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Renoir, Pierre Auguste - Cahen d'Anvers

M. DELLY

MISÉRIA DOURADA

Une Misère Dorée

I Volume: Miséria Dourada


II Volume: Marísia
DIREITOS RESERVADOS PARA TODOS OS EFEITOS DA LEI
TRADUÇÃO DE LYGIA ESTEADA
EMPRESA EDITORA BRASILEIRA
SÃO PAULO
IMPRESSO NA TIPOGRAFIA. BANCÁRIA
Miséria Dourada I– M. Delly

Oferece-se acomodações e sustento, em moradia senhorial, a uma família de dois


ou três membros no máximo, respeitável, de boa educação, que possa se
encarregar da instrução de três crianças. O solar é admiravelmente situado em
uma das mais belas regiões florestais da Áustria.
"Cartas à posta restante para as iniciais L-L., Diifeiden.
"Exigem-se as melhores referências".
O professor Lienkwicz abaixou um pouco o jornal que pusera muito próximo
dos seus olhos de míope. No semblante fino, fanado pelos anos, atribulações e
sofrimentos físicos, os olhos se tornaram pensativos, aqueles olhos claros, de uma
doçura um pouco melancólica, que revelavam tão bem a alma de Adriano
Lienkwicz, amável, afetuoso, calmo, mas um pouco fraco, facilmente desanimado
pelas provações da vida. Alma encantadora, mística, apaixonada pelas coisas do
passado e pelas lendas de outrora, capaz de se sacrificar pelo dever, sem a
mínima queixa, mas muito pouco apta para reagir e lutar...
Adolescente, havia frequentado a Universidade de Viena onde foi ao
mesmo tempo muito querido e atormentado pelos seus colegas. Estes
escarneciam da sua tranquila brandura, dos seus modos pacíficos, sem,
entretanto, fugirem à sedução dessa criatura sorridente e afável generosa até a
imprudência, que sabia acalmar com um simples olhar os mais ferozes briguentos
e não conhecia o meio de recusar o seu auxílio tanto moral como material a quem
lho pedisse.
Homem, havia conquistado o coração de Elisabeth Víulman, a filha de um
dos seus professores. A lei dos contrastes atirara um para o outro esses dois
seres tão diferentes entre si. Elisabeth, natureza decidida, dotada de uma grande
energia, salvou as ruinas da fortuna dos Lienkwicz; a generosidade, por vezes
intempestiva, do professor foi um pouco reprimida por uma inteligência ponderada,
unida a uma delicada bondade. Formaram um lar feliz até o dia em que, brusca
enfermidade levou-lhe essa companheira muito idolatrada, deixando Adriano só,

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com dois filhos, dos quais o mais velho tinha dez anos.
Pai carinhoso e devotado, não quis se separar dos filhos e deu-lhes uma
governante encarregada ao mesmo tempo de dirigir a casa e de cuidar da
educação dos queridos pequenos. Mas o meigo professor era um patrão muito
cego e logo a sua fortuna sofreria vários golpes; primeiro pela pouco escrupulosa
governante e em seguida por falsos amigos, parasitas sem brio. Esses golpes
foram tantos e tão bem feitos que um dia Adriano Lieixkwicz, fatigado, viu-se na
obrigação de abandonar sua cátedra e constatou com uma estupefação terrificada
que seus recursos eram apenas suficientes para viver muito modestamente com
os seus dois filhos.
Foi um golpe bem rude para aquele homem já fisicamente abatido. Caiu
doente e foi admiravelmente tratado por sua filha Marísia, "seu tesouro", como ele
gostava de chamá-la. Assim que entrou em convalescença deixou a confortável
casa que ocupara até então indo se instalar em um estreito apartamento. Sua
precária saúde só lhe permitia dar algumas lições cujo produto vinha auxiliar o
pequeno lar muito bem dirigido por Marísia, que parecia ter herdado as qualidades
de sua mãe.
Viviam assim os três, muito dignos em sua pobreza, visitados apenas por
alguns amigos dos maus dias. A mais penosa prova era a enfermidade de Alexy, o
irmão de Marísia, que uma paralisia das pernas reduzia à imobilidade. O médico
havia declarado, há pouco, que o clima de Viena lhe parecia desfavorável para o
doente e que o ar vivo e sadio do campo, principalmente o das florestas obteria,
senão a cura, pelo menos uma notável melhora. Desde então, o professor e sua
filha procuravam um modo de tentar essa cura com poucas despesas.
Adriano Lienkwicz teria encontrado inesperadamente a solução desse
problema na última página do seu jornal?
Inclinando-se para uma porta deixada entreaberta, chamou:
 Marísia!
Ouviu-se o ruído de uma cadeira que se recua no quarto vizinho; uma alta e
esbelta jovem apareceu na abertura da porta.

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Em seu simples vestido de casa, Marísia Lienkwicz tinha uma linha


notavelmente elegante. Sem possuir uma absoluta regularidade de traços, era, na
realidade mais do que bela, pelo encanto profundo de sua fisionomia ao mesmo
tempo altiva e meiga, pelo contraste dos cabelos muito pretos de ondas brilhantes
com os olhos de um azul escuro, onde se refletia uma alma ardente e pura.
 Que foi, papai?  perguntou ela com interesse.
 Olhe, leia isto, minha filha.
A moça tomou o jornal e leu no lugar indicado; depois fitou o pai com um ar
interrogador.
 Sim, pensei que isso, talvez, pudesse nos convir, Marísia.
 Com efeito, uma região florestal, seria um lugar perfeito. Mas nos seria
preciso informações mais seguras...
 Escreverei hoje mesmo. Alexy parece verdadeiramente mais fatigado; eu
desejava sair o mais depressa possível deste pequeno apartamento onde não há
o ar necessário.
Uma ruga de inquietação se formou sobre a fronte alvíssima de Marísia.
 É verdade, ele se estiola aqui. E certamente para o senhor, papai o
campo fará um imenso bem.
 Assim o julgo. Você mesmo, minha filha, também sentirá os seus bons
efeitos. Você se cansa, se abate, para cuidar de seu irmão e de mim, pobre ser
inútil!
Marísia se inclinou para ele e numa carícia rodeou com os braços o
pescoço do professor; seus lábios beijaram a fronte crivada de rugas.
 Papaizinho querido, se o senhor soubesse como me são doces esses
deveres, como sua filha se sente feliz em rodeá-lo de cuidados e carinhos! E como
ela desejaria fazer mais ainda!
O olhar emocionado de Adriano Lienkwicz pousou sobre o lindo rosto
inclinado para ele.
 Sim, sei que você é a melhor das filhas. Sei que ama o seu pobre pai.
sempre fraco e doente. Mas eu desejaria tanto vê-la sossegada e feliz, livre

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dessas ocupações vulgares, livre para desenvolver a bela inteligência com que
Deus a dotou.
Um sorriso alegríssimo entreabriu os lábios de Marísia.
 E eu, querido pai, só peço uma coisa: continuar a servir o senhor e Alexy,
ser amada pelos dois e conservar a coragem, a atividade com que Deus me
gratificou. Com isso e enquanto conservar a fé cristã, a sua Marísia nunca será
infeliz... Bom, vou ver a minha sopa que está se derramando no fogo!
Correu para a cozinha. O professor levantou-se, murmurando com
enternecimento:
 Sempre alegre!... e tão corajosa! Ah! Meu Deus, como foste bom em me
dar uma tal filha!
Dirigiu-se para o cômodo vizinho, a sala de jantar que servia também de
salão. Sobre um divã, junto da janela, estava estendido um rapazinho de uns
quinze anos. À entrada do professor Alexy voltou para ele os olhos escuros, muito
grandes para o seu rosto emagrecido e que sobressaía na palidez mate de sua
tez. Esse juvenil semblante era singularmente atraente, pela sua beleza ferida e
mais ainda pela sua expressão de sofrimento resignado.
 Sente-se melhor, meu querido filho?  perguntou ternamente o professor,
passando a mão sobre a espessa cabeleira negra, bastante anelada.
 Um pouco melhor, obrigado, papai.
 Eis uma coisa que talvez se possa arranjar para nós, Alexy... O que você
diz?  acrescentou Adriano Lienkwicz depois que o filho leu o anúncio.
 Quem sabe, papai? O senhor vai escrever?
 Agora mesmo...
Depois de ter redigido um cartão para o endereço indicado, voltou para
junto do filho. Alexy folheava um masso de velhos pergaminhos, e ao vê-lo se
aproximar, disse pensativamente:
 É extraordinário que o senhor nunca tenha procurado as origens de
nossa família, papai. Parece-me, entretanto, que poderia encontrar na Polônia
alguns indícios.

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 Comecei essas investigações, mas foi justamente na época em que sua


mãe morreu e, desanimado, deixei tudo lá. Sei somente que não existe mais
nenhum Lienkwicz na Polônia russa e que esse nome está mesmo completamente
esquecido. Sem dúvida os nossos ancestrais vieram há já alguns séculos se
estabelecer na Áustria. Entretanto, é na verdade singular, que não tenhamos
nenhum documento da nossa família. Meu pai dizia sempre que éramos de raça
nobre... Mas enfim isso nos adiantaria bem pouco!
 Evidentemente. Contudo eu gostaria de saber quem foram os nossos
avós e conhecer alguma coisa de sua história. Sinto um grande prazer em folhear
papéis como estes do passado... e naturalmente os de nossa família devem me
interessar mais do que os outros.
 Ah! você é bem meu filho!  disse alegremente o professor tomando a
mão de Alexy.  Na sua idade eu já tinha esses mesmos gostos; eu amava como
você os estudos e principalmente o estudo do passado. Meus colegas me
apelidaram de "o pai Pergaminho"... De fato nada me fazia mais feliz do que
folhear esses papéis veneráveis, testemunhas desse outrora que me atraia
invencivelmente... que me atrai sempre, devo confessá-lo. Esquece-se um pouco
do presente, nem sempre muito alegre...
 É verdade, nem sempre!...  murmurou tristemente Alexy, com um olhar
melancólico para o céu.
Alguns dias mais tarde o professor recebia a resposta de L-L. Esta porque a
letra era feminina especificava as condições requeridas: estar apto para instruir
crianças de onze a treze anos; apresentar as melhores referências e ter gostos
modestos e pacíficos. Oferecia-se um apartamento de quatro peças grandes,
confortáveis, uma nutrição simples e sadia, fogo à vontade e o goso de um parque
para passeios. Em troca pedia-se quatro horas de lição e a correção dos trabalhos
dados.
"Se estas condições lhe convêm, acrescentava, procure nos informar sobre
si, sobre a religião a que pertence e nos indicar as pessoas a quem nos
poderemos endereçar para as referências. Depois disso, fá-lo-emos conhecedor

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da nossa residência".
 Quanto mistério não acha, papai?  disse Marísia quando tomou
conhecimento dessa carta, escrita em um estilo elegante, mas muito breve... 
sempre essas iniciais...
 Essa pessoa não quer, sem dúvida, enviar o seu nome à curiosidade de
qualquer um. É muito natural... Você bem vê que ela parece ser exigente sobre a
questão de honorabilidade e isso é um bom sinal.
 Evidentemente. Sobre esse ponto nada temos a temer. Quanto às outras
condições também as podemos preencher sem dificuldades. O senhor ou eu
poderemos dar as lições pedidas e ainda nos restará muito tempo livre... o senhor,
meu pai, poderá trabalhar na sua "história da Polônia" e eu poderei me ocupar do
nosso lar. A situação será agradável, certamente... mas é preciso ser mais
esclarecida.
O professor respondeu à sua correspondente desconhecida, dando-lhe os
detalhes pedidos e indicando as pessoas de uma honorabilidade incontestada a
quem ela poderia se dirigir para as referências.
Quinze dias se passaram sem nenhuma resposta. Depois uma manhã o
carteiro entregou a Marísia um envelope brazonado, timbrado com uma coroa de
conde. O sobrescrito tinha sido traçado pela mesma mão da carta recebida
anteriormente.
 Eis uma resposta, papai,  disse a moça entrando na sala de jantar onde
o professor explicava a Alexy uma versão grega.
Adriano Lienkvicz rasgou apressadamente o envelope e leu alto:
"Senhor Professor,
"As referências me satisfizeram inteiramente e o senhor me parece
preencher todas as condições exigidas por mim para com aqueles que virão
habitar sob o meu teto. Se então o senhor está decidido, participe-mo. Quanto a
mim estou disposta a recebê-lo em Runsdorf. nossa residência. O senhor gozará
de inteira liberdade fora das horas de lição.
"Espero a sua resposta definitiva.

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"Receba, senhor professor, etc


"lolanthe" "Condessa de Lendau",
Castelo de Runsdford, por Dufelden".
 Oh! Oh! é da alta aristocracia!  disse o professor chegando a esta
assinatura.  Os Lendau são de velha e nobre árvore, de raça quase principesca...
E então, que dizem, meus filhos?
Marísia replicou:
 Digo, papai. que por nossa vez devemos tomar informações. É preciso
saber um pouco o que valem esses Lendau, por mais nobres que eles sejam.
 Você tem razão, minha prudente Marísia. Mas a quem nos dirigir?
 O solar de Nunsthel, do qual o seu amigo Conrado Duntz é administrador,
não se acha nos arredores de Diifelden?
O professor bateu na testa.
 Muito bem! Já encontramos o que necessitávamos! Vou escrever-lhe
pedindo uma resposta rápida, afim de não fazer esperar essa nobre senhora.
Alguns dias mais tarde chegava uma carta do administrador ou mais
exatamente, de seu filho que lhe servia de secretário.
"Papai, num acidente de carro, fraturou o braço, escrevia Henrich Duntz.
Sem o que senhor professor ele não me teria cedido o prazer de responder a sua
carta, que tão agradavelmente o surpreendeu, fazendo-o entrever a perspectiva
de tê-lo muito perto dele, porque o domínio de Nunsthel confina com o de
Runsdorf.
"Como o senhor calculou estamos aptos para informá-lo sobre os Lendau.
"Runsdorf é uma antiquíssima residência, imensa, de aspecto severo, mas
admiravelmente situada em uma encosta a dez quilômetros de Dtifelden.
Enquanto que gelamos no inverno em Nunsthel, Runsdorf goza de uma
temperatura mais doce, graças à sua posição privilegiada. Além disso, está
cercado pela floresta o que lhe traz um ar fortificante, certamente perfeito para o
seu querido doente.
"O parque é muito grande; há um século os domínios dos condes de

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Lendau ocupavam uma grande parte da região. Pouco a pouco, porém, foram
perdendo o seu patrimônio, absorvido pelas prodigalidades dos senhores de
Runsdorf, que levavam a mais faustosa existência. Hoje resta aos seus
descendentes apenas a moradia senhorial e algumas terras sem importância.
"Entretanto, os Lendau parecem ter ainda uma grande riqueza. Levam uma
vida de grandes senhores e não perderam um pingo do imenso orgulho de casta,
hereditário nessa família. Sua reputação, porém, é irrepreensível e julgo que o
senhor pode, sem o menor temor, aceitar essa oferta.
“Pessoalmente, não conheço a condessa, porque o senhor deve calcular
que um plebeu, embora seja filho de um funcionário particularmente estimado por
Sua Alteza o arqui-duque Josef, não tem a honra de ser admitido em Runsdorf.
“A arrogância dessa família será, talvez, o único ponto penoso para o
senhor. Mas, conservando altivamente as distâncias, penso que não terá nenhum
choque a temer, pois os Lendau são pessoas corteses e de boa educação.
“Dizem, aliás, que a condessa é muito bondosa, sob a sua aparência altiva.
há uma jovem de dezoito anos, um rapazinho e duas meninas de uns doze anos.
Mas não esqueçamos o mais importante: Sua senhoria o conde Valther de
Lendau, o filho mais velho da condessa, atual senhor de Rurisdorf e outras terras,
para empregar a antiga fórmula.
"Repito-o: É uma família respeitável, vivendo muito retirada, com exceção
de algumas recepções da aristocracia e de algumas reuniões faustosíssimas
dadas em Runsdorf. Acredito que ficará muito bem nessa velha residência, senhor
professor. Diga-nos então se se decidirá e, uma vez em Eunsdorf, não se esqueça
dos seus amigos de Nunsthel, que esperarão impacientes a sua visita.
"Permite-me oferecer as minhas respeitosas homenagens à senhorinha
Marísia que eu conheci menina em Viena, agora que sou um rapaz turbulento e
muito desajeitado do qual ela talvez se recorde?
 Oh! muito bem!  disse Marísia rindo.  um lourinho, gorducho e
espalhafatoso, mas muito bom rapaz.
 Ele tem por quem puxar. Seu pai é um coração de ouro. E com isso que

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bela inteligência, que distinção de maneiras!... Afinal, que decidimos, meus filhos?
 Parece-me que nada, nessa carta, é de natureza a nos fazer hesitar. 
respodeu Marísia.  Como diz o sr. Euntz apenas teremos que não chocar o
orgulho dos Lendau, colocando-nos no nosso lugar e assim também
salvaguardando a nossa dignidade... Que você diz, Alexy?
 Sou de sua opinião. Nunsthel será para nós uma agradável vizinhança e
o senhor, papai, ficará contente por encontrar novamente o seu amigo.
 Vamos, a sorte está lançada!  declarou o professor com um suspiro de
alívio.  Vou escrever à condessa, e dentro de quinze dias estaremos a caminho
de Runsdorf.

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II

Sim, eles estavam de fato sobre a estrada de Runsuorf, nessa tépida tarde
de primavera perfumada pelas exalações florestais. A carruagem corria sobre um
caminho largo, bem tratado, que atravessava a floresta. Mas o cair da noite
impedia os viajantes de verem fora de um raio muito restrito e, pouco a pouco a
sonolência se apoderou do professor e de Alexy, fatigados pela viagem. Marísia,
sim, ela estava bem acordada e um pouco melancólica. Havia saído de Viena com
algum pesar, deixando duas amigas; mas seu pai nem Alexy suspeitaram essa
tristeza que ela sabia dissimular. Na estação de Dlifelden acabava de
experimentar uma desilusão de sentir uma secreta amargura, encontrando, para
os esperar, apenas uma carruagem de aluguel mandada pela condessa.
Entretanto os senhores de Runsdorf deviam ter equipagens e criados à sua
disposição. Sem dúvida, porém, julgavam os seus novos hóspedes como pessoas
de muito pouca importância e não quiseram se incomodar por causa deles.
Entretanto, passado o primeiro momento de contrariedade, a razoável
Marísia pensou:
"Contudo que nos importa isso? Estamos suficientemente bem instalados
neste antigo veículo e não entrou em nossas combinações com a sra. Lendau que
ela nos daria o gozo de suas carruagens!"
Depois de algum tempo a carruagem descia sensivelmente. Parou de
repente. À claridade das lanternas, Marísia distinguiu uma larga grade; logo no fim
de um pátio que parecia imenso, uma imponente fachada cujas numerosas
janelas, do andar térreo, estavam brilhantemente iluminadas. Mesmo no pátio,
diversos pontos luminosos anunciavam a presença de numerosas carruagens.
O cocheiro fez entrar o seu lastimável carro e o parou diante da grande
escada circular. Nesse instante ouviu-se o galope de um cavalo. Um cavaleiro
apareceu, saltou à terra e estendeu um papel ao criado em libré escura que
acabava de surgir ali.
 Um telegrama para o barão de Holberg,  disse ele.

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O criado afastou-se.
Durante esse tempo o professor e Marísia desciam do carro. Deixando seu
pai dar alguns passos para dessipar a sua sonolência, a jovem subiu a escada,
afim de procurar a quem falar.
O vestíbulo abobadado, imenso, ornado de troféus de caça, estava bem
iluminado, mas deserto. O som de uma orquestra, ritmando uma valsa, chegou
aos ouvidos de Marísia. Esta, perplexa, perguntava a si mesma para que lado
devia se dirigir, quando viu aparecer o criado, velho alto, direito e seco, cujas
suissas brancas enquadravam um semblante rígido, onde os olhos punham dois
pontos agudos, muito brilhantes.
 Somos as pessoas esperadas pela condessa de Lendau,  disse Marísia.
Ele envolveu-a com um olhar desconfiado e suas sobrancelhas tiveram um
rápido franzir.
 O senhor professor Lienkwicz e seus filhos? Muito bem, senhorita. Vou
fazer com que os conduzam ao seu apartamento. Querem entrar para aqui,
enquanto vou prevenir a camareira?
Ele designava uma espaçosa peça, o vestiário sem dúvida, porque se via
ali um grande número de casacos femininos e de sobretudos. Marísia sentou-se
sobre uma banqueta vindo seu pai se reunir a ela.
 Que imponente, este criado!  disse o professor sorrindo.  Se os
patrões lhe estão em proporção...
 Não gosto nada dessa fisionomia. O olhar é desagradável...  ela se
interrompeu, ouvindo um barulho de vozes atrás de uma porta deixada
entreaberta. Estas palavras lhe chegaram, pronunciadas por uma voz masculina,
clara e fria:
 Lamentamos que essa desagradável nova nos prive de sua presença
quase no fim da soirée.
Ao mesmo tempo a porta se abriu completamente. Uma joven, vestida de
tule rosa, apareceu, seguida por um homem de uns cinquenta anos, alto e forte,
cujo rosto estava emoldurado por uma barba meio grisalha, aparada com arte.

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Atrás deles vinha um moço de alta e esbelta estatura, que trazia o seu traje de
soirée com uma elegância aristocrática.
Os dois primeiros lançaram um olhar surpreso e passavelmente
desdenhoso sobre Marísia e seu pai que se levantaram. Um espanto apareceu.
durante alguns segundos no olhar de seu companheiro. Depois, este, subitamente
fez o gesto de um homem que diz: "Estou aqui!"
 O senhor professor Lienkwicz, suponho eu?  perguntou, respondendo
com uma cortezia ligeiramente altiva ao cumprimento dos recém chegados.
 Ele mesmo... É ao senhor conde de Lendau que tenho a honra de me
dirigir?
 Sim, sou o conde Walther de Lendau... já o atenderam, senhor professor?
 Sim, senhor conde.
 Está bem. Sejam, pois, bem-vindos à Runsdorf, onde esperamos se
achem bem.
Tendo assim preenchido os seus deveres de hospitalidade, convidou o pai e
a filha a se sentarem novamente e voltou-se para os seus convidados, junto dos
quais um lacaio surgido repentinamente, era todo cuidados.
 Desejo que o acidente de seu tio não tenha consequências
desagradáveis,  disse ele dirigindo-se à moça que se detinha abotoando a sua
"saída" de cetim branco.  Talvez que o seu criado se tenha alarmado sem
grandes razões...
 Segundo o seu costume... Esse bom Wihllem é um cão fiel, que ao menor
sofrimento do seu dono se desespera,  respondeu ela com um sorriso de
zombaria que deixou brilhar os finos dentinhos.
Era, na verdade, uma linda criatura: pequenina, mimosa, fina como uma
boneca de luxo. Em seu semblante mate e delicado, os olhos negros tinham belos
reflexos brilhantes. Tinha movimentos graciosos, às vezes um pouco impacientes
como os de uma criança mimada. A uma observação do personagem de barba
grisalha respondeu com um franzir das suas sobrancelhas escuras.
 A senhorinha Holberg lamenta deixar o baile,  disse o conde de Lendau

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com um sorriso que Marísia julgou levemente sarcástico.  Esse pobre


conselheiro bem poderia ter escolhido um outro momento para cair tão
desastradamente de sua escada!
O lindo rosto teve uma rápida contração, mas logo se suavizou.
 Julga-me então assim tão frívola?  disse ela com um acento de gracioso
reproche.  Lamentar-me por causa de um baile quando o meu pobre tio sofre!
Não, pode estar certo! Estou apenas enervada e não consigo abotoar este
casaco... Um pouco de paciência, papai... Bom, está pronto! Até breve, eu o
espero, não é conde?
 Sim, até breve,  disse o senhor de Holberg apertando a mão do conde.
 Contamos comsigo para a nossa soirée... se nada houver de grave na saúde de
nosso tio.
 Julgo poder aceitar o seu convite,  respondeu o senhor de Lendau, sem
empenho.
Existia em suas maneiras cortezes uma espécie de condescendência altiva,
que não escapou a Marísia.
Verdadeiramente ele parecia mais um soberano honrando os seus vassalos
do que o dono da casa acompanhando os seus convidados.
Os três saíram do vestiário. De passagem a senhorita de Holberg lançou
um olhar curioso para a moça modestamente vestida que tinha retomado o seu
lugar na banqueta. O ligeiro véu deixava ver uma tez admirável e os olhos azuis,
luminosos e altivos que encontraram as pupilas escuras da senhorinha de
Holberg, eram de uma rara e viva beleza.
A linda criatura virou desdenhosamente a cabeça e pousou sua mão sobre
o braço que o senhor de Lendau lhe apresentava.
Alguns minutos mais tarde apareceu o lacaio, seguido por uma criada idosa
que trazia uma lanterna.
 Se o senhor quiser seguir Otavia, senhor professor, ela o conduzirá.
 Mas é preciso que levemos meu filho que não pode andar,  disse o
professor Lienkwicz.

