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Outra versão desse texto foi apresentada no Congresso Brasil-Portugal realizado no Recife em 1999.
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O centenário de nascimento de Gilberto Freyre em 2000, assim como de Anísio
Teixeira, de Gustavo Capanema entre outros, está dando margem a realização de
congressos, seminários, ou seja, eventos culturais que permitem a divulgação para as
novas gerações das contribuições desses autores. Em um primeiro nível estamos
participando de comemorações; estamos dizendo que tais autores devem e merecem ser
lembrados. Aqui estamos no espaço da memória, ou seja, estamos confirmando que eles
fazem parte da tradição, do panteão de autores brasileiros. Em um segundo nível é
preciso mostrar que estes autores foram relevantes em algum sentido e para tal é
necessário proceder a uma análise de suas contribuições para o “pensamento social” no
Brasil1. Os autores que compõem a tradição são relidos a cada geração seja para que se
apresentem novas interpretações, seja para subi-los ou baixá-los em uma escala de
relevância que também se altera no tempo. É nesse sentido que se constrói uma história
da recepção.
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Gilberto Freyre já recebeu atenção no GT Pensamento Social no Brasil em textos de Glaucia Villas
Boas, Luis Antonio de Castro Santos, Paul Freston e Ricardo Benzaquem de Araújo.
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mas não tão rápido quanto seria necessário, e precisamos afirmar cada momento como
novo. Assim, as análises sobre o Brasil tendem a pensar o país sob dois prismas: aquele
que reforça tudo o que é novo e inédito, e aquele que mostra como tudo, na verdade,
continua onde sempre esteve. A historiografia brasileira tem sólida tradição nas duas
direções.
Pensar o Brasil tem sido questão fundamental para as inúmeras gerações de
intelectuais comprometidas em construir a nacionalidade. A inteligência, às voltas com a
construção da nação, procurou vencer uma marca de origem: o país se constituiu a partir
do “olhar estrangeiro”, aquele olhar produzido pelos viajantes ao longo do século XIX.
A literatura romântica já procurara dar uma especificidade ao ser nacional, tomando
como eixo central a figura do índio, ainda que idealizado. Entretanto, essa construção
simbólica já estava sendo questionada no final do século XIX. O combate à imitação, à
cópia, tem sido retomado por inúmeras gerações de intelectuais, no esforço para vencer
a percepção de sua realidade como exótica.
Os intelectuais, durante todo o século XX, se atribuíram a missão de fornecer à
sociedade uma interpretação da nação, de construir uma identidade nacional capaz de
sobrepujar outras identidades ligadas ao lugar de nascimento, a etnias ou a religiões, e
assim vencer localismos ou regionalismos. A identidade nacional deveria se contrapor
aos interesses particulares de grupos e classes, e possibilitar o encontro de tempos
históricos distintos. Agora, no final do século, os intelectuais estão se ocupando
igualmente da tarefa de reconstruir a dignidade dos localismos e de valorizar os tempos
particulares da cultura de cada grupo ou etnia.
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Vale notar que esta obra de Freyre foi publicada no fim dos anos 50, época em que
se materializou sobremaneira a dicotomia modernidade/tradição, sendo atribuídos ao
primeiro termo valores positivos e, ao segundo, a negatividade quase absoluta.
Nos anos 50 e início dos 60, é preciso lembrar, a intelectualidade brasileira estava
envolvida no projeto de fazer o Brasil deixar de ser subdesenvolvido para se tornar uma
nação desenvolvida, lutava para vencer as resistências às mudanças sociais, pregava o
abandono do mundo arcaico em todas as suas formas para que o país enfim assumisse
os traços culturais de uma sociedade moderna. O pensamento da Comissão Econômica
para a América Latina (CEPAL) oferecia as coordenadas assumidas pelos diferentes
campos das ciências sociais e uma matriz de base econômica guiava, explicita ou
implicitamente, a maioria das análises sobre a realidade brasileira.
