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REVISTA DE FFLCH-USP

HISTÓRIA 1998

REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: história dos quilombos
no Brasil. São Paulo, Cia das Letras, 1996, 509p.

Os Fios da Liberdade
De certa forma, vale dizer que a recente historio- tempos do “politicamente correto” estas constatações
grafia brasileira sobre os negros evoca a sina de Sísifo. viram obsessão. Procedido o exercício da escolha,
Condenada por um calendário renitente, de tempo em pode-se vislumbrar alguma luz capaz de fazer brilhar
tempo, assiste-se ao repetido castigo de subir a mon- argumentos potentes para instruir procedimentos que
tanha com a pedra que há de rolar novamente. Tudo superam revanchismos ou práticas paternalistas. So-
recomeça a cada sol, ou a nova celebração que dê bretudo, para isto, convoca-se o exame de uma histó-
oportunidade para se tocar em temas afeitos à ria de relevância temática, capaz de propor nova ló-
negritude. Em regra, tudo funciona como um monóto- gica em uma sociedade onde, vis à vis, o espelho e o
no movimento pendular que marca as horas de cer- “esquecimento” promovem repetições.
tos mesmismos explicativos. Foi assim com o cente- Especificamente sobre os negros, o comportamen-
nário da abolição; da mesma forma ocorreu com a co- to crítico-historiográfico tem sido sobremaneira omis-
memoração dos 300 anos da morte de Zumbi, assina- so. Vendo em conjunto, considerando o mau resulta-
lada no transcorrer de 1995. do dos estudos sobre a escravidão brasileira e a pro-
Congressos, cursos, conferências se sucedem em jeção sobre o presente, verifica-se que os debates vin-
situações como essas reprisando, quase sem exceções, culados à chamada “questão negra” parecem ter per-
a seqüência de protestos que se esgotam na inefável dido a consistência. Faltam análises seqüenciais e esta
explicação consubstanciada no mito da democracia ausência estabelece uma fronteira fechada entre par-
racial. Como mero discurso de denúncia, o que se tem tes. Esfacelada em espontaneísmos lustrados na prá-
feito é a conclamação da sociedade a devolver aos tica da denúncia, do silêncio ou do deslumbramento
negros os direitos que lhes foram usurpados. Se isto exotista, o que se compromete na visão do negro é a
é legítimo, cabe questionar os fundamentos e nesta dimensão histórica que dá vida ao tempo presente. A
senda perscrutar novidades. falta de relação entre o enredo pretérito e a lista de
Os mais sensatos, depois de procedidos rescaldos reivindicações do momento provoca uma sensação de
da avalanche de textos que decorrem do celebracio- vazio explicativo que justifica uma militância às ve-
nismo, podem ter algumas surpresas que fogem das zes fastidiosa porque ignorante.
modestas revisões sobre a prática dos preconceitos, O pior é que no ostracismo palaciano dos debates
racismos, lapsos e equívocos da legislação, desvios acadêmicos sobre o passado racista nacional fica
das normas supostamente antidiscriminatórias – em trancada a perspectiva histórica que garantiria
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especificidade aos debates sobre os negros na socie- por João José Reis e Flávio dos Santos Gomes. Reu-
dade nacional. Sendo verdade que este é um problema nindo especialistas em temas vinculados a escravidão
genérico, de diferentes quadrantes do mundo, não é ou a assuntos diretamente ligados a ela, dezessete au-
menos evidente que a perda da dimensão histórica tem tores apresentam versões sobre um daqueles temas ca-
produzido monstros na razão das políticas do estado pitais na formação da sociedade brasileira: os quilom-
de hoje. No Brasil, isto resulta deformações formi- bos. Sendo verdade que o assunto já havia recebido
dáveis. Como se fossem duas metades distintas, os atenção de autores como Edson Carneiro, Arthur
estudos históricos sobre o escravismo, quase sempre, Ramos, Ernesto Ennes, Clóvis Moura, Abdias do
se desprendem da discussão sobre o presente. No caso Nascimento e Décio Freitas, pergunta-se desde logo:
da escravidão, com freqüência, os trabalhos deleitam qual o significado distintivo deste trabalho? Qual o
em aliviar o teor violento do passado e no lugar suge- sentido de sua inscrição no momento corrente?