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Saíram para o vestíbulo afim de se dirigirem para o carro. No limiar da porta


estava o conde Walter, enquanto, no fim da escada o senhor de Holberg e sua
filha tomavam lugar numa luxuosa carruagem, posta à frente do velho veículo dos
viajantes, que fora recuado para lhe dar lugar.
O senhor de Lendau se afastou um pouco, correndo sobre o professor e
sua filha um olhar distraído. A bela equipagem partiu, o carro de aluguel pode se
aproximar de novo. O professor e Marísia carregaram Alexy como o faziam de
costume e subiram lentamente os degraus da escada.
O conde estava ainda no vestíbulo, ocupado em endireitar uma das armas
antigas que ornavam as paredes. Voltou-se, lançou um olhar rápido sobre o grupo
formado pelo professor e seus filhos, e disse imperiosamente:
 Heintz!
Sua mão, ao mesmo tempo, designava Marísia que segurava o irmão pelos
braços.
O impassível semblante se contraiu ligeiramente; mas o criado avançou
logo para Marísia, oferecendo-se para substituí-la.
 Oh! não muito obrigada! Já estou habituada a fazer isto e ele é tão pouco
pesado!
De fato, era bem leve o pobre Alexy. Sob o esplendor das luzes o seu belo
rosto parecia de uma brancura marmórea, que tornava mais enternecedores, mais
expressivos ainda os seus grandes olhos melancólicos. Marísia surpreendeu um
olhar de compassivo interesse dirigido pelo conde ao jovem enfermo.
Ao sair do vestíbulo bem iluminado, os viajantes, conduzidos pela velha
Otavia, tomaram diversos corredores escuros, muito largos, de altas abóbadas,
onde seus passos ressoavam estranhamente. Enfim a criada abriu uma porta
dizendo:
 Eis o seu apartamento, senhor professor.
Eles entraram num aposento completamente às escuras, onde a velha se
apressou a acender uma lâmpada. Depois disso afastou-se para ir alumiar Heintz
e o cocheiro que deviam trazer as malas.

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Quando as bagagens já estavam ali, Otavia avisou que ia servir-lhes o


jantar.
 Devem estar com fome...  acrescentou ela fitando-os com interesse.
 Oh! nenhuma!  disse o professor tomando lugar numa poltrona.  Acho
que temos principalmente necessidade de dormir, não é Marísia?
 Entretanto, é preciso comer um pouco, papai... Mas temos o resto das
nossas provisões de viagem,  acrescentou Marísia, voltando-se para a criada.
 Pelo menos vou trazer-lhes um caldo; ele os reconfortará e fará muito
bem ao seu irmão,  disse Otavia com um bom sorriso.
Era uma velhinha toda enrugada, cujo rosto agradável se enquadrava numa
touca preta. Agradava muito mais à Marísia do que o solene Heintz, que parecia
considerá-los do alto de sua grandeza.
Enquanto Otavia saiu, a moça começou a examinar a sua casa.
Compunha-se de quatro peças bem grandes, forradas de tapeçarias
desbotadas, guarnecidas de móveis sólidos e pesados, mas sem nenhuma graça.
Uma impressão de majestosa frieza se desprendia desses grandes cômodos
escuros, dos quais somente uma parte ficava iluminada pelo candeeiro que
Marísia trazia.
O coração da jovem se apertou um pouco, uma tristeza o invadiu a essa
melancólica entrada em uma vida nova. Mas foi uma impressão fugitiva.
Instantaneamente a dócil Marísia se dominou e encarou claramente a situação.
"Aqui há a largueza necessária”, pensou ela. “E é tudo o que nos falta.
Nesta moradia antiga tudo é grandioso e velho, não muito alegre no princípio...
mas nos acostumaremos bem depressa e talvez acabemos por gostar muito desta
casa. De dia, ao sol pleno, estes aposentos não serão tristes e com os nossos
móveis que vão chegar, nos arranjaremos agradavelmente. Além disso são
grandes, perfeitamente arejados. Alexy ficará muito bem aqui".
Aproximou-se de uma porta-janela e abriu-a. À indecisa claridade de uma
lua velada, distinguiu um largo espaço descoberto, sobre o qual se erguia uma
espécie de colunata circular. Ao longe adivinhavam-se as árvores agitadas pelo

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vento que se levantava.


"Sim, Alexy terá muito ar e papai também", pensou ela com satisfação.
Fechou a janela e voltou para junto do pai. A criada entrava trazendo uma
sopa fumegante e um cesto que continha os elementos do serviço de mesa.
Marísia ajudando a dispor sobre a mesa os talheres, observou:
 Chegamos numa má hora... Essa soirée deve ocupá-la muito, não?
 Muito com efeito, senhorita. Mas a sra. condessa, lembrou-se muito tarde
de que deviam chegar hoje, sem o que ela talvez lhes teria pedido para se
atrasarem em um dia. Mas isto aqui não dá muito trabalho! Um pouco mais de
serviço não nos incomoda... eu e Heintz já estamos acostumados...
Ela, entretanto, parecia alquebrada de fadiga, e Marísia, por compaixão,
não quis que ficasse para servi-los.
 Vá descansar agora! Encarrego-me do resto  disse ela amigavelmente.
 Descansar, eu!  murmurou Octavia com um sorriso melancólico.
Afastou-se depois de ter lançado um último olhar na instalação dos
viajantes. Estes, terminada a refeição, retiraram-se logo para os seus respectivos
quartos. Marísia havia escolhido o que lhe pareceu menos bem exposto ao sol;
mas de dia ele deveria ser bem claro, graças às suas três grandes e altas janelas.
A jovem depois de uma fervorosa prece foi para o cômodo leito colocado contra a
parede mais comprida do aposento.
“Como se sente um vento aqui!” murmurou ela de repente. “Hum! esta
tapeçaria que se agita! Haverá então uma porta por detrás?”
Sua mão afastou a tapeçaria contra a qual o leito se apoiava. Havia ali de
fato uma porta fechada por um ferrolho muito enferrujado. Aproximando sua mão,
Marísia constatou que o ar passava por vários interstícios. Levantou-se, tornou a
vestir o peignoir, e afastou a cama. Depois de muitos esforços inúteis conseguiu
puxar o ferrolho. Tomando seu lampeão, abriu a porta de carvalho, que rangeu
dolorosamente, e avançou alguns passos em uma galeria lageada de mármore
branco e preto, cuja parede estava ocupada por largas janelas, apenas separadas
por um pequeno espaço, guarnecido por um retrato. A grande vidraça de uma

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Miséria Dourada I– M. Delly

delas estava quebrada e era dali que vinha o vento sentido por Marísia.
A jovem se aproximou e lançou um olhar para fora.
“Quanto isto é singular!” murmurou, sem poder reter um ligeiro frêmito.
À sombria claridade da lua que se escondia entre as nuvens, ela via um
lagozinho escuro, inteiramente encaixado entre edifícios compostos por um só
andar e um dos quais formava a longa galeria em que Marísia se achava. No meio
desse lago erguia-se uma espécie de capela, baixa, encimada por uma cruz muito
grande uma estranha construção achatada, mal acabada, que pareceu à Marísia
toda negra como o próprio lago.
"É lúgubre!" pensou, muito impressionada.
Em seguida voltou para o seu quarto, fechou o ferrolho e colocou o seu leito
mais longe, afim de não sentir o vento. Feito isto, deitou-se e logo dormiu, apesar
da desagradável sensação produzida pelo estranho lago negro e sua fúnebre
capela.

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Miséria Dourada I– M. Delly

III

Alexy fatigado pela viagem teve que ficar na cama no dia seguinte. Calmo e
resignado como de costume olhava a irmã que ia e vinha pondo em ordem o
apartamento, enquanto o professor separava uns preciosos papéis antigos,
cuidadosamente colocados em sua mala.
Otavia entrou trazendo o café com leite e avisou o professor e sua filha que
a condessa os receberia dentro de uma hora.
 Eu virei buscá-los, porque decerto não saberão se orientar em todos
esses corredores. Dormiu bem, senhorinha?
 Muito bem. Mas não seria possível tapar, nem que fosse com um papel,
essa vidraça quebrada, que deixa passar tanto vento?
 Uma vidraça quebrada?... em seu quarto, senhorita?
 Não, em uma galeria, ao lado.
Uma expressão de terror se estampou na fisionomia de Otavia.
 Na galeria?... A senhora esteve na galeria?  Sua voz tremia.
 Terei cometido, sem o saber uma indiscrição? Eu apenas quis saber de
onde vinha aquele vento.
 Oh! não há indiscrição alguma! Nunca ninguém vai lá, principalmente à
noite. Oh! não, certamente!  tremendo toda, ela se persignou.  ... Mas é preciso
dizer que há um grande perigo em ir à noite até o lago negro. ele é... assombrado
 Sua voz havia abaixado e ela olhava a sua volta como se esperasse ver surgir
algum fantasma.
Marísia se pôz a rir.
 Eu não creio em almas do outro mundo e asseguro-lhe que nada vi ao
entrar de noite nessa terrível galeria. Mas é preciso convir que o aspecto desse
lago se presta a lendas fúnebres.
 A lendas!  disse Otavia com voz abafada.  Fui eu mesma, senhorita,
que encontrei, uma manhã, estrangulada sobre a beira do lago, uma jovem
camareira de minha idade; tinha eu então dezesseis anos. Fui eu também que

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Miséria Dourada I– M. Delly

primeiro corri, aos gritos da condessa Luba, e que a encontrei de joelhos, junto do
lago, os braços estendidos para a água negra onde ela acabava de ver
desaparecer a sua cunhada antes de poder lhe prestar socorro.
 Quem era essa condessa Luba?
 A irmã do conde Arnulf, avó dos atuais jovens senhores. ele havia
esposado em segundas núpcias a uma bela jovem, uma italiana. Meu Deus, como
era formosa! A condessa Paola... e tão boa, tão amável! ela tomou-me ao seu
serviço... eu ajudava a ama a cuidar de sua pequena Franziska, hoje senhora
cônega de Lendau. Pois, uma manhã, a sua camareira, correu para mim dizendo:
"Octavia, a senhora condessa está louca!" E era verdade, senhorita. Entrando em
seu quarto, eu a vi sentada, o olhar desvairado, repetindo de tempos em tempos:
“O lago! O lago!” "O conde e sua irmã correram a ovê-los, a condessa Paola teve
uma crise terrível e eles foram obrigados a se retirar do aposento dela. A condessa
Luba estava lívida; esse espetáculo parecia ter produzido um efeito terrível sobre
ela. Quanto ao conde Arnulf, ninguém o reconheceria! Diziam, geralmente, que ele
não tinha o coração muito terno, mas em todo o caso, julgo que amava
ardentemente sua jovem esposa e esta sempre parecera muito feliz junto dele. O
médico, chamado às pressas, acalmou a crise, mas deixou poucas esperanças
quanto à volta da razão e outros consultados não foram mais tranquilizadores. A
jovem senhora se tornara mais tranquila mas não podia ver nem o marido nem a
cunhada... não podia ouvir nem os passos deles! Nunca mais falou a não ser para
dizer, com um ar espantado: “O lago! O lago!” "E eis que uma tarde, enquanto eu
trabalhava com uma outra criada nestes aposentos que a senhora ocupa, e que
serviam para os hóspedes nas ocasiões das grandes caçadas, ouvimos um grito
pavoroso... Oh! nem gosto de me lembrar, o sangue gela em minhas veias!...
Como então, tive coragem de correr para a galeria, apesar das minhas trêmulas
pernas? Decerto eu era mais corajosa do que agora... e vi o espectáculo que lhe
contei há pouco: a condessa Luba, ajoelhada, torcendo as mãos e gritando por
socorro, emquanto mostrava a água que fazia um grande redemoinho.
Desgraçadamente era muito tarde! Sondaram todo o lago com ganchos e ferros,

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Miséria Dourada I– M. Delly

mergulharam em todas as direções mas não encontraram o cadáver da jovem


condessa. Sem dúvida ele ficou preso em algum dos muitos poços que se
encontram, segundo dizem, diante da entrada da capela.
 E o marido? Que disse ele?  perguntou Alexy.
 O conde estava em Dufelden. Um correio foi logo preveni-lo e vimo-lo
chegar à galope. Recuamos à sua chegada, porque ele tinha o ar de um espectro.
Depois de ouvir as explicações de um de nós, dirigiu-se para o lago, proibindo-nos
de segui-lo. Que fez lá? Jamais o soubemos. Uma hora mais tarde uma camareira
o viu sair do apartamento de sua irmã, aquele que dá sobre o lago, oposto à
galeria. Essa coitada saiu correndo, espantada ao vê-lo, tal era a expressão do
seu olhar... disse-me que nem parecia um ser humano!... Em seguida fechou-se
na biblioteca, recusando qualquer alimento. Uma manhã, Heintz ao passar viu
aberta a porta tão bem fechada até então. Sobre a mesa do conde Arnulf estava
uma carta endereçada ao seu filho Otto. Nessa carta o conde proibia-o de fazer
qualquer investigação no lago para achar o seu corpo, porque ele desejava
repousar junto da condessa Paola... E o conde Otto respeitou essa última vontade
do pai...
 Com efeito são umas tristes recordações!  disse Marísia.  A pobre
senhora foi sem dúvida atraída por essa água escura cujo pensamento tanto a
assombrava em sua loucura.
Otavia sacudiu a cabeça, tornando a se persignar.
 Senhorita, ela vira o maldito! Foi por isso que ficou louca. Antes era
perfeitamente sã de espírito, alegre e espirituosa! Mas o viu... e desde esse
momento ficou sob o seu império, até o dia em que ele a atraiu para o seu lago
negro, para o abismo que se abre lá embaixo. E há noites em que eles saem da
água, noites em que os três são vistos: o conde Arnulf, sua mulher e... Wolf de
Ludfell.
A voz da velha criada teve uma inflexão de pavor ao pronunciar este último
nome.
 Quem é esse?  perguntou Alexy.

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Miséria Dourada I– M. Delly

 É o maldito, o perjuro. ele assassinou o seu irmão mais velho, Rudolph,


isso se passou há centenas de anos e lançou o seu corpo no lago. Mas sua
esposa, sem ele saber, o vira cometer o crime e começou a se definhar de
desgosto. O rude senhor que no mundo só amava à ela, ficou no auge do
desespero. Algumas horas antes de soltar o último suspiro, revelou ao marido a
causa de sua morte, suplicando-lhe para se penitenciar e construir em memória de
Rudolph, uma capela expiatória no meio do lago onde jazia o seu corpo. Wolf,
louco de dor, prometeu o que ela quis. Com efeito fez edificar a capela, mas em
lugar de se penitenciar, lançou-se na orgia, na magia e no crime, e de tal modo
que um dia, preso por uma crise de loucura ou de desespero, por sua vez, se
precipitou no lago... e seu corpo nunca foi encontrado.
 Mas esse lago é um verdadeiro túmulo de família!  exclamou o
professor, que a ouvia com interesse.  Nunca pensaram em desviar essas águas
misteriosas?
 Não, senhor professor, ninguém teve essa idéia. Aliás, é melhor deixar
em paz esses pobres mortos.
 E os Lendau são os herdeiros desse Wolf?
 Indiretamente. Wolf de Ludfell morreu sem deixar filhos e seus bens
passaram ao irmão mais moço, já riquíssimo e poderoso, do qual descendem em
linha direita os nossos jovens senhores.
 Alguma vez você viu esse terrível fantasma?  perguntou Marísia
sorrindo.
A velha criada levantou as mãos para o céu.
 Se isso tivesse acontecido, já eu não estaria aqui, senhorita! aquele que
o ver está perdido! Foi o que aconteceu com essa jovem camareira, minha
companheira de outrora, da qual lhe falei há pouco. Sua curiosidade lhe foi fatal.
Ela não tinha medo de nada, como a senhorinha, e agora já sabe como ela foi
punida!... E, diga-me se se acha bem aqui,  continuou Otavia com alguma ânsia,
evidentemente desejosa de mudar de conversa.
 Muito bem. O ar é delicioso; verdadeiramente ele insufla-nos força.

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Miséria Dourada I– M. Delly

Marísia aproximou-se de uma janela e repousou por alguns instantes o seu


olhar sobre o fundo de verdura, formado pelas belas árvores do parque. Mais
perto, estava o espaço descoberto, entrevisto na véspera. Cobria-o uma erva
espessa e sobre a colunata de pedra escura, sobre o velho tanque meio quebrado
que ocupava o centro, o musgo formava largas manchas esverdeadas. Esse lugar
estava evidentemente abandonado muito antes da chegada dos novos hóspedes.
 A senhora condessa tinha pensado primeiro em instalá-los no primeiro
andar,  disse Otavia aproximando-se da jovem.  Teriam tido de lá uma soberba
vista, mas depois julgou que o andar térreo seria mais cômodo, por causa do
jovem, seu irmão. Aliás, lá em cima os quartos são inabitáveis e poderão subir
quando quiserem ver a floresta.
Otavia saiu e Marísia voltou aos seus arranjos. A jovem tinha recuperado a
sua habitual alegria. O sol entrava em cheio nos quartos expostos ao jardim e com
ele o ar puro, vivificador, perfumado pela floresta. Os raios de ouro dançavam nas
grandes peças severas, iluminavam os velhos móveis de formas rígidas, faziam
faiscar o velho lustre suspenso no quarto do professor. Alexy que estava todo
envolvido por eles. parecia recuperar um pouco de vida; seus olhos escuros se
abriam, maiores, como para melhor absorver essa luz benfeitora.
 É delicioso este velho castelo cheio de lendas!  exclamou ele com
encantamento.  Estas paredes seculares devem ter visto coisas estranhas e
terríveis. Precisamos pedir a Otavia para nos contar tudo isso, não é, Marísia?
 Oh! não desejo outra coisa! Gosto tanto dessas lendas de outrora! 
respondeu alegremente a irmã.
De fato, Marísia, reunia às qualidades práticas, herança de sua mãe, os
gostos intelectuais de seu pai. O passado, em particular, a atraia como ao pai,
como à Alexy, e a dócil Marísia não escondia o prazer que experimentava ao ouvir
qualquer história antiga, fantástica e terrificante, principalmente quando contada
no quadro em que se tinha desenrolado e quando havia uma probabilidade de ter
sido real. Estava pois, encantada por descobrir, logo nos primeiros momentos, que
Runsdorf possuía seus fantasmas, seus fantasmas próprios, e além disso esse

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Miséria Dourada I– M. Delly

misterioso lago negro que conservava tão zelosamente as suas vítimas.


Otavia voltou na hora combinada. Por intermináveis corredores, o professor
e sua filha, seguindo a velha criada, chegaram ao corpo principal da casa, que
compreendia no andar térreo, os apartamentos de recepção e no primeiro andar
os da família.
Otavia introduziu os novos hóspedes de Runsdorf em um salão decorado
com velhos carvalhos esculpidos e antigas tapeçarias. Uma senhora de pequena
estatura, um pouco forte, vestida de preto, muito simplesmente, estava em pé
junto de uma janela. Voltando-se, inclinou a cabeça em resposta ao cumprimento
dos recém-chegados.
 Sejam bem vindos a Runsdorf.. Fizeram boa viagem?  perguntou ela
num tom cortês e frio.
Depois que o professor respondeu por algumas palavras em que exprimia o
seu contentamento pela privilegiada situação de Runsdorf, ela disse, designando
umas cadeiras aos hóspedes:
 Sim, estarão bem aqui. A vida é muito calma e ficarão perfeitamente
independentes em seu apartamento. A neta de Otavia se encarregará do seu
serviço.
 Oh! não tenho necessidade de ninguém para me auxiliar,  interrompeu
Marísia.  Em Viena eu me encarregava sozinha da casa.
Ela percebeu um reflexo de satisfação no olhar da condessa.
 Se gostar mais assim... a senhora tem toda a liberdade de escolher
senhorita. Rosina lhe levará, então, somente as refeições e lhe fará todos os
servicinhos que lhe pedir. Está tudo combinado sobre este assunto, não é? Agora,
vejamos a questão das lições.
Tinha uma voz clara, um pouco breve, que lembrava a Marísia a voz do
conde Walther, ouvida na véspera. Era esse, aliás, o único ponto de semelhança
que existia entre a mãe e o filho.
Entretanto havia um outro que Marísia só percebeu minutos depois da
conversa. Sobre esse rosto envelhecido, cansado, que decerto nunca possuíra

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Miséria Dourada I– M. Delly

beleza, mas talvez apenas uma grande frescura, na atitude e no acolhimento da


condessa, ela encontrava de novo a distinção patrícia, a altivez e a
condescendência soberana notadas no conde de Lendau.
 Terão três alunos  disse a condessa dirigindo-se ao mesmo tempo ao
professor e à Marísia.  Meu filho Guntran tem treze anos, Helena e Valeria onze
e doze. Repartirão as lições como quiserem, deixo-lhes inteira liberdade sobre
este ponto. Não pretendo fazer de meus filhos uns sábios, pois isso não está nas
tradições da família. Que eles se instruam no que é necessário à sua classe, eis o
que é preciso para os Lendau.
Falando assim a sua voz havia tomado uma vibração de orgulho e seus
olhos pardos um pouco velados, se animaram durante alguns segundos.
 Vou mandar chamá-los para que os conheçam desde já. Começarão as
lições quando estiverem completamente instalados.
Não se lhe poderia contestar uma certa urbanidade e intenções benévolas.
Era, sem dúvida, o seu orgulho de raça que erguia entre os seus hóspedes e ela,
essa barreira de gelo que Marísia sentia desde o princípio.
E a sentiu de novo desde logo entre os seus futuros discípulos e ela.
Guntran, um rapazinho louro e franzino; Helena uma pálida moreninha cujos
traços finos recordavam os do irmão mais velho; Valeria, loura, gordinha, de
fisionomia calma e um pouco sonolenta, todos sob a sua polidez de crianças bem
educadas, deixavam perceber a mesma altivez, que parecia dizer aos seus
professores: "nós estamos bem acima dos senhores; também devem se sentir
muito honrados por terem sido escolhidos para dirigir a nossa instrução".
 Teremos com eles as únicas relações necessárias, eis tudo,  disse
Marísia quando comunicava ao seu pai as suas impressões, ao retomarem o
corredor por onde, ela o julgava, os havia conduzido Otavia.  A atitude de todos
eles nos fizeram compreender, claramente, que não deve ser de outro modo.
 Assim também ficaremos mais livres... Mas não nos enganamos no
caminho, minha filha?
 Estou com receio...

