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O incrível Nzinga Mbemba e a inauguração do

Kongo católico

Portrait of an African man, Jan Mostaert (about 1475 – about 1556),

Eu sei. Eu sei. Você é daqueles que só concebem africanos de tanga e arco e flecha na
mão…ou ornamentados como pais de santo de candomblé. Eu sei também que no
colégio você só estudou – assim mesmo bem por alto – a história dos reis de Portugal.
D. Manoel, o venturoso, por exemplo, você lembra vagamente quem foi, não é não?
Aquele papo de Escola de Sagres, caravelas, grandes navegações, aquelas coisas que o
caolho do Camões poetava em melosos versos, tentando nos convencer acerca do que
nos era ou não nos era preciso.

E nem precisava porque a gente acabou esquecendo, confundindo quase tudo mesmo.

Então está bem. Vamos apagar esta parte da história que pouco nos valeu. Quem sabe se
o que você vai ler a partir de agora lhe seja muito mais preciso? Afinal, provavelmente
você tem muito mais de angolano do que português, muito mais de dono do que de
freguês e está quinhentos anos atrasado no conhecimento do que que há de mais seu.

Se liga então, veja e leia a…

Renascença africana flagrada


Extraído do site do Rijksmuseum de Amsterdam, Holanda

(Tradução livre de Spírito Santo)

“O Rijksmuseum Amsterdam adquiriu um retrato original de um homem


africano. O quadro, pintado por Jan Mostaert e datando
aproximadamente de 1520-1530, é o único retrato individual pintado de
um homem negro na Renascença. A Albertina em Viena mantém um
desenho de Albrecht Dürer, contemporâneo de Mostaert, datado de,
aproximante 1515, mostrando a cabeça de um homem africano. Existe
alguma semelhança entre os dois quadros, mas é incerto que a pessoa
representada seja a mesma. Um retrato pintado de negro africano, assim
assim representado no início do século 16, é absolutamente único. O rei
negro Bathasar foi, regularmente pintado nos séculos 15 e 16 em
representações de “A Adoração dos Magos”, mas essas representações
geralmente são muito estereotipadas. Além disso, essas pinturas
reproduzem um momento histórico, não sendo, rigorosamente retratos.

Não se sabe quem é o homem representado no quadro que o museu acaba


de adquirir. Há indícios de que ele esteja associado a corte de Margaret
da Áustria, em Malines ou que ele fosse um auxiliar do primo de
Margareth Carlos V. Sua postura, suas ricas roupas e outros detalhes são
provas de que ele era uma pessoa bem sucedida dentro dos padrões
culturais da Renascença europeia.

As roupas usadas, o tema do retrato, as luvas, a espada e a bolsa bordada


sugerem origens portuguesa ou espanhola e prova do status considerável
que este homem deve ter tido. A insígnia de peregrinos em seu chapéu,
de Nossa Senhora de Halle (sul de Bruxelas, onde os peregrinos viajaram
Borgonha e Habsburgo), a espada e a flor-de-lis bordada na sacola são
indícios de que, eventualmente poderão fornecer mais informações sobre
a identidade do homem.”

A Sagração de D.Henrique do Kongo


Conheça então a provável e incrível história do imponente nobre do retrato

(Parcialmente extraído de ‘Mãe Negra” de Basil Davidson)

“Esforçou-se (o Manikongo Nzinga a Mbemba, batizado como D.Afonso) também por


ladear o monopólio marítimo dos Portugueses e estabelecer relações diretas com o outro
‘europeu importante’ de que os portugueses lhe haviam levado notícia: o Papa de Roma.
D. Manuel, de início, não se mostrou avesso a tal intenção: O aparecimento em Roma
de uma embaixada congolesa refletir-se-ia necessariamente num aumento de prestigio
dos descobridores portugueses.

Sugeriu, portanto, que o seu irmão do Congo enviasse uma missão a Roma, explicando
cuidadosamente que doze nobres, acompanhados de seis criados, seria o numero
adequado. Um dos filhos de Afonso, bastizado com o nome de D. Henrique, e que
estava a ser educado num seminário portugues deveria chefiar esta missão, e como
embaixador dirigir-se ao Papa em latim. D. Manuel pediria ao Papa que sagrasse bispo
o príncipe Henrique.

Tudo isto, por mais improvável que hoje possa parecer, veio a verificar-se com pouca
demora. Trazendo presentes de marfim, peles raras e finos textis de ráfia do Congo – e
sendo acompanhada até Lisboa trezentos pesos e vinte cativos que os capitães
portugueses haviam escolhido, a missão chegou a Portugal e foi enviada por terra para
Itália, atravessando os Alpes e descendo lentamente até Roma, onde chegaria são e
salva em 1513. Com ela seguia o príncipe Henrique, que tinha então 18 anos de idade.

