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Nuno
o Higino:
poeta
que
namorava
palavras ANA MARGARIDA RAMOS
Universidade de Aveiro
anamargarida@ua.pt
É nosso objetivo, neste breve ensaio, propor algumas linhas de leitura da obra poética de Nuno Higino,
situando-o no universo da poesia para a infância contemporânea, onde tem, aliás, publicado alguns dos
seus melhores volumes. A tonalidade lírica percorre praticamente e sem exceção todas as suas publi-
cações, mesmo as narrativas em prosa, funcionando como chave de leitura da sua produção literária.
Com formação filosófica e teológica, são notórias as recorrentes reflexões metapoéticas sobre a litera-
tura (e a poesia) e a estética, mesmo em volumes dedicados a pequenos leitores. Destaque-se, muito
brevemente, o caso do livro de estreia A Rainha do País dos Frutos (2000), mas tambm dos volumes
Onde dormem os pássaros? (2006) e A maçã vermelha – viagem à infância de Sophia de Mello Breyner
Andresen (2008), sendo este ltimo uma viagem gnese da potica da autora de A Menina do Mar,
de quem era, aliás, além de amigo, profundo admirador.
A poesia portuguesa para a infância tem perda, a nostalgia e a tristeza, a denúncia social, o
conhecido alguns estudos relevantes, jogo linguístico e o recurso ao nonsense, ao humor
permitindo descobrir o percurso que, e ao insólito são alguns dos eixos enumerados pelo
praticamente desde a segunda metade do autor de Da Nascente à Voz. Em reflexão posterior,
século XX, vem sendo trilhado no âmbito atualiza e sistematiza um conjunto de ideias que
da lírica. José António Gomes (1993), no merecem transcrição, apesar da extensão, num
volume A poesia na literatura para a infância. rico e completo retrato da poesia para crianças
A produção portuguesa do pós-guerra à publicada nos últimos anos:
actualidade e o caso de Matilde Rosa Araújo,
traça a evolução ocorrida, dando especial Mas não há dúvida que certas linhas se
relevo à obra tutelar de Matilde Rosa Araújo. detetam com frequência, tais como a
Define, contudo, um conjunto de linhas representação de um olhar inaugural sobre
temáticas e formais estruturantes da poesia as coisas, a nostalgia do «paraíso perdido»
para a infância em Portugal que se revela da meninice, a tematização da liberdade
de particular interesse para este estudo, na e da atividade lúdica e imaginante, para
medida em que, também a obra de Nuno não falar da tensa relação entre os modos
Higino, se estrutura em torno desses eixos. infantis de estar no mundo e o universo dos
O olhar poético sobre o real e sobre os adultos – aqueles imbuídos de ingenuidade
elementos que o constituem, com especial e pureza, este último inquinado já pela
relevo para a natureza e os animais, a perda irremediável da inocência e por uma
tendência para o intimismo e a introspeção, visão da vida demasiado pragmática e até,
com a recriação poética de sentimentos de certo modo, baça e pervertida. Aliás,
como a amizade ou a alegria, mas também a em termos enunciativos, o texto poético
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para crianças oscila entre a presença de simplicidade de um registo que, ora deslumbrado,
uma voz adulta e a de uma voz infantil ou ora próximo da ingenuidade infantil, a capta e
pretensamente infantil, as quais, no plano recria” (Gomes, Ramos e Silva, 2009: 126).
ideotemático, permitem ler aproximações No âmbito deste estudo, e apesar do regresso
a questões ambientais (…), bem como posterior ao texto lírico1, com a publicação de
às injustiças do mundo (…) e até, aqui Versos Diversos2 (2008), tomaremos como objeto
e acolá, à luta contra a opressão, ao de leitura o volume poético inaugural, claramente
racismo e à guerra (…). A estes eixos vêm marcante no panorama literário infantil do início
somar-se, por exemplo, topo intemporais do século XXI.