rem exercícios que nada tem a ver com o quadro atual. Dois vetores nortearam o arranjo do livro: os es-
A descontinuidade é marca não apenas da alienação paços geográficos que percorrem o mapa brasileiro e
acadêmica mas também da descartabilidade da cultura o atravessamento temporal que flui do século XVII
universitária na instrução de políticas públicas. até o presente. Exibindo um contexto geral, de sul a
A tradição de uma história incruenta, sem sangue norte do país a fuga de escravos é mostrada como
nem ódios, isenta de torturas e definições de diferen- prática incessante de busca da liberdade, dignidade. A
ças, tem sido reinventada entre nós a partir dos usos, persistência deste recurso através dos tempos deixa
às vezes ingênuos, de supostos da Nova História arre- entrever a longa duração do tratamento separatista entre
medada da forma francesa. Sobre isto aliás Jacob negros e brancos. Por lógico, não se pode deixar de
Gorender já escreveu, exponenciando os efeitos da reclamar neste plano quase perfeito a ausência dos
adocicação do processo escravocrata, que troca, sem quilombos paulistas posto que pesquisadores do porte
pudor, a luta de classes, pelas soltas explicações sobre de Carlos Vogt e Peter Fry esmeram-se em estudos
mentalidade, imaginário e representações. sobre Cafundó (que é apenas citado em nota de rodapé).
Paradoxalmente, o celebracionismo que marca nos- Aliás, a inclusão desta pesquisa no conjunto daria mais
sa vida acadêmica, de repente, tem tido que enfrentar vida a temporalidade pretendida pelo projeto. Ainda
a perversidade do calendário e render-se ao inevitável, que em tamanho os artigos se equilibrem, em termos
às conexões entre passado e presente. Isto ocorre quan- de abordagem e de conteúdo são bem diferentes. Mais
do o sujeito desta história, o próprio negro, convoca que a preocupação espacial e temporal cabe garantir
explicações, gera o debate que lhe garanta algum di- que o conjunto discute as relações entre o escravismo,
reito. É aí que a contradição entre o processo historio- sua projeção e a sociedade brasileira.
gráfico encerrado nas faculdades de filosofia se mos-
tra mais frágil e afônico para dar respostas. Palmares
Num balanço possível sobre o que se tem publica-
do no Brasil a respeito do negro, em um esforço para O livro, como seria previsível, dá especial ênfase
não se perder os nexos capazes de estabelecer lógi- ao caso de Palmares, a mais importante de nossas
cas de tratamento entre o passado e o presente, surge experiências de quilombolas. Neste sentido, há um
um trabalho inquietante e assaz provocativo. Liber- bloco composto de seis textos devotados ao tema. A
dade por um fio: história dos quilombos no Brasil ordem, contudo, deixa dúvidas posto que abre com
(Companhia das Letras) é uma coletânea organizada uma pesquisa que ainda é promessa, de retomada dos
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debates historiográficos através da aventura arqueoló- maneira é sagaz a pontuação feita em cima do caráter
gica. O artigo de Pedro Paulo Funari, narrado a moda solidário que tanto aliava fugitivos como proprietári-
de relatório ou projeto, desperta curiosidades que não os. É exatamente no extravasamento do “delito” e na
são satisfeitas ao longo de exposições convencionais “coletivização” da repressão que se deu o estabeleci-
e mal cozidas. mento sistemático de um medo de “outros Palmares”.
A proposta seguinte, de Richard Price, aponta para A graça do texto de Luiz Mott cai como uma
uma interessante história ucrônica, mas, a autoridade benção no conjunto dos artigos. Ao discutir a figura
do autor em relação às experiências, de quase trinta de Santo Antônio, retraça o perfil da sociedade que
anos no Suriname, fica desequilibrada em relação a impunha papeis belicosos que mesclavam conceito de
nossa que lhe é muito pouco conhecida. O resultado guerra santa com militância religiosa. Tudo é proce-
pois é uma “carta de intenções” que tanto compro- dido com cuidados que mostram a fundamentação
mete o autor como o distancia de outros brasilianistas teológica na ação do santo evocado como intercessor
dedicados a esta questão. Mesmo assim não há como do pavor infidelium. Se o texto é abrangente não deixa
desconhecer a relevância da comparação indicada também de calibrar exemplos que vinculam direta-
posto que, finalmente, apontar-se-ia para uma história mente com repressão a Palmares onde o santo teria
da América Negra. ido, em imagem, lutar contra os negros rebelados.
