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ARISTÓTELES

ETHICA NICOMACHEA I 13 ...111 8


TRATADO DA VIRTUDE MORAL

Marco Zingano
Tradução, notas e comentários

Obras Comentadas
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A coleção Obras Comentadas publica traduções comentadas de obras de filosofia.
A série sobre seções temáticas das obras de Aristóteles é organizada e produzida
por professores e pesquisadores universitários de reconhecido trabalho na área e
são discutidas previamente pelo grupo de pesquisa sobre filosofia aristotélica,
dirigido por professores da USP e UNICAMP; a versão final e o comentário,
porém, são de inteira responsabilidade do autor. A série de estudos aristotélicos
visa colocar à disposição do leitor traduções em língua portuguesa, com comentá-
rio acadêmico de natureza filosófica e filológica, no intuito de promover a cultura
clássica e, especialmente, a reflexão sobre a filosofia de Aristóteles.

ISBN 978-85-88023-98-7

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9 788588 023987 >
INTRODUçAO

I. TRATADO DA VIRTUDE MORAL

Entre as obras de Aristóteles que a tradição nos legou, encontramos quatro


tratados: (i) Ethica Nicomachea, (ii) Ethica Eudemia, (iii) Magna Moralia e (iv)De
virtutibus et vitiis. Este último, um curto tratado que ocupa as páginas 1249a26
- 1251b37 da edição Bekker, é seguramente apócrifo e pode ser deixado de
lado. A Magna Moralia, que, pelo nome, parece ser a maior, é, no entanto,
menor do que as duas outras Éticas; na verdade, seu nome deriva do fato de
estar dividida em dois longos livros, o primeiro com 34 capítulos, ocupando 17
páginas Bekker, o segundo com 17 capítulos repartidos em 15 páginas Bekker
(os livros da EN giram em torno de 8 - 10 páginas Bekker). Há ainda contro-
vérsia sobre a autenticidade ou não desta obra; a opinião mais freqüente é que
se trata de um curso de ética proferido pelo jovem Aristóteles, cuja transcri-
ção, contudo, provavelmente foi feita após sua morte (o que explicaria alguns
detalhes do grego, mais próximo do demótico do que do clássico ateniense).
Convém salientar que, conceitualmente, a MM mostra mais proximidade com
a EE do que com a EN; neste sentido, seu uso e destino estão ligados ao modo
como considerarmos a relação entre a EN e a EE.
Por longo tempo, a EE foi considerada uma obra de Eudemo de Rodes,
aluno de Aristóteles e pretendente à sua sucessão no Liceu; a edição de Su-
semihl ainda se intitula Eudemi Rhodii Ethica. Muito provavelmente Eudemo
esteve envolvido na edição da Metafísica (a seu sobrinho Pasicles, aliás, é ge-
ralmente atribuída a edição do livro a) e talvez também tenha-se envolvido
na edição deste tratado, mas, atualmente, a opinião dos intérpretes é que se
trata de um escrito genuíno de Aristóteles. Na verdade, atualmente o ponto
controverso é justamente explicar por que temos dois tratados de ética escri-
tos por Aristóteles no Corpus aristotelicum (o que é um caso único). A situação
torna-se ainda mais complexa quando se leva em conta o fato que três livros
são comuns às duas Éticas (EE IV - V - VI = EN V - VI - VII). Por muito

Introdução I 9
tempo, prevaleceu a tese segundo a qual estes livros comuns eram originários
da EN; tendo ocorrido o desaparecimento dos livros IV, V e VI da EE por
algum extraordinário infortúnio, eles teriam sido substituídos pelos livros cor-
respondentes da EN. Com base sobretudo nos trabalhos de Anthony Kenny,
porém, a opinião corrente é bem diferente. Pensa-se hoje que os livros comuns
pertenceram originariamente à EE e dali foram transpostos, eventualmente
com algumas adaptações, à EN. Mais adiante, fornecerei alguns detalhes sobre
como concebo a relação entre estes dois tratados; de qualquer modo, é ganho
da literatura do séc. XX a inequívoca ascensão da EE às obras autênticas de
Aristóteles.
Enfim, a EN é a obra ética mais conhecida de Aristóteles e, também, a
mais comentada, e isto desde a Antigüidade. O título da obra não é claro
nem aparece como tal nos catálogos mais antigos das obras de Aristóteles.
Pode-se entender por Nicomachea tanto que o livro foi dedicado (pelo próprio
Aristóteles) a (com mais probabilidade) seu filho ou a (com menos probabili-
dade) seu pai, ou mesmo que ele tenha sido editado por seu filho. O mesmo
vale para a EE: por Eudemia se indica ou bem que o tratado foi dedicado ao
amigo Eudemo de Chipre (menos provavelmente) ou ao discípulo Eudemo
de Rhodes (mais provavelmente), ou que foi editado por este último. Já que
não é mais possível obter clareza neste assunto, pois a única coisa inconteste
é que se precisava de dois títulos diferentes para distinguir as obras, sem que
possamos saber o que eles dizem exatamente. Nestas circunstâncias, é con-
veniente usar o título latino, Ethica Nicomachea, ou, na versão aportuguesada,
Ética Nicomaquéia, sem lhe atribuir maior importância do que a capacidade de
distinguir uma obra da outra',
A EN tem uma estrutura bastante clara, a despeito de certos problemas
de edição. Os livros antigos não continham divisão em capítulos; no esquema
a seguir, divido-os segundo os capítulos da edição Bekker, adotados também
por Susemihl (Bywater os dá no corpo do texto em números arábicos), que
remontam pelo menos à versão latina de Grosseteste (circa 1260)ii:

I 1 - 3 : Objeto e método do estudo


4 : Crítica da doutrina platônica do bem
5 - 12 : Definição de felicidadee sua confirmação nas opiniões antigas

IO I Ethica Nicomachea I 13 - UI8


13 : Virtudes morais e intelectuais
II 1 - 9 : Definição de virtude moral; a noção de mediedade
III 1 - 8 : Estudo do ato voluntário e da escolha deliberada
9 - 12 : A coragem
13 - 15 : A temperança
IV 1 - 3 : A generosidade
4 - 6 : A magnificência
7 - 9 : A magnanimidade
10 : A virtude relativa à ambição e ao desapego
11 : A tolerância
12 : A polidez
13 : A veracidade
14: A cortesia na diversão
15: O pudor
V 1 - 15 : A justiça
VI 1 - 13 : Estudo da virtude intelectual no campo prático: a prudência
VII 1 - 11 : Estudo da acrasia, intemperança e bestialidade
12 - 15: Primeiro tratado do prazer
VIII 1 - 16 : Estudo da amizade (I)
IX 1 - 12 : Estudo da amizade (I1)
X 1 - 5 : Segundo tratado do prazer
6 - 9 : Felicidade: contemplação e vida política
10 : Ética e política

Este quadro temático é sensivelmente similar ao que encontramos na EE:


nesta última obra, são tratados os temas, no livro I, da felicidade e bem su-
premo, com um capítulo sobre a doutrina platônica do bem (I 8); no livro I1, é
obtida a definição de virtude moral e é feito o estudo da noção de mediedade,
bem como das condições do ato voluntário e da escolha deliberada; no livro
III, as virtudes morais são analisadas uma a uma; após os livros comuns (EN
V, VI e VII), a EE dedica o livro VII ao estudo da amizade e se vê concluída,
no livro VIII, com um estudo sobre as relações entre virtude e saber (VIII 1),
sobre a boa sorte (VIII 2) e sobre o estatuto da contemplação (VIII 3). Há,
evidentemente, certas diferenças no tratamento dos temas, mas, basicamente,

Introdução I II
vemos repetido o mesmo esquema. Também a estrutura geral da Magna Moralia
reproduz, ainda que menos claramente, este esquema geral, que pode ser resu-
mido do seguinte modo: (i) a definição da felicidade, (ii) o estudo da virtude
moral em geral; (iii) o exame das virtudes uma a uma, especialmente da justiça;
(iv) o exame da virtude intelectual que opera na parte prática, isto é, o estudo
da prudência; (v) o exame do fracasso moral presente na acrasia; (vi) a análise
do fenômeno humano da amizade, cimento de nossas relações pessoais; (vii)
um estudo sobre o prazer e, finalmente, (viii)a retomada da noção de felicidade
e a determinação do papel da contemplação para a vida feliz.
Isto não é, obviamente, fruto de coincidência. De fato, pode-se mostrar que
este esquema desdobra uma análise conceitual segundo uma ordem bastante
precisa. A ética aristotélica inicia com o estabelecimento da noção de felicidade;
ela é, neste sentido, tipicamente uma ética eudemonista. A felicidade é definida
como uma certa atividade da alma segundo peifeita virtude (cf. I 61098a16-17). Esta
definição requer, assim, o estudo do que é uma virtude peifeita, o que nos leva a
examinar a natureza da virtude moral. A virtude moral, por sua vez, consiste
em uma mediedade relativa a nós e é definida como uma disposição de escolher
por deliberação (I1 6). Para se compreender propriamente esta definição, é ne-
cessário entender o que é a escolha deliberada; para isso, é preciso determinar
previamente em que consiste um ato voluntário (o que é feito, respectivamente,
em III 4-6 e 1-3). Ao se estudar o que é a escolha deliberada, vê-se que é a
determinação que a razão impõe no domínio prático sob a forma de uma boa
deliberação; é necessário, por conseguinte, estudar a natureza da prudência, que
é justamente a boa deliberação a título de virtude intelectual da parte prática
(o que é realizado no livro VI). Feito este passo, deve-se então examinar qual
é a relação entre prudência e saber, isto é, entre vida ativa e vida contemplativa
(o que é feito em X 6-9). Este é o núcleo argumentativo da ética aristotélica;
na EN, ele corresponde aos livros I 1-12 (felicidade), I 13 - III 8 (virtude mo-
ral; ato voluntário e escolha deliberada), VI (tratado da prudência) e X 6-9
(vida contemplativa e vida política). Tal núcleo argumentativo é recheado, por
sua vez, de temas diretamente ligados à ética. Em primeiro lugar, haja vista a
natureza mesma da matéria prática e suas condições de acribia, convém um
estudo caso a caso das virtudes, o que é feito ao longo de III 9 - V. Depois,
o fracasso moral é analisado sob a forma da acrasia, bem como em um caso

I2 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


mais inquietante, o da intemperança, no livro VII; em contraste, o cimento de
nossas relações pessoais e íntimas é investigado nos livros VIII e IX, dedicados
à noção de amizade. Enfim, a virtude moral é expressamente concebida como
conectada ao prazer e à dor e pode mesmo ser vista, em geral, como a boa
medida de nossas emoções. Por conseguinte, o exame da natureza do prazer
é um tema próprio à ética; na EN, encontramos dois tratados a ele dedicados,
um no final do livro VII, o outro no início do livro X.
Isto nos permite identificar, por trás do fato físico de sua divisão em rolos,
que correspondem aos atuais livros, certas unidades temáticas, a saber:

I A felicidade e os modos de vida (I 1 - 12; X 6 - 9),


o que engloba conceitualmente duas outras unidades:
II A virtude moral (I 13 - III 8)
III A virtude intelectual do domínio prático (VI).
Por sua vez, este núcleo argumentativo é recheado com o estofo das
seguintes unidades temáticas:
IV As virtudes particulares (In 9 - V)
V o fracasso moral (VII 1 - 11)
VI A amizade (VIII - IX)
VII O prazer (VII 12 - 15; Xl - 5).

O presente estudo tem por tema a natureza da virtude moral, o que cor-
responde à unidade Ir. Seu início ocorre no fim do primeiro livro, quando,
em I 13, Aristóteles distingue, à base da oposição entre parte racional e parte
não-racional da alma, entre virtude moral e virtude intelectual, passando, nas
páginas seguintes, a estudar a natureza da virtude moral. Tal estudo leva à
análise da escolha deliberada, que aparece já embutida na definição da virtude
moral, sem, contudo, ter sido previamente examinada; este último estudo se
conclui em III 8, que é uma recapitulação de toda esta unidade temática (e
não somente dos primeiros capítulos do terceiro livro). Há, assim, no próprio
texto de Aristóteles marcas relativas à unidade deste tópico, o que nos assegura
poder tratá-lo separadamente",
A última unidade que apresentei, a saber, a unidade VII sobre o prazer,
põe-nos já diante da vexa ta quaestio sobre a unidade agora da EN como um

Introdução I Ij
todo, para além da correlação entre suas partes. Com efeito, temos, na EN,
dois tratados sobre o prazer. No primeiro, que se encontra na parte final do
livro (comum) VII, o prazer é visto como uma atividade não entravada; no
segundo, que se encontra nos capítulos iniciais do livro X, o prazer não é uma
certa atividade, mas antes um coroamento da atividade, algo que se acrescenta
à atividade, sem se identificar a ela ou a um tipo dela. Pode-se tentar mostrar
que as duas perspectivas não são incompatíveis e que, mesmo, o tipo de abor-
dagem levado a cabo em cada tratado explicaria a adoção de uma perspectiva
diferente. No entanto, é forçoso reconhecer que, pelo menos à primeira vista,
as teses sustentadas não são as mesmas e a mera presença de dois tratados
sobre o prazer é um indício de que há problemas concernentes à unidade do
livro, já pelo fato de um tratado não mencionar a existência do outro", Tal
questão envolve inevitavelmente o problema espinhoso de determinar a origem
e a proximidade conceitual dos livros comuns, já que o primeiro tratado do
prazer faz parte de um livro comum. Não há como discorrer sobre este tema
aqui a não ser de modo sucinto, mas talvez não seja mesmo preciso tratá-lo
exaustivamente, pois a unidade em análise aqui, a unidade II sobre a natureza
da virtude moral, não está diretamente envolvida com estes problemas. No
entanto, como ela está indiretamente envolvida, convém fazer algumas obser-
vações, ainda que muito gerais.
É certamente mais do que uma curiosidade observar que, em VI 13, Aris-
tóteles lança mão de uma divisão da virtude moral em virtude natural e virtude
própria que não encontra nenhum apoio explícito no tratado nicomaquéio
da virtude moral nem em outros livros da EN, à exceção dos livros comuns.
Por outro lado, há uma passagem da EE que se vincula diretamente a esta
divisão ausente em EN I 13 - III 8. No que constitui o tratamento eudêmio
das virtudes particulares, ao tratar em EE III 7 de certas disposições que são
louváveis sem serem virtudes, pois são antes afecções, Aristóteles escreve que,
"porque são naturais, elas contribuem às virtudes naturais, pois toda virtude,
como será dito adiante, ocorre de certo modo natural e de um outro modo,
acompanhado de prudência" (1234a27-30)v. Esta passagem faz claramente
alusão a EN VI (EE V) 13 1144bl-17, onde Aristóteles de fato distingue en-
tre virtude natural, a que ou bem temos ao nascer ou bem adquirimos por
hábito, e virtude própria, a "que não se produz sem prudência" (1144b17). O

I4 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


tratado nicomaquéio da virtude moral também contém uma remissão ao
que será examinado no livro EN VI, mas esta remissão somente nos diz que,
a respeito do agir segundo a reta razão, "será discorrido mais adiante, sobre
isso, sobre o que é a reta razão e como se relaciona com as outras virtudes" (I1
2 1103b32-34), sem se comprometer com uma distinção entre virtude natu-
ral e virtude própria. Há ainda outras duas passagens dos livros comuns nas
quais aparece o tema da virtude natural. A primeira delas é EN VII (EE VI)
9 1151a18-19,em que é dito que é a virtude moral "natural ou habitual" que
nos fornece uma opinião correta sobre o princípio da ação. O ou aqui deve ser
entendido menos no sentido de uma disjunção propriamente dita e mais no
sentido de uma explicitação: a virtude natural, isto é, a virtude adquirida pelo
hábito. Neste mesmo livro comum, um pouco mais adiante, já no primeiro
tratado do prazer, é dito que a opinião segundo a qual o prazer não é um
bem se apóia em parte no fato que certos prazeres provêm de ações de uma
natureza perversa, seja de nascença, como no caso dos animais, seja por efeito do
hábito, como os prazeres dos homens viciosos (VII 15 1154a31-34). Embora
não haja expressamente nesta última passagem o termo vício natural (que seria
o contrário da virtude natural) e ainda que esteja referida como uma opinião
em que se baseia uma posição recusada por Aristóteles, a lição pode mesmo
assim ser adaptada ao aristotelismo dos livros comuns: vícios adquiridos pelos
hábitos são vícios naturais. Assim, ao que tudo indica, a ética eudêmia parece
consistentemente falar de uma virtude ou vício naturais, vocabulário que, no
entanto, está ausente do texto nicomaquéio, excetuando-se os livros comuns,
que, contudo, parecem pertencer originalmente à EE, já por esta proximidade
terminológica quanto à divisão das virtudes em naturais e próprias.
Convém embrenhar-se um pouco mais neste espinhoso problema, pois ele
tem conseqüências no modo como haveremos de interpretar a noção de ato
voluntário. Há indícios a meu ver concordantes para a atribuição da redação
da EE a um período anterior à da EN do ponto de vista conceitual. Em am-
bas as Éticas, Aristóteles examina criticamente a doutrina platônica do bem,
substancialmente com os mesmos argumentos, embora o tom agastado da
versão eudêmia apareça bem atenuado na redação nicomaquéia. Um destes
argumentos consiste em um apelo à doutrina da dispersão categorial do ser, a
qual é igualmente afirmada do bem, de modo que, como conclusão, temos que

