Você está na página 1de 4

OS BUFÕES

O MISTÉRIO, O GROTESCO E O FANTÁSTICO

(Do livro “O Corpo Poético” de Jacques Lecoq)

Respondendo à minha interrogação sobre o comportamento "daqueles que não


acreditam em nada e zombam de tudo", os bufões seguiram, ao passar dos anos, uma
grande evolução. A maneira de abordá-los se diversificou e deu acesso a um território muito
vasto que se fez necessário descobrir.
A primeira etapa do bufão é a da paródia. Ela consiste em zombar simplesmente do
outro, imitando-o. Quando alguém anda na rua, basta que se imite seu andar para que
apareça a troça e a paródia. O mesmo vale para a voz e o comportamento. A imitação
constitui um primeiro nível, bem gentil, do escárnio bufonesco.
A segunda etapa consiste em zombar não somente do que o outro faz, mas,
sobretudo de suas convicções mais profundas. Por exemplo, num exercício, um ator faz um
discurso, uma exposição científica ou matemática e ao mesmo tempo outro é encarregado
de fazer o público rir imitando o orador. Assim, eu observei que quando uma pessoa com
roupas "civis" zombava de outra vestida da mesma maneira, isso se tornava insuportável.
Este encaminhamento atingiu muito rapidamente uma forma de maldade ou perversidade
difícil de assumir e me pareceu indispensável que aquele que zomba não fosse idêntico
àquele de quem se zomba. Ele deveria ser outro.
Foi então que comecei a procurar outro corpo, um corpo de bufão, inchado, grande
(do francês "bouffi" - inchado que vem de "bouffon" - bufão). Então eu pedi aos alunos que
se transformassem acrescentando barrigas, nádegas, seios, enfim. A partir disto surgiram
formas muito interessantes. Por causa desta transformação corporal, neste corpo
reinventado e artificial, os atores se sentiam de repente mais livres. Eles ousavam fazer
coisas que não teriam jamais realizado com seus próprios corpos. Neste sentido o corpo
inteiro se tornava uma máscara.
Diante destes corpos bufonescos, os personagens parodiados aceitavam mais
facilmente que um "louco" zombasse deles. Não havia nenhum conflito entre o bufão e
aquele de quem ele zombava. Nós reencontramos aqui o tradicional "bobo da corte" ou "fou
du roi" (louco do rei, ao pé da letra); longe de ser verdadeiramente um louco, ele pode
exprimir todas as verdades. Em um corpo de bufão, aquele que zomba pode tomar a palavra
e dizer coisas inauditas, até zombar do "inzombável": da guerra, da fome no mundo, de
Deus. Os bufões nos fizeram conhecer a AIDS antes que o mundo tivesse a consciência
dela. Eles puderam brincar com a procissão da "morte do amor" e, na transposição
bufonesca, nos fazer aceitar o inaceitável.
Eu observei que aqueles que zombavam assim de tudo, inclusive dos valores mais
fortes, abriam um espaço para o mistério das coisas. Eles atingiam o grande território da
tragédia. Sua zombaria se tornava trágica, um pouco como a violência da escrita Steven
Berkoff atinge a beleza. Esse fenômeno foi para mim uma grande descoberta.
Então eu me perguntei de onde vinham esses bufões. Eles não podiam chegar de um
espaço realista, da rua, do metrô. Eles chegavam, portanto de outro lugar: do mistério, da
noite, do céu e da terra. Sua função não consistia em zombar de um indivíduo em particular,
mas, mais globalmente, de todos nós, da sociedade em geral. Os bufões se divertem, pois
eles se divertem o tempo todo, em imitar a vida dos homens. Fazer guerra, se bater, se
estripar, os diverte.
Entretanto eles não brincam de guerra na cronologia lógica de uma história que se
desenrola. Eles têm uma escrita particular: aquele que mata o outro se diverte tanto que
pede para recomeçar. É então que eles se matam mutuamente, repetidamente, apenas pelo
prazer. Pelo jogo.
Apareceram então os atalhos, as elipses específicas do jogo dos bufões: aquele que
foi ferido é rapidamente curado, levado ao hospital. Para que o hospital funcione são
necessários alguns mortos. Para que haja mortos é necessário matar. Para se matar é
necessário fazer uma guerra... Esse tipo de situação coloca em evidência o caráter absurdo
da vida dos homens. Os bufões falam essencialmente da dimensão social das relações
humanas, para denunciar seu absurdo. Eles falam igualmente do poder, da hierarquia e da
inversão de valores.
Todo bufão tem alguém acima e alguém abaixo de si. Ele admira um e é admirado
por outro. Somente aquele que está mais embaixo da hierarquia não é admirado por
ninguém. É aquele que vai pichar "abaixo os militares" nas paredes dos banheiros, seu
único e insignificante meio de expressão.
Aquele que detém o poder, o príncipe, o diretor, o rei, o presidente, decide quando
quiser, e por simples capricho, que a guerra já durou o suficiente aqui e que agora se deve
fazer ali. E todos o seguem! Na verdade os bufões funcionam sobre a inversão de poderes:
o mais débil dirige.
A partir dos bufões solitários, nos perguntamos como eles poderiam se agrupar, para
descobrir que vivem em bandos. Um bando de bufões, no ideal, é constituído por um grupo
de cinco pessoas, no qual pode existir uma verdadeira conivência. Em um número maior do
que esse, já é o coro que aparece. Um bando de bufões é dirigido por um chefe. Todo o
bando está lá para ajudá-lo a expressar o que ele disser.
Nos bandos nós descobrimos também um personagem inocente que pode circular no
meio dos outros sem nunca atrapalhar a ordem das coisas. Figura estranha. Um erro
necessário.
No decorrer do tempo os bufões fizeram emergir algumas grandes famílias. Tem a
do mistério, a do poder e a da ciência. Essas três famílias conduziram a determinar hoje três
territórios diferenciados, quase autônomos: o mistério, o grotesco e o fantástico.
O mistério ronda o lado da crença, quase religiosa. Os bufões do mistério são
adivinhos. Eles sabem do fim do mundo e podem anunciá-lo. Eles conhecem o mistério de
antes do nascimento e depois da morte. São profetas.

