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DOI: 10.

1590/S0080-623420130000400029

ESTUDO TEÓRICO
Educação interprofissional: formação de
profissionais de saúde para o trabalho em
equipe com foco nos usuários

INTERPROFESSIONAL EDUCATION: TRAINING FOR HEALTHCARE


PROFESSIONALS FOR TEAMWORK FOCUSING ON USERS

EDUCACIÓN INTERPROFESIONAL: LA FORMACIÓN DE PROFESIONALES DE LA


SALUD PARA EL TRABAJO EN EQUIPO CON ENFOQUE EN LOS USUARIOS

Marina Peduzzi1, Ian James Norman2, Ana Claudia Camargo Gonçalves Germani3,
Jaqueline Alcântara Marcelino da Silva4, Geisa Colebrusco de Souza5

RESUMO ABSTRACT RESUMEN


São analisados os constructos teóricos da The theore cal constructs of interprofes- Fueron analizados los constructos teóricos
educação interprofissional com base em sional educa on (IPE) are analyzed based de la educación interprofesional basado en
duas revisões de literatura, considerado o on two reviews of the literature, taking the dos revisiones de la literatura, considerando
contexto da formação dos profissionais de context of training for healthcare professio- el contexto de la formación de los profesio-
saúde no Brasil. Iden ficam-se três pos de nals in Brazil into considera on. Three types nales de salud en Brasil. Se iden ficaron tres
formação: uniprofissional, mul profissional of training are iden fied: uniprofessional, pos de formación: uniprofesional, mul pro-
e interprofissional, com predomínio da multiprofessional and interprofessional, fesional e interprofesional, con predominio
primeira, que ocorre entre estudantes de with predominance of the first type. The de la primera, que se produce entre los es-
uma mesma profissão de forma isolada; first occurs among students of the same tudiantes de una misma profesión de forma
a segunda, entre estudantes de duas ou profession, in isola on; the second occurs aislada; la segunda, entre los estudiantes de
mais profissões de forma paralela, sem among students of two or more profes- dos o más profesiones de forma paralela,
haver interação, e na terceira há apren- sions, in parallel without interac on; and sin exis r interacción y, en la tercera existe
dizagem compartilhada, com interação the third involves shared learning, with un aprendizaje compar do, con interacción
entre estudantes e/ou profissionais de interaction between students and/or entre los estudiantes y/o profesionales de
diferentes áreas. Destaca-se a distinção professionals from different fields. The dis- diferentes áreas. Se destaca la diferencia
entre interprofissionalidade e interdiscipli- nc on between interprofessionalism and entre interprofesionalidad e interdisciplina-
naridade, referidas, respec vamente, como interdisciplinarity is highlighted: these refer riedad referidas, respec vamente, como la
a integração das prá cas profissionais e to integra on, respec vely, of professional integración de las prác cas profesionales y
das disciplinas ou áreas de conhecimento. prac ces and disciplines or fields of know- de las disciplinas o áreas de conocimiento. A
Mediante a análise apresentada, conclui- ledge. Through the analysis presented, it is par r del análisis se concluye que en el con-
-se que no contexto brasileiro, a educação concluded that in the Brazilian context, IPE texto brasileño, la educación interprofesional
interprofissional, base para o trabalho em (the basis for collabora ve teamwork) is base para el trabajo en equipo colabora vo,
equipe colabora vo, ainda está restrita a s ll limited to some recent ini a ves, which todavía está restringido a inicia vas recien-
inicia vas recentes, que merecem estudo. deserve to be inves gated. tes, que merecen estudio.

DESCRITORES DESCRIPTORS DESCRIPTORES


Pessoal de saúde Health personnel Personal de salud
Educação con nuada Educa on, con nuing Educación con nua
Relações interprofissionais Interprofessional rela ons Relaciones interprofesionales
Equipe de assistência ao paciente Pa ent care team Grupo de atención al paciente
Comportamento coopera vo Coopera ve behavior Conducta coopera va

1
Professora Associada do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil.
marinape@usp.br 2 Enfermeiro, PhD. Professor Associado de Enfermagem e Cuidado Interdisciplinar da Florence Nightingale School of Nursing & Midwifery,
Kings College London. London, UK. ian.j.norma@kcl.ac.uk 3 Médica. Professora Doutora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina
da Universidade São Paulo. 4 Enfermeira. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento em Enfermagem da Escola de Enfermagem da
Universidade de São Paulo. Especialista em Laboratório do Departamento de Orientação Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São
Paulo. São Paulo, SP, Brasil. jaqueline.alc@gmail.com 5 Enfermeira. Mestre em Ciências. Especialista em Laboratório do Departamento de Orientação
Profissional da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. geisacole@usp.br

