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depois nomeado secretário de cultura do da constituição de culturas/comunidades


governo de Néstor Kirchner, dando lugar “afro-americanas”. Seu fio condutor é a
a Grimson, na função de organizador do homenageada obra do historiador nor-
projeto. Podemos pensar então que este te-americano Stanley Stein, Vassouras.
projeto é parte de uma política de aproxi- A Brazilian Coffee County, 1850-1900. The
mação entre a Argentina e o Brasil. Roles of Planter and Slave in a Plantation
Este livro tem um objetivo acadêmico, Society (1957), em especial o conjunto de
que é o de estimular os estudos comparados gravações realizadas em fins da década
entre Argentina e Brasil e a compreensão de 1940 com “ex-escravos”.
da sociedade argentina através do contraste O leitor é apresentado de maneira gene-
com uma sociedade próxima, como é o Bra- rosa a rico e denso material que busca recu-
sil. Mas também faz parte de um esforço da perar, alinhavando-as, a trajetória da dança
intelectualidade argentina de compreender e a do historiador que dela faz uso como
o Brasil, já não como rival ou inimigo, como fonte e foco de atenção. Nesse sentido, Me-
declarava um século atrás o ministro das mória do jongo é também reflexão sobre a
Relações Exteriores argentinas, Estanislao escrita da história, já que preenche o lugar
Zeballos. O que os autores do livro preten- de entrada crítica e comentada (acumula-
dem é compreender o Brasil por ser ele o da, em especial, em preciosas notas de pé
principal parceiro econômico da Argentina de página, reduto para especialistas) não
e, fundamentalmente, o principal parceiro só à obra de Stein e às suas gravações,
na integração regional. mas também ao campo intelectual em que
estas se situam e vão sendo ressignificadas.
Vale ressaltar que a publicação se soma a
um conjunto mais amplo de ações, como a
organização de encontros acadêmicos e a
LARA, Silvia Hunold & PACHECO, Gusta- Coleção “Stanley J. Stein” de gravações e
vo (orgs.). 2007. Memória do jongo: as fotografias. Por todas estas ações e o modo
gravações históricas de Stanley J. Stein. como o leitor é apresentado ao material e
Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; seus desdobramentos, a publicação deve
Campinas, SP: CECULT. 200p. ser saudada.
Podemos organizá-la em dois focos
centrais: primeiro, em Stein, no processo
Edmundo Pereira de produção e na repercussão de Vassou-
DAN-PPGAS/CCHLA/UFRN; LACED/MN/UFRJ ras; depois, no jongo (nome escolhido
dentre os termos mapeados), em especial
Memória do jongo: as gravações históricas em sua relação com a região delimitada
de Stanley J. Stein. Vassouras, 1949, cole- como “África Central”. Ao final, além das
tânea de artigos com cd anexo, já nasce gravações acompanhadas de transcrições
como indispensável, dado o investimento, e comentários, somos ainda apresentados
a qualidade e a expertise dos trabalhos às fotos de Stein e às gravuras de viajan-
reunidos. Tendo como tema central o “jon- tes do Brasil Colônia. Produzido entre os
go”, a obra é também entrada privilegiada anos de 1999-2007, o trabalho é fruto do
aos temas mais amplos da escravidão encontro do historiador norte-americano
e da pós-escravidão negra dos séculos com um pesquisador brasileiro, Gustavo
XIX-XX, dos trânsitos socioculturais Pacheco, antropólogo e etnomusicólogo.
atlânticos ao longo do período colonial e Deste encontro, desdobra-se um conjunto
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de articulações entre pesquisadores, insti- por isto a ênfase dada ao seu “pioneiris-
tuições e fontes de fomento que participam mo”, em função das técnicas utilizadas
da produção da obra (Cecult/Unicamp, de produção e análise de materiais (em
Petrobras, CNPq).No texto de abertu- arquivos e em campo), que só vieram
ra, “Memória por um fio: as gravações a ser efetivadas para a historiografia
históricas de Stanley Stein”, espécie de algumas décadas depois, como no caso
introdução geral, Pacheco refaz o caminho da micro-historiografia italiana – talvez
percorrido do encontro das gravações, ênfase excessiva, se posicionarmos o
sua digitalização e edição, até a reunião trabalho de Stein no campo mais amplo
dos pesquisadores que dariam conta do das ciências sociais, no contexto norte-
exercício geral da coletânea: “extrair”, das americano das décadas de 1930-1940.
