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Número 1 - Dezembro 2002 R e v i s t a

T e r r a
Redonda

As religiões
são para as
crianças?
E mais:
Um guia para
o cético boêmio
+
De Torquemada a George Bush
Uma brevíssima história das
relações entre Estado e religião
+
Quaoar:
mais um objeto transneptuniano >
Imagem capa: Microsoft Clip Gallery
R e v i s t a

T e r r a
EDITORIAL Redonda
A revista Terra Redonta é uma publicação
periódica da Sociedade da Terra Redonda.

U
m novo ciclo inicia-se na Sociedade da Terra Redonda. Co-
meçamos há poucos anos bem pequenos, mas pioneiros no
Brasil, seguindo os moldes de outras organizações estran- Fundada em 4 de maio de 1999, a Sociedade
geiras. Publicávamos traduções de ensaios de autores célebres, di- da Terra Redonda é uma organização não-
vulgando o ceticismo, a ciência e o livre-pensamento, defendendo o governamental brasileira que possui três objetivos
direito dos ateístas e a separação entre religião e governo. Mas não básicos:
era o ideal. Somos uma organização brasileira, não estrangeira. - Defender os direitos dos Ateístas na sociedade;
- Advogar pela total e completa separação entre
Com a criação da Revista Terra Redonda damos um importante religião e governo;
passo na consolidação de uma cultura racionalista científica nacio- - Divulgar e promover o método científico e o
nal. O principal objetivo deste periódico é incentivar o surgimento pensamento crítico, as realizações e os avanços
de Sagans, Asimovs, Feynmans e Dawkins. Não porque foram da ciência.
cientistas eminentes, mas por terem sido excelentes divulgadores
da ciência, do ceticismo, do ateísmo e do livre-pensamento para as
massas. Precisamos de mais proferidores de conhecimento acessí-
vel, que não limitam as idéias dentro de laboratórios.
Equipe
Presidente
Aqui eles terão sempre um nicho fértil para divulgar suas idéias Leo Vines
e traduzir para o português claro o complicado jargão técnico da Vines@str.com.br
ciência. Isto fica bem claro já nos textos inaugurais da Revista Ter- Editores da Revista Terra Redonda
ra Redonda. Quatro acadêmicos brasileiros, com vários ensaios já Marcelo Kunimoto Roberto Moschen Jr.
publicados na página da Sociedade da Terra Redonda na Internet, Kunimoto@str.com.br Moschen@str.com.br
escreveram textos originais destinados a todos.
Editor de Ceticismo
Francisco Prosdocimi narra uma situação corriqueira, típica en- Daniel Sottomaior
tre pessoas céticas, quando nos deparamos com questionamentos Sottomaior@str.com.br
de outras pessoas. O professor Renato Zamora Flores, com maes-
tria, explica os efeitos nocivos que as religiões têm nas crianças. Editor de Ateísmo
Mozart Hasse
Jorge Ducati, também professor, nos conta sobre o décimo planeta Hasse@str.com.br
do sistema solar, recém-descoberto, e como outros deverão ser en-
contrados num futuro próximo. Por fim José Colucci Jr., brasileiro Editores de Ciência
residente nos EUA, versa um pouco sobre as relações entre governo Sandro Rembold Bruno Rennó
e religião no Brasil e pelo mundo. Rembold@str.com.br Renno@str.com.br

Trabalharemos com ansiedade pelos próximos números, pelo Editor de Laicismo


surgimento de novos brasileiros divulgadores dos ideais que tanto Fábio Emerim
Emerim@str.com.br
prezamos. Você mesmo pode ser um deles, basta tirar aquele rascu-
nho da gaveta e enviá-lo para nossa equipe. Se fizermos nossa parte Editor de Links
neste mundo assombrado por religiões e pseudociências nocivas, Luis Brudna
iluminando com racionalismo científico e pensamento crítico os Brudna@str.com.br
espasmos de obscurantismo que ainda restam, nossos descendentes
poderão ter uma compreensão mais clara da beleza do universo real Editores de Inglês
Åsa Heuser
que nos cerca. Sem medos, sem fantasmas. Um mundo real e por Heuser@str.com.br
isso mesmo melhor. Fábio Emerim Roberto Morrone
Emerim@str.com.br Morrone@str.com.br

Leo Vines Editores de Espanhol


Marcelo Kunimoto Juan Cisneros Julián Catino
Roberto Moschen Jr. Cisneros@str.com.br Catino@str.com.br
Teofobo
Teofobo@str.com.br

Editor de Português
Antonedson França
Franca@str.com.br
2 Revista Terra Redonda
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SUMÁRIO Revista Terra Redonda
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edição nº 1
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Dezembro de 2002

seções
2 Editorial
2 Equipe
4 Cartas
4 Publique
4 Entrevista
4 Pesquisa
5 Anuncie
18 Compras
19 Membros
19 Apóie
página CETICISMO página ATEÍSMO 28 Links

6 Um guia para o
cético boêmio 12 As religiões são
para as crianças?

STR
por Francisco Prosdocimi por Renato Zamora Flores

NASA elated.com

página CIÊNCIA página LAICISMO

20 Mais um objeto
transneptuniano
por Jorge Ducati
22 De Torquemada a
George Bush
por José Colucci Jr.
Revista Terra Redonda
3
STR Número 1 - Dez 2002
Cartas
Cartas
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Nosso principal objetivo é incentivar o surgimento de autores brasileiros que escrevam sobre os
temas tratados na Sociedade da Terra Redonda. Eleve sua voz, precisamos de você!

Entrevista
Entrevista
O HIPNÓLOGO FÁBIO PUENTES RESPONDE COMO AS RELIGIÕES USAM A HIPNOSE

Na próxima edição entrevistaremos o hipnólogo Fábio Puentes. Em seu


recente livro “Hipnose, Marketing das Religiões”, Fábio explica como as
religiões usam técnicas de sugestão e hipnose para angariar adeptos, muitas
vezes sem que percebam.
Envie suas perguntas para o nosso entrevistado através do endereço eletrônico
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Pesquisa
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Ceticismo

Foto: Microsoft Clip-Gallery


Um guia para o
C ético B oêmio
[ Temas como paranormalidade, experiências esotéricas e dádivas divinas sempre
acabam surgindo em uma mesa de bar, após algumas cervejas e aperitivos.
Parece inevitável. texto de Francisco Prosdocimi
franc@icb.ufmg.br

V
ez por outra isso acontece comigo, acho que Novamente algo como “todos que conheço mentem
não existem muitos céticos no Brasil. Digo muito” pode proporcionar uma descontração extra no
Brasil porque isso já me aconteceu mais de ambiente. Nesse momento pode-se prever o que vai
uma vez e as ocasiões não ocorreram sem- acontecer. Cada pessoa na discussão irá descrever o
pre na mesma cidade. Normalmente acontece assim: tipo de Deus em que acredita. Pessoal, não pessoal.
saio de casa pra descansar, divertir e tomar uma cerve- Onipotente ou com poderes limitados. Ativo ou apenas
ja e, pode saber, a noite vai acabar em discussões aca- observador. Uma força, uma energia, uma consciência
loradas. Até aí tudo bem, que mal há em discutir? É até coletiva ou outras coisas extravagantes. Não, devo di-
bom, a gente fica conhecendo mais sobre as outras pes- zer, não acredito em nada, nem em qualquer tipo de
soas e pode aprender bastante se a discussão for boa. energia cósmica universal esquisita.
O problema é que, naquelas que eu estou acostumado
a participar, é quase inevitável que eu seja um dos úni- - Ei, pelo menos em espíritos você acredita, não é?
cos, senão o único, representante de uma determinada - Não, não acredito. – É minha resposta mais uma vez.
posição, enquanto todo o resto da mesa toma partido - Pô, nem em vida após a morte?
do outro lado. Esse é um dos problemas de ser cético. - Também não.
É claro que o assunto de que estou falando é reli-
gião, mas pode acrescentar também misticismo e para- Nesse momento já liguei meu botão de “não acredi-
normalidade. Em uma mesa de bar, depois de algumas to” e setei-o no grau máximo. É nessa hora que começa
cervejas, o cético é o inimigo ideal de qualquer pessoa, a enxurrada. As pessoas sempre querem achar alguma
ainda mais se considerarmos que poucos sabem o que é coisa em que você acredite: anjos, demônios, telecine-
um cético. Logo vem a primeira pergunta, sempre ela: se, bruxas, fantasmas, astrologia, influências lunares,
Thomas Green Morton, alienígenas, homeopatia, Uri
- Ei, quer dizer que você não acredita em Deus? Geller, radiestesia, papai-noel e coisas do gênero. De-
- Não, não acredito. pois de desacreditar todas essas coisas, é a vez de co-
meçarem a questionar até mesmo coisas idiotas, como
Você pode até emendar um “ele mente muito”, pra uma pedra ou um copo de cerveja:
quebrar o clima, pode ser interessante no início da
discussão. Logo em seguida vêm aquelas perguntas - Não venha me dizer agora que você acredita nessa
inevitáveis quando se fala de Deus: cerveja?

- Em que tipo de Deus, então, você acredita? Essa é a pior hora, quando começam a debochar. Já
- Não acredito em deus, de nenhum tipo. tentei várias opções quando chega esse momento. A
primeira opção é apelar, xingar todo mundo e ir embo-

6 Revista Terra Redonda


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ra. Sem pagar a conta, claro. É uma píritos e nem em vida após a morte. e explicar o ponto de vista cético,
ótima opção quando se está sem Um absurdo! Alguns céticos prefe- tim-tim por tim-tim. Na maioria
dinheiro, recomendo até para os rem esconder seu ateísmo no início das vezes essa pessoa já era uma
crédulos no fim do mês. A segunda da discussão e podem até se dizer quase-cética antes do assunto co-
opção é debochar de volta: agnósticos, no fundo não faz muita meçar e é provável que você possa
diferença. A filosofia é a mesma influenciá-la a pensar de acordo
- Ah, estive mentindo! Na verdade e não se cria um clima ruim das com o ponto de vista cético. Mas
acredito, sim, num ser superior que pessoas para com o cético. Pesso- para isso é necessário que ela tenha
manda em todo mundo aqui, que almente prefiro confessar logo meu chegado a várias conclusões sobre
consegue ver tudo, estar em todos ateísmo, mas é uma opção pessoal. o ceticismo independentemente.
os lugares ao mesmo tempo, escu- E depois é preciso ter muita paciên- Por falar nisso, este argumento
tar todas as preces e olhar por cada cia pra conseguir explicar toda sua é um dos melhores para se conven-
pessoa individualmente. Super-po- filosofia dentro da discussão. cer alguém sobre a legitimidade do
deroso! Além disso julga a todos pensamento cético: várias pessoas
depois que morremos e decide, podem chegar, independentemente,
segundo um critério, que só-Deus-
sabe, quem é que deve ir pro céu
“o ceticismo é uma a ter filosofias céticas semelhan-
tes, sem nunca terem ouvido falar
e quem deve ir pro inferno ou pro conclusão lógica que umas das outras ou sem terem lido
limbo, sei lá. Acredito também que os mesmos livros ou seguido os
a força cósmica de alguns astros es- pode ser alcançada a mesmos mestres. Isso mostra que
pecíficos que formam constelações partir de vários pontos o ceticismo é uma conclusão lógica
em forma de animais influenciam que pode ser alcançada a partir de
diretamente o comportamento de de partida diferentes vários pontos de partida diferentes,
todos os seres humanos de uma ao contrário de outras formas de
maneira que só os astrólogos sa- Vale lembrar que uma parcela filosofia religiosas, onde é preciso
bem qual. É, e acredito também de céticos acredita que o ceti- ter lido a Bíblia, o Corão, os en-
que todo mundo está aqui para cismo não leva necessariamente sinamentos de Buda ou o “Livro
cumprir um carma pessoal e que ao ateísmo. Acredito que isso se dos espíritos”. O ceticismo não tem
tem o que merece por ter feito tanta deva, principalmente, a diferenças qualquer tipo de líder espiritual
asneira nas vidas passadas - e haja nos conceitos de ateísmo, teísmo e e não é uma conclusão alcançada
asneira pra ter tanta gente pobre e agnosticismo. Assim, o ateísmo a ou vislumbrada por apenas uma
malfadada no mundo. que me refiro nesse texto pode ser pessoa, como Jesus Cristo, os
considerado como a crença na não- apóstolos, Maomé, Buda ou Kar-
Essa segunda saída também existência de um deus ou de vários dec. O ceticismo é uma conclusão
pode ser, algumas vezes, uma boa deuses baseada na falta de evidên- sobre o mundo baseada na lógica
opção. Recomendo para aqueles cias sobre sua(s) existência(s). e na razão, que pode ser alcançado
que já perderam a paciência com o Voltando à discussão, percebo por qualquer indivíduo que se dê
início da discussão ou para os que sempre que metade das pessoas ao luxo de observar e investigar o
sabem que mais cedo ou mais tarde que iniciarem a conversa irão se mundo por si mesmo, procurando
terão que pagar a conta e que a pri- despedir e irão pra casa. Lem- as verdades de forma completa e
meira opção não é viável. bre-se que esse tipo de conversa profunda, não aceitando dogmas
Mas, afinal, devo confessar: normalmente começa apenas após e respostas simples e superficiais
a melhor opção é mesmo tentar algumas rodadas de chopp. Já será para explicar seus mais profundos
explicar direitinho qual é a posi- tarde, um bom conselho é dizer questionamentos.
ção do cético, quais são as nossas aos que vão embora para não se Voltemos agora ao único resis-
filosofias e o que pensamos sobre a esquecerem de pagar suas res- tente da discussão inicial, existe
vida. É verdade, essa é a opção me- pectivas contas. Bem, metade dos também a opção de que esse in-
nos divertida das três e é necessário que permaneceram no bar irá se divíduo não seja um quase-cético.
que o outro lado esteja disposto a te dispersar, entretendo-se em outros Talvez ele seja simplesmente um
escutar. Não é tão fácil assim expor assuntos, polêmicos ou não. Cerca interessado em religiões e, dessa
o pensamento cético, ainda mais de 50% daqueles que continuaram forma, vai ficar um pouco mais di-
depois de algumas cervejas. no mesmo assunto, seu ceticismo, fícil explicar-lhe o ceticismo, pois
Nesse momento as pessoas já irá fingir que está te escutando mas será necessário partir de todos os
começam a te escutar meio que vai ficar ali meio aéreo, viajando, e princípios básicos. E haja cerveja!
contrariadas, achando que você é vai sempre perguntar alguma coi- Mas, de qualquer forma, acredito
um radical, que tudo o que disser sa que você acabou de responder. que essa última pessoa deva ser
estará errado e que não há nada (Sempre há um chato desses.) A realmente alguém que esteja inte-
que você possa dizer para fazê-las única outra pessoa que estava par- ressado em sua filosofia de vida
mudar suas opiniões. Afinal você ticipando da conversa é quem você e, dessa forma, deve ser capaz de
não acredita em Deus, nem em es- vai conseguir conversar de verdade entender boa parte de seus argu-