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Português / Inglês Recebido: 23/02/2012 Rev Esc Enferm USP
www.scielo.br/reeusp Aprovado: 16/12/2012 2013; 47(4):977-83
www.ee.usp.br/reeusp/
INTRODUÇÃO e a atenção às necessidades de saúde próprias de usuá-
rios e população de cada território e serviço, visto que as
A educação e a prá ca interprofisisonal (EIP e PIP) necessidades são heterogêneas e complexas e requerem
cons tuem temas emergentes do campo da saúde em ser apreendidas de forma integral e não apenas focadas na
nível global, como atestado por duas recentes publicações demanda espontânea(1).
que apontam a EIP orientada para o trabalho em equipe
Estudos tem se debruçado sobre as PIP, contudo o referi-
como componente de uma ampla reforma do modelo de
do relatório da OMS sobre EIP iden ficou que as a vidades
formação profissional e de atenção à saúde(1-2). Neste ar go
desenvolvidas sobre o tema são majoritariamente de curta
são analisados os constructos teóricos da EIP, destacando
duração e não sistema zadas. Outros aspectos observados
sua dis nção por referência a interdisciplinaridade, bem
são os raros grupos de ensino com capacitação própria para
como os modelos existentes e as mudanças necessárias na
desenvolvê-las e a avaliação dessas inicia vas é infrequente(1).
formação dos profissionais de saúde no Brasil.
Desde 2005, publicações internacionais produzidas,
As mudanças de perfil epidemiológico, com o aumento
sobretudo pela CAIPE – Centre for the Advancement of In-
da expecta va de vida e das condições crônicas de saúde
terprofessional EducaƟon do Reino Unido e pela Biblioteca
que requerem acompanhamento prolongado, trazem a
Cochrane buscam construir referencial sobre o assunto.
necessidade de uma abordagem integral que contemple as
Nesse cenário, cabe ampliar os estudos sobre EIP no Brasil,
múl plas dimensões das necessidades de saúde de usuários
visto que o seu fortalecimento, bem como o da PIP, reque-
e população(2). Isso torna a qualidade da comunicação e a
rem o desenvolvimento de pesquisas rigorosas envolvendo
colaboração entre os diferentes profissio-
metodologias quantitativa e qualitativa,
nais envolvidos no cuidado, fundamental e
dentre outros inves mentos(3).
crí ca para a resolubilidade dos serviços e ...autores defendem
a efe vidade da atenção à saúde(3). que oportunidades Nesse sen do, este texto tem o obje vo
de EIP contribuem de analisar os construtos teóricos da EIP ten-
A tendência dos profissionais de cada
para a formação de do em vista a crí ca aos modelos existentes
área trabalhar de forma isolada e inde-
de formação de profissionais de saúde e for-
pendente das demais expressa sua longa profissionais de saúde
necer subsídios para futuras pesquisas. Essa
e intensa formação também isolada e melhor preparados discussão busca contribuir para alavancar
circunscrita a sua própria área de atuação. para uma atuação
(4) inicia vas de EIP nos cursos de graduação