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Miséria Dourada I– M. Delly

Chegavam ao fim do corredor, diante de uma porta aberta que mostrava um


grande aposento luxuoso no centro do qual se achava uma mesa guarnecida de
restos de vitualhas; pedaços de carne, talhadas de peixe rodeadas de geléia,
bolos atacados por profundas brechas, garrafas de champagne vazias.
Diante dessa mesa, as costas voltadas para a porta, estava de pé uma
jovem de pequena estatura, com um vestido marrom, em parte escondido por um
avental de quadrados azuis. Sobre a sua nuca em espiral uma espessa cabeleira
loura, escura. Essa pessoa se voltou repentinamente, mostrando um rosto muito
jovem, de traços bem irregulares, mas dotado de uma tez delicada e de dois olhos
castanhos escuros, profundos e expressivos, que se fixaram nos estranhos com
uma surpresa mista de grande contrariedade.
O professor deu alguns passos e se inclinou.
 Peço-lhe perdão... mas nos perdemos nesses corredores desconhecidos
e não sabemos como tornar a encontrar a nossa casa.
O olhar da jovem criatura se suavizou.
 Isso não me espanta... vou fazer com que o reconduzam ao seu
caminho... Rosina!
De um aposento vizinho saiu uma camareira jovem, sem dúvida ocupada
em alguma fatigante limpeza porque viam-se bagas de suor em sua testa.
 Rosina vá indicar ao senhor professor o caminho do seu apartamento.
Depois dessa ordem a loura desconhecida respondeu por uma graciosa
inclinação de cabeça ao agradecimento de Adriano Lienkwicz e de Marísia, que se
afastaram seguindo a camareira.
 Essa mocinha é sem dúvida a filha mais velha da condessa, com a qual
se parece muito,  disse o professor a Marísia quando ficaram sós, assim que
Rosina os deixou depois de lhes ter indicado a boa direção.
 Provavelmente. Sua fisionomia é agradável, a despeito de certo orgulho
que parece existir nela também. Mas, segundo as aparências não teremos
nenhuma relação com essa jovem condessa.
Durante a tarde desse mesmo dia, Heintz veiu bater na porta do

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Miséria Dourada I– M. Delly

apartamento de Adriano Lienkwicz. Trazia uma folha de papel para colar sobre a
parte quebrada da vidraça.
 Vão substitui-la... um pouco mais tarde, porque aqui não há operários
para esse serviço,  explicou ele, dirigindo-se para a porta da qual Marísia
acabava de puxar o ferrolho.
Enquanto ele dava conta de sua tarefa com uma certa pressa, o professor
fitava longamente a estranha superfície do lago onde o sol punha reflexos
esverdinhados.
 De onde vem a coloração desta água?  perguntou ele.
Heintz voltou para ele o seu rosto que tinha nesse momento, seria o reflexo
do lago sombrio?, uma cor acinzentada.
 Parece que é do fundo...
O professor ficou um instante pensativo, parecendo meditar sobre essa
lacônica resposta. Depois continuou:
 Se eu estivesse no lugar dos senhores de Runsdorf, tentaria desviar o
lago.
O velho estremeceu e disse bruscamente, sem interromper o seu trabalho.
 Para que? O que adiantaria?
 Ora, para conhecer a sua conformação. Além disso poderia encontrar os
corpos dos que desapareceram aqui, segundo contam, e enterrá-los
convenientemente.
 Eles estão bem mais tranquilos aqui!  resmungou Hintz enfiando o seu
pincel na cola com uma certa violência.
Marísia que entrou pouco depois do pai, chamou-o para lhe mostrar os
numerosos retratos que enfeitavam a galeria. Alguns tinham saído dos pincéis dos
maiores mestres. Alberto Durer, em particular, havia assinado três.
O atual senhor de Runsdorf, tinha herdado o tipo dos seus nobres
antepassados. Em todos se encontrava esse mesmo rosto um pouco comprido,
essa tez mate, essa cabeleira escura, essa atitude de altivez um pouco
desdenhosa que caracterizavam o seu jovem descendente. Só os olhos variavam

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Miséria Dourada I– M. Delly

pequenos ou grandes, claros ou escuros, sorridentes ou severos, sempre duros,


imperiosos, denunciando pouca benevolência e bondade.
Um desses condes de Lendau tinha entretanto uma fisionomia bem
simpática. Aparentava uns quarenta anos e estava vestido à moda dos princípios
do século XIX. De belos olhos castanhos, muito doces e penetrantes, parecia
olhar com agrado para esses plebeus que os seus vizinhos tinham o ar de
considerar desdenhosamente do alto de sua nobreza.
 Oh! que bela pintura!  disse Marísia, parando em frente do retrato de
uma jovem.
Esta trazia sobre os maravilhosos cabelos escuros uma coroa de princesa.
Seu vestido de damasco cor de púrpura estava constelado de pedras preciosas.
Erguia orgulhosamente a cabeça, fixando em Marísia as pupilas escuras, um
pouco duras.
 É a princesa reinante de Darnstadt, nascida condessa Mathilde de
Lendau,  disse a voz breve de Heintz.
Tinha acabado o seu serviço e aproximou-se do professor e sua filha.
 ... há numerosas alianças de casas soberanas com a família Lendau. A
irmã da bela princesa Mathilde foi pedida em casamento por um duque da
Lorraine, mas recusou porque parece que amava Rudolph d'Urbrecht, um
pequeno fidalgote que lhe salvou a vida em uma partida de caça. Vendo que ela
persistia em sua recusa, o conde seu pai, mandou prendê-la ali...
Heintz designava o apartamento que ficava em face da galeria, no outro
lado do lago.
 ... E jurou que só sairia da prisão, noiva do príncipe ou morta.
 E o que ela escolheu?  perguntou o professor.
 A prisão perpétua. Foi-se definhando lentamente e um dia acharam-na
morta. Os Lendau têm posto sempre a glória de seu nome acima de todas as
considerações!
Uma orgulhosa satisfação vibrava no tom do velho criado; sua cabeça se
erguera, um clarão atravessou o seu olhar agudo. Parecia que essa glória

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Miséria Dourada I– M. Delly

resplandescia sobre ele e que o penetrava até o fundo de sua alma.


 Pobre moça!  murmurou Marísia.  O pai então não tinha nenhuma
amizade por ela?
 Ele apenas obedecia às exigências de sua classe,  respondeu Heintz
num tom meio áspero.  Um conde de Lendau não pode agir como um simples
burguês. Isso deveria servir de exemplo para as futuras gerações de sua raça,
para as condessas de Lendau que pensassem em imitar sua filha Walburge
olhando para homens que estivessem abaixo delas. Na família, quando aparece a
questão do casamento, o coração nunca é consultado... olham somente as
conveniências de fortuna e principalmente as de nascimento.
 Pobres mulheres!  disse Marísia; tomando o braço do pai para voltarem
ao apartamento.
Passando pela frente do retrato do senhor de semblante simpático, ela
parou e perguntou:
 E quem é esse?
O pincel escapou das mãos de Heintz. O velho inclinou-se para apanhá-lo
enquanto respondia brevemente:
 O conde Eberhard.
Na sala quando o criado ia sair, o professor perguntou:
 Nunsthel é muito longe daqui?
 É preciso uma meia hora... mais ou menos... se se andar bem.
 O caminho é mau?
 Não, uma excelente estrada florestal, mas que sobe sensivelmente.
Nunshtel está situado na metade da montanha.
Heintz parecia apressado em se afastar. O professor, percebendo-o,
guardou os outros pedidos de informações que pretendia lhe fazer, pensando que
Otavia seria menos lacônica que esse velho rabujento e visivelmente pouco
condescendente à respeito dos novos hóspedes do castelo.
Com efeito, a camareira deu todas as indicações necessárias e se
estendeu longamente sobre as qualidades físicas e morais do administrador

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Miséria Dourada I– M. Delly

Conrado Duntz.
A despeito dos seus cinquenta anos, ele é ainda o mais belo homem de
toda a região. E que inteligência! O arquiduque Josef o tem em alta estima. Além
disso, é de uma bondade, de uma caridade, das quais os seus subordinados e os
pobres daqui poderão dar testemunho.
 E seus filhos?
 Seu filho Heinrich não se lhe assemelha fisicamente, mas dizem que é
tão bom quanto ele. Sua filha mais velha saiu do colégio no ano passado; tem
ainda uma menina que apenas conta uns doze anos. Uma bela família, muito
unida, segundo consta e que vive muito simplesmente.

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Miséria Dourada I– M. Delly

IV

Na semana seguinte o professor e seus filhos tomaram o caminho de


Nunsthel. Otavia havia indicado um portãozinho do parque que dava diretamente
sobre a estrada que conduzia, através da floresta, à moradia do administrador.
Logo, o carro de Alexy rumou por essa estrada empurrado por Marísia e
seu pai, pois a subida era de fato sensível, como o havia dito Heintz.
Os olhos dos passeantes descansavam-se nas alfombras iluminadas,
perdiam-se nas brenhas raiadas de sombra e de luz, onde as árvores seculares
perfilavam suas silhuetas e baralhavam seus ramos, cobertas de tenras folhas
primaveris. Seus pulmões aspiravam o ar puro da montanha, carregado de
exalações resinosas e dos múltiplos perfumes da floresta.
De um atalho surgiu, ladrando, um enorme cão negro.
 Aqui, Saladin!  gritou uma voz ligeiramente trêmula.
O cão parou logo. Marísia e o professor instintivamente fizeram alto. Nisto
viram sair do atalho um velhinho magro, vestido com esmero, à antiga. Seu rosto
cuidadosamente barbeado exprimia uma jovial benevolência. Com um gesto
rápido ele se descobriu para cumprimentá-los.
 Peço-lhes que perdoem a este impetuoso Saladin. ele se julga em sua
casa quando anda pela floresta. Assustou-se, meu filho?  disse o desconhecido
dirigindo-se ao pequeno Alexy.
O rapaz respondeu, sorrindo:
 Quase nada, senhor. Asseguro-lhe...
 Tanto melhor... tanto melhor. Eu teria ficado desolado... Permita-me que
me apresente como vizinho... Penso tratar-se do professor Lienkwicz, não é?
Como Adriano Leienkwicz se inclinasse confirmando, o velho acrescentou:
 Eu sou o dr. Berdeck.
 O dr. Berdeck? O sábio experimentado que formou uma legião de
excelentes discípulos?
 Ele mesmo  disse o velhinho, sorrindo.  há quase dez anos que fiz

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Miséria Dourada I– M. Delly

daqui o meu retiro, em meio desta floresta natal, onde possuo um velho solar, bem
próximo do parque de Runsdorf.
Os dois homens trocaram um cordial aperto de mão, enquanto o professor
se declarava encantado por conhecer, pessoalmente, o eminente médico, do qual
ouvira elogiar em Viena a precisão do diagnóstico e a consciência profissional.
 O senhor não me vê menos encantado pela vizinhança que me coube! 
respondeu o dr. Berdeck, expansivo.  Também já ouvi falar de si, sr. professor. Li
e apreciei as suas excelentes obras, aliás muito raras. Ouso pois esperar que nos
veremos sempre, não é verdade?
 Mas, com grande prazer!
 Quando eu for ver o Conde Walther, aproveitarei para lhe apertar a mão.
 Oh! o conde está doente?
 Absolutamente! Mas quis me honrar com a sua amizade e em se dizer
meu aluno.
 Eele estuda medicina?
 Sim, como curioso, naturalmente. Ah! que inteligência e que paixão por
esses estudos! Ele é médico na alma e se não fosse Conde de Lendau tornar-se-
ia num dos mais sábios e dos mais admiráveis clínicos de nossa época!
Marísia perguntou:
 Em que, então a sua classe o impediria de satisfazer essa tão nobre e tão
útil vocação?
O velhinho mostrou-se estupefato, quase escandalizado com esta pergunta.
 Em que?! Mas, senhorinha! Jamais um Conde de Lendau se esqueceria
a este ponto das tradições de sua família! Médico! Traficante de seu saber, como
eu, Berdeck o plebeu! Ah! os seus nobres antepassados sairiam das tumbas para
amaldiçoá-lo...
 Não vejo que prescrições possam atingir dessa maneira um homem, que
seria bastante enérgico para romper com tradições antiquadas... e
deploravelmente pedantes. Um trabalho dignificante e útil a outrem só pôde
aumentar o valor de um homem... E no caso de quem se trata, esse trabalho daria

32
Miséria Dourada I– M. Delly

ao Conde de Lendau uma superioridade mais real do que a que lhe confere a sua
origem.
O dr. franziu as sobrancelhas brancas:
 Oh! Oh! A senhorita tem opiniões terrivelmente democráticas! Aconselho-
a... Hum!... de não as denunciar em presença dos senhores de Runsdorf... mas...
perdão, eu os estou prendendo e retardando o seu passeio!
 Temos tempo e, parece-me, que não estamos muito longe de Nunsthel,
não é?
 Há dez minutos, mais ou menos. Vão visitar o administrador? Um homem
encantador. Trato de sua pequena Gisela, que é muito delicada... Adeus, ou por
outra, até logo!
Cumprimentou graciosamente, chamou o cão e afastou-se com um passo
ainda esperto.
Em pouco os visitantes tinham chegado a entrada da grande clareira onde
se elevava, em plena floresta, a moradia do administrador dos domínios
pertencentes, nessa região, ao arquiduque Josef. Essa antiga residência, muito
grande tinha um aspecto ao mesmo tempo imponente e familiar com suas altas
janelas emolduradas por esculturas seus telhados de velhas telhas vermelhas
seus muros pardos em parte velados por longas trepadeiras. Um jardim
cuidadosamente tratado e abundantemente enfeitado de flores rodeava o edifício.
No fundo via-se a muralha de verdura formada pelas frondes cerradas da floresta.
O professor empurrou o portãozinho de madeira envernizada. Uma
campainha fez ouvir o seu som claro, que trouxe para o limiar de uma porta
envidraçada um alto e vigoroso joven. À vista dos recém-chegados adiantou-se
rapidamente.
 Ei-los enfim! Soubemos de sua chegada a Runsdorf e os esperávamos
todos os dias. Entrem depressa, papai está aqui... Senhorita, permita-me que a
substitua.
Ele apoderou-se do carro e Marísia seguiu o pai para a casa. Um homem
de alta estatura surgiu, de repente, com uma exclamação de alegria, lançou-se

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Miséria Dourada I– M. Delly

para o professor, apertando-o em seus braços.


 Meu querido Adriano, que boa surpresa você nos faz! Quem imaginaria
que você viria me procurar em minha floresta?... Mas tenho muitas
descomposturas para lhe passar! Porque em vez de procurar abrigo e emprego
em casa de estranhos não me pediu hospitalidade para si e para os seus filhos?
 Meu amigo, eu seria incapaz de uma tal indiscrição...
 Ah! você continua a ser sempre o muito discreto, o muito delicado
Lienkwicz... E essa joven é a Marísia de quem você me fazia tantos elogios em
suas cartas?
Conrado Duntz cumprimentou a filha de seu amigo com uma graça cortês.
Tinha a mesma idade do professor e entretanto, conservava a flexibilidade
elegante, a viril e encantadora beleza de sua mocidade. Seus olhos azuis,
profundos e soberbos, refletiam a bondade, a nobreza de alma, a amável
constância que Adriano Lienkwicz sempre conhecera em seu melhor amigo.
Os recém-chegados foram introduzidos na sala de visitas onde
habitualmente se reunia toda a família, um grande aposento claro, mobiliado com
uma elegância sóbria e enfeitado com uma profusão de flores. Conrado Duntz
disse a Marísia, que admirava uma cesta arranjada com delicado gosto:
 Gosto imensamente de flores e minha filha mais velha tem o cuidado de
enfeitar esta sala em minha intenção...Mas Laura e Gisela, onde estão, Heinrich?
O jovem acabava de tirar Alexy do seu carro e o instalava cuidadosamente
sobre um fofo canapé. Voltou-se para o pai com um sorriso que iluminava a
fisionomia franca, muito simpática.
 Laura decerto pressentiu as nossas visitas e foi enfeitar a nossa Gisela...
Conrado teve também um sorriso de enternecimento.
 Nós mimamos um pouco essa menina por causa de sua saúde.
Felizmente ela tem uma muito boa índole... Ah! ei-las!
Laura Duntz era uma loura, fresca e graciosa, que se assemelhava ao
irmão. Gisela tinha herdado a beleza paterna, mas não a robusta saúde que
Conrado sempre possuíra. Depois de ter, gentilmente, desejado as boas vindas

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Miséria Dourada I– M. Delly

aos visitantes, foi se sentar perto do administrador, que pousou, acarinhando, uma
das mãos sobre a linda cabeça loura.
 Apresento-lhe a minha pequena ignorante  disse ele num tom meio
sério, meio brincalhão...  ela até agora é absolutamente refratária aos estudos,
apesar de todos os meus esforços.
Alexy a fitou com surpresa.
 Oh! e no entanto, aprender é tão interessante! Eu passaria os dias
inteiros estudando!
Gisela sacudiu os seus belos cachos dourados.
 Pois eu gosto mais de correr pela floresta e de brincar com as minhas
cabrinhas!
 Ah! sim, é que você pode correr!,  murmurou Alexy com amargura.
Um pouco de rubor subiu às faces de Gisela e os belos olhos azuis
demonstraram o pesar que lhe causava o ter sido tão indiscreta. Inclinando-se
para Alexy, a menina pousou sua mão sobre a dele.
 Mas você também correrá um dia tão bem quanto eu! Ficará bom com o
ar da floresta... Não é verdade, papai, que ele ficará bom?
 Decerto! Você verá, meu querido menino, que nunca há de se arrepender
de ter vindo conhecer a nossa terra... E vão bem com os Lendau?
Conrado Duntz dirigia essa pergunta ao professor. Este respondeu:
 Muito bem. Ficamos sempre em nosso apartamento e assim
continuaremos depois das horas de lição; estas começaram anteontem. Marísia
abriu o fogo...
 E está satisfeita com os seus alunos?  perguntou Heinrich.
 Ainda não o posso dizer. Helena, a mais velha das meninas, parece ser
muito inteligente. Valeria é mais embotada. Quanto a Guntran, percebo que ele é
muito inclinado para as ciências. Mas estão muito atrasados em seus estudos...
Fora disso são muito corteses...
 E cheios de orgulho, naturalmente, como todos os Lendau? Estamos na
segunda parte do século dezenove e essa família, entretanto, soube conservar tão

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Miséria Dourada I– M. Delly

bem todas as suas tradições feudais, que um conde de Lendau julgaria derogar,
se ele próprio procurasse valorizar os seus domínios ou si se sentasse sobre os
bancos de uma Universidade!
 À propósito, acabamos de encontrar o dr. Berdech,  disse o professor. 
Fizemos conhecimento e prometemos mutuamente nos tornar a ver. Esse velho
parece ser bem agradável e muito sociável.
 Decerto! Ele se aborrece em sua velha casa e sempre o encontram
percorrendo todo o lugar, parando em casa de um ou de outro, bem recebido por
todos, porque é o melhor homem do mundo e possui um espírito fino, um enorme
bom senso, salvo, no entanto, quando se trata dos previlégios nobiliárquicos dos
Lendau. Seus pais foram vassalos dos senhores de Runsdorf e ele tem por essa
família uma indiscritível veneração. O conde Walther, principalmente, é o objeto de
sua idolatria e acho que não preciso avisá-los de nunca o censurar para ele.
 Bom, eis-me então julgada e condenada!  disse Marísia rindo.  Porque
cometi a grande falta de insinuar que o conde errava em não seguir, por puro
orgulho de casta, a vocação que o arrasta para a medicina.
Conrado Duntz sorriu, respondendo:
 Deverá, então, com efeito ter um lugar muito pequeno na estima do
doutor, senhorita. Comigo ele ficou emburrado durante muitos meses porque um
dia lhe disse a minha opinião a esse respeito. Sim, na verdade esse jovem conde
possui as belas qualidades que o dr. Berdech lhe concede e é deplorável vê-lo
levar essa existência inútil, unicamente porque tem a honra ou a desgraça de se
chamar o conde de Lendau.
 O senhor diz bem, a desgraça, meu pai!  exclamou Laura com um
pequeno estremecimento.  Têm havido tantas catástrofes estranhas nessa
família! Gosto mais de me chamar Laura Duntz, muito simplesmente!
Conrado teve um clarão no olhar, emquanto replicava:
 Sim, você tem razão, minha filha, é mesmo muito melhor assim.
Verdadeiramente você será muito mais feliz do que todas as condessas de
Lendau, passadas, presentes e futuras. Do que a pobre Paola. por exemplo...

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Miséria Dourada I– M. Delly

conhece a história dela, senhorita Lienkwicz?


 Conheço, a velha camareira me contou, para me prevenir contra as
surpresas do terrível fantasma.
Um espanto apareceu nos olhos claros de Laura.
 Oh, está zombando disso? Mas parece que é bem verdade! E dizem que
o conde Eberhard também aparece...
 E o que faz ele?  perguntou Marísia alegremente.
 Oh! esse é um bom fantasma, pode ficar certa!  respondeu Heinrich no
mesmo tom.  De fato, talvez ele ainda esteja vivo.
 Como, vivo?
 Sim, pois que desapareceu misteriosamente e de tal maneira que
ninguém mais ouviu falar dele. Vou contar-lhe isso enquanto Laura nos serve o
café.
"Havia em Runsdorf nos princípios do século, três irmãos: Carl, Eberhard e
Arnulf. O mais velho, segundo o costume, era o herdeiro de todos domínios e
privilégios. Eberhard, natureza independente, enérgica, cansou-se bem depressa
da existência ociosa que lhe impunha a tradição. Munido da parte que lhe cabia da
herança materna, empreendeu viagens longínquas. Depois os irmãos souberam
que ele dirigia na ilha de Java uma importante exploração agrícola. Desde então,
acabaram-se as relações entre eles e aquele que desprezava desse modo as
tradições de família.
"Entretanto, Cari morrendo sem posteridade, deixava Eberhard como
herdeiro dos bens patrimoniais. Ele realizou sua fortuna, muito considerável e
voltou para a Áustria. Viúvo de uma polaca que esposara no decorrer de suas
viagens e da qual não tivera filhos, trazia um sobrinho de sua mulher, um menino
de doze anos, adotado por ele e para o qual deveria reverter todo o fruto de seu
trabalho no estrangeiro.
"Seu irmão Arnulf e sua irmã Luba, a despeito de sua bem conhecida
arrogância, receberam-no sem hostilidade. Cedendo à afabilidade de Eberhard,
que desejava esquecer o passado, eles vinham de tempos em tempos a Runsdorf

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Miséria Dourada I– M. Delly

onde o irmão trabalhava nas grandes reformas com que queria melhorar os seus
domínios. Ora, uma manhã, o seu criado particular não o encontrou em seu
apartamento e foi em vão que o procurou em todo o castelo e no parque.
Desanimado de encontrá-lo preveniu a condessa Luba que se achava no castelo
há alguns dias. Ela fez com que recomeçassem as pesquisas e enviou um correio
a seu irmão então em Viena. Arnulf chegou, mandou sondar o lago, os poços, as
masmorras... mas o conde Eberhard continuou desaparecido... e o seu dinheiro
também, porque o cofre em que ele guardava a sua fortuna apareceu
completamente vazio quando foi aberto.
 E o menino?  perguntou Marísia.
 O jovem Boleslas ficou pobre porque, naturalmente não tinha nenhum
direito sobre os bens patrimoniais de seu pai adotivo, que passaram ao conde
Arnulf. Este o conservou junto dele. manifestando a intenção de lhe dar uma boa
educação. Entretanto, alguns meses depois da morte de Eberhard, o menino
também desaparecia..
 Isso se torna perfeitamente misterioso!  disse o professor.  E foi
encontrado?
 Nunca. O conde fez no entanto muitas pesquisas, não somente na
Áustria mas até no estrangeiro. Tudo foi inútil e o enigma continuou a envolver
esses desaparecimentos. Houve quem sugerisse que o conde Eberhard talvez
num acesso de loucura tivesse fugido levando toda a sua fortuna, para se lançar
em algum golfo ou precipício. Mas são apenas suposições que nada autoriza a se
acreditar, porque Eberhard de Lendau era conhecido por um espírito sadio, muito
lúcido, e por um excelente cristão.
 Esse também estará no lago?  disse Marísia, meio pensativa, meio
sorridente.
 Quem sabe?  murmurou Conrado Duntz.
Durante a narração do filho ele tinha ficado constantemente silencioso, com
um ritus de amarga ironia na boca, enquanto sua mão, num gesto maquinal, ia
acariciando os cachos de Gisela, sentada junto dele.

