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A HERMENÊUTICA FRANCESA

PAUL RICOEUR
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
GRANDE DO SUL

CHANCELER- Dom Dadeus Grings


REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch
CONSELHO EDITORIAL
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (Presidente)
Vera Lúcia Strube de Lima

Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime

EDIPUCRS
A v. Ipiranga, 6681 - Prédio 33
C.P. 1429
90619-900 Porto Alegre - RS
Fone/Fax.: (51) 3320-3523
E-mail edipucrs@pucrs.br
www.pucrs.br/edipucrs/
Constança JVIarcondes Cesar (Org.)

A HERMENÊUTICA FRANCESA
PAUL RICOEUR

Coleção:
FILOSOFIA- 140

EDIPUCRS

PORTO ALEGRE
2002
© Copyright de EDIPUCRS, 2002

H553h A hermenêutica francesa: Paul Ricoeur I org,


Constança Marcondes Cesar. - Porto Alegre :
EDIPUCRS, 2002.
152 p. (Coleção Filosofia, 140)

ISBN: 85-7430-282-1

I .Filosofia Francesa 2.Ricoeur, Paul - Críti -


ca e Interpretação 3.Hermenêutica I.Cesar,
Constança Marcondes II.Título rii.Série

CDD : 194

Ficha catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico


da BC-PUCRS

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem a autoriza-


ção expressa desta Editora

Capa : Mariana W. Gautério e Liana R. Leite


Diagramação: Isabel Cristina Pereira Lemos
Impressão: Gráfica EPECÊ, com filmes fornecidos
Coordenador da Coleção: Dr. Urbano Z illes
SUMÁRIO

Apresentação I 7

Daniel Desroches
A vida longa da compreensão em Paul Ricoeur I 9
Ricoeur, crítico do cogito I 27

Constança Marcondes Cesar


A ontologia hermenêutica de Paul Ricoeur I 43
O problema da tolerância em Paul Ricoeur I 57
Multiculturalismo: questões éticas I 67

Jeffrey Andrew Barash


A filosofia moral de Paul Ricoeur I 81
Por uma política da memória, a partir de uma interpretação da sa-
bedoria prática em Paul Ricoeur I 91

Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar


A vida feliz em Aristóteles e Ricoeur I 105

Sonia Vásquez Garrido


A hermenêutica do si e sua dimensão ética I 129

Danilo Di Manno de Almeida


Por uma pluralidade de éticas: reflexões a propósito de P. Ricoeur
e E. Dussel I 135

coteçao t'IIosona- l4U


APRESENTAÇÃO

Os estudos aqui reunidos foram cedidos por estudiosos de


Ricoeur. O Dr. Daniel Desroches é da Universidade de Lavai e es-
tivemos em contato por ocasião do congresso da ASPLF realizado
em Québec, quando concordou com a publicação dos seus traba-
lhos inicialmente na revista Reflexão, da PUC de Campinas e ulte-
riormente, traduzidos, no presente livro; meus capítulos são resul -
tado de pesquisas desenvolvidas na PUC de Campinas e foram
apresentados em congressos: o sobre a ontologia hermenêutica, no
Canadá, no congresso da ASPLF; o sobre a tolerância, nos EUA,
no Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Boston, do qual
participei com apoio da CAPES; o sobre multiculturalismo, foi
conferência realizada na UFRJ.
Os trabalhos do Dr. Barash, da Universidade de Amiens,
foram cedidos para publicação neste livro; o capítulo da Dra. So-
lange Vergnieres, do CNRS, foi publicado na revista Rejlexüo e
sua tradução autorizada por ela para esta publicação. Resultou ele
trabalho em cooperação, em vista de pesquisa desenvolvida na
PUC de Campinas.
O capítulo da Dra. Sonia Garrido, da PUC do Chile, foi
publicado em espanhol na revista Reflexão e teve sua tradução e
publicação autorizadas para este volume. O capítulo do Dr. Danilo
Almeida, da Universidade Metodista, foi escrito especialmente.
Nossos agradecimentos a todos os colaboradores, que pos-
sibilitaram a realização dessa pesquisa e os resultados obtidos.

C.M.C.

Coleção Filosofia- 140 7


A VIDA LONGA DA COMPREENSÃO
EM PAUL RICOEUR

Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)

Ouve-se freqüentemente dizer que a hermenêutica de Ri -


coeur nunca se libertou das questões de método. Mas para fazer
justiça ao percurso do autor, ganharíamos recordando que toda a
obra inclina a compreensão em direção a algo (Stevens) ou enfatiza
tal assunto (Greisch). Na nossa opinião, a verdadeira contribuição
de Ricoeur dá-se sob diferentes figuras de uma única hermenêutica.
Vendo estritamente as coisas, trata-se de uma fórmula uti -
lizada por Ricoeur para demarcar, num momento preciso de seu
percurso, seu próprio projeto hermenêutica . Propomos fazer ver em
que sentido a expressão recobre diversas acepções (ontológica,
existencial e metodológica) e como pode se aplicar paralelamente a
todo o empreendimento de Ricoeur. Gostaríamos de dar uma idéia
geral desta abordagem pela lei do maior desvio, apresentando-a
brevemente assim: trata-se, simplesmente, para o hermeneuta, de
segurar o círculo hermenêutica pelas duas extremidades, a saber
enfocar sempre as duas vias possíveis de entrada na interpretação,
que constituem o grande desafio da exegese tradicional. Só a título
indicativo, o grande desafio de Ricoeur é reconciliar, arbitrar ou
praticar uma mediação entre as partes e o todo, o sujeito e seu ob-
jeto, a doação e a apropriação, o método e a verdade, o signo e a
significação, o distanciamento e o pertencimento, a explicação e a
compreensão, a crítica e a convicção, etc.

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Daniel Desroches

As fontes de uma via longa entre os existencialistas


Jaspcrs c Mareei

Se Mareei pode ser considerado como o primeiro mestre de


Ricoeur, Jaspers, em compensação, revelou-se como tal durante a
Segunda Guerra. Posto que as obras do historiador encerram as
grandes preocupações de Ricoeur 1, será preciso mostrar aqui em
que a via longa de compreensão no jovem Ricoeur se enraíza isto
é, acha fontes certas, nas teses existenciais de seus mestres. O que
Ricoeur retém, prioritariamente, de Jaspers, é sua doutrina das ci-
fras, ou, antes, a exigência da objetividade exigida pelo empreen-
dimento metafísico. Ora, a teoria das cifras permanece do lado do
objeto e Ricoeur encontrará, em Mareei, os recursos necessários
para ancorar a metafísica no sujeito concreto. Em suma, a contri-
buição de Jaspers aponta para uma Olltologia da via longa, en-
quanto que a de Mareei prefigura, uma via longa do conhecimento
de si, a do sujeito existencial.
A tal leitura das cifras, em Jaspers, parece corresponder
uma leitura das figuras simbólicas do mal em Ricoeur. Em conse-
qüência, é preciso ver como a decifração empreendida por Jaspers
conduz Ricoeur nessa direção. Em Jaspers, a metafísica tende a re-
conciliar a racionalidade da filosofia com a língua do ser, numa di-
alética paradoxal nunca rompida2 . Se se reconhece aqui a conclu-
são da Simbólica do mal, é preciso dizer, além disso, que há mais:
a leitura das cifras é, de certo modo, um círculo formado por três
ciclos que ousaremos aproximar do círculo hermenêutica, citando
um extrato que tiramos do livro sobre Jaspers:

"Toda teoria das cifras consiste em um movimento circular


que parte das cifras originais que são a língua do ser, atra-
vessa as mediações místicas e propriamente filosóficas que
são a língua dos homens, e retoma à presença imediata da
Transcendência nas suas cifras originais" (KJ 287).

1
B. STEVENS, L'apprelltissage des signes. op.cit.. p. 6.
2
Acrescentemos que os conceitos de atestação e de restauração do ser, próprios de
Jaspers (KJ 372) retornam, mais de quarenta anos depois no Si mesmo como w11
outro (345-4 lO) de modo a confirmar esta hipótese.

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A vida longa da compreen.rclo em E.icoeur

A reflexão é muito importante para esses dois filósofos da


existência3 , mas o lugar que Mareei lhe concede é considerável.
Em Mareei, é pela dialética da reflexão segunda como aproxima-
ção ao sujeito concreto, como ancoragem do cogito na existência4 ,
que se perfila um longo desvio. Se, para Mareei, toda metafísica é
reflexão, há contudo dois graus da reflexão: a reflexão primária,
que busca as condições a priori do conhecimento objetivo (é o co-
gito), e a reflexão segunda, que se atém mais aos núcleos das expe-
riências fundadoras:

"[A] reflexão primária se transcende numa refiexüo de se-


gundo grau: perguntamos em que condições foi possível o
exílio e o domínio do st-(jeito despersonalizado (. .. ) Tal é.
então, a reflexão segunda, uma recuperaçüo do concreto -
existência plena do mundo. presellça do transcendente -
uma restauração da participaçâo, uma reconstmçüo do
integral nas suas ligações concretas" (KJ 80 - I; cf. tam-
bém MJ 364).

Em outros termos, o que nos orienta para uma via longa,


em Mareei, é sua abordagem indireta do si, quer dizer, o fato de ele
recusar que a subjetividade se ponha como ponto de partida das
metafísicas, como sujeito fundador: (MJ 229).
Mas há mais: estimamos que a idéia de uma passagem da
reflexão abstrata à reflexão concreta é própria do projeto her-
menêutica de Ricoeur. Voltaremos a esse ponto, quando apresen-
tarmos a dialética entre explicar e compreender (talvez a figura
exemplar de via longa?) e virmos em que uma passagem pela abs-
tração, embora indispensável para toda forma de objetivação, é só
um desvio obrigatório em direção à apropriação do sentido. Se a
idéia de redefinir a reflexão é claramente expressa no Ensaio sobre
Freud (EF 54), e que a possibilidade de ancorar a dita ret1exão na
existência igualmente aparece aí (EF 63), é preciso contudo recor-
dar que no artigo importante publicado em 1963, uma correlação

3
Ricoeur escreve: (MJ 350).
4
A influência de Mareei é decisiva em O voluntário e o involuntário: (VI 12).
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Daniel Desroches

entre a reflexão concreta e a tarefa da apropriação, em hermenêuti-


ca, estava estabelecida. Faremos referência só a um extrato, no
qual, na nossa opinião, a influência da dialética marceliana conduz
o jovem Ricoeur a formular a inspiração de sua dialética futura en-
tre a explicação e a compreensão:

"Se a hermenêutica é uma fase da apropriaçcio do sentido,


uma etapa entre a reflexcio abstrata e a reflexão concreta,
se a hermenêutica é uma retomada do pensamento sobre o
sentido. em suspenso na simbólica, ela só pode reencontrar
o trabalho da antropologia estrutural como um apoio e ncio
como um repelente; só nos apropriamos do que, primeiro,
mantivemos à distância de nós" (Cl 34; L2 352; c f. também
CI 54; L2 374).

Figura 1. O grande desvio da consciência de si pelos sa-


beres históricos

Levantamos, nos escritos do jovem Ricoeur uma primeira


figura de via longa quando este encontra, em 19525, as questões
relativas à subjetividade em história e à legitimidade da história da
filosofia como prática. Ricoeur opta, maciçamente, pela fórmula 6
para qualificar o acabamento da história no ato filosófico, ou então
a tomada de consciência do filósofo em conexão com uma retoma-
da da história em segundo grau. O desvio do sujeito pela história
aparece aqui:

"Todas essas filosofia [reflexivas} estão em busca da ver-


dadeira subjetividade, do verdadeiro ato de consciência. O
que temos que descobrir e redescobrir sem cessar, é que
este itinerário do mim ao eu - que chamaremos de tomada
de consciência - passa por uma certa meditação sobre a
história, e que esse desvio da reflexão pela história é[. .. } a
maneira filosófica de completar, num leitor, o trabalho do
historiador" (HV 35-36).

5
O artigo de que se trata é: ( 1952), HV 23-44.
6
Cf. HV, 36, 55 e 69.

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A vida longa da compremsào em Ricoeur

E como a história da filosofia é também uma história da


consciência, eis a primeira incidência de nossa fórmula: o que o
filósofo espera da história, é o advento de um sentido (HV 37).
Ora, segundo Ricoeur, há contudo, duas maneiras de fazer
isso (HV 36). Dito de outro modo, compreender é compreender
pela unidade (HV 49), o que se ocupa disso, na qualidade de histo-
riador só obterá a unidade com a ajuda de dois modelos distintos ela
compreensão histórica 7 . Donde os dois tipos de verdades históricas
que prevalecem: a compreensão pela totalidade do sistema ou pela
singularidade, segundo o modelo da adequação da questão à res-
posta.
Mas, vendo as coisas assim, uma busca de compreensão
total em história de filosofia (como em Hegel) exigirá ... (HV 69).
E outros termos, a apreensão global de um pensamento exige agora
uma passagem de sua singularidade em direção à totalidade da
consciência histórica na qual se insere. Retomando a palavra de
Platão, Ricoeur acrescenta: (HV 69). É preciso notar, ademais, que
se Hegel é pertinente aqui, não é somente enquanto pensador da
totalidade, mas sobretudo enquanto filósofo da consciência históri-
ca.
Esboçada de modo exploratório, aparece, contudo, no iní-
cio dos anos cinquenta a idéia primitiva de uma reconquista do su-
jeito através dos signos mediadores dos saberes históricos. Se a
idéia de totalidade vai ser abandonada por um pensamento her-
menêutica conseqüente8, a necessidade de objetivar o conheci-
mento de si foi conservada por Ricoeur. No Conflito das Interp re-
tações (CI 319) e no Ensaio sobre Freud a consciência não é nada
menos que a grande tarefa.

Figura 2. A aposta hermenêutica ou a via longa das fi-


guras simbólicas

No final da Simbólica do Mal somos postos no caminho de


uma via longa em dois momentos, quando Ricoeur emprega a ex-

7
Cf. HV, 36, 64 e 67.
8
Cf. Tempo e Narrativa III: O 1empo narrado. pp. 280-300.
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Daniel Desroches

pressão (SM 244, 9). Mas que diz Ricoeur, em que ele se aparenta
com uma via longa da compreensão dos símbolos?
Depois de ter elaborado sua própria interpretação dos mitos
que ilustram a entrada em cena do mal, o autor observa que preci-
sa, daí em diante, explorar uma via nova. No termo de sua dupla
abordagem, pela reflexão pura em O lzomem falível e pela lingua-
gem da confissão, na Simbólica do Mal, o fosso é manifesto e a
compreensão do mal permanece selada. O problema do mal per-
siste pois resiste a uma interpretação redutora; ao contrário, remete
a uma hermenêutica que abre a filosofia à plenitude ontológica do
homem. Com efeito, o estudo exegético dos símbolos revela não
somente a condição humana no coração do ser, mas também o
acréscimo de sentido que se desvela por uma hermenêutica do sa-
grado.
Como o filósofo busca compreender sempre mais, é preci-
so que avance numa terceira via; a da interpretação criadora de
sentido, a de uma restauração da linguagem simbólica inspirada no
adágio kantiano. O que esta fórmula significa é que é preciso pros-
seguir do lado da doação dos símbolos, mantendo sempre o empre-
endimento crítico da reflexão filosófica. Quando o jovem pensador
protestante escreve (SM 325) ou então (SM 327), entende que a
crença só é possível, hoje, ligada à interpretação e entrevê isso fa-
zendo uma revivificação da linguagem simbólica pela redação de
uma Poética da liberdade.
Não desejamos debater o destino da Poética que nunca foi
publicada embora em parte elaborada. É preciso, antes, mostrar que
a fonte de uma única via longa da compreensão está bem presente,
principalmente quando Ricoeur precisa como a hermenêutica en-
contra o problema da mediação crítica e da apropriação do simbo-
lismo religioso na imediatez da crença. Logo, é o círculo her-
menêutica de Agostinho, retomado e explicitado por Bultmann,
que Ricoeur escolhe, a fim de abrir a interpretação dos mitos em
direção à hermenêutica propriamente filosófica. O círculo é este.
Dado isso, o desafio ricoeuriano será superar a circularidade da
linguagem em direção ao ser. Em outros termos, é preciso quebrar

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A vida longa da compremsão em Ricomr

o privilégio concedido à reflexão primária tal como a reflexão se-


gunda, que Mareei propõe (MJ 364):

"O símbolo dá a pe11sar que o cogito está no interior do ser


e não o inverso(. .. ) que o ser que se põe a si mesmo no co-
gito deve ainda descobrir que o aro mesmo pelo qual se se-
para da totalidade [a reflexão} não deixa de participar do
ser que o interpela em cada símbolo" (SM 331 ).

Em suma, dir-se-á que a aposta do hermeneuta não é nada


menos que a via longa de uma compreensão do ser do homem pela
exegese paciente e fiel da linguagem simbólica. Como o célebre
desafio de Pascal, o de Ricoeur é o de por suas convicções à prova
de sua crítica filosófica, como ele próprio admite na última página
da obra (SM 332). Retenhamos, enfim, que entre a crítica her-
menêutica e a apropriação fiel, há um desafio, que deve se trans-
formar pouco a pouco em um longo desvio da compreensão onto-
lógica da linguagem simbólica.

Figura 3. O enxerto do problema hermenêutico na fe-


nomenologia

Em O Conflito das lnterpretaçõel a via longa da compre-


ensão - no sentido próprio - se apresenta como uma reflexão que
aspira à ontologia, por graus. Com efeito, tratava-se, contra Heide-
gger, de sugerir um outro enxerto da hermenêutica na fenomenolo-
gia, posto que Ricoeur duvida que se possa praticar diretamente a
ontologia, a saber retirando-se do círculo hermenêutica. Eis como
Ricoeur entende a de Heidegger:

"A via curta, é a de uma ontologia da compreensão, à ma-


neira de Heidegger. Chamo de 'via curta' tal ontologia da
compreensão porque, rompendo com os debates do método,
ela se refere de uma só vez ao plano de uma ontologia do
ser finito, para encontrar aí o compreender não mais como

9
Cf. o artigo: CI 7-28.
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Daniel Desroches

um modo de conhecimento, mas como um modo de ser" (Cl


10).

Além do texto em pauta, dois outros artigos 10 são particu-


lat·mente esclarecedores a respeito da inversão operada por Heide-
gger, a qual não é somente uma volta ao fundamento, mas igual-
mente a retirada da ontologia do círculo hermenêutica. Eis a répli -
ca que Ricoeur reserva à hermenêutica curta de Heidegger:

"A partir de Heidegger, com efeito, a hermenêutica está


inteiramente e11gajada no movimento de retorno ao fun-
damento que, de uma questão epistemológica concemindo
às condições de possibilidade, conduz à estrutura ontológi-
ca do compreender. Podemos então perguntar se o trajeto
do retomo é possível. É contudo sobre esse trajeto de re-
torno que se poderia atestar e confirmar a a.firrnaçüo de
que as questões de crítica exegética-histórica são questões,
que o círculo hermenêutica, no sentido das exegeses, está
na estmtura da antecipação da compreensão 110 plano on-
tológico fundamental" (TA 363; cf. também TA 94-5) .

Percorrer duas etapas sucessivas torna-se, assim, o desvio


requerido por uma retomada da questão ontológica na seqüência da
inversão provocada por Heidegger. Com efeito, a reviravolta de
Heidegger omitiria duas coisas capitais, segundo Ricoeur: primo, a
necessidade de um método de exegese e secundo, a superação da
ontologia em direção à existência, isto é, em direção à compreen-
são de si. Tal é a intenção que preside à via longa da compreensão
ricoeuriana:

"Essas duas objeções contém ao mesmo tempo uma propo-


sição positiva: substituir a via curta da análitica do Dasein
pela via longa empregada pelas análises da linguagem; as-
sim manteremos constantemente contato com as disciplinas
que buscam praticar a interpretação de maneira metódica
e resistiremos à tentação de separar a verdade, própria da

10
Esses dois textos são: (1975) e (1973), artigos que foram reeditados com a pu-
blicação dos segundos Ensaios de hermenêutica (TA) em 1986.

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A vida lo11ga da compreen.rào et11 Ricomr

reflexão, do método utilizado pelas disciplinas nascidas da .. ·


exegese" (CI 14-5).

Dito isso, Ricoeur se aproximará da ontologia por etapas,


graças a uma hermenêutica da via longa que incluirá as seguintes
mediações: os desvios semântico e reflexivo.
No plano semântico, é preciso, de início, responder ao con-
11
flito das interpretações rivais encontrado no Ensaio sobre Freud e
isso só é possível unificando o campo da hermenêutica por uma
elucidação do conceito de interpretação próprio a todas as discipli-
nas exegéticas. Depois de ter delimitado o campo hermenêutica do
lado do símbolo, Ricoeur do lado da interpretação projeta o que se
pode ter como uma autêntica interpretação, a dos símbolos:

"Ela começa por uma investigação em extensão das formas


simbólicas e por uma análise compreensiva das estruturas
simbólicas; continua por um confronto entre estilos her-
menêuticas e por uma crítica dos sistemas de interpretação.
(... ) Prepara-se, assim, para. exercer sua tarefa mais alta,
que seria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões
totalitárias de cada uma das interpretações (. .. ) Tal é a
função crítica desta hermenêutica considerada em seu nível
simplesmente semântico" (CI I 8-9).

Depois de ter esclarecido o campo semântico da her-


menêutica a partir da noção de símbolo, Ricoeur aborda a proble-
mática da existência como um segundo desvio em direção à onto-
logia. Ora, o desafio desta etapa, para a reflexão, é o de abrir a
hermenêutica à própria possibilidade do conhecimento de si: (CI
20). Esta mediação pela reflexão não reconduz absolutamente à
problemática tradicional do cogito, porque o si, que não tem aqui
mais nada do solipsismo cartesiano, só é recuperado ao termo de
um longo desvio: (CI 21). Em conseqüência, a etapa reflexiva

11
O conflito era o seguinte: "Tomar manifesta a crise da linguagem que faz co1n
que hoje oscilemos entre a desmistificação e a restauraçcio do sentido. tal é a
razcio projimda que motiva a posiçcio inicial de nosso problema/ .. . } uma intro-
dução à psicanálise da cultura devia passar por esse grande desvio" (EF 36).
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Daniel Desroches

mantém a exigência metódica de uma apropriaçâo do sujeito práti-


co que só um longo desvio pelos signos mediadores pode assegu-
rar. Dito isso, se a reflexão não é mais imediata, como na tradição
moderna, e dado que os mestres da suspeita nos ensinaram que o
lugar do cogito está, desde sempre, preenchido por um falso cogito
(EF 36), é preciso então redefinir a reflexão. Segundo uma fórmula
ontológica que conheceu um certo sucesso, a reflexão de Ricoeur
se desencadeia (CI 21). Em suma, é a compreensão de si pelos sig-
nos que é o segundo desafio desta figura da via longa. enquanto
que a compreensão do ser será acrescida a ela em última instância.

Figura 4. A dialética entre explicar e compreender

Com esta quarta etapa, completamos nossa reconstrução


elementar do projeto hermenêutica de Ricoeur, abordando uma fi-
gura que não poderia ser mais exemplar, a da via longa da compre-
ensão. Como a precedente, trata-se de uma figura paradigmática da
via longa ricoeuriana, dado que coloca a compreensão ao termo de
uma longa mediação, no encontro desta vez com a explicação es-
trutural. Examinaremos a dialética percorrendo suas quatro etapas.
Observaremos, em primeiro lugar, que uma reflexão metodológica
referente às abordagens objetiva da explicação e interpretativa da
compreensão estava prefigurada pelos escritos do jovem Paul Ri-
coem. Introduziremos, em segundo lugar a oposição terminológica;
primeiro, a partir da aporia deixada pela hermenêutica de Wilhelm
Dilthey, depois num debate cerrado com a aplicação da lingüística
às ciências humanas, principalmente com o modelo de análise es-
trutural exposto por Lévi-Strauss. Em terceiro lugar, será o caso de
examinar a tese hermenêutica de Ricoeur; esta tese não tentarú
disjuntar· a explicação e a compreensão mas, antes. ar·ticulá-las uma
à outra, pela elaboração de uma dialética fecunda. Como conclu-
são, exporemos os traços principais que caracterizam o novo con-
ceito de interpretação que se acha enriquecido pela utilização da
dialética proposta pelo autor.

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A vida longa da compreen.rào em Ricoettr

Histórico de dialética no jovem Ricoeur

O interesse de retornar às obras de juventude, a fim de in-


troduzir a questão da dialética reside na intenção de considerar à
justa medida o projeto de Ricoeur. Eis nossas duas intenções. Es-
timamos que a idéia de articulação metodológica deve ser posta à
luz o mais claramente possível, mesmo se de modo geral Ricoeur é
mais atento ao que opõe a explicação e a compreensão. Estimamos
também que os textos referidos serão muito instrutivos porque se
atêm, respectivamente, à ação, à história e à textualidade; a saber,
justamente às três esferas às quais será ulteriormente aplicada a
dialética (TA 161 -211). Dito isto, voltaremos aos extratos que fa-
zem pensar que esse problema já era tratado pelo jovem Ricoeur.
Embora a abordagem metodológica de O voluntário e o in-
voluntário seja, de ponta a ponta, fenomenológica, quer dizer des-
critiva, Ricoeur busca, contudo, marcar a oposição que existe entre
os modelos metodológicos próprios da psicologia da época. Par-se-
á bem de notar que não se trataria aqui de articular, uma à outra, a
explicação e a compreensão, numa teoria da ação, posto que o es-
tudo das esferas da vontade humana conduz a uma incompatibili-
dade irredutível:

"O primeiro princípio que nos guiou na descrição é a opo-


sição metodológica entre a descrição e a explicação. Expli-
car é sempre reconduzir o complexo ao simples. (... ) Não
lzá inteligibilidade própria do involuntário. Só é inteligível
a relação entre o voluntário e o involuntário. É por essa
relação que a descrição é compreensão" ( 1950: VI 8; cf.
também a página 9).

Quatro anos mais tarde, num artigo que foi retomado por
ocasião de História e Verdade, o jovem Ricoeur retornava direta-
mente à oposição metodológica, mas desta vez na qualidade de
historiador da filosofia. Observava então que dois modelos da
compreensão histórica deviam se opor. Com efeito, a interpretação
filosófica inquire sobre a singularidade de uma doutrina, enquanto

Coleção Filosofia - 140 19


Daniel Desroches

a sociologia do conhecimento 12 busca o conjunto de razões que ex-


plicam as causas de uma filosofia:

"O verdadeiro historiador crê em seu autor e joga até o fim


a carta da coerência; compreender é compreender pela
unidade; a compreensüo opõe, pois, um movimento centrí-
peto de camilthada em direção à intuição central ao movi-
mento centrifugo da explicação pelas fontes" ( 1954: HV
49-50).

Será, assim, preciso esperar até o Ensaio sobre Freud para


encontrar aí a famosa oposição de Dilthey claramente menciona-
da13 . Enfim, é num artigo essencial, publicado em 1963, que a dia-
lética virá à luz na sua primeira forma. Certamente trata-se de um
esboço, posto que Ricoeur o admite de bom grado no momento de
concluir seu artigo: "A articulação dessas duas inteligências põe
lllais problemas que a sua distinçc7o. A questão é muito nova para
que possamos ir além de propósitos explorativos. Perguntaremos
primeiro se a explicação estrutural pode ser separada de toda ex-
plicação hermenêutica?" (CI 58; L2 379). Ademais, é preciso sa-
ber que o estudo já encerra a problemática bem como uma clara
formulação da questão para a qual é preciso encontrar resposta: (Cl
40; L2 359). Sempre a respeito desse assunto, é preciso seguir o
texto, posto que Ricoeur já tinha precisado (de certo modo, respon-
dido) o lugar da análise estrutural em relação à disciplina her-
menêutica. Certamente não se trata de uma dialética, mas as balizas
estão colocadas em bons lugares e será preciso retomar o assunto
desta questão dez anos mais tarde. Veremos adiante que este artigo
introduzia claramente a dialética entre explicar e compreender, que
já estava representada por um único arco hermenêutica entre duas
abordagens do texto. Veja-se a conclusão do estudo preparatório

12
Cf. a nota especial que Ricoeur consagra a esta questão na antologia: HY 60-5.
13
Eis a passagem: '"A distinção entre o motivo ( ... ) e a causa (. .. ) ncio concerne
absolutamente ao grau de generalidade das proposições. É a distinçcio que
Brentano, Dilthey, Husserl tinham em mente, quando opuseram a compreensüo
do psíquico ou do histórico e a explicação da natureza(. .. )" ( 1965: EF 355).

20 Coleção Filosofia- 140


A IJtda longa da compreensão cttl Rimettr

que já situava a análise estrutural entre uma interpretação superfi-


cial e uma interpretação crítica (CI 63; L2 384).

O novo desafio da dialética: da aporia de Dilthey ao es-


truturalismo

Recordaremos, primeiro, que a forte oposição entre a ex-


plicação, que é o modelo de inteligibilidade própria das ciências da
natureza aplicada às ciências históricas, e a compreensão, caracte-
rística das ciências do espírito, percorre toda a obra de Dilthey.
Com efeito, é assim (TA 83). Tal oposição devia permitir às ciên-
cias do espírito, pelas quais um psiquismo é capaz de se transportar
a uma outra individualidade psicológica, dotarem-se de um método
tão válido quanto o das ciências naturais 14 • O destino aporético
desta dualidade, inspirada pela corrente positivista do século XIX,
é um traço importante da hermenêutica metodológica do último
Dilthey. É preciso recordar a aporia que Dilthey deixou para a teo-
ria de interpretação, posto que é precisamente aqui que se acha en-
raizada a contribuição de Ricoeur à hermenêutica:

"Mas a contrapartida de uma teoria hermenêutica fundada


na psicologia é que a psicologia permanece sua justifica-
ção última. A autonomia do texto só pode ser um fenôme-
no provisório e superficial. É por isso precisamente, que a
questão da objetividade permanece. em Dilthey, wn pro-
blema ao mesmo tempo inelutável e insolúvel. (. .. )a subor-
dinação do problema hermenêutica ao problema propria-
mente psicológico do conhecimento do outro o condenava a
buscar fora do campo próprio da interpretação a fonte de
toda objetivação" (Grifo nosso. TA 85; c f. também TA
145).

14
Esta cientificidade "[r]epousa sobre três argumentos: primeiro, os signos seio
fatos com direito igual aos fatos sobre os quais se edificam as ciências da nalll-
reza; em seguida, esses signos não se dão em estado disperso. mas em encade-
amentos, que dão às objetivações da vida uma forma de sistema; enfim, a indi-
viduação do mundo humano encontrou na jixaçüo pela escrita wn grau superi-
or de objetividade" (L2 452).
Coleção Filosofia- 140 21
Daniel Desroches

Ora, com a fecundidade da análise estrutural, tal como


Claude Lévi-Strauss a aplica às sociedades primitivas, a explicação
em ciências humanas não tem mais nada a invejar ao método das
ciências naturais, porque procede unicamente a partir dos recursos
internos que a língua lhe oferece. Mas este método estrutural, que é
mu ito bem sucedido em resolver problemas de antropologia cultu-
ral, pode ser radicalizar, sem restrição e ter direito de se estender a
todo o campo das ciências humanas, isto é, até a análise de seus
textos? Antes de reconhecer os limites do modelo de análise, é pre-
ciso responder à questão de saber o que é que significa, para ele,
explicar.
Dir-se-á, de modo geral, que a possibilidade de aplicar o
modelo lingüístico às ciências humanas funda-se no paralelismo,
até na homologia (L2 359), que é possível estabelecer entre as uni -
dades constitutivas da língua e as que formam a organização social.
Ora, é justamente a radicalização desta abordagem objetiva e inde-
pendente do observador que interessa a Ricoeur, posto que o es-
truturalismo será ulteriormente aplicado à explicação dos textos.
Eis a hipótese de toda análise estrutural que considera o texto: "ela
consiste em dizer que, sob certas condições, grandes unidades da
linguagem, isto é, as unidades de grau superior à frase, oferecem
organizações comparáveis às das pequenas unidades de linguagem
[.. .] aquelas que precisamente são da alçada da lingüística" (TA
147). Que tal hipótese seja legítima, Ricoeur não nega, mas sob a
condição, contudo, de que ela admita seus próprios limites episte-
mológicos. Segundo Ricoeur, seus limites são o corolário exato de
uma maneira de abordar a leitura que mantém em suspenso a trans-
cendência do texto:

"Podemos fazer um primeiro tipo de leitura do lexto, uma


leitura que atua (.. .)pela interceptação, pelo lexto, de todas
as relações com um mundo que se possa mostrar e com as
subjetividades que possam dialogar. Essa tran~ferência 110
centro do texto - lugar que é um não-lugar - constitui um
projeto particular quanto ao texto, o de prolongar a sus-
pensão da relação referencial ao mundo e ao sujeito fa -
lante. (. ..) na base dessa escolha, o texto não tem exteriori-

22 Coleção Filosofia- 140


A 1Jida longa da compremsào em Ricoeur

dade; só tem um dentro; não há perspectiva de transcen-


dência, como teria uma palavra dirigida a alguém a propó-
sito de alguma coisa (. .. ). A partir daí é possível um com-
portamento explicativo quanto ao texto" (TA 146).

Em conseqüência, (TA 149), Ricoeur será inteiramente


convincente a respeito disso, posto que a hermenêutica procede de
uma maneira diametralmente oposta, optando pelo verdadeiro des-
tino de uma obra: não mais o centro do texto, mas o ato de leitura
pelo qual se produz a efetuação de suas possibilidades semânticas.

A articulação das abordagens metodológicas e o arco


hermenêutico de Ricoeur

Dito isto, Ricoeur tratará de mostrar como, em virtude da


noção de texto e da primazia a ser atribuída ao ato de leitura, hoje
é possível repensar não a oposição entre as duas atitudes metodo-
lógicas, mas, antes, sua mútua correspondência numa dialética fe-
cunda. O problema de fundo com o qual o autor se vê confrontado
não é o de recusar a análise estrutural, mas de pensar, com ela, os
limites de validade de seu próprio empreendimento. Vendo as coi-
sas de modo estrito, o desafio da discussão de Ricoeur com o es-
truturalismo é o de conceber a articulação de duas compreensões
autônomas, à primeira vista, mas complementares, uma idéia ou-
trora apresentada nas suas análises exploratórias 15 . A respeito desse
ponto, Ricoeur se recusava inteiramente a fundar juntas as duas
atitudes em relação ao texto: (CI 57-8; L2 378). Se, como o autor
sugeria desde 1963, a hermenêutica deve criar uma alternativa 16 à

15
Cl34; L2 352. Cf. também 54 e 58; L2 374 e 379. Quanto ao Do texto à ação, a
questão da articulação está nas páginas 146 e 154.
16
"Depende, em compensaçüo, de uma filosofia reflexiva, compreender-se a si
mesma como hermenêutica, afim de criar a estrutura de acolhimento para uma
alllropologia estrutural; quanto a isto, é função da hermenêutica fazer coincidir
a compreensüo do outro com a compreensão de si e do ser. A objetividade es-
trutural pode então aparecer como um momento abstrato - e validameme abs-
trato - da apropriaçüo e do reconhecimento pelo qual a reflexão abstrata se
torna reflexão concreta" (L2 374).
Coleção Filosofia- 140 23
Daniel Desroches

análise estrutural, não deixa de ser verdade que é sempre o próprio


estatuto e o lugar da objetividade no seio das atividades de com-
preensão que devem ser resolvidos. Ricoeur escreve sobre isso (TA
211 ).
Enfim, a dita hermenêutica será reformulada, mais tarde,
segundo os fins de uma dialética e se apresentará como um ún ico
arco hermenêutica:

"Se, ao contrário, tem-se a análise estrutural como uma


etapa e uma etapa necessária - entre uma interpretação
ingênua e uma interpretação profunda, então parece possí-
vel recolocar a explicação e a compreensão num único
arco hermenêutica e integrar as atitudes opostas da exp/i-
caçüo e da compreensão numa concepção global da leitura
como retomada do sentido" (TA 155; cf. também p. 208 ).

Os traços do novo conceito de interpretação 17

Vimos que há dois modos de abordar o texto e que a cir-


cularidade de um a outro constitui, em suma, o círculo hermenêuti-
ca. Ora, é esse círculo, ou antes o arco sobre o qual a explicação e
a interpretação são apenas momentos complementares de uma
compreensão profunda, que engaja a hermenêutica numa dialética.
É preciso ver em que sentido o conceito de interpretação se acha
enriquecido por esta.
Seguindo Ricoeur, velaremos para corrigir o novo conceito
de interpretação, fazendo-o percorrer este arco hermenêutica, pri-
meiro, e precisamente completando a inteligência do texto por uma
compreensão de si. Ricoeur entende por isso o que se chama, em
hermenêutica, de aplicação, isto é, o fato (TA 152). Evidentemen-
te, pelo fato de tornar próprio aquilo que, de início, era estranho, é
mantida uma luta contra a incompreensão: a apropriação faz-se
sempre na distância e pela distância. Ademais, o ato de leitura é, de
certo modo um acontecimento pelo qual se produz uma efetuação

17
Cf. TA 151-9 e também, para uma retomada paralela das mesmas idéias. o arti-
go. principalmente nas páginas 115-7.

24 Coleção Filosofia- 140


A vida longa da compreen.rào f lll Ricoeur

(como numa partitura musical) das potencialidades semânticas do


texto. A efetuação da língua no discurso permite, assim, que o sen-
tido se torne uma significação atual para nós .
Tal conceito de interpretação deve, logo, encontrar o es-
truturalismo. É integrando na passagem a contribuição do processo
de objetivação da análise estrutural que a apropriação se vê des-
psicologizada. O que ressalta, então, é que a interpretação não ten-
tará mais se apropriar da intenção do autor, a qual se mantém como
que retirada, atrás do texto, mas, antes, fazer uma proposição de
mundo, aberta pelo texto à leitura. A interpretação tratará então de
se apropriar do que a mantém perante o texto, ao modo de uma re-
ferência de segundo grau. Em conseqüência, "compreender um
texto, escrevia Ricoeur, é seguir seu movimento do sentido à refe-
rência, do que ele diz àquilo sobre o qual ele fala(. .. ) o papel me-
diador representado pela análise estrutural constitui ao mesmo
tempo a justificação da abordagem objetiva e a ret~ficação da
abordagem subjetiva" (TA 208). O processo de compreensão se
torna uma autêntica via longa; a saber, um arco que coloca a com-
preensão no termo de uma mediação pela análise dos signos. Con-
seqüentemente se (TA 116) é que (TA 152); Ricoeur sustenta então
que toda a problemática da compreensão de si se vê rebatida para o
fim do percurso hermenêutica.
Em resumo, os traços de uma interpretação revista são os
seguintes: 1) a interpretação é uma apropriação na medida mesma
em que a constituição do sentido e do si são contemporâneas; 2) é,
depois, uma luta contra o distanciamento do sentido na distância e
pela distância; mas, principalmente, 3) a interpretação se conclui
na leitura e se concebe, então, como efetuação das potencialidades
semânticas abertas pelo texto; e 4) a apropriação do si é conse-
qüentemente conduzida ao termo do percurso.

