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São Bento de Núrsia (c.480-c.547), patriarca do Monasticismo ocidental, “Pai da Europa” e
“patrono do Ocidente”, foi o fundador do célebre mosteiro de Monte Cassino, o primeiro de sua ordem
e para o qual redigiu a chamada Regra de são Bento, que influenciou e influencia a cristandade,
sedimentando a necessidade da oração e do trabalho disciplinado. Bento tinha o Dom da profecia e o
Dom das lágrimas que lhe atribuíam um caráter compassivo e orante (ORD); sua obra, que até hoje
tem a luz de seu mentor, é civilizadora e evangelizadora (SAO).
2
São Bento de Aniane (c. 750-821) foi o restaurador da disciplina monástica na época carolíngia,
difundindo a Regra de são Bento de Núrsia, e o fundador da abadia de Aniane (França), em 780. É
festejado em 12 de fevereiro (SCH, 1 : 170-171).
restrita aos evangelhos de Mateus e Lucas e, principalmente, aos três Mistérios
essenciais de sua vida: a Anunciação, a Visitação e a Natividade.
Os livros de horas, também denominados primer ou horae, foram best-sellers
medievais (BRO : 24) pela beleza e riqueza, predominantes em seu aspecto, e porque
traziam “as palavras sacras para um cenário contemporâneo ao do leitor” (MAN : 155),
num mundo dividido entre o bem e o mal, o bom e o mau, o certo e o errado. Aqueles
ricos o bastante para financiar um livro de horas adquiriam com ele uma espécie de
talismã, onde se viam, muitas vezes, retratados ao lado da Virgem, dos Evangelistas e
do próprio Jesus, e através dos quais imitavam o quotidiano da vida monástica.
No entanto, os livros de horas não são livros litúrgicos. A literatura litúrgica
oferece três espécies de documentos: os livros litúrgicos, propriamente ditos
(breviários, missais, pontificais, rituais e martirológios), usados no culto e na
administração dos sacramentos, sujeitos ao controle da Igreja; as obras de escritores
cristãos ou pagãos, que se ocuparam do culto divino; e os monumentos (inscrições,
mosaicos, pinturas murais, tapeçarias, vitrais, esculturas) legados pela Antigüidade e
Idade Média (Leroquais, 1925, apud BER, 1). Os livros de horas não se enquadram em
qualquer dessas classes; eram utilizados na devoção privada, sua recitação era livre e
sem qualquer obrigação, de acordo com o interesse de seu usuário.
A partir do estudo dos símbolos, em um livro de horas, é possível destacar a
analogia entre estrutura e função, que tem por objeto a superposição de duas
“imagens”: a imagem formal, visível e a imagem informal, sub-reptícia, sublinear, que
é “feita para significar uma coisa diferente daquela que o olho vê” (RIP : [6]).
O aspecto exterior do manuscrito e a descrição material e histórica do
documento (método Devreesse), como fundamento para a análise codicológica, é
bastante razoável, desde que releve o fenômeno cultural do códice estudado (parte do
método Gumbert), em relação à época de sua produção e seu significado, nos dias de
hoje (cf. RUI : 21, 319).
A análise codicológica deve estar apoiada nas relações estabelecidas entre a
alma e o corpo do livro, isto é, a informação registrada e o suporte desse registro,
respectivamente. Ora, se a alma do livro é a informação e se o corpo do livro é o
suporte, há que se relevar os modos de registro, considerando que o corpo é “toda a
alma derramada no exterior” (Cureau, 1659, apud COUR : 26), é o templo do Espírito
(1Cor 6,19).
Esta análise é baseada na experiência do intérprete, pois algumas imagens
oferecem inferências intelectuais, cuja percepção depende do “olho treinado para ver”
(cf. GOM : 296, 388-389), da capacidade de “extrair do olhar outras possibilidades de
comunicação” (DOC).
O escopo desta pesquisa está à margem de uma profunda abordagem da alma,
do conteúdo do livro de horas, do estudo de sua narrativa; e não pretende, com isso,
invalidar suas qualidades de expressão objetiva. Este estudo atém-se ao corpo do
livro, como tradução de um sentimento universal de transcendência. O objetivo é
evidenciar a segunda dimensão de um livro de horas, sua imanência, seu caráter
holístico, socializante, pedagógico e documentário, através da interpretação de sua
simbólica, que revela velando e oculta desvelando, através do olhar que inspira e o
silêncio que fala...
Proveniência e estilo
O livro de horas eleito para análise (cf. LIV), entre os nove catalogados no cofre
da Divisão de Manuscritos da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil), é o que apresenta
feição mais delicada. Foi produzido no século XV e tem algumas peculiaridades:
indica sua origem - o Mosteiro de Clairvaux (França), dos cistercienses, beneditinos
reformados, fundado em 1115, onde são Bernardo3 foi o primeiro Abade; destaca o
nome do copista; e viabiliza a confirmação do século de sua produção, pelo estilo da
ilustração e pela inclusão da Festa da Conceição Imaculada no calendário (8 de
dezembro), introduzida no século XV (IMA).
O livro de horas de Clairvaux não é “assinado”, mas, apresenta um aditamento
irregular no arranjo de um livro de devoção privada sob o título Prosa fratris iohãnis
lemouicensis monachi clareuallensis - isto é, de João de Limosin (antiga província da
França) no mosteiro de Clara Vallis, Clairvaux (cf. BRUN : 323, 720).
3
São Bernardo de Clairvaux (1090-1153), Doutor da Igreja e fundador da abadia de Clairvaux, foi
pregador, místico, político, polemista, escritor, fundou mosteiros, abade, conselheiro de papas, reis e
bispos. Defendeu a reforma cisterciense, sustentando controvérsia com os monges beneditinos da
congregação de Cluny, e esteve presente em todos os grandes acontecimentos da época. Sua obra
revela grande devoção pela Virgem e amor profundo aos mistérios da humanidade do Salvador (cf.
SCH, 1: 182; COU : 79-81).
A mão do monge copista era considerada um instrumento de Deus4 e a Regra
estabelecia: “Se houver no mosteiro monges capazes de exercer uma arte, trabalharão
nela com toda a humildade e reverência (...) Se algum deles se envaidecer pelo que
sabe fazer, (...) será retirado do trabalho que exerce, e nunca mais a ele voltará...
