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SOLTA PALAVRA 18 • 2012 9

Nuno
o Higino:
poeta
que
namorava
palavras ANA MARGARIDA RAMOS
Universidade de Aveiro
anamargarida@ua.pt

É nosso objetivo, neste breve ensaio, propor algumas linhas de leitura da obra poética de Nuno Higino,
situando-o no universo da poesia para a infância contemporânea, onde tem, aliás, publicado alguns dos
seus melhores volumes. A tonalidade lírica percorre praticamente e sem exceção todas as suas publi-
cações, mesmo as narrativas em prosa, funcionando como chave de leitura da sua produção literária.
Com formação filosófica e teológica, são notórias as recorrentes reflexões metapoéticas sobre a litera-
tura (e a poesia) e a estética, mesmo em volumes dedicados a pequenos leitores. Destaque-se, muito
brevemente, o caso do livro de estreia A Rainha do País dos Frutos (2000), mas tambm dos volumes
Onde dormem os pássaros? (2006) e A maçã vermelha – viagem à infância de Sophia de Mello Breyner
Andresen (2008), sendo este ltimo uma viagem  gnese da potica da autora de A Menina do Mar,
de quem era, aliás, além de amigo, profundo admirador.

A poesia portuguesa para a infância tem perda, a nostalgia e a tristeza, a denúncia social, o
conhecido alguns estudos relevantes, jogo linguístico e o recurso ao nonsense, ao humor
permitindo descobrir o percurso que, e ao insólito são alguns dos eixos enumerados pelo
praticamente desde a segunda metade do autor de Da Nascente à Voz. Em reflexão posterior,
século XX, vem sendo trilhado no âmbito atualiza e sistematiza um conjunto de ideias que
da lírica. José António Gomes (1993), no merecem transcrição, apesar da extensão, num
volume A poesia na literatura para a infância. rico e completo retrato da poesia para crianças
A produção portuguesa do pós-guerra à publicada nos últimos anos:
actualidade e o caso de Matilde Rosa Araújo,
traça a evolução ocorrida, dando especial Mas não há dúvida que certas linhas se
relevo à obra tutelar de Matilde Rosa Araújo. detetam com frequência, tais como a
Define, contudo, um conjunto de linhas representação de um olhar inaugural sobre
temáticas e formais estruturantes da poesia as coisas, a nostalgia do «paraíso perdido»
para a infância em Portugal que se revela da meninice, a tematização da liberdade
de particular interesse para este estudo, na e da atividade lúdica e imaginante, para
medida em que, também a obra de Nuno não falar da tensa relação entre os modos
Higino, se estrutura em torno desses eixos. infantis de estar no mundo e o universo dos
O olhar poético sobre o real e sobre os adultos – aqueles imbuídos de ingenuidade
elementos que o constituem, com especial e pureza, este último inquinado já pela
relevo para a natureza e os animais, a perda irremediável da inocência e por uma
tendência para o intimismo e a introspeção, visão da vida demasiado pragmática e até,
com a recriação poética de sentimentos de certo modo, baça e pervertida. Aliás,
como a amizade ou a alegria, mas também a em termos enunciativos, o texto poético
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para crianças oscila entre a presença de simplicidade de um registo que, ora deslumbrado,
uma voz adulta e a de uma voz infantil ou ora próximo da ingenuidade infantil, a capta e
pretensamente infantil, as quais, no plano recria” (Gomes, Ramos e Silva, 2009: 126).
ideotemático, permitem ler aproximações No âmbito deste estudo, e apesar do regresso
a questões ambientais (…), bem como posterior ao texto lírico1, com a publicação de
às injustiças do mundo (…) e até, aqui Versos Diversos2 (2008), tomaremos como objeto
e acolá, à luta contra a opressão, ao de leitura o volume poético inaugural, claramente
racismo e à guerra (…). A estes eixos vêm marcante no panorama literário infantil do início
somar-se, por exemplo, topo intemporais do século XXI.
como a passagem do tempo, a solidão,