STR
Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 7
Ceticismo
mentos. Nada nos impede de criar outras imersos. Ah, é claro, é importante
Pois bem, digamos que você, lei- hipóteses. A hipótese H2 poderia que tais objetos caibam dentro do
tor, seja a última pessoa do bar. É, se referir ao fato do mundo ter sido recipiente, como parece óbvio para
essa que ficou por último escutando criado por vários deuses e a hipótese a metodologia do trabalho.
o que o cético tem a dizer. Eu sou o H3 poderia fazer alusão ao fato de O critério da reprodutibilidade,
cético, muito prazer. Saiba que já o que o mundo tivesse sido criado por principalmente quando realizado
considero um cético em potencial, uma alface rosa e falante. Qualquer por equipes diferentes em laborató-
só por já ter chegado até aqui. Vou hipótese é válida nesse momento. O rios diferentes ao redor do mundo, é
até pedir mais uma cerveja para po- próximo passo é que será o decisivo: importante para o método científico
der explicar-lhe porque sou cético. o teste das hipóteses. e reforça a credibilidade de determi-
Desce uma skol bem gelada! Neste passo deve-se criar expe- nada descoberta. Citando um exem-
É, meu amigo, penso que sou rimentos para testar cada uma das plo recente, quando o primeiro ma-
cético devido a alguns poucos mo- hipóteses propostas. Através dos mífero, a ovelha Dolly, foi clonado
tivos: primeiro porque conheço e resultados dos experimentos pode- em laboratório, toda a comunidade
entendo o método científico, segun- remos descobrir quais das hipóteses científica ficou estarrecida com
do devido ao fato de que consigo e são falsas ou qual delas é a mais os resultados desse experimento
acho interessante aplicar o métido plausível dentre aquelas que foram e criou-se um clima de ceticismo
científico a todas as questões que propostas. Esta será considerada entre os cientistas. Um ceticismo
me são apresentadas e, por último, como “verdade” até que surja algu- saudável, considerando o pequeno
porque gosto de questionar as coisas ma outra que se encaixe melhor aos número de animais clonados e a
e não aceito como verdade tudo o resultados de nossos experimentos novidade da técnica. Tal ceticismo,
que me é dito. Agora é a vez de ten- ou até que surja algum fato novo. relacionado à possibilidade de clo-
tar fazê-lo entender cada um desses No caso da origem do universo, nagem de mamíferos, logo foi dis-
motivos, começando com o método não há como testar as hipóteses. solvido, principalmente quando ou-
científico. Não existe um experimento possível tros laboratórios ao redor do mundo
O método científico é simples- que possamos fazer para nos dizer obtiveram sucesso ao clonar outros
mente um conjunto de passos que qual das duas hipóteses é a correta. animais, principalmente em estado
é necessário ser seguido para que Entretanto tudo seria mais fácil se embrionário. Quanto à clonagem
consideremos uma determinada nossa observação fosse relativa, de indivíduos adultos, parece que o
afirmação como verdadeira ou falsa. por exemplo, à quantidade de água experimento ainda não foi repetido
Muito já se estudou sobre o método que transbordaria de uma banheira um número adequando de vezes e
científico e vou tentar mostrar aqui cheia onde um determinado corpo ainda há um certo grau de ceticismo
seus pontos básicos, mas é preciso fosse inserido. O que poderia acon- na comunidade.
dizer que o método consiste sim- tecer se colocássemos um objeto Entretanto, voltando ao nosso
plesmente em uma forma lógica de qualquer em tal banheira repleta de exemplo, não há como experimentar
se testar hipóteses formuladas para água? Poderíamos propor, digamos, com a idade do universo. As hipóte-
explicar determinado evento. A toda duas hipóteses sobre a quantidade ses H0 e H1 chegam a ser quase ab-
hora aplicamos o método científico de água transbordada: a primeira surdamente improváveis, mas é pre-
sem nos darmos conta disso. afirma que o volume de água trans- ciso definir qual é a mais improvável
Normalmente, a primeira etapa bordado seria idêntico ao volume do das duas. Parece bastante difícil de
do método científico é observação objeto imerso e segunda proporia aceitar o fato do universo ter surgi-
de algum fenômeno natural, como que a massa de água transbordada do do nada. Esse fato parece bastan-
a própria existência do universo. seria idêntica à massa do objeto. Se te improvável. Entretanto parece ser
Após termos definido um deter- fizéssemos, então, o experimento igualmente improvável que um ser
minado fenômeno que queiramos em uma banheira e imergíssemos altamente inteligente, poderoso e sá-
avaliar, devem ser criadas uma ou nela corpos de diferentes volumes e bio tenha criado o universo. Afinal,
mais hipóteses que tentem explicar massas, poderíamos, como fez Ar- de onde teria surgido tal entidade? E
porquê acontece determinado even- quimedes, gritar “Eureka!” e dizer como poderia ter surgido, do nada,
to escolhido. No caso da existência que descobrimos o resultado. um ser tão complexo assim? Fica
do universo poderíamos criar, por Outras pessoas que realizassem difícil escolher qual das hipóteses é
exemplo, duas hipóteses para expli- o mesmo experimento em diversas a mais provável.
car tal acontecimento: a hipótese H0 outras partes do planeta chegariam, Entretanto o método científico já
e a hipótese H1. também, às mesmas conclusões, traz acoplado um sistema utilizado
concordando com nossa descoberta. para resolver exatamente problemas
Hipótese H0: o universo criou-se O resultado deveria ser idêntico, como esse. Vejamos um outro exem-
sozinho a partir do nada. mesmo se os outros cientistas uti- plo. Digamos que saibamos que um
Hipótese H1: o universo foi criado lizassem um tanque, um copo de determinado indivíduo tenha saído
por um ser perfeito. Onipotente, cerveja, um balde ou qualquer reci- de um ponto A (representado pelo
onipresente e altamente complexo piente ao invés de um banheira. O meu copo de cerveja) e esteja, em
- Deus. mesmo vale para os objetos a serem um determinado momento, em um

8 Revista Terra Redonda


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ponto B (representado pelo seu copo de cerveja, pode mo método científico. É claro, também, que o exemplo
ser?). Poderíamos, por exemplo, propor duas hipóteses mostrado simplifica bastante determinados aspectos
nesse caso. A primeira hipótese seria a de que o indi- sobre o método científico e a navalha de Occam. Além
víduo foi do ponto A até o ponto B em linha reta; e disso, normalmente existem mais dados dentro do pro-
a segunda hipótese seria a de que o indivíduo não foi blema que nos permitem inferir com mais certeza a res-
em linha reta de A até B e sim passou por um ponto C posta correta. Como já foi comentado, se soubéssemos
(representado pela garrafa de cerveja) antes de chegar a velocidade média de deslocamento do indivíduo, o
até B. tempo do percurso e a distância entre A e B podería-
Foto: elated.com mos inferir com mais certeza o que teria acontecido. Da
mesma forma, se tivéssemos filmado alguma parte do
trajeto de nosso indivíduo, poderíamos levar a gravação
em consideração ao propor nossa melhor explicação do
evento acontecido.
É interessante aqui dar mais um exemplo cotidiano
A onde pode ser aplicado o princípio da navalha de Oc-
cam. Aconteceu lá em casa ontem. Deixei, pela manhã,
um pouco de ração canina pro Bulldog, meu buldogue,
em sua vasilha de comida. Então, quando cheguei em
casa à noite, não havia mais ração em sua vasilha.
C Analisando tal fato cientificamente poderíamos propor
uma série de hipóteses para tentar explicar o fantástico
sumiço da comida canina. A primeira hipótese pode-
ria ser a de que o Bulldog havia comido sua comida;
B a segunda hipótese poderia estar relacionada à minha
irmã (folgada, que fica em casa o dia todo) ter comido
a ração do buldogue; uma terceira hipótese faria alusão
ao fato de um extraterrestre habitante de Europa, uma
das luas de Júpiter, ter vindo de lá especialmente pra
É importante notar que não temos nenhum dado comer tal ração canina; e uma quarta hipótese pode-
extra que nos permita saber o caminho que o indivíduo ria estar relacionada ao desaparecimento repentino da
em questão percorreu. Se tivéssemos os valores preci- ração, sem qualquer motivo aparente. Como não tenho
sos das distâncias entre os pontos, de sua velocidade qualquer indício que me permita decidir sobre qual das
média e o tempo gasto no percurso poderíamos, sem hipóteses pareça a mais viável – não havia nenhuma
qualquer sombra de dúvida, apontar qual das hipóteses nave espacial pousada no quintal –, devo utilizar a na-
estaria correta. Mas suponhamos que essa informação valha de Occam para decidir qual das hipóteses consi-
não nos foi dada ou não seja possível de ser recuperada, derar como verdadeira. Devo escolher, portanto, a mais
de forma que tenhamos que nos virar assim mesmo. simples delas. Acho que você já entendeu.
Pois bem, portanto os cientistas criaram uma for- O exemplo acima mostra como utilizamos, sem nos
ma de se escolher entre uma ou outra hipótese. E essa dar conta, o método científico em nossa vida cotidiana.
forma é chamada de princípio da parcimônia ou de “a Na verdade tal método não é nenhum bicho de sete
navalha de Occam”. Segundo esse princípio, quando cabeças, consiste simplesmente de uma formalização
duas hipóteses explicam de forma igualmente satis- do senso-comum. A rigidez metodológica que obser-
fatória um determinado evento, deve-se aceitar como vamos em trabalhos científicos existe para garantir os
verdadeira aquela que seja mais simples ou que apre- bons resultados e para convencer a comunidade cientí-
sente um menor número de passos para ser executada. fica sobre a veracidade destes.
Dessa forma, no caso acima, escolheríamos, como Voltemos mais uma vez ao nosso problema divino.
verdadeira, a primeira hipótese, que diz que o indiví- Como saber qual das hipóteses estaria correta? Será que
duo teria ido diretamente de A para B. É interessante seria H0, que propunha que o universo havia sido cria-
notar que ele poderia ainda ter passado por C ou por do sozinho, ou H1, onde um Deus super-poderoso teria
um outro caminho qualquer e poderia, até mesmo, ter criado o nosso universo? Já observamos que ambas as
dado toda uma volta completa ao redor do mundo a hipóteses parecem absurdas, mas temos que escolher
partir de A antes de chegar até B. Mas como não temos qual delas seria a mais parcimoniosa, ou seja, aquela
nenhum dado extra, nunca poderemos saber o que ele que seria adotada pelos cientistas para considerar o
realmente fez e, assim, preferimos considerar que ele início de tudo. A resposta é que a hipótese considerada
utilizou o caminho mais provável, ou seja, uma linha como verdadeira seria a primeira, H0, pelo simples fato
reta entre A e B. Esse princípio da parcimônia, embora de que exige um passo a menos, sendo, assim, a mais
seja questionável, tem sido aplicado em todos os ramos simples delas.
da ciência, desde a medicina até a engenharia e todo o Deixe-me explicar melhor: a hipótese H0 considera
conhecimento científico e tecnológico produzido pela que o universo, algo extremamente complexo, surgiu
humanidade foi gerado seguindo exatamente esse mes- do nada e ponto. Já a hipótese H1 considera que Deus,

