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A Hermenêutica Francesa - Paul Ricoeur PDF
A Hermenêutica Francesa - Paul Ricoeur PDF
PAUL RICOEUR
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
GRANDE DO SUL
EDIPUCRS
A v. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
C.P. 1429
90619-900 Porto Alegre - RS
Fone/Fax.: (51) 3320-3523
E-mail edipucrs@pucrs.br
www.pucrs.br/edipucrs/
Constança JVIarcondes Cesar (Org.)
A HERMENÊUTICA FRANCESA
PAUL RICOEUR
Coleção:
FILOSOFIA- 140
EDIPUCRS
PORTO ALEGRE
2002
© Copyright de EDIPUCRS, 2002
ISBN: 85-7430-282-1
CDD : 194
Apresentação I 7
Daniel Desroches
A vida longa da compreensão em Paul Ricoeur I 9
Ricoeur, crítico do cogito I 27
C.M.C.
Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)
1
B. STEVENS, L'apprelltissage des signes. op.cit.. p. 6.
2
Acrescentemos que os conceitos de atestação e de restauração do ser, próprios de
Jaspers (KJ 372) retornam, mais de quarenta anos depois no Si mesmo como w11
outro (345-4 lO) de modo a confirmar esta hipótese.
3
Ricoeur escreve: (MJ 350).
4
A influência de Mareei é decisiva em O voluntário e o involuntário: (VI 12).
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Daniel Desroches
5
O artigo de que se trata é: ( 1952), HV 23-44.
6
Cf. HV, 36, 55 e 69.
7
Cf. HV, 36, 64 e 67.
8
Cf. Tempo e Narrativa III: O 1empo narrado. pp. 280-300.
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pressão (SM 244, 9). Mas que diz Ricoeur, em que ele se aparenta
com uma via longa da compreensão dos símbolos?
Depois de ter elaborado sua própria interpretação dos mitos
que ilustram a entrada em cena do mal, o autor observa que preci-
sa, daí em diante, explorar uma via nova. No termo de sua dupla
abordagem, pela reflexão pura em O lzomem falível e pela lingua-
gem da confissão, na Simbólica do Mal, o fosso é manifesto e a
compreensão do mal permanece selada. O problema do mal per-
siste pois resiste a uma interpretação redutora; ao contrário, remete
a uma hermenêutica que abre a filosofia à plenitude ontológica do
homem. Com efeito, o estudo exegético dos símbolos revela não
somente a condição humana no coração do ser, mas também o
acréscimo de sentido que se desvela por uma hermenêutica do sa-
grado.
Como o filósofo busca compreender sempre mais, é preci-
so que avance numa terceira via; a da interpretação criadora de
sentido, a de uma restauração da linguagem simbólica inspirada no
adágio kantiano. O que esta fórmula significa é que é preciso pros-
seguir do lado da doação dos símbolos, mantendo sempre o empre-
endimento crítico da reflexão filosófica. Quando o jovem pensador
protestante escreve (SM 325) ou então (SM 327), entende que a
crença só é possível, hoje, ligada à interpretação e entrevê isso fa-
zendo uma revivificação da linguagem simbólica pela redação de
uma Poética da liberdade.
Não desejamos debater o destino da Poética que nunca foi
publicada embora em parte elaborada. É preciso, antes, mostrar que
a fonte de uma única via longa da compreensão está bem presente,
principalmente quando Ricoeur precisa como a hermenêutica en-
contra o problema da mediação crítica e da apropriação do simbo-
lismo religioso na imediatez da crença. Logo, é o círculo her-
menêutica de Agostinho, retomado e explicitado por Bultmann,
que Ricoeur escolhe, a fim de abrir a interpretação dos mitos em
direção à hermenêutica propriamente filosófica. O círculo é este.
Dado isso, o desafio ricoeuriano será superar a circularidade da
linguagem em direção ao ser. Em outros termos, é preciso quebrar
9
Cf. o artigo: CI 7-28.
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10
Esses dois textos são: (1975) e (1973), artigos que foram reeditados com a pu-
blicação dos segundos Ensaios de hermenêutica (TA) em 1986.
11
O conflito era o seguinte: "Tomar manifesta a crise da linguagem que faz co1n
que hoje oscilemos entre a desmistificação e a restauraçcio do sentido. tal é a
razcio projimda que motiva a posiçcio inicial de nosso problema/ .. . } uma intro-
dução à psicanálise da cultura devia passar por esse grande desvio" (EF 36).