Os bufões do mistério chegam da noite em procissão, dançam ao som de


percussões, aquecem assim, o espaço. Eles trazem com eles a Palavra adormecida. Os
pequenos diabos acordam seu profeta que, como iluminado, se prepara para descrever o
fim do mundo. Os bufões então mimam imagens do apocalipse e se divertem parodiando.
Depois de ter visto o futuro a Palavra se desfaz. Ela é levada para a noite ao som dos
tambores. Nesta ocasião, grandes textos do mistério e de sua beleza são ditos pelos bufões
do diabo.

Eles falam como Jó que interroga o céu, como Dante na Divina Comédia. Os bufões
ingleses habitam ao lado de Shakespeare. Nós fizemos os bufões dizerem grandes textos
dos maiores poetas. Quem melhor que um bufão pode dizer um texto de Antonin Artaud?
Paradoxalmente ele será mais bem compreendido sob esta forma do que de qualquer outra
forma dita poética. Os maiores loucos são os poetas!
Os grotescos estão próximos da caricatura. Eles se aproximam dos personagens da
nossa vida cotidiana, como alguns desenhos humorísticos podem representar. Eles não
colocam em causa os sentimentos ou a psicologia, mas sempre a função social. No
repertório teatral, um personagem como Ubu de Jarry pertence a esse mundo.
Os fantásticos se apóiam notadamente na eletrônica, no científico, mas também na
imaginação mais desenfreada. Nós vimos personagens de várias cabeças, homens-animais,
bufões com a cabeça na barriga. Todas as loucuras são aqui possíveis: elas constituem a
liberdade do ator e sua beleza.
O tema bufão cobre hoje um território extremamente vasto do qual não se pode
limitar os contornos de forma definitiva.
Um mesmo bufão não pode pertencer ao mesmo tempo aos três registros, mas
algumas misturas são possíveis nos bandos.
Em seus rituais os bufões não invocam o céu, eles cospem nele. Chamam as forças
da terra. Eles estão do lado do diabo. Saindo da terra, eles tomam a forma humana.
Inventam ritos que pertencem a eles próprios, totalmente incompreensíveis para os profanos
que nós somos. Eles executam estranhas procissões, cerimônias particulares, desfiles com
tambores. Um bando de bufões pode bater o pé, dançar, cantar, proferir elucubrações,
sempre de maneira ritual, muito organizada. Nesse caso nem os atores sabem o que fazem,
mas fazem. Esses ritos não dão lugar a nenhum conflito, pois não existe rivalidade entre os
bufões. Nunca um entre eles ficará com raiva do outro. Eles se situam numa hierarquia
muito organizada e aceita por todos. Tem aqueles que batem e aqueles que apanham. E está
tudo bem assim. Os que devem apanhar pedem mais, eles amam isso. Cada um ocupa um
lugar aceito na sociedade dos bufões, que é para eles a sociedade ideal. A bem entender,
essa sociedade é a nossa.
Os bufões vêm sempre diante do público para representar a sociedade. A partir
disso, todos os temas são possíveis: a guerra, a televisão, o conselho dos ministros e todos
os fatos da atualidade, fonte de inspiração e de jogo inesgotável. Às vezes eles de disfarçam
de personagens da nossa sociedade: colocam um quepe, um hábito religioso e começam a
brincar com esses personagens. Mas eles o fazem à sua maneira, voltando sempre ao bufão
de origem que se diverte às custas do personagem que ele representa. Se eles resolvem
representar o sindicalismo, eles não entrarão nunca na psicologia de tal ou tal personagem
conhecido, eles brincarão de militante. Farão uma passeata, os mesmos passando
alternativamente para o lado dos manifestantes depois dos policiais, só pelo prazer.
O trabalho dos bufões depende de um espírito de jogo adaptável a diferentes
situações. Tudo aqui está na maneira de fazer, na escrita proposta, no nível do jogo. Os
atores escrevem seus textos numa outra lógica. Se eles abordam uma situação, os bufões
vão deformá-la, torcê-la, colocá-la em jogo de uma maneira não habitual. Sobre um texto,
eles poderão repetir dez vezes a mesma palavra, voltar para trás, apenas pelo prazer. Eles
"bufonerão" a situação. Estamos no puro reinado da loucura organizada.
Na conclusão desta exploração, algumas questões ficam, ainda hoje, suspensas: Os
bufões podem ser suficientes? Eles podem sozinhos, constituir um espetáculo? Ou eles
estão paralelos à tragédia? Podem eles intervir na tragédia, ou inversamente, até que ponto
a tragédia pode interferir no território dos bufões?
Traduzido por Luciana Viacava sem intenções lingüísticas para fins meramente
pedagógicos e elucidativos.
Agosto de 2001.

Você também pode gostar