*
**
Eis as conclusões da presente investigação. 1) É evidente
que a via longa da compreensão encontrariajontes na teoria das ci-

Coleção Filosofia - 140 25


Daniel Desroches

fras de Jaspers e na reflexão segunda de Marcel. 2) Retraçaríamos


no jovem Ricoeur não somente quatro das múltiplas figuras da via
longa, mas também seus três objetos: a ontologia, o sujeito e a
metodologia. 3) Se a história da filosofia existe, é porque o histori-
ador toma consciência de que o si se enraíza numa história da qual
ele opera a retomada segundo uma via longa da compreensão his-
tórica. 4) A aposta hermenêutica, tal como um longo desvio pela
exegese das figuras simbólicas, abre a compreensão do mal à ple-
nitude ontológica do homem. 5) Que as duas primeiras filosofias
conduzam assim a uma terceira que é mais completa, dado que in-
tegra o caminho, considerando a contribuição das precedentes.
Com o enxerto da hermenêutica na fenomenologia reencontramos
no mesmo projeto hermenêutica uma tríplice via longa: primo, a
de um grande desvio em direção à ontologia que se edifica sobre a
base de duas mediações; secundo, a de uma via longa da compre-
ensão metodológica que passa pela clarificação dos conceitos pró-
prios das disciplinas exegéticas; e tertio, a de uma via longa em di -
reção à existência, a saber um desvio da reflexão em direção ao
sujeito concreto, ao modo de uma aprendizagem dos signos que
testemunham seu desejo de ser. E, enfim, 6) A dialética entre ex-
plicar e compreender é uma abordagem que coloca a compreensão
hermenêutica no termo de uma mediação com a análise estrutural.
Ao seu modo, a dialética é dupla; a do conceito metodológico de
interpretação redefinido à luz de uma hermenêutica dos textos, de-
pois a de um si que busca se compreender perante o texto, ao ter-
mo de um arco hermenêutica que necessita da mediação do si com
um outro diverso dele mesmo.

26 Coleção Filosofia- 140


RICOEUR, CRÍTICO DO COGITO

Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)

Conhece-se bem as duas formulações do cogito de Des-


cartes; a primeira, extraída da quarta parte do Discurso: "penso,
logo existo"'; depois a segunda, extraída da segunda Meditação:
"Ego sum, ego existo" 2 • Contudo, o que importa aqui não é buscar
uma diferença epistemológica qualquer entre essas duas formula-
ções. A crítica ricoeuriana do cogito refere-se mais ao princípio
que permite esses enunciados, o princípio famoso do qual Hegel
fará o fundamento da filosofia moderna3e Husserl a necessidade de
estender o alcance da subjetividade constituinte até sua radicaliza-
ção na fenomenologia transcendental 4 . Exporemos adiante em que
Ricoeur critica o privilégio concedido à reflexão a fim de redefinir
o que ela poderá ser para uma hermenêutica conseqüente, que não
colocará mais o sujeito no princípio, mas no termo do percurso fi-
losófico.
Contudo, a crítica do cogito não é nova5 . Com efeito, o
que Ricoeur propõe vai de encontro a outras tentativas similares
feitas por contemporâneos franceses, principalmente as de Fou-

1
Discurso do Método, tomo I, Ed. Alquié, Garnier, 1988, p. 603 (AT, VI, 32).
2
Meditações metajfsicas, ibidem, tomo li, Clássicos Garnier, 1967, p. 415 (AT.
IX, 19).
3
Cf. principalmente Heidegger, "O fim da filosofia e a reviravolta". in Questões
IV, Gallimard, 1976, p. 290.
4
Cf. a princira meditação in Meditações cartesianas, trad. G. Peiffer e E. Levinas,
Vrin, 1966, pp. 6-23.
5
Há muitas, de fato. As mais importantes são, para Ricoeur, as de Nietzsche (SA
22-7) e de Heidegger (cf. Ser e tempo, § 25 e TA 49).

Coleção Filosofia- 140 27


Daniel Desroches

cault6 , Levinas 7 e Marcel. Este estudo logo se propor a como tare-


fa partir da herança deixada por Gabriel Mareei, com o objetivo de
por em relevo e de explicitar as três principais objeções que Rico-
eur reserva ao sujeito fundador. Para fazer isso, procederemos se-
gundo três etapas, o que nos permitirá, ademais, expor os diferen-
tes registros filosóficos que compõem a argumentação de Ricoeur.
Percorreremos três etapas, três réplicas ao cogito, segundo três re-
gistros distintos: uma etapa existencial, uma etapa epistemológica e
uma outra hermenêutica. Como conclusão, trataremos ele fazer ver
de que modo Ricoeur propõe, ele um lado, uma descentraçüo da
subjetividade e, de outro lado, uma reconquista hermenêutica desta
última.

1. A herança legada por Gabl"iel Mareei e a objeção


existencial

Se a influência deixada por esse primeiro mestre é muito


complexa, resulta claramente contudo que os ataques feitos por
este contra o cogito se dirigem prioritariamente à filosofia idealista,
a saber a intelectualista (MJ 13). Logo, é a primazia da existência
concreta sobre a reflexão especulativa que permanece seu leitmo-
tiv8. Com efeito, as reticências de G. Mareei em relação ao sujeito
fundador são de duas ordens9 . Primeiro ele se insurge contra a de-
sencarnação, posto que o corpo próprio constitui, a seus olhos, um
"indubitável" da experiência (MJ 97 -120). Em seguida, não pode-
ria aprovar a pretensão à objetividade que determina a validade ele
todo conhecimento e evacua assim a segurança metafísica absoluta
de uma existência atestada pelo sentir. Isto se resumiria, segundo

6
Cf. História da loucura na idade clássica, Gall imard. 1972, pp. 56-8 e. princi-
palmente As palavras e as coisas, Gallimard, 1966: V, "O cogito e o impensa-
do", pp. 333-9.
7
Uma das críticas de Levinas é reportada na nota 17 deste estudo. na página qua-
torze.
8
Diálogos Paul Ricoeur - Gabriel Mareei, Aubier Montaigne, 1968. p. 39.
9
O retorno a esta herança. que Ricoeur propõe. no artigo em homenagem a seu
mestre: "Reflexão primeira e reflexão segunda em Gabriel Mareei''. é muito si-
gnificativo, quanto a isto. Este artigo foi retomado em L2. pp. 49-67.

28 Coleção Filosofia- 140


Ricoettr, critico do cogito

Ricoeur, em "desmantelar as duas faces do maciço cogito-


cogita/um. Do lado do objeto, é preciso reconquistar a primazia
do sentir e, do lado do sujeito, a de encarnação" (L2 53). No en-
saio "Existência e objetividade", Marcel sublinhava esses dois
pontos, invertendo, contudo, a ordem de sua exposição:

"A realidade que o cogito revela é de uma ordem total-


mente diferente da existência, que tentaremos aqui não
tanto estabelecer, mas reconhecer, constatar metafisica-
mente a prioridade absoluta. O cogito nos introduz 11um
sistema de afirmações das quais garallte a validade; guar-
da o umbral do válido( ... ).
É importante só reconhecer o mais claramente possível que
o existente não poderia, de modo algum, ser tratado como
um objeto incognoscível, isto é, liberto das condições que
definem precisamente um objeto como tal; o existente tem
como caráter essencial ocupar. em relação ao pensamento,
uma posição irredutível à que está implicada no próprio
fato da o~jetividade " 10 .

Posto que esses dois pontos (a primazia do sentir e a en-


carnação) foram conservados pelo jovem Ricoeur, gostaríamos de
situar, agora, o projeto concreto que o estudo de um sujeito na
"primeira pessoa", a partir do corpo próprio, significava; porque é
pelo traço concreto de sua análise que o discípulo herda e pretende
superar o mestre (VI 10).
Por ocasião do Voluntário, primeiro tomo da Filosofia da
Vontade, mostrava-se necessário ao jovem Ricoeur apreender um
novo cogito; um cogito encarnado que assumiria o corpo próprio
que o envolve tanto quanto o involuntário que o nutre. Trata-se do
coração da herança legada por Mareei: a análise eidética do sujeito
volitivo devia chegar até os "confins da afetividade mais confusa";
quer dizer, aquém de todo dualismo intelectualista. É a razão de a
obra toda estar possuída por esta augusta ambição: "A tarefa (da
descrição) é, com efeito, a de aceder a uma experiência integral

10
Existência e objetividade. Posição e abordagells do mistério Olltológico. Pa-
raí'tre. 1995, p. 17.

Coleção Filosofia- 140 29


Daniel Desroches

do cogito" (VI 12). Em conseqüência, é pois desde a abertura de


Voluntário que a réplica é estruturada. O cogito de Descartes, ex-
plicava Ricoeur, está "ferido por dentro", porque se dá num "dua-
lismo do entendimento", a saber em duas "linhas heterogêneas de
inteligibilidade": uma remete a alma à reflexão, a outra remete o
corpo à geometria (VI 13).
Dado isso, a extensão do cogito ao corpo próprio se mos-
traria como a única saída praticável para uma fenomenologia que
leva em conta o "índice existencial" de Gabriel Mareei. Eis um
texto que dá uma idéia bastante justa da problemática e da objeção
existenciais:

"Como reconquistar. sobre as disjunções do enlendimento,


o sentimento de estar altemalivamente entregue a meu cor-
po e sendo senhor dele, senão por uma conversão do pen-
samento que, se afastando de por à distância de si idéias
claras e distintas, trata de coincidir com uma cer/a prova
da existência que é, em rnim, corporal? (VI 18).

Nesse estágio, importa entrever que a conquista do sujeito


agente prefiguraria não só o projeto dos anos cinquenta, mas talvez
também de toda a obra. Na obra de historiador que ele consagra
aos existencialismos de Mareei e de Jaspers em 1947, Ricoeur já
sabia 11 que em sua filosofia a subjetividade não seria um funda-
mento, à maneira do cogito, mas um destino. Encontrando eco em
seu mestre da época, como aliás em Karl Jaspers 12 , Ricoeur fará
sua uma das fórmulas de G. Mareei: "Ser sujeito não é um fato ou
um ponto de partida, mas uma conquista e um objetivo" (MJ 229).
Talvez toda a obra filosófica de Ricoeur encontre neste enunciado
uma direção central, que vai de A Filosofia da vontade a Si-mesmo

11
Poderíamos, sem dúvida, remontar historicamente à influência decisiva que o
professor R. Dalbiez exerceu sobre o jovem Ricoeur. A propósito disso, ver o
ensaio autobiog ráfico: RF 12-13.
12
Acha-se justamente, segundo Ricoeur, tal "conquista de si'' em Karl Jaspers
(MJ, 85). Donde talvez o caráter programático desta ambição: fazer da subjeti-
vidade antes um termo, que um ponto de partida.

30 Coleção Filosofia- 140


Ricoeur, critico do cogito

como um outro 13 . Ademais, herdeiro de Mareei, cuja obra é, sem


dúvida, a origem de muitas análises do Voluntário, o problema de
um cogito "radicalmente desancorado ", "desde que o corpo pró-
prio é arrastado no desastre dos corpos", retornará quando anos
mais tarde no Si mesmo como um outro (SA 16).

A descentração da subjetividade em Ricoeur

Propomo-nos a desenvolver, no que segue, a idéia segundo


a qual a descentração da subjetividade, que Ricoeur busca, se opera
em favor da transcendência que lhe conferem os significados pos-
tos à luz pela interpretação textual. Com essa finalidade, procede-
remos em dois tempos: mostrando, primeiramente, que Ricoeur
crítica a epistemologia do cogito fundador e que opera, assim, uma
primeira descentração em relação à subjetividade; segundo , que
essa descentração conduz, em seguida, a uma reapropriação do su-
jeito pela reflexão, a qual não será mais aplicada a si mesma num
solipsismo metódico, mas aos signos mediadores que o objetivi -
zam . Finalmente, pela função hermenêutica do distanciamento, a
questão do texto se volta, assim, para o "mundo" que se desdobra à
leitura, e a compreensão de si se acha no termo do percurso her-
menêutica num ato de leitura que coincide, em última análise, com
uma interpretação de si.

2. A segunda objeção: a crítica da auto-posição

Assim, propomo-nos a examinar o segundo argumento: a


reviravolta pela qual o cogito se põe como primeira verdade na fi-
losofia reflexiva, do mesmo modo que, a título de fundamento úl-
timo no idealismo fenomenológico, conduz a uma aporia. Ou o
cogito é uma verdade filosófica, ou é seu fundamento. A fim de

13
Assim B. Stevens teria razão em afirmar que "Ricoeur propõe uma concepçüo
do s1úeito onde este ll(lO é mais o ponto de partida.fimdanle de uma constituiçüo
do lllundo, 1nas o ponto de chegada de uma lzer111enêutica do si". C f. A aprendi-
zagem dos signos: Leitura de Paul Ricoeur, Kluwer Academic Publishers, 1991 ,
pp. l e 20.

Coleção Filosofia- 140 31


Daniel Desroches

fazer justiça a esta nova objeção, procederemos em dois tempos:


do lado de Descartes, primeiro, em seguida do lado de Husserl.
Primeiro, seguiremos Ricoeur quando ele critica o ponto de partida
radical das filosofias reflexivas; segundo, será posta em questão a
idéia de fundamentação última no idealismo fenomenológico.
1) Evidentemente o jovem Ricoeur se mostrava crítico
desde o Voluntário, principalmente a propósito da auto-posição e
da alienação de um si autonomo por si mesmo (VI 32): "O cogito
tende à auto-posição. O gênio cartesiano consiste em ter levado
às últimas conseqüências esta intuição de um pensamento que cir-
cula sobre si ao se por e que só acolhe em si a efígie de seu corpo
e a efígie do outro. (. .. ) A consciência de si tende a ter primazia
sobre o acolhimento ao outro. Esta é a razão mais profunda da
expulsão do corpo ao reino das coisas" (VI 17). Assim se estende
a crítica do cogito à epistemologia.
Que o cogito se põe como verdade primeira, como um
"ponto de partida radical", merece agora ser explicitado. Em
"Existência e hermenêutica", um artigo publicado primeiro em
1965 e reeditado mais tarde no Conflito das Interpretações, Rico-
eur observava, sem aludir à menor alternativa perigosa, que o co-
gito não poderia mais ter o valor de verdade e de fundamento que
se lhe atribuía outrora. Na página 21, leremos o que consideramos
uma objeção epistemológica:

"O famoso Cogito cartesiano (. .. ) é uma verdade tão vã


quanto invencível; não nego que seja uma verdade; é uma
verdade que se põe a si mesma; a esse título, não pode nem
ser verificada, nem deduzida; é, ao mesmo tempo, a posi-
ção de um ser e de um ato; de uma existência e de uma
operação de pensamento (. .. ). Mas esta verdade é uma
verdade vã, é como um primeiro passo que não pode ser
seguido por nenhum outro(. .. )" (CI 21).

Desejamos reformular o argumento, insistindo na alternati-


va perigosa entre verdade e fundamento, tal como a encontramos
em Si mesmo como um outro. Numa palavra, a auto-posição do
cogito é assegurada, como bem viu o historiador M . Guérroult, por

32 Coleção Filosofia- 140


Ricoeur, critico do cogito

uma confusão tácita na ordem das razões: há uma inversão da or-


dem do conhecimento em favor da ordem da essência, quando
Descartes, tendo descoberto a primeira verdade, a justifica em se-
guida por sua prova da existência de Deus. Dito de outro modo,
"O cogito seria verdadeiramente absoluto, sob todos os pontos de
vista, se pudesse mostrar que só existe uma ordem, aquela onde ele
é efetivamente primeiro e que a outra ordem, que o faz regressar
ao segundo nível [ordem ontológica], deriva da primeira. Ora,
parece que a Terceira Meditação inverte a ordem, colocando a
certeza do cogito em posição subordinada em relação à veracida-
de divina, a qual é primeira segundo a ordem da 'verdade da coi-
sa"' (SM 19). Assim, o cogito é uma verdade, ou então seu fun-
damento.
À guisa de transição para a crítica do idealismo fenome-
nológico, que nos seja permitido acrescentar que a Simbólica do
Mal não poderia ser exceção a esse propósito crítico, porque já
conteria um protesto contra a própria idéia de fundamentação radi -
cal. Caminhando em direção à hermenêutica filosófica, onde o cír-
culo do mesmo oblitera toda possibilidade de uma verdade primei-
ra, Ricoeur deveria estar atento aos limites de querer fundamentar
tudo, sem qualquer preconceito:

"O começo não é o que encontramos primeiro; é preciso


aceder ao ponto de partida; é preciso conquistá-lo. A
compreensão dos símbolos pode pertencer ao movimento
em direção ao ponto de partida; porque para aceder ao
começo, é preciso primeiro que o pensamento habite a ple-
nitude da linguagem. Conhecemos a rápida fuga para trás
do pensamento em busca da primeira verdade[. .. ]; a ilusão
ncio é buscar o ponto de partida, mas buscá-lo sem pressu -
postos; ncio há filosofia sem pressupostos" (SM 324, ver
também a contingência do lugar SM 305 e EF 55).

2) Abordaremos a segunda janela da crítica epistemológi-


ca, a respeito da fundamentação principal do cogito na fenomeno-
logia, fundamentação que é justamente da ordem da intuição; ela
omite a condição necessária a toda compreensão, posto que o cír-

Coleção Filosofia- 140 33


Daniel Desroches

culo hermenêutica exige que todo compreender seja mediatizado


pela linguagem. Diremos, simplesmente, que a auto-fundação vai
contra a finitude ontológica de todo compreender (TA 41). Com
efeito, o ideal de uma fundamentação intuitiva e última seria uma
"mediação total", isto é um significado sem dependência do inter-
prete em relação à situação histórica e lingüística em que está situ-
ado. Daí, à questão: "Em que sentido esse desembocar de toda
compreensão na interpretação se opõe ao projeto de Husserl?", Ri-
coeur responder em Do texto à ação, como se devesse concluir de
novo sua própria Simbólica do Mal:

"que toda interpretação pãe o intérprete in media res e


nunca no começo ou no fim. Advimos, de algum modo, bem
no meio de uma conversação que já começou (. ..). Ora, o
ideal de uma fundamentação intuitiva é a de wHa inteJpre-
tação que, num certo momento, passaria à visão( ... ). Ora,
a própria hipótese da hermenêutica é que a interpretação é
um processo aberto, que nenhuma visão conclui" (TA 48-
9). .

3. A crítica hermenêutica do ideal de transparência do


cogito

A necessidade de "retomar" o cogito em lugar diverso do


de uma primeira verdade leva a crítica ao segundo ponto. É a ter-
ceira objeção que nos propomos a examinar: o ideal de transparên-
cia do cogito, que tem a pretensão de ser imediato a si mesmo e .
imanente aos objetos de pensamento, deverá ser posto em causa,
em nome do conhecimento de si. Exporemos estas réplicas em du-
as etapas: primeiro em Descartes, depois, em seguida, em Husserl.
A opacidade do sujeito será abordada no sentido de uma filosofia
reflexiva que só considera o primado da subjetividade: se a refle-
xão não é uma intuição, deverá, em compensação, permitir um re-
torno do sujeito a si mesmo. Quanto ao alcance desta objeção no
quadro da fenomenologia, sua conseqüência mais interessante é
não só estabelecer a possibilidade do conhecimento de si por um

34 Coleção Filosofia - 140


Ricoe11r, crítico do cogito

enxerto da hermenêutica, mas recusar sobretudo o ideal fenome-


nológico.
1 ) No Ensaio sobre Freud, Ricoeur examina a idéia de
proceder a partir da tradição reflexiva 14 , a fim de determinar o lu-
gar de interpretação no conhecimento de si. Põe em relevo então
dois componentes da reflexão: o primeiro, que acabamos de men-
cionar, é a posição do sujeito como ponto de partida radical, tal
como foi desdobrado pela tradição moderna que vai de Descartes a
Fichte; o segundo (que nos interessa, aqui) é a "transformação de
problemática do cogito", que toda filosofia reflexiva que não pre-
tenda soçobrar num idealismo subjetivo deverá compreender. A
resposta à imediatez que caracteriza o cogito já orienta Ricoeur em
direção a uma reconquista do sujeito reflexivo; não como evidência
num solipsismo metódico, mas via uma reapropriação hermenêuti -
ca de sua condição de ser-no-mundo. Um texto do Ensaio sobre
Freud põe à luz a objeção de Ricoeur ao ideal de transparência:

"[A decifração do sujeito} só pode ser entendida quando a


reflexão aparece como um retomo à pretensa evidência da
consciência imediata; é-nos preciso introduzir um segundo
traço da reflexão: reflexão não é intuição, ou, em termos
positivos: a reflexão é o esforço para retomar o Ego do
Ego cogito no espelho de seus objetos, de suas obras e fi-
nalmente de seus atos. (... )A primeira verdade permanece
tão abstrata e vazia, quanto Ílzvencível; é preciso que seja
mediatiz.ada pelas representações, as ações, as obras, os
monumentos que a objetivam" (EF 51).

No plano hermenêutica, esse ceticismo em relação à trans-


parência do cogito permitirá a Ricoeur ir além da descentração da
subjetividade que emprendeu. Nesta ótica, o Ensaio sobre Freud

14
" Porfilosofía reflexiva, entendo de modo amplo o modo de pensar nascido do
cogito cartesiano, através de Kant e de filoso.fi'a pós-kantiana francêsa, pouco
conhecida 110 estrangeiro e da qual Jean Nabert foi, para mim. o pensador mais
marcallfe. Os problemas.filosóficos de wna.filoso.fia reflexiva mais radicais são
os concemellfes à possibilidade da compreensão de si como sujeito das opera-
ções de conhecimemo, de volição( ... )" (TA 25).
Coleção Filosofia- 140 35
Daniel Desroches

(IF 61) e O Conflito das interpretações põem em cena os dispositi-


vos necessários à realização, não somente de uma descentração do
sujeito, mas propõem também os meios de reconquistar esse últi-
mo. Em conseqüência disso, a reconquista hermenêutica do sujeito
constitui, talvez, a pedra angular da hermenêutica de Ricoeur. No
Ensaio, o autor assinalava a contribuição indispensável das disci-
plinas exegéticas ao quadro de uma crítica das distorções do eu
empírico:

"Mas o cogito não é somente uma verdade tão vã quanto


invencível; é preciso acrescentar ainda que é COIIIO um lu-
gar vazio que desde sempre foi preenchido por um falso
Cogito; com efeito, aprendemos, com todas as disciplinas
exegéticas(. .. ) que a consciência pretensamente imediata é,
primeiro, "consciência falsa"; Mao:, Nietzsclze e Freud
nos ensinaram a desmascarar seus ardís" (EF 22).

2) Consideremos, encerrando a veneziana fenomenológi-


ca, a presente crítica da transparência. A "visada intencional" tal
como a fenomenologia teorizou, já podia prefigurar a perda do ide-
al de transparência do cogito husserliano: porque se a intencionali-
dade, "em seu sentido menos técnico, é o primado da consciência
de alguma coisa sobre a consciência de si" (TA 26), então a apro-
priação do sujeito por si mesmo vê-se indefinidamente empurrada
para o "reino das coisas". Com efeito, Ricoeur atentara judiciosa-
mente para o caráter inacabado da fenomenologia. A propósito do
exercício fenomenológico da constituição, que revela sem cessar as
camadas de significações sempre mais fundamentais para explorar,
e que a Lebenswelt está sempre fora de alcance, Ricoeur deveria
concluir enfim que: ''a fenomenologia, no seu exercício efetivo e
não mais na teorização que implica para si mesmo e para suas
pretensões últimas, já marca o afastamento, mais que a realização
do sonho de tal fundamentação radical na transparência do sujeito
a si mesmo" (TA 26).

36 Coleção Filosofia- 140


Ricoelír, critico do cogito

A reapropriação do sujeito pela reflexão


e a hermenêutica dos textos

Por via de conseqüência, o espaço aberto pelo ego medi-


tons de Husserl, o qual não poderia escapar completamente das
distorções do conhecimento empírico de si, deveria ser preenchido
por uma hermenêutica. A fim de não cair diretamente na proble-
mática tradicional do cogito, Ricoeur proporá uma nova concepção
de "reflexão". Esta se tornará, doravante, "a apropriação de nosso
esforço de existir e de nosso desejo de ser através das obras que
testemunham esse esforço e esse desejo" (CI 21 ). É por isso que
uma hermenêutica conseqüente deve manter a exigência metódica
de uma apropriação do sujeito prático que só um desvio pelos sig-
nos mediadores da objetividade pode assegurar. A propósito de tal
interpretação do sujeito, esta corresponde afinal a um nódulo her-
menêutica, posto que "o cogito só pode ser reapropriado segundo
uma via longa, um desvio pelos signos" (Cl 21 ). Evidencia-se, de
resto, somente nesse ponto, que Ricoeur permanece bastante pró-
ximo do projeto de Dilthey. Com efeito, é uma espécie ele via lon-
ga da compreensão que Dilthey buscava, como observou Ricoeur
na sua história da hermenêutica (TA 85):

"Para Dilthey, a objetivaçüo começa extremamente cedo,


desde a interpretaçüo de si mesmo. O que sei por mim
mesmo só pode ser atingido através das objetivações de
minha própria vida; o conhecimento de si já é uma inter-
pretaçüo, que não é mais fácil que as dos outros, e até,
provavelmente, mais difícil, porque só compreendo a mim
mesmo pelos sinais que dou de minha própria vida e que
me süo reenviados pelos outros. Todo conhecimento de si é
mediato, através dos signos e obras".

Enfim, concernindo à meditação textual, de que o artigo "a


função hermenêutica do distanciamento" 15 constitui um estudo
exemplar, Ricoeur se mostra ainda mais consciente. Posto que não
15
CF. TA 101-18; mas também. para uma boa síntese, "Hermenêutica e crítica
das ideologias": TA 366-7.
Coleção Filosofia- 140 37
Daniel Desroches

seria o caso, aqui, de empreender um resumo deste artigo, nós nos


limitaremos simplesmente a recordar como a problemática do co-
gito se acha renovada por uma hermenêutica atenta à textualidade.
Uma vez reconhecido que o distanciamento, antes de ser
um obstáculo ao ideal de pertencimento ontológico 16 já é uma con-
dição própria de toda interpretação, a idéia de explorar a função
textual na hermenêutica se torna mais clara: ela se apóia na auto-
nomia do texto face à intenção do autor, a seu contexto cultural de
produção e a seu destinatário original (TA 366). Por esta tríplice
autonomia, acha-se assim aberta à compreensão hermenêutica uma
objetividade inédita que Dilthey não tinha podido ver, posto que o
objeto da interpretação não será mais a manifestação de uma vida
psíquica por signos, mas o mundo da obra, desdobrado pelo texto.
Notaremos que o conceito de apropriação ou de aplicação
do texto à subjetividade do leitor é que é revisto por uma her-
menêutica do texto. Depois de ter efetuado o distanciamento, "a
apropriação, observa Ricoeur. é exatamente o contrário da con-
temporaneidade e da co-genialidade; é compreensão pela distân-
cia e compreensão à distância" (TA 116). Em seguida, esta apro-
priação subjetiva responde ao "sentido do texto" e não mais ao
autor: "contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do su-
jeito de conhecer a si mesmo por intuição imediata, é preciso dizer
que só 1zos compreendemos pelo grande desvio dos signos de !ut -
manidade depositados nas obras de cultura" (ibid.). Enfim, o que
a apropriação reitera, é uma proposta de mundo aberta pelo texto;
"esta não está atrás do texto, como uma intenção oculta estaria,
16
A contribuição de Ricoeur à hermenêutica não se inscreve no mesmo projeto de
Gadamer. A oposição entre distanciamento metodológico e experiência de per-
tencimento é vista por Ricoeur como "uma autonomia porque suscita uma al-
temativa insustelllável; de ll/11 lado. dissemos, o distanciamelllo alienante é a
atitude a partir da qual é possível a objetivação que reina nas ciências do espí-
rito ou ciências humanas: mas este distanciamento, que condici01w o estatlllo
científico das ciências é. ao mesmo tempo, o fracasso que arruina a rela~·clo
fundamellfal e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histó-
rica que pretendemos erigir como objeto. (. .. ) ou praticamos a atitude metodo-
lógica, mas perdemos a densidade ontológica da realidade estudada, ou prati-
camos a Mitude de busca da verdade, mas ente/o devemos renunciar à o~jetivi­
dcu/e das ciências humanas" (TA 101).

38 Coleção Fi losofia- 140


Ricoeurj critico do cogito

mas diante dele, como o que a obra desdobra, descobre, revela.


Logo, compreender, é se compreender perante o texto" (lbid.). Ri-
coeur conclui que a mediação pelo texto e a inversão da problemá-
tica comporta um reverso inegável para o cogito ...

"A conseqüência mais importante é que é posto definitiva-


mente ponto .final no ideal cartesiano, fichteano, e, de outro
lado também. husserliano, de uma transparência do sujeito
a si mesmo. O desvio pelos signos e os símbolos é ao mes-
mo tempo amplificado por esta mediação pelos textos que
se desligam da condição intersubjetiva do diálogo" (TA
31).

Em conseqüência disso, aliás de acordo com Levinas 17 , a


reflexão de Ricoeur permanecerá muito crítica face a todo idealis-
mo, ou a todo "consensualismo" que eleve o sujeito racional ou re-
flexivo a senhor do significado 18 .
Ora, qual é o lugar da crítica do cogito na hermenêutica de
Ricoeur?
Poder-se-ia concluir este estudo resumindo a idéia segundo
a qual a descentração da subjetividade, que Ricoeur busca, se opera
em favor da transcendência que confere os significados postos à
luz pela interpretação textual. Seria então apropriado considerar
dois movimentos de pensamento: primeiro, que Ricoeur critica ra-
dicalmente o cogito com suas objeções existencial e epistemológi-

17
Cf. uma crítica levinasiana do cogito: "É sem dtívida esse saber implícito [viver
ao modo do J>erj que justifica o amplo emprego que Descartesfm:. do termo co-
gito nas Meditações. E esse verbo 1w primeira pessoa diz bem a unidade do eu,
onde todo saber se basta". Levinas não se estende provavelmente nesse senti-
do, interrogando assim: "O sentido é sempre correlativo a uma tematizaçüo e a
uma representaçüo? O pensamento está inteiramente votado à adequaçüo e à
verdade? O pellSamellfo é, por essência, relaçüo com o que lhe é igual, isto é.
essencialmente ateu'!" "A consciência não intencional'' in Cahier de l'Herne.
l'Herne, 1991, pp. 77-9.
18
Cf. a réplica dada a Ch. Bouchindhomme, in "Tempo e narrativa" de Paul Ri-
coeur em debate, Cerf, 1990. pp. 211-2. Ricoeur distingue, dentre outros temas.
"a lzybris que leva nosso pensamento a se colocar como senhor do sentido" em
Tempo e Narrativa fll, p. 375 e também 391-2.
Coleção Filosofia - 140 39
Daniel Desroches

ca; e que opera isto fazendo uma primeira descentração em relação


à subjetividade fundadora; segundo, que essa descentração conduz,
em seguida, pela crítica hermenêutica da transparência presumida,
a uma reapropriação do sujeito pela reflexão, a qual não será mais
aplicada a si mesma num solipsismo monológico, mas, antes, aos
diferentes signos mediadores de objetividade, isto é os signos que a
superam em direção a um mundo habitável, o mundo do texto, ou o
mundo do leitor. Quanto a este longo novelo hermenêutica, cujo
objetivo é reconquistar o sujeito prático e ancorar o cogito na
existência, foi iniciado durante os anos cinquenta e depois prosse-
guiu até Si mesmo como um outro.
Talvez seja aqui, aliás, por essa descentração crítica e esta
reconquista hermenêutica do sujeito que se teça o fio vermelho de
toda a hermenêutica de Ricoeur?

SIGLAS
KJ Karl Jaspers et la philosophie de l'existence, Seuil, Paris,
1947.
MJ Gabriel Mareei et Karl Jaspers: Philosophie du mystere et
· philosophie du paradoxe, Temps Présent, Paris, 1947.
HV Histoire et Vérité, Seuil, Paris, 1955 (Citamos a reedição
de 1964).
VI Philosophie de la volonté I. Le volontaire et l'involontaire,
Aubier. Paris, 1950.
HF Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
I L'hommefailible. Aubier, Paris, 1960.
SM Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
2. La Symbolique du mal, Aubier, Paris, 1960.
EF De l'interprétation. Essai sur Freud, Seuil, Paris, 1965.
CI Le conjlit des interprétations. Essais d'herméneutique,
Seuil, Paris, 1969.
TA Du texte à l'action. Essais d'herméneutique, Il, Seuil, Pa-
ris, 1986.
SA Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1992.
L2 Lectures 2. La contrée des philosophes, Seuil, Paris, 1992.