Desde o fim do Estado Novo e com o estabelecimento da democracia em 1945 se
estruturam duas grandes interpretações sobre o popular. Uma delas vai encontrar as
fontes genuínas da identidade nacional no passado, nas tradições populares. Para estes,
herdeiros de uma tradição que era marcante nos anos 10, ali estaria a essência da
brasilidade e cabia aos intelectuais apenas salvá-la do esquecimento pela memória.
Outra interpretação considera que o passado de um povo colonizado, cujos valores
foram transplantados, não ofereceria grandes perspectivas. Era necessário construir os
valores brasileiros que seriam estabelecidos no futuro. A primeira vertente terá base no
movimento de recuperação do folclore, na realização de congressos reunindo seus
defensores e na criação de uma agência governamental em 1958 com o nome de
Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro (VILHENA, 1997). Os folcloristas, -
Renato de Almeida, Edison Carneiro, Câmara Cascudo, Manuel Diégues Júnior,
Joaquim Ribeiro, Theo Brandão, entre outros -, se organizaram através da agência
governamental e se dedicaram a preservar um bem considerado por outros intelectuais
como arcaico. Visto como sobrevivência do passado, o folclore, segundo os
“progressistas” da época, deveria desaparecer no mesmo tempo que o país se
modernizava. As ciências sociais, à época lutando por seu reconhecimento nas
Universidades, excluíam o folclore de suas áreas de ensino e interesse. Florestan
Fernandes e Guerreiro Ramos, por exemplo, foram sociólogos que, por caminhos
distintos, recusavam obras e autores que pretendessem preservar manifestações culturais
de populações pré-letradas, já que isto entraria em contradição com o objetivo de
diminuir a desigualdade nos ritmos do progresso (OLIVEIRA, 1995).
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Os intelectuais ligados ao movimento folclorista faziam a defesa da pluralidade
regional das expressões folclóricas e da cultura popular mantida pela tradição oral.
Acreditavam que a cultura popular, pura e autêntica, poderia ser mantida e atualizada. E
principalmente consideravam ser possível valorizar o caráter comunitário da cultura
popular, ou seja, defendiam os principais valores considerados como pertencentes ao
universo tradicional, arcaico que, como tudo indicava, parecia fadado ao
desaparecimento. Os militantes do movimento de defesa do folclore conseguiram
organizar os intelectuais de província integrados à defesa da pluralidade regional mas
não conseguiram formular uma projeto de cultura brasileira capaz de se contrapor à
tendência dominante.
A outra vertente sobre o popular tem lugar no desdobramento das vanguardas que
tentarão “conscientizar” o povo de seus “verdadeiros” interesses. Para esses intelectuais
o homem brasileiro era um ser sem passado, era alienado porque colonizado. Uma
cultura nacional válida seria fruto de um projeto ligado ao futuro; uma utopia a servir de
motor à ação. Os intelectuais reunidos em torno do Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (ISEB) consideravam que o advento do povo seria produto do processo de
urbanização e industrialização em curso no Brasil dos anos 50.
Parece-nos então compreensível que Ordem e Progresso não tivesse recebido uma
acolhida de destaque ao ser lançado. Ele não se enquadrava nem na vertente folclorista
nem na isebiana. . Nesse sentido, diferentemente de Casa Grande e Senzala, sucesso
dos anos 30, Ordem e progresso parece obra fora de tempo. O mesmo pode ser dito de
Os donos de poder, de Raymundo Faoro, editado em 1958. Estas duas obras serão
valorizadas e exercerão influência nas formulações do pensamento brasileiro mais tarde:
Os donos do poder, a partir dos anos 70, e Ordem e progresso, nos anos 80 e 90.
