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Junguiana

Resenha v.34, p.49-51

A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses


KAWAI, Hayao. São Paulo: Paulus, 2007. 278 p.

Ludmila da Silva Pires* seus trabalhos mais conheci- importância da figura feminina
dos, A psique japonesa – gran- presente no universo da psique
des temas dos contos de fadas japonesa – que compreende
Resumo japoneses, propõe-se a exami- uma variedade de personagens,
O presente artigo propõe-se nar a alma japonesa por meio como a deusa-sol Amaterasu, a
a analisar criticamente o livro A da interpretação dos contos de rainha Pimiko, até as poderosas
psique japonesa – grandes te- fadas nipônicos, além de reali- mulheres xamãs dos templos xin-
mas dos contos de fadas japo- zar comparações com suas toístas (KAWAI, 2007, p. 11-12).
neses, escrito pelo psicólogo contrapartes ocidentais. A obra Na introdução, Kawai apre-
analítico japonês Hayao Kawai. apresenta, ao longo de seus senta sua justificativa para a
Após uma contextualização do nove capítulos, os esforços de escolha dos contos em seu li-
autor e de sua obra, que obje- Kawai em transformar a psico- vro. Seu enfoque se dá na força
tivou transformar a psicologia logia analítica em um corpo de das figuras folclóricas femininas
analítica em um corpo de pen- pensamento e práxis que pu- e como essas podem ser con-
samento e práxis que pudesse desse se apropriar da mente ja- sideradas enquanto represen-
se apropriar da mente japonesa, ponesa, isto é, que se baseas- tantes do ego japonês. Para
realiza-se um breve exame críti- se na estrutura da psique ori- embasar suas comparações e o
co da obra do psicólogo japonês ental e não apenas em uma desenvolvimento de seu pensa-
e de sua formulação teórica. „ simples transposição de pres- mento, o autor faz referência
supostos e práticas ocidentais aos trabalhos de James Hillman
Palavras-chave: psicologia analítica, para o Japão. e sua psicologia arquetípica e à
contos de fadas japoneses, Hayao A proposta geral do autor é teoria de desenvolvimento do
Kawai, cultura japonesa. fornecer uma compreensão entre ego de Erich Neumann. Porém,
os japoneses e os “povos do ele vai além ao destacar as pe-
Ocidente”, tanto em suas se- culiaridades das histórias japo-
Enquanto primeiro psicólo- melhanças como em suas pro- nesas, gerando uma rica com-
go junguiano do Japão, Hayao priedades distintivas. Enten- preensão acerca da cultura e da
Kawai (  , 1928-2007) dendo o folclore e a mitologia personalidade nipônicas. Pro-
influenciou consideravelmente enquanto fontes de compreen- põe um ponto de vista “desen-
o campo da psicologia clínica são das profundezas da men- volvimental” do ego que seja
e dos estudos culturais e reli- te humana, Kawai faz uso dos apropriado à psique japonesa.
giosos japoneses. Ele introdu-  ( mukashi banashi ), os O primeiro capítulo, intitu-
ziu o conceito do jogo de areia “contos de antigamente”, que lado “O tema do quarto proi-
(sandplay) à psicologia japone- compõem o folclore nipônico, bido”, dedica-se ao estudo de
sa, além de participar do Círcu- frutos do imaginário japonês. um conto popular conhecido
lo de Eranos, em 1982. Um de Posteriormente, ele sublinha a como “A casa do rouxinol”

* Graduada em psicologia pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (2014). Atua profissionalmente nas áreas de políticas
públicas, desenvolvimento de projetos no terceiro setor e código de ética do psicólogo. Atualmente, ministra cursos de práticas corporais
orientais e é coordenadora de projetos na ONG Espaço Mãos Dadas.
Email: <pires.ludmila1@gmail.com>.