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Quatro anos mais tarde, num artigo que foi retomado por
ocasião de História e Verdade, o jovem Ricoeur retornava direta-
mente à oposição metodológica, mas desta vez na qualidade de
historiador da filosofia. Observava então que dois modelos da
compreensão histórica deviam se opor. Com efeito, a interpretação
filosófica inquire sobre a singularidade de uma doutrina, enquanto
12
Cf. a nota especial que Ricoeur consagra a esta questão na antologia: HY 60-5.
13
Eis a passagem: '"A distinção entre o motivo ( ... ) e a causa (. .. ) ncio concerne
absolutamente ao grau de generalidade das proposições. É a distinçcio que
Brentano, Dilthey, Husserl tinham em mente, quando opuseram a compreensüo
do psíquico ou do histórico e a explicação da natureza(. .. )" ( 1965: EF 355).
14
Esta cientificidade "[r]epousa sobre três argumentos: primeiro, os signos seio
fatos com direito igual aos fatos sobre os quais se edificam as ciências da nalll-
reza; em seguida, esses signos não se dão em estado disperso. mas em encade-
amentos, que dão às objetivações da vida uma forma de sistema; enfim, a indi-
viduação do mundo humano encontrou na jixaçüo pela escrita wn grau superi-
or de objetividade" (L2 452).
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15
Cl34; L2 352. Cf. também 54 e 58; L2 374 e 379. Quanto ao Do texto à ação, a
questão da articulação está nas páginas 146 e 154.
16
"Depende, em compensaçüo, de uma filosofia reflexiva, compreender-se a si
mesma como hermenêutica, afim de criar a estrutura de acolhimento para uma
alllropologia estrutural; quanto a isto, é função da hermenêutica fazer coincidir
a compreensüo do outro com a compreensão de si e do ser. A objetividade es-
trutural pode então aparecer como um momento abstrato - e validameme abs-
trato - da apropriaçüo e do reconhecimento pelo qual a reflexão abstrata se
torna reflexão concreta" (L2 374).
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17
Cf. TA 151-9 e também, para uma retomada paralela das mesmas idéias. o arti-
go. principalmente nas páginas 115-7.
*
**
Eis as conclusões da presente investigação. 1) É evidente
que a via longa da compreensão encontrariajontes na teoria das ci-
Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)
1
Discurso do Método, tomo I, Ed. Alquié, Garnier, 1988, p. 603 (AT, VI, 32).
2
Meditações metajfsicas, ibidem, tomo li, Clássicos Garnier, 1967, p. 415 (AT.
IX, 19).
3
Cf. principalmente Heidegger, "O fim da filosofia e a reviravolta". in Questões
IV, Gallimard, 1976, p. 290.
4
Cf. a princira meditação in Meditações cartesianas, trad. G. Peiffer e E. Levinas,
Vrin, 1966, pp. 6-23.
5
Há muitas, de fato. As mais importantes são, para Ricoeur, as de Nietzsche (SA
22-7) e de Heidegger (cf. Ser e tempo, § 25 e TA 49).
6
Cf. História da loucura na idade clássica, Gall imard. 1972, pp. 56-8 e. princi-
palmente As palavras e as coisas, Gallimard, 1966: V, "O cogito e o impensa-
do", pp. 333-9.
7
Uma das críticas de Levinas é reportada na nota 17 deste estudo. na página qua-
torze.
8
Diálogos Paul Ricoeur - Gabriel Mareei, Aubier Montaigne, 1968. p. 39.
9
O retorno a esta herança. que Ricoeur propõe. no artigo em homenagem a seu
mestre: "Reflexão primeira e reflexão segunda em Gabriel Mareei''. é muito si-
gnificativo, quanto a isto. Este artigo foi retomado em L2. pp. 49-67.
10
Existência e objetividade. Posição e abordagells do mistério Olltológico. Pa-
raí'tre. 1995, p. 17.
11
Poderíamos, sem dúvida, remontar historicamente à influência decisiva que o
professor R. Dalbiez exerceu sobre o jovem Ricoeur. A propósito disso, ver o
ensaio autobiog ráfico: RF 12-13.
