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piauí

piauí_212_R$ 35,00_ano 18_maio_2024


00212
maio
_ 212

A HISTÓRIA DESCONHECIDA DE DERRITE, O SECRETÁRIO DE SEGURANÇA DE SÃO PAULO


Por que a PM da Bahia mata tanto • Os caetanistas e a esquerda • A nova rota da ciência
O legado de Lélia Gonzalez • A torcida única no futebol • As memórias de Werner Herzog
Humor: O passarinho do Twitter revela as molecagens do bilionário
INÊS249

Um guia prático
para compreender e
superar conflitos
e traumas familiares

Se você cresceu em
uma família disfuncional,
provavelmente achava
que era normal:

• Perdoar e esquecer
as experiências ruins

• Agir como se nada


tivesse acontecido

• Fingir estar bem

Quebre o ciclo e se
torne um agente
de mudanças da
própria vida.

“Com compaixão e clareza, Nedra Tawwab oferece “Nedra Tawwab oferece estratégias práticas
um guia muito necessário para entender a criação para lidar com dinâmicas familiares tóxicas —
que cada um recebeu — e como se tornar um e maneiras eficientes de se desconectar de
agente de mudanças na própria vida.” uma pessoa quando você decidir fazê-lo.”

— LORI GOTTLIEB, — The New York Times


autora de Talvez você deva conversar com alguém
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piauí 212 _ capa Os puritanos, de Kleber Sales


colaboradores_4 Quem fez o quê na edição de maio
imagens Caio Borges

O PAÍS ENTROU PELO CANO


questões vultosas_6 Em cartaz, uma pantomima em três atos
Fernando de Barros e Silva + imagem Allan Sieber

Fãs comemoram o aniversário de Roberto Carlos diante de sua casa; uma briga
esquina_8 do governo deixa muitos piauienses sem wi-fi; pela primeira vez, multa é calculada
de maneira científica; palacete no interior do Paraná ocultava um quadro nazista;
uma barbearia de famosos na periferia paulista; no Ceará, uma líder indígena
defende o ensino do tupi; uma mistura musical paraense embala o Brasil
imagens Andrés Sandoval

O HOMEM E SEU PASSADO


anais da ultraviolência I_14 A desconhecida história de Guilherme Derrite, o secretário de Segurança Pública de São Paulo
João Batista Jr. + imagem Gabriel Silva

TRISTE BAHIA
anais da ultraviolência II_22 Como age a polícia que mais mata
Marcelo Canellas + imagem Felipe Iruatã

A SÍNDROME CAETANISTA
questões estético-políticas_28 O apego à Tropicália e a nossa dificuldade em imaginar um novo Brasil
Luigi Mazza + imagem Kleber Sales

THIS AIN’T PINDA


diário do geraldo_33 Inspirado em Beyoncé, montei num alazão e empunhei a bandeira de Pindamonhangaba
Renato Terra + imagem Caco Galhardo

CRIA CORVOS E ELES TE ARRANCARÃO OS OLHOS


humor_34 O relato dramático de uma ave sobre a derrocada do seu antigo império social
Afonso Cappellaro e Roberto Kaz + imagem Benett

A CIÊNCIA RECALCULA SUA ROTA


anais dos papers_36 Pesquisadores lutam por um sistema de publicação mais aberto e menos excludente
Clarice Cudischevitch e Kleber Neves + imagem Tom Gauld

TESOURO NO TERREIRO
questões de memória_44 O destino do legado de Lélia Gonzalez, uma das mais importantes
– e ignoradas – intelectuais negras do país
Plínio Fraga + imagem Tércio Teixeira

A COBRA E O BÚFALO
anais da caserna_50 A identidade racial em xeque no encontro entre soldados brasileiros
e americanos há oitenta anos, durante a Segunda Guerra Mundial
Felipe Botelho Corrêa + imagem Laurence Emery

A NEGAÇÃO DO OUTRO
questões ludopédicas_58 Em São Paulo, oito anos de clássicos sem torcida visitante forjaram
uma geração que não sabe o que é conviver com o contraditório
Rodrigo Barneschi + imagem Moritz Müller

“OBRIGADO, MEU AMOR”


vultos da música_64 Arquiteto da versão pop de Rita Lee, Roberto de Carvalho segue criando com a mulher de sua vida
Julio Maria + imagem Bob Wolfenson

A MOCHILA DE CHATWIN
cine-aventuras_70 Feita de couro resistente por um seleiro, essa mochila é, entre
todas as coisas materiais que tenho, a mais preciosa para mim
Werner Herzog + imagem Lord Snowdon

poesia_75 Sem aviso, desaba a noite sobre a aurora. Talvez o amanhã seja agora
Nas páginas desta edição, o leitor Salgado Maranhão + imagens Reberson Alexandre
encontrará desenhos que o cartunista
Ziraldo, que morreu dia 6 de abril aos
91 anos, costumava fazer enquanto falava cartas_76 Mensagens serenas anunciam o outono
ao telefone. O hábito durou sete décadas e
rendeu milhares de criaturas que ele batizou
de “homens tristes”. Os dez desenhos
ADEUS, REDE DE APOIO
espalhados nesta edição são inéditos e despedida_78 O Vigilantes do Peso, pela ótica de um antigo frequentador
pertencem ao acervo do Instituto Ziraldo. Thales de Menezes + imagem Phillip Harrington

piauí_maio 3
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colaboradores_ maio

CAIO BORGES
João Batista Jr. Lara Machado Felipe Botelho Clarice Cudischevitch Salgado Maranhão Kleber Neves

Kleber Sales [Capa] ilustra diariamente para Luigi Mazza [A síndrome caetanista, Plínio Fraga [Tesouro no terreiro, p. 44], Fitzcarraldo, Aguirre, O homem urso, Caverna
jornais, revistas e livros do Brasil e exterior. p. 28] é editor do site da piauí. jornalista, é autor de Tancredo Neves, dos sonhos esquecidos e O sobrevivente.
Ilustração de Kleber Sales. o príncipe civil (Objetiva). Publicou O crepúsculo do mundo (Todavia)
Fernando de Barros e Silva [O país e Conquista do inútil (Martins Fontes). O texto
entrou pelo cano, p. 6] é repórter da Renato Terra [This ain’t Pinda, p. 33] é Felipe Botelho Corrêa [A cobra e o búfalo, integra o livro Cada um por si e Deus contra
piauí e apresentador do podcast Foro colunista da Folha de S.Paulo e diretor p. 50], professor e pesquisador do todos: memórias, que a Todavia lançará em
de Teresina. Ilustração de Allan Sieber. de Narciso em férias e Uma noite em 67. King’s College de Londres, é organizador junho. Tradução de Sonali Bertuol.
Publicou Diário da Dilma (Companhia das dos livros Crônicas da Bruzundanga
João Batista Jr. [O homem e seu passado, Letras). Ilustração de Caco Galhardo. (e-galáxia) e Sátiras e outras subversões Salgado Maranhão [Poesia, p. 75],
p. 14] é repórter da piauí e publicou (Penguin-Companhia das Letras), poeta e compositor, é autor de Mural
A beleza da vida: a biografia de Marco Afonso Cappellaro [Cria corvos e eles te com textos de Lima Barreto. de ventos (José Olympio), A cor da
Antonio de Biaggi (Abril). arrancarão os olhos, p. 34] é roteirista e palavra (Imago) e Ópera de nãos (7Letras).
redator de humor. Roberto Kaz, coautor, Rodrigo Barneschi [A negação do outro, Suas canções foram gravadas por
Allan Sieber [Cartuns a partir da p. 20], é jornalista e autor de O livro dos bichos p. 58] é jornalista, autor de Forasteiros: Ivan Lins, Paulinho da Viola, Zizi Possi
humorista e quadrinista, publicou, entre (Companhia das Letras). A dupla escreve crônicas, vivências e reflexões de um e Ney Matogrosso, entre outros.
outros livros, o infantil As sete vidas do a seção de humor The piauí Herald. torcedor visitante (Editora Grande Área). Ilustração de Reberson Alexandre.
gato Jouralbo (Bebel Books e Mandacaru) Ilustração de Bennet.
e codirigiu, com Tasso Dourado, o Julio Maria [“Obrigado, meu amor”, Thales de Menezes [Adeus, rede de apoio,
documentário Peréio, eu te odeio. Clarice Cudischevitch [A ciência recalcula p. 64], jornalista e crítico musical, p. 78] é jornalista especializado em música,
sua rota, p. 36], jornalista, é gerente de publicou Elis Regina: Nada será como cinema, literatura e tevê. Edita a newsletter
Marcelo Canellas [Triste Bahia, p. 22] Comunicação do Instituto Serrapilheira, onde antes (Master Books) e Ney Matogrosso: semanal de cultura Torpedo e leciona
é jornalista e documentarista. Dirigiu a série coordena o blog Ciência fundamental. a biografia (Companhia das Letras). escrita criativa. Publicou o livro Alguém vai
documental Boate Kiss: a tragédia de Santa Kleber Neves, coautor, é doutor em se machucar hoje à noite (Pauliceia).
Maria e publicou o livro Províncias: crônicas neurociências e trabalha como gestor no Werner Herzog [A mochila de Chatwin, p. 70],
da alma interiorana (Globo Estilo). Programa de Ciência do Instituto Serrapilheira. cineasta alemão, dirigiu, entre outros filmes, Ilustrações de Esquina por Andrés Sandoval.

SESC PINHEIROS

ATÉ 01 DEZ 2024

Exposição que propõe uma revisão


historiográfica da identidade brasileira, por
meio de uma seleção de obras em diálogo com
o livro homônimo de Ana Maria Gonçalves.

CURADORIA
Ana Maria Gonçalves
Marcelo Campos
Amanda Bonan

Idealização e concepção Parceria Institucional Realização


EMERSON ROCHA

4
INÊS249

O Foro de Teresina
eresina está de volta com Fernando de Barros e Silva,
Ana Clara Costa e Celso Rocha de Barros.
Sexta-feira, às 11h,
em todas as plataformas de áudio.

Realização:
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questões vultosas

ALLAN SIEBER_2024
O PAÍS ENTROU
PELO CANO
Em cartaz, uma pantomima em três atos

FERNANDO DE BARROS E SILVA

H
á quase trinta anos, em agos- ter gostado da comparação, já que um Tarcísio de Freitas, de São Paulo, e Ro- refere ao stf ao falar do Judiciário, e a
to de 1994, a atriz Ruth Esco- país poderia perfeitamente viver sem naldo Caiado, de Goiás, acompanha- reposta é sim: “A gente tem que ter uma
bar organizou um jantar só sociólogos, mas não sem encanadores. dos pelo jornalista William Waack, da porta de saída, a gente não pode mais
para mulheres em torno da O episódio perdido no tempo me veio cnn Brasil. Alguém poderia pensar: conviver com a pressão que existe, está na
antropóloga Ruth Cardoso, à memória recentemente, quando Lula bons tempos aqueles em que o partido hora de começar a descomprimir, está
que dali a poucos meses se tornaria a falou que Fernando Haddad, “ao invés de Sartre representava o polo conserva- na hora de começar a ser razoável”. Tar-
primeira-dama do Brasil. As duas Ruths de ler um livro, tem que perder algumas dor da modernização brasileira. Os in- císio parece ter ficado a meio passo de
tinham posições avançadas e eram, horas conversando no Senado e na Câ- telectuais da nova direita são outros. defender a anistia aos vândalos golpistas,
cada uma a seu modo, figuras proemi- mara”. Nas duas ocasiões, o petista faz o Waack deu o tom logo de cara, apre- como faz seu líder. Fim do espetáculo.
nentes da elite intelectual do país. elogio da vida prática em detrimento da sentando os entrevistados como “dois per-

I
Escobar havia transformado o teatro ociosidade da vida intelectual. Em 1994, sonagens políticos que tenho o prazer de mpossível saber hoje se Tarcísio será
que leva seu nome, em São Paulo, num no entanto, a resposta a Jabor era brilhan- ter um contato sempre muito próximo”. mesmo candidato à Presidência. Há
centro de resistência à ditadura. Foi lá, em te porque desarmava a estupidez elitista Nem precisou de ensaio, os três encena- entre seus apoiadores quem defenda
julho de 1968, que o Comando de Caça dos tucanos bem-pensantes, como se dis- vam a mesma peça em três atos. No pri- que ele deve buscar a reeleição pratica-
aos Comunistas depredou as instalações sesse “vocês são sabidos, mas o problema meiro, instados a discorrer sobre os mente certa em 2026 e se guardar pa-
e espancou os atores que participavam da do país é mais embaixo e disso quem problemas do país, ambos os governadores ra 2030. Mas é certo que Tarcísio está
peça Roda viva, de Chico Buarque. Car- sabe sou eu”. A cobrança a Haddad, pelo atacaram a política fiscal do governo Lula agindo como pré-candidato à Presidên-
doso, por sua vez, foi das primeiras inte- contrário, soa como simples grosseria, (que Caiado chamou de “desastre”) e am- cia e que já tem boa fatia do pib ao seu
lectuais a perceber a importância dos como se Lula rendesse, ele próprio, sua bos elegeram a segurança pública como lado. O comportamento dele e da pla-
movimentos sociais nos anos 1970 e teve homenagem à estupidez do atual mo- área prioritária (“o crime organizado é o teia presente ao convescote da Esfera
atuação decisiva para consolidar a área de mento histórico. A legenda da frase seria grande câncer do Brasil”, disse Tarcísio). Brasil mostram que o preferido de Bol-
estudos antropológicos no Cebrap, uma mais ou menos a seguinte: “Nós somos Preparado o terreno, vem então o se- sonaro já foi incorporado ao establish-
das principais trincheiras do pensamento sabidos, mas o problema do país agora é gundo ato: “Quem é o maior líder polí- ment como uma alternativa de... centro
crítico e de oposição ao regime militar no mais embaixo, e disso quem entende de tico hoje no Brasil?”, pergunta Waack. para... “romper a polarização”!
país. Em 1996, já primeira-dama, Ruth verdade é o Centrão de Arthur Lira.” Bolsonaro, Bolsonaro, dizem os governa- Primeiro, a pessoa tem que escolher se
Cardoso defendeu a descriminalização da dores. “Indiscutivelmente ele é a maior li- quer ser apadrinhada por Bolsonaro ou

N
maconha num programa de tevê. o mesmo dia 22 de abril, enquanto derança que tem no país” (Caiado); “É um se comprometer com a democracia. São
Se tivesse ocorrido hoje, o jantar se- em Brasília Lula passava seu pito em fenômeno, é o maior líder político brasi- coisas incompatíveis – e Tarcísio já parece
ria tratado nas redes bolsonaristas como Haddad ao convocá-lo a participar leiro” (Tarcísio). Os elogios se multipli- ter escolhido seu lado. Segundo, a polari-
uma festa escandalosa de feministas mais de perto do problema crônico da cam, sempre relacionados à capacidade de zação é uma falácia. Virou ferramenta re-
conspirando contra os valores da famí- articulação do governo com o Congresso, mobilização popular do ex-presidente. tórica a serviço da demagogia para nomear
lia brasileira. O encontro, no entanto, ambos – Lula e Haddad – apanhavam Estranhamente, ninguém menciona sua o que, em geral, é apenas antipetismo.
entrou para a história daquela campa- juntos em São Paulo, num seminário pro- responsabilidade no golpe de Estado frus- O que existe no Brasil há pelo menos
nha presidencial por outra razão. movido pela Esfera Brasil, um think tank trado de 8 de janeiro. Esqueceram tam- dez anos, quando Aécio Neves questionou
A certa altura, Ruth Escobar disse às que se diz “independente e apartidário”, bém dos crimes cometidos na pandemia, na Justiça Eleitoral a derrota para Dilma
presentes que havia escutado dias antes de um pouco à maneira de Gilberto Kassab. outro detalhe chato. Rousseff, é um processo de erosão da de-
Arnaldo Jabor a seguinte definição sobre Foi nesse seminário, pela manhã, que Feitos o ataque a Lula (o democrata) mocracia. Processo que veio acompanha-
a disputa em curso: o país estaria diante da José Dirceu disse que o governo Lula não e a apologia de Bolsonaro (o golpista), o do pelo crescimento das direitas e pela
escolha “entre Sartre e um encanador”. é de centro-esquerda, mas de centro-di- terceiro e derradeiro ato foi o desdobra- constituição de uma direita extrema e
Nosso Sartre, no caso, seria Fernando reita. A quem se espantou, explicou que mento da farsa: a polarização entre esses autoritária, que elegeu um presidente em
Henrique Cardoso – uma analogia capen- “essa é uma exigência do momento histó- dois personagens é perigosa e pernicio- 2018 e segue muito atuante, social e poli-
ga, já que fhc, àquela altura, estava mais rico e político que vivemos” e aproveitou sa, diz o apresentador, mas como sair ticamente. O centro de gravidade da po-
para Norberto Bobbio ou Raymond Aron. para desfazer o falso clichê de que Lula dela e se abrir para o centro, pergunta lítica mudou. A correlação de forças não é
Mas esse era o menor dos problemas. seria corresponsável pela polarização do em seguida, sem enrubescer. desfavorável a Lula apenas no Congresso.
A caracterização de Lula como “encana- país. O Brasil está radicalizado, disse Dir- Fiquemos com a resposta de Tarcísio, A sociedade se inclina para o conservado-
dor”, além de equivocada (ele era torneiro ceu, por causa do discurso que foi feito na já que Caiado, apesar da pavonice aguda, rismo e a mídia, que só episodicamente
mecânico), expunha um constrangedor orla de Copacabana por Bolsonaro e seus é coadjuvante nessa história. Depois de foi progressista no Brasil, engrossa o coro
preconceito de classe do cineasta egresso apoiadores, uma mistura de fundamenta- se colocar no campo da centro-direita, o repetindo diariamente a farsa da polariza-
do Cinema Novo contra o peão do abc. lismo religioso e ataque à democracia. que é um autoengano, provavelmente ção. Não será surpresa se aparecer qual-
A boutade de Jabor divulgada por A tônica do encontro, no entanto, foi calculado, Tarcísio diz que a responsabi- quer dia por aí um desses Willians Waacks
Ruth Escobar desencadeou uma série outra. Ela pode ser resumida pela mesa lidade para romper a polarização é de dizendo que o país em 2026 estará diante
de polêmicas nos jornais, mas a melhor de encerramento, o grand finale, quan- todos – do Judiciário, do Parlamento, da de uma escolha muito fácil, entre o “enge-
reação veio do próprio Lula, que disse do subiram ao palco os governadores mídia. Waack então pergunta se ele se nheiro de bem” e o “encanador ladrão”. J

6
Ministério da Cultura e TUCCA apresentam
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SÉRIE TUCCA
CONCERTOS INTERNACIONAIS

DUKE
ELLINGTON
ORCHESTRA
A centenária Orquestra de Duke
Ellington, vencedora do Grammy,
apresenta os clássicos do jazz com
os mais refinados músicos

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esquina

ANDRÉS SANDOVAL_2024
SEXTA SEM REI
Fãs comemoram o aniversário de Roberto Carlos diante de sua casa

D
a varanda de sua cobertura em lo foi cancelado. O Roberto pode voltar Uma roda se formou ao redor da fã “Eu consegui coisas que ninguém con-
um prédio de cinco andares na para o Rio ainda hoje.” para ouvir as suas histórias. “O meu ma- seguiu por causa da minha persistência.”
Urca, o cantor Roberto Carlos se rido morreu durante a pandemia, sou A sua vida atingiu o apogeu naquela

A
deleita com a vista do Cristo Redentor, prefeitura paulistana cancelou a viúva igual ao Roberto. Minha conexão mureta, em um dia ordinário do ano
da Ponte Rio-Niterói e do tráfego entre apresentação do cantor porque o com ele é espiritual.” Lucinalva Barbosa passado: “Eu estou sentada, tomando
o Flamengo e o bairro da Glória. Ao se Corpo de Bombeiros avaliou que a interrompeu: “O que é aquilo ali, mi- cerveja, quando olho para o lado e vejo
apoiar no parapeito e olhar para baixo, o local não poderia receber as 3 mil pes- nha gente?” Quando todos se viraram, vindo um carro vermelho.” Era o Audi
o Rei avista os barquinhos ancorados soas que compraram os ingressos. A no- houve uma rápida catarse coletiva. Gri- R8 de Roberto Carlos. “Ele me reconhe-
nas águas tranquilas da Baía de Guana- vidade desconcertou os fãs na Urca, tos. Bocas abertas. Braços para o alto. ceu. Parou o carro, apontou para mim e
bara e o movimento dos pedestres na animados com a possibilidade de Ro- Um outro cabeludo apareceu na Urca, me lançou aquele olhar fixo.” A amiga
calçada junto à mureta da Urca. É ali berto Carlos voltar ao Rio, e Lucinalva vestindo terno azul, calça jeans, sapatos que acompanhava Rosa havia saído para
que, todo ano, no dia do seu aniversário, Barbosa decidiu ficar ali até o fim do brancos e segurando uma rosa de plásti- buscar mais cerveja, então o episódio
os fãs se reúnem para prestar homena- dia. A filha Roberta bufou, cruzou os co. “Deixa de bobeira, gente, é só o Mar- não teve testemunhas. “Eu travei, fiquei
gens com esperança de ganhar um ace- braços e sentou na mureta. Às 15h40, quinhos”, disse Selma Rosa, impaciente. sem reação. O Roberto seguiu com o
no do ídolo. um carro preto chegou à entrada da ga- Para chegar até a Urca, o sósia Marqui- carro e eu continuei paralisada.”
Ao meio-dia de 19 de abril, sexta-feira, ragem do prédio do cantor, e Selma nhos Oi Oi, uma versão mais enrugada de Ela sonha com o reencontro desde en-
vinte pessoas encostadas na mureta da Rosa correu na direção dele. O motoris- Roberto Carlos, pegou um ônibus em São tão. Se acontecesse naquela sexta-feira,
Urca miravam o topo do edifício do can- ta abaixou o vidro e disse algo inaudível Paulo três dias antes. “Eu venho há nove saberia exatamente o que lhe dizer. Mas,
tor, em cuja varanda só se viam vasos com para quem estava do outro lado da rua. anos. É o maior barato, as senhoras ficam às onze da noite, era evidente que Roberto
plantas fustigadas pelo Sol. Um homem “Descobri tudo”, anunciou a atriz, re- loucas quando me veem.” Duas mulheres Carlos não apareceria. Selma Rosa voltou
idoso estendeu uma toalha de renda na tornando ao grupo de fãs. O motorista no idosas cutucaram o seu ombro para pedir para casa, e a Urca dormiu sem o Rei. J
calçada e organizou ali um mosaico com carro era um vizinho do cantor. “Ele disse uma selfie. “Dizem por aí que o Roberto Thallys Braga
vinis, cds, cassetes e fotografias de Rober- que o Roberto volta mesmo de São Paulo tem ciúme de mim”, comentou Oi Oi.
to Carlos. Havia também uma imagem hoje à noite.” A notícia despertou a alegria

N
de Nossa Senhora Aparecida e um cartaz de todos, exceto a de um homem magro o final da tarde, um ônibus muni- PIAUÍ OFFLINE
com os dizeres: “Homenagem de Miguel e careca com aparência cinquentona. cipal fez a curva na Avenida Por- Uma briga do governo deixa
e Leila. São Roque de Minas – mg.” “Não vou poder ficar aqui até tarde. Hoje tugal, e três senhoras vestindo muitos piauienses sem wi-fi
Os admiradores sabiam que o cantor ainda tenho que ver a Larissa Manoela”, camisetas de Roberto Carlos embarca-

N
não estava em casa, pois ele tinha um lamentou. Ele havia comprado ingressos ram nele para ir embora. Marquinhos o Quilombo Mimbó, a cerca de
show agendado para aquele dia no Está- para o musical A noviça rebelde, com a Oi Oi cantava: Eu quero ter um milhão 200 km de Teresina, no Piauí, a dona
dio do Pacaembu, em São Paulo. “Eu atriz, em um teatro no Centro da cidade. de amigos... A vida dele é imitar Roberto de casa Elisângela Ribeiro usava a
quis vir mesmo assim só para sentir a Já Selma Rosa não tinha nenhuma Carlos. Se pagarem “muito bem”, pode rede pública de internet para falar com os
energia dele”, disse a trabalhadora domés- prioridade além de homenagear Roberto interpretar o Fábio Jr: “Os dois são pare- dois filhos que se mudaram para São Pau-
tica Lucinalva Barbosa, com o punho Carlos naquele dia. “Eu venho aqui há cidos, eu só tenho que mudar de roupa.” lo. Agora, a única forma de contato é por
fechado sobre o seio esquerdo. Ela veio 25 anos. Me chamam de musa da Urca”, A calçada foi se esvaziando, até que celular, porque dezenas de cidades do es-
de Bonsucesso, Zona Norte do Rio, com ela contou. “Já fui em shows do Roberto restaram apenas Selma Rosa, o sósia e tado estão sendo pouco a pouco desconec-
a filha de 24 anos, Roberta, que desde os no Canecão, no Maracanãzinho, fui um violonista. “Eu fico no Rio até do- tadas da internet gratuita. “O que resta é
6 a acompanha nas visitas anuais à casa chamada para os especiais dele na Glo- mingo, então vou voltar aqui amanhã. orar por meus filhos e sentir saudade”, diz
do Rei. O plano das duas era ficar ali por bo.” Há uma teoria entre os fãs de que a O Roberto não me escapa”, disse o vio- Ribeiro. As crianças do quilombo também
uma hora, conversar com outros fãs e vol- equipe do cantor instalou uma escuta na lonista. Rosa ficou nervosa: “A equipe não conseguem mais acessar os vídeos a
tar para casa, mas houve um imprevisto. mureta da Urca para monitorar as con- dele sabe do que nós falamos aqui. Se que assistiam reunidas no centro da co-
“Gente, pelo amor de Deus, me es- versas deles, e Rosa acredita nisso: “No ouvirem você dizendo isso, é capaz dele munidade. “Nem o Pix a gente tem como
cuta”, pediu a atriz Selma Rosa, em voz aniversário dele de 81 anos, eu quis tirar não aparecer amanhã.” usar”, diz o estudante Leonardo Barreto.
alta. Um homem que tocava Cama e a prova real. Falei: ‘Roberto, eu te amo, O vento frio que começou a soprar na Uma rede de fibra óptica conectava
mesa no violão congelou as mãos. To- você está no meu destino. Não adianta Urca à tarde ficou mais forte ao cair da gratuitamente todos os 224 municípios do
dos se calaram e viraram para Rosa. fugir de mim.’ Na mesma hora, ele apa- noite, mas Rosa não quis arredar o pé Piauí, mas o governo estadual se desenten-
“Estão dizendo que o show de São Pau- receu lá na varanda e jogou um beijo.” dali. Todos os outros fãs haviam partido. deu com a empresa que fornecia o serviço.

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Com isso, 86 cidades têm apresentado A empresa rejeitou, pois não era esse o os diretores de entrar. A Polícia Civil do UMA PENA CLIMÁTICA RECORDE
problemas com a internet nos últimos me- valor firmado originalmente – e o go- estado abriu um inquérito para investi- Pela primeira vez, multa é
ses. A disputa do governo com a Global- verno parou de pagar. gar os donos da Globaltask. calculada de maneira científica
task, empresa com sede em Cuiabá (mt) e Como todos os contratos de ppps são Um diretor da Anatel ouvido pela piauí

E
escritório em São Paulo, se arrasta desde o atrelados a garantias bancárias (que fun- – na condição de anonimato, para não se m 27 de novembro de 2017, o pecua-
início de 2023, quando o governador Ra- cionam como uma espécie de seguro), tão indispor com o governo – diz que é a pri- rista Dirceu Kruger procurou ajuda
fael Fonteles (pt) tomou posse. logo os repasses cessaram a Globaltask meira vez que uma intervenção do Execu- na Superintendência da Polícia Fe-
A piauí visitou 26 pontos de conecti- acionou as garantias que dispunha, firma- tivo ocorre no setor de telecomunicações deral em Rio Branco, no Acre. Ele queria
vidade do programa – em Teresina, São das com o Banco do Brasil. Em abril de desde as privatizações dos anos 1990, denunciar a invasão de sua propriedade
Raimundo Nonato, Luís Correia, Par- 2023, foi feito o pagamento da primeira quando a agência interveio numa estatal por alguns fazendeiros vizinhos, no limi-
naíba, São João do Piauí e Simplício parte, mas não houve liberação de mais gaúcha. Segundo ele, a Anatel tem a atri- te com a unidade de conservação da Flo-
Mendes – e constatou que 14 não fun- recursos. O banco foi processado e, em buição de investigar o caso só se houver resta Nacional (Flona) do Iquiri, no Sul
cionavam e 8 apresentavam problemas. dezembro, um juiz ordenou o pagamento, uma denúncia sobre a prestação de servi- do Amazonas. A pf pediu então que Kru-
Em São Raimundo Nonato, a estu- pelo menos, de maio e junho. A institui- ços, o que não tinha ocorrido até então. ger comprovasse a propriedade das terras.
dante Emilly Macedo contou que o ção, porém, conseguiu derrubar a decisão A Globaltask foi ao Tribunal Regional Ele não tinha prova nenhuma – e
serviço, que já era ruim, parou por com- na Justiça do Piauí. Procurado pela repor- Federal (trf-1) para tentar reverter o caso achou que uma multa do Ibama, no
pleto. Em Teresina, a coordenadora da tagem, o banco enviou a seguinte nota: e obteve uma decisão favorável. Insatisfei- valor de 700 mil reais, recebida em 2006,
ong Mães Gaivotas que Voam Longe, “O assunto encontra-se na esfera judicial. to, o governo do Piauí recorreu ao Supe- servia como um certificado de proprie-
Luciene Priscila Cruz dos Santos, diz Na qualidade de agente de pagamento, o rior Tribunal de Justiça (stj). O ministro dade. Enganou-se. E, involuntariamen-
que a qualidade da rede era boa. Ela cos- Banco do Brasil vem cumprindo rigorosa- Og Fernandes manteve a intervenção, te, tornou-se um réu confesso. “Fui lá,
tumava, inclusive, fazer lives para essa mente as determinações do Poder Judiciá- mas, em fevereiro de 2024, a presidente abri estrada e me apossei dela. Não
instituição que dá apoio educacional a rio, de forma isenta e em conformidade da Corte, Maria Thereza Rocha de Assis comprei de ninguém”, disse Kruger, em
crianças da zona rural. Agora, a conexão com suas responsabilidades contratuais.” Moura, cassou a decisão do colega e de- depoimento filmado pela pf.
funciona de forma errática e chegou a terminou a reintegração dos funcionários. As terras que Kruger reivindicava eram

A
ficar mais de uma semana inacessível, briga foi parar em uma câmara de A decisão de Assis foi ignorada pelo fruto de grilagens. Durante anos, de acor-
prejudicando as atividades das crianças. arbitragem, e a decisão dos árbitros governo piauiense. Quatro dias depois, do com investigação do Ibama, o pecua-
foi favorável à Globaltask em mar- num outro decreto, o governo anunciou rista desmatou 5,6 mil hectares. Foram

C
om o nome Piauí Conectado, o pro- ço de 2024. O governo recorreu à Justiça a caducidade do contrato – ou seja, seu 2,4 mil hectares em Boca do Acre (en-
grama de internet gratuita era uma estadual e conseguiu derrubar a deci- fim –, sem ter concluído o processo ad- tre 2003 e 2008) e 3,2 mil em Lábrea (entre
Parceria Público-Privada (ppp) entre são. Uma de suas alegações para romper ministrativo para investigar a conduta da 2013 e 2016), ambos municípios do Ama-
o estado e a Globaltask. O acordo foi fe- o contrato é que a empresa terceirizou empresa, como manda a lei. A Justiça zonas e limítrofes com a Flona do Iquiri.
chado em 2018, na gestão de Wellington parte da infraestrutura. A Globaltask estadual trabalhou com eficiência atípi- Kruger deve cerca de 45 milhões de reais
Dias (pt), hoje ministro do Desenvolvi- respondeu que a terceirização provisória ca: uma das decisões favoráveis ao gover- para o Ibama e acumula, somente no Tri-
mento Social, e previa uma infraestrutura estava prevista em contrato até que a no foi dada às 4h57 do dia 28 de março, bunal Regional Federal da 1ª Região, pelo
de 11 mil km de fibra óptica. Como em rede fosse totalmente construída. O go- quinta-feira santa, feriado no Judiciário. menos 21 processos públicos (11 deles já ar-
toda ppp, o governo entraria com o dinhei- verno também disse que as entregas não A piauí ouviu os administradores da quivados). As primeiras decisões judiciais
ro, e a empresa, com a obra e o serviço. estavam sendo feitas no tempo definido. Globaltask e tentou entrevistar o governa- contra o grileiro são de 2004, mas ele não
A companhia começou a construir a A empresa informou que o prazo previs- dor Fonteles, que pediu, por meio de sua pagou até hoje nenhum centavo de multa.
rede em 2019. Os primeiros pontos de to para a construção da rede ainda não assessoria, que a reportagem falasse com Um dos processos mais recentes cha-
conectividade ficaram prontos no mes- se esgotara – iria até dezembro de 2024. o procurador-geral do estado, Francisco ma a atenção pelo seu ineditismo.
mo ano. Isso permitiu que as pessoas Em dezembro do ano passado, Fon- Gomes Pierot Júnior. O procurador disse É uma ação civil pública movida em
dispusessem de wi-fi em locais públi- teles decretou uma intervenção na que o governo não errou ao decretar a conjunto pela Advocacia-Geral da União
cos, num estado com um dos mais bai- Piauí Conectado, afastando diretoria, intervenção e ainda acusa a empresa de (agu) e pelo Ibama. Os dois órgãos fede-
xos percentuais de utilização de internet conselho de administração e administra- usar a rede de fibra para comercializar a rais acionaram um aspecto novo do di-
por domicílio no país – 86,4%, segundo dores. Seguranças foram para a porta da internet com terceiros, sem compartilhar reito brasileiro: a litigância climática,
a Pesquisa Nacional por Amostra de sede da ppp em Teresina para impedir a receita com o governo. Mas as notas fis- introduzida na lei em 2021. Esse proces-
Domicílios (Pnad) de 2022. cais dos repasses foram apresentadas pela so contra Kruger não é o primeiro do
Os relatos colhidos pela piauí são de Piauí Conectado à Justiça. país, já houve outros casos recentes de
que a rede funcionava razoavelmente Pierot Júnior diz que, embora não litigância climática. Mas é a primeira vez
bem, embora fosse lenta em algumas lo- tenham sido feitas perícias a respeito, que se calcula de maneira científica a
calidades. Como secretário da Fazenda do nas estimativas do governo houve super- multa que o réu, se condenado, deverá
governo de Wellington Dias, o hoje gover- faturamento de cerca de 100 milhões de pagar: 292 milhões de reais, a maior pe-
nador Fonteles acompanhava o trabalho reais. Os diretores da Globaltask reba- nalização climática da história brasileira.
da empresa. Nunca levantou questões so- tem, afirmando que suas contas estão

O
bre a ppp. Tratado com deferência no esta- corretas e que a contabilidade de con- cálculo do dano climático causado
do, Edson Silva, dono da Globaltask, até cessionárias e a do setor público são fei- pelas atividades ilegais de Kruger foi
recebeu o título de cidadão teresinense. tas de forma diferente. Disseram ainda feito a partir de duas estimativas: a
Quando se elegeu governador, Fonte- que tentaram explicar os cálculos para o quantidade de carbono emitida pelo des-
les mudou de ideia. Pouco antes de assu- governo, sem sucesso, e que apresenta- matamento e a quantidade de carbono
mir, no final de 2022, teve uma reunião ram a ele a prestação de contas do Piauí que, em razão do desmatamento, deixou
com Silva, e a relação com a Globaltask Conectado, atestada mensalmente por de ser absorvido. A conta se baseou em
azedou. O governo passou a duvidar que um comitê independente. um estudo que estima que cada hectare
a infraestrutura de fibra óptica seria repas- A briga em curso tem dois efeitos prá-desmatado no estado do Amazonas emi-
sada ao estado ao fim da concessão, em ticos: a deterioração dos serviços para a te em média 161 toneladas de carbono.
2048, como previsto no contrato. Tam- população e a insegurança jurídica num O estudo chama-se Redd no Brasil: um
bém acusou a empresa de não cumprir momento em que o governo federal se enfoque amazônico e foi feito pelo Centro
a meta de construção de infraestrutura. prepara para lançar mais uma edição do de Gestão e Estudos Estratégicos (vincu-
A Globaltask diz ter enviado três ve- Programa de Aceleração do Crescimento lado ao Ministério da Ciência, Tecnologia
zes ao governo informações sobre a (pac), com investimentos de 1,4 trilhão dee Inovação) em parceria com o Instituto de
construção da infraestrutura, e apresen- reais até 2026. Desse valor, mais de 600 bi-
Pesquisa Ambiental da Amazônia. Redd é
tou à Justiça os protocolos de recebimen- lhões se destinam a concessões e ppps. Só a sigla de Redução de Emissões por Des-
to do governo. Mesmo assim, Fonteles no estado do Piauí, serão 239 obras. J matamento e Degradação Florestal.
propôs reduzir em 65% o valor do con- Ana Clara Costa, Além disso, o cálculo da multa levou
trato, de quase 400 milhões de reais. com a colaboração de Diego Iglesias em conta uma determinação da Organi-

piauí_maio 9
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zação para a Cooperação e Desenvolvi- serviços de desmatamento para terceiros. riamento remoto ou obtidas por satélite,
mento Econômico (ocde) que fixa o “Pode ficar tranquilo que nós faz um ser- como orienta a Resolução nº 433.
custo social de cada tonelada de carbono viço bom lá e sem muito barulho”, disse Cirne celebra o fato de que, agora, os
em 60 euros (cerca de 330 reais). Com o grileiro a um cliente em ligação telefô- processos com os quais lida na agu são
base nesses parâmetros, o Ibama e a agu nica de 2014 interceptada pelo mpf. sobretudo contra os grandes infratores.
estimaram que Kruger deve responder Antes, consumia-se muito tempo e re-

D
pela emissão de 901,6 mil toneladas de o modo como os processos costu- cursos em ações contra o governo por
carbono, relativas aos 5,6 mil hectares mavam ser conduzidos, os crimes sua omissão quanto aos crimes ambien-
desmatados. Foi assim que se chegou à ambientais até agora “careciam de tais. “Agora estamos focando nos casos
multa recorde de 292 milhões de reais. efetividade”, nas palavras de Mariana mais graves”, diz ela.
A agu também pediu à Justiça a conces- Barbosa Cirne, procuradora-chefe da A ação do Ibama e da agu contra o gri-
são de liminar para que os bens de Kru- Procuradoria Nacional de Defesa do Cli- leiro Kruger tramita na Seção Judiciária
ger sejam bloqueados, a fim de garantir ma e do Meio Ambiente (Pronaclima), do Amazonas, 7ª Vara Federal Ambiental
o pagamento, caso a multa seja deferida. criada em 2023 dentro da agu. Ela escla- e Agrária, e não se sabe quando será julga-
A emissão de 901,6 mil toneladas de rece o que a falta de efetividade quer di- da. Caso a Justiça acolha o pedido da agu,
carbono equivale à quantidade emitida zer em termos práticos: “Ninguém é Kruger poderá recorrer da decisão. J
pela indústria no estado do Amazonas preso no Brasil por causa desse tipo de Lara Machado
durante cinco anos e três meses (conside- infração.” A reclusão máxima prevista
rados valores médios de 2022) ou por to- para crime ambiental é de cinco anos.
dos os carros de São Paulo durante oito Para mudar essa situação, foi preciso MEMÓRIAS DO REICH
dias. A piauí procurou Kruger para co- atualizar os parâmetros com que os casos Palacete no interior do Paraná
mentar o assunto, mas ele não respondeu. são julgados. A jurisprudência estabelece ocultava um quadro nazista
O advogado que atuava no caso disse que há muitos anos que a reparação por da-

O
não trabalha mais para o pecuarista. nos ambientais deve cobrir todos os estra- Casarão Villa Anna é a joia arquite-
Dirceu Kruger tem 54 anos, vive em gos causados à flora, fauna e qualquer tônica de Campo do Tenente, cida-
Rio Branco e dedicou anos a provocar outra categoria prevista na lei. Mas o de a cerca de 100 km de Curitiba.
danos climáticos. Primeiro, ocupou as impacto climático decorrente do dano, Construído entre 1923 e 1928, é conside-
terras. Depois, contratou pessoal para bem como sua reparação, só entrou no rado um dos mais belos palacetes preser-
desmatar as áreas. Em seguida, vendeu radar dos magistrados a partir de 2018, vados do Paraná. Tem três andares (além Landesverband Deutsch-Brasilianischer
a madeira ilegalmente. Por fim, limpou uma vez que era considerado até então de um misterioso subsolo), com 980 m² de Lehrer (Liga Nacional de Professores
os terrenos com queimadas, preparando um dano “indireto” para a sociedade. área construída sobre um terreno de Teuto-Brasileiros). A data do envio da obra
novos campos para servir de pastagens. Faltava também um referencial brasileiro 27 mil m². Até quatro anos atrás, os visi- para “Curityba” foi 30 de abril de 1936.
Apenas em 2017 sua vida de grileiro (consideradas as características da fauna tantes só podiam admirar seu exterior em

A
começou a se complicar. Ele passou a ser e da flora, bem como outros fatores es- estilo neoclássico alemão. O lugar estava Volksbund für das Deutschtum im
um dos alvos da Operação Ojuara, da pecíficos do país) para avaliar quanto desocupado desde 2015, mas os proprietá- Ausland foi criada no entreguerras
Força-Tarefa Amazônia, do Ministério carbono é emitido por área desmatada e rios não permitiam visitações. para auxiliar os alemães que esta-
Público Federal (mpf), que investiga pe- determinar o custo social do carbono. Em 2019, quando o casarão foi posto à vam se radicando em outros países.
cuaristas, servidores do próprio Ibama e Em 2021, o Conselho Nacional de venda, havia duas formas de arrematá-lo: “Com a perda de poder e de território
policiais militares envolvidos com explo- Justiça baixou a Resolução nº 433, que com todo o mobiliário, ou apenas o imó- após a Primeira Guerra, muitas pessoas
ração predatória de recursos naturais. estabeleceu o que foi definido como “a vel. Por 2,7 milhões de reais, o município deixaram a Alemanha”, diz Luís Ed-
O mpf diz que o método adotado por política nacional do Poder Judiciário comprou o lugar sem a decoração, para mundo Moraes, professor de história
Kruger serviu até de modelo: ele prestava para o meio ambiente”, criando a figura convertê-lo em sede da Secretaria Muni- contemporânea da Universidade Fede-
do litígio climático e considerando como cipal de Educação e Esportes. Foi então ral Rural do Rio de Janeiro e doutor pelo
prova de infrações ambientais as imagens que encontraram certos pertences muito Centro de Pesquisa sobre Antissemitis-
captadas por satélite e outros modos de singulares deixados pelos ex-proprietários. mo da Universidade Técnica de Berlim.
sensoriamento remoto. Desde então, fo- No segundo andar do casarão, uma “A associação que doou o quadro ficou
ram dadas duas sentenças em casos de sala conservava uma substantiva memora- com a missão de ajudar na manutenção
litigância climática, mas para nenhuma bilia nazista, com vários livros em alemão da cultura e língua alemãs no exterior,
delas se dispôs de um critério preciso que exibindo a suástica na lombada. O item fazendo doação de livros para escolas e
determinasse o valor da multa – o que se mais vistoso estava em cômodo com entidades culturais. Com o surgimento
obteve agora, no caso de Kruger. objetos da família: um quadro de mais do nazismo, ela foi nazificada e passou
“A gente tem que torcer para que es- de 1 metro de largura, de autor desco- a difundir valores do partido.”
sas mudanças fiquem como parte da nhecido, intitulado O dia de Potsdam. São Paulo e Rio de Janeiro, entre ou-
instituição”, diz o advogado Nauê Ber- Assim ficou conhecida a data de 21 de tras capitais brasileiras, contavam com
nardo, conselheiro da Ordem dos Advo- março de 1933, quando Adolf Hitler, escritórios da associação. Seus represen-
gados do Brasil (oab) no Distrito Federal. chanceler da Alemanha, encontrou-se na tantes não eram necessariamente nazis-
Ele teme que a litigância climática possa cidade de Potsdam, nos arredores de Ber- tas. “Mas o Partido Nazista foi forte aqui
acabar engavetada na primeira troca de lim, com o presidente do país, Paul von no Brasil nos anos 1930. Contou com
comando da agu. Mas para a procurado- Hindenburg, herói da Primeira Guerra 3 mil inscritos”, diz Moraes.
ra-chefe Mariana Cirne é possível deixar Mundial. O encontro foi planejado pelo Sublinhando as estranhezas do Casa-
um conjunto de decisões que se conver- recém-nomeado ministro da Propaganda, rão Villa Anna, o subsolo tem três túneis.
tam em referências para a agu em qual- Joseph Goebbels, como uma consagra- Dois deles, malconservados, já não permi-
quer governo. Ela espera também criar ção do nascente regime nazista, ungido tem circulação. O terceiro, com 200 me-
pareceres vinculantes – aqueles que, por um representante do velho establish- tros de comprimento, conduz até os
uma vez aprovados, passam a ser segui- ment. A elite militar, política e econômi- fundos da casa, onde passa um riacho.
dos por toda a administração pública. ca da Alemanha estava presente. Com o teto côncavo, tem mais de 1 metro
A juíza Rafaela Rosa diz que os magis- Hitler e Hindenburg estão no centro de largura, permitindo o trânsito de duas
trados às vezes não sabem avaliar se as do quadro. Uma etiqueta atrás da tela do- pessoas lado a lado. No seu interior foram
provas apresentadas são suficientes para cumenta sua origem: Der Schule Campo encontradas correntes e peças de madeira.
abrir um julgamento. Ela propõe um do Tenente / vom Volksbund für das Deuts-

E
novo protocolo para indicar aos juízes chtum im Ausland über den LDL (À escola mancipado em 1961 – até então, era
como agir em casos de crimes ambien- de Campo do Tenente, / da Associação distrito do município vizinho de Rio
tais, fazendo valer nos julgamentos Popular para Germanidade no Exterior, Negro –, Campo do Tenente vive da
inclusive as provas produzidas por senso- por intermédio da ldl). ldl é a sigla da agricultura. Metade de seus 8 mil habi-

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tantes mora na zona rural, onde se cultiva soas famosas, como Mano Brown, que pre foi comunista, um guerreiro”, diz o de Cuiã, e uma cobra. Mas não sobrevi-
soja, maçã, feijão e batata. A população é foi lá pela primeira vez em 1997. filho. “Ele foi a minha faculdade.” veu ao parto. Antes de morrer, presen-
composta sobretudo de descendentes de “Ele veio numa Bonanza que tinha, teou o marido com um anel e disse:

N
imigrantes alemães e poloneses. uma picape preta”, lembra o barbeiro. o interior da barbearia, uma área “Guarde-o bem guardado. Se alguma
O homem que ergueu o casarão da “Juntou um monte de gente na rua, que- com pé-direito alto foi configurada mulher encontrar, case-se com ela.”
Villa Anna era natural de Hamburgo. rendo tirar foto porque era também o ano como uma pequena praça, batizada O pai jogou a cobra em um rio e cui-
Chamava-se Enrich Stahlke (1865-1942) de lançamento do Sobrevivendo no infer- de Sérgio Vaz, em homenagem ao escritor dou de Cuiã, mas as duas irmãs continua-
– ou, como seria conhecido no país de no, o disco importante dos Racionais que fundou o Sarau da Cooperativa Cul- ram a se ver. Um dia, Cuiã achou o anel
adoção, Henrique. “Ele se casou com mc’s.” No primeiro contato, o rapper, des- tural da Periferia (Cooperifa). Ali fica um e mostrou ao pai, que propôs casamento
Anna Grein em 1906, aqui no Brasil”, confiado, fez só o pezinho. Uma semana conjunto de estantes baixas repletas de li- à filha, como mandara sua mulher. A jo-
conta o historiador e escritor Fábio Koif- depois, voltou para o corte completo. vros que os moradores do bairro podem vem foi consultar a irmã-cobra para saber
man, um dos maiores especialistas em Mendes conta que Brown é vaidoso: pegar emprestados. O estabelecimento – se deveria se casar com o próprio pai.
imigração no Brasil. O nome do casarão quando está em São Paulo, vai à barbearia que Mendes toca com um sócio, Luiz A cobra lhe deu três vestidos: um que
vem da esposa de Stahlke. dia sim, dia não, mesmo agora, que está Fernando Gualberto – inclui ainda salas refletia as águas, outro as matas e o tercei-
A imprensa local da época qualificava com tranças. “É um cara que gosta de es- para pedicure e massagem, uma hambur- ro o universo inteiro. “Usando o vestido
Stahlke como um “industrial”. Ele mon- tar sempre alinhado, na régua”, elogia. gueria e uma loja de roupas, em áreas das águas, vá para outra aldeia”, aconse-
tou uma olaria e serrarias movidas a for- O barbeiro também já cuidou das alugadas para profissionais autônomos. lhou. “Todos por lá ficarão loucos com a
ça hidráulica. A olaria chegou a produzir madeixas de outros dois músicos, Jorge Mendes calcula que realiza até du- sua beleza. Mas, depois, ande desgrenha-
120 mil telhas por mês. Ele também fazia Ben Jor e Seu Jorge, do ator Caio Blat e zentos cortes por semana, ao custo de da pela aldeia. O homem que, mesmo
caixas para a exportação de laranjas. No de Guilherme Boulos, candidato à Pre- 50 reais (masculino) e 60 reais (femini- assim, quiser casar com você é aquele que
esforço de atrair trabalhadores para Cam- feitura de São Paulo pelo Psol. no), cada. Para seu trabalho, desenvol- a ama. No dia em que aceitar o pedido,
po do Tenente, construiu casas para seus Blat foi levado pelo maquiador Mar- veu uma habilidade de entrevistador: use o vestido das matas, e no dia do seu
funcionários, com iluminação elétrica. cos Freire para fazer a caracterização de entende o corte desejado pelo cliente per- casamento, o vestido do universo.” Tudo
Por sua posição eminente, Stahlke ganhou Marco Aurélio (Macu), seu personagem guntando sobre preferências musicais, aconteceu como a cobra previu – e do
o posto de major da Guarda Nacional. no filme Bróder (2010). “Era um corte história de vida e profissão. casamento de Cuiã com o homem que a
“A prefeitura reuniu os pertences dei- todo raspado na máquina 1, com um ta- O serviço rápido é um diferencial da amava nasceu o povo Potiguara.
xados pela família Stahlke e criou um me- lho de navalha fazendo um traço, como Josyas Barbershop: o corte de cabelo é Quem gosta de contar essa lenda é
morial”, informa Cleusa Komarchewski, se estivesse dividindo o cabelo de lado”, feito em 15 minutos. “Todo mundo que Teresinha Pereira da Silva, de 69 anos,
da Secretaria de Desenvolvimento, Cul- descreve Blat. O ator diz que, com esse trabalha aqui foi treinado para isso”, diz mais conhecida como Teka Potyguara.
tura e Turismo do município da cidade. “corte de quebrada”, foi discriminado em ele. Mas o estilo importa tanto quanto a “Cada um narra a história do jeito que
O quadro e os livros nazistas foram leva- um restaurante do bairro da Bela Vista, rapidez. “Eu trouxe para as quebradas os quiser. O interessante é que quem co-
dos para este acervo aberto ao público. na região central de São Paulo. Quando cortes afro com inspiração americana que manda aqui, entre os potiguaras, é sem-
“Isso faz parte da história da família, que contou o episódio para Silvio Guindane só faziam nas barbearias do Centro de pre uma mulher”, ela diz.
era alemã. Não quer dizer que a prefei- e Jonathan Haagensen, seus colegas ne- São Paulo.” Ele dá exemplos desses cor- A aldeia Mundo Novo, no Ceará,
tura apoie o nazismo.” gros no filme, eles responderam, sem tes: “Um pezinho bem desenhado, ou o onde ela vive, é quase um matriarcado.
O casarão vem sendo cedido pela pre- espanto: “Bem-vindo ao clube.” fade [degradê] do Will Smith, no filme Bad A atual cacica, Antônia Feitosa de Sou-
feitura para uso privado. Há dois meses, Blat curtiu o clima da Josyas Barber- Boys.” O estilo do próprio barbeiro é ou- za, a Toinha Tabajara, de 82 anos, não é
a equipe do filme de terror Relicário, do shop: “Eu lembro que a gente ficava ali tro: tem as laterais do cabelo raspadas e a primeira a ocupar o posto máximo.
diretor paranaense Guto Pasko, fez gra- conversando, cortando cabelo e ouvin- dreads grisalhos, presos no alto da cabeça.
vações ali. “A prefeitura já emprestou do um rap. Era tipo um ritual.” Carac- Ele sabe o dia exato em que fez seu
também para cursos e eventos. Nós não terística do local, a música preenche primeiro corte: 7 de maio de 1993. Tinha
cobramos aluguel, mas exigimos uma uma lacuna aberta na vida familiar de 15 anos, e sua irmã se casaria no dia se-
contrapartida”, explica Guilherme Vini- Mendes. “Minha mãe é evangélica. Lá guinte. A mãe costumava cortar o cabelo
cius Machado da Silva, diretor da Secre- em casa não tinha como rolar o disco dos seis filhos, mas naquele dia estava
taria de Cultura. A produção do filme, dos Racionais. Então, rolava na barbea- muito atarefada, ocupada com o casa-
por exemplo, oferecerá aulas gratuitas de ria”, diz ele, que também é evangélico, mento. Mendes foi então designado para
dramaturgia para a população. mas de uma denominação liberal: fre- cortar o cabelo do irmão mais novo, Jaíl-
Quem vendeu o casarão à prefeitura quenta a Igreja Betesda, conhecida por son, com 8 anos. Pegou uma tesoura de
foi Marga Stahlke Grein, descendente acolher o público lgbtqia+. corte e costura emprestada pela vizinha,
de Henrique e Anna. Ela hoje mora em um pentinho fino – daqueles que se usa

O
uma propriedade rural. Seu filho, Gui- salão da Josyas Barbershop tem para tirar piolhos – e foi ao trabalho.
lherme, é presidente da cooperativa uma decoração retrô, com quinze O corte saiu bonito, embora ele não
agrícola mais importante da região. confortáveis cadeiras de couro tivesse até então feito qualquer curso ou
Dias após a piauí procurar a prefeitura marrom. Um mural do artista Michel treinamento. Como muita gente gostou,
de Campo do Tenente para falar do Onguer mostrando uma paisagem de logo Mendes estava cortando o cabelo
quadro nazista, a reportagem foi infor- casas simples decora uma das paredes. dos vizinhos no quintal de sua casa. No
mada que a tela seria agora doada ao Ladeando os espelhos, há um paredão ano seguinte, abriu o primeiro salão –
Museu do Holocausto, de Curitiba. J preto com fotos de personalidades ad- na verdade, uma salinha de 2 m2. Nem
João Batista Jr. miradas pelo proprietário, quase todos podia imaginar então que, um dia, seria
negros: Martin Luther King, Malcolm X, o barbeiro de Brown, Blat e Boulos. J
Angela Davis, Jorge Ben Jor e, claro, Tatiane de Assis
NA CABEÇA DE MANO BROWN Mano Brown. Entre os poucos brancos,
Uma barbearia de famosos estão Lula, Dilma Rousseff e o compo-
na periferia paulista sitor Flávio Venturini. MULHER COBRA
Como revelam as fotos, Mendes é um No Ceará, uma líder indígena

N
a fachada pintada de preto, desta- homem de esquerda. Sua posição políti- defende o ensino do tupi
ca-se um logotipo na cor branca, ca, tal como a fé, vem da família – neste

U
formado por dois bigodes dese- caso, não da mãe, Carmelita, mas do ma mulher queria muito ser mãe,
nhados à maneira de arabescos. No pai, Júlio Francisco Mendes. Hoje com mas seus bebês nasciam mortos.
meio deles, está o nome do estabeleci- 81 anos, Júlio mudou-se aos 18 anos de Em desespero, ela entrou na mata,
mento: Josyas Barbershop. A barbearia Jaicós, no Piauí, para Santos. Depois, foi chorando, para pedir uma filha, nem que
de Josyas Silva Mendes, de 46 anos, fica para São Paulo, onde trabalhou como fosse uma cobra. Pouco tempo depois,
no Jardim Vergueiro, na periferia de metalúrgico por doze anos e participou voltou a engravidar. Teve duas filhas sau-
São Paulo, mas costuma receber pes- da organização de greves. “Meu pai sem- dáveis: uma menina, a quem deu o nome

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“Nunca teve cacique homem aqui”, or- to ano, como reconhecido oficialmente, imensos, com som potente e iluminação
gulha-se Teka. “Na região toda só man- em 2021, como língua cooficial de Mon- exuberante de placas de led.
dam as mulheres. Nós somos horríveis.” senhor Tabosa. Até ganhou uma cartilha,

A
A região a que ela se refere é a das Aldeias a Kurumí nheengatú Ywytera Ka’a Ita, s festas de aparelhagem têm dimen-
Indígenas Rurais de Monsenhor Tabosa, traduzida para o português como O meni- são amazônica, como nas apresen-
que reúne os povos Potiguara, Tabajara, no e a língua boa na Serra das Matas. tações do Crocodilo, um dos grupos
Gavião e Tubiba-Tapuia, na área rural do mais famosos do tecnobrega, mas que já

A
município de Monsenhor Tabosa. Todos aldeia Mundo Novo fica na Serra foi um réptil mais modesto. Era chama-
são governados por mulheres. das Matas, região de difícil acesso do de Lagartixa quando foi criado pelos
no sertão cearense, com uma única djs Patrese e Bidu, em 2013. O diretor de

A
aliança entre esses povos foi firma- via de terra, íngreme e repleta de pedre- marketing do grupo, Felipe Bonanza,
da em 2002 para lutar pela demar- gulhos e curvas sinuosas. Durante a pan- de 26 anos, lembra que esse apelido sur-
cação das terras e a preservação demia, os obstáculos para chegar ao local giu por causa de um item cênico mal
das pinturas rupestres da área – e levou foram usados em favor da saúde dos habi- definido: “Era só uma estrutura com um
à construção, na aldeia Mundo Novo, tantes. Teka determinou que os homens olho vermelho, que o povo chamava de
de um museu dedicado à história deles. da aldeia construíssem uma porteira ao Lagartixa, porque esteticamente não pa-

ANDRÉS SANDOVAL_2024
Nos últimos anos, os indígenas vêm pé do morro e a mantivessem fechada. recia um crocodilo de fato.” Quando o
enfrentando saqueadores de quartzo “Quando ligávamos a tevê, víamos grupo começou a virar sensação, os pro-
rosa, minério abundante na região. Cri- médicos falando, pessoas sem ar, morte. dutores insistiram no nome Crocodilo, e
minosos tentam apagar as pinturas rupes- Falei para fecharmos a fronteira”, lem- o velho apelido foi logo esquecido.
tres preservadas na Serra das Matas para bra Teka. “Meu Deus, temos imunida- O público numeroso que frequenta as
evitar que o Instituto do Patrimônio His- de baixa e muitos idosos. Nossa cacica festas de Belém espera uma experiência
tórico e Artístico Nacional (Iphan) decla- está com 82 anos. Falei: ‘Fecha a portei- imersiva de som e luz. Por isso, as apare-
re o local uma unidade de conservação ra. Ninguém entra, ninguém sai.’” lhagens mantêm-se atualizadas, sobretu-

O
de proteção integral à natureza, como E assim foi. Nem mesmo o prefeito de do na iluminação com led. “Se hoje, Crocodilo encontrou seu bordão
aconteceu com a aldeia vizinha de Qui- Monsenhor Tabosa, Francisco Salomão em São Paulo, há uma placa de alta de- no sucesso Faz a boquinha do ani-
xaba. “Sem esse espaço geográfico é im- de Araújo Sousa, que foi ao local distribuir finição melhor do que a que nós usamos, mal, de 2016. A letra faz referência
possível a gente viver. Morar na cidade é cestas básicas, pôde passar da porteira. Os a gente vai ter que ir de acordo com o à aparelhagem, e é claro que o grupo
o mesmo que morrer. Temos que lutar de homens da aldeia dividiam-se em duplas, que o mercado manda”, diz Bonanza. aproveitou isso, introduzindo frases da
todas as formas, quebrar paradigmas e ou trios, para fazer vigílias em turnos de Não sai barato. “Uma placa custa em canção nas suas festas. O público aca-
entrar com a nossa sabedoria. Somos de- doze horas. “Os homens foram bons na média de 5 a 7 mil reais. Só que uma bou criando uma coreografia para a
sobedientes, mas a gente estuda as leis”, pandemia”, diz Teka. Apesar dessa con- aparelhagem precisa de no mínimo cem música, que virou febre em Belém.
diz Teka, que esteve ao lado de Ailton cessão, ela defende que sua aldeia se man- placas”, ele explica. Ou seja, só com ilu- Composta por mc Dourado com a
Krenak na defesa da demarcação dos ter- tenha um matriarcado: “Os homens não minação, os donos de uma aparelhagem participação de dj Méury, Faz a boqui-
ritórios indígenas junto à Assembleia são ruins. Mas é a gente que sempre pensa desembolsam, por baixo, meio milhão de nha do animal conquistou o país. A dupla
Constituinte, em 1988. “Estudando, nos em tudo. A gente é mulher e é cobra.” J reais. O investimento compensa: entre depois lançou um videoclipe no canal de
afirmando e sabendo como funciona a Juliana Faddul patrocínio, ingressos e venda de bebidas, YouTube do empresário KondZilla, um
sociedade não indígena, fica mais difícil uma noite de festa do Crocodilo, por dos mais influentes produtores do funk e
de você ser manipulado.” exemplo, pode render até 70 mil reais. de outros gêneros da periferia brasileira.
Aos 14 anos, quando foi estudar em O RÉPTIL TECNOBREGA Além do Crocodilo, outros grupos de A coreografia que surgiu nas festas de
Monsenhor Tabosa, Teka ouviu de uma Uma mistura musical paraense aparelhagem promovem em Belém es- Belém aparece no vídeo.
professora que seu português era “de embala o Brasil ses superespectáculos tecnológicos e Os principais passos seguem os co-
porta de feira”, jeito pejorativo de atacar afrofuturistas: Tupinambá, Rubi, Super mandos da letra do refrão. Quando diz

N
o modo como ela falava. Teka chama- ascido nas periferias de Belém no Pop, Badalasom, Mega Príncipe Negro “Faz a boquinha do animal”, é preciso
va o milho de “mi” e a cor vermelha de início dos anos 2000, o tecnobrega e Carabao. No comando, estão sempre abrir e fechar primeiro a mão direita, de-
“encarnada”. Nesse tempo de estudante, está em alta. Também conhecido os djs, que atuam sobretudo em duplas pois a esquerda e por fim as duas juntas,
ela acatou os modos de falar da cidade e como tecnomelody, o gênero é um cozi- e recorrem a uma comunicação direta como se formassem uma boca. Com
até tentou mudar a linguagem dos fami- do eclético de estilos brasileiros e cari- com o público, parecida com a dos locu- “Dá-lhe a dentada”, tem de simular uma
liares. Só mais tarde Teka aprendeu a benhos – carimbó e forró, calipso e tores de festas populares. “Tenho um mordida, com os braços unidos na fren-
valorizar a língua que falava em casa: merengue, entre outros –, temperado amigo empresário que adora a aparelha- te. No último verso – “E a novinha passa
não o português, mas o tupi. pela música eletrônica e regado pelo gem”, conta Bonanza. “Sabe por que ele mal” –, os braços são jogados para frente
Formada em pedagogia e antropolo- derramamento emocional do brega. gosta? Porque o dj manda um abraço, e para trás, enquanto a cabeça por sua
gia, ela foi uma das idealizadoras – e é a A mistura não diluiu a identidade: essa um alô, tudo no meio da festa. Coisa vez dá uma volta de 180 graus.
diretora – da Escola Indígena Povo Cace- é uma música afro-amazônida. que em outros shows tu não ganha.” A partir daí, a aparelhagem do Cro-
teiro, que está em atividade desde 2019 No Carnaval deste ano, as cantoras Apesar do sucesso, as aparelhagens codilo só decolou, e foi acrescentando
na aldeia Mundo Novo. Na inauguração, Manu Bahtidão e Simone Mendes em- ainda estão cercadas de estigmas e precon- modificações expressivas ao próprio
Teka fez questão que o então governador placaram o sucesso Daqui pra sempre, ceitos, por causa de sua origem periférica. nome, divididas em “eras”. Depois da
do Ceará, Camilo Santana (pt), atual no melhor estilo paraense. Em abril, “Muita gente fala que as aparelhagens era Crocodilo, vieram as eras Incrível
ministro da Educação, plantasse uma Pabllo Vittar lançou o álbum Batidão só dão ladrão, mas não é verdade”, diz Crocodilo, Gigante Crocodilo e Sur-
árvore. Mas a relação com o governo tropical vol. II, com regravações do gêne- Bonanza. “A festa de aparelhagem é real Crocodilo. Desde 2023, a aparelha-
nem sempre foi fértil. “O colégio tem a ro e a participação de músicos do Pará. algo muito importante.” gem vive na era Tudão Crocodilo.
cara do Estado, não a nossa. Aqui todo Foram os paraenses Gaby Amaran- Os djs também são os responsáveis Em 2021, o Crocodilo apareceu no
mundo estuda muito antes da chegada tos, Viviane Batidão, Rebeca Lindsay e pelos bordões que, gritados nas festas, vídeo de No chão novinha, com Anitta e
da escola. Educa na casa, na família, na Bruno e Trio que ajudaram a populari- ganham as ruas e rompem as barreiras Pedro Sampaio. No ano seguinte, dois de
economia e na espiritualidade, que são zar o tecnobrega, agora encampado por territoriais. Nasceu em Belém o famige- seus djs, Gordo e Dinho Pressão, apre-
os nossos quatros pilares”, diz Teka. grupos como Gang do Eletro, Quero rado “Endoida Caralho”, hoje ouvido em sentaram suas remixagens no Rock in
Um de seus principais impasses com Mais, Eletro Batidão, Xeiro Verde e eventos de outros gêneros musicais fora Rio. O sucesso é nacional, mas a base da
a Secretaria da Educação do Ceará foi a Banda Ravelly. do Pará. Os paraenses, orgulhosos, di- aparelhagem será sempre as casas notur-
implantação da língua indígena na gra- A criatividade de músicos, djs e em- zem que o bordão não tem o mesmo nas de Belém e do interior do Pará. Foi,
de curricular: “Aqui nós falamos tupi. presários de Belém criou a estrutura e o “brilho” em baladas realizadas em outros aliás, no Point Show, balada no bairro do
Para que priorizar inglês ou espanhol?” mercado que impulsionaram a expansão estados. Nas aparelhagens do Tupinam- Curió-Utinga, que Bonanza conversou
Depois de disputas judiciais com o mu- nacional dessa música das periferias. No bá, o bordão é “Faz o T”. Nas do Super com a piauí. E é claro que rolou Faz a
nicípio, o tupi foi não só incorporado à centro da história, estão as festas de apa- Pop, “Faz o S”. Nas do Badalasom, o Bú- boquinha do animal naquela noite. J
grade curricular da escola, a partir do sex- relhagem, em que djs ocupam palcos falo do Marajó, “Faz o chifrinho”. Leandra Souza

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anais da ultraviolência I

O HOMEM E SEU PASSADO


A desconhecida história de Guilherme Derrite, o secretário de Segurança Pública de São Paulo

JOÃO BATISTA JR.