Por outro lado essa obra é vista como o terceiro movimento de uma longa história
da qual fazem parte Casa Grande & senzala, que cobre a constituição do patriciado
rural na Colônia; Sobrados e mucambos que trata da desintegração desse patriciado e do
desenvolvimento do urbano no Primeiro e Segundo Império e, por fim Ordem e
Progresso que lida com a República tomada como metáfora política de outro ciclo de
transformação da sociedade brasileira. Ainda que seja a continuação de um longo
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projeto de estudo, Ordem e Progresso causa um estranhamento particular ao ser lido
pela primeira vez2
É preciso lembrar que a versão que a academia produziu sobre Freyre,
principalmente sobre Casa Grande & Senzala, nunca foi das melhores e as reservas
feitas ao autor oscilam entre a recusa total, à la Dante Moreira Leite em O caráter
nacional brasileiro, e o aceite com restrições. No capítulo 15, denominado “Em busca
do tempo perdido” (p. 268-285), Dante Moreira Leite compara Casa Grande & Senzala
a Os Sertões. Deseja apontar as diferenças entre as duas obras. Euclides da Cunha,
embora aceitando teoria errada, nem por isso deforma os fatos que observa, em
contraposição a Gilberto Freyre, que dispõe de uma teoria correta mas ignora os fatos e
acaba por deformar a realidade. Gilberto baseou suas afirmações em intuições da
realidade, desprezou a cronologia e o espaço geográfico dos fatos descritos. As
limitações teóricas e metodológicas seriam graves, já que falta comprovação objetiva,
há ausência de provas para suas afirmações. Em todo o capítulo, Dante Moreira Leite
pretende provar estas inconsistências de Gilberto Freyre e conclui: “como não utiliza
dados quantitativos, nem pretende fazer levantamentos amplos de um período, Gilberto
Freyre limita-se à história anedótica”; completa adiante: “não é apenas anedótica. É
também escrita e interpretada do ponto de vista da classe dominante”( p.250 e 251).
Como exemplo do aceite com restrições temos Octavio Ianni, no artigo “A idéia
de Brasil Moderno” ( Resgate, UNICAMP, n. 1, 1990) que assim se refere: “A
interpretação de Gilberto Freyre vem do pensamento moderno europeu e norte-
americano, onde se destacam Simmel e Boas, entre outros. Privilegia as formas de
sociabilidade e supera os equívocos que associam raça e cultura. Concentra-se na
análise de instituições e formas sociais, tais como a família patriarcal, as etiquetas
sociais, os tipos sociais. Lida com os interstícios ou póros da sociedade civil, tomando-
os como expressões suficientes desta. Focaliza a família patriarcal como se fosse a
miniatura da sociedade, de tal modo que o patriarca aparece como se fosse uma
metáfora do governo, e o patriarcalismo do poder estatal”(p.34). E conclui adiante:
“Gilberto Freyre não esconde que vê a história na perspectiva da vigorosa matriz
representada pelo Nordeste, por sua importância e história ao longo da Colônia e
Império. Por isso, provavelmente, a sua interpretação do Brasil guarda as dimensões e
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Li, ou melhor, tentei ler Ordem e Progresso pela primeira vez no início dos anos 70. Não consegui
chegar ao seu fim e não conseguia dizer o que me desagradava. Abandonei a leitura considerando que
Gilberto Freyre não tinha mais nada a me dizer...
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as sonoridades de um imponente réquiem” (p.35). ( grifos meus). A suposição de
Octavio Ianni é que aquela matriz já morreu, e que só nos cabe apreciar a música tocada
no ofício dos mortos, aquela que celebra o repouso eterno. Não há dúvidas que a família
patriarcal originária e produtora da Casa Grande não mais existe, entretanto, o que cabe
indagar, é se o patriarcalismo (personalismo, familismo, privatismo) ainda se mantém
como um dos traços significativos da vida social brasileira. Não importa se Gilberto
Freyre é ou não um nostálgico deste mundo ( o que parece ser) e sim indagar se o que
ele apresenta em seus livros permite construir um tipo social, decifrar o fundamento de
uma gramática da vida brasileira.
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aspectos importantes da vida nacional”. Lançou mão de arquivos de família entre eles os
da Família Imperial e da Família Joaquim Nabuco. “Foram pesquisados também
coleções de rótulos de cigarros, de leques, de caixas de rapé, de camafeus, além de
jornais e revistas de época, caricaturas e crônicas, literatura nacional e estrangeira”.