(Regra de são Bento, apud PAI : 68). Naturalmente, por humildade e em nome de Deus, o
monge mantinha-se no anonimato. Daí, talvez, a dificuldade em estabelecer com
segurança, a proveniência de um livro de horas, limitando a análise codicológica à
comparação de estilos, tomando como referencial os livros de horas conhecidos.
A concepção de um livro de horas obedecia a uma seqüência muito bem
orientada, antes que o copista apoiasse a pena sobre o pergaminho. A decoração era
acrescentada, apenas, após a escrituração do texto. O copista deixava vago o espaço
definido para a inclusão de miniaturas, capitais, vinhetas e iluminuras, que colocaria ao
alcance do orante, ampliando a função da imagem como fonte de benção (cf. DUB : 108-
109).
4
“Ele põe um selo sobre a mão de todos os homens, / para que conheça cada um as suas obras” (Jó
37,7).
5
A palavra deriva de mínio, cor vermelha com que se pintavam algumas partes dos códices (MAR :
58-60); é entendida, também, como um derivativo de mignon, pequeno (ROU, 7 : 13).
O culto das imagens é de expressiva iconografia, ressaltando brandura e
resignação, pela posição das mãos (gesticulação), pelo destaque do pescoço
(espiritualização) e através do conjunto olhos-nariz-boca, delimitado pela prega
superior dos olhos6 e pelo queixo virtuoso, variantes em cada personagem, como uma
linguagem que estabelece relação entre o corpo e a alma7. Essa dimensão espiritual é
complementada pelo aspecto humano, como uma moldura, na forma de túnicas, com
drapeado típico da estatuária grega, golas, chapéus, cintos, sapatos e alguns atributos
ocupacionais.
Em todas as imagens, os olhos “falam” de submissão e fé; os narizes
expressam ora sabedoria ora ingenuidade; as bocas, todas seladas, enfatizam o
discurso da expressividade (cf. COUR : 26), do “silêncio que oferece o caminho
privilegiado de retorno ao essencial, o silêncio essencial que não é reticente, silêncio
que acalma e não é quietude, silêncio que não é mutismo, mas, palavra ressonante”
(PER); silêncio que é, segundo as regras monásticas, uma grande cerimônia (PAI : 59,
62).
6
“O olho é a lâmpada do corpo. Se o teu olho for são, todo o teu corpo terá luz. Mas, se teu olho for
defeituoso, todo o teu corpo estará em trevas. Se pois a luz, que há em ti, é trevas, quão espessas serão
as próprias trevas!” (Mt 6,22-23).
7
A Fisiognomia, estudo das percepções do rosto, ganhou força no século XVI, embora fosse um
conhecimento antigo. Essa “observação das posturas exteriores do corpo”, que privilegiou a expressão
como linguagem, manteve-se como “ciência do olhar” e “ciência do rosto” até o final do século XVII,
quando o individualismo cedeu espaço para o anonimato das massas (COUR; SEL : 352-356).
pequenez das árvores - convenção própria da miniatura - destacam as figuras. Ao
fundo, em pequenos quadros, há volumosa informação: atitudes e costumes, trajes,
animais, aparatos e movimento - a verdade do quotidiano dos simples (cf. HOU : 3).
As miniaturas de bordaduras laterais, como era comum, apresentam estilo
diferente das miniaturas principais - estão inseridas em cercaduras de ouro,
retangulares e oblongas; seu desenho é ingênuo e menos apurado, denotando a
interferência de um outro artista, provavelmente, um aprendiz.
O tamanho das capitulares é variado e muitas delas são preenchidas de amarelo.
Alguns signos, que intermediam o texto, seguem um padrão de desenho e acabamento
que denuncia a imperfeição de outros (cf. parágrafo no final do fólio 60).
O conjunto de imagens obedece à seqüência tradicional: a cena da Anunciação
precede as Matinas; a Visitação, as Laudes; a Natividade, a Prima e assim por diante;
caracteriza-se pelo impressionante senso de cor, pela textura das vestes, pela
sensibilidade expressa nas faces e pela luz constante, uma claridade dourada, acima das
cabeças (cf. GAM : 479-481; BEL; BER, 6).
8
Letra pequena e compacta, de uso típico em manuscritos litúrgicos (LAB : 33).
9
De crisografar, estampar, decorar e escrever com ouro polido em relevo, provocando um efeito
“almofadado”, tridimensional (PIN). Esta técnica não deve ser confundida com os procedimentos
ordinários de douração. A crisografia, conhecida dos latinos, foi praticada sobretudo pelos gregos da
Idade Média, que formavam uma classe particular (ALV).
símbolo do sangue de Cristo ou dos mártires. A flor, de cinco pétalas, representa as
cinco chagas de Cristo e as folhas tripartidas simbolizam a Trindade (cf. LEX : 141). O
conjunto de folhas, flores e frutos designa a humildade nobre e a modéstia - pontos
referenciais do caráter de Maria.
O livro de horas é curiosamente aberto pelas Horas da Cruz, com a miniatura
da Crucificação, contradizendo o padrão de Paris, onde seguem a Litania. No entanto,
é certamente um livro de horas para uso em Paris, em virtude da ênfase aos dias das
festas dos santos cultuados na cidade, rubricados ou crisografados, no calendário;
alguns santos são inscritos mais de uma vez, em função de eventos significativos como
sua morte, a trasladação de seus despojos e outras datas de comemoração restrita.
Entre os santos relacionados, destacam-se: santa Genoveva, a padroeira de Paris - 3 de
janeiro e 26 de novembro; santo Elói, patrono dos ourives, ferradores e ferreiros - 25
de junho e 1 de dezembro; são Germano, que consagrou santa Genoveva - 31 de julho
e 1 de outubro; são Germano de Paris - 28 de maio; são Dionísio, bispo de Paris - 22
de abril e 9 de outubro; são Marcelo, também bispo de Paris, com indicações em
janeiro, fevereiro, abril, junho, julho, setembro e novembro; são Luís, rei de França -
25 de agosto; e são Vítor, patrono dos fundidores, citado em fevereiro, abril, outubro e
dezembro (cf. REA, 3 : 1429; SAI).
