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antropologia moderna
GILMAR ROCHA
que esta seja uma questão predominante no con- moderna. Algumas das obras mais signi�cati-
texto norte-americano, como sugere Trajano Filho vas que marcaram a história da disciplina, ser-
(1988), o estatuto da etnogra�a sempre mereceu a vindo, muitas vezes, como paradigmas do saber
atenção dos antropólogos ao longo da história da antropológico, surgem neste momento. Além
disciplina no século XX. O entendimento da etno- de Argonautas do Pací�co Ocidental (1922), de
gra�a como uma categoria de pensamento não ex- Bronislaw Malinowski, alguns outros clássicos
clui sua dimensão performativa o que, em termos da etnogra�a modernista vieram a público: na
geertzianos, designa o “fazer” do antropólogo. Por Inglaterra, a versão resumida de �e Golden
este prisma, pensamento e ação, razão e afetivida- Bough (1922), de Sir James George Frazer, e �e
de não estão separados na experiência etnográ�ca. Andaman Islanders (1922), de Radcli�e-Brown;
Portanto, é como categoria de pensamento e ação na França, La Mentalité primitive (1922), de
performativa que a etnogra�a adquire relevância Lucien Lévy-Bruhl, e Essai sur le don (1925), de
sociológica e epistemológica na compreensão do Marcel Mauss; nos Estados Unidos, o trabalho
ofício do antropólogo e na construção do “campo” de Franz Boas Anthropology and Modern Life
da antropologia2. (1928) e Coming of Age in Samoa (1928), de
Margaret Mead. Isto para �carmos com alguns
Cultura e missão da antropologia em dos principais textos representativos de cada
tempo de guerra uma dessas antropologias nacionais3.
No período entre-guerras, o mundo ociden-
A década de 20 é um marco na história da tal viveria uma profunda crise de consciência,
antropologia social e cultural. Pode-se conside- que seria acompanhada da intensi�cação dos
rá-la como o “período clássico” da antropologia estudos sobre as sociedades primitivas, conside-
radas como “modos de vida autênticos”. Parte
2. A categoria “etnogra�a” tem sido utilizada com sen- da motivação em direção ao “mundo primiti-
tidos variados ao longo da história da antropologia vo” seria fornecida por uma certa concepção
moderna. Ora será vista como método qualitativo de-
antropológica de “campo”, visto então como
senvolvido no trabalho de campo, ora estará relacio-
nada à escrita do antropólogo – o texto monográ�co uma espécie de “laboratório natural” – logo,
propriamente dito – ora, ainda, a ênfase recaindo so- um lugar livre das “impurezas” da civilização
bre os discursos, as formas de diálogos, estabelecidos
entre nativos e antropólogos no encontro etnográ�co. 3. A antropologia produzida até o momento da Primei-
Aqui, a compreensão da etnogra�a como categoria de ra Guerra Mundial seria marcada pelas perspectivas
pensamento com qualidades performativas tem como do evolucionismo social e do difusionismo cultural.
pressuposto: 1) o fato de que a etnogra�a é “boa para Neste momento, predominava ainda a representação
pensar” a constituição do campo antropológico; 2) do “etnógrafo amador” (missionários, militares, via-
ampliar o entendimento da etnogra�a como proces- jantes etc.), quando não a do “antropólogo de gabi-
so epistemológico que vai do campo ao texto; 3) por nete”, sendo, nesse caso, o nome de Sir James George
�m, sem perder de vista todas as implicações teóricas Frazer o mais lembrado. Mas desde �ns do século
relacionadas às dimensões metodológica, ritualística, XIX, experiências como a famosa Expedição ao Es-
cognitiva nesse processo, a aproximação com a per- treito de Torres (Oceania) em 1888/89, que contou
formance visa destacar o caráter re�exivo da narrativa com a participação de eminentes antropólogos como
etnográ�ca como um “modelo de ação”, cuja fonte W. H. R. Rivers e C. G. Seligmann a convite de
de inspiração são as análises de Austin (1990) sobre Alfred C. Haddon, representaram signi�cativa con-
os atos performativos da linguagem, os modelos “de” tribuição para a institucionalização da antropologia
e “para” realidade na interpretação de Geertz (1978) social e cultural moderna. Para Grimshaw (2001),
e o “comportamento restaurado” de Schechner, ver esta expedição celebra o nascimento da Antropologia
Silva (2005). Moderna.