Introdução I I5
não é possível um bem único para tudo, como pretendia Platão, pois a refração
categorial impede tal universalidade. O argumento ocorre em EN I 4 1096a23-
29 e em EE I 8 1217b25-35, com mínimas e irrelevantes variações de termos,
exceto na conclusão. Com efeito, a EN conclui limitadamente que, por conta da
dispersão categorial do bem, similar à do ser, "não é possível um bem comum,
universal e único" (1096a28); na EE, porém, lemos que, além de não haver nem
um bem único nem um ser único a propósito de todas as categorias, "também
não existe uma ciência única nem do ser nem do bem" (1217b34-35). O que é
surpreendente EE é que ela é incompatível com o
nesta conclusão exclusiva da
projeto aristotélico de uma ciência universal do ser, exposto no livro r da Me-
tafísica, com base na idéia de relação focal, pois, graças a esta noção de unidade
não genérica, é possível uma ciência única do ser (cf. r 21003b12-15). Em um
artigo extremamente fecundo para os estudos aristotélicos, Owen mostrou que
ou bem isto pode ser usado como um sinal da inautenticidade da EE, ou bem,
como sustentou, que a EE foi escrita em um momento intelectual no qual Aris-
tóteles ainda não tinha aplicado a noção de relação focal ao ser (e eventualmente
tampouco ao bem, se é que ele a aplicará ao bem: cf. EN I 4 1096b26-29)"i. Já na
EN, Aristóteles mantém o mesmo argumento contra as pretensões platônicas
de um bem único, mas corrige agora a tese excessiva que por isso tampouco é
possível uma ciência única do ser ou do bem.
O próprio Owen mostrou que, na EE, Aristóteles já dispunha da noção de
relação focal, mas a tinha então aplicado limitadamente aos diferentes tipos
de amizade, sem a expandir a outros casos, como o ser. O tema da amizade
funciona como mais um indício que a EE é um escrito conceitualmente ante-
rior à EN. Com efeito, na EE Aristóteles unifica os três tipos de amizade com
base em uma relação focal: a amizade segundo a virtude é a amizade primeira,
em relação à qual os outros dois tipos são ditos também amizades, a amizade
segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade. Deste modo, Aristóteles
pode sustentar que não há uma única amizade, mas três tipos de amizade, e
que eles não se reduzem a um dentre eles, mas a amizade segundo o prazer
e a amizade segundo a utilidade gravitam em torno da amizade segundo a
virtude, à qual fazem inevitavelmente referência. A despeito dos ganhos desta
análise não redutivista dos tipos de amizade, há obviamente uma dificuldade,
e grande, nesta tese. Não parece claro em que sentido a amizade segundo o

I6 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


prazer e a amizade segundo a utilidade têm uma dependência focal de sentido
em relação à amizade segundo a virtude; ao contrário, pode-se perfeitamente
bem conceber as relações de amizade segundo o prazer ou segundo a utilidade
independentemente da amizade segundo a virtude: são elas relações conscien-
tes e recíprocas de benevolência prática ligadas, respectivamente, ao que é pra-
zeroso e ao que é útil, sem haver aqui nenhuma referência à noção de virtude.
Assim, não surpreende ver que, na EN, Aristóteles examina os três tipos de
amizade em função da noção de semelhança, ao que tudo indica abandonando
o projeto eudêmio de unificá-los por meio da noção de relação focal: a ami-
zade segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade assemelham-se, em
suas propriedades, à amizade segundo a virtude. Relações de semelhança são
simétricas e, deste ponto de vista, não é possível atribuir nenhuma prioridade:
a amizade segundo o prazer se assemelha à amizade segundo a virtude nem
menos nem mais do que a amizade segundo a virtude se assemelha à amizade
segundo o prazer. No entanto, Aristóteles introduz, na EN, uma relação de
prioridade entre os tipos de amizade mediante um outro mecanismo. Com
efeito, ele argumenta, ao longo dos livros VIII e IX, que o objeto de amizade
virtuoso é necessariamente prazeroso e útil, ao passo que o objeto de amizade
segundo o prazer ou o objeto segundo a utilidade, embora possam aciden-
talmente envolver a utilidade e o prazer, respectivamente, e mesmo a virtude,
não o fazem, porém, necessariamente. Mediante a noção de imbricação entre
os objetos de amizade, Aristóteles reintroduz nos tipos de amizade unificados
por semelhança uma relação de prioridade que, de outro modo, não mais po-
deria obter. Se isto estiver correto, então vemos que também aqui, a respeito
da amizade, o argumento nicomaquéio é filosófica e conceitualmente superior
ao eudêmio - e é, por conseguinte, tanto quanto se pode julgar sobre isso no
incerto domínio humano, provavelmente posterior ao eudêrnio'".
Estes não são os únicos indícios, mas já são suficientes para estabelecer a
plausibilidade de se pensar a EN como proveniente de uma revisão, pelo menos
parcial, da EE (o que explicaria igualmente o fato extraordinário de se terem
dois tratados, ou três, sobre o mesmo tema, com estrutura muito similar). Isto
é importante sobretudo no tocante à discussão sobre a natureza voluntária
ou involuntária dos atos humanos, pois há algumas diferenças significativas
entre o tratamento dado a este ponto na EE e na EN. No grego antigo, os

Introdução I I7
termos ÉKOWLOV e àKOWlOV têm um uso mais vasto, ou impreciso, do que o
nosso uso atual. Com efeito, em parte eles dizem respeito à agência humana,
delimitando aquilo de que o agente é propriamente responsável e aquilo de
que pode ser desresponsabilizado, mas em parte indicam também se o agente
fez algo de bom grado ou a contragosto, respectivamente. Ambas as noções
nem sempre coincidem: posso fazer por mim próprio algo a contragosto, bem
como realizar algo involuntariamente, que teria feito conscientemente, porém,
de bom grado. É provavelmente por causa do cruzamento destes dois usos
que Aristóteles introduz, no exame da ignorância das circunstâncias, uma
consideração sobre o fato de o agente arrepender-se ou não do que fez: se se
arrepende, diz Aristóteles, o ato é involuntário; se não demonstra arrependi-
mento, embora não seja voluntário, o ato não é propriamente involuntário:
ele é antes não-voluntário. O arrependimento, contudo, parece ser não uma
condição do caráter involuntário ou não-voluntário do ato, mas um critério
para nosso reconhecimento do caráter moral do agente envolvido em atos nos
quais há ignorância das circunstâncias.
Apesar desta confusão entre condição de ser e critério de reconhecimento,
Aristóteles demonstra muita clareza ao determinar o núcleo de significação
destes termos. Segundo a EN, um ato é voluntário se satisfizer conjuntamente
as seguintes duas condições: (i) o princípio está no agente 1\ (ii) o agente co-
nhece as circunstâncias nas quais a ação ocorre. A negação de (a 1\ b) sendo
(~a V -b), o ato será involuntário quando ocorrer (pelo menos) que o prin-
cípio não está no agente ou que o agente ignora as circunstâncias nas quais a
ação ocorre. Este é o núcleo destas noções; a partir dele, Aristóteles examina
casos controversos, como as ações ditas mistas. Ainda, Aristóteles insiste que
a ignorância em questão não é qualquer ignorância, mas somente a ignorân-
cia das circunstâncias, e isto é um esclarecimento filosófico importante. Com
efeito, Platão sustentou ao longo de toda a sua carreira filosófica que ninguém
é perverso voluntariamente (Prot. 345d; Gorg. 50ge; Leges V 731c). Tal tese
controversa está fundada no fato de o agente perverso ignorar o que é o verda-
deiro bem, o que causaria o caráter involuntário de seu ato por conta de uma
noção muito ampla de ignorância, que Aristóteles agora corrige: este tipo de
ignorância não causa o caráter involuntário do ato; ao contrário, ela engendra
a natureza perversa do agente. Além disso, convém salientar que, do modo

I8 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


como Aristóteles o apresenta, o caráter voluntário é mais abrangente do que
a escolha deliberada: toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato
voluntário ocorre por escolha deliberada. Isso permite a Aristóteles atribuir a
crianças e animais atos voluntários, embora os primeiros ainda não possuam
razão deliberativa e os últimos jamais virão a possuí-la.
No tratamento que a EE dá a estas noções, Aristóteles igualmente quer
estabelecer o ponto segundo o qual toda escolha deliberada é voluntária, mas
nem todo ato voluntário ocorre por escolha deliberada (I1 10 1226b32-36).
No entanto, na EE o voluntário é estreitamente conectado ao pensamento: em
II 9 1225b1, o voluntário é definido como o que é conforme ao pensamento.
Neste sentido, ele é fortemente aproximado do que está ao nosso alcance
fazer ou não fazer (cf. II 9 1225b8-9), pois poder fazer ou não fazer algo está
diretamente vinculado à capacidade humana de pensar e refletir'". Estar ao
nosso alcance fazer ou não fazer algo equivale a poder agir diferentemente;
deste modo, voluntário e agir diferentemente são intimamente conectados.
Obviamente, poder pensar e refletir não implica que sempre se pense ou se
reflita ao agir; pode sempre haver atos que não sejam feitos por reflexão ou
deliberação, como os atos súbitos, que não deixam de ser, porém, voluntários.
No entanto, a estreita conexão entre voluntário, pensamento, estar ao nosso
alcance e poder agir diferentemente tem como conseqüência que crianças, que
ainda não têm a faculdade de pensar, ou animais, que nunca a terão, devem
ser excluídos do campo da ação propriamente dita, o que é feito em EE n 8
1224a28-30. Em contraste com isso, a EN expressamente atribui atos volun-
tários a crianças e animais (In 4 1111b8-9). Pode-se sustentar que o procedi-
mento eudêmio de conectar estreitamente ato voluntário, pensamento e poder
agir diferentemente é um ganho filosófico; afinal, como o voluntário se liga
diretamente à responsabilidade moral, teríamos de avaliar moralmente crian-
ças e, surpreendentemente, também animais, caso agissem voluntariamente.
No entanto, embora voluntário e responsabilidade moral estejam obviamente
conectados, eles o podem estar de modo parcial: os atos de que somos res-
ponsabilizados são todos voluntários, mas pode haver atos voluntários que
estejam fora da alçada da censura ou elogio morais, caso não haja perspectiva
de uso racional e reflexão. Por esta razão, por vezes repreendemos, por ve-
zes não repreendemos crianças, em função da capacidade ou conveniência

Introdução I I9
de aprendizagem em que se encontram. Ademais, retirar dos animais toda
natureza voluntária é excessivo.Parece, assim, mais conveniente dissociar as
noções de voluntário e de agir diferentemente, como ocorre na EN, e insistir
que, para o voluntário, trata-se sobretudo do fato de o princípio da ação estar
no agente, sem que se determine já de que modo atua tal princípio (de modo
simples, como nos animais e, ainda, nas crianças, ou complexo, como no caso
dos homens adultos, quando envolvepensamento e reflexão). Examinando-se
as condições adultas do ato voluntário, vê-se que o que é voluntário em um
adulto está em seu poder fazer ou não fazer, mas isso não é condição do caráter
voluntário do ato como tal; pelo menos, animais e crianças não satisfazem tal
condição. Novamente, vemos que o exame da EN, neste caso sobre o volun-
tário, é filosoficamente mais seguro do que o apresentado na EE e pode ser
mesmo visto como o resultado de uma revisão do que tinha sido apresentado
previamente na EE.
Uma última observação. Embora haja claramente a divisão em um nú-
cleo argumentativo, do qual o tratado da virtude é uma parte (em minha
nomenclatura, a parte I1), e em unidades temáticas que forram como estofo
a arquitetura do livro, como é o caso do exame das virtudes particulares (em
minha nomenclatura, parte IV), as questões conceituais não se domesticam
tão facilmente, como era de se esperar em um tratado de filosofia. A parte
IV inicia com a declaração que, "retomando a investigação, determinemos a
respeito de cada virtude quais são, a que concernem e como procedem; simul-
taneamente ficará claro quantas são" (III 91115a4-5). Espera-se que esta parte
especifique, exemplifique e caracterize em detalhes o que tinha sido obtido na
parte Il. De fato, é isto o que ocorre em geral, pois a parte IV depende concei-
tualmente da parte II. No entanto, um detalhe não deve passar despercebido.
No tratado da virtude moral, Aristóteles introduz a noção de belo, TO KaÀÓv,
e isso em diferentes passagens. No entanto, é somente no exame das virtudes
particulares, a começar pela coragem, que a noção de agir com vistas ao belo, TOV
KaÀov ÉVEKa, ganha consistência. Em um ato de coragem, expomos a vida ao
perigo, e não é raro morrer por causa disto. A noção antiga de bem, TO àyaeóv,
estava fortemente conectada ao que nos é benéfico e vantajoso (assim aparece
freqüentemente no Sócrates de Platão, por exemplo), o que dificilmente se
concilia, ou pelo menos não facilmente, com o ato de pôr em risco a vida, que

20 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


intuitivamente figura como o maior de todos os bens humanos. Aristóteles
recorre então à noção de belo, não porque quer introduzir elementos estéticos
ou algo similar, como enfatizar a harmonia, a simetria e a elegância no ato
bom, mas porque necessita de uma noção moral de bem que esteja claramente
desvinculada do que é proveitoso ou benéfico para o agente. Oferecer a vida
certamente não é algo bom ao agente neste último sentido, mas, em certas
circunstâncias, é o que nos resta a fazer, é o que é belo ao agente fazer. A noção
de belo moral terá uma história conturbada na reflexão moral; um de seus
primeiros avatares é precisamente o conceito estóico de honestum. De qualquer
modo, Aristóteles precisa de um termo que designe o dever que se impõe a nós,
ainda que contrário aos nossos interesses, muitos dos quais legítimos, como o
direito à vida. No tratado da virtude moral (parte I1), a noção de belo moral é
por certo mencionada, e não poucas vezes, mas ela nunca é tratada ex professo.
Na parte IV, a encontraremos novamente, desta vez em sua expressão própria,
TOV KaÀov ÉVEKa; embora tampouco seja objeto de uma análise expressa, ela,
contudo, já é claramente operacional, pois o exame detalhado das virtudes não
pode dispensar o apelo a tal noção.
Isto é inevitável em um tratado como este; à diferença da literatura, ne-
nhum autor comanda tão imperiosamente na filosofia o destino de seus con-
ceitos como o escritor domina o de suas personagens. Neste caso preciso, a
falta convém ser assinalada. Com efeito, a ética aristotélica é tipicamente um
eudemonismo, como já foi assinalado. Isto pode dar a impressão que é uma
ética do bem-estar na qual a noção de dever só encontra lugar na medida em
que estiver governada por um fim que seja constitutivo, aos olhos do agente, de
sua felicidade; se o agente quiser A e reconhecer B como meio adequado para
obter A, então deve perseguir B, mas deve persegui-lo somente na medida em
que for meio para obter o fim que busca realizar, e este fim está diretamente
ligado às suas aspirações de bem-estar. Aristóteles por certo não se cansa de
afirmar que o bem que procuramos é o bem em escala humana, e isto é a
felicidade. Porém, por felicidade entende o agir bem; é feliz quem age bem. E
não raras vezes agir bem implica buscar o que é moralmente belo à custa do
que nos é vantajoso ou benéfico. Em um sentido relevante, o agente deve fazer
algo porque reconhece as razões que qualificam tal ação como o que convém
fazer, quaisquer que sejam os fins que esteja a perseguir. Tal consideração retira

Introdução I 2I
o dever do império imediato dos desejos e fins; o eudemonismo aristotélico,
com efeito, não é uma ética do bem-estar dos indivíduos, mas uma reflexão
filosófica sobre o que é isto, bem agir, em uma escala propriamente humana,
concomitantemente separada dos outros animais e do divino, e bem agir acar-
reta por vezes o abandono dos interesses e desejos próprios. Não surpreende
assim que agir com vistas ao belo apareça operando, e decisivamente, no exame
detalhado das virtudes morais; o que surpreende é que a noção de belo, em-
bora seja mencionada na parte I1, não seja aí objeto de estudo expresso, pois
ela guarda o segredo da dimensão altruísta do ato moral. Por falta de análise
expressa, justamente, ela passou à tradição unicamente sob a forma operacional
em que se encontra na parte IV, desacompanhada de uma reflexão explícita
sobre a dimensão altruísta que ela claramente introduz no gesto moral.