Contudo, autores defendem que oportuni-
integrada em equipe, em saúde, a fim de engendrar prá cas cola-
dades de EIP contribuem para a formação de
profissionais de saúde melhor preparados na qual a colaboração bora vas no co diano dos serviços.
para uma atuação integrada em equipe, na e o reconhecimento Este ar go tem o obje vo de iden ficar,
qual a colaboração e o reconhecimento da da interdependência descrever e discu r a complexidade do tema,
interdependência das áreas predominam das áreas predominam da mul plicidade de conceitos e sua relação
frente à competição e à fragmentação. frente à competição e com a interdisciplinaridade. Para tanto, traz
Fica marcado que o debate sobre EIP e PIP à fragmentação. inicialmente os resultados da leitura crí ca
merece ocorrer sempre de forma integrada. de revisão de literatura sobre EIP, organizada
Nos serviços de saúde, a PIP, reconheci- pelo CAIPE, baseada em 107 ar gos, que deu
da como componente da organização dos serviços, permite origem a dois livros(4-5) e da revisão sistemá ca com base na
a problema zação e por consequência um possível deslo- Biblioteca Cochrane realizada por Reeves et al.(6). Esta incluiu
camento da reconhecida fragmentação para a ar culação seis estudos e concluiu que as definições e a efe vidade da
e a integração das ações de saúde. Este movimento, por EIP permanecem sem clareza, dadas as limitações metodoló-
sua vez, tende a aumentar a resolubilidade dos serviços gicas dos estudos selecionados. Em seguida, apresentam-se
e a qualidade da atenção à saúde, pois possibilita evitar os modelos existentes para a formação dos profissionais de
omissões ou duplicações de cuidados, evitar esperas e adia- saúde no Brasil, com a finalidade de contextualizar a reflexão.
mentos desnecessários, ampliar e melhorar a comunicação Construtos teóricos da EIP
entre os profissionais, bem como o reconhecimento das
contribuições específicas de cada área e de suas fronteiras O debate sobre a EIP é recente e grande parte da lite-
sobrepostas, com a flexibilização dos papéis profissionais. ratura adota a definição cunhada pelo CAIPE, em 1997, no
Reino Unido: occasions when two or more professions learns
Profissionais com diferentes formações na saúde, dis- with, from and about each other to improve collaboraƟon
postos a transitar entre as áreas específicas de formação, and the quality of care(4). Os autores(4) também apresentam
ar culam seu saber específico com o dos outros na orga- a definição de educação mul profissional: occasions when
nização do trabalho, o que possibilita tanto compar lhar two or more professions learn side by side.
as ações como delegar a vidades a outros profissionais,
nos moldes de uma prá ca colabora va. Essa flexibilidade Em um primeiro momento, a fronteira entre EIP, mul -
permite o mizar os recursos e ampliar o reconhecimento profissional e uniprofessional parece clara. EIP e educação

