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São Paulo, n. 10, jan.- jun.

, 2015

RESENHA

ESTÉTICA:
rupturas que a sensibilidade permitiu à razão

Flávia Zambon Tronca 1

Resumo: Marc Jimenez procura respostas para “O Que é Estética?” título do livro publicado em Paris,
em 1997, pela editora Gallimard, e traduzido para o português, em 1999, pela editora Unisinos. O
desafio é o da compreensão da ambiguidade da arte e seus paradoxos. Para isto sugere diversas
conexões estabelecendo a estética como disciplina autônoma. Mostra contradições e avanços, traçando
um consistente mapa histórico de maneira didática, permitindo o esclarecimento da questão proposta.

Palavras-chave: Estética, arte e história

JIMENEZ, Marc. O que é estetica? Marc Jimenez; tradução Fulvia M. L. Moretto. São
Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 1999.

Filósofo francês e germanista, Marc Jimenez é professor da Universidade de


Paris I (Panthéon-Sorbone). Ensina estética na Unité de Formation et de Recherche
d’Arts plastiques et Sciences de I’Art, participa de conferências em diversos países e
escreve regularmente para revistas de arte.
Na primeira parte do livro Jimenez trata de esclarecer o que é a autonomia
estética e a sua composição, indo do artista ao artesão, da razão à sensibilidade, dos
antigos aos modernos, do criticismo ao romantismo, fazendo pontes entre Kant, Hegel,
Schiller e outros pensadores, avançando até o nascimento da estética moderna. No
segundo momento, trata da heteronomia da arte e suas ambiguidades, da nostalgia à
modernidade, trazendo as ideias de Marx, Nietzsche, Schopenhauer, Wagner e Freud,
traçando paralelos entre as teoria e a estética. No terceiro conjunto de capítulos

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É graduada em Artes Plásticas e Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul. Atualmente, desenvolve trabalhos de pesquisa em arte em seu ateliê, e docência em
Universidades de Santa Catarina. E-mail: arte@flaviatronca.com.br.

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Jimenez discute o declínio da tradição, modernidade e vanguarda. Por fim, apresenta a


guinada política e cultural da estética conduzindo à cena Georg Lukács e a questão do
realismo, Heidegger e o retorno às origens, Walter Benjamin e a experiência estética, e
mais, Herbert Marcuse, Adorno, Jauss, Habermas, Nelson Goodman e Arthur Danto e a
crítica da modernidade: o pós-moderno e seus desafios.
Jimenez inicia destacando a fundação da estética como disciplina autônoma,
identificando-a como acontecimento de alcance considerável, não apenas por ter-se
inventado um novo vocabulário capaz de esclarecer um saber até então nebuloso ou,
talvez, pelo acréscimo a um novo ramo da ciência, mas, principalmente, por iluminar o
olhar dos contemporâneos sobre a arte do passado, artistas e obras de sua época.
Apesar de ter inúmeras correlações, a autonomia da estética não coincide em
significado com a autonomia da arte. A palavra arte tem origem latina ars = atividade,
habilidade, herdeira do século XI, designado até o século XV, atividades ligadas à
técnica e a tarefas essencialmente manuais. Já a estética, no sentido moderno,
aparece somente quando a arte passa a ser reconhecida pelo seu conceito, ou seja,
como atividade intelectual, separada das técnicas e dos ofícios. Jimenez afirma que a
autonomia da fase moderna da estética, que aconteceu a partir de 1750, não surgiu
repentinamente graças ao filósofo Baumgarten. O estabelecimento da estética foi,
enquanto ciência, consequência de um longo processo de emancipação que, no
Ocidente, diz respeito ao conjunto de atividades intelectuais, filosóficas, artísticas e
espirituais a partir da Renascença. A criação artística passou a não ser mais vista como
privilégio de Deus, mas dependente da ação humana. A complexidade passou a estar
nas conexões que a arte proporciona. Para que o processo criativo viesse a acontecer
entrou em cena o reconhecimento dos mecanismos psíquicos e mentais (abstração),
resultando na materialização de algo concreto: a obra de arte. Este debate passou a
acontecer insistentemente entre teólogos e filósofos em todos os domínios do
conhecimento.
O aspecto fundamental da nova estética aconteceu quando o artesão foi
progressivamente reconhecido como artista: a ideia de gênio em arte permaneceu
sendo um dom de Deus até a época romântica, porém, a força criativa passou a ser