Estimulante a proposta de Ronaldo Vainfas que,
mostrando os jesuítas como um bloco, parte do discu- Quilombos Regionais
tível pressuposto de que os loyolanos “falaram pouco
de Palmares”. O autor, ao costurar o discurso do Pa- O texto de Carlos Magno Guimarães funciona
dre Vieira ao de Manuel Fernandes, estabelece o pa- como ponte entre a temática específica de Palmares
radoxo entre cristianização e colonização garantin- e a abertura para a reflexão sobre outros quilombos
do que os S.J. ao evitar os quilombos detiveram-se regionais. Minas é apontada como alternativa de des-
mais na escravidão. É claro, o acento é colocado na dobramento pela concentração de negros escravos
posição do Padre Antônio Vieira que, contudo, é trabalhando na mineração. Tratando de “classe escra-
mostrado apenas em relação aos escravos, sendo dei- va” o autor mostra a especificidade daqueles quilom-
xado de lado o enquadramento triológico da ação bos generalizando, porém, as conclusões para o Bra-
vieirense centrada na combinação salvacionista dos sil. Nesta senda, pontua um dos problemas mais ex-
índios, judeus e escravos. Sem mencionar que os pressivos na retomada da temática quilombola: seu
homens só se salvariam em conjunto fica sem cenário caráter de “contradição do escravismo moderno, le-
integrativo, a visão do missionário. vando em conta as especificidades conjunturais”.
Instruído o texto de Silvia Hunold Lara é uma Apesar de ser um texto que arrola problemas relevan-
preciosa retomada do percurso historiográfico de tes esmorece, tanto por insistir em uma linha exposi-
Palmares. Sem perder a tendência às aproximações tiva demais pedagógica como por apelar para dispen-
épicas, o quilombo é salientado pelas leituras “à es- sável fundamentação conceitual acetada em Bobbio
querda” que o evidenciam como um problema capaz e Lênin que, aplicados explicitamente para explicar
de justificar um processo repressivo que contava com Minas, causa ruídos inúteis. De qualquer forma, abre
capitães-do-campo, capitães-mores-das-entradas. debate para os demais quilombos e garante o diálogo
Toda uma legislação cautelosa se constitui como com outros temas dados à proposição do quilombismo
maneira de articular prevenções de fugas. Sobre- na história nacional.
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Donald Ramos retoma o mote da inscrição do da expedição que possuía músicos e rezava missas,
quilombo no contexto regional e mostra que os redu- dando mostras da existência de um lado moral na
tos de Minas não existiam isoladamente. Mais, indi- “caça” aos escravos. Ainda que a autora veja poemas
ca que a aventura dos quilombolas pode ser vista populares como “toquíssimos” e constate “versinhos
como estrada de mão dupla, onde trafegavam propo- ingênuos” e “orquetrinhas” estas manifestações, en-
sições coletivas, contra a escravidão, e interesses in- cravadas no cotidiano violento dos mineiros é prova
dividuais. Situado o campo de exemplificação em paradoxal da “civilidade” tida como padrão.
Minas, fica ressaltada a característica da proximida- Reclamando que a historiografia pouca atenção
de daqueles quilombos dos centros de mineração. A tem prestado aos quilombos mato-grossenses, Luiza
questão do recrutamento é ponto básico para se enten- Rios Ricci Volpato contextualiza a vida daquele in-
der a multiplicidade dos quilombos. Ao mostrar a sin- terior como “zona de fronteira” e, baseada nisto, alia
tonia entre os mucambos e os pólos urbanos, Ramos a instalação dos redutos de fugitivos com a fixação
salienta o papel dos vínculos institucionais, principal- do povoamento, principalmente na segunda metade do
mente da Igreja Católica, como forma de relaciona- século XVIII. As regras rígidas da mineração limitavam
mento entre os escravos e a sociedade. A educação e a agricultura e os escravos da área possuíam pouca es-
o acesso às irmandades são mostradas como critéri- pecialização o que atesta o nível de pobreza local. Isto
os de “aculturação” e que mesmo eficientes, não te- porém não atrapalhou a organização de alguns quilom-
riam conseguido a adesão dos negros ao regime. Os bos que tiveram resultados felizes na estruturação inter-
quilombos de Vila Rica no século XVIII, embora na. A característica mais exuberante deste estudo diz
pequenos são fundamentais para o entendimento do respeito á prática da cooptação pelo estado. Tanto ne-
processo como um todo. Os quilombos que ele cha- gros quilombolas quanto índios eram igualmente atraí-
ma de “anônimos” teriam sido “parte integrante da dos para os trabalhos nas fileiras da ordem que precisa-
vida do século XVIII”. va vigiar as fronteiras. A finalização do texto é uma sau-
Laura de Mello e Souza, como todos os demais dação aos quilombos que teriam provocado pequenos
autores, exponencia a questão do medo. Sua ênfase, núcleos de povoamento, disciplinando a população além
contudo, centra-se na sociedade mineira da segunda de motivar a solidariedade grupal.