Outra importante fonte documental utilizada por Freyre foram as fotografias de época.
que retratam o viver patriarcal.
Reforçado a atualidade de Ordem e Progresso, Lina Rodrigues de Faria diz que
“as posições defendidas por Gilberto Freyre décadas atrás encontram perfeita sintonia
com o debate atual. (...) Nos dias atuais o debate em torno da utilização da técnica de
história oral na reconstrução histórica repõe aquelas questões, não resolvidas décadas
atrás”. Ainda hoje “existe por parte de alguns historiadores tradicionais um ceticismo
quando ao valor dos testemunhos e depoimentos orais na construção do passado de uma
sociedade. Na visão desses historiadores, a história deve ter por instrumento essencial e
fundamental os documentos escritos”.
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Para Freyre,3 houve no passado um estilo brasileiro de sociedade baseado no
patriarcalismo, com seus atributos de personalismo, familismo e privatismo, atributos
esses que são despóticos e segregadores de um lado, mas democráticos e inclusivos de
outro. É a dialética desses pólos que tem garantido a longevidade do patriarcalismo
brasileiro.
O patriarcalismo agrário, segundo Freyre, teria sido ferido de morte com a
urbanização e com a Abolição, um ano antes da República, mas de fato não teria
morrido. As alterações do país ocorriam sob a permanência de forças que resistiam aos
novos tempos. Na constituição do patriarcalismo no período colonial foi fundamental a
família como unidade básica, já que o Estado português e suas instituições estavam
muito longe. Para a autoridade pessoal do senhor de terras e escravos, não existiam
limites. Freyre sustenta que os costumes espirituais e sociais, herança da sociedade
patriarcal, se disseminaram por todo o país através da migração interna de nortistas e
nordestinos (Skidmore, 1994, p. 18; Freyre, 1990, p. 406-7). A decadência do patriciado
rural, entretanto, se dá com a ascendência da cultura urbana. Com a urbanização, altera-
se o exercício do poder patriarcal, já que o Estado passa a minar o poder pessoal do
chefe da família ao requisitar seus filhos para integrar as carreiras da burocracia.
Assim, as mudanças envolvem tanto o mercado quanto o crescimento do aparelho
de Estado, sob o impacto de um processo de europeização do Brasil. Para Freyre, é
preciso lembrar, a sociedade patriarcal era moura e africana, já que o português era
também pouco europeu e diferente do castelhano. A especificidade do português era
mesmo não ter especificidade alguma, “nem ideais absolutos, nem preconceitos
inflexíveis”.
A aceitação da cultura européia, agora burguesa, trouxe como traço mais
importante o espaço para o talento individual através da valorização do conhecimento,
elemento burguês democrático por excelência. O conhecimento, a perícia, passam a
definir a nova hierarquia social que então se monta. Passa a existir um processo de
mobilidade social de mulatos aprendizes e artífices e de imigrantes, principalmente
portugueses, então caixeiros e comerciantes. O mestiço bacharel integra como que uma
nova nobreza associada às funções do Estado. O papel do exército, similar ao da coroa,
e a chamada “República dos Conselheiros” — forma de se referir à presença, na
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Sobre o tema, estou fazendo uso dos artigos de Jessé Souza (1999); Maria José de Rezende (1998)
assim como do livro de Ricardo Benzaquen de Araujo (1994).
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República, de inúmeras figuras eminentes do Império — são alguns indicadores de
constantes culturais que se enraizaram no país desde os tempos coloniais. São ajustes
entre tempos e formas sociais distintas, que se moldam sob as constantes culturais. Para
Freyre, o papel democratizante/modernizador do Estado se fará presente pela atuação de
diversos agentes sociais — os mestiços, os bacharéis e os reformadores sociais,
aristocráticos como Joaquim Nabuco — construtores da mudança. A diversidade de
agentes e de ações permite conhecer o tempo plural brasileiro no início do século XX,
concomitantemente industrial, agrário e aristocrático.