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individual; o método matemático tornou-se indispensável na realização das normas da


perspectiva, impondo-se rapidamente como o credo dos pintores Renascentistas; as
obras passaram a ser assinadas; os artistas a escolher os seus próprios temas e cores; o
preço das obras a aumentar consideravelmente, não tendo mais por referência apenas
os materiais utilizados (custo de produção); o tempo de criação, e não mais de
trabalho, tornou os artistas livres em função do renome e talento, tratando-se de um
investimento no sujeito autônomo e, ainda, os governantes passaram a referir-se aos
artistas como senhores possuidores dos seus próprios palácios.
Com a Renascença despontou a ideia de criação autônoma, libertando o artista
das coerções religiosas, políticas e sociais da Idade Média, o que trouxe profundas
transformações. O Renascimento proporcionou a representação do homem, da
natureza, do universo e até mesmo de Deus, em um espaço temporal contínuo e
homogêneo. Porém, o século XIX abriu as suas portas e trouxe com ele a proposição de
um espaço-tempo diferente, relativo, descontínuo e de progresso, alterando as
relações, formas de pensar e fazer arte.
Para discutir a ligação entre nostalgia e modernidade, Jimenez traz à baila três
dos maiores artesãos conceituais da modernidade no século XX: Marx, Nietzsche e
Freud, encontrando conexões entre o “teórico do capital e da luta de classes”, o
“profeta da morte de Deus” e o “pai da psicanálise”, isto tudo no cenário das
referências em filosofia e estética. O destaque destes teóricos, não necessariamente
contemporâneos, se fez indispensável pelo motivo dos três marcarem, em intervalos
próximos, o fim do humanismo e da razão clássica lapidados na Renascença e, ainda,
por terem derrubado as certezas traçadas do homem como dono e possuidor da
natureza. Porém, cada qual interessou por conservarem, ao seu modo, certa nostalgia
da Antiguidade.
Com esta análise, Jimenez trouxe a seguinte questão: porque estes promotores
da modernidade em política, em metafísica ou em psicologia ignoraram a
modernidade em arte? Este paradoxo revelou claramente a defasagem da análise
estética que as interpreta. Percebe-se que apesar da reflexão sobre arte acontecer
posteriormente às obras, os estetas insistiram em impor regras aos artistas, fixando

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normas na avaliação do belo ou do feio, do conveniente ou do seu inverso, pontuando


critérios com base em cânones de épocas anteriores. A estética permaneceu modesta
e temerosa diante da arte moderna por ser justamente demasiadamente nova,
sentindo-se mais confortável perante as criações já reconhecidas da antiguidade.
Assim, as primeiras teorias da arte moderna somente foram elaboradas de maneira
consistente e sistemática a partir dos anos 60.
A arte contemporânea, aproximadamente dos anos 60 aos nossos dias,
atravessa uma crise de legitimação. Vemos isto quando os artistas são acusados de
fazer “qualquer coisa” em detrimento do processo criativo. Apesar da busca pela
legitimação continua a reflexão sobre arte, do desaparecimento de referências induz à
procura de novos padrões, de convenções ou critérios que possam permitir o
julgamento do gosto e da avaliação das obras. Neste movimento, Jimenez questiona a
necessidade de voltar o olhar ao passado na tentativa de recuperação das referências
antigas ou, ao contrário, aceitar a pós-modernidade no ecletismo das formas,
materiais e estilos. Dizendo de outra maneira: o que significa hoje criticar uma obra de
arte? Ou ainda, o termo estética é hoje compreendido da mesma forma que foi
concebido em 1750, data da publicação da obra de Baumgarten, A estetica?
Evidentemente, não.
Jimenez chega ao sentido atual da estética entendendo não ser possível tê-la
como sinônimo de qualquer outra ciência em particular as quais foi preciso recorrer
para elucida-la, como a psicanálise, a psicologia, a sociologia, a semiologia, a
antropologia ou a linguística. Desde o surgimento da estética considerada da ordem do
conhecimento, diversos teóricos contribuíram para a unificação da razão e do
sentimento, permitindo a distinção da estética entre vários campos do saber até então
indistintos e que às vezes eram confundidos; talvez até hoje. O estabelecimento da
estética como ciência autônoma significou afirmar que o domínio da sensibilidade
também pode ser objeto de reflexão, reconhecendo a intuição e a imaginação como
chaves possíveis deste conhecimento. Trata-se de harmonizar a sensibilidade e a razão
conciliando facetas humanas constituídas de natureza e cultura.