40 Coleção Filosofia- 140


Ricoeur, crítico do cogito

RF Réjlexion faite. Autobiographie intellectuelle, Esprit, Paris,


1995.
CC La critique et la conviction, entretien avec F. Azouvi e M.-
B de Launay, Calmann-Lévy, Paris, 1995.

Coleção Filosofia- 140 41


A ONTOLOGIA HERMENÊUTICA
DE PAUL RICOEUR

Constança Marcondes Cesar


( PUC-Campinas)

Pode-se assinalar três sentidos da palavra hermenêutica na


obra de Ricoeur: a hermenêutica dos símbolos, a hermenêutica do
texto, a hermenêutica da ação (R~flexion faite, p. 61). Esses três
sentidos da palavra indicam três etapas do pensamento do filósofo:
a do primeiro Ricoeur, cujo ponto de partida é a meditação feno-
menológica e cujo eixo da inquietação reflexiva é o questiona-
mento a respeito do voluntário e do involuntário, a meditação sobre
as questões metafísicas sobre a verdade e a liberdade, a descrição
da condição humana. É no horizonte desta meditação, que se de-
senrola entre I 947 (Gabriel Mareei e Karl Jaspers) e I 965 (De l'
interprétation), que Ricoeur desenvolve a hermenêutica como deci-
fração do desejo de ser e como compreensão da eidética da vontade
humana. Pode-se dizer que, nesse primeiro momento da obra do
filósofo, o segundo volume da Philosophie de la volonté: la S}l/11-
bolique du mal, rep~esenta um papel muito importante . É n~sta
obra que Ricoeur examina a condição humana, tomando como
ponto de partida o estudo da mítica da má vontade, os müos da
queda e do exílio, enfocados como descrição da finitude do ho-
mem. Esta onto-antropologia desvela a dualidade finito I infinito, a
dualidade do voluntário e do involuntário, e mostra a possibilidade
da transcendência, inscrita no próprio coração da existência huma-
na. La symbolique du mal propõe pois uma ontologia da finitude e
do mal, onde os símbolos são encarados como conceitos existenci-
ais , como meios de eaminar a condição humana e de levar o ho-

Coleção Filosofia - 140 43


Constança Marcondes Ccsar

mem à libertação. A meditação filosófica que se ocupa,dos símbo-


los faz da hermenêutica uma crítica da existência, uma reflexão
que conduz o home da alienação à superação do mêdo e da angús-
tia, à descoberta do sentido da vida. Esta hermenêutica desvela as
três dimensões do símbolo: a dimensão cósmica, a dimensão oníri-
ca e a dimensão poética, para buscar aí um meio de aproximação
ao mistério da existência, ao mistério do ser.
A hermenêutica dos símbolos trata de reencontrar o núcleo
de toda hermenêutica: a arquitetura do sentido, a linguagem de du -
plo sentido, cujo papel é desvelar/velar. A hermenêutica assim
concebida se inscreve no grande debate filosófico que, desde
Schleiermacher e Dilthey, Heidegger e Gaclamer, fez ela her-
menêutica a questão mais importante ele uma ontologia da compre-
ensão: compreender é o projeto elo Dasein; a verdade não é mais
questão de método (Dilthey), mas de desvelamento do Ser, por um
ser cuja essência é a existência, entendida como tarefa de decifra-
ção do Ser. O campo da hermenêutica é o campo dos símbolos,
onde um sentido direto assinala um outro sentido, indireto, mais
rico, figurado. Interpretar é a decifração do sentido velado no sen-
tido manifesto, é por à luz a pluralidade de sentidos, a polissemia
das palavras.
La symbolique du mal põe em relêvo o laço entre o homem
e o sagrado: é nesse livro que o filósofo enfocao problema do mal
e a busca da superação da crise da existência humana; essa supera-
ção é vista como a recuperação da plenitude ontológica do homem.
"O símbolo dá a pensar", diz Ricoeur: a linguagem simbólica
mostra a problemática contemporânea --- de um lado, a perda ela
dimensão mítica: o espaço e o tempo do mito não são mais recupe-
ráveis, porque nosso mundo vive uma radical demitização; de outro
lado, pode-se tentar reconquistar a dimensão mítica, uma desmito-
logização, reconhecendo o poder de desvelamento do ser que os
mitos possuem.
A universalidade do homem, sua história essencial e o
enigma de sua existência são retomados: os mitos dizem a discor-
dância entre o ser do homem e sua existência, desvelam a condição
humana. O exame dos mitos que falam da dor e da finitude huma-

44 Coleção Filosofia- 140


A ontologia benmnê11tica de Pa11/ Ricoeur

mas levou Ricoeur a estabelecer uma tipologia dos mitos: o drama


da criação, judaico-cristão; o mito da alma exilada (orfismo, plato-
nismo) ; o mito trágico, o mito da queda.
A hermenêutica dos símbolos trata de pensar a partir dos
símbolos o laço entre o homem e o sagrado; busca, nos mitos, indi-
cações para estabelecer uma ontologia da finitude: "É pois final-
mente como índice da situação do homem no coração do ser no
qual se move, existe e quer, que o símbolo nos fala ( ... ) Todos os
símbolos da culpa (... ) todos os mitos (... ) dizem a situação do ser
do homem no ser do mundo ... " (La symbolique du mal ,p. 331).
A meditação hermenêutica do filósofo estabelece, ao nível
metodológico, três procedimentos: primeiro, uma investigação e
uma análise, as mais amplas possíveis, das formas simbólicas; em
seguida, o estabelecimento de uma criteriologia, que exponha a es-
trutura das formas linguísticas aparentadas, tais como a metáfora e
a alegoria, constitutivas da linguagem de duplo sentido; faz, de-
pois, a comparação entre estilos hermenêuticas e a crítica dos sis-
temas de interpretação. Sua hermenêutica, ao nível da reflexão .fi-
losófica, mostra que a compreensão dos símbolos é, para o homem,
um momento da compreensão de si mesmo; ao nível da existência,
faz nascer uma nova imagem do homem e desencadeia uma super-
ação da modernidade.
Esta reflexão sobre o homem tem primeiro uma ancoragem
na meditação sobre o mal e o sagrado; num segundo momento, a
compreensão do homem apóia-se na contribuição da psicanálise.
De l' interprétation (1965) é a obra que marca o fim da primeira
etapa do pensamento de Ricoeur, onde a hermenêutica é considera-
da "como interpretação amplificadora das expressões simbólicas
( ... )"(Réflexion faite, p. 59). Trata-se de compreender o que quer
dizer interpretar, para a psicanálise; de mostrar a nova compreen-
são do homem que decorre da interpretação freudiana; de com·de-
nar a interpretação freudiana a outras interpretações.
As fontes desta meditação são os escritos de Freud, Ni-
etzsche e Marx, que têm em comum o exercício da dúvida ares-
peito da consciência imediata de si; são "mestres da suspeita", pen-
sadores que recusaram as certezas da consciência imediata e que

Coleção Filosofia- 140 45


Constança Marcondes Cesar

assinalaram a possibilidade da ilusão a respeito de si mesmo. A


crítica da modernidade (Descartes, Kant), desencadeada pelo ques-
tionamento dessas certezas, sublinhou a importância do sonho, da
decifração da linguagem onírica, para a compreensão do homem .
Os problemas filosóficos implicados são a discussão do estatuto
epistemológico da psicanálise e a descoberta da crise da noção de
consciência. Trata-se de reconhecer que a consciência não está na
origem de nossa existência, mas que ela é uma tarefa; trata-se de
descobrir o sentido do inconsciente para um ser que tem a consci-
ência como tarefa, como objetivo de vida; trata-se de compreender
o que quer dizer essa tarefa, para um ser ligado ao inconsciente.
Trata-se, ademais, para esta hermenêutica, de compreender
que nova concepção da verdade foi desencadeada pela invenção
desta arte de interpretar, que afirma: que toda compreensão é her-
menêutica; que buscar o sentido é decifrar uma linguagem; que é
preciso superar o conflito das interpretações, a fim de que o ho-
mem possa chegar a se compreender.
Le conflit des intoprétations (1969), é um resumo desta
primeira etapa do pensamento de Ricoeur, e um anúncio de suas
investigações ulteriores. Podemos encontrar nessa obra uma apre-
sentação da exegese dos símbolos que tem como ponto de partida o
estabelecimento de relações entre as contribuições da fenomenolo -
gia da religião, da psicanálise e da linguística, para a análise dos
mitos, dos sonhos e da poesia, utilisando a linguagem de duplo
sentido como instrumento de conhecimento do homem e a proposi-
ção de valores ontológicos (ser si mesmo), como objetivo da vida.
Nessa obra encontramos também a delimitação do campo
da hermenêutica: a meditação sobre a linguagem, a busca do nú-
cleo semântico de toda hermenêutica, cujo elemento comum é a
busca de uma arquitetura do sentido e a reflexão sobre a linguagem
.simbólica, c~1jo papel é o desvelamento de um significado profundo
sob o significado imediato, nas expressões de duplo sentido.
A segunda etapa do pensamento de Ricoeur é caracteriza-
da pelo trabalho hermenêutica a respeito de textos. Este segundo
período da obra do filósofo se desenrola entre 1975 (La métaphore
vive) e 1985 (Temps et récit I, 11, 1/1).

46 Coleção Filosofia- 140


A ontologia hermenelttica de Paul Ricoem·

O pensador francês, em La métaphore vive examina a retó-


rica aristotélica, cuja finalidade é "a ' persuasão' no discurso oral e
a mimesis das ações humanas na poesia trágica" (p. 7) . Ricoeur
trata de mostrar, aí, "a função heurística do discurso poético" (id.).
A nova problemática hermenêutica que ele descobre decorre da
perspectiva que adotou: a de pensar a metáfora como uma "estraté-
gia do discurso que, preservando e desenvolvendo o poder criador
da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobra-
do pela ficção" (id.,p. 10). O que interessa a nosso filósofo é pois o
valor de verdade "do enunciado metafórico, enquanto poder de '
redescrever' a realidade" (La métaphore vive, p. 10). Ricoeur mos-
tra que Aristóteles põe em relação mimesis e mythos na poiesis trá-
gica, dado que a "a poesia ... é uma imitação das ações humanas ;
(... ) esta mimesis passa pela criação de uma fábula, de uma intriga
... " (p. 308); e ademais, "a tragédia só atinge seu efeito de mimesis
pela invenção do mythos, o mythos está a serviço da mimesis ( ... )
(id.). A tragédia, na perspectiva de Aristóteles, diz Ricoeur "ensina
a ' ver ' a vida humana 'como' aquilo que o mythos ·exibe" (id.). A
obra de Aristóteles evidencia, então, que no discurso poético "in-
ventar e descobrir (... ) criar e revelar coincidem" (p. 31 0). Esse
discurso desvela uma certa verdade, a verdade metafórica: a metá-
fora "despoja o discurso de sua função de descrição direta", para
"aceder ao nível mítico, onde sua função de descoberta é liberada"
(p. 311).
A mimesis não é apenas uma cópia da realidade: é ação
criadora. Mimesis e mythos têm como finalidade a refiguração da
ação humana; acedem, assim, a uma promoção de ser, põem em
relêvo a dimensão qualitativa do. homem e o valor de verdade do
imaginário, bem como o poder de desvelamento ontológico da poe-
Sia.
O mito, ao nível do poema, a metáfora, ao nível da lingua-
gem, têm uma função ontológica e hermenêutica: são instrumentos
para o homem decifrar a condição humana, descobrir valores, esta-
belecer critérios éticos para avaliar as ações (i,d., p. 58 e segs.).
Esta meditação sobre a linguagem desemboca numa onto-
logia e numa epistemologia, na obra monumental Temps et récit.

Coleção Filosofia- 140 47


Constança Marcondes Cesar

Nosso filósofo, no primeiro volume desta obra, examina "o círculo


entre narrativa e temporalidade" (p. 19 e segs.) e os problemas
epistemológicos que a reflexão sobre a história e a narrativa pôs
em evidência no pensamento contemporâneo (p. 137 e segs.). As
aporias da meditação sobre o tempo em Santo Agostinho, a dor da
condição humana e o contraste entre o tempo mortal do homem e
seu desejo de eternidade, são estudados aí. O exame da Poética de
Aristóteles permite a Ricoeur retomar o par mimesis-mythos, já
estudado em La métaphore vive, a fim de mostrar "o caráter tempo-
ral da experiência humana (.... )" e que "o tempo torna-se humano
na medida em que é articulado de maneira narrativa; em troca, a
narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da
experiência temporal" (Temps et récit I , p. 17). Trata-se de com-
preeder a relação entre tempo e narrativa, explorando três momen-
tos da mimesis: no primeiro, Ricoeur estuda a pré-compreensão do
mundo da ação, de suas estruturas, de sua temporalidade; no se-
gundo, examina os campos da ficção, da história, da configuração
narrativa do tempo. Considera a diferença entre narrativa de ficção
e narrativa histórica, bem como seu ponto de convergência: a tes-
situra da intriga, que torna possível "uma síntese do heterogêneo"
(id.,p. 103). A mimesis, ademais, "marca a intersecção do mundo
do texto e do mundo do ouvinte ou do leitor. A intersecção, pois,
do mundo refigurado pelo poema e do mundo no qual a ação efeti-
va se desdobra e desdobra sua temporalidade específica" (id., p.
109). Para nosso pensador, seguir "o destino do tempo préfigurado
a um tempo refigurado, pela mediação de um tempo configurado"
(id., p. 87) , é uma das tarefas de sua filosofia hermenêutica. Pode-
se dizer que, para esta filosofia, muitos desafios, muitos paradoxos
se apresentam: o paradoxo do ser-para-a-morte, atravessado pela
sêde de eternidade; as dificuldades, as aporias que se referem ao
estatuto das ciências humanas, tais como a historiografia e a nar-
ratologia contemporâneas; a dificuldade "de pensar juntos o tempo
mortal da fenomenologia e o tempo público das ciências da narra-
ção" (id., p. 129); o problema da verdade e da arte, que se opõem à
fugacidade das coisas; o desafio de pensar juntas "a eternidade e a
morte" (id.).

48 Coleção Filosofia- 140


A ontologia hermenêutica de Paul Ricoeur

As relações entre o romance moderno e o mito trágico, en-


tre a arte e a verdade, são postos em relêvo em Temps et récit. Ri-
coeur estabelece uma complexificação dos conceitos de intriga e
de tempo narrativo, e mostra que o sentido do tempo vivido é sem-
pre o resultado de uma interpretação, não é nunca um dado imedi-
ato (Temps et récit Ill, p. 119). Buscar o sentido da vida humana é
sempre interpretar, é sempre hierarquizar os diferentes níveis da
experiência, tanto no campo da história quanto no campo da ficção.
Ricoeur mostra (Temps et récit 11), através do exame do
problema do tempo em Proust (Á la recherche ... ), em Thomas
Mann (La montagne magique) e em Virgínia Woolf (Mrs.
Dalloway), o poder da "narrativa de ficção de descobrir e de
transformar o mundo efetivo da ação"(id., p. 234).
O horror da condição humana, a experiência da finitude e
da dor, "a experiência da mortal discordância entre o tempo íntimo
e o tempo monumental" (id., pp. 161-162), entre o tempo mortal e
a eternidade, são considerados no texto. O exame desse contraste,
bem como o da melancolia da condição humana, atravessam a obra
de Ricoeur; a ficção e a história, a poesia e os mitos, são alguns dos
meios que o homem encontrou para superar a dor de viver, através
da criação artística e científica. A arte, "exaltação do extra-
temporal" (id., p. 217), permite "a decifração dos signos" (id.,p.
223), a descoberta do sentido da existência e de uma orientação, no
espaço do mundo.
O que Ricoeur trata de mostrar, o que constitui a maior e
mais original contribuição de sua meditação sobre o tempo, é ter
assinalado que o "problema da refiguração do tempo pela narrativa
só será levado a termo quando estivermos em condições de entre-
cruzar as perspectivas referenciais respectivas da narrativa históri-
ca e da narrativa de hermenêutica" (id.,p. 234); toda narrativa im-
plica uma arte de interpretar, uma arte de chegar a uma síntese do
heterogêneo mediante um mythos; apluralidade adquire, assim, um
significado.
A meditação de Ricoeur tem como eixo uma hipótese cen-
tral: "o trabalho de pensamento em obra em toda configuração
narrativa termina numa refiguração da experiência temporal (...)"

Coleção Filosofia- 140 49


Constança Marcondes Cesar

(Temps et récit II/,p. 9). Trata-se, pois, de mostrar como a poética


da narrativa pode conduzir à solução da aporia entre o tempo cos-
mológico (Aristóteles) e o tempo psicológico (Santo Agostinho),
entre o tempo do mundo e o tempo da alma, mediante o exame das
obras de Hegel, Kant, Husserl, Heidegger; trata-se de fazer ver
como a poética da nanativa pode assegurar "a reinscrição do tem-
po vivido no tempo cósmico" (id., p. 147). Trata-se de evidenciar a
"relação de complementaridade entre a história e a ficção , tomando
como pedra angular o problema clássico da relação da narrativa,
tanto histórica quanto fictícia, à realidade" (id., p. 148).
A hipótese de Ricoeur é que a temporalidade humana não
pode ser dita diretamente; "requer a mediação do discurso indireto
da nanação" (id.,p. 349). Se a questão epistemológica que se pro-
põe aqui é a da "configuração do tempo pela narrativa" (id., p.
340), a questão ontológica é a da "refiguração do tempo pela nar-
rativa" (id.). A ontologia hermenêutica de Ricoeur, meditando so-
bre o tempo, acha-se frente às aporias da temporalidade: a da iden-
tidade narrativa, dado que a vida do homem é "uma trama de his-
tórias narradas" (p. 356) e que o "si do conhecimento de si é o
fruto de uma vida examinada (... ), depurada, clarificada pelos
efeitos catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias,
veiculadas por nossa cultura" (id.). A outra aporia é a da totaliza-
ção do tempo, em virtude do perpétuo fluxo dos acontecimentos; o
filósofo constata que "não existe intriga de todas as intrigas, capaz
de se igualar à idéia de humanidade una e de história una" (id., p.
372). A terceira aporia da temporalidade implica a constatação da
inescrutabilidade e do mistério do fluxo inesgotável, e da perenida-
de do tempo fundamental, radicalmente oposto ao tempo humano;
este é submetido à destruição e à morte: "É ( ... ) sob o modo da
queixa( ... ) (id., p. 379) que o homem descobre o além do tempo. A
poética do tempo, examinada por Ricoeur através de sua expressão
em obras-primas da literatura contemporânea: Mrs. Dalloway. La
montagne magique, La recherche ... proustiana, responde às aporias
do tempo e desvela a relação do tempo com seu outro, a eternidade.
Esta poética oferece ao homem a experiência supra-temporal da
beleza.

50 Coleção Filosofia- 140


A ontologia IJermenêlttica de Paul Rimet1r

A segunda etapa do pensamento de nosso filósofo mostra-o


liberto de "sua" própria concepção inicial da hermenêutica como
interpretação amplificadora das expressões simbólicas: formula a
idéia de uma compreensão de si mediatizada pelos signos, os sím-
bolos e os textos( ... ) (Réflexionfaite, p. 59). Ele compreende que a
hermenêutica "não pode mais se definir simlesmente pela inter-
pretação dos símbolos ( ... )" (id.), e leva em consideração "a defini-
ção mais técnica da hermenêutica pela interpretação textual ( ... )"
(id.). A refiguração da vida pela narrativa parecia-lhe, antes, cons-
tituir uma ativa reorganização de nosso ser-no-mundo, conduzida
pelo leitor; ele próprio convidado, segundo a palavra de Proust, "a
se tornar leitor de si mesmo" (id.,p.74).
O terceiro sentido da hermenêutica, segundo Ricoeur, é o
da hermenêutica da ação. Nosso autor estuda o caráter linguageiro
da experiência humana; em seguida, analisa a relação entre a nar-
rativa histórica e a narrativa de ficção, cujo ponto de convergência
é o mythos entendido como intriga, tessitura de ações e desvela-
menta da condição humana. O homem se compreende pela narra-
tiva, pela narração de suas experiências, porque apreende, assim,
os acontecimentos como uma totalidade significativa. Mas é consi-
derando a própria ação do homem como um texto que se pode ler e
decifrar, que Ricoeur amplia sua meditação, para definir uma on-
tologia do agir humano e estabelecer laços estreitos entre a ontolo-
gia, a ética e a política.
Esta meditação é precedida por um exame da noção de su-
jeito e por uma crítica do "Cogito cartesiano e kantiano, enquanto
instância fundadora do verdadeiro. Esta crítica (... ) tinha sido pro-
gressivamente estendida, por ocasião das investigações [de Rico-
em] sobre a narrativa, ao primado da primeira pessoa gramatical e
do eu psicológico na operação reflexiva: a nanativa não era fre-
quentemente( ...) uma meditação na primeira pessoa, uma autobio-
grafia ?" (Réflexion faite, p. 75). Esta investigação foi feita em três
direções: a que o levou a distinguir entre o eu imediato e o si refle-
xivo, a que o conduziu a distinguir entre a identidade-mesmidade e
a identidade-ipseidade, entre selbig e sebst, same e self, a terceira
"concernia ao componente de passividade (... ) que a identidade-

Coleção Filosofia - 140 51


Constança Marcondes Cesar

ipseidade devia assumir em contrapartida da orgulhosa iniciativa


que era a marca distintiva de um sujeito falante, agente e narrando
a si próprio" (id., p.77). A idéia de alteridade foi ampliada, para si-
gnificar o corpo próprio, "o outro enquanto outrem" (id.), e o outro
dentro de nós mesmos, a consciência moral.
É nos livros Du texte á l' action (1986) e Soi-même comme
un autre (1990), que nosso filósofo desenvolve a tese: o texto é
considerado como paradigma da ação ; trata-se de mostrar que "os
discursos são, eles próprios, ações" (Du texte á l' action, p.8); trata-
se de mostrar o laço profundo, complexo, entre a ação e a palavra,
e o papel da imaginação na 'configuração' do texto e ( ... ) refigura-
ção da ação (id.). Ricoeur encara "a ação sensata (... ) como um
texto" (id.,p.183), isto é, para ele, a ação projeta um mundo, ela "se
dirige (,,) a uma série indefinida de ' leitores' possíveis" (id.,p.
197), "está aberta a quem quer que saiba ler" (id.), desencadeia
"uma espécie de objetivação semelhante à fixação operada pela es-
crita" (id.,p. 191).
Ricoeur propõe as grandes linhas de uma teoria geral da
imaginação, mostrando "a força heurística da ficção" (id.p. 220),
para redescrever a realidade. Afirma claramente: "não há ação sem
imaginação (id., p. 224), isto é, ensaiamos no imaginátio nossas
possibilidades de ser. A ideologia e a utopia são as expressões
maiores do imaginário: redescrevendo o mundo fazem de todo ho-
mem nosso semelhante e permitem esclarecer a dimensão profunda
do agir humano.
A ontologia hermenêutica de nosso filósofo considera "o
agir humano como um modo de ser fundamental" (Soi-mêrne com-
me un autre, p. 32). O problema que se põe a esta ontologia é o se-
guinte: "de que maneira o comoponente narrativo da compreensão
de si pede como complemento as determinações éticas próprias de
seu agente ?" (id.,p.93). O conceito-chave que Ricoeur desenvolve,
para responder a esta questão, é o de identidade narrativa. O estu-
do da linguagem, da ação e da narração permite a nosso filósofo
mostrar que "o si narrador e narrado [desempenha] o papel de um
mediador entre teoria da ação e teoria moral" (Réjlexion faite, p.
81). O filósofo trata de estabelecer uma transição, "pelo estrato éti-

52 Coleção Filosofia- 140


A ontologia !JerlJJme!ttica de Pa11! Ricoeur

co-moral ( ... ) entre a hermenêutica do si ( ... ) e a ontologia ... " (id.).


O elo entre metafísica e moral é a ação (id., p. 91). As fontes desta
metafísica são: Platão, com sua meditação sobre o tema do outro;
Aristóteles, em virtude da sua análise da polissemia da noção de
ser e do exame do par energeia-dynamis; Brunschvicg e Ravaisson,
que fundaram a Revue de métaphysique et de mora/e e refletiram a
respeito desse assunto.
A hermenêutica da ação implica, primeiro, o desdobra-
mento da problemática do si nos diversos níveis de acepção do
verbo agir (id.,p.94: "falar, fazer, narrar, imputar" (id., p. 97).
Trata-se de examinar a dialética do mesmo e do outro, fora
do indivíduo e no seu interior. O caráter polissêmico da alteridade
é o núcleo desta meditação. Ricoeur sublinha, ademais, o laço entre
a identidade narrativa e o juízo moral e mostra que "a ética e a mo-
ral já estão implicadas, sob o modo imaginário, nas narrativas de
ficção. As ficções literárias podem, então ser tidas como variações
imaginativas sobre o tema da vida boa( ... ) primeira pedra do edifí-
cio ético-moral ( .. .) as experiências do dramaturgo ou do roman-
cista são suscetíveis de se tornarem paradigmas ela ação pelo texto"
(id.,p.ll3) .
A identidade narrativa permite ao indivíduo responder à
questão: "Quem sou eu ?" (Soi même comme 1111 autre, p. 198). E,
deste modo, tornar-se reconhecível por suas ações, identificável
por seu caráter (id.,p. 195).
O indivíduo, narrando sua vida, refigura suas experiências,
sua existência, e, deste modo, dá-lhes um sentido.
O recurso à metafísica platônica e à metafísica aristotélica,
a meditação a respeito do mesmo e do outro, da polissemia do ser,
do par energeia-dynamis; a reflexão sobre a metafísica de Bruns-
chvicg e Ravaisson, foram as fontes do registro metafísico próprio
de Ricoeur, "o de uma hermenêutica do agir" (Réflexion .faite, p.
91) .
O desdobramento da problemática do si , através do exame
dos " múltiplos níveis de acepção do verbo agir" (id.,p. 94), levou
nosso pensador a uma investigação cujo primeiro nível foi "o de
uma fenomenologia hermenêutica (. .. ) guiada por um feixe de

Coleção Filosofia- 140 53


Constança Marcondes Cesar

questões ( ... ): quem é o sujeito do discurso? quem é o sujeito do fa-


zer? quem é o sujeito da narrativa? quem é o sujeito da imputação
moral? (id.) . O percurso do filósofo atravessa, pois, os campos da
"linguagem, da ação, da narrativa, da responsabilidade" (id.) e,
empreendendo o "confronto entre filosofia fenomenológica e filo-
sofia analítica", distingue "o desvio reflexivo da indagação sobre o
si da imediatez alegada pelas antigas filosofias do eu", dado que "à
questão: quem? uma só resposta pode ser dada: si"(id.).
Esta metafísica mostra que "falar, fazer, narrar, imputar"
são "figuras do agir" (id.,p.95) e que nesta metafísica, há uma pre-
ferência pela "acepção do ser como ato e como potência" (id., p.
97).
Leibniz, Spinoza, Schelling, Nietzsche, Nabert, Merleau-
Ponty, Heidegger e Gadamer são as outras fontes filosóficas que
levam Ricoeur a estabelecer uma estreita ligação entre sua ontolo-
gia da ação e sua ética.
Trata-se de "reinterpretar a noção de ser como ato como
horizonte da atestação" (id.,p. 99). A via escolhida por Ricoeur,
para estabelecer esta ligação, passa pela discussão da dialética do
mesmo e do outro. da identidade pessoal, das figuras da alteridade;
trata-se de buscar o aprofundamento desta dialética, de insistir "no
caráter polissêmico da alteridade": o outro é "a carne, enquanto
mediadora entre o si e o mundo" ( ... ); é "o estrangeiro, enquanto
meu semelhante ( ... )"; é também "o foro interior, figurado pela voz
da consciência, endereçada a mim do fundo de mim mesmo"
(id .,p.l05); é "a estranheza do mundo mesmo, como figura maior
do irredutível a toda empresa de constituição ( ... )" (id.,p.l 06).
A meditação sobre a alteridade põe em jogo a meditação
sobre a responsabilidade, a tolerância, a justiça, figuras da ação.
Ela é também o esforço "do si para arrancar-se do anonimato do
'Se' e a idéia de um apêlo que o Dasein dirige a si mesmo do fundo
de si mesmo, mas do mais alto que ele mesmo" (id., p.l08). O pen-
samento de Ricoeur faz pois apelo à reflexão de Heidegger, para
dizer que "da íntima certeza de existir ao modo do si, o ser humano
não tem domínio; essa certeza lhe advém à maneira de um dom, de
uma graça, de que o si não dispõe" (id.).

54 Coleção Filosofia- 140


A ontologia !Jermenêutica de Paul Ricoeur

A ontologia de Ricoeur "atravessou os múltiplos níveis de


uma fenomenologia hermenêutica aplicada às estruturas do si",
onde "três mediadores entre metafísica e moral "podem" ser reco-
nhecidos: a estima dirigida ao homem capaz, a promessa efetiva-
mente mantida, a convicção íntima, inseparável de sua modalidade
altruísta, a equidade" (id.,p.l15).
A ontologia do filósofo francês foi atravessada pelos ques-
tionamentos a respeito do sagrado, do mal e da finitude da vida
humana, da relação estreita entre metafísica e moral.
Em resumo. podemos assinalar três sentidos da palavra
hermenêutica na ontologia de Ricoeur: a hermenêutica do símbolo,
a hermenêutica do texto, a hermenêutica da ação. O mito, a narrati-
va, a ação são os campos privilegiados onde se manifesta a tensão
entre o finito e o infinito.
A hermenêutica de Ricoeur é uma ontologia, que decifra o
sentido do homem e do Ser, pelo exame da linguagem de duplo
sentido.
A angústia e a dor da condição humana são superadas pela
afirmação do amor e da justiça e pela criação artística. O sentido
redescoberto, da vida e do homem, é também uma redescoberta do
sagrado.

Coleção Filosofia- 140 55


O PROBLEMA DA TOLERÂNCIA
EM PAUL RICOEUR

Constança Marcondes Cesar

Um exame do conceito contemporâneo de tolerâ11cia mos-


tra-o, no seu sentido positivo, associado às idéias de liberdade e de
pluralismo político cultural; no sentido negativo, à denúncia da in-
tolerância e à crítica ao etnocentrismo.
No plano ético, é virtude moral dos indivíduos, virtude po-
lítica do Estado. Na sua forma extrema, desliza para o ceticismo e
o relativismo, propondo a equiparação das opiniões (Voltaire,
Bayle, Locke). Não pode, contudo, ser confundida com a indife-
rença à verdade; deve ser identificada ao direito de expressão (Spi-
noza, Mill, Kant), normatizado pela razão (Spinoza, Kant). Não
pode, também, ser confundida com a aceitação de qualquer tipo de
pensar. Quando um autor afirma o que é contrário à vida ou con-
servação da sociedade, deve ser rejeitado (Locke). Como antítese
do fanatismo, seus limites são o direito positivo e o direito natural
(Yoltaire).
Entendida, na filosofia moderna, como garantia da liberda-
de, a tolerância é hoje encarada como sinônimo de respeito ao ho-
mem, na sua dignidade e crenças, e como condição do desenvolvi-
mento e da felicidade. Seu fundamento é uma ética democrática, e
o imperativo da paz (Mayor, 1995). Não consiste num nivelamento
uniformizador de todos os pontos de vista, mas supõe a diversidade
cultural, espiritual, intelectual. Consiste em suportar a diversidade,
mantendo-se, contudo, a busca da verdade e as próprias convic-
ções. Não admite "a apologia do assassinato, os discursos e atos

Coleção Filosofia- 140 57


Consrança l'vfarcondes Cesar

racistas, os apelos ao ódio". Implica reciprocidade, respeito, e a


meditação sobre o intolerável (Droit, 1995).
Num mundo que se caracteriza, cada vez mais, pela uni-
versalidade, pela ruptura com sectarismos e etnocentrismos, tole-
rância é a busca do consenso e da paz (Cristi, 1995).
Diversos autores (Dummet, Williams, Younan, Saurat, Za-
rka, 1995), a apontam como virtude ético-política: respeito aos
outros. No plano cultural, consiste em aceitar, sem considerar "bi -
zarros, cômicos, inferiores ou incompreensíveis ( ... ) desvios de
normas humanas ( ... )", os comportamentos de outros grupos
(Dummet, 1995). Libertando-nos da servidão do particular e do
idêntico, a cultura é o caminho que nos conduz ao universal.
"A tolerância é a aceitação do outro, no que o distingue de
mim" (Younan, 1995).
Se no plano individual consiste em reconhecer o direito à
diferença, no plano do Estado visa a unidade dos cidadãos, sem
vincular a identidade do Estado a "uma raça, um povo, uma língua
ou uma religião" (Dummet, 1995). Trata-se, nesse nível, de incor-
porar "à própria estrutura do Estado a aceitação da pluralidade"
(Williams, 1995).
No plano social, a tolerância é, pois, a expressão da igual-
dade entre os homens, isto é, da justiça, fraternidade e paz social
(Saurat, 1995). Seu limite é a liberdade do outro; não se pode con-
fundi -la com a anarquia, pois cabe à lei "colocar e defender os li-
mites dos direitos naturais de cada um" (id .). Seu correlato é ares-
ponsabilidade, sua arma é o voto.
A tolerância não consiste apenas em suportar a existência
física do outro; implica simpatia, reconhecimento e acolhimento,
quer dizer, superação da mera coexistência. Deve ser "estendida a
todas as opiniões e todas as crenças", porque "toda convicção é ex-
pressão de uma liberdade( ... ) [e] deve ser respeitada porque revela
a dignidade do homem" (Zarka, 1995).
Evidencia-se, no pensamento contemporâneo, a necessida-
de de integrar o problema da preservação da natureza na questão da
tolerância. Isso ocorre porque, como demonstrou Jonas, nossa ação
não afeta mais apenas os seres humanos, mas põe em jogo a pró-

58 Coleção Filosofia- 140


O Problema da tolerância em Paul Ricoem·

pria imutabilidade da ordem natural, mostrando a correlação tole-


rância - responsabilidade, bem como a exigência da reflexão sobre
o intolerável. Assim, "a reconsideração da ética por H. Jonas pode
conduzir a uma reelaboração da questão da tolerância" (id.).
Outro aspecto do problema é o da convivência entre cultu-
ras inumeráveis, diversas e equivalentes, e o acolhimento dessas,
não na sua mera alteridade, mas para além dela. O que é tolerável?
Diagne busca na obra de Lévinas um critério : devemos "julgar as
civilizações a partir da ética" (1995), à luz dos conceitos de huma-
nidade una, de dever de ingerência, de "direito transcultural de
julgar" (id.). Pois acima da diversidade cultural, trata-se de assegu-
rar o "valor da pessoa humana", a "solidariedade trans-étnica"
(id.).
Modelo da tolerância a que aspiramos, na contemporane.i-
dade, é a ação não-violenta de Gandhi. Tolerância e não-violência
são aproximadas por Jahenbegloo (1995). Ele mostra que o con-
ceito gandhiano de Ahimsa implica as noções de respeito e amor a
todos os seres. A não-violência, para Gandhi, é convertível à ver-
dade, e a verdade é obediência à lei do amor; dever supremo do
homem, é a virtude política por excelência.
Em resumo, pode-se dizer que o conceito em exame apare-
ce hoje vinculado às idéias de liberdade, de respeito e igualdade, de
amor. Seus correlatos são a responsabilidade, em relação aos ho-
mens e à natureza, e a não-violência.
O respeito ampliou-se, abarcando homem e natureza; a li-
berdade e a igualdade são os parâmetros para o exame da diversi-
dade cultural, bem como a preservação, acima de qualquer outro,
do valor da pessoa humana, como critério para dirimir divergênci-
as. A amizade interpessoal ampliou -se em solidariedade trans-
étnica, afirmando a humanidade una e seu destino comum. Novos
deveres, como por exemplo o de intervir garantindo tais valores,
são propostos ao homem atual.
A meditação de Ricoeur sobre o assunto precede, de alguns
anos, o texto da UNESCO a que recorremos para apresentar o esta-
do da questão. A análise permite-nos, de um lado, assinalar que sua
obra antecipa e sintetiza perspectivas presentes no texto da

Coleção Filosofia- 140 59


Constança Marcondes Cesar

UNESCO; de outro, mostrar como, em seus escritos, a questão em


pauta ganha profundidade e riqueza.
Nosso ponto de partida foi o exame, em Ricoeur, dos con-
ceitos de tolerância, intolerância e intolerável, discutindo os pt;-
meiros à luz dos limites do último.
Assim, intolerável é o que deve ser rejeitado, e também o
que é abjeto. O problema que surge, dessa definição, é o da ambi-
güidade do termo: como estabelecer o que é intolerável, quando
somos confrontados com a diversidade cultural, filosófica, religio-
sa?
Nosso autor trata de responder a essa questão, elucidando o
termo tolerância. Reconhece, no uso da palavra, uma dupla dimen -
são: a institucional, essencialmente negativa, cujo fundamento é o
respeito à liberdade do outro; a individual, essencialmente positiva,
admissão de modos de pensar e agir diversos do nosso.
No plano institucional, a ruptura da colaboração entre o
religioso e o político, a partir da Revolução Francesa, levou à im-
plantação do Estado de Direito, como garantia das liberdades e do
ideal de justiça, expresso no conceito de cidadania. A tolerância
deve ser compreendida, ao nível institucional, como um consenso
conflitual, que consiste em "reconhecer o direito do adversário
existir e na vontade expressa de convívio cultural" (Lectures I, p.
303), e no acordo "sobre valores comuns, fundados diversamente,
mas enunciados em termos próximos ... " (id ., p. 304). Assim, tole-
rância é virtude, que se caracteriza pelo respeito, pela presunção de
que a "adesão do outro às suas crenças é livre" (id .), pela não-
imposição de convicções (id., p. 303).
Nesse plano, o intolerável é a confusão entre justiça e ver-
dade, e o açambarcamento, pelo Estado, da pretensão à verdade do
discurso. O intolerável é o que é sem fundamento, o que '"não pode
ser incluído no pacto do consenso conflitual" (id., p. 305), "o que
não merece respeito", o que é abjeto, "porque fundado no não-
respeito", na recusa da liberdade do outro (id.).
No plano religioso, a diversidade de crenças põe, de modo
ainda mais agudo que no plano político, a questão da verdade. As
duas grandes indagações que surgem são: há justificação teológica

60 Coleção Filosofia- 140


O Problema da tolerância em Pa11/ Rit"oettr

da tolerância? (id., p.306); e: "como viver a pluralidade das confis-


sões, na confissão da fé?" (id., p. 308).
Para Ricoeur, o caminho em direção à tolerância é o que
leva "da violência da convicção à não-violência do testemunho"
(id., p. 307), à unidade plural. Não se trata de cair num sincretismo
vago, mas de reconhecer que não há um ponto de vista privilegiado
para abranger a multiplicidade das religiões, lembrando que é sem-
pre no seio de uma confissão determinada que se pode reconhecer
o valor das outras. Para Ricoeur, o ponto de partida para dialogar
com as outras religiões é o cristianismo, no qual se mostra o misté-
rio da alteridade de Deus, o absolutamente Outro, que se revela
também por intermédio de outras Escrituras, alhures (id., p. 310).
Assim, no plano religioso, tolerância significa diálogo en-
tre cristãos e leigos, entre cristãos e sacralidades não-cristãs, aber-
tura ao encontro de diferentes conjuntos simbólicos.
É intolerável, aqui, o intolerante, abjeto porque não res-
peitoso; e o poder político, quando este tenta apropriar-se da ver-
dade. Cabe ao Estado expressar ajustiça, "ascese do poder", e não
impor a sua verdade.
No plano filosófico, podemos dizer que, para Ricoeur, a
tolerância consiste primeiramente na tentativa de superação dos
conflitos das interpretações. Ou seja, no reconhecimento da plura-
lidade da verdade, no não-dogmatismo, na recusa do ceticismo. A
expressão da tolerância, no plano de reflexão é também busca, por
nosso autor, da possibilidade de articular hermenêuticas rivais.
O problema atual da interpretação é que não há um cânone
universalmente reconhecido, uma hermenêutica geral, mas apenas
teorias da interpretação separadas e opostas.
Nosso filósofo parte do extremo conflito que aí se apre-
senta: de um lado, a hermenêutica concebida como manifestação,
restauração de um sentido; de outro, a hermenêutica entendida
como desmistificação, redução de ilusões.
Inspirando-se na hermenêutica desenvolvida pela fenome-
nologia da religião (Leenhardt, Van der Leeuw, Eliade), o pensador
francês faz da hermenêutica um instrumento de escuta, descreven-
do e compreendendo a realidade simbólica. Afirmando sua fé no

Coleção Filosofia- 140 61


Constança Marcondes Cesar

desvelamento pela palavra, trata de descobrir a verdade dos sím-


bolos, evidenciando o elo analógico entre o seu significado primá-
rio, literal, e o significado secundário que apresentam.
Contrapondo a hermenêutica elaborada pela fenomenolo-
gia da religião e a psicanalítica, indaga: como duas hermenêuticas
opostas são possíveis ao mesmo tempo? Sua hipótese é de que am-
bas são legítimas, cada qual em seu nível. A solução do cont1ito
consiste, para Ricoeur, na articulação dessas duas hermenêuticas,
mostrando sua complementariedade.
Há, para nosso filósofo, um campo comum a todas as her-
menêuticas: é o das expressões multívocas, onde a equivocidade
emerge por superabundância de sentido. É o exame do símbolo,
entendido como '"estrutura de significação em que um sentido di-
reto, primário, literal, designa, por acréscimo, outro sentido indi-
reto, secundário, figurado, que só pode ser apreendido através do
primeiro" (Le confiit... , p. 16).
O denominador comum das hermenêuticas opostas são as
raízes ontológicas da compreensão: busca da arqueologia do senti-
do, pela psicanálise; da teleologia das figuras do espírito, pela fe-
nomenologia do espírito; dos signos do sagrado, pela fenomenolo -
gia da religião. As hermenêuticas rivais apresentam interpretações
cujo limite de validade é o marco teórico que funda suas regras de
leitura, e que cabe à filosofia explicitar. Podemos articular todas as
interpretações numa figura unitária, porque o ser que somos é o co-
erente fundamento das interpretações. A dialética das interpreta-
ções põe em evidência que os símbolos são mais ricos que as suas
múltiplas decifrações, porque estão carregados de todas as her-
menêuticas; e ainda, que nossa existência, de que a filosofia trata, é
sempre uma existência interpretada.
A articulação das hermenêuticas expõe a consciência como
tarefa e o símbolo, o mito, a ficção, o sonho, como profecias de
nosso vir-a-ser, como vivências de variações imaginativas do eu,
que conduzem o homem a um si mais amplo. É reconquista do po-
der de desvelar a existência essencial, o ser essencial do homem,
pela desmitologização.