Provavelmente, era livro de uso feminino, produzido por encomenda de algum
marido dedicado. Essa conjectura deriva da prática que tinham os maridos, no século
XV, de presentear as esposas com devocionários (cf. MAN : 154) e da ocorrência de
algumas orações com discurso no feminino - famule tue (fólio 27, linha 10; fólio 110,
linha 5/6; fólio 145, linha 1) e an fille sue (fólio 108, linha 13). Há, ainda, a citação
de santa Bárbara10 na Litania dos Santos (fólio 101v, linha 12), e uma invocação,
seguida de oração entre as 17 Memórias (fólio 151v e 152) - Bárbara foi
particularmente honrada na França do século XV, quando mulheres grávidas iam em
10
Bárbara, santa oriental, foi popularizada no Ocidente, no século XIII, através da Legenda dourada,
do arcebispo Jacques de Voragine. Jovem de rara beleza, foi por isso encerrada pelo pai em um torre
de duas janelas, onde mandou abrir uma terceira, em honra da Santíssima Trindade. Denunciada pelo
próprio pai, por sua conversão, foi condenada e por ele mesmo decapitada. Conta-se que, após a
decapitação, o pai de Bárbara foi fulminado por um raio. Protetora contra raios e contra a morte
súbita, acredita-se que Bárbara garante a um moribundo que este não passará a outra vida sem
confissão e comunhão - patronagem que a inclui na categoria dos Santos Eucarísticos. É a advogada
celeste dos arquitetos, artilheiros, bombeiros, chapeleiros, fogueteiros, mineiros, pedreiros,
prisioneiros e encarcerados e sineiros de campanários e festejada em 4 de dezembro (REA : 169-172;
TAV : 27-28; COU : 69).
peregrinação a capelas, erigidas em seu nome, rogar por filhos saudáveis e bonitos (cf.
REA, 1 : 169, 172).
O texto e as imagens:
O códice, originalmente sem página de rosto, foi estruturado em 160 fólios de
pergaminho, não numerados (atualmente, apresenta 158), com 174mm de altura por
122mm de largura. A mancha tem, predominantemente, 17 linhas e mede 98x62mm.
O formato é pequeno, para facilitar o manuseio e o transporte, pois os livros de horas
eram “eminentemente instrumentos portáteis da devoção” (MAN : 153-154).
O texto inclui doze miniaturas: dez, abrindo trechos fundamentais - sendo que
uma destas apresenta outras três, de menor porte, vinculadas - e duas miniaturas de
bordadura.
As imagens, apesar da especificidade de seus objetos, coincidindo com os
atributos das figuras representadas, quando analisadas no conjunto da página, são
hieróglifas, pictográficas, como a representação de um enigma. A beleza deixa antever
a idéia de perfeição e minimiza a capacidade de ver11 do leigo ou do não-iniciado na
obscuridade dos Mistérios, em seus aspectos sagrados e simbólicos12.
O ilustrador renascentista dos séculos XIV a XVI era um teólogo inspirado,
que apresentava os desígnios divinos sob as tensões de sua condição humana,
orientado pelo confronto carne e espírito, presente no texto e no suporte. Esse artista
herdara uma cultura onde a divindade era considerada irrepresentável, em face da
tradição cristã bizantina. A idéia de que o homem foi feito a imagem de Deus permitiu
o desenvolvimento do conceito de semelhança que une a imagem ao modelo (cf. Gên
1,26; 2,7), a despeito de reações contrárias que levaram, muitas vezes, ao iconoclasmo.
11
Os poetas e místicos do século XV chamavam de douta ignorância ao “pressuposto do não saber
mas sobretudo do não-ver” (VIRI : 43).
12
“A vós é concedido conhecer o mistério do reino de Deus; porém aos que são de fora, tudo se lhes
propõe em parábolas, para que olhando, olhem e não vejam; ouvindo, ouçam e não entendam...” (Mc,
4,11-12).
13
Concílio que reuniu todos os bispos do âmbito cultural abrangido pelo império cristão, cassou as
decisões iconoclastas firmadas no Concílio de Constantinopla, em 754, e regulou a veneração das
imagens (GRA, 4 :1809-1811).
Jesus (CHE : 580, 962). Essa dualidade mística determinou o primeiro dos dogmas
marianos - a maternidade virginal, corolário do dogma da Encarnação (cf. VIR) -
evidenciado pela representação de José como um homem curvado sobre si mesmo,
extremamente velho para cumprir ou fazer cumprir os deveres e direitos do
matrimônio - quando Maria chegou à idade núbil, os sacerdotes do Templo
escolheram-lhe um esposo, através de um sinal divino, dentre os mais velhos viúvos de
sua tribo.
Em duas das três cenas em que é retratado, José traz uma bengala, em diagonal
descendente em relação ao seu corpo, revelando uma fraqueza (cf. SME : 55) - talvez, a
intenção que lhe é atribuída de afastar-se secretamente de Maria, ao saber da gravidez,
por sua dúvida, até ser convencido, por um anjo, em sonhos, da pureza da Virgem
(cf. Mt 1,19-21). Em nenhuma dessas representações José apresenta auréola, ressaltando
sua natureza humana diante da espiritualidade da Virgem. No século XV, desde a
Idade Média, José gozava de pouco prestígio - o silêncio dos Evangelhos contribuiu
para a lenta evolução de seu culto e para obscurecer sua verdadeira dignidade15 (cf.
REA, 2 : 754, 756).
14
Título atribuído por teólogos de Alexandria, no século IV, e ratificado no Concílio de Éfeso, em
431, quando surgiu a oração que completa a Ave Maria: “Santa Maria, mãe de Deus” (THE; COU :
263).
15
São José ganhou popularidade no século XVIII e foi proclamado “Patrono da Igreja Universal”, em
1870, por Pio IX (COU : 228-229). É festejado em 19 de março, pelo patronato, e em 1o de maio,
como são José artesão (GRA, 8 : 3753).
Deus é uma presença permanente, no centro de todas as imagens, representado
por cruzes (Ofício dos Mortos) ou por raios de luz que fluem do céu, exceto em
algumas das cenas em que é Pai (Coroação da Virgem), Filho (Crucificação, Pietà e
Adoração do anjo) e Espírito Santo (Pentecostes). O centro é um dos quatro
símbolos fundamentais junto com o círculo, a cruz e o quadrado - todos indicados no
códice (Champeaux & Sterckx, 1966, apud CHE : 219).
Distribuição do texto
Fólio 1-12v. Calendário litúrgico, expresso segundo o modelo juliano17, onde cada
ano tem 12 meses e cada mês, dias nomeados (calendas, nonas e idos) e dias não
nomeados, com um santo para cada dia.
