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O Impulso Alegórico: Sobre uma Teoria do Pós-modernismo*

Craig Owens

O autor examina o que ocorre no interior dos trabalhos de arte quando a alegoria descreve sua
estrutura, evidenciando-se como modelo crítico, cujo objetivo é colocar outro significado na forma
de sua apresentação, sendo o imaginário alegórico um imaginário apropriado, em que as imagens
são confiscadas. Considerando a re-emergência da alegoria na arte contemporânea, a despeito de
sua rejeição pela crítica da arte moderna, Owens busca exemplos na história da arte e na literatura,
inclusive no modernismo, que lhe sugerem não serem a alegoria e o modernismo antitéticos, pelo
menos na prática, ao constatar que apenas na teoria o impulso alegórico tem sido reprimido. A
alegoria é concebida tanto como uma atitude quanto uma técnica, uma percepção quanto um
procedimento.

Arte, alegoria, apropriação

Cada imagem do passado que não é reconhecida pelo presente como


uma de suas próprias referências ameaça desaparecer
irremediavelmente.
Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”

Em uma análise do conjunto de textos de Robert Smithson, publicada na revista


October, no outono de 1979, propus que o “gênio” de Smithson era alegórico, envolvido na
liquidação de uma tradição estética que ele percebia como mais ou menos arruinada. Atribuir um
motivo alegórico à arte contemporânea é aventurar-se em um território proscrito, pois a alegoria
tem sido condenada por aproximadamente dois séculos como aberração estética, a antítese da arte.
Em Estética, Croce a ela se refere “como ciência, ou arte imitando ciência”; Borges certa vez a
chamou “estética do erro”. Embora certamente permaneça um dos mais alegóricos escritores
contemporâneos, Borges, contudo, vê a alegoria como um artifício fora de moda, exaurido, um
tema do histórico, a despeito do interesse crítico. As alegorias, de fato, aparecem a Borges para
representar-lhe a distância entre o presente e o passado irrecuperável:

1
Sei que em um determinado momento, a arte alegórica foi considerada atraente... e
agora é intolerável. Sentimos que, além de ser intolerável, é estúpida e frívola. Nem
mesmo Dante, que contou a história de sua paixão na Vita Nuova, nem Roman
Boethius, escrevendo seu De consolatione na torre de Pavia, à sombra da espada de seu
carrasco, poderiam ter compreendido nosso sentimento. Como posso explicar aquela
diferença de visão sem simplesmente apelar ao princípio de mudança do gosto?1

Essa afirmação é duplamente paradoxal, pois não somente contradiz a natureza


alegórica da própria ficção de Borges, como também nega à alegoria o que é sua maior
característica: a capacidade para resgatar do esquecimento histórico aquilo que ameaça
desaparecer. A alegoria, primeiramente, emergiu em resposta a uma espécie de sentido de
estranhamento da tradição; ao longo de sua história ela tem funcionado na fenda entre um presente
e um passado que, sem uma reinterpretação alegórica, poderia ter permanecido excluído. Uma
convicção a respeito da distância do passado e o desejo de redimi-lo ao presente são seus dois
impulsos fundamentais. Eles contribuem tanto para o papel que a alegoria tem na investigação
psicanalítica quanto para seu significado em Walter Benjamin, o único crítico do século 20 a tratar
do tema sem preconceito, filosoficamente.2 Eles ainda falham em explicar por que o potencial
estético da alegoria parecia ter-se exaurido há um tempo atrás; nem são capazes de localizar a
brecha na qual a própria alegoria retrocedeu nas profundezas da história.
Investigar as origens da atitude moderna sobre a alegoria também poderia parecer “estúpido
e frívolo” se não fosse pelo fato de que um inconfundível impulso alegórico tenha começado a
reafirmar-se em vários aspectos da cultura contemporânea: no revival de Benjamin, por exemplo,
ou no The Anxiety of Influence, de Harold Bloom. A alegoria é também expressa no revivalismo
histórico que hoje caracteriza a prática arquitetural e a posição revisionista de grande parte do
discurso histórico da arte recente. Por exemplo, T. J. Clark ao tratar a pintura da metade do século
19 como “alegoria” política. No que segue, quero focalizar essa reemergência através do seu
impacto tanto na prática quanto na crítica das artes visuais. Há, como sempre, importantes
precedentes a serem contabilizados: Duchamp identificou tanto o “estado instantâneo do Resto”
quanto a “exposição extra-rápida”, [“extra rapid exposure”], ou seja, os aspectos fotográficos,3 do
Grande Vidro como “aparência alegórica”; Allegory é também o título de uma das mais
ambiciosas combine paintings de Robert Rauschenberg, da década de 1950. Uma consideração
sobre tais trabalhos deve ser adiada, contudo, pois sua importância só se torna aparente depois que
a supressão da alegoria pela teoria moderna foi completamente reconhecida.

2
Para identificar a alegoria em suas manifestações contemporâneas, precisamos
primeiramente ter uma idéia geral do que ela é, de fato, ou melhor, o que ela representa, pois a
alegoria é tanto uma atitude quanto uma técnica, uma percepção quanto um procedimento.
Permitimo-nos dizer, por ora, que a alegoria ocorre sempre que um texto é dublado por outro; o
Velho Testamento, por exemplo, torna-se alegórico quando é lido como uma prefiguração do
Novo. Essa descrição provisória – que não é uma definição – vale tanto para a origem da alegoria
nos comentários e exegeses quanto para sua permanente afinidade com eles: como Northrop Frye
indica, o trabalho alegórico tende a prescrever a direção de seu próprio comentário. É esse aspecto
metatextual que é invocado sempre que a alegoria é atacada como interpretação simplesmente
anexada post facto a um trabalho, um ornamento retórico ou floreio. Ainda, como argumenta Frye,
“a alegoria genuína é um elemento estrutural na literatura; ela tem que estar lá, e não pode ser
anexada pela interpretação crítica isolada”.4 Na estrutura alegórica, portanto, um texto é lido
através de outro, embora fragmentária, intermitente ou caótica possa ser sua relação; o paradigma
para o trabalho alegórico é, então, o palimpsesto. (É daqui que uma leitura da alegoria em Borges
deve ser iniciada, com “Pierre Menard, autor de Quixote” ou muitas das Crônicas de Bustos
Domecq, onde o texto é positivado por seu próprio comentário.)
Concebida dessa maneira, a alegoria torna-se o modelo de todo comentário, de toda crítica,
na medida em que estão envolvidos em reescrever um texto primário em termos de sua
significação figural. Estou interessado, entretanto, no que ocorre quando essa relação acontece no
interior dos trabalhos de arte, quando ela descreve sua estrutura. O imaginário alegórico é um
imaginário apropriado; o alegorista não inventa imagens, mas as confisca. Ele reivindica o
significado culturalmente, coloca-a como sua intérprete. E em suas mãos a imagem torna-se uma
outra coisa (allos = outro + agoreuei = dizer). Ela não restaura um significado original que possa
ter sido perdido ou obscurecido: a alegoria não é hermenêutica. Mais do que isso, ela anexa outro
significado à imagem. Ao anexar no entanto, faz somente uma recolocação: o significado alegórico
suplanta seu antecedente; ele é um suplemento. É por isso que a alegoria é condenada, mas é
também a fonte de sua significação teórica.
A primeira ligação entre a alegoria e a arte contemporânea pode agora ser feita com a
apropriação de imagens que ocorre nos trabalhos de Troy Brauntuch, Sherrie Levine, Robert
Longo – artistas que geram imagens por meio da reprodução de outras imagens. A imagem
apropriada pode ser um film still, uma fotografia, um desenho: é com freqüência ela própria uma