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(ウグイスの , Uguisu No Sato ), pode-se notar uma distinção madrasta aparece nos contos
uma narrativa que transita visi- cultural levantada por Kawai e de fadas para enfatizar os as-
velmente entre os espaços co- que também foi abordada por pectos negativos da maternida-
tidiano (consciência) e não co- filósofos, psicólogos e outros de,  (Yama-Uba ) – figura
tidiano (inconsciente). Os pon- autores estudiosos do pensa- do folclore japonês e uma es-
tos principais abordados por mento oriental. Para o filósofo pécie de mulher devoradora –
Kawai, em relação ao conto, são Nishida Kitaro, por exemplo, a surge nesse capítulo como uma
a transgressão de uma proibi- distinção cultural entre Oriente representação do aspecto devo-
ção que não é punida e o nada e Ocidente é baseada na ideia rador da grande mãe, de onde
primordial, um conceito comum de que o fundamento da reali- tudo nasce e para onde tudo
nas narrativas orientais. O au- dade, para o Ocidente, é o ser, retorna. Os capítulos subse-
tor também introduz dois ele- ou seja, a forma. Enquanto que, quentes de A psique japonesa
mentos fundamentais para a para o Oriente, é o nada, o sem apresentam uma série de figu-
compreensão das histórias ni- forma (KITARO apud HESIG, ras femininas oriundas do ima-
pônicas: み (urami ), que re- 2013, p. 101). Isso remete à con- ginário japonês, tais como: es-
presenta o ressentimento, e れ cepção das formas de pensa- posas não humanas, mulheres
( あわれ, aware ), uma espécie mento oriental e ocidental, que persistentes, insistentes ou de-
de leve tristeza sem esperança, foram identificadas por Jung, em terminadas, dentre outras.
uma ideia de pathos dos con- termos de características psico- As histórias escolhidas pelo
tos de fadas japoneses. Sendo lógicas e atitudes psíquicas, autor têm o intuito de demons-
assim, ele revela que o “nada e como formas completamente trar a extrema força de atração
a tristeza” fazem parte da cor- distintas. De modo geral, o ho- que o inconsciente exerce na
rente principal da cultura japo- mem ocidental é extrovertido, mente japonesa. Desse modo,
nesa (KAWAI, 2007, p. 39-44). ou seja, é aquele que se orien- ele sugere que os olhos pelos
O conto elencado pelo autor ta a partir do mundo externo, quais os japoneses enxergam o
permite aclarar o que se com- das condições objetivas. Por mundo e a realidade estão lo-
preende como o nada primor- outro lado, o pensamento do calizados no inconsciente e não
dial, ou o nada absoluto, uma tipo introvertido, predominan- na superfície da consciência. É
instância comumente presente te no Oriente, seria aquele que o que se chama de ter os “olhos
tanto nos escritos zen-budistas se norteia para fatores subjeti- semicerrados” (KAWAI, 2007,
como nas obras de filosofia da vos (JUNG, 2011, p. 17-18). Para p. 187-191).
Escola de Kyoto. Segundo Kawai, Jung, “O homem ocidental pro- Ao longo da obra, o autor
a presença do nada ou do vazio cura sempre a exaltação e o ori- destaca que uma das caracte-
não é sinônimo de que não ental, a imersão ou o aprofun- rísticas do povo japonês é a
aconteceu nada em uma histó- damento” (JUNG, 2011, p. 113). ausência de uma distinção cla-
ria, mas que simplesmente “o É essa diferenciação que sus- ra entre os mundos interno e
nada aconteceu” (KAWAI, 2007, tenta o trabalho de Kawai, per- externo, ou seja, entre os cam-
p. 41-42). Portanto, o nada não mitindo que o autor prossiga pos consciente e inconsciente.
representa a negatividade, mas em sua construção de uma ima- Essa característica, segundo
algo que está para além do posi- gem do ego nipônico. Kawai, pode ser representada
tivo e negativo, para além das No segundo capítulo, intitu- pelas figuras do  (fusuma ) ou
palavras e que expressa em si lado “A mulher que não come  (shouji ), respectivamente
uma potencialidade. nada”, Kawai discorre acerca a “janela corrediça” e a fina
No primeiro capítulo de A do lado negativo da mulher e “porta de papel”, símbolos pre-
psique japonesa, em particular, da maternidade. Assim como a sentes no cotidiano e na cultura

