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VERA CRUZ
A PÁGINA IMPRESSA
uma resenha crítica
São Paulo
Maio - 2010
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INTRODUÇÃO
O livro História da Leitura (em inglês, A History of Reading) é o volume final de uma
trilogia escrita pelo pesquisador estadunidense Steven Roger Fischer. Foi publicado no Brasil
em 2006. Os outros dois volumes são: Uma Breve História da Linguagem, publicado no país
em 2009 (em inglês, A History of Language, 1ª edição nos Estados Unidos em 1999) e
História da Escrita também publicado no Brasil em 2009 (em inglês, A History of Writing, 1ª
edição em 2001). Curioso perceber que a ordem de publicação no Brasil foi invertida. Além
disso, o título do volume sobre a história da linguagem, publicado por uma editora diferente
dos demais, manteve uma maior semelhança com o sentido do título em inglês, como já
inicialmente observado durante o curso.
Uma das dúvidas presentes nas discussões sobre o capítulo das últimas aulas do curso
pairou sobre os objetivos pretendidos pelo autor com o livro. A leitura atenta do paratexto do
volume poderá apoiar os esclarecimentos.
Pelas informações constantes na capa do livro (“orelhas”), imagina-se que o leitor
pode esperar encontrar ali uma história concisa da leitura, elaborada pelo autor através da
descrição das formas e dimensões de leitura desde os primórdios da atividade de leitura até os
dias atuais. As informações criam a expectativa de que o autor pretende mapear a questão do
comércio do livro e aprofundar as reformas educacionais, além de refletir sobre diversos
aspectos de alguma forma ligados à leitura, como o surgimento das bibliotecas, anúncios
publicitários, diferenças de gênero e o papel censor da Igreja e do Estado. Segundo o mesmo
texto, o leitor pode esperar encontrar reflexões do autor sobre o futuro da leitura, sobre as
“teorias modernas de como a leitura é processada no cérebro humano”, e sobre uma “nova
definição radical do que é realmente a leitura”.
Fischer torna claro no prefácio que apesar do livro se concentrar na história da leitura
ocidental, busca também descrever um pouco o desenvolvimento da leitura em países como
China, Coreia, Japão e também nas Américas e na Índia, visando melhorar a compreensão do
que foi a leitura no passado, como ela é no presente e o que a inspirará no futuro.
No prefácio à edição em inglês, Fischer enfatiza que o livro é uma introdução à
história da leitura, e foi pensado como uma leitura preliminar útil para alunos universitários e
outros que desejem ter uma ideia geral e atualizada sobre o assunto.
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Não foi possível encontrar dados adicionais sobre o autor, Steven Roger Fischer.
Segundo o que se pode aferir no livro, ele é um especialista em história linguística e em
sistemas de escrita antigos, atualmente vivendo na Nova Zelândia.
2. O CAPÍTULO EM QUESTÃO
Até o século XVII, o negócio do livro girava principalmente em torno das bibliotecas
de sacerdotes e eruditos. A partir daí, segundo Fischer, o aumento da prosperidade em países
como Inglaterra e Alemanha estimulou o surgimento de escolas por toda parte, tendo como
resultado imediato a disseminação da alfabetização. Disseminação que só não foi completa
pois esses dois países passaram por guerras que fizeram interromper o ciclo educacional em
evolução.
No decorrer do texto, Fischer sustenta seus argumentos com citações de outros
historiadores da área. Na tentativa de melhor compreender os apoios do autor e a visão
histórica que persegue, segue-se uma pequena pesquisa sobre o trabalho realizado por dois
dos principais pesquisadores de referência no capítulo.
O alemão S.H.Steinberg é citado por sua obra Five hundred years of printing,
originalmente editado nos Estados Unidos em 1955. No livro, não editado no Brasil,
Steinberg indicou que a história da impressão é parte integral da história geral da civilização.
Ele considerou que o papel impresso foi o principal veículo para a divulgação de ideias nos
últimos quinhentos anos, chegando a, e frequentemente penetrando, quase todas as esferas da
atividade humana. Segundo o pesquisador, nenhum evento político, constitucional,
eclesiástico e econômico, nem movimentos sociológicos, filosóficos e literários poderiam ter
sido inteiramente compreendidos sem que se levasse em conta a influência que a máquina
impressora (prelo) exerceu sobre eles. Ele destacou também a função do negócio tipográfico
no desenvolvimento econômico de todos os outros ramos da indústria e do comércio.
Steinberg relata que Gutenberg descreveu sua invenção de 1439 como ‘aventura e
arte’ e é como ‘aventura e arte’, de modo até poético, que o autor delineia a característica que
desde então permanecera no livro impresso, da ideia na mente do autor até o produto final na
livraria e nas prateleiras do “amante do livro”. Bem ao modo cronológico e tradicional de se
pensar a história, Steinberg dividiu os períodos da história da impressão: (1) de 1450-1550, o
século criativo; (2) 1550-1800, a era da consolidação; (3) século XIX, a era da mecanização;
(4) 1900-1950, o auge das prensas privadas e da brochura; e (5) o mundo do pós-guerra, que
viu a leitura sobreviver à investida da televisão.