3
reprodução. Contudo, as manipulações as quais esses artistas submetem tais imagens trabalham
para esvaziá-las de sua ressonância, seu significado, sua reivindicação autoritária para significar.
Através das ampliações de Brauntuch, por exemplo, os desenhos de Hitler ou aqueles das vítimas
dos campos de concentração, exibidos sem legendas, tornam-se resolutamente opacos:

Toda operação pela qual Brauntuch submete essas fotografias representa a duração de
um olhar fascinado e perplexo, cujo desejo é que elas revelem seus segredos; mas o
resultado é apenas fazer as fotografias o mais semelhante à pintura, para fixar para
sempre em um objeto elegante nossa distância da história que produziu essas imagens.
Aquela distância é tudo o que essas fotografias significam. 5

O olhar de Brauntuch é, então, aquele olhar melancólico que Benjamin identificou


com o temperamento alegórico:

Se o objeto torna-se alegórico sob o olhar da melancolia, se a melancolia causa o fluir


da vida para fora dela e permanece além da morte, mas eternamente segura, então ela
está exposta ao alegorista, está incondicionalmente em seu poder. O que significa dizer
que ela é agora completamente incapaz de emanar qualquer sentido ou significado de si
própria; o significado que ela tiver o adquire do alegorista. Ele o coloca dentro dela e
permanece além dela - não em um sentido psicológico, mas ontológico.6

As imagens de Brauntuch simultaneamente proferem e deferem uma promessa de


sentido; elas tanto solicitam quanto frustram nosso desejo de que a imagem seja diretamente
transparente à sua significação. Como resultado, elas aparecem estranhamente incompletas –
fragmentos ou runas que devem ser decifrados.
A alegoria é consistentemente atraída ao fragmentário, ao imperfeito, ao incompleto –
uma afinidade que encontra sua mais compreensível expressão na ruína, que Benjamin identificou
como o emblema alegórico por excelência. Aqui os trabalhos do homem são reabsorvidos na
paisagem; as ruínas, portanto, permanecem para a história como um processo irreversível de
dissolução e decadência, um progressivo distanciamento da origem:

Na alegoria, o observador é confrontado com a facies hippocratica da história como


uma paisagem primordial, petrificada. Tudo sobre a história que, desde o início, tem
sido inoportuno, pesaroso, fracassado é expresso na face – ou melhor, em uma cabeça
da morte. E, embora a tal coisa falte toda liberdade de expressão ‘simbólica’, toda
proporção clássica, toda humanidade, essa é, contudo, a forma na qual a submissão do
homem à natureza é mais óbvia e, significativamente, amplia não apenas a questão

4
enigmática da natureza da existência humana como tal, mas também a historicidade
biográfica do indivíduo. Este é o coração do modo alegórico de ver...7

Com o culto alegórico da ruína, uma segunda ligação entre a alegoria e a arte
contemporânea emerge: na especificidade do lugar [site-specificity], o trabalho que parece ter
submergido fisicamente em seu ambiente, ser encaixado no lugar onde nós o encontramos. O
trabalho de lugar específico [site-specific] freqüentemente aspira a uma monumentalidade pré-
histórica; Stonehenge e as linhas de Nazsca são tidas como protótipos. Seu “conteúdo” é
freqüentemente mítico, como aquele do Spiral Jetty, cuja forma é derivada de um mito local sobre
um redemoinho no fundo do Great Salt Lake; por essa via Smithson exemplifica a tendência a
envolver-se em uma leitura do lugar [site], em termos não apenas de suas especificidades
topográficas, mas também de suas ressonâncias psicológicas. Trabalho e lugar [site], assim,
permanecem em uma relação dialética. (Quando o trabalho de lugar específico [site-specific] é
concebido em termos de recuperação da terra [land reclamation] e instalado em uma mina ou
pedreira abandonada, então seu motivo “defensivamente recuperativo” torna-se auto-evidente.)
Os trabalhos de lugar específico [site-specific] são transitórios, instalados em
locações particulares, com duração limitada, sua transitoriedade provendo a medida de sua
circunstância. Além disso, raramente são desfeitos, mas simplesmente abandonados à natureza;
Smithson reconhece consistentemente como parte de seus trabalhos as forças que os erodem e ao
final os reivindicam à natureza. Nisso, o trabalho de lugar específico [site-specific] torna-se um
emblema de transitoriedade, a efemeridade de todo fenômeno; ele é o memento mori do século 20.
Devido à sua transitoriedade, mais ainda, o trabalho é freqüentemente preservado apenas em
fotografias. Esse fato é crucial, pois ele sugere o potencial alegórico da fotografia. “Uma
apreciação da transitoriedade das coisas, e a concernência para resgatá-los da eternidade, é um dos
mais fortes impulsos da alegoria.”8 E da fotografia, poderíamos acrescentar. Como uma arte
alegórica, então, a fotografia poderia representar nosso desejo de fixar o transitório, o efêmero, em
uma imagem estável e estabilizante. Nas fotografias de Atget e Walker Evans, na medida em que
elas autoconscientemente preservam aquilo que ameaça desaparecer, esse desejo torna-se o tema
da imagem. Se suas fotografias são alegóricas, contudo, é porque o que elas oferecem é apenas um
fragmento, e, conseqüentemente, afirma sua própria arbitrariedade e contingência.9
Deveríamos, portanto, estar preparados também para encontrar um motivo alegórico
na fotomontagem, pois ela é a “prática comum” da alegoria “para empilhar fragmentos