STR
Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 9
Ceticismo
um ser altamente complexo teria versa começou a ficar mais séria, que são cientistas por profissão e
surgido do nada (ou teria sempre que boa parte das pessoas foi embo- os que são cientistas por filosofia
existido). Até aí pode-se discutir ra do bar ou se entreteve em outros de vida. A diferença entre eles é,
qual das duas hipóteses seja a mais assuntos. Entretanto, se alguém con- simplesmente, a porta do laborató-
simples de ter acontecido e, nesse seguiu acompanhá-lo até aqui, isso rio. Imagina-se que ambos sejam
ponto, acredito que não se possa pode significar que seu ouvinte está completamente rigorosos em seus
descartar, ainda, a hipótese H1. A bastante interessado no assunto (ou trabalhos científicos, o que os torna
ciência aceita, nos dias de hoje, a que é educado o suficiente para não indistinguíveis no meio científico.
hipótese H0, simplesmente pelo fato ir embora enquanto você desenvolve Não é possível identificá-los em
de que a hipótese H1 necessita de uma cadeia de raciocínios). No pri- congressos e reuniões profissionais.
mais um passo, ela necessita de um meiro caso ficará fácil terminar suas Entretanto aqui, na mesa do bar, é
“e”. O fato de Deus ter sido criado explicações sobre os outros pontos fácil identificá-los.
do nada explica o surgimento do que determinam a filosofia de vida Os cientistas por profissão são
próprio Deus e não o surgimento do cética. No segundo caso agradeça aqueles que utilizam o método
universo. Nossa hipótese H1 neces- a pessoa pela atenção e despeça-se científico somente quando estão
sita de que Deus tenha sido criado dela. Acredite que você já realizou em seus laboratórios. Muitos deles
do nada “e” tenha, posteriormente, um bom serviço e que isso poderá saem de seu ambiente de trabalho
criado o universo. Essa última hipó- fazer com que ela pense um pouco e vão praticar seções de cromote-
tese apresenta dois passos, enquanto melhor em hipóteses, experimentos rapia, levam seus filhos e parentes
a primeira hipótese apresenta ape- e em como se constrói um conhe- a médicos homeopatas e dão florais
nas um, o que a faz ser descartada cimento fidedigno. É claro que isso de Bach para seus animais de es-
timação. Podem ainda freqüentar
centros espíritas, igrejas das mais
“se algum dia houver evidências consistentes da diversas ordens ou realizar consul-
tas periódicas a videntes e astrólo-
existência de alguns desses seres, é evidente que gos. Apesar disso, dentro de seus
laboratórios não há reza brava que
os céticos acreditarão em sua existência resolva algum problema. Na meto-
dologia de seus artigos nunca estão
os rituais ou preces realizadas para
quando utilizamos a navalha de pode não acontecer e seu ouvinte que seus experimentos funcionas-
Occam. Além disso, novas teorias pode simplesmente esquecer tudo sem e, profissionalmente falando,
em física, relacionadas à mecânica ao sair do bar, mas é melhor não são céticos. Entretanto não querem,
quântica, já podem propor, de forma considerar essa hipótese. não gostam ou não se importam em
ainda bastante especulativa, como o Espero, prezado leitor, que você utilizar o método científico fora de
universo poderia ter sido gerado seja um daqueles que se enquadram seu ambiente de trabalho e podem
a partir de um nada. Mas, mesmo no primeiro caso e, portanto, vou muito bem acreditar em coisas um
sem considerar essas novas teorias, continuar. Mas antes é preciso pe- tanto inusitadas.
podemos dizer que Deus não existe dirmos outra cerveja. A segunda classe, os cientistas
na ciência. por filosofia de vida, acreditam que
Com relação a outras entidades - Desce mais uma, garçom! o método científico pode e deve ser
como espíritos, alienígenas, anjos, utilizado para resolver qualquer tipo
demônios e coisas do gênero, não Bem, até agora estive falando de problema, dúvida ou questiona-
existe evidência empírica. Ninguém que um dos principais alicerces mento. Mesmo do lado de fora do
nunca pôde provar a existência de do pensamento cético é o método laboratório. E, é importante notar,
algum deles. E, a menos que seja- científico. Se um indivíduo conhece os cientistas por filosofia de vida
mos loucos o suficiente para acredi- e entende bem esse método já se podem não ser cientistas por profis-
tar que existe uma conspiração entre enquadra na posição de, digamos, são. A maioria deles não é, a bem
os governos e determinadas pessoas um pré-cético. Dessa forma pode- da verdade. Conheço alguns que
para esconder a existência de tais mos concluir que todos os cientistas são advogados, médicos, dentistas,
seres, não há porque acreditar que do mundo sejam pré-céticos, afinal administradores, engenheiros, pu-
existam. Entretanto, se algum dia acreditamos que todos eles conhe- blicitários e até mesmo psicólogos.
houver evidências consistentes da çam o método científico, que é a Esses são os indivíduos que buscam
existência de alguns desses seres, é base de seu próprio trabalho. Mas sempre conclusões mais sólidas e
evidente que os céticos acreditarão por que os cientistas seriam apenas confiáveis para as questões que os
em sua existência. É um absurdo pré-céticos e não céticos por com- afligem, dentro ou fora do ambiente
acreditar na existência de qualquer pleto? de trabalho. É verdade, nessa bus-
ser com o qual ninguém tenha con- Nesse ponto é que acredito ca incansável pela verdade mais
seguido provar já ter tido contato. que podemos dividir os cientistas adequada em todos os casos, tais
Foi nesse ponto, em que a con- em duas classes distintas: aqueles pessoas podem se tornar bastante

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chatas e questionadoras, um efeito olhos e utilizando equipamentos ela pensa ter sido causada por al-
colateral inevitável. É bom que você adequados. Afinal, quem disse que gum fenômeno paranormal, é bem
tenha bons argumentos e provas o sabre de luz é verdadeiro? Será possível que qualquer explicação
pra convencer um sujeito desses de que essa pessoa testou a sofisticada racional será mais simples do que
qualquer coisa que lhe tenha acon- espada jedi e tentou perfurar algum a suposição inicial levantada. E so-
tecido, mesmo em uma conversa tipo de metal com ela? Quem disse mente isso já é capaz de fazer com
informal aqui na mesa do bar. que o suposto jedi realmente pratica que a opção alternativa seja mais
Um indivíduo, portanto, que co- telecinese? Será que nosso amigo provável.
nhece o método científico e aplica-o o viu praticando algum efeito? E Chegamos, finalmente, ao final
tanto em problemas profissionais se viu, será que nosso “jedi” não de nossa conversa. Com esses pré-
quanto em problemas da vida coti- poderia ser alguém que quisesse requisitos acredito que qualquer
diana, que chamei aqui de cientista enganar nosso amigo e tenha uti- pessoa possa vir a tornar-se um
por filosofia de vida, já é quase um lizado algum truque? Será que as cético. Espero que você tenha en-
cético completo. Acredito que só lhe pessoas cujo comportamento foi tendido o ponto de vista exposto e
falte mais um ingrediente importan- induzido pelo suposto jedi, se é que perceba, agora, por que não acredito
te, o que exige mais outra explica- isso aconteceu, não eram amigos ou em Deus, espíritos, gnomos, vam-
ção e, portanto, mais uma cerveja. comparsas do jedi em seu truque? piros e coisas do gênero. Desafio
Garçom! É preciso questionar os fatos e e convido você a tentar também,
Agora você já pode ter certeza. utilizar, também aqui, a navalha de agora que entendeu os pressupostos,
Quem esteve escutando sua explica- Occam. Lembro-me de uma vez em adotar uma posição de cético duran-
ção até agora não vai mais embora. que um amigo, tentando me provar te, digamos, uma semana. Que tal?
Está curioso para saber onde termi- a existência de espíritos, disse-me Prometo que não irá se arrepender,
na essa estória. A pessoa que tenha que, em uma certa república onde o mundo se tornará mais simples,
entendido perfeitamente tudo o que morava sua namorada e onde ha- mecânico e real, menos fantástico e
já foi explicado até aqui, já não tem via morrido um rapaz enforcado menos místico mas ainda sim lindo,
mais aquele preconceito que tinha certa vez, as janelas sempre batiam perfeito e inexplicável. Espero que
quando você, no início da conversa, muito e, vez por outra, alguma coisa você possa passar nossa filosofia de
disse que era ateu. Ela já te entende. sumia de seu lugar e determinada vida adiante, pois acredito que seria
Pode até não concordar com você, porta abria sozinha. Será que não melhor viver em um mundo menos
mas entende seu ponto de vista e é normal perder alguns objetos de fantasioso e com pessoas mais ques-
pode até achar interessante. Talvez vez em quando? Será que a porta tionadoras e com mais senso crítico,
essa pessoa nunca se torne cética ou não poderia estar com a fechadura que não aceitem tudo que lhes é dito
jamais concorde com alguns pres- estragada? Será que o vento não como verdades absolutas e imutá-
supostos do método científico, mas poderia ser o responsável por bater veis. Acredito que nossa sociedade
é provável que nunca mais tenha as janelas? O que é mais simples: seria melhor assim.
rancor, ódio ou raiva dos céticos, todos esses fatos corriqueiros Obrigado pela atenção e até um
ateus e similares. Ponto pra você. acontecerem ou existir um mundo próximo bar, algum outro dia. Eu
A cerveja chegou, vamos ao último dos espíritos onde um determinado pago a conta.
quesito que acredito caracterizar rapaz que se suicidou devido à sua
um cético.
Pois bem, a única coisa que acre-
vida atormentada fica voltando pra
amedrontar casais de namorados
- Garçom! ■
dito faltar a um “cientista por filoso- indefesos? É preciso questionar as
fia de vida” para que vire um cético informações que se obtêm. Deter-
completo é a dúvida sobre todo o minados fatos podem e devem ser
conhecimento que recebe. É preciso explicados de forma simples e não
questionar os fatos para saber o que, através da existência de monstros,
de fato, aconteceu, quando se consi- assombrações ou espíritos.
dera determinado evento. Digamos Durante essa última parte da
que um indivíduo diga que conhece conversa é possível que a pessoa
alguém que possui um sabre de luz, com quem você está conversando Sobre o autor
que é capaz de praticar telecinese e apresente algum relato extraordiná- Francisco Prosdocimi é especialista em
pode induzir o comportamento de rio que tenha acontecido consigo e é bioinformática pelo LNCC e mestrando
outras pessoas. Mesmo utilizando preciso ter um bom jogo de cintura em genética pela UFMG. Atualmente
o método científico, se o que nosso e saber questionar os fatos em ques- trabalha em bioinformática, estudando
amigo diz for verdade, poderíamos tão, de forma a mostrar-lhe como a os genes transcritos de Schistosoma
concluir que existe realmente tal base de sua argumentação é falha. mansoni no laboratório de Genética-
jedi. A questão a ser colocada, no Deve-se criar um modelo hipotético Bioquímica do Instituto de Ciências
caso, é que devemos questionar as alternativo para explicar, da forma Biológicas da UFMG.
premissas, de preferência conferin- satisfatória, o fato acontecido. E, franc@icb.ufmg.br
do-as através de nossos próprios se a pessoa tem uma história que www.icb.ufmg.br/~franc/cool/index.htm

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Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 11
Ateísmo

As religiões são
para as crianças?
texto de Renato Zamora Flores
rzflores@vortex.ufrgs.br