2. QUESTÕES DE FILOSOFIA MORAL

o tratado nicomaquéio da virtude moral diz respeito a problemas centrais


na ética que giram em torno da responsabilidade moral e da liberdade da ação.
Para tanto, ele constitui todo um arcabouço conceitual mediante o qual estas
questões serão equacionadas; dele fazem parte noções como mediedade, dis-
posição, voluntário, escolha, deliberação. Seria por demais pretensioso querer
tratá-las nesta introdução. Limitar-me-ei aqui a explorar alguns elementos
vinculados a três noções-chaves: mediedade, escolha deliberada, disposição.
(i) A doutrina da virtude como mediedade já foi considerada como a regra
de ouro da moral, mas hoje, sobretudo após o ataque kantiano a esta noção, pa:-
rece dever ser para sempre abandonada. Kant reclamou de um erro categorial:
a virtude como meio termo entre dois vícios, um excesso e uma falta, tornava
quantitativo o que era, porém, qualitativamente distinto. O que caracterizaria
o preceito moral é ser o que há de correto por ser feito e não o fato de estar em
um ponto mediano, como se alguém, vindo de uma falta em direção ao excesso
contrário (ou inversamente), em certo momento passaria inevitavelmente pelo
meio termo. Além disso, a mediedade foi cedo assimilada a uma doutrina da mo-
deração: bem agir seria nem fazer muito nem muito pouco. Em outros termos:
a doutrina da mediedade foi logo assimilada a uma teoria da mediocridade. Não
é assim de surpreender que tal doutrina tenha caído em óbvio desfavor.

22 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


Não é o caso de tentar defender aqui a doutrina da mediedade destes ata-
ques; uma leitura atenta do tratado obviariajá um bom número deles. Gostaria
tão-somente de salientar alguns de seus traços para poder compreender o que
interessa filosoficamente, a Aristóteles, em tal doutrina. É bem verdade que
a idéia de um termo médio ou de uma justa medida entre dois extremos não
era uma idéia nova; ao contrário, noções de moderação, mediedade e simila-
res são moeda corrente na Antigüidade. Basta citar o famoso preceito délfico,
µT]OEV ayav, nada em excesso, que o próprio Platão menciona em três ocasiões
(Filebo 45e; Carmides 165a; Menexeno 247e). Aristóteles poderia, assim, estar
simplesmente exprimindo a linguagem corrente em sua época, ainda que a um
preço filosófico caro demais para a posteridade. Não é sem interesse observar,
contudo, que Aristóteles aposta pesadamente na pertinência de tal doutrina
para a análise moraL Com efeito, embora seja extremamente cioso de não
fazer interferir teses de outras disciplinas na análise moral (cuidado que é
particularmente evidente em I 13, quando faz um apelo não comprometido a
uma noção geral e mesmo vaga de alma, o que responde ao seu zelo de evitar
teses muito específicas provenientes de outras disciplinas), Aristóteles sanciona
a noção de mediedade com o seu mais forte jargão metafísico: a mediedade
é a qüididade da virtude. As expressões que Aristóteles usa, TO TL ~v E'LVaL
e ~ OVaL a (lI 6 1107a6-7), não deixam dúvida sobre o seu interesse em pôr
em evidência a importância que atribui à caracterização da virtude a título de
mediedade. Como explicar tanto zelo? Um provável motivo estaria no fato de,
ao apelar à noção de mediedade, Aristóteles põe em relevo uma noção cujo
primeiro sentido concerne ao de contínuo divisível.Ora, na ação, o que parece
corresponder a um contínuo divisível,que pode ser expresso em quantidades, é
a emoção; procedendo deste modo, Aristóteles estaria acentuando o papel das
emoções no agir moral. Ao fazer isso, ele estaria pondo em relevo os elementos
não cognitivos junto aos quais deve operar a razão em matéria prática, já que
a emoção se opõe ou contrasta com a razão. Em reação ao intelectualismo
socrático, que, ainda que temperado por Platão, fazia do elemento racional
o elemento proeminente na ação, Aristóteles parece assim preocupado em
salientar a presença e a função dos elementos emocionais e não cognitivos na
ação moral. Um mecanismo para tanto consistiria justamente em ver o ato
virtuoso como, de um lado, um extremo, e, simultaneamente, de outro lado,
como um ponto médio entre extremos (como é expressamente dito em II 6).

Introdução I 23
É um extremo na medida em que o imperativo moral ordena fazer aquilo e
unicamente aquilo que convém fazer, distinguindo-se definitivamente de toda
outra ação possível. Porém, é também um meio termo, pois regula deste modo
a quantidade de emoção que inevitavelmente está envolvida em toda ação.
Um outro tema nos levará a um resultado semelhante. No tratado da pru-
dência (livro VI), Aristóteles propõe substituir a expressão KaTà TOV opeov
ÀÓYov, secundum rationem, aparentemente consensual para designar o bem agir,
por uma outra, o agir µETà ÀÓyov, cum ratione. Assimilou-se freqüentemente
esta substituição à distinção entre agir conforme o dever e agir por dever:
Aristóteles estaria aqui exigindo condições mais restritivas à ação moral, à
qual não bastaria a conformidade exterior ao dever, mas requereria também
o elemento interno de acatamento subjetivo e respeito ao que ordena o im-
perativo moral. No entanto, esta assimilação parece anacrônica. Repondo-se
o texto em seu contexto histórico, vê-se que Aristóteles parece antes querer
dar adeus ao intelectualismo socrático excessivo, que eliminava inteiramente
o elemento emocional, bem como à versão atenuada platônica, que atribuía
ainda, a seus olhos, demasiada proeminência à razão na determinação da ação,
propondo, em seu lugar, uma doutrina na qual a razão (prática) só pode aplicar-
se às ações se houver previamente um hábito moral concernente às emoções.
O µETá de µETà ÀÓyov tem assim o sentido de algo que, posteriormente,
acrescenta-se ao sentimento; em um sentido forte, as emoções têm de estar
previamente educadas moralmente para que a razão possa acompanhá-las e
lhes dar a reta direção. Como Aristóteles escreve em EN X 1179a23-26, quem
não tiver as emoções previamente educadas moralmente não compreenderá
o sentido moral de um conselho ou ordem, assim como uma semente não
prospera em um terreno não preparado. Aqui está uma inovação importante
de Aristóteles em relação à filosofia ateniense clássica: a razão prática requer
algo previamente burilado para poder atuar. É neste sentido que o imperativo
moral será para Aristóteles sempre um ajuste, com vistas ao meio termo, das
emoções já presentes, um contínuo no interior do qual a razão vai operar as
necessárias divisões, mas que precisa pressupor como já dado de modo ade-
quado, sem o que ficaria inane e inativa.
Um segundo motivo, diretamente vinculado a este primeiro, é a natureza
imprecisa que inevitavelmente ronda a determinação moral. A virtude moral é

24 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


uma mediedade, diz Aristóteles, na medida em que é estocástica do meio termo
(II 5 1106b15-16;27-28). Este termo, oToxuaTlK1Í, desapareceu do vocabulário
ético moderno, mas Aristóteles o considera como o mais apto para descrever
a natureza do meio termo da virtude moral. A comparação básica é com um
arqueiro, que mira o alvo, mas que não pode ter certeza do êxito de seu tiro.
A razão, ao intervir no mundo das emoções, não as subtrai de uma certa im-
precisão. O homem que delibera bem é o prudente; o prudente, mediante seu
cálculo e razão, é aToxuaTlKós do melhor para o homem (VI 8 141b13-14).
Ele mira o bem como o arqueiro mira o alvo: ambos evolvem em uma região
imprecisa, de contornos rapidamente alteráveis. O mundo moral é, assim, per-
manentemente opaco, um mundo no qual jamais se fará plena luz. Perdoamos
a quem erra por pouco, bem como elogiamos quem quase acerta: tal é a ma-
téria prática humana. Este tema está diretamente ligado à tese aristotélica do
particularismo na ética, com suas condições de acribia muito próprias, que se
conecta, então, com a própria doutrina da mediedade, que fornece uma base
conceitual para se pensar as variações Ínfimas para mais e para menos de um
ato moral. Ele representa a mais extraordinária redução das pretensões da
racionalidade dentro dos limites da própria razão.
(ii) Uma segunda noção-chave que gostaria de examinar sucintamente é a
de escolha deliberada. A virtude moral é uma disposição de escolher por deli-
beração; a escolha deliberada encontra-se, assim, no centro da noção de virtude
moral. A razão prática exprime-se por excelência em seu uso deliberativo; em
função da deliberação, Aristóteles recusa a estrutura demonstrativa à razão
prática, colocando em seu lugar o ato de pesar razões rivais, no qual é dada
preferência por razões, sem, porém, que se proceda por demonstrações. No
entanto, como, para Aristóteles, nós só deliberamos sobre os meios, nunca sobre
os fins, isso pareceu, à consciência moral moderna, restringir inaceitavelmente
a operação racional em matéria prática, pois a tornaria puramente instrumen-
tal. Ora, do ponto de vista moral, o que sobretudo interessa é a determinação
dos fins; a exata correlação dos meios caracterizaria a ação em sua eficácia,
não em sua moralidade. Não foram poucos os comentadores que procuraram
atenuar este aspecto da doutrina aristotélica, seja observando, como fez Ross",
que o próprio Aristóteles falava de uma deliberação de fins fora dos capítulos
nos quais a examina ex professo a noção de escolha deliberada, seja buscando

Introdução I 25
no texto mesmo em que a analisa indícios de que a deliberação diz respeito
também a fins, como procurou fazer especialmente Gauthier". Por diferentes
razões, ambas as tentativas não obtêm êxito. Duas outras estratégias parecem,
porém, mais promissoras. A primeira consiste em salientar que o termo para
meio, em grego, é, literalmente, o que conduz ao fim, e isto inclui mais do que
a nossa noção instrumental moderna de meio, pois engloba, por exemplo, o
modo como agimos. A segunda estratégia, na esteira de Tomás de Aquino, é
de maior fôlego e consiste em assinalar que nada é por si mesmo fim ou meio.
Embora só possamos deliberar sobre os meios em uma dada deliberação, nada
impede que aquilo que era fim nesta deliberação se torne meio para um fim
superior que a envolve e que, a este novo título, torne-se objeto de deliberação.
Deste modo, podemos deliberar sobre tudo, não como fim, mas como meio de
um fim que lhe é superior, exceto sobre o fim último, a felicidade, mas, como
o bem supremo não é um fim ao lado dos outros, e sim o modo ordenado de
todos os fins (ou, em outros termos, um fim formalmente considerado), de
fato podemos deliberar sobre tudo o que conta materialmente como fim.
Ambas as estratégias tornam palatável o que parecia por demais rude à
consciência moral moderna, mas temo que elas não consigam apreender um
elemento a meu ver decisivo na perspectiva aristotélica. A noção de pôr um fim
não é muito clara; Aristóteles entende por isso representar-se a~o como um fim, o
que é obviamente uma atividade mental. No entanto, não parece ser aqui, no
ato de se representar um fim, que Aristóteles pretende assegurar a liberdade
na ação humana. Com efeito, um fim pode ser imposto a mim com base em
uma severa educação ou, mesmo, pode dar-se a mim em função de minha
natureza; qualquer que seja o modo como o fim é dado, contudo, o fato de
eu adotar os meios para obtê-lo por meio de minha deliberação faz com que,
em um sentido relevante, a ação seja minha, ainda que o fim não possa ser
dito meu no mesmo sentido. A consciência moderna pensa a relação moral
fundamentalmente a partir do ato de pôr os fins; a ética aristotélica radica a
responsabilidade do sujeito não na adoção dos fins, mas antes na escolha dos
meios. Como sou eu quem dou preferência por razão a tal meio em detrimento
de tais outros e como o último meio na análise é o primeiro na ação, aquilo
que eu faço é, em um sentido relevante, minha ação, mesmo que eu não possa
ser autor no mesmo sentido de meus fins. No entanto, como os fins se dão

26 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


a mim em função de minha natureza e como a natureza prática se amolda
em função dos atos que pratico em uma ou outra direção, embora não seja
exigido no início que eu dê a mim mesmo os fins, ocorre que, ao determinar
minhas ações pelos meios, determino minhas disposições, as quais, por sua
vez, constituem minha natureza, à qual se conformam os fins que persigo.
Dar a si mesmo os fins não é a condição inicial da liberdade do agente, mas
é o ponto a que ele chega, se o agente determinar por razão os meios para
realizar seus fins.
(iii) Finalmente, um último ponto requer análise, mais uma vez de modo
sucinto: a noção de disposição. A virtude moral é, como vimos, uma disposição
de escolher por deliberação. A base de atribuição de responsabilidade moral ao
agente parece residir no fato de dar preferência por deliberação a certos meios
em detrimento de outros, de tal modo que aquilo que o agente pode fazer, ele
pode deixar de fazer. Em outros termos, em função da deliberação sobre os
meios que conduzem a ação, aquilo a que o agente pode dizer sim, a isto ele
pode dizer não. A razão é uma faculdade de contrários: se ele pode aceitar isso,
de pode também o recusar, assim como o médico que cura o paciente pode
igualmente o envenenar. Graças à razão, o agente pode agir diferentemente.
Contudo, ao agir nas mais das vezes assim e não no sentido contrário, o agente
adquire por hábito uma disposição em um sentido, à exclusão do sentido con-
trário. Como relembra Aristóteles no livro comum sobre a justiça, embora a
ciência seja a mesma para os contrários, a disposição não está aberta aos con-
trários, assim como da saúde só se seguem atos com vistas à saúde e não ao
seu contrário (EN V 11129a13-16). O problema pode, então, ser formulado:
para me considerar livre, tenho de poder agir diferentemente; ora, quando
adquiro minhas disposições morais, tornando-me um agente moral maduro,
das já não estão abertas aos contrários; como posso então ainda ser livre, se
já não posso agir diíerenrementer E, sejá não sou livre, em que sentido ainda
seria responsável por minhas ações?
O problema do determinismo do caráter foi objeto de controvérsia já na
Antigüidade, especialmente com Alexandre de Afrodísia. Ao reagir contra a
tese estóica do determinismo, Alexandre recorreu fundamentalmente ao texto
aristotélico. No entanto, ao proceder assim, ele não deixou de produzir certas
alterações. Para Alexandre, embora um agente, a partir do momento em que

