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A JUSTIÇA NA REPÚBLICA DE
PLATÃO (427-347 a.C.)
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Luiz Antonio BELINI
A JUSTIÇA NA REPÚBLICA
DE
PLATÃO (427-347 a.C.)
55
Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda
EDITOR:
Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS
CONSELHO EDITORIAL:
Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA
Prof. Ms. Fábio Inácio PEREIRA
Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA
REVISÃO GERAL:
André Luis Sena dos SANTOS
Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS
Paulo Cezar FERREIRA
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Agnaldo Jorge MARTINS
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Belini, Luiz Antonio
B431j A justiça na República de Platão
(427-347a.C.) [recurso eletrônico] /
Luiz Antonio Belini. -- Sarandi :
Humanitas Vivens, 2009.
ISBN: 978-85-61837-11-2
Modo de
acesso:<www.humanitasvivens.com.br>.
1. Filosofia. 2. Platão
(427-347a.C.) – Vida e obra. 3.
Pensadores pré-platônicos.
CDD 21.ed. 193
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Sumário
I. Introdução....................................................................... 09
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I. INTRODUÇÃO
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ser", procurando nela respostas às questões primordiais
impostas pela crise de então. Irá definir com clareza os pontos
básicos e apresentará a solução, muitas vezes radicalizando-a.
Como a alma com suas partes devem ser una, assim também
o estado deverá estar unificado em suas classes. Embora cada
parte ou classe possua uma função determinada, isto não
deverá ser motivo de divisão, mas concorrer para a unidade.
Platão irá propor a unificação do indivíduo e do estado a
partir da justiça, que ele compreende como "executar a tarefa
própria e não se meter nas dos outros" (433 A).
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desenvolvimento do diálogo sobre a justiça, uma análise
crítica. Esta se concentrará, sobretudo, nos limites que a
concretização do ideal platônico da justiça encontra em sua
exemplificação, motivado muitas vezes pela radicalização de
seus pressupostos ou mesmo pelos limites intrínsecos que o
tempo impõe à obra. A bibliografia com seus contrastes de
interpretação exemplificam o seu caráter pertinente e
paradoxal.
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II. A JUSTIÇA EM PENSADORES
PRÉ-PLATÔNICOS
vol.I, trad. it. de A. Setti, Firenze 1991, 4ªEd., pp.49-119; LEITE, J. M.,
Homero, Rio de Janeiro 1976.
4. Entre eles BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.132, menciona
Jaeger e Pasquali, referindo-se a Odisséia, I, 32ss.
5. BOSCO, N., Themis e Dike, op. cit., p.132.
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deuses (piedade) e a justiça em relação aos homens são vistas
inseparavelmente. A simples violação das leis humanas
(consuetudinais) representa uma ofensa aos deuses, já que
estas são vistas como divinas, uma quebra da harmonia e,
portanto, injustiça6. Em geral, o piedoso e justo é sempre
salvo e o ímpio condenado7.
36. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.I, op. cit., p.229.
37. Idem, p.275. Embora como Cálicles venha apresentado no Górgias
de Platão é personagem literário e não histórico, mas que de qualquer
forma deve representar perfeitamente a expressão desta corrente.
38. BOSCO, N., Nè Themis nè Dike, em: "Filosofia", 1967, p.472.
39. Idem, p.473. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.I, op.
cit., pp.314-315: "A tese da identidade das virtudes e ciência implicava
em primeiro lugar, em primeiro lugar, a unificação das tradicionaid
virtudes, como a sapiência, a justiça, a sabedoria, a temperança, a
fortaleza em uma só e única virtude, exatamente porque, na medida em
que são virtudes, cada uma e todas se reduzem essencialemente ao
conhecimento".
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Frente a polis e suas leis, Sócrates "reconfirma sem
hesitação o princípio segundo o qual os privados não podem
pretender se fazer superiores às leis e às sentenças públicas...
que a cidade pode salvar-se e reger-se somente se os cidadãos
saibam acolher as sentenças e respeitar as normas
estabelecidas"40. Sócrates pressupõe as leis como garantia da
justiça entre os cidadãos.
45. JAEGER, W., Paideia, vol.II, trad. it. de A. Setti, Firenze 1990,
3ªEd., p.131: "Permanece mérito de Schleiermacher o haver
reconhecido, com o vivo sentido de um romântico pela forma como
expressão da individualidade espiritual, o elemento específico do
filosofar platônico no fato que esse precisamente não tende ao sistema
fechado, mas se apresenta como investigação filosófica em ato, como
diálogo".