- e, ao mesmo tempo, o local de uma experi- Alfred Kroeber, e o ensaio de Edward Sapir,
ência privilegiada para a iniciação do antropó- “Cultura autêntica e espúria”, publicado em
logo pro�ssional e do desenvolvimento teórico 1924, contribuindo para a renovação do sig-
da antropologia. ni�cado de cultura a ponto de, na avaliação
Sem perder de vista as especi�cidades das de Stocking Jr. (1983), este último represen-
antropologias nacionais, o quadro cultural dos tar uma espécie de “documento de fundação”
anos 20-40 exigiu dos antropólogos da época da sensibilidade etnográ�ca nos anos 20. Com
a necessidade de realização de uma dupla ta- efeito, uma das grandes contribuições de Sapir
refa. De um lado, a antropologia, ao imaginar para a antropologia cultural deste momento foi
o �m ou desaparecimento das culturas primi- a de deslocar o conceito de cultura do campo
tivas frente à marcha inelutável do processo factual das tradições, costumes etc., empurra-
civilizatório ocidental, colocava ao antropólo- do-o para o plano da cognição5.
go a “missão salvacionista” de resguardar es- Por outro lado, também a aproximação da
ses patrimônios culturais (e porque não dizer antropologia com certas experiências artísticas,
“naturais”) da humanidade, garantindo sua como o movimento surrealista, contribuiu para
sobrevivência mesmo que por meios �ccionais, aprofundar a crítica cultural dos antropólogos
como narrativa etnográ�ca. Por outro lado, aos males produzidos pela civilização, ainda que
essas mesmas sociedades ameaçadas de desapa- não tenha sido possível fugir completamente à
recimento exerceram grande fascínio no meio encenação do exótico. A Missão Dakar-Dji-
intelectual, artístico e antropológico, favore- bouti, realizada na África entre 1931-1933,
cendo assim o desenvolvimento de uma críti- liderada por Marcel Griaule, e da qual parti-
ca cultural na medida em que estas sociedades cipou Michel Leiris é, sem dúvida, o melhor
apresentavam alternativas culturais frente aos exemplo do que Cli�ord (1998) classi�cou de
problemas introduzidos pela marcha da civili- “surrealismo etnográ�co”: um movimento cul-
zação ocidental. Antropólogos como Ruth Be- tural que, além de produzir estudos profundos
nedict expressariam de maneira dramática este sobre sociedades africanas como os Dogons,
quadro de crítica cultural em termos da tensão também possibilitou a realização de uma gran-
indivíduo/sociedade característica da sensibi- de re�exão sobre a própria sociedade francesa
lidade modernista da época4. Assim, a impor- em geral, e a antropologia em particular. Logo
tância deste “fascínio pelo primitivo” reside no depois seria criado o Musée de l’Homme (1938),
fato de este ter provocado a necessidade de se um centro cultural cujo título condensa o espí-
repensar o signi�cado da cultura, abrindo a an- rito maussiano do fato social total. Mais do que
tropologia para o campo do relativismo cultu- um lugar de exposição dos artefatos culturais
ral e, por conseguinte, engendrando a crítica ao exóticos, o Museu do Homem era também o
etnocentrismo. centro de pesquisas e lugar de reunião da arte
A partir de então, o fazer etnográ�co e o com a antropologia. Na verdade, este se tornou
conceito de cultura ganham atenção especial
dos antropólogos, estimulando cada vez mais
5. Sapir pensa a cultura como um sistema de comu-
novas pesquisas e discussões teóricas. O resul- nicação no qual a linguagem classi�ca e organiza as
tado imediato foi a produção de textos exem- experiências sensíveis fazendo a mediação entre a cul-
plares, tais como O Superorgânico (1919), de tura e o pensamento cognitivo. A partir do conceito
de cultura se criticava o “estilo de vida” desenvolvido
pela civilização ocidental em sintonia com as críticas
4. A este respeito ver Handler (1990). de Freud, por exemplo.
Geralmente durante o trabalho de campo os mas tão somente que o trabalho de campo é o
antropólogos são temporariamente retirados do epítome do que fazem os antropólogos quando
convívio de seus familiares e amigos para vive- escrevem.