gravações e da obra de Stein “o máximo No segundo texto da coletânea, “Uma
de informação possível” (:19). No caso, o viagem maravilhosa”, encontramos um
autor posiciona as gravações na história Stein memorialista tanto de si mesmo
do desenvolvimento de registros sonoros e como de uma geração de investigadores,
de seus usos, em particular, no registro de da qual ele dá conta ao retomar as preo-
expressões orais e musicalidades de gru- cupações, as intuições e os improvisos que
pos e subgrupos das sociedades humanas. levaram ao que é hoje metodologia consa-
Neste sentido, as gravações de Stein fazem grada para a História e para a Antropolo-
parte de um campo de investigações no gia. Logo no início, ele se pergunta sobre
qual encontraremos a família Lomax ou o o pequeno conjunto de gravações que
“folclorista” Benjamin Botkin (:20). Como realizou, já nos convidando a posicionar
recupera o autor, a preocupação geral que sua obra (:35): “Pensando bem, este ‘acon-
unia trabalhos como os da família Lomax e tecimento’ foi uma sorte de pesquisador
do antropólogo M. Herskovitz era a “coleta – ou teria sido algo além disso?”.
de memórias e tradições folclóricas de Apesar de a bibliografia de Vassouras
ex-escravos norte-americanos” (:20-21), ser basicamente de literatura brasileira,
sendo a música considerada como acesso aquela que Stein reconhece como sua
privilegiado a uma “cultura”, a uma “tra- segunda “corrente inspiradora” (:38),
dição”, a uma “cosmovisão”. sua matriz epistemológica fundamental,
No total, chegam a nós 60 cantigas é a apresentada no prefácio à edição
(pontos), em misto de português com ban- inglesa de 1985, neste artigo, um pouco
tu, cinco amostras de células rítmicas de mais detalhada: a de uma geração que
tambores, oito cantigas com acordeão, uma tinha os “estudos de comunidade” como
folia de reis, cinco batucadas de samba e um norte investigativo e a “sociedade-cultu-
samba cantado. Tanto no texto de Pacheco ra da plantation” como foco, ampliando
(:16-17) quanto no de Slenes (:113-115), o estatuto da “fonte” para os campos da
encontramos uma definição geral do jongo oralidade, da escrita, das práticas coti-
como: a) “dança”; b) “gênero poético-musi- dianas e até da arquitetura (:37). Neste
cal”. Ele está filiado ao conjunto mais amplo sentido, Stein filia-se à geração formada
das “danças afro-brasileiras”, com funções por Herskovitz, Redfield e Steward, da
e significados que atravessam as fronteiras qual sobressaem, além do seu próprio,
que vão do laico ao sagrado. também os trabalhos de Eric Wolf e
Em termos gerais, é através da história Sidney Mintz (:37). O “pioneirismo” da
como disciplina e fio articulador que a obra, portanto, deve ser relativizado, mas
obra é apresentada e analisada. Talvez não a sua importância.
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Esse mesmo quadro é recuperado autoras de que o batuque seria o “gênero


mais detalhadamente por Silvia H. Lara mais identificado com a população escrava
em “Vassouras e os sons do cativeiro e africana” (:75). No entanto, não parece
no Brasil”, em particular a presença de haver de fato base material para considerar
Herskovitz como inspiração mais próxi- o batuque categoricamente como um “gê-
ma, particularmente na atenção dada ao nero” musical, antes o termo parece estar
“modo como a cultura africana havia se sendo usado nas fontes compiladas como
mantido intacta no Novo Mundo ou se instrumento de controle simbólico, de no-
misturado à cultura de origem europeia” meação (nos termos de Todorov), de perfil
(:50). Além disso, a autora acompanha as homogeneizador em face das singularida-
múltiplas leituras e os usos que a obra des sócio-históricas às quais se refere.