N
a noite do dia 9 de novembro de É o primeiro policial militar tão jovem e homicídios se repete, com pequenas varia- tante. No inquérito, Derrite disse que o
2011, assim que o tiroteio aca- com patente tão baixa a assumir o cargo. ções. Em todos os casos, as vítimas atiram homem começou a atirar na sua direção,
bou, um jovem de 15 anos cor- Também é o primeiro a ter criticado contra os policiais, mas nunca acertam. e ele revidou. Colocado numa viatura, o
reu até a casa assaltada. Houve colegas de farda que mataram menos de Em todos os casos, são atingidas em ór- homem foi levado a um pronto-socorro
disparos para todos os lados e o três pessoas em cinco anos de serviço. gãos vitais, como coração ou pulmão. Em em Osasco, onde foi identificado: Lean-
adolescente estava apreensivo. Temia que “É vergonhoso”, disse. Mas Derrite, ele todos os casos, são homens e já tinham, à dro da Silva, 24 anos. Um disparo lesionou
seu irmão fosse um dos assaltantes. Ao che- mesmo, nunca falou quantos matou. exceção de uma vítima cujo histórico po- coração e pulmão. Outro perfurou o estô-
gar ao local, ouviu a seguinte notícia sobre Em 2021, numa entrevista, comentou licial não foi confirmado, ficha por roubo mago e o fígado, e alojou-se na lombar.
o destino de seu irmão. “Se ele for traba- que participou de cinco intervenções ou uso de drogas, ou então passaram pela Segundo a ocorrência, o assaltante tinha
lhador, pode ir para a sua casa que ele está nas quais foi o responsável por disparar Fundação Casa, que abriga jovens que passagem pela polícia por furto.
lá. Se não for, pode ir pro iml”, disse um os tiros que mataram suspeitos. Em cometeram alguma infração. E em rarís- Em um podcast, gravado em maio de
pm. O adolescente correu para o iml. Fi- 2023, em outra entrevista, já no cargo de simos casos há testemunhas civis dos fatos. 2021, Derrite narra a ocorrência “sinistra”
cou duas semanas sem dormir, abalado secretário de Segurança, se disse arre- Considerando que na vida real con- com as devidas onomatopeias: “Eu só
pela visão do cadáver do irmão, que estava pendido por ter criticado os colegas me- frontos entre policiais e bandidos nunca lembro dessa cena, dos tiros, pá, pá, pá.
coberto de sangue e de olhos abertos. “Pa- nos letais. A piauí consultou sua certidão se passam da mesma forma, a repetição Era terra subindo, mano, a metralhadora
recia que ele estava assustado”, diz. Mar- criminal, apresentada ao Tribunal Su- do padrão é um mau indicador. As ce- sempre na rajada e eu tive que revidar, né,
celo Barbosa Soares, de 17 anos, levara perior Eleitoral quando concorreu a nas sugerem que nem sempre houve mano, sobreviver. Prá, rá, rá, rá, rá.” Na
dois tiros durante o assalto. Morreu de deputado, pegou o número de cada um confronto, dada a improbabilidade de ocorrência, não há menção a qualquer
“hemorragia interna traumática aguda”. dos seis inquéritos em que foi investiga- que os criminosos tenham um índice metralhadora, mas a duas pistolas Taurus
O caso ocorreu no Jardim Arpoador, do e pediu o desarquivamento de todos. de 100% de erro nos disparos. Também calibre .40 e dois revólveres calibre .38.
bairro paulistano quase na divisa com Com isso, descobriu que – oficialmente sugerem que quase nunca houve tiros O Ministério Público entendeu que
Osasco. Os três assaltantes foram mortos. – Derrite tomou parte de intervenções de advertência, pois os disparos dos po- Derrite e seus colegas agiram em legí-
Na soma, levaram nove tiros. O policial que somaram dez homicídios. liciais acertaram regiões vitais. Eis a fi- tima defesa “sem vislumbre de excesso
que mandou o rapaz de 15 anos ao iml era Os homicídios ocorreram num perío- cha do secretário de Segurança: de conduta”.
um tenente da Polícia Militar do Estado do de três anos e nove meses de patrulha-
de São Paulo. Chamava-se Guilherme mento ostensivo, entre fevereiro de 2008 e 10 DE FEVEREIRO DE 2008, DOMINGO_ 10 DE AGOSTO DE 2009, SEGUNDA-
Muraro Derrite. Tinha 27 anos, estava no novembro de 2011, época em que Derrite Derrite, então tenente do 14º Batalhão, foi FEIRA_A bordo de um automóvel rouba-
segundo ano de trabalho na Rota, a tropa integrou o 14º Batalhão e, depois, a Rota. chamado pelo rádio para atender a uma do havia dois dias, Danilo Messias Re-
de elite da pm paulista, e gostava de dizer Não significa, frise-se, que Derrite tenha ocorrência no km 15 do Rodoanel, o anel bollo, de 20 anos, junto com um amigo,
que sua missão era “tirar vagabundo de matado as dez pessoas, pois os inquéritos rodoviário que circunda a Grande São avistou a polícia em Osasco. Arrancou o
circulação”. Ficou quase doze anos na pm, nem sempre apontam o autor do disparo Paulo. Um homem fora flagrado tentando carro, foi perseguido, bateu num barranco
entrou para a reserva como capitão, ele- fatal, mas que participou de ações poli- assaltar um veículo no acostamento da ro- – e desceu do veículo atirando contra os
geu-se e reelegeu-se deputado federal e foi ciais que resultaram nesse saldo de mor- dovia. Houve um tiroteio e o ladrão embre- policiais. Levou três tiros e morreu ali
vice-líder do governo de Jair Bolsonaro na tos. É uma média alta: um morto a cada nhou-se no matagal à beira da estrada. mesmo. Do banco de trás, saiu o amigo
Câmara. Hoje, é secretário da Segurança quatro meses e meio. Nos documentos, Derrite chegou ao local e, junto com um – também atirando – e refugiou-se num
Pública do governador Tarcísio de Freitas. chama a atenção como a dinâmica dos soldado, meteu-se na trilha atrás do assal- matagal, segundo descrição posterior

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GABRIEL SILVA_ATOPRESS_ESTADÃO CONTEÚDO_27/09/23

Guilherme Derrite: nas palavras de um juiz da Justiça Militar, ao comentar as mudanças promovidas na PM, o secretário e o governador estão “virando a pirâmide de cabeça para baixo”

piauí_maio 15
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segundo o delegado do caso, “seria pessoa Guilherme Derrite não foi denun-
procurada pela Justiça”. ciado por nenhum dos homicídios.
ALLAN SIEBER_2024

Nunca ficou esclarecido por que os

N
assaltantes usaram um carro que estava uma noite de maio de 2012, um
no nome da mulher de um deles, sem pequeno comboio de viaturas da
recorrer a uma placa clonada. Nem por pm de São Paulo se dirigiu para o
que, depois do assalto, ficaram rodando estacionamento da Barracuda, uma casa
com o mesmo carro no bairro onde ha- noturna na Zona Leste de São Paulo. Ali,
viam praticado o crime. funcionava um lava-rápido, onde inte-
O Ministério Público entendeu que “as grantes do Primeiro Comando da Capital
condutas praticadas pelos policiais milita- (pcc), a organização criminosa que se
res encontram-se acobertadas pela legíti- espalhou pelo país, fariam uma reunião.
ma defesa, causa de excludente de ilicitude O encontro destinava-se a planejar o res-
[...], obstando o ingresso de ação penal”. gate de um criminoso que seria transferi-
do de São Paulo para uma prisão em
20 DE MAIO DE 2011, SEXTA-FEIRA_Du- Presidente Venceslau, a 215 km da capi-
rante um patrulhamento de rotina na tal. A Rota, sabendo do plano, montou
Zona Leste da capital paulista, Derrite e uma estratégia para prender os bandidos
colegas avistaram um carro roubado ha- durante a reunião. Derrite pediu para co-
via poucas horas. O motorista Michel mandar a operação. Foi uma catástrofe.
Deivid da Cruz não obedeceu à ordem Depois de um intenso tiroteio, o saldo
de parar, bateu em outro veículo e des- foi macabro: seis homens mortos e três
ceu atirando, sem acertar em nenhum policiais presos, sob a suspeita de torturar
alvo. Enquanto isso, seus dois comparsas e matar um homem que, escondido sob
escaparam a pé. Cruz levou três tiros, um caminhão, viu e ouviu tudo o que
com ferimentos no coração, no pulmão aconteceu. Segundo a versão oficial, a
dos policiais. Nesse momento, de acor- a denúncia, eram comercializadas drogas direito, nas alças intestinais e na lombar. testemunha, Anderson Minhano, de
do com a versão oficial, Derrite entrou tipo maconha e cocaína e os traficantes Sua ficha incluía seis atos infracionais e 31 anos, foi colocada numa viatura para
no mato, e o jovem começou a disparar. do local portavam armas, inclusive de acusações de corrupção de menores, ser levada ao hospital. No caminho, a
Não acertou nenhum tiro, mas foi alve- grosso calibre. A equipe deparou com ameaça e lesão corporal. Tinha 24 anos. viatura parou para que o cabo Levi Cos-
jado com quatro. Era José Carlos Perei- dois indivíduos saindo do interior de uma No Inquérito Policial Militar (ipm), o me da Silva Júnior aliviasse “as câimbras
ra Barbosa, também de 20 anos. Os dois viela, ambos de arma em punho e que oficial concluiu pela “existência de exclu- e as pernas dormentes” – e, ali, no km 4
tinham passagem pela Fundação Casa. um deles passou a efetuar disparos de dentes de ilicitude na ação dos policiais da Rodovia Ayrton Senna, com a viatura
O Ministério Público, com base na arma de fogo contra os policiais.” militares, uma vez que repeliram injusta no acostamento, a testemunha “caiu no
versão dos pms, concluiu que havia “cla- Um segundo soldado, também sob agressão efetuada pelos meliantes.” De- chão”. Ninguém sabe se Minhano, que
ríssimos sinais de que os policiais agi- comando de Derrite, depôs em separado pois desse episódio, Derrite foi obrigado a pertencia ao pcc, chegou vivo ou morto
ram amparados na excludente do estrito e descreveu a cena com as mesmíssimas frequentar aulas sobre direitos humanos e ao hospital. Tinha quatro tiros no peito.
cumprimento do dever legal”. palavras: “Estava de serviço [...] pelo inte- consultar-se com um terapeuta do Progra- A Testemunha Alpha – assim conhe-
(As mães dos dois jovens mortos con- rior da favela do Sambaiatuba onde, se- ma de Acompanhamento a Policiais Mili- cida porque entrou no programa de pro-
taram outra história. Dulcineia Rebollo, gundo a denúncia, eram comercializadas tares Envolvidos em Ocorrências de Alto teção e manteve o anonimato – conta
mãe de Danilo, descobriu que havia drogas tipo maconha e cocaína e os tra- Risco, entre 24 de maio e 19 de junho. outra história. De sua janela, Alpha viu o
uma testemunha do tiroteio e comparti- ficantes do local portavam armas, inclu- Minhano ser torturado. Ligou para o 190
lhou a informação com Vera Aparecida sive de grosso calibre. A equipe deparou 9 DE NOVEMBRO DE 2011, QUARTA- e fez uma denúncia. O telefonema foi
Pereira, mãe de José Carlos. A testemu- com dois indivíduos saindo do interior de FEIRA_É o caso que abre esta reporta- gravado. No início da conversa, Alpha
nha disse que os dois foram executados, uma viela, ambos de arma em punho e gem. Acionado por telefone, Derrite e disse que “o cara tava vivo, viu?” e, em
mas nunca foi ouvida no inquérito. que um deles passou a efetuar disparos equipe foram até a casa no Jardim Ar- seguida, relatou que os policiais pisavam
Chamava-se Rafael Rodrigues da Silva. de arma de fogo contra os policiais.” poador que estava sendo assaltada por sobre sua cabeça e, depois, colocaram o
Três anos depois, em 2012, ele foi assas- A prática do “copia e cola” aparece três jovens. O dono do imóvel, rendido no corpo na viatura. No telefonema, Alpha
sinado a tiros dentro do carro que dirigia em pelo menos cinco depoimentos, in- portão, e outras quatro pessoas viraram já intuía que o homem fora assassinado.
em Carapicuíba, na Grande São Paulo. clusive no do próprio Derrite, e a frase reféns. Quando a polícia chegou, os la- “Só Deus na vida desse homem, viu, pra
Os disparos foram feitos contra o vidro original foi extraída do relatório inicial drões soltaram todos e tentaram fugir. sobreviver pra contar a história”, disse.
do motorista e mataram também o ocu- da ocorrência. O oficial encarregado do O dono da casa indicou a rota de fuga, Além do cabo Cosme, havia outros
pante do banco do passageiro.) caso achou que os policiais se comporta- pelo telhado de uma edícula nos fundos. dois policiais na viatura: o sargento Carlos
ram corretamente e reforçou sua conclu- Nove policiais chegaram ao local, seis en- Aurélio Nogueira e o soldado Marcos
14 DE MAIO DE 2010, SEXTA-FEIRA_De- são com uma observação: “Não há, até o traram na casa, Derrite entre eles. Disse- Aparecido da Silva. Os três foram presos
pois de receber uma denúncia de tráfico momento, comoção popular que depre- ram que Nevito Ferreira dos Santos, de para responder à acusação de tortura e
de drogas na favela do Sambaiatuba, em cie a atuação dos policiais militares.” 17 anos, disparou contra eles. No revide, o assassinato. Um mês depois, foram soltos
São Vicente, na Baixada Santista, Derri- assaltante levou três tiros. Em seguida, e, mais tarde, acabaram absolvidos. Du-
te, que já trocara o 14º Batalhão pela 27 DE JULHO DE 2010, TERÇA-FEIRA_ segundo os policiais, Marcelo Barbosa rante a prisão dos três, Derrite não parti-
Rota, foi até o endereço suspeito. Segun- Numa ronda noturna da Rota, Derrite e Soares, também de 17 anos, não obedeceu cipou da vaquinha que os militares fazem
do o relatório da pm, ele e sua equipe três soldados disseram ter se deparado à ordem de soltar a pistola e atirou. Levou quando algum colega é detido – e, assim,
foram recebidos a bala por dois homens. com um Kadett preto usado em um assal- dois tiros. Josivan Soares dos Santos, de impedido de fazer os bicos que comple-
Os atiradores não acertaram ninguém, to a uma loja de informática naquele mes- 20 anos, disparou quatro vezes contra os mentam a renda familiar. O sargento No-
mas um deles foi alvejado duas vezes. mo dia. Havia dois homens no carro. Eles policiais. Não acertou nenhuma vez e le- gueira, por exemplo, prestava segurança
Um dos tiros atingiu o lado esquerdo do tentaram fugir, bateram na parede de um vou quatro tiros. Os três, de acordo com os para o publicitário e apresentador Rober-
tórax, causando ferimentos fatais no co- restaurante e desceram do veículo atiran- laudos necroscópicos, morreram de “he- to Justus. “Além de não pagar a vaquinha,
ração e no pulmão. O segundo atirador do. Não acertaram nem a viatura. O mo- morragia interna traumática aguda”. To- Derrite viajou com a família para a Dis-
fugiu. O morto era Leandro Sampaio torista, Claudionor da Silva, de 24 anos, dos tinham histórico de furto ou roubo. ney”, diz Igor Andrij, ex-soldado da Rota.
Fernandes, de 31 anos. Não há informa- levou três tiros. O outro, Expedito Henri- O promotor Rogério Leão Zagallo pe- Em seu depoimento durante a inves-
ção sobre sua ficha policial. que Pinheiro, da mesma idade, levou dois. diu o arquivamento do inquérito sob o tigação do episódio, Derrite contou que
Um dos soldados sob comando de Todos atingiram órgãos vitais, incluindo o argumento de que “as vítimas morreram a operação envolveu 24 militares. Disse
Derrite descreveu assim o que aconte- coração. Os dois foram reconhecidos no porque atiraram contra os policiais mili- que ele próprio fez apenas “três dispa-
ceu: “Estava de serviço [...] pelo interior iml pelo dono da loja. O motorista passou tares”. E arrematou: “Morreram de for- ros”, mas não informou se atingiu ou
da favela do Sambaiatuba onde, segundo pela Fundação Casa. Expedito Pinheiro, ma justa. Afinal de contas, são bandidos.” matou alguém. Na mesma noite da car-

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nificina, Derrite ficou recolhido dentro começou a trabalhar como entregador vezes, eu ligava para o motorista dele.” detalhes do grupo de extermínio, acu-
de uma sala na Corregedoria da pm de uma pizzaria em Osasco, onde pms (Como as operadoras de telefone não são sando Derrite e se oferecendo para fazer
para que ele não se comunicasse com do 14º Batalhão prestavam segurança obrigadas a guardar os dados depois de um acordo de delação. Mandou cartas
os militares acusados de torturar e ma- privada. Nesse serviço, aproximou-se de cinco anos, o registro das ligações pode para o Conselho Nacional do Ministé-
tar Minhano, nem acompanhasse os alguns policiais e, em 2005, acabou ad- estar perdido. A piauí confirmou que o rio Público, para a Procuradoria-Geral
depoimentos. Só foi autorizado a sair da mitido na pm como soldado temporário, número citado pertencia a Faria.) da República, para o Supremo Tribunal
sala ao meio-dia do dia seguinte. uma função que deixou de existir. De- Em outubro do ano passado, a piauí Federal. A primeira carta-denúncia, en-
O inquérito investigou Derrite, mas veria se limitar às tarefas administrati- mandou uma carta perguntando se Fa- viada em setembro de 2018, quando
não consta da certidão criminal que ele vas, sem acesso a armas, nem direito de ria mantinha as acusações dos depoi- Derrite era candidato a deputado pela
entregou ao Tribunal Superior Eleitoral exercer o poder de polícia. mentos à Defensoria Pública. No dia primeira vez, chegou às mãos do delega-
quando do registro de sua candidatura Faria, no entanto, ganhou autoriza- 1º de novembro, ele enviou uma longa do Francisco Pereira Lima. O delegado,
a deputado. Por esse motivo, o Caso ção velada para extrapolar suas funções. carta à revista em que manteve as de- que está lotado há mais de vinte anos na
Barracuda não está na contabilidade “Embora eu não fosse policial, eu usava núncias. Em cartas subsequentes, deu Delegacia de Homicídios de Osasco e
dos dez homicídios – se estivesse, só farda, portava arma da corporação e an- detalhes sobre a suposta atuação de foi o autor da prisão de Faria quase dez
aqui, a conta total dos homicídios em dava em viatura oficial”, disse. (Em car- Derrite. “Ele e outros policiais, nos dias anos antes, mandou a carta-denúncia
intervenções das quais Derrite partici- ta à piauí, Faria anexou um punhado de de serviço, levantavam o endereço de para o Ministério Público, que, por sua
pou subiria para dezesseis. No entanto, fotos. Numa delas, está usando o unifor- ladrões, traficantes, pontos de tráfico etc., vez, ouviu Faria por vídeo.
o Caso Barracuda entrou para a crônica me de educação física dos soldados e e selecionavam as vítimas, passavam para Foi seu primeiro depoimento. A pro-
policial como exemplo de um completo cabos da pm, ao lado de uma viatura. Em eu e outros pms que estavam de folga fa- motora de Osasco, Helena Bonilha de
fracasso, do ponto de vista militar e dos outra, aparece na companhia de seis po- zer as execuções. Depois, ele mesmo ia Toledo Leite, acompanhou. Ela rememo-
direitos humanos, e ajudou a encerrar a liciais. Todos, Faria inclusive, usam a até o local das execuções colher alguma ra: “Eu pedi provas, mas ele não apresen-
carreira de Derrite. Ele foi afastado do farda da corporação, com capacete na informação e, como sempre, alterar o tou nada de significativo nesse sentido.”
patrulhamento e, menos de dois meses cabeça, cinturão atravessando o peito e local do crime para dificultar a perícia. De fato, o depoimento de Faria foi tímido.
depois, foi convidado a deixar a Rota. mosquetão nas mãos.) Em 2006, ano em Ele que era o líder, ordenava onde as via- Numa das cartas à piauí, ele explicou a
Seus superiores entenderam que sua que se encerrou seu período como solda- turas tinham que ficar e, quando ia acon- razão. Para fazer a videoconferência, ele
letalidade era alta demais. do temporário, Faria passou a trabalhar tecer alguma execução, ele tirava as fora conduzido até o fórum de Taubaté,
Em entrevista a um canal do YouTu- exclusivamente para os policiais que fa- viaturas dos bairros para facilitar o servi- escoltado por policiais militares, que fica-
be em 2021, o próprio Derrite falou so- ziam segurança privada. Nessa época, o ço. Tudo era combinado antes.” E com- ram na porta, de onde talvez pudessem
bre a razão de sua saída da Rota. “Porque grupo de extermínio Eu Sou a Morte pletou: “Os homicídios aconteciam só na escutar o depoimento. “Não consegui fa-
eu matei muito ladrão. A real é essa, entrou em ação, na esteira de uma onda noite em que o tenente Derrite era o co- lar nada. Tinha policiais na sala ouvindo.”
simples. Pá! Tive muita ocorrência de de atentados promovidos pelo pcc. mandante. [...] Ele dava as ordens e orga- Mesmo assim, considerando a gravida-
troca de tiro, eu ia para cima, entendeu? De acordo com a denúncia de Faria, nizava as execuções.” de das acusações, a promotora Helena Lei-
Quem vai para cima, está sujeito. Tro- o grupo de extermínio era integrado por Até prestar os depoimentos à Defen- te acionou o Gaeco, o grupo do Ministério
quei tiro várias vezes, e uma atrás da policiais de dois batalhões da pm em soria Pública, Faria mandou cartas para Público especializado no combate ao cri-
outra. Acabou incomodando, não sei Osasco – o 42º e o 14º. No final de 2006, todas as autoridades possíveis revelando me organizado, para avaliar a possibilidade
quem, mas veio a ordem de cima para pouco depois do início das atividades do
baixo, questão política: ‘Tira o Derrite grupo de matadores, Derrite entrou para
da Rota.’ E fui convidado a me retirar.” o 14º Batalhão, onde ficou até o fim de
Mas nem os dez homicídios oficiais, 2009. Quando chegou, tinha 21 anos e
nem a catástrofe do Caso Barracuda assumiu o Pelotão de Rádio Patrulha, Ministério da Cultura, Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura,
Economia e Indústria Criativas, e Pinacoteca de São Paulo apresentam
surpreendem um criminoso que cum- um coletivo que faz policiamento pre-
pre uma pena centenária na Penitenciá- ventivo e atende demandas pelo 190.
ria de Tremembé. À Defensoria Pública, Faria disse que
matou “umas vinte pessoas”. O grupo

E
ntre junho e agosto de 2019, Wallace executava suspeitos de pequenos furtos
EDIFÍCIO
Oliveira Faria, condenado a 102 anos para proteger os estabelecimentos comer-
por cinco mortes e seis tentativas de ciais aos quais dava segurança, mas tam- Pina Luz
Praça da Luz, 02
homicídio, prestou dois depoimentos à bém executava pessoas com antecedentes
Defensoria Pública do Estado de São criminais e, sobretudo, dependentes de
Paulo, no presídio de Tremembé. Fez de- drogas. Faria descreveu o funcionamento
núncias gravíssimas. Confessou que fora das execuções. Disse que o grupo esco-
matador de um grupo de extermínio que lhia a vítima e voltava à companhia para
se chamava Eu Sou a Morte e disse que colocar jaqueta preta, capuz ou touca e
atuava com conhecimento e aval de um capacete. Depois, saíam com a moto par-
tenente chamado Guilherme Derrite. ticular de Faria, sem placa, ou com o car-
Faria foi preso aos 23 anos e – consi- ro de alguns deles, para localizar a vítima
derando que na época de sua conde- previamente escolhida. Feita a execução,
nação ninguém ficava mais de trinta o grupo voltava à companhia, Faria era
anos na prisão (hoje são quarenta) – ga- liberado e os policiais, agora fardados e ATÉ
nhará a liberdade, em tese, quando tiver em viaturas, saíam para atender a ocor- 4 AGO 24
53 anos, a menos que faça uma delação rência como se não soubessem de nada.
para reduzir a pena. É um criminoso Faria confessou que, na maioria dos
confesso, executava seus alvos com tiros casos, ele próprio foi o autor dos dispa-
pelas costas, no rosto. Suas denúncias ros, mas disse que não agia sozinho. Ci-
podem ter sido exageradas apenas para tou o nome de 25 policiais militares,
fazer um acordo de delação e, quem entre soldados, cabos, sargentos e o te-
sabe, arrancar algum benefício. Ele mes- nente Guilherme Derrite. “Tudo o que
mo escreveu à piauí: “Eu preciso de aju- a gente ia fazer avisava o Derrite. Ele ti-
da [...] para tentar baixar a minha pena. nha comando total”, disse. Em outro
[...] Já estou há quinze anos preso e não trecho do depoimento, afirmou: “O te- PATROCINADORES PLATINUM

vou aguentar ficar mais quinze.” nente Derrite sabia desse meu ‘trabalho
Em seus depoimentos à Defensoria informal’ e dava apoio. Eu falava com PATROCINADORES OURO

Pública, aos quais a piauí teve acesso, frequência com ele pelo [meu] número
Faria contou que, entre 2001 e 2002 8258-xxxx no período de 2008 e 2009. Às
PATROCINADORES PRATA APOIO DE MÍDIA

REALIZAÇÃO

piauí_maio 17
Imagem: Levi Fanan
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E
m julho de 2022, os pais do soldado gações de moradores sem entender o que
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Patrick Bastos Reis se mudaram de estava acontecendo”, lembra Fernanda


Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Balera, coordenadora do Núcleo de
para a capital paulista. Queriam ficar mais Cidadania e Direitos Humanos da De-
perto do filho único, que estava feliz atuan- fensoria Pública de São Paulo. Na se-
do na Rota, e do neto de 2 anos. O casal gunda-feira, representantes da Ouvidoria
não se adaptou bem a São Paulo e, meses da Polícia e da própria Defensoria desce-
depois, se mudou para o interior do esta- ram para o litoral a fim de tomar pé da
do. “Eu estava assistindo televisão e recebi situação. Balera conta que, ao chegar no
uma ligação de uma pessoa próxima da Guarujá, já soube que a revanche seria
família me informando”, lembra Cláudia sangrenta. “Ouvi que seriam ao todo
Reis, mãe do soldado. A informação era de trinta pessoas mortas, uma para cada
que seu filho havia sido assassinado. ano de vida do soldado Reis”, diz ela.
Patrick Bastos Reis, o soldado Reis, ti- A maioria das vítimas que foram iden-
nha 30 anos. Foi baleado entre o ombro tificadas tinha histórico de envolvimento
e o braço, no Guarujá, litoral de São Pau- com tráfico de drogas e passagens pela
lo, onde a Rota fazia um patrulhamento, polícia por pequenos furtos e roubos. Al-
na noite de 27 de julho do ano passado. gumas viviam em barracos de palafitas
A bala atravessou o tórax e atingiu seus nas favelas do litoral. Quase todas eram
pulmões e a aorta ascendente. Morreu na desempregadas ou se sustentavam fazen-
unidade de saúde em que foi socorrido. do bicos. A maioria, como sempre acon-
Sua morte desencadeou a mais mortífera tece nas matanças policiais, eram jovens
operação da pm paulista desde o massa- e negros. Com base no perfil da maior
cre de 111 presos no presídio do Carandi- parte das vítimas, Samira Bueno conclui:
ru. Desde julho do ano passado até o “É um devaneio o governo justificar as
fechamento desta edição, no fim de abril, ações dizendo que as vítimas são inte-
outros três policiais – dois soldados e um grantes do alto-comando de facção crimi-
cabo – haviam sido assassinados, e a pm nosa. Elas viviam em situação de miséria.”
de abrir uma investigação preliminar. de Derrite no grupo de matadores. Desde havia realizado operações que resulta- Até hoje, a Secretaria de Segurança
O Gaeco achou que não havia elementos 2007, circulam notícias sobre esse grupo. ram numa conta assombrosa e, talvez, Pública mantém a versão de que a ope-
suficientemente fortes que justificassem No dia 21 de setembro daquele ano, por até subnotificada: 84 mortos. ração não era vingança contra a morte
uma apuração e entendeu que, decorrido exemplo, a Folha de S.Paulo publicou Um dos soldados mortos, Samuel dos policiais, mas fazia parte de um
tanto tempo dos acontecimentos, era “ex- uma reportagem dizendo que a lista das Wesley Cosmo, de 35 anos, foi baleado plano prévio destinado a asfixiar a ven-
tremamente improvável” que encontras- pessoas assassinadas tinha “mais de 40 durante uma patrulha em Bom Retiro, da de drogas na região portuária, con-
sem provas. Diante disso, o Gaeco não nomes”, que as “circunstâncias apontam em Santos. Morreu no hospital. O assas- trolada pelo pcc. Depois de 84 mortos,
entrou no caso. Inconformado, Faria co- a ação de um grupo de extermínio for- sino fugiu. O mesmo soldado Cosmo a pm prendeu 2 mil pessoas, apreendeu
meçou então a disparar cartas-denúncia mado por policiais militares em Osasco” vinha sendo investigado havia seis me- 240 armas e quase 3,6 toneladas de dro-
até que foi ouvido pela Defensoria Pública. e que boa parte das vítimas tinham “an- ses sob a suspeita de ter forjado um tiro- gas. Os especialistas dizem que o volu-
Em dezembro de 2019, depois de co- tecedentes criminais, segundo testemu- teio para justificar o assassinato de um me de droga apreendido até agora é de
lher os dois depoimentos de Faria, os de- nhas que afirmam ter ouvido ameaças homem que vivia em situação de rua. pouco mais de 5% do que o pcc despa-
fensores públicos fizeram um documento dos próprios pms”. Quando o Ministério Público finalmen- cha por ano pelo Porto de Santos. (Em
genérico, pedindo ao Ministério Público A mesma reportagem informava que te apresentou a denúncia contra Cosmo paralelo a isso, o Gaeco, do Ministério
que abrisse negociações para uma dela- os policiais suspeitos integravam o 14º e (e outros dois colegas da Rota), o soldado Público, com trabalho de inteligência,
ção. Disseram que, no acordo de colabo- o 42º Batalhão da pm. Os crimes ocorre- já estava morto com um tiro no rosto. desferiu um ataque duro contra o pcc
ração, Faria pretendia “detalhar todos os ram num período que coincide com o Era a nova rotina selvagem da Baixada ao desbaratar duas empresas de ônibus
crimes de que participou, apresentando tempo em que Derrite já trabalhava em Santista desde a morte do soldado Reis: que faturavam mais de 800 milhões de
provas que permitam a efetiva persecu- operações de rua. A reportagem ainda mata-se hoje, morre-se amanhã. reais e vinham sendo usadas pela orga-
ção de todos os autores”. Depois disso, os dizia que os policiais agiam encapu- Entre as 84 vítimas dos militares no nização criminosa para lavar dinheiro
defensores enviaram um novo documen- zados e se intitulavam Eu Sou a Morte. litoral paulista, estão um deficiente visual do tráfico de drogas. A pm apoiou a ope-
to, com mais detalhes, mas a promotoria (O nome do grupo, segundo Faria, veio (que teria mirado um fuzil nos policiais ração. Não precisou dar um único tiro.)
continuou achando bastante genérico. de um episódio em que um sobrevivente e foi morto em cima de uma cama), um A operação no Guarujá também des-
“As provas nunca chegaram”, diz a declarou que o atirador, antes de dispa- homem paralítico (que teria disparado pertou suspeitas no campo das relações
promotora Helena Leite. “A palavra do rar, perguntou: “Você conhece a mor- uma arma enquanto se sustentava sobre nebulosas. Conforme revelou o repórter
denunciante não é suficiente. E não cabe te?” E, sem esperar a resposta, o próprio as muletas), um jovem destroçado (que Marcelo Godoy, de O Estado de S. Paulo,
ao Ministério Público correr atrás de pro- atirador respondeu: “Eu sou a morte.”) levou oito tiros de fuzil nas costas) e uma o empresário José Vicente Santini, hoje
vas para um eventual acordo de colabo- Procurado pela piauí, o secretário de mulher de 31 anos, mãe de seis filhos (que assessor do governador, associou-se com
ração premiada que beneficiaria o preso. Segurança Pública não quis dar entrevista foi atingida na cabeça por uma bala per- seu irmão Nelson Santini numa empresa,
Isso é papel do advogado”, diz ela, frisan- e preferiu responder às perguntas por escri- dida). Samira Bueno, diretora do Fórum a CampSeg, que presta serviços de segu-
do que, mediante qualquer avanço em to. Em um e-mail, a reportagem pergun- Brasileiro de Segurança Pública, colheu rança à linha férrea da Baixada Santista,
termos de prova, a investigação será tou se Derrite conhecia Wallace Faria; se histórias do massacre: “Teve corpo que região onde a matança aconteceu. Segun-
aberta. Faria não tem advogado parti- sabia de sua tentativa de fazer uma dela- foi retirado do mangue. Há suspeita de do mensagens de WhatsApp divulgadas
cular e, estando preso, tampouco dispõe ção premiada; se poderia informar sua que pelo menos sete homens foram en- pelo Estadão, a CampSeg acionava pms
de meios para reunir provas. E denuncia: escala de plantão no período em que tra- terrados como indigentes.” Enquanto para zelar pela segurança dos seus clien-
“Estão tentando colocar panos quentes. balhou no 14º Batalhão em Osasco; se isso, pms comemoravam as mortes no tes. Vicente Santini, que deixou a Camp-
Estão tentando me calar, pois eles sabem ouvira falar do grupo de extermínio Eu Instagram, enfeitando os posts com emo- Seg em 2019, tornou-se conhecido ao ser
que eu sou um arquivo vivo.” Sou a Morte e o que tinha a dizer sobre a jis de caixão. “A operação proporcionou demitido (e depois recontratado) no gover-
A piauí ouviu seis autoridades que tive- acusação de que ele próprio comandava as mortes instagramáveis, de gente pobre, no Bolsonaro pelo uso de um avião da fab
ram envolvimento com o caso do grupo ações dos matadores. A nota não responde preta e vulnerável, que servem para mui- para voar da Suíça à Índia. Seu irmão
de extermínio em Osasco. Todas pediram às indagações e limita-se a dizer o seguin- tos policiais postarem e ganharem segui- Nelson, ex-vereador em Campinas, conti-
o anonimato, e nenhuma considerou que te: “O secretário de Segurança Pública, dores e likes”, diz Cláudio Aparecido da nua na CampSeg. Ele fez a maior doação
o relato de Faria traga incongruências Guilherme Derrite, lamenta que as acusa- Silva, ouvidor da polícia de São Paulo. financeira individual para a campanha de
gritantes – embora nenhuma das autorida- ções infundadas, colocadas a partir da A vingança da pm começou na sexta- reeleição de Derrite: 88 655 reais.
des consultadas tenha qualquer informa- denúncia de um criminoso que cumpre feira, dia seguinte à morte do soldado A fúria sangrenta da pm não trouxe
ção objetiva sobre a suposta participação pena neste momento, tenham espaço.” Reis. “No fim de semana, recebemos li- consolo para a mãe do soldado Reis. As-

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sim que soube da morte do filho, pediu saiu da pistola Taurus modelo pt 92 af, Derrite em entrevista à Jovem Pan, ao ano, eles não dão nenhuma explicação
a um comandante da Rota, cujo nome apreendida pela polícia. comentar as ações no litoral paulista. A sobre a ausência das imagens.”
ela não quis identificar, que o enterro Quando a polícia informou que Erick- matança, pela dinâmica e pela dimen- A piauí teve acesso a um apanhado de
fosse em Santa Maria, onde fica o jazigo son David da Silva, de 28 anos, apontado são, tornou-se um divisor de águas na 28 boletins de ocorrência, lavrados entre
da família. O oficial negou o pedido, como autor do disparo que matou o sol- violência policial. De lá para cá, as julho do ano passado e março. Em apenas
em razão de uma regra segundo a qual dado, havia se entregado à polícia, o ações da pm ficaram mais truculentas e um, há informação de que os policiais es-
o corpo precisaria ficar pelo menos cin- governador Tarcísio comemorou a prisão o uso das câmeras de segurança no uni- tavam usando câmeras corporais. Os de-
co anos enterrado no mausoléu da pm, do “sniper do tráfico”. Pode ter sido pre- forme passou a ser boicotado. Em 2019, mais boletins nem mencionam o assunto
no Cemitério do Araçá, em São Paulo. cipitação. Afinal, o exame residuográfico a pm matou 697 pessoas. Em 2020, ou, quando o fazem, é para dizer que nin-
(A regra não existe, mas, abalada com a posterior não detectou a presença de pól- quando três batalhões ganharam as pri- guém estava equipado com o dispositivo.
perda do filho, Cláudia não teve energia vora nas mãos de Erickson da Silva, o que meiras câmeras corporais, o número O sinal de que a situação pode se
para pesquisar sobre o assunto.) Ouviu não é suficiente para descartá-lo como caiu para 662. Em 2021, o equipamento manter – ou piorar – aconteceu no dia
que um helicóptero da pm buscaria a autor do disparo, mas deixa a suspeita de chegou a quinze batalhões, incluindo a 21 de fevereiro, quando Derrite promo-
família no interior para comparecer ao que depois de 84 mortes e 2 mil presos, é Rota, e o número baixou para 442. Em veu uma mudança radical no comando
velório na capital. “Mas daí ninguém possível que o “sniper do tráfico” conti- 2022, com dezenas de batalhões usan- da pm: afastou 34 coronéis, sem aviso
mais ligou. Eu peguei uma carona para nue à solta. Apesar de ter se entregado, do câmeras, o índice de letalidade poli- prévio. Eles ficaram sabendo da notícia
não perder o enterro do meu filho.” Silva nega ter atirado contra o soldado. cial desabou: 260 mortes. pelo Diário Oficial. Entre os afastados,
O sepultamento tornou-se um grande No dia 8 de março, num evento em “A situação piorou neste ano com exe- estão os coronéis José Alexander Freixo,
ato político, com a presença do governa- comemoração ao Dia da Mulher, Tarcí- cuções sumárias, torturas e episódios de número 2 da corporação, Alexandre César
dor Tarcísio de Freitas e do secretário sio voltou a falar sobre a matança. Ques- violência contra idosos e crianças”, afir- Prates, coordenador operacional da pm, e
Guilherme Derrite. Encerrada a ceri- tionado sobre as denúncias de execução, ma Bueno, a diretora do Fórum Brasilei- Edson Luís Simeira, corregedor da pm.
mônia fúnebre, Cláudia diz que nunca abusos e falhas na investigação, Tarcísio ro de Segurança Pública. “Os boletins de No começo da matança no Guarujá, os
mais teve contato com a pm. “O Derrite começou defendendo as operações: “Sin- ocorrência deixaram de identificar se os três estavam de férias. Quando voltaram
nunca se deu ao trabalho de me ligar”, ceramente, temos muita tranquilidade policiais portavam câmeras ou o bata- ao trabalho, se reuniram com o coman-
lamenta ela. Depois que soube que a re- com relação ao que está sendo feito.” lhão a que pertencem. A maior parte dos dante-geral da corporação, Cássio Araú-
gra dos cinco anos era invenção, Cláudia Mais adiante, irritado com as cobranças, casos não teve perícia. Eu recebi um lau- jo de Freitas, para pedir moderação e
começou a procurar um advogado para disse a frase que ficará colada à sua bio- do necroscópico que sequer identificava apelar para que apenas policiais com
transferir os restos mortais do filho pa- grafia: “Aí o pessoal pode ir na onu, na quantos tiros a pessoa levou”, diz ela. Em câmeras nos uniformes participassem da
ra Santa Maria. Ela diz que não tem sido Liga da Justiça, no raio que o parta que um caso examinado pelos promotores, operação. Os apelos foram ignorados.
informada sobre o andamento das inves- eu não estou nem aí.” A tropa aplaudiu. identificou-se que o policial havia ligado Quando a primeira fase da matança se
tigações. “Fiquei sabendo pela imprensa e desligado a câmera do uniforme mais encerrou, ainda no ano passado, as inves-

“O
que a bala que atingiu o meu filho não que estamos vivendo no de cinquenta vezes para consumir a bate- tigações da pm empacaram. As Comis-
veio da arma apreendida pela polícia”, Guarujá é lamentável, mas é ria o mais rápido possível. Bueno prosse- sões de Mitigação de Riscos, que devem
disse. De fato, um laudo comprovou que o cenário que nós encontra- gue: “No ano passado, a polícia dizia que ser abertas cada vez que um policial se
o disparo que matou o soldado Reis não mos”, disse o secretário Guilherme as câmeras estavam descarregadas. Neste envolve em uma ação letal, foram proto-

sescsp.org.br/relicario

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Disponível exclusivamente no
O precioso legado de resistência e brilhantismo
da Primeira-Dama do Samba em registro ao vivo.
piauí_maio 19
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rua devido à alta letalidade. Os beneficia- cito, professor de direito, como o atual
dos trabalham em diferentes cidades pau- ministro Alexandre de Moraes, do stf.
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listas. Derrite colocou todos de volta às Tecnicamente mais qualificados, não


ruas, atropelando o trabalho da Correge- tinham ligação com qualquer uma das
doria em casos que remontavam a 2018. polícias, cuidado que os governadores
De acordo com um coronel bem posi- paulistas tomavam para não estremecer
cionado na corporação, a pm registrou o uma relação sempre tensa.
número mais baixo de policiais expulsos e Assim que assumiu, Derrite tentou
demitidos no ano passado, o que pode ser neutralizar eventuais problemas com a
um sinal do enfraquecimento da Correge- Polícia Civil e escolheu Osvaldo Nico
doria. “Uma cultura organizacional que Gonçalves para secretário executivo da
estava sendo construída ao longo dos anos, pasta. Nico é policial civil, tem mais de
em respeito à legalidade, foi dinamitada trinta anos de experiência, bom trânsito na
logo de cara. O recado é claro: a polícia corporação e apoio dos delegados. Com
tem autorização para matar. Está tudo do- isso, Derrite afagou a Polícia Civil e pôde
minado”, avalia um coronel que pediu se dedicar ao que realmente gosta – a área
para ficar no anonimato porque ainda está militar. O assassinato do soldado Reis,
na ativa. No início de julho do ano passa- ocorrido cerca de sete meses depois de sua
do, duas semanas antes do assassinato do posse, serviu como uma luva para colocar
soldado Reis, o comandante da pm, Cássio na rua a sua estratégia. Em entrevista ao
de Freitas, divulgou um vídeo nas redes podcast Inteligência Ltda, Derrite admitiu
sociais depois que um tenente aposentado isso: “O caso do Guarujá foi o momento
foi vítima de latrocínio. Mandou uma em que o estado mostrou como iria se or-
mensagem aos policiais: “Não hesite em ganizar contra o crime organizado.”
utilizar a legítima defesa a seu favor.” A inquietação da Polícia Civil, no en-
tanto, veio à tona mesmo assim. Há pou-

N
colares. Todos os policiais seguiram suas vez na história quase bicentenária da pm a campanha de 2018, Guilherme co, Derrite obteve o aval do governador
atividades nas ruas, sem suspensão tem- paulista, a Diretoria de Logística deixou Derrite se aproximou de Eduardo para que a pm possa registrar e colher de-
porária. Os ipms também foram instaura- de ser a única responsável pelas licitações Bolsonaro. Na época, os dois eram poimentos de crimes de menor potencial,
dos apenas para cumprir tabela. O trabalho para insumos da corporação. Em dezem- candidatos a deputado federal e percor- com pena de até dois anos de reclusão.
foi tão malfeito que a Justiça Militar re- bro do ano passado, já coube ao cicc riam o interior de São Paulo em campa- São os chamados Termos Circunstancia-
cebeu 28 inquéritos e mandou devolver promover três leilões para comprar viatu- nha. Pediam votos para eles e para Jair dos de Ocorrência (tcos). Até o momento,
18, pedindo que fossem refeitos. ras (23,6 milhões de reais), quadriciclos Bolsonaro. Deu certo: Jair Bolsonaro foi esse papel é exclusivo da Polícia Civil, que
A Corregedoria da pm, então ainda (4,4 milhões) e coletes balísticos (2,6 mi- eleito, Eduardo foi o deputado mais vo- não está gostando da possibilidade de
sob a chefia do coronel Simeira, se en- lhões). “Causa preocupação que Martins, tado do estado e Derrite ganhou seu compartilhar seus poderes com a outra
carregaria de refazer os ipms. Dias de- um oficial afastado e de baixa patente, primeiro mandato, com 119 mil votos. força. Em mensagem encaminhada aos
pois, com a dança das cadeiras dos 34 sem a competência necessária para co- Três meses depois da posse, foi escolhi- “prezados comandantes” à qual a piauí
coronéis, Simeira foi removido do cargo mandar um órgão sensível como o cicc, do vice-líder do governo na Câmara. teve acesso, Cássio de Freitas, comandan-
e deslocado para a Coordenadoria de esteja agora com essas atividades, ainda Cumpriu seu papel. Empenhou-se te-geral da pm, comemorou a novidade
Assuntos Jurídicos. Incomodado com a mais tendo trabalhado como consultor de em afrouxar as regras para o porte legal que favorece a sua corporação. Disse que
transferência, pediu afastamento e foi segurança no setor privado”, afirma José de armas para fazendeiros e guardas mu- “há uma campanha de desinformação
para a reserva. No lugar dele, Derrite Vicente da Silva Filho, coronel da reserva nicipais, lutou contra o isolamento so- em curso” e garantiu que “a relação entre
nomeou Fábio Sérgio do Amaral, res- da pm e ex-secretário nacional de Segu- cial durante a pandemia de Covid, as polícias nunca esteve tão próxima”. Não
ponsável pelo Comando do Policiamen- rança do Ministério da Justiça. propôs o fim da visita íntima nos presí- era bem assim. A Polícia Civil protestou
to de Choque, que atuou na matança do Desde que assumiu seu cargo no go- dios e levantou a bandeira do fim da alto, e Derrite foi obrigado a recuar e ins-
Guarujá. O chefe do setor de inquéritos verno paulista, em janeiro de 2023, Derri- saidinha dos presos, projeto que talar uma comissão para discutir o
da Corregedoria, tenente-coronel Fabia- te deu sinais de que também pretendia acabou de ser parcialmente projeto controverso.
no Batista do Prado, também foi removi- afrouxar os controles internos da polícia. aprovado. Na campanha de A Polícia Civil também
do. Até agora, os ipms não foram refeitos. Antes de completar um mês no cargo, ele 2022, candidatou-se à reelei- não gostou de ser excluída
Em outra mudança relevante, mas me- defendeu a ação de uma patrulha da Rota ção – venceu com o dobro daquela operação que des-
nos visível, Derrite colocou o cientista que disparou 28 vezes contra um Honda de votos do pleito anterior baratou as empresas de
político João Henrique Martins, um ex- Fit, sob a justificativa de que seus três ocu- – e aproximou-se de Tarcí- ônibus que lavavam di-
tenente especializado em segurança pú- pantes iriam fazer um assalto na Rua da sio de Freitas, então candi- nheiro do pcc. Depois
blica para a iniciativa privada, no comando Consolação, na região central de São Pau- dato ao governo paulista. disso, no bojo da investi-
de um órgão estratégico de sua secretaria: lo. Matou dois. As câmeras dos quatro Tarcísio convidou Derrite gação do caso em que o
o Centro Integrado de Comando e Con- agentes da Rota não registraram a ação, para fazer o “plano de se- condutor de um Porsche
trole (cicc), cuja função é analisar dados mas uma câmera da estação mais próxima gurança pública” de sua provocou um acidente
para criar projetos de segurança. O cicc do metrô gravou a cena. Nela, o sargento gestão e colocá-lo em prá- que matou um motorista
tem acesso aos boletins de ocorrência, Vinícius de Sena Santos aparece tirando tica, caso fosse eleito. de aplicativo, a Polícia Ci-
mas, assim que assumiu, Martins pediu um objeto de sua farda e colocando debai- Derrite fez um plano genérico, pro- vil entrou na Justiça exigindo que a pm
para também acessar o Infocrim, o mais xo do corpo de uma das vítimas. Estava pondo usar “tecnologia de ponta”, inte- entregasse as imagens captadas pelas
valioso sistema de informações da polí- plantando uma arma para simular que grar “bases de dados de interesse policial câmeras corporais dos policiais. Com
cia, cujo banco de dados é sigiloso. Além houve reação a tiros. Com 28 disparos, dois disponíveis nos níveis federal, estadual e tudo isso, açulando uma disputa entre
de mapear a criminalidade, o Infocrim mortos e uma arma plantada, a ação não municipal” e combater o crime organi- duas corporações, Derrite e o governador
acompanha a produtividade do trabalho rendeu nenhuma punição aos policiais. zado “sem trégua”. Com a vitória de Tar- estão, nas palavras de um juiz da Justiça
policial. O chefe do Centro de Inteligên- No segundo mês no cargo, Derrite can- císio, ele renunciou ao mandato de Militar que pediu o anonimato, “virando
cia da pm, João Luís Minghetti Costa, não celou a punição contra quinze agentes da deputado e virou secretário de Seguran- a pirâmide de cabeça para baixo”.
autorizou o acesso. Havia o temor dentro Rota, que estavam afastados do serviço de ça. Sua posse não foi bem recebida. Era “Há mensagens sutis de que a polícia
da corporação de que os dados pudessem patrulha em razão do alto índice de mor- jovem demais (38 anos), inexperiente tem autorização para matar”, avalia o
ser fornecidos a empresas privadas. Min- tes. A medida foi comemorada pela tropa. (nunca tivera cargo de gestão), militar advogado Rafael Alcadipani, professor
ghetti Costa está entre os 34 coronéis que Dois dias antes de transferir os 34 coronéis, (rivalizava com a Polícia Civil) e tinha de gestão e políticas públicas que acom-
foram removidos de sua função. Derrite fez outro movimento: perdoou baixa patente (tenente, só virou capitão panha a violência policial. “A começar
O cicc de Martins expandiu seus po- cerca de cinquenta policiais militares que ao se aposentar). Seus antecessores eram por um governador que manda recla-
deres no âmbito financeiro. Pela primeira também estavam afastados do serviço de procuradores de Justiça, general de Exér- mar na Liga da Justiça e um secretário

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F
de Segurança com um histórico de leta- de equipamentos não letais e demais ini- ilho do meio de um casal de classe tinha menos de três anos na Rota quando
lidades.” Alcadipani diz que a razão de ciativas voltadas ao aperfeiçoamento dos média de Sorocaba, no interior de deixou a tropa depois do Caso Barracuda.
tudo está no populismo penal da necro- agentes de segurança, inclusive com o uso São Paulo, Guilherme Muraro O próprio coronel Telhada estimulou
política. “Esse é o principal da história: do método Giraldi.* Somado a isso, o pro- Derrite queria ser engenheiro ou dentis- Derrite a tentar a carreira política. A essa
ganhar votos. Funciona à semelhança grama de câmeras corporais segue em ta. Às vésperas de prestar o vestibular, viu altura, ele já era conhecido do público
do Império Romano, quando as pessoas operação, inclusive está em andamento uma foto do seu pai dos tempos em que pelas entrevistas à imprensa e pela presen-
iam assistir gente ser arremessada aos uma licitação para a contratação de mais cumpriu o serviço de Tiro de Guerra e se ça nas redes sociais. Nos tempos da Rota,
leões. Agora, a população deseja que a três mil dispositivos para serem acoplados interessou. Conversou com um amigo da tornou-se figura frequente nos programas
polícia mate mesmo.” às viaturas. Atualmente, 10 125 câmeras família, que cursava a Academia de Polí- policialescos da Band e da Record. Che-
Na avaliação de Bruno Paes Manso, corporais estão disponíveis, abrangendo cia Militar do Barro Branco, a instituição gou a ser estrela de um reality show poli-
jornalista e pesquisador do Núcleo de 52% dos policiais do território paulista. que forma militares em São Paulo e cujo cial, Operação de Risco, exibido pela
Estudos da Violência da usp, “Derrite As operações de combate ao crime or- ingresso se dava por meio de vestibular. Redetv!, que mostrava incursões da Rota
está fazendo em São Paulo uma coisa ganizado realizadas na Baixada Santista, Da conversa saiu convencido de que de- pelas ruas de São Paulo. Nas redes sociais,
semelhante ao que Bolsonaro fez em entre 28 de julho e 5 de setembro de 2023 veria tentar a carreira militar, mas foi re- tinha milhares de seguidores. “Tenho cer-
Brasília, quando politizou as Forças Ar- e a partir de 3 de fevereiro deste ano, resul- provado no teste psicotécnico. No ano teza absoluta de que eu fui eleito graças à
madas. Depois que ele deixou o poder, taram na prisão de importantes lideranças seguinte, tentou de novo e conseguiu. rede social”, disse, numa entrevista a um
viu-se a dimensão do estrago, que levou do tráfico de drogas na região. Entre elas, Na academia, localizada na capital podcast. Derrite é considerado o candi-
vários oficiais à investigação”. Segundo Karen Tanaka Mori, conhecida como paulista, conheceu sua futura mulher dato de Tarcísio para o Senado, mas já se
ele, “Derrite está prestigiando oficiais “Japa”, responsável por lavar dinheiro de Iara Maria de Oliveira, hoje capitão da pm especula que, se o governador não dispu-
por afinidades ideológicas com sua his- uma facção criminosa; Caio Vinicius, e lotada na Casa Militar do governador. tar a reeleição, seu nome pode aparecer
tória de violência e truculência. Está apelidado de “Nego Boy” e acusado de li- O casal, que teve dois filhos, planejava para o governo do estado.
fazendo uma leitura de segurança públi- derar o tráfico de drogas na comunidade retornar para o interior, mas Derrite aca- Fã do falecido Olavo de Carvalho, o
ca do passado, apostando na violência onde o soldado Cosmo foi morto; Patinho, bou indo para o 14º Batalhão de Osasco. ex-astrólogo que funcionava como guru
como sinônimo de ordem”. Manso pros- executor de uma série de assassinatos a Apaixonou-se pelo ofício, desistiu de vol- ideológico da família Bolsonaro, Derri-
segue: “Com isso, ele está rachando a mando dos criminosos, entre outros. Além tar para o interior e começou a sonhar em te afirma que o “marxismo cultural”
polícia. Uma série de oficiais está indig- destes, mais de mil criminosos foram pre- ser membro da Rota. Por volta de 2009, trata os bandidos como vítimas da so-
nada. Havia um esforço com instalação sos pelas forças de segurança, dentre os foi rejeitado porque seu currículo de ho- ciedade. Católico e temente a Deus, ele
de câmeras nos uniformes e a criação de quais 438 procurados pela Justiça; tam- micídios era farto demais. No ano seguin- se diz um “conservador” e tem opiniões
uma comissão de letalidade, que vinha bém foram retiradas das ruas 119 armas te, conseguiu a ajuda de um amigo, previsíveis para alguém que se alinha
dando resultados. Tudo isso está indo de fogo ilegais e cerca de uma tonelada de Rafael Telhada, filho do então coman- com a direita radical – é a favor da pri-
por água abaixo.” Um dado grave que drogas, gerando prejuízos significativos às dante da Rota, o coronel Paulo Adriano são perpétua, do fim das câmeras nos
não deve ser ignorado: no ano passado, atividades criminosas na região. Telhada. Na época, o coronel Telhada uniformes dos policiais e do porte de
a pm paulista registrou o maior número Em relação aos roubos de carga, as estava atrás de policiais para endurecer o arma de fogo para defesa pessoal.
de suicídios de sua história. Foram 32, políticas públicas adotadas têm se mos- combate ao crime. E abriu as portas para Derrite diz que é contra a pena de
dos quais 20 estavam no serviço ativo. trado eficientes, possibilitando uma redu- Derrite. O sonho durou pouco. Derrite morte. J
No e-mail que enviou ao secretário, a ção de 17,8% no número de ocorrências
piauí reuniu um total de 24 perguntas. En- em todo o território paulista nos dois me-
tre elas, além de mencionar a denúncia do ses deste ano, em comparação com igual
matador do grupo de extermínio, a revista período do ano passado. Quanto à Baixa-
incluiu questões sobre o perfil das vítimas da Santista, houve a queda de 8%, no
nas operações realizadas na Baixada San- bimestre. Temos envidado esforços por
tista, a ausência de câmera corporais, a meio das nossas forças policiais para com-
remoção dos coronéis, o perdão aos poli- bater este tipo de delito com uso de inteli-
ciais que haviam sido retirados das ruas, os gência, tecnologia e operações integradas.
ipms incompletos, a anunciada queda de (Aparentemente, por um equívoco, a
30% nos roubos de carga. Segue a íntegra assessoria de Derrite contabilizou pri-
a nota da assessoria de Derrite: sões e apreensões de armas e drogas
A linha de atuação adotada pelo secre- ocorridas apenas de dezembro do ano
tário à frente da pasta é baseada na asfi- passado em diante. Somando-se os resul-
xia financeira do crime organizado com tados divulgados pela própria Secretaria
ações que desarticulem a cadeia ilícita. em relação às operações realizadas antes
As forças de segurança do estado de de dezembro, os números são aqueles
São Paulo são instituições legalistas que que apareceram antes nesta reportagem:
operam estritamente dentro de seu dever 2 mil prisões, 240 armas e 3,6 toneladas
constitucional, seguindo protocolos ope- de drogas. Quanto ao roubo de cargas, o
racionais rigorosos, não sendo tolerados secretário anunciara queda de 30%, mas
excessos, indisciplina ou desvios de con- a nota corrigiu para 17,8%.)
duta. Todos os casos de morte decorrente O governador Tarcísio de Freitas já
de intervenção policial são rigorosa- disse e desdisse o que pensa sobre as câ-
mente investigados pelas polícias Civil meras corporais. Afirmou que não ti-
e Militar, com o acompanhamento do nham nenhuma relevância para a
Ministério Público e do Poder Judiciário, segurança da população, depois disse
que inclusive têm acesso às imagens das “não estou nem aí” quanto às preocupa-
câmeras corporais portáteis utilizadas ções sobre a violência policial e, por fim,
pelos PMs envolvidos nas ocorrências. falou que o uso das câmeras poderia até
O confronto não é uma escolha dos ser ampliado na sua gestão. Agora, em
policiais, mas uma reação à ação violenta resposta a uma consulta feita pelo mi-
de criminosos nas operações de combate nistro Luís Roberto Barroso, presidente
ao crime organizado. O compromisso das do stf, prometeu implementar o equi-
forças de segurança é com a preservação pamento até setembro deste ano.
da vida, por isso medidas para reduzir as
mortes em confronto são permanente- * O método Giraldi, desenvolvido pelo coronel Nilson
Girardi, de São Paulo, consiste em técnicas e normas
mente avaliadas e adotadas. Temos inves- que, aplicadas às ações policiais, destinam-se a limi-
tido em treinamento do efetivo, aquisição tar o uso de arma de fogo e preservar vidas.