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mul profissional possibilitam o aprendizado compar lha- aos profissionais, com foco na prá ca nos serviços, ora às
do, de forma intera va, entre estudantes ou profissionais disciplinas, com foco na ar culação no âmbito do ensino
de diferentes áreas; contudo, sua operacionalização pode e pesquisa. U lizam-se, usualmente de forma imprecisa,
apresentar dificuldades e acarretar dúvidas e tensões. Isso termos com os prefixos uni, mul , pluri, inter e trans, acom-
ocorre pela tendência a reiterar o que é usual e tradicional panhados dos sufixos disciplinar ou profissional.
e pelas resistências às mudanças, mas também porque é
necessário que se mantenha o ensino uniprofissional para o Sabe-se que a formação em saúde está fundamentada
aprendizado de conhecimentos e habilidades específicas de majoritariamente no modelo de ensino por disciplinas. A
cada área profissional e seu respe vo conjunto de disciplinas. discussão da interação disciplinar tem início no Brasil, na
década de 1970(10-11). Os autores enfocam nas suas publi-
Este aspecto é importante, pois a literatura sobre cações as exigências internas de interação disciplinar das
trabalho em equipe e prá ca colabora va mostra que a ciências e da pesquisa, sem a preocupação em descrever ou
ar culação das ações e a colaboração dos profissionais de conceituar a interação das prá cas profissionais, no co dia-
diferentes áreas requer a manutenção das especificidades no dos serviços, como os do setor saúde, que são o cenário
de cada área(7-8), assim como a interdisciplinaridade requer onde se desenvolve a prá ca e educação interprofissional
a disciplinaridade(9). em saúde, objeto da presente reflexão.
Entende-se por formação uniprofissional o processo no Ressalvam que o exercício da interdisciplinaridade foi
qual as a vidades educacionais ocorrem somente entre os um meio para facilitar o enfrentamento da crise do conhe-
estudantes de uma mesma profissão, isolados dos demais. cimento e das ciências, sobretudo no que se refere a sua
A educação profissional corresponde a um processo de fragmentação(10-11). Nesse sen do, entende-se que a EIP na
socialização no qual os estudantes passam a criar uma saúde passa a ser um meio de desafiar o contexto usual
iden dade com a profissão escolhida, os seus valores, de formação, para encontrar respostas novas aos novos
cultura, papéis e conhecimentos específicos. Quando a problemas que se configuram: a complexidade das neces-
formação está configurada somente como uniprofissional, sidades de cuidado, a fragmentação do cuidado prestado
não há interação com estudantes de outras profissões, o pelas diferentes especialidades profissionais, bem como o
que contribui para o desconhecimento sobre os papéis e impera vo de superar os esquemas tradicionais de ensino.
as responsabilidades dos demais profissionais da saúde e
a formação de estereó pos(4,6). Um estudo(10) define disciplina como sinônimo de
ciências, embora o termo disciplina seja usualmente
Conceitualmente, a diferença entre a EIP e mul profis- u lizado para designar o ensino de uma ciência e ciência
sional está em que no primeiro caso os alunos aprendem usualmente designa melhor uma a vidade de pesquisa.
de forma intera va sobre papéis, conhecimentos e compe- O autor descreve os diferentes níveis de contato entre as
tências dos demais profissionais. No segundo, as a vidades disciplinas – mul disciplinaridade, pluridisciplinaridade, in-
educa vas ocorrem entre estudantes de duas ou mais terdisciplinaridade e transdisciplinaridade - e refere que na
profissões conjuntamente, no entanto, de forma paralela, mul disciplinaridade não há nenhuma cooperação entre as
sem haver necessariamente interação entre eles(4,6). disciplinas, na pluridisciplinaridade,há cooperação entre as
Espera-se do ensino nos moldes interprofissional os disciplinas, mas sem coordenação, na interdisciplinaridade
subsídios necessários para fortalecer o trabalho em equipe, há uma axiomá ca comum a um grupo de disciplinas co-
tendo em vista a transformação das prá cas de saúde no nexas coordenadas por uma delas, que ocupa uma posição
sen do da integração e colaboração interprofissional, com hierárquica superior e, finalmente, a transdisciplinaridade,
foco nas necessidades de saúde dos usuários e população. que envolve uma coordenação de todas as disciplinas, com
Barr et al.(4) sistema zam a chamada essência da EIP em três base em uma axiomá ca geral(10).
focos sobrepostos: preparação individual para a colabora-
Posteriormente, com base em Hilton Japiassu(10), Iri-
ção, es mular a colaboração entre o grupo e melhorar os
barry(9) faz uma transposição do uso dos termos mul ,
serviços e a qualidade do cuidado.
pluri, inter e transdisciplinar para a análise do trabalho em
Assim, a EIP é complementar à educação uniprofissional equipe de saúde, definindo conceitualmente o arranjo das
e/ou mul profissional, no desenvolvimento de a vidades equipes de acordo com a interação disciplinar no trabalho,
curriculares planejadas, isto é, que compõem o currículo considerando cada profissão como uma disciplina diferente.
dos cursos da saúde. Desta forma, a educação uni e mul -
Destaca-se que o autor(9) trata da transdisciplinaridade e
profissional precisa ser revista a par r de uma perspec va
do trabalho em equipe sem fazer dis nção entre os planos
interprofissional para melhorar a prá ca colabora va no
de integração das disciplinas e áreas de conhecimento cien-
trabalho em equipe de saúde(4).
fico e das prá cas profissionais no trabalho co diano, no
A literatura traz uma variedade de termos que quali- qual os agentes executam ações fundamentadas em saber
ficam o trabalho em equipe e a respec va educação dos técnico-cien fico, também denominado saber operante ou
profissionais de saúde. Tais definições têm em comum a saber tecnológico, mediante um dado contexto e uma dada
referência a diferentes graus de interação, ora relacionada condição de trabalho.