62 Coleção Filosofia - 140


O Pmblema da tolerância em Pa11ll\icoeur

Filosofia é reflexão, "apropriação de nosso esforço para


existir e de nosso desejo de ser, através das obras que atestam esse
esforço e esse desejo". A reflexão deve ser interpretação, porque
precisa, hoje, incluir os resultados dos métodos, dos pressupostos
das ciências que decifram os signos do homem, no seu esforço
compreensivo. Tal reflexão requer, num primeiro momento, uma
interpretação destruidora, redutora, porque a consciência é, primei-
ramente, uma consciência falsa. Mas, num segundo momento, re-
quer uma interpretação ampliadora, porque a significação da cons-
ciência não está em si mesma, mas no espírito, exigindo, pois, uma
restauração do sagrado. Os símbolos do sagrado são como uma
profecia da consciência, mostrando a dependência do homem em
relação a uma raiz absoluta da existência e da significação.
A meditação filosófica sobre os mitos é, numa primeira
aproximação, a meditação sobre a pluralidade da verdade e a exi-
gência ética da tolerância.
Numa segunda aproximação, tal pensar põe à luz a tolerân-
cia como uma das formas da justiça, uma das expressões da amiza-
de, no mundo contemporâneo. Está ligada à reflexão sobre a não-
violência, cujo modelo paradigmático é Gandhi e à caracterização
da democracia, entendida como o lugar onde os conflitos podem
ser explicitados e mediados.
A não-violência não é sinônimo da pieguice, fuga do mun-
do, mas de compreensão profunda e ação eficaz no plano da histó-
ria (Histoire et Vérité, p. 225 e segs.). Expressão do amor, a resis-
tência não-violenta é também busca da verdade, no dizer de Gan-
dhi (Histoire et Vérité, p. 231 e segs.) e "o nó profético dos movi-
mentos propriamente políticos ..." (id., p. 235).
O paradoxo do político, constituído pela violência inelutá-
vel do Estado e da convivência humana pode ser superado pelo
desenvolvimento das virtudes políticas. A virtude da tolerância se
expõe, no plano social, como exercício da cidadania e da participa-
ção, como a realização da liberdade.
A amizade, o amor a todos os homens, tornam-se virtudes
políticas por excelência, no ciclo histórico em que, caminhando
para uma civilização universal, as culturas nacionais se defrontam.

Coleção Filosofia - 140 63


Constança Marcondes Cesar

De um lado, diz Ricoeur, essa civilização é caracterizada pela difu-


são da técnica e da ciência; de outro, pela exigência de se preser-
var, salvaguardar, o patrimônio cultural herdado.
A "universalização é, em si mesma, um bem"; porque
"aflora à consciência a noção de uma única humanidade" ( ...) e
permite "o acesso das massas ( ... ) aos bens elementares (... ) a cer-
tos valores de dignidade e autonomia" (id., pp.281 e segs.). Por
outro lado, generaliza também um mal, a destruição do "núcleo
criador das grandes civilizações ( ... ) o núcleo ético e mítico da hu-
manidade" (id ., p. 283), pela massificação.
Mais do que nunca, a tolerância torna-se uma exigência:
pois "não é fácil permanecer o que somos e praticar a tolerância
face às outras civilizações". E ainda: "nem toda cultura pode su-
portar e absorver o choque da civilização mundial. Eis o paradoxo:
como modernizar-se, e retornar às fontes?" (id., p. 284). A desco-
berta da pluralidade das culturas é a descoberta da alteridade e de
"nós próprios como um outro entre os outros" (id., p. 285), o que
conduz a uma arriscada aproximação a um ceticismo e nihilismo,
em escala planetária (id.).
A solução para tal confronto de modos de vida diversos,
Ricoeur a encontra nas imagens e símbolos, "núcleo ético-mítico",
"fundo cultural de um povo". Só poderá sobreviver, recriar seus
valores, a cultura que integre a racionalidade científica (id., p.
289); e só poderá haver um encontro entre culturas diversas, "um
encontro que não seja mortal para todos", se considerarmos que "a
singularidade de homem para homem não é jamais absoluta. O
homem é um estranho para o homem, sem dúvida, mas sempre
também um semelhante" (id.).
O sentimento cego dessa unidade da espécie, deve ser er-
guido "ao nível de um compromisso e de uma afirmação voluntária
da identidade do homem" (id.). Afirmar "que o estrangeiro é ho-
mem, é (... ) crer que a comunicação é possível [e isso] também
vale para os valores, as imagens básicas, os símbolos que constitu-
em o fundo cultural de um povo ... Ser homem é ser capaz dessa
transferência a um outro centro de perspectiva" (id., p. 290), sem
cair num sincretismo vago. Mas isso só é possível se redescobrir-

64 Coleção Filosofia - J 40
O Proble111a da tolerância em Paul lvmmr

mos, nas outras culturas, a sua dimensão viva, criadora, fiel às suas
origens e aberta ao choque, ao confronto: "Aos sincretismos deve-
mos opor a comunicação, isto é, uma relação dramática, na qual
alternadamente me afirmo em minha origem e me entrego à imagi-
nação de outrem, de acordo com sua civilização diferente da mi-
nha" (id., p. 291 ). Esse diálogo ainda não se deu verdadeiramente:
"estamos numa espécie de interregno, no qual não mais podemos
praticar o dogmatismo da verdade única e no qual não somos ainda
capazes de vencer o ceticismo no qual ingressamos . Estamos no
túnel , no crepúsculo do dogmatismo, no limiar dos verdadeiros
diálogos" (id.).
A tarefa da filosofia reflexiva é a busca do núcleo simbóli -
co da humanidade. Trata de manifestar a pluralidade de sentidos
exposta no campo hermenêutica, enumerando, primeiro, do modo
mais amplo possível, as formas simbólicas. Reconhece, assim, a
extensão dessas formas, em três grandes expressões lingüísticas: a
dos símbolos cósmicos, a dos oniricos, a dos poéticos. Faz, a partir
dessa enumeração, a análise compreensiva das formas simbólicas,
estabelecendo, a seguir, uma criteriologia, que fixa a constituição
semântica de formas aparentadas . Na etapa seguinte, estuda os
procedimentos metodológicos da interpretação, confrontando esti-
los hermenêuticas e criticando os sistemas de interpretação. Assim,
Ricoeur encontra as raízes ontológicas da compreensão, articulan-
do as hermenêuticas rivais numa unidade cujo fundamento é a uni -
dade do próprio ser humano, a quem todas elas se reportam.
A tolerância, aqui, quanto à pluralidade das interpretações,
se expressa nessa atitude que combina abertura não-dogmática e
método rigoroso, fundando a possibilidade do diálogo no próprio
ser que, refletindo, aborda a realidade sob múltiplas perspectivas .
. Temas correlatos, nos escritos de Ricoeur, à meditação so-
bre a tolerância, são os da responsabilidade e o da democracia . O
tema da responsabilidade aparece, em nosso autor, ligado à crítica
da civilização tecnológica e dos riscos e imperativos da mundiali-
zação.

Coleção Filosofia- 140 65


Constança Marcondes Cesar

A tônica de sua reflexão é a exigência do amor e amizade


aos homens e à natureza, a fim de que a universalização gerada
pela técnica não traga como resultado a massificação.
No plano ético-político, sinalizando a democracia como o
lugar da crítica das ilusões e do consenso conflitual, o pensador
francês desenvolve uma das mais significativas meditações de nos-
so tempo, em obras como Le juste, Lectures 1, Soi-mênze conune
un autre, Du texte à l 'action.
Em resumo, pode-se dizer que os escritos de Ricoeur ante-
cipam temas da importante publicação da UNESCO ( 1995) sobre a
tolerância. Seus trabalhos já apontavam, em Histoire et Vérité
(1995), o surgimento de uma civilização mundial e a não-violência,
ligando-os a esse problema. Textos recentes, abordando as ques-
tões da responsabilidade, da verdade, da justiça, da democracia e
da liberdade, põem em ptimeiro plano essa discussão.
A dimensão ética do amor e da amizade, que a tolerância
representa, é um dos fios condutores da hermenêutica de nosso fi -
lósofo. O esforço compreensivo dos mitos e a articulação das her-
menêuticas, a busca de uma unidade superadora dos conflitos, são
expressão de uma ética, não apenas proposta, mas vivida.

66 Coleção Filosofia - 140


MULTICULTURALISMO:
QUESTÕES ÉTICAS

Constança Marcondes Cesar

A obra de Ricoeur é sugestiva e inspiradora, na reflexão


contemporânea sobre o problema elo multiculturalismo. Um texto
publicado em 1961 na revista Esprit (cf. Ricoeur, História e Ver-
dade, RJ, Forense, pp. 277-291), "Civilização universal e culturas
nacionais", oferece, ainda hoje, uma importante contribuição para
discutirmos o assunto.
O problema que se coloca, como ponto de partida para o
debate, é comum a todas as nações, não importando se são sub-
desenvolvidas, emergentes ou altamente industrializadas. Consiste
no surgimento de uma civilização planetária, que expressa tanto a
irreversibilidade desta unificação e progresso, quanto a exigência
de conservação e respeito à diversidade das culturas que compõem
a humanidade considerada no seu conjunto. A civilização mundial
que se anuncia, apóia-se na difusão da técnica e da ciência e na
unificação do mundo sob a égide elo saber científico. As invenções,
as descobertas, que ocorrem nesse campo, pertencem, de direito, à
toda a humanidade e criam, para todos, situações novas. O enclau-
suramento cultural não é mais possível, dada a participação de to-
dos na civilização técnica única.
A civilização universal, tal como Ricoeur a chama, apóia-
se ainda "na existência de uma política racional" (op.cit., p. 279),
apesar da diversidade dos regimes políticos: "o Estado moderno
tem, enquanto Estado, uma estrutura universal discernível" (id.),

Coleção Filosofia- 140 67


Constança I\1arcondes Cesar

como Hegel demonstrou, diz Ricoeur, no Princípios de Filosofia


do Direito.
A racionalidade que caracteriza o mundo contemporâneo
pode, seguramente, apresentar as formas distorcidas, patológicas,
da burocracia e da tecnocracia. Mas burocracia e tecnocracia não
são senão as formas desviadas de uma racionalidade que se
expressa na busca do "bem-estar, instrução e cultura"' (id.), de
democracia e organização da função pública, de equilíbrio
econômico internacional, de mundialização de um gênero de vida
que uniformiza vestuário, habitação, transportes, lazer e
informação (id., p. 280).
Depois de ter caracterizado a civilização mundial, Ricoeur
indaga seu significado. Reconhece que ela implica num progresso e
melhora da vida; que a "universalização é, em si mesma um bem"
(id., p. 281), fazendo aflorar à consciência coletiva a idéia de uma
única humanidade e dando à grande maioria o acesso a melhores
condições de vida, à mais ampla liberdade e independência. Exem-
plifica o caráter benéfico da civilização mundial pela redução do
analfabetismo e a ascensão de imensas massas humanas "a um
bem-estar elementar" (id., p. 282) .
A contrapartida deste efetivo progresso e desta efetiva
melhora qualitativa é uma possibilidade de destruição "das culturas
tradicionais" [e do] "núcleo criador das grandes civilizações", [o]
"núcleo ético e mítico da humanidade" (id., p. 283). Se o acesso
aos bens culturais se universaliza, ascendem paralelamente também
os aspectos sombrios e negativos da sociedade contemporânea, a
negarividade e alienação característicos da subcultura, da tecnocra-
cia, da exploração econômica: "nem toda cultura pode suportar e
absorver o choque da civilização mundial" (id., p. 284). nem sem-
pre é fácil conservar a própria identidade e ser capaz de expressar
tolerância face à diversidade cultural. Há, no mundo contemporâ-
neo, o risco de nostalgia do passado ou de um certo exotismo cul -
tural, à sedução pelo longínquo e pelo estranho, de modo que
"qualquer ser humano medianamente afortunado" [pode] "expatri-
ar-se indefinidamente, caindo num nihilismo absoluto, no mero

68 Coleção Filosofia- 140


Mtt!timlturalismo: que.rtões éticas

colecionar de informações sobre diferentes países, abandonando a


vida criadora."
Para escaparmos desse sincretismo inadequado, que tem
como contrapartida um ceticismo profundo, Ricoeur propõe que
examinemos os valores que caracterizam as diversas culturas, o
"núcleo ético-mítico que constitui o fundo cultural de um povo"
(id., p. 287). Compreende, deste modo, que a característica das
culturas é a contínua renovação. Assim, as culturas tradicionais só
poderão sobreviver integrando a racionalidade científica e recupe-
rando, ao mesmo tempo, o sentido do sagrado, para além da avas-
saladora dessacralização atual.
A diversidade das culturas atesta a singularidade do ho-
mem, mas também a possibilidade de reconhecer nossa semelhan-
ça: "afirmar que o estrangeiro é um homem é em suma crer que a
comunicação é possível" (id., p. 290), "é ser capaz dessa transfe-
rência a um outro centro de perspectiva" (id.).
Somente culturas criativas são capazes de suportar o con-
fronto com a diversidade; somente a fidelidade às próprias origens
torna possível a abertura ao outro. Diz Ricoeur: "Aos sincretismos
devemos opor a comunicação, isto é, uma relação dramática, na
qual alternadamente me afirmo em minha origem e me entrego à
imaginação de outrem, de acordo com sua civilização diferente da
minha" (id., p. 291) .
Nossa época se caracteriza por uma crise: não podemos
mais supor uma verdade única, não podemos mais ser dogmáticos;
o mundo é plural, a verdade é plural, tem muitas faces. A tentação
que nos caracteriza é a do ceticismo; estamos "no crepúsculo do
dogmatismo, no limiar dos verdadeiros diálogos" (id.).
Aristóteles fundava a vida feliz na amizade e justiça (Ética
a Nicômaco, livros V, VIII, X, passim) . Para Ricoeur, a amizade se
expressa, hoje, como tolerância, que deve ser entendida, no sentido
fraco, como não-violência e no sentido forte, como aceitação da
diversidade.
A não-violência tem uma dimensão ético-política funda-
mental. Sua eficácia é atestada pela obra de Gandhi, "figura exem-
plar" da gra11de alma, do homem excelente (id., p. 232).

Coleção Filosofia- 140 69


Constança Marcondes Cesar

Ricoeur examina a não-violência também ao contrastá-la


com o seu oposto, a violência, a morte do outro.
Há, a seu ver, uma violência inelutável ligada ao Estado,
há um paradoxo que caracteriza a vida política. Todo Estado ex-
pressa uma violência mínima, a penal. Mesmo no Estado mais
justo, está presente a violência: o poder de exigir e de obrigar. As-
sim, mesmo quando legítima, a violência do Estado constitui pro-
blema, na medida em que "a 'autoridade' não parece poder proce-
der do amor" (id., op.cit., "Estado e violência", p. 240). Esse resí-
duo de violência, presente mesmo no Estado justo, só se torna
compatível com a amizade se o respeito à pessoa for medido pela
lei, e a punição se mantiver dentro desse limite" (id., pp. 246-247).
A guerra, ordenada pelo Estado, só deve ser levada a efeito
pelos cidadãos se ela for condição para que o Estado continue " a
existir e que assim exista o 'magistrado'" (id., p. 248) . Mas o filó -
sofo reconhece que "Pode acontecer que, em certos casos extre-
mos, o sacrifício de meu Estado se torne um dever político" (id., p.
249), como no caso da Alemanha nazista. A "ética da angústia"
que assim se instaura, pode levar-nos a lutar contra o nosso próprio
Estado, por dever moral em relação à humanidade. A ética da an -
glÍstia põe em cena, por exemplo, os problemas éticos do homicí-
dio, na guena, para assegurar-se a existência do Estado justo, e o
da traição, para assegurar a derrubada do Estado injusto . Daí o fi -
lósofo dizer:
"O fim [desta tensão], seria a 'reconciliação' total do ho-
mem com o homem; mas seria também o fim do Estado" (id ., p .
250), como já entrevira Aristóteles, ao afirmar que o homem exce-
lente não precisa da lei, que o homem sábio é paradigma de justiça.
O paradoxo político, em nossa época, é que a crescente ra-
cionalidade, universalidade, levada a efeito pela civilização mundi-
al, é acompanhada pela crescente possibilidade de perversão dessa
mesma racionalidade. Há um mal específico do político, que se ca-
racteriza pela alienação econômica, pelo abuso do poder. O princí-
pio do Estado, no entanto, afirma Ricoeur, é a busca da felicidade
através do viver em comum, como Aristóteles já assinalara. A ci-
dadania desenvolve as virtudes propriamente humanas, o consen-

70 Coleção Filosofia - 140


A1ultimltttra!ismo: qmstões éticas

timento refletido, o consenso alcançado pelo debate. O remédio


para o mal político é a liberdade: "seja o Estado fundando a liber-
dade pela sua racionalidade, seja que a liberdade limite as paixões
do poder pela sua resistência" a elas (id ., op. cit., '"O paradoxo po-
lítico", p. 276).
O remédio para os males do Estado são as virtudes da ami-
zade e da justiça, condições para a construção da vida feliz.
Repetimos: a amizade, hoje, se expressa pela não-violência
e a tolerância. Já examinamos a questão da não-violência e a con-
trastamos com seu oposto, a violência. Veremos agora como Rico-
eur desenvolve sua meditação sobre a tolerância.
Os que pregam a tolerância, numa sociedade mundial
complexa onde se confrontam culturas rivais, devem buscar esta-
belecer o modo de atuação e os limites desta, mediante a discussão
do que deve ser considerado como intolerável. Perante a diversida-
de de culturas, como estabelecer o que é intolerável? Como esta-
belecer o que deve ser rejeitado, sem se cair num nihilismo e ceti -
cismo em relação a valores, sem considerar todas as formas de
comportamento como equivalentes e indiferentes? Ou seja, o pro-
blema ético envolvido, quando estamos diante da multiplicidade de
indivíduos e de culturas, é hoje, o de como fundar valores univer-
salmente aceitos, como estabelecer paradigmas de ação, dado que
não há, imediatamente, denominadores comuns entre as diferentes
culturas, para apreciação das ações.
Esse critério universal, Ricoeur vai buscá-lo no respeito à
pessoa humana. É intolerável o que é abjeto, desrespeitoso; o que
nega, previamente, ao outro, seu valor como pessoa, como interlo-
cutor; é intolerável o que impede ou bloqueia o debate, a liberdade,
a participação do indivíduo na vida política, pois tal participação e
tal liberdade são condições do estabelecimento de um consenso
conflitual - ponto de apoio da democracia, possibilidade de vida
feliz com e para os outros.
Tolerância é, pois, respeito ao outro, de qualquer cultura; é
reconhecimento do outro como interlocutor e parceiro na megapo-
lis que o mundo se tornou . É afirmação do valor da razão e da pa-
lavra, do debate como ingrediente da vida propriamente humana.

Coleção Filosofia- 140 71


Constança Marcondes Cesar

A consideração do conceito atual de tolerância mostra-o,


no seu sentido positivo, associado às idéias de liberdade e de plu-
ralismo político-cultural; no sentido negativo, à denúncia da intole-
rância e à crítica ao etnocentrismo. No plano ético, é virtude moral
dos indivíduos, virtude política do Estado.
Não deve ser confundida com a indiferença à verdade nem
com a aceitação de qualquer tipo de pensar, mas, antes, identifica-
da ao direito de expressão, normatizado pela razão. Como antítese
do fanatismo, seus limites são o direito positivo e o direito natural;
supõe a diversidade cultural, espiritual, intelectual, entre indivíduos
e povos.
Assim, no plano cultural, consiste em aceitar, sem conside-
rar "bizarros, cômicos, inferiores ou incompreensíveis" (... ) os
comportamentos de outros grupos humanos (Dummet, in Toléran-
ce j' écris ton nom, Paris, UNES CO, 1995). É aceitação da plurali-
dade e expressa, no plano social, a igualdade entre os homens, isto
é, a justiça, a fraternidade e a paz. Não consiste apenas em suportar
a existência física do outro, mas implica em simpatia e acolhi-
mento, superação da mera coexistência.
Hoje, a amizade interpessoal ampliou-se em solidariedade
transétnica, afirmando a unidade da humanidade e seu destino co-
mum.
Para Ricoeur, modelo de tolerância no mundo contemporâ-
neo é a ação não-violenta de Gandhi. Para este, a não-violência é
obediência à lei do amor, dever supremo do homem.
Um ponto central no exame ricoeuriano da tolerância é a
discussão desse conceito nos planos político, religioso, filosófico .
No plano institucional, Ricoeur identifica a tolerância ao consenso
conflitual, que consiste em "reconhecer o direito do adversário de
existir e na vontade expressa de convívio cultural" (Lectures /, p.
303); e no acordo "sobre valores comuns, fundados diversamente,
mas enunciados em termos próximos (... )" (id., p. 304). No plano
religioso, a diversidade de crenças põe, de modo ainda mais agudo
que no plano político, a questão da verdade. As duas grandes inda-
gações que surgem são: há justificação teológica da tolerância?

72 Coleção Filosofia - 140


Mu!Jimlturali.rmo: questões éticas

(id., p. 306); e: "como viver a pluralidade das confissões, na con-


fissão da fé"? (id., p. 308).
Para o nosso filósofo , o caminho em direção à tolerância é
o que leva "da violência da convicção à não-violência do testemu-
nho" (id. , p. 307), à unidade plural, lembrando que é sempre no
seio de uma confissão determinada que se pode reconhecer o valor
das outras. Assim, no plano religioso, tolerância significa diálogo
entre religiosos e leigos, entre cristãos e sacralidades não-cristãs,
abertura ao encontro de diferentes conjuntos simbólicos.
No plano filosófico, a tolerância consiste, para Ricoeur, ao
nível epistemológico, na tentativa de superação dos conflitos das
interpretações, isto é, no reconhecimento da pluralidade da verda-
de, no não-dogmatismo, na recusa do ceticismo e na busca da arti-
culação entre hermenêuticas rivais . O problema da interpretação
reside em não haver um cânone universalmente reconhecido, uma
hermenêutica geral, mas apenas teorias da interpretação separadas
e opostas. Nosso filósofo parte do extremo conflito que aí se apre-
senta, combinando a atitude de abertura não-dogmática e o método
rigoroso, para fundar a possibilidade elo diálogo no próprio ser hu-
mano que, refletindo, aborda a realidade sob múltiplos aspectos.
Encontrando as raízes ontológicas de compreensão, Ricoeur arti -
cula as hermenêuticas rivais numa unidade, cujo fundamento é o
próprio ser humano, a quem todas se reportam. Partindo da episte-
mologia, a meditação de Ricoeur desemboca, assim, na ética.
Quando aborda a questão ética do multiculturalismo, outra
virtude política fundamental, aos olhos do filósofo, é a justiça. A
meditação de Ricoeur sobre o tema envolve uma discussão dos
princípios de justiça ("Le juste entre le legal et le bon", in Lectures
I, pp. 176- 194); do sujeito do direito; do conceito de responsabili-
. dade (Lectures I, pp. 270-293; Le juste, pp. 41 -70); do ato de jul-
gar, da pluralidade das instâncias da justiça (Le juste, passim),
dentre outros temas.
A justiça aparece, na sua meditação, relacionada ainda às
idéias de bem e de lei.
Se na Antigüidade a análise da justiça recebe nas Éticas
aristotélicas uma ênfase especial, na modernidade é em relação ao

Coleção Filosofia - 140 73


Constança Marcondes Cesar

direito e sua finalidade, é no âmbito da filosofia política, que se


estabelece o campo de reflexão sobre a justiça, entendida como o
laço entre o ético e o político. Problemas centrais, como o do para-
doxo do mal político, são também o da legitimidade do Estado, o
da demarcação entre o justo e o injusto, o do lugar próprio do jurí-
dico e o da especificidade do direito.
O exame do problema da justiça aparece fundado, na obra
de Ricoeur, na dimensão dialógica do si e na caracterização da
ação humana como a ação moral (id., pp. 13-14).
A dimensão dialógica do si põe a justiça como virtude, que
estende a virtude da amizade - emblemática do acolhimento ao
outro, no plano interpessoal -ao outro distante: "O outro, segundo
a amizade é o tu; o outro, segundo a justiça é cada um (... )" (id.,
pp. 14-15), como na expressão: dar a cada um o que lhe é devido.
A justiça aparece, assim, como a virtude das relações hu-
manas mediatizadas pelas instituições sociais, numa perspectiva
análoga à de Rawls . Segundo a regra de ouro, a justiça é "parte in-
tegrante do desejo de viver bem", de modo que o "político, tomado
no sentido amplo, constitui assim a arquitetônica da ética", dado
que é "como cidadãos que nos tornamos humanos" (id., p. 17).
A justiça está associada ao bom (bem viver); mas também
ao obrigatório: "é o nível da norma, do dever, da interdição" (id.,
p. 18); e às idéias de lei, de cidadania, de proteção aos direitos. O
justo se define, no plano do desejo de bem viver, corno o bem em
relação ao outro; no plano da obrigação, como o legal; no plano da
sabedoria prática - que avalia o que é justo "nas situações de in-
certeza e de conflito" (id., p. 27)- pode ser identificado ao eqüita-
tivo.
O exame do justo implica, para nosso filósofo, na conside-
ração das condições em que o ato de julgar "pode ser dito autoriza-
do ou competente" (id., p. 186): supõe a existência de leis, de tri -
bunais, de juízes, de processo- que possibilitem expressar, na situ-
ação singular, a força do direito. É aplicação e interpretação da lei,
visando, em última análise, a correção da partilha injusta, a supera-
ção das querelas. É afirmação do poder da palavra contra a violên-
cia, explícita ou dissimulada; é afirmação do poder da palavra

74 Coleção Filosofia - 140


Multimlturalismo: qmstões éticas

contra a vingança, em favor da paz social, da cooperação, do bem


comum.
Mostrando que há "um lugar na sociedade ( ... ) onde a pa-
lavra tem primazia sobre a violência", o filósofo põe em evidência
que o ato de julgar tem como finalidade imediata "dirimir um con-
flito" e, a longo prazo, "contribuir para a paz social ( ... ), [a] conso-
lidação da sociedade como empreendimento de cooperação ( .. .)"
(id., p. l 0).
Ricoeur comenta, ainda, a obra de Walzer sobre a plurali-
dade de instâncias da justiça. Dai, partindo do exame do conceito,
entendido como sinônimo de igualdade, boa partilha (analoga-
mente a Aristóteles), propor, seguindo Walzer, a noção de igualda-
de complexa, que põe em jogo questões novas. Entre elas, por
exemplo, destaca: a ela nacionalidade: como fazer distribuição
justa entre membros ela comunidade e estrangeiros; a da proteção
social: como distinguir as necessidades que exigem provimento e
reclamam direitos?; a dos trabalhos penosos: como partilhar eqüi-
tativamente valores negativos? E, positivamente, como controlar a
distribuição dos bens sociais, como o lazer, a educação. garantindo
a igualdade de oportunidades?
O principal problema, hoje, do Estado, é conseguir estabe-
lecer acordos e "gerir o desacordo, sem sucumbir à violência" (id.,
p. 128), colocando "o pluralismo a serviço da igualdade complexa"
(id., p. 134).
No horizonte da meditação sobre o justo. nosso filósofo
examina a noção de responsabilidade: "( ... )em direito civil [ares-
ponsabilidade] se define pela obrigação de reparar o dano ( ...) em
direito penal, pela obrigação de suportar o castigo ( ... ). É responsá-
vel quem quer que esteja submetido a essas obrigações" (id ., p.
41).
Mas, na linguagem filosófica, o conceito é mais amplo:
somos responsáveis pelas conseqüências das nossas ações, mas
também somos responsáveis pelos outros; ou seja: a responsabili -
dade consiste não só em reparar danos ou sofrer punições, mas
também as noções de obrigação, dever, princípio de ação. Para
além da imputação e da retribuição, a palavra responsabilidade

Coleção Filosofia - 140 75


Constança Marcondes Cesar

aparece, hoje, associada às noções de solidariedade, segurança,


risco (id., p. 58), tal como Hans Jonas assinalou. Expressa o laço
entre as virtudes da amizade e dajustiça e a evolução do conceito,
do plano puramente moral (intersubjetivo) para a dimensão propri-
amente ética, dado o seu mais amplo alcance, no tempo e no espa-
ço, englobando a humanidade toda, presente e futura.
Em vez de voltar-se para o passado, para o conceito estri-
tamente jurídico de responsabilidade pelo que fi zemos (imputa-
ção), a orientação prospectiva do princípio ético mostra-o ligado à
ética de prevenção de ameaças e à virtude da prudência.
A sabedoria prática consiste em aproximar, segundo Rico-
eur, "a 'teleologia' de uma ética aristotélica que visa o bom, e a
'deontologia' de uma moral kantiana que proíbe o mal" (cf. Abel,
La promesse et la regle, p. 87). Visa fundar a cidade feliz, definin-
do o bem comum e resguardando-a de perversões, mediante a in-
tervenção de regras que limitam o poder do Estado; impedindo a ir-
racionalidade e o mal propriamente políticos . Daí o estudioso de
Ricoeur, Olivier Abel, afirmar: "A busca da felicidade política
pode, com efeito, implicar violência e mentiras tanto mais teníveis
quanto mais o fim justificar os meios" (op. cit., p. 61 ); pois toda
violência ilegítima do Estado só agrava o problema do mal intrín-
seco ao mundo político. Na verdade, Ricoeur entende que mesmo o
Estado "mais justo, mais democrático, mais liberal , se revela como
a síntese da legitimidade e da violência, isto é, como poder moral
de exigir e poder físico de constranger" (Histoire et vérité, pp. 258-
259).
Desta constatação, Ricoeur deduz duas grandes linhas de
reflexão: a meditação sobre as regras de justiça e a meditação so-
bre o amor, visto como plenitude da justiça (Le jus te, passim; Soi-
même comme un atttre, passim; Lave and justice in Philosophy &
Social criticism, voi. 21, no 5/6, set. no v. 1995, pp. 23-39).
A justiça entendida como regra de ação, imperativo de
evitar o mal, levou Ricoeur a examinar, na linha das meditações de
Kant, Habermas e Rawls, "os princípios ou procedimentos da deli-
beração, de tal sorte que todos os pontos de vista - inclusive os
mais fracos- sejam respeitados na decisão" (Abel, op. cit., p. 67).

76 Coleção Filosofia- 140


lvf.ll!timlturali.rmo: que.rtõe.r éfica.r

Ao lado do visar a "vida boa", o bem viver juntos, trata-se


de examinar a justiça como o "conjunto de procedimentos que
permitem organizar os conflitos entre as diversas perspectivas"
(id.), a fim de que. apesar dos conflitos, se possa viver (id.).
A regra fundamental não é uma simples norma jurídica, é
um princípio, o de reciprocidade. Tal princípio consiste na afirma-
ção do respeito e estima ao outro e na veracidade, que implica a
coerência entre o fazer e o dizer.
O contrato social, assegurando a liberdade e a cidadania,
dirimindo a desigualdade, deve fundar a justiça social sobre a justi-
ça política. Mas Ricoeur sublinha a exigência de uma hermenêutica
do justo, da vinculação entre as regras de justiça e o ideal de bem-
viver, essencialmente ético.
Tal ética é uma ética da convicção, que compara, critica e
funda argumentativamente uma tradição: " ... e só uma longa con-
versação entre as culturas permitiria estabelecer suas correspon-
dências" (id., p. 79). Podem ocorrer, dada a diversidade de culturas
e de tradições, conflitos entre as regras. Ricoeur discerne três tipos
de conflito, nos planos político e jurídico: "o debate político, onde
o conflito de opiniões deve ser respeitado( ... )"; "o conflito entre os
fins do bom governo": qual deve ser privilegiado? "a segurança, a
prosperidade, a liberdade, a igualdade?" e, finalmente, "a crise de
legitimação que nasce quando não nos reconhecemos mais na for-
ma da sociedade em que vivemos" (id., pp. 84-85).
Assim, por exemplo, "a d~riva totalitária, que é uma per-
versão da busca da felicidade, reclama a intervenção de regras que
limitem o poder" (id., p. 88).
Daí Ricoeur tratar de mesclar, diz Abel, uma moral da dis-
cussüo e da argumentação, que "submete ( ... ) as convicções dos
sujeitos políticos a uma exigência de universalidade, obrigando a
levar em conta 'o outro ponto de vista' e uma ética da convicçüo,
que enraíza o justo nas tradições (id.). O direito é o campo onde es-
sas duas perspectivas se encontram: "De um lado, a ética recorda
ao direito sua finalidade política, que é organizar a justiça e fundar
a coesão social, corrigindo as desigualdades pela equidade ( ... )"
(id, p. 89); "De outro lado, a moral resiste ( ... ) a uma interpretação

Coleção Filosofia- 140 77


Constança Marcondes Cesar

abusiva e pede ao direito que se atenha ao mínimo de regras que


permitem a coexistência de diversas formas de vida na mesma so-
ciedade (... ) [e] espera que o direito proteja dos abusos do poder
( ... ) e que limite a irracionalidade propriamente política (... )" (id.,
p. 90).
Trata-se de buscar os valores universais, muitas vezes dis -
simulados nas culturas tidas como exóticas. Ricoeur os chama de
universais em contexto ou potenciais; são desvelados ao termo de
longos debates, que fazem nascer uma nova coerência, e possibili -
tam o surgimento de uma comunidade metafórica (Ricoeur, Soi-
même comme un autre, pp. 335-336) entre culturas diversas.
Para Ricoeur, a plenitude de justiça é o amor; assim, a jus-
tiça se torna sabedoria, reabrindo continuamente o campo das pos-
sibilidades e estabelecendo o laço social sobre o mínimo comum a
todas as tradições. A cidade feliz é a comunidade total, metafórica
e invisível; é a comunidade segundo a esperança, é a democracia
enquanto valor - horizonte e afirmação plena dos direitos humanos
(Abel, op. cit., p. 120).
Uma obra recente de Ricoeur, Ce qui naus fait penser. La
nature et la regle (Paris, Odile Jacob, 1998), aborda, no sétimo ca-
pítulo, uma vez mais, o tema da ética universal e dos conflitos
culturais. Os problemas da fundamentação da ética, da violência e
do mal, da tolerância e da reconciliação, da deliberação e do debate
são aí discutidos. Constituem, a nosso ver, o núcleo essencial da
ética de Ricoeur, o seu resumo; nela, a meditação sobre o multi -
culturalismo é um dos pontos axiais.
Para nosso filósofo, "o problema da vida em comum é o de
aceder ao estágio em que muitas tradições se considerem mutua-
mente como co-fundadoras, se elas quiserem sobreviver, numa si-
tuação de contenda, às forças exteriores e interiores de destruição"
(op. cit., p. 288) . Uma das questões centrais é o da confusão entre
religião e nacionalismo; "a maior parte dos conflitos no mundo são
de origem religiosa ou( .. .) a religião é invocada como elemento es-
sencial da identidade cultural" (id., p. 294).
Para abordar a conexão entre religião, intolerância e vio-
lência, que constatamos no mundo atual, Ricoeur forja o conceito

78 Coleção Filosofia - 140


Multiclflt11rali.rmo: que.rtõe.r ética.r

de "paradoxo religioso". Analogamente ao "paradoxo político",


que consiste em, do maior bem - o bem-viver juntos- poder surgir
o maior mal - os totalitarismos e a violência - também da religião,
que deveria ter "a função social ( .. .) de reunir, (... ) de criar a confi-
ança, de trazer conforto face a uma natureza hostil e perante a
morte( ... )", (id., p. 295); em suma, as funções de permitir "a confi-
ança na palavra do outro" (id., p. 298) e de promover a paz, entre
as diferentes convicções (id., p. 304) - pode surgir o mal e a vio-
lência. A pretensão a uma verdade única e a não universalidade da
expressão do religioso, constituem o paradoxo religioso.
A superação da oposição entre as confissões não pode con-
sistir, diz o filósofo, numa unificação de todos os credos. Supõe, na
verdade, "o reconhecimento mútuo entre o melhor cristianismo e
do judaísmo, o melhor do Islão, o melhor do budismo, etc., na li-
nha ( ... ) do aforismo segundo o qual a verdade reside na profunde-
za" (id., p. 305). Se cada religião renunciar a dizer a verdade, a
possuir a verdade, limitando-se a "esperar estar na verdade" (.. .) e
reconhecendo que "o fundamental passa também por outras línguas
( ... ), [está] além de suas múltiplas línguas" (id.), a paz entre as reli-
giões começa a ser possível. Há uma incidência do religioso na
moral, há um denominador ético que é possível alcançar, através da
razão.
O problema do mal se apresenta como um escândalo e
como a negação do religioso em três níveis : o primeiro, o da lin -
guagem: "[é] violência na linguagem ( ... ) destruição da linguagem
pela ruptura dos pactos" (id., p. 317)"; o segundo da ação : o mal é
"atentado à integridade física e psíquica dos outros" (id.); o tercei-
ro, o das instituições: o mal é a guerra, forma de violência mais
ampla e temível (id.).
Nosso mundo se caracteriza por conflitos econômicos, po-
líticos, culturais; "o tesouro simbólico das grandes religiões" (id.,
p. 331) poderia oferecer um elemento unificador, que permitiria o
diálogo entre os homens, ao nível de uma sabedoria prática. A de-
liberação, a discussão, os comitês de ética, reforçariam um ato es-
sencial de confiança, de recurso a um fundamento originário, de

Coleção Filosofia - 140 79


Constança Marcondes Cesar

reafirmação da "coragem de viver fazendo prevalecer a bondade


sobre o mal..." (id. , p. 322).
A riquíssima meditação sobre os conflitos culturais de nos-
so tempo, levada a efeito por Ricoeur, tem múltiplas implicações.
Escolhemos assinalar apenas alguns de seus aspectos, que conduzi-
ram nosso filósofo a propor uma "ética de deliberação", e uma
"arte da reconciliação", como instrumentos de superação dos im-
passes graves em que nos encontramos.