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anais da ultraviolência II

TRISTE BAHIA
Como age a polícia que mais mata

MARCELO CANELLAS

N
a madrugada do dia 1º de soldados das Rondas Especiais da Polí- Um sentimento de pânico e terror lhe execução. O Ministério Público denun-
março de 2022, terça-feira cia Militar da Bahia. Uma vizinha se tirou a dimensão do tempo. Ela não sabe ciou os quatro policiais por adulteração
de Carnaval, Silvana dos San- aproximou de Santos e cochichou a ela mais precisar quantos minutos se passa- da cena do crime. Três deles também
tos acordou em sobressalto, que, dentro da casa, havia mais dois ram até que alguém se aproximou para vão responder por homicídio qualificado
com a impressão de ter escu- policiais interrogando três jovens. Um dizer: “Eles estão subindo com o corpo.” e abuso de autoridade. A Justiça acatou
tado o estampido abafado de um tiro. deles era Alexandre Santos dos Reis, de Alexandre Santos dos Reis e os dois a denúncia. Os policiais, que perma-
Pulou da cama com o coração descom- 20 anos, o Léo. Tremendo de medo, ela amigos que estavam com ele, Cléverson necem em liberdade, insistem na ver-
passado e foi até a varanda, de onde podia se aproximou dos dois pms que faziam a Guimarães Cruz, de 22 anos, e Patrick são de que houve troca de tiros. Santos
avistar o casario da Gamboa de Baixo e guarda do lado de fora: Sousa Sapucaia, de 16, haviam acabado retruca: “Eles sempre têm a versão de-
as luzes dos barcos pesqueiros polvilhan- – Moço, eu sou a mãe de um dos de chegar de uma festa de Carnaval les. Eu posso dizer milhões de vezes
do a escuridão da Baía de Todos-os-San- rapazes. numa comunidade próxima. Os três já que não foi troca de tiros. Eu posso di-
tos. Silêncio total. Aliviada, voltou para – Sai daqui! – ordenou o policial, estavam mortos quando foi feito o registro zer milhões de vezes que apontaram a
o quarto. Mas nem conseguiu se deitar. apontando uma arma contra a cabeça de entrada no Hospital Geral do Estado arma para a minha cabeça, mas a ver-
Desta vez, o barulho de tiro era nítido e de Santos. (hge). O inquérito aberto para apurar o são deles vai ser sempre a verdadeira e a
inequívoco. Catou o celular do chão, ao Ela insistia, chorando compulsivamen- episódio anexou armas (supostamente minha vai ser a falsa.”
pé da cama, e viu a mensagem aterrado- te, gritando que era mãe de um dos jovens usadas num tiroteio com os policiais) e Silvana dos Santos tem 43 anos e fala
ra de uma vizinha piscar na tela: “Silva- e que só queria saber se ele estava bem. drogas (supostamente encontradas com baixo para não acordar os quatro filhos
na, os homens pegaram o Léo!” Ela jura ter ouvido a voz do garoto ecoan- os rapazes). Mas o laudo pericial indicou que ainda moram com ela. Têm 9, 13, 15
Desesperada, vestiu-se como pôde e do dentro da casa: “É a minha mãe ali!” que duas dessas armas tinham proble- e 17 anos e dormem na única cama
desceu correndo as ladeiras apertadas Repelida à força pelos policiais que a mas mecânicos, dificultando seu uso grande do único quarto da casa de três
da favela até chegar diante de um bar- empurravam apontando a arma, ela se em confronto. O laudo cadavérico de cômodos que ela chefia. Teve, ao todo,
raco de alvenaria abandonado, sem por- afastou ao mesmo tempo aflita e aliviada Guimarães Cruz aponta que ele foi oito filhos, que criou com muita dificul-
tas e sem janelas, com as paredes por acreditar que o filho estava vivo. Já morto com um tiro disparado de cima dade. Começou a trabalhar aos 11 anos
pichadas. A entrada era vigiada por dois distante da casa, ouviu três tiros secos. para baixo, aumentando a suspeita de cuidando de um bebê numa casa de fa-

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FELIPE IURATÃ_2022
O desespero com a matança na Gamboa de Baixo, em Salvador: o historiador Dudu Ribeiro diz que não há nenhum projeto de segurança pública em curso que não seja baseado no populismo penal

mília. Depois vendeu picolé, entregou nal comunidade pesqueira, negra, de gava necessário, mas também mediando torno de 56 bilhões de dólares anuais só
jornais e foi servente de limpeza. O me- origem quilombola, que remonta ao sé- conflitos. Era rara a exibição ostensiva com a venda de cocaína. A estratégia
lhor emprego que já conseguiu foi como culo xvii, dividiu-se – para cada um dos de armamento, e a comunidade, com dessas organizações prevê a conquista de
auxiliar de vendas em uma ótica, mas lados da avenida – em Gamboa de sua forte identidade cultural pesqueira novos territórios para além do Rio de Ja-
durou pouco tempo. Hoje faz bico de Cima e Gamboa de Baixo. Os acessos e quilombola, era frequentemente pro- neiro e de São Paulo, e a Bahia entrou
garçonete num bar da Gamboa de Bai- de uma para a outra são acanhados, e o curada para servir de cenário às novelas no mapa expansionista do tráfico. A to-
xo. Léo, seu filho morto, ajudava muito principal deles se dá por uma escadaria da tv Globo e clipes de grandes artistas. mada da Gamboa pelo Comando Ver-
nas despesas de casa. “Fazia Uber na que os próprios moradores, num muti- Em 2019, Anitta gravou na favela o fa- melho está na origem de uma rebelião
prainha”, como se diz quando alguém rão de mulheres, construíram. moso clipe do hit Bola rebola em que na Penitenciária Lemos Brito, em Salva-
trabalha remando os barquinhos de Em muitos sentidos, as transforma- aparece de biquíni de crochê com as dor, ocorrida em 20 de fevereiro de 2022,
transporte de turistas até o Solar do ções pelas quais a Gamboa passou cos- cores do Olodum, cantando e dançando nove dias antes da chacina em que Léo
Unhão, complexo cultural onde funcio- turaram um novo formato de violência com o rapper J Balvin, o funkeiro mc morreu. (A rebelião deixou cinco presos
na o Museu de Arte Moderna da Bahia. urbana cada vez mais comum nas gran- Zaac e com a dupla do Tropkillaz, sob o mortos e dezessete feridos.) A ordem era
Cria da Gamboa, Léo já nasceu ven- des cidades brasileiras. Até o começo do olhar malicioso de Compadre Washing- matar um dos integrantes do Bonde da
do sua comunidade partida ao meio pela ano passado, o tráfico na favela tinha ton, do É o Tchan. Gamboa, mas que acabou protegido
Avenida Lafayete Coutinho, conhecida uma administração local, com gente Mas o negócio bilionário do tráfico por integrantes de uma facção rival do
como Avenida Contorno. Construída em nascida e criada na comunidade, e um internacional botou olho gordo na Gam- Comando Vermelho.
1962, para desafogar o trânsito da capital único núcleo no comando, o Bonde boa. Pelas contas do Fórum Brasileiro de O Ideas Assessoria Popular, ong que
baiana, e assentada sobre imensas colu- da Gamboa. Num lugar empobrecido, Segurança Pública, o Primeiro Coman- acompanha e denuncia casos de viola-
nas de concreto, a avenida parece flu- cheio de precariedades e com o acesso do da Capital (pcc) e o Comando Ver- ção de direitos na Gamboa, se preocupa
tuar sobre as casas, escondendo a favela. restrito e controlado a partir das bordas melho (cv), as duas maiores organizações tanto com as ações do tráfico quanto
Para enxergar os barracos, quem passa da Avenida Contorno, o tráfico agia criminosas do país, disputam, centavo com o advento de um fenômeno novo
por cima precisa se debruçar sobre os como organizador do território, recor- a centavo, um mercado correspondente a na Bahia: o “milicianismo” em parte da
guarda-corpos da Contorno. A tradicio- rendo a castigos e punições quando jul- cerca de 4% do pib brasileiro, algo em tropa da Polícia Militar. Com interlo-

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sência de sua organização data de 1969, pessoas morreram em operações policiais
quando o Estado fundiu a Força Pública em Salvador e outras duas cidades da Re-
– uma instituição bicentenária – com a gião Metropolitana. A carnificina come-
ALLAN SIEBER_2024

Guarda Civil, uma organização unifor- çou com sete homens mortos no bairro
mizada que fazia a segurança urbana. de Jauá, em Camaçari, seguiu com outras
Ao unir as duas por meio de um de- matanças nos arredores e terminou com
creto-lei, o regime de 1964 remodelou um massacre em Cosme de Farias, bairro
as “Polícias Militares”, assim chamadas pobre do Centro de Salvador que, debai-
em todo o país, à exceção do Rio Gran- xo de uma saraivada de balas, fechou suas
de do Sul, onde o nome é Brigada Mili- escolas municipais e suspendeu as aulas.
tar. A nova Lei Orgânica das Polícias Mas o pior veio ao longo de setembro:
Militares, aprovada em dezembro de 56 mortos por forças de segurança da Bahia,
2023 com o apoio da bancada da bala no média de quase dois homicídios por dia.
Congresso Nacional, não mexeu na su- Os números chocam e conduzem,
bordinação das pms ao Exército. “Ainda quase sempre, a um paradoxo. A popu-
que a Constituição de 1988 tenha refor- lação, em pânico diante da violência e
çado o comando dos governadores, e do crime, recorre à Polícia Militar como
tenha colocado o Ministério Público fiadora da ordem. “De que ordem?”,
como controlador externo, a legislação pergunta Renato Sérgio de Lima, do
de 1969 não foi revogada. Ela continua Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
válida. No fundo, a pm continua fazen- “Uma ordem social que é moralmente
do o que ela bem entende”, diz Lima. fixada e não constitucionalmente esta-
Em 2019, a polícia da Bahia fez o que belecida. Porque a ordem do estado de
bem entendia. Por meio de uma instrução direito na democracia vem da Consti-
normativa, alterou a investigação das mor- tuição. E no Brasil ela acaba sendo uma
tes ocorridas durante as operações poli- ordem moralmente disputada. Ou seja,
ciais. Pela nova regra, o policial que quem é bandido merece ser eliminado.”
comunicasse um homicídio de modo es- E o paradoxo prossegue. Pressionados
pontâneo teria sua conduta “justificada”, pelos eleitores, que a cada pesquisa de opi-
não seria investigado e o caso nem entra- nião demonstram preocupação crescente
cução permanente na comunidade, o isso com quem tem diálogo com o cor- ria nas estatísticas de morte violenta. Mais: com a segurança pública, os políticos –
Ideas vê uma conexão entre a rebelião regedor-geral, com o secretário de Justiça, os policiais que matassem civis não seriam independentemente da matriz ideológica
na penitenciária, a chacina de 1º de mar- com o secretário de Segurança Pública mais investigados pela Polícia Civil, como – optam pela saída rápida: mais e mais
ço e outra ação policial realizada em e com o próprio capitão da guarnição, manda o ordenamento jurídico brasileiro, operações policiais. Cria-se um círculo
junho de 2022 na Gamboa. Naquela com quem conversei naquele mesmo mas por militares. As organizações de de- vicioso: a cada crise, os governadores ten-
ocasião, suspeita-se que policiais milita- dia, é uma polícia que está sem contro- fesa de direitos humanos fizeram um pro- tam adequar suas políticas à sofisticação
res cooptados pela milícia aproveitaram le”, afirma ele, para completar: “É uma testo veemente contra essa licença para operacional do crime organizado. Mata-
para concluir a expulsão dos traficantes polícia que tem atuado como milícia. matar. Em vão. A instrução normativa só vam com revólver, agora matam com fu-
locais, consolidar a posse do território Temos falado disso abertamente.” foi revogada em março de 2023, quando o zil. As ações mortíferas da pm paulista são
pelo Comando Vermelho e extorquir A tentativa de homicídio foi reporta- Tribunal de Justiça da Bahia, quase qua- apenas o exemplo mais recente.
dinheiro dos novos chefões do tráfico. da à Corregedoria, que abriu os proce- tro anos depois da publicação da nova

E
Um indício de que essa versão pode dimentos de praxe. norma, julgou a medida inconstitucional. m seu discurso de posse, no primeiro
ser verdadeira apareceu depois de uma Enquanto a instrução normativa este- dia de fevereiro, o novo ministro da

O
nova operação policial, em 27 de outubro sociólogo Renato Sérgio de Lima ve em vigor, as mortes em ações policiais Justiça, Ricardo Lewandowski, pro-
do ano passado. Nessa ação, um morador preside o Fórum Brasileiro de Se- na Bahia dobraram: entre 2019 e 2022, meteu dar especial atenção à segurança
encontrou um celular desbloqueado, gurança Pública e é uma autorida- saltaram de 773 para 1 464. Com esse pública porque “é hoje uma das maiores
supostamente de um pm, que continha de em violência policial. Sua experiência desempenho, a polícia baiana superou a preocupações da cidadania”. Conhecido
mensagens sobre o cumprimento de acor- lhe permite afirmar que as ações das po- do Rio de Janeiro e passou a ocupar o por seu perfil garantista, Lewandowski
dos e o pagamento de propina. Ao to- lícias, mesmo quando não consistem em topo da letalidade no Brasil. No ano se- nomeou o ex-procurador-geral de Justiça
mar conhecimento do caso, o fundador insubordinação ilegal, já adquiriram um guinte, mesmo com a norma já revoga- de São Paulo, Mario Sarrubbo, como se-
e coordenador-geral do Ideas, o advogado nível de autonomia que escapa ao contro- da, a tendência se manteve. Divulgado cretário nacional de Segurança Pública,
Wagner Moreira, reuniu testemunhas e le do comando e das demais autoridades. em janeiro passado, o relatório anual do e disse que não há soluções fáceis porque
foi à Corregedoria-Geral da Secretaria E isso ocorreu por um vício de origem. Instituto Fogo Cruzado, entidade que mo- o crime organizado se nutre do ciclo per-
de Segurança Pública, entregou o celu- A Polícia Militar da Bahia, como qual- nitora tiroteios em centros urbanos, mos- verso da exclusão social. “Por isso, é escu-
lar com as mensagens comprometedoras quer outra pm, é uma instituição militari- trou que a polícia baiana continua sendo sado dizer que o combate à criminalidade
e prestou depoimento. zada e segue a lógica do pacto federativo a mais mortífera do país. Os números da e à violência precisa ir além de uma per-
De volta à Gamboa, o advogado foi organizado pela ditadura depois do golpe catástrofe de 2019 até o ano passado: manente e enérgica repressão policial,
abordado por um repórter do jornal Cor- de 1964: elas são subordinadas aos gover- • 1 783 pessoas baleadas, das quais demandando a execução de políticas
reio e começou a dar uma entrevista na nadores, mas são supervisionadas e con- 639 em operações policiais; públicas que permitam superar esse ver-
entrada da favela, à beira da Avenida troladas pelo Exército. “Quando você tem • 1 413 homicídios, dos quais 190 em dadeiro apartheid social.”
Contorno. Nesse instante, tiros espoca- dois chefes, você não tem nenhum”, diz chacinas em todo o estado; Quem denuncia a violência policial
ram no guarda-corpo, onde ele se esco- o sociólogo. “Você tem instituições que • 48 chacinas só na Região Metropo- na Bahia, estado governado há dezesse-
rava, espalhando cacos de concreto para foram se insulando e se autonomizando litana de Salvador, das quais 33 em ações te anos pelo pt, interpretou as palavras
todo lado. Moreira se jogou ao chão, por em relação ao poder, aos governos. Elas ou operações policiais, deixando 136 ci- do ministro como declarações de prin-
trás do guarda-corpo, e viu policiais mi- definem a sua própria pauta.” vis mortos. cípios e boas intenções, mas sem um
litares guardando as armas e entrando Que pauta é essa? No ambiente da A pilha de corpos humanos, cuja di- plano capaz de torná-las realidade. Os
numa viatura. “Estamos falando de uma Guerra Fria, os militares se organiza- mensão fica diluída na frieza estatística, integrantes do Ideas, por exemplo, estão
viatura. Temos a placa, as imagens, o ram com a missão de caçar guerrilhei- ganhou visibilidade estarrecedora em convictos de que não existe uma políti-
número de policiais que estavam lá em- ros, e a ideia de que bandido bom é meados de 2023 quando a Bahia figurou ca de segurança pública, apenas ações
baixo. Não tenho dúvida de que atiraram bandido morto foi se cristalizando na as manchetes nacionais durante cinco isoladas sem uma articulação unificado-
para acertar. Como é um terreno de percepção subjetiva dos integrantes das dias de matança. Entre 28 de julho e 1º de ra. E isso acontece porque não há proje-
cima para baixo, talvez não tenham en- corporações policiais. Por mais que a agosto – no mesmo período em que a pm tos em disputa entre as forças políticas.
contrado ângulo”, descreve Moreira. origem de algumas polícias militares no de São Paulo abria a temporada de ma- “A esquerda disputa projetos na econo-
“Uma polícia que tem a audácia de fazer Brasil remonte a quase 250 anos, a es- tança na Baixada Santista –, dezenove mia, confrontando o neoliberalismo com

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o ideário desenvolvimentista. Na saúde, secretário de Segurança Pública, Marce-
emplacando o sus contra os movimentos lo Werner, estão empenhados em promo-
privatistas. Na educação, com sua longa ver um grande giro na gestão da Polícia
tradição de lutas em defesa do acesso uni- Militar. “Mas esse não é um giro trivial”,

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versal e gratuito ao ensino. Mas na segu- diz ele. “Não é só um giro ideológico do
rança pública a esquerda simplesmente nosso campo. É um giro geracional
não conseguiu formular um projeto na- também. O fato de a esquerda brasileira
cional”, diz Moreira, do Ideas. Para a Ini- contemporânea ser dirigida hegemonica-
ciativa Negra por uma Nova Política mente por pessoas que atuaram na resis-
sobre Drogas, organização da sociedade tência à ditadura militar criou entre nós
civil que desde 2015 propõe uma reforma e as forças de segurança um bloqueio.
na política de drogas a partir da perspectiva Bloqueou nossa capacidade de formular
racial, os governos de esquerda, na prática, um projeto que passa, obviamente, pela
não conseguem apresentar alternativas à interlocução com as forças policiais. En-
truculência repressora das pms. tão a gente fica com dificuldade de en-
O historiador Eduardo Ribeiro dos trar nos espaços para dialogar com eles,
Santos, conhecido como Dudu Ribeiro, conhecê-los e saber o que eles pensam.”
dirigente da Iniciativa Negra, diz que E qual seria o pensamento médio do
não há hoje nenhum projeto de seguran- policial militar que está na linha de
ça pública em execução que não seja frente das operações de rua? Para Lima,
baseado no “populismo penal”. Os teóri- do Fórum Brasileiro de Segurança Pú-
cos do direito chamam de populismo blica, o pensamento conservador é am-
penal as políticas que enfrentam o pro- plamente majoritário na tropa, mas
blema da criminalidade com dois pilares: falar em bolsonarização da Polícia Mi-
repressão cada vez maior e encarcera- litar é apenas uma meia-verdade. “Bol-
mento em massa. “A gente vê, na verda- sonaro é sintoma, não é causa”, afirma
de, gestores da esquerda que reforçam ele. “Se você pensar no movimento de
essa ideia de militarismo na execução da guinada à direita, e de como ele se con-
política pública de segurança. Isso está figura, verá que aquela ideia do uso da
presente também nos discursos dos ges- força militarizada como melhor respos-
tores que passaram aqui pela Bahia, seja ta contra o crime tem razões históricas dar um tiro na boca, como tantos fa- ta Cristão (ptc), que já foi prn – o partido
Jaques Wagner, seja Rui Costa, e agora e estruturais, e já estava presente no que zem, ele foi protestar. que levou Fernando Collor à Presidência
o governador Jerônimo Rodrigues. Não chamávamos de malufismo e hoje cha- Prisco aciona o portão eletrônico da em 1989 – e hoje se chama Agir. A mu-
é apenas uma crise da gestão do mode- mamos de bolsonarismo.” Aspra e precisa dar apenas cinco passos dança do perfil ideológico veio junto com
lo, mas é uma crise do próprio modelo. para chegar à recepção. Duas secretá- uma conversão. “Já tenho vinte anos no

O
E ele é nacional: a ideia de uma seguran- coordenador-geral da Associação rias organizam o atendimento. Todas as evangelho. Minha base é cristã, sou batis-
ça pública baseada em um equipamento dos Policiais e Bombeiros Militares quinze cadeiras da sala de espera estão ta. Da Igreja Batista tradicional.”
de guerra”, diz o historiador. e Seus Familiares do Estado da ocupadas por pms e familiares esperan- A sopa de letras da trajetória política de
No cargo desde o início do governo Bahia (Aspra-ba), Marco Prisco, um poli- do por algum serviço, que pode ser um Marco Prisco, 54 anos, casado, pai de dois
Jerônimo Rodrigues, o secretário de Jus- cial militar bombeiro da reserva, votou podólogo, um cabeleireiro, um dentista filhos, inclui ainda o psdb, o antigo pps e
tiça e Direitos Humanos da Bahia, Feli- quatro vezes em Jair Bolsonaro: nos dois ou um dos catorze advogados de plan- o extinto psc, onde militou antes de ater-
pe Freitas, quadro do pt, reconhece a turnos das eleições de 2018 e de 2022. tão para dar assessoria jurídica em qual- rissar no União Brasil, seu atual partido. Já
necessidade de uma autocrítica da es- Quem chega à sede da Aspra, no bairro da quer área, da tributária à familiar, da cumpriu um mandato de vereador e dois
querda pela falta de um projeto nacional Saúde, dá logo de cara com a imensa figu- administrativa à criminal. de deputado estadual, um pelo psdb e ou-
de segurança pública. “Na ausência des- ra de Prisco grafitada no muro da entida- Dos quase 30 mil policiais militares tro pelo psc. Embora bem votado, com
sa formulação, o que nos sobra? A repeti- de, de braços abertos, como se estivesse da Bahia, 15,6 mil são associados à Aspra, mais de 50 mil votos, faltou coeficiente
ção de certos esquemas que são os que a comandando uma assembleia da catego- o que faz dela a terceira maior entidade eleitoral para um terceiro mandato na As-
gente conhece, que são elaborados não ria. O grafite traz ainda outra figura do de praças do Brasil. A televisão da sala sembleia Legislativa pelo União Brasil.
por nós, mas pela direita mais conserva- mesmo tamanho: o soldado pm Wesley está ligada na Record tv. São 11h50 e o Vai tentar uma vaga na Câmara Munici-
dora.” Freitas classifica como inaceitá- Soares Góes, que é retratado de farda, com programa Balanço Geral BA mostra o ví- pal de Salvador neste ano. No cardápio de
vel a letalidade policial na Bahia, o rosto pintado de verde e amarelo, deo de um policial militar dando um princípios, o de sempre: contra o aborto,
mas diz que não se pode sim- e com a boca escancarada como mata-leão em um homem que se recusa- em defesa da família, contra o desencar-
plificar um tema tão comple- se estivesse bradando um grito ra a passar pelo teste do bafômetro. Uma ceramento, contra a redução das penas.
xo, pois há, na opinião dele, de protesto. mulher, aos gritos, tenta impedir enquan- Mas há algo no discurso de Prisco
diferenças significativas, “O Wesley veio pedir so- to filma tudo. A tarja do programa traz os que abre divergência com parte da tropa.
inclusive entre os próprios corro e foi assassinado pelo dizeres: “Denúncia de truculência: mu- Talvez por causa das agruras de sua ação
gestores do pt, na maneira Estado”, diz Prisco, referin- lher desesperada em abordagem da Polí- sindical – já foi preso quatro vezes, já foi
de tratar a questão. “Ao do-se ao episódio chocante cia Militar.” Prisco reclama: “É todo dia demitido, já foi reintegrado, responde a
contrário de Rui Costa e em que o soldado, na tarde isso. Porrada da imprensa na polícia.” dezenas de processos por desobediên-
Jaques Wagner, ambos vin- do dia 28 de março de 2021, Uma das paredes da recepção está co- cia –, Prisco é contra uma polícia mili-
dos do movimento sindical um domingo, vestindo a berta pelo mural de uma colagem com tarizada. E defende a transformação da
e, vamos dizer, com pautas farda da corporação, arma- noventa fotografias. A figura onipresente pm numa polícia civil uniformizada nos
mais corporativas, Jerôni- do de pistola e fuzil, foi de Prisco aparece segurando bebês, dis- moldes da Polícia Rodoviária Federal,
mo vem do movimento comunitário, do para a região turística do Farol da Barra cursando à frente de passeatas e protestos, com melhores salários e melhor forma-
movimento popular, de onde eu venho e, alternando momentos de lucidez e de- posando com outros policiais, numa es- ção. “A Polícia Militar é anacrônica, re-
também. Então nós temos obrigação mo- lírio, fazia ameaças e disparos para o alto. pécie de amostra de sua militância que, trógrada e ultrapassada”, diz ele. “Não só
ral e ética de ter maior envolvimento Ao atirar na direção de uma viatura do curiosamente, começou no Partido dos na Bahia, no Brasil inteiro. É aquele fa-
com esse tema da segurança pública.” Bope, foi alvejado pelos próprios colegas. Trabalhadores. “Eu sou cria da esquerda”, moso marcha soldado, cabeça de papel,
Advogado, professor e militante histó- Morreu na noite do mesmo dia, no hge. sorri, como se sua origem política refor- se não marchar direito, vai preso pro quar-
rico em defesa dos direitos humanos na Wesley tinha 38 anos, era noivo e estava çasse a virtude de ter feito uma guinada tel. Como que a gente lida com a socie-
Bahia, Felipe Freitas, tido como o prin- na pm havia treze anos. “Ele não ma- radical. Ainda jovem, Prisco migrou do dade civil sendo militar?”
cipal facilitador da interlocução entre o tou ninguém, não feriu ninguém, não fez pt para o pcdob. Depois faria um breve Entretanto, quando o assunto é apu-
governo Jerônimo e as entidades da so- ninguém de refém”, diz Prisco. “O Wes- estágio no Psol antes de dar um cavalo de ração das responsabilidades da letalida-
ciedade civil, diz que tanto ele quanto o ley era refém dele mesmo. Em vez de pau ideológico rumo ao Partido Trabalhis- de policial, volta duas casas atrás para

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defender a corporação e atacar as políti- tem de lidar com sua estatística pessoal que eu senti, quando eu soube da notí-
cas de correição. “O Estado é muito per- de mortes. Quantos já matou? “Dezoito cia, eu nunca mais deixei de sentir.”
verso, com a mão muito pesada contra os a vinte”, diz ele. Não dezoito, não vinte. Ex-evangélica, parou de frequentar os
policiais”, reclama. “Prende-se primeiro Dezoito a vinte. Como se a imprecisão cultos quando um grupo de crentes de sua
para depois julgar e condenar. Combate- da estimativa, confundida com um lap- igreja disse ter recebido um sinal de Deus
se a letalidade policial, mas é o tráfico que so de memória, o protegesse de encarar, de que Davi retornaria para casa depois de
domina, cria regras, executa pessoas, uma a uma, a face das pessoas de carne três dias. Ela passou três dias e três noites
subjuga as comunidades. Outra coisa: fa- e osso que caíram. O sargento diz que se em claro esperando pelo filho. “Na tercei-
lam que a polícia mata negros. Mas tam- sente empurrado para uma guerra em ra noite quem apareceu foi um carro todo
bém são negros que morrem do lado de que o Estado corre o risco de perder a su- preto, com vidro fumê, que ficava passan-
cá, quase a totalidade dos policiais da Ba- perioridade. “Em qualquer esquina de do pelo meu portão, com os ocupantes
hia é de negros. Você quer ver o que essa um bairro dominado pelo tráfico, em Sal- transpirando lá dentro, e eu com medo de
guerra faz com as pessoas?” vador, tem um fuzil. Eu trabalho em um eles invadirem a minha casa. O Davi eu
Prisco abre a porta de seu gabinete. batalhão com um efetivo de duzentos po- espero há mais de nove anos.”
Entra um homem negro de 46 anos, casa- liciais que só tem um fuzil. Quem está Só sentiu algum alívio quando uma
do, dois filhos, morador da periferia de levando vantagem nessa guerra?” amiga de sua filha lhe mandou um re-
Salvador. É um sargento, tem 26 anos Ele se revolta com a decisão do gover- cado: Xangô mandou avisar que Davi
de carreira na pm da Bahia. Está vestido no estadual de instalar câmeras na farda morreu no mesmo dia em que foi se-
à paisana: sapatênis, calça jeans de marca dos policiais militares. “Então coloque- questrado. “Alguma coisa ali entrou na
e camiseta preta colada ao corpo com o mos câmeras no juiz, no promotor, no minha alma, eu sabia que aquilo era
jacaré verde da Lacoste bem grande no médico, no político e em todo e qualquer verdade. Eu chorei muito, muito, mui-
peito. Dispõe-se a dar o seu testemunho funcionário público que teria o seu dia a to. E comecei a ter uma conexão com
de policial, desde que não seja identifica- dia filmado. Porque senão é discrimina- os orixás. Descobri que sou uma mu-
do. É pm por vocação. Define-se como ção. O policial perde sua privacidade. lher de orixá, que tem sido muito gene-
conservador, de direita e eleitor de Bolso- Esse discurso de que a câmera vai prote- roso comigo me fazendo ter forças para
naro. Evangélico, entusiasma-se falando gê-lo é balela.” Ele não se detém diante suportar tudo o que aconteceu.”
do grupo de estudos bíblicos que frequen- do fato de que nem todo e qualquer fun- No dia do desaparecimento do filho,
ta a dois quarteirões de casa. Acredita cionário público trabalha armado. a 49ª Companhia Independente de Po-
que, de certa forma, a profissão de po- Mas Prisco interrompe a entrevista lícia Militar e o Pelotão Especial Tático
licial foi instituída pelo próprio Deus. para reforçar a argumentação do sar- Operacional deram um curso de forma-
“A Bíblia fala que a autoridade é consti- gento com uma metáfora. “Você tá dan- ção para dezenove alunos. Dois sar-
tuída por Deus. E que não é debalde ou do ao policial uma Ferrari sem motor e gentos e dois tenentes ministravam o
em vão que essa autoridade traz sob sua sem gasolina. Atrás daquela câmera treinamento que previa uma atividade
mão a espada. Hoje a época não é mais da tem um ser humano que não tem con- prática de incursão. Parte do grupo saiu
espada, mas de uma arma de fogo. E ela dição de trabalho, que não tem salário, do bairro de São Cristóvão e foi para Vila
é instrumento de Deus para a justiça.” que não tem colete, que não tem arma- Verde, onde Davi, à época com 16 anos,
Apesar da missão nobre, o sargento mento.” Diante do seu associado, Prisco morava com o pai. Uma testemunha viu
se diz exausto e desvalorizado. Está in- garante que a Aspra vai apoiar, inclusive quando quatro homens armados e sem
satisfeito com o salário bruto de menos juridicamente, todos os policiais que, fardamento abordaram e encapuzaram
de 4,5 mil reais. Para complementar a no exercício de suas funções, tiveram o adolescente, amarraram seus pés e suas
renda, faz bico de segurança em super- que matar para se defender. Especial- mãos e depois o colocaram na mala de
mercados, postos de gasolina, escolta mente nos processos em que não há um carro descaracterizado. Outros três
de valores. Sabe que é ilegal e já em- comprovação de autoria. Como exem- homens fardados foram vistos indo ao
preendeu. Montou uma empresa de mo- plo, cita o caso de grande repercussão: encontro deles. Depois de quatro anos
nitoramento de segurança eletrônica. o desaparecimento do adolescente Davi de investigação checando mapas, o gps
É grato à Aspra pela assessoria jurídica Fiúza, em 2014. Parte dos policiais acu- das viaturas envolvidas na operação e os
que o ajuda na defesa dos seus “autos de sados chegou a receber assistência jurí- aparelhos de rádio dos seus comandan-
resistência”, eufemismo para falar sobre dica da Aspra. “Já faz quase dez anos e tes, a Polícia Civil identificou e indiciou
os casos em que matou pessoas durante até agora nada foi provado”, diz. dezessete policiais militares que partici-
uma operação policial. “Já aconteceu param do desaparecimento e da morte

P
de ocorrer uma morte durante o serviço ertinho da sede da Aspra, em outro de Davi Fiúza. “Aí que eu passei a enten-
em um dia. E no dia seguinte o coman- bairro central de Salvador, Rute der o que realmente aconteceu”, diz a
do nos botar em outra operação e ocor- Fiúza se contorce no sofá, esfre- mãe. “Aqueles policiais novos precisa-
rer de novo. Outra morte na sua mão gando os joelhos. “Quando essa gente vam aprender como é que se tortura,
24 horas depois. E tudo o que a polícia fala do meu filho, minhas pernas doem”, mata, aniquila e não deixa rastros.”
faz é te parabenizar, te elogiar, fomen- diz. Fiúza nunca mais viu Davi desde Um mês depois da conclusão do tra-
tar essa produtividade, te cobrar essa que o adolescente foi levado pela polícia balho da Polícia Civil, ela teve uma
produção, mas sem se preocupar mini- no dia 24 de outubro de 2014. Tanto tem- grande decepção. Dos dezessete indi-
mamente com o teu psicológico.” po depois, ela continua sentindo as mes- ciados, o Ministério Público decidiu
O sargento conta que ficou muito mas dores intensas, lancinantes, como se denunciar apenas sete. Mas não por
tempo sem dormir quando o primeiro as pernas fossem transpassadas por uma homicídio, já que o corpo nunca foi en-
morto caiu diante dele numa operação lâmina, cada vez que surge algum fato contrado. A denúncia foi por sequestro
policial. E que nunca mais as noites fo- relacionado ao caso. Devota de Xangô, e cárcere privado. O processo segue em
ram as mesmas. Até hoje acontece de acredita que o orixá a faz sentir essas do- fase de oitivas. “Ouvi de um promotor
acordar em pânico no meio da madruga- res para que ela saiba que o filho foi tor- que Davi estava na hora errada, no lo-
da. Diz que é comum a automedicação turado. Em sua intuição de mãe, está cal errado. Mas como que alguém, per-
entre os policiais para insônia e ansieda- convicta de que os torturadores quebra- to da sua casa para comprar pão, pode
de. Ele não vai ao psiquiatra, mas toma ram as pernas dele. No dia em que foi estar no local errado, meu Deus? Como
um ansiolítico por conta própria, quan- coletar material genético para o banco que ele estava na hora errada às sete da
do não consegue dormir. “Com o tempo de dna da polícia, perguntou ao legista: manhã? Ah, se Davi fosse branco, se
o policial vai se embrutecendo, criando “Se um dia vocês acharem o corpo dele, tivesse os olhos claros, se morasse nes-
uma casca para sobreviver a isso.” vocês vão conseguir me mostrar cada ses lugares chiques onde a polícia não
O embotamento das emoções como lugar onde as pernas foram quebradas? entra sequestrando nem matando nin-
autodefesa fica claro quando o sargento Porque eu tenho certeza. Essas dores guém em hora nenhuma!”

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Para o historiador Dudu Ribeiro, o um dos muitos mecanismos de conten- dade. As propostas preveem verificar as
lamento dolorido de Rute Fiúza traz, ção diante do pânico da nobreza e dos estatísticas dos casos e fazer a revisão
com toda a clareza, em seu agudo luto proprietários de terra com o aumento da técnica dos procedimentos dos policiais
de mãe, o componente de classe e de população negra. Com mais de 1 mi- na rua. O Ministério Público, a Defen-
raça das vítimas da letalidade policial lhão de africanos desembarcando no soria e as entidades da sociedade civil
no Brasil. Na esteira da guerra às drogas Cais do Valongo entre 1758 e 1831, o Rio formularam suas próprias propostas e
empreendida pelo Estado contra o cri- de Janeiro se converteu na maior metró- pressionaram o governo, em vão.
me organizado, mata-se muito e pren- pole escravista do mundo. O crescente O secretário de Justiça Felipe Freitas
de-se muito. São os negros e os pobres descontentamento dos negros com o regi- justifica o veto: “Eu entendo o desejo da
que morrem. São os negros e os pobres que me escravocrata e as revoltas que se acu- sociedade civil de participar mais. E ela
vão para o cárcere. mulavam país afora consolidaram na elite vai participar em outra etapa. Acontece
Um estudo do Instituto de Pesquisa da corte a necessidade de constituir um que tem uma elaboração inicial que
Econômica Aplicada (Ipea), conduzido arcabouço legislativo de controle social. deve ser interna, em diálogo com as for-
pelo pesquisador Alexandre dos Santos No mesmo ano em que o Código Cri- ças policiais. Eu diria mais: é uma obri-
Cunha, analisou mais de 5 mil processos minal do Império entrou em vigor, em gação das forças de segurança darem o
de tráfico de drogas nos tribunais esta- 1830, a Câmara Municipal do Rio de primeiro passo. Elas precisam assinar
duais no primeiro semestre de 2019 e Janeiro criou uma legislação punindo o a primeira versão da proposta para de-
montou o perfil dos encarcerados: jovem “pito do pango”, tornando o Brasil o pri- pois discutir com a sociedade.”
(73,6%), negro (68,7%), baixa escolarida- meiro país do mundo a proibir a comer- O Fórum Brasileiro de Segurança
de (68,4%), preso com pequena quanti- cialização da maconha. O parágrafo 7º da Pública é uma das entidades que partici-
dade de drogas, após ações criminais lei que regulamentava a venda de gê- pa da interlocução com o governo da
rápidas baseadas em “atitude suspeita”. neros e remédios pelos boticários dizia: Bahia, fornecendo dados e apresentando
Apenas 16% dos processos criminais são “É proibida a venda e o uso do pito do sugestões. Para o presidente Renato Sér-
sustentados por investigações prévias. pango, bem como a conservação dele gio de Lima, a pm é sensível ao comando
Para a Iniciativa Negra por uma em casas públicas. Os contraventores e não vai desrespeitar explicitamente
Nova Política sobre Drogas, não há serão multados, a saber: o vendedor em nem o governador, nem os secretários,
como desvincular a questão racial das 20 mil réis, e os escravos e mais pessoas, mas há um risco em curso: “Quando
políticas de segurança pública. “A lógica que dele usarem, em três dias de cadeia.” você tem alguém com a história do Feli-
militarista, baseada na ideia de um ini- O marco zero da guerra às drogas no pe Freitas, pode ser que ele consiga mu-
migo interno, é o que sustenta as ações país já trazia uma clara distinção de clas- danças. Mas há sempre a possibilidade
de um Estado antinegro que vem sendo se. Ao comerciante que vendia o pango, de dizerem a ele que vão fazer, que estão
construído e consolidado através dos sé- invariavelmente um homem branco da planejando, estão licitando, estão fazen-
culos”, diz Ribeiro, referindo-se às raízes incipiente pequena burguesia da corte, a do estudo de viabilidade e irem cozi-
históricas da guerra às drogas no Brasil. punição era pecuniária. Aos negros es- nhando o Felipe até ele se cansar. São
cravizados que o consumiam, a prisão. estruturas muito arraigadas. Vai depen-

N
o clássico O Quilombo dos Palma- Em 2006, 176 anos depois da lei do der muito da persistência de toda a equi-
res, o historiador e etnólogo baia- pito do pango, entrou em vigor a mais pe do governador Jerônimo Rodrigues.”
no Edison Carneiro (1912-72) recente lei antidrogas no Brasil. Concebi- O secretário de Justiça garante que
descreve como os quilombolas faziam o da pelo primeiro governo Lula para, com as câmeras no fardamento dos policiais,
cultivo comunitário e o uso recreativo viés progressista, romper com o punitivis- já com a licitação concluída, estão em
da maconha, ou pango, fumo de Ango- mo e livrar da prisão quem porta entor- fase final de estudos técnicos de im-
la “que dava sonhos maravilhosos” e era pecentes para consumo próprio, a lei plantação. Mas, para ele, existem duas
trazido da África pelos escravizados virou o contrário do que pretendia ser. medidas ainda mais importantes. “O for-
como parte de sua cultura. Intelectual Como não fixa critérios claros para dife- talecimento da Corregedoria-Geral e
negro admirado por Jorge Amado, que renciar uso e tráfico, a decisão fica por das medidas de correição para apurar
o chamava de “feiticeiro” por causa de conta do policial de ocasião. Milhares de e punir as ilegalidades durante as ope-
seu profundo conhecimento sobre as dependentes vão presos como se fossem rações, e o programa Bahia pela Paz,
religiões de matriz africana, Carneiro traficantes. O encarceramento de 2006 que vai remunerar agentes comunitá-
vincula o pito do pango a um valor ritua- para cá mais do que duplicou, chegando rios de cidadania, no estilo dos agentes
lístico de quem foi desterrado à força: a quase 900 mil pessoas e tornando o comunitários de saúde, para apoiar as
E, nos momentos de tristeza, de banzo, Brasil o terceiro país que mais prende no vítimas e fortalecer a comunidade a re-
de saudade da África, os negros tinham ali mundo depois da China e dos Estados sistir”, enumera Felipe Freitas. “O caso
à mão a liamba, de cuja inflorescência re- Unidos. E o cenário pode se agravar. Em da Gamboa é exemplo disso, uma co-
tiravam a maconha, que pitavam por um abril, na contramão da tendência mun- munidade muito unida, que tem meca-
cachimbo de barro montado sobre um lon- dial, o Senado aprovou uma Proposta de nismos de autoproteção e solidariedade
go canudo de taquari atravessando uma Emenda Constitucional (pec), que cri- e que pode ser uma aliada do Estado
cabaça de água onde o fumo esfriava. minaliza a posse e o porte de qualquer contra a violência.”
O Arquivo Histórico do Itamaraty, quantidade de droga. Zanzando pelas vielas da comunida-
colossal acervo com 2,8 mil metros li- “Agimos como se estivéssemos em de exemplo, citada pelo secretário, Sil-
neares de documentos públicos que re- guerra contra substâncias. Mas a guerra vana dos Santos mostra a foto do filho
montam ao Brasil Colônia, robustecido às drogas não é contra substâncias, é con- no celular: “Você acredita que ele fez
por doações de coleções particulares, tra pessoas. E não é contra todas as pes- essas tranças dois dias antes de morrer?
registra relatos da entrada das primeiras soas, só morrem as de determinada classe E ainda perguntou pra mim: ‘Tô bonito,
sementes de maconha. Elas vinham es- e raça”, diz o historiador Dudu Ribeiro. mãinha?’ Eu disse: ‘Tá lindão, meu
condidas dentro de bonecas de pano “E essa lógica é que tem fortalecido as or- amor.’” Ela cruza o barraco abandonado
atadas às tangas dos negros escravizados ganizações criminosas a partir do superen- onde o filho foi morto. Depois para numa
que desembarcaram nas primeiras levas carceramento, do tráfico de armas e do laje e lança o olhar para a Baía de To-
do tráfico negreiro, por volta de 1550. controle territorial. A letalidade policial dos-os-Santos. Lembra da paródia que
Não houve, entretanto, pelos quase na Bahia é subproduto dessa dinâmica.” fez, adaptando um hit da banda de axé
três séculos seguintes, nenhuma restrição Com a explosão da crise da seguran- Cheiro de Amor, e cantarola para o mar
legal ou repressão organizada ao cultivo ça pública na Bahia no ano passado, o de verde intenso: “Voa, voa aviãozinho,
ou ao uso recreativo da maconha nas sen- governo Jerônimo Rodrigues montou vai buscar o meu Leozinho, que tá lá,
zalas ou pelos negros alforriados. A ideia um grupo de trabalho com o objetivo de do lado de lá. Que tá lá, do lado de lá, de
de reprimir o pango só apareceu como formular propostas para mitigar a letali- lá... de lá... de lá...” J

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questões estético-políticas

A SÍNDROME CAETANISTA
O apego à Tropicália e a nossa dificuldade em imaginar um novo Brasil

LUIGI MAZZA

A
cena se passa à noite, sob uma ga comentou, brincando: “Já fui a enterros poder está na mão dos bárbaros, mas nós “orixá vivo”. Disse Gregorio Duvivier, nas
suave luz amarela, que cria mais animados.” A comparação com um temos Caetano. Me pergunto se o próprio redes sociais, depois de gravar um progra-
uma atmosfera de intimidade. velório não era totalmente descabida. Os Caetano não acha isso tudo muito cringe. ma de tevê com Gil: “Não acredito em
Sentadas em cadeiras de vime, convivas exibiam alguma tristeza. Parecia Deus, mas ontem conversei com ele.”

O
na varanda de uma mansão, em um daqueles momentos em filmes de encontro de Brasília não marcou Essa veneração poderia ser tomada
Brasília, pessoas famosas cantam baixinho guerra ou de apocalipse, quando, num res- ninguém, não salvou a Amazônia e como apenas uma demonstração de apre-
os versos de Luz do sol, música de Caeta- piro da história, entre uma e outra tragé- não teve maior importância históri- ço pelo artista, mas isso implicaria ignorar
no Veloso. Quase todas seguram uma dia, os heróis da resistência conseguem ca. Mas aqueles 28 segundos de vídeo si- uma questão política de fundo. Caetano
taça, bebendo o que parece ser vinho. confraternizar e ver beleza na vida. Há nalizam para um fenômeno curioso dos e Gil encarnam uma visão de país que foi
Luz do sol tristeza, mas há resiliência, como se diz. últimos anos: Caetano transcendeu de resgatada e anabolizada pela nossa inte-
Que a folha traga e traduz A cena, no entanto, parecia também um artista para outra coisa. Oráculo, talvez? lectualidade em reação à extrema direita.
Em verde novo culto, em que o objeto cultuado estava Não é culpa dele, que não tem nada a ver Tornaram-se, para muita gente, o rosto do
Em folha, em graça, em vida, presente em carne e osso, na ponta da com o que os outros fazem de sua ima- Brasil da resistência, não tanto pelo que
[em força, em luz. mesa: Caetano, acompanhado de um vio- gem e de sua arte. Também não é algo dizem ou fazem, mas pelo que simboli-
O grupo é composto por atrizes – Le- lonista, cantava a própria música. Rece- universal, unânime entre brasileiros de zam. Contra o Brasil feio e desagradável
ticia Sabatella, Leona Cavalli, Zezé Po- bia olhares de reverência e mantinha as todas as classes sociais. É um sentimento que emergiu em 2016 portando fuzis,
lessa –, músicos – Seu Jorge, Maria mãos cruzadas sobre as pernas cruzadas. que se respira na intelligentsia do país. Bíblias e motosserras, evocou-se a ternura
Gadú, Daniela Mercury – e políticos – a No fim, sorrindo, foi aplaudido. Numa manhã de sábado, quem entrar de um Brasil bonito, tropical, delicado,
deputada federal Sâmia Bomfim (Psol- O vídeo é um prato cheio para quem numa livraria descolada de São Paulo ou plural. Uma imagem reconfortante para
sp), o então deputado Alessandro Molon vê elitismo nas fileiras progressistas da do Rio de Janeiro ouvirá, quase invariavel- tempos desconfortáveis. Daí os elogios
(psb-rj). Alguns fecham os olhos, balan- classe média e do mundo artístico. A me- mente, uma playlist de canções da Tropi- um tanto saturados, que traduzem, em
çam suavemente o corpo, parecem ses de uma das eleições mais importantes cália. Não há nada mais cool. A banda seu exagero, um certo desamparo.
emocionados. Cantam quase sussurran- desde a redemocratização, uma turma Bala Desejo, que se esforça para ser mais Quem vocalizou isso, talvez melhor
do. O momento foi registrado em vídeo meio intelectual, meio de esquerda – na tropicalista que os tropicalistas, com seus do que ninguém, foi o escritor português
pelo jornalista Guilherme Amado horas expressão de Antonio Prata – bebericava looks estrambólicos e câmeras analógi- Valter Hugo Mãe. Em 2019, início do
depois do Ato pela Terra, misto de show vinho numa casa brasiliense, relaxando cas, foi uma das sensações de 2022. Abun- governo Bolsonaro, Hugo Mãe publicou
e protesto organizado por Caetano e sua depois de um dia de árdua militância. Os dam festas, blocos de Carnaval e adereços uma carta aberta endereçada ao colega
mulher, Paula Lavigne, em março de rostos com expressões graves, como se inspirados na Tropicália. Nos petits comi- brasileiro – também escritor – Marcelino
2022. Artistas foram a Brasília denun- estivessem de luto pelo país. tés nas casas de artistas, uma cena fre- Freire. Aquele foi um ano marcado pelo
ciar o desmonte ambiental que vinha Mas o que mais chama atenção é o quente: vestidos de branco, todos cantam pânico da intelectualidade diante do bol-
sendo promovido pelo governo de Jair clima religioso em torno de Caetano. Ele baixinho, ao som de um violão, as mais sonarismo, o que, olhando em retros-
Bolsonaro e pelo presidente da Câmara, é o centro das atenções, o motivo de tudo delicadas composições de Caetano. pecto, produziu algumas manifestações
deputado Arthur Lira. Terminado o pro- aquilo, uma divindade. Seus versos, sus- O músico baiano, hoje com 81 anos, piegas, excessivas na autocomiseração.
testo, se reagruparam na casa do músico surrados numa espécie de transe, mais ganhou ares divinos. “Eu acredito em Na carta, o escritor fez um pedido co-
Orlando Morais e de sua mulher, a atriz parecem uma reza. Seria caricato, mas Deus”, escreveu o humorista João Vicente movido: “Cuide de Chico Buarque e de
Glória Pires. não inimaginável, se um dos convidados de Castro, ao publicar no Instagram uma Caetano Veloso, por favor, em qualquer
Assisti ao vídeo dias depois, no Twitter. lhe beijasse os pés. Todos olham para o foto ao lado de Caetano, seu padrinho. cabeça sã do mundo eles representam o
Achei engraçado e encaminhei para um artista como se esperassem dele uma res- A aura se estende a Gilberto Gil, também Deus possível. Cuide de Maria Bethânia.
grupo de amigos no WhatsApp. Uma ami- posta. O mundo está em frangalhos, o com 81 anos, chamado aqui e acolá de De Sonia Braga. Diga a Davi Kopenawa

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Levantando o estandarte do caetanismo: uma parte da esquerda institucional reluta em tratar o bolsonarismo em termos políticos – o que é um sinal de que continua sem compreendê-lo

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Foi então que o Brasil tropicalista, um surpresa: “I was just getting done with
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dado da natureza sobre o qual já não se my business...” Isto é: eu só estava tocan-


falava, tomou um choque de desfibrila- do a vida, quando tudo veio abaixo.
dor. “Meus hinos nacionais foram com- Vivemos nossas rotinas, de casa para o
postos por tropicalistas, e é a eles que trabalho, do trabalho para casa, observa-
recorro quando preciso reafirmar o amor mos desatentos as pessoas nos supermer-
estremecido por minha terra-mãe”, con- cados, nos ônibus, e raramente pensamos
fessou a atriz e escritora Maria Ribeiro, no país, essa massa amorfa que nos cerca,
em uma coluna publicada na Veja Rio grande demais para ser apreendida. Só
por ocasião do Sete de Setembro de esperamos que ele continue lá, existindo,
2020. Era uma reação à forma como o e que de preferência não nos atrapalhe.
bolsonarismo vinha se apropriando do Apenas seguimos tocando nossas vidas. Ao
Dia da Independência e dos símbolos mesmo tempo, o senso de nacionalidade
patrióticos, sobretudo a bandeira na- é algo muito íntimo. Sem que perceba-
cional. “No meio das estrelas do céu da mos, ajuda a moldar a forma como nos
minha bandeira”, prosseguiu Ribeiro, enxergamos. “Are we green, are we plea-
“estarão para sempre escritos um nome e sant?” (Somos verdes, somos aprazíveis?),
um sobrenome: Caetano Veloso.” pergunta Albarn, referindo-se à autoper-
Cinquenta anos atrás, naquele mesmo cepção da Inglaterra – e de si mesmo. Em
ensaio, Schwarz argumentou que a Tropi- seguida, responde, desiludido: “We’re not
cália dificilmente teria a ressonância que either of those, Father. We’re a shaking
teve, ou a mesma pertinência histórica, se wreck where nothing grows” (Não somos
não fosse o golpe de 1964. A quartelada, nem uma coisa nem outra, Pai. Somos
segundo ele, produziu as contradições que uma ruína completa onde nada cresce).
serviram de matéria-prima para Caetano A autoimagem do país é também a nossa
e Gil. O Brasil, que até então vivia em cli- autoimagem. O luto causado por sua per-
ma pré-revolucionário – com um Partido da é também um luto pessoal.
Comunista forte comandando mobiliza- Por isso entendo Valter Hugo Mãe e
ções no campo e nas cidades, com discus- todos que, como ele, choraram a morte
sões crescentes sobre liberdade sexual –, de uma ideia de Brasil. É genuíno o afe-
e a Ailton Krenak que a floresta vai sem- Esse jogo de contrastes foi bem expli- viu-se de uma hora para outra sequestrado to que sentimos pela abstração que é um
pre amá-los, diga que a arara me garan- cado por Roberto Schwarz. No célebre pelos elementos mais retrógrados da socie- país; pela sensação de compartilharmos
tiu.” Tratava-se de preservar um Brasil ensaio Cultura e política, 1964-1969, o dade. Um show de horrores. “Espetáculo com 200 milhões de pessoas uma expe-
sob risco de extinção. Uma extinção sim- crítico literário escreveu que o projeto es- acabrunhador especialmente para os inte- riência comum na Terra. O tropicalis-
bólica: o Brasil idílico, da beleza, das flo- tético dos tropicalistas consistia na “sub- lectuais, que já tinham se desacostuma- mo traduziu esse sentimento de forma
restas e das araras, estava indo pelo ralo. missão de anacronismos [...] grotescos à do”, observou Schwarz, concluindo que magistral. Tentou dar sentido a um país
O que Hugo Mãe expressa não é nos- primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz esse espanto, essa ressaca política, adu- enorme e difícil de entender. Buscou
talgia, puramente. É uma espécie de branca do ultramoderno, transformando- bou o terreno no qual floresceu, pouco criar uma personalidade para o Brasil
reafirmação terapêutica, como se disses- se o resultado em alegoria do Brasil”. Era tempo depois, a Tropicália. abraçando nossas contradições.
se: “Esse Brasil assustador que vocês o contraste tipicamente brasileiro, ou lati- O que foi o impeachment de Dilma O luto, portanto, é saudável e inevitá-
estão vendo na rua, com militares, mili- no-americano, entre modernidade e sub- e a vitória de Bolsonaro senão um “espe- vel. Depois de um certo ponto, no entan-
cianos e evangélicos intransigentes, não desenvolvimento. O próprio Caetano, táculo acabrunhador especialmente to, vira uma trava. Um muro com o qual
é o Brasil de verdade.” Talvez o vídeo de embora torça o nariz para Schwarz, escre- para os intelectuais” que, depois de trin- nos blindamos do mundo real. O caeta-
Brasília, mais do que um funeral, se as- veu algo parecido no livro Verdade tropi- ta anos vivendo em relativa normalidade nismo – por falta de melhor nome, cha-
semelhasse a uma terapia em grupo. cal, publicado em 1997. Segundo ele, a democrática, “já tinham se desacostu- marei assim esse rebote histórico da
Tropicália queria tratar “ao mesmo tempo mado” com o Brasil arcaico? Tropicália – padece desse mal. Não se

O
utros artistas consagrados, como da revolta visceral contra a abissal desi- trata de um movimento coeso, muito me-

T
Chico, Gal, Bethânia e Milton, gualdade que fende um povo ainda assim alvez esse luto seja comum a outros nos coordenado. É um fenômeno espon-
também são celebrados nas pe- reconhecivelmente uno e encantador, e países que viveram um trauma simi- tâneo, que vai além da figura do artista
quenas reuniões de Brasília, nas festas da fatal e alegre participação na realidade lar. Em 2018, na ressaca do Brexit, o Caetano Veloso e não deve ser confun-
da turma do Projac e nas boas livrarias. cultural urbana universalizante e interna- grupo inglês The Good, The Bad & The dido com ele. Uma tentativa de retornar
Os tropicalistas têm certo protagonismo cional, tudo isso valendo por um desvela- Queen lançou um álbum chamado Mer- a um estágio anterior da história. Se o
talvez porque, sendo representantes de mento do mistério da ilha Brasil”. rie land (Terra feliz), em que tenta acer- tropicalismo inventou uma nova visão
um movimento artístico que pretendeu Essa visão tropicalista do Brasil, em- tar contas com a morte de um ideal de de Brasil, o caetanismo nada mais faz do
reinventar o Brasil, penetraram de for- bora duramente combatida pela esquer- Inglaterra. É o lamento de uma geração que emular essa visão – quase sempre de
ma mais profunda na nossa autoimagem da dos anos 1960, que a considerava que viveu a efervescência cultural dos maneira caricata, hipertrofiada – num
de país. Ou talvez porque se esforcem despolitizada em seus estrangeirismos e anos 1990, a ascensão do Partido Traba- país que, em cinquenta anos, mudou
mesmo para ter esse protagonismo, dia- ambiguidades, acabou vingando. Tor- lhista ao poder e a sensação de que a ilha, tremendamente. O resultado disso é que
logando com as redes sociais, com os nou-se um mainstream cultural, uma mais do que nunca, estava se irmanando paira no ar um incômodo estético.
jornais, com os jovens. lente por meio da qual artistas e intelec- com a Europa e se abrindo para o resto Lembro de ter sentido isso pela primei-
As duas hipóteses não são excludentes, tuais passaram a enxergar o país. Quan- do mundo. Então veio o plebiscito de ra vez em 2017. Naquele ano, fui a um
mas a primeira é mais reveladora. Pode-se do surge a extrema direita, mostrando 2016, veio Boris Johnson, e o sonho cos- festival de música no Rio de Janeiro que
dizer que a Tropicália, se não inventou, que este também é o país da riqueza mopolita evaporou. Sobrou a xenofobia e homenageava o cinquentenário da Tropi-
ao menos sintetizou um senso de brasilida- opressiva, dos pastores, dos empreende- o velho isolacionismo britânico. cália. Vários artistas de veia tropicalista
de que acabou se tornando parte da nossa dores, dos grileiros e dos viúvos da dita- O tom das músicas é lamurioso, pro- iriam se apresentar, como Céu e Pato Fu,
cultura, da forma como nos vemos no dura, esse status quo é posto em xeque. positalmente patético. O líder do grupo, mas eu queria mesmo era ver o show do
mundo. A ideia de que nós, como povo, Não que antes essas figuras não existis- Damon Albarn – mais conhecido por Tom Zé, de quem sou fã. Dilma tinha
somos definidos por nossas contradições: sem, mas de 2016 em diante passaram a seu trabalho no Gorillaz e no Blur –, sido derrubada pelo Congresso fazia um
um país exuberante, mas terrivelmente formar uma maioria vocal e radicalizada, em alguns momentos se dirige ao país, ano e, desde então, Michel Temer, o vice
violento; religioso, mas incorrigivelmente com um projeto político mais ou menos como se falasse com um familiar que conspirador que assumira o poder, era
depravado; moralista, mas corrupto até na bem definido e instrumentos para colo- acaba de morrer – uma morte súbita, alvo de protestos contínuos. Um dos cura-
hora de pagar a padaria. Um país da delí- cá-lo em prática. Inicialmente dispersas, inesperada. “Don’t leave me know” dores do festival, que de vez em quando
cia e do absurdo, ao mesmo tempo triste, elas se encontraram na candidatura vito- (Não me deixe agora), ele repete, agonia- aparecia no palco para animar a plateia,
bonito e cômico. riosa de Jair Bolsonaro, em 2018. do. Depois, lamenta ter sido pego de em dado momento fez um discurso em

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que citava a música Divino maravilhoso, nos anos 1970? As respostas daquela épo- jornal El País publicou no dia seguinte que reluta em tratar o bolsonarismo em
de Caetano e Gil: “Não temos tempo de ca nos servem hoje? Estávamos diante de uma resenha dizendo, entre muitos elo- termos políticos – sinal de que continua
temer a morte!” Te-mer. Ele repetiu a pa- uma quartelada, como em 1964, ou de uma gios, que a live era “um chamado otimis- sem compreendê-lo. As análises sobre a
lavra, lentamente, umas três ou quatros realidade inteiramente nova? ta à resiliência, tingido de melancolia”, extrema direita, tanto na mansão quanto
vezes, para se certificar de que o público Me pergunto se não estamos, ainda e que Caetano nos tinha feito lembrar no Congresso, frequentemente se restrin-
– composto quase todo por brancos de hoje, presos a essa dinâmica. Lula ven- “que ainda existe um Brasil que vale a gem ao campo da moral e da psicologia
classe média e jovens, como eu, na época ceu a eleição, é verdade, mas com a pena”. Um Brasil que vale a pena: frases – não raro, com pitadas de preconceito
com 21 anos – tinha entendido o trocadi- menor margem de votos da história. Há com essa tornaram-se lugar-comum. de classe. Aos olhos da intelligentsia, o
lho. Todos tinham entendido de primei- um elefante terrivelmente silencioso na Quando Caetano completou 80 anos, bolsonarismo é uma sujeira histórica, for-
ra. Aplaudiram, assoviaram, gritaram sala. Se cantarmos Luz do sol suficien- data celebrada com um programa espe- mada por gente desqualificada, militares
“Fora, Temer”, o protocolo completo. temente alto ele vai embora? cial da Globoplay, o cineasta Kleber truculentos, evangélicos estridentes. Não
Senti um constrangimento enorme. É claro que espetáculos artísticos não Mendonça Filho tuitou: “Esse #Espe- é o Brasil de verdade. São pessoas violen-
Meu desconforto era sobretudo políti- são instrumentos revolucionários, mas, cialCaetanoVeloso80Anos me lembra tas, reprimidas e rancorosas com a ascen-
co. Àquela altura do campeonato, agosto quando me deparo com imagens de shows que o Brasil de verdade é muito melhor. são social dos mais pobres.
de 2017, ninguém aguentava mais ouvir recentes de Caetano, sinto o mesmo in- Obrigado.” A turma filmada na mansão, Nada disso é falso, mas nada disso
“Fora, Temer”. Muitos amigos se sentiam cômodo de sete anos atrás. A comunhão em Brasília, certamente pensava estar explica o todo – e não resolve o impas-
como eu, não porque fossem apoiadores entre artista e plateia é integral. Um sabe representando o Brasil de verdade. se político. Como escreveu Vladimir
do emedebista, ao contrário. O incômodo o que esperar do outro. Um grito de “viva A mansão, nesse caso, tem valor sim- Safatle (Os limites do ressentimento,
existia porque aquele script tinha se esgo- a democracia”? Um “ei, Bolsonaro, vai...”? bólico: o Brasil do lado de dentro dos piauí_206, novembro de 2023), esse tipo
tado. Temer já era o presidente mais im- Quando a plateia puxa o coro, Caetano muros é delicado, bonito, fraternal; do de leitura sobre o bolsonarismo talvez
popular da história. O que faltava não sorri. É um afago recíproco, que na ver- lado de fora, é um país estranho, desagra- só sirva “para mascarar nossa impotên-
eram palavras de ordem, mas meios polí- dade esconde um desconforto: nem a dável. Mais do que isso: é incompreensí- cia política real”. O filósofo francês
ticos para tirá-lo do poder – e isso a es- plateia nem o músico sabem o que está vel. Depois de quatro anos de governo Charles Fourier (1772-1837) quis dizer
querda não tinha condições de oferecer. se passando com o Brasil. Bolsonaro, a reação predominante nos algo parecido quando escreveu que a
Era um protesto que servia apenas para círculos intelectuais ainda era a estupefa- moral “é a impotência posta em ação”

Q
sublinhar seu caráter inofensivo. uando completou 78 anos, em ção. O luto transformado em negação. (frase depois resgatada por Marx em
Mas havia também um desconforto agosto de 2020, Caetano fez uma Há nisso um problema político elemen- A Sagrada Família, de 1845).
estético. Aquele jeito de pensar o Brasil live comemorativa ao lado dos tar: se você não entende seu inimigo, Bolsonaro, bem ou mal, conseguiu in-
era velho. A brasilidade tropicalista reina- filhos, tocando clássicos de sua carrei- dificilmente terá condições de derrotá-lo. ventar uma nova forma de o Brasil enxer-
va no festival, atrelada, naquele momento ra. Teceu breves comentários críticos à Estaríamos bem se esse comporta- gar a si mesmo. Um novo imaginário,
de crise, a um fetiche de resistência heroi- gestão de Bolsonaro na pandemia e mento fosse restrito às rodas de gen- uma nova história, que contrasta radical-
ca à ditadura. O curador fez o discurso concluiu que, apesar de tudo, o Brasil te meio intelectual, meio de esquerda. mente com o Brasil caetanista: nessa visão
com o punho em riste. O fato de ele estar seguiria em frente e as coisas eventual- O problema é que essa turma só está, na utópica da direita, somos o país do agro-
fantasiado com trajes ultracoloridos não mente melhorariam. “A gente vai, o Bra- verdade, captando os sinais irradiados negócio pujante, dos empreendedores
ajudava. Essas pessoas pensavam estar sil é o Brasil.” A versão em português do por uma parte da esquerda institucional, vibrantes, dos evangélicos batalhadores.

