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antropologia moderna

GILMAR ROCHA

resumo As inúmeras possibilidades e proble- do etnógrafo era distinta da do antropólogo,


mas colocados pela etnogra�a à re�exão epistemo- no início do século XX elas se fundem em uma
lógica na antropologia fazem dela uma importante única personagem. O resultado foi o surgimen-
categoria de pensamento, por meio do qual se revela to do antropólogo social ou cultural como o
o sentido do ofício (“fazer”) dos antropólogos. As- conhecemos hoje. Um pro�ssional com forma-
sim, a etnogra�a pode ser vista como um gênero de ção acadêmica e que tem no trabalho de campo
performance cujo signi�cado ultrapassa as frontei- um método de pesquisa, a “etnogra�a”, sendo
ras das culturas nativas, alcançando o campo cul- a legitimidade desta conquistada por meio da
tural do antropólogo. Performance, neste estudo, observação-participante. Desde então, etnogra-
representa um modo de auto-re�exividade social �a tornou-se sinônimo de trabalho de campo,
em que o antropólogo, através da narrativa, busca embora estas sejam atividades distintas.
ampliar o “campo” da antropologia. Apontar alguns Os antropólogos são unânimes quanto à
momentos desse processo de re�exividade etnográ- inexistência de receitas para se fazer trabalho de
�ca é o objetivo deste texto, sendo a obra de Marcel campo. Mesmo que tenham sido produzidos ma-
Mauss (1872-1950), um exemplo privilegiado. nuais de etnogra�a, tais como o Guia Prático de
palavras-chave Etnogra�a. Performance. Antropologia, publicado em 1874, e o Manual de
Narrativa. Marcel Mauss. Etnogra�a, de Marcel Mauss, originalmente pu-
blicado em 1947, o trabalho de campo consiste
em uma experiência profundamente marcada
“Agora somos todos nativos...” pela singularidade sócio-histórica. Isto não signi-
Cli�ord Geertz �ca a ausência de rigor metodológico e analítico
do antropólogo, ao contrário, a etnogra�a garan-
O ofício de antropólogo te novas possibilidades teóricas ao “campo epis-
temológico” da disciplina, exatamente porque aí
Por muito tempo, a etnogra�a correspon- reside o que DaMatta (1978) denominou anthro-
deu à descrição dos costumes de um povo ou pological blues, ou seja, o lado extraordinário, me-
tratado sobre as gentes. Apesar desses costu- nos rotineiro, porém, mais humano do trabalho
mes, de gentes e povos representarem diferen- de campo. Por este motivo é possível considerar
tes formas de experiências culturais, em geral a etnogra�a como um gênero de performance, ou
diferentes da cultura do etnógrafo, nutria-se seja, uma forma de ação simbólica densa e pro-
a ilusão de que tais descrições eram isentas de fundamente rica em re�exões epistemológicas.
juízos de valor. O que muda com a institucio- Nas últimas décadas, a etnogra�a tornou-se
nalização da antropologia como ciência social “objeto” privilegiado de re�exões nos meios an-
nos séculos XIX/XX é que as descrições sobre tropológicos nacionais e internacionais1. Mesmo
as experiências humanas e culturais, de povos e
gentes diferentes, passam a considerar a pessoa 1. Para um balanço crítico sobre a produção etnográ�ca
do antropólogo. Se até esse momento a �gura contemporânea, ver Marcus e Cushman (2003).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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que esta seja uma questão predominante no con- moderna. Algumas das obras mais signi�cati-
texto norte-americano, como sugere Trajano Filho vas que marcaram a história da disciplina, ser-
(1988), o estatuto da etnogra�a sempre mereceu a vindo, muitas vezes, como paradigmas do saber
atenção dos antropólogos ao longo da história da antropológico, surgem neste momento. Além
disciplina no século XX. O entendimento da etno- de Argonautas do Pací�co Ocidental (1922), de
gra�a como uma categoria de pensamento não ex- Bronislaw Malinowski, alguns outros clássicos
clui sua dimensão performativa o que, em termos da etnogra�a modernista vieram a público: na
geertzianos, designa o “fazer” do antropólogo. Por Inglaterra, a versão resumida de �e Golden
este prisma, pensamento e ação, razão e afetivida- Bough (1922), de Sir James George Frazer, e �e
de não estão separados na experiência etnográ�ca. Andaman Islanders (1922), de Radcli�e-Brown;
Portanto, é como categoria de pensamento e ação na França, La Mentalité primitive (1922), de
performativa que a etnogra�a adquire relevância Lucien Lévy-Bruhl, e Essai sur le don (1925), de
sociológica e epistemológica na compreensão do Marcel Mauss; nos Estados Unidos, o trabalho
ofício do antropólogo e na construção do “campo” de Franz Boas Anthropology and Modern Life
da antropologia2. (1928) e Coming of Age in Samoa (1928), de
Margaret Mead. Isto para �carmos com alguns
Cultura e missão da antropologia em dos principais textos representativos de cada
tempo de guerra uma dessas antropologias nacionais3.
No período entre-guerras, o mundo ociden-
A década de 20 é um marco na história da tal viveria uma profunda crise de consciência,
antropologia social e cultural. Pode-se conside- que seria acompanhada da intensi�cação dos
rá-la como o “período clássico” da antropologia estudos sobre as sociedades primitivas, conside-
radas como “modos de vida autênticos”. Parte
2. A categoria “etnogra�a” tem sido utilizada com sen- da motivação em direção ao “mundo primiti-
tidos variados ao longo da história da antropologia vo” seria fornecida por uma certa concepção
moderna. Ora será vista como método qualitativo de-
antropológica de “campo”, visto então como
senvolvido no trabalho de campo, ora estará relacio-
nada à escrita do antropólogo – o texto monográ�co uma espécie de “laboratório natural” – logo,
propriamente dito – ora, ainda, a ênfase recaindo so- um lugar livre das “impurezas” da civilização
bre os discursos, as formas de diálogos, estabelecidos
entre nativos e antropólogos no encontro etnográ�co. 3. A antropologia produzida até o momento da Primei-
Aqui, a compreensão da etnogra�a como categoria de ra Guerra Mundial seria marcada pelas perspectivas
pensamento com qualidades performativas tem como do evolucionismo social e do difusionismo cultural.
pressuposto: 1) o fato de que a etnogra�a é “boa para Neste momento, predominava ainda a representação
pensar” a constituição do campo antropológico; 2) do “etnógrafo amador” (missionários, militares, via-
ampliar o entendimento da etnogra�a como proces- jantes etc.), quando não a do “antropólogo de gabi-
so epistemológico que vai do campo ao texto; 3) por nete”, sendo, nesse caso, o nome de Sir James George
�m, sem perder de vista todas as implicações teóricas Frazer o mais lembrado. Mas desde �ns do século
relacionadas às dimensões metodológica, ritualística, XIX, experiências como a famosa Expedição ao Es-
cognitiva nesse processo, a aproximação com a per- treito de Torres (Oceania) em 1888/89, que contou
formance visa destacar o caráter re�exivo da narrativa com a participação de eminentes antropólogos como
etnográ�ca como um “modelo de ação”, cuja fonte W. H. R. Rivers e C. G. Seligmann a convite de
de inspiração são as análises de Austin (1990) sobre Alfred C. Haddon, representaram signi�cativa con-
os atos performativos da linguagem, os modelos “de” tribuição para a institucionalização da antropologia
e “para” realidade na interpretação de Geertz (1978) social e cultural moderna. Para Grimshaw (2001),
e o “comportamento restaurado” de Schechner, ver esta expedição celebra o nascimento da Antropologia
Silva (2005). Moderna.