5
incessantemente, sem qualquer idéia estrita de um objetivo”.10 Esse método de construção levou
Angus Fletcher a comparar a estrutura alegórica à neurose obsessiva;11 e a obsessão dos trabalhos
de Sol LeWitt, digamos, ou Hanne Darboven sugere que eles podem também inserir-se no
compasso do alegórico. Aqui encontramos ainda uma terceira ligação entre a alegoria e a arte
contemporânea: nas estratégias de acumulação, o trabalho paratáctico pela simples colocação de
“uma coisa depois da outra” – Lever, de Carl Andre ou Primary Accumulation, de Trisha Brown.
Um paradigma para o trabalho alegórico é a progressão matemática:

Um matemático vendo os números 1, 3, 6, 11, 20, ele teria como reconhecer que o
“significado” desta progressão pode ser redistribuído na linguagem algébrica da
fórmula X mais 2 elevado a x com certas restrições sobre X. O que poderia ser uma
seqüência ao acaso para uma pessoa inexperiente aparece ao matemático como uma
seqüência cheia de significado. Observe que a progressão pode ir ao infinito. Isso
equivale à situação de quase todas as alegorias. Elas não têm nenhum limite “orgânico”
inerente de magnitude. Muitas são inacabadas como O Castelo e O Processo, de
Kafka.12

A alegoria, ela própria, diz respeito, então, à projeção – tanto espacial quanto
temporal, ou ambas – da estrutura como seqüência; o resultado, todavia, não é dinâmico, mas
estático, ritualístico, repetitivo. Ela é, então, o epítome da contranarrativa, pois prende a narrativa
no lugar, substituindo um princípio de disjunção sintagmática por uma combinação diegética.
Desse modo, a alegoria supra-induz uma leitura vertical ou paradigmática de correspondências
sobre uma cadeia de eventos horizontal ou sintagmática. O trabalho de Andre, Brown, LeWitt,
Darboven e outros, envolvido como está com a exteriorização do procedimento lógico, sua
projeção como uma experiência espaço-temporal, também solicita tratamento em termos de
alegoria.
Essa projeção da estrutura como seqüência lembra o fato de que, na retórica, a
alegoria é tradicionalmente definida como uma simples metáfora introduzida em séries contínuas.
Se essa definição é recolocada em termos estruturalistas, então a alegoria é revelada como a
projeção do eixo metafórico da linguagem sobre sua dimensão metonímica. Roman Jakobson
definiu essa projeção da metáfora sobre a metonímia como a “função poética” e associou a
metáfora à poesia e ao romantismo, e a metonímia à prosa e ao realismo. A alegoria, contudo,
implica tanto a metáfora quanto a metonímia; por conseguinte, ela tende a “afetar e subentender
todas essas categorizações estilísticas, sendo igualmente possível no verso e na prosa, e

6
completamente capaz de transformar o mais objetivo naturalismo no mais subjetivo
expressionismo, ou o mais determinado realismo num barroco ornamental exageradamente
surrealista”.13 Esse ruidoso descuido pelas categorias estéticas não é em parte alguma mais
aparente do que na reciprocidade que a alegoria propõe entre o visual e o verbal: palavras são
freqüentemente tratadas como fenômeno puramente visual, enquanto as imagens visuais são
oferecidas como texto a ser decifrado. Foi este aspecto da alegoria que Schopenhauer criticou
quando escreveu:

Se o desejo pela fama está enraizado firme e permanentemente na mente do homem...


e, se ele agora permanece diante do Gênio da Fama [de Annibale Caracci] com suas
coroas de louro, então toda sua mente está excitada, e seus poderes são chamados à
atividade. Mas a mesma coisa poderia também acontecer se ele visse repentinamente a
palavra “fama” em letras grandes e claras na parede.14

Tanto quanto isso pode lembrar os conceitos lingüísticos dos artistas conceituais
Robert Barry e Lawrence Weiner, cujo trabalho é de fato concebido como letras grandes e claras
na parede, o que de fato revela é a natureza essencialmente pictogramática do trabalho alegórico.
Na alegoria, a imagem é um hieróglifo; uma alegoria é um rébus - texto composto de imagens
concretas.15 Assim, poderíamos também procurar a alegoria nos trabalhos contemporâneos que
seguem deliberadamente um modelo discursivo: o Rebus de Rauschenberg ou a série de Twombly
a partir do poeta alegórico Spencer.
Essa confusão do verbal e do visual é apenas um aspecto da desesperada confusão de
todos os meios estéticos e categorias estilísticas da alegoria (desesperada, isto é, de acordo com
qualquer parcelamento do campo estético sobre bases essencialistas). O trabalho alegórico é
sintético; ele atravessa os limites estéticos. Essa confusão de gênero, antecipada por Duchamp,
reaparece hoje na hibridização, em trabalhos ecléticos que, ostensivamente, combinam de antemão
meios distintos da arte.
Apropriação, site specificity, impermanência, acumulação, discursividade,
hibridização – essas diversas estratégias caracterizam grande parte da arte do presente e a
distinguem de seus predecessores modernistas. Eles também formam um todo quando vistos em
relação à alegoria, sugerindo que a arte pós-modernista pode ser identificada de fato como um