M
uitas escolas, públicas e particulares, in- tresse, diminui o risco de suicídio, melhora a qualidade
cluem aulas de religião em seus currículos. de vida de pacientes terminais, etc. Entretanto, não há
Muitas outras crianças, ainda, freqüentam consenso científico nem sobre isso.
atividades específicas para suas idades, Uma análise bastante completa de pesquisas sobre
nas igrejas da preferência de seus pais. saúde e religião mostrou muitos problemas de meto-
O senso comum é de que o ensino religioso, para dologia: 83%, dos 266 artigos científicos localizados,
crianças, seria útil em diversos aspectos. Um deles eram irrelevantes para as afirmações que faziam, de
seria o de facilitar o aprendizado de comportamentos melhor saúde associada à participação religiosa. Dos
socialmente adequados, como a obediência a Deus e demais, muitos apresentavam falhas metodológicas
aos pais, por extensão. significativas, sobrando poucos que poderiam, verda-
Outro, mais importante, seria o de que indivíduos deiramente, demonstrar os efeitos benéficos da parti-
criados em um ambiente de educação religiosa pode- cipação religiosa. Os autores concluíram que há pouca
riam adquirir padrões éticos e morais mais elevados. base empírica para afirmar que a participação em ativi-
Isso seria obtido pela absorção de uma visão de mundo dades religiosas está associada a benefícios da saúde2.
religiosa, durante o desenvolvimento infantil, na qual O principal erro encontrado nestas pesquisas é o
se aprende que a divindade estabeleceu uma ordenação de pressupor que um possível efeito benéfico é cau-
moral que se tem alguma obrigação de seguir. sado pela religião, sem verificar a possibilidade de
Não foi possível identificar pesquisas cientificamen- que algum outro fenômeno, mais simples, possa ser
te adequadas que confirmem tal efeito. Entretanto, uma a causa, como uma melhor educação ou uma renda
das pesquisas sobre o tema, em indivíduos adultos, maior, entre os indivíduos mais religiosos. Muitas re-
chegou à dura conclusão de que “a igreja é, na melhor ligiões propõem códigos de conduta rígidos, nos quais
das hipóteses, irrelevante e, na pior delas, um centro são proscritos muitos comportamentos de risco, como
de treinamento de hipocrisia, indiferença [social] e fumar, consumir bebidas alcoólicas, etc. O efeito sobre
crueldade”.1 a saúde, então, é conseqüência da conduta e não da re-
O presente artigo tem como objetivo analisar a hi- ligiosidade, por si mesma.
pótese de que o convívio de crianças com qualquer das Além disso, certas formas de religiosidade aumen-
religiões encontradas no Brasil possa não ser benéfico tam o risco de morte de seus crentes, como nas situa-
e, pior, possa produzir efeitos colaterais indesejáveis. ções em que o paciente vivencia a doença como uma
Não restam dúvidas de que a história está repleta de forma de abandono divino3.
indivíduos que forneceram contribuições importantes Existem vários possíveis efeitos negativos do ensino
à humanidade e possuíam sólida formação religiosa. de religião, na literatura científica, que podem trazer
Madre Tereza de Calcutá, Chico Xavier e o Bispo Des- prejuízos ao desenvolvimento do pensamento crítico e
mond Tutu são alguns exemplos. Não há como saber, independente, em crianças, que figuram na Tabela 1.
porém, se foi a religião que tornou esses indivíduos
especiais. A causa de seus poderes de
transformação social poderia estar, por Tabela 1. Inadequações do pensamento religioso no desenvolvimento infantil
exemplo, em uma estrutura de persona- Fenô me no E fe it o
lidade especial.
A pergunta a ser feita, então, é: a Atrasa o desenvolvimento moral e
Teoria do mundo justo
formação religiosa traz algum benefí- diminui a empatia
cio para o desenvolvimento da maioria Favorece a separação social de
dos indivíduos? Separação entre nós e eles
grupos e aumenta a belicosidade
Já se sabe, há muito tempo, que a
vinculação a alguma religião parece Prejudica o raciocínio científico e
fazer bem para a saúde de indivíduos Conflitos de raciocínio
favorece a ambivalência
adultos: aumenta a resistência ao es-

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1. A teoria do mundo justo Diversas pesquisas 4 mostraram que esse sistema de
Acreditar que uma divindade onipotente e sábia é a dupla crença, em uma divindade e em um mundo justo,
responsável pela ordem do universo tem uma série de favorece o autoritarismo político: as pessoas poderosas
conseqüências na percepção de como o mundo funcio- são percebidas como melhores (moralmente) do que as
na. A teoria do mundo justo é uma delas. Faz parte de impotentes, pois o sucesso é um sinal de virtude.
um conjunto de tendências inatas de funcionamento do Como Deus controla tudo, inclusive loterias e sor-
cérebro humano que ajudam a organizar, de maneira teios, os indivíduos muito religiosos acreditam que
lógica, a aprendizagem social e moral das crianças. esses são meios para, por exemplo, selecionar pro-
Os seres humanos são dotados de senso inato de fissionais mais adequados. Os ganhadores da loteria
justiça que favorece a crença de que este é, então, seriam mais merecedores, eticamente, do que os não
um mundo justo. Piaget denominou essa tendência de vencedores5.
“justiça imanente”, que é mais evidente em crianças Indivíduos com tendências fundamentalistas, de-
aos seis anos de idade, decrescendo, em importância, vido a essa crença, culpam as vítimas e negam seu
posteriormente. É a crença em uma justiça automática, sofrimento, como uma maneira de manter e proteger a
impregnada na natureza e até nos objetos inanimados. fé. Trata-se de um modo de raciocinar que é inerente ao
Trata-se de uma predisposição mental, oriunda de pensamento religioso. Não fazê-lo cria uma incongru-
nossa história evolutiva, que é estimulada e ampliada ência psicológica que força, mentalmente, o indivíduo
por crenças religiosas. a resolvê-la. Aquilo que parece injustiça é, de fato, con-
Existe uma forte correlação entre a crença em um seqüência do pecado, caso contrário, Deus não seria
Deus que é ativo na vida dos seres humanos, e a teoria perfeito nem disporia de poder absoluto.
do mundo justo, ou seja, quanto mais crê na divindade, Assim, uma crença excessiva na justiça divina é
mais o mundo deve ser justo e cada um está recebendo danosa para a sociedade, pois favorece o imobilismo
dele o que merece. Ainda que o crente esteja, genuina- e pode retardar o desenvolvimento do raciocínio moral
mente, comprometido com a justiça, o resultado é um em crianças, atrasando o desenvolvimento de etapas
menor engajamento em propostas de mudança social. posteriores, nas quais ocorre o aparecimento de con-
Por isso, indivíduos muito religiosos tendem a ser mais ceitos como o de respeito mútuo, de uma justiça distri-
conservadores. butiva e de reciprocidade.

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Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 13
Ateísmo
2. A separação entre nós e eles frente a outras religiões. Os membros de outras crenças
ou são tidos como ignorantes ou são “possuídos” por
Durante a evolução dos hominídeos, a questão de supostos demônios, necessitando de um “descarrego”
identificar quem pertencia ao grupo foi fundamental para sua salvação. Encontramos exemplos dessa ten-
para o desenvolvimento da cooperação e da solida- dência divisionista nos programas televisivos de religi-
riedade. Essa capacidade mental era tão importante ões evangélicas, nos quais se apresentam, com monóto-
que, hoje, podemos identificar, na mente humana, uma na regularidade, indivíduos possuídos pelos demônios
tendência inata a dividir as pessoas entre os que per- que se escondem por trás de outras religiões, como a
tencem ao nosso grupo e os que não pertencem a ele, umbanda e o espiritismo.
aliados versus adversários. Este é um, dentre vários O ensino de um modo de pensar religioso é inerente-
módulos mentais específicos, como são conhecidos, já mente sectário. Não é possível que duas religiões sejam
identificados6. Outros exemplos deles são a capacidade igualmente corretas e inspiradas por um Deus perfeito.
de aprender a falar qualquer língua com a qual a crian- Como justificar as diferenças entre elas? Em um mundo
ça conviva e a capacidade de empatia (colocar-se no que progride para democracia global, essa característi-
lugar do outro e entender suas emoções). ca da religiosidade está, francamente, na contra-mão da
Os módulos, entretanto, não nascem prontos, mas história. Podemos concluir que esse, também, não é um
necessitam de experiências de vida, na infância e na aspecto a ser valorizado na educação infantil.
adolescência, para maturarem, de uma forma maior
ou menor, como aprender a falar português, chinês ou
ambos.
Este é um segundo exemplo de situação de aprovei- 3. Conflitos de raciocínio
tamento, pelas religiões, de uma predisposição mental
dos primatas. Não faz parte da abrangência deste artigo uma dis-
Faz parte da própria definição de cada religião, um cussão sobre as vantagens do conhecimento científico
contrato firmado com a divindade que afirma que eles, e do desenvolvimento do pensamento científico para
os crentes, são o povo escolhido. Por definição, os crianças e adolescentes em nossa cultura. Como esse é
outros não seriam tão bons assim: ou são pecadores, um dos enfoques principais da educação laica, parte-se
e devem ser castigados, ou são ingênuos, e devem ser do princípio de que sejam importantes para a formação
convertidos ou educados. Entre os católicos, por exem- do cidadão. O exercício da cidadania plena é incompa-
plo, existe uma disciplina, heresiologia, que se dedica a tível com o analfabetismo científico.
estudar os erros das demais religiões. Já o objetivo do ensino religioso é criar uma visão
Um olhar de relance sobre a história das civilizações de mundo, concentrada em um conjunto específico
mostra que, no passado e ainda hoje, as diferenças reli- (conforme a religião) de crenças, dogmas, prescrições
giosas estão vinculadas a muitos conflitos e guerras. As éticas e de práticas centradas na devoção e a serviço de
religiões amplificam a eficiência deste módulo mental uma ou várias divindades.
que é o responsável por um dos principais problemas Por ocorrer cronologicamente antes do ensino do
sociais contemporâneos: a excessiva belicosidade hu- pensamento e do método científico, o ensino da religião
mana, um resquício adaptativo de nossos ancestrais constrói o alicerce da organização mental, sobre o qual
primatas, que pode ter sido útil no Pleistoceno (entre os conhecimentos científicos terão de se assentar de-
1,8 milhão a 11.000 anos atrás), mas que, hoje, é algo pois. Como a fé pressupõe alguns dogmas, e estes são
a ser inibido, do mesmo modo que nossa tendência a incompatíveis com o espírito questionador da ciência,
preferir alimentos gordurosos e salgados. tentar fundir os dois modos de pensar é bastante traba-
Uma análise dos dez mandamentos mostrou que lhoso ou, até, impossível em muitos casos.
o texto original dizia: não matarás, não adulterarás, Um exemplo extremo dos transtornos causados
não furtarás e não dirás falso testemunho contra o teu ao raciocínio lógico por um dogma religioso ajuda a
conterrâneo/compatriota7 e não se referia a qualquer perceber a dimensão do problema. O evolucionista Ri-
pessoa à sua volta, como encontramos nas versões chard Dawkins, criador do conceito de meme, mostrou
atuais do texto. A lei judaica da época não considerava o dano mental causado, quando analisou o ataque reli-
responsável por homicídio quem matasse estrangeiros. gioso ao World Trade Center, alguns dias depois 9:
O alcorão é ainda pior, recomenda não fazer ami-
zade com membros de outras religiões e, até mesmo, Comece a iniciá-los [jovens do sexo masculino]
sugere crucificá-los, cortar suas mãos e matá-los. Os desde cedo. Forneça-lhes uma mitologia completa
que não são muçulmanos, vivendo em terras islâmicas, e coerente para fazer a grande mentira parecer
devem pagar um imposto extra, a jizya, que é vista plausível. Dê-lhes um livro sagrado e faça com
como punição por não aceitar as verdades divinas. Alá que o recitem de memória... Temos em mãos um
recompensará, com farta alimentação e com sexo ir- sistema exatamente assim: um método de controle
restrito, quem matar infiéis em seu nome. Igualmente, mental aperfeiçoado no decorrer dos séculos, e
recomenda que a compaixão é um sentimento para ser transmitido de geração a geração. Milhões de pes-
usado apenas com os crentes.8 soas foram educadas em sua doutrina. Chama-se
No Brasil, os evangélicos são os mais agressivos religião.