como a passagem do tempo, a solidão,
o envelhecimento e a morte (…). Se, por No caso de O Menino que Namorava Paisagens
outro lado, o humor e o motivo do mundo e Outros Poemas (2001), a coletnea inclui, para
às avessas comparecem com frequência, tal alm do conto que lhe empresta o ttulo, mais 20
acontece designadamente em textos que poemas. Esta publicação caracteriza-se pela forma
retomam estruturas formais e textuais de simultaneamente simples e profundamente lírica
raiz popular (Gomes, 2010: 28-29). como o sujeito poético se relaciona com o mundo
que o rodeia, revelando particular atenção pelo
Acrescentem-se, na nossa opinião, aspetos universo natural e animal. A perspectiva adoptada,
como a cada vez mais frequente partilha de entre a ingenuidade e o deslumbramento
produção literária entre públicos diferentes infantis, encerra também uma afectividade
(infantil, juvenil e adulto), como acontece com que as palavras exalam e que percorre muitos
autores como João Pedro Mésseder, Manuel dos textos. Particularmente atento à questão
António Pina, Francisco Duarte Mangas ou Jorge rítmica e melódica, o poeta socorre-se de formas
Sousa Braga; a independência dos autores face simples e de medidas tradicionais, combinando,
a poéticas normativas e construção de poéticas ainda, narração e diálogo. As ilustrações que
individualizantes, tanto em termos de forma como acompanham os textos, realizadas a aguarelas,
de conteúdo, o que, por vezes, conduz à temática procuram captar ambiências, possibilitando
metapoética; a valorização da Palavra e da inúmeras leituras e interpretações.
linguagem como matéria poética por excelência; o
culto de formas breves, por vezes fragmentárias e José António Gomes destaca, neste volume, um
o caráter interventivo dos textos, onde a dimensão conjunto de poemas tocados por uma sugestão
ideológica ocupa lugar de destaque. do haiku, a quem o autor, com grande liberdade,
pede emprestada a contenção e a leveza, como
Outros estudos, como o volume coordenado por acontece com “Definição”, “Os ventos” e
Maria José Costa (1996), recolhem diferentes “Ovelhas e cabrinhas nas serras de Barroso”
perspetivas e tendências da poesia portuguesa para (Gomes, 2010: 35).
a infância, sendo, posteriormente, completados
por ensaios como o de Maria Sameiro Pedro Por seu turno, Rui Marques Veloso, numa receção
(2002), por exemplo, snteses da edio recente. crítica ao volume em questão, salienta o “profundo
Nesta última abordagem panorâmica, por lirismo” (Veloso, 2002: 23) que percorre os
exemplo, o volume de Nuno Higino O menino que textos do livro, incluindo o conto inaugural. Dos
namorava paisagens e outros poemas (2001) poemas, ressalta a relação que estabelecem com
situado no âmbito do universo lírico, onde estão
1 Depois de alguns volumes narrativos, ainda que de nenhum
presentes “ecos da tradição oral assim como da deles esteja ausente a sugestão lírica, transversal a todos os
figura tutelar de Matilde Rosa Araújo na atenção seus textos.
aos outros, à natureza, aos afectos, ao mundo da 2 Marcados pela diversidade temtica, os poemas aqui
infância”. Também de cariz panorâmico, a autora reunidos são percorridos por uma relevante dimensão lúdica,
nomeadamente com a linguagem. Destaca-se, igualmente,
deste ensaio, em colaboração com José António uma certa tentativa de aproximação ao universo infantil,
Gomes e Sara Reis da Silva, destacara, a propósito recuperando algumas das preocupações e interesses das
deste autor, para além do seu inegável talento, a crianças. O jogo e o humor são outros ingredientes importantes
“forma intensamente lírica como combina uma que se combinam com a exploração das palavras, tanto em
termos da sua forma como do seu significado, promovendo
atenta observação da realidade que o rodeia com a leituras lúdicas dos textos.