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- e, ao mesmo tempo, o local de uma experi- Alfred Kroeber, e o ensaio de Edward Sapir,
ência privilegiada para a iniciação do antropó- “Cultura autêntica e espúria”, publicado em
logo pro�ssional e do desenvolvimento teórico 1924, contribuindo para a renovação do sig-
da antropologia. ni�cado de cultura a ponto de, na avaliação
Sem perder de vista as especi�cidades das de Stocking Jr. (1983), este último represen-
antropologias nacionais, o quadro cultural dos tar uma espécie de “documento de fundação”
anos 20-40 exigiu dos antropólogos da época da sensibilidade etnográ�ca nos anos 20. Com
a necessidade de realização de uma dupla ta- efeito, uma das grandes contribuições de Sapir
refa. De um lado, a antropologia, ao imaginar para a antropologia cultural deste momento foi
o �m ou desaparecimento das culturas primi- a de deslocar o conceito de cultura do campo
tivas frente à marcha inelutável do processo factual das tradições, costumes etc., empurra-
civilizatório ocidental, colocava ao antropólo- do-o para o plano da cognição5.
go a “missão salvacionista” de resguardar es- Por outro lado, também a aproximação da
ses patrimônios culturais (e porque não dizer antropologia com certas experiências artísticas,
“naturais”) da humanidade, garantindo sua como o movimento surrealista, contribuiu para
sobrevivência mesmo que por meios �ccionais, aprofundar a crítica cultural dos antropólogos
como narrativa etnográ�ca. Por outro lado, aos males produzidos pela civilização, ainda que
essas mesmas sociedades ameaçadas de desapa- não tenha sido possível fugir completamente à
recimento exerceram grande fascínio no meio encenação do exótico. A Missão Dakar-Dji-
intelectual, artístico e antropológico, favore- bouti, realizada na África entre 1931-1933,
cendo assim o desenvolvimento de uma críti- liderada por Marcel Griaule, e da qual parti-
ca cultural na medida em que estas sociedades cipou Michel Leiris é, sem dúvida, o melhor
apresentavam alternativas culturais frente aos exemplo do que Cli�ord (1998) classi�cou de
problemas introduzidos pela marcha da civili- “surrealismo etnográ�co”: um movimento cul-
zação ocidental. Antropólogos como Ruth Be- tural que, além de produzir estudos profundos
nedict expressariam de maneira dramática este sobre sociedades africanas como os Dogons,
quadro de crítica cultural em termos da tensão também possibilitou a realização de uma gran-
indivíduo/sociedade característica da sensibi- de re�exão sobre a própria sociedade francesa
lidade modernista da época4. Assim, a impor- em geral, e a antropologia em particular. Logo
tância deste “fascínio pelo primitivo” reside no depois seria criado o Musée de l’Homme (1938),
fato de este ter provocado a necessidade de se um centro cultural cujo título condensa o espí-
repensar o signi�cado da cultura, abrindo a an- rito maussiano do fato social total. Mais do que
tropologia para o campo do relativismo cultu- um lugar de exposição dos artefatos culturais
ral e, por conseguinte, engendrando a crítica ao exóticos, o Museu do Homem era também o
etnocentrismo. centro de pesquisas e lugar de reunião da arte
A partir de então, o fazer etnográ�co e o com a antropologia. Na verdade, este se tornou
conceito de cultura ganham atenção especial
dos antropólogos, estimulando cada vez mais
5. Sapir pensa a cultura como um sistema de comu-
novas pesquisas e discussões teóricas. O resul- nicação no qual a linguagem classi�ca e organiza as
tado imediato foi a produção de textos exem- experiências sensíveis fazendo a mediação entre a cul-
plares, tais como O Superorgânico (1919), de tura e o pensamento cognitivo. A partir do conceito
de cultura se criticava o “estilo de vida” desenvolvido
pela civilização ocidental em sintonia com as críticas
4. A este respeito ver Handler (1990). de Freud, por exemplo.

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um dos principais símbolos da antropologia aureolada com os prestígios do exotismo” (1981:


moderna em tempos de guerra, cuja missão era 59), assumindo assim, muitas vezes, as feições de
a de salvaguardar a cultura do homem, amea- um mito7. Não se nega a importância do traba-
çada de extinção. lho de campo, seu caráter extraordinário e, sem
dúvida, a experiência exótica que ele encerra.
A instituição do campo Contudo, o signi�cado mítico da aventura mali-
nowskiana está longe de ser plenamente realizado
O antropólogo, ao deslocar-se de sua socieda- e ritualizado pela maioria dos antropólogos8.
de para uma outra distante, buscava apreender, Se, inicialmente, o trabalho de campo re-
sem a interferência de terceiros (viajantes, mis- presentou uma oportunidade de ultrapassar os
sionários, militares e outros), a realidade concreta limites teóricos e metodológicos impostos pela
ou, no dizer de Mauss, buscava “fazer como eles “antropologia de gabinete” - na medida em que
[os historiadores]: observar o que é dado. Ora, o abriu a possibilidade de se estudar in loco a vida,
dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o os costumes, os mitos, os ritos, as formas de estru-
melanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece, turação e organização das sociedades primitivas -
ou o direito em si” (1974: 181). Para estudar o com o tempo, este se tornou uma quase exigência
concreto (no sentido da realidade social), é preci- na produção de conhecimento e desenvolvimen-
so “estar lá”, é preciso ir ver de perto o “nativo”. to da própria disciplina, além de designar uma
Desde então, a viagem tornou-se algo mais do espécie de “rito de passagem” (em especial, de
que uma aventura ou experiência exótica; tor- iniciação) ao aspirante a antropólogo9.
nou-se uma estratégia fundamental no processo
de institucionalização do trabalho de campo e, 7. Também James Cli�ord chama atenção para o “mito”
portanto, de disciplinarização da antropologia6. do trabalho de campo: “A observação participante obri-
Sem dúvida o clássico Argonautas do Pací�co ga seus praticantes a experimentar, tanto em termos
Ocidental, de Malinowski, constitui o modelo físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução.
Ela requer um árduo aprendizado lingüístico, algum
exemplar do texto etnográ�co. Desde sua pu-
grau de envolvimento direto e conversação e, freqüen-
blicação tem servido de paradigma metodoló- temente, um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e cul-
gico do trabalho de campo, não sendo exagero turais. É claro que há um mito do trabalho de campo.
dizer que a experiência etnográ�ca do trabalho A experiência real, cercada como é pelas contingências,
de campo tornou-se, desde então, sinônimo raramente sobrevive a esse ideal; mas como meio de
de “observação participante” e, via de regra, os produzir conhecimento a partir de um intenso envol-
vimento intersubjetivo, a prática da etnogra�a mantém
textos etnográ�cos posteriores passaram a se-
um certo status exemplar. Além disso, se o trabalho de
guir o seu “modelo realista”. campo foi durante algum tempo identi�cado a uma ci-
É bem verdade que o trabalho de campo é ência totalizante, a ‘Antropologia’, tais associações não
visto, salienta Copans, como “uma experiência são necessariamente permanentes. Os atuais estilos de
descrição cultural são historicamente limitados e estão
vivendo importantes metamorfoses” (1998: 20).
6. Para uma análise do papel das viagens na instituição 8. Para Kuper (1978) a experiência de Malinowski pode
do campo antropológico ver Cli�ord (1997). Apesar ser vista como “mito de fundação”.
de Lévi-Strauss ter anunciado o “�m” das viagens, 9. O trabalho de campo pode ser visto como uma espé-
sem dúvida a “viagem etnográ�ca” do antropólogo cie de instituição, no sentido atribuído por Douglas
pro�ssional consiste num momento especial do tra- (1998): trata-se de uma convenção que, como tal, se
balho de campo, haja vista sua qualidade performa- autopolicia, de�ne regras de comportamento, estabe-
tiva. A propósito, este é exatamente o caso de Tristes lece sistemas de pensamento e se legitima em torno
Trópicos. de algum princípio fundante.