ATÉ
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Não diríamos coisa parecida de Bacu- estão conosco. Ou, como diria o próprio
ALLAN SIEBER_2024

rau? O filme de Kleber Mendonça Fi- Mendonça Filho, o Brasil de verdade


lho* e Juliano Dornelles foi lançado em ainda está conosco; ainda existe.
2019, momento em que a esquerda esta-

B
va no fundo do poço. Bolsonaro tinha olsonaro não foi reeleito, e há quem
acabado de ser eleito, gozava de popula- veja nisso um retorno desse Brasil
ridade, Lula estava preso, e o pt, atônito. – Valter Hugo Mãe pode comemo-
Ainda assim, as sessões do filme lotavam rar que Chico e Caetano estão vivos e em
e causavam um furor catártico. Era uma alta, assim como Sonia Braga, Bethânia e
alegoria de fácil digestão: os heróis – leia- as araras. Ao tomar posse como ministra
se, a esquerda – davam uma surra nos da Cultura, no começo do ano passado, a
vilões – leia-se, a direita. Era comum que cantora Margareth Menezes celebrou:
a exibição terminasse com gritos de “O Brasil que queremos está de volta.”
“Fora, Bolsonaro”. A esquerda, derrotada São comemorações justas, considerando
no mundo real, lavava a alma no cinema. o quão perto estivemos do abismo. Mas
O enredo do filme contrasta o “Brasil há um notável desânimo por trás da festa.
real” – sertanejo, pobre, solidário – e o Todos sabemos que não há Brasil ne-
Brasil encarnado por uma classe média nhum de volta. Lula segura as pontas de
eugenista, disposta a se aliar com es- uma frente ampla desengonçada e, passa-
trangeiros para cometer um genocídio e do o trauma da intentona golpista, tenta
varrer os nordestinos do mapa. No inte- esfriar a temperatura política do país. Es-
rior de Pernambuco, onde se passa a fria também a própria esquerda.
história, a modernidade high-tech con- É difícil acreditar que o mesmo re-
vive com as marcas do subdesenvolvi- ceituário político e ideológico derrotado
mento (ruas de terra, caminhões-pipa), em 2016 terá sucesso em resolver, hoje,
e os habitantes consomem um misterio- o nosso impasse civilizacional – a saber,
so psicotrópico. Na primeira cena, flu- a “abissal desigualdade” que Caetano
tuamos pela órbita da Terra até que notou sessenta anos atrás. A composição
mergulhamos no Brasil ao som de Não social do Brasil mudou, mas a frente de-
A esquerda taxa o bolsonarismo de retró- ideológica no pt – ou melhor, houve, mas identificado, música de Caetano grava- mocrática que garantiu a vitória de Lula
grado, com razão – o homem reverencia ficou restrita às alas minoritárias do par- da por Gal Costa em 1969. O Brasil tro- não abriu uma brecha pela qual ela pos-
torturadores e conseguiu descredibilizar tido, que não o comandam. O petismo picalista se descortina à nossa frente. sa ser pensada.
até a vacina. Mas sua visão de Brasil, por não propõe hoje um novo caminho para Os heróis do filme, é claro, são os ser- Sem que a política indique novos ca-
mais que doa dizer isso, é, em alguns as- o Brasil. Sua campanha em 2022 foi toda tanejos, personagens românticos, mais minhos, novos protagonistas, uma nova
pectos, modernizadora, no sentido de que pautada pelo passado. “O Brasil feliz de do que políticos. O pobre do semiárido história, a sensação é de que estamos
nos oferece uma autoimagem mais condi- novo.” Lula subiu a rampa do Palácio é o oprimido entre os oprimidos. Cate- num limbo. Há um Brasil a ser inventado
zente com o mundo em que vivemos hoje. do Planalto com o mesmo programa de goria útil para enredos desse tipo, por- politicamente, mas esse processo está em-
O imaginário bolsonarista rasga de vez a vinte anos atrás, adornado com acenos que não comporta complexidades – é o pacado porque ainda não foi apreendido
imagem de um Brasil católico e fraterno, tímidos à pauta da representatividade. pobre original do Brasil, por assim dizer. pela esquerda institucional. Daí o incô-
típica do século passado, e a repõe com O caetanismo parece o sintoma cul- Um povo espontaneamente heroico, modo estético, o desconforto de se depa-
uma visão mais alinhada ao Zeitgeist. Dá tural dessa paralisia política. Uma tenta- situado num universo referen- rar com um vídeo como o de
um banho neopentecostal num país que tiva de restaurar uma visão de país cujas cial católico: o sofrimento o Brasília. Há algo de ridículo na
ainda relutava em aderir espiritualmente condições não existem mais. Para que dignifica, o torna moral- época que vivemos.
ao liberalismo selvagem, ao capitalismo essa operação ideológica seja possível, o mente superior. Diferente, Me perguntei se Caetano
tardio, ao mundo do cada um por si. Brasil que elegeu e quase reelegeu Bol- por exemplo, do brasileiro não acha tudo isso cringe, ele
O tropicalismo, em contraste, toma sonaro precisa ser recalcado, considera- que vive na periferia das que, em suas constantes in-
o subdesenvolvimento como parte da do um erro de percurso, não uma nova grandes cidades, que é terpretações do Brasil, talvez
identidade nacional. Vejo um quê de realidade. Precisa ser tratado como per- evangélico, se identifica seja mais moderno e mais
caetanismo em memes que fazem su- versão moral, alucinação coletiva, nunca como empreendedor, come atual do que a própria esquer-
cesso nas redes sociais, em páginas de como um problema sociopolítico. Inver- o pão que o diabo amassou, da. Mas a verdade é que prova-
humor como O Brasil Que Deu Certo, tendo a frase de Mendonça Filho: preci- trabalha doze horas por dia mon- velmente não. Em seu último
onde se retratam cenas daquilo que se sa ser tratado como o Brasil de mentira. tado numa bicicleta fazendo entregas álbum, Meu coco, lançado em 2021, o
costuma chamar “Brasil profundo”. São para o iFood, mas talvez tenha votado compositor foi claro nas ideias. Disse que

E
engraçadas e exóticas para o público m outro trecho de seu ensaio, Rober- em Bolsonaro. não vai deixar que se desminta/ a nossa
jovem das metrópoles, mas não para os to Schwarz relata como parte da es- É curioso que, naquele mesmo ano, gana, nossa fama de bacana/O nosso dra-
envolvidos. Esse misto de amor e fina querda também descambou para o tenha sido lançado Parasita, do sul-corea- ma, nossa pinta. É um trecho da música
ironia (ou de simpatia e desgosto, como moralismo depois de 1964, e cita como no Bong Joon Ho. Os dois filmes tratam Não vou deixar, composta durante a pan-
escreveu Schwarz) compõe o espírito exemplo a peça Arena conta Zumbi. En- mais ou menos da mesma coisa, mas são demia, recado claro ao bolsonarismo. (É
tropicalista. Nisso o tropicalismo – e, cenada no Teatro de Arena, em São Pau- bichos totalmente diferentes. Como bem sintomático, aliás, que a letra se construa
por tabela, o caetanismo – transparece lo, ela fez grande sucesso, em parte devido observou um amigo meu, em Parasita o a partir de uma negação, e não de uma
um certo caráter de classe: o Brasil pro- a seu apelo político. A trama equiparava a povo não é heroico como em Bacurau. afirmação. Considerando tudo o que
fundo só é bonito e exótico para quem luta de libertação dos negros escravizados Pelo contrário, é forçado a ser cretino aconteceu no Brasil nos últimos anos, a
não faz parte dele. no século xvii com a luta contra a ditadu- para sobreviver no capitalismo – e mes- música, concebida como um grito de re-
A esquerda, desde 2016, tem sido in- ra. Dois momentos separados por duzen- mo assim não consegue. Bacurau é mo- sistência, acaba ganhando um tom de
capaz de propor um novo imaginário tos anos de história e incomparáveis sob ralista; Parasita é político. Nele, não há teimosia desolada, como quem lamenta
para o país. O pt assumiu o governo em quase todos os ângulos. Mas isso não im- final feliz, nem redenção. O inimigo é ou nega a morte de alguém – afinal, nos-
2003 com um projeto reformista conser- portava: “Apagam-se as distinções históri- um sistema complexo e impessoal. sa pinta e nossa fama de bacana já ti-
vador de amparo aos mais pobres, apos- cas”, escreveu Schwarz, “e valoriza-se a Bacurau é a grande obra do caetanis- nham ido para o espaço.)
tou na conciliação de classes, confiou na inevitável banalidade do lugar-comum: mo. Enquanto a barbárie comia solta do Ao Brasil que habita o lado de fora da
existência de uma burguesia desenvolvi- o direito dos oprimidos, a crueldade dos lado de fora, o espectador saía do cine- mansão, dominado por vilões de Bacurau
mentista interessada nessa agenda, foi opressores.” O Bem contra o Mal. Alijada ma reconfortado: ufa, os pobres ainda e “obscurantistas” lunáticos, os caetanistas
traído por essa burguesia e terminou da vida política, “a esquerda derrotada cantam, com taças na mão: Apesar de você
* O cineasta Kleber Mendonça Filho é coordenador e
apeado do poder. E, a despeito disso, não triunfava sem crítica, numa sala repleta, curador de cinema do IMS, cujo conselho é presidido
dizer que acabou/ Que o sonho não tem
tirou lições da derrota. Não houve revisão como se a derrota não fosse um defeito”. pelo fundador da piauí. mais cor/ Eu grito e repito: Eu não vou. J

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diário do geraldo

THIS AIN’T PINDA


CACO GALHARDO_2024

Renováveis e da Redução de Impactos visitar e gravamos um vídeo disruptivo


Tarifários, me peguei pensando numa em que elaboramos questões centrais
expressão para substituir a palavra para um assunto que está pululando nas
neoindustrialização. É como dizem mentes juvenis. Tive a oportunidade de
os mais jovens: Tabata alugou um tri­ dizer algumas palavras que chegarão ao
plex na minha cabeça. coração do Brasil. “Davi, parabéns por
ter vencido o BBB e por ter levado a ques­
10 DE ABRIL_Abertura do evento cana tão da educação através da televisão.”
summit às oito da matina! Hoje o dia Já com as câmeras desligadas, Tabata
promete. Vaqueiro Geraldo #VidaLoka­ me falou. “economia é legal, mas ain­
ModeOn. Se eu chamar urubu de meu da não chegamos lá.”
louro antes do almoço, a culpa é da
agenda. Ainda bem que o dia de hoje 18 DE ABRIL_É com muito orgulho que
termina com a posse da nova diretoria divulgo o lançamento do livro ABC dos
da Associação Brasileira de Planos de coelhinhos, escrito e ilustrado pela multi­
Saúde. Se eu precisar de atendimento, talentosa Libelu. Mandei uma sugestão
alguém deve saber o que fazer. Venha­ de texto: “ABC dos coelhinhos é um livro
mos e convenhamos, essa pessoa que diferente de tudo o que você já viu até hoje
faz minha agenda é do balacobaco. na literatura brasileira, felizmente cada
vez mais em rede mundial para o Brasil
1º DE ABRIL_Tabata Amaral me mostrou sei escandir as sílabas toda vez que pro­ 11 DE ABRIL_Amanhã é dia de celebrar inteiro.” No fundo, fiquei feliz de ela não
Cowboy Carter, o novo disco da Beyoncé. nuncio essa palavra como um professor com o President’Lula o maior investimen­ ter escolhido tucanos como personagens.
Achei prafrentex! Queen B desconstrói, de cursinho pré­vestibular. to automotivo da história do Brasil: 125 bi.
ressignifica e atualiza os símbolos mais De tarde, recebi um áudio da Tabata. Enquanto calçava meias com carrinhos 21 DE ABRIL_Enquanto Bolsonaro vai pa­
conservadores dos Estados Unidos. É de “Vaqueiro Geraldo, ‘neoindustrialização’ coloridos, pensei que será a oportunidade ra Copacabana, o President’Lula vai
cair os butiá dos bolsos! Resolvi fazer o não dá. Não cabe num TikTok e tem o ideal para testar alternativas à “neoindus­ para Cannes. Geraldo, com certeza, tem
mesmo por aqui. Peguei uma viola caipi- charme de um guichê do Detran.” Será? trialização”. Mandei um WhatsApp pra suas fontes em Cannes para saber disso
ra e me transformei em Vaqueiro Geral- Tabata: “Que tal economia?” com antecedência. Só espero que o dire­
do. Montei num alazão, empunhei a 6 DE ABRIL_Tô falando. Eu pressinto as tor Oliver Stone tenha a delicadeza de
bandeira de Pindamonhangaba e, a galo- coisas. Sou mesmo um hipster ao contrá­ 12 DE ABRIL_A Gleisi postou uma foto me convidar para a sessão.
pe, cantei minha versão de Texas hold’em. rio. Mês passado, notei que a esquerda saiu no Twitter (eu não consigo chamar aqui­ A primeira noite de autógrafos do li­
Vim de Pinda (woo) de moda depois que aderi ao comunismo. lo de X) com a bandeira comunista na vro da Libelu em São Paulo foi um ter­
Para o mundo (hey) Agora, foi só eu acertar a mão no Twitter Muralha da China. E escreveu: “Sem­ mômetro para medir o meu prestígio
E sou vice da nação, ção, ção que o negócio começa a degringolar... pre é um prazer visitar essa terra tão com o pessoal da repartição. Estiveram
Agro é pop próspera, que nos últimos quarenta anos presentes Simone Tebet, Tabata Amaral
Agro é tudo 7 DE ABRIL_Mais uma prova de que mostrou ao mundo um modelo de de­ e Alexandre de Moraes. Ninguém do
Mas é preciso ter um olhar acurado perdi o bonde da história: achei que o senvolvimento com inclusão de seu Comintern petista deu as caras. Eu já
para a neoindustrialização, ção, ção Santos seria campeão paulista. povo!” Todos os meus instintos sociali­ sabia! Vamos aos fatos: ninguém me
Eufórica, Libelu veio atrás numa zantes deram um nó. Seria um gesto re­ apresenta para o Chico Buarque, nin­
charrete puxada por dois pôneis e berrou: 8 DE ABRIL _Vim emprestar um pouco volucionário usar a rede do Elon Musk guém me dá ingressos para a turnê de
Yodel-Ay-Ee-Oooo, Yodel-Ay-Ee-Oooo. do meu carisma para Nísia Trindade, para elogiar a relação entre patrões e Caetano e Bethânia, ninguém me con­
ministra da Saúde. Ela me convidou empregados na China e ainda envelopar vidou pro aniversário do Mano Brown
2 DE ABRIL_Nas minhas pesquisas so- para a cerimônia de lançamento da tudo isso com uma bandeira comunista? amanhã. Não sou bem­vindo ao clube.
bre as interseções entre as culturas ame- nova plataforma de patentes médicas. Talvez seja um sinal para fazer como
ricana e brasileira descobri que chuchu Sugeri que a gente abrisse o evento can­ 13 DE ABRIL_Passei o sábado dando entre­ a Beyoncé. Está mais do que na hora de
em inglês é chayote. tando II most wanted. Deu supercerto o vista para o PodK Liberados, o podcast do desconstruir, ressignificar e atualizar a
dueto da Beyoncé com a Miley Cyrus e senador Jorge Kajuru. Fiquei abismado esquerda brasileira.
3 DE ABRIL_Confesso que às vezes não a música fala de parceria, de amizade. com a maneira como o senador abriu a
acredito que ainda sou ministro do De- I’ll be your shotgun rider till the day I die/ entrevista. Disse que era “um talk show 22 DE ABRIL_Não esperava que o
senvolvimento, Indústria, Comércio e Smoke out the window, flyin’ down the 405. diferente de tudo o que você já viu até hoje President’Lula dissesse em público que
Serviços. É tanta coisa na cabeça que Mas o tom da Nísia é muito alto na televisão brasileira, felizmente cada vez preciso ser mais ágil. Mais um balde de
fico confuso. Essa postagem, por exem- para mim. mais em rede mundial para o Brasil intei­ água fria. Se quisesse um vice lépido,
plo, fundiu minha cuca: “O #mdic insta­ ro”. Tive uma epifania: é esse espírito ven­ não escalava um anestesista. Fiquei sem
la, nesta quarta (3/4), o grupo de trabalho 9 DE ABRIL_Assisti, ao vivo, à partici­ dedor que o President’Lula está buscando. saber o que fazer. Na dúvida, comecei a
que irá elaborar o Plano Clima Adapta­ pação da camarada Gleisi Hoffmann no Se o Kajuru consegue embalar um sim­ ouvir os áudios de WhatsApp na veloci­
ção – Setorial Indústria, documento com vii Seminário Teórico entre o Partido ples podcast desse jeito, imagina o que dade dobrada. E comprei mais café.
soluções para minimizar os impactos das Comunista da China e o Partido dos Tra­ faria com o Minha Casa Minha Vida.
mudanças climáticas no setor indus­ balhadores realizado em Pequim. Houve 23 DE ABRIL_Como sou um pintalegre­
trial.” Não seria mais prudente inverter uma deliberação para definir como seria 15 DE ABRIL_Minha reunião com o te easy going, postei o Papa­léguas para
e minimizar os impactos do setor indus­ a transmissão. Venceu a ala do partido President’Lula e o ceo do Mercado Li­ amenizar essa coisa da agilidade. Pou­
trial nas mudanças climáticas? Olha, tô que defendeu a força revolucionária da vre no Brasil serviu para lembrar que ca gente entendeu a mensagem oculta:
mais por fora que umbigo de vedete. qualidade de imagem. A transmissão, preciso comprar um novo filtro para a o Papa­léguas sempre vence o Coiote
portanto, aconteceu no Instagram do ca­ cafeteira lá de casa. Coió. Recado dado.
4 DE ABRIL_Para anunciar o aumento marada da comitiva que tinha o modelo A mensagem surtiu efeito. Pro lança­
da produção automobilística, usei mi­ mais recente de iPhone. 17 DE ABRIL_Aproveitei exatamente o mento do ABC dos coelhinhos em Bra­
nha marca registrada: a palavra neoin­ De tarde, na cerimônia de assinatu­ momento que sou presidentão em exer­ sília, enviaram a Janja. Sinal de prestígio
dustrialização. Eu adoro mostrar que ra da Medida Provisória das Energias cício para receber a Tabata. Ela veio me ou uma reviravolta? Veremos. J

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humor

CRIA CORVOS E ELES TE


ARRANCARÃO OS OLHOS
O relato dramático de uma ave sobre a derrocada do seu antigo império social

PASSARINHO DO TWITTER, em depoimento a


AFONSO CAPPELLARO e ROBERTO KAZ

D
esapega, é o que eles dizem. da da empresa, enquanto um guindaste Madagascar, Maldivas, o topo das mon- também tão lá na rede). Aquele general
Desapega que passa. Vai curtir colocava uma gigantesca letra X no lu- tanhas do Nepal, eu podia ir pra onde brasileiro, por exemplo, o Villas Bôas.
um fim de semana em Ibiza, gar. “X?!”, eu pensei, indignado. X de quisesse. O céu não era o limite. Um que comandava o Exército quando
Mônaco, Liechtenstein. Vai pra Xuxa? De xvideos? Que nome era esse? Porque eu vou ser sincero aqui: eu o stf ia julgar um habeas corpus para li-
Costa Rica fazer birdwatching. Sim, eu tinha claro, na cabeça, que tinha uma admiração pelo cara. Ele bertar o Lula, seis anos atrás. Foi em
Desapega, esquece isso, curte o sabático. não era possível esperar nada daquele pode me odiar por ter largado 44 bi- mim que ele confiou pra ameaçar o país
Eu tento, mas não dá. O que me frustra sujeito. A negociação, quando ele com- lhões de dólares na minha asa, mas sei com um golpe: “Asseguro à nação que o
é saber como todo o processo aconteceu. prou a empresa, foi absurdamente con- que ele me admirava também. Coisa de Exército Brasileiro julga compartilhar
Primeiro foi o fato de me chutar pra turbada. Primeiro ele falou que pagava, identificação. Ele gostava do Trump, e o anseio de todos os cidadãos de bem de
rua compulsoriamente. Não teve aviso depois mudou de ideia, acusou a gente eu deixei o Trump convocar o pessoal repúdio à impunidade e de respeito à
prévio, foi de um dia pro outro. Acordei de má-fé, não apresentou prova de nada, pra invadir o Capitólio. Ele gostava do Constituição, à paz social e à democra-
cedo, comi minha tigelinha de alpiste, e avisou que não pagava mais. Aí já viu, Bolsonaro, e eu deixava o Bolsonaro cia, bem como se mantém atento às suas
saí da gaiola, fui trabalhar. Dia normal. né? As ações caíram, e eu fui pra Justiça falar que a urna eletrônica tinha sido missões institucionais.” Bonito, né?
Chegando na empresa, dei o mesmo pra lutar pelos meus direitos e exigir fraudada (ou perguntar o que era gol- Quer ver outro? O Trump, quando
bom-dia para as mesmas pessoas de uma indenização de 1 bilhão de dólares den shower; essa ainda me impressiona). ele escreveu STOP THE COUNT!, durante a
sempre. Mas aí meu crachá não passa- pela quebra do contrato. A gente se divertia lendo aqueles tex- apuração das eleições. Não foi na Fox
va. O reconhecimento facial não fun- Aí ele mudou de ideia rapidinho e tos do Bannon, do Allan dos Santos, do News que ele confiou pra atacar a de-
cionava. Nem o meu piado o sensor da voltou a falar que pagava. No fim das Tucker Carlson, do falecido Olavo mocracia americana, não. Foi no passa-
catraca reconhecia mais. contas depositou os 44 bilhões de dóla- (nunca entendi direito essa caveirinha, rinho aqui. E olha, pra quem me acusa
“Mete o pé. Agora é X, irmão”, ele res que eu pedi – bem mais do que os deve ser uma homenagem que os hu- de só dar moral pra extremista, quero
disse, quando me viu. Eu esbocei um 23 bilhões que o Zuckerberg pagou pelo manos fazem, então também faço). lembrar que eu ajudei a derrubar muito
sorriso acanhado, achando que era pia- Instagram e WhatsApp juntos! Eu achei A verdade é que eu fui protagonista de ditador na Primavera Árabe (pena que
dinha, molecagem de bilionário – ele que era o fim dessa história. Ele levaria muita coisa bonita nesses últimos anos. naquela época a gente ainda não tava
sempre fica meio alterado quando exage- adiante o meu legado de chorume vir- Quer dizer, vamos ser humildes aqui: eu listado na Bolsa de Nova York).
ra na noite. Mas não: olhei pro lado, e já tual, enquanto eu passaria o resto da vida amplifiquei a voz de muito protagonista O Twitter tinha essa coisa elegante:
tinha um caminhão levando embora fazendo voo migratório e me hospedan- (pessoal dos direitos humanos gosta desse com um post de 280 letras (no começo
uma estátua minha, que ficava na facha- do em árvores cinco estrelas. Patagônia, conceito de amplificar, eu sei porque eles eram 140!) você já fazia um estrago.

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BENNET_2024
Nem precisava de minuta de golpe. Mas 80% do pessoal. Ficou tudo mais violen- documento contra o Judiciário do Bra- empreendedora, aproveito para lançar
aí esse sujeito foi lá e aumentou o limite to. Agora só dá vídeo de ave atropelada, sil no Congresso dos Estados Unidos. meu novo projeto, que está decolando.
de caracteres pra qualquer um que quei- ave tomando tiro de chumbinho, ave Aí foi um pega pra capar. De um lado Andei conversando recentemente
ra pagar. Depois fez a mesma coisa com com asa quebrada e ave batendo a cara ele sendo fichado em investigação do com o colega Garibaldo. Aquele da te-
o selinho de verificação: pagou, levou. em janela de vidro. Deve ser por isso que stf, do outro o pessoal de verde e ama- levisão, um grandalhão, amarelo, que
Aí não dá. Antigamente tinha uma or- o valor da empresa chegou a cair pela relo chamando ele de patriota (só lem- fazia o Vila Sésamo. Nos encontramos
dem: você sabia a importância de quem metade desde que ele assumiu o negócio. brando que o cara é sul-africano, mora em um camarote do show do Paul Mc-
tava falando. Agora gente como o padre O algoritmo também deu uma pio- nos Estados Unidos e gosta mesmo é de Cartney no exato momento em que ele
Fábio de Melo tem selo verificado en- rada. Outro dia apareceu pra mim o Marte). Acho que no fim das contas, ele tocava Blackbird, mágico! Pintou uma
quanto homens públicos, como o Padre perfil de um tal pato_terraplanis- conseguiu o que queria: enterrou o Pro- sinergia, surgiu um business plan. Esta-
Kelmon, não. Um caos. ta_213231. Humano tudo bem, mas jeto de Lei das Fake News, que visava mos lançando a joint venture Mascotter,
Nesses últimos meses eu andava de pato? O cara migra de um polo ao outro regulamentar as redes sociais no Brasil, uma agência só de mascote aposentado,
bico calado por obrigação contratual – e e depois vem meter papo de que a Ter- atiçou a claque extremista (“Faz o Elon”, verificados de verdade. Pensa na quan-
admito que eu estava gostando, aprovei- ra é plana? O que vem depois? Gaivota o pessoal anda dizendo), e justificou, de tidade de bichos carismáticos que a
tando pra viajar. Um dia eu assistia à com- defensora de plataforma de petróleo? alguma forma, os 44 bilhões de dólares. humanidade usou e depois largou no
petição de curió no Brasil, aí no outro já Pinguim falando que não tem derreti- O gasto nunca foi em comunicação. ostracismo: Topo Gigio, Ursão da Co-
ia pro Catar ver disputa de gavião, de lá mento das calotas? (Aliás, queria fazer Foi em lobby político mesmo. ca-Cola, Salsichinha da Cofap, Txutxu-
tocava pro Canadá pra observar pato mi- um agradecimento especial, pelo espa- O Twitter não era um mar de rosas, cão, Dengue e Praga (nota mental: o
grando, aí voltava pro Brasil pra ver arari- ço fornecido aqui, ao pinguim que di- eu sei. Mas existe uma diferença entre Dengue precisa de um rebranding ur-
nha-azul no sertão (que cor, amigos, a rige esta revista.) atacar a democracia com míssil To- gente), Flipper, Rin Tin Tin, Lassie e
penugem da ave brasileira, que cor!). Agora, pra piorar, o cara inventou de mahawk e lançar uma bomba nuclear aquele outro que também latia grosso,
Eu até tentei tapar os olhos, mas a fazer política. Recebeu a visita do Milei (sim, só um deles rende Oscar, mas eu e hoje em dia ninguém sabe onde foi
cada dia chegava um pombo-correio (aquele que parece uma cacatua), ata- estava falando de maneira mais metafó- parar, o General Heleno.
com um recadinho novo de como as cou o Alexandre de Moraes (o que só rica mesmo). Este texto, portanto, é o Pensei até em anunciar no X, mas
coisas andavam por lá. A mediação de se veste de preto que nem graúna) e se mínimo que posso fazer para defender lembrei que não tenho mais selo verifi-
conteúdo, por exemplo. Se já era difícil articulou com um deputado do Partido o meu legado – e as ações da empresa cado. Passarinho que come tuíte sabe o
antes, imagina depois que o cara demitiu Republicano para soltar um monte de que eu ainda tenho. Mas como toda ave cu que tem. J

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anais dos papers

A CIÊNCIA RECALCULA SUA ROTA


Pesquisadores lutam por um sistema de publicação mais aberto e menos excludente

CLARICE CUDISCHEVITCH E KLEBER NEVES*

E
ra véspera de Ano-Novo quan- expressas pelo editor e pelos revisores.” jargão em inglês com que os cientistas no Brasil. “O filé mignon da floresta”,
do a bióloga Vanessa Stagge- E explicou: “Aceitamos a maioria dos co- se referem aos artigos técnicos. diz a cientista. Ali, Staggemeier fez o
meier perdeu a paciência. mentários, e as alterações sugeridas estão Staggemeier é professora na Universi- que poucos pesquisadores fazem por
Fazia um ano que ela tentava incorporadas na versão recentemente dade Federal do Rio Grande do Norte ser muito trabalhoso: durante 24 meses,
publicar seu artigo científico revisada. Contudo, em alguns tópicos a (ufrn). Estuda a interação entre plantas e ela contou – literalmente – quantos fru-
em alguma revista especializada. Ten- opinião do último revisor incluído foi animais que consomem frutas. Nas flores- tos verdes e maduros cada árvore dava
tou a primeira, depois a segunda, então contraditória à opinião dos revisores an- tas tropicais, a maioria das espécies vege- naquele trecho de floresta. A cientista
a terceira e, agora, vinha lidando com teriores. Nesses casos optamos por seguir tais depende de animais para espalhar teve a ajuda de um mateiro que conhe-
uma quarta, a Biotropica, uma publica- o consenso da maioria e respeitar as su- suas sementes, mas não se sabe exatamen- cia bem o local e estudava biologia.
ção tradicional na área de ecologia e gestões anteriores; explicamos nossas te como isso acontece. Por exemplo: como A bióloga passava muitas horas na
conservação tropical. No último dia de decisões nesta carta.” uma ave toma a decisão de comer um floresta, com um binóculo em uma
2015, Staggemeier tinha acabado de es- A batalha só acabou oito meses mais fruto pequeno ou grande, com muitas ou mão e um contador na outra, olhando
crever 28 páginas em resposta aos ques- tarde, quando a Biotropica finalmente poucas sementes, amarelo ou vermelho? para as copas das árvores e computando
tionamentos do editor da Biotropica. publicou o artigo na edição de agosto A cientista concluiu seu doutorado seus frutos. Tudo em meio a mosquitos,
Estava confusa. Com tantas revisões – de 2016, depois de outras tantas idas e em ecologia e evolução em 2014, pela carrapatos, chuva e calor, que embaça-
cinco, no total –, Staggemeier e suas vindas no processo conhecido como Universidade Federal de Goiás, mas va o binóculo e exigia de tempos em
duas colegas que também assinavam o “revisão por pares”, nome que se dá começou o trabalho que queria publi- tempos que a cientista parasse para
artigo já estavam perdidas entre as di- à avaliação de um trabalho científico car muito antes, ainda na iniciação limpá-lo e recomeçasse a contagem. Na
versas versões do texto. As respostas das feita por outros especialistas da área. científica. Em 2005, quando estava na etapa seguinte, ela calculava quanta
três autoras aos revisores somaram, no O artigo levou quase dois anos para ser graduação em biologia na Universidade biomassa havia na polpa desses frutos.
total, 87 páginas. Eram mais extensas publicado. Nele, Staggemeier e suas Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fi- Isso implica levá-los para o laboratório,
que o próprio artigo. colegas, Eliana Cazetta e Leonor Mo- lho (Unesp), ela ajudava nas pesquisas medi-los, pesá-los e despolpá-los, antes
Em tom de frustração, Staggemeier rellato, discorrem sobre o papel da de campo de doutorandos que estuda- de proceder a uma nova pesagem e me-
anexou uma carta às 28 páginas e escre- interação entre plantas e animais na vam as diferentes fases do crescimento dição. Em seguida, ela registrava num
veu: “Junto com esta carta, você encontra- dispersão de sementes na Mata Atlânti- e desenvolvimento das plantas. computador os números obtidos nessas
rá nossas respostas a todas as preocupações ca. “Eu poderia ter escrito pelo menos O terreno era a Ilha do Cardoso, re- operações, que mais tarde dariam ori-
dois outros papers com todas as respos- gião de mais de 13 mil hectares no lito- gem a tabelas e gráficos.
* Os autores trabalham no Instituto Serrapilheira,
tas que dei nas revisões ao longo desses ral Sul de São Paulo que integra a Com todos esses dados em mãos, Stag-
criado pelo fundador da piauí. dois anos”, lamenta a bióloga, usando o maior área de Mata Atlântica contínua gemeier e suas colegas mostraram que as

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TOM GAULD_2018
palmeiras e mirtáceas – família que abri- Staggemeier nunca tinha tido um esse tempo foi importante para melho- a qual os especialistas separam resulta-
ga muitas árvores frutíferas comuns em artigo rejeitado por seus pares até então. rar o trabalho, e reflete a meta da revis- dos legítimos daqueles que não devem
pomares e quintais, como goiabeira, jabu- “Acho que esgotei meu estoque de ne- ta de promover a pesquisa de jovens ser publicados. O processo funciona da
ticabeira e pitangueira – são fundamen- gativas com esse paper”, brinca. Al- cientistas (Staggemeier tinha 30 anos seguinte forma: cientistas escrevem um
tais para sustentar a fauna da Mata guém menos persistente, ou menos quando submeteu a primeira versão de texto que resume e analisa sua pesquisa
Atlântica. As palmeiras fornecem frutos convencido da importância do seu tra- seu artigo). Por fim, o editor deu a en- e submetem o artigo a uma revista cien-
em grande quantidade e muito ricos em balho, talvez tivesse desistido. Ao resu- tender que o longo prazo até a publica- tífica. Se considerar o trabalho pertinen-
lipídios, que atraem mais de quarenta es- mir sua experiência com a revisão por ção não teve maiores prejuízos para a te, o editor encaminha o texto para dois
pécies de aves. Já as mirtáceas dão frutos pares, esse mecanismo considerado um ciência. “Na ecologia, estamos contan- ou três cientistas independentes, espe-
em períodos nos quais a mata está mais controle de qualidade da ciência, a bió- do bichos que comem plantas, e não cializados no tema do artigo – são os
pobre, sem outras espécies frutificando. loga afirma: “Recebi críticas que me curando o câncer. Não tem problema “pares” que vão atuar como revisores.
“Eu me senti confiante de que meu ajudaram a melhorar o artigo, mas tam- demorar um ou dois meses a mais.” Os revisores externos, cuja identida-
paper trazia uma contribuição bem ba- bém aprendi o quanto a revisão por pa- de em geral não é revelada aos autores,

O
cana e original. Então, estava determi- res pode ser arbitrária.” s artigos científicos são a forma com leem o trabalho e dão um parecer crí-
nada a publicá-lo”, conta Staggemeier. “O paper precisou de várias revisões que os pesquisadores compartilham tico. Podem recomendar a publicação
Na primeira tentativa, submeteu o ma- porque as alterações feitas pelas autoras o resultado de suas investigações. ou a rejeição do artigo. Porém, se ava-
nuscrito a uma revista tradicional de ainda não atendiam o que tinha sido pe- Muitas vezes os dados são apresentados liarem que a redação está confusa, que
sua área e ouviu dos editores que ele era dido pelos pareceristas”, explica o ecólogo antes em congressos ou simpósios, mas só os dados não sustentam a conclusão do
“muito cheio de história natural”. Que- mexicano Emilio Bruna, professor da ficam registrados na literatura técnica e artigo ou que as referências citadas não
riam dizer que se tratava de um estudo Universidade da Flórida, que foi o in- passam a integrar a bagagem coletiva da são as mais apropriadas, sugerem ajus-
mais preocupado em caracterizar os terlocutor de Staggemeier na Biotropica. ciência quando são publicados numa re- tes que podem incluir a realização de
padrões das espécies em detalhes e a “E, embora todos elogiassem e reconhe- vista especializada. Os artigos são o prin- mais experimentos ou a incorporação
forma como ocorrem na natureza, e cessem o valor dos dados, faltava um ‘pé cipal fruto do trabalho de um cientista. de novas referências ao trabalho. Nesse
menos focado em análises estatísticas. no chão’ teórico. As hipóteses não esta- Quando alguém fala em “produção cien- caso, os autores respondem aos parece-
Na segunda revista, acharam o trabalho vam bem contextualizadas até a terceira tífica”, costuma se referir ao número de res e preparam uma nova versão do
“excessivamente descritivo”. Na tercei- revisão.” Bruna é fluente em português e artigos que um cientista publicou. texto, e os revisores voltam a avaliá-lo.
ra, o artigo “tomou outro pau, com pa- um estudioso da Amazônia e do Cerrado. Uma etapa central desse processo é a A decisão final é do editor. Se o artigo
receres mais duros”, diz a cientista. Até Ele reconhece que o processo de revisão por pares. É a avaliação da per- for recusado, os autores podem reco-
que chegou à Biotropica. Staggemeier foi longo, mas acha que tinência de um estudo, a chancela com meçar o processo em outra revista.

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triagem da boa ciência. Mas é crescente cimento de um dado tipo de célula can-
ALLAN SIEBER_2024

o número de cientistas que argumenta cerígena. A cada versão do artigo, ele


que esse filtro não acontece na prática. trocava a molécula, a espécie de líquen
“A revisão por pares funciona muito e o tipo de célula tumoral (um programa
mal”, afirma Olavo Amaral, professor da de computador e um banco de dados o
Universidade Federal do Rio de Janeiro ajudaram a montar as diferentes ver-
(ufrj) e estudioso da confiabilidade dos sões). Para criar autores e instituições
resultados científicos. fictícias, Bohannon combinou aleato-
Uma evidência indireta disso veio riamente nomes, sobrenomes, palavras
num estudo publicado na revista eLife institucionais e capitais africanas. O jor-
em 2021. O estudo repetiu experimen- nalista achou – e aparentemente estava
tos descritos em 23 artigos que estão certo – que cientistas de países em de-
entre os mais citados na área de biologia senvolvimento despertariam menos sus-
do câncer entre 2010 e 2012, e só conse- peitas caso algum editor não encontrasse
guiu replicar 46% dos resultados apon- informações sobre eles online.
tados nos artigos. Um artigo informava, Os artigos diziam comprovar a hipó-
por exemplo, que determinada substân- tese de que a molécula testada era um
cia havia se mostrado eficaz para tratar poderoso inibidor do crescimento das
câncer em um grupo de camundongos, células de câncer, além de aumentar a
mas, quando os pesquisadores repeti- sensibilidade delas à radioterapia. Os
ram o teste, não obtiveram o mesmo problemas do trabalho inventado eram
efeito. “Ou seja, uma grande parte dos diversos. O erro mais grosseiro aparecia
artigos revisados por pares, mesmo aque- logo no primeiro gráfico: a legenda afir-
les publicados em revistas de renome, mava apresentar um efeito “dependen-
apresentam resultados que outros pesqui- te da dose” no crescimento celular, mas
sadores não conseguem replicar”, diz os dados mostravam justamente o con-
Amaral. “Isso nos faz questionar até que trário, que o efeito independia da dose.
ponto esses dados estão certos.” Bohannon fez menção específica a esse
Amaral é uma das principais vozes do erro no ensaio que escreveu na Science
movimento em defesa da ciência aberta revelando os bastidores da pegadinha.
O sistema de publicação e validação 2021 calculou que, no ano anterior, re- no Brasil. O princípio é que o conheci- De fato, na revisão por pares típica
científica, no entanto, nem sempre fun- visores no mundo todo trabalharam mento científico, um bem universal, não se costuma checar os dados, os pro-
cionou assim. Desde a primeira revista mais de 100 milhões de horas, o equi- deve ser acessível, verificável e reutilizá- tocolos, os códigos, nem replicar os ex-
científica, a Philosophical Transactions valente a cerca de 15 mil anos (estima- vel, produzido e validado de forma cole- perimentos para saber se eles foram
of the Royal Society, lançada na Ingla- se que um cientista gaste em torno de tiva, facilitando as colaborações e o feitos corretamente ou se são reprodutí-
terra em 1665 e publicada até hoje, a cinco horas para escrever um parecer compartilhamento de informações em veis. Na maior parte das vezes, os autores
decisão de aceitar ou rejeitar um artigo de revisão e que faça entre quatro e cin- benefício da ciência e da socieda- sequer disponibilizam esse conteú-
era exclusiva dos editores, eles próprios co revisões por ano). Se esse tempo fos- de. Por isso, o movimento de- do. A revisão consiste em ava-
também cientistas. Em geral, não con- se dinheiro, só no caso de revisores fende não só o acesso livre e liar como os resultados são
sultavam pareceristas externos. O siste- baseados nos Estados Unidos, valeria gratuito às publicações cien- apresentados, se os métodos
ma durou séculos. Em 1905, quando o mais de 1,5 bilhão de dólares. Desse tíficas, mas também aos usados de fato se prestam a
físico Albert Einstein publicou seus valor, as editoras científicas não desem- dados, métodos e etapas sustentar as alegações dos
quatro mais famosos artigos na revista bolsaram um único centavo, já que a intermediárias dos estudos. autores, se os resultados
alemã Annalen der Physik, nenhum de- revisão é feita de forma voluntária. “Temos várias evidências justificam a conclusão, se
les foi formalmente revisado por pares. E não falta dinheiro às editoras. A ho- de que fraudes, erros inten- há limitações no formato
(A lista inclui a proposta da teoria da landesa Elsevier – uma das chamadas cionais e artigos sem sentido do estudo e se o trabalho
relatividade restrita, o trabalho que “cinco grandes”, que juntas dominam o passam por revisores e aca- relatado traz alguma novi-
apresenta a famosa equação E = mc2 e mercado da publicação científica – lu- bam publicados. Que filtro dade para um problema
a descoberta do efeito fotoelétrico, que crou mais de 1 bilhão de libras em 2022 é esse que a revisão por pares está fazendo relevante. Não é pouca coisa, mas, como
lhe renderia o Nobel em 1922.) (mais de 6 bilhões de reais) e obteve que não nos permite confiar no material já se provou, não é o suficiente.
Na verdade, um artigo de Einstein, uma margem de lucro de 37,8%. (As publicado?”, questiona Amaral. Não por

E
apenas um, passou pela revisão de pares outras gigantes do ramo são a anglo- acaso, pipocaram nos últimos anos pega- stá cada vez mais difícil encontrar
como é feita hoje. Trata-se de um artigo germânica Springer Nature, a britânica dinhas criadas para expor as fragilidades pesquisadores dispostos a traba-
sobre ondas gravitacionais, inicialmente Taylor & Francis e as americanas Wiley do sistema. Eram artigos de araque propo- lhar de forma voluntária no siste-
submetido à Physical Review, em 1936. e Sage.) É uma margem e tanto. Para sitalmente ruins e sem fundamento, que ma de revisão por pares. A bióloga
O físico, no entanto, não gostou de saber comparar, a Petrobras, que registrou o foram aceitos por revistas científicas su- Cecilia Andreazzi está sentindo essa
que o editor havia enviado seu trabalho maior percentual entre todas as petro- postamente sérias. carência na pele. Ela pesquisa a intera-
para revisores externos e preferiu publi- leiras do mundo, chegou a um lucro da Um exemplo famoso é o experimento ção entre espécies e doenças infeccio-
car o artigo em outro periódico, o Jour- ordem de 27,3% em 2022. Editar artigo feito pelo jornalista John Bohannon, da sas na Fiocruz e, além disso, atua como
nal of the Franklin Institute, que não científico vale mais que petróleo. revista Science. Em 2013, ele submeteu editora de dois periódicos de ecologia,
submeteu o texto a outros pareceristas. É em razão de tudo isso – da concen- centenas de artigos falsos a 304 perió- o Perspectives in Ecology and Conserva-
A revisão por pares nos moldes atuais tração de editoras, do monopólio sobre o dicos. Os artigos descreviam as pro- tion e o Functional Ecology. Seu traba-
só se tornou comum nos anos 1970, mercado científico, dos valores bilioná- priedades anticâncer de uma substância lho consiste em fazer a triagem dos
quando o volume de publicações cres- rios, da arbitrariedade da revisão dos pares extraída do líquen. Eram assinados por artigos recebidos e buscar colegas que
ceu tanto que os editores não conse- – que surgiu e começa a se fortalecer um nomes inventados, como Ocorrafoo Co- possam revisá-los. “Muitas vezes demo-
guiam mais tomar as decisões sozinhos. movimento chamado “ciência aberta”. bange. Os “trabalhos” continham erros ro meses até conseguir revisores dispo-
A Nature, uma das revistas de maior graves facilmente identificáveis por níveis”, conta Andreazzi. “Já aconteceu

O
prestígio no mundo, fundada no século movimento pela ciência aberta é qualquer revisor experiente, mas foram de eu ter que devolver o artigo para os
xix, só passou a ter revisão por pares em composto por pesquisadores que aceitos por 60% das revistas. autores porque não consegui encontrar
1967. Hoje, esse processo é uma engre- defendem formas mais transparen- No trote, o jornalista escreveu cente- ninguém para revisar.”
nagem fundamental na máquina da tes – e menos custosas – de divulgar pes- nas de artigos parecidos que seguiam o Andreazzi não é remunerada por seu
produção de conhecimento científico. quisa. Longo e trabalhoso, o processo de mesmo padrão. Cada um alegava que trabalho como editora. Seu voluntaria-
Um estudo publicado na revista Re- revisão feito por essas editoras poderia se uma determinada molécula produzida do destina-se a cooperar com o sistema
search Integrity and Peer Review em justificar pelo rigor, que garantiria uma por certa espécie de líquen inibia o cres- e, ao mesmo tempo, turbinar seu currí-

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culo. Ela recebe uns oito artigos por car artigos abertos para todos, mas im- para acessar, surgiu um debate sobre des- Apesar de tudo, o Brasil é um país na
ano para cada uma das revistas. A ava- puseram uma condição draconiana: o locar os recursos destinados aos contratos vanguarda do acesso aberto por causa
liação de cada um deles demanda entre autor do artigo tem que pagar para pu- com editoras para usá-los no pagamento da Scielo (Scientific Electronic Libra-
duas e dez horas de trabalho. Para con- blicá-lo. E não é pouco. Hoje, quem das taxas de publicação. ry Online). Lançada em 1998, a biblio-
seguir no mínimo dois revisores, ela quiser publicar um artigo aberto em O problema é que a conta não fecha: teca digital, mantida com verba pública,
costuma convidar pelo menos oito pes- quase qualquer revista do grupo Natu- enquanto o orçamento do Portal de Pe- reúne a maioria das revistas científicas
soas, já que a maioria não aceita, ale- re Portfolio – que inclui a prestigiosa riódicos da Capes é de cerca de 100 mi- brasileiras e disponibiliza seu conteúdo
gando falta de tempo ou outros motivos. Nature – precisa desembolsar 12 290 dó- lhões de dólares por ano, a projeção de integral gratuitamente. Considerado
Ao trabalhar como editora e ver por lares para custear uma taxa de processa- custo feita pela agência para o pagamen- um modelo internacional, está presente
dentro como funciona o sistema de pu- mento do artigo. São cerca de 60 mil reais, to de taxas de publicação dos artigos hoje em dezesseis países, com mais de
blicação científica, Andreazzi perdeu a o equivalente a mais de um ano e meio brasileiros em um único ano chega a 1,6 mil periódicos ativos, e é especial-
confiança no processo. “As pessoas não de bolsa de doutorado da Coordena- mais de 200 milhões de dólares. “Esta- mente forte na América Latina.
têm tempo para revisar um artigo; os edi- ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de mos fazendo vários exercícios de análise Um terço das revistas reunidas na
tores não têm tempo para se dedicar, e os Nível Superior (Capes), a agência públi- e construindo cenários para ter uma vi- plataforma Scielo cobra taxas de publi-
que acabam sendo mais aceitos são os arti- ca que financia a maior parte das bolsas são dos custos e trabalhar no desenho de cação a um custo médio de 300 dólares.
gos escritos por cientistas de renome.” de pós-graduação no Brasil. uma política sustentável”, informou a “É um valor baixo, mais perto do custo
Nesse cenário de editores atribula- O modelo de publicação de artigo agência em e-mail enviado à piauí. real, e muito usado para a tradução dos
dos e pareceristas desmotivados, não fechado – acessível mediante pagamen- Existe, ainda, a preocupação de que manuscritos [para o inglês]”, explica
surpreendem os tumultos crassos. A bió- to, ou por assinatura – ainda existe. o alto custo exclua países mais pobres Abel Packer, um de seus fundadores.
loga Ayla Sant’Ana, pesquisadora do Na própria Nature, paga-se desde 1,95 dó- do sistema de publicação. Um estudo Mas o Scielo não vai resolver o proble-
Instituto Nacional de Tecnologia, certa lar por artigo disponível por 48 horas a de 2021, publicado na revista Quantita- ma, porque a maioria das revistas reu-
vez se espantou com o artigo que uma 39,95 dólares pelo acesso permanente, tive Science Studies, mostrou que os nidas ali não atrai muito interesse dos
revista lhe enviou para revisão. O estu- enquanto os assinantes, que desembol- autores dos artigos divulgados em perió- cientistas estrangeiros – e, com isso,
do comparava o desempenho de três sam 199 dólares por ano, podem ler tudo dicos que cobravam taxas de publica- acabam sendo menos atraentes para os
enzimas na síntese de um tipo de açú- a qualquer hora. Mas, desde 2021, ne- ção tinham uma diversidade geográfica brasileiros. “Eu quero publicar ao lado
car, mas o problema era outro: ela pró- nhum trabalho financiado pelo consór- muito menor. Nas revistas que não co- dos meus pares”, diz Kowaltowski, da
pria era a autora do estudo e havia cio europeu pode ser lido nesse modelo bravam taxas, o primeiro autor de 10,4% usp. “O ser humano é assim: vai achar
submetido o artigo à apreciação da re- na Nature. Aos poucos, outras institui- dos artigos era um pesquisador da Amé- que o trabalho não é tão bom se sair em
vista havia quatro dias. Sant’Ana expli- ções de pesquisa e outros financiadores rica Latina, contra 3,7% no caso das revistas locais.”
cou que era uma das autoras e não estão adotando a mesma exigência: que- revistas que cobram taxa. O estudo foi A maioria dos cientistas almeja publi-
podia revisar o trabalho. “Um mês de- rem que os trabalhos que bancam sejam liderado por Emilio Bruna, o editor do car na Nature ou em outras revistas do
pois, recebi novamente um convite divulgados em revistas de acesso livre. artigo de Vanessa Staggemeier que é, mesmo grupo. Uma parte da reputação
para revisar o artigo. Avisei mais uma Na prática, o cientista está sendo forçado ele próprio, um entusiasta das questões da revista decorre do suposto rigor no
vez o editor, que se desculpou e disse a desembolsar um valor significativo de ciência aberta e de como elas afe- processo de revisão e do seu alto fator de
que estava com dificuldades de achar para publicar seu trabalho. tam a América Latina. impacto, calculado com base no núme-
revisores.” Em seguida, outra coautora “Eu acho a barreira para publicar pior
do trabalho foi convidada para revisar o do que a barreira para ler”, afirma a mé-
mesmo trabalho. Também negou. dica e professora Alicia Kowaltowski, da
Três meses depois da submissão, Sant’- Universidade de São Paulo (usp), que Ministério da Cultura e Governo do Estado de São Paulo, por meio da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas apresentam

Ana recebeu a notícia de que seu artigo trabalha como pesquisadora na área de
fora rejeitado. A revista alegava que o metabolismo energético. “Para ler, a
trabalho era mais adequado para publi- gente sempre deu um jeito. Pede o arti- VISITE O MUSEU DA LÍNGUA PORTUGUESA!
cação em um periódico de microbiolo- go para o autor, que é a forma legal, ou Venha curtir uma experiência inesquecível sobre o nosso idioma.
gia, o que lhe pareceu um disparate. usa o Sci-Hub, que é a forma ilegal.”
“Isso mostra que nem leram. Na época Criado pela programadora cazaque
tive pela primeira vez a sensação de que Alexandra Elbakyan, o Sci-Hub é uma
o processo não era tão sério e que de- plataforma pirata que disponibiliza gra-
pende da sorte o seu artigo cair na mão tuitamente milhões de artigos científi-
de um editor engajado que consiga re- cos de acesso restrito.
visores comprometidos”, diz Sant’Ana. Estima-se que, entre 2015 e 2018,
O artigo acabou publicado no mesmo com a disseminação da estratégia das
ano na revista Biotechnology Letters. editoras de cobrar pela publicação, au-
tores no mundo todo gastaram mais

O
movimento pela ciência aberta de 1 bilhão de dólares nas tais taxas de
ganhou novo impulso nos últimos processamento dos artigos. Em um pa-
cinco anos depois que um consór- ralelo com o jornalismo, é como se um
cio europeu de agências de fomento à repórter tivesse que pagar para publicar
ciência, conhecido pelo nome cOAli- uma reportagem na piauí. “Na prática,
tion S, determinou o que parecia ser esse modelo está diminuindo a inclu-
uma boa notícia: os trabalhos científicos são no mundo das publicações”, alerta Terça a domingo | 9h às 18h
financiados pelas agências do consórcio, Kowaltowski. “As revistas que não co- (última entrada às 16h30)
todos eles, tinham que ser publicados bram para publicar estão sumindo, e Crianças até 7 anos não pagam
www.museudalinguaportuguesa.org.br
em revistas que promovessem o acesso colegas do exterior com quem publica-
aberto e gratuito para qualquer pessoa. mos têm pressionado pelo acesso aber-
A determinação começou a valer a par- to. E, sem publicar, as pessoas nem Museu da Língua Portuguesa | Temporada 2024
tir de 2021. A ideia parecia premiar a sabem que você existe.”
democratização da ciência, mas, na prá- Acessar artigos fechados não era um Patrocínio Máster

tica, ocorreu o contrário. obstáculo para pesquisadores brasileiros,


Até então, os artigos científicos eram graças ao Portal de Periódicos da Capes,
fechados. Quem quisesse lê-los nas que tem contratos com as principais edi- Patrocínio Apoio Parceria de Mídia

plataformas das editoras científicas de- toras internacionais para disponibilizar


veria pagar uma taxa. Atendendo à exi- seus conteúdos às instituições de pesqui-
gência do cOAlition S, no entanto, sa do país. Mas agora, quando se paga Gestão Patrocínio Máster Concepção e Implantação Realização

algumas plataformas passaram a publi- cada vez mais para publicar e menos Reconstrução

piauí_maio 39
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Confiante, o cientista submeteu o minha revista ou direcionando para ou-
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artigo à Nature Medicine. Pouco depois, tra.” O objetivo, diz Monteiro, é que no
recebeu a negativa de um dos editores, final do processo o artigo publicado seja
explicando por que eles sequer manda- mais sólido e reprodutível do que quan-
riam o trabalho para a avaliação dos do chegou. “Mas não é um processo
pareceristas. Ele informou por e-mail perfeito. Quem critica a revisão por pa-
que os resultados do grupo brasileiro não res sempre vai encontrar aquele exem-
traziam um avanço clínico suficiente plo que deu errado.”
para atrair leitores da Nature Medicine. Os críticos da revisão por pares tam-
O cientista contra-argumentou. Alegou bém denunciam a falta de transparência
que ainda não havia nenhum estudo de todo o processo. As discussões entre
sobre aquele assunto na literatura cien- autores, pareceristas e editores geralmen-
tífica, ainda mais com imagens de res- te não se tornam públicas, embora pudes-
sonância. Não adiantou. Em resposta, sem ser proveitosas para outros cientistas.
João Monteiro, que já era editor-chefe Na contramão dessa tendência, a
da Nature Medicine na época, reiterou Nature Communications começou em
que o artigo não seria reconsiderado e que 2016 a oferecer aos autores a opção de
“seria mais produtivo” se ele enviasse o divulgar todos os pareceres dos reviso-
trabalho para outra revista. res e suas respostas a eles. Cerca de 60%
Martins-de-Souza submeteu o estu- dos autores escolheram a revisão aberta.
do a outras sete revistas conceituadas, Em 2022, a revista – que cobre ciências
sem sucesso. “Mesmo com revisões po- naturais, sociais, aplicadas, matemática
sitivas, os editores denegavam”, diz. e engenharias – adotou esse modelo
“Só passamos a ter chance depois que para todos os artigos que publica.
um grupo da Universidade Yale publi-

E
cou um trabalho muito parecido com mbora o processo de revisão por pa-
o nosso.” Liderado pela imunologista res seja caro, ineficiente, pouco trans-
Akiko Iwasaki, o artigo de Yale saiu no parente e enviesado, a carreira dos
Journal of Experimental Medicine em cientistas continua orientada em função
janeiro de 2021. Por meio de experi- das publicações, e muitos deles conti-
ro de vezes que os artigos publicados ali A Nature Medicine recebe de 4 mil a mentos com organoides cerebrais e ca- nuam empenhados em emplacar seus
são citados em outros trabalhos. É da 5 mil artigos por ano. Todos passam por mundongos e de autópsias em pacientes trabalhos nas revistas de alto impacto.
Nature, por exemplo, o famoso paper de Monteiro, mas o processo envolve uma que morreram de Covid, o grupo trou- Por que, no fim das contas, os pesquisa-
1953 que descreveu a estrutura em du- extensa cadeia de atores. Na primeira xe evidências de que o coronavírus de dores querem tanto publicar na Nature?
pla-hélice do dna (que, aliás, está em triagem editorial, eles avaliam o nível fato era capaz de invadir as células ce- A resposta talvez soe óbvia. Os cien-
acesso fechado no site). de avanço científico e implicações mé- rebrais. Foi tido como o pioneiro em tistas são recompensados pelo número
“É caro, sim, mas as pessoas têm dicas relevantes do trabalho, consideran- apresentar esses resultados. de publicações, mas também pelo
uma visão muito simplificada do que do a audiência diversificada da revista, Já o paper brasileiro só foi publicado prestígio da revista em que saem seus
acontece em uma revista como a mi- que abrange todas as áreas da medicina. um ano e sete meses mais tarde, em artigos. Quanto maior o fator de im-
nha”, afirma João Monteiro, brasileiro De 15% a 18% vão para revisão. De 5% agosto de 2022, já na nona tentativa. pacto, melhor. A recompensa pode ser
radicado nos Estados Unidos e editor- a 7% são publicados. Saiu na revista Pnas, os prestigiosos uma promoção, um financiamento
chefe da Nature Medicine, cujo fator de anais da Academia Nacional de Ciên- para a pesquisa, algumas bolsas para

E
impacto, de 82,9, está entre os dez mais m outubro de 2020, o Brasil já cias dos Estados Unidos. “Para mim, técnicos de laboratório ou alunos de
altos do mundo. Monteiro explica que passava da marca de 150 mil mor- isso mostra que o estudo ser 100% do mestrado e doutorado. Também va-
o custo banca uma vasta cadeia de pro- tos por Covid quando Daniel Brasil influencia na aprovação”, lamen- lem pontos que podem resultar numa
fissionais envolvidos na curadoria dos Martins-de-Souza, professor e pesqui- ta o biólogo, que afirma que, em seus aprovação num concurso público ou
artigos, na busca por revisores e em ou- sador da Universidade de Campinas estágios de pós-doutorado no Instituto num processo seletivo.
tras etapas do processo editorial. “Não (Unicamp), enfrentou a peneira da Na- Max Planck, na Alemanha, e na Uni- “O pessoal da literatura não acha
é simplesmente decidir em uma hora se ture Medicine. Em tempos normais, o versidade de Cambridge, na Inglaterra, que um livro é bom só por ter saído na
vamos publicar o paper ou não”, diz. biólogo trabalha com bioquímica de nunca teve seus artigos barrados. “Não Companhia das Letras, mas na ciên-
“Tem um monte de coisas construídas proteínas investigando como transtor- tenho dúvidas de que, se eu estivesse cia tem essa coisa de que a publicação
naquele artigo que ninguém vê.” nos psiquiátricos, como a esquizofre- num centro grande da Europa ou dos vale por si”, aponta Olavo Amaral, da
Monteiro está na Nature Medicine nia, se manifestam em escala molecular Estados Unidos, nosso artigo teria sido ufrj. “Se você precisa publicar na Na-
desde dezembro de 2017, mas é editor no cérebro. Mas, no auge da pandemia, aceito de primeira. Eles ainda não en- ture para obter um cargo permanente
profissional há onze anos. Antes, ele ele mudou a rota de sua pesquisa para tendem que somos capazes de fazer ciên- na universidade, você não está pagando
pesquisava o sistema de defesa do corpo tentar entender aquele novo vírus e aju- cia de boa qualidade.” só pela publicação. Por isso, acho que
humano. Médico formado pela ufrj dar a combatê-lo. João Monteiro nega que a Nature Me- temos que começar o controle de qua-
com doutorado em imunologia pela Liderou um estudo envolvendo 88 pes- dicine faça uma avaliação enviesada dos lidade da ciência e seu sistema de ava-
mesma universidade, Monteiro investi- quisadores brasileiros, concluindo que, trabalhos com base no país ou institui- liação do zero.”
gava por que pessoas que desenvolvem além dos efeitos conhecidos no sistema ção de origem dos cientistas. “Quando No Brasil, a lógica que valoriza
doenças autoimunes têm manifestações respiratório e em outras partes do corpo me perguntam quem tem mais chance mais os periódicos internacionais de
clínicas tão diferentes entre si, e por humano, o coronavírus também era ca- de publicar na Nature Medicine, se al- grande prestígio está embutida no Qua-
que algumas doenças atacam órgãos paz de infectar o cérebro. Para isso, ana- guém de Harvard ou de uma instituição lis, sistema da Capes que ranqueia as
específicos do corpo. lisaram desde imagens de ressonância do Brasil, a resposta é sempre a mesma: revistas de acordo com o seu fator de
Em 2013, quando fazia um pós-dou- magnética de pacientes internados até a gente olha a pesquisa, os dados, a ro- impacto e outras métricas. A avaliação
torado nos Estados Unidos, Monteiro se cérebros de pessoas que morreram de bustez. Não importa quem é o autor.” da produção científica dos programas
tornou editor de imunologia da Cell, Covid, além de conduzirem testes O editor não comenta casos específi- de pós-graduação está atrelada às revis-
uma renomada revista na área de biolo- comportamentais em humanos e expe- cos de artigos aprovados ou rejeitados, tas em que foram publicados os arti-
gia experimental. Autor de doze artigos rimentos in vitro para comprovar o mas diz que existe uma subjetividade ao gos de seus pesquisadores. Na prática,
científicos em revistas de nicho como a que observaram in vivo. “Fomos um se avaliar se um dado é robusto ou não. a competência de um cientista é medi-
European Journal of Immunology, ele dos primeiros grupos no mundo, se não “Meu trabalho não é rejeitar paper. É aju- da quase exclusivamente pela revista
abandonou de vez a bancada quando o primeiro, a demonstrar que de fato o dar as pessoas a publicarem seus trabalhos na qual ele publica.
assumiu o cargo de editor-chefe, incon- Sars-CoV-2 chegava ao cérebro”, conta o mais rápido possível e consumindo o O ranking de revistas elaborado pela
ciliável com a pesquisa. Martins-de-Souza. mínimo de recursos, seja por meio da Capes acaba sendo usado também em

