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Universidade Federal do Amapá


Pró-Reitoria de Ensino de Graduação
Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia
Disciplina: Fundamentos da Filosofia
Educador: João Nascimento Borges Filho

Didática da Filosofia
Paulo Ghiraldelli Jr
Universidade Estadual Paulista (UNESP - Marília)
Há uma didática para o ensino da filosofia?
Se há ensino há didática. Se a filosofia pode ser ensinada, há uma
didática para ela. E como a filosofia pode, certamente, ser ensinada - pois é
ensinada desde seus primeiros dias -, não há como negar que alguma didática
é empregada no seu ensino. Qual é, então, o problema da didática em
filosofia?
Grosso modo, o problema da didática geral é um só: estabelecer o limite
entre o que está sendo organizado de maneira a ser melhor apreendido pelo
estudante e o assunto propriamente dito como ele aparece classicamente na
história dos conhecimento. Assim, o problema da didática da filosofia é, mutatis
mutandis, o mesmo que o da didática geral - falando através de um exemplo:
como posso organizar os argumentos de Peirce contra Descartes, de modo
que eu venha a ser compreendido pelos meus estudantes sem, no entanto,
trair o consenso que existe entre os bons professores de filosofia a respeito do
que disse Peirce na sua oposição a Descartes. Se consigo uma narrativa sobre
isso que satisfaça as necessidades intelectuais de meus alunos e ao mesmo
tempo tenha a benção do crivo da crítica de meus bons pares e das minhas
próprias exigências, realizei um bom trabalho didático em filosofia, no que se
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refere a começar a explicar onde é que o pragmatismo dá início ao seu


combate ao cartesianismo.
Colocado assim, formalmente, o problema da didática da filosofia parece
ser a coisa mais fácil de se fazer no mundo. Em parte é, em parte não é.
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Para o professor de filosofia que estudou Peirce e estudou Descartes, e


que se lembra das dificuldades que passou com um e com outro, não vejo
razões para, agora, uma vez mais velho, esquecer essas dificuldades e
simplesmente acreditar que as novas gerações devem bater a cabeça nos
mesmos lugares em que ele bateu. Um professor de filosofia precisa entender
de modo plausível a frase que Aristóteles teria dito a Alexandre, de que "não há
atalho (caminho) real para a filosofia", diante da insistência de Alexandre em
aprender sem tanto esforço e demora. O grego não estava dizendo ao
macedônio que ele precisava bater a cabeça nos mesmos lugares comuns de
todos os estudantes, mas apenas avisando que ele, Alexandre, na filosofia, não
poderia dirigir seu cavalo intelectual como ele o fazia no trânsito da época com
o seu próprio cavalo, ou seja, se permitindo pegar estradas proibidas ao
cidadão comum mas abertas ao imperador. A filosofia possui regras. O
aprendizado da filosofia idem. Essas regras são, exatamente, a didática da
filosofia - no caso, a didática da filosofia que Aristóteles estaria usando para
educar Alexandre.
Nos nossos tempos, onde a ideia da necessidade de democratização da
cultura é algo quase que indiscutível, surgiram pessoas que souberam muito
bem mostrar que o ponto chave que toda didática procura é possível de ser
achado para todo e qualquer assunto, ainda que certos assuntos ou partes dele
tenham de ficar restritos, obviamente, a certas faixas etárias. A filosofia não
escapou disso. Descartes, por exemplo, escreveu tanto reflexões filosóficas e
tratados como também textos com os quais ele queria ver seu modo de pensar
divulgado, acessível, absorvível. Nesse sentido, Descartes não é só o pai da
filosofia moderna, é também, no campo do próprio ensino da filosofia, um
espírito moderno par excellence. Há quem diga até que ele e Comênio
chegaram a marcar um encontro, para conversar, provavelmente, sobre
manuais didáticos e sobre otimização do ensino. Esse encontro não ocorreu,
mas o fato dele ter sido, talvez, agendado, mostra que Descartes se mostrava,
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ao contrário de muitos professores de filosofia de hoje em dia, como alguém