46. REALE, G., Platone, em: Questioni di storiografia filosofica, vol.I,
Milano 1975, pp.182-183.
47. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.248.
48. REALE, G., Questioni di storiografia filosofica, op. cit., vol.I, p.
183.
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Significativo ainda, no século passado, no que respeita
à exegese de Platão, foi o trabalho de Lewis Campbell.
Partindo de características estilísticas encontradas no livro das
Leis, seguramente a última obra de Platão, ele pode
estabelecer um critério para a cronologia das obras platônicas,
que a esta última se assemelhavam49. "A obra de Campbell
abre toda uma nova prospectiva, relativamente à evolução e à
crise do pensamento platônico"50.
49. JAEGER, W., Paidea, op. cit., vol.II, p.134: "Em conclusão,
também se, com este método, não é possível determinar as relações
cronológicas de todos os diálogos entre si, pode-se porém, claramente
indicar três grupos principais, dos quais ao menos os diálogos mais
importantes podem, com grande verossimilhança, serem estabelecidos".
50. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.251.
51. STEFANINI, L., Platone, vol.I, Padova 1949, 2ªEd., p.LXIII. Na
p.LXX Stefanini reproduz uma tabela com as características estilísticas
examinadas por Lutoslawski.
52. REALE, G., Questioni di storiografia filosofica, op. cit., vol.I, pp.
191-192.
53. ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., pp.254-265.
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idealista, existencialista, fenomenológico, espiritualista54,
ético-político e, sobretudo, após 1960, se desenvolve uma
pesquisa de caráter sociológico e antropológico55.
65. REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.43:
"Tem-se ulteriormente estabelecido que a República pertence à fase
central da produção platônica, que é precedida pelo Simpósio e pelo
Fédon e que é seguida do Fedro".
66. LOZZA, G., Introduzione, op. cit., p.XI: "é certo ao invés que na
República, a partir do livro VI está já plenamente desenvolvida a teoria
das idéias e que todos os temas da filosofia platônica venham fundidos
em harmoniosa unidade: é sobretudo por isso que o diálogo vem já
unanimemente atribuído à plena maturidade de Platão".
67. Vita dei filosofi, III, 37.
68. REALE, G., Storia della filosofia antica, op. cit., vol.II, p.46.
69. ROCHA PEREIRA, M. H. de, Introdução à República, op. cit.,
p.XV.
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da República, que uma parte da crítica separou do conjunto da
obra, considerando-o um diálogo autônomo e por suas
características, juvenil. No entanto, outros críticos têm
insistido na unidade de estrutura e de composição da grande
obra platônica.
32-34.
96. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.319 nota
31, considera este primeiro livro um diálogo juvenil e portanto
socrático: "a tese justiça-sapiência é socrática: a sapiência é virtude e a
virtude é sapiência..."
97. Trasímaco, cujo nome significa "audaz na batalha", nasceu em
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contido pelos outros que queriam ouvir a argumentação até o
fim, levantou-se furiosamente contra Sócrates (336 B). Não
lhe agrada o seu método que consiste, segundo ele, em fazer
perguntas para posteriormente confutar seu interlocutor, sem
dar uma resposta, "já que é mais fácil perguntar que
responder" (336 C)98. E pede a Sócrates que dê a sua
definição de justiça, em um modo claro e conciso, sem se
exprimir por meio de frivolidades como ser a justiça "o dever,
ou a utilidade, ou a vantagem, o proveito ou a
conveniência" (337 A)99.
105. SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene, op. cit., p.312
nota 24: "Sócrates e Trasímaco são concordes acerca do absoluto
respeito à lei da parte dos súditos, diferem no definir qual lei seja justa e
mereça obediência".
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que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele
mesmo, mas o que o é para seu subordinado, para o qual
exerce a sua profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o
que lhe é vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz
tudo quanto faz" (342 E)106.
110. Esta tese é defendida também por Pólo, ainda que mais
atenuadamente, no Górgias platônico (em especial: 471 A-D).
111. Interessante que SCIACCA, M. F., La giustizia e l'idea del bene,
op. cit., em seus comentários não faz esta observação. ROSEN, S.,
Introduzione alla Repubblica di Platone, op. cit., p.49.