12
Acha-se justamente, segundo Ricoeur, tal "conquista de si'' em Karl Jaspers
(MJ, 85). Donde talvez o caráter programático desta ambição: fazer da subjeti-
vidade antes um termo, que um ponto de partida.
13
Assim B. Stevens teria razão em afirmar que "Ricoeur propõe uma concepçüo
do s1úeito onde este ll(lO é mais o ponto de partida.fimdanle de uma constituiçüo
do lllundo, 1nas o ponto de chegada de uma lzer111enêutica do si". C f. A aprendi-
zagem dos signos: Leitura de Paul Ricoeur, Kluwer Academic Publishers, 1991 ,
pp. l e 20.
14
" Porfilosofía reflexiva, entendo de modo amplo o modo de pensar nascido do
cogito cartesiano, através de Kant e de filoso.fi'a pós-kantiana francêsa, pouco
conhecida 110 estrangeiro e da qual Jean Nabert foi, para mim. o pensador mais
marcallfe. Os problemas.filosóficos de wna.filoso.fia reflexiva mais radicais são
os concemellfes à possibilidade da compreensão de si como sujeito das opera-
ções de conhecimemo, de volição( ... )" (TA 25).
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Daniel Desroches
17
Cf. uma crítica levinasiana do cogito: "É sem dtívida esse saber implícito [viver
ao modo do J>erj que justifica o amplo emprego que Descartesfm:. do termo co-
gito nas Meditações. E esse verbo 1w primeira pessoa diz bem a unidade do eu,
onde todo saber se basta". Levinas não se estende provavelmente nesse senti-
do, interrogando assim: "O sentido é sempre correlativo a uma tematizaçüo e a
uma representaçüo? O pensamento está inteiramente votado à adequaçüo e à
verdade? O pellSamellfo é, por essência, relaçüo com o que lhe é igual, isto é.
essencialmente ateu'!" "A consciência não intencional'' in Cahier de l'Herne.
l'Herne, 1991, pp. 77-9.
18
Cf. a réplica dada a Ch. Bouchindhomme, in "Tempo e narrativa" de Paul Ri-
coeur em debate, Cerf, 1990. pp. 211-2. Ricoeur distingue, dentre outros temas.
"a lzybris que leva nosso pensamento a se colocar como senhor do sentido" em
Tempo e Narrativa fll, p. 375 e também 391-2.
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Daniel Desroches
SIGLAS
KJ Karl Jaspers et la philosophie de l'existence, Seuil, Paris,
1947.
MJ Gabriel Mareei et Karl Jaspers: Philosophie du mystere et
· philosophie du paradoxe, Temps Présent, Paris, 1947.
HV Histoire et Vérité, Seuil, Paris, 1955 (Citamos a reedição
de 1964).
VI Philosophie de la volonté I. Le volontaire et l'involontaire,
Aubier. Paris, 1950.
HF Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
I L'hommefailible. Aubier, Paris, 1960.
SM Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
2. La Symbolique du mal, Aubier, Paris, 1960.
EF De l'interprétation. Essai sur Freud, Seuil, Paris, 1965.
CI Le conjlit des interprétations. Essais d'herméneutique,
Seuil, Paris, 1969.
TA Du texte à l'action. Essais d'herméneutique, Il, Seuil, Pa-
ris, 1986.
SA Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1992.
L2 Lectures 2. La contrée des philosophes, Seuil, Paris, 1992.
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O Proble111a da tolerância em Paul lvmmr
mos, nas outras culturas, a sua dimensão viva, criadora, fiel às suas
origens e aberta ao choque, ao confronto: "Aos sincretismos deve-
mos opor a comunicação, isto é, uma relação dramática, na qual
alternadamente me afirmo em minha origem e me entrego à imagi-
nação de outrem, de acordo com sua civilização diferente da mi-
nha" (id., p. 291 ). Esse diálogo ainda não se deu verdadeiramente:
"estamos numa espécie de interregno, no qual não mais podemos
praticar o dogmatismo da verdade única e no qual não somos ainda
capazes de vencer o ceticismo no qual ingressamos . Estamos no
túnel , no crepúsculo do dogmatismo, no limiar dos verdadeiros
diálogos" (id.).
