Você está na página 1de 14

484

Educação para a Morte

Education for death

Maria
Julia Kovács

Universidade
de São Paulo
Experiência

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


485
PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497
12345
12345
12345
12345
12345
12345
Resumo: A morte faz parte do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade e acompanha
12345
12345
12345
o ser humano no seu ciclo vital, deixando suas12345
marcas.
12345
12345
Como preparar pessoas para esse fato tão
12345
presente na existência? Esse desafio é ainda mais urgente para os profissionais de saúde e educação.
12345
12345
12345
Perguntas têm assoberbado a humanidade, e12345 respostas
12345
12345 foram trazidas pelas religiões, ciências,
12345
12345
artes, filosofias, entretanto, nenhuma delas é completa
12345
12345
e universal. É sobre esses questionamentos
12345
e reflexões, sobre a busca de sentido à vida que a
12345
12345 morte pode oferecer, sobre essa característica
12345
12345
ou qualidade humana de questionamentos, 12345 de autoconhecimento, que pretendemos falar. A
12345
12345
educação é entendida como desenvolvimento 12345
pessoal, aperfeiçoamento e cultivo do ser, que
12345
12345
12345
também pressupõe uma preparação para a morte, 12345 envolvendo comunicação, relacionamentos,
12345
12345
12345
perdas, situações-limite, como, por exemplo: fases do desenvolvimento, perda de pessoas
12345
12345
12345
significativas, doenças, acidentes, até o confronto
12345 com a própria morte. Serão discutidas várias
12345
12345
12345
propostas de educação para a morte tanto para o público leigo quanto para os profissionais.
12345
12345
12345
Palavras-chave: morte, educação, profissionais 12345
de saúde e educação, luto.
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
Abstract:Death is part of the human development 12345 since the first years of life and goes along with
12345
12345
12345 its marks. How could we prepare people to
the human being throughout the existence, leaving12345
12345
12345
this subject so important in life? This is a challenge
12345 even more urgent to health and education
12345
12345
12345
professionals. Many questions overwhelm Humanity 12345 and answers are given by religions, sciences,
12345
12345
arts and phylosophy, but none is universal. We12345
shall consider these questions and reflections, the
12345
12345
12345
search for meaning, about life that the questions12345
12345 death promote. Education here is understood
about
12345
12345
as personal development, self improvement, and 12345involves communication, relationships, losses,
12345
12345
12345
limit situations such as: development phases, loss of close people, diseases, accidents and
12345
12345
12345
confronting own death. Several death education formats will be discussed including layman and
12345
12345
12345
12345
health and professionals’ education. 12345
12345
12345
12345
Key words: death, education, health and education12345 professionals, bereavement.
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
Educação para a morte 12345
12345
12345
12345
12345
sugestões de linhas de ações para o psicólogo 12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
12345
A morte faz parte do desenvolvimento presente na existência? Esse desafio se torna
humano desde a sua mais tenra idade e ainda mais urgente para os profissionais de
acompanha o ser humano no seu ciclo vital, saúde e educação.
deixando suas marcas. Questões são
constantemente formuladas: “De onde viemos Considerando nossa existência terrena, quanto
e para onde vamos?” “Será a morte o final da tempo viveremos e como será nossa vida?
existência, ou somente transição, o final do Teremos controle e poder sobre o nosso
corpo físico, a libertação da alma? Haverá existir? Teremos o direito de saber sobre a nossa
outras vidas? Será a alma imortal? O espírito morte, como e quando será? Podemos nos
se mantém tal como o conhecemos? Será a preparar para esse momento? Estamos
nossa existência um caminhar para a evolução rodeados por um tecido cultural que
de cada ser? Chegaremos à perfeição divina? determina, até certo ponto, como viveremos
Como preparar pessoas para esse fato tão e como morreremos. Qual é o grau de
486
Educação para a Morte

liberdade, de ação, dentro desse tecido ou o desenvolvimento interior que se propõe