alcançou desde a sua publicação até a Recuperando referências, citações e
atualidade no campo da historiografia, imagens de um conjunto de autores –
em especial a brasileira. Em função da desde viajantes naturalistas a folcloristas
complexidade, da densidade e do amplo e pesquisadores modernos – chegamos
espectro de fontes produzidas e articula- à contemporaneidade, quando a mani-
das em Vassouras, resume Lara, há a cada festação “sincrética” “afro-brasileira” é
“nova forma de apreender a história” (da consagrada como “patrimônio”. Apesar de
ênfase ao desenvolvimento econômico à mapear o quadro contemporâneo de agên-
atenção aos “padrões de vida” cotidianos) cias com as quais “comunidades remanes-
“um novo jeito de ler Vassouras” (:59). centes de quilombo” estão relacionadas
Em “Jongo, registros de uma história”, na busca de autonomia e representativi-
de Hebe Mattos e Martha Abreu, adentra- dade, o quadro apresentado parece muito
mos o segundo movimento da coletânea, simplificado, bem como o protagonismo
agora dedicada ao jongo, sua trajetória, das “entidades dos próprios jongueiros”
origens, formação e atualidade. Neste arti- (:70) merece ser relativizado. Apesar dos
go, somos apresentados ao exercício crítico avanços, a formação de candidaturas e os
de como o jongo “foi visto e avaliado, do posteriores reconhecimentos como “patri-
século XIX ao início do século XXI, por mônio”, como o caso do jongo, têm se dado
folcloristas, autoridades governamentais em campos políticos bem mais complexos,
e pelos próprios jongueiros”, passando bastante clientelistas e autoritários. De
de prática muitas vezes proibida a “bem todo modo, como enfatizam ao final as
cultural do Brasil” (:73). A recuperação autoras, “a memória e a prática do jongo,
histórica é minuciosa, com ênfase no modo transformadas em patrimônio cultural,
como a prática é representada. Entre os vêm desempenhando papel importante
termos mapeados para dar conta de danças neste acerto de contas com o passado – que
com feições como as do jongo descrito por abre caminhos para o futuro” (:106).
Stein, estão batuque, o mais geral, e jongo Por fim, fechando a coletânea, o artigo
e caxambu, os mais específicos. mais denso e difícil: o trabalho de Robert
Apesar de alertarem para “imprecisão W. Slenes, “Eu venho de muito longe,
e generalização” (:74) do termo batuque, eu venho cavando: jongueiros cumba na
parece que todas as palavras são tomadas senzala centro-africana”, que se propõe
rapidamente como sinônimos, como que a dar continuidade, a partir de base de
referidas a um mesmo fenômeno social, dados extensa e atualizada, a alguns dos
guardado na grande noção unificadora de “desafios” (:114) deixados por Stein: a) “a
batuque. Talvez por isso a afirmação das ligação do caxambu/jongo com o mundo
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espiritual dos escravos”; b) a origem ban- descontinuidades (:15), este viés ficou para
tu dos negros envolvidos na plantation uma próxima publicação, uma vez que Me-
do café, o que Slenes classifica como mória do jongo pode ser posicionado como
“área cultural” (categorização já bastante um dos “pontos terminais” (nos termos de
discutida) e, em termos linguísticos, de Redfield) no grande campo de estudos de
“constelação kumba” (:142-143). O autor “comunidades afro-americanas”, que têm
segue as pistas deixadas por Stein no ca- personagens como Herskovitz como “fun-
pítulo de Vassouras voltado para “religião dadores” de metodologias e paradigmas.
e festividades”, no qual o autor norte-
americano enfatiza que, apesar de laico
em sua temática, estava “erigido a partir
de elementos religiosos africanos”. VEL
Para corroborar esse trânsito, Slenes
opera com a categoria/tipo “jongueiro
cumba”, à qual agrega não só conhe-
cimentos da ordem do laico e do sacro,
como também papel e algum poder políti-
co. Cruzando recorrências socioculturais
e linguísticas, vai construindo um amplo
universo de referências, convincente
pela quantidade de dados reunidos,
em que fica cada vez mais plausível
posicionar definitivamente o “jongo”.
Mas permanece a dúvida se o efeito de
unidade construída não é narrativo, uma
vez que alguns dos repertórios elencados
para apresentar a continuidade “África
central” – “sudeste brasileiro”, tais como
“espíritos territoriais” e “ancestrais”,
“cultos de aflição” [:124], vocabulários-
metáfora e “pressupostos cosmológicos”
[:128]), são amplamente generalizáveis
para outros grupos étnicos da África,
alguns até bem mais alhures.
Em que medida estaria Slenes par-
ticipando do que Kofi Agawu chamou,
para o caso da música, de “invenção da
rítmica africana”? Neste sentido, o inves-
timento preenche os espaços deixados
pelo “mestre”, dá-lhes assentamento, sem
que se altere, no entanto, a prescrição do
receituário que já estava traçado desde a
década de 1950, ligando o sudeste cafeeiro
à África central. Apesar de um dos campos
de ação investigativa – como proposto no
início da publicação – ser o das rupturas e

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