80 Coleção Filosofia- 140


A FILOSOFIA MORAL DE PAUL RICOEUR

Jeffrey Andrew Barash


(Universidade de
Picardie- Amiens)

Se a obra de Ricoeur tem um alcance angular para a filoso-


fia moral contemporânea, é na medida mesmo em que ela excede
quadros de uma reflexão específica sobre os valores ou os sistemas
éticos, para elevar sua interrogação a um outro nível de análise,
que manifestou toda sua pertinência no curso do século XX: o de
uma elucidação dos fundamentos da filosofia moral e de suas con-
dições de possibilidade.
Se a tarefa de tal elucidação constitui uma das principais
preocupações da obra de Paul Ricoeur, ela não deve, contudo, ser
isolada dos outros campos aos quais ele consagrou seus esforços no
curso de seus decênios de trabalho filosófico, estendendo-se da fe-
nomenologia à filosofia da linguagem e à teoria hemenêutica, até a
filosofia político-jurídica, campos em função dos quais esta tarefa
pôde se efetuar. Cabe-nos explicitar os seus desafios e implicações
para a filosofia moral.

A enfermidade do cogito e a filosofia do símbolo

O primeiro grande trabalho de Paul Ricoeur, A filosofia da


vontade, compreende dois tomos, intitulados O voluntário e o in-
voluntário (1950) e Finitude e culpa (1960). Em O voluntário e o
involuntário, o autor empreende uma investigação fenomenológica
pura da vontade humana nas suas relações com o involuntário. Se,
nesse livro, Paul Ricoeur reporta os atos voluntários ao horizonte

Coleção Filosofia- 140 81


Jeffrey Andrew Barash

involuntário constituído pelo corpo, não é a fim de acentuar a dis-


tinção entre o cogito concebido como lugar de efetivação do querer
e seu enraizamento corporal; bem ao contrário, a escolha mesma de
trazer à luz de um questionamento filosófico o enraizamento da re-
flexividade na vontade humana, permite elaborar uma das princi-
pais contribuições desse texto, que é o de lançar uma nova luz so-
bre o laço de reciprocidade íntima que caracteriza a relação pri-
mordial entre reflexividade e corporeidade.
A investigação dessa relação isola três estágios diferentes:
o estágio do "decidir", exibido nos seus laços com o involuntário
corporal; o da "moção volutária" na sua relação com a espontanei-
dade corporal; depois o do "consentimento", tomado nas suas in-
terações com a necessidade corporal, encarada sob a tríplice ex-
pressão do caráter, do inconsciente e da vida. Nesse estágio da
análise, a idéia da vontade alcançada através dos dois estágios an-
teriores acha-se inscrita numa necessidade corporal de ordem étni-
ca, psicológica e vital. É assim que a perspectiva de uma antropo-
logia fenomenológica cuidadosamente elaborada engaja o debate
com a etnologia, a psicanálise e o vitalismo.
No quadro da investigação fenomenológica conduzida em
O voluntário e o involuntário, as considerações de ordem propria-
mente moral permanecem em suspenso, enquanto que toda a aten-
ção se consagra à descrição eidéitica. Contudo este pôr à parte te-
mas propriamente morais só é feito para preparar melhor o terreno
no qual, em Finitude e culpa, poderá se apresentar a problemática
moral que constitui seu fio condutor: a saber, a falibilidade humana
enquanto oferece condições para surgimento do mal. Assim se es-
boça, através desses dois tornos, urna proximidade entre dois níveis
do exame, entre uma fenomenologia pura do ser humano e a análi-
se das expressões concretas de sua fraqueza, aproximação a partir
da qual a problemática moral pode indagar sobre suas próprias
condições de possibilidade antropológicas.
A primeira parte de Finitude e culpa, "O homem falível",
bem mostra a que chega esta elaboração prévia de uma fenomeno-
logia antropológica: à localização, no espaço de reciprocidade en-
tre voluntário e involuntário, de uma desproporção essencial no

82 Coleção Filosofia- 140


A Jilosojia moral de Pa11! 1\icoeur

homem. No quadro de "O homem falível", esta desproporção se


enuncia nos termos de uma discordância entre o finito e o infinito:
a infinitude, de um lado, das coisas singulares que a palavra reco-
bre e que podem, em virtude mesmo deste empreendimento lin-
guageiro infinito, ser objeto de um desejo de infinito, pela vontade;
de finitude, por outro lado, da distinção existencial do homem, cir-
cunscrita por um caráter e uma perspectiva corporal limitadas.
Todo o alcance desta idéia de discordância, que só pode-
mos indicar, de passagem, no quadro desse breve exame, é ilustra-
do quando a abordagem da antropologia fenomenológica é con-
frontada com as fontes de uma tradição, em relação à qual ela faz
suas reservas . Esta tradição buscou identificar a raiz do mal na li-
mitação das criaturas (Leibniz) ou num distanciamento infinito da
perfeição divina (Descartes) . Preocupada em manter uma justifica-
ção de Deus a despeito da existência do mal, esta ótica tradicional
escamoteou, o mais das vezes, a especificidade existencial da fali-
bilidade humana, a partir da qual o mal se insinua. Em compensa-
ção, tomar a fragilidade e a falibilidade humanas como ponto de
partida para uma análise do mal representa um desafio teórico con-
siderável. Isto CO!Tesponde, não somente a uma vontade de se
afastar de toda uma tradição de especulação em filosofia moral,
que elabora um discurso metafísico sobre a perfeição divina; de
modo mais radical ainda, trata-se de questionar a pretensão funda-
mental a partir da qual tal discurso se legitima: a saber, a pretensão
a um fundamento absoluto para a reflexão teórica, fonte presumida
da verdade metafísica desdobrada pela especulação. Contudo,
mesmo numa época em que a especulação metafísica perdeu toda
força de convicção, é o pressuposto de um fundamento absoluto
que, principalmente a partir da filosofia do cogito, não cessou de
assombrar toda uma tradição de filosofia transcendental até Hus-
serl. Ora, é em primeiro lugar com esse pressuposto que a noção de
falibilidade rompe.
É na segunda parte de Finitude e culpa, "A simbólica do
mal", que esta tomada de posição teórica mostra todo seu alcance.
É aqui, com efeito, que a elaboração de uma teoria da fragilidade,
da falibilidade, da falta, acha seu prolongamento numa hermenêu-

Coleção Filosofia- 140 83


Jeffrey Andrew Barash

tica dos sílllbolos. O símbolo se torna assim o lugar privilegiado da


indagação hermenêutica, uma vez que os critérios de análise se
autorizam a não fazer mais abstração de uma situação original de
fragilidade e de falibilidade, para se abrigar atrás de um funda-
mento absoluto do cogito. Não insistiremos aqui na originalidade
metodológica que a análise dos símbolos representa - símbolos do
pecado, da sujeira, da culpa - e dos mitos que os veiculam. O que
importa, para nosso propósito é principalmente a idéia diretriz des-
se trabalho, que o próprio Paul Ricoeur resume na seguinte fórmu-
la: "O símbolo faz pensar". Com efeito, se o símbolo faz pensar, é
na medida mesma em que os critérios do pensamento, longe de se
oferecerem na transparência da reflexividade pura do cogito, se di -
fundem através da opacidade de uma situação de falibilidade, na
qual o homem já se encontra lançado, necessitando então do tra-
balho de interpretação, ao qual a hermenêutica dos símbolos se
consagra.
Os anos que se seguem à publicação de Filosofia da vonta-
de testemunham uma modificação na orientação do trabalho de
Paul Ricoeur. Enquanto que ele está menos diretamente concernido
pela preocupação de se posicionar em relação à tradição da filoso-
fia reflexiva e transcendental, a originalidade de sua contribuição
no período contemporâneo ao aparecimento de sua obra Da Inter-
pretação. Ensaio sobre Freud (1965) decorre de uma outra fonte:
de um confronto, principalmente, com as grandes figuras do pen-
samento moderno - os "mestres da suspeita" - que colocaram em
xeque do modo mais radical esta tradição, estendendo a dúvida ao
pressuposto filosófico tradicional do sujeito, da consciência ou do
espírito, encarados ao mesmo tempo, como fonte autônoma dos
valores e árbitro soberano de sua interpretação, reconduzida, não à
capacidade autônoma de deliberação de um sujeito, mas, antes, às
operações tácitas de uma ideologia dominante, no sentido de Marx,
ou, em um corpo inteiramente diverso de análise, de uma vontade
de poder segundo Nietzsche, ou ainda ao inconsciente freudiano, é
simplesmente a pretensão elos valores - inclusive dos valores mo-
rais - à verdade, independentemente dos determinantes sócio-

84 Coleção Filosofia- 140


A filosqfia moral de Pa!l! Riromr

econômicos, das pulsões vitais elementares ou ainda do inconsci-


ente, que se acha em questão.
Reconhecendo uma certa legitimidade às críticas radicais
dirigidas a todos os pressupostos tradicionais concernentes ao su-
jeito e à filosofia moral que deles decorre - o que vem a prolongar
a crítica do cogito já introduzida no A filosofia da vontade -, a ori-
ginalidade das análises feitas em Da interpretação. Ensaio sobre
Freud reside principalmente na tentativa de estabelecer um limite
para a radicalidade da dúvida que emana dos mestres da suspeita.
Ademais, a escolha da obra de Freud e, principalmente, da teoria
freudiana da interpretação simbólica como lugar privilegiado de tal
inquirição, a situa ao nível de uma nova elucidação da hermenêuti-
ca dos símbolos.
Na perspectiva desta hermenêutica, Ricoeur admite, certa-
mente, a produtividade da teoria freudiana, quando esta, recondu-
zindo os símbolos à sua fonte latente ou inconsciente, permite des-
velar uma idolatria simbólica na base dos conportamentos obsessi-
vos e neuróticos. Contudo, a plenitude de significados que o sím-
bolo reveste, como o próprio Freud em muitas ocasiões é obrigado
a confessar, não poderia ser remetida unicamente a esta fonte . Ri-
coeur visa restituir toda esta plenitude de que Freud, por causa de
seu próprio método de interpretação, no mais das vezes deixou na
sombra.
Daf, a bela frase de Paul Ricoeur que manifesta toda a am-
plitude de sua própria análise: "É preciso que o ídolo morra para
que o símbolo viva". Num campo de efetivação, com efeito, um
mesmo símbolo pode, por exemplo, funcionar, num sentido regres-
sivo, enquanto sintoma neurótico, quanto encontrar um destino
"progressivo", num campo totalmente diverso e segundo fins muito
diferentes, dando lugar, por exemplo, a uma obra de arte. Num
desses registros, a simbólica da culpa pode revelar um comporta-
mento neurótico, enquanto que, num outro registro, pode revestir
um significado totalmente outro, e atingir o que designamos como
um alto valor moral.
Restituir a plenitude de um campo de significados simbóli-
cos toca, assim, o fundo da indagação sobre as condições de possi -

Coleção Filosofia - 140 85


Jeffrey Andrew Barash

bilidade da interpretação filosófica e, na circunstância, de uma filo-


sofia moral enquanto tal.

Os desafios éticos da noção de identidade

Ultrapassaria o quadro de nossa análise no domínio da filo-


sofia moral querer prosseguir uma interrogação detalhada da teoria
hermenêutica de Ricoeur ou examinar seus prolongamentos em O
cm~flito das interpretações (1969) ou A metéifora viva (1975). Se,
da mesma maneira, não nos vinculamos à problemática filosófica
que se acha articulada nos três tomos de Tempo e narrativa (1983 -
85), é a fim de concentrar todo nosso esforço em Si-mesmo como
um outro (1990), obra chave a nossos olhos que, situando-se na
continuidade de Tempo e narrativa, constitui a principal contribui-
ção de Paul Ricoeur à filosofia moral de nossa época.
Inaugurando uma nova perspectiva no campo da filosofia
moral, Si-mesmo como um outro, desde seu prefácio, relaciona seu
questionamento com o problema dos fundamentos de seu próprio
empreendimento. Quanto a isto, não pode se tratar, para Ricoeur,
como não se tratava em seus trabalhos anteriores, de simples reto-
mada de uma tradição filosófica que, notadamente desde Descartes,
postula um fundamento absoluto ao cogito - o cogito "exaltado" ,
segundo a terminologia de Si-mesmo como um outro. Resta então
saber como salvaguardar uma medida de autonomia da pessoa -
condição sine qua non de uma filosofia moral - face à "humilha-
ção" infligida ao cogito pela suspeita de Nietzsche quanto à sua
pretensão à soberania.
Em Si-mesmo como um outro, Paul Ricoeur tenta escapar
da aporia na qual os filósofos do cogito e do anti-cogito se batem,
deslocando a problemática em direção a um terreno ao mesmo
tempo mais modesto e mais concreto, nutrido pelas análises da co-
esão temporal da identidade narrativa, já empreendidas em Tempo
e narrativa. O autor é conduzido, assim, a uma amplificação de sua
reflexão sobre a identidade, que se enuncia nos termos de uma in-
terrogação sobre o estatuto do si: primeiro, sobre o princípio de co-

86 Coleção Filosofia- 140


A Jilosqjia moral de Panl 1\icoettr

esão de um si que se diz o mesmo; em seguida, sobre o outro en-


quanto ele também é um si-mesmo.
As análises efetuadas nesse quadro de coesão do si, se or-
ganizam em torno de uma bipolaridade fundamental, entre dois
modelos da permanência temporal do indivíduo, ao mesmo tempo
indissociáveis e irredutíveis um ao outro. Trata-se da relação dialé-
tica entre a identidade concebida em termos de conjunto de dispo-
sições duráveis que distinguem uma pessoa - retomando, assim, re-
formulando-as, as análises anteriores do caráter - e a identidade
enquanto fidelidade a si, constituída pela capacidade de se manter
através do tempo.
Com a ajuda desta articulação, Paul Ricoeur dá andamento
a uma nova teoria da identidade pessoal, capaz de por as balizas de
uma verdadeira filosofia moral, sem se esquivar dos riscos impor-
tantes em que tal empreendimento incorre.
Uma primeira dificuldade, que a análise levanta ao longo
da primeira parte da obra, é aquela à qual as teorias da ação nasci-
das da tradição da filosofia analítica herdeira de Strawson, Austin e
Searle até Davidson nos confrontam. Apesar da diversidade das
posições teóricas expostas pelos defensores desta tradição, estas
aparecem, aos olhos de Ricoeur, freqüentemente fi·agilizadas por
uma tendência a confundir os problemas relativos à ipseidade do
atuante com as aferentes à identidade - idem . Para esta tradição, é
principalmente a distinção - crucial para toda filosofia moral - entre
a ação capaz de atestar a medida da autonomia da pessoa face à
suspeita e a toda outra forma de ação ou ele "acontecimento" que se
esfuma. Assim, para Paul Ricoeur a ação que depende da circuns-
tância de identidade - ipse, concebida segundo o modelo de uma
fidelidade a si mesmo que atesta, por exemplo, a capacidade de
manter sua promessa, se demarca de toda ação produzida a partir
da perduração das disposições da identidade - idem. Se Ricoeur in-
siste tanto nesta distinção, é precisamente a fim de salvaguardar a
especificidade desta constância de si para a qual, ao contrário dos
acontecimentos que podem se mostrar indiferentes no plano moral,
a injunção do outro exerce um papel constitutivo fundamental.

Coleção Filosofia - 140 87


Jeffrey Andrew Barash

É em relação a esta idéia do papel da injunção do outro na


constituição da identidade do si que se anuncia uma segunda difi-
culdade: a da manutenção do delicado equilíbrio da dialética entre
o outro e si mesmo. Trata-se aqui de evitar a alternativa entre duas
posições extremas: de um lado, a de Husserl, para a qual a instân-
cia no outro enquanto representação analógica de si se mostra
muito radical, para permitir ao outro se desdobrar como elemento
constitutivo da identidade de si mesmo; por outro lado, a de Lévi-
nas que, insistindo exclusivamente no papel do outro, não permite
encarar a relação dialética que Ricoeur se propõe, como tarefa, a
instaurar. Aqui, Ricoeur evoca a dicotomia tradicional entre uma
ética da vida boa, derivada de Aristóteles e uma moral da norma,
formulada com toda clareza por Kant. Trata-se da diferença entre
uma ética "teleológica", que sublinha o papel de um fundamento
de boa ação num conjunto de hábitos e de práticas concretas, cons-
titutivo da vida boa, e a insistência "deontológica" apenas segundo
o critério da lei moral, fora de toda consideração de sua inserção
material. É uma dicotomia semelhante que retoma, segundo Paul
Ricoeur, sob outros disfarces, para demarcar a ética teleológica re-
formulada por Hegel , situada no contexto dos costumes concretos,
da Sittlichkeit, de outras formulações mais recentes, que testemu-
nham um renascimento das posições deontológicas. No que con-
cerne a essas últimas, Ricoeur se refere principalmente ao forma-
lismo contratualista e anti-ideológico de Rawls como - numa pers-
pectiva totalmente diversa - à crítica dirigida pela ética da comuni-
cação de Habermas, contra a noção de enraizamento da moral num
quadro convencional legado pela "tradição".
Para Ricoeur, nenhuma das duas posições, nem a teleolo-
gia, nem a deontologia, é capaz, por si só, de fundar uma filosofia
moral no sentido pleno do termo. Se Ricoeur concede uma "prima-
zia" à ética teleológica sobre a moral deontológica, permanece in-
teiramente sensível a perigo de uma ética teleológica da Sittlichkeit
que, em nome das práticas de um grupo particular, de convicções
exclusivamente marcadas pela existência nacional de um povo,
tenderia a fazer a economia de um apelo às normas universais. É

88 Coleção Filosofia- 140


A .filosofia moral de Paul Ricoeur

nesse sentido que ética teleológica e moral deontológica se exigem


reciprocamente.
É aqui, igualmente, que se esboça a conclusão geral em di-
reção à qual convergem os diferentes níveis de análises de Si-
mesmo como um outro: sublinhando com tanta insistência a relação
dialética entre si -mesmo e o outro, Ricoeur interpreta o outro não
somente em termos da "alteridade", mas também, enquanto o outro
permanece "como" si-mesmo, de heterogeneidade. Se, através
desta dialética, o si é despossuído de seu estatuto de fundamento, é
para encarar a possibilidade de uma filosofia moral à qual a lei mo-
ral não pode se dar como a evidência uniforme de um cogito, mas
deve se recolher a partir de uma pluralidade de contextos, de qua-
dros doravante insuspeitados, até mesmo "de alturas tidas como
exóticas" (Si-mesmo como um outro, p. 336). É nesse sentido que o
si-mesmo, podendo se colocar no lugar do outro, se confirma como
a fonte de uma verdadeira norma da universalidade, requerida pela
filosofia moral.

Coleção Filosofia- 140 89


POR UMA POLÍTICA DA MEMÓRIA, A
PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO DA
SABEDORIA PRÁTICA EM PAUL RICOEUR

Jeffrey Andrew Barash


(Universidade de Picardie- Amiens)

No discurso que segue, desenvolverei minha reflexão a


partir de uma interrogação que Paul Ricoeur conduz, no quadro de
seu pensamento ético-político, principalmente desde a obra Si
mesmo como Wll outro. Tomarei como objeto de minha análise o
tema da identidade, problematizando uma elas vertentes desse tema
tal como ele a articulou: para além ela iclenticlacle ele si mesmo ou
do outro enquanto indivíduos, são das possibilidades de constitui-
ção ele uma iclenticlacle no plural, ele uma iclenticlacle "coletiva" ele
que me ocuparei.
Reconhecer-se-á o papel importante que esta interrogação
ocupa no próprio Ricoeur, em Si mesmo como um outro. Trata-se,
nesta obra, de um exame do problema da coesão ela vida em co-
mum, visando uma posição intermediária entre dois extremos: en-
tre a tentativa, de um lado, de construir a vida comum a partir de
indivíduos atomizaclos, do liberalismo clássico, por exemplo, em
John Locke e, de outro lado, a perspectiva de uma soldadura em
termos do espírito dos povos, a concepção de uma instância autô-
noma de uma ordem superior em relação aos indivíduos que a
constituem, que Ricoeur reporta, com justeza, à filosofia hegeliana.
Podemos assim nos perguntar, com efeito, de qual maneira se deve
encarar a coesão de uma pluralidade - quadro da coisa pública no
sentido original do termo - entre os dois escolhos que não cessam

Coleção Filosofia - 140 91


Jeffrey Andrew Barash

de assombrar a teoria ético-política contemporânea: entre o Cila de


uma divisão de interesses individuais privados, a partir dos quais a
coesão social deve se efetuar espontaneamente, e o Caribde de uma
primazia esmagadora de um Estado-organismo distinto, focalizado
sob a forma de Volksgeist ou, para falar uma linguagem mais pró-
pria de nosso século, de "homogeneidade substancial". Ora, o que
me interessa particularmente no trabalho de Ricoeur a respeito dis-
so, é o papel que ele assinala à phronesis, à sabedoria prática, ou o
que o filósofo chama, num outro contexto, de "o juízo moral cir-
cunstanciado"1, para a teorização da vida em comum a partir de
uma designação desta zona intermediária entre duas extremidades.
Contudo, meu objetivo principal não será o de reformular a
adaptação produtiva em Ricoeur, no Si mesmo como um outro,
como noutros escritos mais recentes ainda, do conceito aristotélico
de sabedoria prática. Fazendo parte do caminho com ele, tratarei de
prolongar sua análise da coesão plural num campo que é objeto de
seus trabalhos ao mesmo tempo mais recentes e em curso de elabo-
ração, referente ao tema da "memória e história". Nesse novo cam-
po, surge um problema análogo ao que encontramos no campo
mais especificamente ético-político: o da configuração do laço en-
tre uma memória individual e a de uma coletividade. E aí ainda,
como se pode perceber nos artigos mais recentes de Ricoeur, o fi -
lósofo busca uma zona intermediária entre uma idéia da memória
contornada na esfera pessoal e a memória coletiva, enfocada sob a
forma de uma entidade substancial e autônoma. Ora, meu questio-
namento é simples: será que a noção de sabedoria prática, que nos
ajuda a explicitar, no campo ético-político, os relevos de uma
identidade plural, pode trazer um esclarecimento ao problema do
estatuto plural da memória? É prolongando as análises de Paul Ri-
coeur a propósito disso que tratarei de examinar, em função de mi-
nhas próprias orientações, as incidências de uma interpretação da
sabedoria prática, pelo filósofo, numa indagação de ordem ético-
política, para uma teoria da memória tal como a concebo.

1
Paul RICOEUR, "Le concept de responsabilité", in Le juste (Paris: Esprit, 1995),
p. 69.

92 Coleção Filosofia - 140


Por tt!lla política da memória, a partir de 11!/la intetpretaçào...

Num primeiro momento voltarei minha análise brevemente


à noção de "sabedoria prática", tal como se apresenta no quadro de
Si mesmo como um outro. Em seguida, me interrogarei sobre a
possibilidade de um esclarecimento deste problema do laço de coe-
são constitutivo da vida em comum, reconduzindo esta análise ao
tema da memória.

Comecemos agora por uma questão essencial: Que signifi-


ca o conceito de "sabedoria prática"?
Recordamos a definição proposta por Aristóteles no livro
VI da Ética a Nicômaco, onde a sabedoria prática, a prudência ou
phrónesis é contada dentre as virtudes intelectuais. Enquanto a sa-
bedoria teórica, a sophia, visa o eterno e o imutável, a sabedoria
prática toma como objeto o contingente e o variável. Dado que são
as seqüências da ação humana, da práxis, que revestem um caráter
de contingência essencial, devido à imprevisibilidade que, mesmo
no melhor dos casos, as atinge, a virtude da sabedoria prática se re-
fere, em primeiro lugar, ao campo da ação humana. E, sem produ-
zir uma análise detalhada desse problema em Aristóteles, que ul-
trapassaria os limites dessa breve exposição, insistirei no fato notá-
vel que sua teoria da phronesis põe o quadro da ação individual a
partir da vida em comum na qual esta ação se acha necessaria-
mente imbricada. Ou, como escreve o próprio Aristóteles no livro
VI da Ética a Nicômaco:

"Em geral, buscamos a própria vantagem e pensamos que


devemos nos consagrar inteiramente a esta ocupação. Esta
opiniüo faz nascer a idéia que agir desse modo é dar prova
de prudência. Contudo, talvez não seja possível buscar o
próprio bem sem nos preocuparmos com a sorte de nossa
família e da cidade?" .

E é porque o interesse privado funda-se necessariamente


nos assuntos públicos que a sabedoria prática se define, em primei-
ro lugar, em termos de virtude política.
Coleção Filosofia - 140 93
Jeffrey Andrew Barash

Tratando-se da adaptação, por Ricoeur, da noção de sabe-


doria prática em Aristóteles, convém sublinhar um segundo traço
da teoria do Estarigirita: com efeito, se a sabedoria prática é uma
virtude, é precisamente na medida em que se pode pensá-la a partir
de uma dimensão verdadeiramente ético-política, que a distingue,
notadamente, do simples cálculo ou do ardil que pode se aplicar à
realização de maus fins. Nesta perspectiva ético-política, a sabedo-
ria prática se enraíza num ethos, num conjunto de disposições a
partir do qual a escolha pode se orientar. E contra o simples cálcu-
lo, a realização da sabedoria prática depende de uma boa delibera-
ção (euboulia) por meio da qual visa os meios de realização da
vida boa- o que implica sempre e em primeiro lugar a vida boa em
comum.
Se a sabedoria prática delibera sobre a ação a ser executada
num contexto particular, a aplicação da sabedoria prática varia ne-
cessariamente em função das diferentes situações visadas. Como
Aristóteles explica na Política, as regras da sabedoria prática não
serão idênücas quando aplicadas às diferentes formas de democra-
cia, de aristocracia ou de monarquia. Mas o que é que constitui a
diferença específica entre essas diferentes formas a partir das quais
a sabedoria prática deve se regular? O que se mostra particular-
mente importante para minha análise, é que o princípio de diferen-
ciação das diferentes cidades que dá conta, em primeiro lugar, de
suas identidades específicas, é a politeia -o modo de organização
política da cidade. É esse princípio que lhe confere seu princípio de
unidade. Segundo a teoria aristotélica, esta unidade supera os sim-
ples interesses individuais isolados mas, na medida em que reveste
uma diferenciação essencialmente política, não tem afinidade com
a idéia que surgirá na época moderna, de um princípio orgânico de
coesão - quer seja o Espírito ou a noção de homogeneidade subs-
tancial.
Os desafios da teoria de Paul Ricoeur em Si mesmo como
um outro, ao qual gostaria de fazer apelo aqui, se mostram princi-
palmente na sua reorientação da sabedoria prática aristotélica a fim
de infletir, como ele explica, a idéia hegeliana de ordem ética - de
Sittlichkeit. Recordamos, com Paul Ricoeur, que a idéia da Sittli-

94 Coleção Filosofia- 140


Por 11!7/a política da memória, a partir de uma interpretação...

chkeit em Hegel visava recolocar no contexto critérios éticos con-


tra a abstração da filosofia moral em Kant. Esta filosofia kantiana,
sabemos, deixava de lado toda consideração do contexto da elabo-
ração de norma moral, em nome de uma pretensão de uni versalida-
de e de necessidade da razão pura prática, acima da particularidade
e da contingência de todo contexto. Como se pode ler no opúsculo
Teoria e prática, como no Sobre a paz perpétua, é principalmente
a pertinência da sabedoria prática no sentido de Aristóteles, em sua
preocupação de integração de um contexto singular de elaboração e
de aplicação da visada ética,que a universalidade abstrata da norma
prática, em Kant, põe em questão. Ora, é precisamente a reconside-
ração desta singularidade do contexto que a Sittlichkeit hegeliana
preconiza, contra a teoria kantiana, mas infletindo-a num sentido
totalmente diverso. Com efeito, inspirando-se menos na herança
aristotélica da sabedoria prática que numa teoria moderna da histo-
ricidade do Espírito, legada por Herder, que Hegel, a partir de A
fenomenologia do Espírito, enfoca o contexto singular de elabora-
ção da ação política nos termos do Espírito de um povo, do
Volksgeist. Trata-se, aí, como Ricoeur mostra no Si mesmo como
um outro, de um primeiro modelo de uma teoria orgânica do Esta-
do segundo a qual o Estado, além da própria vontade dos indivídu-
os que o compõem, encontra um princípio absoluto de legitimação.
Sabe-se quanto, bem além da vontade e da época de Hegel, tal teo-
ria pode ser deformada no quadro do século XX. Observa-se ainda,
atualmente, um renascimento desta deformação, onde, conforme a
exigência de homogeneidade substancial elaborada inicialmente
por Carl Schmitt, são de novo a nação e a raça que substituem o
Geist, principalmente no recrudescimento das teorias neo-facistas
na França e na Itália.
A novidade da inflexão, em Ricoeur, da teoria hegeliana da
Sittlichkeit, à luz da sabedoria prática e da boa deliberação aristo-
télica, parece-me residir principalmente na seguinte inovação:
afirmando resolutamente o ideal de pluralismo democrático como
fundamento de nossas sociedades modernas, Ricoeur busca aplicar
a boa deliberação da sabedoria prática não só a uma idéia de reali-
zação de um único projeto de vida boa como finalidade da cidade,

Coleção Filosofia- 140 95


Jeffrey Andrew Barash

mas principalmente na reconciliação de uma pluralidade de con-


cepções da vida boa no interior de uma mesma cidade (mais com-
plexa e diversificada que a cidade antiga) que se acham numa situ-
ação de concorrência, até mesmo de conflito. Nesse sentido, e bem
além de toda teoria de inspiração aristotélica, Ricoeur admite, em
conformidade com esse ideal pluralista, a indeterminação funda-
mental da democracia moderna no que concerne à possibilidade de
visar uma finalidade última. Ao mesmo tempo, para evitar a even-
tualidade tanto de um mau ecletismo como o de um relativismo dos
valores, ao qual tal pluralismo poderia tender, a visada ética deve,
em última instância, passar pelo crivo da universalidade prática da
norma moral, herança de Kant, da qual não se poderia isentá-la,
principalmente em caso de conflito. Ora, é aqui que gostaria de
problematizar a teoria de Ricoeur, em relação à questão que evo-
quei no princípio: que é que oferece um princípio de unidade cole-
tiva, uma vez que se renuncia à finalidade última, enfocando, no
interior de uma mesma cidade, a coexistência de uma pluralidade
de projetos possíveis? Onde reside, então o princípio de coesão so-
cial, além de uma multiplicidade de perspectivas concorrentes ou
mesmo em contradição? Uma vez que se desmantelou a ideologia
do Estado orgânico em direção à qual a Sittlichkeit pode desembo-
car, como evitar cair numa atomização da sociedade, perigo de um
liberalismo selvagem, que pesa sobre nossas sociedades contempo-
râneas? Eis a fonte de uma crise de legitimação da democracia que
Ricoeur faz valer principalmente no oitavo estudo de Si mesmo
como um outro.
É aqui que nos dan1os melhor conta da pertinência da idéia
de Aristóteles, segundo a qual é em primeiro lugar o modo de or-
ganização politica da cidade que serve de princípio de unidade de
cidade. Um fundamento de coesão da vida em comum como o pró-
prio Ricoeur o interpreta, poderia então se dar pela vontade con-
sensual de afirmar o princípio democrático enquanto tal, a despeito
ela gravidade de toda outra forma de desacordo que surgisse do plu-
ralismo sobre o qual a própria democracia repousa. E, inversa-
mente, o problema da coesão da vida em comum se anuncia em
toda a sua radicalidade onde se desmorona o consenso concernente

96 Coleção Filosofia- 140


Por uma política da memória, a partir de uma interpretação ...

ao valor fundamental da própria democracia. Ora, que é que nos


permite assentar esse consenso, fonte principal da coesão capaz de
se manter entre os dois escolhos do atomismo social e do organi-
cismo totalizante?
Não poderia, evidentemente, dar conta dos diferentes as-
pectos da resposta a esta questão propostas por Paul Ricoeur na
obra Si mesmo como um outro. O que concerne particularmente às
minhas investigações atuais, é principalmente uma passagem sobre
o papel da memória, tal como Ricoeur a enfoca. Cito a página 304
do nono estudo de Si mesmo como um outro, intitulado "O si e a
sabedoria prática", onde está particularmente em questão remediar
a crise de legitimação que atinge a própria escolha da democracia
como princípio unificador do ideal moderno de vida em comum:

"Não há nada melhor a oferecer, para responder à crise de


legitimação (... ) que a reminiscência e o entrecruzamento,
120 espaço público, do aparecimento de tradições que dão
lugar à tolerância e ao pluralismo, não por concessão a
pressões externas, mas por convicção interna, mesmo que
tardia. É celebrando a memória de todos os começos e de
todos os recomeças, e de todas as tradições que se sedi-
mentaram em seu ponto de apoio, que o "bom conselho"
pode superar o desafio da crise de legitimação. Se, e na
medida em que esse "bom conselho " prevalece, a Sittli-
chkeit hegeliana - que também se enraíza nos Sitten, nos
'costumes' - mostra ser o equivalente da phronesis de
Aristóteles: uma phronesis para muitos, ou antes, pública,
como o próprio debate ".

II

Tendo caminhado um tempo com Paul Ricoeur, é em rela-


ção a esta tematização da tarefa propriamente ético-política da
memória em Si mesmo como um outro que, sem faltar para com
ele, desenvolverei esta ref1exão segundo minhas próprias orienta-
ções.
O tema da memória, tal como Ricoeur mesmo o enfocou,
não somente em Si mesmo como um outro, mas, mais explícita-
Coleção Filosofia - 140 97
Jeffrcy Andrew Barash

mente ainda, em um artigo recente intitulado "Memory, Forgetful-


ness, and History", toca diretamente no problema da fonte da coe-
são social. A busca de uma zona intermediária entre indivíduos
atomizados e Estado orgânico, revestindo uma autonomia em rela-
ção a seus membros, remete à possibilidade de identificação de
uma reminiscência além de uma memória apenas pessoal e de uma
memória coletiva que, erigida como homogeneidade substancial,
alimenta as tentativas de teorização da nação orgânica. É nesse
sentido que o tema da memória, fonte de experiência e, pois, maté-
ria de sabedoria prática, concerne em primeiro lugar ao problema
das raízes da coesão social que a sabedoria prática deve tomar
como objeto. Ora, é especialmente em relação a este objeto que eu
gostaria de desenvolver algumas reflexões sobre o papel da memó-
ria no campo ético-político, em relação à seguinte questão: Em que
medida a coesão de um projeto de vida repousa ou, ainda, deve re-
pousar na memória?
Mas, ao mesmo tempo, a resposta a esta questão pressupõe
que se saiba o que é a memória, não somente a memória pessoal,
mas uma memória das coletividades ou, para retomar a acepção de
Paul Ricoeur: "uma antologia dos traços deixados pelos aconteci-
mentos que marcaram o curso da história dos grupos concerni-
dos" 2 . É resgatando a idéia de uma memória das coletividades que
nos será possível identificar o nível no qual a devemos situar.
Parece-nos plausível referir-me a muitos tipos de memória
das coletividades, dos quais um seria o que eu chamaria de "memó-
ria reiterativa". Esta primeira forma de memória pública retoma, ao
nível da coletividade, um dos dois tipos de memória individual que
Bergson elaborou em Matéria e memória, denominando-a "memó-
ria-hábito" . Trata-se de uma memória que rege a ação habitual ao
nível coletivo: o ritmo dos dias da semana, dos dias do mercado, as
horas de pico e os dias de folga, como as habilidades psicológicas e
corporais referentes à prática de um esporte ou outro divertimento,
ou uma ocupação típica de um país ou de uma região. À memória

2
Paul Ricoeur, "Memory, Forgetfulness, History" in History, Memory and Action .
Thc Israel Academy of Sciences and Humanities, 13-24 Iyyun; The Jemsa/em
Philosophical Quaterly, 45 (julho, 1996), p. 15.