rede de valores, significados e representações? durante o existir, desenvolvimento que
As perguntas continuam: por que pessoas também pressupõe uma preparação para a
jovens e saudáveis morrem rapidamente e morte. Freqüentamos escolas por mais de vinte
pessoas idosas não o fazem? Por que pessoas anos de nossa existência e assim nos
adormecem e morrem no silêncio do sono, e preparamos para a vida social; da mesma
outras lutam e se debatem até o último forma, deveríamos também nos preparar, pelos
momento, com dores e sofrimentos atrozes? mesmos “vinte anos”, para o fim de nossa
Por que pessoas se escondem da morte, não existência. Esse desenvolvimento não precisa
querem nem ouvir falar sobre o assunto? E ser realizado no topo de uma montanha, como
por que outras riem, fazem piada sobre temas ermitãos, ou dentro de casa isolados, e, sim,
escatológicos? Por que tantos filmes sobre a no seio da sociedade da qual somos membros
morte, nos títulos ou na sua temática? Por que integrantes. Essa educação envolve
a morte exerce tanto fascínio sobre algumas comunicação, relacionamentos, perdas,
pessoas, a ponto de seduzi-las? Por que é musa situações-limite, nas quais reviravoltas podem
inspiradora de tantos: músicos, poetas, ocorrer durante a vida, como, por exemplo,
escritores, profissionais de saúde e educação? fases do desenvolvimento, perda de pessoas
Tantas perguntas têm assoberbado a significativas, doenças, acidentes, até o
humanidade durante os tempos. Respostas confronto com a própria morte.
foram trazidas pelas religiões, ciências, artes,
filosofias, entretanto, nenhuma delas é O tema da morte se tornou interdito no século
completa e universal. São incompletas, embora XX (Ariés, 1977), sendo banido da comunicação
possam ser, para algumas pessoas, num dado entre as pessoas. Paradoxalmente, nesse mesmo
tempo, o que buscam, oferecendo, mesmo século, a morte esteve e continua estando, no
que provisoriamente, um sentimento de início do século XXI, cada vez mais próxima
totalidade. das pessoas, em função, principalmente, do
desenvolvimento das telecomunicações. A TV
É sobre esses questionamentos e reflexões introduz diariamente, em milhões de lares,
que pretendemos falar, sobre a busca de cenas de morte, de violência, de acidentes, de
sentido à vida que a morte pode oferecer. É doenças, sem a mínima possibilidade de
essa característica ou qualidade humana de elaboração, dado o ritmo propositalmente
questionamentos, de auto-conhecimento, de acelerado desse veículo. Então, ao mesmo
busca de sentido que procuraremos abordar, tempo em que é interdita, a morte torna-se
bem como a educação, entendida como companheira cotidiana, invasiva e sem limites,
desenvolvimento pessoal, aperfeiçoamento e e, embora essas mortes estejam tão próximas
cultivo do ser, e não como padrões de (real ou simbolicamente), reina uma conspiração
informação, receitas prontas ou doutrinação. do silêncio. Crianças e adolescentes convivem
Não temos uma resposta simples, única, total, com essas imagens diariamente, ao mesmo
dogmática e padronizada, e, sim, a tempo em que se tenta “poupá-los” para não
possibilidade de busca inerente ao ser os entristecer.
humano, que, mesmo esmagado por uma
sociedade desumana e massificadora, pode Por outro lado, o surgimento e o aumento dos
florescer e desenvolver-se (Kovács, 2003). casos de AIDS e de câncer em crianças e
Educação para a morte é um estudo sobre a adolescentes faz com que vivenciem o estar
possibilidade do desenvolvimento pessoal de doentes, hospitalizados por longos períodos,
uma maneira mais integral, no sentido privados de brincadeiras, dos amigos, das
entendido por Jung (1960) como individuação, atividades escolares, das relações amorosas,

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


487
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

da formação da identidade, ao mesmo tempo Por outro lado, as estatísticas da Organização


em que convivem com a perspectiva da morte. Mundial de Saúde indicam um aumento
O desenvolvimento da tecnologia médica, os significativo no número de pessoas idosas em
diagnósticos e tratamentos cada vez mais todo o mundo. Entretanto, esse prolongamento
sofisticados trouxeram o prolongamento da da vida nem sempre é acompanhado por uma
vida, embora nem sempre tenhamos garantia preocupação equivalente com a qualidade da
da qualidade desta, principalmente no caso mesma. Do ponto de vista social, muitos
dos idosos. idosos têm que trabalhar mesmo depois de
aposentados. Muitos amargam graves
Embora essas mortes estejam tão próximas, dificuldades financeiras depois de trabalhar
ocorre grave distúrbio na comunicação que praticamente durante toda a vida, tanto pelo
denominamos conspiração de silêncio; valor aviltante da aposentadoria quanto pela
observam-se pais que não sabem se devem impossibilidade de exercerem atividades
falar ou não sobre a morte de um parente remuneradas, por questões de saúde, isso
próximo, professores que se vêem às voltas porque a velhice é também o período em que
com perguntas insistentes sobre mortes de ocorre a incidência de muitas enfermidades,
ídolos, de pequenos companheiros, de amigos, algumas longas e degenerativas, assim como O avanço da
e profissionais de saúde que se empenham surgem limitações decorrentes de perdas nas idade traz
numa luta de vida e morte contra as doenças, também a
esferas física, psicológica e social.
vivência de várias
e que, muitas vezes, vêem seus empenhos perdas não ligadas
frustrados, e não sabem o que e como falar Com o avanço da tecnologia médica, muitas necessariamente a
com seus jovens pacientes e familiares sobre doenças puderam ser eliminadas; outras, que já doenças e suas
conseqüências.
o porquê da não melhora e sobre a possível foram fulminantes, hoje não mais o são, Assim, além das
morte. Há idosos que perdem cônjuges com ocorrendo uma cronificação das mesmas e um perdas vividas na
os quais compartilharam uma vida toda e que infância e
conseqüente prolongamento da vida. Entretanto, adolescência, o
sentem que a vida acaba por ocasião da morte, mesmo com a sofisticação dos tratamentos, idoso passa a
ou que sofrem de longas doenças freqüentemente são acompanhados de intenso perder pessoas de
degenerativas que causam grandes dores, sua faixa de idade,
sofrimento. Vários idosos reclamam de muitas já que a morte
limitações e sofrimento e das quais não têm
dores, mas, com a naturalização desse processo, está relacionada
com quem falar. Essas são questões cotidianas. com a velhice.
diz-se que é normal que adoeçam e tenham
O desenvolvimento da tecnologia médica e
dores, aumentando ainda mais os sofrimentos!
dos diagnósticos e tratamentos cada vez mais
sofisticados trouxe o prolongamento da vida,
O avanço da idade traz também a vivência de
embora nem sempre tenhamos garantia da
várias perdas não ligadas necessariamente a
qualidade desta, principalmente no caso dos
doenças e suas conseqüências. Assim, além
idosos. A importância de enfocar o tema da
morte está ligada ao fato de que, ao falar desta, das perdas vividas na infância e adolescência,
estamos falando de vida e, ao falar de vida, a o idoso passa a perder pessoas de sua faixa de
qualidade da mesma acaba sendo revista. Esta idade, já que a morte está relacionada com a
vem decaindo, em parte, pelo lugar ao qual a velhice. São perdas muito dolorosas, como,
morte foi relegada no século XX: do interdito, por exemplo, um cônjuge, com o qual se viveu
do vergonhoso, do oculto – uma inimiga a ser toda a vida, e cuja morte pode significar o
vencida a qualquer custo. Quanto mais se arrancar de um grande pedaço; uma vida que
nega a morte, mais esta parece fazer-se foi construída a dois, agora, precisa ser
presente através da violência urbana, do continuada só. Além do cônjuge, outras figuras
crescimento do número de pessoas portadoras de referência, como os amigos, também se
do HIV, do suicídio, das guerras. vão, ficando presente a idéia de “que o último
488
Educação para a Morte