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concursos e outras avaliações, embora feita no período 2017-2020, passou a dar sidade de Michigan. Os pesquisadores Cientistas da física, matemática e
não tenha sido originalmente elabora- mais atenção ao que os próprios progra- fizeram o sequenciamento genético de ciência da computação adotam os
do com essa finalidade. Na lista do mas definiram como suas produções mais de setecentas espécies de mirtá- preprints há bastante tempo. Nessas dis-
Qualis, alvo de intensas críticas da co- de maior destaque ou impacto social. ceas, o grupo de árvores estudadas por ciplinas, os pesquisadores estão habi-
munidade científica, revistas interna- “O deslocamento para uma abordagem Staggemeier. Depois de coletar os espé- tuados a tornar seus resultados públicos
cionais tendem a ter mais peso que os mais qualitativa dispensou, em muitas cimes em campo, os cientistas colocaram no arXiv, um repositório criado em
títulos nacionais. Naturalmente, isso áreas, avaliar a produção em sua totali- suas folhas em sílica para desidratá-las 1991 que já tem mais de 2 milhões de
deixa os pesquisadores brasileiros re- dade, diminuindo o foco/crítica a uma rapidamente e, assim, preservar seu artigos (nenhum deles com revisão for-
féns das grandes editoras e diminui a avaliação ‘produtivista’. Com isso, o dna. A partir daí, fizeram o sequencia- mal). O estudo de 2017 que apresentou
importância da Scielo – embora a pró- Qualis, apesar de ainda ser utilizado, mento em laboratório e reconstruíram a base de redes neurais por trás do Chat-
pria Capes seja uma de suas financia- tem hoje um papel menor na avalia- seu parentesco. gpt, por exemplo, foi publicado no arXiv.
doras e tenha reservado 15 milhões de ção”, informou a Capes, por e-mail. O estudo traz uma “árvore genealó- Em especialidades como a astronomia
reais para a manutenção de suas ativi- Para o professor de estudos sociais gica” inédita das mirtáceas, tanto por e a física de partículas, a maioria dos
dades entre 2024 e 2026. da ciência Ludo Waltman, pesquisador sua extensão quanto por sua diversida- artigos que saem nos periódicos foi pos-
Uma das premissas do Qualis é indu- na Universidade de Leiden, na Holan- de, e deverá ajudar outros ecólogos que tada antes como preprint.
zir a internacionalização da produção da, é preciso modernizar a forma como trabalham no tema. “Até uns vinte anos Já nas ciências biomédicas, os pre-
científica brasileira. Mas se tornou uma se avalia a produção científica. “Medir atrás, as mirtáceas eram o pesadelo dos prints ganharam popularidade princi-
pedra no sapato dos cientistas. “O pes- o desempenho de um cientista não pre- taxonomistas”, diz Staggemeier. “Havia palmente durante a pandemia de Covid,
quisador hoje trabalha para conseguir cisa ser baseado no que foi revisado por poucos especialistas e estudos na literatu- quando a velocidade na disseminação
emplacar seus artigos onde vai conse- pares, mas na sua contribuição global ra para a gente conseguir diferenciá-las. dos achados científicos era fundamen-
guir mais pontos, e não para comunicar para além dos artigos – no avanço da Em pesquisas sobre a flora brasileira, tal para se combater o vírus e evitar
sua pesquisa”, afirma Abel Packer. Para ciência, no que ele proveu à socieda- era comum esta ser a família com mais mais mortes. Nos primeiros dez meses
ele, seria mais produtivo que as avalia- de”, afirma Waltman. “Uma avaliação espécies não identificadas.” da pandemia, 10 232 preprints relaciona-
ções considerassem também o desem- holística é mais eficiente e mais impor- Para divulgar os resultados da pesqui- dos ao coronavírus foram publicados
penho das pesquisas dois ou três anos tante do que um selo.” sa, Staggemeier e seus colegas decidiram nos repositórios bioRxiv e medRxiv.
depois de publicadas, levando em conta não enviá-los de imediato para a avalia- O número é 131 vezes maior que a

E
o número de citações que receberam, m outubro de 2023, sete anos de- ção de uma revista especializada. Antes quantidade de artigos publicados du-
por exemplo. Mas Packer reconhece pois da batalha para publicar os disso, publicaram o artigo numa platafor- rante a epidemia anterior, de zika, em
que essa métrica teria dificuldade para resultados de sua pesquisa de ma online, a bioRxiv, que reúne artigos 2015 e 2016.
avaliar algumas áreas do conhecimento doutorado, Vanessa Staggemeier ado- que ainda não foram revistos pelos pares O preprint é apontado por seus entu-
em que os trabalhos levam mais tempo tou um caminho diferente para divul- – chamados pelos cientistas de preprints. siastas como uma das principais soluções
para acumular citações, como a mate- gar os resultados de um novo estudo. Em paralelo, a pesquisadora submeteu o para tornar a ciência mais aberta. Isso
mática e a ciência da computação. Nesse trabalho, ela liderou uma equi- estudo para publicação na revista Ameri- porque os artigos ficam disponíveis gra-
A Capes explica que a última avalia- pe de 24 cientistas, em parceria com a can Journal of Botany. O artigo já foi acei- tuitamente para todos, sem cobrança de
ção dos programas de pós-graduação, ecóloga Thais Vasconcelos, da Univer- to e está em fase final de edição. taxas para os leitores e sem o pagamento

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são coletiva e aberta. Ainda assim, para capitalista em que ela é muito desigual.
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que qualquer revisão seja eficiente, é “As editoras provavelmente vão buscar
fundamental que, junto com os artigos, modos de reinventar o próprio lucro”,
os autores compartilhem também os afirma. “Revistas de prestígio podem
dados, códigos e protocolos por trás dos lançar seus próprios repositórios de pre-
resultados, facilitando a checagem. print e cobrar por isso, por exemplo.”
“Para mim esse é o modelo perfeito, Campos é a favor de uma avaliação
altamente implementável com o que te- colaborativa da ciência inspirada no
mos agora”, destaca Alicia Kowaltowski. modelo de edição dos verbetes da Wiki-
“Os repositórios de preprints são grátis, pédia. “Qualquer um pode escrever um
você pode comentar os trabalhos que artigo, há moderadores por área e uma
estão ali, e o mercado editorial já aceita. comunidade gigantesca de avaliadores.
Então você deposita o preprint, manda Eles podem validar ou levantar suspei-
para a revista em paralelo, a revisão por tas, e aquilo fica marcado no texto”,
pares melhora esse artigo, aí você atuali- explica o sociólogo. “Escalaríamos pes-
za tanto o preprint quanto o artigo. Se soas para avaliar o parágrafo em que
não estiver em acesso aberto, o texto es- o autor faz a conta, outra que avalia o
tará completo nos repositórios. Tudo isso modelo estatístico, outra que checa a
já existe, não precisa mudar o sistema.” revisão bibliográfica, outra que vai re-
Mas o que precisa mudar não é pou- plicar os experimentos. E haveria tam-
ca coisa: são os hábitos, as práticas e os bém uma avaliação dos avaliadores.”
valores dos cientistas e das instituições,

“O
que continuam girando em torno dos poder de mudar essas práticas
artigos publicados em revistas de aces- vem do financiador”, afirma
so restrito depois da revisão por pares. Kristen Ratan, cofundadora
A transformação dessas práticas tem do Icor (“Incentivando a pesquisa aber-
uma oposição evidente: a indústria po- ta e colaborativa”, na sigla em inglês),
derosa que tira seus lucros bilionários do um consórcio que reúne iniciativas de
sistema tal como ele é hoje. ciência aberta. Quem banca os projetos
A ideia da revisão coletiva de preprints realizados pelos pesquisadores está em
de altos valores pelos autores. Os reposi- checados, com pesos e níveis de qualida- resolve alguns nós do problema, mas posição de determinar que eles adotem
tórios em que os artigos são postados de diferentes, jornalistas ficaram confu- deixa outras questões em aberto. Nesse práticas de ciência aberta desde os está-
geralmente são públicos e mantidos por sos sobre o que valia a pena ou não arranjo, nenhum ator isolado tem a prer- gios iniciais das pesquisas, antes que
filantropia. Além disso, o processo de noticiar. Com isso, pesquisas com resul- rogativa de atestar que um determinado isso fique custoso demais, continua
publicação é ágil: os artigos não ficam tados errados ou inconclusivos acabaram artigo está bom o bastante para ser incor- Ratan. “Se o financiador disser que só
presos no processo de revisão e os resul- ganhando as manchetes. Os preprints porado à bagagem comum da ciência, quem compartilhar dados poderá con-
tados se tornam imediatamente disponí- entraram então na mira dos críticos, como fazem os editores dos periódicos. correr a seus recursos, todo mundo vai
veis para outros pesquisadores, o que para quem aqueles estudos, por não te- Ludo Waltman não sente falta dessa fazer isso.”
favorece, por exemplo, a busca de trata- rem sido formalmente revisados, deve- chancela, desde que o sistema informe A mudança de cultura tem que pas-
mento para várias doenças. riam ser recebidos com mais cautela. com clareza o estágio de avaliação de ca- sar também pelas agências de fomento,
Para Abel Packer, outra vantagem No entanto, artigos que passaram da preprint. “Não há necessidade de ter que seguem avaliando os cientistas pe-
dos preprints é o fato de que libertam os pela revisão por pares não estão livres de esses selos de aprovação do tipo ‘isso está las revistas em que publicam seus arti-
pesquisadores da curadoria das revistas, erros. Um exemplo da pandemia é um certo e isso, não’, porque há coisas no gos. Já há sinais positivos nesse sentido.
que tendem a ser mais conservadoras. estudo publicado na The Lancet, a revis- meio”, afirma Waltman. “Precisamos de O Howard Hughes Medical Institute
“Se você tem um projeto bem louco, ta com o maior fator de impacto no um sistema transparente que comuni- (hhmi), um dos maiores financiadores
ninguém vai querer publicar mesmo mundo, que relatava a suposta eficácia que aos leitores que um determinado das pesquisas biomédicas nos Estados
que esteja bem-feito, porque é fora da da hidroxicloroquina no tratamento da paper passou pela comprovação de tais e Unidos, já orientou seus cientistas a
curva. Pode estar errado, mas vai que Covid. Duas semanas depois, o artigo foi tais pessoas, ou então que está em pro- nunca mencionar em suas apresenta-
está certo? O preprint resolve isso.” tirado de circulação depois que vários cesso de avaliação.” ções o nome das revistas em que seus
De fato, a maioria das revistas, como cientistas questionaram a veracidade dos Para Luiz Augusto Campos, pesqui- trabalhos foram publicados.
as do grupo da Nature, já aceita artigos dados, levando parte dos autores a inves- sador da Universidade do Estado do Rio A medida não é fortuita. O hhmi
que tenham sido postados previamente tigarem seu próprio artigo. No fim, três de Janeiro e editor da revista Dados, é chancelou a Declaração de São Francis-
como preprint. Em 2021, a eLife deu dos quatro autores não conseguiram preciso ainda assegurar que, nesse mo- co sobre Avaliação de Pesquisa, lançada
um passo adiante e começou a exigir acessar os dados brutos fornecidos pelo delo descentralizado de avaliação, todo em 2012 e já com 24 mil signatários. As
que os manuscritos submetidos à revista seu coautor, o que os levou a pedir que a o material submetido às plataformas de instituições que assinam o documento se
tenham saído antes como preprint. revista retirasse o artigo do ar. preprints seja avaliado, o que está longe comprometem a mudar a forma de ava-
Além disso, em 2024 passou a publicar O movimento de ciência aberta suge- de ser o caso atualmente. “Cerca de 90% liar os cientistas. A ideia é considerar não
todos os papers que o editor decide en- re uma solução para esse impasse apa- dos preprints não são avaliados nunca, a só os artigos publicados e as revistas em
caminhar para a revisão – não importa rente: uma revisão pós-publicação que maioria nem é lida”, afirma o sociólogo. que saíram, mas também o valor de todos
se os avaliadores concluírem que o tra- também seja aberta. Ou seja: os artigos “A avaliação coletiva já não funciona os resultados (incluindo etapas interme-
balho é ruim. Os pareceres, positivos seriam tornados públicos mesmo antes porque a tendência é que o número des- diárias das pesquisas, como conjuntos de
ou negativos, são divulgados também, da revisão, como no caso dos preprints, sas publicações cresça e a maior parte dados e softwares), além da atuação do
embora de forma anônima. mas só seriam incorporados ao conheci- continue não sendo comentada.” cientista em políticas públicas.
Mas é possível prescindir do trabalho mento científico depois de revisados Campos é um entusiasta da ciência A usp está entre os mais de 430 sig-
de curadoria e da revisão por pares das coletivamente – e, eventualmente, re- aberta, mas acredita que as revistas ain- natários brasileiros da Declaração de
revistas? Sem elas, quem fará a triagem formulados em função dos comentários. da têm um papel importante: oferecer São Francisco. “Isso significa que, nas
da ciência de qualidade daquela que não Em alguns repositórios de preprints, um selo para os trabalhos mais bem contratações de novos professores, a uni-
merece ser publicada? Como a socieda- como bioRxiv e medRxiv, é possível pos- avaliados. “Muitos podem dizer que versidade não pode fazer uma tabeli-
de e os políticos vão saber quais estudos tar comentários sobre os estudos publi- não importa, mas como hierarquizar nha com pontuação baseada no índice
devem ser levados a sério e quais resul- cados. Já há plataformas voltadas para milhões de textos com qualidades mui- de impacto das revistas como modo
tados são confiáveis? Na pandemia, a isso, como a PubPeer e a prereview. to diferentes depositados nesses servido- principal de avaliar os candidatos”, ex-
profusão de preprints se tornou um pro- Com essa saída, o filtro da boa ciên- res?”, questiona. O sociólogo observa plica Alicia Kowaltowski.
blema na divulgação dos achados cientí- cia estaria presente, garantido por uma que a luta por uma ciência mais aberta Em meio à busca por reformas no
ficos. Em meio a tantos estudos não comunidade engajada em fazer a revi- e equitativa acontece em um mundo modo de se fazer ciência, há quem seja

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ainda mais radical. Prachee Avasthi, de dados sobre micróbios que crescem novos modelos são possíveis. “Fazer cam a cada mês, como são seus frutos e
diretora científica do Arcadia Science, em queijos. Tudo fica disponível para com que as pessoas absorvam, usem e como eles influenciam a fauna. “Havia
quer mostrar que, além de podermos quem quiser usar, dar continuidade, che- construam em cima desse conhecimen- poucas referências sobre isso para as pes-
dispensar a revisão por pares e os perió- car, comentar ou fazer sugestões. to, acumular citações, tudo isso demo- soas da área citarem”, diz Staggemeier.
dicos tradicionais, sequer precisamos Não existe um formato específico ra”, afirma. O certo é que, no curto A evolução das ferramentas estatísti-
daquele considerado o grande protago- para as publicações. Podem ser pdfs, tempo de existência do centro de pes- cas nas últimas décadas permitiu avan-
nista do processo científico: o paper. dados interativos, figuras, diagramas quisa, nenhum de seus cientistas quis ços importantes na ecologia. Por outro
Doutora em neurociências, Avasthi fez ou uma ideia: qualquer conteúdo, por voltar para a academia. “Uma vez que lado, a pesquisa de campo, aquela que
uma trajetória tradicional na academia mais incompleto que possa parecer, é você experimenta essa liberdade de re- faz parte da tal “história natural”, aca-
como professora de bioquímica e biolo- compartilhado diretamente no site. Só visores e editores, você não volta mais.” bou ficando em segundo plano. “Hoje o
gia celular na Universidade de Dart- não vale submeter para uma revista aluno não vai a campo coletar o dado”,

E
mouth, nos Estados Unidos. Há quase científica. “Não é só fazer ciência, é tam- mbora não fosse o principal fruto diz Staggemeier. “Ele faz uma revisão
três anos, junto com a colega Seemay bém compartilhá-la”, afirmou Avasthi, de sua pesquisa de doutorado, o da literatura, pega o dado que alguém
Chou, fundou o Arcadia Science. É um em entrevista por vídeo à piauí enquan- trabalho de Vanessa Staggemeier coletou, mas não tem nenhum contato
centro de pesquisa em biologia que nas- to caminhava na esteira. É assim, em publicado na Biotropica foi, dentre to- com a história por trás dele.”
ceu no Vale do Silício. Com um fundo cima de uma esteira, que ela costuma dos os seus 33 artigos já publicados, o Logo depois da publicação na Bio-
de 500 milhões de dólares, seus investi- fazer suas reuniões. de maior repercussão entre os colegas. tropica, e ainda um tanto traumatizada
dores são Jed McCaleb, empresário, “Nossa cultura é estar sempre escre- Além disso, foi o paper mais citado den- pela maratona que enfrentou para em-
programador e também um dos funda- vendo e compartilhando o que temos tre os 94 artigos publicados pela Biotro- placá-la, Staggemeier encontrou um
dores, e Sam Altman, presidente da naquele momento, sem medo de estar pica naquele ano de 2017. Em janeiro dos revisores do estudo – o único que
OpenAI, empresa que criou o Chatgpt. errado”, diz. Para Avasthi, o que define passado, seu artigo já tinha sido citado havia escolhido se identificar – quando
Ali, os cerca de trinta cientistas bus- a relevância de um estudo não é se ele mais de cinquenta vezes, quase três ve- fazia um pós-doutorado na Unesp de
cam novos organismos que possam ser passou ou não pela revisão por pares, zes mais do que um artigo típico daque- Rio Claro, em São Paulo. O pareceris-
usados em experimentos na pesquisa bio- mas se ele está sendo adotado por ou- la área de pesquisa. ta, um brasileiro radicado no Reino
médica, dispensando os animais utiliza- tros pesquisadores ou pela sociedade. Staggemeier acredita que o texto fez Unido e professor da Universidade de
dos habitualmente, como camundongos Por isso, ela é entusiasta dos preprints. sucesso porque muitos colegas precisa- East Anglia, foi apresentado a Stagge-
e moscas-das-frutas. Eles compartilham “Por que não ter acesso àquele conteú- vam dos dados que ela e suas colabora- meier e reconheceu o sobrenome da
com o mundo esse trabalho em tempo do dois anos antes de sua publicação? doras reuniram ali. “Quando a gente conterrânea. “O revisor me disse, então,
real: não apenas resultados e descobertas Por que esperar para usá-lo?” está dentro da Mata Atlântica, dá para que aquele tinha sido o artigo mais lin-
bem-sucedidas, mas também os proces- Ainda é cedo para dizer se o experi- notar a importância das palmeiras e do que ele tinha lido em muitos anos,
sos em andamento, dados, protocolos, mento em curso no Arcadia Science vai mirtáceas porque elas sempre têm espé- cheio de história natural e descrições
desafios que não estão conseguindo re- dar certo, se é replicável ou se terá al- cies frutificando, e esse paper mostrou que se perderam no modo como faze-
solver ou mesmo projetos abandonados gum impacto na forma como se faz e se isso em detalhes”, diz a bióloga. A partir mos ciência hoje.” Para a bióloga, a fra-
no meio. Quem entra no site encontra publica ciência. A ideia, diz Avasthi, é de uma extensa pesquisa de campo, o se valeu mais do que publicar numa
desde genomas de carrapatos a planilhas sobretudo experimentar e entender se estudo mostrou quais espécies frutifi- revista de alto impacto. J

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questões de memória

TESOURO NO TERREIRO
O destino do legado de Lélia Gonzalez, uma das mais importantes – e ignoradas – intelectuais negras do país

PLÍNIO FRAGA

P
ouco antes de o Brasil entrar solta, à mesa da cozinha do apartamento assada, um dos pratos prediletos da an- o acervo no Ilê da Oxum Apará. Na mes-
em campo contra a Holanda, em que viviam, num prédio de quatro tropóloga, começou a sentir uma ardên- ma época, Almeida assinou um docu-
nas quartas de final da Copa pavimentos na Ladeira de Santa Teresa, cia nas costas. “Ardiam de uma forma mento de doação do acervo para Jair de
do Mundo de 1994, Pelé apa- nº 106, na região central do Rio. lancinante. E uma voz me dizia: ‘Vai Ogum, em que afirmava que essa deci-
receu na tela da tevê para co- Gonzalez tinha 59 anos, media 1,68 me- ver a Lélia! Vai ver a Lélia!’”, conta Al- são fora tomada sem coação alguma e
mentar o jogo que seria transmitido em tro de altura e estava pesando cerca de meida, hoje com 75 anos, à piauí. Ela que os custos de transporte e armaze-
poucos minutos de Dallas, nos Estados 45 kg – quinze a menos do que o reco- foi até o quarto da tia e a encontrou sem nagem ficaram a cargo da associação
Unidos. No Rio de Janeiro, assim que mendado para sua compleição física. vida sobre a cama. Gonzalez tinha so- religiosa. O documento teve a firma reco-
ouviu a voz do craque, a antropóloga A antropóloga tinha diabetes, além de frido um infarto durante a madrugada. nhecida em cartório em 2004, dez anos
Lélia Gonzalez pediu à sua sobrinha um problema grave no coração, e se mo- Uma das primeiras pessoas a saber da depois da morte de Lélia Gonzalez.
Eliane de Almeida que desligasse a tevê. vimentava com dificuldade. Ela vinha morte de Gonzalez foi o babalorixá Jair Agora, essa doação, que continua
Uma década antes, Gonzalez havia concentrando forças na atividade acadê- de Ogum. Ele era guia espiritual da an- guardada no terreiro, tornou-se objeto
escrito um artigo duro contra Pelé. Cha- mica, como diretora do Departamento tropóloga e líder do Ilê da Oxum Apará, de uma disputa judicial nada fraterna
mou o craque de “jabuticaba”: preto por de Sociologia e Política da puc-Rio. um terreiro de candomblé e umbanda entre os herdeiros de Gonzalez e os de
fora, branco por dentro e com um caroço À noite, aliviada com a vitória que le- em Itaguaí, na Região Metropolitana do Jair de Ogum, que morreu em 2020,
que não dá para engolir. Achava que Pelé vou o Brasil à semifinal, Gonzalez vestiu Rio, que ela havia ajudado a fundar e aos 75 anos, de insuficiência pulmonar,
era o exemplo perfeito do negro que foi um pijama azul com flores amarelas e foi do qual Almeida era vice-presidente. Jair provavelmente em decorrência da Co-
vítima da lavagem cerebral do embran- dar boa-noite à sobrinha. Perguntou se de Ogum demorou quase duas horas vid. O acervo de Gonzalez contém ma-
quecimento, adotando posições políticas estava tudo bem com as filhas dela, Ísis e para percorrer os 80 km que separam o nuscritos, documentos, retratos, objetos
conservadoras e optando por loiras de Gabriela, de 4 e 7 anos, que também mo- terreiro da casa de Gonzalez. Ao chegar, pessoais e toda a biblioteca de uma das
olhos claros como ideal de beleza. “Como ravam no apartamento. “As crianças já cuidou de “abrir os caminhos de Lélia mais importantes intelectuais do país
ele conseguiu ascender, passa a achar que foram dormir”, disse Eliane de Almeida. para seu retorno à matéria de origem”, no século xx, reconhecida mundial-
a negrada não é de nada, que não se es- “Então vou me deitar também. Até ama- como diz Almeida. O enterro, no Cemi- mente por sua reflexão pioneira sobre o
força, que não gosta de trabalho que é ir- nhã”, despediu-se Gonzalez. E foi para tério São João Batista, mobilizou muitos feminismo negro e o racismo.
responsável etc. [...] Portanto, a negrada é seu quarto-escritório, com uma cama de ca- amigos e ativistas sociais. Os principais Os familiares da antropóloga dizem
inferior”, escreveu Gonzalez no texto sal, uma escrivaninha com máquina de jornais brasileiros não deram uma linha que, enquanto Jair de Ogum estava
A esperança branca, que saiu na Folha escrever, iluminada por um abajur africa- sequer sobre a morte da antropóloga. vivo, eles tinham acesso livre ao acervo,
de S.Paulo, em 21 de março de 1982. no, e as estantes com cerca de 3 mil livros. Sem emprego e sem renda para pagar o que lhes foi negado a partir de 2020,
Mas naquele sábado de jogo, dia 9 de Na manhã do dia seguinte, 10 de ju- o aluguel do apartamento no Centro do depois que a liderança do terreiro pas-
julho, não era exatamente Pelé que inco- lho, Almeida acordou cedo e foi prepa- Rio, Almeida se viu obrigada a procurar sou para Leonardo Ogum-Faislon, filho
modava Gonzalez. Torcedora empolgada, rar o café. Estranhou que Gonzalez um local mais barato para viver – e pre- do pai de santo. Em março de 2022, os
ela estava aflita com a própria Seleção Bra- não estivesse de pé, mas preferiu deixá- cisou dar um destino aos bens pessoais herdeiros de Gonzalez decidiram recor-
sileira e, para evitar os apertos no peito, re- la dormir até mais tarde. Resolveu cui- de Gonzalez, que não cabiam na sua rer à Justiça. Eles firmaram verbalmente
solveu não assistir à partida. Ela e a sobrinha dar do almoço do domingo. Enquanto nova moradia. Mais uma vez, ela recor- o compromisso de doar o acervo para ser
preferiram sentar-se, para uma conversa preparava a macarronada com carne reu a Jair de Ogum, que propôs abrigar catalogado e preservado pela Fundação

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TÉRCIO TEIXEIRA_2024
No Ilê da Oxum Apará: a escrivaninha de Lélia Gonzalez, a Olivetti Linea 98, o abajur e peças africanas simbolizando o equilíbrio, a ancestralidade e a caminhada rumo à iluminação

Getulio Vargas, a instituição que admi- fesa acrescentassem mais provas ao pro- chão de cimento. Ali chamam a aten- colecionou centenas de itens da cultura
nistra centenas de arquivos de persona- cesso, que não tem data para ser julgado. ção quatro máquinas de costura, tam- religiosa de origem africana e imagens
lidades históricas, como os de Tancredo Os direitos autorais de Gonzalez, bém concretadas no piso da instalação: de santos e entidades do candomblé e
Neves e do próprio Getúlio Vargas. que publicou apenas dois livros em são uma homenagem a costureiras que da umbanda. Ele também tinha gosto
“Depois que Jair morreu não tinha vida, mas deixou numerosos ensaios e produzem as roupas brancas usadas nos por peças egípcias. “E, se alguém ques-
mais sentido ficar lá, no terreiro, mesmo textos, alguns inéditos, são administra- cultos, tidas como sagradas. tionava, ele sempre lembrava que o Egi-
na parte espiritual”, afirma o economista dos desde sua morte pelos sobrinhos Antes da construção do terreiro em to faz parte da África”, conta seu filho.
Rubens de Lima, de 62 anos, sobrinho da Rubens de Lima e Eliane de Almeida, Itaguaí, o lugar era uma terra devasta- Jair de Ogum chegou a erguer um me-
antropóloga, a quem ela chamava de fi- herdeiros legítimos da antropóloga em da por anos de plantio de café. Tudo morial em homenagem a Lélia Gonzalez
lho. “Nós temos isso como missão espiri- linha colateral, como determina a lei de foi recuperado para atender às obriga- nos anos 2000. O sobrado de dois pavi-
tual. Não queremos ganhar dinheiro. sucessão, quando a pessoa não tem côn- ções religiosas do candomblé e da um- mentos, na forma de um quadrado, com
Queremos cumprir o pedido de Lélia de juge vivo, filhos ou pais. À época, Al- banda. Jair de Ogum reflorestou uma janelas pequenas e telhas de amianto, foi
sermos multiplicadores do conhecimen- meida assinou sozinha a doação, sem a grande área do terreno para que o Ilê construído a partir de orientações dadas
to que ela adquiriu.” Ele conta que Fais- autorização formal de Lima, porque tivesse a sua mata, com árvores dis- pelo pai de santo diretamente ao mestre
lon, sem consultar a família, montou não imaginou que aquele documento poníveis para as obrigações religiosas. de obras, sem a participação de arquite-
uma exposição com o acervo de Gonza- protocolar iria se tornar um imbróglio Também criou a própria encruzilhada tos. Desgastada pelo tempo, a construção
lez e organizou grupos de turismo para vi- jurídico. Hoje, ela se arrepende. para despacho de obrigações e cons- precisa de reformas, como mostram as
sitá-lo. “Ele exibiu coisas muito pessoais truiu uma lagoa artificial, com plantas rachaduras nas paredes, e por isso mesmo

Q
na exposição e nas redes sociais. Tinha uem chega ao Ilê da Oxum Apa- aquáticas e onde vivem tambaquis de a maior parte do acervo da antropóloga
até uma foto de Lélia de biquíni! Isso não rá, depois de cruzar um portão de grande porte que saltam ao serem ali- está agora num imóvel anexo, usado
se faz”, reclama Eliane de Almeida. ferro, logo tem o olhar atraído por mentados com pão. Cansado de ver como depósito de diferentes objetos.
Faislon mostrou à piauí o documento uma estátua de 2 metros de altura, ao umbandistas sofrerem preconceito por Nesse imóvel, em duas salas contí-
de doação do acervo Lélia Gonzalez, as- fundo de um gramado grande e bem frequentarem igrejas católicas, cons- guas, de 10 m² cada uma, está o acervo
sinado por Almeida. O papel, datado de cuidado: é Ogum em seu cavalo. Várias truiu uma capela, com imagens de san- principal de Gonzalez. Na primeira
1996, está plastificado. Ele nega que te- outras obras dedicadas aos orixás, os cha- tos afixadas nas paredes. “Meu pai só sala, os livros, guardados em estantes de
nha restringido o acesso da família de mados assentamentos, espalham-se ao ar não abriu acesso ao mar”, brinca Leo- aço, muitos deles com dedicatórias,
Gonzalez ao acervo e assegura que nunca livre pelo terreiro, que ocupa 50 mil m² nardo Ogum-Faislon, de 39 anos. como os do escritor, ator e ativista Ab-
ganhou dinheiro com ele. Em agosto de de uma antiga fazenda colonial. Um dos principais espaços do Ilê é o dias Nascimento (O genocídio do negro
2023, o juiz Francisco Emilio de Carva- Algumas obras chegam a ter 20 m², “salão de recepção de vips e celebrida- brasileiro e Sitiado em Lagos): “À Lélia,
lho Posada, da 2ª Vara Cível de Itaguaí, como a que homenageia Iemanjá, co- des”, com cerca de 200 m². Ali, em uma mais do que irmã de lutas por nossos
recusou o pedido de uma liminar de bus- berta por ladrilhos e com um barco de das paredes, estão expostas algumas irmãos e irmãs negros”, diz ele em um
ca e apreensão do acervo, solicitada pela 1,5 metro de comprimento. No espaço peças do acervo de Gonzalez: anota- dos autógrafos. Ou do compositor Can-
família da antropóloga. O juiz não viu dedicado a Iansã, diversas peças em ções, livros, pôsteres e quadros. No deia, que a chama de “grande irmã” na
elementos que justificassem urgência para metal, como lanças, espadas e represen- mesmo local e com mais destaque estão dedicatória feita no livro Escola de sam-
tanto. Determinou que a acusação e a de- tações de um raio, estão fincadas no objetos do acervo de Jair de Ogum, que ba: árvore que esqueceu a raiz, que o

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Lima. Os dois dizem que tudo isso foi compreendo. Eu acho que aprendi mais
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feito quando Jair de Ogum ainda era com Lélia Gonzalez do que vocês jamais
vivo. O acervo chegou a ser acessado aprenderão comigo. Ela estava escrevendo
também por pesquisadores, como Flavia sobre interseccionalidade antes mesmo
Rios e Marcia Lima, que, a partir dali e de o termo existir. E ela nos convocou
de outras fontes, organizaram a publica- para desenvolver novas identidades, no-
ção do livro Por um feminismo afro- vas identidades políticas. Eu gosto dos
latino-americano, de Gonzalez, editado termos que ela usa: ameríndio e amefrica-
em 2020. Permanece inédita boa parte no. São termos amplos que são inclusivos
dos diários, das cartas e de manuscritos sem serem assimilatórios. Eu gostaria de
de Gonzalez mais relacionados a temas dizer que sempre preciso dizer que me sin-
pessoais do que acadêmicos e políticos. to muito constrangida. Porque me parece
O acervo parece bem preservado, em que nós, dos Estados Unidos, é que deve-
termos gerais, no Ilê, embora careça de ríamos estar aprendendo com essa tradi-
melhor organização e de uma indexa- ção realmente vibrante do feminismo
ção completa. Há cartas, cartões-postais negro brasileiro. E, como disse antes,
e periódicos em pastas e envelopes plás- principalmente dado o impacto do can-
ticos, que são manipulados sem luvas – domblé e das maneiras que a liderança
o contrário do que exige a preservação feminina tem sido cultivada e encorajada.
técnica rigorosa. Quando a piauí visitou A historiadora Raquel Barreto estava
o local, alguns livros da biblioteca de na plateia do Sesc ouvindo Angela Davis,
Gonzalez, reconhecidos por sua assina- e alertou para a palavra usada pela ativis-
tura nas páginas iniciais, estavam longe ta ao falar do Brasil, awkward, que foi
do acervo, numa sala de convivência do traduzida como “estranha” pelo serviço
Ilê, dispostos numa estante ao lado de de tradução simultânea daquela noite.
exemplares de O código da inteligência, “Mas para mim é mais do que isso.
do psiquiatra best-seller Augusto Cury, Awkward é constrangida, embaraçada”,
e Nada é por acaso, da espírita Zibia diz Barreto. “É o sentimento que você
Gasparetto. Nenhum desses dois livros tem quando algo envergonha por não ser
compositor escreveu em parceria com Internacional, de apoio jurídico às mu- pertencia à antropóloga (foram lançados justificado. É isso que ela dizia sentir
Isnard Araújo e lançou em 1978. Tam- lheres, ou artigos sobre viagens ao Cari- depois da morte dela). quando nós, brasileiros, buscamos no ex-
bém há obras em diversas línguas, ficha- be e países africanos. Entre os escritos Na avaliação de um conhecedor do terior o que deveríamos encontrar aqui.”
das por Gonzalez, como Women, race & para jornais, encontra-se um comentá- mercado de obras raras, o acervo de A fala de Davis acabou incluída no docu-
class (Mulheres, raça e classe), da ativis- rio manuscrito à peça Anjo negro, de Gonzalez pode ter mais interesse histó- mentário AmarElo: é tudo pra ontem, do
ta Angela Davis; Les damnés de la terre Nelson Rodrigues, sobre um negro que rico e acadêmico do que valor comer- rapper Emicida, que ao ser lançado em
(Os condenados da terra), do psiquiatra rejeita sua condição racial. Na crítica, cial. Esse colecionador, que pediu para 2020 fez as buscas pelo nome de Lélia
e pensador Frantz Fanon; Les Bantu Gonzalez escreve: “A arte (o teatro) se não ser identificado porque não conhe- Gonzalez aumentarem no Google.
(Os bantos), do historiador Théophile debruça e investiga os destinos huma- ce o acervo a fundo, diz que o material Barreto chama a atenção para o fato
Obenga; e Le structuralisme en anthro- nos que falharam. Aqueles que pode- pode interessar a muitas universidades de as grandes editoras do país terem evi-
pologie (Estruturalismo na antropolo- riam ou deveriam ter sido de uma americanas, dado o prestígio de Gonza- tado por anos a obra de Gonzalez, apesar
gia), do antropólogo Dan Sperber. maneira, mas que, pela interferência do lez nos Estados Unidos e o vínculo de de a antropóloga ter sido, em seu tempo,
Gonzalez era fluente em francês, tendo fado, resultaram de maneira às avessas. sua obra com o feminismo e o ativismo a intelectual negra brasileira que mais
sido tradutora nessa língua, e se mostra- Quanto maior esta inversão, maior e negros, principalmente. A família da circulou internacionalmente. “O apaga-
va segura no domínio da língua inglesa. mais belo o destino trágico de um per- antropóloga diz que não cogita ti- mento da obra e da memória de Lélia
Na segunda sala, estão a escrivani- sonagem. Maior e mais bela a obra.” rar os documentos do Brasil. não é um acaso. Como ela dizia,
nha, a máquina de escrever Olivetti A caligrafia de Gonzalez é redonda, Os atuais gestores do Ilê é recalque, é repressão”, comenta
Linea 98 cinza e o abajur africano de com as letras juntando-se umas às ou- afirmam que o acervo de a historiadora, cuja dissertação de
Gonzalez, dispostos de maneira a re- tras, como se a caneta percorresse de Gonzalez está aberto à visi- mestrado se chamou Enegrecen-
produzir seu ambiente de trabalho. Três maneira delicada o papel. As ideias que tação de pesquisadores e do o feminismo ou feminizando a
peças africanas simbolizando o equilí- expressam, porém, são abrasadoras, interessados, bastando mar- raça: narrativas de libertação em
brio, a ancestralidade e a caminhada como neste outro trecho da crítica de car horário com os admi- Angela Davis e Lélia Gonzalez.
rumo à iluminação complementam a Anjo negro: “Toda e qualquer tentativa nistradores da associação Em uma entrevista ao jornal El
decoração. Nessa mesma sala, em deze- por parte de um negro de negar sua cor religiosa Ilê da Oxum Apa- País, a pensadora e ativista Sueli
nas de caixas de papelão e plástico, ar- (tentar escapar a ela) é uma violência rá. Mas dizem que a procura Carneiro, uma das mais proemi-
ranjadas em um armário de aço, estão inaudita que esse ser humano comete é em pequena escala. nentes intelectuais brasileiras, cha-
documentos, manuscritos e fotos de contra si mesmo, violência que só pode mou o apagamento que ocorreu

E
Gonzalez, bem como recortes, panfle- ser geradora de ódio, inicialmente con- m outubro de 2019, a intelectual e por anos da obra de Gonzalez na cultura
tos e jornais que ela armazenou. tra si próprio (pois, por mais incons- ativista americana Angela Davis e na universidade do país de “epistemicí-
Há papéis de grande valor histórico ciente que seja, ela lhe parece como um fez uma palestra em São Paulo dio”. Em vida, Gonzalez publicou apenas
ali, como o escrito datilografado que absurdo irrealizável) e, em seguida, que reverberou nas redes sociais. Ela dois livros: Lugar de negro (escrito em par-
traça a estratégia a ser seguida pelo Mo- contra o mundo – não só ‘dos brancos’, estava lançando no país o livro A liber- ceria com o sociólogo argentino Carlos
vimento Negro Unificado (mnu), do mas sim contra o mundo em geral.” dade é uma luta constante e, em dado Hasenbalg), em 1982, e Festas populares
qual Gonzalez foi uma das fundadoras Grande parte desse acervo foi cataloga- momento, abandonou as notas que lia no Brasil, em 1987. “As editoras comer-
em 1978. O documento afirma: “A ex- da e digitalizada por pesquisadores da obra no púlpito do auditório do Sesc Pinhei- ciais sabiam quem era Lélia. Mas diziam
ploração do negro é formada funda- de Gonzalez que tiveram acesso aos docu- ros. Disse que, nas suas visitas ao Brasil, que ela não vendia. No exterior, porém,
mentalmente pelo tripé = Exploração mentos. A empreitada mais importante foi sempre se sentia constrangida ao ser ela era publicada”, comenta Barreto. Fora
Econômica, Opressão Psicológica e Vio- feita pela Rede de Desenvolvimento Hu- apresentada como exemplo às mulheres do Brasil, textos de Gonzalez saíram em
lência Policial. Nosso trabalho principal mano (Redeh), ong liderada pela pedago- negras brasileiras. Explicou por quê: várias coletâneas e revistas acadêmicas.
é de destruição desse tripé maligno.” ga Maria Aparecida Schumaher que foi Sempre me senti constrangida “Lélia permaneceu inacessível no Brasil
No local, também estão guardados pioneira na recuperação da memória da [awkward] porque sinto como se fosse eu como autora até os pan-africanistas resol-
seus originais de artigos e ensaios, antropóloga. A ong cedeu o material digi- quem devesse representar o feminismo ne- verem imprimir Primavera para as rosas
como Por um feminismo afro-latino- talizado ao Instituto Memorial Lélia Gon- gro. E por que vocês, aqui, do Brasil, pre- negras”, acrescenta a historiadora. Este
americano, escrito em 1988 para uma zalez, organização social sem fins cisam procurar essa inspiração nos livro, que reúne vários textos e palestras
publicação no Chile do instituto Isis lucrativos fundada em 2023 por Almeida e Estados Unidos da América? Eu não de Gonzalez, foi publicado em 2018 gra-

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ças à iniciativa da União dos Coletivos radiografia do racismo nacional. “Eu dói [...], por isso eu tenho orgulho de de S.Paulo, Gonzalez criticou a ausên-
Pan-Africanistas (ucpa). Apenas em 2020 me lembro que ela deixou todos impres- trazer o nome dele”, ela afirmou. cia da temática racial no eixo progra-
ela teve uma obra publicada por uma sionados com um seminário primoroso A vida da então professora começou mático do pt. A crítica lhe trouxe mais
grande casa editorial brasileira: a coletânea que ministrou sobre Lévi-Strauss.” a mudar depois da morte do primeiro problemas do que apoio. “As chamadas
de textos Por um feminismo afro-latino- Gonzalez dizia que, na juventude, marido e dos desafios colocados pelo correntes progressistas, elas minimizam
americano, pela Zahar, que em 2022 re- tinha sido vítima típica da lavagem ce- segundo casamento, no fim dos anos da forma mais incrível nossas reivindi-
lançou também Lugar de negro. rebral do branqueamento. “Fiz escola 1960, com Vicente Marota, que ela de- cações”, ela dissera em 1979, numa en-
Filha de um operário negro e de uma primária e passei por aquele processo finiu como um “mulato que precisava trevista publicada no livro Patrulhas
descendente de indígenas, Lélia de que eu chamo de lavagem cerebral dado fugir de si próprio”. O casamento durou ideológicas, de Heloísa Buarque de
Almeida – seu nome de solteira – tinha pelo discurso pedagógico brasileiro, por- cinco anos. “A gente se separou e mi- Hollanda e Carlos Alberto Pereira.
7 anos quando sua família se mudou de que, na medida em que eu aprofundava nha cabeça dançou, afinal eu fui casada Feminista negra e fundadora do mnu e
Belo Horizonte para o Rio de Janeiro, meus conhecimentos, eu rejeitava cada com um cara branco, de origem espa- do Nzinga – Coletivo de Mulheres Ne-
em 1942. Todos pegaram carona na as- vez mais minha condição de negra”, dis- nhola, que dava todo apoio à questão gras –, Gonzalez se tornou conhecida por
censão social de um dos dezoito filhos, se. Em 1964, casou-se com Luiz Carlos racial, e, quando eu caso com um cara provocar tensões importantes dentro dos
o jogador Jaime de Almeida (1920-73), Gonzalez, um colega de universidade de origem negra, ele não tem essa soli- movimentos dos quais fazia parte, tra-
convidado para atuar no Flamengo e que era de origem espanhola. A família dariedade, ele disfarçava esse lado. Eu tando de assuntos como a invisibilização
que se tornou um ídolo da torcida ru- do rapaz branco, porém, não aceitou a fui parar no psicanalista”, disse ela em das mulheres negras e indígenas nos dis-
bro-negra nos anos 1940 (ele é pai de relação. Anos mais tarde, Gonzalez ana- entrevista ao Pasquim, em 1989. cursos feministas e do machismo branco
Jayme de Almeida Filho, ex-jogador e lisou essa rejeição em uma entrevista Aos 35 anos, depois de dois casamen- reproduzido pelos homens negros.
treinador campeão nacional pelo clube). dada a uma agência de notícias nos Es- tos, Gonzalez se dedicou a duas áreas Gonzalez representou o movimento
No Rio, com o apoio financeiro da tados Unidos: “No Brasil, é aceitável que se tornariam referência em seu traba- negro carioca, ao lado de Abdias Nasci-
família, Gonzalez se concentrou nos que um homem branco tenha um caso lho: a psicanálise e o candomblé. “A gen- mento, no lançamento do mnu, realiza-
estudos e pôde se matricular no con- com uma mulher negra, mas casamento te nasce preta, mulata, parda, marrom, do nas escadarias do Theatro Municipal
ceituado Colégio Pedro ii, uma escola é outro assunto. Quando eles descobri- roxinha etc., mas tornar-se negra é uma de São Paulo, em julho de 1978. Me-
pública. Depois, cursou, na Uerj, as ram que nos casamos, ficaram furiosos. conquista”, disse mais tarde. ses depois, assumiu o cargo de diretora
faculdades de geografia e história (à Me chamaram de preta suja. Era isso Esse processo a levou ao ativismo. executiva na primeira eleição da as-
época unificadas) e filosofia. Fez o dou- que eu tinha me tornado aos olhos de- Ela participou da fundação do pt, pelo sembleia nacional do movimento. Ali
torado de antropologia na usp, sem que les, apesar da minha educação, apesar qual concorreu em 1982 a deputada fede- trabalhou na formação política de ati-
tivesse concluído o mestrado em comu- da minha posição.” Luiz Carlos suici- ral pelo Rio de Janeiro. Obteve 14 909 vistas, por meio de palestras, cursos,
nicação social na ufrj, interrompido dou-se um ano depois do casamento, e votos. Ficou na primeira suplência, e reuniões e produção de textos, que
porque aceitou ser professora na puc- Lélia preferiu manter o sobrenome nunca chegou a exercer o mandato. Sua eram divulgados sobretudo no Nêgo –
Rio. “Foi minha aluna”, recorda-se o Gonzalez para homenageá-lo. “Ele atuação no partido era tida como arro- Jornal do Movimento Negro Unificado.
sociólogo Muniz Sodré, professor emé- rompeu com a família, ficou do meu gante, diz o sobrinho Rubens de Lima. Por influência de Nascimento e de
rito da Escola de Comunicação da lado e começou a questionar a minha Em 1983, em um artigo intitulado Ra- Darcy Ribeiro, antropólogo e escritor,
ufrj, autor de O fascismo da cor: uma falta de identidade comigo mesma. Isso cismo por omissão, publicado na Folha Gonzalez deixou o pt e se filiou ao pdt.

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Foi candidata a deputada estadual pelo ela dava aulas em um colégio público
partido em 1986, mas também não con- de ensino fundamental. Tornaram-ami-
seguiu se eleger. Obteve 8 286 votos, pou- gos e parceiros de fé. Nem as diferenças
co mais da metade dos que recebera no ideológicas afastaram um do outro.
pleito anterior, quando disputara um Jair de Ogum era conservador, simpá-
mandato nacional. Não se abateu. “Va- tico ao regime militar e aos seus partidos
mos à luta, negadinha”, repetia, mesmo de sustentação. Com a redemocratiza-
na derrota, usando seu vocativo predileto. ção, tentou ser deputado estadual em
A linguagem engajada foi outra frente 1990 pelo prn, o mesmo partido do pre-
aberta por Gonzalez. Conceitos como sidente Fernando Collor, mas fracassou,
“amefricanidade” (experiências sociopo- conseguindo menos de 4 mil votos. Em
líticas comuns aos povos africanos e indí- 1996, escolheu o Partido da Frente Libe-
genas) e “pretuguês” (referência à língua ral (pfl) para tentar se eleger vereador,
portuguesa tal como falada pelos pretos mas recebeu apenas 4 797 votos.
brasileiros) têm sido objeto de estudo de Dois objetos expostos numa parede do
pesquisadores, intelectuais e movimentos Ilê da Oxum Apará mostram bem a dife-
sociais. Ela mostrou como a língua ampli- rença entre Jair de Ogum e Lélia Gonza-
fica formas de discriminação racial e ex- lez. Um cartaz que ela guardava exibe
clusão social. Lançou a hipótese de que um punho cerrado, sobre fundo verme-
a substituição do “r” pelo “l” na pronún- lho, com os dizeres: “Partido socialista.
cia, em palavras como “framengo”, podia Democratizar, socializar, desenvolver.”
ter como razão a ausência da letra “l” em Poucos metros adiante, há uma foto de
certos idiomas africanos do tronco lin- Jair de Ogum abraçado a Pelé, o persona-
guístico banto. Na mesma linha, quando gem-jabuticaba criticado por Gonzalez.
alguém converte “você” em “cê”, ou Jair de Ogum fundou o Ilê da Oxum
“está” em “tá”, está falando pretuguês. Apará em 1972, numa casa em Brás de
Alex Ratts e Flavia Rios, que escreve- Pina, na Zona Norte do Rio. Onze anos
ram a biografia Lélia Gonzalez (Selo Ne- mais tarde, comprou o terreno de uma
gro Edições), registram que ela usava de antiga fazenda de café e transferiu o ter-
modo corriqueiro palavras que hoje se- reiro para lá. Durante quase meio século,
riam consideradas politicamente incorre- foi a cara das religiões de matriz africana
tas, como crioulo, criouléu e crioulada: na mídia brasileira. Participou por doze
“Além de certa intenção de chamar a anos do Programa Haroldo de Andrade, a
atenção do leitor ou da plateia, pode-se maior audiência da Rádio Globo nos
dizer que com esses e outros termos – anos 1980. Escreveu colunas para jornais
como neguinho, negada, negadinha –, e revistas, e teve quadros semanais em
ela pretendia deslocar o sentido das pala- programas do sbt. Chegou a interpretar a
vras.” O próprio conceito de interseccio- si mesmo na série televisiva O bem-ama-
nalidade – termo cunhado em 1989 pela do, de Dias Gomes, exibida entre 1980 e
jurista americana Kimberlé Crenshaw 1984, na Globo. Entre 1981 e 1984, fez
para definir como as diferentes formas de previsões para o ano vindouro no último
opressão social se sobrepõem umas às programa de dezembro do Fantástico.
outras – já fazia parte, tempos antes, das O pai de santo começou trabalhando
reflexões de Gonzalez, como lembrou na linha do candomblé, de origem afri-
Angela Davis em sua palestra no Sesc. cana, mas, com o passar dos anos, pas-
Além dos conceitos inovadores, ela sou a se dedicar também à umbanda,
recorreu às roupas para exaltar a negritu- de origem brasileira. Nas chamadas
de, como os vestidos coloridos, feitos de sessões de cura, permanecia incorpora-
tecidos africanos, comprados nas muitas do durante mais de doze horas por uma
viagens ao continente. Também usava entidade chamada Ogum Iara e atendia
turbantes, pulseiras, colares e anéis com pessoas que descreviam seus diversos
motivos da cultura negra. Em 1987, um problemas e aspirações. Seguindo uma
acidente de carro lhe causou uma cica- tradição do terreiro, as sessões com
triz na testa, que ela passou a esconder Ogum Iara eram detalhadamente regis-
com um lenço – o que acabou se tornan- tradas em atas, que agora fazem parte
do uma marca pessoal. Adotou ainda o do acervo de Jair de Ogum.
cabelo no estilo black power, criando Gonzalez participava com frequên-
22.3 – com todos esses elementos um estilo exu-
berante que deixaria forte influência nas
cia das sessões com Ogum Iara. “Eles
tinham conversas de alto nível, filosófi-
9.6.2024 gerações seguintes do movimento negro. cas mesmo. Às vezes debatiam horósco-
po também”, conta Eliane de Almeida,

O
candomblé foi para Gonzalez a sobrinha da antropóloga. “Lélia fazia a
uma forma de se organizar psíqui- hermenêutica de Ogum Iara. Nas primei-
Autoria desconhecida, Mário no Rio, ca e pessoalmente. Embora não ras sessões, ele falava mais tupi-guarani
1937. Arquivo Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de São fosse iniciada na religião, tinha fé em do que português. Lélia o traduzia de
Paulo, Fundo Mário de Andrade, Brasil Oxum e Ogum, seus orixás de cabeça. alguma forma”, diz Faislon. Para ele, o
Era filha de santo de Jair de Ogum, na acervo de Gonzalez é “parte integrante
época o mais famoso dos babalorixás do e complementar do acervo do próprio
Av. Paulista, 1578 Rio de Janeiro, e frequentava com certa Jair de Ogum”.
masp.org.br assiduidade o terreiro Ilê da Oxum Apa- Além de esculturas africanas e ima-
@masp
rá, que havia ajudado a fundar. gens religiosas, o pai de santo reuniu
Os dois se conheceram no início da centenas de fotografias, presentes e ob-
década de 1970, em Olaria, bairro na jetos pessoais relacionados às celebrida-
Apoio Apoio Cultural Realização

Zona Norte do Rio onde ele morava e des, atores e atrizes com os quais teve

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contato. Curiosamente, uma parte do complexo, citando termos como “utero- abriu para ela outros caminhos e lhe per- tia. Durante o vernissage, na Sal-Laje,
acervo é dedicada à atriz Sandra Bréa centricidade” ou “falocentricidade”. Os mitiu ter contato com a obra de Lélia sede do grupo cultural Caxambu do Sal-
(1952-2000), estrela da Globo que teve, serviços no Ilê costumam reunir cente- Gonzalez. “Meu processo de ruptura gueiro, na Tijuca, ocorreu um debate
de acordo com Faislon, um relaciona- nas de pessoas por vez. Além de práticas com a religião evangélica não foi por cau- sobre a contribuição de Gonzalez para os
mento amoroso com seu pai. A atriz foi espirituais, oferece assistência social, por sa do candomblé, mas por conhecer a movimentos feminista e antirracista. De-
a primeira personalidade feminina do meio de doação de cestas básicas e ser- história dessa mulher. Vi a história dela pois, foram entoados cantos de umbanda
país a assumir publicamente a condição viços de saúde à comunidade, como o como um espelho: são histórias de mu- e servida uma feijoada, cozida em fogão
de soropositiva, em 1993. projeto Vivências Afro-ecológicas: da lheres negras que se repetem”, diz. “Te- de lenha, como nos velhos quilombos.
Depois que Sandra Bréa morreu, de Pequena África ao Ilê da Oxum Apará. nho uma sensação de pertencimento Para os familiares de Gonzalez, a expo-
câncer, Jair de Ogum soube que o filho “É um programa para realizar uma edu- quando me faço como guardiã desse me- sição significou o momento de abertura
único dela, Alexandre Bréa Brito, estava cação antirracista e que valorize a prote- morial. Sei o que ele representa para mim da série de comemorações que planejam
se desfazendo de vestidos, acessórios e ção do ambiente”, ele explica. e para mulheres negras como eu e Lélia.” fazer em homenagem aos 90 anos de nas-
fotos da mãe – e ofereceu-se para ser o Militante ativa e articulada do movi- cimento da antropóloga, que serão cele-

E
guardião do acervo. O filho então doou mento negro, Silvana Santana de Al- liane de Almeida é uma mulher brados em 1º de fevereiro de 2025. Até
os pertences que restavam e, em 2001, meida, a mulher de Faislon, intervém na magra, de cabelo cor de fogo, so- lá, está prevista a publicação de um livro
desapareceu. Foi dado como morto em conversa quando se comenta a intenção brancelha discreta e óculos retan- infantil protagonizado por Lelinha,
2019, e o inventário da herança da atriz, da família de Gonzalez de doar o acer- gulares. Sempre traz guias penduradas uma garota feminista e antirracista. Ha-
pelo qual ele era responsável, ainda tra- vo da antropóloga para a fgv. “Esse é um no pescoço e usa turbantes que combi- verá ainda a estreia de um documentá-
mita na Justiça. A combinação dos acer- tipo de prática racista. Lá os afroperiféri- nam com a imagem de uma artesã, rio de Vanessa de Araújo Souza (que
vos de Gonzalez, Jair de Ogum e Sandra cos não têm vez”, diz ela. “A fgv é dirigida como ela se autodefine. Costuma gesti- dirigiu o filme Carolina Maria de Jesus,
Bréa no Ilê da Oxum Apará faz do terrei- por um corpo branco. Alguém da perife- cular muito quando fala, em um tom de de 2018). O livro Festas populares no
ro um refúgio inusitado de parte da me- ria entra na fgv? Pode entrar na fgv sem voz envolvente, que remete às contado- Brasil, de Gonzalez, publicado em 1987
mória da cultura brasileira. calça comprida e de pé descalço? Aqui ras de histórias. Depois da morte da tia, com apoio da Coca-Cola, será relança-
Faislon diz que foi escolhido pelo pode. Nossas memórias nunca entraram dedicou-se à pintura de inspiração afri- do em junho pela Boitempo Editorial.
próprio Ogum Iara para ser o sucessor na pauta política das grandes instituições, cana e umbandista, criando figuras em A comemoração dos 90 anos será
do pai. “Ogum Iara me deu essa respon- nem nunca tiveram visibilidade lá.” alto-relevo sob um fundo de cores fortes. capitaneada pelo Instituto Memorial
sabilidade de ser o representante legíti- Santana de Almeida é formada em Seus temas principais são as entidades Lélia Gonzalez, a organização social
mo desse território. Quando a coisa flui pedagogia e faz mestrado em história, religiosas afro-brasileiras, a família e a criada por Eliane de Almeida e Rubens
é porque os caminhos estão abertos”, com foco em estudos de patrimônio, me- tia, que na infância ela idealizava como de Lima. A historiadora Melina de
diz. Embora presidente do terreiro, ele mória e identidade. É uma mulher ele- uma “fada negra”. Agora, prepara um Lima, sobrinha-neta de Gonzalez e fi-
não incorpora nenhuma entidade. Care- gante, de sorriso largo e longos cabelos novo conjunto de quadros, inspirado lha de Rubens, conta que o instituto era
ca, de barba e pele clara, Faislon parece trançados. Está no segundo casamento. nas benzedeiras das favelas cariocas. um desejo da tia-avó, que pediu que
mais um professor universitário que um Foi criada em uma família evangélica, Em 9 de março passado, sábado, ela suas ideias fossem difundidas. “O lega-
ogã, o dirigente de um terreiro. É capaz de que a obrigou a se casar cedo. Quase se inaugurou sua primeira exposição de do que a gente quer é este: Lélia Gon-
atordoar o interlocutor com um discurso tornou pastora. Foi a universidade que pintura, que foi dedicada à memória da zalez na boca do povo”, diz ela. J

DOSSIÊ

JEAN-FRANÇOIS
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anais da caserna

A COBRA E O BÚFALO
A identidade racial em xeque no encontro entre soldados brasileiros
e americanos há oitenta anos, durante a Segunda Guerra Mundial

FELIPE BOTELHO CORRÊA

ocê já viu, iaiá? No front, a cente indústria metalúrgica nacional. vam a valentia dos pracinhas diante do como firme e segura, foi quase sempre

V Lurdinha cantar? [...] A voz


do comando é firme e se-
gura/A turma avança/Nin-
guém tem paúra/Naquele
corre-corre, deixa até a roupa/Pro brasi-
leiro, alemão é sopa!
Composta em fevereiro de 1945 pelo
Entrou para o Exército aos 18 anos e, em
julho de 1944, aos 25, embarcou para
Nápoles, um importante porto de chega-
da de soldados aliados depois da recon-
quista de Roma, em junho de 1944.
A letra da marchinha mistura pala-
vras em italiano com jargão militar e
poderio militar alemão, prestes a virar
sopa no caldeirão brasileiro.
Silva fazia parte do grupo Expedicio-
nários em Ritmos, formado por praci-
nhas da feb durante a guerra. Na onda
dos populares grupos vocais da era do
rádio, com seus violões, pandeiros e
branca, pois, apesar de numerosa, a pre-
sença de negros nas Forças Armadas era
limitada às baixas patentes.
Um relatório escrito por um oficial
americano em abril de 1944 e endereça-
do ao quartel-general do Teatro de Ope-
rações do Mediterrâneo, na Itália, faz
cabo Natalino Cândido da Silva, da gírias de combate – como contou a re- ganzás, os cabos, soldados e sargentos um resumo da composição racial do
Força Expedicionária Brasileira (feb), portagem O soldado que transformou cantavam no tom da época. Numa espé- Exército Brasileiro, que naquele mo-
para celebrar a conquista de La Serra, em música uma batalha histórica para o cie de embolada-exaltação, se ufanavam mento se preparava para ser o único país
uma vila na Toscana, a marchinha de Brasil na 2ª Guerra, de André Bernardo, de tudo que No Brasil tem, título da can- latino-americano a combater na guerra:
Carnaval virou um dos hits entre os publicada na bbc Brasil (em 18/3/2018). ção composta por Seraphim José de Oli- A diferença de classes é muito aguda,
mais de 25 mil pracinhas brasileiros Lurdinha, por exemplo, era como os veira, outro companheiro do grupo, na na sociedade e no Exército. Quase sem
enviados à Itália na Segunda Guerra brasileiros se referiam à metralhadora Itália: Tem tudo que a gente quer/Tem exceção, os oficiais são da classe superior
Mundial para lutar ao lado dos Aliados alemã mg42, conhecida em inglês como morena e tem lourinha/Tem ouro e tem ou média. Na classe baixa, praticamente
contra os exércitos nazista e fascista. Hitler’s buzzsaw, por causa do som gera- café/Pois é/Mulata e escurinha/Tem a não há discriminação racial. Contudo, é
O cabo Silva foi um dos muitos ne- do pelos 1,2 mil tiros por minuto. Dona preta do Guiné/Tem macumba e embola- possível para um membro branco da classe
gros que integraram a feb. Filho de Guiomar, namorada e futura mulher do da/Também tem o candomblé. baixa ou média tornar-se membro da clas-
um caixeiro-viajante e uma lavadeira, letrista, aparece como iaiá – tratamento Historicamente, o Exército Brasileiro se alta, mas praticamente impossível para
nasceu em 1919, em Niterói, no Rio de historicamente dado a meninas e moças teve recrutas dos mais variados fenóti- um negro fazer o mesmo. Não há oficiais
Janeiro. Largou os estudos ainda no pri- negras. É ela a destinatária de notícias pos e cores. O que a letra de Natalino negros acima da patente de major.
mário para trabalhar, primeiro numa sobre os combates – elegias que, como o Cândido da Silva não mostra é que “a Apesar de não haver arquivos centrali-
plantação de abacaxi e, depois, na nas- trecho citado no início sugere, ressalta- voz do comando”, que ele caracteriza zados dos pracinhas da feb, e ser pouca a

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LAURENCE EMERY_MONDADORI PORTFOLIO_GETTY IMAGES_1944

O pracinha Francisco de Paula, em foto colorizada por Marina Amaral: a imprensa negra americana usou imagens das tropas brasileiras na campanha contra a segregação das Forças Armadas

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informação sistematizada, é possível ter gros nos relatórios de sepultamento, o A questão racial no âmbito interna- Abram caminho para a Democracia!” Os
uma ideia geral de quem eram os compa- que não necessariamente indica que cional era estratégica e preocupante veteranos negros da Primeira Guerra
nheiros de Silva e Oliveira. Do total de essa foi a proporção do total do contin- para os Estados Unidos, já que influen- Mundial carregaram à flor da pele esse
expedicionários que embarcaram, cerca gente. Ainda assim, mesmo com a limi- ciava suas próprias políticas internas. Os sentimento ao longo das décadas de
de 83% eram dos estados do Sudeste e Sul tação da amostragem e com as barreiras americanos não tinham um argumento 1920 e 1930.
do país, sendo que somente 52% eram impostas ao acesso de negros às forças e moral em relação às atrocidades basea- A cautela do governo americano
alfabetizados. Em relação ao perfil racial, a cargos mais altos, fica evidente que a das em ideologias raciais que marcaram em relação ao assunto era perceptível em
porém, os dados são mais fragmentados. feb era composta por uma variedade de os regimes nazista e fascista. No come- seus esforços de diplomacia cultural.
Os pesquisadores que se debruçaram so- “cores” que não estavam oficialmente ço dos anos 1940, boa parte do país vivia Um exemplo disso aparece em janeiro
bre o assunto embasaram suas análises segregadas, o que na época não era co- ainda uma escandalosa segregação ra- de 1942, logo após a Conferência Pan-
em amostragens que não são necessa- mum no contexto daquela guerra global. cial e cotidianos linchamentos de negros Americana realizada no Rio de Janeiro.
riamente representativas do contingente em público, principalmente nos estados Naquele momento, os estúdios Disney

A
total da feb – como os relatórios indivi- té certo ponto, a Segunda Guerra do Sul. Esse calcanhar de aquiles já era já estavam completamente abraçados à
duais de óbito de 444 soldados mortos, Mundial pode ser vista como um apontado pela imprensa negra america- economia de guerra e se sustentavam
que, obviamente, eram quase todos conflito que tinha o racismo como na1 desde a Guerra Civil Espanhola, na com a produção de inúmeras animações
combatentes da infantaria, dando pou- pólvora, e não somente entre as forças do qual alguns soldados negros do país lu- para treinamento militar. Logo após uma
cas pistas sobre áreas como artilharia, Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Na cam- taram em unidades de voluntários ra- turnê por vários países latino-america-
engenharia, saúde, entre outras. panha da Itália, por exemplo, que contou cialmente integradas.2 Assim que Hitler nos em 1941, Walt Disney pediu a Ro-
Há também cerca de 1 150 fichas de com forças de países como Estados Uni- ascendeu ao poder, em 1933, muitos jor- bert Spencer Carr, diretor de pesquisa
reservista que sobreviveram ao tempo. dos, Polônia, Grécia e Reino Unido nalistas negros reconheceram as seme- educativa do estúdio de animação, para
Esses documentos contêm uma série de (além de Canadá, Austrália, Índia, Nova lhanças entre as políticas raciais do enviar um relatório ao Escritório do Co-
dados individuais dessa parcela de expe- Zelândia e África do Sul, todos ainda sob Terceiro Reich e do governo americano ordenador de Assuntos Interamericanos
dicionários, incluindo alfabetização e os auspícios do Império Britânico), prati- – as leis racistas de Nuremberg logo fo- (Ociaa, na sigla em inglês) –, a agência
cor, com designações que variam entre camente todos os exércitos combatentes ram identificadas como uma versão das do governo responsável pela cooperação
branco, negro, pardo, moreno, pardo-es- eram racialmente segregados. Como a leis Jim Crow do Sul dos Estados Uni- interamericana na década de 1940. Inti-
curo e amarelo, seguindo, em grande frase do oficial americano sugere (“Na dos.3 Na chamada luta das democracias tulado Ideas for more Walt Disney films
parte, o padrão do Censo de 1940. Al- classe baixa, praticamente não há discri- contra o nazifascismo, a segregação ra- for South American release (Ideias para
guns pesquisadores usaram as fotos 3x4 minação racial”), no olhar de um estran- cial americana surgia portanto como mais filmes de Walt Disney a serem lan-
dos documentos para tentar definir a cor geiro a feb aparecia portanto como uma uma evidente contradição. çados na América do Sul), o relatório
para além do que está escrito, já que as espécie de exceção. Na Itália, foram os A entrada dos Estados Unidos na descrevia o potencial das coloridas ani-
práticas de “branqueamento” eram co- americanos que acolheram a feb, tor- guerra, no final de 1941, deixou ainda mações no esforço político e militar de
muns no preenchimento dos relatórios. nando-se responsáveis por boa parte do mais saliente o disparate da retórica de- influência regional, estabelecendo os prin-
Em todos os métodos, o percentual de treinamento e armamento dos soldados mocrática em meio à realidade da segre- cípios para a empreitada. O quarto tema
brancos é maioria, seguido por pardos brasileiros, e até mesmo do fornecimento gação racial. Não demorou muito para estratégico (num total de 49) sugeria que
nos certificados de reservista ou por ne- de uniformes adequados ao clima frio. que surgisse a campanha da dupla vitória os filmes fizessem comparações entre os
(Double V), com o primeiro artigo publi- exércitos e marinhas dos países aliados
cado em janeiro de 1942 pelo Pitts- nas Américas com aqueles do Eixo, num
burgh Courier.4 Para muitos negros simples exercício de demografia que
americanos, o objetivo da guerra teria como pano de fundo “um
era vencer o nazifascismo no sentimento caloroso de amizade
exterior e o racismo interno do e solidariedade inter-racial, com
país. De certa maneira, a cha- o objetivo de neutralizar a pro-
mada dupla vitória já tinha paganda do Eixo sobre os pre-
sido conclamada em outros conceitos raciais do Tio Sam”.
momentos com objetivos se- Naquele mesmo ano, a toque
melhantes. Quando o escritor e de caixa (em apenas oito sema-
abolicionista Frederick Douglass nas), o estúdio Disney produziu e
encorajou os negros livres a se jun- lançou Alô, amigos, com segmentos
tarem ao Exército em 1863, ele descreveu sobre Peru, Argentina, Chile e Brasil.
a Guerra Civil como uma “batalha du- A famosa cena do encontro do Pato Do-
pla, contra a escravidão no Sul e contra nald com Zé Carioca no Rio de Janeiro,
o preconceito no Norte”. Em 1919, o es- tendo Aquarela do Brasil de Ary Barroso
critor e sociólogo W. E. B. Du Bois en- como fundo musical, é um óbvio exem-
corajou os quase 350 mil soldados plo do que Carr sugere, dentro da ampla
negros que serviram durante a Primei- política de boa vizinhança e do potencial
ra Guerra Mundial (1914-18) a “batalha- das animações de transmitirem “um pro-
rem contra as forças do inferno em nossa fundo sentimento religioso que pode ser
própria terra”. Ele escreveu: “Nós retor- associado a ideais políticos”. O Pato
namos da luta. Nós retornamos lutando. Donald era a figura mais popular do es-
túdio na época (tão popular que era
1 Os Estados Unidos têm uma forte tradição de jor-
quem mais aparecia em distintivos e até
nais feitos para grupos específicos da sociedade, in- aeronaves de diversas unidades do Exér-
cluindo a população negra. A publicação mais antiga
da chamada “imprensa negra” é o Freedom’s Journal,
cito americano, depois de Walt Disney se
publicado em 1827. dispor a desenhar e dar uma identidade
2 Organizado pela Internacional Comunista, o Bata-
lhão Lincoln foi formado por voluntários brancos e
visual aos combatentes). Apesar de usar
negros dos Estados Unidos que serviram na Guerra uniforme de marinheiro desde sua cria-
Civil Espanhola como soldados, técnicos, médicos e
aviadores lutando com os republicanos contra as for-
ção em 1934, Donald muda de força e
ças lideradas pelo general Francisco Franco. aparece em 1942 se alistando no Exérci-
3 As leis Jim Crow foram um conjunto de medidas le-
gais adotadas por estados e cidades do Sul dos Estados
to. É o primeiro de uma série de seis fil-
Unidos, com o objetivo de segregar os negros, depois mes produzidos naquele ano que trata do
da Guerra Civil (1861-65) e da abolição da escravidão
no país. Entre outras coisas, as leis impuseram até
cotidiano do pato durante a guerra.
1965 a segregação em escolas, transportes públicos, No encontro com Zé Carioca, portan-
restaurantes, banheiros e nas Forças Armadas.
4 James G. Thompson. “Should I Sacrifice to live ‘Half
to, Donald já representava a figura de um
American’?”, Pittsburgh Courier, 31/01/1942. militar americano branco (na América do

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Ministério da Cultura, Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo e Instituto Tomie Ohtake apresentam:

Norte, a plumagem de patos tem uma décadas depois, como na Primeira


variada paleta de cores, mas Donald sem- Guerra Mundial e na Guerra da Coreia
pre foi branco). Na cena de Alô, amigos (1950-53). Na Segunda Guerra Mun-
em que Zé Carioca surge aos poucos das dial, várias outras unidades de soldados
tintas do ilustrador, o último elemento negros embarcaram, somando mais de

MARIA LIRA
que aparece é a cor do papagaio: verde. 1 milhão de militares afrodescendentes.
Donald vê as cores da natureza tropical e Mas a Divisão Búfalo foi a única que
dá um abraço no novo amigo, abraço esse participou de combates na Europa. Jun-
que ele nunca daria em seu país (na defi- to com a feb, tinha a missão de ajudar
nição racial dos Estados Unidos, Zé Ca- a expulsar o exército de Hitler da Itália.