Assim, o Estado, e não apenas o mercado, aparece como o locus de uma
modernidade híbrida. Freyre também nos lembra que o processo de incorporação do
mestiço à nova sociedade foi paralelo ao processo de proletarização e demonização do
negro. As influências individualizantes e burguesas foram rapidamente assimiladas,
porque já existiam na sociedade brasileira costumes flexíveis (o autor cita a experiência
de os filhos ilegítimos herdarem a riqueza paterna). Para Gilberto Freyre, o sistema era
sociologicamente flexível, e não rígido, desde que o princípio estruturante —
personalismo, privatismo e familismo — fosse mantido (Souza, 1999).
Freyre vai então apontar tanto os elementos de constância, de conservação, que
definiriam um ethos brasileiro, quanto as transformações em curso na sociedade
nacional na virada do século XIX e início do XX, sob pressão de novas condições de
contato, principalmente com o mundo burguês europeu. Assinala a noção de tempo
plural — a existência de sentidos variados de tempo —, que volta e meia aparece em
obras e análises de diferentes autores ocupados em exprimir a cultura e a identidade
brasileiras. O que diferencia Gilberto Freyre de outros analistas, cremos, é ele não estar
ocupado em propor receitas econômicas, políticas ou culturais para sincronizar tais
tempos.
Se as ordens social, cultural, política, econômica e étnica têm progressos
desiguais e contraditórios, Gilberto Freyre vê como que uma ordem metassocial
marcada pelo equilíbrio, a acomodação, a conciliação entre ordem nacional e
progresso, entre Império e República, entre passado e futuro.
Esse sentido de ordem condicionaria o sentido de progresso no Brasil. Mesmo, ou
particularmente, nas transições — épocas em que se tem conflito entre valores —, ela se
faz presente na história do país. Na República, muitos conservadores monarquistas
aderiram à Nova Ordem, já que valores estruturantes, aqueles elementos formadores da
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vida social, não estariam sendo alterados. A República era então a continuação
sociológica do Império, dentro do contínuo jogo entre dois contrários aparentes: a
ordem e o progresso (Freyre, 1990).
A conciliação entre aparentes antagonismos produziu ao mesmo tempo
conservação e mudança, permitiu a convivência de uma pluralidade de tempos. Freyre
vai valorizar a permanência do poder pessoal, ainda que reconheça seu exagero no
caciquismo republicano. Mandonismo e autoritarismo, do lado das elites, e populismo e
messianismo, do lado das massas populares, marcam o primeiro tempo republicano. Por
outro lado, esse autor também aponta as ambigüidades da europeização, já que “o
primado cultural não despótico do português, que não só admitia como estimulava
compromissos e acomodações com as tradições culturais dominadas, foi substituído
pela dominação do absolutamente superior pelo absolutamente inferior” (Souza, 1999).
Para Jessé Souza (1999), o valor de Gilberto Freyre em sua análise da singularidade da
formação social brasileira estaria exatamente em não fazer uso de conceitos que
implicassem necessariamente seu contrário. O conceito de patrimonialismo implica seu
contraponto, a sociedade racional-legal; o homem cordial pressupõe o protestante asceta
e seu controle emocional como pré-requisito para o mercado competitivo e a
democracia; o capitalismo dependente e a cidadania regulada se confrontam com o
capitalismo e a cidadania autônomos.