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É importante observar que, segundo os autores que se áreas, contribuem para o aumento da resolubilidade dos
dedicam ao tema(9-13), a transdisciplinaridade diz respeito serviços e da qualidade da atenção à saúde(1-2,4-5).
à interação entre disciplinas, ou seja, ao diálogo e à coope-
ração entre as diferentes áreas do conhecimento, a par r Com finalidade de retratar o cenário atual e sugerir
do reconhecimento de posições dis ntas em relação a um possíveis repercussões no ensino, Barr et al.(4) descrevem a
mesmo objeto complexo. gama de caracterís cas que permeiam as propostas de EIP.
São apresentadas incia vas pontuais e outras integradas aos
Embora seja possível reconhecer especificidade na con- currículos, de curta ou longa duração, com tema geral ou
cepção de transdisciplinaridade, que se refere à integração específico (como por exemplo, cuidados palia vos). Podem
das áreas de conhecimento, Iribarry(9) refere que aqueles acontecer em serviços de saúde ou de ensino, durante ou
que a buscam colocam como necessidade o trabalhar em após a graduação.
equipe, pois, para uma formulação transdisciplinar, é vital a
reunião de diversos profissionais num trabalho em equipe. Modelos existentes na formação profissional na área da
Outro estudo sobre o trabalho interdisciplinar em saúde saúde no Brasil
também aponta que a habilidade para o trabalho em equipe Interessante observar que estudos(2,4-5) apontam que
consiste num saber fazer necessário para o desenvolvi- a EIP é produto da relação entre os sistemas educacional
mento da competência para a atuação interdisciplinar em e de saúde, pois é operada na interface entre ambos. As-
saúde(13). Assim, entende-se que é preciso saber trabalhar sim, importa contextualizar a discussão dos constructos
em equipe para assegurar uma atuação interdisciplinar. teóricos da EIP no contexto brasileiro de formação dos
Nesta reflexão teórica destaca-se a dis nção entre profissionais de saúde que é majoritariamente uniprofis-
interdisciplinaridade e interprofissionalidade, que diz sional e pautado no modelo de ensino por disciplinas e na
respeito à esfera da prá ca profissional onde se desenvol- racionalidade biomédica, referida à ênfase na dimensão
ve o trabalho em equipe de saúde, e a primeira à esfera biológica e no substrato anatomopatológico do processo
saúde-doença(15).
das disciplinas, ciências ou áreas de conhecimento. Um
estudo(7) também analisa a diferença entre os planos Esse modelo de formação corresponde, por um lado, a
disciplinares e profissionais e aponta que a concepções uma rede de serviços, a gestão e a atenção à saúde orga-
a-histórica de interdisciplinaridade, predominante no nizadas em torno das intervenções do profissional médico,
Brasil, levaria a equívocos, em especial a uma busca ide- com os demais profissionais atuando como auxiliares do
alizada de totalidade, a condenação da especialização e trabalho médico(16). Sabe-se que a educação e as prá cas
o equívoco de conceber que a parceria e a camaradagem assim orientadas acarretam intensa fragmentação do cui-
entre os indivíduos bastaria para superar a fragmentação dado e corpora vismo profissional, de modo que os futuros
das ações e das áreas de conhecimento. profissionais da saúde são formados para ter o domínio dos
saberes técnico-cien ficos que muitas vezes não abrangem
Ainda assim, estudos sobre trabalho em equipe e cola-
esferas interdisciplinares e comunica vas/intera vas.
boração interprofissional iden ficam a ausência de defini-
ção precisa de termos, que acarreta frágil consistência de Por outro lado, destacam-se no país iniciativas de
grande parte da produção, visto que um dos pré-requisitos mudança da formação dos profissionais de saúde en-
para uma rigorosa produção teórica e/ou avaliação é a clara volvendo instâncias governamentais e de cooperação
definição da terminologia(7,14). internacional, bem como a rede pública de serviços de
saúde e de universidades(17-18).
Cabe destacar que a formação dos profissionais de saú-
de, mesmo que uniprofissional, sempre será interdisciplinar A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), or-
(ainda que implicitam)(4) em decorrência do reconhecimen- ganismo de cooperação internacional, aponta a necessi-
to que o processo saúde-doença envolve diversos deter- dade de mudança dos padrões de formação de recursos
minantes que extrapolam os limites anatomopatológicos humanos em saúde na região, a par r dos anos 1960.
e, portanto, conjuga um amplo leque de disciplinas em O primeiro instrumento jurídico de cooperação técnica
cada uma das áreas profissionais. Portanto, a educação OPAS-Brasil data de 1973 e já previa maior integração
profissional em saúde pode ser interdisciplinar com base entre o sistema de formação de profissionais de saúde e
na interação e na integração das diferentes disciplinas de serviços da rede assistencial do sistema de saúde que seria
cada área, não sendo, nestes moldes, interprofissional. u lizada como recurso pedagógico, o es mulo à integra-
ção interprofissional e o desenvolvimento da integração
Tanto a literatura recente sobre formação profissional docente assistencial(19).
em saúde, como a dedicada ao trabalho em equipe de
saúde, enfa za a necessidade de promover, para além do Nos anos 1980, as experiências acumuladas par cular-
ensino e da atuação interdisciplinar, também a EIP para mente nos campos da educação médica e da enfermagem
fomentar a PIP colabora va. A literatura aponta que ambos deram origem a uma importante proposta de mudança
EIP e PIP, com sua caracterís ca de intensa comunicação na formação dos profissionais de saúde: o Programa
e interação entre profissionais e estudantes de diferentes UNI (Programa – Uma Nova Inicia va na Educação dos