MARQUES
rioca, morador do morro e estereótipo de Embora soldados negros americanos
um malandro do Rio de Janeiro, seria ra- tivessem combatido em praticamente
cializado como colored). Donald escuta o todas as guerras travadas dentro ou fora
samba exuberante com arranjos de big do país até aquele momento, o período
band de jazz, mas não entende a letra que entre as duas guerras mundiais tinha
fala de mulato, mãe preta e rei Congo. modificado essa dinâmica. A partir da
Não é gratuito que o filme tenha sido década de 1920, no auge das teorias eu-
construído tentando apagar qualquer ves- genistas no mundo, diversas estruturas
tígio de preconceito racial. Naquele mes- foram implementadas para impedir que
mo ano de 1939, quando Barroso abria as negros se alistassem no Exército. Em
cortinas do passado para cantar sobre um 1925, a Escola de Guerra do Exército,
“mulato inzoneiro”, a trilha sonora nos Es- uma das principais escolas de formação
tados Unidos era diametralmente diferente de oficiais dos Estados Unidos, publicou
em relação aos negros: é o ano em que um relatório intitulado The use of negro
Billie Holiday gravou Strange fruit (Fruta man power in war (O uso da mão de obra
estranha), canção seminal composta por negra na guerra), resumindo avaliações
Abel Meeropol, falando sobre árvores que de oficiais brancos sobre o desempenho
em lugar de folhas verdes e doces frutos das tropas negras em conflitos, princi-
tinham folhas manchadas de sangue e cor- palmente na Primeira Guerra Mundial.
pos negros pendurados por causa de lin- As avaliações foram feitas usando crité-
chamentos (a revista Time elegeu Strange rios como craniometria e outras teorias
fruit a canção do século em 1999). pseudocientíficas da antropologia física
No filme de Walt Disney, a represen- do começo do século xx para argumen-
tação de um “sentimento caloroso de tar que os negros careciam de inteligên-
amizade e solidariedade inter-racial” é cia, coragem e caráter moral para
clara: não importa se são patos ou papa- prosperar como líderes militares ou
gaios, ambos são aves. O encontro mis- soldados. Na visão racista do relatório,
tura curiosidade, surpresa, amizade e o soldado negro era mentalmente infe-
diversão. Nos princípios estratégicos rior ao branco; profundamente supersti-
elaborados por Carr, os filmes dos estú- cioso; naturalmente subserviente; alegre
dios Disney tinham o potencial simbó- e dócil por natureza; sem coragem ou
lico de dar “um buquê para cada país resistência; além de amoroso e medroso.
latino-americano, mostrando e contan-
do o que cada um está contribuindo
para a vitória”. No caso do Brasil, tal
contribuição parecia ser em relação à
Segundo o mesmo relatório, ao soldado
negro faltava também uma bússola mo-
ral para diferenciar o certo do errado.
Essas não eram as crenças isoladas de
RODA DOS
tensa questão racial daquele período. um indivíduo ou grupo preconceituoso,
mas a posição oficial do Exército dos BICHOS
É
difícil pensar que tenha sido coinci- Estados Unidos. A ideia principal do re-
dência a feb ter sido enviada para a latório era justificar o direcionamento
guerra no mesmo mês e para o mes- dos negros para unidades de serviço e
mo local que os cerca de 15 mil soldados suprimento em vez de batalhões de
negros da 92a Divisão de Infantaria do combate, retirando as armas de unida-
Exército dos Estados Unidos, conhecida des como a Divisão Búfalo. O relatório
como Buffalo Soldiers. A origem dessa era uma espécie de justificativa para o
divisão remonta à Guerra Civil do país, crescente embranquecimento do Exér-
quando cerca de 186 mil soldados negros cito: a sua porcentagem de afrodescen-
fizeram parte do Exército lutando em
unidades racialmente segregadas. A Di-
visão Búfalo era uma dessas unidades (o
dentes caiu dramaticamente no período
entre as duas grandes guerras mundiais:
de cerca de 10% em 1917 para menos de
2.MAR — 2.JUN 2024
apelido foi dado por combatentes indí- 2% em 1937. Enquanto 1 em cada 10
genas em referência aos cabelos escuros cidadãos americanos era negro, no Exér-
e encaracolados dos soldados que, quan- cito essa proporção se reduzia a 1 em
do montados em cavalos, lembravam a cada 50 soldados. Expressão de uma
pelagem de um búfalo). geração de oficiais brancos formados
Após a Guerra Civil, em 1866, os em meio às tensões geradas pelas leis
Buffalo Soldiers foram oficialmente re- Jim Crow, o relatório de 1925 formou
conhecidos pelo Congresso americano boa parte dos oficiais que estavam em Patrocínio

e se tornaram o primeiro regimento to- posições de comando nos anos 1940.


talmente negro no Exército regular dos O comandante da 92ª Divisão, ma-
Estados Unidos em tempos de paz, en- jor-general Edward Almond, era natural Acesso Tomie Apoio Apoio de mídia

carregados de proteger os assentamentos da Virgínia, estado do Sul com estrito


na fronteira ocidental. A unidade com- regime de segregação, e um veterano da
batente foi reativada em outros conflitos Primeira Guerra Mundial. Tinha, por-
Idealização Realização

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A
tanto, preconceitos arraigados e molda- tropas negras em combate tinham pro- inda que a feb fosse percebida co- No Estado Novo, contudo, essa dife-
dos por sua origem e pelo relatório de duzido mais decepção do que qualquer mo menos discriminatória, havia renciação racial passou a ser explícita. Em
1925, que balizou sua formação como outra coisa. Em situações semelhantes paralelismos claros entre essa pos- 1938, Dutra decretou que a partir daquele
oficial. Ele acreditava firmemente que a com unidades de brancos, os pesos e as tura do Exército americano e algumas ano não seriam admitidos no concurso
integração racial enfraqueceria o Exér- medidas eram diferentes. As derrotas práticas do Exército Brasileiro que filtra- candidatos que, a juízo do comandante da
cito. “Não há dúvida em minha mente passavam a ser “derrocadas gloriosas”, vam o acesso de negros às altas patentes. escola militar, não satisfizessem as condi-
sobre as diferenças inerentes entre as como descreveu o título de um artigo Durante o período do Império, quando ções de “bons antecedentes e predicados
raças”, disse Almond. Ele se opôs à inte- publicado no Saturday Evening Post não existia o serviço militar obrigatório, as pessoais”. Tais predicados ficam mais cla-
gração militar até sua morte em 1979 e para elogiar a coragem de uma divisão fileiras militares brasileiras eram predomi- ros na Nota Secreta de 22 de janeiro de
nunca acreditou que negros pudessem de infantaria de novatos brancos. nantemente preenchidas por recrutas das 1941, que o general envia ao comandante
ser bons soldados. Os líderes do Exército Para avaliar de perto o desempenho classes baixas, com grande representação da Escola Militar do Realengo. Nela, o
regularmente escolhiam comandantes da Divisão Búfalo, o secretário de de negros. Ainda que sejam exemplos ministro da Guerra determina que na se-
brancos do Sul dos Estados Unidos para Guerra Henry Lewis Stimson enviou o muito minoritários, houve até mesmo uni- leção preliminar dos concorrentes fossem
liderar unidades negras porque, segun- advogado negro Truman Gibson, seu dades formadas exclusivamente por ne- rigorosamente observadas as seguintes
do um pensamento comum na época, assessor civil que representava os mili- gros. Na época da Independência, havia condições para qualquer candidato: ser
eles sabiam como controlar essas tropas. tares negros no Exército, para a Itália. os regimentos denominados Henriques brasileiro nato e filho legítimo de brasilei-
Desde que tinha sido reativada em Depois de conversar com mais de mil (em referência a Henrique Dias, que lide- ros também natos; pertencer a família or-
1942, a 92ª Divisão do Exército ameri- oficiais e soldados, ele apresentou suas rou uma tropa de negros livres contra os ganizada e de bom conceito; ser física e
cano tinha se tornado uma espécie de conclusões numa coletiva de imprensa holandeses em Pernambuco). Com a cria- mentalmente sadio; não ser – nem seus
teste racial. Cada movimento da divisão em março de 1945. Em sua avaliação, ção da Guarda Nacional em 1831, contu- pais – judeu, maometano ou ateu confes-
era acompanhado de perto por autorida- reconheceu que o desempenho da divi- do, o governo aboliu a milícia de homens so; não ser de cor. Não cabia recurso dos
des militares e pela imprensa, e seu de- são estava aquém das expectativas e que negros. Na Bahia e em Pernambuco tam- candidatos quanto aos pareceres desfa-
sempenho em combate era celebrado e alguns soldados entraram em pânico e bém surgiram unidades negras para com- voráveis do comandante da escola, que
criticado de acordo com a posição polí- recuaram. Mas também destacou como bater na Guerra do Paraguai (1864-70), eram arquivados de maneira confidencial.
tica de quem o fazia. Quando sofreram o Exército tinha minado a tropa negra quando mais de mil homens se organiza- Alguns desses pareceres desfavoráveis fo-
derrotas, como a devastadora ofensiva desde o treinamento em Fort Huachu- ram em companhias denominadas de ram encontrados décadas depois e mos-
alemã na última semana de 1944, mui- ca: “Você não pode treinar um homem zuavos, couraçadas ou sapadores. tram claramente o porquê de o Exército
tos argumentaram que a unidade não para ser um soldado combatente por No final do século xix, que trouxe a não ter, fora uma ou outra exceção, ofi-
era adequada para o combate. Oficiais oito horas por dia e depois discriminá- abolição da escravatura e a República, ciais negros na época. Em um deles, lia-
brancos culpavam as tropas negras pelo lo por sua raça quando ele deixa o o Exército Brasileiro já era composto se: “É de cor. De pigmentação não muito
fracasso da divisão em capturar e man- acampamento à noite”, disse ele. “Não por um enorme contingente de todas as escura, tem, entretanto, todos os traços
ter pontos-chave do inimigo. Essas preo- há dúvida em minha mente sobre a co- cores, que preenchiam as fileiras como característicos dos pretos. É um tipo que
cupações rapidamente encontraram ragem de oficiais ou soldados negros e soldados, cabos e sargentos. Não era in- se aproxima do vulgarmente conhecido
espaço na imprensa americana, com qualquer generalização com base na comum encontrar oficiais negros com por sarará.” Ainda que os pracinhas se mis-
artigos sugerindo que os esforços das raça é totalmente infundada.” patentes de alferes, tenente e capitão. turassem – dando a impressão de um sin-
A participação significativa de negros cretismo fluido a olhos estrangeiros –, as
na Guerra do Paraguai, inclusive de ex- barreiras para o ingresso e ascensão na
escravizados, tinha sido um caminho carreira militar estavam presentes.
para a ascensão ao baixo oficialato, ain-

Q
da que não haja registros de generais uando os soldados da Divisão Búfa-
negros naquela época. lo desembarcaram em Nápoles em
Com a implementação do serviço julho de 1944, no mesmo mês que
militar obrigatório em 1916, porém, o os primeiros expedicionários brasileiros
cenário mudou. O fator compulsório, chegaram, estavam aliviados por terem
ainda que por sorteio, tinha o objetivo deixado as opressões a que eram subme-
de constituir uma reserva. Indireta- tidos cotidianamente enquanto treina-
mente, a consequência foi uma espécie vam em Fort Huachuca (em Tucson, no
de embranquecimento da tropa, com Arizona), próximo à fronteira com o Mé-
táticas de influência política interferin- xico. Antes da chegada da divisão, havia
do nos processos de dispensa de recru- muitos soldados negros em posições de
tas vindos de diversas camadas da apoio na Itália (carregando munição,
sociedade brasileira. combustível ou comida), mas soldados
Com o começo da ditadura do Esta- negros combatentes não eram algo co-
do Novo sob a liderança de Getúlio Var- mum, e isso gerava certo respeito.
gas em 1937, o ministro da Guerra, Os nazistas tinham fortificado as im-
general Eurico Gaspar Dutra, impôs ponentes montanhas dos Apeninos com
várias mudanças estruturais na organi- artilharia, casamatas, ninhos de metra-
zação do Exército, centralizando no seu lhadoras e bunkers, mas depois que os
próprio ministério a direção-geral da Aliados capturaram Roma, em junho de
força militar, com o Estado-Maior pas- 1944, Hitler ordenou que suas tropas
A EXPOSIÇÃO PRINCIPAL sando a ser apenas um órgão de con- recuassem para o Norte da Itália e de-
ESTÁ FECHADA PARA
OBRAS DE RENOVAÇÃO. sulta. A reestruturação foi extensa e fendessem a todo custo a Linha Gótica,
também modificou os processos de ad- considerada a nova fronteira Sul do na-
missão às escolas militares, responsáveis zismo. O objetivo dos Aliados naquele
por formar os futuros oficiais. Essas es- momento era, portanto, romper essa li-
EXPOSIÇÃO TEMPORÁRIA | FUTEBOL DE BRINQUEDO
colas de formação de oficiais do Exérci- nha, uma barreira defensiva de mais de
PATROCÍNIO MÁSTER PATROCÍNIO

to, que se espalharam pelos exércitos 320 km de extensão, que se estendia do


nacionais na segunda metade do século Mar da Ligúria ao Mar Adriático.
xix, já atuavam como um dos principais A feb e a 92ª Divisão combateram jun-
MUSEU DO FUTEBOL filtros de seleção no meio militar. No tas, com suas subunidades substituindo-se
GESTÃO PARCERIA DE MÍDIA CONCEPÇÃO
caso brasileiro, as escolas tornaram o le- mutuamente em vários momentos. Quan-
tramento um grande diferenciador, o do os brasileiros inicialmente encontra-
que determinou também uma estrutu- ram o Exército segregado dos Estados
ração racial, ainda que indiretamente. Unidos, reagiram com curiosidade e es-
REALIZAÇÃO

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panto à mera ideia de que tal prática tinha ressentimento algum, que os ameri-
existisse. Para a maioria, era a primeira canos apresentavam ressentimento em
experiência fora do Brasil, e as relações tudo, no gesto, no rosto.
raciais dos americanos pareciam um con- Nessas zonas de contato, brasileiros e
ceito alienígena. Uns expressaram o cho- americanos encenaram um jogo de es-
que pela profunda separação que viam, pelhos, definindo a si mesmos pela ima-
outros reagiram assinalando que aquilo, gem do outro. O espanto dos brasileiros
sim, era racismo real. Outros apontaram só foi possível porque a realidade que 7 anos
que os negros americanos gostavam dos testemunharam na Itália não condizia
brasileiros por não verem neles o precon- com as formas de racialização que lhes
ceito racial. Alguns brasileiros eram tão eram familiares. A crítica ao modelo
desinformados que acharam um absurdo americano vinha quase sempre acompa-
os Estados Unidos não terem alguma lei nhada de uma visão ingênua do Brasil
que proibisse aquela separação, ignoran- como um modelo sem discriminação.
do que eram justamente leis que estru- O espanto foi mútuo. Os soldados ne-
turavam a segregação. Os oito tomos da gros americanos ficaram surpresos ao
História oral do Exército na Segunda encontrar as tropas brasileiras integra-
Guerra Mundial – publicados em 2001 das e demonstraram interesse especial
pela editora brasileira Biblioteca do Exér- na questão racial entre as patentes. Há
cito, com transcrições de 182 entrevistas várias histórias contadas por brasileiros Tom Zé
de veteranos da feb – contém um rico apa- sobre americanos curiosos por saber 04.05
nhado dessas impressões sobre a Divisão como funcionavam as hierarquias entre
Búfalo. Eis aqui uma pequena seleção: os integrantes da feb, já que essas muitas
General de brigada Rubens Resstel: vezes cruzavam a chamada “linha de
Os nossos negros eram tratados iguais cor” que dividia os americanos. O se-
a todos, tínhamos, dentre eles, oficiais e gundo-sargento João Ferreira de Albu-
sargentos corajosos. Já a divisão america- querque, que era branco, conta que,
na, só de negros, era desmotivada e todas quando estavam sendo substituídos pela
as vezes que essa divisão ficava cobrindo Divisão Búfalo em Lizzano, um capitão
nosso flanco, nos inquietávamos, porque, americano achou estranho que um cole-
a qualquer manifestação dos alemães, ga de Albuquerque – também sargento, Amaro Freitas e Zé Manoel
eles largavam tudo, pois não queriam se mas negro –, desse ordens a outro solda-
sacrificar por uma nação e um povo que do branco. Albuquerque respondeu que convidam Alaíde Costa
os desprezavam. não era problema porque no Brasil não 23.05
Major Elza Cansanção Medeiros: havia preconceito. “Ele [o americano]
Nós insistimos em enviar enfermeiras falou que estava espantado, porque na
de cor, o que nos criou um imenso proble- sua divisão, de major para cima, só podia
ma. Das três mulatas que foram, duas nos ser branco. Ficaram admirados de nos
deram muito trabalho, pois os americanos ver brincando sem preconceito ou linha
não admitiam nem mesmo mulatas. Isso de cor”, contou Albuquerque.
nos criou situações dificílimas. Os ameri- Apesar de não haver extensas refe-
canos não as aceitavam de jeito algum e rências aos brasileiros nos testemunhos
essa foi uma briga muito séria. [...] En- dos veteranos negros americanos sobre
frentamos o americano em 1944 e leva- a guerra, é possível encontrar algumas.
Trio Mocotó
mos a nossa gente, inclusive enfermeiras Aos 19 anos, James Harden Daugherty, convida Liniker
mulatas, para participar da guerra. En- nascido no estado de Maryland, mas na Abertura: BNegão Bota Som Teresa Cristina
tão, não adianta insistir com essa his- época trabalhando para o governo no 03.05 11.05
tória, porque não existiu nenhum birô de impressão do Tesouro, foi alista-
preconceito no Brasil. Há uma integração do na Divisão Búfalo. Em seu livro de
das três raças, graças a Deus. A pura raça memórias, The Buffalo saga (2009), ele
brasileira é uma mestiçagem. relembra o encontro com os pracinhas
Soldado voluntário Oswaldo Gudol- nas montanhas do Norte da Itália:
le Aranha: Os brasileiros apresentaram uma ima-
A 98a [de fato a 92ª] Divisão era bem gem que nos deixou desapontados [com
equipada, os soldados bem uniformizados. nós mesmos]. As tropas não eram segrega-
Eram homens enormes, como jogadores de das por causa de sua cor como nós éramos.
basquete. Eu estive com eles quando vol- As unidades eram mistas. Brancos, negros, Marina Lima
tamos dos Apeninos para Roma. Meu amarelos ou vermelhos, todos lutavam e Boogarins convida Filipe Catto
caminhão quebrou o eixo e fui a uma se- viviam juntos. Os oficiais eram homens de 16.05 17.05
ção da 98a [92ª], não sei se de Infantaria todas as tonalidades. A imagem que essas
ou de Artilharia, para trocar de caminhão. tropas apresentavam deixou muitas men-
[...] Do soldado ao sargento, todos eram tes pensativas. Perguntei a um soldado
negros, de segundo-tenente em diante, brasileiro se havia alguma segregação no
eram brancos. Naquela época, era muito Exército. Ele disse: “Não, não há.” Ele me
forte o racismo nos Estados Unidos. Nos- disse que eles nem sequer pensavam em
sos homens negros não entendiam isso. segregação e ficou surpreso que tal coisa
Eles viam os negros americanos como ho-
mens duros, sofridos. Eu até brinquei com
existisse no Exército dos Estados Unidos.
Em 1943, um ano depois de entrar
Nos
o Adão, um soldado enorme, simpático, para a universidade, Ivan James Houston encontramos Ingressos:
um carioca engraçado. Disse-lhe, uma também foi chamado para servir entre os
vez, para ir conversar com seus irmãos búfalos. No fim da guerra, ele voltou e
na música casanaturamusical.com.br
americanos, pois eles estavam acampados concluiu o curso, e mais tarde se tornou
próximos de nós. O Adão disse que não era uma figura de grande influência nas co-
negro, era de origem africana, que não munidades negras americanas. Em seu
Cia Aérea Oficial: Apoio:

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o guardião do cemitério, cargo que ocu- ção. Curiosamente, a imagem de identi-
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pou até 2021 na Embaixada do Brasil em ficação que os pracinhas carregavam no


Roma, quando foi demitido por ter expres- uniforme logo que chegaram à Itália era
sado a contradição da visita do então pre- bastante simples: um escudo com fundo
sidente Jair Bolsonaro a um monumento verde e a palavra Brasil em letras brancas.
dedicado à luta pela democracia. A figura da cobra fumando, que se tornou
Para mim, a viagem tinha também a o símbolo oficial dos expedicionários, só
ver com uma questão familiar. Tenho surgiu em outubro de 1944, portanto de-
uma insaciável curiosidade sobre o pas- pois do embarque. A origem do emblema
sado e respeito por meus ancestrais. De é dúbia. Entre as muitas teorias que exis-
alguns sei alguma coisa por meio de ar- tem, a mais citada se refere ao ceticismo
quivos. De outros, por serem negros, te- do Brasil sobre conseguir enviar soldados
nho mais sorte de conhecê-los por meio ao conflito mundial. Reza a lenda que
da história oral da família. Insatisfeito, alguém teria dito (não se sabe quem, exa-
debruço-me sobre textos e arquivos para tamente) que era mais fácil uma cobra
tentar ter uma ideia das épocas de suas fumar do que o país ir à guerra. Contudo,
vidas. Ao conversar com Mario, me lem- a expressão só se tornou conhecida quan-
brei da história de meus bisavós. Foi tam- do os pracinhas já estavam em combate
bém um casamento ítalo-brasileiro, mas na Itália, o que contradiz a explicação.
com uma diferença importante na mis- Outra explicação para a origem da
cigenação: ele era negro e baiano de Feira expressão é um episódio ocorrido em um
de Santana; ela, branca e filha de imi- bar da cidade de Nova Iguaçu, região
grantes italianos pobres vindos da Calá- metropolitana do Rio de Janeiro, em fins
bria, no Sul da Itália. Membro do corpo de 1943. O dono do estabelecimento te-
da Marinha Mercante, meu bisavô pas- ria feito uma brincadeira com um cliente
sava meses no mar e, quando voltava, negro que acabara de ganhar uma aposta
fazia filhos – foram nove, ao todo. Entre no jogo do bicho, acertando na cobra.
suas histórias, há aquelas relacionadas à Depois de pagar uma rodada de cerveja
guerra, como quando viu navios brasilei- para alguns companheiros como celebra-
ros sendo bombardeados por submarinos ção, o ganhador pediu ao dono do bar um
livro Black warriors: the Buffalo soldiers Alguns poucos meios, contudo, já co- (provavelmente alemães) e afundando. charuto. Os presentes, então, começaram
of World War II (Guerreiros negros: os meçavam a desconstruir essas visões do Nesse sentido, minha viagem à Itália era a fazer piadas sobre a situação. Enquanto
soldados búfalo da Segunda Guerra paraíso, mostrando que, apesar de di- também uma forma de saber um pouco o ganhador soltava nuvens de fumaça, o
Mundial), de 2009, ele fala sobre o en- ferente, o racismo estava presente em mais sobre o mundo que meus ances- dono do bar brincou com a súbita pros-
contro com os brasileiros como uma es- vários âmbitos da sociedade brasileira. trais experimentaram. peridade do cliente e disse em voz alta:
pécie de epifania: O número inaugural da revista Ebony, em Na Toscana, além de visitar o cemi- “Olhem só como a cobra está fumando!”
Descobrimos que os jovens robustos novembro de 1945, saiu com um artigo tério dos pracinhas e o monumento que O premiado, contudo, não gostou da ga-
que passaram correndo pelo nosso acam- que professava “A verdade sobre o Brasil”, os homenageia, todo o grupo subiu o lhofa e provocou um grande rebuliço no
pamento descalços e vestidos com shorts argumentando que, se por um lado o país Monte Castello com Mario, entramos local. Quando o Carnaval chegou, em
roxos eram membros da Força Expedicio- estava numa posição ímpar no mundo em na rede de casamatas que os alemães fevereiro de 1944, a piada estampou o
nária Brasileira. Imediatamente percebe- termos de discriminação racial, por outro construíram nas pedras da comuna estandarte de um efêmero bloco com a
mos que os brasileiros, que falavam não era coincidência que a maioria dos Borgo a Mozzano e, no caminho, con- imagem de uma cobra fumando um ca-
português, estavam integrados, negros e negros estivesse nas classes mais pobres. versamos com colecionadores, admira- chimbo. Um jornal acabou estampando
brancos juntos. Isso foi uma revelação. Essa posição crítica era ainda mais con- dores e pessoas que conviveram com os uma foto de um homem negro, proferin-
A participação das tropas brasileiras tundente entre certos acadêmicos, que se soldados brasileiros durante a guerra. do a frase – e meses depois ela se tornou
racialmente integradas também chamou anteciparam a algumas das conclusões No alto de uma colina em Castelnuo- um grito de guerra da feb na Itália.
a atenção da imprensa negra americana, que surgiram de estudos financiados vo di Vergato, numa casa simples, feita No imaginário brasileiro e mundial, a
que usou fotos das tropas brasileiras em pela Unesco no Brasil ao longo da dé- de pedras, com portas e janelas pintadas de feb é uma entidade de pouca expressão
suas páginas como munição para a lon- cada de 1950. Em 1942, por exemplo, verde, Iolanda Marata (que morreu sete na história da Segunda Guerra Mundial.
ga campanha pela dessegregação das W. E. B. Du Bois já apontava numa pa- anos depois, em 2023) nos contou um Quando o jornalista William Waack
Forças Armadas. As fotos vinham acom- lestra proferida no Vassar College, em pouco sobre sua infância e seu contato conversou com vários ex-combatentes
panhadas por títulos como Negros e Nova York, que a ausência tanto de uma com os pracinhas. “Os soldados brasilei- alemães no começo da década de 1980
brancos lutam juntos pelo Brasil. Por que rígida classificação racial quanto de ten- ros ficaram na nossa casa durante uns seis sobre a feb, muitos ficavam surpresos ao
não pelos Estados Unidos? ou O Brasil sas relações raciais tinha gerado uma li- meses, porque nós estávamos exatamente saber, durante a entrevista, que tinham
mostra como a democracia deve funcio- nha de classe econômica, na interseção na linha de frente. Os alemães chegaram lutado contra brasileiros. No entanto, o
nar.5 Essa imagem do Brasil como uma entre cor e pobreza, mantendo uma imen- primeiro, mas tiveram que bater em reti- encontro dos exércitos do Brasil e dos Es-
“democracia racial” teve bastante pre- sa classe de trabalhadores negros brasi- rada com o avanço dos brasileiros.” Com tados Unidos são desses eventos únicos
sença na imprensa negra americana ao leiros numa condição de exclusão. um sorriso no rosto, ela lembrou: “Eu que cristalizam momentos históricos e
longo das décadas de 1930 e 1940, com muitas vezes comia com os brasileiros ajudam a demarcar mudanças substan-

E
caracterizações lisonjeiras em veículos m 2016, fui à Itália para refazer os porque eles faziam um prato, uma mis- ciais, como é o caso da questão racial.
importantes sempre enfatizando a com- passos da feb, numa excursão orga- tura, que eles chamavam de mingau.”

A
paração entre os dois países. Títulos nizada pelo Instituto de Estudos Bra- A mistura brasileira, incluindo a racial, expressão “democracia racial” já era
como Brasil negro: a ausência da linha sileiros do King’s College de Londres também tinha ficado na memória dos usada na imprensa americana desde
de cor na república sul-americana6 e No – universidade na qual leciono. A visita foi italianos locais. Em várias conversas, eles ao menos o começo do século xx
Brasil quase não há preconceito racial 7 guiada por Mario Pereira, filho de Miguel enfatizaram a diferença entre brasileiros para reivindicar direitos civis. Ou seja,
eram comuns e ajudavam a dar uma Pereira, único pracinha a ter permanecido e americanos nas relações raciais e como democracia racial era o oposto da aristo-
imagem popular sobre a questão. na Itália, encarregado pelo governo brasi- aquilo tinha influenciado a imagem que cracia ou autocracia racial das bizarras
leiro de cuidar do cemitério das vítimas formaram sobre os brasiliani. leis Jim Crow de segregação. A novidade
5 Publicados nos jornais The Afro-American e New
brasileiras da guerra, localizado em Pis- Nos pequenos museus da região, vi- que surge daquela zona de encontro glo-
York Amsterdam News, respectivamente, ambos em toia, na região da Toscana. Soldado gaú- mos um pouco da parafernália militar bal é a transposição de uma reivindicação
17 de junho de 1944.
6 Artigo de Harold Preece publicado no Negro Digest,
cho natural de Passo Fundo, Pereira, o que sobreviveu: armamentos, itens médi- dos negros americanos para o contexto
em 1º de setembro de 1943. pai, se casou com seu “amor de guerra”, cos, mapas, uniformes e até mesmo inú- brasileiro, por meio do contato com a
7 Artigo comentando palestra do acadêmico E. Franklin
Frazier, publicado no New York Amsterdam News, em
Giuliana Menichini, uma italiana de Pis- meros distintivos de guerra, usados nas feb, que aparecia como uma síntese ra-
17 de março de 1945. toia. Após a morte do pai, Mario se tornou mangas dos uniformes como identifica- cial do Brasil numa arena internacional.

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Na medida em que o Brasil foi se in- legislação, de rompante. A lei – que des-

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serindo no debate mundial sobre o racis- de a aprovação até a sua reformulação em
mo, a expressão “democracia racial” 1988 só condenou sete pessoas –, ajudou,
desligou-se de sua conotação associada mesmo que indiretamente, a sustentar o
ao contexto americano e passou a funcio- negacionismo que envolve a discussão
nar como uma espécie de soft power bra- racial no Brasil.
sileiro que poderia agir como bússola no Ainda assim, mesmo com todas as crí-
pós-guerra. Consta que o médico e etnó- ticas e desconstruções a que foi submeti-
logo Arthur Ramos (1903-49) usou a ex- da a ideia de democracia racial no Brasil,
pressão pela primeira vez em 1941, essa imagem acabou por se cristalizar na
quando se encontrava fora do país, du- identidade nacional. A ideologia conti-
rante um seminário internacional sobre nuou a operar como “senso comum”, e
o lugar do Brasil no mundo. Com a dita- provavelmente ainda opera de maneira
dura de Vargas, Ramos tinha pouco a geral. Isso ocorre porque o principal com-
dizer sobre liberdades democráticas no ponente dessa narrativa, a miscigenação,
país e optou por complexificar o próprio de fato reflete aspectos importantes da
conceito de democracia. “Tomei parte na realidade vivida no país, pelo menos den-
discussão, declarando que não sabíamos tro de uma parcela da sociedade: as iden-
[no Brasil] o que era realmente um am- tidades raciais são variadas e heterogêneas,
biente democrático, porque ao falarmos em vez de polarizadas, e a fluidez das re-
de democracia temos que separar vários lações sociais permite a convivência
conceitos, como, por exemplo, democra- racial, evitando a segregação explícita.
cia política, democracia social, demo- A ênfase nesses aspectos ajudou a mini-
cracia racial, democracia religiosa etc.” mizar o impacto do racismo no país.
A democracia racial era um debate im- O que as melhores pesquisas desde a
portante nos Estados Unidos, principal- década de 1950 até o presente mostram
mente na questão do acesso à moradia, já é que o Brasil pode ser ambas as coisas
que juridicamente brancos e não brancos ao mesmo tempo: a sociedade pode ser
deveriam ser tratados como separados, sociável e excludente; miscigenada e
mas iguais (separate but equal). Os que racista. Ela pode ter um amplo espectro
pediam por democracia racial estavam de tonalidades e, ao mesmo tempo, fun- econômica numa economia de guerra e, tário de Estado de 2001 a 2005, durante
focados não necessariamente em acabar cionar num contraste de claros e escu- com os crescentes protestos sociais, aca- o primeiro mandato de George W. Bush,
com a segregação jurídica, mas em fazer ros, entre aqueles que são racializados e bou tendo que ser modificado. Em qua- e o início do segundo). Quando pergun-
valer o acesso igualitário às instituições de aqueles que não sofrem racismo. se todos os âmbitos, nos setores de defesa tado em 2014 sobre o significado da Di-
uma democracia, da habitação ao traba- O discurso negacionista – que costu- os negros americanos tiveram que, pri- visão Búfalo e a história dos negros no
lho, da educação às Forças Armadas. ma igualar a miscigenação da sociedade meiro, lutar para poderem participar, Exército americano, Powell voltou à ima-
A imagem da feb como um caldei- a uma impossibilidade de se falar sobre ainda que de forma segregada: alista- gem da “democracia racial” (no sentido
rão de raças sem linha de cor contribuiu racismo no país – esteve de mãos dadas mento, indústria bélica, escolas milita- americano) para pintar uma espécie de
para reforçar, durante o período de guer- com um conjunto muito repressivo de res, divisões de combate e oficialato são evolução do Exército de seu país:
ra, uma ideia mais ampliada de demo- medidas racistas justamente nos dois mo- alguns dos setores que não aceitavam ou Eu sabia que em 1958, como homem
cracia racial, que serviria para contrapor mentos menos democráticos da história rejeitavam negros antes da Segunda negro, eu estava entrando numa institui-
o segregacionismo racial imposto por moderna do Brasil. A ascensão do Estado Guerra. Ao fim do conflito mundial, es- ção que tinha acabado de ser dessegrega-
leis em vários países. É certo que do pós- Novo tornou ilegal a Frente Negra Brasi- ses impedimentos já não se sustentavam. da. Eu sabia que o fim da segregação não
Segunda Guerra ao fim do século xx, leira, criada em 1931 e considerada a O marco legal mais importante no tinha surgido do nada. [...] Aquela parte
o principal êxito na luta global contra o mais importante entidade do movimento imediato pós-guerra foi a Ordem Execu- na nossa história nacional não é algo de
racismo foi a crescente pressão contra negro brasileiro na primeira metade do tiva 9981, assinada pelo presidente Harry que tenhamos orgulho, que eles [os solda-
segregacionismos raciais respaldados século xx. Já no período da ditadura mi- Truman em 1948, comprometendo o go- dos negros] tivessem que servir sob tais
por leis nacionais. Nessa linha, o fim do litar (1964-85), a lei e o Estado foram verno a dessegregar as Forças Armadas. circunstâncias. Mas eles assim o fizeram
apartheid na África do Sul teria repre- amplamente usados para criminalizar a Foi a primeira vez que qualquer parte do para que nós agora possamos estar numa
sentado a extinção desse paradigma ra- discussão pública sobre o racismo, com governo federal oficialmente impôs a des- nova fase da nossa história nacional. [...]
cial, pelo menos no sentido jurídico. perseguições políticas contra grupos que segregação, ao menos no papel. Ir para a O sacrifício deles nos levou a este ponto [...]
Contudo, o Brasil esteve longe de ser tentavam avançar o tema. A retirada da guerra com Forças Armadas segregadas em que as Forças Armadas na sociedade
um protagonista nesse processo global. categoria raça do Censo de 1970 talvez era, de um ponto de vista econômico-mi- americana são, talvez, a mais integrada, a
Não demorou muito tempo para que a seja dos exemplos mais simbólicos dessa litar, de uma incrível ineficiência. Tudo mais aberta, a mais imparcial instituição
ideia do país da democracia racial viesse tentativa de apagamento. precisava ser duplicado: da infraestrutura de toda a sociedade americana. Talvez um
abaixo. A decretação da Lei Afonso Ari- de apoio até o transporte de sangue para dia a sociedade americana reflita esses va-

A
nos em 1951 (que passou a criminalizar Segunda Guerra Mundial foi um os feridos, já que a Cruz Vermelha sepa- lores das instituições militares hoje.
práticas racistas) e os vários estudos sobre catalisador global de mudanças po- rava sangues de brancos e negros, que Em dezembro de 2023, por ocasião
racismo no Brasil financiados pela Unes- líticas e sociais, mas cada contexto não podiam ser misturados. Os negros da cerimônia em que assumiu o co-
co ao longo da mesma década foram ten- operou essas mudanças à sua manei- americanos ainda enfrentaram racismo mando da 6a Região Militar (Bahia e
tativas de confrontar o que o sociólogo ra. Os Estados Unidos enviaram mais de nas Forças Armadas dessegregadas, mas Sergipe), o general André Luiz Aguiar
Florestan Fernandes definiu em 1964 16 milhões de soldados para os conflitos gerações de soldados e oficiais negros de- Ribeiro teve uma reação bastante dife-
como “mito da democracia racial”. A lei na Europa e no Pacífico, e a corrida ar- pois da Segunda Guerra encontraram no rente. Ao ser abordado pela Folha de
surgiu em resposta ao estardalhaço causa- mamentista gerou uma economia de Exército uma instituição muito diferente, S.Paulo para uma entrevista, recusou
do por um episódio envolvendo Katheri- guerra sem precedentes. Foi nesse pano forçada a se adaptar, ainda que com vá- inicialmente o convite, mas numa oca-
ne Dunham, dançarina americana das de fundo que a campanha pelos direitos rios boicotes locais, ao novo regime jurí- sião posterior pediu para receber as per-
mais importantes de sua época que teve civis ganhou força, iniciando a abolição dico, oferecendo à comunidade negra guntas por escrito. Quando foi indagado
sua estadia negada num hotel em São dos sistemas legais de segregação que americana mais espaço para educação, sobre o significado de sua promoção e a
Paulo por ser negra. Deputado e influen- culminariam, na década de 1960, com a treinamento, progresso profissional e es- questão da falta de diversidade racial nas
te no meio diplomático brasileiro, Afonso Lei dos Direitos Civis (1964), a Lei dos tabilidade financeira. altas patentes do Exército, silenciou. Ri-
Arinos viu no ocorrido a oportunidade de Direitos de Voto (1965) e a Lei de Habi- Um dos negros que entrou para o Exér- beiro é hoje o único negro entre os gene-
enfatizar a posição do Brasil perante os tação Justa (1968). Naquele momento, o cito depois da dessegregação foi Colin rais três estrelas da ativa e, caso avance,
Estados Unidos. Gilberto Freyre, tam- sistema político segregacionista foi con- Powell, que chegou ao posto de general será o primeiro em toda a história a che-
bém deputado, foi à tribuna apoiar aquela frontado pelos imperativos de eficiência e depois atuou na alta política (foi secre- gar à mais alta patente da força. J

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questões ludopédicas

A NEGAÇÃO DO OUTRO
Em São Paulo, oito anos de clássicos sem torcida visitante forjaram uma geração que não sabe o que é conviver com o contraditório

RODRIGO BARNESCHI

N
o dia 3 de abril de 2016, o corin- ria a partida entre Corinthians e Palmei- Por volta das 13 horas, a multidão de a passos fortes e apressados, e entoando
tiano Luan Araujo cumpriu o ras. Como estipulado desde meados da corintianos foi autorizada a deixar o canções que relembravam antigos enfren-
mesmo ritual de todos os do- década passada, os torcedores visitantes ponto de concentração. Camisa 12, Pa- tamentos com rivais. Longe de tranqui-
mingos com clássicos estaduais têm direito a 1,8 mil ingressos, cerca de vilhão Nove, Estopim da Fiel e Fiel Ma- lizar motoristas e transeuntes, o ruidoso
disputados por seu time na con- 5% da carga total. Aos que torcem pelo cabra – outras torcidas organizadas efetivo policial contribuía para transmi-
dição de visitante. Ainda pela manhã, dei- time mandante são destinados pouco corintianas que também estavam no lo- tir a impressão de que poderia haver
xou sua casa na Cidade Tiradentes, no mais de 35 mil assentos. Em vista da dis- cal – iniciaram o trajeto com a Gaviões. uma explosão a qualquer momento.
extremo Leste de São Paulo, e, com a ca- paridade numérica, convencionou-se Os 6 km foram percorridos em uma Era algo difícil de ocorrer, mas a ten-
misa do Corinthians escondida, seguiu de que a logística seria a caminhada da co- hora e meia, ora a passos largos, ora com são aumentava nos esporádicos cruza-
ônibus e metrô até a sede da torcida Ga- letividade forasteira partindo de um lo- retenções promovidas pelo policiamen- mentos com palmeirenses que iam na
viões da Fiel, na Marginal Tietê, uma das cal previamente definido. Para os to, que buscava agrupar os torcedores mesma direção. Porém, separados por
principais vias expressas da capital paulis- corintianos, a quadra da Gaviões. Para em um bloco coeso. Viaturas policiais dezenas de metros, tudo o que os rivais
ta. É dali que partem as caravanas da os palmeirenses, o Allianz Parque. Para os seguiam à frente e atrás da torcida, ladea- podiam fazer era trocar insultos e gri-
maior torcida organizada do Corinthians. são-paulinos, a sede da Torcida Inde- da por agentes a cavalo ou em motos. tos de guerra.
Naquele dia, Araujo era um entre pou- pendente. Sob escolta do 2º Batalhão de Para quem observava de fora, aquela Quando os corintianos se aproxima-
co mais de mil corintianos concentrados Polícia de Choque, na ida e na volta, o turba provocava uma sensação ame- vam do destino, seus líderes tomaram a
para iniciar uma caminhada de 6 km até agrupamento em menor número pode drontadora. Eram centenas de pessoas, dianteira e, fazendo valer a nomenclatu-
o Estádio do Pacaembu, onde acontece- chegar ao estádio sem atrito com rivais. homens na quase totalidade, marchando ra de “linhas de frente”, caminharam de

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Torcida de papelão: a imprensa esportiva já naturalizou os jogos com apenas uma torcida. Nos primeiros anos, havia um tom de lamento. Agora, o tema é tratado como se fosse corriqueiro

braços dados, formando uma corrente caminhada, agora de volta à quadra da precisei sair tão cedo porque o Palmei- hoje incertas, um tiro atingiu o peito
humana para controlar o ímpeto de Gaviões da Fiel. Nem Araujo nem pes- ras era o mandante. de José Sinval Batista de Carvalho, de
quem vinha atrás. Faltando pouco mais soa alguma poderia imaginar que aquela Almocei tranquilamente em casa e 53 anos. O homem, que sequer gostava
de uma hora para o início da partida, a seria a última vez que uma torcida orga- me programei para ir ao Pacaembu por de futebol, caminhava pelo local ao ser
escolta policial entregou os corintianos nizada visitante percorreria as ruas de volta das 14 horas. Antes disso, começa- baleado e só teve sua identidade confir-
ao setor lilás do Pacaembu, pequeno en- São Paulo, antes e depois de um clássico. ram a chegar as más notícias. Os grupos mada quatro dias depois.
clave destinado à coletividade visitante de WhatsApp, bem mais agitados do O boletim de ocorrência registrou

N
– um canto completamente isolado pelo ão mais do que 20 minutos de car- que o habitual para um domingo cedo, que o disparo ocorreu antes da chegada
esquema de segurança. ro separam a minha casa do portão informavam sobre brigas por toda a re- do policiamento, mas nem testemunhas
Naquele domingo, o Palmeiras ven- principal do Pacaembu. Conheço gião metropolitana. Uma, mais séria, nem as câmeras de vigilância atestaram
ceu por 1 a 0, com gol do atacante Dudu. bem a caminhada feita por Araujo, mas resultara na morte de uma pessoa. essa versão. O projétil que tirou a vida
Para a história do dérbi paulista, entre- no sentido oposto. Vestindo uma camisa O confronto fatídico aconteceu em de Carvalho não foi encontrado mesmo
tanto, o resultado é irrelevante. Ao final verde, parti algumas vezes de outro can- uma praça do bairro de São Miguel depois de duas diligências ao local do
do jogo, como de praxe, os corintianos só to da cidade, na Zona Oeste, e segui a Paulista, a cerca de 30 km de distância crime, e os exames residuográficos dos
puderam deixar o Pacaembu depois de pé em direção ao setor visitante do está- do palco do jogo. De manhã, grupos de torcedores detidos (e logo liberados) e
esperar cerca de uma hora, até a disper- dio, também como parte integrante de alviverdes e alvinegros se enfrentaram dos policiais envolvidos na ação deram
são dos mandantes. Começou então, já uma multidão de torcedores. Mas, na- nas imediações de uma estação de resultado negativo. Oito anos depois, a
na noite daquele domingo, uma nova quele dérbi de 3 de abril de 2016, não trem do bairro e, em circunstâncias até despeito dos apelos de familiares da víti-

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nem qualquer outro torcedor dos grandes do efetivo policial e dos paus e pedras
times paulistas. E esse distanciamento, deixados em uma obra no estádio, pal-
que caminha a passos largos para comple- meirenses e são-paulinos invadiram o
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tar uma década, vai forjando uma geração gramado e partiram para a selvageria,
de aficionados que perdeu a capacidade de deixando 102 feridos e provocando a
conviver com o contraditório. A torcida morte do são-paulino Márcio Gasparin
única nos clássicos paulistas é reflexo da Silva, de 16 anos. As imagens corre-
de uma sociedade menos tolerante: em ram o mundo, e as autoridades reagiram
vez de aprender e evoluir com as divergên- prontamente, com as extinções da Man-
cias, fez-se a opção por evitá-las. cha Verde, torcida organizada do Pal-
As autoridades paulistas sempre tive- meiras, e da Torcida Independente, do
ram dificuldades para lidar com a vio- São Paulo, além da proibição de todas
lência no futebol – e pontue-se que não as demais nos estádios paulistas. Em
se trata de “violência do futebol”, mas 1998, o palmeirense Adalberto Bene-
sim de “violência no futebol”. A distin- dito dos Santos, de 23 anos, foi conde-
ção é necessária porque não existe uma nado a doze anos de prisão pela morte
violência relacionada especificamente do adolescente.
ao esporte, mas sim uma extrapolação Uma agenda de repressão foi aciona-
das mazelas nacionais para esse am- da a partir de então. Bandeiras de mastro
biente: sendo o Brasil um país violento, foram proibidas nos campos pelos 27 anos
o futebol, inclusive pela capacidade de seguintes, os estádios ficaram sem ins-
aglutinar segmentos da população mais trumentos de percussão por mais de uma
jovens e vulneráveis, não fica imune. década e faixas e outros materiais agora
O esporte mais praticado do planeta é são liberados ou vetados de acordo com
movido por rivalidades centenárias, e ma- o comportamento das organizadas: seus
nifestações exacerbadas ocorrem em to- integrantes sabem que qualquer deslize
das as partes do mundo. O aparato de na arquibancada pode resultar em san-
segurança destacado para os clássicos ções, com uma dosimetria pouco clara
paulistas pode surpreender os menos fa- e, não raro, por tempo indeterminado.

O
ma, a investigação conduzida pelo De- jornalista Luan Araujo e eu não miliarizados, mas não difere muito do Não se discute a necessidade desses me-
partamento Estadual de Homicídios e somos exatamente amigos, mas que é mobilizado na Alemanha, na Itália canismos de controle do público, mas
de Proteção à Pessoa (dhpp) não foi ca- temos amigos em comum, nos se- e em outros países com forte cultura tor- faltam método e consistência para um
paz de apontar o autor do disparo. guimos mutuamente em redes sociais e, cedora. Há rodadas da aparentemente combate efetivo aos episódios de violên-
A tragédia teve efeito imediato na além da profissão, compartilhamos va- civilizada Uefa Champions League que cia. Quase tudo é proibido dentro e fora
opinião pública, levando ao agenda- lores semelhantes sobre o futebol como demandam uma operação de guerra para dos estádios paulistas, com o Estado, em
mento de uma reunião, já no dia se- manifestação cultural e popular. Aos evitar embates entre rivais. Não raro, o especial o Ministério Público, atuando
guinte, 4 de abril, de representantes do 33 anos, ele já foi a 835 jogos em 55 es- esquema falha e os pontos turísticos das como bedel de arquibancada.
Ministério Público, da Secretaria da tádios. Eu, nove anos mais velho, já metrópoles europeias são tomados pela Torcedores, mesmo os não organiza-
Segurança Pública do Estado de São acompanhei 1 155 partidas em 83 cam- barbárie. No entanto, nunca houve decre- dos, costumam reclamar da truculên-
Paulo, do 2° Batalhão de Choque da pm, pos pelo mundo. Somos sujeitos obceca- to oficial impondo torcida única na Ale- cia do 2º Batalhão de Choque da pm, e
da Polícia Civil e da Federação Paulista dos, com agendas pessoais e profissionais manha, na Itália ou na Inglaterra. a falta de bom senso da corporação en-
de Futebol (fpf). Ao fim do encontro, atreladas ao calendário de nossos clubes: A imposição de torcida única em carregada do controle de multidões se
coube a Alexandre de Moraes, então não perdemos sequer um compromisso clássicos não se deve unicamente à mor- revela em sutilezas. Livros, revistas e
secretário de Segurança Pública, anun- em casa e viajamos pelo Brasil e exterior te de uma pessoa a cerca de 30 km do jornais são proibidos nas arenas, o que
ciar a determinação de que os clássicos para desbravar territórios hostis. Pacaembu. A medida foi ganhan- impede, por exemplo, que um es-
paulistas (os embates envolvendo Corin- Nunca tive a oportunidade de cum- do força na opinião pública à tudante gire a catraca portando
thians, Palmeiras, Santos e São Paulo) primentar pessoalmente Araujo, mas sei proporção que os arroubos sua mochila escolar. Justifi-
teriam de ser disputados com a presença que, pelo menos até a decretação da tor- restritivos do Ministério Pú- cativa: o papel é inflamável.
de apenas uma torcida, a do mandante. cida única em 2016, nossos caminhos se blico e da Polícia Militar se “Alguém pode atear fogo
Com vigência até 31 de dezembro de cruzaram a cada confronto entre Pal- mostraram impotentes ao livro”, ouvi de um poli-
2016, a medida, apresentada como emer- meiras e Corinthians. Os jogos podem para evitar novos enfrenta- cial certo dia. Se isso já
gencial, foi prorrogada por mais um ano, ter acontecido no Morumbi, no Pacaem- mentos. Isso significa que, aconteceu antes? Nunca.
até o final de 2017. Depois, ainda mais bu, no Allianz Parque, na Arena Corin- por paradoxal que seja, os A batalha campal do
um ano. E, tendo sido renovada de ma- thians ou mesmo no interior do estado, sucessivos fracassos das Pacaembu foi um evento
neira protocolar ano após ano, segue em mas certo mesmo é que ele e eu dividi- medidas para coibir os epi- traumático e redefiniu a
vigor ainda hoje, com a inclusão preven- mos o mesmo espaço por um punhado sódios de violência foram relação entre os torcedores
tiva de Guarani e Ponte Preta, os dois de horas, cada qual em um setor. ampliando a licença social e o Estado. Apesar de as
clubes de Campinas que têm uma riva- Devemos ter nos avistado entre gra- do Estado para aplicar punições e aper- organizadas terem sido extintas ou proi-
lidade enorme entre si, mas não neces- des, cercas ou cordões de isolamento. tar o cerco contra as torcidas, que fica- bidas em termos institucionais, seus
sariamente com os grandes da capital. Eu devo tê-lo xingado a distância. Ele ram mais violentas com o tempo. integrantes não deixaram de ir aos jogos
O primeiro jogo disputado na era da deve ter retribuído a gentileza. Cantamos As primeiras mortes decorrentes de e, ainda que em menor número, conti-
torcida única colocou frente a frente um na direção do outro para proclamar confrontos entre torcedores nas ruas nuam se agrupando nos mesmos seto-
Santos e Palmeiras na semifinal do tor- uma rivalidade centenária. Festejamos de São Paulo datam do final dos anos res e cantando as mesmas músicas. Só
neio estadual de 2016. Apenas santistas o sofrimento um do outro. Empurra- 1980. Mas o histórico de atuação do mudou o fato de não poderem vestir o
puderam comparecer à Vila Belmiro, no mos nossos times e entoamos gritos de poder público em relação a brigas no uniforme das entidades ou usar adere-
dia 24 de abril. O mundo do futebol in- guerra um contra o outro. Há quem en- futebol remonta ao início da década de ços (faixas, bandeiras, instrumentos de
terpretou que a decisão era um remédio xergue isso tudo como selvageria, eu 1990, quando as organizadas paulistas percussão, sinalizadores etc.). Impedi-
amargo, a ser adotado por tempo limita- bem sei, mas devo dizer que desempe- atingiram o ápice em número de asso- das de frequentar os campos em São
do, com o objetivo de aplacar a indigna- nhamos, com camisas diferentes, a fun- ciados – até que, em 20 de agosto de Paulo, as organizadas passaram a existir
ção da opinião pública. Pois bem: oito ção para a qual fomos destinados: a de 1995, ocorreu a famigerada batalha apenas nas caravanas interestaduais.
anos depois, com o debate interditado, torcedores de um clube de massa. campal do Pacaembu, que mudou a Autor de diversos livros sobre futebol e
parece impossível imaginar duas torci- Desde 2016, Araujo e eu nunca mais arquibancada para sempre. torcidas, o sociólogo Bernardo Buarque
das adversárias disputando o mesmo es- pudemos nos encontrar anonimamente Era apenas um jogo de categorias de de Hollanda, professor pesquisador da Es-
paço nas praças esportivas de São Paulo. em uma praça esportiva. Nem nós dois base, mas, valendo-se da negligência cola de Ciências Sociais da Fundação

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Getulio Vargas (fgv), aponta que a repres- O autor não tarda muito a admitir-se
são que vem desde os anos 1990 produziu fascinado pela violência e pelo poder
resultado contrário ao pretendido: “A proi- da multidão. Ao refletir sobre sua in-

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bição gerou como efeito colateral o inves- cursão entre figuras tão degradantes,
timento das organizadas no Carnaval Buford elabora uma valiosa reflexão
paulistano, fortalecendo as associações, sobre o jornalismo investigativo:
que ampliaram seu raio de ação para as O essencial em um trabalho jornalístico
esferas cultural e de lazer da cidade.” é seu imperativo de objetividade. Cabe a ele
O braço carnavalesco das entidades registrar e transmitir a verdade dos fatos,
surgiu inicialmente como um comple- como se a verdade estivesse ali, exposta à
mento das atividades antes restritas à ar- visitação, aguardando a chegada do repór-
quibancada, mas foi se profissionalizando ter. Tal é a premissa do jornalismo objetivo.
nas décadas seguintes. “O fato de três O que esta premissa exclui é aquele fato
entre as cinco primeiras colocadas do incerto e relativo referente ao responsável
Carnaval de 2024 [Dragões da Real, Ga- pela reportagem, a noção de que não exis-
viões da Fiel e Mancha Verde] serem cons- te o percebido sem aquele que percebe e
tituídas por esse amálgama entre escolas que excluir as circunstâncias envolvendo a
de samba e torcidas organizadas compro- história é relatar uma inverdade.
va a força institucional e organizacional Essa passagem de Entre os vândalos
angariada na capital paulista, apesar de as me lembra que preciso ser transparente
torcidas, paradoxalmente, serem tidas com quem lê este texto: tenho um lado
como bandos de vândalos e desordeiros”, nessa história, uma vez que é inevitável
diz Buarque de Hollanda. Não à toa, as que ele seja permeado pelo fato de que
entidades costumam se apresentar como sou um torcedor organizado há quase
movimentos sociais. três décadas. Resolvi me associar ainda
A proibição das organizadas em está- na adolescência, em 1997, dois anos
dios reduziu as ocorrências violentas as- depois da batalha campal do Pacaem-
sociadas ao futebol em São Paulo na bu, quando a Mancha Verde se rein-
segunda metade dos anos 1990, mas ape- ventou como Mancha Alvi Verde, com
nas em estádios e suas imediações. Po- um cnpj distinto e uma sede quase ocupa os demais setores de um estádio. meiras. Foram 38 entre abril de 2016 e
rém, enquanto a polícia age com eficácia clandestina em uma galeria comercial Ainda que a perspectiva seja a de um abril de 2024, e meu olhar sempre se di-
para evitar conflitos dentro e nas proxi- na região central de São Paulo. Então palmeirense, tem um olhar sensível sobre rige para o espaço normalmente destina-
midades das arenas, as brigas e embosca- apenas um garoto que sonhava ser jor- o outro torcedor, com uma trinca de ca- do aos forasteiros. Gostaria de ver ali
das entre agrupamentos rivais continuam nalista, eu, como Buford, me deixei pítulos iniciais em que eu rendo home- adversários vestindo o preto e o branco de
a ocorrer em cidades vizinhas de São seduzir pelo poder da multidão. nagens (não explícitas, mas tampouco Corinthians e Santos ou as três cores do
Paulo, bairros da periferia e outros locais Tantos anos depois, conheci muitas contidas) a corintianos, são-paulinos e São Paulo, mas só há verde por todos os
afastados – e as autoridades se mostram cidades do Brasil e vários países viajan- santistas. Não foi algo intencional, mas lados, em um ambiente monocromático
inaptas para punir os brigões. Contam-se do atrás do Palmeiras. Tenho também interpreto como um reconhecimento do que contraria a vocação da cidade como
às centenas as mortes causadas por con- uma posição de destaque na Mancha quanto o embate com o contraditório for- um espaço de convivência e interação.
frontos entre torcedores nas últimas dé- Verde e lancei, em 2021, o livro Forastei- jou a minha identidade. Ainda hoje, ten- A comemoração dos gols segue inten-
cadas, mas pouquíssimas pessoas foram ros: crônicas, vivências e reflexões de um do passado dos 40 anos de idade, eu me sa – são as camisas do rival que estão no
julgadas e condenadas pelos crimes co- torcedor visitante (um capítulo foi publi- sinto impelido a seguir até as trincheiras gramado, afinal –, mas a ausência de
metidos. A impunidade é o fator determi- cado na piauí_179, agosto de 2021), em (imaginárias, por favor) do futebol por- oponentes na arquibancada torna a ex-
nante para explicar a violência no futebol: que me apoio na minha vivência na ar- que só consigo assimilar o mundo ao periência um tanto estéril: é como se
punir o cpf teria mais efeito do que a quibancada para refletir sobre como a meu redor ao me deparar com quem tem tamanha euforia fosse um pouco covar-
imputação de uma pena ao cnpj. experiência de ver futebol in loco foi se um ponto de vista divergente. de, uma vez que não há quem possa
Na virada do século, as organizadas, modificando nas últimas três décadas. Entre agosto de 1998 e abril de 2016, reagir na tribuna oposta.
incluindo Mancha e Independente, fo- Tenho críticas ao tratamento dado pe- o Palmeiras foi a campo 169 vezes para Nada é tão acintoso quanto o silên-
ram recuperando espaço e retomaram las autoridades aos entusiastas de futebol enfrentar Corinthians, Santos ou São cio dos gols anotados pelos times sem
direitos, embora nunca tenham conse- no Brasil, mas reconheço a dose de culpa Paulo. Esses enfrentamentos de quase representantes na arquibancada. Quan-
guido modificar a percepção negativa que cabe aos torcedores, em especial às duas décadas foram realizados em onze do muito, é possível escutar os gritos
da sociedade: por mais que sejam capa- organizadas. Entendo que alguém pouco estádios. Eu tinha 16 anos quando iniciei dos atletas dentro de campo; nem mes-
zes de promover festas grandiosas, basta afeito a frequentar a arquibancada enxer- a sequência que perduraria até comple- mo as manifestações dos dirigentes re-
uma briga para que todo o histórico de gue tais entidades como violentas e até tar 35. E só interrompi a marca porque, verberam no estádio, uma vez que eles
violência seja relembrado. criminosas, mas penso ser importante em abril de 2016, Alexandre de Moraes são confinados nos camarotes envidra-
apresentar uma perspectiva distinta. assinou a determinação de que eu não çados, em algum canto discreto.