a ficar terá que apagar a luz”, o temor de que anônimas, por um lado, distantes
não sobre mais nenhum dos amigos. Temos, geograficamente, e, por outro, próximas
também, observado um fenômeno ainda mais quando da possibilidade de uma certa
grave e que se torna cada vez mais comum: identificação, pela idade, aparência, profissão,
pais idosos perdendo filhos na fase adulta, trazendo a impressão de ser gente como a
criando-se, então, um duplo problema: lidar gente.
com a perda extremamente dolorosa do filho
e também do próprio cuidador, uma vez que Apresentamos, a seguir, propostas para a
a este cabe acompanhar de perto o ampliação dos espaços de reflexão sobre o
envelhecimento dos pais e deles cuidar. tema da morte, em locais e instituições, que
ainda necessitam de maior desenvolvimento.
Todavia, como em todas as outras fases de
desenvolvimento, na velhice existem também
A discussão do tema da morte
aspectos positivos, que precisam ser
nas escolas
destacados, se não existentes as dificuldades
O tema da morte não está presente nas
econômicas apontadas, ou seja, a
escolas, usando-se como argumento a falta de
aposentadoria pode ser vista como uma
preparo dos professores. Propomos, então,
oportunidade de realização de atividades que
uma parceria entre as escolas e o Instituto de
não puderam ser realizadas antes, por falta
Psicologia, na figura do Laboratório de Estudos
de tempo. Nesse sentido, o envelhecimento
sobre a Morte, com as seguintes atividades:
tem sido comparado à adolescência, pela
possibilidade de experimentar coisas novas,
Oferecer a disciplina Psicologia da Morte
como uma nova “moratória”, podendo ser (disciplina optativa oferecida, desde 1986, no
descobertas novas habilidades e talentos, um Instituto de Psicologia da USP) especialmente
tempo a ser dedicado a estudos, lazer, para os professores, ou convidá-los a
viagens. Essa disposição para viver a vida pode freqüentarem a disciplina regularmente
explicar o sucesso dos programas de terceira oferecida no Instituto;
idade.
Propor espaços de treinamento em serviço na
A velhice pode ser um tempo de balanço, de própria escola, com módulos específicos,
significação e ressignificação da vida, e também como, por exemplo: como falar com uma
um tempo de se preparar para seu fim e para criança que sofreu a perda de pessoas
a morte – mas o que se vê é que esta última significativas; como integrar uma criança
continua um tema tabu, sobre o qual não se gravemente enferma nas atividades didáticas
deve falar porque poderá provocar sofrimento e de recreação; como lidar com o suicídio de
e, principalmente, constrangimento. pessoa conhecida na escola;

A partir do que foi exposto, propomos a Oferecer assessoria contínua nos


ampliação do escopo da educação para a seguintes tópicos:
morte, fundamentada pela importância da
discussão do tema numa sociedade na qual ● Preparar atividades pedagógicas sobre o
convivem a morte interdita, a busca da tema da morte;
rehumanização da morte e a morte
escancarada no cotidiano das pessoas. Em ● Lidar com crianças e adolescentes que
tempos atuais, os acontecimentos trazem possam estar passando por situações de perda
milhares de imagens sobre a morte de pessoas e luto;

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


489
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

● Propor bibliografia para subsidiar a formação Em 1999, iniciamos um trabalho no Hospital


dos professores nesse assunto específico; Universitário da USP denominado “Cuidado
ao cuidador no contexto hospitalar”, com os
● Apresentar, discutir e preparar os seguintes objetivos:
professores para o uso de filmes e vídeos sobre
o tema da morte. ● Identificar as necessidades das equipes de
enfermagem das UTIs, clínica médica e
Espaços para discussão sobre a emergência do referido hospital;
morte para público leigo
● Promover intervenções, considerando as

Como a morte ainda é um tema interdito e necessidades detectadas;