Para Gilberto Freyre, entretanto, há uma questão não resolvida, nem pelo Império,
nem pela República: a valorização do trabalho (Rezende, 1998). O capítulo “A
República de 89 e o desafio dos adeptos da restauração monárquica aos republicanos no
poder, em torno da questão social” (p.713-755) explora os desafios da época e as
atuações de Pinheiro Machado, Rui Barbosa e Joaquim Nabuco frente ao problema do
trabalho. A valorização extrema da ciência, atributo do progresso, permitiu a mobilidade
social, mas trouxe a glorificação dos setores médios da sociedade em detrimento das
massas. No início da República, há uma valorização das coisas e um negligenciamento
em relação ao trabalho “deixando-se a massa brasileira de descendentes, quer de
escravos, quer de brancos pobres, em situação de quase inteiro abandono” (Freyre,
1990, p.733). O abandono das massas, o preconceito contra o popular, são mesmo um
traço marcante da cultura brasileira durante todo o século XX ( OLIVEIRA, 1999)
Gilberto Freyre pode sim ser considerado um autor conservador, se entendermos
como tal aqueles autores ocupados em mostrar as continuidades na mudança, como
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Tocqueville do Antigo Regime. Estava fora do tempo nos anos 50 entretanto hoje se
apresenta mais atual que muitas obras dos anos 60 e 70. Para os progressistas dos anos
50 e 60 a nova ideologia transformadora deveria vencer então a alienação cultural do
povo brasileiro. Descolonização e busca de identidade e autenticidade cultural
marchariam juntas no processo de luta política que permitiria a sincronia de tempos
históricos distintos. A possibilidade de aceleração do tempo histórico através da atuação
de forças sociais progressistas, em oposição às reacionárias, marca o pensamento da
época e a atuação das vanguardas no início dos anos 60. E hoje, como pensar o tempo
social?
Vamos falar de um traço cultural contemporâneo fazendo uso de um interessante
artigo de Vera Follain de Figueiredo (1999) denominado “Em busca da terra
prometida”. Para a autora, “no final do século XX, é novamente o cinema que toma
posição para reorganizar o imaginário brasileiro. Diante do processo de desinvenção da
nação desencadeado pela estratégia globalizadora (...), a narrativa cinematográfica
registra o impasse decorrente das exigências da nova ordem mundial e tenta inventar
outras formas de solidariedade que ocupem o lugar deixado pelo afrouxamento dos
laços nacionais. Novas narrativas são gestadas, problematizando a desinvenção do
Brasil e buscando criar um imaginário que trabalhe o sentimento de orfandade
decorrente do fato de a pátria-mãe querer sair do cenário antes do filho atingir a
maioridade” (Figueiredo, 1999, p. 78). A autora passa então a analisar dois filmes
recentes de Walter Salles Junior, Terra estrangeira (1995) e Central do Brasil (1997), e
observa que “em ambos, o que desencadeia a ação do enredo é a perda da mãe, numa
família em que o pai é ausente”; é “este acontecimento [que] gera a migração”. Em
Terra estrangeira, o filho fica desprotegido quando o pai-Estado (a voz do governo
Collor) trai sua confiança e usurpa os parcos recursos da mãe. O jovem emigra,
refazendo na direção inversa o movimento dos descobridores, e busca uma origem mais
remota, onde tudo teria começado. Aponta a falsidade do discurso que quer fazer crer
que os homens estão em uma aldeia global, em total comunhão planetária. “Os
personagens do filme tornam-se estrangeiros em qualquer parte da terra à medida que a
nação não lhes serve mais de referencial, mas é um referencial para que sejam
marginalizados no exterior, alimentando a criação de estereótipos discriminadores” (p.
79). Temos a inversão do eixo migratório, a idéia de retorno, que também estará
presente em Central do Brasil com o nordestino que volta ao lugar de onde partiu.
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Através da migração interna, vai-se buscar um tipo de solidariedade que possa
preencher o vazio de laços nacionais. Dora — “a pátria-mãe não gentil” — explora o
analfabetismo e o desenraizamento de um lugar adequado, a estação de trem Central do
Brasil. Os milhares de trabalhadores pobres que por lá circulam perderam os laços de
comunicação com seus lugares de origem. Precisam de Dora, como mediadora de
códigos que eles, analfabetos, não dominam. A viagem para o interior do Brasil em
companhia do menino órfão é também a viagem de Dora em direção a si mesma. “O
vazio ético deixado pela perda dos valores coletivos que a nação encarnava (...) será
preenchido pelo reencontro com o local (...). No lugar da alienação promovida pela
grande cidade e seus espaços desterritorializados, o filme propõe a redescoberta da
dimensão local para suprir a perda de sentido dos vínculos mais amplos” (p. 81). O
vazio ético deixado pela perda dos valores coletivos será preenchido pelo encontro com
o local, com os jovens irmãos. “A narrativa de Walter Salles Junior propõe, assim, uma
nova descoberta do Brasil, através de uma viagem em direção ao que seria o seu
verdadeiro centro, que se confunde com o país simples, mais arcaico do interior”. Cada
brasileiro teria em seu coração a saída, que se realizaria no campo pessoal, através do
afeto existente no pequeno grupo familiar. Retoma-se a imagem do Brasil menino e, ao
contrário da leitura antropofágica ou da leitura do Cinema Novo, trata-se de um menino
que não devora nem mata o pai. “Em Central do Brasil, o chamado Brasil ‘atrasado’
teria uma lição a ensinar ao ‘falso’ Brasil moderno” (p. 82).