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Dawkins se perguntou como jovens inteligentes pu- tal. A valoração dos fenômenos sociais exige ponderar
deram acreditar numa rematada tolice, de que, ao atirar sobre diversos aspectos da realidade e essa aceitação
um avião contra um prédio, trilhavam um atalho para facilita as escolhas. Há um preço a pagar, porém. Ou-
o paraíso, onde receberiam 72 lindas virgens para seu tras formas de pensamento ambivalentes passam a ser
deleite sexual. aceitas, como justificativas de condutas inadequadas,
A resposta parece estar nas origens do fundamenta- quer de políticos, quer de membros da igreja, ou a acei-
lismo religioso. tação de propriedades milagrosas de medicamentos ou
O fundamentalismo é uma conseqüência do avanço práticas místicas.
da cultura científica e da secularização do Estado, dois Neste conflito, a primeira a tombar é a estatística. A
fenômenos de grande impacto em todas as sociedades maioria das religiões acredita que a divindade se comu-
do planeta no século 20. Estes avanços criam profundas nica com os homens por meio das coincidências, que
dificuldades para os crentes que tentam manter a coe- são interpretadas como possuindo um significado espe-
rência mental entre os discursos religiosos e a interpre- cial, uma conexão, na maior parte das vezes, de cunho
tação contemporânea do mundo. moral. O evento de uma bala perdida que atingir uma
Há dois caminhos: ou se perde a fé no poder das di- pessoa é mais fácil de ser interpretado como a vontade
vindades ou se busca, como forma de proteção, retornar divina do que como evento casual e fortuito.
ao que é “fundamental” no texto religioso, identificar-se A idéia de um universo repleto de acontecimentos
com a interpretação literal da palavra divina. Em cada aleatórios é muito desconfortável. Assim, tratar os
religião, os fundamentalistas são diferentes, mas man- acontecimentos estatisticamente não-correlatos como
têm em comum uma crítica ferrenha à secularização e se fossem uma mensagem divina tem um grande ape-
não consideram os conflitos restritos a esferas sociais lo religioso e comercial: - “Durante épocas de grande
ou políticas. Eles os vêem como uma batalha cósmica incerteza, as coincidências são sinais de conforto e de
entre o bem e o mal, na qual representam o bem.10 segurança pessoal”. - informa o principal divulgador
Entretanto, poucos indivíduos em nossa cultura são desse viés de raciocínio, S. Rushnell, um executivo que
tão extremados. Muitos conseguem suportar determi- adquiriu fama com palestras de auto-ajuda.12
nada quantidade de incongruências ao tentar acomodar As crianças não conseguem verbalizar com clareza
a visão religiosa com uma interpretação científica do essas ambivalências, mas algumas delas, ao crescerem,
mundo. Ainda que, no que diz respeito à paz interior, se tornaram cientistas, mantendo essa mesma maneira
seja bastante eficaz, ou seja, o indivíduo crê que possa capenga de pensar na vida adulta. Abaixo estão dois
conviver com a ciência e a religião simultaneamente; exemplos de como a religião distorce o pensamento
em termos de qualidade do discurso científico, o resul- científico, ambos obtidos de cientistas e professores
tado é péssimo: um amplo conjunto de erros no enten- universitários brasileiros, conceituados em suas res-
dimento da ciência e de seus modos de ação. pectivas áreas de pesquisa. O primeiro é católico e o
Aqui se encontra o verdadeiro problema do ensino segundo, espírita.
precoce da religião para crianças. Ele torna aceitável o
duplo padrão de pensamento e ensina que se pode con- “Ocorre problema sério quando duas verdades
viver com a ambivalência na interpretação do mundo. diferentes entram em rota de colisão. A criação
Por exemplo; ainda que eu seja produto de um processo independente e o fixismo, de um lado, e a teoria
evolutivo, com milhões de anos de duração, impessoal, da evolução, de outro, por exemplo. Este é um
e pelo qual passaram uma infinidade de ancestrais, sou triste exemplo que o tempo se incumbiu de resol-
algo especial. A divindade mantém seu olhar protetor, ver (pelo menos para as mentes livres) através
como o de um pastor, sobre mim, pois me diferencio do desenvolvimento da teoria dos dois domínios.
dos animais e dos pecadores pela minha fé. Religião e ciência não podem (não devem) entrar
O exemplo não é casual, pois o darwinismo é iden- em conflito simplesmente pelo fato de que ocupam
tificado, pelos fundamentalistas de várias religiões, (ou deveriam ocupar) áreas diferentes de atuação.
como a principal agressão ao seu credo. Por isso, há A primeira visa o mundo sobrenatural e aos meios
mais tentativas de adaptá-lo ao pensamento religioso de bem se chegar a ele... Só Deus sabe o que é a
do que qualquer outra questão científica. O tamanho verdade. Nós, pobres mortais, com ciência ou sem
do esforço, desesperado, em muitos aspectos, pode ser ela, flutuamos num mar de incertezas, derivando
apreciado na Sociedade Criacionista Brasileira, enti- entre verossimilhanças que se substituem.”13
dade fundada com o modesto objetivo de mostrar que
“o mundo físico, incluindo as plantas, os animais e o “No aspecto científico, o espiritismo é fruto de
homem, são o resultado de atos criativos diretos de um longa experiência e de laboriosos estudos ligados
Deus pessoal”11. à prática das manifestações espirituais... O espiri-
Bem, mas a ampla maioria das crianças que estuda tismo, ao considerar o processo biológico, expõe o
religião não se dirige ao fundamentalismo extremado. espírito como principal agente que evolui. A evolu-
Elas optam por um caminho mais fácil, aceitar ambi- ção orgânica é fruto da evolução espiritual...”14
güidades, paradoxos ou duplos padrões, na sua inter-
pretação de mundo. Não é uma opção difícil, já que as
ambivalências são ocorrências freqüentes na vida men- É um surpreendente malabarismo de idéias para in-

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Ateísmo
divíduos que, na carreira de pesquisador, utilizaram-se
de metodologias cientificamente ortodoxas. O primeiro
autor tenta relativizar os critérios de verdade, de modo
“É surpreendente que,
a minimizar os conflitos entre religião e ciência. Se tal com milhares de anos de
proposta fosse aceitável, não seria possível a compa-
ração entre teorias ou entre métodos. Florais de Bach existência, milhares de fiéis de
poderiam ser aceitos como medicamentos com a alega-
ção de que agem em outros domínios, ao contrário da diferentes credos e milhares
farmacologia tradicional.
Já o segundo autor tenta fornecer status científico de páginas escritas sobre
a uma religião com base numa suposta produção cien-
tífica. Onde estão publicados os estudos laboriosos e, o tema, não seja possível
supostamente, corretos, do ponto de vista metodológi-
co? Como se pode demonstrar que a evolução de uma demonstrar, de maneira
entidade espiritual organiza a vida na Terra? Com a
mesma idade da teoria da seleção natural, o espiritismo cientificamente inequívoca,
produziu apenas evidências aceitáveis para aqueles que
professam o credo. que o ensino de religião seja
Bem, se indivíduos intelectualmente competentes
em suas áreas de estudo não conseguem evitar que o benéfico a crianças ou que
raciocínio científico fique prejudicado pela influência
de informações religiosas, como pode uma criança ou traga alguma vantagem ao
adolescente ficar imune a esse efeito confusional?
seu desenvolvimento

4. Conclusões
É surpreendente que, com milhares de anos de exis- teja acima da idade mínima de 18 anos. Essa compla-
tência, milhares de fiéis de diferentes credos e milhares cência não é válida para crianças. A sociedade acredita
de páginas escritas sobre o tema, não seja possível de- que é necessário proteger os indivíduos mais jovens de
monstrar, de maneira cientificamente inequívoca, que situações de risco, até que tenham maturidade cogniti-
o ensino de religião seja benéfico a crianças ou que va para decidir por si mesmos.15
traga alguma vantagem ao seu desenvolvimento. Talvez, o ensino de religiões ou a adesão a um culto
Não se pode negar a importância da religião para um religioso sejam, também, situações de risco. Podem
grande contingente dos seres humanos. Um expressivo induzir a alterações no pensamento que, talvez, sejam
número de pessoas procura, todos os dias, obter algum irreversíveis.
benefício material ou psicológico por meio de compor- O cérebro das crianças, em desenvolvimento, é mais
tamentos religiosos como freqüentar templos ou recitar maleável do que o cérebro adulto. O desenvolvimento é
litanias. Há, sem dúvida, uma crença generalizada de moldado pela experiência e apresenta períodos críticos,
que esses vínculos com a divindade trazem algum tipo após os quais as possibilidades de transformação se
de lucro ao praticante. tornam bem reduzidas. Isso ocorre, por exemplo, com
Isso não significa que seja adequado submeter as o aprendizado da linguagem. Adquirir habilidades em
crianças a ela. O mesmo se pode dizer do sexo. É uma uma segunda língua, na vida adulta, é muito mais cus-
atividade saudável e, igualmente, muito apreciada pela toso do que aprender a falar na infância.
maioria da população. Entretanto, isso não autoriza Não seria improvável que o convívio de crianças
alguém a manter relações sexuais com crianças nem com a religião criasse alterações na estrutura de pen-
mesmo a lhes expor filmes eróticos, pornografia ou samento, de difícil reversão na vida adulta, comprome-
similares. A precocidade sexual não ajuda o desenvol- tendo, definitivamente, a qualidade do raciocínio lógico
vimento saudável da criança. Sexo é bom e adequado e moral. Afinal, o ensino de religião para crianças não
para indivíduos adultos. Poderíamos, assim, propor o costuma valorizar a exploração de idéias novas nem o
mesmo modelo de comportamento à religião. pensamento crítico. Na maioria das instituições, ele
Nossa cultura também convive com comportamen- tende a restringir a variabilidade comportamental e a
tos que podem trazer danos ao indivíduo, mas que são estimular a obediência a regras sem questionamentos.
permitidos por pertencerem à esfera privada. O uso de Os cultos religiosos podem oferecer vários estímulos
álcool ou tabaco é um exemplo. Aceitamos, ainda, que positivos para indivíduos adultos, mas não foram orga-
indivíduos adultos dirijam motocicletas, portem armas nizados em função das necessidades infantis. Alguns
de fogo ou sejam sexualmente promíscuos sem os de- deles são, indiscutivelmente, inadequados para crian-
vidos cuidados com infecções. O estado não interfere ças, como aqueles que envolvem maus-tratos a animais
nesses comportamentos, contanto que o indivíduo es- ou possessões demoníacas. Outros exigem sacrifícios

16 Revista Terra Redonda


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físicos, como permanecer, por um longo tempo, em
uma mesma posição, ou psicológicos, como repetir,
inúmeras vezes, um mesmo texto, que, se não produ-
zem danos, também não trazem qualquer benefício.
Assim, à luz do Estatuto da Criança e do Adoles-
cente16, talvez fosse recomendável adotar uma conduta
parcimoniosa quanto à exposição do pensamento reli-
gioso para crianças, até que estudos mais minuciosos
possam demonstrar um inequívoco benefício. Se trou-
xer alguma vantagem para o indivíduo, a participação
em algum credo religioso poderá ser uma livre opção
da vida adulta, como muitas outras em nossa cultura.

5. Agradecimentos
O autor agradece à Profa. Patrícia H. Hackmann e à
tradutora/intérprete Jussara Simões, pelas correções do
manuscrito. Agradece, ainda, ao Prof. Alberto Flores,
pela inspiração e pelas idéias criativas sobre o tema.

Sobre o autor
Renato Zamora Flores é Professor do Dpto. de Genética da
UFRGS. Em 1997, obteve o título de doutor em ciências no
programa de pós-graduação em genética e biologia molecular
pela mesma universidade. É coordenador de projetos de
extensão que prestam atendimento clínico e psicológico em
escolas e na Febem. Coordena também o ambulatório de
genética do comportamento no departamento de genética
da UFRGS, que atende crianças e adolescentes vítimas de
maus-tratos.
rzflores@vortex.ufrgs.br
Notas
1 Rokeach, M. 1970. Faith, hope and bigotry. Psychology Today 3 (11): 33- 38
2 Sloan, RP & Bagiella, E. 2002. Claims about religious involvement and health outcomes. Ann. Behavioral Medicine, 24(1): 14 - 21
3 Pargament, KI, Koenig, HG Tarakeshwar, N & Hahn, J. 2001.Religious struggle as a predictor of mortality among medically ill elderly patients: a 2-
year longitudinal study. Arch Intern Med: 161(15): 1881-5. Disponível na web em: http://archinte.ama-assn.org/issues/v161n15/rfull/ioi00736.html
4 Sorrentino, RM & Hardy JE. 1974. Religiousness and derogation of an innocent victim. J. Personality 42 (3): 372-382
5 Rubin, Z & Peplau, LA. 1975. Who Believes in a Just World? Journal of Social Issues, 31 (3): 65- 89
6 Bjorklund, DF & Pellegrini, AD. 2002. The origins of human nature - evolutionary developmental psychology. Washington, APA
7 Hartung, J. 1995. Love thy neighbor - the evolution of in-group morality. Skeptic, 3(4): 86-31
8 Institute for the Secularization of Islamic Society. 2001. A call to the Muslims of the world from a group of freethinkers and humanists of Muslim
origins. Disponível na web em: http://www.secularislam.org/articles/call.htm
9 Dwakins, R. 2001. Os mísseis desgovernados da religião. Publicado, originalmente, no jornal norte-americano The Guardian em 15/09/2001. Dis-
ponível na web em: http://www.str.com.br/Atheos/misseis.htm
10 Armstrong, K. 2001. Em nome de Deus - o fundamentalismo no judaísmo, cristianismo e no islamismo. S. Paulo, Cia. das Letras.
11 Ata da assembléia de organização e constituição da SCB. Disponível na Web em: http://www.scb.org.br/PrincReg.htm. O erro de concordância
faz parte do texto original.
12 Rushnell, S.2001. When god winks: how the power of coincidence guides your life. Hillsboro, Beyond Words Pub.
13 Freire-Maia, N. 1997. Verdade e verossimilhança. Jornal Ciência e Fé (Curitiba), 1(3): 6-7.
14 Souza, HL. Darwin e Kardec - um diálogo possível. Campinas, Centro Espírita Allan Kardec, 2002.
15 Art. 81 - É Proibida a venda à criança ou ao adolescente de:
I - armas, munições e explosivos;
II - bebidas alcoólicas;
III - produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica ainda que por utilização indevida;
IV - fogos de estampido e de artifício, exceto aqueles que pelo seu reduzido potencial sejam incapazes de provocar qualquer dano físico em caso
de utilização indevida, Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).
16 Art. 71 - A criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem
sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. Lei nº 8.069