Introdução I 27
adquire uma disposição prática, já não possa agir diferentemente, é sempre
verdade que ele é causa da aquisição de seu caráter, pois a disposição não nos
é dada naturalmente, mas é obtida através da repetição de atos em um certo
sentido à exclusão de seu oposto (de fato XXVII - XXIX, particularmente
199,24-29). Esta idéia de transferência da responsabilidade (sou responsável
hoje pelo que faço, embora não possa mais agir diferentemente, porque fui
responsável pela aquisição da disposição, obtida à base de atos que, naquela
época, estavam ao meu alcance de ser diferentes) tem estirpe aristotélica, pois
Aristóteles justificou a duplicação de pena para os embriagados aleg'a:ndoque,
embora não pudessem agir diferentemente quando bêbedos, podiam ter evi-
tado ficar embriagados (III 71113b30-34). A solução em Aristóteles é limitada
aos casos em que há, de modo momentâneo ou definitivo, a perda do uso da
razão; Alexandre, porém, estende-a a todos os outros casos de disposição
moral, generalizando seu padrão de argumentação. É deste modo, então, que
Alexandre encontra uma solução ao problema do sábio, que de outro modo
seria livre somente na medida em que pudesse agir diferentemente, isto é, so-
mente na medida em que praticasse um mal: a partir do momento em que é
sábio, ele não pode mais fazer senão o bem, mas ele é causa para si mesmo da
aquisição de seu caráter moral e, nesta medida, ele é causa do que faz, mesmo
que não possa mais agir diferentemente. A solução é simétrica para o perverso:
o homem vicioso não pode senão agir viciosamente, mas ele é igualmente causa
para si mesmo da aquisição do caráter moral perverso e, nesta medida, ele é
responsável pelo que faz.
A solução de Alexandre é tão atraente quanto problemática. O homem
goza de liberdade, no sentido de poder fazer isto e seu contrário, unicamente
quando ainda não está desenvolvido do ponto de vista prático, isto é, quando
ainda não adquiriu uma disposição. O homem é, assim, livre quando é adoles-
cente ou imaturo, quando ainda não se tornou o que é - solução talvez elegante,
mas certamente paradoxal. Alexandre procurou atenuar esta conseqüência
pondo em relevo a função deliberativa, que atuaria plenamente já nas ações
que dão origem ao nosso caráter, de modo que teríamos delas um controle
total e, conseqüentemente, um controle parcial das disposições, a título de
agentes racionais que decidem soberanamente sobre os atos particulares que
fazem e que geram, então, as disposições. Alexandre escreve, com efeito, que

28 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


as disposições morais nascem da repetição de atos realizados "por uma escolha
deliberada" (Prob. Étic. XXIX 160,27). Esta condição, porém, vai além do que
exige Aristóteles, para quem a disposição nasce da repetição de atos voluntários
- e nada mais. Na verdade, Alexandre retoma a versão eudêmia do voluntário,
na qual o elemento reflexivo tem papel proeminente no exame do voluntário,
contra a versão nicomaquéia, que se limita a ressaltar o fato de o princípio
estar em nós, sem tentar caracterizar o modo de atuação desse princípio (que
é tipicamente reflexivo no caso dos adultos). Ora, a insistência por parte de
Aristóteles sobre a importância da educação das crianças, para as quais a razão
ainda não está disponível, enquanto o caráter está em plena formação, dá pouca \
esperança a esta solução, pelo menos no que toca à EN. Alexandre alega, então,
alternativamente, que o sábio pode agir diferentemente, como sábio, na medida
em que as ações que realiza possuem sempre um certo grau de oscilação no
que respeita às circunstâncias particulares em que se produzem, de sorte que
desviar ligeiramente a seu respeito não destruirá o resultado esperado da ação
(de fato XXIX 200, 1-2); ademais, o sábio pode justamente por vezes não re-
alizar o que se espera dele tão somente para evidenciar sua liberdade na ação,
por exemplo no caso em que alguém fizesse uma predição a propósito do que
realizaria necessariamente (200, 2-7). No primeiro caso, contudo, a liberdade
se exerceria em elementos sem relevância moral, ou com mínima, o que torna
esta solução pouco atraente. O segundo caso de desvio é ainda menos atraente,
pois a liberdade do sábio seria então evidenciada por uma certa bizarria em
seu comportamento. No entanto, Alexandre insiste neste último ponto; com
deito, como a situação é simétrica em relação ao homem não sábio, o homem
comum também evidenciaria a liberdade em certos atos bizarros, que vão de
encontro ao esperado, somente que desta vez sua causa não estaria no intento
de contrariar uma profecia, mas consistiria em um "não-ser" (TO µ~ õv) no
interior da escolha deliberada, de sorte que por vezes agiríamos diferentemente
por causa de uma fraqueza ou falta, sem o que sempre seríamos movidos do
mesmo modo nas mesmas situações (Mantissa XXII 171, 16-20).
Esta questão a respeito da fixidez da disposição em relação a um só dos
contrários, o que destruiria a abertura aos contrários amparada na opera-
pc da razão a respeito dos meios pelos quais realizo meus fins, manteve-se
Da modernidade. Insistindo sobre o fato que, ao adquirir uma disposição, o

Introdução I 29
homem (então moralmente maduro) já não pode agir diferentemente, P.-L.
Donini considerou recentemente que isso é um forte indício" do caráter subs-
tancialmente determinista da ética e da psicologia de Aristóteles?'. Em um
tom similar, David Furley escreveu que "parece que temos uma distinção entre
dois períodos da vida de um homem na teoria de Aristóteles - antes e depois
da formação de seu carárer?", Antes da formação de seu caráter, o homem
é senhor de seus atos, podendo agir em um sentido ou outro; quando está
formado, porém, não lhe éíÚais possível agir no sentido contrário. A solução
que Furley sugere a este aparente paradoxo consiste em sustentar que, do
ponto de vista moral, para Aristóteles, um ato é voluntário se procede de uma
disposição que é voluntária, isto é, se procede de uma disposição cujo início foi
voluntário, quando ainda estava aberta aos contrários. As disposições diferem
em fixidez (Aristóteles distingue, com efeito, entre ÉÇl S, uma disposição fixa, e
~)Lá8Eal';', um estado provisório) e a responsabilidade moral do homem residi-
ria no fato que suas disposições, de onde partem suas (agora de modo rígido)
ações, são disposições criadas pelo próprio agente, na medida em que foram
geradas pela repetição de atos em uma ou outra direção. Esta solução já tinha
sido vislumbrada por Alexandre: o homem é sempre livre porque, a despeito
de sua disposição o determinar agora a agir assim e não de outro modo, ele
foi causa para si próprio da aquisição da disposição, que, por transitividade,
torna-o causa e, conseqüentemente, responsável por seus atos atuais. O pro-
blema torna-se a própria resposta: segundo Furley, o que é significativo é que
Aristóteles "não busca um critério do que é voluntário ou involuntário em se
um homem pode ou não agir de outro modo agora"xiii.
Haveria assim, em Aristóteles, segundo estes intérpretes, a busca de uma
ética da liberdade, mas o resultado seria uma psicologia determinista. É pre-
ciso, porém, evitar uma dramatização excessiva.A despeito da natureza fixa
da disposição como marca do caráter do agente, toda ação, na medida em que
nela se delibera sobre os meios, está aberta à consideração dos contrários. Pode
ser psicologicamente custoso a um agente mudar seus hábitos, mas não lhe
é impossível. Toda ação está aberta em sua realização, se o agente for capaz
de pesar as razões que concernem aos meios para realizar o fim buscado, por
mais disposicionalmente determinado que esteja o agente. Aristóteles, com
efeito, assinalará, em II 1- 2, que a ação não somente tem precedência sobre a
disposição (é a partir dos atos repetidos em uma certa direção que adquirimos

jO I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


as disposições correspondentes), como também prevalece sobre a disposição: por
maior que seja o hábito de um agente, ele sempre pode, em relação a cada ação
particularmente, agir diferentemente (desde que não tenha estiolado a razão,
seja momentaneamente, como no caso de embriaguez, seja definitivamente, por
um hábito bestial adquirido: nestes casos, a transferência de responsabilidade
dos atos que geraram a disposição aos que agora dela se seguem ainda assim
garante a imputabilidade moral). Aristóteles consistentemente sustenta uma
ética da liberdade, fundada na possibilidade de dizer sim ou não em função
da deliberação sobre os meios para realizar nossos fins, o que pode retroagir
sobre os fins, mas não necessita que os fins sejam postos pelo próprio agente
para que ele possa declarar, de modo moralmente relevante, que esta ação é
sua. Toda ação se constitui no cruzamento do sim e do não; o agente, porém,
pouco a pouco, mas inevitavelmente, constitui sua natureza, adquire suas dis-
posições, cuja fixidez permite uma estimativa razoável sobre o que fará. Esta
fixidez é um dado altamente relevante para se pensar sua vida do ponto de vista
de seu modo de agir, mas, por maior que seja, não exclui que o agente possa
agir diferentemente do modo como sempre agiu. Psicologia fixista do caráter
e ontologia do agir indeterminado convivem graças a uma ordem precisa de
precedência e prevalência entre ação e disposição.
As teses da precedência e da prevalência da ação sobre a disposição nos
permitem concluir estas notas fazendo uma referência à recuperação con-
temporânea da ética da virtude em um diapasão aristotélico, que se intitula
neo-aristotéuca. É freqüente encontrar a distinção entre ética centrada no ato
e ética centrada no agente para opor, respectivamente, as éticas deontológica
e utilitarista à ética da virtude; enquanto as primeiras se preocupariam cen-
tralmente com a avaliação dos atos (tendo, por conseguinte, como noções pri-
meiras as de dever e obrigação), a última teria por foco a noção de agente bom
(e tomaria como questões primeiras as de saber que tipo de pessoa o agente é
ou que tipo de vida se deve buscar). Etiquetas são sempre contestáveis; o que
importa aqui é a idéia que uma ética da virtude se distingue das outras éticas
fundamentalmente pelo fato que, nela, o conceito de virtude é fundante, o que
acarreta que a avaliação da ação deriva da avaliação do caráter do agentexiv• T al-
~ uma ética contemporânea que pretenda se demarcar simultaneamente do
utilitarismo e da deontologia necessite pôr a virtude ou o caráter nesta posição
dominante; para Aristóteles, porém, embora o caráter do agente, segundo suas

Introdução I jI
diferentes virtudes ou vícios, seja um elemento crucial na análise moral (como
o atesta o simples fato do presente tratado da virtude moral), a sua relevância
para a avaliação de uma ação provém fundamentalmente do fato que a ação
é compreendida de um modo tal que inviabiliza um procedimento fundado
em regras previamente estipuladas, o que favorece fortemente a busca por um
agente moralmente bom quando devemos descobrir qual é a coisa certa para
ser feita. Não se trata de dizer que um ato moralmente bom é (no sentido
de: está fundado em) o que é feito por um agente moralmente bom. O ato é
moralmente bom porque responde a propriedades que o caracterizam como
um meio termo em certas circunstâncias, apartado do excesso e da falta, que
constituem ambos o vício. O agente se torna moralmente bom por ter agido
com freqüência de modo correto. Como, porém, não se pode apelar a códigos
para conhecer o que deve ser feito aqui e agora, o homem virtuoso passa a
ocupar um lugar privilegiado para o reconhecimento do que deve ser feito,
dado que unicamente ele nos serve de critério para a ação. As virtudes têm
assim um lugar relevante na doutrina moral, mas têm este lugar em função
de uma certa teoria da ação. Ser bom é agir bem; o objetivo moral não é ad-
quirir disposições (pois alguém poderia passar sonolento o resto da vida após
as ter adquiridas), mas praticar atos moralmente bons (com base em nossas
disposições mais facilmente fazemos aquelas coisas pelas quais adquirimos
as disposições). Ocorre, contudo, que o reconhecimento do que é, em dadas
circunstâncias, uma boa ação depende crucialmente da capacidade que possui
o agente virtuoso de ver, em tais circunstâncias, o que deve ser feito. As virtu-
des são, portanto, centrais, mas derivadas; resultam das ações, gerando com
mais facilidade o tipo de ação de onde provieram, mas não têm precedência
sobre elas. Além disso, o mundo moral é perpassado por tal obscuridade que
é somente com base nas virtudes do prudente que podemos reconhecer o que
deve ser feito. A ética aristotélica é, deste modo, uma ética da virtude, mas não
é uma ética na qual a virtude é primária ou fundante do agir bem. Segue-se
também, de modo importante, que a ética aristotélica é uma ética que desafia
o princípio da codificabilidade generalizada dos princípios práticos. Uma ética
contemporânea da virtude pode ser compatível com algoritmos morais; a ética
aristotélica, porém, é radicalmente avessa a uma expressão aritmética do dever
e é em função desta aversão que ela se apresenta como uma ética da virtude.

32 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


3. PRINCÍPIOS DA PRESENTE TRADUÇÃO

Para esta tradução comentada, utilizei-me de diferentes edições do texto


grego de Aristóteles, bem como consultei com freqüência os comentadores
gregos antigos, que nos fornecem não raras vezes lições valiosas, especialmente
Aspásio. Dei preferência ao texto de Susemihl- Apelt (1912), que é a edição
em grego mais recente, mas consultei constantemente outras edições, principal-
mente a de Bywater (OCT 1894) e a de Bekker (1831), cujo trabalho é ainda
extremamente valioso. Sem poder recorrer a nenhum manuscrito, limitei-me
a ponderar sobre as variantes oferecidas pelos respectivos aparatos críticos. No
comentário, sempre anoto escolhas de variantes ou preferências de editores
que tenham relevância para a tradução do texto. Informo também ao longo
da tradução a paginação da edição Bekker, que funciona hoje como referência
universal para a localização de passagens. Nas notas, refiro-me sucintamente
a autores e editores, cujos dados bibliográficos podem ser facilmente recupe-
rados no final deste volume.

* * *

A presente tradução comentada de Ethica Nicomachea I 13 - III 8 circulou


por muito tempo sob forma de rascunho. Para sua realização, contei com o
apoio do CNPq, que me concedeu uma bolsa de pesquisador. Desde 2002,
pude contar também com o Projeto Temático da Fapesp sobre a filosofia de
Aristóteles, para o qual, aliás, apresentei uma versão desta tradução. Em se-
tembro de 2006, ela foi apresentada em um colóquio na USP, cópias tendo
sido distribuídas aos participantes; neste mesmo mês veio a lume a edição
comentada de C. C. W. Taylor de EN II - IV para a Clarendon Aristotle Series.
Procurei tirar proveito de seus comentários em uma última revisão, feita em
dezembro do mesmo ano, e que é agora a base desta edição.
O resultado é, assim, publicado cerca de dez anos após seu início. Incorporei
ao texto muitas sugestões de colegas e alunos. É-me quase impossível agradecer
a todos os que me auxiliaram nesta tarefa sempre provisória de traduzir um
texto clássico; a lista seria enorme e ainda conteria lacunas. Meus alunos de

Introdução I 33
pós-graduação sofreram por um decênio minhas hesitações e dúvidas. Lucas
Angioni, Roberto Bolzani e Fátima Évora têm-me auxiliado constantemente
para que o trabalho de tradução não fique tão insatisfatório. Carlo Natali e
Pierre Destrée fizeram-me valiosas sugestões para a versão final. Não poderia
deixar de mencionar o apoio de Balthazar Barbosa Filho, cuja cultura filosó-
fica só era rivalizada por sua generosidade; muito deste livro, ou mesmo tudo
dependeu do convívio que mantivemos por anos, interrompido tragicamente
por seu súbito falecimento um pouco antes de este manuscrito ser enviado
ao editor. Não preciso lembrar que os defeitos ainda existentes no presente
trabalho devem ser atribuídos exclusivamente a mim. Por fim, confesso que
não poucas vezes pensei em abandoná-lo por inteiro, mas dois sorrisos sempre
iluminaram a noite em que perpetuamente me encontro.