como há poucos fóruns de discussão sobre o
● Avaliar a influência dessas intervenções na
assunto, a não ser em ocasiões específicas, é
qualidade de vida do trabalhador de
importante oferecer cursos ou vivências para
enfermagem nessas unidades.
o público leigo interessado no assunto. A
abertura do curso Psicologia da Morte para a
Propomos atividades que favoreçam:
terceira idade e a procura pelas vagas indica o
interesse pelo tema daqueles que não são
● Aquecimento e sensibilização para o tema
profissionais de saúde. São oferecidos cursos
principal apontado pela equipe e as suas
de curta duração, palestras ou workshops.
dificuldades principais;
Essas atividades propõem o desenvolvimento
dos conhecimentos sobre a morte,
● Aprofundamento do tema trazido pelo
favorecendo reflexões sobre conceitos, teorias.
grupo;
São oferecidas vivências, abrindo-se o contato
com os próprios sentimentos, com o mundo
● Planejamento da ação de cuidados ao
interno e a discussão sobre a morte no
cuidador pensada pela própria equipe de
cotidiano. Esses espaços podem ser abertos trabalho, tendo em vista as suas necessidades.
em postos de saúde, bibliotecas, escolas, A metodologia utilizada durante as diversas
universidades, igrejas ou quaisquer outros fases do trabalho envolveu atividades em
freqüentados por pessoas interessadas em grupo, como momentos de trabalho individual
debater o tema. que envolviam relatos verbais, atividades
expressivas e role playing.
Discussão sobre perdas e mortes
em hospitais Vemos a necessidade de expandir esses
espaços, propondo aos superintendentes e
Na mentalidade da morte interdita, esta é vista diretores de hospitais a implantação desses
como erro e fracasso. Há uma aura de silêncio trabalhos, com o envolvimento dos vários
que rodeia o termo entre os profissionais, o membros da equipe de saúde para vivência,
que pode ser extremamente penoso. Por outro reflexão e elaboração do tema da morte e das
perdas nas suas várias facetas, entre as quais:
lado, o prolongamento da vida e do tempo da
doença faz com que haja maior tempo de
● Como comunicar ao paciente e familiares
convívio entre pacientes gravemente
o agravamento da doença;
enfermos, familiares e equipe de cuidados,
principalmente da enfermagem, com um ● Como lidar com pacientes que estejam
aumento da carga de estresse e com risco de apresentando forte expressão emocional:
colapso. medo, raiva, tristeza;
490
Educação para a Morte

● Como desenvolver o tratamento de base para esses encontros sobre bioética. Além
pacientes sem possibilidade de cura, dos hospitais, fóruns de discussão de bioética
aprofundando a questão da diferença entre podem ser propostos nas universidades, escolas
curar e cuidar; e demais instituições de saúde e educação.

● Como cuidar de sintomas incapacitantes, Projeto Falando de Morte


que causam muito sofrimento e dor;
1
O Projeto Falando de Morte foi planejado
● Como abordar a família quando da contemplando-se quatro vídeos educativos
aproximação da morte, como acolher os fortes como instrumentos facilitadores da
sentimentos presentes nessas situações; comunicação em relação ao tema da morte.
Como não eram conhecidos vídeos brasileiros
● Como lidar com a expressão do desejo de que abordassem o tema da morte, resolvemos
morrer por parte do paciente, ou da família, iniciar o projeto de sua construção sem a
que não suporta ver tanto sofrimento. proposição de receitas. Ao contrário,
pretendeu-se criar um espaço para facilitação
Grupos multidisciplinares para da comunicação entre crianças, adolescentes,
discussão de temas de bioética adultos e idosos, famílias e profissionais de
saúde e educação diante de um tema tão
no contexto hospitalar
complexo. Esses vídeos têm um caráter
preventivo, já que abordam uma questão tão
A discussão dos temas relacionados à morte e
pouco falada, proporcionando, através de
ao morrer dentro dos hospitais é de fundamental
cenas, contato com experiências que já podem
importância. Entre os principais temas que
ter sido vividas e, às vezes, não elaboradas,
merecem debate, estão: morrer com dignidade,
possibilitando razão para sintomas quer no
pedidos para morrer, testamentos em vida, não
campo afetivo, quer no cognitivo, e que
implantação ou não manutenção de tratamentos
podem não estar sendo compreendidos. Têm
com objetivo de prolongamento de vida,
também um caráter educativo, já que propõem
eutanásia, distanásia, suicídio assistido, sedação,
informação e orientação para pessoas nas
uso de analgesia. A maioria dos hospitais tem
diversas fases do desenvolvimento. Oferecem
os seus comitês de ética, favorecendo a criação
também subsídios para profissionais,
de espaços de discussão, enfatizando sua
fundamentando seu trabalho com pacientes
característica multidisciplinar, estimulando o que estão vivendo experiências de morte.
questionamento, a ampliação da discussão, o
olhar sob vários ângulos, desencorajando Diversas obras já abordaram esse tema,
respostas rápidas e simplistas, respeitando-se os incluindo traduções e obras de autores
princípios da bioética, observando-se várias visões nacionais. Existem também livros para crianças,
sobre um mesmo tema, aceitando-se as adolescentes e adultos que trazem o tema da
diferenças, hierarquia dos conflitos, buscando- morte com diversos enfoques. Com os livros,
se a definição dos termos e a clarificação da vídeos podem ser formas de comunicação
situação sob discussão. Os locais por excelência importantes para as pessoas em várias fases
para esse tipo de discussão são os hospitais, já do desenvolvimento, já que assistir à TV e ir
que é o cenário principal de mortes, por vezes ao cinema são atividades muito apreciadas. Os
1
Equipe do Projeto
Falando de Morte: Maria com muito sofrimento e dor, e profissionais que sistemas de comunicação, que usam os canais
Julia Kovács, Ingrid
se sentem perdidos sobre como lidar com o visual e auditivo, abordam, além da esfera
Esslinger, Nancy
Vaiciunas, Jussara fim da vida e a aproximação da morte. A cognitiva, a emocional, incluindo conteúdos
Marques e Maria Helena
Pereira Franco Bromberg. supervisão de casos difíceis pode servir como informativos e de sensibilização pessoal.