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oriental que, metaforicamente, contradições internas, tratando- The Japanese psyche –


apontam para uma maior per- -se de um ego multifacetado, di-
meabilidade entre consciente e verso e que pode incluir a tota-
major motifs in the fairy
inconsciente. lidade (KAWAI, 2007, p. 238). tales of Japan
Torna-se nítido que Kawai, no Tal como Jung e seus segui-
decurso de sua obra, esboça dores assinalaram, o folclore e Abstract
detalhes a fim de criar um perfil a mitologia são uma fonte rica This article is a review of the
de ego que não somente se des- de compreensão da mente hu- book The Japanese Psyche –
taca do modelo ocidental, mas mana, dos seus símbolos e Major Motifs in the Fairy Tales
que também ressalta determina- de suas nuances (HENDERSON of Japan, written by Hayao Ka-
das características culturais típi- apud JUNG, 2008, p.137). Assim, wai. After a brief contextual-
cas do povo japonês. Para sus- desenvolveu-se um método de ization about the author and his
tentar sua teoria, ele lança mão análise desse material folclóri- work, which aimed to transform
de numerosas comparações e co e mítico que revela, pouco a analytical psychology in a body
metáforas, para além da realiza- pouco, os elementos e a dinâ- of thought and practice that
da entre os contos populares mica da psique. Kawai, ao utili- could grasp the Japanese mind,
ocidentais e orientais. É digno de zar esse método, inova ao tra- there is a critical analysis of the
nota que o autor introduz um zer um olhar específico para o Kawai’s work and his theoreti-
novo ponto de vista acerca da folclore japonês e sua diversi- cal formulation. „
consciência e do ego orientais, dade cultural, além de realçar
embora pareça deixar de lado a força da figura feminina en- Keywords: analytical psychology,
conceitos importantes da psico- quanto protagonista no pro- Japanese fairy tales, Hayao Kawai,
logia junguiana, tal como a figu- cesso de desenvolvimento do Japanese culture.
ra feminina interior do ego mas- ego. Cabe considerar que as di-
culino: a anima. versas figuras femininas incluí-
É especificamente no nono das nos capítulos do livro de Referências bibliográficas
capítulo, “As mulheres determi- Kawai não compõem estágios HENDERSON, J. L. Os mitos antigos e
nadas”, que Kawai sistematiza sequenciais de desenvolvimen- o homem moderno. In: JUNG, C. G. O
o que é sua figura feminina do to do ego, mas aparecem, su- homem e seus símbolos.. Rio de Janeiro:
ego, que ele vem a nominar de postamente, como camadas múl- Nova Fronteira, 2008. p. 137.
“mulher determinada”. Essa fi- tiplas de uma totalidade.
gura feminina, que possui mar- Em suma, o livro é um convi- HEISIG, J. W. Filósofos de la nada: un
cantes características de passi- te para que o leitor se aprofunde ensayo sobre la Escuela de Kyoto. Bar-
vidade e força para enfrentar as nas histórias japonesas e na ri- celona: Herder Editorial, 2013. p. 410.
dificuldades, seria quem melhor queza cultural do Oriente, pela
traduz o ego japonês, estando ótica da psicologia analítica. É JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental.
mais conectada com o modo de uma obra abrangente que, com Petrópolis: Vozes, 2011. p. 165.
vida geral dos homens e mulhe- uma abordagem irreverente e
KAWAI, H. A psique japonesa – grandes
res no Japão (KAWAI, 2007, p. provocativa, instiga o leitor a
temas dos contos de fadas japoneses.
173). Trata-se de uma consciên- imergir na complexidade do pen-
São Paulo: Paulus, 2007. p. 278.
cia que busca a totalidade, que samento japonês. Ademais, A
procura aceitar de volta o que psique japonesa é o retrato e
foi cortado ou excluído. Portan- componente histórico de um dos
to, ela aceita o que vier, até primeiros passos da psicologia
mesmo a imperfeição ou as junguiana em solo japonês. „

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