34 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


NOTAS

, Há uma discussão instrutiva sobre o problema dos títulos dos tratados de ética em
Vianney Oécarie, Éthique à Eudeme, Vrin 1984, pp. 17-31.
á Uma apresentação e discussão da estrutura das duas Éticas, bem como da MM
encontra-se na introdução da tradução italiana de Carlo Natali da EN (Etica Nico-
machea, Laterza 1999) .
.. Na mais recente tradução francesa da EN, Richard Bodéüs igualmente trata I 13
como fazendo parte de uma segunda unidade, que ele chama de "la vertu", Na sua \
opinião, porém, esta segunda unidade se conclui no fim do livro H; os capítulos IH
1 - 8 constituiriam, para ele, uma terceira parte, denominada "le consentement, la
décision et la responsabilité", É interessante observar que, paralelamente, Bodéüs
desloca a frase 1114b26-30, que, nos manuscritos, dá início ao que convencionamos
marcar como IH 8, para o início de IH 9, o começo de uma quarta parte, intitulada
por ele "les vertus morales particuliêres", que vai, por sua vez, até o final do livro
IV. No nosso entender, o texto dos manuscritos deve ser preservado, pois recapi-
tula, com razão, toda uma unidade temática, a saber, a que se estende de I 13 a IH
8, que tem por tema a natureza da virtude moral e que responde diretamente aos
termos envolvidos na definição de felicidade.
,. Como observou Jonathan Barnes, em um tom, porém, excessivo: "rhat our EN is
not a unity is beyond controversy - the existence of two treatments of pleasure is
enough to prove the factoThe only questions concern who invented our text, and
when, and from what materiaIs, and for what motives" (Roman Aristotle, p. 59, in
Pbilosophia Togata H - Plato and Aristotle in Rome, ed. J. Barnes e M. Griffin, Oxford
1997, pp. 1-69) .
• A frase ÉKáoTT] il"WS àpET~ KUL <jlWEl KUL w..ÀWS em 1234a29 pode ser lida de
dois modos: (i) "praticamente toda virtude ocorre de modo natural e de um outro
modo" ou (ii) "toda virtude ocorre de certo modo natural e de um outro modo",
conforme se liga TTWS a ÉKáoTT], o que parece mais natural nesta sentença, ou a
<t>ÚJEl. Comparando a frase com a passagem à qual remete em VI 13, especialmente
1144b4-5, parece-me preferível a segunda opção. Milita igualmente em favor desta
opção o fato de Aristóteles nunca afirmar, nem na EE nem na EN, que adquirimos
(certas) virtudes de modo natural, como sejá nascêssemos com elas: nascemos com
a capacidade de adquiri-las e nossa natureza pode favorecer ou dificultar a aquisição
em um ou outro sentido, mas as virtudes, como tais, não nos vêm naturalmente,
mas somente de um certo modo naturalmente (pelo menos esta é a lição explícita
de EN IH 1 e de EE H 2). Pode-se ter de nascença uma certa virtude, no sentido
de ter a tendência, desde pequeno, a agir de um modo que naturalmente levará

Introdução I 35
à aquisição da referida virtude; porém, a aquisição propriamente dita se faz pelo
hábito de agir em uma mesma direção.
vi G.E.L. Owen, Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle, editado original-

mente em Aristotle and Plato in the Mid-Fourth Century, ed. L Düring e G.E.L. Owen,
1960, pp. 163-190; traduzido para o português em Sobre a Metafísica de Aristóteles
- ensaios selecionados, ed. M. Zingano, Odysseus 2005, pp. 177-204.
vii Sobre o problema da unidade focal para a amizade, ver especialmente W. Forten-

baugh, "Arisrotles analysis of friendship: function and analogy, resemblance, and


focal meaning", Phronesis 20 (1975), 51-62. Examinei com mais detalhes estes pontos
em "Dispersão categorial e metafísica em Aristóteles", Discurso 33 (2003),9-34 e em
"Amistad, unidad focal y semejanza", Apuntes Filosóficos27 (2005),199-213; ambos os
textos estão agora reunidos em Estudos de Ética Antiga (Discurso Editorial 2007).
VI11 Deve-se observar que, no livro comum EN V 10, Aristóteles entende por voluntário
aquilo que o agente faz entre as coisas que estão ao seu alcance e do qual não ignora
as circunstâncias nas quais ocorre (1l35a23-24: o av TlS' TWV E<j>' Uirr00VTWV
EL8Ws' KUl µ~ àyvowv). Aristóteles escreve que tal definição é conforme ao que
"foi dito anteriormente" (1135a23), mas isso não segue o tratamento que a EN dá
do voluntário, e sim o que é oferecido pela EE II 7-9, o que é mais um indício de
que os livros comuns pertencem originalmente à EE.
ix David Ross, Aristotle, Londres 1923 (várias reimpressões), pp. 199-200.

x R.-A. Gauthíer e Y.jolif LEthique à Nicomaque, tradução e comentário, 2ed. reedi-


tada Peeters 2002.
xi P.-L. Donini, Tre studi sull'aristotelismo, Turin 1974, p. 184.

xii David Furley, Two studies in Greek Atomists, Princeton 1967, pp. 189-190.

xiii David Furley, op. cit., p. 191; mais adiante, Furley escreve que "a 'liberdade' de uma

ação, para Aristóteles, não depende do fato de o agente ser capaz de escolher de
outro modo no momento da ação", p. 226 n.15 (grifo meu).
xiv Ver, por exemplo, J. Annas, An introduction to Plato's Republic (Oxford 1981), que

escreve que, em uma ética centrada no agente, como é o caso da ética da virtude, "a
coisa certa para fazer é identificada ao tipo de coisa feita pela pessoa boa" (p. 157).
G. Watson, ao examinar a tese da primazia do caráter atribuída à ética da virtude,
buscando, porém, compatibilizar tal primazia com a idéia de agir com base em re-
gras codificáveis, entatiza que "uma ética da virtude não consiste na reivindicação
particular da prioridade da virtude sobre a conduta certa, mas na reivindicação mais
geral que a avaliação de uma ação é derivada da avaliação do caráter" (On the primacy
of character, p. 452). A despeito da diferença entre ambos, é claro que, em ambos os
casos, a noção de virtude ou caráter é conceitualmente primeira ou predominante
e a noção de ato bom é secundária ou dependente.

36 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


TRADUÇÃO

ETHICA NICOMACHEA
113 - 111 8
113

l102aS Dado que a felicidade é certa atividade da alma segundo perfeita virtude,

deve-se investigar a virtude, pois assim, presumivelmente, teremos também

uma melhor visão da felicidade. O verdadeiro estadista parece igualmente

ocupar-se sobretudo dela, pois pretende tornar os cidadãos bons e obe-

alO dientes às leis (temos como exemplo os legisladores dos cretenses e dos la-

cedemônios, bem como outros que possa ter havido como eles). Se este exame

é da alçada da arte política, é evidente que a investigação avança segundo o

plano traçado no início.


Deve-se evidentemente investigar a virtude humana, pois procurávamos o
alS bem humano e a felicidade humana. Por virtude humana, entendemos não a
do corpo, mas a da alma, e, por felicidade, entendemos atividade da alma. Se é
assim, o homem político deve evidentemente conhecer de certo modo o que
concerne à alma, assim como quem vai curar os olhos de alguém também deve
a20 conhecer de certo modo todo o corpo, e tanto mais deve conhecer quanto a arte
política é mais estimada e melhor do que a medicina: os médicos talentosos
empenham-se muito no estudo do corpo. O estudo da alma também deve ser
feito pelo homem político, mas ele deve estudá-la em função destes objetivos
e tanto quanto for suficiente em relação ao que analisa, pois examinar com

a2S minúcia talvez seja por demais laborioso para o que se propõe.

Alguns temas sobre a alma foram tratados com suficiência também nos

escritos exotéricos, a que devemos recorrer. No caso: uma parte sua é não-

38 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


racional; a outra, dotada de razão. Para a presente investigação,pouco importa

se se distinguem como as partes do corpo e como tudo o que é repartível, ou

se são duas pela razão, por natureza inseparáveis,como o côncavo e o convexo a30

no curvo. Da parte não-racional, uma se mostra comum e vegetativa - refiro-me


:ira virtude, à causa do alimentar e do crescer. Com efeito, pode-se supor tal capacidade da
DS também alma em todas as crias e nos embriões, e esta mesma capacidade também nos l102bl
gualmente seres adultos - é mais sensato supor que seja a mesma do que postular uma
ons e obe-
outra. Assim, a virtude desta capacidade é manifestamente comum e não hu-
leS e dos la- mana, pois esta parte e esta capacidade parecem operar sobretudo no sono; o
:este exame homem bom e o mau mal se distinguem no sono, de onde se diz que os homens bS
lsegundo o felizes não diferem dos desditosos durante metade de suas vidas. Isto é uma

decorrência plausível;o sono é um período inativo da alma relativo àquilo com


orávamos o
base no qual ela é dita boa ou má - a não ser que, de algum modo, em pequena
emas não a
medida, alguns movimentos penetrem, e, nesta medida, as imagens oníricas dos blO
I alma. Se é
homens equânimes são melhores do que as dos homens comuns. Basta, porém,
nodo o que
a respeito destas coisas e abandonemos a parte nutritiva, uma vez que não toma
mbémdeve
pane na virtude humana.
~toaarte
Uma outra natureza da alma também se mostra ser não-racional, partici-
15 talentosos
pando, porém, em certa medida, da razão. Com efeito, elogiamos, no homem
ém deve ser
que se controla e no acrático, a razão e a parte racional da alma, pois ela exorta blS
a objetivos
corretamente às melhores ações, mas também se manifesta neles uma outra
lIIlIDarcom
pane, ppr natureza contrária à razão, que combate e puxa em sentido contrário
à razão. Assim como, quando se decide movimentar para a direita os membros
:ambém nos
paralisados do corpo, estes, ao contrário, desviam à esquerda, assim também b20
e sua é não-

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 39


ocorre com a alma: os ímpetos dos acráticos vão em direções contrárias. Nos

membros do corpo vemos o desvio; no tocante à alma, não o vemos. Contudo,

não menos devemos considerar que também na alma há algo contrário à ra-

b2S zâo, contrapondo-se e resistindo a ela. Não importa como se distingue, mas,

manifestamente, esta parte participa da razão, como dissemos; pelo menos, a Sendo dupla a virtude

do homem que se controla obedece à razão - além disso, presumivelmente lEaual tem gênese e aume

a do homem temperante e corajoso é ainda mais obediente, pois em tudo apcriência e tempo), ao P

concorda com a razão. Orou também o nome, div

É também manifesto que a parte não-racional é dupla: a vegetativa em nada Também fica claro a pé

b30 participa da razão, ao passo que a apetitiva e, em geral, desiderativa participa GIl nós por natureza, pois

de certo modo da razão, na medida em que é acatadora e obediente, do modo diRrso. Por exemplo, a pe

como dizemos prestar atenção à razão do pai e dos amigos, mas não do modo w.uana a mover-se par~

como dizemos ter razão na matemática. A advertência e toda censura e exortação Imçando-a milhares de Ve2

indicam que a parte não-racional é persuadida de certo modo pela razão. Se for -=r-se para baixo, nem qual

l103al preciso dizer que esta parte é racional, será também dupla a parte racional: uma labiruaria a ser diferentem«

propriamente e em si racional, a outra como capaz de ouvir em certa medida .an naturalmente nem co

o pai. Também a virtude é dividida segundo esta diferença, pois dizemos que ~ a recebê-las, aperfeiçc

aS umas são intelectuais e outras, morais: sabedoria, perspicácia e prudência são Além disso, do que natt

intelectuais, ao passo que generosidade e temperança são morais. Com efeito,ao

falar a respeito do caráter, não dizemos que alguém é sábio ou perspicaz, mas

que é tolerante ou temperante, mas também elogiamos o sábio segundo sua

aJ.O disposição: chamamos de virtudes as disposições dignas de elogio.

40 I Ethica Nicomachea I 13 : III 8


ia contrárias. Nos
o vemos. Contudo, III
ligo contrário à ra-
•se distingue, mas,
Sendo dupla a virtude - uma intelectual, a outra moral -, a virtude inte-
IDOS; pelo menos, a
lectual tem gênese e aumento em grande parte pelo ensino (por isso requer al5
~presumivelmente
experiência e tempo), ao passo que a virtude moral resulta do hábito, de onde
me, pois em tudo
tirou também o nome, divergindo ligeiramente de ethos.

Também fica claro a partir disso que nenhuma virtude moral se engendra
l~vaemnada
em nós por natureza, pois nada do que existe por natureza habitua-se a ser
tsiderativa participa
diverso. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não se a20
Jbcdiente, do modo
habituaria a mover-se para cima, nem mesmo se alguém tentasse habituá-Ia
·mas não do modo
lançando-a milhares de vezes para cima; tampouco o fogo se habituaria a mo-
.eensura e exortação
ver-separa baixo, nem qualquer outro ser que é naturalmente de um modo se
., pela razão. Se for
habituaria a ser diferentemente. Por conseguinte, as virtudes não se engendram
pane racional: uma
nem naturalmente nem contra a natureza, mas, porque somos naturalmente a2S
ir em certa medida
aptos a recebê-las, aperfeiçoamo-nos pelo hábito .
.. pois dizemos que
Além disso, do que naturalmente surge em nós, possuímos primeiramente
iDa e prudência são
suas potências, depois exercitamos as atividades, o que fica claro no caso dos
IOÍS. Com efeito,ao
sentidos (não adquirimos as faculdades sensitivas por ver freqüentemente ou
It ou perspicaz, mas
por ouvir freqüentemente, mas, inversamente, tendo-as, exercemo-las, e não: a30
•sábio segundo sua
exercendo-as, temo-las); adquirimos as virtudes tendo-as primeiramente exer-
:Glgio.
/
citado, assim como com as outras artes - o que é preciso aprender para fazer,

isto aprendemos fazendo; por exemplo, os homens tornam-se construtores

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 4I


construindo casas e tornam-se citaristas tocando cítara. Assim também, pra-

l103bl ticando atos justos, tornamo-nos justos; praticando atos temperantes, tempe-

rantes; praticando atos corajosos, corajosos, Evidência disto é o que ocorre nas

cidades, pois os legisladores tornam bons os cidadãos incutindo-lhes hábitos,

I'"
bS e este é o intento de todo legislador; malogram os que não o fazem bem, e
c.aa., a Dlc:scmc ....

nisto difere a constituição boa da má. Dpririmos não ~


...., cpe. de outro IDDIIII
Ademais, é por meio das mesmas coisas que se engendra e se corrompe
-WPCirToe_ às ações, CDIJ»,
toda virtude, assim como a arte: com efeito, do praticar a cítara surgem tanto

os bons como os maus citaristas. Os construtores e todos os demais artesãos


, "",J wm que as dispociQi

~ ~ reta razão é a:JnI


blO analogamente: por construir bem, tornar-se-âo bons construtores; por construir

mal, maus construtores. Se não fosse assim, ninguém precisaria do mestre,


r5zrr a esse respriro. JI

.. ClII[nS virtudes). Soba


mas todos nasceriam bons ou maus. Assim também se passa com as virtudes:
..., discurso de qucsmc
bl5 agindo nas transações entre os homens, tornam-se uns justos; outros, injustos;
~ não exato, como di!
agindo nas situações de perigo e habituando-se a temer ou a ter confiança, tor-
:!Ir aigidos conforme a I
nam-se uns corajosos: outros, covardes. O mesmo ocorre no caso dos apetites,
assim como no das iras, pois se tornam uns temperantes e tolerantes; outros,
JMIkiusas nada têm de f
O discurso geral sendo d
b20 intemperantes e irascíveis, uns por persistirem a agir de um jeito nas mesmas

situações, outros por persistirem de outro jeito. Em uma palavra: as disposições


IR m aros particulares, I
_ púprios agentes semp
originam-se das atividades similares. Por esta razão, é preciso que as ativida-
_, ocorre na medicina
des exprimam certas qualidades, pois as disposições seguem as diferenças das
Embora seja assim a p
atividades. Portanto, habituar-se de um modo ou de outro logo desde jovem

\ b2S não é de somenos, mas de muita, ou melhor: de toda importância.