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Miséria Dourada I– M. Delly

Laura serviu o café e a conversa mudou de assunto. Os visitantes falaram


de Viena, de sua vida calma e modesta. O administrador contou a sua, bem
pacífica também; com emoção lembrou as saudades de sua esposa, morta por
ocasião do nascimento de Gisela e cujo retrato ocupava o lugar de honra da sala.
 A minha boa Maria! Que vácuo ela nos deixou ao partir! Era a fada
benfeitora desta casa e todos, até o último dos lenhadores a amavam e
veneravam.
De fato era deliciosamente doce e atraente o semblante feminino que sorria
um pouco melancolicamente no quadro de carvalho sobriamente ornado de um
filete de ouro. Heinrich e Laura se assemelhavam à sua mãe. Maria Duntz não
tinha sido bela, mas possuíra o encanto superior da bondade, da graça e do
devotamento.
Conrado Duntz fez os seus amigos visitarem o jardim o pátio das criações
onde Laura projetava empreender importantes reformas assim como a herdade
situada um pouco mais em baixo à beira do vale.
Eu a animo muito disse o administrador ao seu amigo. Este gênero de
ocupação, esta vigilância ativa, necessária a qualquer exploração, torna forte uma
mulher. É assim que as energias se desenvolvem que os caracteres adquirem o
hábito da reflexão e das responsabilidades.
 Oh! compreendo Laura, perfeitamente! Eu gostaria também dessa vida 
disse Marísia.  E parece-me que eu seria uma ótima rendeira...
 Pois bem! Associe-se aos empreendimentos de Laura, senhorita.
Poderemos um dia ver isso. Enquanto espera... venha aqui; quero lhe mostrar a
nossa maravilhosa vista.
Conrado conduziu os seus amigos para um terraço de pedra cinzenta,
coberta de hera. Por um largo vão na floresta se avistava o vale com seus prados
de um verde fresco, seus campos, seu no impetuoso marginado de álamos, suas
ninhadas por entre a verdura. Para a esquerda, na frente do seu parque secular o
castelo de Runsdorf aparecia, imenso, pesado e imponente encimado pela
bandeira senhorial, branca e vermelha. A direita o telhado elegante de um grande

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Miséria Dourada I– M. Delly

chalé se erguia no meio de um bouquet de pinheiros. Além do vale a escura


floresta recomeçava a cobrir os flancos da montanha.
 Que vista soberba!  disse Marísia se apoiando na balaustrada gasta
pelo musgo.  O vale é admirável assim inundado pelo sol e o próprio Runsdorf
parece menos rebarbativo. Sabem que a gente quase se perde nesse castelo?
Esta manhã custei muito a encontrar a sala em que os meus alunos me
esperavam... Eu gostaria muito mais de morar ali...
Falando ela designava o chalé do qual se distinguia um lado coberto de
flores.
 Acredito-o! É uma moradia encantadora!  disse Laura.  E dizem que o
seu interior é luxuosamente instalado. A princesa Olgoff vive ali...
 Quem é essa princesa?
 A tia avó dos jovens Landau a irmã do conde Arnulf. Depois do suicídio
deste, ela deixou Runsdorf e pouco depois casou-se com um russo imensamente
rico, muito mais velho do que ela. Logo a deixou viúva, legando-lhe toda a sua
fortuna. Entretanto durante muitos anos ela continuou a residir em Moscou; depois
voltou para aqui e instalou-se no chalé rosa, que seu sobrinho Otto lhe vendeu.
Desde então pouco sai a não ser para fazer uns pequenos passeios pela floresta.
Atualmente é uma senhora muito velha, que dizem ter conservado todas as suas
faculdades assim com uma originalidade ainda mais aumentada pela idade. Assim
anda sempre vestida de cores claras, de branco principalmente. Como é natural
possui e mesmo em alto grau o orgulho hereditário dos Lendau.
 Como sua sobrinha, a cônega.  acrescentou Heinrich.  Dizem-na tão
altiva!... Não conhece ainda a bela cônega Franziska de Lendau, senhorita
Lienkwicz?
 Não. ela mora em Runsdorf?
 Acidentalmente. De repente aparece e logo desaparece do mesmo modo.
Em geral reside no "Capítulo" de que faz parte congregação das mais
aristocráticas, já se subentende, porque lá não se entra sem dar provas de uma
nobreza de cinco ou seis séculos!

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Miséria Dourada I– M. Delly

 Ela deve ser de uma certa idade..


 Uns quarenta anos, julgo eu.. não é isso, papai?
Há já alguns momentos que Conrado se voltara um pouco e parecia
considerar atentamente o cimo dos pinheiros que rodeavam o chalé. Sua mão
acabava de pôr para trás a bem tratada cabeleira loura, apenas um pouquinho
grisalha, que tinha caído sobre a sua testa e Marísia então reparou, junto da fonte,
uma larga cicatriz.
 Parece-me  respondeu ele laconicamente.  ela é filha do segundo
casamento de Arnulf de Lendau. o que explica essa grande diferença de idade
entre ela e o irmão, o defunto conde Otto. Apenas a entrevi uma única vez na
carruagem que a levava de Runsdorf a estação. É ainda admiravelmente bela,
mas assegura-se que a altivez dos Lendau existe nela em grau superlativo.
 E essa maravilha não quis se casar?  disse o professor.
 Não, recusou todas as alianças que lhe apareceram, sem dúvida por
julgá-las inferior ao seu merecimento. Heinrich, não é Wolster que vejo vir vindo
naquele caminho?  perguntou o administrador.
A sua voz pareceu a Marísia, um pouco alterada.
 É ele, sim, papai.
 Vá então dizer-lhe para vir me falar amanhã de manhã.
O moço afastou-se e Conrado Duntz convidando os seus hóspedes a se
sentarem, pôs-se a interrogá-los sobre a sua nova instalação.
 É uma coisa espantosa que os senhores de Runsdorf deixem uma parte
do castelo e do parque nesse estado de completo abandono,  observou Marísia,
depois de ter descrito o seu apartamento.  A ala oposta à nossa está caindo em
ruínas e o parque é, em alguns lugares, absolutamente selvagem.
 As despesas de um tal domínio, por menor que ele seja em relação ao
que já foi, são enormes,  replicou Conrado Duntz.
 Mas os Lendau são ricos.
O administrador teve um sorriso sarcástico, murmurando:
 Serão mesmo?

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Miséria Dourada I– M. Delly

Marísia fitou-o com surpresa.


 O que? O senhor julga que eles estão arruinados? Mas parecem viver
largamente... dão festas, os apartamentos são luxuosos...
O sorriso de ironia se acentuou sobre os lábios de Conrado Duntz.
 Saiba, senhorita, que é mais fácil um Lendau morrer de fome em meio do
seu luxo do que confessar que não tem um real... não que eu pretenda insinuar
que eles estão reduzidos a isso. Mas, depois dos loucos gastos feitos, primeiro por
Arnulf de Lendau e logo continuados por seu filho Otto, não me parece que o
patrimônio tenha ficado na mesma... Enfim tudo isso pouco nos importa! 
acrescentou o administrador, com um ligeiro movimento de ombros.  Contento-
me em lamentar essas pobres criaturas, vítimas de uma falsa concepção da vida,
legada pelos seus ancestrais, cuidadosamente inculcada em cada rebento do
velho tronco e que aniquila neles o que de melhor existe no homem: o coração e a
vontade.
O professor e seus filhos se retiraram uma hora mais tarde, depois de
terem feito Laura e Heinrich prometerem ir vê-los sempre; mas, entretanto não
conseguiram convencer o administrador a imitá-los.
 Gosto mais de não ir a Runsdorf,  declarou ele num tom decidido que
cortava todas as insistências.  Não se ofenda, meu caro Adriano e venha me
visitar sempre, o mais que puder... Previno-o de que Heinrich irá, de carro, buscá-
lo com os seus filhos, todas as vezes que desejarmos vê-los... já imagine que isso
será todos os dias,  acrescentou ele, rindo.
Acompanhou os novos hóspedes de Runsdorf até a metade do caminho de
onde voltou com Laura e Gisela, enquanto Heinrich continuou a empurrar o
carrinho de Alexy. No parque, os passeiantes cruzaram com o conde de Lendau e
a jovem que Marísia e o professor tinham entrevisto uma manhã num dos
aposentos do castelo. Cumprimentos corteses e frios foram trocados de uma parte
e de outra, de passagem. Mas Alexy encontrou o mesmo olhar cheio de interesse
que o conde Walther tinha fixado nele, no dia de sua chegada.
 Essa moça é a mais velha das jovens condessas, não é, senhor Duntz? 

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Miséria Dourada I– M. Delly

perguntou Marísia.
 Com efeito, senhorita; é a condessa Bianca, muito simpática, apesar de
sua altivez. Ela me dá sempre a impressão de estar triste ou fatigada.
Heinrich só deixou Runsdorf depois que levou Alexy até a sua chaise-
longue. Os Lienkwicz, reconfortados pelo seu bom humor comunicativo e pelo
acolhimento hospitaleiro encontrado em Nunsthel, achavam agora um novo
interesse na sua estadia nesse lugar. Suas relações seriam encantadoras, porque
Heinrich parecia ser o melhor rapaz do mundo, Laura era certamente uma criatura
de natureza amável e atrahente e Conrado Duntz conservava todas as qualidades
de coração e de espírito que o haviam irrevogavelmente prendido outrora ao seu
amigo Adriano.
 Ele tem a distinção de um grande fidalgo!  disse Alexy com entusiasmo.
 Mas que cicatriz é aquela que se vê quando os seus cabelos estão um
pouco levantados?
 Que cicatriz?  perguntou o professor que devido a sua miopia não tinha
notado nada.
 Na fronte, à esquerda.
 Ah! sim, agora me lembro! Ele já a tinha quando foi me ver há muitos
anos com a sua jovem esposa. Foi ferido quando salvava, não sei quem de um
incêndio, segundo ele me disse então, mas como não se estendesse sobre os
detalhes não insisti, percebendo que ele parecia pouco desejoso de falar nisso.
Um golpe ligeiro, dado na porta, interrompeu o professor. Marísia foi abrir e
introduziu o capelão de Runsdorf, que vinha pagar aos novos hóspedes do castelo
a visita que eles lhe tinham feito.
O pai Malhen era um velho um pouco alquebrado, meio enfermo, mas
conservando um espírito muito claro e uma sorridente bonomia. Tinha mais de
noventa anos, dizia Otavia, que sempre o vira em Runsdorf. Filho de um rendeiro
dos condes de Lendau, recebera a instrução eclesiástica às expensas da primeira
mulher do conde Arnulf. Logo, ordenado padre, viera como capelão de Runsdorf e
nunca mais o havia deixado.

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Miséria Dourada I– M. Delly

Uma vez instalado em uma poltrona junto de Alexy, que parecia inspirar-lhe
um particular interesse, o bom velho perguntou qual era a impressão que lhes
tinha produzido a floresta e mostrou-se encantado pelo seu entusiasmo.
 Sim, é uma bela obra do Criador, uma das maravilhas mais completas,
presenteada a esta humanidade ingrata! Sou um grande admirador da minha terra
natal, da minha floresta que, infelizmente, agora não posso percorrer à pé. Mas o
senhor Duntz e seu filho sempre vêm me buscar de carro para fazer um longo
passeio pelas minhas queridas matas e depois trazem-me outra vez até a grade
de Runsdorf.
 Ah Conrado também não entra com o senhor? Esse nosso amigo sofreu
alguma afronta aqui? Pois também recusou-se a vir nos visitar...
Subitamente a fisionomia do padre pareceu se tornar sombria.
 Mas não... é que ele é muito orgulhoso para se apresentar aqui sem ser
convidado, para vir a uma casa cujos donos o julgam de uma essência totalmente
inferior à deles...
Marísia teve um sorriso de ironia.
 Inferior, ele? Esse homem de um exterior tão notável e que parece ser
dotado de uma tão bela inteligência?
 Sim, mas pertence a uma família burguesa, a uma dessas velhas e
honradas famílias, às quais, entretanto, se têm aliado famílias aristocráticas
menos exclusivas do que os Lendau...
 E o senhor, meu pai, aprova isso como o faz o doutor Berdech?
O padre meneou a cabeça, sorrindo com indulgência.
 Esse bom Berdech é incapaz de ver o menor defeito nos Lendau. Quanto
a mim, sou ligado a essa família como a hera à uma árvore; daria a minha vida por
todos eles, se por esse preço pudesse dar-lhes um pouco de felicidade. Mas na
aproximação íntima, quotidiana, com o Deus humilde e doce que apareceu sobre
a terra, as vaidades deste mundo se mostram claras, caem todos os véus,
deixando ver as tristes baixezas das grandezas humanas. Oh! como é grande a
nossa miséria.  Ele tinha cruzado as mãos trêmulas sobre os joelhos e curvava a

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Miséria Dourada I– M. Delly

cabeça como sob o peso de uma pesada carga...  E eles são umas criaturas
boas e encantadoras... Olhem, por exemplo o conde Walther... um ser de elite,
que passara a sua vida na inação, no pesar de ser assim, como se fosse uma
carga para si próprio, inútil aos outros, porque um conde de Lendau não pode,
sem descer, exercer uma profissão liberal... E os outros... farão qualquer
casamento desde que os foros de nobresa sejam suficientes ou então não se
casarão e envelhecerão solitários, retirados em seu orgulho. Mas todos sofrerão
porque têm coração... e que esse coração em família se quebre se esmague se
afogue sob o orgulho... mas que o mundo nunca o suspeite!... Ah! Senhor!" Não os
castigueis pelas culpas dos outros!  Concluiu o bom velho numa espécie de
soluço.

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Miséria Dourada I– M. Delly

 Fazem hoje dois meses que estamos aqui Marísia.


 Dois meses já!  disse Marísia parando a sua agulha para fitar o irmão.
Sim era bem exato. Tinham chegado numa noite de primavera e agora o sol do
verão tentava atravessar a folhagem cerrada das velhas árvores de Runsdorf; a brisa
matinal já quente anunciava o ardente calor de julho.
Não se podia contestar que o tempo passara bem depressa. Ali como em Viena,
Marísia, sempre ocupada. não conhecera ainda o aborrecimento. Além das suas lições e
dos seus serviços caseiros, tinha ainda os seus estudos que ela continuava por si própria,
os passeios na floresta com seu pai e seu irmão e as relações, tornadas muito íntimas,
com os moradores de Nunsthel.
Os Lienkwicz iam frequentemente a casa do administrador e por sua vez Laura e
Heinrich vinham sempre a Runsdorf acompanhados de Gisela. A casa do professor,
completamente independente, deixava-lhes toda a liberdade com relação aos Lendau.
Quanto a estes últimos continuavam a guardar para com os seus hóspedes a
mesma atitude de fria correção. Aliás, o professor e Marísia, além das crianças, viam
muito raramente os outros membros da família. Às vezes a condessa Iolanthe aparecia na
sala de estudos perguntava polidamente à Marísia ou ao professor pela saúde de Alexy e
indagava se não lhes faltava alguma coisa. Pedia também alguns detalhes sobre os
estudos dos filhos, dando a entender que não era necessário levá-los muito longe e que
ficaria satisfeita quando eles soubessem escrever corretamente e entendessem um pouco
de história e de literatura.
Essa senhora, vestida com uma simplicidade quase monacal, parecia
constantemente cansada; estava visivelmente envelhecida antes do tempo, mas havia em
seu olhar uma singular energia, e Marísia, fitando-a, tinha sempre a impressão de que
uma inquebrantável vontade a sustentava, galvanizava esse corpo delicado.
As crianças pareciam se afeiçoar aos professores, isto é, tanto quanto lhes
permitiam os seus preconceitos de casta. Guntran e Helena, em particular, tinham
momentos de intimidade que davam a Marísia a esperança de um dia penetrar nesses
jovens corações um pouco fechados, que ela adivinhava nobres e bons.
Em todo o caso, a inteligência dos dois mais velhos era incontestável e não menor
era o seu desejo de aprender.

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Miséria Dourada I– M. Delly

Procurando encontrar, sem abrir a bolsa, professores para os filhos, a condessa


teve a sorte de achá-los tinha dito um dia Conrado Duntz ao seu amigo e a Marísia, com
esse habitual sorriso de ironia que sempre havia em seus lábios quando falava dos
Lendau.
 Ela deve pois, estar encantada, não tendo mais os meios de dar ao caçula, um
preceptor como deu ao conde Walther e nem de internar suas meninas em um colégio
aristocrático como fez com a condessa Bianca...
 Verdadeiramente você julga que eles estão reduzidos a tais economias?  tinha
perguntado Adriano Lienkwicz.
 Não somente o julgo, mas estou certo disso.
Marísia começava a crer que o administrador tinha razão. Muitas coisas lhe
pareciam singulares nessa casa, a começar pela presença de Heintz, de Otavia e de sua
neta Rosina como únicos criados, apesar do trabalho estafante que devia representar os
serviços de uma tal casa. Às vezes, um rapaz da herdade vinha desemaranhar as
árvores, cuidar um pouco da horta. Os filhos dos lenhadores ou dos camponezes vinham
também de vez em quando tirar os matinhos do pátio e do jardim francês, do qual Heintz
assumia os cuidados. Porque o bom velho se transformava, servindo alternativamente de
palanfreiro, jardineiro e criado de quarto, para logo aparecer como o mais correto dos
mordomos.
Marísia só aos poucos é que tinha penetrado em todos esses mistérios, tal era o
cuidado com que, tanto os servidores como os patrões dissimulavam a verdadeira
situação. À princípio tinha acreditado na presença de numerosos criados mas vendo-os
obstinadamente invisíveis, convenceu-se de que eles não existiam.
E, agora, já não duvidava de que a vida dos Lendau era uma perpétua farsa.
Aparentemente eram ainda ricos e levavam a mesma vida de outrora. A condessa e
Bianca, vestidas com elegância, iam às festas da aristocracia em sua carruagem um
pouco velha, mas bem tratada e atrelada com belos cavalos; recebiam suas visitas nos
salões do andar térreo que continuava tal como tinha sido outrora, em todo o seu luxo
imponente Otavia os mostrara, com orgulho, à Marísia, e davam soirés, duas ou três
vezes por ano. Mas, atrás desse aparato, quem poderia dizer o que se escondia de
privações de amarguras, de angústias e talvez, também de fatigantes trabalhos! E tudo
isso porque não queriam que dissessem que os condes de Lendau eram pobres!
"E esse conde Walther que, segundo o doutor Berdech, possui todas as

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probabilidades de ter um brilhante futuro médico se presta a essa perpétua mentira!”


pensava Marísia com certo desprezo. “Ele acha mais honroso fingir uma situação que não
possui do que trabalhar para adquirir uma posição útil. Que terrível aberração faz com que
esta família não compreenda a verdadeira noção de honra!"
Marísia pensava em tudo isso nesse momento, enquanto costurava, sentada junto
de Alexy na beira de uma alameda do parque. O rapazinho lia, muito absorvido. Seu
pálido semblante tinha já adquirido ligeiras colorações e Marísia constatava, com
satisfação, que o irmão se tornara mais alegre, principalmente em suas relações com os
Duntz.
O ruído das patas de um cavalo sobre o chão ressecado da alameda veio
interromper o silêncio que rodeava o irmão e a irmã. Era o conde de Lendau que voltava
do seu passeio cotidiano.
Marísia voltou a cabeça com impaciência. Deveria lhe ser muito antipático esse
grande senhor imbuido de orgulhosos preconceitos, se bem que ela ainda não tivesse tido
ocasião de o conhecer bem, porque suas relações com os Lienkwicz se limitavam a um
simples cumprimento nos raros encontros feitos no parque ou na floresta.
No momento em que o cavaleiro ia passar junto de Marísia e de seu irmão, o
animal, indubitavelmente assustado por alguma causa desconhecida, deu um brusco
salto, empinando-se. Alexy soltou um grito e caiu, desmaiado, em seu carro.
Quase que imediatamente o conde dominou a sua montaria. Saltou para o chão e
se aproximou do menino sobre o qual Marísia se inclinava ansiosamente.
 Tem aí os sais?  perguntou ele brevemente, tomando o pulso de Alexy.
Marísia aproximou o frasco de sais das narinas de Alexy, enquanto Walther dizia
num tom de alívio:
 O coração está um pouco fraco, mas regular. Isso não será nada.
Alexy abria os olhos, seu olhar pousou primeiro sobre o jovem conde e depois
sobre a irmã.
 Oh! senti muito medo! Foi na verdade uma tolice!  disse ele procurando sorrir.
 Mas, não! Este cavalo é insuportável!  disse Walther cujos dedos não tinham
deixado o delicado punho.  De vez em quando ele sente um pavor inexplicável que
sempre me faz recear ser causa de algum acidente... E nesta circunstância, lamento
imensamente a emoção que ele lhes causou.
Falava dirigindo-se a Marísia e a Alexy. A jovem replicou:

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 Não há nisso nenhuma falta de sua parte, senhor conde. Além disso nós
estávamos muito na beirada da alameda... Mas julgo que será melhor entrarmos para
você se refazer completamente, não é, Alexy?  ela se inclinava para o irmão cuja
fisionomia ficara alterada.
 Sim, isso será melhor,  declarou o conde.  Permita-me, senhorinha...
E repelindo, delicadamente, a mão que ia fazer o carro avançar, ele o dirigiu para
o meio da alameda.
 Encarrego-me de levar para o castelo este moço tão impressionável, 
acrescentou ele alegremente.
 E o seu cavalo, senhor conde?  perguntou Alexy, olhando para o belo animal,
imóvel na alameda.
 Oh! Selim voltará sosinho para a sua cavalariça...
Marísia ajuntou rapidamente o seu trabalho e os livros de Alexy e reuniu-se ao
carrinho, delicadamente empurrado por Walther. Vendo-a perto dele o conde voltando a
cabeça fez-lhe um sinal que queria dizer: "Fique tranquila não há nada a temer".
Enquanto andavam ele ia conversando com Alexy, no evidente desejo de o distrair,
de afastar a lembrança do seu susto. Sua voz habitualmente breve, tomava inflexões
cheias de doçura. Marísia o considerava com surpresa. De perto e despojado de sua
reserva altiva, ele parecia muito mais jovem do que até então lhe parecera.
Realmente o conde sabia se mostrar amável e reparar as suas faltas, mesmo
involuntárias. Porque, depois de ter levado o carro até o apartamento dos seus hóspedes
e de novamente ter pedido desculpas ao professor, ele mesmo levou Alexy para a sua
"chaise longue" e só o deixou quando as pancadas do coração se tornaram regulares.
 É encantador esse conde Walther!  exclamou o menino quando o senhor de
Runsdorf saiu.
 Sim, encantador,  confirmou Marísia, mau grado seu.
Vendo o conde inclinado com solicitude para Alexy, notando o olhar de vivo
interesse com que ele envolvia o jovem enfermo, ela se lembrara repentinamente de uma
frase dita algum tempo antes pelo doutor Berdech: "O conde Walther procura todas as
ocasiões de estudar sobre o ser humano, os diferentes males que ele conhece
teoricamente. ele me acompanha sempre a casa dos seus rendeiros doentes e eu faço
com que ele pronuncie o diagnóstico, no que é extraordinário...”
Para esse médico amador, Alexy devia então apresentar um interessante assunto

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de estudo porque a sua doença, pelos sintomas que a acompanhavam, tinha confundido
os médicos de Viena consultados pelo professor e depois deles, o próprio doutor Berdech.
Ora, esse pensamento fora muito desagradável para Marísia. Durante um momento tinha
olhado, quase que com simpatia o conde de Lendau, afável e cheio de bondade para com
o doente. Mas, logo, só viu nele o grande fidalgo orgulhoso, egoísta, que provavelmente
supunha que esses burguesinhos se sentiam muito honrados em vê-lo se interessar por
Alexy, e talvez mesmo em consentir que ele fizesse algumas experiências no querido
menino.
Seu irmão, seu bem-amado Alexy, tornado em um simples objeto de estudos, em
uma distração para esse nobre ocioso! Ah! certamente que não consentiria nisso! Cada
um com a sua dignidade! Não era por serem burgueses que o professor e seus filhos não
saberiam salvaguardar a sua!
Heintz veio à noite mandado pelo amo, saber notícias de Alexy. Na tarde do dia
seguinte, como o conde e sua irmã Bianca passassem perto da clareira em que estavam
instalados o professor, Marísia e Alexy, os dois se aproximaram.
 Sinto-me feliz por ver com os meus próprios olhos que a imprudência do meu
cavalo não deixou vestígios,  disse Walther cumprimentando Marísia e estendendo a
mão ao professor e ao filho.  Você hoje está realmente com uma bela fisionomia, Alexy!
 Passou uma noite excelente,  replicou o professor.  Aliás tem dormido muito
bem desde que estamos aqui.
O belo olhar, um pouco melancólico de Bianca se fixou com uma simpática
compaixão sobre o joven enfermo.
 O ar das florestas fará maravilhas. Depois têm à sua porta os cuidados tão
competentes do doutor Berbech...
 Um excelente homem e um notável clínico,  acrescentou Walther.
 Ouvi dizer que o senhor conde é aluno dele,  disse Marísia.
 Sim, senhorita, um aluno amador...
Ao responder ele tivera um acento de altiva frieza.
 Meu mano tem uma verdadeira paixão pela medicina,  disse Bianca.
No profundo olhar do jovem conde, Marísia julgou ver uma fugitiva tristeza. Logo
em seguida, porém, ele sacudiu ligeiramente os ombros, replicando com uma certa
orgulhosa indiferença:
 É uma ocupação interessante e eu tinha Berdech aqui...