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Geralmente durante o trabalho de campo os mas tão somente que o trabalho de campo é o
antropólogos são temporariamente retirados do epítome do que fazem os antropólogos quando
convívio de seus familiares e amigos para vive- escrevem.
rem uma outra experiência social extraordinária,
tal como acontece a muitos noviços nas socie- A partir de tais observações, pode-se a�r-
dades primitivas. O resultado é, após o antro- mar, então, que a modelagem da persona do
pólogo ter experimentado situações limites de antropólogo, em grande medida, está relacio-
convívio social com o “outro”, uma mudança de nada com sua experiência de campo. “É no
sua posição social, acompanhada de uma pro- campo que o antropólogo forma sua identi-
funda operação cognitiva. Ao �nal do processo dade», sentencia Kilani (1994). Por vezes a
é a própria percepção, os sentidos, os valores, construção da identidade social do “nativo” e
en�m, o “ponto de vista” do antropólogo que do “antropólogo” adquire contornos de uma
se modi�ca. Pode-se vislumbrar um verdadeiro relação “totêmica” em que os nomes Malino-
processo de “educação dos sentidos” cujo resul- wski, Evans-Pritchard, Firth e Turner estão
tado é a formação de uma re�nada sensibilida- intimamente associados às culturas Trobriand,
de antropológica. As considerações de Roberto Nuer, Tikopia e Ndembu, respectivamente. De
Cardoso de Oliveira (2000) sobre o processo acordo com Kilani (1994:49):
de domesticação do olhar, do ouvir e do escre-
ver - espécies de “faculdades do entendimento” A monogra�a constrói a imagem uni�cada de
sociocultural inerentes ao “campo” das ciências um antropólogo em simbiose com uma cultura
sociais e humanas - no ofício do etnógrafo, dão “das gentes”. As “gentes” são elas mesmas con�-
bem o tom do ethos antropológico10. guradas nos limites do texto etnográ�co, assim
Na verdade, não é somente a identidade do como a diversidade das formas sociais e cultu-
“nativo” que está sendo construída no trabalho rais é estabilizada através de uma representação
de campo, mas também a persona do antropó- “padrão”. Em suma, a monogra�a surge nesse
logo. Parafraseando Condominas, Pulman diz sentido como um tipo de ícone. Ela conjuga,
que “o momento mais importante de nossa vida segundo os termos de Atikinson, um “autor” e
pro�ssional corresponde ao tempo de trabalho um “campo” (uma cultura, uma sociedade) de
no campo: ao mesmo tempo nosso laboratório uma representação concreta: o “campo” como
e nosso rito de passagem, o campo transforma o “autor” são com efeito “reconhecidos” – pode
cada um de nós em um verdadeiro antropólo- se dizer então – no e através do mesmo processo
go” (1988: 22). Essa também é a conclusão de de leitura da monogra�a. É por meio das mo-
Boon (1993: 24), para quem nogra�as, dos homens e das mulheres daquelas
“culturas”, dos “campos”, que os autores são
A identidade contemporânea do antropólogo identi�cados e classi�cados. É este um tipo de
pro�ssional baseia-se, em minha opinião cor- classi�cação “totêmica” (...) a base textual que
retamente, no trabalho de campo ideal e na nos permite identi�car emblematicamente
prática. Isto não quer dizer que a história da Evans-Pritchard aos Nuers, Margaret Mead aos
disciplina comece com o trabalho de campo Samoanos, Marcel Griaule aos Dogons... e in-
nem que os antropólogos tenham que fazê-lo, versamente.

10. A noção de ethos, na de�nição de Bateson (1990), Por outro lado, não só as experiências vividas
remete a um sistema cultural de normalização e orga- pelo antropólogo em campo são fundamentais
nização dos instintos e emoções dos indivíduos.

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para sua formação, mas também o aprendiza- nos anos 40; Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss
do de certos valores da cultura cientí�ca. O nos anos 50; e �e Teachings of Don Juan, de
universo cientí�co comporta um conjunto de Carlos Castañeda nos anos 60. Antes de repre-
regras, valores e procedimentos éticos aos quais sentarem “desvios” frente às convenções disci-
o pesquisador deve, até certo ponto, submeter- plinares estes trabalhos são indicadores do que
se. Este processo exige que o iniciado partilhe alguns antropólogos chamam de “experiência
de um sistema de crenças como, por exemplo, indisciplinada” da etnogra�a12. Tais trabalhos
racionalidade, ruptura epistemológica, objeti- abriram espaço para que a etnogra�a deixasse
vidade etc., que devem ser por ele aprendidas e de ser vista única e exclusivamente como estra-
experimentadas11. tégia metodológica do trabalho de campo. Ou-
De fato, tanto a compreensão e interpre- tras estratégias metodológicas desenvolvidas na
tação de outras culturas, quanto o desenvolvi- construção textual do objeto antropológico,
mento teórico e metodológico da antropologia então, passaram a ser teorizadas13.
deve muito às experiências do trabalho de cam- Isto �ca claro quando se têm em conside-
po. Apesar das recentes críticas epistemológicas ração as observações de um antropólogo como
à etnogra�a, mesmo as posições mais radicais Geertz acerca da re�exividade epistemológica
não supõem sua eliminação no campo da an- inerente ao trabalho de campo14. Em prefácio
tropologia, mas reconhecem a necessidade de datado de 1968, no recém editado Islam Obser-
se repensar e re�etir sobre seu ideal “cienti�cis- ved, Geertz (2004:12), destacava a importância
ta”. Com isso, muito das questões que envol- do trabalho de campo no processo de interpre-
vem a experiência etnográ�ca do antropólogo tação de uma cultura, diz ele:
moderno são colocadas sob suspeita.
O trabalho de um antropólogo, a despeito do
A favor do método tema declarado, tende a ser uma expressão de
sua experiência de pesquisa, ou, mais precisa-
A canonização da etnogra�a, a partir do mente, do que a experiência de pesquisa faz a
trabalho de campo de Malinowski entre os ele. Isso certamente vale no meu caso. O traba-
Trobriandeses (Pací�co Ocidental), não im- lho de campo tem sido para mim intelectual-
pediu que outras modalidades de experiências mente (mas não só intelectualmente) formativo,
etnográ�cas fossem elaboradas ou que fossem fonte não só de hipóteses isoladas, mas de pa-
sugeridas por outras interpretações em anos
recentes (pós-60). Não deixaram de provocar
12. A idéia de “experiência indisciplinada” é, na verdade,
certo incômodo na comunidade antropológica, o reconhecimento daquilo que Fayereband denun-
por exemplo: Naven, de Gregory Bateson, nos ciava em Contra o método (1989). Por outro lado,
anos 30; �e City of Women, de Ruth Landes, esta idéia não contradiz o seu processo histórico de
disciplinarização conforme sugere a interpretação de
Oliveira (1988).
11. Complementando a nota anterior, o conceito de ha- 13. Mais do que uma questão de método, etnogra�a
bitus, tal qual utilizado por Bourdieu (1983) em sua e trabalho de campo são experiências de natureza
sociologia da ciência, representa a outra metade desse epistemológica e ontológica, como o sugerem al-
processo de “educação dos sentidos”. Assim, amplian- guns �lósofos e antropólogos, dentre eles: Merleau-
do o sentido dessa sensibilidade etnográ�ca, podemos Ponty (1989), Kilani (1994), Casal (1996), Cli�ord
ver em todo este processo uma espécie de “educação (1998).
sentimental”, na qual o principal aprendiz é antropó- 14. Essas observações relativas a Geertz me foram sugeri-
logo, sugere Geertz (1978). das pelo parecerista do artigo, a quem agradeço.