o envelhecimento e a morte (…). Se, por No caso de O Menino que Namorava Paisagens
outro lado, o humor e o motivo do mundo e Outros Poemas (2001), a coletnea inclui, para
às avessas comparecem com frequência, tal alm do conto que lhe empresta o ttulo, mais 20
acontece designadamente em textos que poemas. Esta publicação caracteriza-se pela forma
retomam estruturas formais e textuais de simultaneamente simples e profundamente lírica
raiz popular (Gomes, 2010: 28-29). como o sujeito poético se relaciona com o mundo
que o rodeia, revelando particular atenção pelo
Acrescentem-se, na nossa opinião, aspetos universo natural e animal. A perspectiva adoptada,
como a cada vez mais frequente partilha de entre a ingenuidade e o deslumbramento
produção literária entre públicos diferentes infantis, encerra também uma afectividade
(infantil, juvenil e adulto), como acontece com que as palavras exalam e que percorre muitos
autores como João Pedro Mésseder, Manuel dos textos. Particularmente atento à questão
António Pina, Francisco Duarte Mangas ou Jorge rítmica e melódica, o poeta socorre-se de formas
Sousa Braga; a independência dos autores face simples e de medidas tradicionais, combinando,
a poéticas normativas e construção de poéticas ainda, narração e diálogo. As ilustrações que
individualizantes, tanto em termos de forma como acompanham os textos, realizadas a aguarelas,
de conteúdo, o que, por vezes, conduz à temática procuram captar ambiências, possibilitando
metapoética; a valorização da Palavra e da inúmeras leituras e interpretações.
linguagem como matéria poética por excelência; o
culto de formas breves, por vezes fragmentárias e José António Gomes destaca, neste volume, um
o caráter interventivo dos textos, onde a dimensão conjunto de poemas tocados por uma sugestão
ideológica ocupa lugar de destaque. do haiku, a quem o autor, com grande liberdade,
pede emprestada a contenção e a leveza, como
Outros estudos, como o volume coordenado por acontece com “Definição”, “Os ventos” e
Maria José Costa (1996), recolhem diferentes “Ovelhas e cabrinhas nas serras de Barroso”
perspetivas e tendências da poesia portuguesa para (Gomes, 2010: 35).
a infância, sendo, posteriormente, completados
por ensaios como o de Maria Sameiro Pedro Por seu turno, Rui Marques Veloso, numa receção
(2002), por exemplo, snteses da edio recente. crítica ao volume em questão, salienta o “profundo
Nesta última abordagem panorâmica, por lirismo” (Veloso, 2002: 23) que percorre os
exemplo, o volume de Nuno Higino O menino que textos do livro, incluindo o conto inaugural. Dos
namorava paisagens e outros poemas (2001)  poemas, ressalta a relação que estabelecem com
situado no âmbito do universo lírico, onde estão
1 Depois de alguns volumes narrativos, ainda que de nenhum
presentes “ecos da tradição oral assim como da deles esteja ausente a sugestão lírica, transversal a todos os
figura tutelar de Matilde Rosa Araújo na atenção seus textos.
aos outros, à natureza, aos afectos, ao mundo da 2 Marcados pela diversidade temtica, os poemas aqui
infância”. Também de cariz panorâmico, a autora reunidos são percorridos por uma relevante dimensão lúdica,
nomeadamente com a linguagem. Destaca-se, igualmente,
deste ensaio, em colaboração com José António uma certa tentativa de aproximação ao universo infantil,
Gomes e Sara Reis da Silva, destacara, a propósito recuperando algumas das preocupações e interesses das
deste autor, para além do seu inegável talento, a crianças. O jogo e o humor são outros ingredientes importantes
“forma intensamente lírica como combina uma que se combinam com a exploração das palavras, tanto em
termos da sua forma como do seu significado, promovendo
atenta observação da realidade que o rodeia com a leituras lúdicas dos textos.
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a Natureza, mas também a celebração da dádiva a mesa”, associado à descrição de um acidente


