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quarta-feira, 14 de julho de 2010

Pipoca

Pipoca

Barulho ensurdecedor ferindo os ouvidos. Tensão. A multidão em polvorosa nas ruas


noturnas. Helicópteros. medo. tropas de choque. Um homem negro caído imóvel no
chão desagua um rio de sangue: è carnaval em Salvador!

Minha missão é atravessar meu corpo negro em segurança até o Garcia, passando por
toda a Avenida Sete, onde a festa corre solta. Eu já trabvalhei o dia todo, vendendo
cerveja e batida de maracujá. Desde de Mnanhã cedo na luta, comprando gelo,
arrumando isopor, descarregando caixas e mais caixas de refrigerante e cerveja. tudo
amarrado, trânsito lento, a paciência no limite em que um tombo mal dado ou um olhar
mal cruzado podem estourar um assassinato. os prtos subindo e descendo a Ladeira da
Montanha com sacas de gelo na cabeça, mulheres e meninas fortes trazem até quatro
caixas de refrigerantes nos braços. Eu se não tirar o meu agora no carnaval, passo o
semestre todo no osso, e aí a vida não corre. A onda é essa mermo: correr na frente que
atrás vem gente!

Agora, noite de terça feira de carnaval, última noite da putaria, a galera tá na sede da
loucura, na ponta da faca da maldade. Quem não bateu em ninguém, tem que bater,
quem apanhou tem que descontar, quem tem conta pra acertar, a hora é essa, quem não
se armou com ninguém, tem que arrumar uma figura pra namorar hoje! Porque se não,
já sabe, é o ano todo sendo comediado pelos camaradas da rua, e ficar só afinado os
dentes pro carnaval que vem. " Os Home" então nem se fala, tem polícia que trabalha
até de graça, pede pra trocar o dia, pra poder dar plantão na terça-feira.

Eu não vou mentir, já gostei, mas hoje em dia mano, na moral, pra mim é só trabalho,
quero é ver minha nega, minha filha que tá me esperando, juntar "o bom" pra passar os
próximos meses que o bicho tá pegando é no meu bolso.

Logo na Rua Chile o pau já comeu. Esse cara tomou um murro de algema na fonte, e taí
no asfalto se batendo e sangrando. o motivo quem sabe são eles, o Choque que tá
passando o rádio chamando a viatura. Eu tõ só de passagem, só de passagem e que meu
Deus e Xangô me protejam.

Se descer pela Barroquinha é viola, os sacizeiros tiram meu escalpo e roubam até minha
cueca. A Baixa dos Sapateiros já virou a cidade fantasma do crack, e só quem não tem
nada a perder é que correria o risco. A Avenida Contorno, do outro lado é outra
conversa: Choque descendo, P.E> subindo e agente da civil dando bote de paisano. Até
eu explicar o dinheiro guardado no tênis, ia eu no rodão da 1.a e só quinta feira tava
solto. O jeito é mesmo atravessar a muvuca, seguir na levada, pronto pra tudo e entregar
a Deus.

Desde a Praça Castro Alves é terra de ninguém. Eu fiquei nessa de pensar na vida e só
percebi quando o trio tinha já começado a tocar. Sorte minha que era Baby Consuelo
sem pecado e sem juízo, aí du pra subir até a Carlos Gomes no vácuo de um cordão da
PM que atravessou a praça. No começo da avenida, eu já pego Margareth botando o
chão pra tremer. Sua voz potente atravessa os corpos em milhares de decibéis, a
percussão come no centro, o couro das congas é que marca o ritmo, a massa se agita ao
som de Dandalunda, e eu sigo a minha estratégia: dançar junto com a música, cuidando
pra não levar pancada , e avaçar uns cem metros a cada intervalo. O trio de Margareth é
de pipoca, só o povão é quem vai atrás mesmo. Viola de um lado, biriba do outro,
playboy nem pensa em colar. desvio dos grupinhos, é onde mora a covardia. Um que
pare de vacilo no meio de uma barca dessa: eu que já sou macaco velho, sempre na
levada. minha mulher me esperando em casa, ó praí, eu colei foi numa pretinha que me
deu um sorriso e fui grudado nela até o outro trio. Ainda dançou pra mim, alegria da
cidade, e enfiou a lígua quente em minha boca, dançou e me soltou de volta no fluxo de
gente. Mais à frente rolou uma briga grande, eu conheço uns caras de Castelo Branco,
mano, os caras treinam o ano todo pra brabarizar no cranaval. Mistura com cravinho,
duas gramas de pó,, o peão parece o stanás, cada músculo definido brilhando de suor,
superagilidade, maldade pura, ginga que ninguém nem entende a velocidade dos murros
que derrubam o outro preto em sua frente. Cara pisada no asfalto, barriga chutada, dente
quebrado. Os pivetes fazem os halteres com latas de leite cheias de cimento, cabos de
vassoura e vão se inchando de fevereiro a fevereiro. Corta perna de calça, costura um
saco de boze e vai calejando a mão até ficar parecendo uma soqueira, um murro, uma
queda. Quem gosta mais de valentão é a P.E. Tem quase um metro e meio de madeira
maciça, o cassestete da PE, vai te buscar por mas que você corra e onde bate quebra.
Um briga entre galeras, é sempre o pretexto pros meninos da pátria descerem o pau em
todo mundo. Vão abrindo um clarão por onde passam, a multidão se pisoteia pra fugir, e
eu não perco o meu caminho, vou pelo canto do trio de bloco, pulando um samba
reggae das antigas que ninguém se esquece. Mas trio de bloco é o diabo pra passar:b os
parmalat dançando suas coreografias coloridas no meio da avenida, protegidos por um
cordão de seguranças negros. Voc~e tem de passar espremido. Se o cara que está
encostado na parede não soltar um murro, pode ter certeza que o cordeiro vai soltar, que
cordeiro também é instinto ruim, e hoje é o último dia de carnaval. Se não for um dos
dois, tem sempre o fluxo oposto descendo de volta pra a Praça, e daí voc~e pode
esperar.