7
simples e coerente impulso, e que a crítica permanecerá incapaz de justificar esse impulso na
medida em que continua a pensar a alegoria como erro estético. Estamos, portanto, obrigados a
retornar às nossas questões iniciais: Quando foi a alegoria inicialmente proscrita e por que razões?
A supressão crítica da alegoria é um legado da teoria da arte romântica que foi
herdada sem crítica pelo modernismo. As alegorias do século 20 - as de Kafka, por exemplo, ou as
de Borges - são raramente chamadas de alegorias, mas parábolas ou fábulas; pela metade do século
19, contudo, Poe – que não era imune à alegoria - acusou Hawthorne de “alegorização”, de
acrescentar finais morais a contos que de outra maneira seriam inocentes. A história da pintura
modernista começou com Manet, e não Courbet, que persistia em pintar “alegorias reais”. Mesmo
os maiores defensores contemporâneos de Courbet (Proudhon e Champfleury) estavam perplexos
diante de sua tendência alegórica; ou se é realista ou alegorista, insistiam eles, significando que ou
se era modernista ou historicista.
Nas artes visuais, foi em grande parte a associação da alegoria com a pintura histórica
que preparou seu fim. A partir da Revolução, foi solicitado em prol do historicismo, que se
produzisse imagem sobre imagem do presente em termos do passado clássico. Essa relação foi
expressa não apenas superficialmente nos detalhes do costume e da fisionomia, mas também
estruturalmente, por meio de uma radical condensação da narrativa em um único e emblemático
instante – de modo significativo, Barthes chama a isso um hieróglifo16 -, no qual o passado,
presente e futuro, isto é, a significação histórica da ação representada deveria ser lida Essa é, claro,
a doutrina do instante fecundo, que dominou a prática artística durante a primeira metade do século
19. Associações sintagmáticas ou narrativas foram condensadas de modo a compelir a uma leitura
vertical de correspondências (alegóricas). Eventos foram, portanto, retirados de um continuum; em
conseqüência, a história poderia ser recuperada somente pelo que Benjamin chamou “um pulo do
tigre no passado”:

Assim, para Robespierre, a Roma Antiga foi um passado carregado com o tempo do
presente com o qual irrompeu do continuum da história. A Revolução Francesa viu-se a
si própria como Roma reencarnada. Invocou a Roma Antiga como a moda evoca os
costumes do passado. A moda tem um faro para o atual, não importa onde ele se mova
na trama esquecida; ela é um pulo do tigre no passado.17

8
Embora para Baudelaire essa interpenetração alegórica da modernidade e da
Antigüidade clássica possuísse um significado teórico nada desprezível, a atitude da vanguarda que
emergiu na metade do século em uma atmosfera cheia de historicismo foi suscintamente expressa
por Proudhon, ao escrever sobre Leonidas at Thermopyle, de David:

Poderíamos dizer... não é nem Leônidas e nem os espartanos, nem os gregos e persas
que se poderia ver nessa grande composição; por que é o entusiasmo de 1892 que o
pintor teve em vista, e a República Francesa salva da Coalizão? Mas, por que essa
alegoria? Por que precisa passar pelas Termópilas e voltar vinte e três séculos para
alcançar o coração dos franceses? Não tivemos nossos heróis, nem nossas próprias
vitórias?18

Então, na época em que Courbet tentou resgatar a alegoria para a modernidade, a


linha que as separava tinha sido claramente traçada, e a alegoria, concebida como antitética ao
credo modernista Il faut être de son temps*, foi condenada, junto com a pintura histórica, a uma
existência marginal, puramente histórica.
Baudelaire, no entanto, a quem essa frase foi mais de perto associada, jamais
condenou a alegoria; em seu primeiro trabalho publicado, o Salão de 1845, ele a defendia contra os
“profissionais da imprensa”: “Como alguém poderia desejar... fazê-los compreender que a alegoria
é um dos mais nobres ramos da arte?”.19 O endosso da alegoria pelo poeta é apenas aparentemente
paradoxal, pois foi a relação da Antigüidade com a Modernidade que promoveu a base para sua
teoria da arte moderna, e a alegoria promoveu sua forma. Jules Lemaître, escrevendo em 1895,
descreveu o “especificamente baudelaireano” como a “constante combinação de dois modos
opostos de reação... um modo presente e um passado”. Claudel observou que o poeta combinou o
estilo de Racine com aquele do jornalista do Segundo Império.20 É nos oferecido um vislumbre das
bases teóricas desse amálgama do presente e do passado no capítulo “De le héroïsme de la vie
moderne” do Salão de 1846, e ainda em “O pintor da vida moderna” em que a modernidade é
definida como “o transitório, o instantâneo, o contingente; é uma parte da arte, a outra sendo o
eterno, o imutável”.21 Se o artista moderno foi exortado a concentrar-se sobre o efêmero, contudo,
foi porque ele era efêmero, ou seja, ele ameaçava desaparecer sem deixar rastro. Baudelaire
concebeu a arte moderna, ao menos em parte, como o resgate da modernidade para a eternidade.

9
Em “A Paris do Segundo Império“ [em Charles Baudelaire, um lírico no auge do
capitalismo] Benjamin enfatiza esse aspecto do projeto de Baudelaire, ligando-o ao monumental
estudo de Maxime Du Camp, Paris, ses organes, ses fonctions et sa vie dans la seconde moitié du
XIXe. Siècle (significativamente, Du Camp é mais conhecido hoje por suas fotografias de ruínas):

Subitamente, ocorreu ao homem que viajou muito pelo Oriente, que se familiarizou
com os desertos cuja areia é a poeira da morte, que esta cidade, cuja agitação o cercava,
também teria que morrer algum dia, do mesmo modo que muitas capitais morreram.
Ocorreu-lhe, como extraordinariamente interessante, uma acurada descrição de Atenas
no tempo de Péricles, Cartago no tempo de Barca, Alexandria no tempo de Ptolomeu,
Roma no tempo de Cesar, que poderia corresponder a nossa atualidade... Num instante
de inspiração, do tipo que ocasionalmente nos traz um tema extraordinário, ele resolveu
escrever o tipo de livro sobre Paris que os historiadores da Antigüidade falharam ao
escrever sobre suas cidades.22

Para Benjamin, Baudelaire foi motivado por um impulso idêntico, esclarecedor de sua
atração pelas gravuras alegóricas de Paris feitas por Charles Meyron, que “resgataram a face antiga
da cidade sem abandonar nenhum paralelepípedo”.23 Nas vistas de Meyron, o antigo e o moderno
foram superpostos, e, do desejo de preservar os traços de alguma coisa que já morrera ou que
estava para morrer, emergiu a alegoria: em uma ilustração, a Pont Neuf reformada, por exemplo,
foi transformada em um memento mori.24
O primeiro insight de Benjamin – “O gênio de Baudelaire, que esboçou sua nutrição
da melancolia, era um gênio alegórico"25 – efetivamente situa um impulso alegórico na origem do
modernismo nas artes e assim sugere a possibilidade previamente excluída de uma leitura alternada
dos trabalhos modernistas, uma leitura na qual sua dimensão alegórica poderia ser completamente
entendida. A manipulação de Manet das fontes históricas, por exemplo, é inconcebível sem a
alegoria; não foi um gesto supremamente alegórico reproduzir em 1871 o Toureiro morto como
um partidário da Comuna [Communard] ferido ou transpor o pelotão de fogo da A execução de
Maximiliano às barricadas de Paris? E não é a colagem, ou a manipulação e a conseqüente
transformação de fragmentos altamente significativos, também exploração da atomização, o
princípio disjuntivo que repousa no coração da alegoria? Estes exemplos sugerem que, ao menos

10
na prática, o modernismo e a alegoria não são antitéticos, pois é na teoria apenas que o impulso
alegórico tem sido reprimido. É à teoria, então, que precisamos voltar se quisermos apreender
todas as implicações de seu recente retorno.