98 Coleção Filosofia- 140


Por uma política da memón·a, a partir de uma interpretação...

reiterativa assim definida se articulou os ritmos de vida praticados


por uma coletividade em sua existência quotidiana.
Contudo, esse primeiro tipo de memória coletiva é muito
rudimentar e não pode nos ajudar a identificar os verdadeiros rele-
vos de uma memória coletiva. Um segundo tipo de memória cole-
tiva seria aquela que se identifica a partir da singularidade dos
grandes acontecimentos públicos, acontecimentos retomados pelas
narrativas históricas que são objeto de uma comemoração. Esta
segunda forma de memória coletiva - que se pode chamar de me-
mória comemorativa- recobre, ao nível coletivo, um aspecto prin-
cipal daquilo que Bergson qualificou de recordação - imagem, em
relação à memória pessoal: a imagem da lembrança na sua singula-
ridade. Contudo, ao nível da coletividade, o problema da experiên-
cia inicial, na origem da recordação, não deve ser confundida com
a recordação - imagem enquanto traço da experiência individual.
Tenho uma viva lembrança do dia do assassinato do Presidente
Kennedy em 1963, mesmo se não tiver sido testemunha ocular
deste acontecimento, nem de suas seqüelas imediatas. E, contudo,
participei, com milhões de indivíduos, deste acontecimento que
deixou um traço público.
Desde a Antigüidade, a narração monumental do historia-
dor buscou cuidadosamente conservar o traço dos grandes aconte-
cimentos dotados de uma importância pública, a fim de impedí-los
de cair no esquecimento. Desde o exercício da historiografia anti-
ga, sabe-se quanto as narrativas e os monumentos, como as come-
morações que os acompanham. se mostram importantes para a
afirmação da identidade de um povo. Podemos compreender todo o
alcance da importância desta teoria da memória comemorativa
como fonte de coesão da vida em comum quando a referimos a um
exemplo de uma grande importância para o meu propósito: o que
nos dá Ernst Renan em seu ensaio "Que é uma Nação?", pronunci-
ado na Sorbonne em 1882. Neste ensaio Renan busca precisamente
o laço de coesão capaz de transformar um povo em nação. Mostra
uma afinidade profunda com Aristóteles quando diz que o simples
laço produzido pela soma dos interesses individuais não é sufici-
entemente poderoso para produzir a coesão de uma nação. E depois

Coleção Filosofia- 140 99


Jeffrey Andrew Barash

de ter rejeitado duas outras teorias da coesão nacional, muito di-


fundidas entre os modernos, as da raça e da língua, Renan chega a
uma conclusão de uma importância capital para toda discussão da
identidade de uma nação. Ele escreve:

"Uma nação é uma alma, um princípio espiritual. Duas


coisas que, para dizer a verdade são uma, constituem esta
alma, esse princípio espiritual. Uma está no passado, outra
no presente. Uma é a posse em comwn de um rico legado
de lembranças; a outra é o consentimento atual, o desejo
de viver junto, a vontade de continuar a fazer valer a he-
rança que se recebeu indivisa (... ) Ter glórias comuns no
passado, uma vontade conum1 no presente: ter feito gran -
des coisas juntos, querer Jazê-las ainda, eis as condições
. . ,,j
essencwts para ser um povo .

Bem entendido, esta idéia da memória, em Renan exerce


ainda um grande papel na articulação de uma idéia da nação no sé-
culo XX. Mas evocando-a na sua conjunção com a memória rei -
terativa, esgota-se as possibilidades de uma memória coletiva? No
caso desses dois primeiros tipos de memória, tratamos de uma
memória explícita ou, ao menos, no caso de uma memória come-
morativa, de uma memória que se busca impedir de cair no esque-
cimento. Contudo, seria igualmente legítimo remeter às operações
de uma memória coletiva lembranças que, abarcando esses dois ti -
pos de memória não são contudo objeto de uma tematização explí-
cita? Penso principalmente nessas lembranças tácitas que se enraí-
zam numa longa experiência coletiva, a partir da qual as atitudes
mais profundas de um povo se cristalizam. Essas memórias tácitas,
geradoras de atitudes profundas que predominam num povo, po-
dem gravitar em torno de experiências mais diversificadas: numa
extremidade, são tais memórias coletivas tácitas que marcam a vida
em comum na seqüência de terríveis experiências traumáticas, ex-
periências particularmente difíceis de assimilar, que influem du-
rante períodos muito longos sobre as atitudes profundas de um

3
Ernst Renan, ·'Qu'est-ce qu'une Nation?" in Oeuvres Completes, vol I (Paris :
Calmann-Lévy, 1947), p. 903-14.

100 Coleção Filosofia- 140


Por uma política da memória, a partir de uma intetpretarào...

povo, mesmo quando não são objeto de uma rememoração explí-


cita. Numa outra extremidade, pode-se igualmente identificar as
memórias latentes que, enraizando-se numa expetiência de equilí-
brio e de estabilidade política, nutrem as atitudes profundas de toda
uma coletividade. Diz-se, com justeza, que uma das fontes de esta-
bilidade da democracia, é uma longa experiência democrática.
Mas trata-se aí do fenômeno da memória? Não se faz só
apelo a uma idéia particularmente vaga em relação à qual tenta-se
reunir os fenômenos mais heterogêneos?
A tarefa que nos propusemos, no início, era designar uma
esfera da memória coletiva entre as duas extremidades de uma
memória simplesmente pessoal e a de uma memória coletiva erigi-
da como substância. Ora, uma outra possibilidade teórica se apre-
senta, na minha opinião, se nos deixamos guiar numa interpretação
desta noção da memória coletiva implícita por um tema que evo-
camos de início: o do ethos aristotélico. O ethos, vimos com Rico-
eur, se configura a partir de um conjunto de disposições que se ar-
ticulam em relação ao contexto específico de um povo. Tratar-se-
ía, segundo esta acepção, menos de disposições que se transmitem
a partir de ações tematizadas e habitualmente cumpridas - mesmo
se a memória implícita recobre tais ações - que de modos singula-
res de viver junto4 . Ao mesmo tempo, se a comemoração pode fa-
zer ressoar certos aspectos desta memória tácita, os vastos reser-
vatórios desta a excedem sempre. Se se pode conferir um sentido
ao conceito de memória coletiva além de uma memória reiterativa
ou comemorativa, é, na minha opinião, na mesma medida em que,
deixando-nos guiar pela noção do ethos aristotélico, a articulamos
a uma noção essencialmente política da experiência constitutiva
dos laços de coesão de uma coletividade.

4
No vocabulário de Aristóteles. como de modo geral, o termo disposição (hexis)
constitutiva de um ethos reveste uma polissemia importante, compreendendo ao
mesmo tempo os simples hábitos como os modos de viver junto. É antes a esta
segunda acepção, os modos de viver em comum, que relaciono a noção de uma
memória coletiva implícita. distinguindo-a da dimensão mais explícita de uma
memória reiterativa, fruto de uma simples retomada de hábitos.

Coleção Filosofia - 140 101


Jeffrey Andrew Barash

Gostaria de precisar este uso inabitual do ethos aristotélico,


referindo-me a uma passagem da Política de Aristóteles que trata
desse tema. No livro JI, 8 da Política, Aristóteles escreve a se-
guinte passagem, em resposta à questão de saber, num Estado, em
que medida é desejável modificar as leis, como por exemplo, a ci-
ência médica ou as diferentes artes são levadas a mudar suas práti-
cas. Aristóteles responde da seguinte maneira (12-69, a):

"Todos esses argumentos mostram, pois, que evidente-


mente é preciso mudar certas leis e em certas ocasiões;
mas, sob outro ponto de vista, essa mudança pareceria exi-
gir muita circumpecçclo (episkopousin). Porque quando a
melhora é fraca, como é aliás mau habituar-se (ethixeiu) o
mudar facilmente as leis, é evidente que é melhor tolerar
cerras erros tanto da parte dos legisladores quanto dos
magistrados. Com efeito, a utilidade que há de mudar a lei
nela é tâo grande quanto o dano cansado por aquele que ti-
ver adquirido o hábiro de desobedecer aos magistrados. E
o exemplo extraído das técnicas é falso, porque não é a
mesma coisa mudar uma arte e uma lei. A lei, com efeito,
nâo tem outra força, para se Jazer obedecer, senão o uso
(etlws), o qual só advém com um certo lapso de tempo, de
sorte que passar facilmente das leis existentes a outras leis
novas, é tornar enfermo o poder da Lei".

Vê-se bem, a partir deste exemplo, de que maneira o con-


junto das leis de distingue de um simples hábito que rege a prática.
Com efeito, as leis se enraízam num ethos específico - um modo de
viver junto - constituído através de um longo lapso de tempo e,
acrescentaria, emergindo a partir de um feixe de significações tá-
citas que qualifiquei de memória coletiva implícita. Pensado nos
termos da resistência à mudança, este exemplo poderia parecer dar
provas de conservadorismo. Meu objetivo, contudo, é totalmente
diverso: insistindo na dimensão temporal do estabelecimento ele
identidades cole ti vas, trato de valorizar a e.1pecij!cidade do con-
texto assim constituído. E se a noção de memória coletiva pode se
mostrar útil, é, na minha opinião, na medida em que nos põe diante
de uma longa duração, através da qual tal especificidade - compre-

102 Coleção Filosofia- 140


Por uma política da memória, a partir de uma interpretação...

endendo os feixes de gestos e de estruturas simbólicas - se cristali-


za.
Gostaria de concluir reconduzindo minha análise ao tema
da sabedoria prática, pelo qual comecei. A sabedoria prática, como
vimos, refere-se precisamente à ação empreendida num contexto
político singular. E deve levar em conta a contingência que atinge a
ação humana no seio desse contexto. Com esta insistência na sin-
gularidade, não gostaria de negar a possibilidade de invocar regras
universais de prática, mas incitar a uma certa prudência no domínio
teórico. É a idéia da sabedoria prática voltada à singularidade das
identidades coletivas que, segundo meu juízo, pode nos ajudar a
compreender melhor as grandes dificuldades com as quais se con-
frontam as tentativas das coletividades humanas para se libertarem
de seus profundos traumatismos. A respeito disso remeto às belas
análises propostas por Paul Ricoeur em seu recente artigo, ''Me-
mory, Forgetfulness, History".
Da minha parte, gostaria de insistir no tema da especifici-
dade das identidades coletivas e de uma memória coletiva, entre
lembrança pessoal e lembrança proveniente de um Estado-
substância, a fim de apontar limites às tentativas de teorização
comparatistas, que tendam a negligenciar quanto pode ser engano-
so querer remeter os sistemas sócio-políticos das sociedades com-
plexas a modelos de explicação idênticos, fazendo abstração da
profunda dimensão temporal através da qual se cristalizou a especi-
ficidade de suas identidades. Nesse sentido totalitarismo, facismo,
comunismo se tornaram etiquetas que, muito freqüentemente, mas-
caram os fenômenos específicos subjacentes a toda uma experiên-
cia coletiva. Mas retardar-me neste aspecto do que qualificaria de
um bom uso da sabedoria prática, inspirando-se no tema da memó-
ria, ultrapassaria o quadro de minha presente exposição e o guarda-
rei para um desenvolvimento ulterior.

Coleção Filosofia- 140 103


A VIDA FELIZ EM ARISTÓTELES
ERICOEUR

Constança M. Cesar (PUCCAMP)


Solange Vergnieres (CNRS)

1. O Bem-viver em Aristóteles
Solange Vergnieres (CNRS)

A filosofia prática, que Aristóteles chama de "filosofia dos


assuntos humanos" 1 tem como projeto determinar o "bem que é o
melhor" para o homem. Esse bem não é um princípio absoluto ou
uma Idéia, como é o caso do Bem platônico, porque o bem não é
um termo unívoco (ou então sinônimo). Supondo-se ademais
existir um Bem "tendo uma realidade absoluta e por si" 2 , seu
conhecimento seria muito geral para aquele que busca um bem
determinado, o bem do homem, e um bem efetivamente realizável
(prakton) no curso de uma vida humana.
Esse bem, Aristóteles o chama de felicidade (eudaimonia),
o "bem-viver" (eu zein) ou ainda o "bem agir" (eu prattein). Para
que a felicidade seja o que há de melhor para o homem, deve com-
portar duas características: a felicidade deve "bastar-se a si mes-
ma"3 (autarkes) e tornar aquele que a conhece "auto-suficiente", no
sentido de que sua posse plenifica e faz do homem feliz um homem

1
Et. Nic., X, 10, 1181 b 15.
2
Jd., I, 4, 1096 b, 34.
3
Jd., I, 5, 1097 b 7 segs.

Coleção Filosofia- 140 105


Solange V ergniercs e Cons rança Marcondes Cesar

a quem nada falta; o segundo traço é um corolário do primeiro: a


felicidade é "final" (téleion); é este fim que se deseja em vista dele
próprio, este fim último que orienta toda a nossa vida, dá-lhe um
sentido, sendo a razão de ser de tudo o que fazemos. Por isso, este
fim "final" é também um fim perfeito, isto é, um fim que realiza
nossa viela e dá-nos o sentimento de realização: uma viela feliz será
uma vida que goza a si mesma em toda sua plenitude, porque é
uma vida verdadeira.
Quanto ao fato de que o fim buscado seja a felicidade, há
um acordo geral: Aristóteles reconhece nesta doxa comum não um
preconceito que seria preciso contrariar, mas, ao contrário, uma
evidência da qual seria absurdo provar a verdade: toda coisa, todo
estudo, toda ação tende para um bem, e o bem prático mais alto
chama-se felicidade. A idéia de um desejo elo mal, de uma pulsão
para a morte, de uma fascinação pela destruição é estranha a Aris-
tóteles; se há condutas de autodestruição, são explicáveis pela ce-
gueira, a preguiça, a fraqueza; não remetem a um gosto pela ani-
quilação. Se todos os homens se entendem para designar a felici-
dade como a finalidade da vida, há, em compensação, divergências
importantes quanto ao que constitui sua definição. Pode-se reperto-
riar três pretendentes sérios 4 : a vida de gozo (que recolhe os votos
da massa), a vida ativa (sob a condição de caracterizá-la antes pela
virtude que pela honra) e, enfim, a vida contemplativa. A vida do
homem de negócios (crematistica) é descartada de imediato, por-
que uma vida que se consagra à acumulação de dinheiro é domina-
da pelo que é apenas um meio: esta vida puramente instrumental,
come a do escravo, ignora o contentamento, posto que o desejo por
dinheiro é indefinido. A querela referente à definição concreta de
felicidade não é uma querela anódina: o que está em jogo é a ori-
entação geral, o rumo que se dá à vida inteira; com a felicidade , é a
totalidade da vida que está em questão. Tais como arqueiros que
têm um alvo 5 , devemos pois buscar o que é digno de ser visado.

4
Id. , !, 4.
5
!d., l, 1, 1094 a 24.

l06 Coleção Filosofia- 140


A Vidafeliz elll Aristótele.r e Ricomr

Como abordar esta busca da "vida boa"? Na Ética a Nicô-


maco6, Aristóteles parte da seguinte constatação: toda coisa, quer
seja natural ou artificial, caracteriza-se por uma função ou uso pró-
prio; quando esta está em bom estado e cumpre "bem" (eu) sua
função, diz-se que ela é "boa", que está de posse de sua excelência
própria: assim, a "virtude" do olho é o que assegura ao mesmo
tempo a boa qualidade do órgão e a de sua função. Logo, descobrir
em que consiste a vida boa para um homem é descobrir qual é sua
função (ergon) própria, ou melhor, sua tarefa ou sua obra: o ho-
mem capaz de cumprir bem esta tarefa poderia ser um homem fe-
liz. Temos aí dois pressupostos: o primeiro é que o homem possui,
por natureza, uma obra própria. Esta idéia não é evidente. Protágo-
ras, no diálogo de Platão que tem seu nome, faz do homem um
animal des-naturado, nascido da falta de previdência de Epimeteu,
e que deve sua salvação à intervenção de Prometeu, depois de
Zeus, que lhe concedem, respectivamente, o dom da inteligência
técnica e da inteligência política: o homem é um ser artificial, des-
pojado de função própria, que deve inventar a si mesmo. Esta con-
cepção parece absurda para Aristóteles : o organismo humano, por
sua relativa indeterminação, não manifesta sua deficiência mas, ao
contrário, sua superioridade natural: como R. Brague 7 sublinha,
nele, a natureza aperfeiçoa o que esboçou com o animal; basta con-
siderar a mão humana8, para se perceber que, por sua flexibilidade
e a diversidade de seus usos, ela faz do homem o favorito da natu-
reza. O segundo pressuposto é que a felicidade só pode ser encon-
trada numa atividade especificamente humana: é nesse campo que
nos é próprio que podemos encontrar uma realização digna de um
homem. É por isso que a felicidade pode, doravante, definir-se
como "a atividade da alma segundo a virtude mais perfeita do ho-
mem"9. Qual é pois esta atividade? Não é, evidentemente, nem a
atividade vegetativa nem a atividade sensitiva; é uma atividade que

(jld., l, 6.
7
Brague Rémi. Aristote et la question du monde, PUF, Paris, 1988, p. 231
c de modo geral o capítulo "O animal mundano".
8
Partes dos animais, IV, 687 a 6 segs.
9
Et.Nic., l, 6, I 098 a 16.
Coleção Filosofia- 140 107
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar

deve incluir o que é próprio do homem, o fogos: tal é a vida de


ação (a vida contemplativa é reportada a um exame ulterior). A ati-
vidade buscada apresenta-se, assim, como a prática de belas e boas
ações.
Se esta prática é a tarefa natural do homem, pode-se pensar
que ele a cumpre naturalmente, como o faz um olho que vê ou um
cavalo que corre. A hipótese não é absurda: mesmo se, evidente-
mente, uma criança não seja capaz de boas ações, certas faculdades
aparecem espontaneamente depois de um tempo de maturação,
como a faculdade de procriar ou então a inteligência (sunesis) 10 e o
juízo (gnômé) 11 • Mas não é o caso da faculdade de agir: as boas
ações requerem virtudes que não são naturais, mas que são engen-
dradas pelo hábito (nas virtudes éticas) e por uma longa experiên-
cia (na virtude intelectual da "prudência", a phronêsis). Assim, o
homem tem propriamente uma tarefa natural, à qual o lagos o pre-
dispõe; só pode levá-la a cabo operando mediações: deve ser edu-
cado, deve dar-se boas disposições, deve enfim refletir sobre o que
é preciso fazer e sobre os meios de fazê-lo. A vida feliz requer uma
ética e uma sabedoria prática: quer dizer que existe um caminho a
ser percmTido para que um homem alcance sua própria realização;
mas quer dizer também que o homem é o autor de sua própria feli-
cidade.
Qual é o conteúdo dessas belas e boas ações? Aristóteles
dá uma indicação importante logo no início da Ética a Nicômaco: o
estudo do bem próprio do homem é o objeto da política, porque ele
é a ciência soberana e dirigente, em matéria de ação; ele acrescenta
que o bem é idêntico, tanto para o indivíduo quanto para a cidade,
mas que é "uma tarefa mais ampla e mais perfeita atingir e preser-
var o bem da cidade" 12 . O bem viver assume pois imediatamente
um aspecto coletivo. Isto merece ser explicitado. A felicidade é ca-
racterizada pela auterkeia: compreendendo a palavra a partir de sua
etimologia, pode-se ter a impressão de que a auterkeia é própria de
um sábio que vive isolado, retirado do mundo e que basta a si
10
/d., VI, 12, 1143b7.
li Id.
12
Id,. I, 1, 1094 b 8.

108 Coleção Filosofia- 140


A Vida feliz em Arútóte/es e Ricoe11r

mesmo. Aristóteles previne imediatamente contra tal contrasenso:


"para que baste a si mesmo não entendemos que seja suficiente o
homem ser só, levando uma vida solitária" 13 , mas que baste tam-
bém à sua família, a seus amigos, a seus concidadãos. A auto-
suficiência é a de um ser sociável; tratando-se de um homem que
não é nem "um selvagem nem um deus" 14 , o "si-mesmo" não pode-
ria ser concebido como ser sozinho. O bem viver é pois um "viver-
com": o homem, como aliás outras espécies de animais, é um ser
de relação, de associação, de amizade (philia). Agir, é agir com os
outros . A ação pode ser desenvolver em diferentes níveis: o ho-
mem é um "animal par" 15 , cioso dos que lhe são próximos e preo-
cupado com a gestão de seu patrimônio pessoal (economia domés-
tica); tem igualmente, amizades privadas e eletivas (às quais volta-
remos): aí está razão de agir bem. Contudo, é na escala da cidade
que a virtude se manifesta com maior grandeza e importâ ncia; é
este o lugar eminente para exercer a virtude, para revelar seu poder
de agir. O homem que se isolasse na sua vida privada, vivendo uma
vida puramente familiar e econômica, teria uma vida muito limita-
da para que pudesse ser uma verdadeira vida feliz.
Para que a cidade seja o lugar do exercício das virtudes, é
preciso que ela tenha certos traços: Aristóteles propõe uma defini-
ção normativa da cidade, que a submete à finalidade da felicidade:
"a cidade é uma comunidade do bem-viver para as famílias e as li -
nhagens, em vista de uma vida realizada e auto-suficiente" 16 • A fi-
nalidade da cidade é pois a vida boa com os outros . Bem entendi-
do, uma cidade tem também funções mais elementares: a cidade
deve permitir assegurar as trocas econômicas, a fim de satisfazer às
necessidades dos lares; ela tem igualmente uma finalidade "secun-
dária": toda cidade comporta uma justiça corretiva, do mesmo
modo que mobiliza soldados a fim de se preservar das agressões
externas. Mas uma cidade que se reduzisse a essas duas funções se-
ria só uma cidade "verbal", capaz apenas de assegurar a subsistên-

13
ld., l, 5, 1097 b 9.
14
Pol., l, 2, 1253 a 29.
15
Er. Nic., VIII, 14, 1162 a 17.
16
Pol., lll, 9, 1280 b 34.
Coleção Filosofia - 140 109
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar

cia e a coexistência das famílias, evitando as injustiças recíprocas,


permitindo pois "viver, mas não bem-viver". Uma verdadeira cida-
de não é uma aliança entre lares (uma espécie de contrato), é uma
comunidade. Uma comunidade se constitui pela escolha deliberada
de uma vida em comum, num entendimento em vista de uma obra
comum. Os homens cessam de ser indivíduos privados, chefes de
família, para se tornarem concidadãos, suscetíveis de viver juntos,
num espírito de concórdia (homonoia) ou ainda de amizade políti-
ca.
Para ser verdadeiramente sólida, uma cidade deve ser esta-
belecida sobre instituições justas. O fundamento de uma cidade é a
constituição reta, isto é, a constituição que visa o bem comum dos
governantes e dos governados (monarquia, aristocracia, politeia),
constituição que se prolonga num sistema de boas leis, adaptadas
ao regime político, o qual deve ser apropriado ao povo que o insti-
tui politicamente. Mas as instituições não são nada se as leis não
impregnam efetivamente os costumes dos cidadãos. É por isso que
a educação "moral" das crianças é primordial para a cidade. A feli-
cidade que uma cidade bem regrada pode conhecer não está no
entanto fundada no sacrifício da vida individual, na supressão de
família. A cidade aristotélica não é um Estado transcendente que
reabsorveria toda singularidade; ela permanece uma pluralidade,
unificada por um objetivo comum: é por isso que a felicidade da
cidade não é senão o "bem-viver" efetivo dos cidadãos, ao menos
dos melhores dentre eles. Esse "bem-viver" é uma eupraxia, da
qual é preciso agora esclarecer a natureza.
As ações que tornam a vida feliz são, primeiro, "belas
ações". A "beleza" exprime a virtude moral daquele que as pratica,
mas é só um termo aproximativo: agindo de modo belo, isto é,
"como se deve", o homem se manifesta em todo seu esplendor, faz
sua aparição pública, sua figura se desenha de modo claro e límpi-
do; a ação bela, feita intencionalmente, revela um homem que foi
capaz de se modelar e de se dar uma forma que o torna "visível",
através de seus atos, e que o individualiza. É próprio da feiúra se
ocultar, da fraqueza e da juventude serem reservadas (aidôs); mas
cabe à excelência aparecer. H. Arendt, no A condição do homem

110 Coleção Filosofia- 140


A Vida feliz em Ari.rtóteles e Ricoeur

moderno, insistiu neste aspecto do mundo político grego, na "pai-


xão por se mostrar, medindo-se contra o outro" 17 • A excelência é a
manifestação de si, "glória" que não é a vã pequena glória do am-
bicioso (philothymos), ávido por atenção e pela notoriedade. Esta
entrada na visibilidade é, ao mesmo tempo uma entrada na inteligi-
bilidade; o homem de virtude completa é aquele que pode explici-
tar seus atos por palavras, posto que seus atos foram decididos de-
pois de deliberação e reflexão: comportam uma racionalidade que
os torna inteligíveis. A bela ação (que, de resto, pode residir numa
palavra) é pois a ação clara, a que ao mesmo tempo se manifesta
por seu esplendor e que se pode esclarecer, explicitar e justificar,
por essa razão.
Mas uma ação bela deve também ser uma ação bem suce-
dida; ela não poderia se reduzir a um belo gesto, cheio de brio, in-
diferente aos resultados e às conseqüências; esta paixão pelo belo
gesto deve convir à juventude, porque testemunha sua generosida-
de natural, mas nela falta singularmente a "prudência". A eupraxia
é a ação bem sucedida. O "eu" significa feliz, no sentido de bem
sucedido. O homem age "com felicidade" quando encontra efeti-
vamente a solução ou o desenlace "feliz" de uma situação fre-
qüentemente difícil e confusa. A excelência não consiste somente
em fazer "o que é belo fazer", mas em inventar uma solução perti-
nente. Agir, para um adulto, não é mais imitar modelos e se con-
formar às regras em vigor, é começar, tomar iniciativas, fazer
acontecer algo de novo, resolver depois de reflexão. Bem entendi-
do, o sucesso só dá lugar a uma eupraxia se o ato é belo: nem um
mau fim realizado por bons meios, nem um bom fim realizado por
meios sórdidos permitem qualificar uma ação ele "bem sucedida":
ela é no máximo "hábil". O "sucesso" de uma ação é também sua
utilidade efetiva, não apenas para si, mas para a comunidade políti-
ca inteira. O homem capaz de conduzir tais ações testemunha sua
justiça natural (a justiça é a virtude completa "enquanto é voltada
para os outros", allotrion 18 ) e sua envergadura ou sua "grandeza de
17
Arendt, Hannah, La condition de l'homme moderne, Calmann-Lévy
(Pockett), Paris, 1983, em "L'action", p. 253.
18
Et. Nic., V, 10, 1134 b 5.
Coleção Filosofia - 140 111
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Ccsar

alma". A grandeza focalizada por Aristóteles não é a do guerreiro


ou do conquistador: a finalidade mais alta da cidade é a paz e o la-
zer19. É operando pela paz e a concórdia que os homens se tornam
grandes e podem viver uma vida realizada.
A eupraxia, vê-se, é a ação "cumprida", que testemunha
tanto a retidão da intenção quanto a inteligência dos meios, é a
ação da qual o homem é inteiramente o princípio, é a ação que
pode ser inteiramente assumida. É a de um adulto que age séria e
inteligentemente.
Resta compreender em que a eupraxia constitui em si
mesma a vida boa: quando a virtude adquiriu maturidade e estabi-
lidade, o homem não age para se tornar feliz, mas é feliz agindo
bem. A felicidade, com efeito, não é um estado que se gozaria de-
pois de ter agido, é, em si mesma, energeia, ato, efetividade: se não
fosse esse o caso, poder-se-ia fazer do homem que passa sua vida a
dormir um homem feliz. Contudo, para que se possa definir a vida
feliz como eupraxia, é preciso acrescentar um elemento suple-
mentar. Não se pode falar de felicidade se não se experimenta
contentamento ou prazer em viver o que se vive: é por isso que
Aristóteles acrescenta que as belas e boas ações são também agra-
dáveis20. Que é que isso quer dizer? Aristóteles não pretende que as
belas e boas ações tenham por fim o prazer: isso seria identificar a
felicidade com o prazer; mas ele quer dizer, contudo, que a vida
boa é acompanhada de prazer. No livro X da Ética a Nicômaco,
Aristóteles contesta o desprezo pelo prazer ostentado por certos
filósofos, enquanto que a experiência comum nos mostra, com toda
evidência, que o prazer é desejável por si mesmo; dito de outro
modo, que constitui uma espécie de fim. O denegrimento do prazer
repousa, com efeito, numa confusão do prazer com o gozo (apo-
lausis), isto é, com esta forma de prazer que partilhamos com os
animais (prazer do tato, alimentar e sexual). Na realidade, toda ati -
vidade, quando é bem sucedida, isto é, quando permite a uma fa-
culdade se atualizar no encontro com seu objeto próprio, é acom-
panhada de prazer: o prazer não é o resultado do ato nem seu fim,
19 Pol., VII, 14, 1334 a 4.
20
Et. Nic., I, 9, I 099 a 24.

112 Coleção Filosofia - 140


A Vida feliz em Ari.rtóteles e Ricoeur

mas é um fim dado por acréscimo, que aperfeiçoa um ato por si


mesmo já completo 21 . Assim, mesmo de Deus diz-se que experi-
menta prazer em contemplar a si mesmo: sua vida é, de todas as
vidas, a mais agradável e a melhor22 . Então, seria absurdo fazer da
vida feliz uma vida laboriosa e penosa. É preciso mesmo ir mais
longe: a capacidade de um homem de encontrar prazer no bem agir
é um sinal de virdude 23 ; o que fizesse boas ações por temor do cas-
tigo ou para ter boa reputação não agiria como homem virtuoso. A
virtude é o que nos dá o gosto pelas boas ações, o que nos faz amá-
las por elas mesmas; é por isso que, realizando-as, temos o senti-
mento de nossa própria realização. Logo, não basta que uma ativi -
dade seja agradável para que ela seja a felicidade (é preciso ainda
que ela seja digna de um homem e que seja bem conduzida); inver-
samente, uma atividade que fosse extenuante ou aborrecida não
poderia constituir a felicidade de um homem mesmo quando fosse
útil.
Esta definição do "bem-viver" como eupraxia suscita
contudo questões: como se pode falar de uma vida feliz como de
uma vida perfeita e autárquica, dado que a ação se exerce num
mundo contingente, submetido aos azares da fortuna? Como con-
ciliar o aspecto final e acabado da vida feliz com a finitude, a tem-
poralidade de uma vida humana: existe aí uma dificuldade que faz
duvidar do caráter realizável de tal felicidade, quando não faz du -
vidar de seu caráter desejável.
Aristóteles não ficou indiferente a esta dificuldade: no cur-
so do livro I da Ética a Nicômaco, ele sublinha, ao contrário, o ca-
ráter frágil e condicionado da felicidade fundada na eupraxia. Há
condições naturais e sociais da felicidade : todos os seres que, por
natureza, não podem colocar intencionalmente seu próprio fim, são
na realidade estranhos à felicidade: podem certamente gozar a vida,
porque viver é em si mesmo desejável, mas estão excluídos do
"bem-viver"24 : é o caso do animal, mas também do escravo, ins-

21
ld., X, 4, 1174 b 33.
22
Met., L, 7, 1072 b 28 .
23
Et. Nic., I, 9,1099 a 18.
24
Jd., I, 1O, 1099 b 32 segs.
Coleção Filosofia- 140 113
Solange Vergniercs e Constança Marcondes Cesar

trumento para um outro; da criança, que é um ser "inacabado" e,


sem dúvida, mesmo se isso não é dito explicitamente, da mulher,
ser naturalmente akyron (sem autoridade), inapta à vida política e
contemplativa, votada a uma vida doméstica, necessariamente li-
mitada. Do mesmo modo, certas condições pessoais (a desgraça fí-
sica, a ausência de filhos ou de amigos, etc.) ou sociais (a pobreza,
a baixa origem), são entraves à vida feliz: numerosas virtudes só
podem se exercer se se tem um certo número de recursos. Enfim,
os azares da fortuna podem ofuscar a felicidade de um ser virtuoso,
quando os males são muito numerosos e muito repetidos: o exem-
plo de Príamo25 é o doloroso símbolo desta precariedade.
Mesmo se Aristóteles reconhece um papel para essas vicis-
situdes, recusa exagerar seu peso: a felicidade é favorecida ou des-
favorecida pela sorte, mas não é determinada por ela26 . A etimolo-
gia (eu-daimôn) é enganosa aqui. O que é decisivo para a felicida-
de é a virtude, a qual é uma disposição estável e medida, que nos
torna precisamente aptos a fazer frente aos azares da sorte. Mesmo
que nenhum homem seja invulnerável, mesmo que a felicidade
possa ser ensombrecida pelos acidentes da vida, o homem virtuoso
permanece "firme, irrepreensível" 27 : a virtude dá-lhe uma indepen-
dência que lhe permite não soçobrar e tirar o melhor partido da si-
tuação; e se não se pode continuar a declará-lo feliz, sua vida per-
manece uma vida onde "o esplendor do belo transparece" 28 , porque
é uma vida que permanece à altura da exigência do "bem-viver".
A vida feliz não repousa numa negação da contingência e
da precariedade, ela é uma "realização" no seio do inacabado, uma
perfeição no seio do indefinido. Isto é possível porque o homem é
capaz de agir introduzindo um limite, uma justa medida no mundo
dos assuntos humanos. Esta justa medida é a obra da phronesis,
isto é, da virtude da inteligência calculadora, enquanto ela é capaz
de descobrir, na singularidade de uma situação, a resposta que lhe é
adaptada, de sorte que esta resposta seja uma "euporia": onde a or-

25
ld., I, 10, 1100 a 8.
26
Id., I, 11 inteiro.
27
Id., 1100 b 21.
28
ld., 1100 b 30.

114 Coleção Filosotia- 140


A Vida feliz em A1i.rtóte/e.r e Ricoeur

dem cósmica não aparece, onde a providência está ausente, a pru-


dência introduz previdência e racionalidade, justiça e justeza: ela é
esta arte de estar na medida e à altura de uma situação. Se é possí-
vel que uma ação seja feita sem esta justa medida, então pode-se
conceber que uma série de ações, que a vida instaura, busquem se
regrar segundo esta medida. Isto significa que uma vida pode apre-
ender a si mesma como um todo acabado: esta idéia, contudo, con-
tinua a suscitar objeções, enquanto parece desprezar a abertura da
vida e a temporalidade humana.
Aristóteles não permanece surdo a esse gênero de argu-
mento: num certo sentido, ele confessa29 , é preciso esperar o fim da
vida para saber se um homem foi feliz, para "felicitá-lo" e declará-
lo "bem-aventurado": só o fim permite apreender o valor de toda
uma vida. Esta objeção, contudo, tem o inconveniente de fazer da
felicidade uma palavra que só pode ser empregada no passado, que
ademais é exterior a alguém . Na realidade, é absurdo negar à vida
presente a possibilidade de ser efetivamente feliz se ela se experi-
menta como tal.
É preciso pois afirmar que uma vida pode se apreender
como um todo mesmo quando está aberta a um futuro. E se o pode,
não é porque se feche sobre si mesma, é porque o homem de valor
pode sempre se reconhecer naquilo que ele faz: agindo sem nunca
ter que se retratar, estando sempre inteiramente presente no que
faz, pode "simpatizar" 30 consigo mesmo e gozar de sua própria
companhia. O homem feliz é um homem bem afinado, afinado com
seus próprios atos e seus próprios afetos, afinado com os outros, ao
menos com os que são virtuosos. Tal acordo é realizável porque o
homem feliz se não esquece nunca de si mesmo; mais exatamente,
não esquece nunca a finalidade de sua vida que é o "bem-viver";
mesmo se cada ato é orientado em direção a um objetivo particular,
esse objetivo é sempre encarado a partir da finalidade da felicida-
de. Assim, esta vida que caminha sem cessar em direção a si mes-
ma, sem procurar se distrair de sua finalidade, só pode ser uma
vida boa. Ela se tornou a vida de um homem amigo de si mesmo.
29
ld., 1100 a 10.
30
ld., IX, 4, 1166 a 27.
Coleção Filosofia- 140 115
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar

Esta vida, veremos, desenvolve-se segundo uma tempora-


lidade ética. O homem mau é um homem prêsa da agitação; está
sempre em vias de correr atrás dos prazeres do dinheiro ou das
honras; está sempre fora de si mesmo, preso num movimento sem
fim; vive o tempo como ameaça, perda e corrupção, enquanto "o
movimento desfaz aquilo que é" 3 1• O homem virtuoso, em com-
pensação, possui um ethos estável, equilibrado, que dá à vida or-
dem e continuidade. O movimento que caracteriza toda a vida não
é mais, aqui, destruição, mas atualização de uma potência: a vida
feliz é vida que se move em direção a si mesma, que gera a si
mesma de modo contínuo32 . Esta continuidade não deve ser con-
fundida com a monotonia da rotina e da repetição: a vida feliz não
cessa de se manter sobre seu próprio ápice, ela é contínua criação
de si mesma: é uma vida que, a cada instante é tão perfeita e tão
alta quanto pode sê-lo e que não cessa, por isso, de advir a si mes-
ma. Este advir a si mesma não deve também ser confundido com
uma temporalidade orgânica. Sabe-se que esta temporalidade serve
de modelo para caracterizar uma ação trágica vista por um especta-
dor: a ação trágica, apresenta uma gênese orgânica, com um come-
ço, um meio e um fim 33 , como a vida de um animal (zôon) apre-
senta sucessivamente juventude, maturidade e velhice; esse movi -
mento orgânico permite apreender a ação dramática como uma to-
talidade e lhe confere sua inteligibilidade. Mas esse modelo não
convém para caracterizar a permanência de um gênero de vida (bi-
os) orientado para sua própria perfeição. Se se quer recorrer forço-
samente a um modelo, seria preciso, antes, dizer que a temporali-
dade da vida boa imita a continuidade do movimento circular da
esfera celeste, temporalidade "cósmica" e não sublunar, à qual

31
Fis., lV, 12,221 b3.
32
Cf. Heidegger, Martin: lnterprétations phénoménologiques d'Aristote,
T.E.R. bilíngüe, Mauvezin, 1992, p. 43-44, onde Heidegger evoca o ser
da vida como "mobilidade que encontra em si mesmo seu cumprimen -
to".
33
Poética, 1450 b 27.