O calendário, símbolo do perpétuo reinício (CHE : 168), escrito em francês, a
ouro, azul e vermelho, oferece uma cronologia histórica da Igreja local (Paris) e
documenta que o códice é de origem monástica, pois apresenta, segundo o método
Leroquais (apud BER, 2 : 26), três referências a São Bento: 21 de março (a morte), 11
de julho (a Solenidade - originalmente, a trasladação de suas relíquias para a França), e
04 de dezembro (o Illatio18); distinguindo-os dos códices oriundos de igrejas seculares,
que registram, apenas, os dias 21 de março e 11 de julho.
16
Iluminai meus olhos,[Senhor,] para que na hora da morte o inimigo não triunfe... (RAM : 42).
17
Introduzido por Júlio César em cerca de 46 a.C.; vigorou até 1582, quando se deu a reforma
gregoriana (GRA, 3 : 1212).
18
O Illatio é ignorado na atualidade e não consta no calendário geral da Igreja romana; talvez, seja
referente à profecia de são Bento, sobre as três vezes em que o Mosteiro de Monte Cassino seria
destruído (em 590, 883 e 1943). O Illatio pode ser, também, uma indicação da segunda trasladação
das relíquias de são Bento, que foram objeto de grande controvérsia. Consta que, em c.673 ou 703, as
relíquias foram descobertas sob as ruínas de Monte Cassino e levadas para a França. A tradição reza
que essa trasladação jamais aconteceu ou que as relíquias foram restituídas, mais tarde. Porém, no
século IX, a primeira trasladação teria sido reconhecida, formalmente (Solenidade), para justificar a
segunda, de volta para Monte Cassino. Na realidade, tanto a Itália quanto a França têm o privilégio
de guardar relíquias de são Bento (cf. COU : 76-77).
Para verificar a abadia de origem, segundo Leroquais, basta localizar uma
indicação de seu padroeiro ou fundador, no calendário - como ocorre em 20 de
agosto, o nome de São Bernardo de Clairvaux, rubricado e precedido da capitular A.
Fólio 13-16. Horas da Cruz: Ipse de cruce ad matinas // Domine labia // mea aperies
// et os meu // annuntiabit laude tuam // Deus in ad iutoriu meu // intende.
Fólio 16v-20v. Horas do Espírito Santo: Domine labia // mea aperies // et os meum //
(...)// nobis sancti spirit.
Fólio 21-25. Fragmentos dos Quatro Evangelhos: Iniciu scti euugelij sct iohem.
F. 31v - em branco.
F. 32-85v. Horas de Nossa Senhora (Ofício da Virgem Santíssima).
Fólio 32-52. Matinas (primeira parte do ofício, rezada às 3 horas da madrugada).
Fólio 52v-61v. Laudes (louvores rezados após as Matinas).
Fólio 62-66v. Prima (às 6 horas da manhã).
Fólio 67-69v. Terça (às 9 horas da manhã).
Fólio 70 -----Falta (com a oração da Terça e o Incipit da Sexta).
Fólio 71-72v. Sexta (ao meio-dia).
Fólio 73 -----Falta (com a oração final da Sexta e o Incipit da Noa).
Fólio 74-76. Noa ou Nonas (às 3 horas da tarde).
Fólio 76v-81v. Vésperas (ao cair da noite, às 6 horas).
Fólio 82-86v. Completas (depois do por do sol, à noite).
Fólio 86v-87v. Duas orações: Ces St les gaudes de nre // Gaude virgo mater xpi D. //
que portare concepisti // Gabriele nuntio... (fólio 86v-87); e Deus qui beatissima //
virginem mariam in conceptu et in partu vir//ginitate... (fólio 87-87v).
Fólio 88-99. Os sete salmos penitenciais (6, 31, 37, 50, 101, 129 e 142), que dão viva
expressão ao arrependimento da alma e ao pedido de perdão.
Fólio 99v-103v. Ladainha ou Litania dos Santos - prece coletiva seguida de duas
orações.
Fólio 160. Explicit: eam in refrigerio lucis et quie//tis. Amen. // Confiteor deo Beate
marie et ombus // sanctiz quia peccani nimis. cogitacione // locutione et opere. mea
culpa. Ideo // pcor te. Ora pro me. // Misereatur tui omnipotens deus. et di//mittat tibi
onia peccata tua. liberet // te ab onia malo. conseruet et cofirmet // in oni opere
bono. et pdurat ad // vitam eternam. Amen.
Miniaturas
19
“Mulher, eis aí o teu filho; [filho], eis aí a tua Mãe” (Jo 19,26-27).
20
Elias é o profeta que não morreu, que ascendeu vivo ao céu (2Reis 2,11), um anjo que assume a
forma humana e que sempre volta, em muitos disfarces, particularmente como mensageiro de Deus,
para orientar as pessoas e ajudar a humanidade (UNT : 278).
As três flores, que crescem em ramalhete ao pé da cruz , são heliotrópios,
usados na iconografia cristã para caracterizar as pessoas divinas; no caso, a Virgem,
João e Elias, unidos na mesma prece (cf. Davy, 1940-1946 apud CHE : 485-486).
21
A partir do século X, a representação antropomorfa do Espírito Santo, com três cabeças, foi
proibida e substituída pela figura da pomba (BIE : 370).
22
Recinto abobadado, semicircular; pode ser a cabeceira do templo, nas basílicas cristãs, ou um
oratório reservado, por detrás do altar (cf. CAM).
Maria apresenta auréola elíptica, com dupla cercadura e margem em negrito; e
o menino Jesus, em vez de auréola, comum nas outras imagens, tem uma radiação
solar envolvendo-lhe a cabeça - detalhes que se repetem na miniatura 4, indicando que
essas miniaturas têm fonte distinta das demais.
torres ou três flores-de-lis, tendo abaixo, por trás da Virgem, a divisa: “Obis Bea...”.
Ao fundo, por um vão aberto, penetram raios dourados de luz divina, precedidos por
uma minúscula pomba branca, quase invisível. A miniatura está ladeada por três
outras, vinculadas, redondas e menores:
Miniatura 5.1: O nascimento da Virgem - a mãe da Virgem, como uma dama
rica23, está sentada numa cama de meio dossel, coberta por uma colcha vermelha de
padrões dourados, sobre um lençol branco, e é apresentada à Virgem pela parteira; no
23
“Na Idade Média, a família de santa Ana adquiriu a reputação de ter sido rica” (MAN : 184).
chão, ao lado da cama, há uma almofada verde - cor do nascimento, do triunfo da
primavera sobre o inverno.