II

Logo no início de “As Origens da Obra de Arte”, Heidegger introduz dois termos que
definem a “moldura conceitual” dentro da qual o trabalho de arte é convencionalmente localizado
pelo pensamento estético:

O trabalho de arte é, com certeza, uma coisa que é feita, mas ele diz alguma outra coisa
além da simples coisa que ele mesmo é, allo agoreuei. O trabalho torna público alguma
outra coisa além dele mesmo; ele manifesta alguma outra coisa: é uma alegoria. No
trabalho de arte alguma outra coisa é carregada junto com a coisa que é feita. Carregar
junto é, em grego, sumballein. O trabalho é um símbolo.26

Imputando uma dimensão alegórica a todo trabalho de arte, o filósofo parece repetir o
erro, freqüentemente lamentado pelos comentadores, de generalizar o termo alegoria a tal ponto
que ele se torna sem sentido. Ainda nessa passagem, Heidegger está apenas recitando as litanias da
estética filosófica de modo a preparar sua dissolução. A questão é irônica, e poderia ser lembrado
que a própria ironia é freqüentemente registrada como uma variante do alegórico; porque o fato de
das palavras poderem ser usadas para significar seus opostos é, em si mesmo, uma percepção
fundamentalmente alegórica.
Alegoria e símbolo – como todos os pares de conceitos – estão longe de serem
imparcialmente confrontados. Na estética moderna, a alegoria é regularmente subordinada ao
símbolo, que representa a unidade supostamente indissolúvel da forma e substância que caracteriza
a obra de arte como pura presença. Embora esta definição da obra de arte como tema manifesto
[MATÉRIA INFORMADA/ informed matter] é, sabemos, tão velha quanto a própria estética, foi
revivida com um sentido de urgência renovada pela teoria da arte romântica, na qual promoveu a
base para a condenação filosófica da alegoria. De acordo com Coleridge, “O Simbólico não pode,
talvez, ser melhor definido em distinção ao Alegórico porque ele é sempre em si mesmo uma parte

11
daquele, do todo do qual ele é representativo”.27 O símbolo é uma sinédoque, uma parte
representando o todo. Essa definição é possível, contudo, se, e somente se, a relação do todo com
suas partes for concebida de uma maneira particular. Esta é a teoria da causalidade expressiva
analisada por Althusser em Lire le Capital:

[O conceito de expressão de Leibniz] pressupõe em princípio que o todo em questão


seja reduzido a uma essência interior, na qual os elementos do todo sejam, então, não
mais do que as formas de expressão do fenômeno, o princípio da essência interior
estando presente em cada ponto no todo, de tal modo que seja possível a cada momento
escrever a equação adequada imediatamente: tal e tal elemento...= a essência interior
do todo. [Grifos acrescentados] Aqui estava um modelo que tornou possível pensar a
efetividade do todo em cada um de seus elementos, mas, se esta categoria – essência
interior/ fenômeno exterior – era para ser aplicada em todo lugar e em todo momento a
cada surgimento do fenômeno na totalidade em questão, ela pressupunha que o todo
tinha uma certa natureza, precisamente a natureza de um todo “espiritual” no qual cada
elemento era expressivo da totalidade inteira como uma “pars totalis”.28

A teoria de Coleridge é, portanto, expressiva do símbolo, a apresentação da união da


“essência interior” e da expressão exterior, que são de fato reveladas como idênticas. Pois essência
é apenas aquele elemento do todo que tem sido hipostasiado como sua essência. A teoria da
expressão, assim, procede em círculos: embora designada a explicar a efetividade do todo em seus
elementos constitutivos, é, contudo, aqueles mesmos elementos que reagem sobre o todo,
permitindo-nos conceber o último em termos de sua “essência”. Em Coleridge, portanto, o símbolo
é precisamente aquela parte do todo ao qual ele pode ser reduzido. O símbolo não representa a
essência; ele é a essência.
Na base dessa identificação, o símbolo torna-se o verdadeiro emblema da intuição
artística: “Da máxima importância para nosso presente tema é esse ponto, porque o último (a
alegoria) não pode ser outro a menos que expressado deliberadamente; enquanto no primeiro (o
símbolo) é muito possível que a verdade geral representada possa estar trabalhando
inconscientemente na mente do escritor durante a construção do símbolo”.29 O símbolo é então um
signo motivado; de fato, ele representa a motivação lingüística como tal. Por essa razão, Saussure

12
substituiu o termo signo por símbolo, pois o último é “jamais completamente arbitrário; ele não é
vazio, pois há o rudimento de um vínculo natural entre o significante e o significado”.30 Se o
símbolo é um signo motivado, então a alegoria, concebida como sua antítese, será identificada
como o domínio do arbitrário, do convencional, do imotivado.
Essa associação do símbolo com a intuição estética, bem como a da alegoria com a
convenção, foi herdada sem julgamento pela estética moderna; assim, registra Croce em Estética:

Agora, se o símbolo for concebido como inseparável da intuição artística, ele é um


sinônimo para a própria intuição, que tem sempre um caráter ideal. Não há um fundo
duplo para a arte, mas apenas um; na arte tudo é simbólico porque tudo é ideal. Mas,
se o símbolo for concebido como no outro lado separável – se o símbolo puder estar
em um lado, e a coisa simbolizada no outro lado, nós recairemos no erro dos
intelectualistas: o assim-chamado símbolo é a exposição de um conceito abstrato,
uma alegoria; é ciência, ou arte imitando ciência. Mas certamente nós, também,
apenas nos apróximamos do alegórico. Algumas vezes ele é completamente
inofensivo. Considerando a Gerusalemme liberata, a alegoria foi imaginada mais
tarde; considerando o Adone de Marino, o poeta do lascivo insinuou mais tarde que
ele foi escrito para mostrar como a “indulgência imoderada termina em dor”;
considerando uma estátua de uma bela mulher, o escultor pode acrescentar uma
legenda para a estátua dizendo que ela representa Clemência ou Santidade. Essa
alegoria que é anexada a um trabalho terminado post festum não muda o trabalho de
arte. O que é ela então? Ela é uma expressão externamente anexada a outra
expressão.31