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drões inteiros de interpretação social e cultural. sentar a fraqueza da antropologia, portanto, a


O conjunto do que eu vi (ou penso ter visto) na etnogra�a dramatiza, com especial ênfase, a vi-
história, eu o vi (ou penso ter visto) antes nos es- são weberiana da eterna juventude das ciências
treitos limites de cidades e aldeias camponesas. sociais.

Sem perder de vista os padrões antropo- É preciso considerar, no entanto, que o


lógicos de interpretação social e cultural, pas- método etnográ�co do trabalho de campo não
sados exatos vinte anos, Geertz (1997:14) aponta somente para o estilo literário, o aspecto
trouxe a público em 1988, Works and Lives artesanal e microscópico ou o caráter temporá-
– �e Anthropologist as Autor, trabalho no qual rio das explicações antropológicas, fazendo-nos
o antropólogo chama a atenção para a e�cá- ver a “eterna juventude” da antropologia. Na
cia simbólica da retórica etnográ�ca. É visível, verdade, trata-se de uma prática incorporada
neste caso, a mudança de foco do antropólogo, ao fazer da antropologia que denota seu traço
do campo ao texto: distintivo e especí�co frente às outras ciências
sociais. O trabalho de campo não é exclusivi-
A habilidade dos antropólogos em nos fazer to- dade da antropologia mas é uma de suas tarefas
mar a sério o que dizem tem menos a ver com seu básicas, senão a principal. Pode-se dizer que a
aspecto factual ou seu ar de elegância conceptu- experiência etnográ�ca constitui-se no traço
al, que com sua capacidade para nos convencer identitário da disciplina.
de que o que dizem é o resultado de termos po- Os antropólogos concordam, hoje, com
dido penetrar (ou, se prefere, de termos sido pe- o caráter experimental da etnogra�a. Nessa
netrados por) outra forma de vida, de havermos, perspectiva torna-se inegável a contribuição da
de um outro modo, realmente ter “estado lá”. E etnogra�a para o próprio desenvolvimento epis-
na persuasão de que tendo este milagre invisível temológico da disciplina ao se relativizar rígidos
ocorrido, houve intervenção da escrita. padrões e modelos teóricos e metodológicos. O
método do trabalho de campo em antropologia
Ou seja, as monogra�as antropológicas re- é, nesse caso, exemplar. Nele, o encontro etno-
velam tanto a “visão de mundo” do autor (o seu grá�co do sujeito e do objeto do conhecimento
estilo “literário”) quanto à visão dos nativos que transpõe os limites do trabalho de campo para o
este estuda. Mas, apesar das críticas ao caráter próprio campo da antropologia, exigindo assim
“autoral” e “�ccional” dos textos etnográ�cos, uma dupla hermenêutica enquanto exercício
a importância do trabalho de campo pode ser profundo de auto-re�exividade15.
corroborada pelo que nos diz Mariza Peirano. A visão realista da etnogra�a como estraté-
Após argumentar A favor da etnogra�a, conclui gia metodológica de trabalho de campo cede
a antropóloga (1995: 57):
15. Segundo Boaventura Santos, com a crise dos para-
Novas análises e reanálises virão comprovar a fe- digmas da ciência moderna impôs-se a necessidade
de uma re�exão hermenêutica que procura “romper
cundidade teórica do trabalho etnográ�co. Elas
o círculo vicioso do objeto-sujeito-objeto, ampliando
certamente irão reforçar a convicção central dos o campo da compreensão, da comensurabilidade e,
antropólogos: a de que a prática etnográ�ca portanto, da intersubjetividade e, por essa via, vai ga-
– artesanal, microscópica e detalhista – traduz, nhando para o diálogo eu/nós-tu/vós o que agora não
como poucas outras, o reconhecimento do as- é mais que uma relação mecânica eu/nós-eles/coisas”
pecto temporal das explicações. Longe de repre- (1989: 16). A tradicional relação epistemológica “eu-
coisa” desloca-se para relação hermenêutica “eu-tu”.