A tarefa da filosofia reflexiva é a busca do núcleo simbóli -
co da humanidade. Trata de manifestar a pluralidade de sentidos
exposta no campo hermenêutica, enumerando, primeiro, do modo
mais amplo possível, as formas simbólicas. Reconhece, assim, a
extensão dessas formas, em três grandes expressões lingüísticas: a
dos símbolos cósmicos, a dos oniricos, a dos poéticos. Faz, a partir
dessa enumeração, a análise compreensiva das formas simbólicas,
estabelecendo, a seguir, uma criteriologia, que fixa a constituição
semântica de formas aparentadas . Na etapa seguinte, estuda os
procedimentos metodológicos da interpretação, confrontando esti-
los hermenêuticas e criticando os sistemas de interpretação. Assim,
Ricoeur encontra as raízes ontológicas da compreensão, articulan-
do as hermenêuticas rivais numa unidade cujo fundamento é a uni -
dade do próprio ser humano, a quem todas elas se reportam.
A tolerância, aqui, quanto à pluralidade das interpretações,
se expressa nessa atitude que combina abertura não-dogmática e
método rigoroso, fundando a possibilidade do diálogo no próprio
ser que, refletindo, aborda a realidade sob múltiplas perspectivas .
. Temas correlatos, nos escritos de Ricoeur, à meditação so-
bre a tolerância, são os da responsabilidade e o da democracia . O
tema da responsabilidade aparece, em nosso autor, ligado à crítica
da civilização tecnológica e dos riscos e imperativos da mundiali-
zação.
1
Paul RICOEUR, "Le concept de responsabilité", in Le juste (Paris: Esprit, 1995),
p. 69.
II
2
Paul Ricoeur, "Memory, Forgetfulness, History" in History, Memory and Action .
Thc Israel Academy of Sciences and Humanities, 13-24 Iyyun; The Jemsa/em
Philosophical Quaterly, 45 (julho, 1996), p. 15.
3
Ernst Renan, ·'Qu'est-ce qu'une Nation?" in Oeuvres Completes, vol I (Paris :
Calmann-Lévy, 1947), p. 903-14.
4
No vocabulário de Aristóteles. como de modo geral, o termo disposição (hexis)
constitutiva de um ethos reveste uma polissemia importante, compreendendo ao
mesmo tempo os simples hábitos como os modos de viver junto. É antes a esta
segunda acepção, os modos de viver em comum, que relaciono a noção de uma
memória coletiva implícita. distinguindo-a da dimensão mais explícita de uma
memória reiterativa, fruto de uma simples retomada de hábitos.
1. O Bem-viver em Aristóteles
Solange Vergnieres (CNRS)
1
Et. Nic., X, 10, 1181 b 15.
2
Jd., I, 4, 1096 b, 34.
3
Jd., I, 5, 1097 b 7 segs.
4
Id. , !, 4.
5
!d., l, 1, 1094 a 24.
(jld., l, 6.
7
Brague Rémi. Aristote et la question du monde, PUF, Paris, 1988, p. 231
c de modo geral o capítulo "O animal mundano".
8
Partes dos animais, IV, 687 a 6 segs.
9
Et.Nic., l, 6, I 098 a 16.
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Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar
13
ld., l, 5, 1097 b 9.
14
Pol., l, 2, 1253 a 29.
15
Er. Nic., VIII, 14, 1162 a 17.
16
Pol., lll, 9, 1280 b 34.
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Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar
21
ld., X, 4, 1174 b 33.
22
Met., L, 7, 1072 b 28 .
23
Et. Nic., I, 9,1099 a 18.
24
Jd., I, 1O, 1099 b 32 segs.
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Solange Vergniercs e Constança Marcondes Cesar
25
ld., I, 10, 1100 a 8.
26
Id., I, 11 inteiro.
27
Id., 1100 b 21.
28
ld., 1100 b 30.
31
Fis., lV, 12,221 b3.
32
Cf. Heidegger, Martin: lnterprétations phénoménologiques d'Aristote,
T.E.R. bilíngüe, Mauvezin, 1992, p. 43-44, onde Heidegger evoca o ser
da vida como "mobilidade que encontra em si mesmo seu cumprimen -
to".
33
Poética, 1450 b 27.
34
Met., L, 10, 1075 a 20.
35
Et.Nic., X, 3, 1174 a 14.
36
Id., 1174 b 7.
37
Cf. Couloubaritsis Lambros: La Physique d'Aristote, Ousia Bruxelas,
1997, p. 310-311.