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


491
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

O projeto Falando de Morte compõe-se de pela onipotência típica do pensamento infantil,


quatro vídeos: pode gerar várias dificuldades, principalmente
pela percepção inevitável de que a morte é
Falando de morte: a criança (1997); Falando irreversível. Freqüentemente surge o desejo
a
de morte: o adolescente” (1 versão em 1999, de acompanhar a pessoa morta.
a
2 versão – 2003); Falando de morte com o
idoso (2002); Falando de morte com No que se refere à morte de si mesmo
profissionais de saúde (2004). (principalmente nos casos em que a criança é
obrigada a conviver, por longos períodos, com
Tem como objetivos principais: a doença), nosso objetivo é fazer com que a
criança possa atribuir à doença um significado
● A construção de vídeos com roteiros de e perceber que determinados sentimentos
texto e imagens que facilitem a sensibilização estão presentes. Há o medo natural da morte,
e a comunicação sobre o tema da morte; mas, com este, há o medo dos procedimentos Pelo fato de os
hospitalares, muitas vezes, altamente invasivos sistemas familiar,
● Investigar se os vídeos construídos são, de ou mesmo dolorosos, medo da separação dos
hospitalar e social
mais amplo (aí
fato, instrumentos facilitadores para a discussão entes e coisas queridas e, nessa medida, tem incluindo a escola)
do tema da morte no domicílio, escolas, o objetivo de situar as crianças quanto aos serem de extrema
hospitais e demais instituições de saúde e principais processos ou etapas dentro de uma
importância para
a criança, dois
educação. instituição hospitalar. O sistema familiar, nesse outros blocos
momento todo ele em desequilíbrio, é de discutirão as
Falando de morte: a criança extrema importância para a criança - quais
mesmas questões,
agora voltadas
podem ser os sentimentos de pais e de irmãos para: quais são as
O primeiro vídeo da série “Falando de morte” dificuldades dos
ao verem a criança doente? Tentaremos
foi elaborado para crianças, suas famílias e pais e dos
também uma aproximação a essa questão.
profissionais, tendo como princípio os pontos profissionais que
lidam com a
acima colocados. A bula que acompanha o Pelo fato de os sistemas familiar, hospitalar e criança
vídeo apresenta as suas principais social mais amplo (aí incluindo a escola) serem gravemente
características. Enfoca dois aspectos da morte enferma?
de extrema importância para a criança, dois
(a morte do outro/luto e a morte de si mesmo), outros blocos discutirão as mesmas questões,
procurando familiarizar as crianças com os agora voltadas para: quais são as dificuldades
sentimentos, dúvidas e angústias decorrentes dos pais e dos profissionais que lidam com a
dessas situações, mostrando que há saídas e criança gravemente enferma? E como esses
que essas experiências podem ser pais e profissionais podem ajudar a criança e
compartilhadas e, em conseqüência, serem ajudados?
elaboradas.
O vídeo, que tem a duração de 50 minutos,
No que se refere à morte do outro, compõe-se das seguintes partes:
procuramos mostrar que esta pode ocorrer e Bloco I: a perda do outro - luto e a perda de si
que ocorre com todos nós, das formas mais mesmo – doença;
variadas. Enfatizamos a questão do vínculo.
Abordamos os vários sentimentos que podem Bloco II – a família;
estar presentes nessa situação. Procuramos Bloco III – os profissionais.
também destacar o sentimento bastante Desde o lançamento, o material tem sido
comum de culpa com relação à morte de divulgado entre profissionais e estudantes das
alguém amado: essa culpa pode estar presente áreas de saúde e educação, nas disciplinas de
em todos, adultos e crianças, mas nas últimas, graduação, pós-graduação, cursos de extensão,
492
Educação para a Morte

palestras, congressos, workshops, e tem sido de drogas, acidentes e tentativas de suicídio,


distribuído pelo Brasil inteiro. O vídeo recebeu buscando trazer uma visão realista da situação,
também legendas em inglês, tendo sido mostrando como a vida do adolescente pode
apresentado no Congresso da Association for estar por um fio. De uma forma diferente da
Death Education, nos Estados Unidos. Foi mídia, esse vídeo traz imagens acompanhadas
enviado também para Inglaterra, aos cuidados de questões e pontos de reflexão que
do Dr. Colin Murray Parkes, especialista em permitem aos adolescentes participarem da
luto, que teceu considerações sobre a discussão, e para que pais, educadores e
qualidade do material.
profissionais de saúde possam entrar nesse
universo e também criar espaços para discussão
Falando de morte com o e busca de alternativas.
adolescente
Longe de trazer receitas, propõe uma discussão
O segundo vídeo da série, Falando de morte
ampla e aberta sobre os referidos temas.
com o adolescente, tem uma característica
Sabemos que soluções não são simples, mas
muito diferente do primeiro, procurando
uma comunicação efetiva e clara favorece um
adequar-se à linguagem do jovem, focando
aprofundamento das relações e melhor
principalmente os comportamentos auto-
qualidade de vida.
destrutivos.