rem uma outra experiência social extraordinária,
tal como acontece a muitos noviços nas socie- A partir de tais observações, pode-se a�r-
dades primitivas. O resultado é, após o antro- mar, então, que a modelagem da persona do
pólogo ter experimentado situações limites de antropólogo, em grande medida, está relacio-
convívio social com o “outro”, uma mudança de nada com sua experiência de campo. “É no
sua posição social, acompanhada de uma pro- campo que o antropólogo forma sua identi-
funda operação cognitiva. Ao �nal do processo dade», sentencia Kilani (1994). Por vezes a
é a própria percepção, os sentidos, os valores, construção da identidade social do “nativo” e
en�m, o “ponto de vista” do antropólogo que do “antropólogo” adquire contornos de uma
se modi�ca. Pode-se vislumbrar um verdadeiro relação “totêmica” em que os nomes Malino-
processo de “educação dos sentidos” cujo resul- wski, Evans-Pritchard, Firth e Turner estão
tado é a formação de uma re�nada sensibilida- intimamente associados às culturas Trobriand,
de antropológica. As considerações de Roberto Nuer, Tikopia e Ndembu, respectivamente. De
Cardoso de Oliveira (2000) sobre o processo acordo com Kilani (1994:49):
de domesticação do olhar, do ouvir e do escre-
ver - espécies de “faculdades do entendimento” A monogra�a constrói a imagem uni�cada de
sociocultural inerentes ao “campo” das ciências um antropólogo em simbiose com uma cultura
sociais e humanas - no ofício do etnógrafo, dão “das gentes”. As “gentes” são elas mesmas con�-
bem o tom do ethos antropológico10. guradas nos limites do texto etnográ�co, assim
Na verdade, não é somente a identidade do como a diversidade das formas sociais e cultu-
“nativo” que está sendo construída no trabalho rais é estabilizada através de uma representação
de campo, mas também a persona do antropó- “padrão”. Em suma, a monogra�a surge nesse
logo. Parafraseando Condominas, Pulman diz sentido como um tipo de ícone. Ela conjuga,
que “o momento mais importante de nossa vida segundo os termos de Atikinson, um “autor” e
pro�ssional corresponde ao tempo de trabalho um “campo” (uma cultura, uma sociedade) de
no campo: ao mesmo tempo nosso laboratório uma representação concreta: o “campo” como
e nosso rito de passagem, o campo transforma o “autor” são com efeito “reconhecidos” – pode
cada um de nós em um verdadeiro antropólo- se dizer então – no e através do mesmo processo
go” (1988: 22). Essa também é a conclusão de de leitura da monogra�a. É por meio das mo-
Boon (1993: 24), para quem nogra�as, dos homens e das mulheres daquelas
“culturas”, dos “campos”, que os autores são
A identidade contemporânea do antropólogo identi�cados e classi�cados. É este um tipo de
pro�ssional baseia-se, em minha opinião cor- classi�cação “totêmica” (...) a base textual que
retamente, no trabalho de campo ideal e na nos permite identi�car emblematicamente
prática. Isto não quer dizer que a história da Evans-Pritchard aos Nuers, Margaret Mead aos
disciplina comece com o trabalho de campo Samoanos, Marcel Griaule aos Dogons... e in-
nem que os antropólogos tenham que fazê-lo, versamente.