42 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


Assim também, pra-

IaI'lperantes, tempe-
II2
10 é o que ocorre nas

Dindo-Ihes hábitos,
Como a presente disciplina não visa ao conhecimento, como as outras visam
Dão o fazem bem, e
(pois inquirimos não para saber o que é a virtude, mas para tornar-nos bons,

dado que, de outro modo, em nada seria útil), é necessário investigar o que
mdra e se corrompe
concerne às ações, como devemos praticá-las, pois são elas que determinam b30
l cítara surgem tanto
também que as disposições sejam de certa qualidade, como dissemos. O agir
5 os demais artesãos
~ndo a reta razão é corrente; fique valendo como tese (será discorrido mais
rurores; por construir
adiante, a esse respeito, sobre o que é a reta razão e como se relaciona com
:ncisaria do mestre,
as outras virtudes). Sobre isto, porém, devemos estar previamente de acordo: l104al
asa com as virtudes:
rodo discurso de questões práticas tem de ser expresso em linhas gerais e de
1105; outros, injustos:
modo não exato, como dissemos igualmente no início que os discursos devem
la ter confiança, tor-
ser exigidos conforme a matéria; o que está envolvido nas ações e as coisas
DO caso dos apetites,
proveitosas nada têm de fixo, assim como tampouco o que concerne à saúde.
re tolerantes; outros,
O discurso geral sendo deste tipo, ainda menos exatidão tem o discurso so- aS
mt jeito nas mesmas
bre os atos particulares, pois não cai sob nenhuma técnica ou preceito, mas
1IIavra: as disposições
os próprios agentes sempre devem investigar em função do momento, assim
lIriso que as ativida-
como ocorre na medicina e na arte de navegar.
an as diferenças das
Embora seja assim a presente discussão, devemos vir em seu socorro. En- alO
110 logo desde jovem
tão, o que por primeiro se deve reconhecer é que tais coisas são naturalmente
portância.
corrompidas por falta e por excesso, como vemos no caso do vigor e da saúde
(pois devemos recorrer aos testemunhos visíveis em prol dos invisíveis): os

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 43


al5 exercíciosexcessivos,bem como os escassos,corrompem o vigor e, similarmente, .. dor nos abstemos das
as bebidas e as comidas em excesso ou escassas corrompem a saúde; os bem :!Ir educado de certo mo
proporcionados a produzem, aumentam e preservam. Assim se passa também ~ se deve: esta é a educ

com a temperança, a coragem e as outras virtudes. Quem teme e foge de tudo a a;õcs e emoções e se p
a20 e nada suporta torna-se covarde; quem em geral nada teme, mas tudo enfrenta, _.I":'" por isso a virtu
I

torna-se temerário. Igualmente, quem goza de todo prazer e não se abstém de _~':"' as punições que
nenhum torna-se incontinente; quem foge de todos, como os homens rústi-

cos, torna-se insensível, por assim dizer: a temperança e a coragem, então, são ...", como foi dito ante

a2S destruídas pelo excesso e pela falta, mas preservadas pela mediedade. E não lIçio àquelas coisas pelas
somente ocorrem pelas mesmas coisas as gêneses, os crescimentos e as corrup- a.apeito delas; pelos pra
ções, como também as atividades consistirão nas mesmas coisas, pois também «aiar aqueles que não ~
a30 assim ocorre no tocante às outras mais visíveis, como no vigor: ele surge do e.m ou de tantos outro
consumir muito alimento e suportar muitos esforços, e o homem de vigor é o .pc. Épor isso que tarnbé
mais capaz de os fazer. Assim também se passa com as virtudes: do abster-se «~des. Não o fazem
dos prazeres, tornamo-nos temperantes; tornados temperantes, somos os mais «ú> como se deve ou não s,
a3S capazes de abster-nos deles. Igualmente com a coragem: habituados a desprezar JIIr acrescentam. Portanto,
ll04bl as coisas temíveis e a suportá-las, tornamo-nos corajosos: tornados corajosos, pzicar o melhor referenl
seremos os mais capazes de suportar as coisas temíveis. Também se nos tom.
Deve-se tomar como indício das disposições o prazer ou dor que sobrevém -..:Ja pelo seguinte. Com
bS às nossas obras: é temperante quem se abstém dos prazeres corporais e se ale- Ido. o proveitoso e o agra
gra disso mesmo, ao passo que quem se apoquenta com isso é intemperante; _, -, o homem bom é c
quem suporta as coisas temíveis e se alegra, ou pelo menos não se aflige, é co- .dos eles, mas sobretudo
rajoso, ao passo que quem se aflige é covarde. Com efeito, a virtude moral diz c a:nmpanha a tudo o qu
blO respeito a prazeres e dores - por causa do prazer cometemos atos vis,por causa

44 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


ÍP' e, similarmente, da dor nos abstemos das ações belas. É por isso que, como diz Platão, deve-se

Dl a saúde; os bem ser educado de certo modo já desde novo, para que se alegre e se aflija com o

In se passa também que se deve: esta é a educação correta. Ademais, se as virtudes dizem respeito

a:me e foge de tudo a ações e emoções e se prazer e dor acompanham toda emoção e toda ação,

•mas tudo enfrenta, também por isso a virtude dirá respeito a prazeres e dores. São indicadores blS

r c não se abstém de também as punições que se dão por meio deles: algumas punições produzem

., os homens rúsri- cura, as que produzem cura ocorrem naturalmente pelos contrários. Além

~em,então,são disso, como foi dito antes, toda disposição da alma tem sua natureza com re-

l mediedade. E não lação àquelas coisas pelas quais a alma naturalmente torna-se melhor ou pior e b20

IoentOS e as corrup- a respeito delas; pelos prazeres e dores os homens tornam-se torpes, ao buscar

ooisas, pois também e evitar aqueles que não se devem, ou quando não se devem, ou como não se

•vigor: ele surge do devem ou de tantos outros tais modos quantos forem delimitados pela defini-

bomem de vigor é o ção. É por isso que também definem as virtudes como certas impassibilidades

nudes: do abster-se e quietudes. Não o fazem bem, contudo, porque falam sem outra qualificação, b2S

lDttS. somos os mais e não como se deve ou não se deve e quando se deve e todas as outras cláusulas que

biruados a desprezar se acrescentam. Portanto, a hipótese é que tal tipo de virtude é de natureza a

•uxnados corajosos, praticar o melhor referente a prazeres e dores; o vício, o contrário.

Também se nos tornaria evidente que concernem a estas mesmas coisas

udor que sobrevém ainda pelo seguinte. Como são três os objetos de busca e três os de fuga - o b30

ES corporais e se ale- belo, o prôveiroso e o agradável - e três os contrários - o feio, o danoso e o pe-

iDo é intemperante; noso -, o homem bom é correto e o homem perverso é incorreto a respeito de

• não se aflige, é co- rodos eles, mas sobretudo a respeito do prazer, pois este é comum aos animais

•a virtude moral diz e acompanha a tudo o que cai na rubrica busca, pois o belo e o proveitoso são b3S

DI aros vis, por causa manifestamente prazerosos. Ademais, desde a infância somos todos criados llOSal

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 45


com ele: por isso nos é difícil desvencilhar desta afecção entranhada na vida. ode. Além disso, não é
Também medimos as ações,uns mais, outros menos, pelo prazer e pela dor. Por pois os objetos produzic
aS isto, pois, é necessário que a inteira disciplina seja a seu respeito, pois não é de portanto, que estejam e
pouca importância no tocante às ações alegrar-se ou afligir-se bem ou mal. Ade- pelas virtudes são pratíc
mais, é mais difícil combater o prazer do que o impulso, como diz Heráclito; em wn certo estado, ma
é a respeito do que é mais difícil que sempre surgem arte e virtude, pois o bem csaào: primeiramente, (
alO é nestas condições melhor. De sorte que, também por isso, a inteira disciplina açio, e escolhe por delil
diz respeito a prazeres e dores, seja tocante à virtude seja tocante à política, pois portando-se de modo fin
quem se porta bem com relação a isso será um homem bom; quem se porta mal .ztts, estas condições nãe
será mau. Fique assente, pois, que a virtude diz respeito a prazeres e dores, que porém, ao possuir as vim
al5 tem crescimento e corrupção - sem ocorrer do mesmo modo - pelas coisas de ú> pouco, mas tudo pod
onde surge e que é ativa a respeito das coisas de onde surgiu. mnet1te atos justos e tem

Assim, os atos são dit

II3 &ria o justo ou o temper


~ os realiza também t

dim corretamente que oj


Pode-se questionar em que sentido afirmamos que, para tornar-se justos,
paDcar atos temperantes
os agentes devem praticar ações justas e, para tornar-se temperantes, devem
... -se bom. A maioria, P'
praticar ações temperantes, pois, se praticam ações justas e temperantes, são
ai filosofar e assim tom
a20 já justos e temperantes, assim como, se fizessem atos de gramática e música,já
p ouvem atentamente c
seriam gramáticos e músicos. Ou bem isso não ocorre nem mesmo nas artes:
Assim como estes não ter
Com efeito, é possível fazer algo de cunho gramatical tanto por acaso como
mupouco aqueles terão
instruído por outra pessoa. É, pois, um gramático quando faz algo de cunho

a25 gramatical e de modo gramatical, e isto é fazer segundo a gramática que está

46 I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8


.hada na vida. nele. Além disso, não é nem mesmo similar no tocante às artes e às virtudes,

IIr'C pela dor. Por pois os objetos produzidos pelas artes têm neles próprios o bom estado: basta,

~ pois não é de portanto, que estejam em um certo estado, ao passo que os que são gerados

emou mal. Ade- pelas virtudes são praticados com justiça ou com temperança não quando estão a30

D diz Heráclito; em um certo estado, mas quando o agente também age estando em um certo

lide. pois o bem estado: primeiramente, quando sabe; em seguida, quando escolhe por delibe-

.ma disciplina ração, e escolhe por deliberação pelas coisas mesmas; em terceiro, quando age

Ie à política, pois portando-se de modo firme e inalterável. Relativamente ao possuir as outras, as

an se porta mal artes, estas condições não são enumeradas, exceto o próprio saber; com relação, llOSbl

CR$ e dores, que porém, ao possuir as virtudes, o saber pouco ou nada conta; as outras condições,

- pdas coisas de não pouco, mas tudo podem, as quais justamente resultam do praticar freqüen-

temente atos justos e temperantes.

Assim, os atos são ditos justos e temperantes quando são tais quais os que bS

faria o justo ou o temperante: é justo e temperante não quem os realiza, mas

quem os realiza também tal como osjustos e temperantes os realizam. É, então,

dito corretamente que o justo nasce do praticar atos justos e o temperante, do blO
lJI'Dar-sejustos, praticar atos temperantes; do não os fazer ninguém sequer se avizinha de tor-
eranres, devem nar-se bom. A maioria, porém, não os realiza, mas, refugiando-se no discurso,
mperantes, são crê filosofar e assim tornar-se virtuoso, agindo de modo similar aos doentes
ÍIiCl e música,já que ouvem atentamente os médicos, mas nada fazem do que lhes é prescrito. blS
esmo nas artes? Assim como estes não terão o corpo em bom estado tratando-se deste modo,
[101' acaso como
tampouco aqueles terão a alma em bom estado filosofando deste modo.
: a1go de cunho
ú:ica que está

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 47


__ que nos dispomos
II4

CIIIpIZCS de ser afetados, I

A seguir, deve-se investigar o que é a virtude. Dado, pois, que os estados que
8mDeza dotados de cap
b20 se geram na alma são três: emoções, capacidades, disposições, a virtude será um
8mDeza (falamos a resp
deles. Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, inveja, alegria, amizade,

ódio, anelo, emulação, piedade, em geral tudo a que se segue prazer ou dor;
9E a virtude é quanto ac
por capacidades, os estados em função dos quais dizemos que somos afetados

b25 pelas emoções: por exemplo, aqueles em função dos quais somos capazes de

encolerizar-nos, afligir-nos ou apiedar-nos; por disposições, aqueles em função

dos quais nos portamos bem ou mal com relação às emoções: por exemplo,

com relação ao encolerizar-se, se nos encolerizamos forte ou fracamente, por- Porém, deve-se não se:

tamo-nos mal; se moderadamente, bem, e de modo semelhante com relação às tipo de disposição é. Deve
outras emoções. Então, nem as virtudes nem os vícios são emoções, porque não ado e desempenha bem a
b30 nos dizemos virtuosos ou viciosos em função das emoções, mas nos dizemos a rirtude do olho torna b

em função das virtudes e dos vícios, e porque nem elogiamos nem censuramos alho que vemos bem. Sir
em função das emoções (pois o homem que teme não é elogiado nem o que se o fiz correr bem, portar
encoleriza, tampouco é censurado o que se encoleriza sem outra qualificação, assim é a respeito de tudo
l106al mas o que se encoleriza de um certo modo), mas elogiamos ou censuramos i qual ele se torna um ho
em função das virtudes e dos vícios. Além disso, encolerizamo-nos e tememos de si próprio. Já dissemo
independentemente de uma escolha deliberada, ao passo que as virtudes são estudarmos de que tipo é

certas escolhas deliberadas ou não são sem escolha deliberada. Acrescente-se a Em todo contínuo e

aS estas considerações que dizemos que somos afetados em função das emoções, conforme à própria cois

48 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


porém não dizemos que somos afetados em função das virtudes e dos vícios,

mas que nos dispomos de um certo modo. Por estes motivos, tampouco são

capacidades:nem nos dizemos bons nem maus pelo faro de sermos simplesmente

capazes de ser afetados, nem elogiamos nem censuramos. Ademais, somos por
pc os estados que natureza dotados de capacidades, mas não nos tornamos bons ou maus por
.a Yirtude será um
natureza (falamos a respeito disso anteriormente). Se, então, as virtudes não alO
"a1egria, amizade, são nem emoções nem capacidades, resta que são disposições. Foi dito, pois, o
~ prazer ou dor;
que a virtude é quanto ao gênero.
lIe somos afetados

lDOlOS capazes de
II5
Ifldes em função
Des: por exemplo,

l fracamente, por- Porém, deve-se não somente dizer que é uma disposição, mas também que
e com relação às tipo de disposição é. Deve-se frisar, então, que toda virtude aprimora o bom es- alS
oções. porque não tado e desempenha bem a função daquilo mesmo de que é virtude. Por exemplo,
mas nos dizemos a virtude do olho torna bons o olho e sua função, pois é mediante a virtude do
Inem censuramos olho que vemos bem. Similarmente, a virtude do cavalo torna bom o cavalo e
iado nem o que se o faz correr bem, portar bem o cavaleiro e resistir bem aos inimigos. Logo, se a20
lIIIr.l qualificação, assim é a respeito de tudo, a virtude do homem também será a disposição graças

• ou censuramos à qual ele se torna um homem bom e graças à qual desempenha bem a função
lD-IlOS e tememos de si próprio. Já dissemos como isto se dá, mas ficará ainda evidente quando a2S
lIe as virtudes são estudarmos de que tipo é a natureza da virtude.
la. Acrescente-se a Em todo contínuo e divisível é possível tomar mais, menos e igual, e isso
~ das emoções, conforme à própria coisa ou relativo a nós; o igual é um meio termo entre

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 49


excesso e falta. Entendo por meio termo da coisa o que dista igualmente de ás ações. A virtude diz I

a30 cada um dos extremos, que justamente é um único e mesmo para todos os bIta é censurada, ao pa!
casos; por meio termo relativo a nós, o que não excede nem falta, mas isso não bwado pertencem à virt

é único nem o mesmo para todos os casos. Por exemplo, se dez é muito e dois é an ter em mira o meio t

pouco, toma-se o seis como meio termo da coisa, pois ultrapassa e é ultrapassado pcnence ao ilimitado, co

a3S de modo igual; este meio termo ocorre segundo a proporção aritmética. O meio o acertar dá-se de um ú
termo relativo a nós não deve ser concebido assim: com efeito, se a alguém comer o desviar do alvo, é dih<

l106bl dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinador pres- do vício o excesso e a fa
creverá seis minas, pois isto talvez seja pouco ou muito para quem as receberá: Bravos, pois, de um

para Mílon será pouco, para o principiante nos exercícios será muito. O mesmo

bS para a corrida e a luta. Deste modo, todo conhecedor evita o excesso e a falta

e procura o meio termo e o busca, não o meio termo da coisa, mas o relativo a

nós. Se, então, toda ciência leva a bom termo a função olhando o meio termo e a

ele conduzindo as obras (de onde se costuma arrematar dizendo, das obras que A virtude é, portanl

blO estão bem feitas, que nada há para retirar ou para acrescentar, porque o excesso sísrindo em uma medie

e a falta destroem o bom estado, a mediedade preserva-o), se os bons artesãos isro é, como a delimitar

trabalham, como dissemos, tendo-o em vista e se a virtude - como também a mal por excesso e o mal

bl5 natureza - é mais exata e melhor que toda arte, ela terá em mira o meio termo. ..nas, outras excederem

Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há winude descobre e tom:

excesso, falta e meio termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo, ter apetite, tplC exprime a qüididad,

b20 encolerizar-se, ter piedade e, em geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco, e c o bem, é um ápice.