A adolescência é um período em que rápidas O vídeo tem a duração de 20 minutos e pode


mudanças ocorrem: no corpo, no ser assistido por adolescentes, adultos,
desenvolvimento da sexualidade, no profissionais de saúde e educação. Seu uso
pensamento, que se torna ágil, nas pode dar-se de forma didática, em sala de aula,
experiências amorosas e na escolha da ou informalmente. Tendo em vista tratar-se
vocação. É a busca da identidade. É também de um vídeo que objetiva a reflexão, sugere-
uma fase em que se tem como objetivo se a interrupção a cada cena que suscite
experimentar todas as “novidades”, estando questões. Para maior aprofundamento dos
aí justamente o perigo. Para o adolescente, é pontos discutidos no vídeo, sugerimos a leitura
como se a morte não existisse: há uma do livro “Adolescência: Vida ou Morte?”, de
vivência de onipotência em sua força total. autoria de Ingrid Esslinger e Maria Julia Kovács
Com essa forma de pensar, um carro a 200 (Editora Ática, 1998).
km por hora jamais se espatifa num muro,
uma pipada de crack não vicia.
O patrocínio veio pela Pró-reitoria de Cultura
e Extensão da USP e pela CAPES, o que
Infelizmente, isso não é bem verdade, pois
estatísticas mostram que é na adolescência permitiu a elaboração do roteiro. A TV
que se encontra o maior número de acidentes, CULTURA, através da cessão de imagens
de usuários de drogas e de contaminação por jornalísticas, favoreceu a complementação do
AIDS. É o período no qual ocorre também trabalho de filmagem.
um grande número de suicídios. Essas são
forças de vida ou de morte? Certamente não Após o lançamento, continuamos divulgando
é fácil responder! o vídeo, fazendo-o chegar às escolas e aos
seus principais beneficiários, os próprios jovens.
Esse vídeo usa a força de imagens para reflexão Tem sido apresentado também em cursos,
e discussão dessas questões. São cenas de congressos, tendo sido submetido também a
esportes radicais, violência, amor, sexo, uso questionário que envolve perguntas sobre a

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


493
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

qualidade do material e a sugestões para processo do desenvolvimento humano,


mudanças, e foi a partir delas que uma nova perdas no ciclo da existência, processos de
versão foi lançada em 2003. luto e suas intercorrências, suicídio e
comportamentos auto-destrutivos, pacientes
Falando de morte com o idoso enfermos, o agravamento da doença e a
proximidade da morte, bioética e a questão
É o terceiro vídeo do Projeto Falando de morte,
da morte, e, durante todo o transcorrer da
tendo sido planejado com a mesma filosofia
fita, aborda-se a questão de como a morte
que embasou a criação dos outros dois da
afeta os vários profissionais de saúde na
série, trazendo para o idoso, seus familiares,
especificidade de suas práticas profissionais.
profissionais de saúde e educação um meio
Para aprofundar os conteúdos abordados,
que possa facilitar a comunicação sobre o tabu
da morte (e das perdas) em nossa sociedade convidamos os seguintes especialistas: Dr.
e, mais particularmente, para esse grupo. Leocir Pessini (teólogo), para falar de bioética
e distanásia; Dr. Vicente Augusto de Carvalho
O vídeo tem caráter preventivo (já que aborda (psiquiatra e psicoterapeuta), para falar de
uma questão tão pouco falada), propiciando o cuidado ao cuidador; Dra. Maria Helena Pereira
entrar em contato com algumas experiências Franco (professora e psicoterapeuta), para falar
já vividas e às vezes não elaboradas, de luto; Dra Adrianna Loducca (psicóloga
possivelmente desencadeadoras de problemas hospitalar), para falar de dor; Dra. Ingrid
sérios, com sintomas quer no campo afetivo, Esslinger (psicoterapeuta), para falar de
quer no cognitivo, cuja causa nem sempre é suícidio, e Dra. Maria Julia Kovács (psicóloga
evidente. Tem também um caráter reflexivo, e professora da USP), para falar sobre pacientes
propondo discussões e troca de experiências. terminais. Esse vídeo tem a duração de 50
O vídeo tem a duração de 30 minutos, com minutos e, tal como os anteriores, propõe-se
foco nas seguintes situações:
a criar espaços de facilitação para a discussão
do tema em instituições de saúde e educação
● Saúde e doença – “perda de si”;
para profissionais ou na formação de recursos
● “Perda do outro”;
humanos nessa área, em nível de graduação
● “Perda contra si” – suicídios e
e pós-graduação.
comportamentos auto-destrutivos.

Em continuação ao Projeto Falando de Morte,


Criamos, por meio de imagens, situações que
temos a intenção de criar outros recursos
favorecem a transmissão daquilo que
audio-visuais na forma de filmes ou vídeos,
pretendemos, ou seja, criar canais de
abordando temas como: atitudes e ritos de
comunicação sobre temas relacionados ao
morte no Brasil, suicídio e comportamentos
envelhecimento, buscando-se o
auto-destrutivos, o cuidado ao paciente
aprofundamento do sentido e do significado gravemente enfermo e seus familiares.
que possam ter, abrindo espaço para que se Pretendemos imprimir, nesses projetos, a
fale das próprias perdas e as das pessoas mais mesma característica que desenvolvemos no
significativas, assuntos esses usualmente projeto anterior, a saber, ser um veículo
evitados pelo constrangimento que provocam. facilitador da discussão, reflexão e
Falando de morte com profissionais de saúde aprofundamento, que possa ser visto por
Esse vídeo traz um aprofundamento de crianças, jovens, adultos, idosos, leigos e
questões que foram abordadas nos outros profissionais, sem, entretanto, criar modelos
vídeos da série. Temas como morte no ou receitas.
494
Educação para a Morte