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Depois destas palavras, inclinou-se para Alexy, perguntando:


 O que você estava lendo? Goethe? Gosta de leitura?
 É a minha mais querida distração.
 E ele lê à noite, para nós em voz alta,  disse o professor.  Alexy tem o dom
inato da dicção e nós o ouvimos durante horas, sem nos cansarmos.
 Mas, você nos deveria fazer juizes desse seu talento! Olhe, nós nos vamos
sentar aqui um instante e você nos lerá o que quiser.
Juntando o gesto à palavra, Walther tomou uma cadeira e a aproximou da mesa
rústica sobre a qual se encontravam o trabalho de Marísia e os livros do professor.
 Mas ficarei intimidado...  disse Alexy, meio emocionado, meio sorridente.  E
vão certamente achar que o meu querido pai exagerou muito...
“Em observação?" perguntava Marísia a si própria.
O conde voltou-se repentinamente e o seu olhar encontrou o da jovem. Esta
percebeu que ele tinha lido a interrogação irritada, feita por ela em segredo, porque ele
mostrou-se surpreso... depois, quase que imediatamente, tornou a se voltar, retomando o
seu discreto exame de Alexy.
 Não exagerou nada. senhor professor!  exclamou Bianca. quando o menino
terminou a leitura.  É um encanto ouvi-lo... não é verdade Walther?
 Sou de sua opinião... Fez-nos passar um bem agradável momento se bem que
muito curto meu caro menino...  Falando, o conde se inclinava para Alexy, e pousou a
mão sobre o delicado ombro.  ... e ficaremos encantados se nos fizer gozar desse prazer
algumas vezes.
Alexy, cujo olhar se fixava com deleite nessa bela fisionomia, nesse momento
iluminada por uma expressão cheia de doçura, respondeu vivamente:
 Quando o quiser. senhor conde! Se o senhor aprecia o pequeno talento com que
Deus me dotou, sentir-me-ei felicíssimo por fazê-lo gozar dele.
O professor apoiou amavelmente essa resposta do filho. Marísia ficou silenciosa.
Essa intrusão dos senhores de Runsdorf em sua vida calma, muito lhe desagradava,
porque temia que as relações com eles fossem apenas uma fonte de aborrecimentos.
Eram tão diferentes nas idéias, no gênero de vida! E depois sempre esse mesmo
pensamento não era essa uma maneira de lisonjear Alexy, de fazê-lo se afeiçoar, de
estudá-lo com vagar?
Quando o conde e sua irmã se levantavam, Heinrich Duntz chegou. Cumprimentos

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e algumas palavras de cortesia foram trocados. O conde lembrou que tivera ocasião de
ver Heinrich nas caçadas do arquiduque. Em seguida, depois de ter convidado o
professor e Alexy a se utilizarem da biblioteca de Runsdorf, Walther se afastou com a
irmã.
 Ei-los então em relações amistosas!  disse Henrich tomando lugar na cadeira
que Marísia lhe designava.
O professor contou-lhe o acidente da véspera e como o conde se tinha mostrado
amabilíssimo.
 Não é verdade, Marísia?
 Muito amável, com efeito, papai. Mas provavelmente estas relações ficarão
nisto...
 E porque?  disse Alexy.  Eu espero tornar a vê-lo, porque gosto muito dele.
Decididamente a influência do conde já agira sobre o jovem doente. Marísia sentiu
uma contrariedade tão viva que não pode se conter e respondeu com certa acrimonia:
 Porque o lisonjeou tanto?
Alexy fitou-a surpreendido.
 Oh! que idéia! Você bem sabe que pouco me importo com os elogios. Mas o
conde se mostrou bom para comigo e além disso tem uma fisionomia tão agradável e um
tão belo olhar!
 Uma fisionomia tão agradável?... Hum! Isso depende!  disse Heinrich sorrindo.
 Mas Sua Excelência decerto, lhe mostrou uma fisionomia despojada de altivês, meu
caro Alexy... A senhora não parece tão entusiasmada como seu irmão, não é, d. Marísia?
 A minha opinião é reservada, pois tenho o mau costume de julgar as pessoas
pela minha primeira impressão, o que é um erro. Assim, só lhe darei a minha opinião mais
tarde, quando ela estiver amadurecida, provada pela experiência.

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VI

Aguaceiros diluvianos tinham caído durante toda a noite e nessa manhã o céu
estava ainda sombrio, pesado de chuva. A mudança de temperatura provocara em Alexy
uma dolorosa crise reumática. O professor tendo tomado muita friagem na véspera,
conversando longo tempo com Heinrich Duntz sob as árvores do parque, espirrava sem
interrupção, mostrando um lastimoso semblante constipado. Marísia devia, pois, procurar
distraí-los e compensar com a sua jovialidade a melancolia desse dia aborrecido.
Como Rosina estivesse ocupada junto da condessa, foi Otavia quem trouxe a
refeição do meio dia. A pobre velha se arrastava porque as suas pernas reumáticas
faziam-na também sofrer muito nesse dia.
 Você precisa um pouco de repouso,  disse Marísia, fitando com piedade esse
pobre rosto fatigado.  Cairá doente se continuar assim...
 Oh! minha saúde é vigorosa, apesar da minha idade... é apenas este
reumatismo que me incomoda... Tanto pior, se preciso andar do mesmo modo, 
acrescentou ela com um sorriso resignado.
 Mas, parece-me que na sua idade, você já ganhou bem para o seu descanso, 
observou o professor.
 Enquanto os meus amos precisarem de mim, não pensarei em descansar. Irei
até o fim, eis tudo. Pensem que nasci neste castelo e que desde menina sirvo os meus
senhores! Era então o bom conde Eberhard que possuía Runsdorf.
 Você o conheceu?  interrompeu Marísia.  Realmente, nunca se soube o que
foi feito dele?
 Jamais, jamais, senhorita! De noite eu o tinha visto muito alegre, sempre amável
como era seu costume, conversando com a irmã, que chegara aqui há alguns dias antes,
e que ele conduzia ao seu apartamento. Devia ser onze horas mais ou menos. À uma
hora, a condessa Luba chamou minha mãe, que a servia como camareira durante suas
estadias em Runsdorf. Pediu um calmante, dizendo que não podia dormir pois que seu
irmão lhe contara algumas estranhas histórias indianas que não lhe saíam do espírito.
Minha mãe achou-a muito singular, muito agitada e repetiu isso para os homens da justiça
que vieram fazer investigações... E na manhã seguinte ele havia desaparecido! Um tão
bom senhor! Não se assemelhava em nada aos outros... Isso não quer dizer que estou
reprovando o procedimento do conde Arnulf e de seu filho!  acrescentou ela

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Miséria Dourada I– M. Delly

precipitadamente, toda confusa, como si acabasse de cometer um sacrilégio.  Eles


também eram justos, mas à seu modo... O conde Eberhard, porém, tinha qualquer coisa
de particular que o tornava mais atraente... qualquer coisa que agora torno a encontrar
em meu jovem senhor, o conde Walther. Este sim, parece-se muito com ele, em tudo... em
tudo...
Falando tirou do seu bolso um envelope e o estendeu a Alexy.
 E eu que tinha esquecido isto! Quando voltava da quinta, onde tinha ido procurar
ovos, sob uma chuva terrível, encontrei o senhor Heinrich Duntz em seu carro, que me
pediu para trazer-lhe esta carta, pois assim escusava de vir até aqui com esse horroroso
tempo... Um belo rapaz, esse, senhor Heinrich... mas não é tão belo quanto o pai.
Lembro-me muito bem do senhor Conrado Duntz nos grandes bailes que se davam aqui,
nas caçadas em que o Conde Otto convidava toda a região...
Marísia teve um movimento de surpresa.
 O senhor Duntz era convidado de Runsdorf?
 Decerto e bem íntimo! Pois calcule que ele salvou de um incêndio do pavilhão
de caça, a condessa Franziska hoje a senhora cônega nessa época bem mocinha. ele a
arrancou do meio das chamas com risco de sua própria vida e ficou doente por muito
tempo por causa das suas queimaduras. Naturalmente o conde Otto, sua mulher e a
condessa Franziska lhes testemunhavam, quanto o podiam, o seu reconhecimento. O
senhor Duntz vinha frequentemente tomar chá aqui; caçava com o senhor conde e fazia
música com a nossa jovem condessa. Depois, subitamente, nunca mais apareceu... Mas
eu a estou prendendo com as minhas tagarelices e o almoço esfria...
Depois que Otavia saiu. Alexy estendeu a carta ao pai, dizendo num tom
desapontado:
 Henrich me previne que não pode encontrar aquele volume de Dickens que eu
lhe pedi. É uma pena... Marísia, se você fosse uma irmãzinha bem amável sabe o que
faria?
 Não, não sei. meu amigo...
 Pois bem, iria ver na biblioteca do castelo se descobria esse livro para mim...
A joven deixou transparecer alguma contrariedade, ao objetar:
 Receio incomodar alguém...
 Oh! nesta hora não há perigo. Otavia disse-nos que ordinariamente os seus
patrões almoçam muito tarde. Além disso, já que o próprio conde nos convidou para irmos

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Miséria Dourada I– M. Delly

à biblioteca, não pode haver nisso nenhuma indiscrição...


 Não, efetivamente... irei já.
A biblioteca não ficava muito longe do apartamento dos Liencwicz. Um dia, ao
passarem, Otavia a havia mostrado a Marísia. Esta tendo batido uma pancadinha da qual
não recebeu resposta, empurrou a porta entreaberta e entrou na sala, imensa e escura,
cuja parede oposta às janelas estreitas e profundas, estava ocupada por antigas
bibliotecas. Três enormes lustres holandeses pendiam da abóbada atravessada de
nervuras esculpidas. Sobre o chão, ladrilhado de mármore, viam-se, espalhadas, diversas
peles de urso branco e preto. À entrada, duas armaduras soberbamente tauxiadas
pareciam guardar o santuário.
Dir-se-ia que estava deserto. Mas, avançando alguns passos, Marísia viu o conde
Walther sentado diante de uma secretária cheia de livros e de papéis.
Imóvel, a caneta na mão, ele a fitava. Na verdade era uma encantadora aparição,
essa esbelta e formosa jovem, com um vestido claro de pregas harmoniosas, na meia
obscuridade dos altos vidros coloridos, entre essas armaduras faiscantes, que pareciam
projetar um reflexo de ouro sobre a sua tez clara e nos seus grandes olhos escuros.
Vendo-se percebido, o conde pousou sua caneta e levantou-se.
 Peço-lhe perdão, senhor conde; eu julgava não incomodar ninguém nesta hora,
 disse Marísia com um pouco de embaraço.
 Mas não me incomoda, senhorinha. Acabo de terminar este trabalho... E quando
estou mergulhado em algum estudo interessante, nada ouço do que se passa à minha
volta. Assim, pois, peço-lhe e também ao seu pai que nunca se privem de entrar aqui a
qualquer hora...
Falava com uma fria cortesia, sem deixar a sua altivez habitual e sem mostrar a
afabilidade com que se dirigia a Alexy.
 Agradeço-lhe, senhor conde, mas fique certo de que não abusaremos dessa
autorização... Hoje o nosso pobre Alexy está sofrendo muito de reumatismo e vim
procurar um livro para distraí-lo. Ele desejava ler "A pequena Dorit" de Dickens.
Encontrarei essa obra aqui?
 Em tradução francesa, sim.
 Ele gostaria de lê-la no texto.
 Então ele conhece assim tão bem o inglês?
 Muito bem. papai fala-o e escreve corretamente e nos ensinou desde

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Miséria Dourada I– M. Delly

pequeninos.
 Há ali um certo número de livros ingleses. Talvez eu descubra o que a senhora
deseja... Meu tio-avô, o conde Eberhard, sabia essa lingua e tinha reunido uma coleção
das suas obras preferidas. Mas, em geral, o estudo de inglês não entra nos programas de
instrução de nossa família. Por minha parte, lamento-o, e se eu pudesse, sem parecer
indiscreto, pediria algumas lições ao professor Lienkwicz.
 Isso será um prazer para ele, porque tem paixão por ensinar,  disse Marísia
com uma fria polidez.
O conde falando, tinha se dirigido para uma das bibliotecas. No momento de abri-
la, voltou-se para Marísia, mostrando uma fisionomia subitamente endurecida.
 Eu teria aceito de boa vontade, mas... permita-me uma observação, senhorita:
ontem tive a impressão de que a senhora via, com desagrado, o meu interesse pelo seu
irmão; sua atitude era, um pouco, a de uma pessoa que suporta, por simples delicadesa,
uma visita irritante. Ora, a senhora deve compreender que eu não poderia concordar em
ver as minhas relações com seu pai apenas toleradas, e muito menos em sentir contra
mim essa desconfiança tão bem estampada em sua fisionomia e da qual não conheço o
motivo... Eu não poderia conhecer essa razão sem me mostrar muito indiscreto?
O seu tom era bem frio, ligeiramente mordaz e fitava a sua interlocutora com uma
ironia um pouco altaneira.
Um vivo rubor subiu ao rosto de Marísia. Assim ele adivinhava a sua desconfiança,
o seu receio, esse penetrante observador... Pois bem! ia francamente lhe dizer o motivo.
 Pois não se enganou, senhor conde,  respondeu ela dominando a sua emoção
para falar com tanta Mesma como ele tinha falado.  A sua presença junto de meu irmão
me era penosa... desagradável mesmo.
 Ora bem, isso é que é sinceridade!  replicou Walther num tom de aprovação
mesclado de ironia.  Continue, peço-lhe senhorita, a me dar a necessária explicação...
 Eis o pensamento que me veio ao espírito: o senhor se ocupa de medicina como
amador e eu receei que não visse em meu irmão mais do que um objeto para os seus
estudos. Ora, me é penoso pensar que só essa curiosidade científica, por mais honrosa
que ela seja, o atrai para ele...
Durante um instante ela viu surpresa no olhar do seu interlocutor. Mas, quase que
imediatamente, a fisionomia do jovem conde se iluminou, um sorriso assomou aos seus
lábios.

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Miséria Dourada I– M. Delly

 O interesse científico existe, com efeito, senhorita, mas a senhora enganou-se


sobre a sua exata naturesa. Esse interesse, eu o sinto em último grau diante de todo o ser
humano que sofre em seu corpo; sinto um apaixonado desejo de aliviar, de curar. Sendo
um cristão convicto, nunca separo a alma do corpo sofredor, sabendo, que,
frequentemente, as dores de um se refletem sobre a outra. Assim, vendo seu irmão, tão
encantador e tão resignado, pensei que me teria sido doce devolver à vida normal a esse
jovem enfermo, cuja alma eu percebia ser belíssima e singularmente atraente. A senhora
vê, pois, que estou bem longe da curiosidade materialista que me emprestou...
Sua voz, primeiro calma e breve, se tornara pouco a pouco mais vibrante. Marísia,
o espírito subitamente aliviado, disse vivamente:
 Vejo que me enganei, senhor conde... perdoe-me essa desconfiança. Entretanto,
não lamento o lhe ter falado sinceramente, porque assim, pude conhecer de que nobre
maneira o senhor considera essa profissão médica, geralmente compreendida de outro
modo.
A fisionomia do conde se entristeceu enquanto replicava com uma ironia à qual se
misturava alguma amargura:
 Sou um idealista... aliás isso convém a um amador. Mas, senhorita, essa
palavra, amador, não será a principal causa da sua inquietude? Talvez a senhora tenha
pensado: "esse conde de Lendau, que sem dúvida procura objetos para se exercitar sob a
direção do doutor Berdech, julga provavelmente que nos sentiremos muito felizes por vê-
lo se interessar pelo meu irmão e exercer nele a sua ciência!"
De novo o rosto de Marísia se tornou cor de púrpura. Decididamente ele possuía o
dom de ler em seu pensamento?
 Devo responder-lhe afirmativamente,  disse ela sem abaixar as pálpebras sob
o olhar desses olhos castanhos e profundos.
 A senhora é muito altiva, e não serei eu que a censurarei por isso. Entretanto
pode se tranquilizar, porque, mesmo me chamando conde de Lendau, nunca me permitiria
pensar que uma natureza humana, seja ela a do mais miserável dos meus rendeiros,
poderia servir para as minhas experiências, pelo menos sem o controle do prático
qualificado.
 Errei, confesso-o com toda a franqueza... Mas pense que eu não o conhecia.
Agora, compreendo o móvel elevado do seu interesse por Alexy, pelo meu pobre Alexy tão
bom e paciente... e agradeço-lhe!

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Miséria Dourada I– M. Delly

Ele perguntou sorrindo:


 Esse interesse então não lhe trará mais sombras?
 Nenhuma. Sentir-me-ei mesmo muito feliz por ver o meu irmão apreciado por si.
Aliás o senhor já soube ganhar o seu coração.
 Pobre menino! Eu desejaria ter a necessária ciência para o curar, pelo menos
para o tentar. Sim, parece-me que eu ainda encontrarei alguma coisa, tanto hei de
procurar...
A sua voz tinha vibrações apaixonadas, uma chama iluminava o seu olhar Antes
de ter podido refletir, Marísia exclamou:
 Mas o que é que o impede de adquirir essa ciência? Oh! que bem o senhor seria
capaz de fazer!
Um véu pareceu cair repentinamente sobre a fisionomia de Walther, uma ruga
cortou a alta fronte, enquanto numa voz que voltava a ser breve e altiva, respondia:
 Outros o farão em meu lugar... outros que não se chamem... conde de Lendau.
Há nomes que obrigam os seus possuidores a contar com eles e o meu é desses!
Depois destas palavras pôs-se a procurar o livro pedido e encontrando-o entregou-
o a Marísia. Disse mais algumas palavras de cortesia e voltou para o seu lugar na
secretária em quanto a moça se retirava da biblioteca.
Ela se sentia verdadeiramente feliz agora que sabia serem vãos os seus receios.
O conde acabava de se revelar a ela como uma alma correta, dotada de elevados
sentimentos, sabendo apreciar a franqueza alheia. Porque certos preconceitos haveriam
de entravar os impulsos dessa alma, obscurecer a chama dessa inteligência?
Muito sinceramente Marísia lamentava esse grande senhor, assim preso na inação
que ele acreditava ser ordenada por tradições antiquadas.
Desde esse dia as relações se estabeleceram, quase que cotidianas, entre os
Lendau e seus hóspedes.
O conde tinha, em primeiro lugar, pedido ao professor para lhe ensinar inglês.
Depois Bianca, tendo um dia lamentado não conhecer essa língua, Marísia ofereceu-se
para ensiná-la, o que ela aceitou.
Essas relações de estudos, de uma parte e de outra, se tornaram mais cordiais.
Os dois professores encontravam em seus alunos uma amabilidade espontânea e uma
grande inteligência vivaz. O conde, principalmente, espantava Adriano Lienkwicz pela sua
compreensão rápida e pela profundeza de suas idéias.

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Miséria Dourada I– M. Delly

 Ele é incrivelmente bem dotado, no ponto de vista intelectual!  dizia o professor


aos seus filhos.
Todos os jovens Lendau, aliás com exceção da indolente Valeria mostravam
apreciar muito os estudos. Essa tendência era uma derogação dos hábitos ancestrais.
Também a condessa lolanthe via esses hábitos com muito pouca simpatia e portanto não
se opunha às lições suplementares dadas aos mais velhos e nem às relações assíduas
estabelecidas entre eles e os seus hóspedes. A distinção e o valor moral destes, suas
maneiras reservadas lhe garantiam a sua boa educação. Quanto aos seus filhos ela os
sabia bem persuadidos de sua superioridade e que jamais eles a esqueceriam em suas
relações com esses burgueses, favorecidos pela sua amizade.
Agora, muitas vezes, o conde, Bianca e as crianças vinham se sentar junto de
Alexy, no parque. Conversavam, tomando café. Alexy, a pedido de Walther lia um capítulo
da "história da Polônia", que o professor há pouco terminara. As observações
singularmente judiciosas do conde, suas reflexões, que demonstravam uma rara elevação
de espírito, encantavam Adriano Lienkwicz e davam a Marísia novas ocasiões de deplorar
que, essa nobre, vibrante natureza, apaixonada por um ideal e tão admiravelmente
dotada, estivesse destinada a se consumir em uma existência moralmente estéril...
Bianca e ele se mostravam visivelmente satisfeitos com as suas relações com os
Lienkwicz. Sua altivez um pouco melancólica se atenuava ao contato com os seus
hóspedes, deixando ver um fundo de jovialidade, sem dúvida, sufocada pelos cuidados de
sua situação. Marísia em suas relações mais frequentes com a jovem condessa,
descobria nela uma alma encantadora, muito afetuosa, inteiramente devotada à família e
principalmente ao irmão mais velho. Do seu lado o professor elogiava o tato, a bondade
amável do conde Walther e a sua delicada solicitude a respeito de Alexy, que
testemunhava por ele uma admiração entusiasta.
Muitas vezes, o senhor de Runsdorf e sua irmã se achavam reunidos aos jovens
Duntz ao redor do carro de Alexy. Essas entrevistas eram perfeitamente cordiais. Walther
e Bianca mostravam apreciar a amável natureza de Heinrich e de Laura, e o seu espírito
cultivado com cuidado. Por sua vez, os filhos do administrador se espantavam por
acharem tão exatas as asserções entusiastas do doutor Berdech sobre os notáveis dons
e as cativantes qualidades do seu nobre aluno.
O excelente doutor vinha frequentemente a Runsdorf e a melhor amizade o tinha
unido ao professor. Achava-se pois, ali, nessa tarde de setembro, sentado na pequena

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Miséria Dourada I– M. Delly

clareira do parque em que Alexy tanto gostava de ir. Inclinado para o professor, ele lhe
falava à meia voz e decerto eram ainda elogios ao conde de Lendau que saíam de seus
lábios.
A alguma distância, Walther ouvia sorrindo, a conversa entre Alexy e Gisela. O
jovem Lienkwicz havia empreendido a grande tarefa de fazer penetrar o amor pelos
estudos nesse cérebro recalcitrante e, com grande surpresa dos seus, a travessa menina
concordava, alegremente, em ficar imóvel junto dele, ouvindo as suas lições dadas sob
uma forma original que a viva inteligência de Gisela assimilava prontamente.
 Você é um notável professor, meu caro Alexy,  disse o conde, vendo-o se
interromper, pois a lição estava terminada.  Você vai fazer de Gisela um poço de
ciências... Mas Helena e Guntran esperam-na lá em baixo... veja que grandes sinais lhe
faz minha irmã...
A menina dirigiu para Alexy um olhar cheio de pesar, depois levantou-se sem
grande pressa e foi se reunir aos jovens Lendau, seus companheiros de brinquedos
quando vinha a Runsdorf.
 Decididamente, Alexy transforma sua irmã em uma pessoa perfeitamente
ajuizada, senhor Duntz,  disse Marísia a Heinrich, enquanto preparava o café.  Os
brinquedos já não têm a mesma atracção para ela.
 Acredito! ela agora não tira o nariz dos livros! Papai, segundo dizem, também foi
assim. Aos treze anos somente é que se pôs a estudar com vontade e recuperou
amplamente o tempo perdido.
 Seu pai tem uma notável inteligência, não se falando em todas as outras
qualidades que lhe são reconhecidas,  disse o conde Walther.  Infelizmente, ainda não
o pude julgar por mim mesmo, porque nos temos encontrado muito pouco. Porque ele
nunca os acompanha? Eu teria imenso prazer em travar relações com ele. Quando eu era
uma criança de quatro anos, mais ou menos, sempre o vi aqui em casa...
 Então meu pai vinha a Runsdorf? perguntou Heinrich com surpresa.
 Mas muito frequentemente mesmo! Ignorava-o? Pois eu admirava muito esse
belo e jovem homem, que se mostrava muito gentil para comigo e eu lhe votava uma
ardente afeição. Foi a minha velha Otavia que me lembrou tudo isso, pois, para lhe ser
franco, devo confessar que as minhas recordações não são muito precisas. Mas a
soberba fisionomia do senhor Duntz me ficou no espírito e quando o encontrei mais tarde,
ele já pai de família e eu um adolescente, não achei nenhuma diferença do que ele tinha

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Miséria Dourada I– M. Delly

sido... Olhe, veio-me uma lembrança agora. Eu me achava no pátio com Otavia em certo
dia, que ao voltar da caça, o senhor Duntz acompanhava meu pai e minha tia Franziska.
ele me tomou em seus braços e me fez dar algumas voltas ao redor do pátio. Eu ria, ria e
gritava: "Mais, mais!" De súbito o cavalo deu um salto e empinou. Foi uma coisa
momentânea. O senhor Duntz firmou a rédea e logo era senhor de sua montaria. Saltou
para terra um instante depois e me depôs nos braços de minha tia. Esta estava pálida de
susto e sua voz tremia ao dizer: "O senhor não devia continuar a montar nesse animal
raivoso! É muita imprudência de sua parte!" Minha tia Franziska me amava muito e
sempre fui o seu sobrinho favorito,  acrescentou o conde de Lendau.
 Conrado nunca nos falou que mantivera relações íntimas com os seus parentes,
senhor conde,  observou o professor.
 Nem para nós, seus filhos, ele nunca falou nisso,  disse Heinrich que se
mostrava espantadíssimo.  Falou-nos que conhecera o conde Otto, mas eu julgava que
ele o tivesse visto por acaso, ou que era um conhecimento apenas cerimonioso.
 Ignoravam que ele salvou a vida de minha tia?
 Não, isso eu o sabia... não que me tivesse falado nisso. Soube-o acídentalmente
por um estranho.
 Nossa dívida de reconhecimento subsiste sempre e eu gostaria de lho tornar a
dizer... Às vezes pergunto a mim próprio que circunstâncias puderam romper essas
relações entre minha família e ele,  acrescentou o conde pensativamente.
Ninguém ali o poderia esclarecer. Marísia, entretanto, pudera reparar na singular
expressão, um misto de sofrimento e de irritação escarnecedora, que sempre aparecia no
semblante de Conrado Duntz todas as vezes que se falava nos senhores de Runsdorf. E
agora, ela pensava que o orgulho dos Lendau decerto havia ferido o nobre e altivo Duntz,
que se retirara dignamente, sem fazer alarde.
Agora também se explicava a sua recusa em vir a Runsdorf.
A senhorita de Lienkwicz fez o café e se aproximou, trazendo uma xícara para o
professor e para o doutor Berdech. Este tinha o rosto voltado para cima e parecia
abismado em uma súbita meditação.
 Está sonhando, senhor doutor?  perguntou Marísia maliciosamente.
 Não, minha querida menina. Pensava apenas que a senhora deve ter em seus
ascendentes alguma aristocrática avó que lhe legou essas mãos fidalgas...
Marísia teve um ligeiro ataque de riso. Ela já estava agora acostumada às

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pequenas manias do velho e os dois tinham, sempre a esse respeito, alegres disputas.
Até então, porém, elas nunca tinham tido lugar em presença do conde de Lendau.
Marísia, embora censurasse os Lendau pelos seus preconceitos, não se reconhecia no
direito de os ofender sem necessidade, tanto mais que o conde e sua irmã se mostravam
muito naturais, muito simples e cordiais com referência ao professor e seus filhos. Não
ligou, pois, muita importância à observação do doutor e adiantou-se para o jovem senhor
de Runsdorf, oferecendo-lhe o café. Entretanto, não se sabe que bicho picava o velho e o
incitava nesse dia à discussão.
 A senhora decerto está com uma enorme vontade de me responder, senhorita
Marísia, que a distinção e a elegância não são o apanágio exclusivo da nobreza e que
elas se encontram também na burguesia, e talvez mesmo em grau mais alto, não é?
 Sim, talvez!  respondeu a jovem com um sorriso de ligeira zombaria.  Não é
comum ver-se simples filhas do povo possuir aquilo que se convencionou chamar porte
real? Enquanto que na aristocracia o senhor também encontrará um bom número de...
Interrompeu-se, embaraçada pela presença do conde. Se bem que ele não
pudesse tomar essa apreciação para ele nem para os seus, poderia, reconhecendo essa
verdade, se sentir ofendido.
Em todo o caso ele não dava mostras de tal. Sua fisionomia séria apenas
demonstrava uma certa ironia. Estendendo a mão para tomar a xícara que Marísia lhe
oferecia, disse com calma:
 Um bom número de tipos mais que ordinários, fisicamente falando... Concluo
sua frase, senhorita, acrescentando que não posso contradizê-la. Sim, a vulgaridade
física existe em nossa casta... e a burguesia, é preciso reconhecer, produz às vezes flores
muito aristocráticas.
As pálpebras do doutor Berdech tiveram o pequeno movimento que lhe era
habitual nos momentos de viva surpresa. O conde de Lendau passava por ser muito
avaro de cumprimentos. Entretanto, isso não era um dirigido a Marísia Lienkwicz?
Ela, porém, desprovida de faceirice, não viu em todo o caso nada disso.
Respondeu, pois, com simplicidade:
 O fato é incontestável e é preciso ser-se o doutor Berdech para negá-lo.
 Perdão, perdão, não estou negando nada! Digo somente que em tese geral
certos dons físicos se transmitem nas raças patrícias, quando elas se conservam sem
enlaces desiguais.