que nada tinha de pedante. Estava longe dele a ideia de colocar o saber
filosófico em uma redoma de vidro, cultuado como um gato sagrado egípcio ou
uma vaca na Índia ou qualquer outro tipo de totem. Todavia, quem conhece o
texto que Descartes fez para divulgar suas ideias sabe muito bem que o que
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não falta ali é o rigor - rigor não no sentido de dificultar a leitura mas, ao
contrário, um rigor filosófico e ao mesmo tempo didático no sentido de tornar a
leitura fluente.
O livro de que falo é o Princípios de Filosofia, de 1644. Há quem diga que
Descartes o escreveu como um texto de sistematização de suas ideias, até
então esparsas. Isso é verdade. Mas é meia verdade. Descartes queria que o
texto fosse um textbook. Assim, o livro foi escrito em latim e depois traduzido
para o francês, para concorrer em pé de igualdade com outros em qualquer
tipo de escola. O livro foi traduzido pelo Abade Picot para o francês, e revisado
pelo próprio Descartes. Quem olha os manuais de ensino da época e lê os
Princípios não consegue deixar de notar a semelhança de organização e estilo.
A forma de exposição, ao contrário das Meditações, é dogmática - própria
de todo e qualquer manual, com um claro aviso no final, que faz com que o
aluno se lembre de que, talvez, ele, mais tarde, tenha de reestudar tudo lendo
a própria obra de Descartes. Ou seja, no final do livro Descartes avisa o
estudante que ele não deve acreditar em tudo que está ali sem que aquilo não
seja examinado à luz de sua própria razão. Descartes chama o aluno para se
juntar ao espírito do Iluminismo e, assim, de certo modo, talvez, levá-lo às
meditações (do aluno) que, com sorte, seriam as Meditações - as Meditações
Metafísicas (1641), de Descartes.
De Descartes até nós, uma boa parte dos grandes bons filósofos foram
também bons escritores de manuais de suas próprias posições e, muitos, bons
escritores de manuais de história da filosofia. Tudo voltado para o estudante,
para aquele que não sabe e precisa ou quer saber filosofia. Muitos, inclusive,
fizeram mais: conseguiram ensinar a filosofia do adversário na medida em que,
para criticá-lo, se viram na obrigação intelectual de organizar a posição do
outro de uma forma acessível ao grande público - o "público leigo culto".
Agora, o que a didática da filosofia não garante, seja ela qual for, é que o
lema de Comênio possa ser cumprido: "ensinar tudo a todos". Por exemplo:
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posso ensinar a um aluno de graduação em ciências humanas, de modo


correto e razoavelmente simples, o que é a teoria da verdade como
redundância, de Frank Ramsey. Se me derem tempo e uma classe de alunos
razoavelmente interessados, sei que me sairei bem nisso e, com certeza, não
teria vergonha de botar minha aula no papel e apresentá-la aos meus pares
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mais velhos e melhores que eu. Mas eu não garanto poder fazer isso com
estudantes mais jovens, obtendo o mesmo sucesso. E, é claro, acho
impossível de ensinar Ramsey para crianças - e inútil, o que é mais relevante!
Acho mesmo que criança não precisa de Ramsey, nem precisa de filosofia para
aprender a pensar de modo a vir um dia a ser um pensador tão bom quanto
Ramsey. Nem precisa de filosofia para vir a ser um pensador bom, mas não tão
bom quanto Ramsey.
A didática da filosofia, como a própria filosofia, é para quem gosta de
filosofia. Por quê? Porque a filosofia não se separa de seu ensino. Não há
como. Todos que quiseram separar a filosofia do ensino da filosofia não
fizeram nem uma coisa nem outra, foram apenas espantalhos em
departamentos de filosofia caducos. Agora, ensino de filosofia não é algo que
se resolve com reuniões para falar dele, é algo que só melhora se os
professores de filosofia, em vez de falarem dele, ensinarem filosofia. Mas em
geral, os que falam sobre didática da filosofia, sobre ensino da filosofia, não
conseguem escrever um texto capaz de ensinar os alunos a oposição de
Peirce a Descartes, muito menos a teoria da redundância de Ramsey. Eis aí,
então, um outro problema da didática da filosofia e... enfim, da filosofia!

Prof. Borges
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