Miniatura 5.2: A consagração de santa Genoveva (c.422-c.502), padroeira de
Paris, por são Germano, tendo Maria e José como padrinhos. Genoveva, considerada
a Joana D’Arc merovíngia, por defender o reino da França contra os hunos de Átila, é
uma menina com o hábito branco - símbolo de religiosidade e martírio (cf. REA, 2 : 563-
564, 582).
Miniatura 6: Fólio 52v. A Visitação (2o mistério gozoso), iniciando as Laudes, com a
capitular “D” crisografada - a cena conta a visita da Virgem a sua prima, Isabel.
Durante essa visita, Maria pronunciou o Magnificat25.
Maria é retratada como uma jovem de expressão generosa e amável que expõe
a palma da mão direita, como símbolo de pacificação, de dissipação de todo o medo
24
O fez é um barrete em forma de cone truncado, em geral, vermelho, usado por certos povos do
Oriente Médio e da África, em particular pelos turcos (GRA, 6: 2736).
25
“Magnificat - Então Maria disse: Minha alma glorifica o Senhor; // e o meu espírito exulta em
Deus meu Salvador. // Porque lançou os olhos para a humilhação da sua serva; portanto, eis que,
de hoje em diante,// todas as gerações me chamarão bem-aventurada. // Porque o Todo-Poderoso fez
em mim grandes, o seu nome é santo. // E a sua misericórdia (se estende) a de geração em geração,
sobre a aqueles que o temem. // Manifestou o poder do seu braço, dissipou aqueles que se
orgulhavam com os pensamentos do seu coração. // Depôs do trono os poderosos , e elevou os
humildes. // Encheu de bens os famintos, e despediu vazios os ricos. // Tomo cuidado de Israel, seu
servo, lembrado da sua misericórdia; // - conforme prometera a nossos pais, a Abraão e a sua
posteridade para sempre." (Lc 1,46-55).
(CHE : 590) e segura com a mão esquerda, em cortinado, o manto azul, cobrindo a
barriga, encondendo-a (sinal de dignidade, comum à época). É possível, ainda, que a
mão direita espalmada de Maria seja uma referência à manifestação de Deus (CHE :
591), ou ao próprio Cristo, que na iconografia cristã é definido como “a mão direita de
Miniatura 7: Fólio 62. A Natividade (3o mistério gozoso), iniciando a Prima, com a
capitular “D” crisografada - a Virgem e José, ajoelhados, adoram o Menino, recém-
nascido, nu, deitado no chão, sobre a barra do manto de Maria (em Lc 2,7.12, consta
que Jesus estaria enrolado em faixas26, sobre uma manjedoura).
Maria, com as mãos em prece, olha docemente para o Menino, que reluz. José,
de olhos baixos, traz a bengala (idade avançada) tombada sobre o braço esquerdo e
uma vela de sebo, em lume, na mão direita - ele mantém as mãos elevadas, num gesto
de oração, o mais antigo e natural que se conhece (BIE : 175); seu chapéu, de copa
redonda e abas curvadas dos lados, está apoiado no chão, em primeiro plano.
A posição do manto aponta a submissão de Maria à vontade de Deus27; e a do
chapéu, unindo as pontas dos mantos de Maria e José, ressalta a função de José como
instrumento de Deus: protetor leal de sua família.
Nesta cena, José usa calças sob veste curta, como os pastores da miniatura 8;
seu chapéu é bastante semelhante ao do primeiro pastor. Nas outras duas cenas em
que é retratado (O casamento da Virgem e A fuga para o Egito), usa veste longa, sem
26
Conforme o uso que prevaleceu até o século XIX, a criança era envolta com faixas, dos pés ao
pescoço, expondo apenas o rosto, “por medo de que sua moleza provocasse algum acidente, e para
que crescessem retos e bem formados” (BAD : 105). Em Lc 2,7, consta que “Ela [Maria] enrolou-o
em faixas”; e, em Lc 2,12, o Anjo do Senhor anuncia aos pastores: “encontrareis um recém-nascido
enrolado em paninhos...” (cf. CAL : 8-9),
27
“Então disse Maria: Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38).
chapéu; a bengala não consta na Fuga para o Egito; e, em todas traz o manto
vermelho com gola azul - cores que, combinadas, designam força espiritual (CHE : 107,
945).
Miniatura 8: Fólio 67. A Anunciação aos Pastores, iniciando a Terça, com a capitular
“D” crisografada - dois pastores franceses, identificados pelas roupas e acessórios, que
pernoitam no campo (embora a cena seja diurna), guardam seus rebanhos, que estão
separados por um rio; o rebanho além do rio é vigiado por um cão.
O primeiro pastor está de pé (à esquerda), com camisa vermelha, chapéu de
copa redonda e abas curvadas e um cajado na mão direita. O segundo, sentado (à
direita), usa calça azul, capucha, e chapéu de bretão típico dos camponeses franceses
(BOE; OHA : 76), tombado às costas, e segura uma cornamusa com a mão esquerda.
Ambos elevam suas mãos livres, esquerda e direita, respectivamente, e contemplam o
Anjo do Senhor, no céu, a meio corpo em azul, com um facho de luz entre as mãos,
anunciando sua chegada (Lc 2,8-14). O azul e o vermelho, predominantes nas vestes
dos pastores, representam, em sua mais tradicional e positiva simbologia, o espírito e a
carne, respectivamente, a verdade e a vida.
Miniatura 9: Fólio 76v . A Fuga para o Egito, iniciando as Vésperas, com a capitular
“D” crisografada - A Virgem, sobre o burrico, carrega o Menino, enfaixado sobre o
braço esquerdo (conforme a tradição indicava); a sua frente, José guia o burrico para a
direita (o futuro), por uma trilha, fugindo de um grupo de soldados. Há um
camponês, à esquerda, semeando em um campo de trigo (referência à Parábola do
Semeador28 e à Parábola do Joio e do Trigo29 ou à
28
“Ouvi: Eis saiu um semeador a semear. Enquanto semeava, uma parte (da semente) caiu ao longo
do caminho, vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu sobre pedregulho, onde tinha
pouca terra; nasceu logo, porque não havia profundidade de terra; mas quando saiu o sol, foi crestada
pelo calor e, como não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre espinhos, os quais cresceram e a
sufocaram, e não deu fruto. Outra caiu em boa terra; deu fruto que vingou e cresceu, e (um grão)
dava trinta, outro sessenta e outro cem. E dizia: Quem tem ouvidos para ouvir, ouça...” (Mc 4,3-21;
cf. Mt 13,3-23; Lc 8,5-15). “A parábola do semeador indica que a sorte e os frutos do Evangelho
dependem das disposições pessoais dos ouvintes” (BIB : 1075, nota), pois “o que o semeador semeia é
a palavra” (Mc 4,14).