10. A noção de ethos, na de�nição de Bateson (1990), Por outro lado, não só as experiências vividas
remete a um sistema cultural de normalização e orga- pelo antropólogo em campo são fundamentais
nização dos instintos e emoções dos indivíduos.
para sua formação, mas também o aprendiza- nos anos 40; Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss
do de certos valores da cultura cientí�ca. O nos anos 50; e �e Teachings of Don Juan, de
universo cientí�co comporta um conjunto de Carlos Castañeda nos anos 60. Antes de repre-
regras, valores e procedimentos éticos aos quais sentarem “desvios” frente às convenções disci-
o pesquisador deve, até certo ponto, submeter- plinares estes trabalhos são indicadores do que
se. Este processo exige que o iniciado partilhe alguns antropólogos chamam de “experiência
de um sistema de crenças como, por exemplo, indisciplinada” da etnogra�a12. Tais trabalhos
racionalidade, ruptura epistemológica, objeti- abriram espaço para que a etnogra�a deixasse
vidade etc., que devem ser por ele aprendidas e de ser vista única e exclusivamente como estra-
experimentadas11. tégia metodológica do trabalho de campo. Ou-
De fato, tanto a compreensão e interpre- tras estratégias metodológicas desenvolvidas na
tação de outras culturas, quanto o desenvolvi- construção textual do objeto antropológico,
mento teórico e metodológico da antropologia então, passaram a ser teorizadas13.
deve muito às experiências do trabalho de cam- Isto �ca claro quando se têm em conside-
po. Apesar das recentes críticas epistemológicas ração as observações de um antropólogo como
à etnogra�a, mesmo as posições mais radicais Geertz acerca da re�exividade epistemológica
não supõem sua eliminação no campo da an- inerente ao trabalho de campo14. Em prefácio
tropologia, mas reconhecem a necessidade de datado de 1968, no recém editado Islam Obser-
se repensar e re�etir sobre seu ideal “cienti�cis- ved, Geertz (2004:12), destacava a importância
ta”. Com isso, muito das questões que envol- do trabalho de campo no processo de interpre-
vem a experiência etnográ�ca do antropólogo tação de uma cultura, diz ele:
moderno são colocadas sob suspeita.
O trabalho de um antropólogo, a despeito do
A favor do método tema declarado, tende a ser uma expressão de
sua experiência de pesquisa, ou, mais precisa-
A canonização da etnogra�a, a partir do mente, do que a experiência de pesquisa faz a
trabalho de campo de Malinowski entre os ele. Isso certamente vale no meu caso. O traba-
Trobriandeses (Pací�co Ocidental), não im- lho de campo tem sido para mim intelectual-
pediu que outras modalidades de experiências mente (mas não só intelectualmente) formativo,
etnográ�cas fossem elaboradas ou que fossem fonte não só de hipóteses isoladas, mas de pa-
sugeridas por outras interpretações em anos
recentes (pós-60). Não deixaram de provocar
12. A idéia de “experiência indisciplinada” é, na verdade,
certo incômodo na comunidade antropológica, o reconhecimento daquilo que Fayereband denun-
por exemplo: Naven, de Gregory Bateson, nos ciava em Contra o método (1989). Por outro lado,
anos 30; �e City of Women, de Ruth Landes, esta idéia não contradiz o seu processo histórico de
disciplinarização conforme sugere a interpretação de
Oliveira (1988).
11. Complementando a nota anterior, o conceito de ha- 13. Mais do que uma questão de método, etnogra�a
bitus, tal qual utilizado por Bourdieu (1983) em sua e trabalho de campo são experiências de natureza
sociologia da ciência, representa a outra metade desse epistemológica e ontológica, como o sugerem al-
processo de “educação dos sentidos”. Assim, amplian- guns �lósofos e antropólogos, dentre eles: Merleau-
do o sentido dessa sensibilidade etnográ�ca, podemos Ponty (1989), Kilani (1994), Casal (1996), Cli�ord
ver em todo este processo uma espécie de “educação (1998).
sentimental”, na qual o principal aprendiz é antropó- 14. Essas observações relativas a Geertz me foram sugeri-
logo, sugere Geertz (1978). das pelo parecerista do artigo, a quem agradeço.