O
jornalista americano Bill Buford, A marginalização das torcidas tem a seria mais bem-vindo nos jogos com Entre as muitas jornadas sem a pre-
ex-editor da revista New Yorker e ver com a imagem transmitida, há dé- mando dos meus rivais. sença de público de fora, nenhuma foi
tido como um dos expoentes do cadas, por programas sensacionalistas tão significativa quanto a final do Cam-

O
chamado “realismo sujo”, escreveu uma de tevê, por uma mídia esportiva pouco primeiro clássico do Palmeiras de- peonato Paulista de 2018, entre Palmei-
das obras mais fortes sobre os hooligans interessada em se aprofundar no tema e pois da instituição da torcida única ras e Corinthians, no Allianz Parque, a
(vândalos, em inglês) e o hooliganismo. por comentaristas de estúdio que deixa- foi contra o Santos, na Vila Belmi- arena alviverde. Diante de 40 mil pes-
O comportamento agressivo desses tor- ram de frequentar estádios há muito ro. Encarei como se fosse um erro das soas, o visitante devolveu o placar adver-
cedores deixou o Reino Unido em polvo- tempo. Muitas críticas são justas e per- autoridades, como um jogo fantasma, so do jogo de ida, em Itaquera (onde
rosa entre as décadas de 1980 e 1990 e tinentes, mas gostaria de colocar em como se a ausência de quem veste verde fica a casa do Corinthians), e levou a
foi combatido com mão de ferro e práti- questão essa narrativa e as argumenta- no antigo setor visitante da casa alvinegra decisão para os pênaltis. Os alvinegros
cas no mínimo controversas pela ex-pri- ções reducionistas com seu discurso fosse uma ofensa à história do confronto. converteram quatro cobranças e os do-
meira-ministra Margaret Thatcher. condenatório feito de antemão. Ainda hoje, depois de ser impedido de nos da casa, apenas três.
No livro Entre os vândalos, Buford Quando lancei Forasteiros, ouvi várias comparecer a 36 duelos como forasteiro, O Corinthians foi campeão vencen-
se infiltrou em grupos de torcedores, vezes esta pergunta: “É um livro sobre o não consigo me adaptar à transmissão do uma final fora de casa contra seu
aproximando-se de uma profusão de Palmeiras?” Não, não é. O livro é sobre televisiva e considero um ultraje não po- rival pela primeira vez na história – e
personagens cruéis, desdentados e em- pessoas que percorrem longas distân- der exercer o meu direito de torcer. fez-se silêncio na Zona Oeste da capital
briagados, correndo todo tipo de riscos cias para desbravar territórios inóspitos e Desconforto parecido se aplica aos paulista. O elenco campeão não teve
e levando muitas pancadas da polícia. cantar mais alto do que a multidão que encontros realizados com mando do Pal- para onde correr na hora da festa e cou-

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transmissão de uma doença que deixou das em 45 canchas para Oliveira), elas
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mais de 700 mil mortos em todo o país. nunca haviam comparecido a um clássi-
O Palmeiras foi campeão continen- co com duas torcidas dividindo a arqui-
tal com um gol nos acréscimos, mas bancada meio a meio.
a experiência pareceu artificial: havia A oportunidade chegou em fevereiro
mais convidados de patrocinadores do de 2024, com a Supercopa do Brasil,
que torcedores habituados àquele espa- uma disputa de início de temporada
ço; os santistas estavam fora do meu que reúne, em jogo único, os vencedo-
campo de visão; e, com o país em fran- res do Campeonato Brasileiro e da
galhos, não havia clima para festa. De- Copa do Brasil do ano anterior. Como
pois dessa exceção, foram mais nove Palmeiras e São Paulo haviam conquis-
meses de portões fechados. tado os dois torneios, aconteceu o que
Em abril de 2022, resolvi me juntar a se insinuava desde a retomada dessa
alguns amigos argentinos em uma visita competição: a cbf teria de pensar em
do Boca Juniors à casa do Corinthians, uma maneira de permitir duas torcidas
em Itaquera. Contrariando as demais paulistas no mesmo estádio.
jornadas em que me infiltrei em hincha- Foram semanas de indefinição. A so-
das que vêm da Argentina, minha aten- lução mais lógica, que seria jogar em
ção não foi para as lideranças de La 12, São Paulo, foi descartada: essencial-
a barra brava da instituição mais popular mente pelo veto de 2016 a duas coletivi-
da Argentina, mas sim para a multidão dades, mas também pela impossibilidade
alvinegra que eu reencontrei após anos de encontrar um campo neutro. Brasí-
de afastamento forçado. (Barra brava é o lia, que já recebera edições anteriores
nome que se dá, nos países de fala hispâ- da Supercopa, estava com seu princi-
nica na América, tanto aos equivalentes pal equipamento esportivo, o estádio
locais das torcidas organizadas quanto Mané Garrincha, alugado para outro
aos torcedores que fazem parte dela.) evento. Os clubes manifestaram a pre-
Meu habitual olhar de admiração ferência pelo Maracanã, mas a su-
pelos argentinos foi sobrepujado pelo gestão foi rechaçada em função do
be a um pequeno grupo de dirigentes e A exemplo de São Paulo, o veto a visi- fascínio do reencontro com a torcida do cronograma de manutenção do grama-
convidados desempenhar, com discri- tantes já foi adotado por outros estados, meu grande rival. Do jogo em si eu não do. Por fim, depois de serem cogitadas
ção e certo desconforto, o papel que mas a maioria faz isso em caráter pontual. guardo nenhuma lembrança, nem mes- cidades como Belém, Uberlândia e até
deveria caber à maior torcida do estado. É assim em Minas Gerais, na Bahia e em mo dos gols. Tudo o que fiz foi analisar Miami, a cbf optou pelo Mineirão, em
Foi uma tarde traumática para os pal- Pernambuco. Neste último estado, o ata- o comportamento das organizadas que Belo Horizonte – em outra jurisdição,
meirenses, mas o pior, ao menos para que covarde promovido por torcedores do ocupam a arquibancada Norte, ouvir as não haveria o que as autoridades pau-
mim, não foi a perda do título, tampou- Sport ao ônibus que transportava a dele- músicas que foram criadas nos últimos listas pudessem fazer para evitar a pre-
co as polêmicas de arbitragem: o que gação do Fortaleza, em jogo da Copa do anos e analisar as interações de um pú- sença de duas torcidas.
mais me marcou foi o silêncio dos gols Nordeste em fevereiro deste ano, levou o blico que me é tão estranho e tão fami- De imediato, houve quem apontas-
anotados (no tempo normal e depois nas presidente da Federação Pernambucana liar ao mesmo tempo. Em silêncio e se os riscos inerentes à escolha do local.
penalidades) pelos jogadores corintia- a sugerir à Confederação Brasileira de com um ar quase solene, me flagrei O principal deles, de ordem logística, é
nos. Tendo crescido e amadurecido no Futebol (cbf) a implantação de torcida sorrindo para uma multidão que eu re- que duas multidões que se enxergam co-
embate com quem veste uma camisa única em todo o país. Mas seu pleito foi jeito com todas as minhas forças. mo inimigas teriam de seguir de São Pau-
diferente da minha, eu somente consigo ignorado, como já acontecera em âmbito Eis então que revi primeiro os santis- lo até a capital mineira usando o mesmo
assimilar as derrotas quando elas vêm local: em janeiro, ele determinara, com tas e depois os corintianos. Faltavam os caminho: a Rodovia Fernão Dias, em um
acompanhadas pelo urro ensurdecedor um ato administrativo, a proibição de fo- tricolores. E isso foi acontecer em 2024, trajeto de 1 160 km (somando ida e volta).
de a quem eu tanto me oponho. rasteiros nos clássicos entre Náutico, San- em grande estilo, mas longe de casa. Além disso, um agravante era a rea-
E naquele caso, sem a presença dos ta Cruz e Sport. A medida caiu três dias lização, no mesmo fim de semana, do

E
meus oponentes em uma das esquinas depois, quando o Tribunal de Justiça Des- m meio a uma agenda de cercea- explosivo clássico local, entre Atlético e
do Allianz Parque, foi como se a derrota portiva acatou recurso dos clubes locais. mento de direitos, há que se regis- Cruzeiro. Ainda que as partidas estives-
não tivesse se consumado, como se algo Sigo inconformado com a impossibi- trar ao menos uma evolução para sem programadas para dias distintos
tivesse faltado para o terror daquela tar- lidade de dividir um estádio com meus quem vive a arquibancada: a presença (esta no sábado, a outra no domingo),
de de domingo me perseguir pelos anos rivais, mas devo admitir que, ao longo feminina em relação ao público total nos temia-se que ocorressem confrontos
seguintes. Penso na perda do Paulista de dos últimos anos, tive duas oportunida- estádios brasileiros é hoje sensivelmente anabolizados pela chegada antecipada
2018 como se fosse um evento inconclu- des fortuitas de revê-los, em circunstân- maior. Toda uma geração de mulheres de palmeirenses e são-paulinos à cidade
so, como um duelo que teve apito ini- cias que não foram exatamente as ideais. passou a frequentar estádios de futebol e, também, em razão das alianças de
cial, mas nunca chegou ao seu desfecho. Uma delas foi a final da Copa Liber- depois da Copa do Mundo de 2014, res- longa data entre organizadas paulistas e
tadores de 2020, disputada entre Palmei- ponsável pelo surgimento no Brasil das mineiras: a Mancha Verde tem uma

Q
uase não há contestação à torcida ras e Santos, em janeiro de 2021, no arenas multiuso (o tal do “Padrão Fifa”) relação de amizade com a atleticana
única em São Paulo. Os clubes pa- Maracanã. Ainda em meio à pandemia e de novos regramentos de conduta. Galoucura, e a Independente é próxi-
recem conformados, e alguns até de Covid, o jogo deveria ter seguido a Tais mudanças também foram respon- ma da cruzeirense Máfia Azul.
defendem a medida, ainda que velada- rotina dos dez meses anteriores, com por- sáveis pela acentuada elitização das tri- Ciente dos riscos, o comando do
mente. As autoridades demonstram satis- tões fechados para o público. Mas a Con- bunas, com o afastamento das camadas policiamento organizou um esquema
fação com resultados que são divulgados federação Sul-Americana de Futebol mais populares, e pelo indesculpável de segurança exemplar, com foco em
sem qualquer escrutínio. E a imprensa (Conmebol) rasgou os protocolos de saú- embranquecimento da arquibancada (o dois pilares: planejamento detalhado e
esportiva, que não prima exatamente de e, de maneira um tanto clandestina, que se pode constatar comparando fo- cooperação com as torcidas organiza-
pelo senso crítico apurado, já naturali- permitiu que cerca de 3 mil convidados tos dos anos 1990 e de hoje). das. As lideranças de Mancha, Indepen-
zou a ocorrência dos jogos com apenas ocupassem um setor que não é direta- A são-paulina Alessandra Gomes e a dente e de entidades menores foram
uma torcida: se nos primeiros anos havia mente focalizado pelas câmeras de tevê. palmeirense Letícia Oliveira, ambas com convidadas para reuniões em Belo Ho-
ao menos um tom de lamento no noti- Em tese, havia a necessidade de usar 31 anos, têm o hábito de prestigiar todos rizonte na semana que antecedeu o
ciário, agora o assunto é mencionado máscaras de proteção e manter certo dis- os compromissos caseiros de seus respec- duelo. Lá foram definidas as bases para
como se fosse corriqueiro. E não é: esta- tanciamento social, mas isso durou pou- tivos times e costumam viajar para outras que as caravanas saíssem de São Paulo
dos com futebol potente, como Rio de co tempo: com a tensão do jogo, a maior cidades, estados e mesmo fora do Brasil. na noite de sábado, com intervalo de
Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará nun- parte dos presentes passou a se compor- Mas, ainda que já experientes (287 jogos três horas entre alviverdes e tricolores.
ca adotaram a torcida única. tar como se não houvesse o risco de em 30 estádios para Gomes e 240 parti- Com escolta policial durante todo o

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trajeto, elas chegariam ao Mineirão ceção de desentendimentos pontuais,

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por rotas distintas. não se teve notícia de nenhum inciden-
Um acordo de paz foi selado entre te grave em Belo Horizonte, na estrada,
diretores das entidades, e os comandan- nas rodoviárias ou nos aeroportos.
tes do policiamento local tiveram a sen- Palmeiras e São Paulo fizeram um jogo
sibilidade de liberar instrumentos de truncado, com poucas oportunidades de
percussão, bandeiras de mastro, faixas e abrir a contagem, e ficaram no empate em
adereços em quantidade bem acima do 0 a 0. A disputa seguiu para os pênaltis, e
normal, resultando em uma festa com- o tricolor levou o troféu para o Morumbi.
parável às que eram vistas nos estádios Mas boa parte das 43 mil pessoas que pa-
paulistas na década de 1990. garam ingresso não se mobilizaram ape-
Uma caravana de ônibus de torce- nas pelo título em disputa ou pela boa fase
dores é uma imagem de forte impacto. dos dois clubes, mas sobretudo pela rivali-
São dezenas de coletivos enfileirados, dade e a perspectiva de reviver um clássi-
ocupando quilômetros de estrada e co como nos velhos tempos.
demandando a ação de um aparato O sucesso do clássico com estádio di-
policial que só amplia o efeito da pas- vidido bem longe da capital paulista se
sagem. Os relatos passam de geração deve muito à conscientização das torci-
para geração, por vezes com números das, mas também ao planejamento e à
que extrapolam a realidade. O usual é integração entre diversos órgãos de segu-
a viagem de centenas de forasteiros rança pública. Para se ter uma ideia da
para encarar um mandante em sua obstinação para evitar confrontos, havia
própria cidade, mas o que aconteceu policiais de prontidão em todos os postos
na Supercopa do Brasil é fato inédito, de combustível e redes de serviços nos
com a terceira e a quarta maiores tor- 580 km da Rodovia Fernão Dias.
cidas do país se deslocando em massa O sociólogo Bernardo Buarque de
pela mesma rodovia para se encontra- Hollanda enfatiza algo que é corrobora-
rem em outra capital. do pelos presidentes das torcidas: a re-
Há doze anos sem um Choque-Rei pressão das últimas décadas em São
(apelido pelo qual o clássico é conheci- Paulo, inadequada para resolver ou ao cada em silêncio. E que tampouco faz parece ter produzido efeito deletério
do desde a década de 1940) com estádio menos atenuar o problema da violência, ideia do quanto o estrondo do gol adver- mesmo entre torcedores da chamada
dividido ao meio, palmeirenses e são- cedeu espaço para o diálogo – aberto sário é doloroso, na mesma medida em velha guarda. Na saída do Mineirão, um
paulinos entenderam que havia outra pelo delegado César Saad, da Delegacia que é necessário para a formação do amigo meu, com um cartel de centenas
disputa, em paralelo com a que ocorre- de Polícia de Repressão aos Delitos de caráter. Mas, ao menos por uma tarde de jogos e habituado a visitar canchas
ria no campo: qual torcida compare- Intolerância Esportiva (Drade), que ocu- ensolarada em Belo Horizonte, foi pos- rivais, não se empolgou com a perspec-
ceria em maior número? pou o vácuo deixado por promotores sível sentir a emoção de uma época em tiva de retorno dos visitantes. “Eu não
O boletim financeiro divulgado pela mais midiáticos e estabeleceu uma rela- que havia uma saudável disputa territo- lembrava mais como era a sensação de
cbf não permite responder à pergunta ção mais transparente com as lideranças rial para ser maioria na arquibancada do ver a comemoração de quem eu odeio”,
com convicção, mas, tomando por base das organizadas. “Se os promotores no- Morumbi – o grande palco dos clássicos disse ele. “Foi muito dolorido, e eu pre-
a comparação dos ingressos vendidos meados pelo Ministério Público de São paulistas para mais de 100 mil pagantes. firo não passar mais por isso.”
para os setores exclusivos das duas torci- Paulo para lidar com a violência aposta- Na semana seguinte à Supercopa, a

T
das, os são-paulinos formaram ligeira vam em uma retórica de agressividade e ão logo terminou a Supercopa do Mancha Verde publicou em suas redes
maioria (51,4% contra 48,6% de pal- em uma lógica de vigiar-punir-proibir, o Brasil, começou outro tipo de con- sociais uma nota, que eu mesmo me en-
meirenses). O equilíbrio numérico en- relacionamento colaborativo fez com tenda, esta mais contemporânea: carreguei de redigir, com uma autocrítica
tre alviverdes e tricolores no Mineirão que os líderes das organizadas passassem nas redes sociais, palmeirenses e são- de erros cometidos no passado e elogios
reflete o poder de mobilização das or- a ter voz ativa e se enxergassem não mais paulinos proclamavam supremacia na ao efetivo de segurança para o Choque-
ganizadas: Mancha Verde e Indepen- como problema, mas sim como parte da arquibancada, com cada grupo afir- Rei e ao comportamento dos torcedores.
dente deixaram a capital paulista com solução”, diz Buarque de Hollanda. mando ter cantado mais alto e feito a Considerando o sucesso do clássico em
cerca de setenta ônibus cada uma – é Para Gomes e Oliveira, o Choque- festa mais bonita. Uma frase, entre to- Minas e uma alegada “maturidade” das
difícil cravar o número exato, porque Rei em Belo Horizonte valeu mais pelos das, funciona como síntese do discurso organizadas, o texto conclamou as autori-
veículos de subsedes e torcidas menores fatores extracampo. “Eu sabia que esta- de alviverdes e tricolores: “Eu nem ouvi dades a reconsiderar a determinação da
costumam se juntar ao comboio. ria vivendo a história, e vi muito pouco a torcida deles cantar.” torcida única. Aproveitando um raro mo-
Além do aluguel dos ônibus e da ven- do que aconteceu no gramado”, conta É o que eu defino como um proces- mento de trégua por parte da opinião
da das passagens, os organizadores pre- Oliveira. “O mais importante era cum- so de “negação do outro”. Os estádios, pública, lideranças da Independente tam-
cisaram se preocupar com os ingressos prir a minha missão na arquibancada.” outrora tão plurais, diversos e democrá- bém manifestaram esse desejo.
para cerca de 3 mil integrantes e toda a Gomes diz que “valia qualquer coisa ticos, passaram a abrigar pessoas que Mas nenhuma autoridade se pronun-
preparação da festa que seria realizada para estar lá, porque não se sabe quando perderam a capacidade de enxergar o ciou oficialmente sobre o assunto, e os
longe de casa – a Mancha Verde, por teremos outro clássico de verdade”. diferente, como se ele não pudesse exis- clássicos no estado de São Paulo seguem
exemplo, levou 2 bandeirões com pelo Era possível notar certo deslumbra- tir. O fato de o sujeito não ter escutado sendo disputados apenas para mandan-
menos 120 metros de comprimento mento no olhar dos mais jovens diante a torcida adversária não quer dizer que tes. Desde 2016, foram 144 os duelos
cada um, 20 bandeiras de mastro, 20 mil da primeira oportunidade de encarar os faltou incentivo do outro lado; quer di- nessa condição, e os jogadores de Corin-
bandeirinhas, faixas plásticas e outras pe- adversários na curva oposta. Desde a zer, isso sim, que o sujeito cantou tanto thians, Palmeiras, Santos e São Paulo
ças. Para transportar todo esse material imposição da torcida única, os estádios que a sua voz e a de seus companheiros balançaram as redes 114 vezes fora de
foram necessários três ônibus. são frequentados por uma geração que de arquibancada ofuscaram o barulho seus domínios. Foram 114 gols come-
A contadora Alessandra Gomes e a desaprendeu a lidar com o contraditó- vindo da curva oposta. Sempre foi as- morados apenas por atletas, comissões
jornalista Leticia Oliveira não foram rio, ou nunca soube fazê-lo. Uma das sim nos clássicos com estádio dividido técnicas e um pequeno séquito de diri-
a Belo Horizonte nas caravanas, mas consequências é a intolerância: são vá- ao meio, mas a proibição de forasteiros gentes, 114 estrondos que não se fize-
viveram intensamente um fim de se- rios os episódios de agressões a pessoas retirou de muitos aficionados a sensibi- ram ouvir, 114 vezes em que foi revogado
mana dedicado a seus clubes de cora- que, por não estarem trajadas com o lidade de aceitar o outro como parte o direito de manifestação de quem pensa
ção. O inusitado dos dias passados na uniforme do time da casa, foram con- indispensável da festa. diferente. Em oito anos, foram 114 gols
capital mineira foi a convivência pro- fundidas com visitantes infiltrados. Menciono aqui uma geração mais silenciados pelo Estado. J
longada com adversários. A rivalidade É uma geração que desconhece a jovem e pouco habituada ao futebol de
torna essa situação um tanto desconfor- sensação de festejar uma vitória enquan- outras décadas, mas o prolongamento Rodrigo Barneschi responde pela comuni-
tável para os mais fanáticos, mas, à ex- to os oponentes abandonam a arquiban- da proibição de forasteiros em clássicos cação institucional da Mancha Verde.

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vultos da música

“OBRIGADO, MEU AMOR”


Arquiteto da versão pop de Rita Lee, Roberto de Carvalho segue criando com a mulher de sua vida

JULIO MARIA

E
ra uma daquelas noites que Vila Mariana. Antes de qualquer diálogo das quimioterapias, novos exames cons- mada de Chesa pela família), “mais cató-
negam a escuridão, de Lua mais longo com a anfitriã, ele se sentou tataram que o tumor havia sido elimina- lica que o papa”, como disse Rita. Por
cheia e vigilante, quando a res- ao piano da sala para improvisar um do. “A cura da minha mãe me emocionou último, rezava A Grande Invocação, uma
piração de Rita Lee foi ficando boogie-woogie quente e sedutor, ao esti- pra caralho, melhor notícia de todos os prece da doutrina teosófica Fraternidade
mais lenta. Ao seu lado esta- lo de Fats Domino. Rita sentou-se ao tempos”, escreveu na época o filho Beto Branca, que diz: Do centro do que cha-
vam os três filhos – Beto, João e Antonio lado dele e assumiu os graves, enquanto Lee no Instagram. Novos exames, po- mamos a raça dos homens/Que se realize
– e o marido, Roberto de Carvalho, ajoe- Carvalho solava nos agudos. Quatro rém, constataram que a doença havia o plano de amor e de luz/E feche a porta
lhado ao pé da cama. mãos jovens de dedos longos deslizavam migrado para outras partes do corpo, onde se encontra o mal/Que a luz, o amor
Ela havia feito três pedidos finais. Em pelas teclas, improvisando palavras pro- incluindo o cérebro. Tudo entrou em e o poder restabeleçam o plano divino so-
2021, antes mesmo de iniciar a quimiote- féticas. “Hey baby, estamos finalmente pane. A cura não era cura; o milagre era bre a Terra/Hoje e por toda a eternidade.
rapia para combater os tumores no pul- juntos”, Carvalho cantou. “Sim, baby, e malogro. A cantora desistiu de seguir lu- Naquele 8 de maio de 2023, quando
mão (e depois em outras partes do corpo), parece que vai ser por muito tempo”, de- tando. Depois, desistiu de desistir – e a noite avançou mais ainda, ela pa-
disse que não queria que seus médicos a volveu Rita. Ele tinha 23 anos; ela, 28. lutou mais. Agora, nada mais importava. rou de respirar. Rita Lee Jones de Car-
mantivessem viva à custa de tubos, venti- “Como você me aguenta há 44 anos?”, Nos últimos dias, Carvalho, espiri- valho, de 75 anos, não estava mais ali.
ladores pulmonares e outros recursos. Se perguntou Rita a Carvalho, em uma en- tualista por inquietude e católico por Eram 22h35. “Foi difícil demais ver a
Rita havia lutado pela liberdade em vida, trevista que o jornal O Estado de S. Pau- tradição familiar, tentara construir um pessoa que eu mais amava se desmante-
queria ser livre para morrer. Ela pediu lo pediu que ela fizesse com o marido em ambiente positivo para Rita, que não lar, você não pode imaginar”, conta Car-
também que seu último momento acon- 2020, meses antes de descobrir a doença. era feita de aço, apesar de ter enfren- valho à piauí. Ele não se lembra de mais
tecesse longe de um hospital e perto da “Sou uma mulher esquisita, ex-presidiá- tado militares e militantes, governos nada, salvo que teve de soltar a mão de
família. Para isso, um quarto em seu ria, ex-Alcoólicos Anônimos, ex-Narcó- e gravadoras, além de todos os demô- sua mulher para que levassem o corpo.
apartamento do bairro Morumbi (próxi- ticos Anônimos, não sei cozinhar, sou nios do álcool, das drogas e do próprio

“A
mo ao Hospital Albert Einstein, onde se cinco anos mais velha, sem peito, sem rock‘n’roll. Para Rita, Deus sempre foi quela é Luiza”, diz Carvalho,
tratava) foi adaptado às suas necessida- bunda e fumante.” Carvalho respondeu: um mistério. Ela se assumiu pagã em apontando para uma árvore
des, com duas enfermeiras particulares. “Quando você se declara esquisita, eu a Nunca fui santa (1988), mas depois se no jardim de sua casa em um
Em 8 de maio do ano passado, deita- vejo original e genial. Ex-presidiária por beatificou em Santa Rita de Sampa condomínio na Granja Viana, em Cotia,
da em sua cama, sedada e incapaz de injustiça, vítima da repressão. Não pre- (1997). Em 1993, inseriu uma Ave-Ma- a cerca de uma hora do Centro de São
falar e abrir os olhos, estava agarrada na cisa cozinhar, eu cozinho pra você. Os ria em Benzadeusa, mas, herege, decla- Paulo. “Rita a chamava de Luiza, o
mão de Carvalho – o que atendia ao peitos amamentaram nossos três filhos. rou: “Acho arrogante a raça humana se nome de uma senhora que trabalhou
segundo pedido dela: “Pelo amor de Cinco anos mais velha não, mais antiga. achar à imagem e semelhança de Deus.” por anos na casa de sua mãe, acabou sen-
Deus, Rob, nunca me deixe. Não vá E você sabe o quanto eu adoro antigui- Como tinha medo de o marido partir do adotada pela família e ela considerava
embora antes de mim.” Para Rita, a vida dades. Quanto ao aa e ao na, well, shit antes, costumava rezar todas as noites an- sua madrinha.” A árvore está sem flores
sem o marido era impensável. happens to everyone [bem, merda aconte- tes de dormir ao lado dele. e folhas, com os galhos ressecados. “Ela
Era justo que naquela noite de 2023, ce com todo mundo].” A conexão com Deus começava com não floresceu mais depois do dia em que
tudo fosse dito pelas mãos. Em maio de O primeiro diagnóstico do câncer no um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Depois, descobrimos a doença de Rita.” Luiza é
1976, Carvalho foi levado por Ney Ma- pulmão foi feito em março de 2021. Rita uma Salve-Rainha, que Rita aprendera uma espatódea, uma árvore nativa da
togrosso a um jantar na casa de Rita, na enfrentou com firmeza o baque. Depois com a mãe, Romilda Padula Jones (cha- África que, quando floresce, espalha pe-

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BOB WOLFENSON_1976

Rita Lee e Roberto de Carvalho em 1976, na casa dos pais dela, em foto de Bob Wolfenson: “Sempre foi a gente no quarto com um violão nas mãos. Quase tudo nasceu assim”, conta o músico

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visitando memórias e volta a pegar no las”, conta, quase eufórico. Uma das
sono até despertar novamente em al- primeiras letras que devem virar canção
gum horário entre 9h e 13h. Antes de é Ego, publicada em Rita Lee: uma au-
deixar o quarto, responde aos e-mails e tobiografia (2016), mas nunca musica-
olha as redes sociais. Então, faz alonga- da. “Eu amo esses versos”, diz Carvalho.
mento e toma café. Tem lido mais nos Um trecho diz: Do Deus que duvidei, o
últimos tempos, sobretudo livros de psi- sim/Das mortes que vivi, o além/Dos ví-
cologia, desde que começou a fazer ses- cios que virei refém/Dos bichos que sou,
sões de terapia, em fevereiro. felina/Na velha que estou, menina.
Dois violões estão dispostos em su- Há ainda inúmeras gravações não ofi-
portes na sala. O de tampo avermelhado ciais de Rita, como sobras e ensaios em
é um Hermanos Conde, espanhol, que fitas-demo que nunca foram mostradas,
ele usou para gravar músicas dos álbuns entre outros materiais inéditos. Três mú-
Aqui, ali, em qualquer lugar (de 2001, sicas chegaram a ser gravadas para um
chamado Bossa’n Beatles no exterior), projeto chamado Bossa‘n’movies, que não
Balacobaco (2003) e Reza (2012). O vio- foi para a frente. Ela colocou voz em duas
lão de madeira mais clara e envelhecida delas. Uma das canções será lançada nes-
é um Di Giorgio Bel-Son fabricado nos te mês de maio, quando faz um ano da
anos 1970, com o qual nunca gravou morte da cantora, com a exibição de um
nada. “O Di Giorgio está ali porque te- clipe inédito no Fantástico, da Globo.
nho ele há pouco tempo e quero me “As coisas vão sair, mas ainda estou nesse
acostumar com o instrumento, mas pro- processo de montanha-russa”, diz Carva-
curo mesmo é um Tarrega.” (Ele aca- lho. “Ao mesmo tempo em que sei que
bou comprando o violão Tarrega meses tenho que fazer essas coisas, que os shows
depois.) Outros quatro violões e mais me farão bem, posso não conseguir deci-
nove guitarras, além de cinco cases (cai- dir se devo ou não sair do quarto.”
xas protetoras dos instrumentos) fecha- Viver e criar, para ele, eram vontades
dos, seguem enfileirados no escritório, regidas pelo impulso de entrega a uma
na parte superior da casa, à espera de mulher. “Tudo o que eu fazia era para
los galhos vistosas flores de pétalas de vontade de sair do quarto”, diz ele. “Exis- algum chamado da vida. Rita. Se ela gostasse, estava resolvido.
cores vermelha e amarela. Sua beleza é te uma batalha grande dentro de mim. Um dos chamados aconteceu em no- Mas, se 1 milhão de pessoas gostassem,
um perigo: as flores contêm uma subs- É a libido versus o mortido, o desejo da vembro, seis meses depois da morte de e ela não, então não servia”, diz. Foi uma
tância tóxica para beija-flores e abelhas. vida versus o desejo da morte. O que vai Rita. O telefone tocou: era Marisa Mon- entrega de um tipo muito raro, vinda de
Em dezembro do ano passado, sete sair disso? Não tenho ideia, porque as te convidando-o para participar de um um homem, na mais longeva parceria
meses depois da morte de Rita, era a duas coisas podem se manifestar com show que ela faria dia 2 de dezembro, musical de um casal na música brasilei-
primeira vez que um jornalista entrava muita clareza...” no festival Primavera Sound, em São ra. Apesar do talento, Carvalho não fez
no espaço em que ela e Carvalho vive- Sua fala é controlada, com espaços Paulo. Carvalho sacou a guitarra Fen- da relação com Rita um trampolim para
ram nos últimos dezoito anos. O imó- para sorrisos curtos e alguns momentos der Stratocaster creme que não tocava a carreira. Embora fosse seu parceiro
vel, cercado de vegetação, foi comprado de tensão, embora sua expressão seja sem- havia onze anos, desde seu último show musical, sempre evitou a imprensa para
no início dos anos 2000 de um jogador pre serena. Ele usa calça de moletom, ao lado de Rita Lee. “Eu nunca fui tão deixar sua mulher à frente das câmeras.
de golfe coreano. “Os macacos estão tênis e camiseta, mantendo a barba cres- aplaudido”, conta, sorrindo, sobre o ins- Também não importava se as reporta-
chegando”, diz Carvalho, depois de ou- cida, mas alinhada. O que denuncia seu tante em que surgiu no palco para se gens sobre o sucesso de Rita mal tocas-
vir um barulho de galhos perto de Lui- vazio são os olhos, sempre atraídos para apresentar ao lado de Marisa sem em seu nome ou que sua foto
za – e me convida para entrar na casa. baixo em algum instante de suas lem- Monte para 50 mil pessoas. não estivesse visível nos discos.
Ainda mais silenciosa que o jardim, branças. “Eu fico à espreita, ouvindo as Ele tocou Doce vampiro e A parceria entre os dois co-
a sala da casa, fechada por portas de vozes que se manifestam. Às vezes, estou Mania de você, do repertó- meçou em 1979, mas uma
madeira e vidro, tem uma decoração preparado para ir a algum lugar, mas a rio de Rita, e Já sei namo- imagem dele só apareceu
feérica: orquídeas amarelas e rosas, um voz diz: ‘Não vai, fica quieto.’ E eu não rar, dos Tribalistas. “Eu no quarto lp lançado por
Buda com colar de flores brancas, um ur- vou. E há o contrário, quando estou deci- erguia a mão para o céu e ela desde que os dois se
sinho de pelúcia, uma cabeça de dra- dido a não ir, mas a voz diz: ‘Pode ir que me conectava com Rita conheceram – Rita Lee e
gão chinês, o busto de madeira de uma tudo vai dar certo.’ E eu vou. Eu vou re- de uma forma calma.” Roberto de Carvalho, de
mulher que lembra Carmen Miranda, cebendo algumas pessoas, tenho vontade Marisa Monte o chamou 1982. Ele sempre resistiu
um relógio de parede com referências a de algumas coisas, isso é a libido. Mas aí para outros dois shows da a aparecer nas capas dos
James Dean (ídolo maior de Rita Lee), vem o mortido, e traz um certo desalento, turnê Portas, no Rio, e discos, embora Rita insis-
dois duendes sentados em uma estante uma constatação do que já foi...” Carvalho planeja compor tisse. “Eu não dediquei
alaranjada, um grande aparelho de tevê, Nesse momento, ele rompe mais uma com ela algumas canções. Serão suas canções a ela, dediquei a vida”, diz.
uma mesinha de trabalho, uma placa vez. “Eu queria tanto parar com essa cho- primeiras parcerias depois da partida de

E
azul na qual se lê “reparo e manutenção radeira”, diz, retirando outro lenço de Rita. “Ter o Roberto por perto, conver- ssa dedicação incluiu, para Carva-
de disco voador” e uma poltrona arre- pano do rolo deixado sobre a mesa da sala. sar, aprender, ouvir seu violão, sua gui- lho, a tarefa de criar um novo tem-
dondada, de cores quentes. “Eu falava sobre isso com um psiquiatra tarra e cantar com ele é inspirador”, diz po para a música de Rita Lee. “Eu
Era nessa poltrona que Rita se insta- que veio ver a Rita no começo do trata- Marisa. “Cada encontro reverbera por sabia que tínhamos de inventar algo
lava logo cedo, aguardando o espetáculo mento. Dizia que minha vontade era de dias.” Ele ativou também a parceria que não fosse parecido com nada do que
de Carvalho para o dia. Ele saía da cama desligar o botão, de apagar tudo. Mas esse com Arnaldo Antunes. E tem em mãos ela havia feito antes.” Depois de uma
mais tarde, depois de diluir os eventuais botão não existe. Então, não vai acontecer. uma série de letras deixadas por Eras- pausa breve, ele acrescenta: “Eu só não
pensamentos ruins com alguns goles de Mas que eu tenho vontade, tenho.” Dias mo Carlos, que lhe foram entregues sabia se iria dar certo.”
café, feito na máquina disposta no quar- depois, ele disse à piauí: “Não penso em depois da morte do roqueiro (em 2022) Era difícil imaginar alguma reinven-
to. Quando estava “100% aterrissado”, me matar. Essa luta da libido versus o mor- por Leonardo Esteves, filho do Tre- ção para Rita depois de sua atuação em
descia degrau por degrau da escada até tido é algo que está em todos nós.” mendão. Nesse material, porém, ele só um grupo tão inovador e peculiar como
o térreo, cantando e dançando o número Rita imprimia uma rotina natural ao irá mexer quando tiver mais tempo. Os Mutantes e que não parecesse um plá-
daquela manhã: podia ser um ponto de marido. Sem ela, os horários dele se tor- Carvalho segue como parceiro de gio da sua experiência roqueira no grupo
terreiro ou uma versão de Garota de Ipa- naram líquidos e flexíveis, confundindo Rita Lee, musicando letras inéditas da Tutti Frutti. O que teria sobrado de origi-
nema. Ao final do show na escada, Rita noite com dia. Ele vai para a cama entre cantora. “Ainda estou descobrindo o nalidade para ela, depois de canções me-
batia palmas, e Carvalho se curvava para 22h e 1h, ou “quando dá vontade”, como que ela deixou. Tem muita coisa. Dia moráveis como Ando meio desligado e
agradecer. “Agora, eu nem sempre tenho diz. Acorda por volta das 4h30, revira-se desses, encontrei um caderno cheio de- Balada do louco, com Os Mutantes, e de

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Agora só falta você e Ovelha negra, com o que acabou trocando pela de comunica- to, quando bateram à porta para avisar que casa cigarros de maconha, comprimi-
Tutti Frutti? Enquanto Rita Lee encarava ção social na Universidade Gama Filho. Virgínia, a irmã de Rita, estava chamando dos de lsd, haxixe e mescalina.”
a encruzilhada criativa, quem poderia Em 1974, Jorge Mautner procurava ao telefone. “A Rita foi presa”, disse ela. Rita negou que consumisse qualquer
ajudá-la a encontrar o caminho do futuro músicos para acompanhá-lo na gravação Quatro policiais à paisana, com armas à droga à época, sobretudo por estar grávi-
tomava Sol nas dunas do Arpoador. de seu álbum que traria Maracatu atômi- mostra, tinham ido à casa da Rua Pelotas, da. Carvalho correu para acompanhá-la
Ao contrário dos austeros roqueiros co e ficou sabendo do talento de Roberto nº 497, em São Paulo, e acordaram Rita, em seu depoimento no Fórum Criminal
paulistas, o carioca Roberto Zenobio de Carvalho. Disseram que o rapaz de perguntando sobre drogas. “Onde está a de São Paulo, mas não conseguiu. Ela já
Affonso de Carvalho era amante de 21 anos era um instrumentista dos bons, erva?” Grávida de três meses, ela respon- estava inacessível, guardada por um es-
praia, verão e sexo. Sabia da importân- capaz de tocar guitarra tão bem quanto deu que não havia nada, e eles começa- quema especial de segurança para con-
cia dos longos solos nos sons apoteóti- teclado. Mautner resolveu chamá-lo. ram a revirar as gavetas. A madrinha de ter os fãs. Depois de negar ser dona do
cos, mas não trocava um álbum dos Carvalho passava uma temporada na Rita, Luiza Rodrigues, conhecida como material encontrado na casa, foi condu-
Rolling Stones por dois do Emerson, casa do pai, e os ensaios com Mautner e Balú e que deu nome à árvore da casa zida de volta ao cárcere para esperar pelo
Lake & Palmer. Rock progressivo, defi- Gilberto Gil aconteceram em seu quar- da Granja Viana, viu homens colocan- julgamento. Na cela, escreveu uma car-
nitivamente, não era a sua. to, onde ficava o piano. Parecia uma do algo “em vasos, caixinhas e gavetas”. ta a Carvalho pedindo que ele se sentisse
Quando criança, em sua casa no Rio, viagem de ácido, mas era real. Ao final, o chefe da operação informou: à vontade para ficar ou para partir e de-
a música era parte inseparável do coti- Um ano depois, outra surpresa: Ney “A senhora está presa por porte de dro- sistir de assumi-la como parceira. Rita
diano, com a mãe, Helyette Zenobio Matogrosso convidou Carvalho para to- gas.” Enquanto conduziam Rita no cam- não sabia quanto tempo poderia ficar
Affonso de Carvalho, e a bisavó, Rosa car em seu segundo disco solo, Bandido burão, os policiais ligaram para jornalistas presa. “Tenha total liberdade para me
Ferraz da Luz, revezando-se ao piano. (1976). “Ezequiel Neves [produtor do dis- de rádio e tevê. Ela era um troféu a ser acompanhar ou não”, disse ela na carta.
De tanto ouvi-las, o terceiro filho de He- co] me deu ótimas referências do Rober- exibido durante a ditadura militar. Porém, já era tarde demais para Carva-
lyette com o engenheiro civil Heber to”, conta Matogrosso. Ao avistar o jovem A notícia foi como uma bomba lan- lho escolher outro caminho.
Affonso de Carvalho, sentou-se ao piano de 1,78 metro de altura e cabelos pretos çada no meio da pista da discoteca. Como a cantora narrou em sua auto-
num dia de 1955 – quando mal sabia longos, o cantor balançou. “Ele era lindo, Carvalho estava apaixonado por Rita e biografia, ela passou uma semana en-
falar – e tocou uma música aprendida parecia um índio branco”, lembra. se preparava para ser pai: poucos sa- carcerada no Departamento Estadual de
sabe-se lá como. “Não me lembro qual Curiosamente, Carvalho havia aca- biam, mas o bebê que ela esperava era Investigações Criminais (Deic) e 45 dias
era a música, mas passei a vida ouvindo bado de tocar com João Ricardo, que o primeiro filho dos dois. Ele avisou em uma ala feminina do Presídio do
a história de que eu era um prodígio por fora cantor e líder do Secos & Molhados. a Nelson Motta e Matogrosso que não Hipódromo, no Brás, um local usado pela
ter tocado aquilo com 3 anos de idade.” Ele fora chamado para participar da gra- poderia seguir com os compromissos e ditadura militar para encarcerar ativis-
Quando ele estava com 5 anos, Helyette vação do disco João Ricardo, mais co- apanhou o primeiro voo para São Pau- tas políticos. A sentença: um ano de
morreu, vítima de um câncer. O pai de- nhecido como “Disco Rosa” e fazer a lo. Entorpecente leva Rita Lee para o prisão em regime domiciliar.
cidiu cumprir um dos últimos desejos turnê do álbum. “O grupo era uma coisa, xadrez, dizia uma notícia do Jornal do Rita tinha acabado de lançar o disco
de sua mulher e entregou o menino e João, outra. Ensaiamos por três meses, e Brasil, de 25 de agosto de 1976: “A can- Entradas e bandeiras, com o grupo Tut-
para ser criado por um casal de tios, os músicos estavam afiadérrimos, mas, tora foi recolhida ontem a um xadrez ti Frutti, e chegara a fazer um show no
mantendo-se, entretanto, por perto. quando João entrava no palco, não acon- repleto de marginais e prostitutas [...] Teatro Aquarius, em São Paulo. Presa,
No Colégio São Vicente de Paulo, tecia nada”, conta Carvalho. “Não sou a depois que a polícia apreendeu em sua teve que suspender os compromissos.
uma instituição católica, Carvalho criou fim de falar mal, mas não rolou.”
o primeiro grupo musical, o E Trio, en- Ele então partiu com o grupo de Ma-
tre 1966 e 1967, com os amigos Flávio togrosso para se apresentar em uma
Vasconcelos (no baixo) e Sérgio Besou- pequena casa de shows de São Paulo cha-
ro Cintra (na bateria). “O Roberto toca- mada Beco. Foi lá que Rita Lee o viu
va música clássica ao piano, mas deve pela primeira vez – e se apaixonou. De-
ter estudado bossa nova também. Creio pois do show, ela foi ao camarim, mas
que tocamos Procissão, do Gil”, lembra não conseguiu vencer a histeria de uma
Cintra. Sim, Carvalho estudava piano fã, sentada no colo de Carvalho. Cha-
clássico com uma professora do Conser- mou Matogrosso e pediu que ele se viras-
vatório Brasileiro de Música, no Rio de se para levar o “índio branco” à sua casa.
Janeiro, o que não o impedia de se aven- Para Matogrosso, a noite do encontro
turar na música popular. de Rita e Carvalho também ficou na
Outro colega dos tempos do São Vi- memória por causa das jaguatiricas que
cente de Paulo era Eduardo Tolipan, o a compositora criava à solta. Sentado no
Tolipa, hoje com 71 anos, como Carva- sofá da casa, ele achou que seria devora-
lho. “Roberto era um garoto tímido, bas- do por uma delas. “A jaguatirica come-
tante quieto na sala de aula”, recorda çou a raspar o dente no meu couro
Tolipan. “Em 1965, quando tínhamos de cabeludo, e eu falei: ‘Rita, se esse bicho
12 para 13 anos, íamos juntos na mesma tirar sangue da minha cabeça, o que vai
perua escolar. O motorista da Kombi pas- tentar em seguida será comer a minha
sava primeiro na minha casa, às 6h15, e, cabeça’”, ele conta à piauí, rindo. Na dú-
em seguida, na casa dele. A gente até dis- vida, o animal foi preso. Carvalho jura
putava um lugar na janela que achávamos que a jaguatirica chegou a morder Ma-
que era o melhor.” Tanto Cintra quanto togrosso, tirando sangue de sua orelha.
Tolipan se lembram de estarem, anos de- Poucos dias depois do boogie-woo-
pois, todos em uma festa na casa de um gie do acasalamento com Rita no piano
amigo e se surpreenderem com a chegada da sala, Carvalho voltou para o Rio,
de Carvalho com sua nova namorada: atendendo a um convite do amigo Nel-
Rita Lee. “Ninguém acreditou que aquele son Motta para ensaiar As Frenéticas.
menino tímido estava namorando a Rita”, Ninguém podia adivinhar que as seis
conta Tolipan. “Caímos para trás.” garçonetes da boate Dancin’ Days, na
Até conhecer Rita Lee, Carvalho não Gávea, fariam tamanho sucesso dali a
acreditava que poderia viver de música, um ano, assim que lançassem a música
tanto mais que se achava incapaz de can- Perigosa, a primeira assinada por esses
tar. Na juventude, ele arrumou um em- parceiros improváveis: Rita Lee, Rober-
prego no cartório de um tio, para garantir to de Carvalho e Nelson Motta.
a independência financeira enquanto Em 24 de agosto de 1976, Carvalho
cursava direito na puc-Rio, faculdade ensaiava com As Frenéticas em seu quar-

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compor, arranjar e difundir música. ções e começou a recusar convites para
Com sinais mais refinados de graves, parcerias. Fez bem poucas desde então,
médios e agudos, as frequências modu- de maneira bem regrada, com músicos
ladas traziam brilho e possibilidades como Arnaldo Antunes, Itamar Assump-
acústicas completamente novas, muito ção, Júlio Barroso e Ronaldo Bastos.
mais envolventes do que os ruídos da Juntar Rita e Carvalho era fundir cult
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longa era das am. Emergia um novo e pop, abrangência de massa e base mu-
pop, ainda mais abrangente e rentável. sical acadêmica, o interessante e o rele-
Quando esse portal se abriu, as gra- vante. “Eu, que até então compunha
vadoras colocaram seus produtores a trogloditicamente com meia dúzia de
postos para iniciar as mudanças. Gilber- posições, expandi meus horizontes musi-
to Gil, Caetano Veloso, Djavan, Tim cais com ricas melodias e harmonias tra-
Maia, Elis Regina, Gal Costa, Simone, zidas por Rob”, ela escreveu em Rita Lee:
Roberto Carlos e Ney Matogrosso aderi- uma autobiografia. Num tempo em que
ram ao novo tempo. A chave do negócio nada parecia sobreviver aos sons sintéti-
se chamava sintetizador e todo o aparato cos que trituravam as sutilezas acústicas,
de ecos, efeitos e baterias eletrônicas Rita tinha a estrela, e Carvalho, a chave.
usado por artistas como Michael Jack- Descobriam juntos que as latinidades de
son, Madonna e Prince. “Era muito im- que gostavam cabiam no pop e que o
portante seguirmos esse padrão para Carnaval carioca poderia caminhar com
termos espaço nas fms daqui. Estáva- o rock paulista. “A gente continuou com-
mos competindo com os americanos”, pondo com violões e buscando as can-
diz o produtor Marco Mazzola, que gra- ções do mesmo jeito”, lembra Carvalho,
vou e/ou masterizou oito álbuns brasi- sobre a mudança do eixo estético dos
leiros nos Estados Unidos, dentre eles anos 1980, com as fms. “Para nós, o que
Feitiço, de Ney Matogrosso, Dancin’ mudava era a forma, não o conteúdo.”
“A situação ficou financeiramente tene- a prisão de Rita, mas, para mim, ficou days, das Frenéticas (ambos de 1978) e No dia em que João Gilberto perce-
brosa”, lembra Carvalho. claro que o Roberto faria bem a ela.” Realce, de Gilberto Gil (de 1979). beu isso, ligou para o casal às cinco da
A parceria dos dois começou ali. “Eu Carvalho e Rita começaram a com- Aberta ao novo, Rita se torna um manhã e fez um convite: “Ritinha, você
nunca tive um segundo de dúvida de por, de maneira descompromissada, prato cheio para esses códigos. “Eu pas- quer fazer um showzinho comigo?” De-
que ficaria ao lado dela. Nós nos uni- principalmente antes ou depois de faze- sei a buscar algo menos branco, mais pois de duas semanas de reuniões feitas
mos para combater tudo aquilo”, ele rem sexo – com o violão sempre por carioca, mais suingado”, conta Carva- entre as duas da madrugada e as oito da
diz. Com a mulher que seria mãe de perto. Tudo o que criavam parecia bom lho. “E era importante termos músicos manhã (e o pagamento de um cachê de
seu filho presa, ele colocou uma faca demais para ser apenas brincadeira. negros.” Craques como o baixista Jamil 30 mil dólares), João Gilberto havia acei-
nos dentes. Cortou o cabelo, comprou “Sempre foi a gente no quarto com um Joanes e o guitarrista Robson Jorge, am- tado gravar um especial para a Globo,
uma pasta 007 e passou a ir às reuniões violão nas mãos. Quase tudo nasceu as- bos negros, além do tecladista Lincoln em 1980. Ele poderia chamar quem qui-
com os executivos da gravadora Som sim”, conta Carvalho. Um dia, ainda na Olivetti, foram chamados para o time. sesse para dividir algumas canções, e
Livre. Em sua intervenção nas contas cama, ele apanhou o violão e começou “Lincoln entendia exatamente o que pensou em Rita Lee, uma “roqueira de
da banda Tutti Frutti, descobriu rom- a brincar com uma inversão do acorde queríamos. Essa era a magia da coisa.” voz bossa-noveira”, como dizia, para
bos na contabilidade e tentativa de gol- de lá menor, prendendo apenas duas Ao chegar ao estúdio para gravar Ma- cantarem Joujoux e balangandãs, mar-
pe financeiro que levaram à dispensa notas e deixando as outras soltas. Fez nia de você, o produtor Guto Graça chinha que Lamartine Babo criou em
da empresária dos músicos. “A gente isso alternando com um ré maior, tam- Mello pediu que os músicos abrissem 1939. Desconcertada por estar sendo
estava lidando com prisão, meganhas, bém invertido e com mais notas soltas. um círculo e, sentados, empunhassem convidada – justo ela, uma roqueira –
ditadura. Eu não era tão diplomático Tocadas dessa maneira, as notas flutua- seus instrumentos. “Rita vai tocar a mú- para se apresentar ao lado do criador da
quanto sou hoje, estava lá para salvar o vam, preguiçosas, como se reproduzis- sica sem parar, e vocês vão entrando bossa nova, Rita disse no telefonema ma-
grupo e faria o que tivesse de ser feito.” sem o estado de levitação que qualquer como bem entenderem”, disse Graça tutino que não conhecia a música, mas
Rita só queria – e precisava – voltar a um sente depois da fúria de um orgas- Mello, que assinaria a produção do novo poderia aprendê-la. A partir de então,
fazer shows. Neto de Euclides Zenóbio da mo. Os acordes soaram no ar por um álbum, Rita Lee, de 1979 (mais conhe- João Gilberto começou a ligar todas as
Costa, marechal e ex-ministro da Guerra tempo, até Rita lançar uma primeira cido como Mania de você). E a mágica madrugadas, com o violão ao colo.
de Getúlio Vargas, além de sobrinho de frase, já com uma melodia embutida: aconteceu. “A levada daquele bolero foi Em uma das ligações, passou a har-
dois tios generais e um comandante da Meu bem, você me dá, água na boca... surgindo na roda, aos poucos”, lembra o monia de Joujoux e balangandãs para
Marinha, Carvalho usou toda sua árvore produtor. “Havia uma cobrança de Ro- Carvalho, repetindo uma mesma sequên-

A
genealógica para obter o relaxamento da o lado de Roberto, ou mesmo longe, berto, ele olhava feio para quem errava”, cia mais de quarenta vezes. “Ficamos ali
prisão de sua mulher. Junto com o traba- mas pensando nele, Rita Lee come- conta o baixista Lee Marcucci. “Mas, por umas três horas”, Carvalho recorda.
lho dos advogados, seus contatos conse- çou a compor de modo diferente do quando o erro era meu, ele dava risada.” João Gilberto mostrava acordes novos e,
guiram finalmente a liberação de Rita rock experimental dos Mutantes e da pe- Nem tudo que os dois assinaram jun- do outro lado da linha, pedia para ouvir
para que ela pudesse fazer shows à noite, gada rock de raiz do Tutti Frutti. Assumiu tos foi feito em dupla: eles também cria- o casal cantar e tocar. Aos poucos, Rita,
dois meses depois de ser condenada. a busca por prazer e sensualidade, o sexo ram sozinhos. A ideia de que Rita só fazia que não gostava de telefone, passou a
Havia um incêndio a ser apagado pelo sexo, e falava de amor com um sorri- as letras, e Carvalho, as músicas, é enga- evitar atendê-lo depois das duas da ma-
quando o Tutti Frutti voltou à estrada: o so indisfarçável. Enquanto ainda estava nosa. Doce vampiro, por exemplo, era nhã, e Carvalho, já chamado de Roberti-
tecladista Paulo Maurício resolvera dei- em prisão domiciliar na casa dos pais, apa- toda de Rita. E Carvalho também fez nho por João Gilberto, assumiu a função.
xar o grupo. Com carta branca de Rita, nhou o violão e compôs em poucos minu- música para outras cantoras, como Nara Ouvia histórias, elogios e sentia-se ungi-
Carvalho decidiu assumir as teclas. “Eu tos a letra e a música de Doce vampiro. Leão, que gravou uma parceria dele com do pela figura mais alta de sua trindade
não queria o lugar de ninguém. Só es- “Eu imaginei Rob Drácula entrando pela Fausto Nilo – Amor nas estrelas, em 1981. sagrada da música – João Gilberto, Cae-
tava ali tentando salvar a banda”, diz. janela do meu quarto e me dando uma Depois de ouvir essa música, Caetano tano Veloso e Gilberto Gil.
O baixista Lee Marcucci, um dos fun- bela chupada na nuca”, escreveu em suas Veloso disse: “Isso é Nara cantando uma A gravação do especial da Globo, mes-
dadores do Tutti Frutti e coautor, ao memórias, referindo-se ao marido. música da Rita.” A observação abalou mo sem ter havido ensaios, confirmou a
lado de Rita, de Jardins da Babilônia O contexto cultural e musical tam- Carvalho: “Esse comentário de Caetano energia surpreendente que emanava do
(lançada no álbum Babilônia, de 1978), bém favorecia uma mudança radical. bateu muito forte em mim”, ele diz. “Me encontro de João Gilberto com Rita Lee.
conta sobre a entrada de Carvalho no Entre os anos 1970 e 1980, as portas do dei conta de que as pessoas percebiam as Depois de cantar ao lado de seu ídolo, ela
grupo como se isso tivesse representado sucesso começaram a se abrir com mais coisas que eu fazia como se fossem dela.” deixou uma porta aberta. Em 1982, João
um alívio. “Sentimos que o piano de facilidade para os que sabiam o código Era como se ele e Rita fossem um só au- Gilberto devolveu a gentileza, ao partici-
Roberto trazia um suingue mais blues”, de acesso ao mundo das rádios fm, que tor. A partir daquele instante, Carvalho par da faixa Brazil com S, de Rita, no ál-
diz. “Havia uma tristeza na banda com estavam mudando o jeito de pensar, decidiu que apenas ela cantaria suas cria- bum Rita Lee e Roberto de Carvalho.

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Enquanto a Rita dos roqueiros se di- famílias conservadoras, em uma época
luía, a sonoridade trazida por Carvalho ainda sob a vigilância dos militares. Não
se expandia – e os solos de guitarra, as deixa de ser intrigante que, apesar da

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viradas de bateria, distorções e mixa- censura, a cantora que havia sido conde-
gens malfeitas entravam em extinção. nada por uso de drogas, que provocava
Quanto da sonoridade dela teria sobre- a polícia e sugeria às pessoas que fizes-
vivido se tivesse permanecido em um sem sexo em todos os lugares aparecesse
grupo de rock? Fato é que, em 1981, nas trilhas das novelas da Globo, nos
quando saiu o disco Rita Lee, com Lan- quadros musicais do Fantástico e em
ça perfume, os roqueiros queriam a ca- execuções frequentes nas rádios fm.
beça de quem havia furtado sua rainha.