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 Em tese geral... sim, talvez.


 Ah! é uma felicidade que concorde!  exclamou maliciosamente o velhinho. 
Com as suas idéias modernas...
 O senhor, doutor, está ainda no século quatorze!  disse Heinrich, rindo.
 Como eu,  disse o conde Wabher com um sorriso meio amargurado.  Sim, sei
que sou um retardatário. Quem de nós tem razão? Nós, encarniçados defensores dos
últimos restos dos nossos previlégios ou os que abraçam as novas idéias? Essas
concessões salvarão a nobreza da ruína que ameaça as velhas instituições? Não é mais
honroso se refugiar na glória passada, deixando extinguir nome, opiniões, costumes que
não podem mais ser compreendidos hoje, do que se lançar na peleja com a esperança
quimérica de conservar a nossa classe no mundo?
Uma espécie de ceticismo doloroso se adivinhava sob o seu tom calmo.
Marísia não pode conter um vivo movimento de protesto.
 A ação sempre será mais honrosa do que a inércia. Olhe, um soldado que se
deita sobre o campo de batalha para esperar a morte, porque vê comprometida a vitória e
um outro que combate até o último suspiro, quase sem esperanças. Qual dos dois o
senhor estimaria mais senhor conde?
A fisionomia de Walther se contraiu ligeiramente, sob o olhar desses belos olhos
profundos. Em seguida tornou a se mostrar altivo como nos primeiros dias, respondendo
num tom glacial:
 Nós não nos poderemos compreender, senhorita, pelo menos quanto a esse
assunto...
Interrompeu-se, franzindo as sobrancelhas. Marísia seguindo a direção do seu
olhar, voltou a cabeça e viu avançando numa alameda vizinha Bianca, acompanhada por
uma criaturinha vestida de batista malva, com um grande chapéu branco que tornava
ainda mais delicada a sua fina e linda figura. Marísia lembrou-se logo dessa fisionomia,
principalmente desses olhos tão grandes e tão negros. eles se fixavam precisamente
sobre ela com uma expressão de surpresa irritada, quase que com malevolência.
O conde murmurou, retendo um gesto de impaciência:
 Na verdade, Bianca poderia se dispensar...
Levantou-se com vagar e foi ao encontro das duas jovens.
 Finalmente o descobrimos!  exclamou a senhorita de Holberg, estendendo-lhe
a mão.  Agora, então deu para brincar em pastorais?

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Miséria Dourada I– M. Delly

Ele respondeu com alguma ironia:


 É uma pastoral vir conversar alguns instantes com amáveis hóspedes, enquanto
se respira este ar tépido e delicioso? Verdadeiramente eu o ignorava. Vieram se reunir à
nossa companhia?
 Não, mamãe mandou procurá-lo porque vão servir o chá,  disse Bianca. 
Wilhelmina quis me acompanhar...
 Sim, porque amo tanto o seu velho parque,  disse a senhorita de Holberg com
uma graciosa vivacidade.  Deve-se estar muito bem nessa clareira e já lamento o termos
vindo incomodá-lo.
Seu semblante, entretanto, não exprimia esse pesar.
 Tenho que fazer as apresentações,  disse o conde voltando-se para os seus
hóspedes.  Creio, senhorita, que já encontrou em sociedade o senhor Heinrich Duntz e a
senhorita Laura, não é?
 Efetivamente, neste inverno...  disse Wilhelmina num tom meio seco,
estendendo a mão à Laura e respondendo por uma inclinação de cabeça ao cumprimento
de Heinrich.
 Mas não conhece a senhorita Lienkwicz, nem o professor e seu filho, meu amigo
Alexy... A senhorita de Holberg, uma companheira de convento de minha irmã...
O tom era breve, sem cordialidade.
Marísia observou que o conde tomava para com essa linda criatura, o mesmo ar
de cortesia altiva que ela havia visto na noite de sua chegada, quando ele acompanhava-
a juntamente com o pai. Como o professor, cumprimentando WiIhelmina, lembrasse o
curto encontro no vestiário, ela respondeu com uma indiferença desdenhosa:
 Verdadeiramente não me lembro...
 Nunca supus que tivesse uma memória tão curta,  disse o conde num tom de
seca zombaria.
Dirigindo-se ao pequeno grupo que se mantinha de pé ao redor dele, acrescentou,
com uma súbita cordialidade:
 Então, agora vou abandoná-los Não se esqueça de dizer ao seu pai, senhor
Duntz, o quanto eu desejo vê-lo acompanhá-los em suas visitas aqui... Até amanhã, meu
caro Alexy...
Em seguida inclinou-se ante Laura e Marísia. Um observador teria notado nesse
cumprimento uma meia deferência, o que não existia no que ele dirigira há pouco à

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senhorita de Holberg. E a linda Wilhelmina foi de certo esse observador, porque o seu
rosto se crispou todo; seus olhos negros, tornando-se duros, se fixaram durante alguns
instantes sobre Marísia. Depois afastou-se em primeiro lugar, logo após um pequeno
cumprimento muito impertinente.
 Parece muito apressada, senhorita!  disse Walther num tom mordaz.
Ela voltou-se para ele com um clarão no olhar.
 E o senhor, conde, parecia pesaroso por ter de deixar esse grupinho. Estou
desolada, pois a minha visita foi a causa desse aborrecimento para si...
Havia em seu modo de falar uma ironia meio agressiva. Mas seus olhos se fixaram
com uma doçura acariciadora sobre o frio semblante do jovem conde.
 Pode se tranquilizar... eu já ia voltar para o castelo. A senhora somente me
privou de tomar a minha xícara de café, que eu não tive tempo de engolir.
Wilhelmina se pôs a rir.
 Foi realmente uma grande privação? Bianca em compensação vai nos servir
agora mesmo um chá.
 Ele não valerá o café da senhorita Lienkwicz, verdadeiramente perfeito, não é
verdade, Bianca?
 Delicioso! Aliás a senhorita Marísia possuI o dom precioso de fazer bem tudo o
que faz.
 É uma perfeição, pois!  disse secamente Wilhelmina.  Hum! começo a
desconfiar... minha prima d'Ertein tinha uma professora que ela qualificava de oitava
maravilha do mundo e nos proibiu de lhe fazer a menor censura. Pois imaginem qual foi a
sua surpresa quando um dia um sobrinho de seu esposo, riquíssimo, veio-lhe anunciar a
sua intenção de esposar essa moça de um obscuro nascimento! A esperta mosca tinha
manobrado admiravelmente para capturar essa bela presa...
Nesse instante Wilhelmina encontrou o olhar de Walther, que dizia claramente não
sem ironia: "A que propósito nos conta essa história?". Enrubesceu um pouco e se
interrompeu, eNquanto Bianca declarava com um ligeiro movimento de ombros:
 Essa joveM era decerto uma intrigante e uma faceira. Mas a senhorita de
Lienkwicz, que pertence a uma excelente família, possuI raras qualidades de espírito e de
coração, uma grande distinção moral e física.
 E muito de bondade, de franqueza e de devotamento pelos seus,  acrescentou
Walther.

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Miséria Dourada I– M. Delly

Wilhelmina lançou, de lado, um rápido olhar para ele; mas a fisionomia do jovem
conde ficou impenetrável, e não fez a menor mudança, quando Bianca continuou, não
sem alguma malícia porque conhecia bem o quanto a senhorita de Holberg era invejosa
de todas as outras mulheres:
 A esses dons a senhorita Lienkwicz reúne ainda os do encanto e da beleza,
como você pode constatar.
 Sim, não é feia, no primeiro momento... mas os traços não têm nenhuma
regularidade.
 Oh! isso nem se percebe nessa fisionomia sedutora!... E que olhos admiráveis!
Que tez deliciosa!
Wilhelmina mordeu os lábios. Mas sem dúvida ficou satisfeita ao ver que o conde
não se associava ao entusiasmo da irmã, porque logo se mostrou alegre de novo e
contou um incidente acontecido a uma personalidade eminente de Diifelden, a cidade
próxima, onde ela e seu pai habitavam então, na residência do arquiduque Josef.
Lá embaixo, na clareira, o doutor Berdech perguntava a Marísia:
 Como acha essa pequena Holberg, senhorita?
 Lindíssima, incontestavelmente.
 E arrogante como uma nova aristocrática que é,  acrescentou Heinrich.
 Uma nova aristocrática?
 Sim; sua nobreza é bastante recente,  explicou o doutor.  Job de Holberg,
bavaro por seu pai, prestou serviços diplomáticos ao estado austríaco e recebeu por isso
o título de barão. Hábil, flexível... e intrigante ele soube se tornar indispensável, como
conselheiro, ao arquiduque Josef, que lhe confiou o cuidado de administrar toda a sua
fortuna.
 E esse barão é rico?  perguntou o professor.
 Sim e sua filha há pouco herdou de um tio,  respondeu Laura.  Eis ali uma
importante herdeira. Também a conselheira Lchmann pretende que ela se casará com o
conde de Lendau.
O doutor Berdech, indignado, lançou um olhar sobre a senhorita Duntz.
 O conde de Lendau! Como pode a senhora dar crédito a uma semelhante idéia
saída do cérebro inventivo da conselheira? Onde estão, pergunto-lhe, os graus de
nobreza dessa jovem?
Heinrich teve um sorriso cético ao responder:

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Miséria Dourada I– M. Delly

 Ora! Sua fortuna diminuirá as distâncias!


O doutor lançou-lhe um olhar atravessado.
 Senhor Duntz, se o senhor conhecesse o conde como eu conheço, não diria
uma tal... tolice, permita-me a expressão. Nem todo o ouro do mundo o decidiria a
esquecer que, devido ao seu nome ele só poderá se unir a uma tão nobre quanto ele.
 Mas e se ela lhe agradar?
 Nada alterará isso... vamos eu o conheço e sei que alma enérgica é a sua.
"Ele devia então empregar essa força de carácter em reagir contra os preconceitos
de sua família”, pensou Marísia se afastando para chamar Guntran e as meninas. “Há
pouco não pude resistir e fi-lo compreender o meu modo de pensar e percebi que o
magoei. Eu devia ter me calado, talvez. Não somos da mesma escala social e como ele o
disse não nos poderemos jamais compreender neste ponto... Entretanto se essa
comparação que fiz lhe mostrou a aberração de que é vítima?"
Logo, porém ela levantou os ombros, dizendo de si para si que era uma louca em
pensar assim. O conde bem pouco devia se importar com o que ela pensasse a seu
respeito! O único resultado de sua franqueza seria talvez o de afastá-lo dos Lienkwicz.
"Se isso acontecer ficarei aborrecida por causa de Alexy”, pensou Marísia. “E o
meu pai deplorará ter perdido esse aluno tão cordial, tão atencioso para com ele! Sim,
teria sido melhor que eu me calasse... E entretanto! Não, não lamento nada! Parece-me
que cumpri o meu dever. Pois, verdadeiramente julgo o conde de um carácter muito
elevado para me guardar rancor por causa de uma apreciação um pouco... impetuosa,
mas sem maldade".

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Miséria Dourada I– M. Delly

VII

Meia hora mais tarde, o professor e seus filhos se achavam na carruagem de


Heinrich, sobre o caminho da floresta. O jovem conseguira convencê-los de ir jantar em
Nunsthel, aproveitando a esplêndida temperatura da tarde.
 Papai sentir-se-á de tal modo feliz por vê-los em sua mesa! E, na volta, verão a
floresta ao luar. É feérica!
A refeição foi alegríssima. A própria melancolia de Alexy se atenuava pelo contato
com os Lendau e com os Duntz. O administrador e seu amigo ouviam os moços sorrindo,
de vez em vez intromettiam-se com uma ou outra palavra em sua conversa.
Como, à propósito de Holberg, se viesse a falar do conde de Lendau, Heinrich
exclamou:
 Já me esquecia, papai, de lhe transmitir o convite dele. O conde disse-me que
ficará encantado por vê-lo em Runsdorf e me fez grandes elogios do senhor.
A fisionomia do administrador se tornou subitamente sombria. Sem responder pôs-
se a enrolar entre os dedos as migalhas de pão.
 Nunca nos disse, meu modesto amigo, que salvou das chamas a tia do...
Um rubor invadiu o belo rosto, cujos lábios tremeram. Um relâmpago duro
atravessou o olhar que se voltava para o professor.
 Suplico-lhe, não falemos mais nisso, Adriano!...  disse ele quase que com
violência.  É um túmulo que jamais deverá ser reaberto...
Interrompeu-se, passou bruscamente a mão por sobre a fronte e continuou num
tom ainda mudado, mas procurando sorrir:
 Você vai me julgar bem nervoso, meu amigo. De fato, às vezes o sou, sem
nenhuma razão...
Teve, ao proferir estas últimas palavras, um impaciente movimento de ombros, e
em seu olhar ficou uma expressão dolorosa que Marísia não deixou de notar.
Às nove horas Heinrich levou os seus convidados para Runsdorf. Fez o seu carro
tomar o caminho mais longo, o que passava em frente ao chalé rosa e que era o mais
pitoresco, principalmente à claridade do luar.
Uma luz azulada iluminava misteriosamente as alfombras da mata e dava aos
troncos das árvores uma aparência de fantasmas. Banhava as encostas cobertas de
verdura e cortadas por enormes blocos de granito, que desciam até o vale. Dir-se-ia uma

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Miséria Dourada I– M. Delly

paisagem de sonho, uma terra do além, perdida no longe adormecida para sempre...
Numa volta do caminho divisou-se o Chalé. A luz que saía de todas as janelas,
mostrando apartamentos maravilhosamente decorados, parecia um desafio feito à pálida
claridade estendida por sobre a natureza adormecida. Ao redor da encantadora vivenda,
viam-se enormes lanternas de vidros rosados, presas por braços de ferro, delicadamente
forjados, que projetavam uma claridade intensa sobre a estrada, iluminando o magnífico
jardim do Chalé.
 Está sempre assim  disse Heinrich, refreando o seu cavalo para dar tempo aos
companheiros de verem bem a linda residência.  A princesa Olgof não pôde com a
escuridão, tem necessidade de luz, sempre de muita luz...
O moço interrompeu a frase. Por detrás das grandes vidraças de uma janela do
primeiro andar, acabava de aparecer uma forma curvada, vestida de branco. Marísia
distinguiu, de passagem, um rosto pronunciadamente feio, abatido, e uns olhos
penetrantes que produziram sobre ela uma sensação de repulsa.
 A princesa...  murmurou Heinrich.
Assim que o carro passou pela frente do Chalé e ia deixá-lo para trás, a porta se
abriu e um homem de alta estatura apareceu no limiar. Num golpe de vista Marísia
reconheceu Heinle.
O velho tomou um caminho que encurtava muito, por meio de atalhos o trajeto até
Runsuorf.
 É o velho Hleintz, não é?  perguntou Heinrich.  Que belo exemplo de
devotamento dão esses antigos servidores! Esse é velhíssimo! Foi contemporâneo da
princeza Olgoff. Muito jovem entrou para o serviço de Arnulf de Lendau, que o fez seu
criado favorito. Sua irmã também tinha em Heintz uma absoluta confiança. Provavelmente
ela agora gosta de falar com ele sobre o passado, porque sempre o encontro por aqui
quando volto à noite para casa... Viu a princesa, senhorita Marísia?
 O suficiente para me convencer de que é de uma fealdade notável. Sim, mas o
seu espírito era, parece, incomparável: vivo, brilhante, original...
 Oh! original ela o é ainda e sempre! Vive numa quase completa solidão, e
jamais, depois de sua volta da Rússia, pôs os pés em Runsdorf. Seus sobrinhos-netos
vêm vê-la muito raramente, segundo dizem. Quando sua sobrinha, a cônega, está em
Runsdorf, passa algumas vezes, dois ou três dias no Chalé. Suponho que então elas
devem se abismar em dissertações sem fim sobre a grandeza desaparecida de sua

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Miséria Dourada I– M. Delly

raça...  Rindo muito o jovem continuou:  Felizmente essas orgulhosas damas do


passado não estão me ouvindo, porque não devem admitir que sua família seja assim
comentada, sem a devida consideração, sem a superioridade de outrora!... E entretanto...
Além, numa outra curva acabava de surgir Runsdorf, mais sombrio do que nunca,
quase fantástico sob a claridade do luar, na qual as suas proporções se exageravam. O
velho solar tinha assim o aspecto sinistro de imensa e negra prisão. Heinrich estendeu a
mão nessa direção.
 ... E entretanto, não se pôde negar que sua influência seja nula, para o futuro.
Eles se empenham numa luta silenciosa contra as idéias modernas, perdendo tudo o que
têm de bom, de legítimo. Serão vencidos irremediavelmente. E, no entanto, os jovens
Lendau são tão bem dotados!
 Sim, são de uma natureza atraente,  disse o professor.  Confesso que esse
jovem conde de Lendau me inspira uma grande simpatia. E a condessa Bianca é também
muito encantadora...
 De um encanto perfeito!  disse Heinrich com um entusiasmo contido.  E o seu
destino será... escolhido assim: ou envelhecer inutilmente entre essas antigas paredes, ou
esposar algum personagem mais ou menos idoso, mais ou menos horrível e
desagradável... isso pouco importará, contanto que a nobreza dele seja digna da sua.. A
não ser que ela entre para um Capítulo como a tia...
 Talvez não, Heinrich. Com as qualidades que possui é bem possível que ela seja
eleita por um jovem de sua casta, também bem dotado.
Heinrich meneou a cabeça.
 Sim, isso poderia acontecer... mas será uma tal sorte! A nobreza arruinada
procura a fortuna; a outra também não deseja outra coisa. Ora, nós podemos constatar
que os Lendau parecem estar metidos em grandes apuros... Enfim, veremos!  concluiu o
joven Duntz, tocando com o chicote o dorso do seu cavalo, que ligeiramente levou o carro
para Runsdorf.
Nessa noite quando ia se preparar para dormir, Marísia sentiu desejo de ver o lago
sob a luz do luar. Ninguém, segundo Otavia dizia, frequentava essa parte do castelo e
assim, pois, não devia recear que parecesse indiscrição esse seu inocente desejo.
Puxou o ferrolho, abriu a porta pesada de carvalho e se achou na galeria,
iluminada apenas pela claridade que se introduzia pelas grandes vidraças e que se
estendia em longas faixas sobre o pavimento de mármore.

70
Miséria Dourada I– M. Delly

O escuro lago, mostrava-se, nessa noite, transformado numa grande toalha de


prata líquida. Ao contrário, a bizarra capela erguia-se mais negra, mais lúgubre sob a
branca claridade do luar, que descia do alto iluminando a fachada dos edifícios que
rodeavam o lago, e, de tal modo, que Marísia distinguia, no lado oposto do pátio, as
vidraças das altas janelas, até então sempre fechadas.
Avançando, ela fitou por um momento o lago prateado, campa líquida de muitos
membros de uma família outrora rica e poderosa, última morada dessa linda Paola, cuja
morte havia levado o esposo ao suicídio. Juntando as mãos, a joven elevou uma prece
comovida em intenção de todos esses mortos desconhecidos.
Quando ergueu os olhos, viu que uma das janelas que lhe ficavam em frente, ia se
abrindo lentamente. Uma figura alta e esbelta, vestida de negro, surgiu no limiar da porta
envidraçada.
A despeito de sua habitual energia, Marísia reteve à custo uma exclamação de
susto, porque tudo o que a velha Otavia lhe contara veio-lhe subitamente ao espírito.
A aparição, com um andar deslizante veio até a beira do lago; ali caiu de joelhos,
curvando um pouco a cabeça para a água prateada. Marísia viu um admirável perfil, uma
cabeleira escura, um corpo cuja elegância lhe pareceu incomparável. Que maravilhosa e
fascinante visão nesse cenário de lenda! Seria a pobre condessa Paola, rezando pelo seu
esposo culpado? Ou Walburge, a jovem que tinha preferido morrer prisioneira do que
consentir num odioso casamento?... Ou alguma outra dessas condessas de Lendau que
tinham levado ali uma vida de secretos martírios? Otavia dissera a Marísia que esse
apartamento estava agora sempre desocupado e que a primeira condessa que não
quisera habitá-lo fora a pobre Paola que não podia se habituar com a proximidade dessa
fúnebre capela.
De súbito a aparição curvou mais a cabeça, escondeu seu rosto entre as mãos.
Marísia julgou ver se levantarem os seus ombros, como se fossem sacudidos por soluços.
Depois as mãos caíram novamente para o regaço, a desconhecida se levantou com um
movimento impetuoso e andou rapidamente para a porta envidraçada por onde
desapareceu.
Alguns instantes mais tarde uma luz surgiu detrás das janelas, atravessando as
grandes cortinas de ligeiro estofo, cor de púrpura, que caíam por cima dos vidros. Quase
que imediatamente os sons de um harmonium chegaram aos ouvidos de Marísia. Mãos
de artista faziam o instrumento chorar, davam-lhe uma alma, ou antes, comunicavam-lhe

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Miséria Dourada I– M. Delly

a da misteriosa musicista. E essa alma devia ser bem triste, magoada, dolorosa, ferida em
todos os seus ideais, se alguém a avaliasse pelas frases melancólicas, atormentadas,
pungentes em sua simplicidade, que Marísia ouvia com profunda emoção...
Bruscamente a harmonia mudou.
Tornou-se dura, cruel, triunfante e logo também cessou, com uma espécie de
soluço...
Marísia voltou para o seu quarto e abandonou-se, comovida, numa poltrona. Teria
tido alguma alucinação? Ou então vira um dos fantasmas anunciados por Otavia?
Meneou a cabeça, pondo-se a rir. Seus nervos, entesados um instante pela
estranheza dessa cena, retomaram logo o seu equilíbrio. Os Lendau, provavelmente
tinham alguns hóspedes, que talvez até fossem parentes e um deles viera rezar pelos
mortos de sua família. A pobre senhora devia ter muitos pesares próprios, a se julgar pela
sua atitude e pela sua música belíssima, mas tão triste!
Rosina, na manhã seguinte trouxe o café com leite, muito tarde. Desculpou-se,
dizendo que a senhora cônega tinha chegado na véspera, à noite, sem prevenir ninguém,
e que por isso ela se achava sobrecarregada de serviços.
 ... Tive que desfazer as malas, arranjar o apartamento. preparar uma porção de
coisas, porque a condessa Franziska gosta de ver tudo muito bem disposto à sua volta...
 Onde fica o apartamento dela?  perguntou Marísia, cortando o pão de rala em
fatias.
 É aquele que dá sobre o lago. A princesa Olgoff o habitava quando foi jovem... a
senhora cônega o escolheu depois que ela o deixou. É o mais belo, o mais luxuoso do
castelo. Mas nem que me dessem uma fortuna não trocaria o meu pobre quarto por ele!
Quando Rosina saiu, o professor se voltou para a filha.
 Então, eis o seu fantasma, Marísia!
 Sim, tudo se explica. A cônega foi rezar por sua mãe diante desse lago que é o
seu túmulo... Entretanto essa espécie de desespero que vi é bem incompreensível se se
pensar que ela era uma criancinha, ainda inconsciente, na época em que morreu a
condessa Paola... Em todo o caso, a aparição dessa soberba criatura na beira do lago,
sob o luar, era realmente fantástica. Eu desejaria que o senhor a visse, papai!
 Infelizmente não posso solicitar dessa orgulhosa senhora a repetição da cena, 
disse rindo o professor.  O que você vai fazer esta manhã, Marísia?
 Já que hoje é o seu dia de dar as lições, papai, irei a casa da velha Muller. Vão

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Miséria Dourada I– M. Delly

fazer quinze dias que não vejo a pobre mulher.