lugar a uma visão hermenêutica na qual o re- culturalmente, isto é, se o etnógrafo �xa o dis-
conhecimento da “experiência indisciplinada” curso social no modo de uma escrita narrativa
do ofício do antropólogo e as “retóricas” do como “registro de consultas sobre o que o ho-
texto antropológico colocam a etnogra�a no mem falou” (1978: 41), então a etnogra�a é,
campo das re�exões epistemológicas. Quando ela mesma, uma forma de inscrição do discurso
a etnogra�a passa a integrar o campo do co- antropológico moderno, pois é através da ex-
nhecimento epistemológico, transformando-se periência e da escrita etnográ�ca que a ciência
em uma estimulante categoria de pensamento antropológica se modela cultural e historica-
sobre a experiência e a escrita antropológica, mente. Assim, etnogra�a é também, além do
abre-se espaço para falar em “etnogra�a do registro textual de uma fala nativa, um modo
pensamento antropológico”. Em outras pala- cultural de escrita antropológica.
vras, sem perder de vista que “a construção do Com efeito, o que a escrita etnográ�ca �xa
texto antropológico começa no campo” (Ki- não é somente o dito no �uxo do discurso so-
lani 1994: 46), a etnogra�a deixa de ser vista cial, “o que o homem falou”, mas, sobretudo, um
somente como uma estratégia metodológica e modo de pensamento social etnográ�co. As et-
passa a signi�car um empreendimento textual nogra�as, ao representarem sistemas simbólicos
situado em contextos históricos e culturais es- de crenças, ritos, mitos e religiões, não apenas
pecí�cos. descrevem ou falam sobre o modo de pensamen-
to dos “nativos”. A maneira como estes sistemas
Performance etnográ�ca são descritos revelam, por sua vez, o modo como
este pensamento foi organizado textual e nar-
Para alguns antropólogos a escrita etnográ�ca rativamente. A escrita etnográ�ca, portanto, ao
dramatiza uma estratégia especí�ca de autorida- expor a cultura do “outro”, informa-nos também
de que se revela, basicamente, em certos modos sobre a estrutura e a organização narrativa do tex-
de representação. Sem entrar na especi�cidade to, revelando assim parte da cultura do próprio
de cada um deles, vale registrar o fato de que antropólogo. Em última instância, quem fala é o
“os processos experiencial, interpretativo, dia- antropólogo, embora sua fala não seja a única16.
lógico e polifônico são encontrados, de forma Pode-se a�rmar então que etnogra�as são
discordante, em cada etnogra�a, mas a apresen- narrativas, expressões de certo tipo de experiência
tação coerente pressupõe um modo controlador
de autoridade”, como dirá o historiador James
16. Relativizando as teorias que vêem na escrita um
Cli�ord (1998: 58). Vimos que também Geertz
modo de domesticação do pensamento ou limitação
põe em destaque a importância da experiência da experiência compartilhada pela oralidade, a exem-
e da escrita na de�nição da própria etnogra�a plo do poder da fala nos rituais mágicos, também a
e, portanto, dessas estratégias de construção da escrita promove uma operação simbólica de ampliar
autoridade etnográ�ca. A�nal, a etnogra�a está, o mundo das experiências e do pensamento social.
inextricavelmente, presa ao campo da escrita. Se, por um lado, a escrita individualiza o mundo da
experiência, por outro lado universaliza quando lhes
Na verdade, trata-se de uma escrita que guar-
possibilita viajarem por meio dos textos no tempo
da a memória da experiência etnográ�ca, agora e no espaço. Haja vista o quanto nossas sociedades
traduzida para uma forma textual. trabalham com a idéia do “mundo fechado” dos anal-
Se, como pensa Geertz, o etnógrafo “ins- fabetos. Daí, a crítica dirigida à antropologia inter-
creve” o discurso social, anotando-o, objeti- pretativa de Geertz, reside no fato de que nesta, mais
�cando-o e autorizando-o a existir textual e do que a fala do nativo, o que se ouve é a voz de
Geertz “por sobre os ombros dos balineses”.
muito próximo da idéia de “invenção da cultu- re�exiva na qual, por meio da escrita transfor-
ra” de Roy Wagner (1981). Num movimento mada em narrativa, personagens são acionados,
dialético de controle (às vezes “inconsciente”) verdades relativizadas, sentimentos ritualizados,
do campo etnográ�co e da invenção cultural, en�m, culturas são inventadas. Em suma, pode-
os antropólogos tornam inteligíveis as práticas se dizer que a etnogra�a constitui uma importan-
e experiências dos “outros”, na medida em que te categoria de pensamento na antropologia20.