afetiva. Construído em torno do motivo maternal, doméstico; ou com “Lagartixa”, contemplando
o poema “Mãe” apresenta uma estrutura a reação de uma menina ao réptil. A cadeia
dialogada, sendo concedidos ao filho, pela figura alimentar e a relação entre predador e presa
materna, todos os pedidos do sujeito poético. A também é objeto de recriação poética em “O
mãe, aliás, supera-se nessa sugestão de dádiva, peixe e o anzol” e “Teia de aranha”.
oferecendo-se toda ao filho. Assim, aos pedidos
sucessivos de objetos concretos como a maçã, Mas a natureza também manifesta a sua presença
a flor, a ave e, finalmente, a alegria, sucedem- através de recriação poética de vários elementos
-se as ofertas da mão, do cabelo, do sorriso e do naturais, como o mar, o rio, as estrelas, a lua
coração, num crescendo de entrega afetiva, bem ou o vento. É frequente que sejam alvo de
esclarecedora da relação entre as personagens. uma reconfiguração imagética ou simbólica
que possibilita outro tipo de leituras para além
Marcados pela simplicidade, tanto ao nível das literais. Deste modo, o mar transforma-se,
dos temas e dos motivos, como das formas, pelo olhar infantil, em “baloiço irrequieto”, no
os poemas aqui agrupados revelam uma certa poema “Adivinha”; o rio “nasce e desagua na
atenção ao espaço envolvente, quase sempre minha imaginação”, no poema “Os rios”; as
natural, afetivamente relevante. É nesta linha que estrelas, presas “todas neste fio”, acendem e
interpretamos o conto – espécie de mote poético apagam ao sabor das emoções e sentimentos
para o desenrolar do volume, como se, de algum do sujeito poético, transformado em pequeno
modo, os poemas seguintes fossem o produto deus doméstico, no poema “Todas as estrelas”;
visível desse processo de enamoramento que o “Os ventos”, mansos e meigos, têm como
conto recria. função embalar o sono das crianças, pelo qual a
lua, no poema “Canção da lua”, também vela.
A temática animal é, a par da Natureza, com a Transportados para o universo “caseiro”, próximo
qual também, de certa forma, dialoga, uma das e pessoal, os elementos naturais ganham uma
mais significativamente presentes na coletânea. dimensão afetiva, parecendo participar das rotinas
O bestiário construído é elucidativo da relação infantis, como os jogos e brinquedos, o sono e o
próxima do sujeito poético com o universo que o sonho.
rodeia, assumidamente rural. O cavalo, ovelhas e
cabrinhas, o gato, a lagartixa, o peixe ou aranha são Às vezes, a atenção do sujeito lírico distingue
perspetivados a partir de situações do quotidiano ainda elementos mais pequenos, quase mínimos,
ou pontos de partida para reflexões conceptuais a passarem despercebidos ao espectador menos
sobre a própria ideia de animal. No caso do breve atento, como acontece com os bugalhos ou
poema “Definição”3, o sujeito poético destaca mesmo a poeira. Os poemas “O bugalho e a
o caráter luminoso, quase etéreo ou divino, da bugalhinha” e “Poeirinha” partilham páginas
espécie em questão. Em “Ovelhas e cabrinhas nas contíguas do volume e a mesma atenção afetuosa
serras do Barroso”, apesar da especificidade do e dedicada ao muito pequeno, quase invisível. O
título, apontando para uma referência toponímica olhar especial do sujeito poético, contudo, permite
muito concreta, é visível, novamente, uma distingui-los, sublinhando as suas particularidades.
certa sugestão abstrata, resultante da ação do No primeiro caso, para além da forma e da génese
vento: “É o vento que vos leva/ ou sois vós que do bugalho, é referido o som e, de alguma forma,
caminhais/ por entre as fragas?”. A interrogação a beleza insólita que o caracteriza. Já em relação
final é esclarecedora quanto à indefinição de à poeirinha, é no seu movimento irrequieto, por
que se reveste a cena observada, encontro quase ação da corrente de ar, que o sujeito poético
sinestésico de elementos naturais. demora a atenção.