116 Coleção Filosofia- 140


A Vida feliz em Aristóteles e Rimeur

acede o que introduz regra e ordem na sua vida34 , testemunhando


assim sua perfeição.
Mas, na realidade, a vida feliz busca se desenvolver segun-
do a temporalidade própria da energeia. Sabe-se que Aristóteles
distingue a energeia do movimento sob a relação da temporalida-
de: no alo puro, o passado e o presente coincidem; por exemplo, o
tempo não acrescenta nem corta nada ao fato de ver35 ; do mesmo
modo, o prazer difere de um movimento ou de uma gênese en-
quanto é um todo pelfeito, independente do tempo 36 . É pois possí-
vel à consciência em ato viver um "instante" ou mais precisamente
um momento ou um lapso de tempo que não é uma parte do tempo,
viver uma duração plena e contínua que escapa da pura sucessão
dos "agora" 37 • Na medida em que a vida feliz é pensada como
energeia ela é um ato contínuo, tendo sua finalidade em si. Bem
entendido, a vida de ação permanece tributária das circunstâncias e
é sujeita à fadiga; conhece pois intermitências; mais precisamente,
a vida boa é a vida bem conduzida de um homem que multiplica,
sem frenesi, momentos plenos, mas que, aceitando ser um homem,
concede sua parte à necessidade, à fortuna, como à distração e ao
sono. Assim, a vida feliz é uma vida ordenada, consistente, inte-
grando sem cessar seu próprio passado, concentrada em si mesma
apesar dos momentos de folga e que inventa uma temporalidade
ética, que permite escapar à usura e ao desperdício.
Esta capacidade de introduzir um limite onde só vemos de
início descomedimento, é assegurada, porque o homem aceita tam-
bém só ter, no espaço, poderes limitados. O lugar em que o homem
pode verdadeiramente agir, dissemos, é a cidade: a cidade é este
limite (horos) 38 , suficientemente grande para que o homem possa
aí conduzir ações de envergadura, e suficientemente "restrito" para

34
Met., L, 10, 1075 a 20.
35
Et.Nic., X, 3, 1174 a 14.
36
Id., 1174 b 7.
37
Cf. Couloubaritsis Lambros: La Physique d'Aristote, Ousia Bruxelas,
1997, p. 310-311.
38
Et. Nic., I, 5, I 097 b 12.
Coleção Filosofia- 140 117
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar

que o homem possa ter um domínio efetivo. O talhe 39 da cidade (o


número dos cidadãos) não é, para Aristóteles, um tema secundário:
está no próprio coração da reflexão sobre a felicidade. É porque
existe um limite que disti ngue o interior do exterior. é porque há
"muralhas" 40 além das quais só há o indeterminado que o homem
pode conhecer a perfeição e a felicidade num espaço protegido .
Este limite que separa o dentro e o fora (o qual não é uma separa-
ção entre o amigo e o inimigo) não é, afinal, impermeável: a "phi-
lanthropia " 41 , sentimento de amizade que todo homem experi-
menta por todo homem enquanto é um homem, interdita a total in-
diferença em relação ao que se passa nos países distantes, como em
relação a nossos futuros descendentes . Isso significa que o campo
dos assuntos humanos é coextensivo à vida da espécie humana e
que todo homem pode padecer com o que acontece a todo homem.
Contudo, a felicidade só é possível se se admite. com humildade,
os limites de seu próprio poder ele agir (não se pode, por exemplo,
pretender agir sobre o modo de se governar dos outros povos): é,
na realidade, admitir que alhures também há outros homens virtuo-
sos, capazes de cuidarem ele sua própria comunidade.
Não é menos verdadeiro que a eupraxia é condicionada
pela boa constituição das cidades: ora, Aristóteles constata na Po-
lítica que as cidades reais estão longe ele ter constituições retas:
trata-se quase sempre de oligarquias ou ele democracias extremas.
isto é, de regimes partidários e facciosos 42 . Nessas condições, os
homens virtuosos têm a tendência de se afastar ela vida pública. De
modo mais geral, Aristóteles é levado a se interrogar sobre o valor
respectivo da vida ativa e da vida contemplativa. De modo abso-
luto, os dois modos ele viela não são antagônicos, posto que a fina-
lidade de uma cidade excelente é a paz e a vida de "lazer estudio-

39
Pol., Vll, 4, 1326 a 36.
4
° Cf.
Romeyer Dherbey Gilbert: "Aristote et la poliorcétique", p. 119-
132, em Aristote politique, (ed. P. Aubenque e A. Tordesillas), PUF.
Paris, 1993.
41
Et. Nic .. Vlii, I, I 155 a 20.
42
Cf. Vergnieres Solange: Éthique et politique chez Aristote, Paris, PUF,
1995, 1ll parte, cap. 3 "Lcs cités à l'épreuve du temps".

118 Coleção Filosofia - 140


A Vida feliz c111 Ari.rtótc/e.r e Rlcoettr

so" (schôlé): a ação pública torna um espaço humano "habitável",


permitindo aos homens se entregarem à atividade mais alta, a ati-
vidade teorética. Mas, vê-se que o "bem-viver" muda então de as-
pecto. As belas ações conservaram sua grandeza e sua nobreza,
mas são apenas meios úteis a serviço de um gênero de vida superi-
or43. É que para Aristóteles, a energeia por excelência, não é a
ação, mas a theoria a apreensão das "formas" pelo intelecto (nôus).
Mesmo no quadro de uma vida que permanece estranha à contem-
plação intelectual, o regozijo primeiro é estar desperto, ver, discer-
nir: os cinco sentidos são compreendidos como receptores que se
atualizam pelo encontro com um objeto próprio e que nos tornam
sensíveis às diversas manifestações do mundo. Um homem se sente
vivo, se sente conduzindo a si mesmo (en-ergeia) quando vê e co-
nhece. Esse sentimento chega à sua mais alta expressão no homem
que se entrega à théôria. A atividade teorética concentra nela todos
os traços característicos da felicidade: é, se se prossegue a leitura
do livro X da Ética a Nicômaco 44 , a mais "potente" das atividades,
a mais "contínua", a que é menos sujeita à fadiga, a que produz
menos distração; permite uma autarkeia superior à vida prática, en-
fim, é a atividade "liberal" por excelência, cultivada por si mesma,
porque o homem aí está verdadeiramente na sua ocupação. A con-
templação rejubila o intelecto, isto é, a parte mais alta do homem: o
homem se liga, assim, ao mundo, no que esse pode ter de ordena-
do, de inteligível, de necessário; liga-se a Deus que é amável e ad-
mirável por excelência, o bem que atrai a si todas as coisas. A
contemplação é esta atividade em que o presente é inteiramente
presença; é a única atividade que constitui verdadeiramente um fim
e é por isso que uma vida passada em contemplar seria uma vida
feliz.
É preciso contudo fazer aqui uma observação: esta vida
contemplativa, que faz daquele que a conhece um ser "amado dos
deuses", um ser que não merece somente o elogio, mas "a venera-
ção"45, não é nunca designada no livro X da Ética a Nicômaco

43
Et.Nic. , X, 7, 1177 b 17.
44
ld., X, 7 inteiro.
45
ld., I, 12, 1102 a l.
Coleção Filosofia - 140 119
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar

como uma "vida boa", como se o termo "bem-viver" fosse reser-


vado à eupraxia. Sem dúvida é porque nenhuma vida humana,
contrariamente à de Deus, não pode ser uma vida de pura contem-
plação: o homem é um "composto" orgânico, tem necessidades a
satisfazer, não pode negligenciar a vida prática. A vida boa deve se
orientar, tanto quanto possível, em direção ao lazer do estudo, mas
não pode fazer a economia das necessidades; é por isso que a
phronêsis, que é uma virtude segunda em relação à sophia, perma-
nece uma virtude indispensável à vida humana: ela é, como R.
46
Brague sublinha, retomando uma imagem de A Grande Moral,
este intendente que vela pela boa ordem do lar, a fim de que o se-
nhor de casa possa ocupar-se livremente da contemplação: se não
nos preocupamos em tornar nosso espaço habitável, o lazer do es-
tudo cone o risco de ser, sem cessar, perturbado ou entravado. Ne-
nhum homem pode desprezar seu ser orgânico e é por isso que o
"bem-viver" inclui a atividade prática, mesmo se a contemplação
permanece a atividade que traz maior alegria.
Na realidade, há uma experiência privilegiada que conjuga
essas duas dimensões da vida humana: é a prática da amizade. A
contemplação, dissemos, é a atividade que nos dá maior indepen-
dência: o homem, ligado à coisa que ele conhece, basta-se a si
mesmo e não tem absolutamente necessidade de colaboradores
(sunergous) 47 • Contudo, Aristóteles afirma, sem ambigüidade, que
o homem virtuoso, quer se trate de virtude ética ou intelectual, tem
necessidade de amigos; não se trata aqui da amizade utilitária ou de
prazer: o homem virtuoso satisfaz-se com os bens que possui, e
constitui para si mesmo um companheiro agradável. É para praticar
os assuntos sérios da vida que tal homem precisa de amigos, e de
amigos virtuosos como ele. Tratando-se da prática de ações virtuo-
sas, pode-se compreendê-lo facilmente: a virtude é ativa, generosa,
benéfica: tem necessidade de amigos para distribuir seus benefíci-
os; do mesmo modo a ação, que requer de nós esforços fatigantes,
é estimulada pela presença de amigos que rivalizam em excelência.
Mas o homem que contempla não é preenchido pelo que contem-
46
Brague Rémi, id., p. 188.
47
Et. Nic., X, 7, 1177 a 34.

120 Coleção Filosofia- 140


A Vidt~jéliz em Aristóteles e Ricoeur

pla, Deus não é este "objeto de amor" 48 que regozija o homem por
sua perfeição? Isto é verdade. Contudo, pode-se observar que se
Deus não é "ciumento"49 , não é também amante; é longínquo e
distante, goza de si mesmo numa autarquia completa, numa unici-
dade absoluta. Esta auto-suficiência de Deus só pode suscitar no
homem a consciência de uma falta: não, certamente, de uma falta
de amor (a idéia e com ela o desejo de que um Deus possa vir ao
encontro do homem é totalmente estranha a Aristóteles), mas de
um limite inerente ao homem. Deus constitui, por sua maneira de
ser, o modelo do que é absolutamente desejável: e o que é absolu-
tamente desejável, é "contemplar" a si mesmo. É dito que o ho-
mem tem desejo e é disto que ele é incapaz: como o olho não pode
ver a si mesmo, a inteligência não pode apreender a si mesma: o
pensamento humano só pensa enquanto receptivo a outra coisa, ele
é o lugar onde o mundo se manifesta no seu ser sensível e inteligí-
vel; ele não pensa a si mesmo. Existe aí uma dependência que,
certamente, pode ser percebida como a possibilidade de um encon-
tro, mas que é primeiro, e antes de mais nada, uma insuficiência.
Ora, é precisamente para preencher essa falta que o amigo é neces-
sário: "podemos contemplar aqueles que nos cercam melhor que
nós mesmos, seus atos melhor que os nossos" 50 : o que Deus é ca-
paz de fazer na sua unicidade, o homem alcança pela mediação do
amigo. Já Platão sublinhava em Alcibíades51 que o olho pode se ver
na pupila do olho do outro, que a alma pode se ver na parte divina
da alma do amado; em Aristóteles, o amigo virtuoso é este outro
"eu-mesmo", que me estende o espelho. A referência a Narciso é
inevitável: o amigo permite ter sucesso onde o Narciso das Meta-
52
morfoses de Ovídio fracassará; o amigo tem o mérito de ser um
outro diverso de mim, objeto de uma "contemplação" possível, que
é ao mesmo tempo meu semelhante por sua virtude. Mas esta refe-
rência pode induzir ao erro: Narciso está fascinado por uma ima-

48
Met., L, 7, 1072 b 3.
49
ld., A, 2, 983 a 2.
50
Et. Nic., IX, 9, 1169 b 34.
51
Platão, Alcibíades, 132 d segs.
52
Ovídio, As metamoifoses, III, 339-51 O.
Coleção Filosofia- 140 121
Solange Vergni<~res e Constança Marcondes Cesar

gem sem profundeza e sem consistência, e por uma beleza imedia-


ta; o homem virtuoso aristotélico busca-se através do amigo, en-
quanto ambos adquiriram no curso do tempo uma consistência, um
peso, uma densidade que são os da virtude; a similitude do amigo
não é uma semelhança que seria devida ao acaso, como é o caso
dos sósias, a similitude é fundada na excelência: o bem é simples, o
mal é polimorfo. Ademais, a "contemplação" do amigo não se ope-
ra através de uma postura de espectador: não se trata de olhar o
amigo quando ele age ou contempla, trata-se de partilhar com ele
suas atividades. O outro é menos um face a face, um espelho, do
que um companheiro de vida, um íntimo: é aquele com o qual
gosto de estudar, porque a atividade é estimulada quando é parti-
lhada, o prazer é redobrado, a consciência de si é ampliada. Assim,
a amizade, longe de diminuir a autarquia, a realiza, posto que dá
uma melhor consciência de si 53 . O "si-mesmo" humano só tem
consistência enquanto se nutre do conhecimento do mundo e se
liga ao outro. É por isso que mesmo quando o homem experimenta
a felicidade sobre-humana da contemplação, imitando a vida divi-
na, ele permanece um "animal político": toda vida humana é uma
vida levada com os homens. "Bem-viver" não consiste em sair de
sua condição, mas em explorar seus recursos, tanto quanto possí-
vel.
(Tradução de Constança Marcondes Cesar)

2. A ética em Paul Ricoeur: considerações


Constança Marcondes Cesar

A obra de Paul Ricoeur tem como ponto de partida a refle-


xão ética: assim, os temas do homem falível, da culpa e do mal, a
problemática da vontade, aparecem na primeira fase de seu pensa-
mento, como nos três volumes da Philosophie de la volonté (Paris,
Aubier, 1950). Em seguida, nosso filósofo faz um longo percurso,
passando pela meditação a respeito da psicanálise, a linguagem, as
narrativas histórica e de ficção, para, nas obras recentes, retomar a
53
Cf. Aubenque Pien·e: La prudence chez Aristote, PUF, Paris, 1963,
Apêndice I, "Sur l'amitié chez Aristote" (p. 179-183).

122 Coleção Filosofia- 140


A f 'idafeliz em Ari.rtóte/es e Rú·oe11r

problemática ética, como se vê em Du texte à l'action (Paris, Seuil,


1986), Soi-même comme un autre (Paris, Seuil, 1990), La promesse
et la regle (Paris, Odile Jacob, 1998), entre outros.
Apresentar a reflexão de Ricoeur supõe: a delimitação do
campo próprio da ética, mediante a distinção entre ética e moral e
a discussão das intersecções entre ética, política e economia: supõe
também a caracterização do sujeito moral e da teoria da ação, indi-
ccmdo os parâmetros da ação moral, através do exame da regra de
ouro. Implica ainda que se discuta as virtudes éticas, amizade e
justiça, indicando as fontes a que recorre, na tradição, bem como as
considerações que faz da sua expressão no mundo contemporâneo:
a tolerância, a responsabilidade, as instituições justas. Abarca o
estudo do bem-viver, entendido tanto como sabedoria prática,
quanto como a construção da comunidade multicultural mundial,
bem entretecida e harmoniosa.
Ricoeur reserva o termo ética para referir-se à vida realiza-
da e às ações boas; e o termo moral para designar o caráter de
obrigatoriedade, de interdição e constrangimento que as normas de
ação impõem. Ou seja, ética designa, para Ricoeur, a problemática
da ação sob a perspectiva da excelência e perfeição, a teleologia do
agir; moral, a perspectiva deontológica a respeito da ação, associa-
da às idéias de obrigatoriedade e normatividade. No primeiro ter-
mo, ressoa a herança aristotélica; no segundo, a tradição kantiana.
Ética e moral perfazem o campo próprio do exercício da
sabedoria prática, do saber a que se ater, da escolha perfeita entre
as ações possíveis num momento dado, de modo a realizar, através
da ação, a expressão da excelência, da plenitude do humano.
Realizar, expressar nossa humanidade através da ação: esse
é o campo da ética.
Ricoeur defende:
"1) a primazia da ética sobre a moral;
2) a necessidade, apesar de tudo da visão ética passar pelo
crivo da norma;
3) a legitimidade do recurso da norma à perspectiva [ética],
quando a norma conduz a conflitos, para os quais só existe a saída
de uma sabedoria prática que reconduz àquilo que, na perspectiva

Coleção Filosofia- 140 123


Solange V crgnieres e Constança Marcondes Cesar

ética, está atento à singularidade das situações" ("Ethique et mora-


te" in Lectures 1, Paris, Seuil, p. 256).
O campo da ética se caracteriza pelos três termos: "visar a
vida boa, com e para os outros, em instituições justas". Tal é a re-
gra de ouro de toda a ética, a divisa que nosso filósofo repetida-
mente se propõe e que encontra, nos dois textos de 1990 - "Éthi-
que et morale" e Soi-111ême comme un autre (Paris, Seuil), seu
campo de desenvolvimento.
Por vida boa, Ricoeur entende o desejo de bem-viver, o
cuidado consigo, com o outro e com as instituições. Esse cu idado é
estima de si, respeito a si e ao outro. Supõe a capacidade de agir
intencionalmente, a iniciativa, a reflexão sobre as ações.
Num segundo momento, o viver bem com os outros supõe
a solicitude; é a dimensão dialógica da estima a si mesmo: "A soli-
citude reestabelece a igualdade onde ela não está dada, como na
amizade entre iguais" (Lectures 1, p. 258).
A vida boa é, pois, a vida realizada, caracterizada pela ex-
celência no agir, de modo a tender ao bem, felicidade suprema do
nosso existir. Implica no bem-viver com os outros, de modo que a
estima de si se desdobra na amizade e na justiça, na idéia de mutu-
alidade, como Aristóteles e Lévinas assinalaram. A amizade é a
virtude que reina entre iguais : "a própria existência do homem de
bem é-lhe desejável; logo, a existência de seu amigo é-lhe igual -
mente desejável" (Soi-même comme un autre, p. 218). Entre desi -
guais, o bem-viver é justiça, interdição da violência, e reconheci-
mento "do outro como um si-mesmo e estima de si-mesmo co1no
um outro" (id., p. 226).
O bem-viver exige a existência de instituições justas. A
"justiça vai mas longe que o face a face ( ...) o bem viver não se li-
mita às relações interpessoais, mas se estende à vida das institui -
ções ( ... )" (Lectures 1, p. 259), implicando uma igualdade, diversa
da igualdade entre amigos.
As intuições são "todas as estruturas do viver junto de uma
comunidade histórica, irredutíveis às relações interpessoais e con-
tudo ligadas a elas( ... ), que a noção distribuição( ...) permite escla-
recer ( .. .)".

124 Coleção Filosofia - 140


A V ida feliz em A1istóte/es e Ricoeur

"Pode-se, com efeito, compreender uma instituição como


um sistema de partilha, de repartição, referente a direitos e deveres
( ... )responsabilidades e poderes ( ... )" (id.).
A justiça, como virtude que permite o bem-viver tem, as-
sim, um caráter distributivo, de dar a cada um a sua parte: a que lhe
cabe numa partilha justa.
As instituições, enquanto expressão social da vida ética
(Soi-même comme un autre, p. 227), devem caracterizar-se pela
pluralidade, pelo poder em comum daqueles que delas participam;
a ação pública deve ser entendida como uma "tessitura de relações
humanas", como o queria H. Arendt (id., p. 229).
Virtude individual, virtude das instituições, a justiça repre-
senta o trânsito entre o ético e o político, entre o sujeito individual
e o ser-com-o-outro. Nela, ética e política se entrecruzam (id ., p.
232), e as noções de equidade, distribuição, igualdade, estão asso-
ciadas ao conceito em questão. E Ricoeur afirma que a igualdade
"é, na vida das instituições o que a solicitude é uas relações inter-
pessoais " (id., p. 236).
Assim, o campo da ética, para Ricoeur, é o campo da me-
ditação sobre a vida boa, o ser-com e a justiça.
A finalidade ética , visar a vida boa, tem como contraparti -
da, no plano moral, a exigência de uuiversalidade. Ou seja, Rico-
eur, inspirando-se em Kant, indaga como podemos agir correta-
mente, a cada situação dada; e a resposta é: tratar, em cada situa-
ção, a pessoa como fim em si (id., p. 261 ). O que nos obriga a se-
guir o imperativo categórico enunciado por Kant: "Aja sempre ele
modo a tratar a humanidade, na sua própria pessoa e na do outro,
não somente como um meio, mas como um fim em si" é, diz Rico-
eur, o risco sempre presente, nas relações inter-humanas, da explo-
ração e da violência: "A moral, nesse sentido, é a figura que a soli-
citude reveste .face à violência e à ameaça de violência" (id., p.
262).
É a introdução da idéia de humanidade- "a humanidade na
minha pessoa e na pessoa do outro" (id), que nos faz passar do pla-
no ético ao plano moral. Essa mudança, essa universalização, tem
ressonâncias na idéia de justiça: o problema da justiça se torna o de

Coleção Filosofia- 140 125


Solange Vergniere~ e Constança Marcondes Cesar

estabelecer procedimentos eqüitativos, de modo a assegurar a todos


o respeito como pessoas. Passa-se, deste modo, do sentido de justi-
ça aos prin.cípios de justiça; se, no plano individual, a justiça é a
garantia da liberdade, no interpessoal traduz-se como respeito e no
plano coletivo como norma, que assegura o bem-viver juntos.
O princípio da justiça é o da distribuição; como existem
"muitas maneiras plausíveis de repartir vantagens e desvantagens,
a sociedade é, de ponta a ponta, um fenômeno consensual - con-
flitual ( ... )" (id., p. 271). É preciso equacionar justiça e igualdade,
levando em conta as desigualdades inelutáveis de qualificação,
competência, etc., existentes entre os indivíduos.
A vida boa deve, assim, resultar ela superação das situações
de conflito engendradas pela moral de obrigação, mediante o recur-
so à sabedoria prática.
Há conflitos "que nascem da aplicação das normas, às situ-
ações concretas" (Lectures 1, p. 265). Nisso consiste aquilo que
Ricoeur chama de o trágico da ação: o conflito entre deveres, em-
blematicamente representado na história de Antígona . Esses con-
flitos podem ocorrer nos três aspectos que compõem a ética: a "es-
tima de si, solicitude, sentido da justiça" (id.).
No âmbito da estima de si, o conflito surge. quando se
aplica a regra formal da universalização, entre a aspiração univer-
salista e o particularismo dos contextos histórico-culturais: " ... é
somente uma longa discussão entre as culturas ( ... ) que fará apare-
cer o que verdadeiramente merece ser chamado de 'universal"'
(Lectures 1, p. 266).
No âmbito da solicitude, e ele seu equivalente moral, o res-
peito, a sabedoria prática eleve decidir entre o respeito às regras
morais e jurídicas e o caso concreto das situações difíceis como a
eutanásia, o aborto, a pena capital. A solução proposta por Ricoeur
ante essas situações é que nunca o sujeito moral decida sozinho,
mas "no seio elo que [ele - Ricoeur] chamaria de uma célula de
conselho, onde muitos pontos de vista são pesados, na amizade e
respeito recíprocos" (id.)
No que diz respeito ao problema da justiça, a diferença
qualitativa entre as coisas a serem partilhadas, põe em jogo a noção

126 Coleção Filosofia- 140


A Vida feliz em Aristóteles e Ricomr

de bens sociais primordiais, conforme Rawls já assinalara (id., p.


267) e a de "esferas de justiça", como Walzer evidencia (id ., p.
268). Os conflitos que aí surgem dizem respeito "aos desacordos
referentes aos bens que distinguem essas esferas de justiça [e] à
prioridade a ser dada às reivindicações ligadas a cada esfera" (id.).
A solução que Ricoeur propõe para tais conflitos é o debate públi -
co, equivalente institucional ao círculo do conselho, na vida priva-
da. O campo da justiça se torna, assim, o campo da meditação so-
bre a equidade, que se revela como "um outro nome do sentido da
justiça, quando esta atravessa os conflitos suscitados pela própria
aplicação da regra da justiça" (id., p. 269).
A sabedoria prática tem como objetivo dirimir conflitos,
para que seja possível alcançarmos a viela boa, pensando o justo,
deliberando bem. Para tanto, Ricoeur discute as relações entre ins-
tituições e conflito, respeito e conflito, autonomia e conflito. Trata-
se, para ele, ele examinar, no primeiro tópico, as condições da prá-
tica política, de modo a unir estreitamente ética e política e a fun-
dar a democracia - o bom governo que suporta o cont1ito como
condição da harmonia, favorecendo amplamente a participação de
todos e conduzindo ao consenso conflitual, resultado do debate (cf.
nosso texto Paul Ricoeur- ensaios, S.P., Paulus, 1998, pp. 39-51 ).
A segunda abordagem, que trata das relações entre respeito
e conflito, põe em questão o problema da unidade da humanidade
perante a alteridade das pessoas; a questão que se torna central é a
do respeito, que tende "a se cindir em respeito à lei e respeito às
pessoas". A sabedoria prática consistirá, nesse caso, "em dar prio-
ridade ao respeito às pessoas, em nome da solicitude que se dirige
às pessoas na sua singularidade insubstituível" (Soi -même comme
un autre, p. 305). E não apenas à pessoa humana adulta, mas tam-
bém à "pessoa humana potencial", o embrião humano, o ser huma-
no ainda não nascido - a humanidade futura - que a bioética e
Hans Jonas nos ensinaram a reconhecer como nossos próximos,
como inclusos no âmbito da exigência de respeito, de solicitude em
sua face contemporânea, a responsabilidade (cf. nosso Paul Rico-
eur- ensaios, pp. 67-75).

Coleção Filosofia - 140 127


Solange Vergni<~res e Constança Marcondes Cesar

O último tópico relacionado com a questão do conflito é o


da autonomia. A contrapartida da liberdade é a lei; e aqui Ricoeur
introduz o conceito de regra de ação, para caracterizar a ação re-
grada ou normatizada. Recorrendo a Geertz, Ricoeur fala de "me-
diação simbólica", para sublinhar o caráter imediatamente público
( ... )a codificação da ação social na qual a ação individual tem lu-
gar" (Du texte à l'action, Paris, Seuil, 1986, p. 256). Trata, aí, de
mostrar a função crítica da razão prática: reconhecer o desnível
entre a "constituição política( .. .) e a realidade empírica do Estado"
(id., p. 257).
Cabe à ética estimular a busca do Estado de Direito, "efe-
tuação da intençâo ética llO esfera do político" (id., p. 403 ); cabe à
ética a criação de espaços de liberdade, de não-violência; cabe à
sabedoria prática expressar a responsabilidade, "que define o reali-
zável num contexto histórico dado" (id., 406).
Num plano mais amplo, a sabedoria prática se expressa
como a busca da paz, da tolerância, desenvolvimento da arte da re-
conciliação. Ela "convida ao sonho partilhado de uma autêntica
'vida boa', com esta liberdade de dizer e fazer ( ...)" [esforça-se
por] "desenvolver o imaginário, suscitar novos planos de vida em
comum ( ... ); convoca à responsabilidade em relação ao outro" (La
nature et la regle, Paris, Odile Jacob, 1998, p. 339); trata de "levar
em conta o ensinamento de todas as sabedorias humanas, a fim de
construir um projeto comum - projeto de paz, de civilização uni-
versal, livre, justa e ao modo da alegria" (id., p. 346).
A sabedoria prática, que conduz ao bem-viver, desdobra-se
na construção da comunidade multicultural mundial, que os textos
de Ricoeur sobre a tolerância, os conflitos culturais e a ética da de-
liberação permitem entrever - não como mero sonho sem funda-
mento, mas como projeto, valor-horizonte, plano diretor de toda
ação.

128 Coleção Filosofia - 140


A HERMENÊUTICA DO SI
E SUA DIMENSÃO ÉTICA

Sonia Vásquez Garrido


(PUC do Chile- Villarrica)

Nosso interesse está centrado na educação, na identidade e,


em especial, na constituição do si, na sua hermenêutica na dimen-
são ética que implica. A hermenêutica do si, segundo Ricoeur,
acha-se a igual distância da apologia do Cogito e de sua destituição
(1991: 14- 15).
O si não é o sujeito exaltado, forte, nem tampouco o sujeito
em permanente dúvida sobre si mesmo; mas é o sujeito que, medi-
ante suas reflexões, pelas mediações, confronto e assumpção do
que é próprio a si, e do outro distinto de si, volta a si mesmo como
um si maduro, que foi reconhecido reflexivamente. Este sujeito do
si é semelhante ao "si mesmo" de Jung, no sentido de que não está
acabado com sua personalidade consciente, mas é aquele que se
proporciona uma ampliação e maturação constante da personalida-
de. Esta semelhança pode ser vista quando Ricoeur assinala que a
consciência não é nosso ponto de partida, mas de chegada.
A hermenêutica do si, num primeiro momento, faz desviar
a reflexão mediante a análise: tanto a teoria da linguagem quanto a
teoria da ação mostram que a constituição do si não está completa
de início e que, num primeiro momento, a identidade não é plena-
mente pessoal. Este desvio da hermenêutica do si se inicia com o
esclarecimento do termo identidade. Este termo, na sua equivoci-
dade, muitas vezes leva a confusões e aporias, que Ricoeur preten-
de solucionar através da teoria narrativa. Por isso, é necessário dar

Coleção Filosofia - 140 129


Sonia Vásquez Garrido

relevância à identidade narrativa como mediação dos momentos


entre o descrever e o prescrever. Esse passo se dá através do narrar
e permite reencontrar o sujeito na sua identidade ética.
A narrativa apresenta a dialética da identidade; a identida-
de idem, quer dizer, a permanência no tempo, que constitui o grau
mais elevado de significado desta identidade; a isto se opõe o dife-
rente no sentido de mutável, variável, quer dizer, a identidade ipse
(RICOEUR, 1991: 13).
O si é, portanto, o sujeito que assume a dialética de sua
identidade, na perpetuação de seu caráter (idem) e na manutenção
de sua palavra e promessa (ipse). É aquele que acompanha a histó-
ria de suas transformações, para por a experiência da alteridade; é o
sujeito que é agente de suas ações, e paciente, no gozo ou na dor
dos outros.
É nesta dialética entre idem e ipse que se mostra a dialética
própria deste último com toda sua conotação ética. Nossa reflexão
atual exige que penetremos na dialética própria da ipseidade, na
constância do si e dos diversos de si, em que se manifesta com for-
ça a eticidade da identidade, e onde a educação pode exercer um
papel transcendental na formação de pessoas. Esta atuação da edu-
cação é possibilitada na medida em que se abram caminhos e
oportunidades para trabalhar um pensar reflexivo, uma posição
crítica permanente com relação às ações que efetuamos tanto ao
nível pessoal quanto ao nível social.
O sujeito necessita descobrir a alteridade e, nas suas deli-
berações e na avaliação de suas ações, caminhar na perspectiva éti-
ca da "vida boa com e para os outros em instituições justas" (RI-
COEUR, 1991: 202) . Este trabalho reflexivo ao nível ético permite
à pessoa dar um justo lugar ao imperativo da norma e desenvolver
sua deliberação para que alcance a virtude do homem sábio e pru-
dente. Assim, a pessoa-agente aprende a inventar condutas apropri-
adas para cada situação, sem por isso deixar de ser solícita com os
outros e justa com aquele que não conhece pessoalmente. Nas pa-
lavras de Ricoeur, podemos dizer que vai se afirmando e desenvol-
vendo como pessoa o sujeito que, no seu dizer e atuar faz uso da
sua "sabedoria prática", que foi conquistando a virtude pela práti -

130 Coleção Filosofia- 140


A Hermenêutica do si e sua dilllensào ética

ca, que foi conquistando a virtude pela superação de conflitos no


exercício do viver e desenvolvendo a perspectiva ética que está
chamado a realizar.
O que procuramos nesta etapa é mostrar a dimensão ética
do si e isso significa, baseando-nos em Ricoeur, compreender o
projeto de vida boa em sua estrutura triádica: a estima de si, a soli-
citude para com os outros e a justiça em relação a cada um.
Ao nível ontológico, a hermenêutica do si nos oferece a
alteridade e mostra que a identidade só pode ser autenticamente
pessoal quando envolve a responsabilidade para assumir os confli-
tos que se apresentam e a busca de sua superação, seja ao nível
pessoal ou das relações interpessoais. Por sua vez, reconhecer que
a identidade sempre se apresenta como identidade simbolizada e
que requer interpretação, através da qual vai respondendo às per-
guntas: quem fala? quem é o agente ou paciente? quem é o narra-
dor? quem é o responsável? - é um trabalho constante de reflexão,
de interpretação do texto e da ação. Esse trabalho nos leva à auto-
interpretação, que nos encaminha e nos torna mais conscientes da
tarefa de ser pessoas.
Nesse trabalho de auto-interpretação também se faz pre-
sente o conflito das interpretações. O auto-testemunho como certe-
za de ser o autor do dizer e dos atos bons que nos aproximam do
bem viver, de uma vida em parte realizada que se aproximaria da
vida boa e da perspectiva ética. Esta vida boa, que caracteriza o
homem com seu olhar de apreciação sobre si mesmo, auto-
interpretando-se por meio da interpretação do texto de sua ação no
plano ético, se torna "estima de si". Este é o aspecto reflexivo des-
se projeto de vida boa. Reconhece o homem como digno de estima
pelas capacidades que desenvolve e se define como o ser que pode
avaliar suas ações, estimando como bons os fins de algumas delas.
O quem elo projeto ético ela vida boa é o sujeito da auto-
estima, é o regime da norma que leva ao auto-respeito. É uma diu-
lética sempre presente, mas só ela não basta. Deve avançar em di-
reção à forma clialógica, desde a co-estima do outro até a justiça
em relação a cada um. Compete-nos ago ra refletir sobre o aspecto

Coleção Filosofia- 140 131


Sonia Vásqucz Garrido

ético da estima de si no seu desdobramento como solicitude para e


com os outros.
O desdobramento do desejo de viver bem leva, num pri-
meiro momento, à problemática da reciprocidade, da mutualidade.
Ricoeur retoma os escritos de Aristóteles a respeito da amizade,
dos quais deseja conservar a ética da mutualidade: quer dizer, a éti-
ca da mútua modelação e da mútua redefinição da identidade exis-
tencial, do querer viver juntos (1991: 219).
O desdobramento da ipseidade, da auto-estima e o auto-
respeito envolvem o aspecto reflexivo da perspectiva ética em sua
forma dialética, na solicitude com e para os outros; nesse desdo-
bramento, encontra sua profundidade. Isto Ricoeur nos indica cla-
ramente, ao dizer:

"Por desdobramento (. .. ) entendo certamente uma ntptura


na vida e no discurso, mas uma ruptura que cria as condi-
ções de uma continuidade em segundo grau, tal como a es-
tima de si e a solicitude não podem ser vividas e pensadas
uma sem a outra" (I 991: 212) .

O desdobramento na vida e na decisão da auto-estima cria


condições tais que a estima e a solicitude são inseparáveis, uma
não existe sem a outra. A estima se apresenta em forma dialogal;
dizer "si" não é dizer eu; este "si" leva à alteridade, significa que o
outro está presente. A solicitude é o desdobramento da auto-estima
na sua forma dialogal, porque não é algo externo ou agregado à
própria estima. Temos necessidade do outro e de sua mediação.
Mediador entre o si, que pode avaliar as ações por meio das quais
pode estimar-se como bom, e o que se refere à capacidade de po-
der-fazer e o poder de julgar; temos necessidade da mediação do
outro.
A solicitude para e com os outros é a continuidade ela pró-
pria estima de si em outro grau, na qual se manifestam, de forma
clara, os sentimentos que são dirigidos aos outros. Recordemos que
Reboul diz que um dos papéis da educação é fomar pessoas livres e
educá-las para não permanecerem sós (1984: 113). Isto nos mostra
o importante papel que pode desempenhar a solicitude na nossa

132 Coleção Filosofia- 140


A Hermenelttica do si e sua dimensão ética

constituição do si ou em seu desenvolvimento, ao valorizarmos as


pessoas como insubstituíveis. Isto, por sua vez, nos leva à nossa
própria valorização como pessoas e a expor valores próprios de
uma sociedade, que busca ser cada vez mais ou destacar-se cada
vez mais por sua perspectiva humanitária.
Se a educação, dizíamos, tende a alcançar a vida boa, não
deve confomar-se à vida "entre amigos" (cuidado consigo mesmo e
solicitude para com o outro). Esta só pode ser boa se for extensível
a toda a humanidade, quer dizer, extensível àqueles que não vemos
em pessoa, mas reconhecemos como insubstituíveis, por meio das
instituições. Mais ainda: podemos acrescentar que somos respon-
sáveis pelas gerações futuras. Ademais, destacamos que é por in-
termédio das instituições que desenvolvemos nossa vida. Estas nos
mostram nossa temporalidade, a qual é fundamental para o reco-
nhecimento e constituição de nossa identidade pessoal.
As instituições, que são o ponto de aplicação da justiça,
nos levam a compreender o papel da distribuição; uma das caracte-
rísticas fundamentais de toda instituição é regular a repartição. A
distribuição não só se dá no plano econômico, mas também no re-
ferente a papéis, tarefas, vantagens e desvantagens. As instituições
asseguram o trânsito dos aspectos e relações interpessoais numa
sociedade; são responsáveis pela aplicação, tanto da justiça distri-
butiva como da justiça reparadora. A justiça distributiva é propor-
cionalidade (igualdade de relações entre as partes) e não igualdade;
a justiça reparadora é necessária para reestabelecer a justiça que,
em algum momento ou situação, não se deu.
Compreender o papel e valor das instituições é um dos
pontos que a educação formal necessita considerar, pois ela mesma
se dá dentro de uma instituição. Para que se veja a importância das
instituições bem como a importância de, por meio delas, exercer-se
o poder em comum, recordamos com Ricoeur as palavras de Han-
nah Arendt:

"O poder corresponde à aptidão do homem para atuar e


para atuar de modo combinado. O poder nunca é uma pro-

Coleção Filosofia- 140 133


Sonia Vásquez Garrido

priedade individual; pertence a um grupo e continua a


pertencer-lhe enquanto esse grupo não for dividido " 1•

A justiça, tanto a distributiva quanto a reparadora, leva-nos


a reconhecer o outro como si-mesmo e o si-mesmo como um outro.
Necessitamos da justiça para completar a via reflexiva da estima de
si; não basta só a estima a si mesmo e a solicitude para com os ou-
tros.