objeti�cam “nativos” e “culturas”. Mas, ao �m
desse processo, segundo Wagner, o que de fato A magia de Mauss
ocorre é que “o que o pesquisador de campo
inventa, portanto, é seu próprio entendimen- A obra de Marcel Mauss (1872-1950) apa-
to; as analogias criadas por ele são extensões de rece como um exemplo oportuno e fecundo
suas próprias noções e as referências de cultura para se pensar o alargamento da noção de et-
são transformadas pelas suas experiências das nogra�a na antropologia moderna. Neste arti-
situações de campo” (1981: 12). Inventando go será possível oferecer apenas algumas notas
“outras” culturas, os antropólogos constroem introdutórias sobre, o que se poderia dizer, sua
para si mesmos o sentido de cultura, a�nal, “performance etnográ�ca”.
Inicialmente, pode-se perguntar qual a ra-
o estudo da cultura é, de fato, nossa cultura; zão de se tomar como exemplo para a re�exão
operada através de nossas formas, criada em nos- desenvolvida nesse texto um antropólogo que
sos termos, seguindo nossas palavras e conceitos nunca realizou “trabalho de campo” no sen-
para seus signi�cados, e nos recriando através de tido estrito do termo. É no mínimo curioso
nossos esforços (1981: 16). Mauss ter proposto um Manual de etnogra�a
(1993), trabalho este interrompido pela eclo-
De resto, pode-se dizer que as etnogra�as são da guerra nos anos 40, mas publicado em
são “invenções”, “�cções” (no sentido de �ctio, 1947 pelo esforço de um de seus alunos. Esta
“construções”) modeladas por certo tipo de es- obra constitui a versão estenografada das suas
crita e de experiência, autorizando-nos assim a “instruções de etnogra�a descritiva”, desenvol-
pensar em “estilos de antropologia” ou modos vida no Institute d’Ethnologie da Universidade
de representação etnográ�ca19. de Paris, entre os anos de 1926-1939. Con-
Os textos etnográ�cos expressam valores, tudo, o fato de Mauss não ter “nunca pratica-
idéias, sensibilidades, en�m, “estruturas de signi- do a observação etnográ�ca”, adverte Denise
�cados e pensamentos”, às vezes muito mais rela- Paulme em prefácio ao Manual, não signi�ca
cionados aos antropólogos do que aos nativos em que não tenha produzido obra de etnogra�a. A
cena. Conclui-se que a etnogra�a não se restringe exemplo do que dizem algumas leituras sobre
a uma estratégia de trabalho de campo com �ns Lévi-Strauss, às quais vêem na sua experiência
à descrição das culturas nativas em termos de nova-yorkina seu verdadeiro trabalho de cam-
performances textuais. Esta também dramatiza po, pode-se dizer que também a única e ver-
muito das experiências dos antropólogos. A et- dadeira etnogra�a de Mauss foi a sua própria
nogra�a, então, performatiza um modo de ação
20. Concordo com Gonçalves (2004) em relação a noção
19. No Brasil, o antropólogo Roberto Cardoso de Olivei- de patrimônio, que também a etnogra�a, pensada
ra (1995) tem se destacado na análise dos estilos de como categoria de pensamento, designa um modo de
antropologia produzidos no centro e na periferia do ação re�exiva e de performance que deve ser vivido e
sistema mundial. sentido no cotidiano.
forma de dádiva sociológica e política, sugere o alunos, mas, sobretudo, em decorrência da po-
biógrafo canadense. Nessa perspectiva, as raízes sição que ocupou no campo da antropologia.