38
Et. Nic., I, 5, I 097 b 12.
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Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar
39
Pol., Vll, 4, 1326 a 36.
4
° Cf.
Romeyer Dherbey Gilbert: "Aristote et la poliorcétique", p. 119-
132, em Aristote politique, (ed. P. Aubenque e A. Tordesillas), PUF.
Paris, 1993.
41
Et. Nic .. Vlii, I, I 155 a 20.
42
Cf. Vergnieres Solange: Éthique et politique chez Aristote, Paris, PUF,
1995, 1ll parte, cap. 3 "Lcs cités à l'épreuve du temps".
43
Et.Nic. , X, 7, 1177 b 17.
44
ld., X, 7 inteiro.
45
ld., I, 12, 1102 a l.
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Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar
pla, Deus não é este "objeto de amor" 48 que regozija o homem por
sua perfeição? Isto é verdade. Contudo, pode-se observar que se
Deus não é "ciumento"49 , não é também amante; é longínquo e
distante, goza de si mesmo numa autarquia completa, numa unici-
dade absoluta. Esta auto-suficiência de Deus só pode suscitar no
homem a consciência de uma falta: não, certamente, de uma falta
de amor (a idéia e com ela o desejo de que um Deus possa vir ao
encontro do homem é totalmente estranha a Aristóteles), mas de
um limite inerente ao homem. Deus constitui, por sua maneira de
ser, o modelo do que é absolutamente desejável: e o que é absolu-
tamente desejável, é "contemplar" a si mesmo. É dito que o ho-
mem tem desejo e é disto que ele é incapaz: como o olho não pode
ver a si mesmo, a inteligência não pode apreender a si mesma: o
pensamento humano só pensa enquanto receptivo a outra coisa, ele
é o lugar onde o mundo se manifesta no seu ser sensível e inteligí-
vel; ele não pensa a si mesmo. Existe aí uma dependência que,
certamente, pode ser percebida como a possibilidade de um encon-
tro, mas que é primeiro, e antes de mais nada, uma insuficiência.
Ora, é precisamente para preencher essa falta que o amigo é neces-
sário: "podemos contemplar aqueles que nos cercam melhor que
nós mesmos, seus atos melhor que os nossos" 50 : o que Deus é ca-
paz de fazer na sua unicidade, o homem alcança pela mediação do
amigo. Já Platão sublinhava em Alcibíades51 que o olho pode se ver
na pupila do olho do outro, que a alma pode se ver na parte divina
da alma do amado; em Aristóteles, o amigo virtuoso é este outro
"eu-mesmo", que me estende o espelho. A referência a Narciso é
inevitável: o amigo permite ter sucesso onde o Narciso das Meta-
52
morfoses de Ovídio fracassará; o amigo tem o mérito de ser um
outro diverso de mim, objeto de uma "contemplação" possível, que
é ao mesmo tempo meu semelhante por sua virtude. Mas esta refe-
rência pode induzir ao erro: Narciso está fascinado por uma ima-
48
Met., L, 7, 1072 b 3.
49
ld., A, 2, 983 a 2.
50
Et. Nic., IX, 9, 1169 b 34.
51
Platão, Alcibíades, 132 d segs.
52
Ovídio, As metamoifoses, III, 339-51 O.
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Solange Vergni<~res e Constança Marcondes Cesar
Bibliografia:
JUNG, Carl. El hombre y sus símbolos. Barcelona: Luis de Caralt Editor,
S.A., 1976.
REBOUL, Olivier. Filosofia da Educação. São Paulo: Companhia Edito-
ra Nacional, 5" edição, 1984.
RICO EU R, Paul. Amor y justicia (Lectures 1, 1991; Lectures 2, 1992).
Organização, tradução e introdução de Tomás Domingo Moratalla. Ma-
drid: Caparrós Editores, 1993, 125 páginas.
______ . O si-mesmo como urn outro. (Soi-même comme un autre,
1990). Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus Editora, 1991, 432
páginas.
1
Cf. I-lannah Arendt, "Du mensonge à la violence", p. 153, in Paul Ricoeur, Si-
mesmo como um outro, p. 228.
'(1978: 178: Ricoeur está em acordo com Husserl (da Quinta meditação cartesia-
na) : não pode existir problema da segunda pessoa se eu conheço o sentido do
"eu" e do "ego''. O outro é de fato outro eu, um alter ego- a/ter sim, mas alter
ego.