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Como ciência do conhecimento e da representação sensíveis, a estética,


enquanto disciplina em si mesma, reflete sobre a arte e sobre as obras compondo um
universo constitutivo do saber. A arte, por sua vez, torna-se realidade através de
procedimentos específicos aplicados a diferentes materiais. Já a história da arte,
nascida no século XVIII, quando da obra do arqueólogo Johann J. Winckelmann, A
História da Arte Antiga, de 1763, dispõe de um método e de um objeto de estudo na
compreensão das obras, escolas e estilos na época e no lugar que apareceram.
O que ocorre hoje é o abandono de uma cronologia linear das teorias e das
doutrinas estéticas. Cai por terra a ideia de um progresso estético ascendente e
constante, ou seja, concepções antigas podem perfeitamente transitar no cerne de
uma teoria moderna de arte. Torna-se evidente que a ideia de um “belo” ideal,
absoluto e transcendente não mais faz parte dos anseios da estética contemporânea.
O belo e o feio são entendidos na sua relatividade.
A história da estética se fez através de rupturas que a sensibilidade permitiu à
razão. A primeira aconteceu na Renascença, quando do movimento de renovação
intelectual que, em parte, firmou-se na imitação dos antigos, possibilitando a
emancipação religiosa da Reforma e da Contra-Reforma. Esta ação permitiu a
aceitação do poder do indivíduo e de seu desprendimento em relação às amarras da
Idade Média. O desenrolar da história encontrou no século XVIII e no início do XIX o
reconhecimento da autonomia da estética em sua versão moderna. A modernidade
rompeu os lações que a história fez com a Renascença e com a tradição herdada da
antiguidade. A novidade, o inédito e o fora de padrão passaram a incomodar. Os
movimentos levantaram suas bandeiras fazendo barulho, na tentativa de
desembaraçar-se do hábito que representava o porto-seguro vigente. A estética
contemporânea passou a ter o desafio de aproximar as diversidades e provocações
feitas pelos artistas aos apreciadores e estudiosos da arte.
Segundo Jimenez, o atraso da estética em se manifestar quando da
apresentação das vanguardas ao público não é considerado uma desvantagem; este
tempo serviu para refletir sobre as inúmeras mudanças e sensibilidades que

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inevitavelmente aconteceram entre o passado e o presente, que por algum tempo


desestabilizaram os referenciais ou formas já acomodadas de pensar.
Jimenez traça um percurso histórico instigante na tentativa de encontrar
respostas para o que é a Estética. Para isto, o autor faz marcações importantes,
principalmente no que diz respeito à estética como ciência autônoma, apresentando
as não coincidências com a arte. Faz pontes entre a antiguidade, o moderno e o
contemporâneo mostrando as rupturas, as superações e as consequências de um
longo processo de emancipação.
As transformações históricas levaram à autonomia da estética, ao surgimento
da crítica, da história da arte, ao surgimento do sujeito-artista. No campo da ciência e
também da arte, explicações simples e, talvez reducionistas no seu princípio, não
alcançam mais a dimensão de nossas indagações. Permanecem as interrogações na
medida em que a arte compartilha, no contexto histórico contemporâneo de
suspensão de parâmetros a priori e definidores, exigindo tomadas de posição estéticas
e éticas.
A obra de Marc Jimenez, O que é estética?, é fundamental para aqueles que se
dispõe à compreensão da arte, da estética, das subjetividades e das relações humanas
no transcurso da história; obra esta reconhecida pela atualidade e padrão científico
irrestritos.

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