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STR
Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 19
Ciência

Mais um
Objeto Transneptuniano

[ A descoberta de Quaoar, anunciada recentemente, consolida o processo de


expansão das fronteiras do Sistema Solar para além, muito além de Plutão. Para
quem tem vivenciado a evolução histórica do conhecimento sobre os planetas,
desde os anos 50, chama atenção o fato de que o atual capítulo, em contendo
novidades importantes, não tem causado muita comoção. Mas vejamos as bases
históricas e a situação no limiar do século XXI.
texto de Jorge Ricardo Ducati
ducati@if.ufrgs.br

D
esde tempos imemoriais, e até o século e gerou, do ponto de vista de parte da comunidade
XVIII, os planetas conhecidos eram cinco: científica, e mesmo entre a população informada, uma
Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. grande expectativa por descobertas adicionais, em es-
Junto com a Lua e o Sol, formavam os sete pecial a do “décimo planeta”, expressão de conteúdo
astros que deram nome aos dias da semana, astros do- quase mágico durante várias décadas. A pergunta era:
tados de movimento, mais próximos da Terra do que as até onde irá o Sistema Solar? Como serão os planetas
estrelas, estas situadas na mais longínqua das esferas exteriores? A partir da descoberta de Plutão, já havia
celestes. O quadro tornou-se mais complexo com as a indicação de que Netuno seria a último dos planetas
descobertas dos satélites dos planetas a partir de 1610, gigantes gasosos, e que além, talvez devido à grande
e especialmente com a descoberta de Urano em 1781, distância do Sol, com as resultantes baixíssimas tem-
dos asteróides a partir de 1801 e de Netuno em 1846. peraturas, os planetas seriam corpos gelados e sem
Os fatores determinantes para estas descobertas foram atmosfera, pois até gases como o nitrogênio congela-
o desenvolvimento dos telescópios (para os satélites, riam.
Urano e os asteróides), e da mecânica celeste, base Na verdade, uma visão científica sobre a parte mais
para a predição da existência de Netuno e sua imediata externa do Sistema Solar já havia sido formulada por
detecção. volta de 1950, a partir das conjecturas de Edgeworth e
O século XX iniciou-se com oito planetas conheci- Kuiper, que diziam não haver razões para que a acre-
dos e uma busca intensa por novos planetas. A desco- ção planetária terminasse abruptamente em Netuno
berta de Plutão em 1930 foi intensamente comemorada (Ferraz-Mello 1999) e que um disco de planetésimos
(pequenos planetas) deveria existir mais além. Este
disco foi chamado, posteriormente, de Cinturão de Ed-
geworth-Kuiper (e também, com freqüência, Cinturão
de Kuiper), mas sua existência permaneceu no campo
teórico. Isto foi reforçado pela constatação, pelo astrô-
nomo uruguaio Julio Fernandez, de que os cometas de
curto período têm órbitas de inclinação relativamente
baixa com relação à eclíptica. A eclíptica é o plano de-
finido pela órbita da Terra em torno do Sol, sendo tam-
bém aproximadamente o plano das órbitas dos outros
planetas. Em conseqüência, estes cometas deveriam se
originar de uma zona situada além de Netuno, ocupada
por objetos distribuídos espacialmente em uma região
em forma de disco ou, mais precisamente, de anel, no
plano aproximado da eclíptica.
Nos anos 70, evidências observacionais final-
mente começaram a ocorrer, a par com uma
melhor compreensão da dinâmica do Sistema
Solar exterior, graças ao desenvolvimento de
métodos da Mecânica Celeste. Em 1977,
foi descoberto um objeto “fora do lu-

20 Revista Terra Redonda


www.str.com.br/revista Ilustração: NASA e G.Bacon
STR
NASA e M. Brown
gar”, ou seja, onde não se esperava Sistema Solar ?
encontrar nada: Quiron, planetóide As estimativas de Edgeworth
entre Saturno e Urano. Em 1978, e Kuiper são de que a massa total
descobriu-se que Plutão tem um do Cinturão pode ser da ordem da
satélite, Caronte. Com respeito a massa de Netuno. Começando com
Quiron, publicações nos anos 80 já corpos com a massa de Plutão, Ca-
mostravam que este astro está “de ronte ou Quaoar, decrescendo até
passagem”, ou seja, teve origem no pequenos objetos com alguns qui-
Cinturão de Kuiper, e está migran- lômetros de raio, pode-se ter muitos
do para regiões mais próximas ao milhares de corpos, extendendo-se Imagem real do objeto, pelo
Sol, podendo, com o aquecimento talvez por centenas de unidades telescópio Hubble
resultante de sua aproximação ao astronômicas (uma unidade astro-
Sol, ter sublimação de parte dos ga- nômica é a distância Terra-Sol, 150 União Astronômica Internacional;
ses congelados na superfície, o que milhões de quilômetros). Plutão e o nome provisório é 2002 LM60)
já começa a acontecer, assumindo Quaoar estão a aproximadamente Como é? Pouco sabemos. Certa-
a aparência de um cometa de curto 30 UA. mente, esta esfera de uns 1250 km
período. O tempo estimado para Estas paragens longínquas cer- de diâmetro, com período de 285
esta transição é de 100 milhões de tamente são peculiares em relação anos para sua órbita em torno do
anos. Hoje se conhecem vários ob- ao Sistema Solar interior. O Sol é Sol, não deve ter o aspecto ilustra-
jetos nesta situação. visto como uma estrela brilhante, do nos jornais, onde aparece super-
E o sistema Plutão-Caronte? Ini- fornecendo uma iluminação de posta à América do Norte, para dar
cialmente, Plutão se viu ameaçado penumbra, mas muito pouco calor. idéia de seu tamanho, e com cor es-
de perder seu “status” de planeta. Como os objetos do Cinturão têm cura, quase negra, com muitos de-
A descoberta de Caronte permitiu uma grande percentagem de gelo talhes de superfície. A observação
que se determinasse a massa dos (a densidade de Plutão é de 2g/cm3, destes objetos distantes é difícil, e
componentes do sistema, a partir bem menor que a densidade dos nas câmaras eletrônicas acopladas
das leis de Kepler, mostrando- planetas do tipo terrestre, que é de aos grandes telescópios aparecem
se que a massa de Plutão é bem aproximadamente 5g/cm3), estas como manchas ocupando alguns
menor que a inicialmente esti- baixíssimas temperaturas, suficien- poucos pixels (pois as imagens são
mada, ou seja, é de 2% da massa tes para congelar atmosferas, não neste caso digitais), revelando pou-
terrestre. É muito pouco, e Plutão permitiram sublimações e perdas quíssimos detalhes. Ao exemplo de
ficou sendo, de longe, o menor dos dos gases e elementos primordiais, Plutão, que por ser coberto de gelos
planetas, passando a ser chamado, devendo ter mantido a composição tem um albedo (capacidade de re-
por alguns, de grande asteróide, ou original destes astros, reminiscente flexão da luz incidente) muito alto,
outros qualificativos depreciativos, da época da formação do Sistema da ordem de 90%, Quaoar deve ter
como asteróide 1930EX ou come- Solar. Este é, aliás, um dos maio- a superfície com tons claros, com
ta P/Tombaugh (do nome de seu res interesses no estudo in situ dos gelos de água e dos gases atmos-
descobridor em 1930). Falou-se de cometas, ou na captura de amostras féricos. A esta distância do Sol, as
“desclassificar” Plutão, que seria, para análise. Provavelmente alguns condições do espaço já são essen-
mais propriamente, o primeiro (e objetos serão de bom tamanho, ou cialmente as do meio interestelar,
talvez o maior) objeto transneptu- seja, como Plutão ou Quaoar, mas podendo-se dizer que estas super-
niano. Finalmente, em honra à sua a distribuição de diâmetros deve fícies planetárias estão em contato
história, por tradição, e para evitar obedecer a uma função decrescen- direto com o espaço sideral. O
confusão, Plutão mantém seu “sta- te, favorecendo fortemente corpos ritmo dos acontecimentos deve ser
tus” privilegiado, permanecendo pequenos. Lembramo-nos, neste lento, com as transformações nas
entre os planetas verdadeiros. aspecto, do romance de ficção condições físicas ou orbitais ocor-
Isto porque já se estavam desco- científica de Frederik Pohl e Jack rendo muito vagarosamente, na
brindo outros! Atualmente (novem- Willianson, “Estrela Errante”, de escala de milhões de anos. Com o
bro de 2002), já existem 600 objetos 1970, onde parte da ação se passa Universo, mesmo nas pequenas di-
transneptunianos descobertos. E, além de Plutão, nos “Recifes do mensões dos sistemas planetários,
em junho de 2002, através do tra-
balho de busca sistemática da qual
Espaço”.
Em todo o caso, compreende-se
não há pressa. ■
participam Chad Trujillo e Mike porque as recentes descobertas de
Brown com o telescópio Oschin em objetos nas bordas do Sistema So-
Palomar, Califórnia, surge Quaoar, lar não causaram tanta surpresa. Sobre o autor
que, com seu diâmetro de 1250 km, E Quaoar? Batizado com este Jorge Ricardo Ducati é professor
é muito maior do que o maior dos nome pelos descobridores em ho- adjunto do instituto de física da
asteróides internos, Ceres, que tem menagem à etnia Tongva, habitante Universidade Federal do Rio Grande
apenas 800 km. As descobertas da região de Los Angeles (deno- do Sul.
continuam. Afinal, onde termina o minação a ser ainda aprovada pela ducati@if.ufrgs.br

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Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 21
Laicismo

De Torquemada
a George Bush
Uma brevíssima história das relações entre Estado e religião
texto de José Colucci Jr.

“F ar-me-ão justiça os que lembrarem


que sempre defendi ardorosamente o
direito de todo o homem à própria opinião,
independentemente de quão diversa da minha
seja essa. Quem nega a outrem esse direito
faz-se escravo de sua opinião presente, porque
Foto: elated.com

nega a si próprio o direito de mudá-la.”


Thomas Paine (1737-1809), Prefácio de “Age of Reason”.

Primavera de 1478. O cavaleiro espanhol Brasil, ano de 2002. Talvez um outro país
vai à casa da amante - uma jovem judia convertida qualquer. Talvez 2003. Você, que me lê, pergunta o que
ao cristianismo - para com ela fazer amor. Ruídos um casal de namorados do século quinze tem a ver com
de passos, talvez da família, que julgavam ausente, a inquisição espanhola. E mais, o que têm ambos a ver
surpreendem os amantes. Para evitar o escândalo, com o tema principal deste artigo, que é a separação
a jovem esconde o namorado dentro do armário da entre o Estado e a Igreja.
cozinha.

Boston, outubro de 2002. Flash-back


Sevilha, 1480. Um homem é arrastado do para o autor. O autor sabe que o tema que lhe cabe é
calabouço onde fora aprisionado e levado à sala de árido, mas importante. Importantíssimo. Procurando
interrogatório. Sabe o que o aguarda e tenta resistir. torná-lo mais interessante, o autor pesquisa nos livros
Grita, se contorce e implora clemência. Inútil. É e na Internet a história da associação Igreja-Estado nas
amarrado pelo pescoço, braços e pernas à cadeira sociedades ocidentais. Encontra em Roth (The Spanish
espanhola. Mãos poderosas enfiam-lhe os pés descalços Inquisition, 1964) o relato sobre o casal de amantes; em
nas meias de ferro, uma espécie de gaiola situada muitos outros autores encontra descrições de torturas
na parte inferior do instrumento, debaixo da qual se semelhantes às do segundo parágrafo. Aprende que a
colocam brasas vivas. O inquisidor determina com Lei da Igreja rezava que a tortura, se interrompida, não
perícia a altura correta das brasas e, como precaução poderia ser continuada. Pede ao leitor futuro que não
adicional, lambuza de óleo os pés da vítima para evitar interrompa a leitura. Chegará a algum lugar, embora
a carbonização prematura. Diz a lei que o interrogatório neste momento nem o autor saiba exatamente onde.
não deve terminar antes que a vítima confesse as suas
iniquidades. Não sabemos se o inquisidor se compraz Corte para a casa onde o cavaleiro se esconde no
no sofrimento do herege ou age por dever de ofício. armário da cozinha. Após longas horas de espera, o
Isso não é importante. Importante é o ensinamento da cavaleiro mal consegue conter um grito de horror ante
única e verdadeira fé: “Se alguém não permanecer em o misterioso ritual a que assiste pelos furos da porta.
mim, será como o ramo que é jogado fora e seca. Tais Com comidas e palavras estranhas, los conversos da
ramos são apanhados, lançados ao fogo e queimados.” família de sua amante celebram o Pesach - a Páscoa
(João 15:6) dos judeus, que coincidia com a Semana Santa.