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Danilo Di Manno de Almeida
4
Na Introdução à metafísica ainda (p. 67) Heidegger chega a dizer que a língua
grega é - tal como a língua alemã - do ponto de vista das possibilidades do
pensar, a mais poteme de todas e aquela que pode expressar mais a líHgua do
espirito. Aqui vemos em que medida a ontologia implica sempre uma moral
(e/ou ética), independente das intenções (morais) de se manter no campo do
ontológico.
5
Restrito ao problema da fundação. não vou entrar aqui nos detalhes da discussão
de Ricoeur com os representantes da Ética do discurso (e da comunicação). Ver
sobretudo o nono estudo de O si-mesmo como 11111 outro.
discussão ao afirmar que "a ética da discussão não deve ser so-
mente o lance de uma tentativa de fundação pela via regressiva da
exigência de universalização, mas também o de uma provação pela
via progressiva no plano da prática efetiva" (Ibid.: 331).
Por meio de um procedimento dialético, Ricoeur intencio-
na superar os extremos do universalismo (processual) e do relati -
vismo (cultural) 6 ; sustenta validade da "pretensão universal" da
ética e, ao mesmo tempo, procura as condições de efetivar uma
"tomada real sobre a realidade" ou para operar um "julgamento em
situação" (1991: 334 e 339). É dessa maneira que Ricoeur procura
manter a pretensão à universalidade e a exigência dos contextos e
são esses motivos que o levam a defender que o ponto consensual
entre diferentes culturas se dará somente através de "um reconhe-
cimento mútuo no plano da receptibilidade, isto é, da admissão de
uma verdade possível, de proposições de sentido que nos são, antes
de tudo, estranhas" (Ibid.: 337 -338).
Como se daria essa negociação? De um lado, apresentam-
se os universais da "democracia ocidental" (temas que circundam
em torno dos direitos humanos, por exemplo), aos quais Ricoeur
advoga a manutenção da "pretensão universal" . Entretanto, ele
mesmo reconhece que esses direitos estão cunhados de particula-
rismo, pois, são gerados pela coabitação das nações européias e
ocidentais, onde foram formulados pela primeira vez. Mas, questi-
ona Ricoeur, "isto não quer dizer que autênticos universais não es-
tejam grudados (mêlés) a esta pretensão". Assim, será através de
uma longa discussão entre as culturas que saberemos o que "mere-
ce verdadeiramente ser chamado de 'universal"' (1991 a: 266) .
Do outro lado, comparecem as demais culturas. O que nos
leva a pensar que na defesa de uma igualdade de pretensão durante
a discussão. Afirma Ricoeur: "inversamente, nós só faremos valer
nossa pretensão à universalidade se admitirmos que outros univer-
sais em potência estão também enterrados (ei!fouis) em outras cul-
6
Efetivamente, a dialética entre a argumentação e a convicção permite a Ricoeur
abraçar a tese da exigência de universalidade e o reconhecimento das limitações
contextuais, termo que Ricoeur prefere aos termos historicismo ou comunita-
rismo ( 1991: 333-35).
Coleção Filosofia- 140 143
Danilo Di Manno de Almeida
7
É certo que, para melhor julgamento, ter-se-ia de investigar mais profundamente
as teses da Ética da discussão. No entanto, visto que o único ponto considerado
aqui foi o da "fundação" em ética, não acredito ter cometido um julgamento te-
merário a respeito dos defensores daquela corrente ética.
8
Como se sabe, há duas maneiras de grafar ética em grego: a) erlws (com éps ilon
inicial) se refere ao comportamento que resulta de uma repetição constante dos
mesmos atos (habitual, oposto ao natural - physys); o hábito é uma disposição
permanente para agir de uma certa maneira. como possessão estável: b) Erhm·
(com inicial era) designa a casa do homem; tem sentido de um lugar, de estada
permanente e habitual, de um abrigo protetor (Lima Vaz, 1993: 11-16). Em Ho-
mero, por exemplo. o erhos tem sempre o sentido concreto de habitat, de escon-
derijo e refúgio, ainda que o outro sentido (de costumes coletivos) não lhe seja
estranho (S. Verginieres, 1998: 15ss)
Referências bibliográficas
152
~ EDIPUCRS
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