29
“Propôs-lhe outra parábola, dizendo: O reino dos céus é semelhante a um homem que semeou boa
semente no seu campo. Porém, enquanto os homens dormiam, veio o seu inimigo, semeou cizânia no
meio do trigo e foi-se. Tendo crescido a erva e dado fruto, apareceu também então a cizânia.
Chegando os servos do pai de família, disseram-lhe: Senhor, porventura não semeaste boa semente no
glorificação de Jesus através da morte30); à direita, um pilar partido com uma estátua
dourada.
O camponês no campo de trigo pode ser, também, uma referência ao quadrado
mágico Sator Arepo, formado por cinco letras dispostas em cinco linhas, que pode ser
lido a partir de qualquer ponto, horizontal ou verticalmente, sem que a ordem e o
sentido das palavras se modifiquem. Esse palíndromo, formado pela frase latina Sator
arepo tenet opera rotas (O lavrador, em seu campo, dirige os trabalhos), ofereceria
uma representação do mundo, a partir da interpretação de cada letra, com seus ciclos,
reinícios e renovações.
O quadrado mágico é tão antigo, que o próprio Deus teria introduzido Adão
nessa ciência e os profetas, santos e sábios teriam garantido sua divulgação (cf. CHE :
754-755).
S A T O R
A R E P O
T E N E T
O P E R A
R O T A S
teu campo? Donde veio pois a cizânia? Ele disse-lhes: Algum homem inimigo fez isto. Os servos
disseram-lhe: Queres que vamos e a arranquemos? Ele respondeu-lhes: Não, para que talvez não
suceda que, arrancando a cizânia, arranqueis juntamente com ela o trigo. Deixai crescer uma e outra
coisa até à ceifa, e no tempo da ceifa direi aos segadores: Colhei primeiramente a cizânia e atai-a em
molhos para a queimar; o trigo, porém, recolhei-o ao meu celeiro” (Mt 13, 24-30). Esta parábola
ensina que na Igreja também haverá maus e que nem sempre é fácil distinguí-los (BIB : 1075-1076,
nota).
30
“Chegou a hora em que o Filho do homem será glorificado. Em verdade, em verdade vos digo que
se o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.
O que ama a sua vida, perdê-la-á, e quem aborrece a sua vida neste mundo, conservá-la-á para a vida
eterna” (Jo 12,23-25).
Na tradição cristã, o número quatro, numa referência aos lados do quadrado, é
o número da Perfeição divina e, nesse contexto, o quadrado mágico seria um meio de
captar e de mobilizar esse poder na representação simbólica Provavelmente, a
imagem do lavrador dirigindo os trabalhos em seu campo - considerada no âmbito do
quadrado mágico - é uma referência aos quatro evangelhos ou ao próprio Cristo que,
ao assumir a humanidade, é “um homem quadrado [perfeito] por excelência”.
A relação dessa interpretação com a origem do códice estudado incide no fato
de que o quadrado está, por exemplo, na arquitetura das igrejas cistercienses,
construídas conforme a imagem do homem, especialmente, na França, onde as igrejas
quadradas são cistercienses31 (cf. CHE : 752, 756). Vale lembrar que a autoridade do
códice estudado é atribuída a um monge cisterciense.
A coluna ou o pilar é um símbolo do eixo do mundo, marca a passagem de um
mundo para outro (LEX : 61-62; CHE : 265, 718). A tradição cristã usa esse simbolismo
num sentido cósmico e espiritual: o pilar partido, na Fuga para o Egito, representa o
“moderno” (modernus), apontado por Santo Agostinho no século V, a rejeição ao
paganismo e a inauguração da era cristã (cf. OUT : 473) - é o símbolo da ruptura
expressa pelo dois, pelas duas partes (CIR : 486).
Miniatura 10: Fólio 82. A Coroação da Virgem no céu (5o mistério glorioso),
iniciando as Completas, com a capitular “A” crisografada - Maria, de joelhos, aos pés
do “trono da Graça”, é abençoada por Deus-Pai e coroada por um anjo de asas azuis e
31
As igrejas cistercienses quadradas, na França, são: Fontenay, séc. XII; Pontigny, 1114; Novilac,
1136; e Escale-Dieu, 1142 (CHE : 752).
veste branca. Deus-Pai, imagem perene de transcendência, majestoso em um trono
verde (redução do universo), com longos cabelos anelados (poder) e barba lisa
(sabedoria), usa veste vermelha (expressão do amor vitorioso) e chapéu mitriforme
branco e dourado.
A coroação da Mãe de Deus pode designar a “quaternidade” (a Trindade com a
inclusão de Maria), representada com freqüência a partir da segunda metade do século
XV (cf. BIE : 370).
Miniatura 11: Fólio 88. O Rei Davi e o Anjo da Punição, iniciando os sete Salmos
Penitenciais, com a capitular “D” crisografada - Davi, de joelhos do lado de fora de
seu palácio, com a harpa apoiada no chão e o chapéu na mão (sinal de deferência),
olha o anjo da punição, que desce com suas asas douradas, em um céu azul, sob a luz
celestial, empunhando uma espada vermelha, símbolo da morte de seu primeiro filho
com Betsabá.
Miniatura 12: Fólio 104. Ofício da morte, iniciado pela capitular “D” crisografada -
um padre lidera um cortejo fúnebre, seguido de clérigos e leigos, para o enterro de um
morto, desde uma igreja gótica.
O funeral está em pleno curso, com dois coveiros, de feições rústicas (em
oposição às faces mansas dos religiosos), acomodando o corpo no túmulo. O corpo
está envolto num lençol branco, preso com costuras aparentes. À direita, quase
escapando da miniatura, há um monge com apenas o rosto e uma das mãos
descobertos, apontando na direção do padre, como a interromper a cerimônia. Essa
figura é, provavelmente, a de um giróvago, monge errante, esmoleiro, que vivia sem
regra fixa, escravo “da gula e suas paixões” (PAI : 52-53).
chamada de “torre de Davi” (LEX : 192). Mas, desde a Antigüidade, a torre “feita de
imponentes pedras” sobre a água do rio é aceita também como uma representação da
Igreja (BIE : 364); como torre de castelo, constituiria um símbolo de transcendência do
espiritual (CHE : 199).