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lugar a uma visão hermenêutica na qual o re- culturalmente, isto é, se o etnógrafo �xa o dis-
conhecimento da “experiência indisciplinada” curso social no modo de uma escrita narrativa
do ofício do antropólogo e as “retóricas” do como “registro de consultas sobre o que o ho-
texto antropológico colocam a etnogra�a no mem falou” (1978: 41), então a etnogra�a é,
campo das re�exões epistemológicas. Quando ela mesma, uma forma de inscrição do discurso
a etnogra�a passa a integrar o campo do co- antropológico moderno, pois é através da ex-
nhecimento epistemológico, transformando-se periência e da escrita etnográ�ca que a ciência
em uma estimulante categoria de pensamento antropológica se modela cultural e historica-
sobre a experiência e a escrita antropológica, mente. Assim, etnogra�a é também, além do
abre-se espaço para falar em “etnogra�a do registro textual de uma fala nativa, um modo
pensamento antropológico”. Em outras pala- cultural de escrita antropológica.
vras, sem perder de vista que “a construção do Com efeito, o que a escrita etnográ�ca �xa
texto antropológico começa no campo” (Ki- não é somente o dito no �uxo do discurso so-
lani 1994: 46), a etnogra�a deixa de ser vista cial, “o que o homem falou”, mas, sobretudo, um
somente como uma estratégia metodológica e modo de pensamento social etnográ�co. As et-
passa a signi�car um empreendimento textual nogra�as, ao representarem sistemas simbólicos
situado em contextos históricos e culturais es- de crenças, ritos, mitos e religiões, não apenas
pecí�cos. descrevem ou falam sobre o modo de pensamen-
to dos “nativos”. A maneira como estes sistemas
Performance etnográ�ca são descritos revelam, por sua vez, o modo como
este pensamento foi organizado textual e nar-
Para alguns antropólogos a escrita etnográ�ca rativamente. A escrita etnográ�ca, portanto, ao
dramatiza uma estratégia especí�ca de autorida- expor a cultura do “outro”, informa-nos também
de que se revela, basicamente, em certos modos sobre a estrutura e a organização narrativa do tex-
de representação. Sem entrar na especi�cidade to, revelando assim parte da cultura do próprio
de cada um deles, vale registrar o fato de que antropólogo. Em última instância, quem fala é o
“os processos experiencial, interpretativo, dia- antropólogo, embora sua fala não seja a única16.
lógico e polifônico são encontrados, de forma Pode-se a�rmar então que etnogra�as são
discordante, em cada etnogra�a, mas a apresen- narrativas, expressões de certo tipo de experiência
tação coerente pressupõe um modo controlador
de autoridade”, como dirá o historiador James
16. Relativizando as teorias que vêem na escrita um
Cli�ord (1998: 58). Vimos que também Geertz
modo de domesticação do pensamento ou limitação
põe em destaque a importância da experiência da experiência compartilhada pela oralidade, a exem-
e da escrita na de�nição da própria etnogra�a plo do poder da fala nos rituais mágicos, também a
e, portanto, dessas estratégias de construção da escrita promove uma operação simbólica de ampliar
autoridade etnográ�ca. A�nal, a etnogra�a está, o mundo das experiências e do pensamento social.
inextricavelmente, presa ao campo da escrita. Se, por um lado, a escrita individualiza o mundo da
experiência, por outro lado universaliza quando lhes
Na verdade, trata-se de uma escrita que guar-
possibilita viajarem por meio dos textos no tempo
da a memória da experiência etnográ�ca, agora e no espaço. Haja vista o quanto nossas sociedades
traduzida para uma forma textual. trabalham com a idéia do “mundo fechado” dos anal-
Se, como pensa Geertz, o etnógrafo “ins- fabetos. Daí, a crítica dirigida à antropologia inter-
creve” o discurso social, anotando-o, objeti- pretativa de Geertz, reside no fato de que nesta, mais
�cando-o e autorizando-o a existir textual e do que a fala do nativo, o que se ouve é a voz de
Geertz “por sobre os ombros dos balineses”.

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e, portanto, formas de ação e representação que desenvolvimento de uma teoria da performance


podem ser vistas como “performances” na medi- na chamada antropologia pós-moderna. Na ver-
da em que revelam um processo de re�exividade dade, esse percurso não nos leva a uma situação
hermenêutica sobre as maneiras como os homens estável e de�nida sobre a relação antropologia/
interpretam, sentem, experimentam e vivem suas performance. Não signi�ca isto que as etnogra-
culturas, sobretudo quando a cultura em questão �as produzidas antes dos anos 70 não sejam nar-
é a do próprio antropólogo17. rativas performáticas. O fato é que a chamada
As narrativas etnográ�cas expressam muitas pós-modernidade tornou a relação etnogra�a/
vezes con�itos de experiências entre emoção e performance um problema visível.
razão, não totalmente domesticados pelas con- Uma antropologia da performance nos pos-
venções disciplinares. Nem por isso estas expe- sibilita assim uma dupla interpretação: de um
riências deixam de ser guiadas por “estruturas lado, com a descrição de uma performance cul-
narrativas”. Como propõe Bruner, “as estruturas tural qualquer como espetáculo, evento ou ritu-
narrativas servem como guias interpretativos; al, e, do outro lado, com o estudo performativo
elas nos dizem o que constitui dados, de�ne os de toda e qualquer etnogra�a – na medida em
tópicos de estudo, e ressalta o sentido da cons- que as etnogra�as, envolvendo as experiências
trução na situação de campo quando transforma do campo ao texto, dramatizam uma ação re-
o estranho em familiar” (1986: 147). No entan- �exiva. Embora a etnogra�a da performance e
to, estas estruturas narrativas devem ser vistas a performance da etnogra�a sejam perspectivas
mais como “estruturas performativas”, nos ter- distintas, uma mesma obra permite que se arti-
mos de Sahlins (1990), do que como “estruturas cule as duas. Na verdade, a etnogra�a não fala
prescritivas”, nos padrões radcli�e-brownianos. somente de uma única cultura18.
Com isso abre-se a possibilidade de pensar a Enquanto um tipo de experiência e narra-
narrativa etnográ�ca não só em termos de uma tiva, a etnogra�a é auto-referencial, pois repre-
etnogra�a da performance, mas também de uma senta uma forma de ordenar o mundo tanto
performance da etnogra�a. do “eu” quanto do “outro”. Ao integrarem
Sabe-se que os anos 70 marcam o encontro narrativas etnográ�cas, os conceitos antropoló-
da antropologia com a arte da performance no gicos de cultura, mito, campo etc., organizam
campo das ciências sociais. Mas é a luz dos des- de maneira coerente a cultura e dão signi�cado
dobramentos sociológicos da fenomenologia às experiências humanas. Nesse sentido, �ca-se
de Schutz, da etnometodologia de Gar�nkel,
da dramaturgia social de Go�man assim como
18. Basicamente, existem duas linhas de investigações
dos movimentos artísticos modernos - como o antropológicas sobre a performance: de um lado, a
Surrealismo, o Dadaísmo, o Futurismo e demais linha de investigação da performance na linguagem,
manifestações contraculturais na música, na cuja base encontra-se nos trabalhos de Wittgenstein,
dança, no teatro e os movimentos da living art, Austin e Searle, culminando nas contribuições antro-
body art e outros - que se pode compreender o pológicas de Bauman e outros sobre a “etnogra�a da
fala”. Do outro lado, a “antropologia da performan-
ce” de Victor W. Turner, que se converte em um dos
17. É como gênero discursivo por meio do qual se trocam melhores exemplos de performance cultural da antro-
experiências, se mesclam sentidos e tradições diferen- pologia pós-moderna, a qual Langdon (1999) bati-
tes (oral/escrito; nativo/antropólogo) à maneira de za de “enfoque da performance como drama social”.
uma atividade artesanal que a narrativa, no sentido Nesse caso, o teatro tem servido de fonte primordial
benjaminiano, se mostra referencial neste texto. Ver de inspiração à antropologia da performance, ver Silva
Benjamin (1994). (2005).