Em nome da “justiça”, então, e de modo a preservar o caráter intuitivo de todo


trabalho de arte, incluindo o alegórico, a alegoria é concebida como um suplemento, “uma
expressão externamente acrescentada a outra expressão”. Aqui reconhecemos a estratégia
permanente da teoria ocidental da arte, que exclui do trabalho tudo aquilo que desafia sua
determinação como a unidade da “forma” e do “conteúdo”. 32 Concebido como alguma coisa
anexada ou supra-anexada ao trabalho depois de feito, a alegoria será, conseqüentemente, dele
destacável. Desse modo, o modernismo pode recuperar os trabalhos alegóricos para si próprio, sob
a condição de que o que os faz alegóricos seja omitido ou ignorado. O significado alegórico

13
aparece certamente como suplementar; podemos apreciar a Alegoria da Fortuna, de Bellini, por
exemplo, ou ler Pilgrim’s Progress como Coleridge recomendou, sem olhar para sua significação
iconográfica. Rosemond Tuve descreve a “experiência do espectador de um gênero de pintura (ou
o autor havia pensado assim) que se transforma em...[uma] alegoria diante de seus olhos, por
alguma coisa que ele conhece (usualmente sobre a história e por isso [reconhece] a mais profunda
significação da imagem).33” A alegoria é extravagante, um dispêndio de valor excedente; ela está
sempre em excesso. Croce considerava-a “monstruosa” precisamente porque ela encerra dois
conteúdos dentro de uma forma.34 Além disso, o suplemento alegórico não é somente uma adição,
mas também uma recolocação. Ela toma o lugar de um significado anterior, que é desse modo
apagado ou obscurecido. Porque a alegoria usurpa seu objeto ela comporta dentro de si mesma um
perigo, a possibilidade de perversão: que aquilo que é “simplesmente acrescentado” ao trabalho de
arte seja confundido com sua “essência”. Por isso a veemência com a qual a estética moderna – a
estética formalista em particular – opõe-se ao suplemento alegórico, pois ele desafia a segurança
das fundações sobre as quais a estética é erigida.
Se a alegoria é identificada como um suplemento, então ela está também alinhada com a
escrita, assim como a escrita é concebida como suplementar ao discurso. É, claro, dentro da mesma
tradição filosófica que subordina a escrita ao discurso que a alegoria está subordinada ao símbolo.
Poderia ser demonstrado, a partir de outra perspectiva, que a supressão da alegoria é idêntica à
supressão da escrita. Pois a alegoria, visual ou verbal, é essencialmente uma forma de escrita –
essa é a base do tratamento que Walter Benjamin lhe dá em A Origem do Drama Barroco Alemão :
“Em um só golpe a profunda visão da alegoria transforma coisas e trabalhos em excitante texto”.35
A teoria da alegoria de Benjamin, que procede da percepção de que “qualquer pessoa,
36
qualquer objeto, qualquer relação pode significar absolutamente qualquer outra coisa” desafia
sumariamente. Considerando, portanto, sua centralidade neste ensaio, algumas palavras a ela
referentes procedem. Na obra de Benjamin, A Origem do Drama Barroco Alemão, (escrito em
1924-25 e publicado em 1928), permanece como um trabalho seminal; nele estão reunidos os
temas que o irão preocupar ao longo de sua carreira: o progresso como o eterno retorno da
catástrofe; o criticismo como intervenção redentora do passado; o valor teórico do concreto, o
disparate, o descontínuo; seu tratamento do fenômeno como texto a ser decifrado. Esse livro,
então, lê como um prospecto toda a subseqüente atividade crítica de Benjamin. Como Anson
Rabinbach observa em sua introdução à recente edição de New German Critique devotada a

14
Benjamin, “Seu texto nos força a pensar em correspondências, a proceder por meio de imagens
alegóricas mais do que por explanação em prosa”.37 O livro sobre a tragédia barroca, assim, põe em
relevo a natureza essencialmente alegórica de todo o trabalho de Benjamin – o projeto “Paris
Arcades”, por exemplo, em que a paisagem urbana deveria ser tratada como uma sedimentação em
profundidade de camadas de significados que poderiam ser desenterradas gradualmente. Para
Benjamin, interpretar é desenterrar algo.
A Origem do Drama Barroco Alemão é um tratado sobre o método crítico; investiga
não somente a origem da tragédia barroca, mas também a desaprovação crítica a que ela tem sido
submetida. Benjamin examina em detalhe a teoria romântica do símbolo; expondo suas origens
teológicas, ele prepara sua atualização.

A unidade do objeto material e transcendental que constitui o paradoxo do símbolo


teológico é distorcida em uma relação entre aparência e essência. A introdução dessa
concepção distorcida do símbolo na estética foi uma extravagância romântica e
destrutiva que precedeu a desolação da crítica da arte moderna. Como um constructo
simbólico, ele é supostamente fundido com o divino em um todo inquebrantável. A
idéia de uma imanência ilimitada do mundo moral no mundo da beleza é derivada da
estética teosófica dos românticos. Mas os fundamentos desta idéia foram lançados
muito tempo antes.38

Em sua afirmação, Benjamin estabelece o signo (gráfico), que representa a distância


entre um objeto e seu significado, a erosão progressiva do significado, a ausência de
transcendência interior. Por meio dessa manobra crítica ele é capaz de penetrar o véu que
obscureceu o empreendimento do barroco, para apreciar completamente sua significação teórica.
Mas ela também lhe permite liberar o texto de sua tradicional dependência do discurso. Na
alegoria, então, “a linguagem escrita e a falada confrontam-se em tensa polaridade... A divisão
entre a linguagem escrita significante e a linguagem falada intoxicante abre uma clareira na massa
sólida do significante verbal e força o olhar às profundezas da linguagem”.39
Encontramos um eco dessa passagem no apelo de Robert Smithson tanto para uma
prática quanto para uma crítica alegórica das artes visuais em seu texto “A Sedimentation of Mind:
Earth Projects”:

15
Os nomes de minerais e os próprios minerais não se diferem, porque no fundo tanto
do material quanto do sinal impresso está o começo de um número abissal de fissuras.
Palavras e rochas contêm uma linguagem que segue a sintaxe de fendas e rupturas.
Olhe para qualquer palavra por bastante tempo e você vai vê-la se abrir em uma série
de falhas, em um terreno de partículas, cada uma contendo seu próprio vazio (...) As
Aventuras de Arthur Gordon Pym, de Poe, parece-me uma excelente crítica de arte e
um protótipo para investigações rigorosas de “non-site” [“não-lugar”]. Suas
descrições de fendas e buracos parecem no limiar de propostas de “earthwords”
[“palavras de terra”]. As formas das brechas elas mesmas tornam-se “raízes verbais”
que esclarecem a diferença entre a luz e a escuridão.40

Smithson refere-se às fendas alfabéticas descritas na conclusão do romance de Poe;


em uma “Nota” acrescentada ao texto, o novelista deslinda sua significação alegórica, que “fora de
dúvida tem escapado à atenção de Mr. Poe”.41 Formações geológicas são transformadas pelo
comentário em um texto articulado. Significativamente, Poe não dá indicação de como esses
códigos etíopes, arábicos e egípcios originais são pronunciados; eles são puramente fatos gráficos.
Foi aqui, onde o texto de Poe volta atrás sobre si mesmo para prover seu próprio comentário, que
Smithson vislumbrou sua própria aventura. E naquele ato de auto-reconhecimento está implícito
um desafio tanto para a arte quanto para a crítica, um desafio que pode agora ser enfrentado
adequadamente. Mas isso é tema para outro ensaio.

“The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism”, October, primavera 1980, in:
Beyond Recognition. Representation, Power and Culture, Scott Bryson, Barbara Kruger, Lynne
Tillman e Jane Weinstock (orgs.), University of California Press Berkeley, Los Angeles, Oxford,
1992.

Tradução: Neusa Dagani


Revisão Técnica: Glória Ferreira

16
Notas sobre o autor: Craig Owens (1950-1990) lecionou História da Arte na Yale, Barnard, The
University of Rochester e na University of Virginia. Trabalhou como colaborador em diversas
revistas, entre as quais a October, e foi editor da Art in America. O livro Beyond Recognition.
Representation, Power and Culture, (University of California Press Berkeley, Los Angeles,
Oxford, 1992), reunindo seus escritos, foi organizado postumamente por Scott Bryson, Barbara
Kruger, Lynne Tillman e Jane Weinstock, amigos seus.

NOTAS
Observação do Autor: *Este é o primeiro de dois ensaios devotados aos aspectos alegóricos da
arte contemporânea. Depois de um levantamento esquemático sobre o impacto da alegoria na arte
recente, procedo aos debates teóricos que ela levanta. Pretendo ampliar essas observações em um
segundo ensaio através de leituras de trabalhos específicos nos quais um impulso alegórico pareça
soberano.
(NRT: Ver “The Allegorical Impulse: Toward a Theory of Postmodernism, Part 2”, October, n°
1”, Verão 1980, e “Earthwords”, October n° 10, Outono 1979, ambos in: Beyond Recognition,
op. cit. )