do “Ensaio sobre a dádiva” já se encontram no Como apontou acerca dos agentes da magia
“Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”, (mágicos, feiticeiros, xamãs), cuja e�cácia sim-
publicado em 1899 em colaboração com Hen- bólica deriva dos sistemas de crenças e das posi-
ri Hubert. Complementar a essa interpretação, ções liminares que estes ocupam na sociedade,
gostaria de propor uma outra fonte de leitura, a Mauss também parecia assumir uma posição
partir do “Esboço de uma teoria geral da magia”, até certo ponto liminar frente à dominante so-
publicado em 1903, também em colaboração ciologia de Durkheim quanto ao amplo, aberto
com Henri Hubert, no qual o destaque vai para e ainda inde�nido campo da antropologia25.
a dimensão ritual do “fazer”. Tal ênfase leva-nos É dentro deste quadro que podemos enten-
a a�rmar que a raiz do Manual de etnogra�a en- der a performance etnográ�ca de Mauss à luz da
contra-se na teoria da magia de 1903/0424. sua teoria da magia. A compreensão da magia
Seguindo a sugestão de Giumbelli (1997) e como sistema ritual de crenças (representações)
estendendo-a ao conjunto da obra de Mauss, e práticas (ações) simbólicas, cuja e�cácia con-
“Esboço a uma teoria geral da magia” aparece siste na produção de sentido, está na base da
como um texto seminal a partir do qual a obra própria antropologia de Mauss. O que interessa
de Mauss vai sendo construída. É como se ele a Mauss é, antes, o ato de fazer do que o feito,
colocasse em prática a idéia que ajudava escla- o ato de dizer do que o dito, o ato de rezar do
recer, realizando assim, ao longo de sua obra, que a reza, o ato de curar do que a cura. Para ele,
trabalho semelhante ao de um mago. Como os vale lembrar, importa observar o que é dado e
xamãs nas sociedades primitivas que fornecem o que é dado é o que o romano, o ateniense, os
um mito, uma linguagem a partir da qual os franceses fazem quando fazem suas rezas, suas
doentes, os iniciados, podem organizar suas an- leis etc. Também o mágico é alguém que se faz,
siedades, suas dores, Mauss era visto por mui- pois “não há mágico honorário e inativo. Para
tos de seus alunos como uma espécie de “guru” ser mágico, é necessário fazer magia...” (1974:
(sábio espiritual e intelectual), alguém que lhes
fornecia (no sentido da dádiva) um “sistema de 25. Do ponto de vista da “sociologia da biogra�a” todo
referência” por meio do qual podiam se orien- intelectual típico de sua época concentra as caracte-
tar. Segundo Dumont, “graças a Mauss, tudo, rísticas de seu grupo, diz Fournier: “Marcel Mauss
mesmo o gesto mais insigni�cante, adquiria abrange o que poderíamos denominar uma biogra-
�a coletiva, pois inclui tanto uma apresentação dos
um sentido para nós” (1985: 181). Talvez isto
membros da equipe de L’année sociologique, como
ajude a explicar um pouco seu poder de sedu- um estudo das instituições de ensino superior Esco-
ção sobre os alunos. Mas a razão principal pela la Prática de Estudos Superiores, Collège de France e
qual o “carisma” de Mauss se mostra e�caz não ainda uma análise do desenvolvimento de disciplinas
reside somente na personalidade extraordinária cientí�cas (história das religiões, antropologia, socio-
do “humanista” que “sabia tudo”, diziam seus logia)” (2003: 3-4). Mas toda biogra�a traz implícito
o risco da hagiogra�a: a canonização do Mauss pio-
neiro e/ou pai fundador. Ainda, segundo Fournier
24. Uma leitura de Mauss, de trás para frente, começando (1993), Mauss ocupou durante muito tempo uma
pelos últimos trabalhos até atingir os estudos iniciais posição marginal no sistema universitário francês, o
sobre magia, revela não só uma continuidade, mas que o colocou ao lado da pesquisa e não do ensino.
também outras dimensões até então domesticadas Este fato, além de ter relevância sociológica para a
pela visão tradicional e holista, no caso, o individua- compreensão da obra de Mauss, parece reforçar a di-
lismo e a teoria da ação social. mensão performativa de sua etnologia.