ambos de modo não adequado; o quando deve, a respeito de quais, relativamente Nem toda ação adm

a quem, com que fim e como deve é o meio termo e o melhor, o que justamente são denominadas em in

é a marca da virtude. Similarmente, há excesso, falta e meio termo no tocante ~ impudicícia, a inveja e

50 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


I[e de às ações. A virtude diz respeito a emoções e ações, nas quais o excesso erra e a b2S

los os falta é censurada, ao passo que o meio termo acerta e é louvado: acertar e ser

e não louvado pertencem à virtude. Portanto, a virtude é certa mediedade, consistindo

dois é em ter em mira o meio termo. Ademais, o errar dá-se de muitos modos (o mal

lSSaClo pertence ao ilimitado, como conjecturavam os pitagóricos; o bem, ao limitado), b30

hneio o acertar dá-se de um único modo. Por isso um é fácil; o outro, difícil: é fácil

(Dffier o desviar do alvo, é difícil o acertar. E por estas considerações, é então marca

rpres- do vício o excesso e a falta; da virtude, a mediedade:

xberá: Bravos, pois, de um só modo, mas maus de muitos modos. b3S

oesmo

a falta
II6
larivo a

nno e a
A virtude é, portanto, uma disposição de escolher por deliberação, con-
rasque
sistindo em uma mediedade relativa a nós, disposição delimitada pela razão, l107al
acesso
isto é, como a delimitaria o prudente. É uma mediedade entre dois males, o
rtesãos
mal por excesso e o mal por falta. Ainda, pelo fato de as disposições faltarem
nbéma
umas, outras excederem no que se deve tanto nas emoções como nas ações, a
•termo.
virtude descobre e toma o meio termo. Por isso, por essência e pela fórmula aS
(D3ÍS há
que exprime a qüididade, a virtude é uma mediedade, mas, segundo o melhor
';rpetite,
e o bem, é um ápice.
KJUCO, e
Nem toda ação admite mediedade, tampouco toda emoção, pois algumas
ramente
são denominadas em imediata conjunção com a vileza, como a malevolência, alO
tamente
a impudicícia, a inveja e, quanto às ações, o adultério, o roubo, o assassinato.
I tocante

Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8 I SI


Com efeito, todas estas e as demais são censuradas por serem elas próprias _~-se é covarde.
vis e não por serem vis seus excessos ou faltas. Não há jamais como acertar a ..,wito das dores -, a rr
alS seu respeito, mas sempre se erra; tampouco o bem ou o não bem a respeito lá muitos que estejam 4

destas coisas está no praticar adultério com a mulher com quem, quando ou pmoas tampouco ganh
como se deve, mas o simples cometer qualquer um deles é errar. O mesmo vale .u:ber bens, a medieda
para estimar que também a propósito do agir injustamente, ser covarde e ser «..aricia. Excedem e es
a20 intemperante há mediedade, excesso e falta; haveria assim, pois, mediedade do ec:sbanjador excede em

excesso e da falta, excesso do excesso e falta da falta. No entanto, assim como acEde em recebimento
não há excesso e falta de temperança e coragem pelo fato de o meio termo ser ... grandes linhas e sur

de certo modo um ápice, assim tampouco há, daqueles, mediedade, excesso ~ definido de modo r

a2S ou falta, mas erra quem os pratique, pois, em geral, nem há mediedade do _outros estados: a me

excesso e da falta nem excesso e falta da mediedade. ~so: o primeiro di

ar:r.sso é falta de gosto

4pJe concernem à genero


II7
de honra e desonra, a m
aidade, a falta é peque
É preciso, porém, que isso seja expresso não somente de modo geral, mas
CIlIIl a magnificência, d
deve também aplicar-se aos casos particulares, pois nos discursos relativos às
.daciona certo estado cc
a30 ações os gerais são mais vagos, ao passo que os que concernem às partes atin-
ria: este estado diz resp
gem mais a verdade: com efeito, as ações dizem respeito às coisas particulares,
lIonrarias como se deve,
devendo harmonizar-se a elas. Investiguemo-los com base no quadro.
an seus desejos é dito ;
l107bl A respeito de medos e arrojos, a mediedade é coragem; dos que excedem,
DO meio termo não tem
quem o faz por falta de medo não tem nome (há muitos casos sem nome),
.ru,icioso: ambição. Pc
quem excede no arrojar-se é temerário, quem excede no ter medo e está em íalra
do meio termo, e nós ts

52 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


iprias no arrojar-se é covarde. No tocante a prazeres e dores - não todos, e menos a

rtar a respeito das dores -, a mediedade é temperança, o excesso é intemperança. Não bS

peito há muitos que estejam em falta relativamente aos prazeres. Por esta razão tais
lo ou pessoas tampouco ganharam nome; sejam ditos insensíveis. A respeito do dar e

avale receber bens, a mediedade é generosidade, o excesso e a falta são esbanjamento blü

.e ser e avarícia. Excedem e estão em faltam quanto a isso em direção contrária, pois

dedo o esbanjador excede em oferecimento e está em falta em recebimento, o avaro

como excede em recebimento e está em falta em oferecimento. Falamos no momento

10 ser em grandes linhas e sumariamente, satisfazendo-nos com isto mesmo; adiante bI5

Il:eSSO será definido de modo mais preciso a seu respeito. A respeito dos bens também

de do há outros estados: a mediedade é magnificência (pois o magniflcente difere do


generoso: o primeiro diz respeito a grandes somas; o segundo, a pequenas), o

excesso é falta de gosto e vulgaridade, a falta é mesquinharia. Eles diferem dos b20

que concernem à generosidade; discorrer-se-á adiante em que diferem. A respeito

de honra e desonra, a mediedade é magnanimidade, o excesso é uma assim dita

vaidade, a falta é pequenez. Como dizíamos que a generosidade se relaciona


L mas com a magnificência, distinguindo-se por tratar de pequenas somas, assim se b2S
tos às
relaciona certo estado com a magnanimidade, que diz respeito a grande honra-
rarin-
ria: este estado diz respeito a pequena honraria. Com efeito, é possível desejar
dares,
honrarias como se deve, bem como mais e menos do que se deve, e quem excede

em seus desejos é dito ambicioso, quem está em falta é desapegado, quem está
edem,
no meio termo não tem nome. Os estados também não têm nome, exceto o do b30
eme),
ambicioso: ambição. Por isto os que estão nos extremos outorgam-se o espaço
IlfãIta
do meio termo, e nós também chamamos quem está no meio termo por vezes

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 53


de ambicioso, por vezes de desapegado; por vezes louvamos o ambicioso; por visa à sua própria var
l108al vezes, o desapegado. Será explicado no que segue por que causa fazemos isto; em tudo é um tipo d
por ora, falemos sobre os restantes segundo o modo indicado. Há também medíe
Em relação à cólera também há excesso,falta e mediedade, mas, como prati- pudor não é uma virtu
aS camente eles não têm nome, chamando quem está no meio termo de tolerante, ClSOS um é dito meio t
nomeemos a mediedade de tolerância; dos extremos, seja quem excede irascível; cprem excede> é como c
o vício, irascibilidade; quem está em falta, um certo apático; a falta, apatia. Há em falta ou quem em g
também outras três mediedades que, tendo certa semelhança entre si, disrin- cprem está no meio tem
alO guem-se, porém, umas das outras; todas dizem respeito ao trato com palavras h>lência, e dizem resp
e ações, mas diferem porque uma concerne ao verdadeiro nestes contextos, en- próximos. Quem tem i)
quanto as outras dizem respeito ao agradável; deste, uma ocorre na diversão e mo; o invejoso, exced
a outra em todos os aspectos agradáveis da vida. Devemos portanto discorrer se ante os que imerecic
alS também sobre elas, a fim de melhor divisar que em todas a mediedade é lou- quanto ao afligir que m
vável,os extremos não são nem louváveis nem corretos, mas censuráveis. discutir sobre elas. Sobl
Há muitos destes estados sem nome, mas devemos tentar, como nos (~ estas discussões), j
outros casos, criar nomes para eles, com vistas à clareza e à facilidade de e trataremos igualment(
a20 acompanhamento. A respeito do que é verdadeiro, seja dito veraz quem está
no meio termo e a mediedade, veracidade; a afetação para mais, presunção

e quem a tem, presunçoso; a para menos, dissimulação e quem a tem, dis-

simulado. Quanto ao agradável na diversão, quem está no meio termo é

a25 espirituoso e o estado, espírito; o excesso é bufonaria e quem o tem, bufão; Três sendo os estadc

quem está em falta é um tipo de rústico e a disposição, rusticidade. A respeito wirtude,a mediedade, tO

do agradável restante, o da vida, quem é agradável como se deve é amigo e a sio contrários entre si e

mediedade, amizade; quem excede, se não visa a nada, obsequioso, mas, se GlIl10 o igual é maior rel.

54 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


Dcioso; por visa à sua própria vantagem, adulador; quem está em falta e é desagradável

Danos isto; em tudo é um tipo de quereloso e intratável. a30


Há também mediedades nas afeições e no que é acerca das emoções, pois o

~como prati- pudor não é uma virtude, mas o pudico é louvado. Com efeito, também nestes

de tolerante, casos um é dito meio termo, outro quem excede, <outro quem está em falta; e

Ide irascível; quem excede> é como o acanhado, que tem pudor em relação a tudo; quem está

.. ~.Há em falta ou quem em geral não tem pudor relativamente a nada é despudorado; a3S
IR si, disrin- quem está no meio termo é pudico. Indignação é a mediedade entre inveja e ma- l108bl
lIDIIl palavras levolência, e dizem respeito a dor e prazer gerados no tocante ao que advém aos

~os,en- próximos. Quem tem indignação aflige-se em face dos que imerecidamente têm

udiversão e êxito; o invejoso, excedendo, aflige-se de todos; <quem tem indignação aflige-

IID discorrer se ante os que imerecidamente fracassam,> o malevolente está tanto em falta bS

iEdade é lou- quanto ao afligir que mesmo se alegra. Haverá, alhures, melhor momento para

1Ur.ÍYeÍS. discutir sobre elas. Sobre a justiça, já que não é dita de modo simples, diremos

r. como nos (após estas discussões), feitas as distinções, como são mediedades os dois modos,

iicilidade de e trataremos igualmente das virtudes racionais. blO


IZquemestá

I, presunção
II8
la tem, dis-

leio termo é
Três sendo os estados: dois vícios, um por excesso, outro por falta, e uma
.tan, bufão;
virtude, a mediedade, todos se opõem de certo modo a todos, pois os extremos
~Arespeito

e amigo e a
ê
são contrários entre si e ao meio termo e o meio termo aos contrários: assim blS

como o igual é maior relativamente ao menor e menor relativamente ao maior,


ioso, mas, se

Ethica Nicomachea I 13 - 1II 8 I 55


assim também as disposições medianas excedem relativamente às faltas e faltam c mais próxima da co
relativamente aos excessos, tanto nas emoções como nas ações. Com efeito, o -ramos mais esta últi

b20 corajoso se mostra temerário relativamente ao covarde e covarde relativamente _ •• Pn, ser mais cont

ao temerário; similarmente, o temperante se mostra intemperante relativamente Esta é, então, a p

ao insensível e insensível relativamente ao intemperante; o generoso, esbanja- porem de nós mesrr

dor relativamente ao avaro e avaro relativamente ao esbanjador. Por isso cada _ urremos aos quais

extremo repele o meio termo em direção ao outro: o covarde chama o corajoso Pu- exemplo, nós nan

b2S de temerário, ao passo que o temerário o chama de covarde, e analogamente


.w.s propensos à int
axttrários os extreme
nos outros casos. Assim opostos uns aos outros, ocorre com os extremos mais
.a intemperança, que I
contrariedade entre si do que com o meio termo, pois estes distam mais um

do outro do que do meio termo, assim como o grande dista mais do pequeno

b30 e o pequeno do grande do que ambos do igual.

Ademais, o meio termo mostra certa semelhança com alguns contrários,

como a temeridade com a coragem e o esbanjamento com a generosidade, ao


Foi dito satisfatori
passo que os extremos manifestam máxima dessemelhança entre si. Os que
i.que é um meio tem
maximamente distam entre si são definidos como contrários, de modo que os «fie é tal por mirar o r
b35 que mais distam entre si são mais contrários. Relativamente ao meio termo, 110m. pois é árduo det

l109al opõe-se mais em alguns casos a falta; em outros, o excesso. Por exemplo, não a ckttrminar o meio d4

temeridade, que é um excesso, mas a covardia, que é uma falta, opõe-se mais à sabe; assim também, 4

ar dinheiro, mas não


coragem; não a insensibilidade, que é uma falta, mas a intemperança, que é um
ffUIlto, quando, em I
aS excesso, opõe-se mais à temperança. Isto ocorre devido a duas causas. A primeira
aro, louvável e belo. I
provém da própria coisa: por estar um dos extremos mais próximo e assemelhar-
K apartar do que é m
se mais ao meio termo, opomos mais ao meio termo não este extremo, mas o
Obra para fora d
seu contrário. Por exemplo, dado que a temeridade parece ser mais semelhante a nau.

56 I Ethica Nicomachea I 13 - 1118


15cfàltam e mais próxima da coragem e que a covardia parece ser mais dessemelhante,
Defeito, o opomos mais esta última à coragem, pois os que mais distam do meio termo alO
.-amente parecem ser mais contrários a ele•

ár.unente Esta é, então, a primeira causa, que provém da própria coisa; a outra

.. esbanja- provém de nós mesmos, pois se mostram mais contrários ao meio termo

risse>cada os extremos aos quais, de algum modo, mais nos inclinamos naturalmente.

o~oso Por exemplo, nós naturalmente tendemos mais aos prazeres, por isso somos alS

Iogamente mais propensos à intemperança do que ao decoro. Dizemos que são mais
contrários os extremos em relação aos quais nos lançamos mais, e por isso
mll)SmalS

a intemperança, que é um excesso, é mais contrária à temperança.


amais um

Dpequeno

II9
amttários,

l15idade,ao
Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral é um meio termo, como o a20
si. Os que
é, que é um meio termo entre dois males, um pelo excesso e o outro pela falta,
..do que os que é tal por mirar o meio termo nas emoções e nas ações. Por isso é árduo ser
leio termo, bom, pois é árduo determinar o meio termo em cada situação - por exemplo, a2S
mpIo, não a determinar o meio de um círculo não é para qualquer um, mas para quem

~maisà sabe; assim também, é para qualquer um e é fácil o encolerizar-se, dar ou gas-
tar dinheiro, mas não é para qualquer um nem é fácil o determinar a quem,
.. queéum
quanto, quando, em vista do que e como fazer. Por esta razão, o bem agir é
,A primeira
raro, louvável e belo. Por isso quem mira o meio termo deve primeiramente
assemelhar-
se apartar do que é mais contrário, como adverte Calipso: a30
ano, mas o
Obra para fora da névoa e onda
amelhante a nau.

Ethica Nicomachea I 13 - II/ 8 I 57


Dos extremos, com efeito, um induz mais em erro e o outro menos. Visto Tudo isso mostra, 1

que é difícil atingir com extrema exatidão o meio termo, em segunda navegação (ÓrS louvável, mas que

a3S - dizem - deve-se tomar o menor dos males, e isto ocorrerá sobretudo segundo pois atingiremos assin
l109bl o modo que descrevemos. Devemos ficar atentos aos erros aos quais somos mais

propensos: alguns tendem para uns; outros, para outros. Isto se torna conhecido

pelo prazer e pela dor por que passamos. Devemos puxar a nós mesmos em

b5 direção ao ponto oposto, pois chegaremos ao meio termo afastando-nos tanto


Como a virtude di:
quanto possível do erro, como fazem os que endireitam a madeira empenada.
são censurados e louva,
Em tudo devemos precaver-nos principalmente contra o que é agradável e contra
por vezes também de f
o prazer, pois não somos juízes imparciais quanto ao prazer. Havemos de sen-
rirtude definir o volun
blO tir diante do prazer precisamente o que os anciãos sentiram diante de Helena
anto para a distribuiç
e devemos proferir em todas estas situações a fala deles; afugentando assim o
Parecem ser involu
prazer, erraremos menos. Para falar sucintamente, se fizermos estas coisas, fi-
É forçado o ato cujo 1
caremos sobremaneira capazes de atingir o meio termo. Por certo isto é difícil, ~te ou o paciente e
us e o é sobretudo nos casos particulares, pois não é fácil estabelecer como, com 'fle dominam a situaçâ
quem, por quais motivos e por quanto tempo deve-se encolerizar-se, e mesmo são voluntárias ou invo

por vezes louvamos os que estão em falta e os chamamos de tolerantes, por mees que com vistas a ,

vezes louvamos os que têm caráter difícil e os denominamos de viris. E mesmo bzer algo ignóbil retei
não é censurado quem se distancia do certo somente um pouco, seja para mais, 6:zesse, mas morreriar

b20 seja para menos, mas quem se distancia em maior medida, pois ele não passa propósito do lançamer

despercebido. Não é fácil determinar pela razão até que ponto e em quanto ele é ade: ninguém lança, :
salvação de si mesmo;
censurável, pois tampouco o é algum outro objeto sensível: tais objetos ocorrem
Portanto, tais ações sã(
nos casos particulares e a discriminação é matéria de sensação.