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muito próximo da idéia de “invenção da cultu- re�exiva na qual, por meio da escrita transfor-
ra” de Roy Wagner (1981). Num movimento mada em narrativa, personagens são acionados,
dialético de controle (às vezes “inconsciente”) verdades relativizadas, sentimentos ritualizados,
do campo etnográ�co e da invenção cultural, en�m, culturas são inventadas. Em suma, pode-
os antropólogos tornam inteligíveis as práticas se dizer que a etnogra�a constitui uma importan-
e experiências dos “outros”, na medida em que te categoria de pensamento na antropologia20.
objeti�cam “nativos” e “culturas”. Mas, ao �m
desse processo, segundo Wagner, o que de fato A magia de Mauss
ocorre é que “o que o pesquisador de campo
inventa, portanto, é seu próprio entendimen- A obra de Marcel Mauss (1872-1950) apa-
to; as analogias criadas por ele são extensões de rece como um exemplo oportuno e fecundo
suas próprias noções e as referências de cultura para se pensar o alargamento da noção de et-
são transformadas pelas suas experiências das nogra�a na antropologia moderna. Neste arti-
situações de campo” (1981: 12). Inventando go será possível oferecer apenas algumas notas
“outras” culturas, os antropólogos constroem introdutórias sobre, o que se poderia dizer, sua
para si mesmos o sentido de cultura, a�nal, “performance etnográ�ca”.
Inicialmente, pode-se perguntar qual a ra-
o estudo da cultura é, de fato, nossa cultura; zão de se tomar como exemplo para a re�exão
operada através de nossas formas, criada em nos- desenvolvida nesse texto um antropólogo que
sos termos, seguindo nossas palavras e conceitos nunca realizou “trabalho de campo” no sen-
para seus signi�cados, e nos recriando através de tido estrito do termo. É no mínimo curioso
nossos esforços (1981: 16). Mauss ter proposto um Manual de etnogra�a
(1993), trabalho este interrompido pela eclo-
De resto, pode-se dizer que as etnogra�as são da guerra nos anos 40, mas publicado em
são “invenções”, “�cções” (no sentido de �ctio, 1947 pelo esforço de um de seus alunos. Esta
“construções”) modeladas por certo tipo de es- obra constitui a versão estenografada das suas
crita e de experiência, autorizando-nos assim a “instruções de etnogra�a descritiva”, desenvol-
pensar em “estilos de antropologia” ou modos vida no Institute d’Ethnologie da Universidade
de representação etnográ�ca19. de Paris, entre os anos de 1926-1939. Con-
Os textos etnográ�cos expressam valores, tudo, o fato de Mauss não ter “nunca pratica-
idéias, sensibilidades, en�m, “estruturas de signi- do a observação etnográ�ca”, adverte Denise
�cados e pensamentos”, às vezes muito mais rela- Paulme em prefácio ao Manual, não signi�ca
cionados aos antropólogos do que aos nativos em que não tenha produzido obra de etnogra�a. A
cena. Conclui-se que a etnogra�a não se restringe exemplo do que dizem algumas leituras sobre
a uma estratégia de trabalho de campo com �ns Lévi-Strauss, às quais vêem na sua experiência
à descrição das culturas nativas em termos de nova-yorkina seu verdadeiro trabalho de cam-
performances textuais. Esta também dramatiza po, pode-se dizer que também a única e ver-
muito das experiências dos antropólogos. A et- dadeira etnogra�a de Mauss foi a sua própria
nogra�a, então, performatiza um modo de ação
20. Concordo com Gonçalves (2004) em relação a noção
19. No Brasil, o antropólogo Roberto Cardoso de Olivei- de patrimônio, que também a etnogra�a, pensada
ra (1995) tem se destacado na análise dos estilos de como categoria de pensamento, designa um modo de
antropologia produzidos no centro e na periferia do ação re�exiva e de performance que deve ser vivido e
sistema mundial. sentido no cotidiano.

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sociedade e, em particular, sobre o “campo” da Embora ausente da lista de Geertz, o nome


antropologia21. de Mauss pode ser incorporado ao dos “fun-
Não por acaso os primeiros escritos de Mauss dadores de discursividade” na antropologia
têm como preocupação principal a construção moderna, isto é, aos “estudiosos que ao mesmo
do “campo da sociologia”, numa época em que tempo tem estabelecido suas obras com certa
a fronteira entre esta e a antropologia ainda não determinação e construído teatros de lingua-
estava bem de�nida. Não se trata somente de gem a partir dos quais toda uma série de outros
uma herança do tio, Durkheim, mas sim um atuam, de maneira mais ou menos convin-
projeto de etnologia (no sentido de uma antro- cente, e, sem dúvida, seguirão atuando ainda
pologia comparada e, metodologicamente, pra- por um longo período de tempo” (1997: 31).
ticada por Mauss em sua obra), voltada para a Numa linha de interpretação radical e provoca-
superação da distância entre o primitivo e o ci- tiva, Alain Caillé vê no “Ensaio sobre a dádiva”:
vilizado, como sugere a leitura de Merleau-Pon- “as linhas mestras não apenas de um paradigma
ty (1989). Advém desta proposta a ênfase nos sociológico entre outros, mas do único para-
estudos sobre representações coletivas e sistemas digma sociológico que se possa conceber e de-
de classi�cações desenvolvidos desde os primei- fender” (1998: 11). Mesmo que Caillé declare
ros trabalhos, apontando para a complexidade ser o espírito de Mauss tomado por um ver-
e so�sticação do pensamento simbólico nas so- dadeiro “horror à sistematização”, no conjunto
ciedades primitivas. Estes estudos revelam tam- a obra de Mauss parece formar um “sistema”
bém outra preocupação fundamental de Mauss: bastante coerente e integrado, embora goze de
a de identi�car e analisar algumas das principais um caráter aparentemente anárquico23.
categorias do pensamento humano22. A compreensão da obra de Mauss não está
separada de sua trajetória biográ�ca, o que,
21. Mauss faz exatamente aquilo que os etnógrafos fazem na interpretação de Fournier (1993), signi�ca
quando vão a campo, transformando o exótico em analisar como o sábio e o militante socialista
familiar. Inversamente, ele estranha e transforma o
participam do texto. A exemplo do próprio
familiar em exótico, em algo que merece ser investi-
gado e conhecido. A julgar pela observação de um de “Ensaio”, de 1925, Mauss fez de sua vida uma
seus alunos, Dumont (1985), são os homens concretos
(como o “francês médio” ou o “melanésio desta ou da- os estudos sobre “A expressão obrigatória dos senti-
quela ilha”) em sua própria sociedade, com suas ações mentos” (1921); a “Mentalidade primitiva” (1923);
e representações em torno do corpo, da religião, da ali- “As relações reais e práticas entre a psicologia e a so-
mentação etc., que servem de parâmetro para Mauss ciologia” (1924). E, em 25, surge o clássico “Ensaio
desenvolver suas “instruções de etnogra�a descritiva”. sobre a Dádiva”. Nesta década surgem ainda outros
22. Um sobrevôo na obra de Mauss nos revela sua preo- trabalhos na linha das representações coletivas sobre
cupação com as representações coletivas. Já em 1899, a morte (1926) e sobre o “gracejo” (1926), período
juntamente com Henri Hubert, publica o “Ensaio so- que também inicia suas “Instruções de etnogra�a des-
bre a natureza e função do sacrifício”. Em 1901/1902 critiva”, interrompidas pela Segunda Guerra. Antes,
vêm à tona os estudos sobre o campo da sociologia porém, surgem os últimos trabalhos que se tornariam
e “O ofício do etnógrafo”. Logo em seguida, Mauss referências na antropologia: “As técnicas corporais”
dá início à série de estudos sobre representações co- (1934) e “Uma categoria do espírito humano – a no-
letivas com o “Esboço de uma teoria geral da magia” ção de pessoa, a noção de ‘Eu’” (1938).
(1902/1903). No mesmo ano, aparece “Algumas For- 23. Fournier (s/d) declara que a obra de Mauss é multi-
mas Primitivas de Classi�cação”, escrito em parceria forme, difícil e cheia de ambigüidades. Além do já
com Durkheim e, no seguinte, é a vez do “Ensaio citado trabalho de Fournier, estou tomando como
sobre as variações sazoneiras das sociedades esqui- referência: Lévi-Strauss (1974); Oliveira (1979); Du-
mós”. Dando um salto para os anos 20, aparecem mont (1985); Founier (1993; 2003).