Luiza Muller, uma nonagenária, viúva de um lenhador, vegetava pobremente em
um pequeno casebre da floresta Tinha sido, na sua mocidade, ajudante de cozinha em
Runsdorf. Um bom homem, seu parente a esposara, apesar de uma certa fraqueza de
espírito que ela possuía e a fizera feliz tanto quanto lhe permitia a sua modesta posição.
Morreu quase centenário, deixando sua companheira meia paralítica, abandonada desde
há muitos anos pelo seu único filho e desprovida de todos os recursos. Felizmente
Conrado Duntz morava ali. Compassivo e generoso, encarregou sua filha mais velha de
cuidar dessa pobre mulher a fim de que nada lhe faltasse. Um dia Marísia acompanhou
Laura à casa dela e a velha Luiza demonstrou um tal contentamento que a jovem voltou
ali muitas vezes, trazendo-lhe alguns doces, recebidos com um visível reconhecimento.
Luiza, que sempre tivera um espírito um pouco esquisito, era geralmente taciturna.
Entretanto, às vezes por pouco tempo, aliás tornava-se loquaz. Então saíam dos seus
lábios frases desconexas, acompanhadas por grandes gestos de suas mãos
descarnadas. Depois, repentinamente, caía num mutismo de que nada a tirava.
Nessa manhã, entrando no casebre, Marísia viu logo que ela se achava num dia
desses. Luiza, ao vê-la, piscou o único olho que lhe restava, depois de um acidente
acontecido há alguns doze anos.
 A senhora vem de Runsdorf?... Um belo castelo... conheço todos os cantos... Eu
era curiosa e sempre me ralhavam por isso... e vi... oh! vi tantas coisas! A senhora
conhece Heintz? Sim. eu o vi... e o conde Arnulf, na galeria... ele estava tão pálido... Sim,
era bem isso... e o cofre era bem pesado...
 Que cofre?  perguntou Marísia maquinalmente.
 O cofre... e a água descia... vi bem o buraco... Oh! se vi bem!
Interrompeu-se bruscamente, o olhar perdido e Marísia não conseguiu tirar-lhe
mais nenhuma palavra.
A jovem só deixou o casebre depois de o ter posto em perfeita ordem.
Tomou o caminho que passava defronte do Chalé, porque dali se gozava uma
vista encantadora por sobre o vale. Nessa manhã, o sol de setembro iluminava as
encostas cheias de matagais, os fundos cobertos de prados, atravessados por uma
faiscante e tortuosa ribeira. As folhagens começavam a tomar tons de ferrugem e de ouro
velho, as urzes cobriam de largos tapetes róseos as charnecas, onde bebiam em ondas o
sol, claro e doce. Marísia andava com um passo apressado no misterioso silêncio da

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Miséria Dourada I– M. Delly

floresta.
À volta do caminho viu o Chalé banhado de sol, coberto por um vermelho manto
de brionia. Era, na verdade uma fascinante moradia. Por um instante a jovem parou para
admirar as finas esculturas dos balcões e madeira e a admirável coleção de begônias, em
todos os tons rosa, que ornava a frente da linda residência.
Quando ela voltava a cabeça, viu duas pessoas que saíam do caminho que levava
diretamente a Runsdorf. Uma era o conde Walther, a outra... Marísia teria reconhecido
entre mil esse corpo incomparável, ao qual se aliava tão bem o andar flexível e
majestoso. Não poderia haver engano, tanto mais que a pessoa que avançava ali, trazia o
mesmo vestido preto, muito severo, um pouco comprido demais, que vestia a fascinante
aparição da véspera.
Um chapéu, porém, nessa manhã, cobria sua cabeleira e escondia uma parte da
fronte. Entretanto, enquanto ela se aproximava, Marísia pode detalhar com um rápido
golpe de vista essa fisionomia desconhecida. Como era bela! Seria verdadeiramente
impossível se imaginar uns traços mais harmoniosos, uma tez de brancura mais
delicada...
Magníficos olhos escuros, aveludados, que demonstravam uma surpresa um
pouco altiva, encontraram-se com os de Marísia.
O conde se descobriu e avançou para a jovem que se apressava em andar depois
de o ter cumprimentado.
 Senhorita Lienkwicz, já que se oferece uma ocasião quererá me permitir
apresentá-la à minha tia, a condessa Franziska de Lendau?
Uma espécie de interesse surgiu nos olhos tão belos. A cônega achava, talvez
essa jovem burguesa bastante distinta para lhe conceder alguma atenção. Sua formosa
mão branca se estendeu para Marísia, num gesto que não teria desmentido a mais
orgulhosa das soberanas; seus lábios pronunciaram uma frase perfeitamente simples e
condescendente. A senhorita de Lienkwicz respondeu-lhe com a sua graça habitual, mas
um pouco reservada. Entretanto, não estaria sonhando? Que, essa formosa mulher era tia
do conde Walther?... uma mulher de uns quarenta anos? E, sob o sol claro que a
envolvia, era fácil a qualquer pessoa se convencer de que não existiam artifícios nessa
juventude e nessa beleza. O austero vestuário da cônega aliás, afastava qualquer
suposição de faceirice.
 Ei-la passeiando hoje bem cedo, senhorita! Aliás estou vendo que o ar da

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Miséria Dourada I– M. Delly

floresta lhe fez um bem maravilhoso.


De fato, a frescura fascinante de Marísia, a vida profunda e intensa do seu olhar
justificavam essa reflexão do conde Walther, feita num tom de discreta admiração.
 Gosto tanto desta floresta!... e principalmente a esta hora.
 A senhora tem razão... Era esta também a minha hora predileta,  disse a
cônega com a sua voz um pouco baixa, muito harmoniosa.  Como eu gostava de ver o
róseo diamantino das urzes, que pareciam pérolas cor de rosa na beira das folhas... eu
gostava de remexer com os pés os matinhos úmidos e de esperar o canto do despertar
dos pássaros. Sim, como eu gostava disso...
Essas últimas palavras foram murmuradas pelos lábios ligeiramente trêmulos.
 E agora minha tia?
Ela ergueu a cabeça e esboçando um sorriso onde Marísia discerniu uma grande
amargura.
 Agora, meu caro Walther, sua tia é uma mulher velha que já viveu, refletiu e que
nada conservou desses poéticos entusiasmos de sua juventude.
 Uma mulher velha!  exclamou Marísia.
E a admiração contida em seu olhar revelava à bela condessa o quanto era
sincero esse protesto. Mas aquilo que teria lisonjeado uma outra mulher, parecia, ao
contrário lhe desagradar porque uma ruga de contrariedade se formou em sua fronte.
 A aparência não quer dizer nada,  disse ela com um ligeiro movimento de
ombros.  Certas pessoas guardam até a velhice uma alma jovem, ingênua e cheia de
ilusões outras são velhas aos vinte anos. Em nossa família há geralmente destas
últimas... as responsabilidades de um grande nome nos envelhecem depressa.
O seu formoso semblante parecia se entristecer e Marísia julgou ver a mesma
sombra tristonha no rosto do conde. Logo, porém, ele sorriu, fazendo um gesto amigável
na direção do caminho.
 Eis o senhor Duntz e Gisela...
A cônega estremeceu e Marísia teve a impressão de que ela procurava se dominar
para não recuar. Seus lábios se tornaram, subitamente, cor de cera, suas mãos se
crisparam no cabo da sombrinha. Enfim, ergueu a cabeça orgulhosamente, voltando-a
para os que chegavam: Heinrich Duntz e sua irmãzinha.
Então, Marísia que a observava com uma discreta surpresa, viu a calma
reaparecer em sua fisionomia. Também pode discernir um pouco de irritação ou

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impaciência, quando Heinrich, à chamado de Walther, veio se inclinar ante ela.


 Minha tia,... o senhor Heinrich Duntz, o filho do administrador, esse valente
Conrado Duntz que a salvou outrora do incêndio...
Marísia mais uma vez julgou ver fremir a cônega, provavelmente pela lembrança
do terrível perigo do qual Conrado a havia salvo. Foi, porém, com voz muito calma,
glacial, que ela respondeu:
 Não o esqueci. Seu pai é o homem mais corajoso que vi em minha vida e o
senhor pode se orgulhar de ser seu filho...
Oh! desta vez, estava bem fremente por uma viva emoção esse formoso rosto!
Walther acabava de empurrar para a frente de sua tia a pequena Gisela, um pouco
intimidada por essa senhora majestosa; a menina ergueu para ela os seus grandes olhos
azuis semelhantes aos do pai.
 Eis uma encantadora pequenina Duntz,  disse alegremente o conde.  Ela se
tornou em amiga muito querida de Helena, de Valeria e de Guntran...
A cônega estendeu a mão e passou-a sobre os cachos louros de Gisela numa
espécie de carícia. Depois, voltou o seu olhar dizendo com a mesma frieza:
 Sim, ela parece ser muito gentil... mas vamos Walther, estamos prendendo a
senhorinha Lienkwicz...
Em seguida incimou-se ligeiramente e se dirigiu para o Chalé, acompanhada pelo
sobrinho que tinha amigavelmente apertado a mão de Heinrich e cumprimentado Marísia
com a sua habitual cordialidade respeitosa.
 Essa jovem é realmente bonita e muito distinta,  disse a cônega num tom de
aprovação.  Suponho que está destinada a se tornar, um dia ou outro, em esposa do
jovem Duntz, não é?
O conde tinha a mão no cabo da campainha. Esta foi agitada com uma tal
violência que a condessa Franziska exclamou:
 Mas você está louco, Walther? O que minha tia vai pensar desse carrilhão
desordenado?
 Creio que ela tem os ouvidos um pouco surdos,  replicou ele tranquilamente. 
No caso contrário, saberei me desculpar deste movimento impetuoso... Quanto à
pergunta que me fez, não posso respondê-la por não estar ao par dos projetos do
administrador e de seu filho. Evidentemente esse enlace poderia ser feito. Os Duntz são
ricos, mas julgo que não são interesseiros e a senhorita Lienkwicz é daquelas que podem

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Miséria Dourada I– M. Delly

ser que só devem ser esposadas por si próprias. A classe social é a mesma, nada os
separa...
Um lacaio em libré clara com galões de prata abriu a porta. No momento de
franquear o limiar logo após sua tia, Walther se voltou. Marísia tomava então o atalho com
Heinrich e Gisela. Um frêmito percorreu o rosto do conde, cuja fronte se crispou com uma
profunda ruga. Mas já Walther havia retomado a sua expressão de calma altivez quando
entrou no vestíbulo, decorado de pinturas mitológicas e de flores de cores ardentes.
No atalho, Marísia e Heinrich conversaram em termos admirativos sobre a bela
cônega. Mas Gisela disse subitamente, sacudindo os cachos dourados:
 Sim, ela é lindíssima, mas não me parece muito amável e tive a impressão de
que não lhe agradei... não o percebeu, Marísia?
 Ela talvez não goste muito de crianças, minha querida... Senhor Heinrich não é
seu pai que vejo ali embaixo, nessa clareira?
 Sim é ele, com efeito. Vá depressa lhe dizer bom dia, Gisela, porque você ainda
não o viu esta manhã.
Alguns instantes depois, Conrado Duntz, deixando os guardas florestais aos quais
dava ordens, chegava ao atalho e estendia a mão a Marísia com esse franco sorriso que
iluminava tão bem a sua grave fisionomia.
 Que passeio matinal, senhorita! Foi à Nunsthel?
 Não, fui somente ver a velha Muller que encontrei em seus dias de divagação.
Falou-me de Runsdorf, de Heintz, do conde Arnulf, mas tudo com frases cortadas, não
oferecendo nenhum senso preciso.
 Sim, são sempre as lembranças de Runsdorf que a fazem delirar. Parece que o
seu espírito ficou particularmente abalado durante a estadia que fez lá.
 Papai, há pouco vimos a tia do conde de Lendau  disse Gisela que havia
tomado a mão do pai.
 A velha princesa do Chalé de quem você tinha tanto medo ainda no último ano?
 Não, aquela que chamam a cônega.. o que quer dizer, cônega?
O rosto do administrador, um pouco animado pelo passeio a cavalo que acabava
de fazer na floresta, foi percorrido por um frêmito, as pálpebras se bateram e se
abaixaram por um instante.
 Sim, acabamos de encontrar junto do Chalé o conde e sua tia conversando com
a senhorita Marísia,  disse Heinrich.  E fomos apresentados a ela muito amavelmente.

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Que maravilhosa beleza! Mas que frieza e orgulho! Entretanto, disse-me que nunca
esqueceu o que o senhor fez por ela e que eu poderia me orgulhar de ser seu filho.
Um riso sardônico saiu dos lábios de Conrado Duntz. Voltando-se para a clareira
murmurou:
 Eu também nunca o esqueci! Certos acontecimentos contam dobrado em nossa
existência...
E em voz alta chamou:
 Wolster, quer trazer o meu cavalo, faz favor?
Um guarda florestal adiantou-se, tendo o belo baio marron que rinchava
alegremente. Conrado Duntz curvou-se para a filha e beijou-a na fronte.
 Até à noite, somente, pequena Gisela... Heinrich, previna Laura que almoço no
pavilhão de caça com o archiduque. Wolster veio me trazer o convite imperioso, de sua
Alteza. Lembranças ao meu amigo Adriano, senhorita Lienkwicz, e até domingo.
Pôs o pé no estribo; mas a pequenina mão de Gisela, se pousou sobre a sua
manga.
 Papai, o senhor não me respondeu. O que é uma cônega?
 Agora não tenho tempo para lhe explicar, minha filha. Pergunte à Heinrich.
Saltou para a sela e se afastou, como cavaleiro, tão jovem na aparência que mais
parecia o irmão mais velho do filho.
Marísia despediu-se de Heinrich e de Gisela e encaminhou-se rapidamente para
Runsdorf. Todos esses encontros tinham-na retardado e só lhe restava tempo para chegar
na hora justa da lição de inglês de Bianca.
 Ah! viu minha tia,  disse a jovem condessa, a quem ela falou de seu passeio. 
Não lhe pergunto como a achou, porque a resposta é sempre a mesma. Sua beleza é
daquelas, raríssimas, que não se discutem. Mas o que vale mais é a sua bondade... ela
nos ama muito... Quanto ao seu espírito, ao mesmo tempo cintilante e delicado pouco o
demonstra, principalmente fora da família. Às vezes, mesmo, ela se mostra singularmente
taciturna...
E meneando a cabeça, Bianca acrescentou tristemente:
 ... Dir-se-ia que existe nela algum profundo sofrimento moral...
Marísia, lembrando-se da cena noturna, pensou, sem ousar dizê-lo, que Bianca,
provavelmente tinha razão...

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VIII

O silêncio habitual da floresta se via nessa manhã perturbado pela caçada


arquiducal, cujo eco chegava até Nunsthel: sons de trompas, latidos da malta, galope do
cavalo do picador sobre a estrada, tudo isso, levado pelo vento do oeste, chegava
ensurdecedor aos ouvidos de Marísia, de Laura e de Gisela, comodamente instaladas na
clara sala de jantar do administrador.
Conrado Duntz e Heinrich tomando parte na caçada, Laura tinha convidado os
Lienkwicz para virem almoçar com ela e sua irmã, e em seguida iriam ver, do terraço, a
volta das equipagens e dos cavaleiros. Entretanto, como Alexy não se sentisse bem
nessa manhã, não poude deixar Runsdorf e o professor tinha ficado junto dele, exigindo
que Marísia fosse a Nunsthel.
Pelas duas horas a jovem despediu-se de sua amiga, recusando esperar a
passagem do arquiduque e dos seus convidados. Tinha alguma pressa de se reunir ao pai
e ao irmão que sempre a esperavam com alguma impaciência.
Sobre o caminho largo, bem tratado, que passava defronte da moradia do
administrador as numerosas equipagens vindas de Dtifelden haviam deixado seus rastos
no chão molhado pelas chuvas dos dias precedentes, juncado de folhas mortas que as
rodas dos carros, as patas dos cavalos tinham afundado na lama. Marísia andava sobre
uma herva espessa que ensurdecia os seus passos. Assim, foi por acaso que voltando a
cabeça percebeu em um atalho paralelo, através de uns troncos desfolhados, uma alta
figura de mulher envolvida num manto preto e a cabeça coberta por uma mantilha
também preta. Essa mulher andava lentamente e de súbito parou se encostando à uma
árvore. Nessa posição devia se achar em face de Nunsthel e distinguir pelo menos o seu
telhado.
Marísia continuou o seu caminho um pouco intrigada, porque julgara reconhecer a
cônega. Ora, esta sentia pela floresta, outrora tão amada uma declarada antipatia e só a
pisava para ir à casa da princesa Olgoff.
Marísia achava que essa formosa mulher era bem enigmática. Orgulhosa de seu
nome até o mais alto grau, atraente e cheia de encanto, dotada de um espírito delicado e
culto, muito afeiçoada aos sobrinhos como o havia dito Bianca... sim era isso tudo e
também era boa, mostrando elevados pensamentos, fugitivos impulsos de entusiasmo.
Mas a que atribuir a sua habitual melancolia altiva e essa expressão de sofrimento que

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Miséria Dourada I– M. Delly

por vezes atravessava seus belos olhos aveludados?


O professor e seus filhos, em suas frequentes relações, encontravam-na sempre
amável, embora altivamente reservada. ela parecia apreciar o espírito fino e justo, as
belas qualidades intelectuais, a grande distinção dos hóspedes de sua cunhada. Diversas
vezes convidara Marísia para tomar chá com ela e a jovem tinha passado momentos bem
agradáveis no vasto salão vermelho que dava sobre o lago, em palestras interessantes
com a cônega e Bianca. A inteligência viva, penetrante, muito culta de Marísia, sua alegria
encantadora lhe atraiam incontestavelmente a simpatia das condessas de Lendau.
Entretanto somente Bianca a tratava verdadeiramente como a uma sua igual. A condessa
lolante e sua cunhada, sob a sua afabilidade, guardavam cuidadosamente as distâncias,
aliás, com bastante tato, para que a joven não se sentisse ofendida. Quanto ao conde...
Chegada à esse ponto de suas reflexões, Marísia se entristeceu. O jovem senhor
de Runsdorf, com certeza, não havia esquecido o julgamento audacioso que ela tomara a
liberdade de fazer a seu respeito.
Não, ele não esquecera, nem havia perdoado. Como antes, continuava a tomar as
suas lições de inglês com o professor e vinha sempre sentar-se longas horas junto de
Alexy, mas agora escolhia, Marísia o havia notado, as ocasiões em que ela se achava
ocupada junto dos seus alunos, ou então a hora da lição de desenho que ela dava a
Gisela, duas vezes por semana. Entrando uma tarde no apartamento da condessa à hora
do chá, ele parecera surpreendido... desagradavelmente por encontrá-la ali. Sob a sua
cortesia de homem bem educado, conservava agora uma certa reserva altiva à respeito
da audaciosa burguesa que havia ousado censurar o conde de Lendau. Entretanto, às
vezes, Marísia perguntava à si própria porque seria que ele só adotara essa atitude
depois do seu encontro junto do Chalé, pois que, nessa manhã, ele se tinha mostrado tão
gentil quanto antes.
"Pois bem, que ele se comporte como melhor lhe aprouver! Além disso, pouco me
importo com os seus modos!" pensou ela meneando a cabeça com impaciência.
Entretanto a sua fronte estava enrugada e o seu formoso olhar se velava de uma
profunda tristeza.
Marísia, pensando em tudo isso, tomou por um atalho transversal a fim de chegar
mais depressa a Runsdorf. À sua esquerda se abria uma pedreira abandonada há muito
tempo, sem dúvida, porque os abetos haviam tomado raízes nas fendas e um espesso
tapete de erva fina cobria as encostas cortadas. Nos arredores da pedreira, as urzes se

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Miséria Dourada I– M. Delly

estendiam em profusão, mais belas do que em nenhum lugar da floresta. E Marísia não
pode resistir à tentação de se deter ali para colher um bouquet da sua flor favorita.
Um ruído ligeiro fê-la voltar a cabeça; no princípio do atalho aparecia a senhora do
manto preto, que era de fato a cônega. Ela teve primeiro um movimento de surpresa,
quase de recuo, e depois se adiantou para a jovem.
 Não tem medo de passear sozinha nestes caminhos desertos?  perguntou ela
estendendo-lhe a mão.
 Nenhum, minha senhora. Aliás, disseram-me que a segurança é completa na
floresta.
 Em tempos comuns, sim. Mas, ontem, contaram ao meu sobrinho que um
indivíduo de má cara anda rondando os arredores do Chalé e de Runsdorf. Será, pois, em
todo o caso, mais prudente, não deixar a estrada larga. Aliás os atalhos estão muito
molhados...  ela mostrava a barra de sua saia guarnecida de uma orla de lama. ... Se
está de volta para o castelo, faremos juntas o caminho, quando tiver terminado a sua
colheita.
 Oh! já colhi bastante,  disse Marísia.
Enquanto se dirigiam para a estrada, um homem surgiu detrás de um enorme
bloco de pedra que havia na entrada da pedreira. Era um indivíduo de alta estatura,
hirsuto, vestido de farrapos. Seus olhos brilhavam com uma febre selvagem, seus lábios
se crispavam num rictus feroz. Deslisou-se atrás das duas mulheres... mas um gesto de
furor lhe escapou subitamente.
 Desgraça! Eis aí alguém!  murmurou ele.
Um galope de cavalo se fazia ouvir. No momento em que a cônega e Marísia
chegavam à beira da estrada, um cavaleiro apareceu. Elas reconheceram o conde
Walther. Ele parou sua montaria e tirou o chapéu.
 Como passeando pela floresta minha tia?
A cônega respondeu brevemente:
 Uma fantasia... Acabo de encontrar a senhorita Lienkwicz e voltávamos juntas...
Um grito de Marísia interrompeu-a. Detrás delas surgia repentinamente o homem
que se atirava para a frente um punhal na mão.
 Para você a minha vingança, conde de Lendau!  exclamou ele com voz rouca.
Com um movimento mais rápido do que o pensamento Marísia se achou defronte
do homem e a lâmina dirigida para Walther afundou-se na mão que ela instintivamente

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Miséria Dourada I– M. Delly

tinha levantado para proteger o conde.