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Profissionais de Saúde: União a Comunidade)(a). Patrocina- o obje vo de contribuir para o processo de mudança na
do pela Fundação Kellogg, no Brasil o Programa envolveu graduação em saúde no Brasil. O diferencial é que nesse
6 projetos nas cidades de: Londrina, Marília, Botucatu, espaço as 14 profissões da saúde desenvolvem discussões
Brasília, Salvador e Natal(15). sobre formação mul e interprofissionais por meio da troca
de experiências entre os diversos cursos de graduação(22).
A ar culação entre serviços de saúde, ins tuições for-
madoras e comunidade foi a mais importante inovação do Cabe mencionar mais duas inicia vas recentes de EIP no
Programa UNI, cujas principais caracterís cas eram a edu- Brasil: a residência mulƟprofissional em saúde(18) e o Projeto
cação de profissionais da saúde voltada aos problemas de Pró-Saúde e PET-Saúde, ambas no âmbito do Ministério da
saúde da população, es mulo ao ensino interdisciplinar e à Saúde(17).
aprendizagem baseada em problemas. Nessa perspec va,
o trabalho em equipe mul profissional deveria servir de A história da residência, enquanto curso de pós-
modelo aos e a organização comunitária fomentar a auto- -graduação lato sensu no Brasil, inicia-se em 1976 com a
-gestão e a responsabilização(15). Residência em Medicina Comunitária que logo se tornou
mul profissional. Contudo, essa tendência não se con-
Em contrapar da à abordagem hegemônica da educa- solidou, visto que em 1977 cons tuiu-se formalmente
ção centralizada no professor, o Programa UNI destacava a Residência Médica num cenário em que se reconhece
a abordagem educa va crí co-reflexiva como es mulo à um poderoso complexo médico-industrial, a primazia da
democra zação do saber a par r da problema zação da concepção de saúde como ausência de doença, de doença
realidade com a par cipação a va do estudante. Assim, o como fenômeno estritamente biológico e a consolidação
debate em torno do modelo pedagógico dos currículos foi da formação profissional especializada(18).
reorientado com base na interdisciplinaridade, na concep-
ção do trabalho mul profissional e na especificidade da O debate sobre a residência mulƟprofissional rear culou-
prá ca de cada profissão para superar a fragmentação do -se no final da década de 1990, a par r da implantação do Pro-
conhecimento(15). As mudanças referidas aproximam-se do grama de Saúde da Família como modelo de atenção primária
conceito da EIP analisado acima, mas ainda se concentram em saúde para a reorientação da rede de serviços de saúde
na educação interdisciplinar e atuação mul profissional. no país e do Movimento da Reforma Sanitária brasileira, que
defende preservar as especificidades de cada área e reconhe-
Diversos estudos nacionais reforçam a importância da cer áreas comuns de atuação profissional pautadas em valores
integração de disciplinas no âmbito dos cursos de saúde, como a atenção integral à saúde e a promoção da saúde.
mediante conhecimentos experimentados e vividos como
uma possibilidade de formar profissionais mais comprome- Porém, apenas em 2005 a Portaria Interministerial MEC/
dos e preparados para atender as necessidades de saúde MS n. 2.117 ins tuiu formalmente a Residência Mul pro-
da população(20). Contudo, como apontado acima, a ênfase fissional em Saúde, excetuada a área médica. Permanece a
na interdisciplinaridade pode promover a integração de contradição do mulƟprofissional não incluir a área médica
disciplinas num mesmo campo profissional, o que repre- e as iniquidades, visto que ambas as residências (médica e
senta avanço em relação à tendência à fragmentação, sem mul profissional) têm carga horária próxima e correspon-
abordar de forma complementar a EIP para a PIP. dem a dois anos de formação em serviço, mas a primeira é
reconhecida como um curso de dois anos de formação e a
No campo da interação entre profissionais já formados, segunda, de apenas um ano de formação(18).
um marco é a polí ca brasileira de Educação Permanente
em Saúde (EPS) ins tuída pela portaria GM/MS 198/04. Na mesma perspec va, a Secretaria de Gestão do
Em consonância com o Programa UNI, este documento Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), mediante par-
preconiza a ar culação mul profissional de representan- ceria do Ministério da Saúde e do Ministério da Educação
tes das universidades, comunidades/usuários, trabalhado- com o apoio da Organização Pan-Americana da Saúde
res de serviços de saúde e gestores de serviços de saúde, (OPAS), ins tuiu o Programa Nacional de Reorientação
no que um estudo(21) propõe como o quadrilátero da for- da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde) por meio
mação no Brasil. A EPS tem o obje vo de cons tuir uma da Portaria Interministerial MS/MEC nº 2.102 de 03 de
rede de ensino-aprendizagem no exercício de trabalho no novembro de 2005(17).
Sistema Único de Saúde (SUS), com sua recomposição na O Pró-Saúde foi criado com o objetivo de integrar
direção das necessidades da população/usuários como ensino-serviço, visando à reorientação da formação pro-
cidadãos de direitos. fissional para uma abordagem integral do processo saúde-
Tendo a EPS e a integralidade da atenção à saúde como -doença com ênfase na atenção primária para transformar
eixos norteadores, em 2004, foi criado o Fórum Nacional de a prestação de serviços à população brasileira. A ar culação
Educação das Profissões na Área da Saúde (FNEPAS) com entre as Ins tuições de Ensino Superior e o servidor público
de saúde potencializa respostas às necessidades concretas
(a)
Ao todo, o Programa UNI envolveu 23 projetos em 11 países (Argentina, dos usuários/população mediante a formação de recursos
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, México, Nicarágua, Peru,
Uruguai, Venezuela) com a participação de 103 cursos de graduação de 23
humanos, a produção do conhecimento e a prestação dos
universidades e 600 organizações comunitárias. serviços para o fortalecimento do SUS(17).