O rio é o símbolo do tempo, da transitoriedade e da constante renovação. O
barco simboliza a travessia do Reino dos Vivos para o Reino dos Mortos. Segundo a
mitologia grega, por exemplo, o barqueiro Caronte transporta almas pelo o rio que faz
fronteira com o Reino dos Mortos (cf. LEX : 33, 172). A água, inserida nas
representações através do rio, está ligada ao mistério e aos mitos da criação (cf. BRU :
34).
A ênfase ao verde pode ser interpretada como uma referência à natureza como
o “livro de Deus”, idéia que já vigorava na Idade Média (OLS : 169).
É interessante ressaltar a predominância da capitular “D”. Das doze
capitulares apensas às miniaturas, nove são “D” (miniaturas 1, 2, 5 a 9, 11 e 12); duas
correspondem a letra “O” (miniaturas 3 e 4); e uma ao “A” (miniatura 10). A letra
“D”, é “inicial de Dono (dom de Deus), representa o Espírito Santo, união do Pai e do
Filho. Em seu aspecto gráfico, a letra D compõe-se do círculo O, inicial de
Onipotência e símbolo do Pai, e da linha reta I, inicial de Imagem e hieróglifo do filho”
(Zuccaro, 1607, apud GRAZ2 : 487). A letra “A” tem a precedência no arranjo e
combinação das outras letras e, em número, eqüivale a um - a unidade que é um
atributo de Deus (cf. CHE : 545); assinala o que vem em primeiro lugar, a pedra
filosofal, a estrela principal de uma constelação, a afirmação, o domingo - seu uso,
seguindo a cena da coroação da Virgem no céu, em que Deus-Pai é retratado, está, em
si, justificado.
32
Traçado, mais ou menos visível, indicando o tamanho da linha a ser escrita. Apresenta-se em
linhas restritivas (suporte do texto), de justificação (limitando o texto, na vertical), marginais verticais
(paralelas às anteriores) e marginais horizontais (RUI : 387).
aspecto da cópia, guiar o escriba, permitindo a calibragem da escrita” (BEA : 14, 16),
garantindo a distribuição harmoniosa do espaço escrito e do branco, formalizando o
tamanho das margens; há regramento sem texto nos fólios 20v e 31.
A ranhura da pena de ganso ou do estilete de ponta fina, utilizados para
escrever, distribuía a viscosidade da tinta de ferrugem, bílis de boi, infusões de vegetais
e outras matérias orgânicas, tais como sangue, urina e clara de ovo ( BRO : 40-41; DEH :
33; ROT : 11).
Não é possível, numa análise apenas visual, definir a base das tintas utilizadas
na escrita e nas ilustrações do códice, mas, observa-se o uso de cores variadas: o
vermelho (cor principal), o azul (segunda cor) - sacralizado como azul celeste e azul
heráldico, o amarelo metálico - valorizado pelos efeitos de ouro, o verde - a cor do
segredo do mistério dos Mistérios (Corbin, 1958 apud CHE : 279) e tons como rosa
(caridade), alaranjado (fidelidade), cinza (vida eterna) e castanho (humildade), com o
uso do branco (luz) nos detalhes. Na arte cristã, a cor simboliza uma “força
ascensional”, um meio de elevação; assim, o vermelho é a cor do Espírito Santo; o
azul, do Filho; e o branco, do Pai (Davy, 1940-1946, apud CHE : 277).
O pergaminho, pele animal de extraordinária durabilidade, era adequado como
suporte para um livro de uso quotidiano. Hoje, mesmo o profundo conhecimento de
peles ou o apuro do olho, não permitem identificar com segurança - exceto em casos
excepcionais e evidentes - o animal de origem34.
A pele, certamente, vem imbuída da força e representação simbólica do animal
que um dia envolveu (cf. CIR : 105). No entanto, os tabus e os temores impostos desde
a Idade Média impediram que se ressaltasse a simbólica perversa do animal, em favor
de seus aspectos positivos - como é o caso do bode, a imagem da luxúria, passou a ser
identificado como símbolo de pujança genésica, de força vital, de fecundidade (CHE :
134-135).
33
Pontos perfurados, eqüidistantes, iniciais e finais de cada linha de um bifólio, estabelecendo a
pauta, simultaneamente, em dois fólios - geralmente, desaparecem com o corte das margens laterais,
na encadernação (PIN).
34
O pergaminho era produzido a partir da pele de cabra, cabrito, ovelha, carneiro, vaca, camelo,
asno, antílope, gamo, de alguns peixes oleosos e de focas (MAR :36; MOT : 18; KAT : 21).
Se um códice 200 fólios utilizava em torno de 80 peles (cf. MAR : 36), os 160
fólios do códice em análise consumiu a pele de, pelo menos, 65 carneiros.
Há que ressaltar, a prática que identifica os códices de origem latina de “casar”
os fólios de modo que a face equivalente aos pelos (de onde foram extirpados), mais
lisa e dura, fique em oposição a outra face de pelo, e que a face de contato direto com
a carne do animal, porosa e aveludada, fique em oposição a outra face de carne. A
falta dos fólios 70 e 73 é denunciada, tanto pela truncagem do texto quanto pela
quebra desse padrão (cf. fólio 69v, pele x 71, carne; e fólio 72v, carne x 74, pele).
O pergaminheiro preparou um suporte de extrema qualidade35 - tanto, que até
hoje, mais de 500 anos depois, as inscrições feitas nas faces são nítidas. Atualmente, o
pergaminho apresenta algumas imperfeições: rugas, migração de tinta entre alguns
fólios opostos, manchas de umidade com dissolução de tinta (principalmente, nos
fólios 99v/100 e 146v/147), resultantes de variações de temperatura; alguns fólios
transparentes, talvez, por sucessivas raspagens durante a escrita; amarelecimento dos
fólios iniciais e finais, ocasionado por luz incidente, numa possível falta de capas; e
poucas perfurações, causadas por insetos (cf. PAIX : 322-325).