SOLTA PALAVRA 18 • 2012 11
Outros textos exploram uma dimensão mais Para além dos cenários e dos objetos que lhe
humorística, como acontece com “Gato sobre pertencem, a linguagem, enquanto matéria-prima
poética por excelência, também parece oferecer
3 Cavalo: múltiplos motivos de interesse, tanto do ponto
uma porção de luz
em forma de animal
de vista semântico, como melódico, muitas vezes
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associados aos sons e aos ritmos das palavras ou principal. A Palavra torna-se, pela sua mão, objeto
da combinação entre elas. A dimensão lúdica, poético por excelência, forma plena e única de
além de tema, pode resultar ainda do jogo que comunhão com o real.
estrutura muitos textos. A presença do humor,
decorrente do cómico de linguagem, mas Referências Bibliográficas:
também de situação, percorre alguns textos. Veja-
COSTA, Maria José (coord) (1996). Poesia. Porto: Civilização.
se, por exemplo, o poema “O degrau”, onde as GOMES, José António (1993). A poesia na literatura para a
hesitações do sujeito poético sobre se o deve subir infância. A produção portuguesa do pós-guerra à actualidade e o
e/ou descer resultam na decisão de, simplesmente, caso de Matilde Rosa Araújo. Porto: Asa.
tirar o degrau, acabando em definitivo, com as GOMES, Jos Antnio (2010). Tendncias recentes da poesia
portuguesa para a infância. In DUARTE, Rita Taborda (coord).
dúvidas. Já o poema “Coisas à toa” explora uma Palavras de Trapos. A Língua que os Livros Falam. Lisboa:
dimensão subversiva e questionadora do senso Fundao Calouste Gulbenkian, pp. 27-37.
comum, contrariando um provérbio que exprime GOMES, José António, RAMOS, Ana Margarida e SILVA, Sara
a previdência em favor de uma certa liberdade e Reis (2009). “Tendncias da nova poesia para a infncia (2000-
2008)”. ROIG-RECHOU, Blanca-Ana et alii (coord). A Poesía
despreocupação nitidamente infantis: “Contrariar Infantil no Século XXI (2000-2008). Vigo: Edicins Xerais de
é coisa boa/ ou dizer coisas à toa./ E muitos Galicia, pp. 111-137.
exemplos há:/ não faças ainda hoje/ se pode ser HIGINO, Nuno (2001). O Menino que Namorava Paisagens e
amanhã!” Outros Poemas. Porto: Campo das Letras (ilustrações de José
Emídio).
HIGINO, Nuno (2008). Versos Diversos. Porto: Trinta por uma
Na maior parte dos textos, são comuns as Linha (ilustrações de Ana de Castro).
estruturas dialogadas, próximas da oralidade PEDRO, Maria do Sameiro (2002). “Breves contornos da
e de algumas medidas populares, assim como poesia para crianas e jovens em Portugal desde os anos 90”,
Fadamorgana. Revista galega de literatura infantil e xuvenil, n.º
as repetições, os paralelismos, a circularidade 8, Primavera de 2002.
de algumas composições e o ritmo regular, às VELOSO, Rui Marques (2002). “Recenso de O Menino que
vezes claramente conotado com a temática do Namorava Paisagens e Outros Poemas”, Malasartes (Cadernos de
poema, como acontece com “Adivinha”, com a Literatura para a Infância e a Juventude) 8, Abril de 2002, p. 23.
simulação da cadência das ondas e da maré e do
baloiço, com o ritmo binário4 de “Cavalo de pau”,
ou com “Bailarina”, sugerindo o movimento
através do uso do refrão. Destaque-se, ainda, o
facto de não estarem ausentes, por exemplo,
alusões intertextuais relevantes, como acontece
com os ecos camonianos que ressoam no poema
“Menina”: “Vai cair, ó formosura. – Não caio que
estou segura!”