Assessoria aos meios de Formação de profissionais de


comunicação saúde e educação
Estamos convivendo com várias mentalidades
A diferença entre as pessoas em geral e os
da morte no início do século XXI, a morte
profissionais de saúde: médicos, enfermeiros,
interdita, rehumanizada e escancarada. Os
psicólogos é que, na vida destes, a morte faz
meios de comunicação trazem a morte parte do cotidiano, tornando-se companheira
escancarada, que inunda os domicílios com de trabalho. Doenças com prognósticos
uma torrente de imagens que envolvem reservados trazem uma ameaça à vida e um
mortes nas suas mais diversas formas, nos aceno à morte.
noticiários, novelas, filmes e documentários.
É inegável que a morte está presente nas Negar a morte é uma das formas de não entrar
guerras, acidentes e que precisam ser em contato com as experiências dolorosas. A
noticiados. O que pensamos ser importante grande dádiva da negação e da repressão é
discutir é como a imagem da morte é permitir que se viva num mundo de fantasia
veiculada, primeiramente na enxurrada de onde há ilusão da imortalidade. Se o medo da
imagens repetidas inúmeras vezes, e no texto morte estivesse constantemente presente, não
conseguiríamos realizar os sonhos e projetos.
que acompanha as imagens, superficial e sem
Existe, no ser humano, o desejo de se sentir
continuidade. Um outro ponto assustador é
único, criando obras que não permitam o seu
que, imediatamente após um noticiário
esquecimento, dando a ilusão de que a morte
envolvendo a guerra, tragédias ou morte de
e a decadência não ocorrerão. Essa couraça
pessoas ilustres, é apresentado um anúncio de força é uma mentira que esconde uma
ou notícia que muda de assunto, levando a fragilidade interna, a finitude e a
uma banalização da morte. Vários jornalistas vulnerabilidade.
têm nos procurado para entrevistas, e
aproveitamos essas ocasiões para debater Combater a morte pode dar a idéia de força e
sobre como são veiculadas notícias controle; entretanto, quando ocorrem perdas
envolvendo perdas e morte. sem possibilidade de elaboração do luto, não
há permissão para expressão da tristeza e da
Como sabemos que a televisão, além de ser dor, trazendo graves conseqüências como
um meio de distração, é também um veículo maior possibilidade de adoecimento. É por isso
de formação, pensamos ser importante que a depressão é atualmente uma doença
que tem acometido os profissionais da área
discutir com os profissionais de comunicação
de saúde mental. O luto mal-elaborado está
a possibilidade de abrir um espaço para que
se tornando um problema de saúde pública,
os temas relacionados com a morte possam
dado o grande número de pessoas que
ser apresentados, acompanhados de um
adoecem em função de uma carga excessiva
tempo de reflexão, com possibilidade de de sofrimento sem possibilidade de que este
discussão sobre o assunto. Um outro ponto seja elaborado. Esse mal também está afetando
que achamos importante ser considerado é os profissionais de saúde, que cuidam do
que se possa pensar numa maneira menos sofrimento alheio e que, muitas vezes, não
agressiva de mostrar a morte, ou que a morte têm espaço para cuidar da sua dor, levando ao
não sirva como mercadoria cujo único objetivo adoecimento destes, como veremos adiante.
seja o aumento do índice de audiência. Não Segundo Pessini (2001), existem dois
se trata de eliminar ou ocultar o assunto, e, paradigmas vinculados à ação de saúde: o curar
sim, de tratá-lo de uma forma mais humana. e o cuidar. No paradigma do curar, o

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


495
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

investimento é na vida a qualquer preço, Os profissionais de saúde, na sua


na qual a Medicina de alta tecnologia se formação, deveriam ter a possibilidade de
torna presente, e as práticas mais uma educação para a morte, preparar-se
humanistas ficam em segundo plano. No para lidar com a morte daqueles que estão
paradigma do cuidar, há uma aceitação da sob seus cuidados. Como pode ser esse
morte como parte da condição humana, preparo?
leva-se em conta a pessoa doente, e não
Nos dias de hoje, o que mais ouvimos nas
somente a doença; enfatiza-se a
instituições de saúde e educação é que
multidimensionalidade da doença, a dor
os seus profissionais não foram preparados
total, como preconiza Saunders (1991).
para lidar com a morte. Perguntamo-nos
como é possível que os cursos de
Ao se priorizar no hospital, o salvar o
Medicina, de Enfermagem, de Psicologia
paciente a qualquer custo, a ocorrência Ao se priorizar no
e outros não tenham disciplinas que hospital, o salvar o
da morte ou de uma doença incurável abordem o tema. A segunda questão que paciente a
pode fazer com que o trabalho da equipe traz um contraponto a uma falta externa é qualquer custo, a
da saúde seja percebido como frustrante, ocorrência da
saber se os estudantes e os jovens morte ou de uma
desmotivador e sem significado. Essa profissionais querem, de fato, preparar-se. doença incurável
percepção pode ser agravada quando os Buscando resposta a essas questões, pode fazer com
procedimentos médicos a serem que o trabalho da
podemos traçar algumas reflexões. Para
equipe da saúde
realizados com pacientes, fora de alguns, é mais fácil dizer que não houve seja percebido
possibilidade de cura, não são preparo para enfrentar algumas situações como frustrante,
compartilhados com toda a equipe, sendo desafiadoras, principalmente quando há desmotivador e
sem significado.
esse fato apontado como uma das razões perspectiva de morte próxima, com
principais para o estresse. Por outro lado, sofrimento e com familiares exigentes.
não conseguir evitar, adiar a morte ou não Então a questão é se querem, de fato,
poder aliviar o sofrimento pode trazer ao preparar-se e como.
profissional a vivência dos seus limites,
impotência e finitude, o que pode ser De nossa parte, é claro que não
extremamente doloroso (Kovács, 2003). pretendemos dar receitas ou respostas
fáceis e, sim, abrir a possibilidade de
reflexão e discussão. Ao longo de nossa
Educar para a morte é também preparar
experiência em cursos de graduação, pós
profissionais de saúde para lidar com ela.
e reciclagem de profissionais em serviço,
Perguntamo-nos se a escolha da profissão
verificamos que é importante que a pessoa
tem relação com a morte, principalmente
esteja disponível para esse preparo, pois
no caso daqueles da área de saúde.
tocar-se-á em experiências vividas,
Possivelmente, a primeira resposta dada
eventualmente com dor e sofrimento,
será não, mas convidamos os assistentes retomando experiências limites, situações
para uma reflexão. Não será a escolha da desconhecidas e momentos de
profissão uma tentativa de preparação impotência.
para lidar com a própria morte e daqueles
de quem cuida? Em tempos de morte A educação de profissionais de saúde e
interdita, muitos jovens não tiveram educação para a morte deverá contemplar
contato próximo com a morte, muitos a os seguintes pontos:
viram pela tela da TV, com todas as
distorções possíveis e sem possibilidade ● Sensibilizar o aluno para os sentimentos
de interação. e reflexões sobre os vários pontos
496
Educação para a Morte