Bibliografia:
JUNG, Carl. El hombre y sus símbolos. Barcelona: Luis de Caralt Editor,
S.A., 1976.
REBOUL, Olivier. Filosofia da Educação. São Paulo: Companhia Edito-
ra Nacional, 5" edição, 1984.
RICO EU R, Paul. Amor y justicia (Lectures 1, 1991; Lectures 2, 1992).
Organização, tradução e introdução de Tomás Domingo Moratalla. Ma-
drid: Caparrós Editores, 1993, 125 páginas.
______ . O si-mesmo como urn outro. (Soi-même comme un autre,
1990). Trad. Lucy Moreira Cesar. Campinas: Papirus Editora, 1991, 432
páginas.

1
Cf. I-lannah Arendt, "Du mensonge à la violence", p. 153, in Paul Ricoeur, Si-
mesmo como um outro, p. 228.

134 Coleção Filosofia- 140


POR UMA PLURALIDADE DE ÉTICAS:
REFLEXÕES A PROPÓSITO DE
P. RICOEUR E E. DUSSEL

DaHilo Di Mamw de Almeida

O caminho de um consenso eventual só pode proceder


de um reconhecimento mútuo no plano da receptibilidade,
isto é, da admissão de uma verdade possível,
de proposições de sentido que nos são, antes de tudo, es-
tranhas.
P. Ricoeur, O si-mesmo como um outro p. 337.

A ética da libertação reflete filosoficamente


a partir deste horizonte planetário do sistema-mundo.
E. Dussel, Ética da libertação, p. 66

As considerações que se seguirão sobre o pensamento ético


de Ricoeur estão inseridas numa investigação mais ampla sobre o
caráter ético das relações entre europeus e latino-americanos (diá-
logo Norte-Sul). A contribuição de Ricoeur é fundamental para fa-
zer avançar uma questão que não se reduz a uma ética da "discus-
são". Ao contrário, ela precisa ser colocada, primeiramente, em
termos de uma "discussão" ética, ou seja, uma discussão que co-
mece pela aceitação de outras éticas tomadas não só como possí-
veis, mas como efetivas.
A motivação deste artigo vem do encontro entre duas vi-
sões distintas de ética, as de Paul Ricoeur e de Enrique Dussel, e se

Coleção Filosofia- 140 135


Danilo Di Manno de Almeida

concentra no problema da "universalidade" em ética. No meu en-


tender, a universalidade desempenha no campo das relações cultu-
rais o mesmo papel do "outro" da disciplina filosófica (ética ou
moral). Desse modo, o universal é o nome cultural da problemática
filosófica do "outro".
Embora no encontro das motivações de minhas reflexões
apareçam, de um lado, a filosofia da libertação e de outro, a filoso -
fia de Ricoeur, a discussão não será feita em nome ou a favor de
nenhum deles. Ainda que esteja identificado com muitas das rei-
vindicações da Ética da libertação de Dussel, sobretudo aquelas
que colocam a "Europa" no seu devido lugar na História mundial,
não estou de acordo sobre outros pontos. Mais especificamente,
não compartilho da sua estratégia de "subsumir" posições ou idéias
(nem do Norte nem do Sul) para construir uma ética - portanto,
não poderia "subsumir" qualquer filósofo (nem do Norte nem do
Sul) como "único" (para Dussel, Marx).
Assim, essas reflexões não "subsumü-ão" ou integrarão Ri -
coeur. Por outro lado, não se trata de criticar Ricoeur, mas de tentar
compreendê-lo na "economia interna" da produção de seu pensa-
mento ético. O que está exposto no problema mais amplo das rela-
ções éticas entre europeus e latino-americanos (e não poderá ser
explicitado longamente aqui) é a idéia de um ethos (entendido
como lugar). Para que essas relações sejam éticas, têm-se de pres-
supor uma leitura ou escuta ética do "outro". É isso que este texto
"cobrará" de Ricoeur ao tentar identificar em seu texto "Filosofia e
libertação" uma dificuldade prática, não teórica, de conviver com
esse "outro". Esse outro não pode ser apenas considerado a partir
dos estreitos limites de uma reflexão ética sobre o tema do "outro",
mas no difícil exercício do convívio com várias éticas. A dificulda-
de está, portanto, na convivência com a produção ética de outros
lugares que não seja o lugar-mesmo da Europa. Tenho a impressão,
o que incomoda não é a potência do outro, mas a sua efetividade-
que o outro não esteja num futuro mas em pleno exercício. Neste
sentido, apesar de algumas discordâncias, o ethos (lugar) da elabo-
ração da Ética da libertação de Dussel parecerá ser o mesmo deste

136 Coleção Filosofia- 140


Por !titia pluralidade de éticas

texto, porque, de fato, falamos de lugares vizinhos e, consequen-


temente, de éticas vizinhas.

I - O problema da fundação em ética e a questão da


universalidade

A contribuição de Ricoeur ao problema das relações entre


europeus e latino-americanos é muito significativa. A abordagem
de Ricoeur não se fará em termos de "crítica" 1, mas de exposição
de uma "economia interna" de seu texto, com destaque ao proble-
ma da fundação em ética. É a partir desse problema que tentarei
indicar a posição de Ricoeur no debate sobre o projeto europeu de
uma missão universalista da ética.

Ética e moral: o problema da fundação

Quero explorar melhor as questões implicadas na renúncia


ricoeuriana de um "começo em ética". Inicialmente, tomo o eluci-
dativo artigo "O problema da fundação em filosofia moral" (1978:
176-192). O princípio que governa o texto e sobre o qual Ricoeur
não cessa de insistir é o da anterioridade da ética sobre a moral: a
moral se funda sobre a ética2 • Se as "bases" éticas precisam ser
constituídas antes da moral, não se pode admitir, contudo, uma
fundação da ética.
Por isso mesmo, a discussão sobre a fundação mais primi-
tiva e mais radical para a filosofia moral não conduzirá, no final da
investigação, a um "começo". Esse ponto em que tudo começa é
mítico, pela razão que ninguém começa a história da ética. Nin-
guém está situado ou pode situar-se no ponto zero da ética (1978:
180). A idéia de um começo fundante faz parte da "ficcão" rousse-
1
Por exemplo, Dussel ( 1995: 42): atirma que sem a econômica (recurso que sua
Ética obterá em Marx), a hermenêutica (ricoeuriana) se torna "ideológica, idea-
lista e literalista'' . No meu modo de ver, trata-se de uma crítica desproporcional
em relação aos outros autores presentes no diálogo: Ch . Taylor, K.-0. Apel e R.
Rorty.
2
Essa insistência é explicitada abertamente neste texto de 1978 e é um dos pilares
de O si mesmo-como um outro.
Coleção Filosofia - 140 137
Danilo Di Manno de Almeida

auniana do Contrato social, em que os fatos são deixados de lado e


a perspectiva histórica substituída pela ficcionista.
Para evitar confusões entre ética e moral, Ricoeur desen-
volve o que chama de "rede conceitual da ética". As bases da ética
estão dadas em três momentos: a liberdade de um sujeito (reflexi-
viclacle), o outro (altericlacle) e as instituições (institucional). Daí
temos a seguinte definição ela ética: "o desejo de uma vida realiza-
da com e para os outros, em instituições justas" (1994: 16).
O ponto de "fundação" da ética não será encontrado e, no
entanto, pode-se designar a liberdade como seu ponto ele partida.
Entenda-se bem: da mesma forma que Ricoeur postula o sujeito
como "tarefa" (O conflito das inte1pretações), no campo da ética,
ele sustenta que a liberdade diz respeito à posição e não à sua pos-
sessão por um sujeito. Assim, o sujeito se põe no movimento da
tomada de posse da liberdade, através de seus atos e de suas ações.
O sujeito se posiciona entre um poder-ser e um ser-dado, entre um
fazer e um fato. É o distanciamento de si a si que permite caracteri-
zar a ética como um percurso de atualização, uma "odisséia da li-
berdade" através do mundo das obras. A ética começa, portanto,
pela experiência da atestação da própria liberdade do sujeito, esse
primordial "eu posso" e a história real onde eu atesto esse "eu pos-
so" (1978: 177).
O segundo elemento da rede conceitual da ética faz apare-
cer o "outro": a segunda pessoa ou a idéia de liberdade na segunda
pessoa. Aqui, não saímos ainda do domínio da subjetividade, que
caracteriza o primeiro momento, visto que, para Ricoeur, o enten-
dimento da minha liberdade (ser livre e querer a liberdade) é requi-
sito para querer a liberdade para os outros. A liberdade de outra
pessoa é posta "por reduplicação analógica da minha liberdade".
Um outro movimento é solicitado: o que era limite para minha li-
berdade (inadequação de si a si) passa a ser conflito, com a intro-
dução da segunda pessoa, quer dizer, a atualização de meu ato (to-
mar posse de minha liberdade) defronta-se com a ação do outro3 .

'(1978: 178: Ricoeur está em acordo com Husserl (da Quinta meditação cartesia-
na) : não pode existir problema da segunda pessoa se eu conheço o sentido do

138 Coleção Filosofia- 140


Por li!lia plumlidade de éticas

Assim, estamos no domínio da ética no sentido que o para-si do


etlws não é ainda o para-outros do mores.
O encontro entre duas pessoas aponta para o terceiro mo-
mento da ética: o institucional. Nesta ocasião será necessário intro-
duzir o terceiro momento da ética, o institucional. À instituição
cabe cumprir o papel de uma "não-pessoa", de uma "objetividade,
realizando um papel medidor entre duas liberdades. O momento
institucional reforça a idéia de que não há meios de situar-se no
ponto zero da ética, porque os sujeitos já se encontram situados:
cada ação é efetivada somente através de estruturas de interação,
como um instituinte-instituído. Não poderá haver "começo institu-
cional" porque cada pessoa se encontra já dentro do instituído. Por
conseguinte, "todo recurso ao estágio pré-institucional só pode ser
enganador" (1978 : 189). O que leva também a concluir que a histó-
ria da liberdade é uma história mediada pelas instituições. Como
diz Ricoeur em outro texto: "Tal é a força do presente - equiva-
lente da iniciativa na escala da história: é ela que dá às nossas visa-
das éticas e políticas sobre o futuro, a força de reativar as potenci-
alidades irrealizadas do passado transmitido" (1986: 266).
Quando "entra" a moral? Para Ricoeur, a moral é uma se-
gunda etapa e se explica somente por causa da violência. Se não é
possível evitar que desejo faceie a obrigação, que o optativo do de-
sejo da ética passe ao imperativo da moral, do desejo positivo à
interdição negativa, é por causa da violência (1994:16). O institu-
cional não está no nível da moral, ao contrário, enquanto ele é um
dos momentos da ética, ele a antecede. Como diz Ricoeur em O si-
mesmo como um outro, no nível ético, "é por costumes comuns e
não por regras constrangedoras que a idéia de instituição se carac-
teriza fundamentalmente. Somos por esse meio levados ao éthos de
onde a ética tira seu nome" (1991: 227) . Essa aproximação entre
instituição e éthos vem, portanto, marcar o primado do viver-junto
sobre a organização política, caracterizada pelo problema do poder
e da violência.

"eu" e do "ego''. O outro é de fato outro eu, um alter ego- a/ter sim, mas alter
ego.
Coleção Filosofia- 140 139
Danilo Di Manno de Almeida

Mais enfaticamente ainda, é preciso ter claro que as insti-


tuições não estão contra a liberdade, visto que elas mesmas fundam
a liberdade (regrando as relações entre as pessoas) pela introdução
da lei, através de valores, normas e do imperativo. A moral se fun-
da na ética e, desse modo, nas instituições. Retomarei essas ques-
tões no final do artigo.

Do eurocentrismo à articulação dos "universais"

As concepções éticas que acabamos de ver explicam, em


parte, a posição de Ricoeur sobre a questão do universalismo em
ética. Se, de um lado, a permanência de Ricoeur no movimento da
tradição fenomenológico-hermenêutica não o faz repetir rude curo-
centrismo de seus epígonos, Husserl e Heidegger, por outro lado,
ele não esposará- em toda a sua extensão- o projeto universalista
da ética européia (Apel). Em outra direção, Ricoeur sugerirá mes-
mo algo que eu chamaria de "dialética dos universais", pelo fato de
admitir a articulação entre "universais" pretendidos e "universais
reconhecidos".

A ideologia eurocentrista: Husserl e Heidegger - Hus-


serl é aquele que, segundo Deleuze e Guattari, põe em evidência o
"privilégio do sujeito transcendental propriamente europeu" (1990:
94). De fato, Husserl pretende assegurar o privilégio científico e
filosófico da Europa: "ciênca e filosofia enquanto que démarches
teóricas universais, desinterassadas e infinitas, são greco-européias
e naàa mais". De onde a prerrogativa da filosofia européia de con-
servar "a função de uma reflexão teórica, livre e universal, que en-
globa também todos os ideais e o ideal do tudo" que deve reger e
legislar sobre outros povos: "É certo, numa humanidade européia
[sic!], que a filosofia tenha que exercer sua função como sendo a
função arcôntica [poder de legislar] da humanidade inteira" (Hus-
serl, 1976: 370-1). A Europa, lembremo-nos, inclui o continente e
os EUA (Ibid.: 352).
Os outros povos fazem outra coisas que a "pura Theoria",
apanágio da ciência greco-européia, às ''filosofias" orientais [entre

140 Coleção Filosofia- 140


Por uma pluralidade de éticas

parênteses no seu texto] "que não ultrapassam a maneira "mítico-


prático de considerar o mundo" (lbid.,: 363-5). Demasiadamente
distantes da filosofia, eles sempre são somente "gente de ofício"
(Droit, 1984: 204). Do ponto de vista das relações culturais, expli-
ca-se porque preconceitos em relação às potencialidades intelectu-
ais de outros povos (eu diria, potencialidade de "produzir" sua éti-
ca), vêm sempre acompanhados de um preconceito de origem cul-
tural. Segundo Husserl, no seio de Europa a humanidade está ver-
dadeiramente em casa- Heimat ("chez soi", na tradução francesa).
Por causa desta condição, as outras culturas são incitadas a se eu-
ropeizar ainda mais. Evidentemente, o inverso é viável: " nós não
idianizaremos (por exemplo) jamais" (Husserl, 1976: 353-54).
O próprio Ricoeur chamou a atenção para a infeliz distin -
ção entre Menschenheit et Menschentwn que sustenta as considera-
ções acima. Veja que Menschentum tem sua essência na razão e
designa o homem da compreensão, aquele capaz de dar sentido, o
homem da humanidade significante, capaz de ser feliz. Mensche-
nheit nomeia a humanidade quantitativa, enumerativa ou em exten-
são (Ricoeur, 1987: 39). O primeiro é o europeu; o segundo, o não-
europeu. Visto que o segundo não é um sujeito do sentido, "a hu -
manidade enumerativa (Menschenheit) se subordina à humanidade
significante (Menschentum)" (Husserl, 1976: 21).
Quanto à Heidegger, o preconceito é "duplo" . A pretensa
superioridade heideggeriana tem duas dimensões: superioridade
"intra-européia" (a dos alemães em relação aos demais povos da
Europa) e superioridade "extra-européia" (quanto aos demais po-
vos do planeta). Citarei apenas um texto da Introdução à metafísi-
ca, que parece ser suficiente para caracterizar a rudeza desta posi-
ção eurocêntrica: "( ...)é por isso que nós temos posto a questão em
direção ao ser em conexão com o destino da Europa, onde se en-
contra decidido o destino do planeta (Erde) e é preciso considerar
ainda que ao interior deste destino, para a Europa mesmo, nosso
ser-aí proventual [geschichtlich: historiai] se revela como o centro"
(1967: 53). Aqui o megalomanismo, somado à dimensão espiritual,
tomou uma dimensão ecológica, para além da ideológica-

Coleção Filosofia- 140 141


Danilo Di Manno de Almeida

geográfica de Husserl. Em que medida o dizer de Heidegger é mais


grave que aquele de Husserl, isso não nos cabe analisar aqui 4 .

Dialética dos "universais": Ricoeur

O tratamento que Ricoeur dá ao problema da pretensão


universalista da ética (moral) européia está inserido no contexto da
Ética da discussão (Apele Habermas). Parece-me que Ricoeur não
caminha toda a extensão da idéia de uma "missão universalista da
Europa". tal como propugnada por Apel5 . Não que Ricoeur desis-
tisse da idéia de um "universalismo ético" em nome da "incomen-
surabilidade" das culturas, como o fazem alguns pós-modernos
(Apel, 1993: 495-96). Ao contrário, Ricoeur endossaria a idéia de
uma "ética universalista (... ) uma ética global da humanidade"
(Jbid.: 493), para a qual universalista quer dizer "rei vindicação do
universal com o seu domínio de validade" (1991: 155). Ricoeur
estaria inclusive de acordo sobre a idéia de que "todos os argu-
mentos desenvolvidos contra o eurocentrismo ideológico formam
feitos em nome da filosofia universalista da Europa" (Apel, 1993 :
492).
A discordância não estaria sobre a pretensão universalista
da ética, mas sobre a fundação mesma da ética. Ao pretender con-
ceber o "equilíbrio entre ética da argumentação e convicções bem
pesadas", Ricoeur se desprende do projeto de universalização de
tipo kantiano e, por aí, deixa de partilhar "a pretensão de fundação
última". É por causa da démarche hermenêutica de sua filosofia
que ele renuncia, por princípio, à idéia de "fundação última" ( 1991:
330-31 ). Contudo, não deixa de propor uma ampliação da Ética da

4
Na Introdução à metafísica ainda (p. 67) Heidegger chega a dizer que a língua
grega é - tal como a língua alemã - do ponto de vista das possibilidades do
pensar, a mais poteme de todas e aquela que pode expressar mais a líHgua do
espirito. Aqui vemos em que medida a ontologia implica sempre uma moral
(e/ou ética), independente das intenções (morais) de se manter no campo do
ontológico.
5
Restrito ao problema da fundação. não vou entrar aqui nos detalhes da discussão
de Ricoeur com os representantes da Ética do discurso (e da comunicação). Ver
sobretudo o nono estudo de O si-mesmo como 11111 outro.

142 Coleção Filosofia- 140


Por lfllla pllfralidade de éticas

discussão ao afirmar que "a ética da discussão não deve ser so-
mente o lance de uma tentativa de fundação pela via regressiva da
exigência de universalização, mas também o de uma provação pela
via progressiva no plano da prática efetiva" (Ibid.: 331).
Por meio de um procedimento dialético, Ricoeur intencio-
na superar os extremos do universalismo (processual) e do relati -
vismo (cultural) 6 ; sustenta validade da "pretensão universal" da
ética e, ao mesmo tempo, procura as condições de efetivar uma
"tomada real sobre a realidade" ou para operar um "julgamento em
situação" (1991: 334 e 339). É dessa maneira que Ricoeur procura
manter a pretensão à universalidade e a exigência dos contextos e
são esses motivos que o levam a defender que o ponto consensual
entre diferentes culturas se dará somente através de "um reconhe-
cimento mútuo no plano da receptibilidade, isto é, da admissão de
uma verdade possível, de proposições de sentido que nos são, antes
de tudo, estranhas" (Ibid.: 337 -338).
Como se daria essa negociação? De um lado, apresentam-
se os universais da "democracia ocidental" (temas que circundam
em torno dos direitos humanos, por exemplo), aos quais Ricoeur
advoga a manutenção da "pretensão universal" . Entretanto, ele
mesmo reconhece que esses direitos estão cunhados de particula-
rismo, pois, são gerados pela coabitação das nações européias e
ocidentais, onde foram formulados pela primeira vez. Mas, questi-
ona Ricoeur, "isto não quer dizer que autênticos universais não es-
tejam grudados (mêlés) a esta pretensão". Assim, será através de
uma longa discussão entre as culturas que saberemos o que "mere-
ce verdadeiramente ser chamado de 'universal"' (1991 a: 266) .
Do outro lado, comparecem as demais culturas. O que nos
leva a pensar que na defesa de uma igualdade de pretensão durante
a discussão. Afirma Ricoeur: "inversamente, nós só faremos valer
nossa pretensão à universalidade se admitirmos que outros univer-
sais em potência estão também enterrados (ei!fouis) em outras cul-

6
Efetivamente, a dialética entre a argumentação e a convicção permite a Ricoeur
abraçar a tese da exigência de universalidade e o reconhecimento das limitações
contextuais, termo que Ricoeur prefere aos termos historicismo ou comunita-
rismo ( 1991: 333-35).
Coleção Filosofia- 140 143
Danilo Di Manno de Almeida

turas consideradas exóticas" (199laa: 266 e 1991: 337). Surge daí


o que eu chamei de dialética dos universais: entre os "universais
pretendidos" e os "universais em contextos ou de universais poten-
ciais ou incoativos" (1991: 338). É por meio de uma argumentação
entre "pessoas interessadas" de todas as culturas que os "universais
pretendidos" podem também vir um dia a ser "universais reconhe-
cidos" por todas as culturas (1991: 338).

11. Filosofia e libertação

Antes de prosseguir na proposta deste artigo, gostaria de


destacar no avanço das postulações ricoeurianas em favor das con-
dições eqüitativas do diálogo entre culturas. Quão longe estamos
da ideologia eurocentrista e quanto é mais fina a sua análise que as
de uma pretensão à missão universalista da Europa! De fato, o be-
nefício da recusa de fundação em ética é o reconhecimento da pos-
sibilidade de efetivar um diálogo em bases muito mais universa-
listas que as da pretensão particularista da Europa. Acredito que, da
forma como foi apresentada, a concepção ética de Ricoeur abre-se
muito mais facilmente ao diálogo com outras culturas 7 .
Confesso que, ao ponto em que chegamos, encontramos
com uma questão delicada e que será apenas enunciada aqui . É o
momento de colocar a "economia interna" da argumentação ricoeu-
riana frente a outras concepções éticas, no caso, a Ética da liberta-
ção. O momento é delicado porque, de uma certa forma, é preciso
dar razão a algumas "impressões" de Ricoeur sobre as filosofias
latino-americanas da libertação, pelos motivos que exporei mais
adiante. Por outro lado, a "leitura" ricoeuriana das filosofias latino-
americanas demonstra uma certa dificuldade em conviver com ou-
tras concepções éticas

7
É certo que, para melhor julgamento, ter-se-ia de investigar mais profundamente
as teses da Ética da discussão. No entanto, visto que o único ponto considerado
aqui foi o da "fundação" em ética, não acredito ter cometido um julgamento te-
merário a respeito dos defensores daquela corrente ética.

144 Coleção Filosofia- 140


Por uma pluralidade rle éticas

"Universais incoativos"? - Ao introduzir a participação


de Ricoeur no debate com as filosofias latino-americanas da liber-
tação, gostaria de por "à prova" a igualdade de pretensão defendi-
da por Ricoeur em relação aos "universais". Esclareço de início
que não vou entrar nos termos do debate, mas ater-me à maneira
como Ricoeur expõe e defende seus argumentos. De maneira es-
quemática tentarei ressaltar uma grande dificuldade da ética ricoeu-
riana: sua dificuldade não está em conceber as possibilidades do
outro, mas em conviver com o '"outro" Um outro que não deve ser
visto apenas como "possível" portador de um "universal em poten-
cial", mas como um outro efetivo, gozando do direito de, ele tam-
bém, oferecer "sua pretensão à discussão".

Reivindicações, Reservas e Alertas - Ricoeur faz consi-


derações sobre as filosofias latino-americanas da libertação a partir
de dois referênciais: as grandes temáticas ocidentais - entenda-se
européias - às quais estão ligadas as experiências históricas de li-
bertação e, em segundo lugar, a tradição filosófica à qual ele se ali-
nha, a saber, filosofias da subjetividade (de Descartes e Locke a
Kant e Fichte). Daí ele tirará três componentes de uma certa "con-
cepção ético-política da liberdade". Apresentarei essa parte seguin-
do a estrutura geral do texto "Filosofia e libertação" (1993), na
qual destaco três conjuntos argumentativos que, na minha leitura,
teriam a seguinte estrutura: "'reivindicação/reserva/alerta". Isto
quer dizer que a cada reivindicação da cultura e da filosofia euro-
péia, são impostas reservas e alertas à filosofia da libertação.
Primeiro conjunto: Reivindicação: o que o pensamento
ocidental tem de característica e de melhor a oferecer é maneira
autocrítica - de fundar e de criticar - as noções que elaborou, por
exemplo, a democracia. A reserva consiste no seguinte: as filoso-
fias da libertação acentuam preferencialmente a dimensão econô-
mica da opressão e não a dimensão política. Alerta sério (avertis-
sement sérieux): se a crítica da opressão econômica não passa pela
crítica da dominação política, e se se pretende ir à libertação eco-
nômica por não importa qual caminho político, essas filosofias es-
tão condenadas a repetir o leninismo (vingança da história) .

Coleção Filosofia- 140 145


Danilo Di Manno de Almeida

Segundo conjunto: Reivindicação: diante dos problemas


relativos aos problemas do universal e do concreto, a grande expe-
riência de aprendizagem histórica ela Europa ocidental atesta que
ela gerenciou seus conflitos e inventou procedimentos de compro-
misso recorrendo à argumentação e à discussão Reserva: embuti-
ela, não expressa, que eu resumiria no seguinte: os caminhos do di-
álogo passam pela "discussão" inclusive pela discussão sobre a "li-
bertação" Alerta: ou o discurso ou a violência (E. Weil), um dia ou
outro, a negociação do conflito Norte-Sul será arbitrado numa ne-
gociação
Terceiro conjunto: Reivindicação: as discussões em torno
da idéia de justiça, é o que a Europa tem de melhor a oferecer a
respeito elo direito e das instituições jurídicas, ainda que os latino-
americanos vejam nisso assuntos internos do debate europeu soci-
al-democrata. Reserva: às soluções simplistas elo desenvolvimento
linear ou da busca de uma esquema arborescente elo desenvolvi-
mento. Alerta: somente a história complexa e confusa elos euro-
peus dá o direito de colocar os latino-americanos sob aviso contra a
tentação dos "encurtamentos" (raccourcis) históricos. O risco é ele
cair novamente no "erro trágico elo leninismo" se não se leva em
conta que "a igualdade diante a lei é a condição política da liberta-
ção econômico-social".
Não resulta desta argumentação que a Europa e suas no-
ções éticas apareçam como "quase-objeto" ou "não-pessoa" nas
relações entre europeus e latino-americanos? Quer dizer, a Europa
aparece duas vezes: primeiro como posição de um sujeito (euro-
peu) diante do outro (latino-americano) e, depois, como instituição
reguladora das relações entre essas duas "pessoas"? A via para esta
conclusão já está dada nos dois primeiros "momentos" da ética: o
outro como outro eu, um alter ego, alter mas alter ego. Situação
complicada por outros questionamentos.
Ricoeur se pergunta se: a) a história européia (que elimi-
nou totalitarismo) é um obstáculo aos projetos de libertação latino-
americana? b) os totalitarismos que afrontam os latino-americanos
são diferentes daqueles que conheceram os europeus; c) é necessá-
rio admitir que o terceiro mundo deve esperar aquilo que os euro-

146 Coleção Filosofia- 140


Por uma pluralidade de étims

peus deixaram de esperar, a saber, o socialismo. Se nenhuma des-


sas possibilidades forem aceitas por causa de posições firmadas do
lado das filosofias da libertação, é ainda a Europa (por suas noções
e sua história) que deve servir de modelo. Pois, segundo advertên-
cias de Ricoeur, os filósofos da libertação devem tirar todo pro-
veito do fracasso da economia administrativa dos países comunis-
tas e promover, assim, revisões de suas posições. Não é o caso de
se pronunciar da mesma forma que antes da ruína do totalitarismo
soviético. Por outro lado, os latino-americanos não podem impedir
os europeus de defender a liberdade política como condição in-
contornável da produção tecnológica e econômica, e como compo-
nente da libertação econômica e social na Europa.
Não vou retomar cada um dos momentos da argumentação
ricoeuriana. Retomarei indiretamente as questões pronunciadas
acima através do problema da universalidade em ética.

111. Uma pluralidade de éticas (ethea)?

Fica a impressão de que, no campo das relações, a dificul-


dade não está em co/lceber o "outro", quer dizer, encontrar um lu-
gar para o "outro" no amplo conjunto de minhas concepções éticas,
mas em conviver com ele. Porque, na concepção, o "outro", "estra-
nho" que não é a/ter ego, está no âmbito da "potencialidade", ex-
pectativa presente. Nem no nível ético se concebeu ainda outros. A
dialética ainda é a do si-mesmo (como) e ele um outro. Não há rela-
ções entre outros. É difícil conceber também que esse "estranho"
traga algo diferente daquilo que eu supostamente esperava ver nele.
Não é isso que se espera, que o "incoativo" terá quando da sua ma-
nifestação a forma de um "universal"? Ora, por que a expectativa
de que a "verdade possível" terá justamente a forma "universal"?
Impossibilidade ele conceber apenas outros e se perceber como ou-
tro de um outro?
O universal não é um bem europeu, um procedimento ca-
racterístico de argumentos centralizadores - eurocêntricos por ba-
tismo? O universus (reunido em um todo) parece não ser mais do
que a forma discursiva e performativa do sillgularis, que se impõe,

Coleção Filosofia- 140 147


Danilo Di Manno de Almeida

a partir de um centro de poder, como o modelo - "único" para to-


dos os "outros" (a globalização ou mundialização segue a mesma
lógica).
É sob essa forma que encontramos a questão do universal
em Dussel? A Ética da libertação pode colocar suas pretensões a
partir de seu próprio lugar (ethos) e não simplesmente se limitar à
discutir as "pretensões universais" da Europa? Vou conduzir o fim
deste texto para essa questão, ao meu ver, fundamental para o pro-
blema das relações éticas entre nós, "extra-europeus" (Heidegger)
e os europeus.
Tomemos a noção de ethos . O ethos é empregado aqui no
seu sentido mais físico, mais exatamente geográfico 8 . Por que, no
lugar de pensarmos em "universais" não pensamos em "lugares",
pensando a ética a partir de uma pluralidade (aberta à solidarieda-
de, mas, talvez, não às teorias)? Evidentemente, não escapa à Dus-
sel a questão do lugar. Para ele, o domínio ético indica o espaço, o
lugar ou o momento da exterioridade; a ética é exercida de "fora"
da Totalidade européia (1991: 150). Mas, por que, perguntaria a
Dussel, conceber ainda a ética em termos de unicidade? A ética,
diz ele, é "una e absoluta", ao contrário das morais que são nume-
rosas (sistemas históricos, de culturas, de classes sociais, de etnias,
morais setoriais), relativas, históricas e transcendentais (lbid: 150).
Por que não conceber "exterioridades", "lugares"? Não é a partir
de uma pluralidade de lugares que as éticas serão efetivamente ou-
vidas, cabendo a cada um identificar éticas de libertação e éticas de
consolidação do estado de dominação?
Para não me alongar, colocaria a Dussel as mesmas
questões sobre a convivência com outras éticas filosóficas,

8
Como se sabe, há duas maneiras de grafar ética em grego: a) erlws (com éps ilon
inicial) se refere ao comportamento que resulta de uma repetição constante dos
mesmos atos (habitual, oposto ao natural - physys); o hábito é uma disposição
permanente para agir de uma certa maneira. como possessão estável: b) Erhm·
(com inicial era) designa a casa do homem; tem sentido de um lugar, de estada
permanente e habitual, de um abrigo protetor (Lima Vaz, 1993: 11-16). Em Ho-
mero, por exemplo. o erhos tem sempre o sentido concreto de habitat, de escon-
derijo e refúgio, ainda que o outro sentido (de costumes coletivos) não lhe seja
estranho (S. Verginieres, 1998: 15ss)

148 Coleção Filosofia- 140


Por 1117/a pl11ralirlarle rle éúca.r

inclusive com a de Ricoeur. Como Dussel lê criticamente Ricoeur?


Na base de sua leitura está a tentativa de detectar "as diferenças e
as possibilidades construtivas de um diálogo mutuamente criador"
(1995: 7), mas, no desenvolvimento de seu texto, parece bloquear
toda possibilidade de entendimento mútuo. Pois, como chegar a
esse ponto se para ele "uma filosofia como a de Ricoeur precisaria
de muitas novas distinções para poder dar conta da complexidade
assimétrica da hermenêutica nos países periféricos do Sul" (Ibid.:
25 , n. 72)? Por que reivindicar isto? O próprio Dussel reclama de
Ricoeur o que ele recusa em Ricoeur- que sua filosofia dê conta
do "confronto assimétrico entre culturas diversas (uma dominadora
e outras dominadas)"! (lbid.: 17).
Para Dussel, Ricoeur não faz a passagem da hermenêutica
à econômica, razão porque "a Filosofia da libertação iria apresentar
uma situação mais complexa e concreta, o que exigiria, então, um
novo desenvolvimento da 'hermenêutica', com transição
obrigatória para a 'econômica" (1995: 30). Incompreensão ética
mútua, entre Ricoeur e Dussel? Se Ricoeur não se detêm no exame
das relações de dominação entre um leitor e os textos, Dussel vê aí
a necessidade de cobrir uma lacuna: "quando a filosofia de Ricoeur
pareceria estar terminando o seu trabalho, só então começa o da
Filosofia da libertação" (Ibid.). Por que essa recusa em aceitar
lugares (éticos) e procurar pontos de diálogo sobre outro plano?
Se a econômica necessária à hermenêutica da filosofia da
libertação combina Apel e Habermas (1995:32), o que esperar
desse continuísmo de lugares, desse universalismo da gestação de
idéias? Por que a insistente postura de "subsumir" pensamentos
europeus, como se lê na Ética da libertação (2000: 12)? Até que
ponto "incorporar contribuições ao discurso da ética da libertação"
(ibid.: 16)? Até o ponto de afirmar convictamente que "Marx é o
único filósofo moderno que elaborou uma 'econômica' adequada"
(1995: 40)? Marx como possibilidade dos filósofos do Sul de
pensar uma "filosofia da libertação perante a dom inação do Norte,
mostrando-nos críticos"? Mesmo fazendo uma crítica marxista a
Ricoeur - que confunde "filosofia econômica" com "stalinismo" e
lava suas mãos filosóficas ('mãos limpas', diria Sartre) da sorte

Coleção Filosofia - 140 149


Danilo Di Manno de Almeida

desgraçada da maioria da Humanidade atual" (lbid.: 41-42) -,


Dussel se põe de acordo com o filósofo hermenêutica sobre um
ponto crucial. Trata-se de um ponto visto acima, fundamental para
aqueles que renunciam à fundação ética, a saber, o da
inesgotabilidade do passado histórico.
A questão é: por que Dussel não emprega a si mesmo o que
poderia ser considerado sua grande contribuição à discussão sobre
a universalidade? Qual seja, o esforço teórico que visa "situar a
problemática da ética num horizonte planetário para tirá-la da tra-
dicional interpretação meramente helenocêntrica ou eurocêntrica"
e, desta maneira ampliar a discussão sobre a ética "mais além da
ética filosófica curo-norte-americana atual" tem como conseqüên-
cia "abrir o questionamento para panoramas mais amplos de 'mun-
dialidade"' (2000: 19). Ao "paradigma eurocêntrico" Dussel opõe
o "paradigma do horizonte mundial" que consiste em "romper com
esse horizonte redutivo para poder abrir a reflexão ao 'âmbito'
mundial, planetário" (lbid.: 51). Por que, então, não vislumbrar
nesta abertura ao "horizonte planetário" uma pluralidade de éticas?
Por que o "paradigma do horizonte mundial" tem de tomar o parti-
cularismo de um Marx para combater o paradigma eurocêntrico.
Parece que ao próprio Marx faltou a sensibilidade dos lugares ou-
tros que a Europa (remeto a uma discussão que desenvolvi em ou-
tro lugar- ver texto de 1998).

Pluralidade ética não quer dizer pulverização, nem disse-


minação de uma e mesma Ética. Quer dizer, voltar a atenção aos
discursos de outros lugares (ethea). Não privilegiar nenhuma
"pretensão" universal. Primeiro, escutar a ética que os outros pro-
duzem; em segundo lugar, escutar eticamente os outros. Mas esse
"outro" não é o outro de um "si-mesmo" e nem o "outro" do euro-
peu. Por isso, escutar eticamente o outro não é colocar-se na atitu-
de bem comportada, numa moral da escuta, para reconhecer os "di-
reitos" que o outro tem de elaborar sua ética. Não se trata do res-
peito "moral" diante da alteridade. Escutar eticamente o outro tem
dois sentidos: aceitar a pluralidade de ethos (ethea) e escutar o ou-
tro sem perder seu próprio ethos, seu próprio lugar. Tentar ouvir as

150 Coleção Filosofia - 140


Por uma p!Nralidade de éticas

outras éticas é procurar habituar-se a pensar em termos de lugar e


não em termos do universal.
A libertação, ou ela se dá em lugares ou ela é apenas u
tema ... recorrente e, parte da semântica da dominação. A força d
t
libertação não está em ser um discurso de um lugar projetando e -
tabelecer-se em todos os lugares, como são os programas (modela-
dores) de dominação. A força da libertação está em que ela se ~
simultaneamente em vários lugares, podendo espalhar-se com
mesma intensidade para mais lugares. Assim, os discursos de l -
bertação -engajados na libertação do lugar e, neste caso, discurs
ético de libertação - não se torna o discurso, mas junta-se a um
pluralidade de outros discursos de libertação. A dominação te
um projeto único, universal e bem definido: dominar até o limite ..
evitando apenas eliminar totalmente aqueles são consumidos n
manutenção do estado ele dominação. A universalidade da libert -
ção é plural, como o são os lugares. Em vez de controlar e unifo~­
mizar os discursos, a libertação os pluraliza e os faz vibrar nu 1a
escala universal: libertar para que sempre um maior número, e n
limite, todos, possam gozar essa magnífica experiência de viver o 1
para que todos façam do viver uma experiência magnífica.

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