conversa que tem com Joana, um maço de cigarro”, pelo cansaço e por
cantada por Joana, representa o amor que pela personagem Alma. Esse conflito se
Joana – Meus filhos! Eles não são filhos das “camadas populares”. Nestas
de Jasão!
Não têm pai, sobrenome, não têm circunstâncias, segundo eles, o povo ficaria
importância “no ora veja” e suas problemáticas
Filhos do vento, filhos de masturbação
de pobre, da imprevidência e da permaneceriam. Essas considerações
ignorância
São filhos dum meio-fio dum beco podem nos fornecer um olhar por sobre o
escuro período de criação de Gota D’água.
São filhos dum subúrbio imundo do país
São filhos da miséria, filhos do monturo O inconformismo e a disponibilidade
que se acumulou no ventre duma ideológica de setores da pequena
infeliz... burguesia foram, em muitos momentos
São filhos da puta mas não são filhos de nossa história, instrumentos de
teus, expressão das necessidades das classes
Seu gigolô!... (BUARQUE; PONTES, subalternas. Amortecendo-os, as classes
1998, p. 91-92) dominantes produziram o corte que
seccionou a base dos segmentos
A fala de Joana norteia, por meio superiores da hierarquia social. Isoladas,
às classes subalternas restou a
da figura dos filhos, aquilo que se torna marginalidade abafada, contida, sem
saída. Individualmente, ou em grupo,
referência para o povo brasileiro. Enquanto um homem capaz, ou uma elite das
apenas uma minoria é escolhida para camadas inferiores pode ascender e
entrar na ciranda. (BUARQUE;
construir o “progresso” do país, a maioria PONTES, 1998, p. 13)
se vê diante da exclusão. Os privilegiados
Porém, dentro do contexto da peça,
são simbolizados na escolha da
antes que Jasão se sentisse totalmente
personagem Jasão – feita por Creonte –,
integrado na “ciranda” de Creonte, discute
caso obedecesse às ordens do poderoso.
com este a respeito das definições que cada
Foi, por isso, considerado digno de sentar-
uma dessas personagens possuía acerca do
se no “trono” e, como afirmou Egeu na
que é ser povo brasileiro. Apesar da
peça, seria chamado de um dos “mais
traição, o protagonista também enfrenta as
capacitados” para a manutenção do sistema
contradições de ser povo, de ter sido criado
capitalista.
por ele e que, aos poucos, nesta
No prefácio do livro (realizado
coletividade não mais se identificará. No
também em 1975), onde foi produzida a
diálogo com Jasão, Creonte defende o
peça, Chico Buarque e Paulo Pontes
sistema imposto como um sacrifício válido
declaram que esta referência entre minoria
para conquistar o almejado “progresso”:
privilegiada e maioria excluída,
Creonte – [...] Muito bem. Na Segunda
responsáveis por permear a temática Guerra,
só russo, morreram vinte milhões [...]
central da obra, se dá pela capacidade do Na Inglaterra, uma pobre criatura
sistema de desarticular os intelectuais, bem de oito anos, há dois séculos atrás
já trabalhava na manufatura
como a considerada “pequena burguesia” o dia inteiro, até não poder mais,
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para que os vizinhos ouvissem o traiçoeira, [...] não há mal que nunca se
argumento de Egeu a respeito da injustiça e acabe nem festa que dure a vida inteira”.
do autoritarismo de Creonte. (BUARQUE; PONTES, p. 75) Mas é
Todos se dirigem à casa do dono do justamente por meio daquilo que Creonte
conjunto habitacional. Por receio a uma havia prometido para a Vila do Meio-Dia e
possível rebeldia da população, Creonte a realização da grande festa de casamento é
resolve colocar em prática os planos de que ele esvazia os sentidos da relação que
Jasão. Para isso, quita todos os débitos dos Egeu buscava construir entre o problema
habitantes, manda construir campo de de Joana e as dificuldades de toda a
futebol, orelhões e outras facilidades no população. Dentro desse novo contexto, os
vilarejo. vizinhos e as vizinhas mudam de atitude
O controle de Creonte fica ainda em relação ao sofrimento pessoal de Joana.