22 Revista Terra Redonda


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Gigantes intelectuais
O estado laico tal como entendido hoje é um esta-
belecimento relativamente recente. Embora a separa-
ção entre a autoridade papal e os governantes tenha
começado durante o Renascimento, foi apenas no fim
do século 18 que a doutrina da separação entre Estado
e Igreja foi concebida. Ao longo da história humana
a forma mais freqüente de organização política foi o
estado religioso, quase sempre empenhado em tornar
pouco agradável a vida dos que não comungam na fé
oficial. Quem duvidar que tente ser cristão na Arábia
Saudita, judeu no Irã, budista tibetano na China, ou
dizer-se ateu em qualquer um desses lugares e muitos
outros no mundo.
Aceita-se geralmente que a idéia do estado laico mo-
derno começou com os iluministas franceses. Sua obra
máxima foi a Encyclopedie, de Diderot e d’Alembert,
publicada em 35 volumes entre 1751 e 1780. A Encyclo-
pedie procurava sintetizar todo o pensamento científi-
co, artístico e filosófico da humanidade. Dada confian-
ça que depositavam na razão como meio de interpretar
a realidade não espanta que os iluministas tivessem
entrado em choque direto com a Igreja Católica, seus
dogmas, sua disciplina e sua hierarquia. Seria um
erro, no entanto, pensar que os iluministas franceses
eram todos ateus. Voltaire, um grande contribuidor da
Encyclopedie, era teísta, embora anti-clerical, como o
foram Diderot e Rosseau. É de Voltaire a frase: “Se
Deus não existisse seria necessário inventá-lo, mas
toda a natureza proclama a Sua existência.” O mo-
Não se agradou o Senhor daquela celebração. Era vimento intelectual do iluminismo francês culminou
tempo de óleos consagrados, não de matzah; do Ofício com a Revolução Francesa e seu lema “Liberté, Égalité,
das Trevas, não de Haggadah, do calvário do Filho na Fraternité”.
cruz, não das lágrimas dos judeus no Egito. Quis o Se- Não há dúvida de que a secularização do estado
nhor que a história da monstruosa blasfêmia chegasse pela Revolução Francesa de 1789 foi um marco impor-
aos ouvidos do frei dominicano Tomás de Torquemada. tantíssimo. Na Europa de antes dela aceitava-se como
Era o motivo que faltava a Torquemada para conven- natural que a religião se imiscuísse em todos os aspec-
cer os reis Fernando e Isabel, de quem era confessor, tos da vida dos homens. Analogamente, os aspectos
a autorizar a realização de uma inquisição em terras religiosos raramente deixavam de ter desdobramentos
de Espanha. Poucos meses mais tarde, a coroa espa- não-religiosos. Foi o caso da Inquisição Espanhola que,
nhola recebe das mãos do Papa Sisto IV o mandado de como se sabe, apresentava grandes vantagens econômi-
purificar o reino dos hereges. Aproxima-se Isabel de cas para a coroa.
seu ideal. A Espanha - trezentos anos antes o “O Reino A Revolução Francesa distanciou os negócios divi-
das Três Religiões”, sob Fernando de Castela - torna-se nos do humanos, privatizando a religião. No entanto,
“uma nação, um rei, uma fé”, sob Isabel e Fernando. A no afã de defender a supremacia do pensamento euro-
convivência pacífica entre cristãos, judeus e muçulma- peu muitos se esquecem de conferir datas. Treze anos
nos dá lugar à religião oficial. antes da Revolução Francesa, em 1775, começava nos
A história da inquisição espanhola é emblemática EUA a Revolução Americana - um capítulo fundamen-
das relações entre Igreja e Estado. Durou mais de três tal na história da separação entre estado e religião. Um
séculos (só foi abolida oficialmente em 1834) e tornou- ano mais tarde, em 4 de julho de 1776, a Declaração de
se um importante negócio para a Coroa. As proprie- Independência foi assinada.
dades dos réus - a maioria deles judeus que haviam Não é exagero dizer que a revolução americana
ascendido socialmente e acumulado bens - eram ime- apoiou-se em três gigantes intelectuais: Benjamin
diatamente confiscadas e os condenados podiam ser Franklin, Thomas Jefferson e Thomas Paine. Sem
usados como remadores em embarcações comerciais. qualquer educação formal além da escolaridade básica,
Mas o mais importante é que se deu sob controle direto Benjamin Franklin aprendeu sozinho álgebra, geome-
do Estado, ao contrário da inquisição italiana e da ale- tria, navegação, lógica, história e ciência. Foi tipógrafo,
mã, ambas controladas por Roma. cientista, inventor, escritor e aprendeu cinco línguas.
Thomas Jefferson, ao contrário de Franklin, nasceu de

STR
Revista Terra Redonda
Número 1 - Dez 2002 23
Laicismo
uma família rica do Sul dos EUA. Apesar de ter her- A frase “In God we trust” aparece em todas as no-
dado terras e escravos, Jefferson foi o formulador da tas do dólar. O moto original dos EUA era “E Pluribus
máxima libertária da constituição americana, copiada Unum”, que quer dizer “de muitos, um”. Foi apenas
por muitas outras no mundo todo - “consideramos esta em 1956, durante a vigência do ideário anticomunista
verdades como evidentes de per si, que todos os ho- do Macartismo, que a frase “In God we trust” foi ofi-
mens foram criados iguais, foram dotados pelo criador cialmente adotada. Com ela, o papel moeda americano
de certos direitos inalienáveis, que, entre estes, estão a deixou de promover o ideal de unir numa sociedade
vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Dono de cul- livre e aberta homens de todas as raças, religiões e pro-
tura prodigiosa, Jefferson leu os clássicos latinos e gre- cedências, para anunciar que o destino do país está nas
gos no original. Seus autores favoritos eram Cervantes, mãos de Deus.
Shakespeare, Sidney, Hume, Condorcet, além de Locke Nos EUA é constante a pressão de grupos religiosos
e Montesquieu, pioneiros no conceito de separação sobre o princípio da separação entre Igreja e Estado. Há
entre os poderes. Dos três notáveis da revolução ame- alguns anos a Suprema Corte proibiu a prece nas esco-
ricana talvez o menos conhecido dos brasileiros seja las públicas durante solenidades e jogos. A grita dos re-
Thomas Paine. Não chega a ser motivo de vergonha. ligiosos foi grande, mas sequer comparável à suscitada
Durante mais de cem anos Thomas Paine foi ignorado recentemente pela proibição da “Pledge of Allegiance”
pelos próprios historiadores americanos devido ao ate- (Juramento de Fidelidade) à bandeira americana. Diz
ísmo que lhe atribuíam. Jefferson só não teve a mesma ela: “Eu juro fidelidade à bandeira dos Estados Unidos
sorte por ter sido presidente de 1801 a 1809. da América e à República que ela representa, uma na-
Os pais da Independência Americana eram leitores ção sob Deus, indivisível, com liberdade e justiça para
e admiradores dos iluministas franceses, e se inspira- todos”. Para um dos juizes que opinaram sobre o caso,
ram em suas idéias na formulação da obra prima que o “Deus” com letra maiúscula a que o juramento se re-
é a constituição dos Estados Unidos da América. Na fere é o deus das religiões monoteístas, e sua menção
citação que abre este artigo Thomas Paine parafraseia seria ofensiva a grupos minoritários politeístas. Os jui-
Voltaire: “não concordo com o que diz, mas defenderei zes também notaram que a expressão “uma nação sob
até a morte o seu direito de dizê-lo”. A primeira emenda Deus” foi introduzida em 1954, em plena Guerra Fria,
constitucional, estabelecendo o direito à imprensa e à li- na mesma época em que a menção a Deus foi adotada
berdade de expressão, estabeleceu também a separação nas cédulas do dólar. Era a maneira de diferenciar os
entre a Igreja e o estado. Foi baseada no Estatuto para americanos dos comunistas que, como se sabe, são
a Liberdade Religiosa do Estado de Virgínia, escrita ateus e comem criancinhas.
por Thomas Jefferson em 1777. Nele, diz Jefferson: São bastante conhecidas as tentativas dos criacio-
“Nossos direitos civis não dependem de nossa religião nistas de introduzir o Livro do Gênesis como teoria
mais do que nossas opiniões em física ou geometria.” científica em oposição a Darwin. A Suprema Corte
Segundo Jefferson, é preciso erguer um muro entre o americana tem sistematicamente rejeitado essas tenta-
Estado e a Igreja para permitir ao indivíduo a liberdade tivas. A última vitória significativa ocorreu em 1987,
de crença. Para Jefferson, seria imoral usar o dinheiro quando a a Corte Suprema invalidou, com base na
de um homem, na forma de impostos, para subsidiar a primeira emenda, a lei de Louisiana que estabelecia o
fé que este não professa. “tratamento balanceado” do criacionismo e evolução
Embora as religiões cristãs nos EUA tenham tentado nas escolas públicas do estado. Após essas derrotas
em um momento ou outro cooptar as biografias de Tho- nos tribunais os criacionistas desistiram de promover
mas Jefferson, Thomas Paine e Benjamin Franklin para abertamente a idéia de que a criação da humanidade
mostrar que o país foi fundado com base na religião, o por um ser divino tem a mesma estatura científica que a
certo é que eles, tanto quanto George Washington, o teoria de evolução. A nova estratégia é promover o cha-
primeiro presidente, nunca foram cristãos. Eram deís- mado “design inteligente” - que evita cuidadosamente
tas, ou seja, rejeitavam qualquer espécie de revelação qualquer menção ao Gênesis. A embalagem é nova mas
ou interferência divina sobre o mundo natural, acei- o produto é antigo - a patacoada bíblico-criacionista
tando porém a existência de um criador destituído de travestida de ciência.
atributos morais e intelectuais. Devemos lembrar que
na época Darwin não havia nascido, e o argumento
teológico de Paley - o do relojoeiro cego - ainda era A liberdade de crença nos Estados
respeitado nos meios intelectuais. comunistas
Após a revolução bolchevique de 1917 a União so-
Igreja e Estado nos EUA viética estabeleceu-se como estado ateu. Para comba-
Ao fim do século vinte, a maioria dos países oci- ter o ópio do povo, igrejas de todas as denominações
dentais já havia adotado a doutrina da separação entre foram fechadas, seus sacerdotes perseguidos e muitos
Estado e religião em suas constituições, por motivações deles assassinados. Apesar de tudo, as pessoas comuns
nem sempre idênticas às de seus criadores. Na prática, continuavam a praticadar a religião secretamente na
porém, as violações ao princípio da separação foram forma de batismos, rituais e funerais, principalmente
muitas. no campo.