A
O espanto de Gerson Conrad, ex-inte- vida começou a escurecer quando
grante dos Secos & Molhados foi grande: Rita sentiu que iria perder o pai, o
“Escutei algumas coisas carnavalescas dentista Charles Fenley Jones. Ela
[no disco] e pensei: a Rita está diferente.” estava fazendo shows pelo país com a
Não foi menor o do roqueiro Marcelo turnê O circo, de 1982, quando recebeu
Nova, que fez parte da banda Camisa de a notícia de que deveria retornar a São
Vênus: “Não estou na pele da pessoa para Paulo para vê-lo. Jones sofria de graves
saber o que a levou a tomar essa ou aque- problemas no coração e estava com a
la decisão, só posso dizer que gosto mais saúde fragilizada. Depois do encontro,
da primeira fase.” A guitarrista Lucinha ela voltou à estrada e passou a tomar
Turnbull, amiga de Rita dos tempos pré- antidepressivos aos montes, compulsi-
Mutantes, lembra que muitos torceram o vamente. O cérebro deu sinal de so-
nariz. “Sempre tem gente para dizer que brecarga e desligou a chave geral. No
o rock morreu. Mas quem prestava aten- terceiro apagão, Rita decidiu se internar
ção via que, já nos Mutantes, a Rita não em uma clínica. Esse inferno particular
era só rock. Havia muita mistura.” E o atingiu Carvalho em cheio. “Eu ficava Rita caiu e se levantou várias vezes. As determinações de Rita eram irrevo-
que diz o próprio Roberto de Carvalho? atormentado com tudo isso.” Ele colava Angustiado, Carvalho estudava sobre gáveis. Havia sido com os vícios, seria com
“Estávamos pouco ligando para a opi- nos três filhos pequenos e rezava. distúrbios mentais para entender o me- os shows. Depois que ela decidiu abando-
nião dos outros. Isso era algo completa- No dia em que Fenley Jones morreu canismo que colocava sua mulher em nar os palcos, em 2012, nem um cami-
mente irrelevante, não estávamos nem aí. – 18 de maio de 1983 –, Rita estava in- perigo. “Ela sofria de transtorno de nhão de dinheiro a faria voltar. “A última
Os roqueiros xiitas que se fodam.” ternada. Carvalho a apanhou na porta ansiedade, um vizinho do transtorno proposta que tivemos foi para fazer um
O compositor e cantor Guilherme da clínica para levá-la ao velório. Ela bipolar, algo que a levava às vezes a mo- show de despedida recebendo uma quan-
Arantes, que estreara em um grupo de chegou, deu um beijo no pai e voltou mentos de hipomania, às vezes a crises tia absurda”, diz Carvalho. “Quando fui
rock progressivo em 1973, o Moto Per- para mais duas semanas de internação. de depressão. Acho que posso atestar que contar, Rita não quis nem saber o valor.
pétuo, antes de se tornar uma aposta Em 1991, Rita estava viciada em barbi- ela sofria de transtorno bipolar light.” Apenas disse não.” Nas últimas páginas de
pop da gravadora Som Livre, comenta: túricos quando fez seu primeiro trabalho A hipomania é parecida com a mania, Rita Lee: uma autobiografia, ela escreve:
“Musicalmente, Rita solteira era muito sem Carvalho: uma série de shows acús- mas de intensidade menor. “Se um belo dia você me encontrar pelo
dispersa, muito errática. Com Roberto, ticos, que logo sairia no álbum Bossa‘n Eles seguiam distantes em 1996, caminho, não me venha cobrar que eu
o número incontável de obras-primas roll. As brigas por causa do consumo de quando a jornalista Mônica Figueire- seja o que você imagina que eu deveria
não deixa dúvida: os dois formaram um drogas estavam tornando a relação insus- do, amiga do casal, ligou para Carva- continuar sendo. Se o passado me crucifi-
sistema estelar binário imbatível.” Anos tentável. Apesar de se falarem todos os lho. “Volta para a Rita, Roberto. Ela ca, o futuro já me dará beijinhos.”
depois, Carvalho leria entrevistas nas dias, os dois decidiram que seguiriam está em rota de colisão consigo mesma. Um dos beijos do futuro chegou para
quais Mick Jagger e David Bowie fala- com seus trabalhos solos por um tempo. Estou vendo pessoas ruins se aproxi- Carvalho numa noite quente no início
vam da resistência dos fãs aos trabalhos Rita também teve problemas com o mando, vai acontecer uma tragédia.” de fevereiro passado. Ele entrou no
menos ortodoxos que fizeram. “Os fãs álcool – e se internou novamente. Car- Amiga de Elis Regina, morta em 1982 quarto em que dormia com ela na
originais, aqueles que passam a seguir valho frequentava as reuniões dos pa- por excessos relacionados ao consumo Granja Viana, sentou-se à cama e olhou
um artista no início de carreira, se sen- cientes com suas famílias, aos domingos. de droga com bebida alcoólica, Figuei- fixamente para a imagem de Nossa Se-
tem coproprietários desse artista”, diz “Minha obsessão era manter a Rita viva”, redo sabia o que estava dizendo. Elis nhora Aparecida, colocada sobre um
Carvalho. “Quando há mudança, e o ele diz. Mas os vícios persistiam. Carva- havia consumido cocaína nos últimos altar. Apanhou seu violão Hermanos
artista migra para uma sonoridade di- lho deu um ultimato, reproduzido por dez meses de vida em uma viagem que Conde e começou a testar acordes e
ferente daquela com a qual estavam sua mulher em Rita Lee: uma autobio- não teve volta. Carvalho voltou e não melodias como nos velhos tempos.
acostumados, eles se sentem traídos. grafia: “Se você quer se destruir, foda-se, saiu mais de perto de Rita. Ele tinha uma dívida antiga com sua
Foi o que vivemos.” seus filhos e eu não estamos mais a fim Deixar as drogas foi uma decisão que mulher: fazer a melodia de uma letra
O jornalista e produtor Nelson Mot- de ver esse filme chato. Aqui em casa os levou a um caminho angustiante. Os escrita por ela. A cantora passou a co-
ta acompanhava as mudanças do tempo não tem espaço para isso.” dois buscaram ajuda de psiquiatras para brá-lo: “Já fez a música, Rob?” Por falta
quando Rita fez a conversão do rock Em 1994, ela foi morar sozinha em amenizar também o desmame do álcool. de tempo ou de inspiração, Carvalho
clássico para o pop de massas. “Antes da um apartamento alugado em Pinheiros, A série de medicações prescrita para não conseguia. Ela adoeceu e conti-
parceria com Roberto, Rita havia feito em São Paulo, e cavou um buraco ainda conter possíveis efeitos da abstinência nuou cobrando. “Fez a música?” Nada.
grandes canções, como Mamãe nature- mais fundo ao aderir a uma dieta líquida acabou provocando outra doença. As Dias antes de morrer, Rita fez seu ter-
za e Ovelha negra. Não sei até onde ela que incluía gim no café da manhã, cai- pessoas viam Rita tremendo e diziam ceiro pedido, falando baixinho: “Assim
iria sozinha, mas sei que seguiria fazen- pirinha no almoço e uísque no jantar. que ela estava com mal de Parkinson. que você terminar, entregue aquela
do canções cada vez melhores”, diz Carvalho não suportava o álcool. Um dia, ao saírem de uma consulta, um música para ela.” Carvalho não revela
Motta. “Ao lado de Roberto, ela come- “O pior careta é o ex-drogado”, diz. Ele já psiquiatra piscou para Carvalho e cochi- quem é “ela”, apenas diz que é uma das
çou a apostar em um rock de Carnaval, tentara tomar destilados e fermentados de chou: “Ela está com Parkinson, se prepa- maiores vozes do país.
baladas de cabaré, música caribenha, toda safra, mas seu organismo os rejeita- ra.” Carvalho respondeu: “Ela não está Naquela noite de fevereiro, nove me-
sambas e, ainda assim, sem se perder. va. Havia consumido cocaína e maconha, com Parkinson.” Em suas pesquisas, ele ses depois da morte de Rita, a canção
Chegou um momento que se tornou mas isso era coisa do passado. Diante da havia lido que tremedeira em pacientes então chegou – bela e bruta, pronta
redutor chamá-la de rainha do rock.” resistência de Rita para se livrar do vício, que tomavam medicações como as dela para ser lapidada. Carvalho aparou as
Havia também o caminho inverso. ele deu uma última cartada, não para ter- era resultado do chamado parkinsonis- sobras, lustrou as notas e a batizou de
Rita Lee saía do rock, mas o rock – em minar a relação entre os dois, diz ele, mas mo medicamentoso – um mal reversível, Menina. Depois de tocar a música intei-
espírito – não saía dela. Sua versão “anos para deixar sua mulher respirar. “Eu co- bastando livrar-se dos remédios. À medi- ra, desligou o gravador e disse baixinho,
80” permitiu que ela contrabandeasse a mecei a achar que poderia estar atrapa- da que as medicações foram sendo tira- antes de desaguar uma saudade de mil
rebeldia roqueira para dentro da sala das lhando, que o problema era eu.” das, a tremedeira começou a passar. anos: “Muito obrigado, meu amor.” J

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cine-aventuras

A MOCHILA DE CHATWIN
Feita de couro resistente por um seleiro, essa mochila é, entre todas as coisas materiais que tenho, a mais preciosa para mim

WERNER HERZOG

N
a época em que eu preparava rei do Daomé.3 Em praticamente todos pesquisas de um novo livro. Deixei o escrevi, Caminhando no gelo, sobre a mi-
o filme Onde sonham as for- os meus filmes, eu próprio criei o argu- número de meu telefone em Melbour- nha jornada a pé para encontrar Lotte
migas verdes,1 na Austrália, li mento e o roteiro, mas, ao ler O vice-rei ne, onde eu organizava as filmagens de Eisner.4 Ele estava voltando para Sydney
em um jornal que Bruce de Uidá, me veio à cabeça que o livro Onde sonham as formigas verdes, e pedi e de lá pretendia regressar à Inglaterra.
Chatwin2 estava em Sydney, poderia ser a base para um longa-metra- que me avisassem assim que ele reapa- Perguntei-lhe se poderia fazer um des-
lançando um novo livro, Colina negra. gem. De repente, tudo ficou mais claro recesse no radar. vio até Melbourne e adiar o voo de vol-
Eu conhecia seu extraordinário Na Pa- para mim a esse respeito – e entrei em Uma semana depois, recebi um te- ta. Ele topou, sem hesitar: chegaria à
tagônia e o romance O vice-rei de Uidá, contato com a editora em Sydney. Não, lefonema: se eu ligasse nos próximos tarde. Eu não sabia como era Chatwin,
sobre um bandido brasileiro que se tor- Chatwin já havia desaparecido nas 60 minutos para determinado número como poderia reconhecê-lo, e ele ape-
na o maior traficante de escravos da profundezas do outback, para fazer as no Aeroporto de Adelaide, talvez con- nas disse: “Sou alto, loiro e pareço um
África Ocidental em seu tempo e vice- seguisse falar com ele. Chatwin, para
3 O Reino do Daomé, importante centro de tráfico ne-
greiro, existiu entre os séculos XVII e XIX. Em 1904,
minha surpresa, sabia quem eu era, 4 Lotte H. Eisner (1896-1983), historiadora e crítica de
1 Where the green ants dream (1984), sobre um gru- foi incorporado à colônia de Daomé e Dependências, conhecia uma série de filmes meus e cinema alemã, autora de estudos sobre o expressionis-
po de aborígenes em defesa de um território sagrado. da França. Em 1960, a colônia ficou independente, mo, Fritz Lang e F. W. Murnau, e interlocutora importan-
2 Bruce Chatwin (1940-89), escritor inglês, renoma- com o nome de República de Daomé. Depois, tornou-
– surpresa ainda maior –, carregava na- te dos diretores do Novo Cinema Alemão, como Herzog
do por seus relatos de viagem. se Benim, seu nome atual. quele momento na mochila o livro que e Wim Wenders (que a ela dedicou Paris, Texas).

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LORD SNOWDON_TRUNK ARCHIVE_1982

O escritor Bruce Chatwin com sua mochila, em 1982: “Doente, ele me disse: ‘Minha mochila é muito pesada para mim.’ Eu respondi: ‘Bruce, eu sou forte, posso carregá-la para você’”

estudante. Estou carregando uma mo- mos a contar mais e mais histórias. Dois plesmente a ouvi-lo. Jamais esquecerei direitos do livro. Esse tipo de acesso di-
chila de couro.” Quando fui buscá-lo terços do tempo era ele quem falava, nosso primeiro contato. reto que tivemos um ao outro foi facili-
com meu anfitrião, Paul Cox, locali- como que em êxtase, um terço do tem- Como eu estava enfronhado em tado certamente por termos, nós dois,
zei-o a 100 metros de distância no meio po era eu. Naturalmente, em meio a meu novo filme, concordamos que eu experiências com caminhadas. Para ser
da multidão. tudo isso, também comemos e dormi- começaria a trabalhar na história de mais preciso: não éramos mochileiros
Enquanto saíamos do aeroporto, ele mos. Ele ficou com a minha cama na Chatwin sobre o traficante de escravos que, com barraca, saco de dormir e
desatou a contar uma história após a casa de Paul Cox, eu dormi no sofá. Francisco Manoel da Silva5 assim que utensílios para cozinhar, carregavam
outra, e seguiu-se então uma maratona Depois eu soube que, em outras oca- surgisse uma oportunidade para isso e uma casa nas costas, mas duas pessoas
de 48 horas na qual nos contamos his- siões, ao se hospedar na casa de pessoas o financiamento estivesse acertado. Por que percorriam longas distâncias quase
tórias e mais histórias, isto é, eu mesmo que não conhecia, ele começava a con- cautela, também pedi a ele para me avi- sem bagagem. O mundo se revela a
quase não conseguia interrompê-lo, tar uma história assim que saía do carro sar se mais alguém quisesse comprar os quem viaja a pé. No caso de Bruce,
pois seu fluxo verbal era vigoroso e ines- e continuava ao entrar na casa, cumpri- deve-se acrescentar a sua profunda
gotável como uma cachoeira. Mas acho mentando seus anfitriões apenas com 5 O personagem principal do romance O vice-rei de compreensão das culturas nômades,
Uidá, Francisco Manoel da Silva, foi inspirado no
que nesse aspecto fui um interlocutor um aceno de cabeça. Era então cercado traficante de escravos brasileiro Francisco Félix de
combinada com o seu entendimento de
bastante especial: nós nos estimuláva- pelos presentes, que se dedicavam sim- Souza (1754-1849). que todos os problemas da humanidade

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U
m dia, recebi uma carta de Bruce til com suas parceiras diante da câmera,
dizendo que David Bowie queria o que ficou particularmente visível com
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comprar os direitos de O vice-rei relação às atrizes Claudia Cardinale e


de Uidá. Aparentemente, ele também Eva Mattes, das quais ele reconhecia o
queria fazer o papel principal. Liguei talento e o carisma únicos. Mas a cola-
para Bruce e disse: “Deus do céu, Bowie boração entre Kinski e eu muitas vezes
é o cara errado, ele é andrógino demais chegou a extremos, a zonas onde nos
para esse personagem.” Bruce era da mes- tornávamos perigosos um para o outro.
ma opinião, e eu então raspei o tacho Planejamos matar um ao outro, o que
e comprei os direitos do romance. Em não passou de uma pantomima, de uma
minha adaptação, Klaus Kinski faria o cena grotesca. Uma noite, subi a encosta
vilão. O próprio Bruce havia ficado pro- íngreme que levava até seu chalé em
fundamente impressionado com Kinski, San Francisco, situado no meio das se-
que ele já tinha visto no cinema. quoias ao Norte da cidade (o caminho
Cobra verde, como chamei o filme de normal, transitável, ficava do outro lado)
1987 adaptado de O vice-rei de Uidá, veio para atacá-lo. Mas eu não tinha muita
a ser a quinta e última colaboração entre certeza do que queria fazer e, quando o
Kinski e eu. Naquela época, ele era como cão pastor dele começou a latir, foi uma
um demônio, movido pela loucura. In- boa deixa para escapar dali.
teriormente, já estava em outro filme, o Apenas uma vez realmente o amea-
seu próprio longa-metragem sobre Paga- cei de morte: foi em Aguirre, quando
nini. Como era de esperar, não chamou Kinski arrumou suas coisas e colocou-as
esse filme de Paganini apenas, mas em um barco, decidido a partir duas se-
Kinski Paganini (1989). Durante anos, manas antes do final das filmagens, o
ele insistiu para que eu assumisse a dire- que era inadmissível, porque trabalhá-
ção, mas o roteiro, de seiscentas páginas, vamos em algo que estava além, acima
era o que se chama no ramo de beyond de nós mesmos. Eu estava desarmado,
repair – sem conserto. sem nada nas mãos, e falei num tom
Logo no início das filmagens de Co- contido, mas Kinski percebeu que não
tinham a ver com o abandono da vida nô- morrer? Ela falou isso um pouco em bra verde, em Gana, ele aterrorizou de era uma ameaça vazia. Já havia tirado
made. Somente com o início da vida tom de brincadeira, mas senti que na tal modo o meu cinegrafista que a situa- dele a Winchester com a qual às vezes
sedentária se desenvolveram povoados, realidade não era, e respondi com um ção ficou insustentável. Kinski exigiu atirava furioso à sua volta. Na selva, isso
cidades, monoculturas e ciências, com gesto suave, indicando que a maldição expressamente a demissão de Thomas era absolutamente tolerável, e ele pensa-
um intenso aumento da população – estava suspensa. Ela morreu pouco de- Mauch, apesar de saber, desde Aguirre, va estar se defendendo com valentia dos
coisas que não são boas para a sobrevi- pois de uma semana. a cólera dos deuses (1972), que estava li- ataques de onças e cobras venenosas.
vência da humanidade. Por outro lado, A maneira de caminhar que Bruce e dando com um profissional de primeira Uma noite, porém, depois do fim das
está claro que não podemos girar ao eu compartilhávamos nos forçava a bus- categoria. Mauch se deu conta de que filmagens, quando cerca de trinta figu-
contrário a roda do tempo. car refúgio, a nos conectar com as pes- eu não poderia apoiá-lo, pois isso pode- rantes ainda jogavam cartas e bebiam
Bruce gostou dos meus dez manda- soas, porque nossa vulnerabilidade ria acarretar a suspensão das filmagens aguardiente em uma cabana, Kinski
mentos, a minha lista de pecados da ci- durante o percurso exigia isso. Não con- de Cobra verde de modo inevitável, e teve um acesso de cólera, depois de ou-
vilização moderna: entre eles, a criação sigo me lembrar de termos sido rejei- desistiu do filme. Às vezes, intimamen- vir de sua cabana isolada no topo da
do primeiro porco doméstico – o que tados por alguém, porque existe um te, lá no fundo, tenho a sensação colina uma risada distante que
não se equipara à criação de um cachor- reflexo profundo, quase sagrado, de hos- de que o traí. Eu queria ter o perturbou. Ele disparou a
ro, que se tornou um companheiro de pitalidade, que está apenas aparente- conseguido ser leal e apoiá- esmo três tiros em direção
caça – e também a primeira escalada mente enterrado na nossa civilização. lo naquele momento, mas à cabana dos figurantes,
de uma montanha apenas por escalar. Mas muitas vezes em minhas caminha- se o fizesse o filme deixaria com paredes construídas de
Petrarca foi o primeiro de que temos no- das também ocorreram situações em de existir e os danos a todos bambu, que as balas atra-
tícia a escalar uma montanha, e pela que não havia por perto nenhuma al- os demais membros da equi- vessaram como se fossem
carta em latim que escreveu sobre isso deia ou propriedade rural, nenhum teto. pe teriam sido irreparáveis. de papel. Por mero acaso
se pode depreender que tinha uma atra- Eu dormia então em campos abertos e Trabalhar com filmes mui- ele não acertou em cheio
ção pelo insólito, pelo quase proibido. debaixo de pontes. Quando chovia ou tas vezes envolve destruição. algumas das pessoas api-
Todos os povos da montanha, como os fazia um frio glacial, e eu encontrava Quando se desbasta o matagal da nhadas lá dentro – apenas arran-
suíços, os sherpas e os baltis, nunca pen- apenas uma cabana de caça vazia ou história do cinema, o chão que se revela cou a falange superior do dedo médio
saram em escalar uma montanha. uma casa de férias isolada, nunca vi pro- está cheio de coisas destruídas. Feliz- de um dos jovens.
Talvez eu fosse o único com quem blema em invadi-las. Muitas vezes, en- mente, Mauch lidou bem com tudo Em Fitzcarraldo, os ashaninkas7 fica-
Bruce podia se entender facilmente so- trei em casas trancadas sem causar aquilo: fez seus próprios filmes e tam- vam visivelmente com medo quando
bre a sacralidade do caminhar. Minha danos, nem quebrar nada, porque sem- bém foi diretor de fotografia de muitos Kinski se enfurecia, então se sentavam
própria caminhada para ver Lotte Eis- pre tenho comigo um pequeno “instru- projetos de outros diretores. em círculo no chão e cochichavam en-
ner, gravemente doente, de Munique a mental cirúrgico”, feito de duas molas de Nunca mais trabalhei com Kinski tre si. No convívio social desse povo
Paris, no inverno de 1974, teve algo do aço, que me permite abrir fechaduras depois desse episódio, mas houve outras nunca ocorrem discussões barulhentas.
ritual de não admitir a sua morte imi- de segurança. Ao ir embora, frequente- razões para isso. Em cinco longas-me- Um dos seus chefes mais tarde me disse
nente por causa de uma doença. Na mente deixo um breve bilhete de agrade- tragens, eu dei vida a personagens mui- que eu não deveria pensar que eles esta-
época, Lotte não soube que eu iria ao cimento, ou termino as palavras cruzadas to diferentes por meio dele, e depois não vam com medo daquele louco que urra-
seu encontro, viajando a pé na neve por largadas na mesa da cozinha. Sentindo- havia mais nada a descobrir. Em favor va, mas, sim, com medo de mim, pois
21 dias. Quando cheguei a Paris, ela, me incomodado com o que se pratica de Kinski, no entanto, devo dizer que eu me mantinha muito quieto. Esse
devido a um milagre, estava quase sau- nos cursos de cinema em todo o mundo, muitas vezes ele conseguia ser extraor- chefe também se ofereceu para matar
dável e recebeu alta do hospital. Havia fundei a Rogue Film School, uma esco- dinariamente generoso e prestativo, e Kinski. Recusei educadamente, mas sei
algo esconjurador na minha caminhada, la alternativa, de guerrilha, onde as úni- que tivemos momentos de profunda ca- que, caso tivesse aceitado, eles teriam
foi como uma peregrinação. Oito anos de- cas duas coisas que realmente ensino maradagem. O filme Meu melhor inimi- passado à ação no mesmo instante.
pois, quando já beirava os 88 anos, Lotte são a falsificação de documentos e o go 6 é uma prova disso. Mostra que Convidei Bruce para ver as filma-
me chamou a Paris. Ela estava quase arrombamento de fechaduras de segu- Kinski podia ser muito respeitoso e gen- gens de Cobra verde em Gana, mas ele
cega, mal conseguia andar, e disse: “Es- rança. Tudo o mais são instruções para
7 Membros do povo Ashaninka, que vive na Amazônia,
tou farta da vida.” Será que eu poderia subverter o sistema existente, para fazer 6 Meu melhor inimigo, documentário de Werner Her- entre o Acre e o Peru, participaram do filme Fitzcar-
libertá-la da maldição que a impedia de filmes a partir de si mesmo. zog sobre Klaus Kinski, foi lançado em 1999. raldo, lançado em 1982, com Kinski no papel-título.

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escreveu que estava tão doente que não Foi um grande erro. Quando anun- ta ver o meu filme. Peguei o carro e fui
podia mais viajar. Contraíra um fungo ciamos que o salário da semana seria de Munique até lá. Levei uma cópia
muito raro, que estava se alastrando pago lá fora, todas correram rumo ao em videocassete.
pela sua medula. Esse fungo havia sido pesado portão externo, do qual, delibe- Quando cheguei, Elizabeth me pa-
encontrado apenas em uma baleia en- radamente – para evitar que muitas pas- rou à porta e, sussurrando, me pergun-
calhada na Costa da Arábia e em mor- sassem ao mesmo tempo –, apenas uma tou se eu queria mesmo entrar. Bruce
cegos de uma caverna em Yunnan, no porta menor fora deixada aberta. Em estava morrendo. Embora eu tenha tido TODAS AS COISAS
sudoeste da China, que Bruce visitara. poucos instantes, os corpos de várias das um momento para me preparar, depois MARAVILHOSAS
Mais tarde, porém, verificou-se que a mulheres estavam entalados uns nos ou- de receber essa notícia, fiquei profun-
infecção fúngica dele era apenas conse- tros na estreita passagem na forma de damente chocado ao vê-lo. De Bruce,
quência da Aids. Continuei insistindo túnel, e a pressão que vinha de trás cres- restava somente um esqueleto, apenas
para que ele viesse e, quando de repen- cia de tal forma que pude ver algumas os grandes olhos ainda ardiam em seu
te melhorou um pouco, me perguntou delas, mais à frente, desmaiarem. Como crânio, e ele quase não conseguia mais
se era possível chegar até mim numa a multidão era muito compacta, elas falar. Bruce pediu para ficar sozinho Vermelho
cadeira de rodas. Respondi que o terre- não deslizavam para o chão, mas per- comigo. A sua boca e a sua garganta
no do local onde estávamos filmando maneciam eretas em seus desmaios. As estavam infestadas por uma camada
não era adequado. Escrevi: “Vou arran- que estavam mais atrás empurrando clara de fungos que havia se alastrado
jar para você uma rede com seis carre- não tinham ideia do que estava aconte- até os pulmões. A primeira coisa que
gadores, além de um homem com um cendo à frente e urravam, e eu gritei em ele me disse foi: “Estou morrendo.” Eu
enorme guarda-sol, daqueles que os vão para que elas parassem de empurrar. respondi: “Estou vendo, Bruce.” Ele que-
pequenos reis locais sempre têm por Estava claro que 10 quilogramas-força ria que eu o ajudasse em sua agonia,
perto como guarda de honra.” Ele não de pressão apenas, mas vindos de oito- queria saber se eu podia matá-lo. Eu
pôde resistir à proposta. Mas depois centos corpos, logo significavam 8 mil kgf disse: “Você acha que devo bater em
conseguiu andar sozinho, ainda que para as que estavam à frente, era uma você com um taco de beisebol ou sufo-
apenas por curtas distâncias. situação com risco fatal que se agravava cá-lo com um travesseiro?” Mas ele es-
Bruce escreveu sobre essa visita em a cada segundo. Dessa mesma forma cos- tava pensando numa droga de ação
seu livro What am I doing here (O que tumam acontecer acidentes terríveis em rápida. Por que não falara com Eliza- 12
estou fazendo aqui). Ele ficou particu- estádios de futebol. beth sobre isso? Não, ela era católica
larmente impressionado com o rei Nana Do lado de fora, junto à mesa com as demais, era impossível lhe pedir tal coi- De Dulcan Macmillan e Joe Donahue
Agyefi Kwame ii, omanhene de Nsein,8 notas de dinheiro empilhadas (em sa. Mas Bruce acabou retirando o pedi- Direção Fernando Philbert
que faz um papel no filme. O rei apa- Gana imperava uma inflação galopante do que me fizera e quis ver o filme, do Com Kiko Mascarenhas
rece em traje cerimonial completo, e as notas tinham que ser transportadas qual mostrei os primeiros quinze minu- Sex às 21h00, Sáb às 21h00
com 350 pessoas em sua comitiva: toca- em carrinhos de mão), um soldado tos. Depois, por um tempo, ele caiu em e Dom às 18h00 | TUCARENA
dores de tambor, dançarinos, suas mu- montava guarda. Gritei para ele dar um um estado de inconsciência.
lheres, seu poeta da corte. Para o filme, tiro para o alto, mas o soldado estava Quando voltou a si, quis assistir ao
também escalamos um exército de como que paralisado por aquela agita- restante do filme, o que começou a fa-
amazonas, com oitocentas jovens que ção. Tive que arrancar a arma da mão zer, parte por parte. Foram as últimas
foram treinadas durante semanas num dele – e eu mesmo atirei para o alto. imagens que viu. Suas pernas, que cha-
campo esportivo em Acra por Benito Assustada, a multidão recuou no túnel, mava de boys e pareciam fusos feitos de
O QUE SÓ
Stefanelli, o melhor coordenador de e só então quatro ou cinco das mulhe- ossos, estavam doendo. Ele me pediu SABEMOS JUNTOS
dublês da Itália. Stefanelli, que havia res inconscientes caíram ao chão. para mudar a posição de seus boys, o
coreografado inúmeras pancadarias que fiz. Então, de repente, acordou de

O
em filmes de faroeste spaghetti,9 viu-se estado de saúde de Bruce piorou um semicoma e gritou: I have to be on
diante de um exército de jovens loqua- nos dois anos seguintes. Em 1987, the road again, I have to be on the road
zes, confiantes e que quase não se dei- ele ainda pôde ir a Bayreuth para again! (Tenho que pegar a estrada de
xavam controlar. Bruce testemunhou o festival de óperas de Wagner, onde novo). Eu disse: “Sim, Bruce, a estrada
uma pequena insurreição delas no lo- encenei Lohengrin. Foi com sua mu- é o seu lugar”, e ele olhou para as pró-
cal de filmagens em Elmina e descreve lher, Elizabeth, e fez a maior parte do prias pernas e viu que não havia mais
a cena em seu livro, com espanto. trajeto ao volante do seu “pato de lata”, nada, não havia mais corpo, apenas
Além de Kinski, eu também tinha um Citroën 2cv. Algum tempo depois, uma alma ardente, e me disse: “Minha
diante de mim uma legião de guerreiras fiz um documentário no Sul do Saara mochila é muito pesada para mim.” Eu
maravilhosas e difíceis, e me lembro de sobre o povo nômade Wodaabe, mais respondi: “Bruce, eu sou forte, posso
um incidente ocorrido no dia em que o precisamente sobre um encontro anual carregar a mochila para você.” Ele as-
cachê da semana seria pago em dinhei- de vários povos em algum lugar do semi- sistiu ao filme até o fim.
ro. No pátio de um forte, as mulheres deserto do Níger, onde havia uma espé- Depois de quase dois dias, Bruce me
começaram a trocar de roupa depois cie de mercado de casamento. Lá, eram falou que estava com vergonha de mor-
das filmagens, e eu sabia por experiên- os homens, considerados os mais bonitos rer na minha frente, e eu disse que en-
cia própria que elas não fariam fila para do mundo, que se embelezavam e se ma- tendia, embora não tivesse medo de
serem registradas e pagas. No pagamen- quiavam em rituais que levavam dias. ficar com ele. Quando eu por fim esta- 12
to anterior, elas simplesmente haviam Depois, as mulheres decidiam quais eram va indo embora, a pedido dele, Bruce
De Denise Fraga, Luiz Villaça e
avançado sobre a mesa onde estava o os mais belos e com mais carisma. Elas disse num instante de perfeita lucidez:
Vinicius Calderoni
dinheiro – e tudo acabara num grande escolhiam um homem do grupo de dan- “Werner, você tem que ficar com mi-
nha mochila, você vai carregá-la em Direção de Luiz Fernando Villaça
caos. Dessa vez, a equipe local decidiu çarinos para passar a noite e, caso ele não
usar uma passagem na forma de túnel as tivesse agradado, devolviam o candi- meu lugar.” Fui embora, e alguns dias Com Denise Fraga e Tony Ramos
entre o pátio interno do forte e o portão dato sem cerimônia. depois Elizabeth levou-o para o hospi- Sex às 21h00, Sáb às 20h00
externo como um gargalo natural para Eu havia contado a Bruce sobre a tal em Nice, onde ele morreu em algu- e Dom às 17h00 | TUCA
canalizar a multidão de mulheres e a edição do filme e ele estava ansioso por mas horas. Foi ela quem me enviou a
esperada confusão. vê-lo. No momento em que Wodaabe, mochila de Bruce, que estava guardada
pastores do sol (1989) finalmente ficou em sua casa, perto de Oxford. A mochi-
8 Omanhene é o rei de uma região eleito pelo povo. pronto, recebi um telefonema de Eliza- la não é um suvenir, eu a uso. De todas
Nsein é um vilarejo no Oeste de Gana, país cuja ca- ingresso online
pital é Acra.
beth, que estava na comuna francesa de as coisas materiais que possuo, é ela,
9 Faroeste spaghetti, ou spaghetti western, foi o nome Seillans, na Provence, onde Bruce ha- feita de couro resistente por um seleiro
dado aos filmes de faroeste feitos na Itália entre os
anos 1960 e 1970, por diretores como Sergio Leone
via se refugiado num castelo antigo. Ele de Cirencester, na Inglaterra, a mais
e Sergio Corbucci. estava muito mal, mas queria sem fal- preciosa para mim. Mais informações
Rua Monte Alegre, 1024 - Perdizes
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manhã, depois de uma breve delibera- walkie-talkie. Reparti entre nós o pouco
ção com os alpinistas, entre eles alguns chocolate que eu tinha. Cada um deveria
dos melhores do mundo, e dadas as cir- fazer suas pequenas rações. Passamos o
cunstâncias, concordamos em fazer as dia inteiro e a noite apinhados ali, e logo
coisas de maneira diferente. o cinegrafista, que era um alpinista habi-
ALLAN SIEBER_2024

O helicóptero nos levou – a vanguar- lidoso e traquejado, começou a passar


da da filmagem – até o cume, a uma mal. Glowacz e eu o colocamos no meio
distância de 10 minutos do vale. Depois, de nós dois e o forçamos a manter os de-
deu meia-volta para buscar a equipe de dos das mãos e dos pés em constante
segurança. Caminhamos apenas alguns movimento, porque as extremidades do
passos na crista: de um lado, a Argenti- corpo ficam sempre mais rapidamente
na e a geleira que se estendia de Cerro expostas ao congelamento. No entanto,
Torre até perder de vista; do outro, o ele piorou depressa e, no final da noite,
Chile. Em ambos os lados, mais de mil estava em péssimo estado. Quando li-
metros de falésias que descem quase guei o walkie-talkie que mantinha aque-
verticalmente até as profundezas. En- cido sob a axila, ele arrancou o dispositivo
tão, notei algo estranho, com o canto do de minha mão e comunicou que não
olho. Do lado chileno, bem abaixo de sobreviveria a outra noite como aquela.
nós, havia nuvens firmes, como flocos Isso alarmou os montanhistas no
de algodão, imóveis. Tudo estava tão vale. Eles formaram dois grupos, cada
claro que dava para ver, a 100 km de um com quatro homens, que deveriam
distância, a linha do Pacífico no hori- tentar nos alcançar por duas rotas dife-
zonte. De repente, todas aquelas nuvens rentes. Um dos grupos logo desistiu por
brancas entraram numa rebelião silen- causa da tempestade, da falta de visibi-
ciosa. Os flocos de algodão dispararam lidade e do frio congelante. O segundo
em nossa direção, pareciam cogumelos grupo chegou perto, a algumas cente-
atômicos. Gritei para Glowacz, pergun- nas de metros abaixo de nós, mas então
tando o que aquilo significava, mas ele o homem mais forte de todos, o melhor
apenas ficou parado, tomado pelo es- alpinista argentino dos Andes, tirou as
Menos de dois anos depois da morte ração da montanha acabou não sendo panto. Apanhei o meu walkie-talkie e luvas. Ele as arrancou com os dentes e
de Bruce, a sua mochila teria um papel nem de um nem de outro. imediatamente chamei o helicóptero de as jogou na tempestade. Em seguida,
importante. Eu tinha começado a fil- O ator principal, Vittorio Mezzo- volta. Ele era apenas um ponto distante estalou os dedos, como se chamasse
mar o longa-metragem No coração da giorno, usa a mochila de couro no fil- no ar, mas vi quando mudou de rumo e um garçom para pedir a conta do seu
montanha, que viria a ser lançado em me, em homenagem a Bruce Chatwin. veio na nossa direção. Quando estava cappuccino. Seus camaradas tiveram
1991. A ideia desse filme partiu de Rei- E eu a usava quando ela não era neces- perto, ao nosso alcance, fomos atingidos que colocá-lo a salvo [de si mesmo] e o
nhold Messner,10 e tratava da disputa sária em cena. Numa sequência, depois pela primeira rajada da tempestade, que levaram quase perto de uma geleira,
entre dois montanhistas ao escalarem de os dois alpinistas rivais terem alcan- varreu dali o helicóptero. mas foram arrastados um pouco mais
a mais difícil de todas as montanhas, a çado o cogumelo de gelo saliente perto Em questão de segundos, estávamos para baixo por uma pequena avalanche.
Cerro Torre, na Patagônia. Essa monta- do cume, o mais jovem deles cai de sua num white-out,11 em meio ao qual só con- Também eles tiveram que fazer uma
nha parece uma agulha de granito de corda e morre. Esse papel foi represen- seguíamos enxergar a nossa própria mão caverna bivaque, mas estavam seguros,
2 km de altura, coroada por um cogu- tado por um alpinista de verdade, Stefan estendida, envolvidos por uma tempestade porque tinham alimentos, sacos de dor-
melo de gelo e neve compactada. Muito Glowacz, que vencera o Rock Master, que nos atingia com uma velocidade de mir e um fogareiro para derreter a neve.
poucos alpinistas subiram até o topo, na Itália, e com isso se tornara uma es- cerca de 200 km/h, a uma temperatura Enquanto isso, no alto, na crista da
somente a crème de la crème. O número pécie de campeão mundial não oficial. de 20°C negativos. Nós nos agarramos montanha, nós nos forçávamos a comer
dos que alcançam o topo do Monte Devido às tempestades no alto na mon- uns aos outros e alcançamos uma sólida neve e mantínhamos nossas mãos e pés
Everest num único fim de semana é o tanha, transferimos as filmagens de al- parede de neve, dentro da qual nos enter- em movimento. Assim passamos o dia
dobro daqueles que já chegaram algu- gumas tomadas para o vale. Durante ramos. Tínhamos apenas uma picareta seguinte e a segunda noite. No terceiro
ma vez ao da Cerro Torre. Além das mais de uma semana, não se podia ver de gelo, além da corda que Glowacz usa- dia, de repente as nuvens se abriram
paredes íngremes e hostis, há o fato de a montanha nem chegar perto dela. En- ria na cena, mas estávamos sem barraca, um pouco, a tempestade quase se dissi-
que o Sul da Patagônia costuma ser as- tão, de repente, houve uma trégua. As sem sacos de dormir, sem comida. Eu pou, e o helicóptero arriscou subir até
solado por tempestades inimagináveis. nuvens se dissiparam, seguiu-se uma tinha duas barras de chocolate num dos nós, mas não ousou pousar direto no
Walter Saxer produziu o filme e tam- noite sem uma brisa sequer, estrelada e meus bolsos e a mochila vazia de Bruce cume. Içamos nosso homem doente
bém coescreveu o roteiro. Isso acabou maravilhosamente silenciosa. Chatwin. Conseguimos criar uma mi- para o helicóptero, depois, em questão
se revelando um verdadeiro problema De manhã cedo, o céu estava azul, núscula caverna bivaque, não muito de segundos, Glowacz também entrou,
para o projeto, pois sou eu que sempre com sol, nada se movia. Estávamos con- maior do que um barril. Agachados lado e eu subi na cesta de metal instalada do
adapto a história, de forma a torná-la fiantes de que, agora, poderíamos filmar a lado, poderíamos ficar razoavelmente lado de fora para o resgate. Por um mo-
compatível com a minha perspectiva. a difícil cena perto do cume, então esco- seguros, pois lá dentro, depois de fechar mento, levantei-me, a fim de rastejar
Ao fazer dessa maneira, porém, entrei lhemos um cogumelo de neve parecido a entrada com pedaços de gelo, a tempe- para dentro do helicóptero, mas o pilo-
em choque com uma resistência obsti- com o do cume verdadeiro, a alguma dis- ratura era de 1°C ou 2°C, devido à nossa to, em pânico, simplesmente disparou
nada. No final, ficou implícito que eu tância dele e acessível por uma estreita respiração e ao calor dos corpos. para longe dali, e eu cambaleei para
deveria proceder de acordo com as indi- crista nevada. Mas tínhamos que agir de- Eu me sentei sobre a mochila vazia trás. Consegui me agarrar a uma das
cações precisas do roteiro, o que, no alto pressa. Decidimos que Stefan Glowacz, para não perder muito calor do corpo no barras de ferro da cesta e segurei firme,
de um rochedo, durante uma tempes- o cinegrafista-alpinista e eu iríamos de contato com o gelo. Mais tarde, ouvi al- agachado. Foram poucos minutos de
tade de neve, é impossível fazer. O ro- helicóptero primeiro até lá. Glowacz, gumas pessoas dizerem que a mochila descida até o vale, mas meus dedos nus
teiro e a edição se tornaram o ponto assistido pelo cinegrafista e por mim, salvou a minha vida, mas isso não faz agarrados à barra congelaram de tal for-
crucial do filme, mas posso viver com começaria a instalar no local, em segu- sentido, porque os outros dois homens ma que eu não conseguia mais soltá-
isso. Quase tudo que é produzido no rança, a sua corda. Assim pouparíamos que estavam comigo também sobrevive- los. Até que um dos argentinos da
cinema funciona dessa maneira. Eu tempo e, em 20 minutos, um grupo de ram, sem a mesma proteção. A cada duas equipe pediu às damas que se afastas-
gostaria que o filme fosse todo ele de alpinistas chegaria para nos apoiar e horas, exatamente, eu contatava nosso sem e urinou nos meus dedos. Com o
Walter Saxer ou todo meu, mas No co- montar rapidamente um acampamento pessoal no vale por um momento. Dessa calor da urina, eles reviveram. J
improvisado, por segurança, com barra- forma, pretendia economizar bateria do
10 Reinhold Andreas Messner (1944), nascido em cas, sacos de dormir, cordas e provisões. Trecho do livro Cada um por si e Deus con-
Brixen/Bressanone, comuna da Província Autônoma 11 White-out é um fenômeno climático em que uma
de Bolzano-Alto Adige, na Itália, é considerado um
Essa decisão era contra os rígidos proce- forte cobertura de nuvens sobre um ambiente de
tra todos: memórias, a ser lançado em ju-
dos melhores montanhistas do século XX. dimentos protocolares, mas naquela neve reduz a visibilidade a quase zero. nho pela editora Todavia.

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poesia_SALGADO MARANHÃO

REBERSON ALEXANDRE_2024
DIÁRIO DE BORDO 3 BORDER

Agora, Acordo com a poesia a morder-me


é crescer com o crepúsculo; as rimas; a soletrar-me
com a flor fora do talo. a língua ao rés de precipícios
e mentiras súplices.
Crescer com os estilhaços,
agora, que traficam túmulos Acordo para recolher
sobre as asas. as sementes que não nasceram.
DIÁRIO DE BORDO 7 Eu, este broto de eclipse;
Estamos todos bêbados eu, esta elipse de espelhos.
de esquecimento – ante Vem dessa falta de húmus
a partilha de Deus; ante que te agrega ao espinho Levanta-te centelha de áfricas
os corpos que fabricamos com perfumes. Nada madruga e sertões desamados!
para mutilar. em tua fé. Nem os galos sob Segue o canhão a rosnar
o sol; nem a solidão do inseto. sobre a cruz. E o amanhã
(Crivados de palavras pávidas, com seus dentes de urânio.
ouço o bater de pregos No entanto, respiro através de ti
em alguma cruz vigente...) (no sacrifício sem cura) quando Levanta-te animal das estepes,
apalpo-te a nudez ancestral. bicho feito de errâncias!
Adeus Édens transgênicos! Segue o sol caro ao sonho
Adeus piratas ungidos! Aqui estão as barcaças e a paixão sem isenção
que desenhei sobre a água; de impostos.
Sem aviso, aqui estão as muralhas
desaba a noite sobre a aurora. rendidas aos teus pés. E és o fósforo
Talvez o amanhã seja agora. que queima sem escuridão;
Tudo porque tens no lábio o devir que piora
esses frutos da infância; essa para melhor.
moldura de pássaros no coração.
DIÁRIO DE BORDO 6 Tudo que tenho (e me arvora)
– Canto-te onde a pedra pérola! são trapos de Ulisses; as palavras
Já era tarde quando a noite sulfúrica e seu galope sísmico.
trouxe a luz. Só aí veríamos os morcegos Há que se blindar as estações
a venderem-se de anjos. Os morcegos em que o amor almoça Sou herdeiro de um hoje
e sua sede vermelha. O que fazer com o amor com as víboras. que me outrora. J
que nos confronta aos altares, às alcovas
e aos que morrem sem respostas?
Cada dia, recolho-me a esse acorde
que a aurora deixa ao coração. E escuto
o crepitar do fogo quebrando em meu caule.
Serei eu o que por ele se desnuda
ou esta cinza soterrada pelas asas?
Serei eu esse umbral na oração da espada?
Não há repouso à paixão sonegada. Nem
ao rumor de suas travessias. Servirei somente
a este tráfego inquilino entre os vocábulos
e o areal. Para que seu astro alcance o meu
deserto.

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BOTAFOGO (Carta dos compadres, piauí_211, abril). OPERAÇÃO LAVA JATO


piauí
piauí_211_R$ 35,00_ano 18_abril_2024
00211

_ 211 O testemunho do torcedor botafoguen- Foi um grande alento a raça humana


abril
se João Moreira Salles é emocionante, ainda produzir elementos que exaltam
O fim de uma era na Globo
Ana Clara Costa faz o perfil de Ali Kamel

Quando Portugal cantou


Arqueologia de um crime
Chico Otavio e os bastidores do caso Marielle

O direito de morrer bem


pois até hoje também não entendo por a amizade, o amor à pátria e princi-
Simone Duarte e a Revolução dos Cravos

A cidade da COP
Ana Claudia Arantes, por Angélica Santa Cruz

Chico Buarque em família


que sofro tanto pelo futebol (O que eu palmente a dignificação da literatura.
tenho a ver com tudo isso, piauí_210, E, todos eles, sem declarar, incentivam
Roberto Andrés radiografa Belém As memórias da irmã Ana de Hollanda

março). Ele descreve situações que tam- a resistir.


bém passo. Afinal, se ele acha que é fá- SEBASTIÃO MAURÍCIO DUARTE PESSOA_RIO DE JANEIRO/RJ
cil ser palmeirense, é porque não ficou
dezessete anos na fila durante o período nota decepcionada da redação: Só
em que nós, moleques, mais jogávamos agora chegamos aos píncaros, Sebastião?
futebol na escola e na rua. Afirmo para Mas e os diários da Dilma? Do Geraldo?
todas as torcedoras e torcedores: você A troca de mensagens entre Jair e o di-
pode mudar de cônjuge, cidade, profis- plomata Araújo no BolsozApp Herald?
são, religião e gênero, mas jamais muda Aquilo não era literatura o suficiente?
de time! Vai entender nossa paixão. Inspirado pela piauí_210, março (O mes-
É um dos artigos mais emocionantes FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS siânico e cartuns do Mickey ao longo da
que li recentemente. O Judiciário brasileiro é um poder que revista), criei minha contribuição sobre a
MARCELO FRONTINI_SÃO PAULO/SP já nasceu falido, que nunca cumpriu ou “liberdade” pretendida pelos Mortimers:
ABRIL raramente cumpre o objetivo para o RAFAEL CAMARGO_CURITIBA/PR
A piauí_211, abril, foi mais analítica, Li revoltado o artigo O que eu tenho a qual foi criado: aplicar a punição contra
menos política, não sem entrar na san- ver com tudo isso (piauí_210, março). Eu violação da lei proporcionalmente com TER OU NÃO TER ANTROPOCENO
grenta morte de Marielle Franco e An- tenho tudo a ver com isso! Afinal, sou o a gravidade do fato jurídico. Muito oportuno o artigo de Bernar-
derson Gomes (Arqueologia de um único caso no Brasil de torcedor que foi O histórico do Judiciário civil brasi- do Esteves (O Antropoceno já era,
crime, por Chico Otavio) e com o alívio escolhido pelo clube. Sou paulistano, leiro é de impunidades ou de punições piauí_211, abril) sobre a votação que,
de ser possível tratar bem da própria corintiano e aos 9 anos de idade não co- aquém da gravidade do fato jurídico. em princípio, descartou a criação de
morte (Por um último e sereno suspiro, nhecia o Rio de Janeiro, e ninguém que A existência do Judiciário militar uma nova época para caracterizar o
por Angélica Santa Cruz). A escolha da fosse botafoguense. Um dia, sem saber brasileiro, que é uma aberração insti- tempo no qual vivemos. Como bem
palavra arqueologia em vez de arquite- por que, acordei botafoguense. Pensei tucional, é ainda pior porque se trata apresentado na matéria, a proposta era
tura é fundamental para a sucessão de comigo mesmo: “Que diabo de coisa de um espetáculo de corporativismo e de instituir a época do Antropoceno,
escaramuças, desvios e investigações estranha! como é que eu virei torcedor impunidades. sucedendo o Holoceno, este iniciado
por um longo, muito longo tempo. Por desse time carioca se sou paulistano e Há inúmeros exemplos que vemos há aproximadamente 11,7 mil anos, ao
outro lado, ainda que fundamental para nada sei dessa cidade?” ou lemos com frequência nos noticiá- final da última glaciação. O grupo de
nos aceitarmos como seres mortais, a Bem, aos poucos fui me informando rios e em reportagens e que compro- trabalho designado para estudar a
eutanásia continua sendo palavra e ati- sobre esse clube. Adorei o escudo, a es- vam essas afirmações. questão sugeriu que o Holoceno teria
tude tabu, junto com o aborto. Saúde trela solitária, as cores alvinegras, como A reportagem “Um poder político ex- se “extinguido” em torno de 1952, quan-
deveria vir primeiro, antes de dogmas a do Corinthians, e as meias cinza, ao traordinário” (piauí_210, março) é mais do rochas passariam a registrar evi-
religiosos, não acham? que eu saiba, únicas nos alvinegros. uma prova disso. Em vez de o Judiciário dências das explosões das primeiras
Outro dogma institucional é o do Agora ostento vez ou outra a camise- servir à busca por punir exemplarmente bombas atômicas. A proposta da cria-
poder para certos setores. Para o mal e ta com a estrela solitária, alternando a violação da ética, a ilegalidade e a vio- ção do Antropoceno foi recusada por
para o pior, a Globo faz parte da histó- com a do Timão! lação dos direitos humanos, este se ser- uma subcomissão da Comissão Inter-
ria da tevê brasileira e de suas circuns- JOSÉ EDUARDO BANDEIRA DE MELLO_ITU/SP ve para proteger poderosos da sociedade nacional de Estratigrafia da União
tâncias. Ali Kamel é um capítulo à que violam a lei, que violam a ética e que Internacional de Ciências Geológicas,
parte, muito bem retratado por Ana HERMANOS violam os direitos humanos. o que tem causado protestos de alguns
Clara Costa (O cardeal Três). Parece A piauí, desde o nascedouro, parecendo A estrutura historicamente falida pesquisadores.
que não mais chamam os herdeiros do homenagear o estado brasileiro mais do Judiciário brasileiro precisaria ser Mas, sinceramente, será que essa re-
império global como se referiam ao fragilizado, tinha um objetivo bem pre- refundada em novas bases e sem corpo- cusa importa? O problema principal se
dono original, Roberto Marinho: cole- tensioso. Do nada aos píncaros. rativismo. Proponho uma edição espe- resume a um fato: como distinguir no
ga de trabalho. E chamou minha aten- Reportagens informativas e investi- cial sobre o Judiciário brasileiro (o civil registro geológico (rochas e camadas)
ção que nessa atualização das últimas gativas, assuntos os mais diversos, tre- e a aberração militar). faixas de tempo da ordem de décadas
décadas da história televisiva não foi chos de outras fontes e ainda nos traz o É preciso acabar com a regra de o pró- ou séculos diante da história do nosso
mencionada a alcunha Vênus Platina- necessário para afastar a vontade de dar prio juiz decidir se considera estar impe- planeta, surgido há cerca de 4,57 bi-
da. Outros tempos, outros líderes. baixa na matrícula de brasileiro, tendo dido para julgar um caso específico. lhões de anos? É muito comum que a
Por fim, outro retrato de um artista, só em vista o momento reinante tão ad- Quem tem de dizer se o juiz está im- margem de erro das distintas divisões
que quando jovem, foi o desenhado em verso ao país e ao Botafogo. Quanto ao pedido de julgar ou não um caso são do tempo geológico seja de milhares ou
Chico Buarque aos olhos da irmã menor. Piauí, conseguiu alcançar o estado de unicamente os colegas do colegiado ou mesmo milhões de anos! O que repre-
O cantor já é bem documentado há mui- Minas Gerais que está onde sempre es- um colegiado/tribunal superior. sentam, assim, os últimos 72 anos que
to tempo, por isso eu gostaria de saber o teve. A revista, por sua vez, despacito, Magistrado que estiver de má-fé seriam os primeiros da nova época?
que Ana de Hollanda se lembra do meio- ultrapassou o objetivo inicial. E isso se num julgamento nunca vai se dizer im- Nem vale a pena destacar que, no mo-
irmão alemão, resgatando o artigo de deu com a publicação da correspondên- pedido, porque o juiz de má-fé vai que- mento, não temos a menor possibilida-
Fernando de Barros e Silva, O irmão bra- cia trocada entre os grandes da literatu- rer fazer valer seu interesse particular e de de um refinamento de toda a história
sileiro (piauí_100, janeiro de 2015). ra Cortázar, Carlos Fuentes, Gabriel por isso vai continuar a julgar o caso. da Terra na escala de séculos. Resumin-
ADILSON ROBERTO GONÇALVES_CAMPINAS/SP García Márquez e Mario Vargas Llosa FÁBIO FREITAS_RIO DE JANEIRO/RJ do: mesmo que fosse verdade, precisaría-

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piauí
FUNDADOR DEPARTAMENTO COMERCIAL
João Moreira Salles comercial@revistapiaui.com.br
Enio Santiago [RJ]:
CONSELHO EDITORIAL
eniosantiago@revistapiaui.com.br
Dorrit Harazim, Flavia Lima, João Moreira
João Fernandes [SP]:
Salles, Marcelo P. L. Medeiros, Natuza Nery,
mos que milhares de anos se passassem uma exceção. Fui subordinado a Carlos Simon Romero, Thiago Amparo
joao.fernandes@revistapiaui.com.br
para no futuro poder estar seguro desse Henrique Schroder de 2001 a 2021, pri- Sérgio Siqueira [SP]:
tipo de medida. Quem alega questões meiro quando foi diretor-geral de Jorna- DIRETOR DE REDAÇÃO sergio.siqueira@revistapiaui.com.br
políticas, sociais ou de marketing para lismo e Esportes por onze anos e, depois, André Petry Tida Cunha [SP]:
tida.cunha@revistapiaui.com.br
um problema que é técnico (envolven- quando se tornou diretor-geral da pró-
EDITORES EXECUTIVOS Paulo Tamanaha [BSB]:
do, sobretudo, conhecimentos ligados à pria tv Globo. Naqueles vinte anos, vi
Alcino Leite Neto, Daniel Bergamasco paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br
geologia) está forçando a barra. nele um jornalista de alto nível, prepa-
O que temos que fazer é conscien- rado, criativo e com forte capacidade de PRODUTORA EXECUTIVA
J EDITORA ALVINEGRA
tizar as pessoas sobre o efeito da espé- liderança. Essas características, nos dois Raquel Freire Zangrandi rua Aníbal de Mendonça, 151 / 2º andar
cie humana no nosso planeta, que tem mais altos cargos que ocupou, permiti- 22410-050 Rio de Janeiro / RJ
EDITORES
promovido poluição e extinções em gran- ram a ele preparar a tv Globo para a tel [21] 3511 7400
Alejandro Chacoff, Armando Antenore, Luigi Mazza
de escala – o que a introdução de uma transição digital, com a criação de g1, Rua Dr. Virgílio de Carvalho Pinto, 445 / 1º andar
nova época não fará. É a difusão desse ge e gshow e, ainda mais importante, REPÓRTERES 05415-030 - São Paulo / SP
alerta em escolas e instituições cultu- o Globoplay. Com ele sempre pude Allan de Abreu, Amanda Gorziza, tel [11] 97410 3500
rais e científicas, como museus, que aprender desde o início algo novo nas Ana Clara Costa, Angélica Santa Cruz, e-mail: redacaopiaui@revistapiaui.com.br
poderá contribuir para essa conscienti- inúmeras coberturas que liderou. Foi Bernardo Esteves, Breno Pires, Consuelo Dieguez,
Fernando de Barros e Silva, João Batista Jr.,
zação. Por isso mesmo, essa questão do sempre uma relação profícua e transpa-
Tatiane de Assis, Thallys Braga, Tiago Coelho
Antropoceno será um dos pontos de des- rente de companheirismo que se trans-
Associação Nacional dos Editores de Revistas
taque nas novas exposições do Museu formou em amizade. Schroder teve DIRETORA DE ARTE
Nacional da ufrj, que tem o objetivo uma trajetória rica e única, que fala por Maria Cecilia Marra
de ser aberto ao público no primeiro si. Diante dela, são lamentáveis e injus-
semestre de 2026. Isso, naturalmente, tas as opiniões de terceiros sobre ele EDITORA DE ARTE
Paula Cardoso
se alguns milhões de reais – e não de publicadas pela piauí. Instituto Verificador de Comunicação
anos – forem encontrados para finali- ALI KAMEL, COORDENADOR DO CONSELHO EDITORIAL DO REDES SOCIAIS
zar as obras. GRUPO GLOBO_RIO DE JANEIRO/RJ Emily Almeida, Fabio Brisolla, Isa Barros PRÉ-IMPRESSÃO
ALEXANDER KELLNER_DEPARTAMENTO DE GEOLOGIA E PALEON- Antonio Rhoden
TOLOGIA_MUSEU NACIONAL DA UFRJ_RIO DE JANEIRO/RJ COORDENADORA DE CHECAGEM
Marcella Ramos

CARDEAL TRÊS Por questões de clareza e espaço, a piauí CHECAGEM E REVISÃO


Em novembro do ano passado recusei o se reserva o direito de editar as cartas Carlos Santos, Carolina Rodrigues, Fábio Martins, A piauí é impressa pela Plural Indústria Gráfica
convite para ser entrevistado para o per- selecionadas para publicação. Solicitamos Gilberto Porcidonio, João Felipe Carvalho,
Ltda, em papel pólen bold 90 gramas nas capas
fil que a piauí preparava sobre mim que as cartas informem o nome e o endereço Luciene Gomes, Luiza Barbara
e pólen soft 70 gramas no miolo, produzidos em
(O cardeal Três, piauí_211, abril). Na completo do remetente. bobinas exclusivamente para a piauí por Suzano
COORDENADOR DIGITAL
ocasião, decidi também não comentá- Cartas para a redação: Papel e Celulose S/A.
Pieter Zalis
lo quando fosse publicado. Abro aqui REDACAOPIAUI@REVISTAPIAUI.COM.BR

COORDENADORA DE ESTRATÉGIAS TIRAGEM DESTA EDIÇÃO: 33 100 exemplares


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despedida

PHILLIP HARRINGTON_ALAMY_FOTOARENA_1969
ADEUS, REDE DE APOIO
O Vigilantes do Peso, pela ótica de um antigo frequentador

THALES DE MENEZES

Jean Nidetch, cofundadora do Vigilantes do Peso: os lucros da entidade caíram nos últimos anos

S
ó quem já comemorou a perda tos às comidas com base no teor calórico homens emagrecem mais facilmente que mento alavancou demais o programa da
fenomenal de 2 ou 3 kg diante de cada uma. Desde 2019, o Vigilantes as mulheres. Questões fisiológicas expli- ww, sobretudo a partir de 2015, quando
de outros guerreiros em busca de também proporcionava acompanhamen- cam o fenômeno. Nos encontros que tes- Oprah se tornou embaixadora da empre-
um corpo mais saudável com- to telefônico ou virtual aos que não dese- temunhei, certas associadas mandavam a sa. Com seu rosto famoso, motivou uma
preenderá o que representa o fe- javam participar dos encontros presenciais. solidariedade às favas e ficavam indigna- porção de gente a apostar na contagem
chamento do Vigilantes do Peso no Brasil. Na teoria, o programa – que abdica de das quando um marmanjo “secava a jato”: de pontos. A artista frequentava as reu-
Durante as reuniões semanais promovidas princípios espirituais como os doze pas- “O quê?! Você só fez uma semana de re- niões semanais e chegou a mostrar ima-
pela instituição, os que conseguiam ema- sos dos Alcoólicos Anônimos – deve ser gime e já perdeu 4 kg?! Fala sério!” gens delas na tevê. Assim que ganhou
grecer tinham vontade de erguer os braços adotado ao longo de toda a vida. uma cadeira no conselho da multinacio-

O
e gritar efusivamente, como um jogador Tive relativo sucesso. Nunca persisti fim das operações nacionais do Vi- nal, comprou um caminhão de ações.
de futebol na hora do gol. Mas logo apren- por mais de três meses, ainda que achas- gilantes é reflexo dos problemas que Em dezembro de 2023, porém, Oprah
díamos a nos controlar e apenas sorrir, fe- se as reuniões acolhedoras, e perdi cer- a matriz enfrenta há uns cinco anos, Winfrey contou que estava tomando me-
lizes da vida, para respeitar aqueles que ca de 8 kg em cada tentativa. A verdade sem demonstrar força para mudar a situa- dicamentos para redução de peso com
fracassaram nos sete dias anteriores e apa- é que me faltavam disciplina e com- ção. A derrocada parece ter dois vilões: a ótimos resultados. A imprensa americana
receram com alguns gramas a mais. prometimento. Só uma cirurgia bariá- pandemia de Covid e Oprah Winfrey. interpretou o episódio como uma facada
Vigilantes do Peso é o nome em portu- trica, em 2015, resolveu a questão ao O distanciamento social imposto pela nas costas da ww. Tão logo a declaração
guês da multinacional americana que eliminar 54 kg extras. crise sanitária causou um estrago tremen- veio à tona, as ações da companhia des-
vende um método pioneiro de controle Muitos participantes se comportavam do nas reuniões dos grupos americanos. pencaram 70%. Os seguidores do méto-
alimentar. Criado em 1963 pela dona de do mesmo jeito e largavam o programa Antes mesmo de o coronavírus despontar, do diminuíram significativamente nos
casa nova-iorquina Jean Nidetch, o progra- depois de algumas semanas ou meses. a possibilidade de acompanhamento a Estados Unidos e em outros países, o
ma desembarcou por aqui em 1974. Uns simplesmente desistiam. Outros distância estava modificando o perfil dos que levou a empresa a amargar um rá-
À época, nos Estados Unidos, a compa- acreditavam que seguiriam a dieta sozi- associados. Vários já não queriam saber de pido emagrecimento dos lucros.
nhia ainda se chamava Weight Watchers nhos. Em qualquer um dos casos, a eva- se encontrar presencialmente com nin- Em fevereiro, Oprah deixou a ww e
International. Em 2018, virou somente são significava perda de faturamento guém. Num primeiro momento, a opção doou 1,13 milhão de ações da companhia
ww International. Hoje a empresa está em para a ww International, que até oferecia por reuniões virtuais aumentou a procura para a agência mantenedora do Museu
sete países, mas já atuou em catorze. planos com preços camaradas. No Bra- pelo método, mas em pouco tempo a ade- Nacional de História e Cultura Afro-Ame-
A saída do Brasil se deu no início de março. sil, havia opções de 19,90 reais por mês. são dos novos sócios se revelou ainda mais ricana. No início de 2024, o lote totalizava
Fui adepto do método em duas oca- Pelo menos nos encontros que fre- frágil. Veio então a pandemia, e os encon- 6,35 milhões de dólares. Agora, vale me-
siões, ambas na primeira década dos anos quentei, as mulheres imperavam. Elas tros fora das telas cessaram. Quando o nos de 2 milhões. A apresentadora disse
2000, quando pesava uns 130 kg – muito, constituíam 90% dos participantes. Al- coronavírus finalmente deu trégua, as para o comando da multinacional que
até para quem mede 1,86 metro. Lembro- gumas explicações possíveis para a he- reuniões presenciais não conseguiram não anunciará o nome dos tais remédios
me dos encontros em São Paulo com os gemonia feminina, todas derivadas do manter o número habitual de participan- antes de completar um ano fora da casa.
parceiros de luta contra a balança. Depois machismo: mulheres cuidam mais da tes. Fenômeno idêntico ocorreu no Brasil. Ela não confirma, mas todo mundo apos-
de controlar a ingestão de cada garfada saúde, se preocupam mais com a aparên- Não bastasse, o surgimento de novas ta que está usando o injetável Ozempic.
por uma semana, nos reuníamos para ava- cia e cozinham mais que os homens. Boa drogas para emagrecer ou controlar a

A
liar os resultados, sob a orientação de um parte das reuniões girava em torno de diabetes revolucionou o mercado da boa ww International nunca primou pela
supervisor. Era ali que a mágica acontecia. receitas que se adequavam melhor à ta- forma e injetou muita esperança de su- transparência e raramente divulga
Constatar, de sete em sete dias, as derrotas bela de pontos das comidas. Também cesso rápido em quem necessita perder números sobre o próprio desempe-
e vitórias dos mesmos amigos batalhadores havia sugestões de como fazer compras peso. A ww International sempre repu- nho. No Brasil, se limitou a comunicar o
criava um elo forte entre nós, uma cum- sem cair na tentação de adquirir alimen- diou o recurso farmacêutico. Aí entrou fim das operações com uma nota lacôni-
plicidade que nos estimulava a prosseguir. tos inapropriados. Os poucos homens em cena “o efeito Oprah Winfrey”. ca, publicada em seu site. Os grupos não
Sempre que alguém da turma exibia um presentes não entravam muito nessas dis- A apresentadora e atriz – que trava podem mais utilizar o nome e a metodo-
perfil mais delgado, os outros pensavam: cussões. Passavam pela avaliação de peso uma persistente batalha contra o excesso logia do Vigilantes. À piauí, dois conduto-
“Se ele pode, eu também posso, não?” e iam embora, com folhetos de dicas. de calorias – é inegavelmente a maior res dessas redes de apoio, no Rio de
Pagávamos uma mensalidade tanto É justo acrescentar que algumas fre- influenciadora dos Estados Unidos. Ne- Janeiro e em São Paulo, que pediram para
para frequentar as reuniões quanto para quentadoras resistiam à presença mascu- nhuma outra celebridade televisiva sou- não se identificar, afirmaram que preten-
acessar informações nutricionais, receitas lina por um motivo curioso. Nas reuniões, be se adaptar tão bem ao mundo digital. dem manter as reuniões. Irão recorrer a
equilibradas e tabelas que atribuíam pon- podia-se comprovar a crença de que os Sua enorme capacidade de convenci- uma “versão genérica” do programa. J

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Uma saga familiar inesquecível do autor de


O décimo primeiro mandamento

Neste aclamado best-seller número 1


no New York Times, acompanhamos
três gerações de uma família em Kerala,
no sul da Índia, acometida por um mal:
ali, as mortes por afogamento parecem
ser hereditárias. Pelo olhar da futura
matriarca — conhecida como Grande
Ammachi —, testemunhamos uma
vida marcada por alegrias, triunfos,
reviravoltas e dificuldades, numa
narrativa que presta homenagem ao
progresso da medicina e aos sacrifícios
que fazemos por aqueles que amamos.

“Um dos melhores livros que


li em toda a minha vida. Épico,
capaz de transportar o leitor.
Impossível parar de ler.”
Oprah Winfrey

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