metade do nosso século de ouro. O ressurgimento do A brasilianista Mary Karasch aborda Goiás mos-
quilombo do Ambrósio é o tema do texto que analisa trando a resistência de quilombos que teriam durado
um dos mais curiosos casos de repressão a quilombos: desde 1727 até o século XX. Mostrando que um es-
a campanha para o aniquilamento daquele campo. tudo da cultura negra quilombada exige técnicas
Várias expedições “bélicas” eram organizadas a fim múltiplas, inclusive a comparação com outras comu-
de vasculhar o sertão atrás de quilombos, mas nenhu- nidades da América, apresenta uma evidência demo-
ma teria, em Minas, sido mais eloqüente que a articu- gráfica interessante pois os quilombos costumavam
lada durante três anos, contando com cerca de quatro- aparecer quando a população negra mostrava-se su-
centos integrantes. A figura de Inácio Correia perior a dos brancos. Na mesma medida, a fuga de
Pamplona é eregida como desbravador de sertões e homens era mais aberta posto que exerciam ativida-
destruidor de quilombos, na mesma medida em que des diferentes e de controle mais difícil. O vínculo
é mostrado como um dos três grandes delatores da entre os jesuítas e os quilombolas é mostrado segun-
Inconfidência Mineira. Um dos ângulos mais interes- do um pacto que também envolvia índios. Este ponto
santes deste processo é a mostra do lado “civilizado” aliás é dos mais polêmicos posto que, em regra, a
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igreja é vista como aliada do estado. Vale lembrar que Quilombos baianos
no momento focado pela autora, a Companhia de
Jesus estava em questão com o estado. Como seria de se esperar os quilombos baianos
Sem dúvidas as relações entre os quilombos e o se constituem na parte mais forte do livro. Com tex-
estado ou a igreja eram complexas e dependiam de tos bem documentados e articulados são eles que
situações muito específicas. O caso do Rio de Janeiro deixam de lado o mero sabor de novidade e retraçam
é analisado por Flávio dos Santos Gomes que parte os diálogos historiográficos mais importantes.
da inversão historiográfica que insiste em mostrar o O texto de João José Reis é aberto com a propos-
quilombo em oposição a escravidão. A atividade ta de estudo da relação entre os quilombos e a socie-
quilombola teria modificado também a vida dos es- dade que os cercava. A superação da tradição palma-
cravos. Focalizando a baixada Iguaçuana, o autor rina é mostra da oposição simplista do mucambo
mostra o impacto causado pela vinda da família real como espaço isolado do contexto. No jogo de rela-
ao Rio. Depois disto a multiplicação dos mocambos ções entre os quilombolas e os “cidadãos”, a figura
que, contudo, nesta área, se relacionaram indireta- do coiteiro assume papel importante como elemento
mente com a população, principalmente através de ta- problemático entre a proteção e a repressão aos ne-
berneiros, exercendo um comércio clandestino. Uma gros. Salvador, como o terminal mais importante do
verdadeira teia de relações sociais seria decorrente da tráfego, deveria possuir bom aparelho de controle e
fixação dos quilombos que acabavam por se impor no o teste das relações é medido pelo autor no exame do
tecido social. quilombo do Oitizeiro, estabelecido às margens do rio
O sul do Brasil também passou pela experiência das Contas. Entre os outros redutos, este teve uma
dos quilombos pois teve o negro atuando em todas as expedição organizada para sua destruição em 1806.
etapas de sua inscrição na história nacional. Aliás, Como era comum, índios foram usados nas tropas
eram eles mesmos um dos principais produtos contra os negros fugidos e a organização da milícia
contrabandeados em Sacramento. Dada a solução ganhava foros de empresa. Não faltam sugestões de
econômica da região, as charqueadas exigiam gran- corrupção para a façanha de repressão que, contudo,
de número de escravos. Como o pampa é área de es- não foi cabalmente bem sucedida dados avisos pré-
conderijo difícil, as fugas davam-se para a região da vios. O que marca este estudo é a originalidade do
serra e nelas as localizações próximas às cidades. O objeto bem domado pelo analista. Oitizeiro foi um
caso de Pelotas é importante pois revela a preocupa- quilombo especialíssimo possivelmente dirigido por
ção dos amos com a concentração de negros que eram homens livres, com escravos e com índice de integra-
retidos nas charqueadas tidas como presídios. O im- ção no mercado regional. De tal forma a contextuali-
pacto da Revolução Farroupilha, por outro lado, mo- zação deste quilombo era natural que chega-se a per-
tivou a multiplicação de mocambos posto que os guntar, finalmente, se ele não teria sido uma fabrica-
rebelados soltavam os escravos para tornarem-se sol- ção jurídica para impressionar.
dados. De qualquer forma, este texto aborda a ques- Stuart B. Schwartz depois de caracterizar a resis-
tão da especificidade dos quilombos gaúchos mos- tência negra no Brasil entre as fugas e as rebeliões
trando como o isolamento teria sugerido formas in- urbanas, procura mostrar que estas alternativas não
ternas de ordenamento social. eram opostas ou independentes. Para tanto, analisa a
revolta promovida pelos haussás, islâmicos, em 1814.