mais evidente no momento em que propõe Agora, seus interesses econômicos “falam
a participação de todos do subúrbio na mais alto”. Isso pode ser observado por
festa do casamento de sua filha, dando-lhes meio de um diálogo entre as mulheres:
serviços, “comes e bebes”. Constrói-se, Corina – Não
acho que é certo, não...
dessa maneira, o significado de sua Nenê – Por quê? Bobagem...
manipulação pela harmonia do ato de se Estela – Eu não sei, não...
Zaíra – Também não...
confraternizar e se esquecer – por meio da Maria – É um serviço
como outro qualquer...
alegria temporária – as dificuldades da [...]
vida e da pobreza. Corina – Precisa ter um colhão
pra pegar esse biscate... (ficam todas em
Creonte – [...] eu gostaria silêncio)
que vocês viessem à festa com calor, Nenê – Corina, vê,
prazer e – por que não? – co’a prestação eu vivo de fazer doce pra fora
em dia e já cansei de fazer serviço
E pra garantir à festa o melhor sabor, pra ela outras vezes...
comunico desde já que as mulheres Corina – Está louca? Ora,
todas Nenê…
estão requisitadas para trabalhar […]
na nova indústria que abri: a indústria Corina – Olha, essa menina
das bodas roubou o marido duma amiga nossa
Conto com a mão-de-obra do lugar e a gente inda faz docinho?...
Vamos preparar doces, salgados, bebida, Nenê – Ah, Corina,
pra lotar dois Maracanãs. [...]. isso não quer dizer que a gente endossa
(BUARQUE; PONTES, 1998, p. 147) o que ela fez...
Estela – Só tem u’a solução
No entanto, Egeu sabia o que
Ir lá explicar direitinho a ela
estava por trás do discurso de Creonte. Sem falar com ela eu não topo não...
Ela entende
Segundo o vizinho de Joana, “[...] a festa é Zaíra – Quem vai falar, Estela?
Eu não vou...
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afirmando necessitar de tempo para dia”, que Joana representará a dor maior do
conseguir um lugar para que ela e seus povo que não vê nenhuma solução contra o
filhos pudessem morar e se estabelecer poder que o exclui. Neste ponto, a trama se
por tudo o que tinha feito e deixando que E a gente fica lá tomando sol
Tem sempre um cheirinho de éter no ar,
ele visse seus filhos. O carinho de Jasão a infância perpetuada em formol
com as crianças remete à Joana a idéia de (Dá um bolinho [envenenado] e põe
guaraná na boca dos filhos)
que o traidor iria ser vingado apenas se a A Creonte, à filha, a Jasão e companhia
vou deixar esse presente de casamento
revanche se dirigisse diretamente aos Eu transfiro pra vocês a nossa agonia
filhos. porque, meu Pai, eu compreendi que o
sofrimento
Porém, ao início prefere manter a de conviver com a tragédia todo dia
é pior que a morte por envenenamento.
vingança a Creonte e a Alma. Prepara um Joana come um bolo; agarra-se aos
bolo envenenado com ervas daninhas e filhos; cai com eles no chão [...].
(BUARQUE; PONTES, 1998, p. 173)
entrega aos filhos, para que estes o
levassem aos noivos durante a cerimônia O ato passional da protagonista,
Mas os planos de Joana não saem filhos, mas também o suicídio demonstra a
como ela esperava. Creonte nega a busca desesperada por justiça. Entretanto,
presença de seus filhos na festa e manda essa justiça não é a dos homens, afinal,
tragédia. Não enxerga saída, senão matar que possui fé e esperança de que será
temor dessa atitude. mulher, quanto como cidadã que sofre pela