O cavalo deu um brusco salto. Walther saltou para terra e se lançou sobre o
miserável que com um juramento levantava de novo a sua arma. Mas a cônega prendeu-
lhe o braço e o conde se apoderou com os dedos crispados da comprida faca que atirou
longe. Depois sua mão fina e nervosa que ninguém julgaria com um tal vigor, prendeu o
agressor pelo ombro, fê-lo rodar e jogou-o para o chão. A cabeça bateu sobre uma pedra
aguda e o homem perdeu os sentidos.
 Oh! o senhor o matou!  disse Marísia com voz fraquíssima.
Cambaleava, muito pálida, quase desfalecendo. Walther tão pálido quanto ela,
tomou docemente a mão ensanguentada que examinou com uma rápida vista de olhos.
 Espero que isso não tenha gravidade... Minha tia, tem aí um lenço para me dar?
Quero enfaixar esta ferida... depois irei buscar uma carruagem para levar a senhorita
Lienkwicz para Runsdorf. A senhora permitirá que eu me ocupe do assassino, depois da
vítima,  replicou Walther, cuja voz tremia por uma viva emoção.
 Felizmente ele não fez um grande mal...
 Graças a si, querida menina!  disse a cônega, apertando calorosamente a mão
valida de Marísia.  Sem o que, talvez nesta hora, o meu sobrinho já não existisse... vou
cuidar da senhorita Lienkwicz, e você, Walther, veja esse miserável, que, afinal, não
podemos deixar morrer ali como um cão.
Walther aproximou-se do homem, inclinando-se sobre ele. O sangue corria
abundantemente da cabeça e escorria ao longo do rosto. O conde abriu a blusa
esfarrapada e apoiou o ouvido contra o peito do seu agressor. Logo se ergueu dizendo:
 Está vivo. Vou fazer uma atadura provisória para que se possa transportá-lo
para algum lugar.
Marísia deu o seu lenço ao qual Walther juntou o seu e enquanto ligava a cabeça
do malfeitor, disse:
 Vou buscar auxílio em Nunsthel para levá-lo. Ao mesmo tempo pedirei um carro
para a senhorita Lienkwicz.
 Porque em Nunsthel?  perguntou bruscamente a cônega.
 Porque é mais perto.
 Mas não quero que incomodem ninguém por minha causa,  disse vivamente
Marísia.  Posso andar e isso até será preferível... mas vou voltar para Nunsthel para
pedir uma saia a Laura, porque eu assustaria papai e Alexy se lhes aparecesse com este

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Miséria Dourada I– M. Delly

vestido...
O seu vestido, de uma fazenda clara, estava todo manchado de sangue.
 Seja, a senhora talvez tenha razão. O doutor Berdech, que eu mandarei chamar
para este homem, também lhe dará os seus cuidados... A senhora a acompanhará, minha
tia?
A cônega teve uma hesitação que Marísia notou, mas logo respondeu
afirmativamente. Enquanto o conde, a cavalo, se dirigia para Nunsthel, as duas mulheres
tomaram lentamente a mesma direção. Andavam em silêncio, bastante emocionadas para
poderem comentar o dramático acontecimento. Alguns minutos mais tarde viram o conde
reaparecer, seguido de vários picadores a cavalo. Acabava de encontrá-los, tendo
enviado um à casa do doutor Berdech, levava os outros para transportarem o ferido.
Logo Nunsthel apareceu aos olhos da cônega e de Marísia. A primeira parou,
dizendo com um acento que a sua companheira julgou singularmente altaneiro:
 Deixo-a aqui... já não tem mais necessidade da minha companhia.
 O que? Não quer entrar, minha senhora? Laura ficaria tão contente...
 Não, obrigada,  respondeu ela brevemente.  Essa cena me impressionou
muito... tenho necessidade de ficar só... Até logo, minha querida filha... irei esta tarde
saber notícias dessa corajosa mãozinha.
Abraçou Marísia e se afastou, com uma certa pressa. Marísia dirigiu-se para a
moradia do administrador.
Laura que passava no pátio lançou um grito de susto, vendo o vestido da amiga
todo manchado de sangue e a mão presa numa atadura. Marísia tranquilizou-a logo con
algumas palavras, seguindo-a para o quarto, onde lhe narrou a agressão da qual teria
sido vítima o conde de Lendau.
 É extraordinário! Nunca aconteceu isto em nossa floresta! Essa vingança deve
ser particular...
 As palavras desse homem bem o indicavam...
 Vejamos, vou procurar em meu guarda-roupa o que lhe poderá servir... é que
não tenho o seu belo corpo!... Ah! mas, lembro-me agora que a nossa costureira acabou
de fazer o arranjo do seu vestido branco... só lhe emprestarei um casaco para voltar para
Runsdorf.
Pouco tempo depois, Marísia, trazendo o seu lindo vestido branco, descia, seguida
pela amiga. Quando chegavam no fim da escada, a porta se abriu e o conde de Lendau

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entrou acompanhado pelos picadores que traziam o ferido sobre uma padiola
improvisada.
Walther parou um instante, como fascinado pela aparição, na penumbra do
vestíbulo, daquela linda joven vestida de branco.
 E esse homem continua no mesmo estado?  perguntou Marísia.
 Ainda, senhorinha... Peço-lhe desculpas de invadir assim o seu domicílio,
senhorita Duntz...
 É uma coisa muito natural, senhor conde. Vou mandar levar esse homem para
um quarto que temos reservado para os pobres vagabundos, doentes ou mortos de fome
que os guardas costumam trazer para aqui.
Poucos minutos depois o homem estava estendido sobre uma cama, num cômodo
afastado. A pequena farmácia do administrador forneceu à Walther o necessário para os
primeiros curativos. Quando ele já estava pronto, repousando nos travesseiros, o jovem
conde declarou:
 Agora só nos resta esperar por Berdech. Este homem deve ter sofrido muito.
Vejam como está magro... decerto quando conseguiu matar a fome, já estava, com o
estômago às costas há bem tempo...
Marísia que aparecia nesse momento no limiar da porta, perguntou:
 Porque pretendeu ele atentar contra o senhor particularmente? Conhece-o?
 Absolutamente! Quererá me dar licença agora, que já cumpri o meu dever para
com esse assassino, de agradecer aquela que tão corajosamente me preservou, e me
autorizar a fazer um exame nesse ferimento?
Ela sorriu para esconder a sua emoção diante da calorosa doçura desses olhos
castanhos que a fixavam.
 Uma e outra são inúteis. Laura pensou o meu ferimento ainda há pouco...
 Sim, mas mostre a sua mão ao conde, Marísia. Ele verá melhor do que eu se
algum nervo foi lesado.
 Receia a minha inexperiência, senhorita Lienkwicz?  perguntou Walther com
uma ligeira entonação de amargura.
Ela estendeu a mão ferida.
 Nem por isso! Se por acaso eu tivesse duvidado de sua competência e de sua
ciência, os cuidados que prestou a esse homem me teriam convencido.
Marísia estava, com efeito, muito impressionada pela doçura e atenção do jovem

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conde à respeito dessa criatura sórdida. Se, em lugar de um criminoso, ele tivesse tido
entre as mãos um dos seus iguais, não teria podido lhe dar melhores cuidados.
Examinada a mão da jovem, o conde declarou que felizmente a lâmina não
atingira nenhum nervo e que a cura seria rápida. Em seguida ofereceu-se para dar os
pontos na ferida se ela não quisesse esperar pelo doutor Berdech.
 Não, não, pode fazer o que for preciso...  respondeu ela.  Tenho toda a
confiança em si.
Durante essa pequena operação, Marísia não pode conter alguns
estremecimentos de dor. Walther, num dado momento, disse à meia voz, num tom
fremente:
 Estou desolado por ver que está sofrendo isto por minha causa.
Ela sorriu alegremente.
 Ora nem me fale nisso! Então o senhor gostaria mais que esse homem
conseguisse o que desejava?
Terminada a sua tarefa de cirurgião, o conde recusou sentar-se, embora Laura o
convidasse a fazer.
 Minha presença aqui agora se torna inútil porque o doutor vai chegar já. Vou me
reunir à caçada, que deixei por um momento.
 Espere aqui os caçadores, senhor conde, disse Laura. A caçada decerto já
terminou...
Uma criada apareceu na porta e disse precipitadamente:
 Senhorita Laura, o senhor Duntz vem chegando com Sua Alteza e outros
senhores...
 Eu já o suspeitava... O nosso bom arquiduque gosta de passar uns instantes em
casa de meu pai quando volta da caça. Deixo-os para ir mandar preparar uma merenda.
Walther tomou o seu chapéu que havia posto sobre um móvel e voltou-se para
Marísia.
 Deseja que eu previna o professor e Alexy, senhorinha? Assim eles ficarão
menos emocionados quando a senhora chegar.
 Oh! eu não desejaria coisa melhor... e lhe agradeço...
Interrompeu-se. O ferido começava a se queixar, com uns gemidos dolorosos.
 Julga que o seu estado seja grave?  perguntou a jovem.
 Não o julgo, não. Mas será preciso, sem dúvida, uma pequena operação, o que

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só o doutor Berdech poderá aconselhar.


 E que o senhor seria capaz de levar a efeito com grande êxito, não é?
 Sim, talvez, mas não tenho o direito de fazê-la.
No olhar de Marísia ele leu, indubitavelmente, o pensamento que lhe vinha ao
espírito: "Se o senhor não tem esse direito, e se nunca o tiver, será porque assim o quis!"
porque a sua fisionomia se entristeceu, seus lábios se crisparam furtivamente:
 Sim, eu quereria! disse com uma voz um pouco surda, como se estivesse
respondendo à uma pergunta. Quantas vezes tenho dito comigo mesmo: "Preciso afastar
de mim os meus sonhos de trabalho, os ardentes desejos de ciências, de pesquisas
apaixonadas"... e adivinho como a senhora deve julgar essa atitude, senhorita Lienkwicz!
 Eu... apenas lamento-o... e não o compreendo...
Ele teve um riso baixo, cheio de amargura.
 Em certos casos, lamentar uma pessoa é desprezá-la!
 Não, não!  respondeu a moça calorosamente.  É justamente por causa da
mais alta estima que o seu carácter me inspirou, conde de Lendau, que deploro com toda
a minh’alma essa cegueira que lhe oculta o seu verdadeiro dever. Sim, jamais eu poderia
compreender como é que o senhor aceita a inação, assim como uma necessidade quase
gloriosa, quando um tão belo futuro se abre na sua frente... enquanto que lá...
Sua mão se estendia para Runsdorf, mas interrompeu-se não ousando dizer todo
o seu pensamento.
 Sim,  replicou ele acremente,  lá eu serei sempre o conde de Lendau, um
grande fidalgo arruinado, que procurará todos os meios de esconder essa ruína, até o dia
em que terá de escolher entre a miséria absoluta e algum casamento rico, que talvez será
uma aliança desigual... Como tenho conservado uma certa delicadeza de sentimentos,
nunca aceitarei o segundo meio e assim, a senhora tem na sua frente um homem
destinado a morrer de fome...
Walther deu alguns passos no aposento e voltou para junto de Marísia, que o
fitava com uma profunda emoção.
 ... Porque... para que fingir junto de si? Sei que é bastante perspicaz e que já há
muito tempo adivinhou a nossa verdadeira situação, e portanto acho inútil representar na
sua frente. Já me custa tanto ter que fazê-lo à respeito dos outros!... Oh! como essa prova
é dura!...
 Mas que obrigação tem o senhor de fingir?

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Miséria Dourada I– M. Delly

 O passado, as tradições, que sei eu! Todos nós carregamos essa carga... e
como a achamos pesada! Mamãe nos infiltrou desde pequeninos essa idéia de que
pertencíamos a uma raça a parte. Vimo-la sempre, pobre mãe, dispor de tudo sem medir
sacrifícios para poder respeitar as tradições de nossa casa e há longos anos acreditamos
que a honra do nosso nome nos obriga a esta farsa, a esta existência inútil... Pois um dia
compreendi que não podia ser assim e perguntei a mim mesmo se minha mãe não se
enganava sem o querer. Lutei para afastar esses pensamentos e me persuadi que de fato
era esse o único caminho que tínhamos a seguir... mas isso até o dia em que a senhora
pronunciou aquelas palavras na clareira... lembra-se, D. Marísia?
Ela fez um sinal afirmativo, enrubescendo-se ligeiramente.
 ... Eram todas as minhas dúvidas de outrora que a senhora exprimia assim e
desde então elas voltaram com mais força. Ser um inútil, um infeliz sem nenhuma espécie
de futuro, torturado pelo pesar de uma vida vazia, ou me tornar alguém na sociedade dos
pensadores e dos homens de bem, entregar-me à carreira que eu sempre amei e que
amarei cada vez mais apaixonadamente... tal é a alternativa...
Marísia voltou um pouco a cabeça e olhava para o jardim, onde o outono
começava a desfolhar as árvores. Seus dedos se apertaram sobre a cadeira que lhe
ficava ao lado, seus lábios se cerraram como para comprimir as palavras prestes a saírem
de sua boca.
 Em sua opinião, não há nenhuma dúvida sobre o partido a tomar, não é
senhorita?  disse ele depois de um curto silêncio, durante o qual sem dúvida esperava
uma réplica.
 Não posso me pronunciar sobre isso, senhor conde,  respondeu a jovem com
uma aparente tranquilidade.  Essas são considerações fora da minha competência como
o senhor já me fez compreender um dia...
Por sua vez as faces do conde se cobriram de rubor.
 O que? A senhora guardou rancor por uma palavra dita no primeiro momento de
irritação?  exclamou ele com uma alteração na voz.
 Rancor? Oh! não! Apenas reconheci que o havia ferido com a minha franqueza,
aliás, involuntariamente. Pela sua atitude, o senhor me fez compreender que eu havia
passado os limites e que nunca me perdoaria essas palavras inconsideradas. O senhor
tinha razão sob o seu ponto de vista... Mas também eu estava magoada... Sim, é bem
verdade que não posso compreendê-lo,  acrescentou Marísia, meneando a cabeça.

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 Pois a senhora pode pensar que eu não a perdoara?


O conde se interrompeu, sobre esse protesto. Um clarão doloroso passou em seu
olhar que se desviou um pouco do belo rosto emocionado que estava ali, à sua frente.
 ... Oh! senhorita, como se enganou!...
Sua voz se tornara subitamente fria, mas continuava alterada.
 ... No primeiro momento eu me senti ofendido, confesso-o. Mas as suas palavras
concordavam muito bem com as minhas dúvidas secretas para que eu não reconhecesse
toda a verdade que elas traduziam e a alta razão que as ditava...
 Então, porque essa súbita mudança de atitude?...
Entretanto ela não podia duvidar da sua sinceridade, e sem hesitação, fez um sinal
afirmativo.
 Eis, pois, dessipada a nuvem. Quanto à minha pergunta de há pouco, sei que foi
inútil. Conheço bastante as suas idéias para saber que jamais aprovará um homem cheio
de vida, jovem, se ele ficar de braços cruzados, esperando a catástrofe inevitável que o
sepultará mais ou menos dignamente sob as ruínas de sua casa.
Que dor em seu acento e em sua fisionomia!
 Oh! conde de Lendau!  murmurou Marísia, comovida até o fundo de sua alma.
 É isso o que me espera,  disse ele com uma calma forçada.  O nosso domínio
foi coberto de hipothecas por meu pai. Hoje em dia vivemos do produto dos nossos velhos
móveis, vendidos um a um, aqueles, naturalmente, que não são necessários à nossa
farsa, porque os outros, suponho que a honra do nosso nome exigirá que morramos de
fome no meio deles. Não se poderá dizer assim que os condes de Lendau tinham falta de
pão!...
Um riso sarcástico saiu dos seus lábios crispados.
 Há momentos em que eu mesmo me desprezo por esta perpétua comédia! 
continuou ele acremente.  E me sentindo vigoroso, jovem e atraído por cativantes
estudos, que me dariam a independência moral e material, fico violentamente tentado a
quebrar as minhas cadeias e viver como os outros...
 E então? Dê ouvidos à essas tentações!  disse Marísia ardentemente. 
Esqueça as de suas tradições que o levam para o erro. O senhor pode levantar por um
trabalho, nobre entre todos, a sua casa arruinada; talvez, mesmo, que o senhor esteja
destinado a lhe dar uma glória maior, mais durável, que os seus ancestrais não lhe
puderam trazer... e o senhor ainda hesita!...

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 Ah! a senhora não calcula que preconceitos eu teria que destruir à minha volta...
e mesmo em mim! O espírito novo me mostra um trilho de labor, de devotamento... de
felicidade talvez... Mas ele é combatido pelo princípio aristocrático, pelo velho espírito dos
meus antepassados, esses Lendau tão imbuídos pela paixão do seu brazão intacto, ao
qual eles tem sacrificado os seres mais queridos, para conservar toda a sua integridade...
Tal é a luta que se trava em mim... e da qual, sem dúvida, dependerá a minha felicidade...
Dizendo estas palavras, Walther se voltou e foi até o ferido. Como este estivesse
gemendo, o jovem conde tentou introduzir algumas gotas de um calmante entre os seus
dentes cerrados.
 Minha única mão lhe poderá ser útil?  perguntou Marísia?
Ela sustentou a cabeça do homem enquanto Walther o fazia engolir o líquido.
Quando Marísia repousava a cabeça do ferido no travesseiro, percebeu pela abertura da
porta o barão de Holberg, o pai da linda Wilhelmina. Duas vezes ela tivera ocasião de o
encontrar no apartamento da cônega, muito contra a seu gosto, porque esse personagem
flexível, insinuante, lhe era particularmente antipático. Nesse momento o seu olhar tinha
uma expressão malévola que ofendeu a jovem.
Walther, que também se virava para a porta, viu o recém-chegado e perguntou
friamente:
 Que desejava, barão?
O interpelado adiantou-se, cumprimentando Marísia muito ligeiramente.
 Venho ver se poderá receber umas visitas, conde de Lendau. O senhor Duntz
falou diante do arquiduque de uma agressão da qual o senhor acaba de ser objeto e Sua
Alteza manifestou desejos de ver o que aconteceu a esse abominável assassino. Ao
mesmo tempo anuncio-lhe a chegada do doutor Berdech... Eis um acelerado que poderá
se vangloriar de ter sido magnificamente cuidado e visitado! O senhor é admirável, conde,
por haver tratado dessa criatura!... E presumo que ele jamais sonhou em ter uma tão
elegante enfermeira!
Ele designava, com o olhar, bem claramente, o vestido branco da senhorita
Lienkwicz. Entretanto, esse vestido era bem simples e a faceira Wilhelmina decerto o teria
afastado com desdém. Mas muito pouca coisa era suficiente para realçar a beleza, a
elegância natural de Marísia e esse encanto delicado que era o seu maior atrativo.
Alguma surpresa apareceu no semblante da jovem à essa observação do barão
que levava aos olhos de Walther um relâmpago de irritação.

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 Elegante? A palavra é exagerada,  disse Marísia sorrindo.  Este vestido é


simplesmente um pouco claro para a estação... mas eu não podia ficar com o outro, todo
manchado de sangue... aliás vou sair daqui, porque...
 É muito tarde, senhorita...  disse Walther.
Ele tinha avançado até o limiar da porta do aposento e se voltava, com um sorriso
meio malicioso.
 Sua Alteza Imperial já está aqui e não há outra saída. A senhora vai, assim, fazer
o conhecimento forçado do nosso excelente arquiduque, o melhor homem do mundo sem
lisonja de cortesão...
Ele entrou no aposento vizinho onde diversas pessoas acabavam de chegar e o
barão de Holberg seguiu-o. Marísia aproveitou então para se colocar num vão da janela,
esperando assim não ser percebida.
 E então! meu caro Lendau, parece que alguém tentou contra a sua vida?  disse
uma voz ligeiramente trêmula.  Quem é, pois, esse miserável?...
 Ignoro, Alteza, Em todo o caso, fiz-lhe muito mal também. Berdech vai examinar
isso.
 Enfim, o senhor não sofreu nada e isso é o principal...
Um velho alto, de fisionomia benévola, entrou, seguido pelo administrador, o
doutor Berdech, o barão de Holberg e o conde de Lendau. Este, com o olhar procurou
Marísia e logo a descobriu no vão da janela.
 De fato, Alteza, nada sofri, graças à coragem de que deu prova a senhorita
Lienkwicz.
Com um gesto, Walther designava a jovem, cuja tez se tornou cor de púrpura ao
se ver objeto da atenção geral.
 A senhorita Duntz, com efeito nos contou que sua amiga estava ferida,  disse o
arquiduque, cumprimentando com cortesia. Marísia deu uns passos e se inclinou
profundamente ante ele.  Mas não foi coisa grave, não é verdade?
 Agradeço a Sua Alteza... isto será efetivamente uma coisa sem a menor
importância.
 Já foi tratada, minha filha?  perguntou Conrado Duntz, tomando-lhe a mão.
 Sim, senhor, e muito bem, pelo conde de Lendau.
O doutor que já se inclinava sobre o ferido, voltou a cabeça.
 Ah! Ah! O senhor decididamente já está me fazendo concorrência, senhor conde!

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 disse ele com um risinho alegre.  Nada tenho do que me inquietar, o trabalho foi
perfeito... vejamos agora este pobre diabo...
O arquiduque e o barão de Holberg se aproximaram do leito. Conrado Duntz fez
Marísia recuar um pouco até a janela a fim de examinar bem a sua fisionomia.
 Ficou bem impressionada, minha pobre filha! Laura não lhe deu um cordial?
 Sim, sim, tudo o que me era preciso, senhor Duntz. Tenho os nervos um pouco
abalados, naturalmente, mas logo eles se acalmarão novamente.
 Eles são felizmente bem equilibrados,  observou Walther.  A senhorita Marísia
não é nada covarde ela o provou lançando-se generosamente na frente do golpe que me
era dirigido, e muitos homens poderiam lhe invejar a coragem, a firmeza de alma... Mas
tenho que me desculpar junto de si, senhor Duntz. Tomei a liberdade de trazer para aqui
esse homem a fim de evitar um grande trajeto que poderia lhe fazer mal.
 Mas isso é uma coisa simplíssima! Era esse o único partido a tomar. Nada tenho
que desculpar e assim também tive ocasião de receber sob o meu teto o conde de
Lendau, do qual meu filho fala tanto.
O tom era cortês, mas de uma frieza que Marísia julgou quase glacial.
 Sim seu filho e eu somos amigos,  replicou Walther sorrindo.  Ele já lhe disse,
senhor Duntz, o quanto eu desejava vê-lo acompanhar os seus filhos à Runsdorf?
 Isso é impossível, conde, impossível. Tenho numerosas ocupações...
 Ora, uma vez de tempos em tempos, não poderia ser? Outrora as relações entre
Runsdorf e Nunsthel eram frequentes e nós não podemos esquecer a dívida que a nossa
família contraiu consigo...
Um estalido interrompeu-o. Conrado Duntz acabava de apoiar a mão sobre uma
pequena mesa que se partiu.
 E então? Que é isso?  perguntou o arquiduque, virando-se para ele.
O administrador respondeu calmamente:
 Esta mesa decerto estava rachada pelo lado de baixo; foi bastante tocá-la um
pouco bruscamente para se partir de uma vez.
Mal terminou a frase, empurrou os destroços para um ângulo do quarto, e Marísia
viu que uma profunda ruga franzia sua testa.
 Temos apenas uma pequena fratura do crânio,  disse o doutor Berdech que
continuava o seu exame.  Com cuidados, porém, salvaremos este interessante
personagem, contanto que nada, em seu estado geral, nos venha atrapalhar. Digo

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salvaremos, porque julgo, senhor conde, que o senhor me ajudará a levar a bom termo
esta cura.
 Estou inteiramente ao seu dispor, meu bom Berdech.
 Ah! meu caro conde, só lhe resta adquirir os necessários diplomas!  disse
sorrindo o arquiduque.  Mas decerto nem pensa nisso, não é?
 Não, Alteza, as tradições de minha família se opõem...
 Como isso é admirável!  disse a voz um pouco lenta e melíflua do barão de
Holberg.  Que estima devemos ter por esses corajosos que conservam intactas as
tradições dos seus ancestrais, a nobreza pura de sua linhagem... que dizem altivamente
para as idéias novas: "Nunca as utilizarei!" Sim, honro esses homens de coração, esses
baluartes das grandes idéias, em via de desaparecer...
Walther lançou-lhe um olhar de glacial ironia, emquanto o arquiduque dizia, com
um pequeno sinal ao seu conselheiro:
 Sim, o senhor não saberia elogiar o conde de Lendau, o quanto ele merece, meu
caro barão, porque ele é um grande exemplo...
Um lamento do ferido o interrompeu. Vendo que a atenção geral se fixava nele,
Marísia aproveitou esse momento para fugir dali. Apressadamente tomou por uma porta
de serviço, a fim de não atravessar o pátio onde vira um grupo de amazonas e cavaleiros
e logo se achou sobre o caminho da floresta.
Como o seu coração ia agitado pelas recentes comoções!...
Em seu cérebro tumultuavam mil pensamentos. "O que resolveria o conde? Essa
alma tão bem dotada continuaria a se submeter a tão absurdas tradições de família?..."
"Marísia" nos dirá...

Fim

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