116), diz o próprio Mauss. Ele entende a magia Se em antropologia social, diz Geertz, “o
como uma “idéia prática” na qual as ações e as que os praticantes fazem é etnogra�a” (1978:
representações, a performance ritual e o sistema 15), então Mauss não foge à regra. Como nas
de crenças, não estão separados, mas, ao contrá- performances verbais dos rituais mágicos, a es-
rio, formam um único processo simbólico tra- crita de Mauss não só fala da magia, mas põe
duzido em termos de “arte de fazer”. A magia é em prática um sistema mágico ao “fazer” socio-
portadora de uma signi�cativa qualidade perfor- logia ou antropologia. As análises de Dumont
mativa que parece inscrita nos rituais da prece, (1985) e Oliveira (1979) convergem para este
das trocas simbólicas, do “fazer” etnogra�a26. ponto: o primeiro destaca o fato de a Sociolo-
Quando ultrapassa o campo estabelecido da gia e a Antropologia na França terem atingido
sociologia das representações coletivas, Mauss seu “estágio experimental” com Mauss; o se-
parece interessado em projetar uma teoria da gundo, a�rma que “o fazer Sociologia – me-
ação social. Sem romper com as representações lhor diríamos, Antropologia – parece-me ser o
sociais, Mauss pensa as “categorias do enten- seu melhor ensinamento” (1979: 23). Mas, en-
dimento humano” como idéias de natureza gana-se quem vê no Manual de etnogra�a uma
prática, construídas historicamente. O estudo “receita para se fazer antropologia”. Resultado
sobre “A noção de pessoa, a noção de ‘Eu’”, de de um processo que se desenvolve a partir de
1938, é, sem dúvida, o melhor exemplo disto. suas preocupações com o campo sociológico,
Procurando superar o etnocentrismo dos soci- o Manual funciona como uma espécie de “car-
ólogos europeus, Mauss dá atenção especial às togra�a do pensamento” ou “mapa cognitivo”
categorias (teorias) nativas. Para ele, as catego- sobre o “estado da arte” da antropologia à épo-
rias fazem a mediação entre o pensamento e a ca de Mauss. Na verdade, o Manual não é um
realidade, aproximando-se da proposta de uma manual de etnogra�a, trata-se antes de uma
antropologia da experiência27. Daí a importân- (meta)etnogra�a do campo da antropologia,
cia que o Manual de etnogra�a adquire na obra ainda em desenvolvimento. Mauss é, talvez, o
de Mauss. Mesmo que na visão de Dumont as melhor exemplo de que a etnogra�a começa
instruções apresentem um caráter tão geral que e termina em casa e de que o “campo”, como
assumem um ar de lugar-comum, tais instru- pensa Cli�ord, parafraseando Certeau, “nunca
ções - por se voltarem para o mundo concreto é dado ontologicamente. É discursivamente
do fazer cotidiano, das técnicas corporais, das mapeado e praticado corporalmente” (1997:
trocas cerimoniais etc., en�m, da investigação 54). Dumont sabia disso, e viu no mestre o
exaustiva e microscópica no estilo de uma “des- signi�cado profundo da etnogra�a, alguém
crição densa” - são de capital importância para que, misturando carisma e sabedoria, magia
se entender a proposta de Mauss. e dádiva, “recebera do céu a graça especial de
ser um homem de campo sem sair de sua pol-
26. Reforçando a antropologia da performance no campo trona” (1985: 183). Em suma, Mauss, como
da “fala”, os inúmeros estudos de Malinowski, Lévi- Benedict em O Crisântemo e a Espada, desloca
Strauss e Evans-Pritchard enfatizam o poder das pala-
a noção convencional de que “o campo é um
vras (oralidade) nos rituais mágicos. Mesmo a escrita
tem a sua magia. Vale ressaltar que Mauss dá grande lar longe do lar”, e, por meio de seu Manual,
atenção às palavras, salienta Fournier (1993). amplia o sentido do “campo etnográ�co” na
27. Basta lembrar a importância da categoria “mana” medida em que explicita a natureza performá-
nos sistemas de trocas simbólicas. Sobre a proposta tica da etnogra�a.
da antropologia da experiência, ver Turner e Bruner
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Recebido em 06/03/2006
Aceito para publicação em 14/07/06