17
1
Jorge Luis Borges, “From Allegories to Novels” in Other Inquisitions (Nova Iorque: Simon e Schuster, 1964), 155-56.
2
Sobre alegoria e psicanálise, ver Joel Fineman, “The Structure of Allegorical Desire”, October 12 (Primavera, 1980). As
observações de Benjamin sobre a alegoria podem ser encontradas na conclusão do capítulo de “The Origin of German
Tragic Drama”, trad. ingl. por John Osborne (Londres:NLB, 1977). Sobre Benjamin, ver páginas 84-85.
3
Ver Rosalind Krauss, “Notes on the Index: Seventies Art in América” , October 3 (Primavera, 1977), 68-81.
4
Northrop Frye, Anatomy of Criticism (Nova Iorque: Atheneum, 1969), 54.
5
Douglas Crimp, “Pictures”, October 8 (Primavera, 1979), 85, itálicos anexados.
6
Benjamin, Origin of German Tragic Drama, 183-84.
7
Idem ibidem, 666.
8
Idem ibidem, 223.
9
“Nem Evans ou Atget presumem colocar-nos em contato com uma realidade pura, uma coisa em si mesma: suas
produções sempre afirmam sua própria arbitrariedade e contingência. E o mundo que eles fotografam especialmente é um
mundo já construído sobre um significado que precede a fotografia; um significado inscrito pelo trabalho, pelo uso, como
habitação, como artefato. Suas fotografias são signos representando signos, unidades em cadeias implícitas de significação
que vão permanecer somente nos maiores sistemas de significação social: códigos de casas, ruas, espaços públicos.” Alan
Trachtenberg, “Walker Evans’s Message from the Interior: A Reading”, October 11 (Inverno, 1979), 12, itálicos anexados
pelo autor.
10
Benjamin, Origin of German Tragic Drama, 178.
11
Angus Fletcher, Allegory: The Theory of a Symbolic Mode (Ithaca: Cornell University Press, 1964), 279-303.
12
Idem ibidem, 174.
13
Fineman, “Structure of Allegorical Desire” op.cit., 51. “Assim, existem alegorias que são primariamente perpendiculares,
concernentes mais à estrutura do que à extensão temporal... Por outro lado, existe a alegoria que é primariamente
horizontal... Finalmente, claro, existem alegorias que combinam ambos os eixos em conjunto, em proporções relativamente
iguais... Qualquer que seja a orientação prevalente de qualquer alegoria em particular, contudo – acima e abaixo através dos
desvios da estrutura, ou lateralmente desenvolvidas através do tempo narrativo – ela será bem-sucedida como alegoria
somente para propagar que ela pode sugerir a autenticidade com que os dois pólos coordenados se ajustam à estrutura,
plausivelmente desdobrada no tempo, e à narrativa, persuasivamente sustentando as distinções e equivalências descritas pela
estrutura” (50).
14
Arthur Schopenhauer, “The World as Will and Representation”, I. 50. apud Benjamin, Origin of German Tragic Drama,
162.
15
Este aspecto da alegoria pode ser reconhecida nos esforços dos estudiosos humanistas para decifrar hieróglifos: “Em suas
tentativas, eles adotaram o método do corpus pseudo-epigráfico escrito ao final do segundo, ou possivelmente, no quarto
século D.C., o Hieroglyphica, de Horapollon. Seu tema...consiste inteiramente nos assim chamados hieróglifos simbólicos
ou enigmáticos, meros signos pictoriais, tais como foram apresentados ao especialista ao lado dos signos fonéticos comuns,
no contexto da instrução religiosa, como o último estágio em uma filosofia mística da natureza. Os obeliscos foram
relacionados às memórias dessa interpretação em mente, e um equívoco, então, tornou-se a base da rica e infinitamente
difundida forma de expressão. Em conseqüência, os eruditos procederam a partir da exegese dos hieróglifos egípcios, nos
quais os dados históricos e culturais foram recolocados pelos lugares-comuns da filosofia popular, moral e mística, à
propagação desse novo tipo de escrita. Os livros de iconologia que foram produzidos não só desenvolveram as frases dessa
escrita, e traduziram por completo as sentenças ‘palavra por palavra pelos signos pictoriais especiais’, mas também se
apropriaram da forma do léxico. ‘Sob a liderança do estudioso de arte Al- bertus, os humanistas, então, começaram a
escrever com imagens concretas (rébus) em vez de letras; a palavra “rébus”, assim originada na base dos hieróglifos
enigmáticos, e medalhões, colunas, arcos triunfais e todos os objetos artísticos concebíveis produzidos pela Renascença,
foram envolvidos com tais enigmáticos artifícios.’ Benjamin, Origin of German Tragic Drama, 168-69. (As citações de
Benjamin foram retiradas do monumental estudo de Karl Giehlow, Die Hieroglyphenkunde dês Humanismus in der Allegorie
der Renaissance.)
16
Roland Barthes, “Diderot, Brecht, Eisenstein”, Image-Music-Text, trad. ingl. por Stephen Heath (Nova Iorque: Hill e
Wang, 1977), 73.
17
Walter Benjamin, “Theses on the Philosophy of History”, in Illuminations, trad. Ingl. por Harry Zohn (Nova Iorque:
Schocken, 1969), 255.
18
Apud George Boas, “Courbet and His Critics”, in Courbet in Perspective, ed. Petra ten-Doesschate Chu (Englewood
Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1977), 48.
19
Charles Baudelaire, “Salon of 1845”, in Art in Paris 1845-1862, ed. e trad. Jonathan Mayne (Nova Iorque: Phaidon,
1965), 14.
20
Apud Walter Benjamin, “The Paris of the Second Empire in Baudelaire”, in Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era
of High Capitalism, trad. por Harry Zohn (Londres: NLB, 1973), 100. A observação de Lemaître aparece na p. 94 do mesmo
texto.
21
Charles Baudelaire, “The Painter of Modern Life”, in Selected Writings on Art and Artists, trad. P.E. Charven (Baltimore:
Penguin, 1972), 403.
22
Paul Bourget, “Discours académique du 13 juin 1895. Succession à Maxime Du Camp”, in L’anthologie de l’Académie
française. Apud Benjamin, Charles Baudelaire, 86.
23
Benjamin, Charles Baudelaire, 87.
24
Benjamin cita a legenda; na tradução lê-se: “Aqui jaz a exata semelhança da velha Pont Neuf, toda vedada como nova de
acordo com uma lei recente. Oh, doutos médicos e hábeis cirurgiões, por que não fazem conosco o que foi feito com esta
ponte de pedra” (Charles Baudelaire, 88).
25
Walter Benjamin, “Paris – the Capital of the Nineteenth Century”, in Charles Baudelaire, 170.
26
Martin Heidegger, “The Origin of the Work of Art”, in Poetry, Language, Thought, trad. Albert Hofstadter (Nova Iorque:
Harper e Row, 1971), 19-20.
27
Coleridge’s Miscellaneous Criticism, ed. Thomas Middelton Raysor (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1936),
99.
28
Louis Althusser e Etienne Balibar, Reading Capital, trad. ingl. Ben Brewster (Londres: NLB, 1970), 186-87.
29
Coleridge’s Miscellaneous Criticism, 99. Esta passagem poderia ser comparada com a famosa condenação da alegoria por
Goethe: “Faz uma grande diferença se o poeta começa com uma idéia universal e então olha para certos particulares, ou vê
o universal no particular. O primeiro método produz a alegoria, onde o particular tem status meramente como uma instância,
um exemplo do universal. O último, por contraste, é o que revela a poesia em sua verdadeira natureza: fala além de um
particular sem reflexão sobre ou referindo-se a um universal, independentemente, mas apreendendo o particular em seu
caráter de existência, ele implicitamente apreende o universal junto com ele.” Citado por Philip Wheelwright, The Burning
Fountain (Bloomington: Indiana University Press, 1968), 54, itálicos anexados. Isto relembra a perspectiva de Borges sobre
a alegoria: “A alegoria é uma fábula sobre abstrações, como o romance é uma fábula sobre indivíduos. As abstrações estão
personificadas; portanto, em cada alegoria há alguma coisa do romance. Os indivíduos propostos pelos romancistas aspiram
a ser universais (Dupin é a Razão, Dom Segundo Sombra é o Gaúcho); um elemento alegórico é inerente aos romances”
(“From Allegories to Novels”, 157).
30
Ferdinand de Saussure, Course in General Linguistics, trad. Wade Baskin (Nova Iorque: McGraw-Hill, 1966), 68.
31
Benedetto Croce, Aesthetic, trad. Douglas Ainslie (Nova Iorque: Noonday, 1966), 34-35.
32
Isso é o que a exclusão de Kant sancionou, na Crítica do Juízo, da cor, drapejamento, enquadramento... como ornamento
meramente anexado ao trabalho de arte e não partes intrínsecas dele. Ver Jacques Derrida, “The Parergon”, October 9
(Verão, 1979), 3-40, e também o epílogo, “Detachment: from the parergon”, 42-49.
33
Rosemond Tuve, Allegorical Imagery (Princeton: Princeton University Press, 1966), 26.
34
Citado por Borges, “From Allegories to Novels”, 155.
35
Benjamin, Origin of German Tragic Drama, 176.
36
Ibid., 175.
37
Anson Rabinbach, “Critique and Commentary: Alchemy and Chemistry”, New German Critique 17 (Primavera, 1979), 3.
38
Benjamin, Origin of German Tragic Drama, 160.
39
Ibid., 201.
40
Robert Smithson, “A Sedimentation of Mind: Earth Projects”, in The Writings of Robert Smithson, ed. Nancy Holt (Nova
Iorque: New York University Press, 1979), 87-88. Sobre a alegoria de Smithson, ver minha crítica na October 10 (Outono,
1979), 121-30.
41
Edgar Allan Poe, The Narrative of Arthur Gordon Pym (Nova Iorque: Hill e Wang, 1960), 197.

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