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Os virtuais

Por Helena Matos

http://jornal.publico.clix.pt/noticia/21-01-2010/os-virtuais-18630439.ht m

Querem brincar aos empresários mas sem os riscos de tal actividade. E a


verdade é que o têm feito e continuarão a fazer

Pululam pelos Governos, pelos partidos, pelos institutos públicos, pelas empresas participadas
pelo Estado, pelas universidades e pelas autarquias. A sua influência, as suas certezas e o seu
poder são inversamente proporcionais à sua experiência da vida real.
Caracterizam -se por falarem de programas e investimentos de milhões de euros. A gastar só
não parecem empresários porque os empresários a quem o Estado não protege têm de fazer
contas. E a vida está nat uralmente difícil para todos, excepto para quem gasta o que não é
seu. As funções tradicionais e insubstituíveis do Estado, como a justiça, a seguranç a e a
diplomacia, enfastiam-nos. O que querem é fazer de conta que investem, dinamizam,
produzem. Enfim, querem brinc ar aos empresários, mas sem os riscos associados a tal
actividade. E a verdade é que o têm feito e continuarão a fazer.
A argumentação do ministro das Obras Públicas, António Mendonça, de que o TGV vai fazer
de Lisboa a praia de Madrid só não é uma anedota porque daqui a alguns anos, quando
António Mendonça estiver a banhos, nós estaremos cá para pagar a conta. Progressivamente
os detentores de cargos políticos trans formaram -se em empres ários cujos investiment os têm
sempre cobertura, por mais ruinos os que sejam. Seja quando se defende o TGV para os
habitantes de Madrid virem a banhos à Caparica ou ao Estoril, quando se adjudica o estádio
que vai dar trabalho a milhares de pessoas e que agora não serve para nada ou se contratam
corridas de aviões sem analisar os contratos, sabe -se que os contribuintes são os fiadores de
todas estas fant asias.
Curiosamente, este Estado que adora brincar aos empresários tem um profundo desprezo,
uma quase pesporrência para com os verdadeiros empresários, ou seja, aqueles que arriscam
o seu dinheiro e não o dos contribuintes. A forma como o primeiro-ministro reagiu ao estudo do
BPI que dava conta de que toda a riqueza produzida em Portugal em 2009 é insuficiente para
cobrir as responsabilidades directas do Estado é sintomática dessa realidade paralela, de
cheques sempre visados, em que vive quem tem o poder de gastar o nosso dinheiro. A crise
dos banc os norte-americanos invocada por Sócrat es para responder a Fernando Ulrich,
presidente do BPI, nada tem a ver com o facto de até 2040 os compromissos do Estado
português poderem custar entre 115% e 300% do PIB.
Mas é sobret udo quando se passa das grandes empresas para o mundo dos pequenos
empresários, daqueles que não têm apelidos com créditos na banca como Ulrich, que esse
quase enfado do poder político e legislativo se torna mais evident e. Recent emente, Francisco
Teixeira da Mota contou no PÚBLICO o caso de um comerciant e que fora multado pelo
Ministério da Economia em 15 mil euros. Porquê? Porque se recusara a entregar o livro de
reclamaç ões a um cliente que 41 dias ant es comprara uns ténis naquele estabelecimento e
que, 41 dias depois de os ter comprado e usado, constat ara que os mesmos não se adaptavam
à prática do fitness, pois eram ténis concebidos para o exerc ício da marcha.
Independent emente do bom senso ou da falta dele dos envolvidos neste caso, há uma questão
de fundo, que é o valor da multa aplicada pelo Ministério da Economia: 15 mil euros de multa
para um caso destes só pode nascer da cabeça de quem desde os banc os da universidade
tem o ordenado garantido no fim do mês, mais as respectivas progressões, mudanças de letra
e demais garantismos.

E como explicar que esteja para entrar em vigor, em Agosto deste ano, legislação que prevê
multas entre 500 e os 3500 euros, no caso de pessoa singular, e entre 750 e 5000 euros, no
caso de pessoa colectiva, para as padarias que não cumpram o estabelecido em matéria de sal
no pão? E as multas por causa do quadro de pessoal mal afixado? E por causa do cadastro
comercial e das estatísticas do INE que levam dias a preencher? Ainda um dia hei -de
conseguir fazer uma crónica unicamente com as multas, coimas e contra-ordenaç ões que o
Estado português saca do bolso diante dos empresários, sobretudos dos pequenos. Mas creio
que precisaria de mais do que uma página.
No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se pronunciou sobre o recurso do
comerciante condenado por não ter entreg ue o livro de reclamações, os juíz es
desembargadores João Trindade e Barreto do Carmo analisaram o valor da multa, 15 mil
euros, e fizeram comparações pert urbantes: "Não conhecemos na legislação rodoviária, cuja
violaç ão dá origem a centenas de mortes anualmente, sanção que se aproxime do referido
limite mínimo. Não conhecemos na pequena e média criminalidade em que são postas em
causa a integridade física, a honra, a propriedade, etc., decisões condenatórias que se
aproximem do referido limite mínimo". Em jeito de conclusão, afirmavam: "O legislador está
desfasado da realidade, quando é certo que se impõe que ele tenha um conhecimento prático
da vida".
Há algum tempo também teria concordado com esta frase. Também eu pensei que havia um
desajustamento. Hoje sou mais levada a acreditar que o problema de quem nos governa e de
quem legisla não é de desajustamento. É sim de aversão à realidade.

Ensaísta

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