São muitas as rasuras, correções e acréscimos, ocasionados por revisões -
evidência característica dos códices da época (DEH : 41). No fólio 1, por exemplo, há
sinais de uma nota de 4 linhas, em letra cursiva, mal apagada e indecifrável. O texto
entre os fólios 154 e 160, embora mantenha a uniformidade do estilo de escrita e de
capitulares, parece um acréscimo a fólios em branco, remanescentes do conjunto.
Algumas letras se estendem pela margem superior e há considerável desgaste na
textura da tinta, de qualidade inferior à utilizada até então. O arranjo dos cadernos
deixa claro que se o fólio 153 era o último, os seguintes estariam em branco.
O corpo do códice foi estruturado com quatorze cadernos, sendo doze sextos
(com seis bifólios, cada um), dois quaternos irregulares (com quatro bifólios cada um)
e um bifólio (fólios 59 e 60) inserido por carcela. Faltam os fólios 70 e 73; o primeiro
fólio do caderno 13 e o último fólio do 14 estão imbricados e a contagem dos fólios,
em cada um desses dois últimos cadernos, alcança o número 7.
35
O preparo do pergaminho era delicado e difícil; compreendia três operações principais: macerava-
se a pele, já sem pelo, em um banho de cal; depois, as duas faces eram aplainadas, para retirada de
todas as asperezas, e cobertas de um fino pó calcário branco, denominado groison; e, finalmente eram
alisadas e polidas. Destas duas últimas operações dependia a qualidade do pergaminho. Se o groison
Toda a estrutura pode ser descrita, inclusive suas falhas, a partir da seguinte
representação gráfica para cada bifólio:
( ).
caderno 9, f. 97-108 caderno 10, f. 109-120 caderno 11, f. 121-132 caderno 12 f. 133-144
não estava bem preparado, se o polimento não era perfeito, a escrita não ficava clara. Se a camada do
groison era excessiva ou mal aplicada, destacava-se do pergaminho e com ela saíam as letras (ALV) .
caderno 13, f. 145-151 caderno 14, f. 152-158 f. 159-160
Valor e importância
O conjunto artístico oferecido por um livro de horas quatrocentista é sempre
inédito, único. Os artistas, mesmo os prolíferos, deixavam em cada códice a marca da
originalidade.
Embora constituíssem livros de grande aceitação pública, os livros de horas
eram de uso particular e, por conta disso, particularizados desde a sua concepção.
Talvez, essa peculiaridade, associada à beleza, à riqueza que lhe são inerentes,
justifique o interesse manifesto de colecionadores e comerciantes de livros.
Nos catálogos de leilões da Sotheby´s, os preços dos livros de horas, segundo
o uso de Paris, variam entre 7.000 e 100.000 libras esterlinas (WES; WEST).
Recentemente, o manuscrito Les heures de Saint-Lo, de 1470, “foi arrematado em
Nova Iorque por U$ 3.63 milhões - um novo recorde” (MANU : 26).
Embora o valor em espécie e a predominante guarda em cofres de segurança
não constituam, de fato, referencial para a qualidade do documento, pois os livros de
horas que chegaram a nossa geração são, de modo geral, incompletos, com o texto
truncado ou com falta de imagens fundamentais, um item particularizado e único como
as Horas não pode ser reposto.
O livro de horas de Clairvaux pode ser visto como raro por apresentar
informações bastante incomuns para a época em que foi produzido, como “as muito
raras trasladações das relíquias de santa Genoveva, são Germano e são Marcelo” - 26
de novembro, 31 de julho e 26 de julho, respectivamente (WES : 136), indicadas no
calendário. O trabalho em ouro ressalta-lhe o valor.
Este livro de horas tem como característica peculiar, no âmbito de suas
ilustrações, a total inexistência de figuras grotescas ou extraordinárias. O calendário
chega a limitar-se ao uso de cores, ouro e pequenos florões, sem incluir qualquer
referência, pelo menos mais evidente, ao Zodíaco e seus signos - amplamente
divulgados pelos próprios homens da Igreja, nas Horas produzidas no período (cf.
PERR, 2 : 218).
Os escribas, iluminadores e artistas consagrados à produção do livro de horas
mais monumental da História, as Grandes Horas do duque de Berry, levaram 2 ou 3
anos para concluí-lo (cf. BIBL : vii), é admissível, portanto, que as horas de Clairvaux,
em sua delicadeza, não tenham ultrapassado meio ano, talvez menos, ainda.
Provavelmente, foi obra de um copista - o monge João de Limosin, que usou
tintas de qualidade inferior, no final do códice, e teve, pelo menos, três ilustradores:
um para as imagens da Crucificação e do Pentecostes; um, para as de bordaduras; e
outro, para as demais cenas de abertura - ainda assim, o uso de cores obedece a um só
padrão.
O iluminador, talvez o próprio monge copista, trabalhou sozinho, em face da
técnica uniforme de imposição do ouro.
Esses artistas, como apóstolos de Cristo, pregavam com a pena e o pincel à
mão, edificando e tocando as almas, traduzindo de maneira acessível os Mistérios da
Fé revelados e introduzindo aspectos da vida quotidiana nos temas sagrados.
No silêncio do scriptorium, mergulhados no beneditino trabalho da cópia e
ilustração, esses monges fugiam do mundo para atraí-lo, através de um cimélio, uma
jóia de singular magnificência, produzida para que sua futura proprietária pudesse
usufruir da crença cristã de que, através dele, ouviria a palavra de Deus (cf. FOX : 180);
como se a contemplação estética pudesse desencadear uma catarse, um efeito
purificador (cf. DOC) .
Como livros da mais sincera devoção, como leitura de conveniência, diante dos
pecados do mundo, como um amuleto contra as tentações do demônio, como um
obelisco, marcando o poder de influência da Igreja sobre os leigos na privacidade de
seus lares, ou, como registro de sua contemporaneidade, os livros de horas estão
sujeitos a uma análise que evidencia estreita solidariedade de todas as hermenêuticas,
certificando, como transdisciplinar e documentária, uma cultura escrita que era
eminentemente sagrada e erudita.
As horas de Clairvaux oferecem generosa substância. Sua concepção nada tem
de ingênua, como pode fazer crer aos observadores menos atentos.
As cenas de mais extraordinário afeto, as passagens mais dilacerantes para o
espírito de fé, as mais singelas orações, as mais vivas cores de tintas e a mais aveludada
das peles oferecem enigmas fascinantes que, por ora, estão longe de se esgotar,
propiciando infinitos caminhos cingidos pelos mistérios do olhar e do silêncio e pelo
amor do livro.
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