GIANNANTONI, G., Il primo dibro della Repubblica di Platone, op.
cit., p.135 nota 38: "se Trasímaco fosse coerente deveria ter
argumentado: justo é o que é conveniente ao mais forte, forte no sentido
mais completo é o tirano, então a justiça perfeita é o útil ao tirano e em
tal modo sustentar que a justiça é mais útil que a injustiça. Para
sustentar o contrário ele deve devolver aos termos justiça e injustiça o
significado tradicional".
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seja, qual é conforme a lei moral? Das premissas de
Trasímaco não era possível outra conclusão: a injustiça é
virtude e sabedoria e a justiça vício e ignorância (348 E).
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de legal e justo aquilo que é conforme a lei e convenção. Essa
é "a gênese e essência da justiça, que se situa a meio caminho
entre o maior bem, não pagar a pena das injustiças, e o maior
mal, ser incapaz de se vingar de uma injustiça" (359 A).
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pequenas a pessoas de vista fraca, e então alguma delas desse
conta de que existiam as mesmas letras em qualquer outra
parte, em tamanho maior e numa escala mais ampla" (368 D).
Como a justiça que existe no indivíduo deve existir também
no estado "talvez exista uma justiça numa escala mais ampla,
e mais fácil de aprender" (368 E)114.
121. DEL VECCHIO, G., La Giustizia, op. cit., p.18 chama a atenção
para este caráter universalizante da justiça em Platão. Segundo ele, este
conceito, que vinha se desenvolvendo e assumindo a cada passo um
significado mais restrito e definido, retorna com Platão a um significado
generalizante: "o caráter da justiça como forma ética ou deontológica
em geral tem a sua máxima expressão no sistema platônico. Para elevar
a justiça a princípio reguladora de toda a vida individual e social, Platão
não valoriza ou mesmo rejeita, todas as concepções que tendiam a
assinalar-lhe uma função específica ou uma particular esfera de
aplicação".
122. Segundo Mario Trombino em L'"Apologia di Socrate" di Platone
e il problema della giustizia da Omero a Platone, op. cit., p.232, nota
63
propósito escreveu Havelock: "pode ser que Platão revele no
seu emprego de onde a fórmula deriva: nós a tínhamos diante
do nariz; a tínhamos nas mãos; não falamos somente nós;
temos escutado falar a tanto tempo.
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a raça mais importante que o indivíduo, a
coletividade mais que o singular. Platão, como todos
os gregos anteriores a ele (e também depois dele, até
o surgimento das correntes helenísticas), não teve
claro o conceito de homem como indivíduo e como
irrepetível singular, e não pode então entender que
próprio neste ser uma individualidade singular e
irrepetível está o valor supremo do homem"127
127. REALE, G., Storia della filosofia antica, vol.II, op. cit., pp.
309-310; ADORNO, F., Introduzione a Platone, op. cit., p.262: no
estado se fagocita o indivíduo. ISNARDI PARENTE, M., Socrate e
Platone, op. cit., p.245 de certa forma atenua esta impostação.
128. VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.127: "A ótima
constatação representa um modelo, um paradigma da justiça em si e do
homem perfeitamente justo; este paradigma tem uma função
independente da demonstração da sua realizabilidade (472 C - D). Se
trata no entanto de uma função crítica". ISNARDI PARENTE, M.,
Socrate e Platone, op. cit., p.239: "Nada nos diz que Platão tenha
alguma vez, no curso de sua vida, pensado seriamente na concretização
do seu primeiro estado, do estado ótimo e perfeito".
129. KANT, I., Critica della razone pura, trad. it. de G. Gentile e G.
lombardo-Radice, Roma-Bari 1993, 7ªEd., p.248. ISNARDI
PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., p.242-243: "Platão... diz
claramente que a cidade da República, primeiro que um programa para
a cidade, é um modelo ético para a atuação da ordem interior na alma
do síngulo; e proclama com a mesma clareza a irrelevância da sua
possiblidade ou não de efetuação no real empírico, o que equivale a
esclarecer o seu caráter de tudo apriorístico e deontológico. À luz deste
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Porém, ainda que não se considere a República como
um programa de estado a ser implantado em sua globalidade,
mas simplesmente como uma instância crítica, permanece a
questão do seu significado para uma realidade concreta, para
quem fazendo uso dela saiba discernir os caminhos para o
estado justo e feliz. Platão é claro no afirmar que a única
possibilidade de felicidade, particular ou pública, está na
constituição deste estado (473 E). E que ele somente será
possível quando os filósofos forem reis ou os reis filósofos
(473 D)130.