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forma de dádiva sociológica e política, sugere o alunos, mas, sobretudo, em decorrência da po-
biógrafo canadense. Nessa perspectiva, as raízes sição que ocupou no campo da antropologia.
do “Ensaio sobre a dádiva” já se encontram no Como apontou acerca dos agentes da magia
“Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”, (mágicos, feiticeiros, xamãs), cuja e�cácia sim-
publicado em 1899 em colaboração com Hen- bólica deriva dos sistemas de crenças e das posi-
ri Hubert. Complementar a essa interpretação, ções liminares que estes ocupam na sociedade,
gostaria de propor uma outra fonte de leitura, a Mauss também parecia assumir uma posição
partir do “Esboço de uma teoria geral da magia”, até certo ponto liminar frente à dominante so-
publicado em 1903, também em colaboração ciologia de Durkheim quanto ao amplo, aberto
com Henri Hubert, no qual o destaque vai para e ainda inde�nido campo da antropologia25.
a dimensão ritual do “fazer”. Tal ênfase leva-nos É dentro deste quadro que podemos enten-
a a�rmar que a raiz do Manual de etnogra�a en- der a performance etnográ�ca de Mauss à luz da
contra-se na teoria da magia de 1903/0424. sua teoria da magia. A compreensão da magia
Seguindo a sugestão de Giumbelli (1997) e como sistema ritual de crenças (representações)
estendendo-a ao conjunto da obra de Mauss, e práticas (ações) simbólicas, cuja e�cácia con-
“Esboço a uma teoria geral da magia” aparece siste na produção de sentido, está na base da
como um texto seminal a partir do qual a obra própria antropologia de Mauss. O que interessa
de Mauss vai sendo construída. É como se ele a Mauss é, antes, o ato de fazer do que o feito,
colocasse em prática a idéia que ajudava escla- o ato de dizer do que o dito, o ato de rezar do
recer, realizando assim, ao longo de sua obra, que a reza, o ato de curar do que a cura. Para ele,
trabalho semelhante ao de um mago. Como os vale lembrar, importa observar o que é dado e
xamãs nas sociedades primitivas que fornecem o que é dado é o que o romano, o ateniense, os
um mito, uma linguagem a partir da qual os franceses fazem quando fazem suas rezas, suas
doentes, os iniciados, podem organizar suas an- leis etc. Também o mágico é alguém que se faz,
siedades, suas dores, Mauss era visto por mui- pois “não há mágico honorário e inativo. Para
tos de seus alunos como uma espécie de “guru” ser mágico, é necessário fazer magia...” (1974:
(sábio espiritual e intelectual), alguém que lhes
fornecia (no sentido da dádiva) um “sistema de 25. Do ponto de vista da “sociologia da biogra�a” todo
referência” por meio do qual podiam se orien- intelectual típico de sua época concentra as caracte-
tar. Segundo Dumont, “graças a Mauss, tudo, rísticas de seu grupo, diz Fournier: “Marcel Mauss
mesmo o gesto mais insigni�cante, adquiria abrange o que poderíamos denominar uma biogra-
�a coletiva, pois inclui tanto uma apresentação dos
um sentido para nós” (1985: 181). Talvez isto
membros da equipe de L’année sociologique, como
ajude a explicar um pouco seu poder de sedu- um estudo das instituições de ensino superior Esco-
ção sobre os alunos. Mas a razão principal pela la Prática de Estudos Superiores, Collège de France e
qual o “carisma” de Mauss se mostra e�caz não ainda uma análise do desenvolvimento de disciplinas
reside somente na personalidade extraordinária cientí�cas (história das religiões, antropologia, socio-
do “humanista” que “sabia tudo”, diziam seus logia)” (2003: 3-4). Mas toda biogra�a traz implícito
o risco da hagiogra�a: a canonização do Mauss pio-
neiro e/ou pai fundador. Ainda, segundo Fournier
24. Uma leitura de Mauss, de trás para frente, começando (1993), Mauss ocupou durante muito tempo uma
pelos últimos trabalhos até atingir os estudos iniciais posição marginal no sistema universitário francês, o
sobre magia, revela não só uma continuidade, mas que o colocou ao lado da pesquisa e não do ensino.
também outras dimensões até então domesticadas Este fato, além de ter relevância sociológica para a
pela visão tradicional e holista, no caso, o individua- compreensão da obra de Mauss, parece reforçar a di-
lismo e a teoria da ação social. mensão performativa de sua etnologia.