A instruída informação das políticas internas da Áfri-
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ca ajuda perceber como as disputas religiosas de ne- cia. Salientando que o Maranhão representava, às
gros continuaram deste lado do Atlântico. Da mesma vésperas da Independência, a mais alta concentração
forma, as soluções de organização que resultaram em escrava do Império (55%), o autor trabalha com a
rebeliões continuadas num esforço de integração do hipótese da persistência de quilombos endêmicos
grupo haussás. O autor discute os dilemas da negocia- naquela região. A multiplicação de quilombos, con-
ção cultural feita entre estratos de ethos tribais africa- tudo, teria sugerido a existência de redes. Os “quilom-
nos e a imposição de padrões culturais portugueses. O bos tardios” teriam tido alterações no perfil das lide-
canto e os quilombos seriam os pólos entre a submis- ranças e isto sugere uma espécie de perda dos
são e a resistência. Os conspiradores de 1814, pois são referenciais africanos e que através de um “sincre-
mostrados como grupo político de oposição dos tismo” teriam sido passados aos crioulos.
dominadores e com notável capacidade de resistência. O último texto, de Eurípedes A. Funes, fecha com
O quilombo de Catucá, de Pernambuco, é o tema chave de ouro a lista destes trabalhos. Explorando a tra-
de Marcus Joaquim M. de Carvalho que indica a dição oral, o autor aborda a questão dos mucambos no
mudança, no século XIX, da localização dos quilom- baixo Amazonas. A evocação de Vansina aponta para a
bos da longínquas a floresta para a proximidade dos linha da reconstituição histórica através da memória.
engenhos. Prestando, principalmente, atenção no Caracterizando os quilombos regionais como in-
período situado entre 1817 e 1825 – portanto entre dependentes não identifica neles, como na grande mai-
uma fase de rebelião e o esforço da Confederação do oria nacional, uma “economia parasitária”. Mostrando
Equador -, localiza neste período a tentativa especí- que, como o índio, ao fugir do branco os espaços de
fica de um grupo em construir uma sociedade alter- reclusão iam se internando na floresta o autor conclui
nativa, onde houvesse liberdade para os negros. A es- que a experiência de organização interna do grupo teria
tratégia de resistência à repressão indica que foi ado- gerado, até hoje, um sentido utópico de liberdade.
tada a prática de quilombos móveis. Um dos pontos Ao fim da leitura de tantos textos é de se questio-
mais interessantes desse texto remete à estruturação nar o saldo. Evidentemente, a riqueza das experiên-
interna dos próprios quilombos que, eventualmente, cias e a fertilidade das informações sugerem que no-
poderiam estabelecer espécie de sucessões familiares. vos estudos devam decorrer desta feliz aventura. Ao
Buscando entender na complexa documentação se a lado da sensação de surpresa prezarias, algumas dú-
figura de Malunguinho se confundia (ou não ) com o vidas fertilizam a curiosidade dos leitores. Afinal, o
gentílico “malunguinho”, ou seja, os quilombolas em juízo sobre a aventura de busca da liberdade dos qui-
geral, o autor mostra que, este líder passou para a lombolas teria alguma seqüência? Não havendo uni-
cultura popular como uma espécie de herói. dade de procedimentos em conjunto o que significa-
Os quilombos maranhenses são focalizado por ria esses empreendimentos? Quais seriam seus efei-
Matthias Röhrig Assunção que identifica, no século tos hoje: negociações, isolacionismos? Extrapolariam
XIX “uma extraordinária multiplicação de quilom- a aventura da fuga e da mera resistência? Cabe por
bos”. Procedendo uma tipologia dos mucambos, per- fim perguntar da lógica do silêncio entre o “esqueci-
cebe quatro tipos que percorreriam a trajetória dos mento” deste tema pela nossa historiografia e a po-
quilombos desde a tradição “clássica” até o momen- breza dos conteúdos presentes nos debates atuais so-
to em que a escravidão já se encontrava em decadên- bre a chamada questão negra brasileira.
José Carlos Sebe Bom Meihy
Depto. História – FFLCH/USP

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