abordados no curso, como, por exemplo: Esse Laboratório congrega projetos já


suicídio, aproximação da morte, perda de existentes e se propõe a abrigar novas idéias
pessoas da mesma faixa etária por e propostas que possam resultar em projetos
acidentes, entre outras;
de pesquisa, na formação de estudantes de
graduação e pós, na reciclagem de
● Apresentar várias abordagens teóricas
profissionais de saúde e educação bem
sobre a questão da morte;
como no atendimento à comunidade.

● Refletir sobre uma prática vivida, Os seus objetivos são os seguintes:


aprendizagem que envolverá aspectos
cognitivos e afetivos, buscando-se o sentido ● Estimular a busca de conhecimento,
individual e o coletivo. É ter a possibilidade de reflexão e discussão sobre o tema da morte,
fazer uma constante revisão de sua práxis, ou
nos vários ângulos acima mencionados;
de seu estágio, considerando conflitos,
frustrações e levando em conta o ponto de
● Favorecer a formação de profissionais
vista do sujeito na construção de seu próprio
conhecimento. de saúde e educação sensíveis a pessoas
que estão vivendo situações de perda,
Há várias modalidades que se pode propor para limite e morte nas várias fases do
a formação de alunos e profissionais de saúde desenvolvimento;
e educação: cursos de graduação, de pós,
atualização, especialização, workshops, ● Dar prosseguimento às pesquisas na
vivências, supervisão, grupos focais. Os grupos
área, envolvendo alunos de graduação, pós-
multidisciplinares trazem uma grande riqueza
graduação e profissionais de saúde e
de pontos de vista e de abordagens.
educação;
O Laboratório de Estudos sobre a Morte
(LEM) foi fundado em março de 2000, faz ● Criar um banco de dados com
parte do Departamento de Psicologia da bibliografia nacional e estrangeira atualizada
Aprendizagem, do Desenvolvimento e da como referência para estudantes e
Personalidade, do Instituto de Psicologia profissionais interessados no tema;
da USP. A justificativa para a sua criação é
a importância dos estudos sobre a morte
● Criar espaços de atendimento à
e o morrer. Por outro lado, é também a
consolidação de uma área de estudo, comunidade para pessoas que estão
pesquisa e assistência à comunidade passando por situações de perda e doença.
envolvendo a temática da morte. Sua
criação permitiu integrar docentes, Elencamos, neste artigo, algumas das
profissionais, pós-graduandos e alunos da possibilidades de educação para a morte
graduação em torno do tema que, como tanto para público leigo que está vivendo
vimos, embora ainda tabu, começa a gerar situações de perda e morte quanto para
frutos importantes para a formação e
profissionais que têm, sob seus cuidados,
consolidação de uma práxis voltada para
essas pessoas. Esperamos que estas
a qualidade de vida de pessoas em
situações de crise, sofrimento e dor. propostas tragam inspiração para que novos
Oferece cursos de graduação, de pós e de projetos de educação para a morte se
extensão. desenvolvam no Brasil.

PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497


497
Maria julia kovács PSICOLOGIA CIÊNCIA E
PROFISSÃO, 2005, 25 (3), 484-497

Maria Julia Kovács


Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo

Endereço: Av. Mello Moraes, 1721 – Cidade Universitária – São


Paulo – SP – CEP 05508-900.

E-mail: mjkoarag@usp.br

Recebido 18/05/05 Aprovado 03/11/05


Referências
ARIÉS, P. A História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Francisco ____________. Educação para a Morte. Desafio na Formação
Alves, 1977. de Profissionais de Saúde e Educação. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2003.
ESSLINGER, I. & KOVÁCS, M.J. Adolescência: Vida ou Morte. São
Paulo: Ática, 1998. PESSINI, L. Distanásia. Até quando Prolongar a Vida? São Paulo:
Editora Centro Universitário São Camilo/Loyola, 2001.
JUNG. C.G. Soul and Death. Collected Works, Vol.8. London:
Routledge & Keagan Paul, 1960. SAUNDERS, C. Hospice and Palliative Care. An Interdisciplinary

KOVÁCS, M.J. Educação para a Morte. Temas e Reflexões. São Approach. Londres, Edward Arnold, 1991.
Paulo: Casa do Psicólogo, 2003.

Você também pode gostar