Outros textos exploram uma dimensão mais Para além dos cenários e dos objetos que lhe
humorística, como acontece com “Gato sobre pertencem, a linguagem, enquanto matéria-prima
poética por excelência, também parece oferecer
3 Cavalo: múltiplos motivos de interesse, tanto do ponto
uma porção de luz
em forma de animal
de vista semântico, como melódico, muitas vezes
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associados aos sons e aos ritmos das palavras ou principal. A Palavra torna-se, pela sua mão, objeto
da combinação entre elas. A dimensão lúdica, poético por excelência, forma plena e única de
além de tema, pode resultar ainda do jogo que comunhão com o real.
estrutura muitos textos. A presença do humor,
decorrente do cómico de linguagem, mas Referências Bibliográficas:
também de situação, percorre alguns textos. Veja-
COSTA, Maria José (coord) (1996). Poesia. Porto: Civilização.
se, por exemplo, o poema “O degrau”, onde as GOMES, José António (1993). A poesia na literatura para a
hesitações do sujeito poético sobre se o deve subir infância. A produção portuguesa do pós-guerra à actualidade e o
e/ou descer resultam na decisão de, simplesmente, caso de Matilde Rosa Araújo. Porto: Asa.
tirar o degrau, acabando em definitivo, com as GOMES, Jos Antnio (2010). Tendncias recentes da poesia
portuguesa para a infância. In DUARTE, Rita Taborda (coord).
dúvidas. Já o poema “Coisas à toa” explora uma Palavras de Trapos. A Língua que os Livros Falam. Lisboa:
dimensão subversiva e questionadora do senso Fundao Calouste Gulbenkian, pp. 27-37.
comum, contrariando um provérbio que exprime GOMES, José António, RAMOS, Ana Margarida e SILVA, Sara
a previdência em favor de uma certa liberdade e Reis (2009). “Tendncias da nova poesia para a infncia (2000-
2008)”. ROIG-RECHOU, Blanca-Ana et alii (coord). A Poesía
despreocupação nitidamente infantis: “Contrariar Infantil no Século XXI (2000-2008). Vigo: Edicins Xerais de
é coisa boa/ ou dizer coisas à toa./ E muitos Galicia, pp. 111-137.
exemplos há:/ não faças ainda hoje/ se pode ser HIGINO, Nuno (2001). O Menino que Namorava Paisagens e
amanhã!” Outros Poemas. Porto: Campo das Letras (ilustrações de José
Emídio).
HIGINO, Nuno (2008). Versos Diversos. Porto: Trinta por uma
Na maior parte dos textos, são comuns as Linha (ilustrações de Ana de Castro).
estruturas dialogadas, próximas da oralidade PEDRO, Maria do Sameiro (2002). “Breves contornos da
e de algumas medidas populares, assim como poesia para crianas e jovens em Portugal desde os anos 90”,
Fadamorgana. Revista galega de literatura infantil e xuvenil, n.º
as repetições, os paralelismos, a circularidade 8, Primavera de 2002.
de algumas composições e o ritmo regular, às VELOSO, Rui Marques (2002). “Recenso de O Menino que
vezes claramente conotado com a temática do Namorava Paisagens e Outros Poemas”, Malasartes (Cadernos de
poema, como acontece com “Adivinha”, com a Literatura para a Infância e a Juventude) 8, Abril de 2002, p. 23.
simulação da cadência das ondas e da maré e do
baloiço, com o ritmo binário4 de “Cavalo de pau”,
ou com “Bailarina”, sugerindo o movimento
através do uso do refrão. Destaque-se, ainda, o
facto de não estarem ausentes, por exemplo,
alusões intertextuais relevantes, como acontece
com os ecos camonianos que ressoam no poema
“Menina”: “Vai cair, ó formosura. – Não caio que
estou segura!”

As ilustrações de José Emídio, pelo recurso à


indefinição da aguarela e às grandes manchas
aguadas, sublinham a dimensão lírica da
publicação, colocando o acento tónico na figura
humana, assumidamente infantil, em interação
com o meio.

Sempre poeta, mesmo quando escreve prosa,


Nuno Higino partilha com o menino protagonista
do conto O menino que namorava paisagens a
capacidade de se deslumbrar com o que o rodeia.
Os seus textos para a infância são a materialização
desse processo de encantamento, no qual a
linguagem também desempenha um papel
4 Reforado pela onomatopeia – que tambm serve de refro
– com que iniciam todas as quadras “Blau, blau”.

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