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116), diz o próprio Mauss. Ele entende a magia Se em antropologia social, diz Geertz, “o
como uma “idéia prática” na qual as ações e as que os praticantes fazem é etnogra�a” (1978:
representações, a performance ritual e o sistema 15), então Mauss não foge à regra. Como nas
de crenças, não estão separados, mas, ao contrá- performances verbais dos rituais mágicos, a es-
rio, formam um único processo simbólico tra- crita de Mauss não só fala da magia, mas põe
duzido em termos de “arte de fazer”. A magia é em prática um sistema mágico ao “fazer” socio-
portadora de uma signi�cativa qualidade perfor- logia ou antropologia. As análises de Dumont
mativa que parece inscrita nos rituais da prece, (1985) e Oliveira (1979) convergem para este
das trocas simbólicas, do “fazer” etnogra�a26. ponto: o primeiro destaca o fato de a Sociolo-
Quando ultrapassa o campo estabelecido da gia e a Antropologia na França terem atingido
sociologia das representações coletivas, Mauss seu “estágio experimental” com Mauss; o se-
parece interessado em projetar uma teoria da gundo, a�rma que “o fazer Sociologia – me-
ação social. Sem romper com as representações lhor diríamos, Antropologia – parece-me ser o
sociais, Mauss pensa as “categorias do enten- seu melhor ensinamento” (1979: 23). Mas, en-
dimento humano” como idéias de natureza gana-se quem vê no Manual de etnogra�a uma
prática, construídas historicamente. O estudo “receita para se fazer antropologia”. Resultado
sobre “A noção de pessoa, a noção de ‘Eu’”, de de um processo que se desenvolve a partir de
1938, é, sem dúvida, o melhor exemplo disto. suas preocupações com o campo sociológico,
Procurando superar o etnocentrismo dos soci- o Manual funciona como uma espécie de “car-
ólogos europeus, Mauss dá atenção especial às togra�a do pensamento” ou “mapa cognitivo”
categorias (teorias) nativas. Para ele, as catego- sobre o “estado da arte” da antropologia à épo-
rias fazem a mediação entre o pensamento e a ca de Mauss. Na verdade, o Manual não é um
realidade, aproximando-se da proposta de uma manual de etnogra�a, trata-se antes de uma
antropologia da experiência27. Daí a importân- (meta)etnogra�a do campo da antropologia,
cia que o Manual de etnogra�a adquire na obra ainda em desenvolvimento. Mauss é, talvez, o
de Mauss. Mesmo que na visão de Dumont as melhor exemplo de que a etnogra�a começa
instruções apresentem um caráter tão geral que e termina em casa e de que o “campo”, como
assumem um ar de lugar-comum, tais instru- pensa Cli�ord, parafraseando Certeau, “nunca
ções - por se voltarem para o mundo concreto é dado ontologicamente. É discursivamente
do fazer cotidiano, das técnicas corporais, das mapeado e praticado corporalmente” (1997:
trocas cerimoniais etc., en�m, da investigação 54). Dumont sabia disso, e viu no mestre o
exaustiva e microscópica no estilo de uma “des- signi�cado profundo da etnogra�a, alguém
crição densa” - são de capital importância para que, misturando carisma e sabedoria, magia
se entender a proposta de Mauss. e dádiva, “recebera do céu a graça especial de
ser um homem de campo sem sair de sua pol-
26. Reforçando a antropologia da performance no campo trona” (1985: 183). Em suma, Mauss, como
da “fala”, os inúmeros estudos de Malinowski, Lévi- Benedict em O Crisântemo e a Espada, desloca
Strauss e Evans-Pritchard enfatizam o poder das pala-
a noção convencional de que “o campo é um
vras (oralidade) nos rituais mágicos. Mesmo a escrita
tem a sua magia. Vale ressaltar que Mauss dá grande lar longe do lar”, e, por meio de seu Manual,
atenção às palavras, salienta Fournier (1993). amplia o sentido do “campo etnográ�co” na
27. Basta lembrar a importância da categoria “mana” medida em que explicita a natureza performá-
nos sistemas de trocas simbólicas. Sobre a proposta tica da etnogra�a.
da antropologia da experiência, ver Turner e Bruner
(1986).

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Uma categoria heurística Com efeito, a etnogra�a não representa a


solução de todos os problemas da antropologia,
A etnogra�a, tal como entendida no pensa- mas também não consiste na causa de todos os
mento antropológico moderno, tem uma histó- seus males. É preciso estar atento para se evitar
ria: o seu signi�cado não foi sempre o mesmo. cair nas armadilhas do que Eunice Durham,
Longe de pretender ter abordado todos os pro- avaliando a produção antropológica no espaço
blemas colocados pela etnogra�a ao campo da urbano no Brasil, chamou de “deslize semân-
antropologia e de sua inscrição no conjunto da tico”, isto é, quando alguns conceitos como
obra de Mauss, e acreditando como Geertz no “classe”, “ideologia”, “pessoa”, “ethos”, “identi-
�nal de “Uma descrição densa – por uma teo- dade” etc, sofrem um processo de despolitiza-
ria interpretativa da cultura” que “não há con- ção, perdendo sua vinculação teórica e poder
clusões a serem apresentadas; há apenas uma de crítica cultural. A etnogra�a não está imune
discussão a ser sustentada” (1978: 39), duas ou a este risco. No entanto, creio que parte dos
três idéias podem ser destacadas neste �nal. motivos que sugerem o perigo de “deslize se-
Conferir à etnogra�a a qualidade de cate- mântico” (eminentemente relativista), deve-se
goria de pensamento na Antropologia Social e à sua própria qualidade performativa29. A�nal,
Cultural Moderna signi�ca pensá-la como uma a etnogra�a, como um gênero de performan-
categoria heurística na medida em que permi- ce narrativa, realiza a mediação entre o campo
te analisar algumas das principais performances e a escrita, a teoria e a prática, o pensamento
narrativas da disciplina antropológica. Em ou- antropológico e a experiência individual do
tras palavras, a etnogra�a é, ela mesma, uma etnógrafo. De certa forma, ela fornece os �os
chave metodológica para se penetrar no cora- narrativos que permitem fazer a união dos ex-
ção do pensamento e da prática antropológica. tremos no campo antropológico, embora esta
Se aceito esse pressuposto um mundo de pos- se dê de forma re�exiva, incompleta e dramati-
sibilidades, problemas e descobertas, obtidas camente densa.
por meio do trabalho re�exivo, abre-se à nossa
frente denunciando sua qualidade performati-
va, inovadora e cognitiva. Como nos lembra The ethnography as category of
Mariza Peirano, a teoria e a história da antro- thought in modern anthropology
pologia se confundem com o “fazer” etnográ�-
co, a�nal, “a pesquisa etnográ�ca é o meio pelo abstract �e innumerous possibilities and
qual a teoria antropológica se desenvolve e se issues, put forward by ethnography to epistemo-
so�stica quando desa�a os conceitos estabele- logical re�ection in anthropology, makes it an im-
cidos pelo senso comum no confronto entre a portant category of thought, capable of revealing
teoria que o pesquisador leva para o campo e a the meaning of anthropologists works, i.e., their
observação da realidade ‘nativa’ com a qual se making. �erefore, ethnography can be seen as a
defronta” (1995: 135-136). É quando também genre of performance whose meaning surpasses the
passamos a compreender melhor a própria his- frontiers of native culture reaching the cultural �eld
tória da disciplina28.
29. Também Almeida (2004) chama atenção para a “ob-
28. Peirano lembra ainda a importância que a compa- jeti�cação” da etnogra�a em tempos atuais na medida
ração adquire em todo este processo, relativizando em que este processo de rei�cação denuncia antes os
o próprio relativismo ingênuo e/ou ideológico que usos subjetivistas ao qual está exposta do que a sua
parece contaminar os detratores da etnogra�a. objetividade metodológica.

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of the anthropologist. Performance, in this study, CLIFFORD, James. 1997. “Spatial Practices: Fieldwork,
represents a mode of social auto-re�exivity in which Travel, and the Disciplining of Anthropology”. In
Routes – Travel and Translation in the Late Twentieth
the anthropologist, by making use of narrative,
Century. Cambrigde: Harvard University Press, p. 52-
searches to enlarge the “�eld” of anthropology. �e
91.
goal of this text is to point out a few moments in ______. 1998. A Experiência Etnográ�ca: Antropologia e
this process of ethnographic re�exivity, pointing Literatura no Século XX. J. R. Gonçalves (org.), tradu-
out the writings of Marcel Mauss (1872-1950) as a ção de Patricia Farias, Rio de Janeiro: UFRJ.
privileged example. COPANS, Jean. 1981. Críticas e Políticas da Antropologia,
tradução de Manuela Torres, Lisboa: Edições 70.
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autor Gilmar Rocha


Professor do Departamento de Ciências Sociais / PUC - Minas
Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural) / UFRJ

Recebido em 06/03/2006
Aceito para publicação em 14/07/06

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 99-114, 2006

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