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saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários 2013; 47(4):977-83
Peduzzi M, Norman IJ, Germani ACCG, Silva JAM, Souza GC
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Esse programa financia projetos de formação em todas A literatura apresenta concepções dis ntas de educa-
as áreas profissionais da saúde, visa promover mudanças ção uniprofissional, mul profissional e interprofissional e
no modelo de atenção e de educação na perspec va da caracteriza a úl ma como aprendizagem compar lhada e
integralidade da saúde e possui diferentes estratégias de intera va entre estudantes ou profissionais de diferentes
fortalecimento como, por exemplo, o Programa de Edu- áreas. Assim, a EIP é uma modalidade de formação em
cação pelo Trabalho para Saúde (PET- Saúde) que envolve saúde que promove o trabalho em equipe integrado e
tutores da rede de saúde, estudantes e docentes da saúde, o colabora vo entre profissionais de diferentes áreas com
Telessaúde, a Educação Profissional e o Programa de Forma- foco nas necessidades de saúde de usuários e população,
ção de Profissionais de Nível Médio para Saúde (PROFAPS) com a finalidade melhorar as respostas dos serviços a essas
e a Universidade Aberta do SUS (UNASUS). necessidades e a qualidade da atenção à saúde.
O cenário brasileiro apresentado mostra que a formação A análise dos constructos aponta a necessidade de
em saúde é sobretudo uniprofissional e que as inicia vas de ampliar os conhecimentos sobre o tema e suas diversas
EIP, no Brasil, ainda são midas e referidas majoritariamente concepções, em especial o aprofundamento de pesquisas
a ações mul profissionais na graduação e pós-graduação teórico-conceituais e empíricas para consolidar consensos
latu senso e, mais recentemente, à a vidades opta vas em torno da EIP e suas repercussões nas prá cas de saúde.
extracurriculares como o PET-Saúde. Também iden fica a necessidades de dis nguir de forma
mais clara as inicia vas de interdisciplinaridade e inter-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
profissionalidade, reconhecendo sua complementaridade.
A análise dos resultados permi u iden ficar e discu r Observa-se que as inicia vas de mudança da formação e
a mul plicidade de conceitos de EIP e sua relação com a prá ca profissional dão destaque à abordagem interdiscipli-
interdisciplinaridade. No entanto, esta análise teórica é nar e à educação e atuação mul profissional sem contemplar
limitada porque não foi desenvolvido um inventário geral o debate e a construção na perspec va da EIP, de modo que
das inicia vas brasileiras de EIP. esta ainda não cons tui realidade no contexto brasileiro.

REFERÊNCIAS

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