Bater em segurança é otarice, porque são muitos. Parar pra brigar não dá, que a
multidão quer passar e te empurra. Eu me fixo é em quem vem na frente. Um outro
preto de uns dois metros que para na minha frente e larga dois cruzados. Só tenho tempo
de desviar e sou empurrado mais uns cinco metros à frente e nunca mais o verei. Dois
milhões de pessoas na rua, nunca mais o verei. Tem até grupinho de mulher de
shortinho enfiado que junta pra querer dar pancada em marmanjo, e se você não ligar,
toma.
Passei do trio, toca outra velha do Olodum, folgou, dá até pra dançar. Os playboys
dentro do cordão, fantasias exóticas, drogas liberadas, cerveja e gente bonita, como eles
dizem por aqui. Câmeras de Tv, artistas famosos, luzes de refletores, flashes e
helicópteros sobrevoando o circuito, tudo ao mesmo tempo. Nós somos apenas o
cenário da festa deles.

Quando a banda pára, então as coisas sossegam um pouco, uns e ôtro come um
churrasquinho, bebe uma cerveja, come um acarajé. Parei na Dona Júlia na altura do
Tuiuti. Três da madrugada e eu indo. Ela com seus sessenta anos, mais quatro filhos e
os netos que não aguentaram o tranco e pegaram no sono sobre uma caixa improvisada
de papelão. Não pára nem pra conversar comigo. Vai falando e despachando uma
latinha, virando a carne, remexendo os bolsos atrás de dinheiro trocado. Eu até já gostei
de beber, mas deu problema que eu gostei demais. Agora eu quero é chegar em casa e
me aninhar com minha nega, que tem umas sem álcool no congelador. Tchau Dona
Júlia, e eu vou aproveitar essa trégua.

Essa paz aparente, no entanto, se restringe à avenida principal. Nos becos e vielas
transversais, o terror come solto. Um é o beco da Ribeira, onde só entra o pessoal da
cidade baixa. Em outro somente chega o pessoal de São Caetano e Fazenda Grande,
outro só cabe o povo do subúrbio. Outro é das Cajazeiras, outro da zona do Cabula. Ai
daquele que der de entrar pelo caminho errado. De toda maneira, todo mundo sabe que
toda comunidade tem suas diferenças internas. Os caras da rua de cima não se dão com
os caras da rua de baixo, os do Bonfim não se dão com os caras da Boa Viagem, e nem
os da Cajazeiras Oito com o pessoal da Dez. O momento de resolver é justamente esse,
sob a pena de ficar escorado o resto do ano, nas rodas da vizinhança.

Eu passei largo, nego véi, que meu movimento agora é outro!

Outro trio de bloco, me fodeu: Chiclete com Banana.Último dia de carnaval, ninguém
merece. Só música acelerada, a batida perfeita pra a pilantragem, o povão vai ao delírio
diante de seus ídolos maiores! Só entra quem guenta, vai ficar esperando o trio passar?
Eu um negro pardo e magrelo, ninguém dá nada, mas sou gente ruim também, e nada
disso pra mim é novidade. Já desci também, e muito, na avenida com os cowboys de lá
da área, pra ver quem era o cruzado mais rápido do velho oeste, já vim ano após ano pra
cobrar comédia do ano passado, já sangrei e tirei sangue nessa avenida, e te digo hoje
que a minha é passar abatido, que eu não vejo sentido nenhum nessa gladiação: os
brancos dançando protegido e agente aqui fora se matando. Tia velha trabalhando, e eu,
homem barbado, vacilando. Eu se não for pra trabalhar não saio nem de casa, pra te
dizer a verdade, mas aqui estou.

Eles têm o costume de começar a introdução da música bem lentinha, pra a massa cantar
junto. Num momento dão uma parada brusca e recomeçam num galope louco que
parece que pontua um bombardeio de adrenalina pro coração. É bom pra quem gosta,
devo confessar. Na fé do senhor, passei sossegado e depois ainda dancei uma levada
com outra princesa da Liberdade que queria que eu a levasse pra casa, meu Deus! O
Vocalista é o diabo, parece que gosta de acelerar mais a música pra ver o povão se
descontrolar, e ainda é torcedor do Bahia. Larguei a Princesa Preta, preta, meu dia já
chegou, meu coração já está dado: eu passei do trio, minha corrente, e quebrei pro
Campo Grande e tô em casa. Daqui pra lá eu só tomei uma cutucada dos "home" pra
sair da frente do caminho, tão distraído que ela me deixou, embebedado no seu cheiro.
Um mês de costela dolorida, já sei, que não fraturou, mas foi pouco, qualquer vacilo no
carnaval é fatal.

Me espere minha pretinha, eu tô chegando com o dinheiro enrolado na meia, minha


mulher, chegando com vontade, que terça-feira de carnaval não termina assim, sem
encontro de trios, só quando um de nós se desmaiar.

Mandingo

11/08/2004

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