134. POPPER, K. R., La società aperta e i suoi nemici, op. cit., p.197,
define a moral platônica como utilitária e totalitária: "'No interesse do
estado' diz Platão. Mais uma vez encontramos portanto que o apelo ao
princípio da utilidade coletiva é a consideração ética suprema. A
moralidade totalitária anula toda outra coisa, também a definição, a
idéia, do filósofo". Uma posição atenuada, que procura entender esta
questão a partir de seus motivos internos, em coerência com todo o
desenvolvimento da República, se pode considerar a apresentada em:
VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., pp.123-125; ISNARDI
PARENTE, M., Socrate e Platone, op. cit., pp.245-247.
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Quanto ao tipo de mentira que é do interesse do
estado, Platão mesmo dá exemplos: quando da união entre
homens e mulheres da classe dos guerreiros deve-se fazer de
tal modo que os melhores se unam entre si e mais vezes em
vistas do controle da qualidade da prole, lançando mão de
recursos como "tiragens à sorte engenhosas, de modo que o
homem inferior acuse, em cada união, a sorte, e não aos
chefes"(460 A).
145. Esta questão é mais bem trabalhada por Platão no Político (293 A
- 294 A).
146. VEGETTI, M., L'etica degli antichi, op. cit., p.120: "Nesta
insistência sobre a base militar do novo poder chamado a sanear a
cidade, agem provavelmente as simpatias espartanas do aristocrático
Platão... Mas age sobretudo a consciência que a cidade não tornará a ser
sana sem o uso da força, e então não o permanecerá sem um poder que
a guie e a vigie... E o início do processo de saneamento poderá
exatamente requerer um ato violento..."
147. ARISTOTELE, Politica, 1264 A 25.
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eugenética ou simplesmente como controle da natalidade148.
Também a "eutanásia" deverá ser aplicada aos doentes que
não poderão se restabelecer plenamente, em conformidade
com o princípio de que o que importa é o bem do estado, para
o qual os doentes irrecuperáveis é apenas um estorvo.
Justamente Platão que afirma não ser o corpo tratado pelo
corpo, mas o corpo através da alma. Segundo Popper149,
práticas como o infanticídio já havia sido abandonado por
Atenas, mas Platão prefere o modelo espartano, onde estas
práticas estavam ainda em vigor150.
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deteriorada, onde a corrupção invada todos os níveis, é difícil
manter-se justo.
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CAMBIANO, G. Platone e le tecniche. 2. ed. Roma: [s.n.],
1991.
93
ISNARDI PARENTE, M. Socrate e Platone. In: FIRPO, L.
Storia delle idee politiche economiche e sociali.
Torino: [s.n.], 1982. v.1. p.225-289.
94
MARTINEZ, T. C. De los sofistas a Platon: politica y
pensamiento. Madrid: [s.n.], 1986.
95
SCIACCA, M. F. La giustizia e l'idea del bene. In: Platone.
Milano: [s.n.], 1967. v. 1.
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O AUTOR:
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República de Platão.
Atualmente ensina Metafísica e Antropologia no Curso de
Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em
Maringá-Pr;
Suas áreas de interesse são a História da Filosofia grega e a
Antropologia Filosófica e Escatologia.
A originalidade do seu pensamento pode ser constatada a
partir dos seus vários artigos publicados.
Publicou ainda pela Editora Humanitas Vivens Ltda, a
obra Temas de Escatologia, Sarandi (PR) 2009, ISBN:
978-85-61837-12-9.
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Em toda a República Platão deixa
transparecer seu empenho por um estado
melhor, onde o cidadão possa desenvolver-
se e realizar-se. Neste sentido é preciso
discordar de Popper que interpretou
negativamente (ou totalitariamente)
Platão. Jaeger afirma ser "a tentativa
filosófica de Platão fundar 'em teoria' um
estado ideal que una uma ordem ideal com
um alto nível de liberdade espiritual para o
indivíduo".
De fato, a necessidade da justiça como
princípio integrador do agir humano e
regulador das relações sociais são uma
constante na história humana, o que faz da
República uma obra sempre atual, mesmo
que anacrônica em muitos dos seus
elementos ilustradores. Objeto das mais
contraditórias interpretações e polêmicas
reflete ainda hoje seu vigor e pertinência,
como escreveu Julia Annas, "é impossível
ser neutro frente à República".
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