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Na União Soviética a religião tolerada em deter- de misticismo oficial com o exército de um milhão de
minados momentos históricos segundo o interesse do homens e o arsenal nuclear da Coréia do Norte não au-
Estado. O ex-seminarista Stalin, que ascendeu ao poder gura um futuro tranqüilo para a humanidade.
em 1928, continuou a tradição de Lenin de proporcio-
nar aos religiosos amplas oportunidades de espiar os
próprios pecados. Muitos morreram quebrando pedra Mundo islâmico
em seus campos de trabalho. Em 1941, o Guia Genial Em muitos países de maioria islâmica a liberdade
dos Povos, como Stalin se autodenominava, descobriu de crença é protegida por lei, embora o islamismo seja
um uso para o ópio do povo. Para estimular a movimen- a religião oficial. Na prática, porém, as relações entre
tação patriótica para a guerra, Stalin firmou um acordo religião e Estado nesses países são similares às rela-
com o prelado Sergei Stragorodsky pelo qual a Igreja ções entre a Igreja Católica e a Coroa durante a idade
Ortodoxa Russa poderia gozar de alguns modestos média.
privilégios se usasse o seu prestígio para arrebanhar o O islamismo é a religião que mais cresce no mundo,
povo russo naquele tempo de crise. Assim, a Igreja Or- devendo chegar a 30% da população mundial em 2025,
todoxa Russa gozou de relativa imunidade até a morte segundo Samuel Huntington. Apesar disso, ou por
de Stalin, em 1953. Os judeus não tiveram a mesma sor- causa disso mesmo, a islamismo permanece bastante
te, pois, mesmo combatendo os nazistas, Stalin jamais próximo da forma original, sendo, nesse sentido, uma
abandonou o seu virulento anti-semitismo. religião em estado puro.
O sucessor de Stalin, Nikita Khrushchev, reiniciou Enquanto cristãos e judeus aprenderam, em nome da
a campanha anti-religiosa, fechando cerca de 12 mil convivência civilizada, a ignorar as muitas passagens
igrejas ortodoxas e perseguido o clero. A prática do que prescrevem o apedrejamento de adúlteras, a con-
judaísmo e do protestantismo tornou-se impossível, denação de homossexuais, a violência contra os infiéis
embora, curiosamente, o islamismo tenha sido tolerado. e outros conselhos inoportunos do Livro da Verdade,
O raciocínio foi que a perseguição aos muçulmanos em a maioria dos muçulmanos apega-se à interpretação
território soviético estimularia a tendência de formação literal do Alcorão.
de um estado pan-islâmico. Na Arábia Saudita, por exemplo, furtos são punidos
Apesar de perseguir a religião, os regimes comunis- com a amputação de pés e mãos. Adultério com o ape-
tas têm muito em comum com os Estados religiosos. drejamento. Crimes menores, como “desvios sexuais” e
O primeiro a dizê-lo foi o socialista francês Proudhon, bebedeira, são punidos com chibatadas. O número exa-
que, em 1846, escreveu a Marx: “não instiguemos uma to de chibatadas não é previsto em lei e pode variar de
nova intolerância, não nos coloquemos como apóstolos algumas dezenas a vários milhares, conforme a decisão
de uma nova religião, mesmo que essa seja a religião do juiz islâmico, em nome do Profeta (que a paz de Alá
da lógica, ou da razão”. Desnecessário dizer, Proudhon esteja com ele).
não foi ouvido. Na maioria dos estados islâmicos a punição para a
Controlando os meios de produção, o Estado contro- apostasia é a morte. Em países citados como sendo me-
la a vida dos indivíduos. Como a Igreja na Idade Média, nos fanáticos - Egito, Jordão e Turquia - o governo dis-
o governo determina que idéias, doutrinas e práticas de- crimina as minorias religiosas ou faz vista grossa para
vem ser propagadas e quais devem ser combatidas. Um a sua perseguição pelos verdadeiros fiéis. Das quatro
exemplo é Cuba, que garante a liberdade de culto mas formas de Jihad previstas no Alcorão - pelo coração,
pune o “abuso da liberdade religiosa”, delito que se ca- pela boca, pelas mãos e pela espada - a última parece
racteriza por “opor a convicção religiosa aos objetivos ter maior apelo popular.
da educação”, com a costumeira ambiguidade das leis Caso interessante é o comportamento dos muçul-
arbitrárias. Como disse Ludwig von Mises, ainda que a manos residentes nos EUA após o 11 de setembro. Em-
constituição do país garanta a liberdade de consciência, bora insistam que o Islã não é a religião da violência,
pensamento, fala, imprensa e neutralidade religiosa, são poucas e fracas as vozes que se levantam contra
a falta de meios materiais para exercer esses direitos a tradição de seus países de origem, onde fatwas são
transforma-a em letra morta. Essa observação aplica-se decretadas contra dissidentes, críticos, blasfemos e de-
particularmente bem ao Vietnã do Norte. No preâmbu- mais inimigos da religião estatal. Os casos são muitos:
lo da constituição vietnamita de 1947, o líder comunista cidadãos do Irã são condenados à morte por terem se
Ho Chi Minh praticamente copia o trecho inicial da convertido à Fé Bahai; a corte egípcia ordena o divórcio
declaração de direitos americana. Na prática, esses di- do casal em que um dos cônjuges escreveu um livro
reitos só se aplicam aos simpatizantes do regime. promovendo a reforma do Islã; um é homem executado
Talvez o exemplo extremo de apropriação do senti- no Pakistão por ter recomendado a leitura dos “Versos
mento religioso popular por um governo seja a Coréia Satânicos”, de Salman Rushdie, a um vizinho.
do Norte. O país têm uma religião oficial - Juche - cujo Muitos autores americanos dizem que a segurança
deus é Kim II-sung, “homem mais perfeito que já exis- mundial depende de uma reforma do Islã, à semelhança
tiu”, fundador stalinista do regime. Na tragicomédia da do que aconteceu com as outras religiões abraâmicas, e
ditadura norte-coreana, o sucessor de Kim II-sun, seu da instituição do secularismo nos países islâmicos, mas
filho Kim Jong-il, tornou-se uma espécie de santo ve- a história tem o dom de desmontar análises apressadas.
nerado por seus poderes sobrenaturais. A combinação O conselho soa irônico agora que os EUA ameaçam

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Laicismo
invadir o Iraque. O partido de Saddam Hussein - o Ba- rior à das crianças judias. As tendências demográficas
ath - é uma das poucas forças a pregar a secularização mostram, no entanto, que os árabes poderão tornar-se
como meio de modernizar o Islã e criar a união pan- maioria um dia, o que põe os religiosos em polvorosa.
Árabe. A tensão resultante da convivência de Estado de
concepção moderna e a mais antiga das religiões mo-
noteístas faz de Israel um caso interessante para os
Israel observadores das relações entre Igreja e Estado. A as-
Ao contrário do que possa parecer em vista de acon- censão dos conservadores ao poder, com o conseqüente
tecimentos recentes, Israel é um estado laico. Quanto aumento de prestígio do rabinato, pode prenunciar o
tempo permanecerá assim é uma questão que preocupa fim do estado laico no país.
judeus do mundo todo.
A constituição de Israel garante liberdade de religião
e assegura igualdade social e política a seus habitantes
sem discriminação de religião, raça ou sexo. Na prática, Brasil
esse princípio nunca foi aplicado a contento de judeus No Brasil, a constituição de 1824 estabeleceu o
não-ortodoxos e seculares. O muro de separação entre catolicismo como religião oficial, com a igreja subor-
Igreja e Estado em Israel não tem mais do que meio dinada ao Estado. É sintomático que essa tenha sido
palmo de altura. a constituição mais anti-democrática de nossa história.
Como o judaísmo ortodoxo é a única forma de juda- Entre outros arbítrios ela estabelecia o voto descoberto
ísmo reconhecida no país, é natural que inúmeras áreas (não secreto) e censitário (baseado na renda). Quem
da vida cotidiana sejam afetadas por ele. As implica- ganhasse 100 mil réis poderia ser eleitor da paróquia.
ções ficam evidentes se considerarmos que o judaísmo Com 200 mil já se chegava a eleitor da província. Para
é uma religião que prescreve normas detalhadas para ser deputado ou senador, o candidato deveria ganhar,
tudo - de como matar um boi à maneira correta de se respectivamente, 400 e 800 mil réis. Não-católicos não
lavar um defunto. Enquanto os cristãos devem observar podiam votar, independentemente da renda.
dez mandamentos, os judeus devem observar seiscentos A separação entre o Estado e a igreja foi incorpora-
e treze. da à constituição brasileira em 1891, sob inspiração de
A vida em Israel é pautada pela Rui Barbosa, e retirada novamente da constituição em
religião. Em obediência ao sabá, 1934, sob inspiração de Getúlio Vargas. Quase impos-
os transportes públicos param sível não fazer a associação entre a religião de Estado
e lojas e restaurante fecham do e governos ditatoriais. As constituições posteriores a
pôr do Sol da sexta ao de sábado. 1934 não se manifestaram expressamente quanto à reli-
Não há casamento civil. O estado gião oficial, embora garantissem liberdade de culto.
subsidia a educação religiosa. Esses A constituição vigente, de 1988, embora indique na
transtornos são nada se comparados introdução que tenha sido promulgada “sob a proteção
à tortura de prisioneiros palestinos, de Deus”, tem no inciso VIII do artigo 5º uma redação
admitida no passado pela agência primorosa:
de segurança nacional -a Shin Bet
- em “circunstâncias específicas e “ninguém será privado de direitos por motivo de
justificáveis”. crença religiosa ou de convicção filosófica ou políti-
Os 25% de crianças ca, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
árabes em escolas legal a todos imposta e recusar-se a cumprir presta-
israelenses recebem ção alternativa, fixada em lei”
educação infe-

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George Bush 1 x 0 Thomas Jefferson
Espero ter mostrado com esse pequeno comentário
sobre o Estado Laico através dos tempos e dos luga-
res que a garantia constitucional de separação entre o
Estado e a Igreja é um passo importante, mas não su-
ficiente, para a proteção de minorias religiosas, ateus e
agnósticos.
O muro que Thomas Jefferson ergueu entre o Estado
e a Igreja requer manutenção constante. Mesmo nos
estados laicos do ocidente, os cristãos só obedecem ao
preceito bíblico que diz “Dai a César o que é de César,
e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21) quando lhes
convém. O mais comum é a religião dominante - vide
catolicismo no Brasil e protestantismo nos EUA - pres-
sionar para o relaxamento dos limites da separação.
A diversidade cultural e a proteção de minorias étni-
cas, raciais, filosóficas e religiosas é uma das riquezas
da sociedade moderna e tem que ser defendida dia a
A expressão “convicção filosófica” parece ter sido dia. A associação de manifestações religiosas a ativi-
escolhida para incluir ateus e agnósticos nos direitos dades do Estado - seja na forma de um bispo benzendo
da personalidade, pois essas formas de pensamento não um edifício do governo durante a sua inauguração ou
podem ser consideradas religiosas. Ao menos nesse de uma criança obrigada a assistir aulas de religião na
ponto, a imensa colcha de retalhos que é a constituição escola pública - é um meio de asseverar a dominância
de 1988 é superior à americana. Sua redação impede da cultura majoritária sobre as outras, e não deve ser
que uma autoridade faça o que o presidente dos EUA, tolerada.
George Bush, o pai, fez em 1987 ao dizer: “Não sei se
ateus devem ser considerados cidadãos, ou mesmo pa- Nos EUA, onde moro, o Presidente George W. Bush
triotas. Esta é uma nação sob Deus.” mostra-se indigno da herança que recebeu dos pais da
Se o artigo 5º da Constituição Brasileira é elogiável, revolução americana. O nome de Deus lhe enche a boca
o de número 210 é lamentável. E não apenas por ser o em quase todas as manifestações públicas e momentos
de número 210 (a constituição americana tem apenas solenes, que ultimamente não têm sido poucos. No seu
24). É que o artigo 210 declara em seu parágrafo pri- governo a direita religiosa sente-se à vontade para in-
meiro: “o ensino religioso, de matrícula facultativa, trometer-se nos negócios de Estado. Em junho de 2002
constituirá disciplina dos horários normais das escolas a Suprema Corte decidiu que as instituições religiosas
públicas de ensino fundamental”. Essa veio para ficar, de ensino poderiam receber financiamentos do governo.
pois como disse o jornalista Hélio Schwartsman, qual é Essa foi uma vitória de Bush contra Thomas Jefferson,
o parlamentar que irá votar contra Deus? pois trata-se de um caso inequívoco de usar o dinheiro
Apesar da proibição constitucional, os auxílios go- do contribuinte para subsidiar uma religião que pode
vernamentais a instituições religiosas são tão comuns não ser a sua. Interessante notar que o mesmo Bush re-
no Brasil que sequer são olhados com espanto. O leitor tirou o financiamento de inúmeros programas regulares
sem algo mais útil para fazer poderá encontrar no Di- da escola pública e laica.
ário Oficial da União inúmeros convênios de coopera- O grande desafio para os racionalistas é mostrar
ção, especialmente para fins de caridade, envolvendo que a moralidade não é um atributo religioso, e a so-
o governo e entidades religiosas - espíritas, católicas e lidariedade pode se desenvolver entre os homens sem
protestantes. a mediação de uma divindade. Foi o escritor Arthur C.
Embora os fins possam parecer meritórios, esses Clarke quem disse: “É possível que a maior tragédia em
convênios representam subsídios oficiais para a reli- toda a história da humanidade tenha sido o sequestro da
gião. É dinheiro de evangélicos, judeus, umbandistas, moralidade pela religião”. O fortalecimento do estado
testemunhas de Jeová e ateus financiando crenças que laico é um passo concreto para reverter essa tragédia.
não são as suas. Se isso é ou não constitucional é ques-
tão de interpretação. O artigo 19 da constituição veda

aos estados e municípios a subvenção ou aliança com
cultos religiosos ou igrejas. No entanto, o mesmo artigo
abre exceção para, na forma da lei, “a colaboração de
interesse público”. No interesse estrito da ética, seria Sobre o autor
melhor que subsídios oficiais fossem dados apenas a José Colucci Jr. é engenheiro mecânico pela Unicamp,
instituições laicas. A cesta básica da religião geralmen- mestre e doutor em bioengenharia, ex-professor da USP e
te vem com o catecismo de sobremesa. vive em Boston.
j.colucci@rcn.com

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