O processo de transformação em curso na sociedade brasileira, sob a égide da
globalização, traz em seu bojo a recuperação de traços culturais passados, agora
revisitados sob novos formatos. Um modo igualmente interessante de trabalhar as
permanências e as mudanças pode ser analisar comparativamente os filmes “Vidas
secas” e “Eu, tu, eles”. A constituição de novas identidades nos dias de hoje caminha no
sentido de buscar em experiências pretéritas, durante muito tempo consideradas
arcaicas, o sentido do novo, em uma espécie de “viagem redonda”4.
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enquanto Raimundo Faoro é o expoente maior da segunda. A solidariedade de clã, a
matriz familística, o pater familia, a ordem privada, a família patriarcal e a casa grande
podem ser vistos como diferentes modos de expressar essa interpretação “feudal” a vida
social (CARVALHO, 1998). Outro ângulo de acentuar a continuidade é aquele que vê
no iberismo a marca de origem irremovível da cultura e da sociedade brasileiras
(VIANNA, 1997). Podemos ressaltar que autores que trabalham com a longa duração
tendem a realçar mais as continuidades, mesmo aqueles que querem tudo revolucionar.
Autores recentes, e não só o “conservador” Gilberto Freyre, têm trabalhado com a
noção de continuidade da sociedade brasileira. O sentido de ordem social envolve a
noção de uma “gramática” da cultura brasileira, entendida como “padrões
institucionalizados de relações” entre sociedade e Estado. O livro de Edson Nunes
(1997), por exemplo, vai tratar de clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático
e universalismo de procedimentos como constitutivos de quatro padrões, ou
“gramáticas”, que convivem e se interrelacionam de diferentes formas na história
brasileira5. O clientelismo faz parte da tradição secular brasileira, ao passo que as outras
três gramáticas emergem após 1930. Para o autor, política ideológica e política
clientelista e fisiológica não são mutuamente excludentes. No Brasil, a partir dos anos
50, tivemos mesmo a criação de instituições híbridas ou a institucionalização de um
sistema sincrético.
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“[Cultura] é como uma gramática, e a partir de seu conhecimento nenhuma declaração real pode ser
prevista (embora uma infinidade delas possa ser imaginada e outras, também, possam ser desmentidas),
mas sem uma compreensão pelo menos implícita dela nenhuma declaração real pode ser feita ou
entendida” (Clifford Geetz. In: Nunes, 1997, nota 27, p. 44-5).
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a essa lógica de trocas recíprocas. Há períodos em que se considera um tal modelo
superado, só permanecendo nos grotões do Brasil. Em outros, parece que os grotões
chegam até os grandes centros do país. Seria isto atraso ou traço estrutural — gramática
— da sociedade brasileira? Há uma anedota que “corre” nas ciências sociais dizendo: o
Brasil é o paraíso para os antropólogos, o purgatório para os sociólogos e o inferno para
os cientistas políticos.
Referências bibliográficas:
ARAUJO, Ricardo Benzaquen de. Guerra e Paz: casa grande e senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, Editora 34, 1994.
UFMG, 1998,p.130-153.
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FIGUEIREDO, Vera Follain de. Em busca da terra prometida. Cinemais. Revista de
1999, p. 73-83.
In: SKIDMORE, Thomas E. O Brasil visto de fora. São Paulo, Paz e Terra, 1994.
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