Cinco anos mais tarde, no dia 5 de Maio de 1518, Henrique do Congo era elevado à
dignidade de bispo mediante a proposta formal de quatro cardeais. Dois dias antes, o
papa Leão X promulgara uma bula neste sentido: ‘Vindimus quae super Henrici”.

Três anos mais tarde ou seja, 1521 Henrique regressava a sua terra natal. Parece ter
morrido em 1535, pouco ou nada tendo conseguido realizar. Como o seu povo – e como
o seu notável pai – Henrique foi vítima de uma contradição impossível. O regimento
pressupusera que a ‘missão civilizadora’ e o ‘comercio’ caminhariam placidamente de
mãos dadas, realidade que desde o início se opunham diametral e até violentamente,
sendo ao final o comercio o grande vencedor.”

Fragmentos da história flagrada


(Notas de Spírito Santo em abril de 2011)

Considerando todos os aspectos constantes nesta meticulosa descrição do quadro de


Mostaert, principalmente a data (1520-1530), considerando-se também e,
principalmente que este D.Henrique do Kongo se encontrava na Itália nesta mesma
ocasião (1521), considerando-se, sobretudo que, dificilmente outra figura com este
perfil (nobre, negro, oriundo de alguma colônia portuguesa) poderia estar na mesma
região no mesmo período, é bastante provável que este seja o retrato do filho de Nzinga
a Mbemba, o manikongo D.Afonso I, durante o reinado de D.Manoel I de portugal.

Nzinga a Mbemba não era simplesmente um rei subserviente. Existem fortes indícios de
ter sido ele o jovem que alguns documenos chamam de ‘Kassuta”, filho de Nzinga
Nkuwu, sequestrado (ou levado voluntariamente) numa caravela de Diogo Cão para
Lisboa onde ficou por cerca de dois anos aprendendo, compulsoriamente acredita-se,
todos hábitos e maneirismos da cultura lusitana.

Ele, um usurpador que ocupa o lugar do pai Nzinga Nkuwu por meio de um golpe
apoiado por jesuítas, era na verdade um tipo ingênuo de visionário, que se julgando
grande amigo de D.Manoel I, rei de Portugal – com quem trocava, como se viu, ampla
correspondência, sob o tratamento mútuo de “Irmãos Reais” – imaginava poder obter
certas vantagens comerciais e tecnológicas dos brancos.

Suas decisões devem ser compreendidas, portanto no âmbito de uma conjuntura política
na qual alguns reinos que deviam vassalagem ao Kongo, conspiravam intensamente
contra a liderança dele, Nzinga a Mbemba, que acabou vendo na aliança com Portugal
sua melhor garantia para manter e perpetuar seu poder.

É neste contexto que ele Nzinga a Mbemba chega a declarar numa carta á D.Manoel o
seu desejo de obter a tecnologia para a construção de caravelas, com o fim óbvio de
expandir suas fronteiras comerciais e se impor diante de reinos rebeldes e impérios
vizinhos.

“…Mui poderoso e alto príncipe e Rei meu irmão, beijando as reais


mãos de vossa alteza, lhe faço saber que a míngua que tenho de algumas
coisas para a igreja me fazem importunar vossa alteza, o que
porventura não fazia se tivesse um navio, que tendo as mandaria trazer
ás minhas custas..”

(Do rei do Kongo Nzinga Mbemba `D. Manoel de Portugla, insinuando o desejo de ter
caravelas ou a tecnologia para as construir, recurso terminantemente recusado pela mui
esperta coroa portuguesa).

É assim também que, mesmo tendo que enfrentar o agravamento dos conflitos com
aqueles que, além de questionar sua liderança, não aceitam de modo algum á sujeição da
região ao estrangeiro, Nzinga a Mbemba aposta no aprofundamento de sua trágica
ligação com Portugal, processo este que, como se sabe, dramaticamente culminou com a
abjeta traição de Portugal, representando o início da sujeição daquela região da África
ao jugo europeu e o mergulho de todo o continente nas trevas do escravismo colonial,
período ao qual o historiador Basil Davidson chamou de ‘Os anos de provação’ da
região do Kongo, a República Popular de Angola atual.

“Mui poderoso e excelente rei de Manicongo, nós enviamos a vós Simão


da Silva, fidalgo de nossa casa, pessoa de que muito confiamos…muito o
rogamos que o ouçais, e llhe deis inteira fé e crença em tudo o que de
nossa parte vos dizer…”

(Do rei D. Manoel I de Portugal para Nzinga Mbemba, rei do Kongo em carta datada
entre 1512 e 1540)

Spirito Santo
Abril 2011

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