Henri-Jean Martin também é usado como uma referência constante no capítulo
analisado do livro de Steven Roger Fischer. Sua obra History and power of Writing, foi
primeiramente publicada em francês em 1988. O historiador foi um pesquisador do
significado da invenção da prensa. Para ele, o invento teria sido mais do que um sinal de
modernidade; ao lado da pólvora e da bússola, teria sinalizado uma revolução do pensamento
humano. O historiador Lucien Febvre, cofundador da escola dos Annales, foi um dos
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incentivadores da pesquisa de Martin, ainda em 1953. Para ele, o livro manuscrito era
necessariamente restrito, a prensa abrira a caixa de Pandora. Entre 1982 e 1986, um trabalho
do qual Martin teve forte participação e que teve como coeditor Roger Chartier, foi publicado:
L’Histoire de l´édition française, com a história do comércio livreiro francês.
A diferença entre os textos dos historiadores, dos quais se pretende realizar esta
análise comparativa, pode ser explicada em parte por Certeau:
Há uma diferença que as separa, fundamental: no relato não se trata mais de ajustar-
se o mais possível a uma “realidade” (uma operação técnica etc.) e dar credibiilidade
ao texto pelo “real” que exibe. Ao contrário, a histórica narrada cria um espaço de
ficção. Ela se afasta do “real” – ou melhor, ela aparenta subtrair-se à conjuntura:
“era uma vez...” Deste modo, precisamente, mais que descrever um “golpe”, ela o
faz. (CERTEAU, 2008, p. 153)
Observa-se que o historiador, neste caso, oferece uma hipótese, e recupera e indica o
caminho de chegada a ela. Mostra no texto evidências, múltiplos olhares, permite que o leitor
se posicione criticamente, como se estivesse também no papel colaborativo de investigador do
passado. A verdade, para ele, não tem intenção de ser final ou eterna, seu poder de
convencimento é momentâneo.
Roger Chartier também descreve o mesmo período histórico, e nele pode-se perceber a
visão da história como um continuum, contrapondo-se à visão linear, positivista, de que cada
vez se dá um passo para o progresso:
Há portanto uma continuidade muito forte entre a cultura do manuscrito e a cultura
do impresso, embora durante muito tempo se tenha acreditado numa ruptura total
entre uma e outra. Com Gutenberg, a prensa, os tipógrafos, a oficina, todo um
mundo antigo teria desaparecido bruscamente. Na realidade, o escrito copiado à mão
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sobreviveu por muito tempo à invenção de Gutenberg, até o século XVIII, e mesmo
o XIX. (Chartier, 1999, p. 9)
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendo que o livro de Steven Roger Fischer analisado nesta resenha seja uma história
concisa destinada a iniciantes no assunto e, como tal, dificilmente conseguiria abarcar muitos
desdobramentos. No entanto, o autor comete alguns deslizes que, para a ideia de uma história
moderna como pretendida por Certeau e LeGoff, são incompatíveis. Sendo assim, não
recomendaria a leitura deste capítulo como única fonte histórica confiável, mas deveria, se
fosse o caso, ser acompanhada da leitura de outros autores com uma visão histórica mais
plural e moderna.
A história, entendida como um processo, deve servir ao tempo presente, em suas
mudanças e permanências. É preciso que o leitor perceba que a história está sendo feita
também no presente, e que ele é corresponsável, juntamente com a sociedade em que vive,
pelas transformações socio-culturais.
O papel do historiador, ecoando as palavras de Certeau, não é de “fazer a história”,
mas de manejar dados, arquivos e documentos, e narrar as descobertas. E a narrativa não deve
ser mera descrição, não deve servir apenas para sustentar o “real”, nem deve ser simplificada
demais.
É preciso confiar na atitude colaborativa, autônoma e crítica do leitor, que tem que ser
capaz de tomar suas próprias decisões, e o texto histórico deve contemplar essa possibilidade.
O discurso usado pelo historiador deve trazer não apenas o conteúdo do relato, mas também a
surpresa, os múltiplos olhares e a relação entre passado e presente.
A narrativa histórica moderna deve se aproximar da ficção, deve relacionar
continuamente, produzindo efeitos e envolvendo um leitor cada vez mais participativo.
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REFERÊNCIAS
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
_____. Leituras e leitores na França do Antigo Regime. São Paulo: Editora UNESP, 2004
FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006, p. 187-
229.
Instituto Superior de Educação Vera Cruz. Manual para apresentação formal de trabalhos
acadêmicos. 2.Ed. São Paulo, 2010.
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
MARTIN, Henri-Jean. The history and power of writing. Chicago: University of Chicago
Press, 1995.
NOVAES, Ana Maria Pires. As muitas vozes de uma resenha crítica: por uma concepção
interativo-dialógica da linguagem. XI Congresso Internacional da ABRALIC, USP, São
Paulo, 13 a 17 de julho de 2008.
STEINBERG, Sigfrid Henry. Five hundred Years of printing. Londres: The British Library,
1996.