58 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


.. Visto Tudo isso mostra, portanto, que a disposição mediana é em todas as situa-

.egação ções louvável, mas que por vezes devemos tender ao excesso, por vezes à falta, b2S

segundo pois atingiremos assim do modo mais fácil o meio termo, isto é, o bem.

DOS mais

mhecido IIIl
IDOS em

llS tanto
Como a virtude diz respeito a emoções e ações e como os atos voluntários b30
!ptlUda.
são censurados e louvados, ao passo que os involuntários são objeto de perdão e
[econtra
por vezes também de piedade, é presumivelmente necessário aos estudiosos da
,de sen-
virtude definir o voluntário e o involuntário, bem como é útil aos legisladores
~Helena
tanto para a distribuição de honrarias quanto para a aplicação de punições.
,assun o
Parecem ser involuntárias as ações praticadas por força ou por ignorância. b3S
1Disas, fi- É forçado o ato cujo princípio é exterior ao agente, princípio para o qual o 11lOal

é difícil, agente ou o paciente em nada contribui; por exemplo, se o vento ou homens,

IIID.com que dominam a situação, levarem-no a algum lugar. Há discussão para saber se

: mesmo são voluntárias ou involuntárias as ações praticadas por medo de males maiores

lia. por antes que com vistas a algo belo; por exemplo, se um tirano ordenasse a alguém aS

lmesmo fazer algo ignóbil retendo em seu poder pais e filhos que seriam salvos se o

112 mais,
fizesse, mas morreriam se não o fizesse. Algo semelhante ocorre também a

propósito do lançamento ao mar da carga de um navio durante uma tempes-


iopassa
tade: ninguém lança, sem mais, a carga ao mar voluntariamente, mas, para
Il1[O ele é
salvação de si mesmo e dos restantes, todas as pessoas sensatas agem assim. alO
DClXTem
Portanto, tais ações são, de um lado, mistas; de outro, assemelham-se mais às

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 59


voluntárias, pois são escolhidas no momento em que são praticadas, e o fim da e cujo princípio está

ação se dá conforme a ocasião. Voluntário e involuntário, então, devem ser ditos são voluntárias no r

com referência ao momento em que se pratica a ação. Age voluntariamente, voluntárias, pois as ~

al5 pois o princípio do movimentar os membros do corpo em tais ações reside são voluntárias. Nãc
no próprio agente; estão no poder do agente fazer ou não fazer as ações cujo de que outras, pois t
princípio reside nele próprio. Tais ações são, então, voluntárias, mas absoluta- dissesse que as coisa

mente, presumivelmente, são involuntárias, pois ninguém escolheria quaisquer compelem-nos a agir

destes atos por si mesmos. Algumas vezes os homens são mesmo louvados por causa delas. Na vere

a20 ações de tal tipo, quando suportam algo ignóbil ou penoso em troca de efeitos os que são feitos por

grandiosos e belos; quando ocorre o inverso, são censurados, pois é típico de t derrisório, então, c

uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe em função de algo nada ser presa fácil de tais

as circunstâncias agr
ou medianamente belo. Em alguns casos, porém, não há louvor, mas perdão,
O ato forçado, pc
a2S quando alguém faz o que não deve fazer por tais coisas que excedem à natureza
pessoa forçada em ns
humana e que ninguém suportaria. A algumas coisas presumivelmente não

há como sermos compelidos, mas se deve antes morrer sofrendo as dores mais

atrozes (por exemplo, são manifestamente irrisórios os fatos que compeliram

Alcmeon a matar a própria mãe na peça de Eurípides). Por vezes é difícil julgar

a30 qual coisa se deve escolher ao preço de qual outra e o que suportar em troca de
Todo ato feito po
quê, e é ainda mais difícil perseverar nas resoluções, pois nas mais das vezes o
produz aflição e arreF
que é esperado é penoso, e aquilo a que somos compelidos é vil; de onde há ou
se sentindo incomoda
não louvor e censura a respeito de quem é compelido.
em que não sabia, mas
11lObl Que coisas, então, devem ser ditas forçadas:' Não seriam, sem mais, aque-
~e. Assim, de quen
las cuja causa está fora do agente e à qual ele em nada contribui? As que são
se arrepende; quem n
por si involuntárias, mas que são no momento escolhidas em troca de outras
woluntário; com efeitc

60 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


._co6mda e cujo princípio está no agente são, de um lado, involuntárias por si; de outro, bS

laIl ser ditos são voluntárias no momento e em troca de outras. Assemelham-se mais às

lI:Iriamente, voluntárias, pois as ações se produzem em circunstâncias particulares e estas

ações reside são voluntárias. Não é fácil dizer quais coisas devem ser escolhidas ao preço

11 ações cujo de que outras, pois há muitas diferenças nos particulares. Se, porém, alguém

IaS absoluta- dissesse que as coisas agradáveis e belas são forçadas (pois, sendo exteriores, blO

ia quaisquer compelem-nos a agir), tudo seria assim forçado, pois todos fazemos tudo por

lJIJ\':ldospor causa delas. Na verdade, os atos por força e involuntários são penosos, mas

adeefeitos os que são feitos por causa do agradável e belo são acompanhados de prazer;

,é típico de é derrisório, então, culpar as circunstâncias externas, e não a si mesmo, por

ser presa fácil de tais coisas, e responsabilizar-se a si mesmo pelas belas, mas
Ir algo nada
as circunstâncias agradáveis pelas ignóbeis. blS
IDaS perdão,

I à natureza
o ato forçado, portanto, mostra-se ser aquele cujo princípio é exterior, a

pessoa forçada em nada contribuindo ao princípio da ação.


:lmmte não

,dores mais

tmnpeliram III2
lIi&:il julgar
an troca de
Todo ato feito por ignorância é não voluntário, mas é involuntário o que
'elas vezes o produz aflição e arrependimento, pois quem fez algo por ignorância, em nada
'aode há ou se sentindo incomodado quanto à ação, não agiu voluntariamente, na medida b20

em que não sabia, mas tampouco involuntariamente, na medida em que não se


mais,aque- aflige. Assim, de quem age por ignorância, parece agir involuntariamente quem
kquesão se arrepende; quem não se arrepende, visto que é diferente, que seja dito não
:a de outras voluntário; com efeito, visto que difere, seria melhor ter um nome distinto.

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 6I


b2S o agir por ignorância se mostra distinto também do agir em estado de

ignorância, pois quem está bêbedo ou encolerizado não parece agir por ig-

norância, mas por uma das causas mencionadas, não sabendo o que faz, mas sobrenu

estando na ignorância do que faz. De um lado, pois, todo homem perverso

ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e por causa de tal erro os

b30 homens tornam-se injustos e, em geral, maus; já involuntário quer dizer não

que alguém ignora o que é benéfico, pois a ignorância na escolha deliberada

não é a causa do involuntário, mas da perversidade, nem a ignorância geral

(pois por sua causa os homens são censurados), mas a ignorância das cír-

llllal cunstâncias particulares, aquelas nas quais e acerca das quais se desenrola
Sendo involuntária a ~
a ação. Nelas se exerce a piedade e o perdão: aquele que age ignorando uma

delas age involuntariamente.


prriculares nas quais occ
Talvez então não seja inapropriado determiná-las, quais e quantas são: quem

age, o que faz, sobre o que ou em que age, por vezes com o que age (por exemplo,
p as ações praticadas P'

aS com um instrumento), com vistas a que (por exemplo, com vistas à salvação)

e como age (por exemplo, calma ou violentamente). Ninguém poderia ignorar

todas elas, a menos que seja insano, e é óbvio que tampouco ignoraria quem

está agindo; como, com efeito, ignoraria a si mesmo? Alguém, porém, poderia
.w. única causa? É igu~
ignorar o que faz; por exemplo, quando dizem que lhes escapou ao falar, ou,
~ é preciso desejar: é P'
alO como Ésquilo deixou escapar mistérios, que não sabia que eram secretos, ou,

como o homem da catapulta, querendo mostrá-la, dispara-a. Alguém pode


pr outras (por exemplo
puecem ser penosas; as
crer que seu filho é um inimigo, como Merope, ou que uma lança pontiaguda
~to ao ser involuntári
é uma lança de ponta esférica, ou que a pedra é uma pedra-pomes, ou, dando a
um lado, ambos são a e
beber uma poção com vistas à cura, matar alguém, e, querendo tocar, como os

62 I Ethica Nicomachea I 13 - 1I/ 8


n esrado de lutadores de mão, soquear. A ignorância incide sobre todas estas circunstâncias alS

agir por ig- nas quais se desenrola a ação; aquele que ignora uma delas parece ter agido in-

paefaz, mas voluntariamente, sobretudo entre as circunstâncias mais importantes: o fim

m perverso parece ser sumamente importante entre as circunstâncias nas quais ocorre a

: tal erro os ação. Do ato dito involuntário por causa de tal ignorância deve ainda a ação

~dizer não ser penosa e provocar arrependimento. a20

I deliberada

rincia geral III 3


JCÍa das cir-

Ie desenrola
Sendo involuntária a ação realizada por força e por ignorância, o voluntário
onndouma
parece ser aquilo cujo princípio reside no agente que conhece as circunstâncias

particulares nas quais ocorre a ação. Não é presumivelmente correto dizer, pois,
:as são: quem
que as ações praticadas por impulso ou por apetite são involuntárias, pois, neste a2S
por exemplo,
caso, em primeiro lugar, nenhum outro animal poderá agir voluntariamente,
IS à salvação)
tampouco poderão as crianças. Depois, quer isto dizer que não fazemos nada
hiaignorar
voluntariamente por apetite ou por impulso, ou que fazemos as coisas belas
..-ana quem
voluntariamente e involuntariamente as ignóbeis? Não é isto risível, havendo
Ián, poderia
uma única causa? É igualmente absurdo dizer que são involuntárias as coisas
ao fãIar, ou,
que é preciso desejar: é preciso encolerizar-se a respeito de algumas e ter apetite a30
secretos, ou,
por outras (por exemplo: pela saúde e pela instrução). E as ações involuntárias
Iguém pode
parecem ser penosas; as por apetite, agradáveis. Além disso, qual é a diferença
t pontiaguda
quanto ao ser involuntário dos erros cometidos por cálculo ou por impulso? Por
au.dando a
um lado, ambos são a evitar; por outro, parecem não ser menos humanas as 11l1bl
~comoos

Ethica Nicomachea I 13 - lII8 I 63


emoções não-racionais, de sorte que também as ações por impulso e por apetite deliberadamente coisa:

pertencem ao homem. Postular que são involuntárias é, assim, um absurdo. ~er de objetos imp

diz respeito também à,


si mesmo (por exernpk
III4
llinguém escolhe por de

Jmdrar por si próprio. ,


Tendo sido definidos o voluntário e o involuntário, segue-se o exame da
a escolha deliberada cor
b5 escolha deliberada, pois parece ser mais própria à virtude e mais apta a discri-
aar saudáveis, mas eso
minar o caráter do que as ações o fazem. Então, a escolha deliberada, por um
dáoeis; queremos ser fel
lado, é manifestamente voluntária; por outro, não é o mesmo que o voluntário,
acolhemos deliberadan
porquanto o voluntário é mais abrangente, pois crianças e os outros animais
parece dizer respeito àq
compartilham do voluntário, mas não da escolha deliberada, e dizemos que
Tampouco é uma 0F
blO os atos súbitos são voluntários, mas não que são por escolha deliberada.
aio menos sobre as cois
Os que afirmam que a escolha deliberada é apetite, impulso, querer ou
..sso poder. Ademais, a
uma certa opinião não parecem falar corretamente. Com efeito, a escolha
BÍ; a escolha deliberada,
deliberada não é comum aos animais irracionais; apetite e impulso, porém, o
e:Iare que a escolha dei
são. O acrático age por apetite, não escolhendo deliberadamente; o homem

blS continente, ao contrário, age escolhendo deliberadamente, não por apetite. E 9:Jt é o mesmo que um

é à escolha deliberada que o apetite se opõe, não é ao apetite que o apetite se .-mre coisas boas ou ms

opõe. O apetite concerne ao agradável e ao penoso; a escolha deliberada, nem Escolhemos deliberadam

ao agradável nem ao penoso. 9IIe é, a quem convém OI:

Menos ainda é um impulso, pois os atos por impulso minimamente pare- aIxer ou evitar. A escolha

cem ser por escolha deliberada. 9IIe se deve mais de que


b20 Tampouco é querer, embora lhe seja evidentemente afim, pois não há Da. Escolhemos deliber

escolha deliberada de objetos impossíveis e, se alguém declarasse escolher I:.oas, mas opinamos sob

64 I Ethica Nicomachea I 13 - II/ 8


iiapuIso e por apetite deliberadamente coisas impossíveis, pareceria ser insano, ao passo que há

..... um absurdo. querer de objetos impossíveis (por exemplo: a imortalidade). E o querer

diz respeito também àquelas ações que de modo algum são realizadas por

si mesmo (por exemplo: querer que um ator ou atleta vença a competição);

ninguém escolhe por deliberação, porém, tais coisas, mas aquelas que crê en- b2S
gendrar por si próprio. Ademais, o querer diz respeito sobretudo ao fim, mas
.goe-se o exame da a escolha deliberada concerne ao que conduz ao fim (por exemplo: queremos
ee mais apta a discri-
estar saudáveis, mas escolhemos deliberadamente que coisas nos tornarão sau-
addmerada, por um
dáveis; queremos ser felizes e o declaramos, mas não é apropriado dizer que
..., que o voluntário,
escolhemos deliberadamente ser felizes). Em suma, pois, a escolha deliberada b30
5C m outros arumais
parece dizer respeito àquelas coisas que estão em nosso poder.
lDI1a. e dizemos que
Tampouco é uma opinião, pois a opinião parece ser sobre qualquer coisa, e
.6a deliberada.
não menos sobre as coisas eternas e impossíveis do que sobre as que estão em
:. impulso, querer ou
nosso poder. Ademais, a opinião se divide em falsa e verdadeira, não em boa e
ÃIm efeito, a escolha
má; a escolha deliberada, sobretudo nestes últimos. Talvez, no entanto, ninguém 11l2al
ec impulso, porém, o
declare que a escolha deliberada é o mesmo que a opinião em geral. Tampouco
:adamente; o homem
que é o mesmo que um tipo de opinião: com efeito, é por escolher deliberada-
R. não por apetite. E
mente coisas boas ou más que somos de uma certa qualidade, não por opinar.
~ que o apetite se
dba deliberada, nem Escolhemos deliberadamente obter, evitar ou algo semelhante; opinamos sobre o

que é, a quem convém ou de que modo é, mas de modo algum opinamos sobre aS

• minimamente pare- obter ou evitar.A escolha deliberada é louvada pelo fato de estar subordinada ao

que se deve mais de que pelo fato de ser reta; a opinião, pelo fato de ser verda-

lIIt afim. pois não há deira. Escolhemos deliberadamente sobretudo aquelas coisas que sabemos serem

~ dedarasse escolher boas, mas opinamos sobre as que de modo algum sabemos. Não parecem ser

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 65


os mesmos os que melhor deliberam e os que melhor opinam, pois uns, embora .-.wo. Também não se dd
alO opinem melhor, escolhem por vícioas coisasque não devem. É irrelevantese uma

opinião precede ou acompanha a escolha deliberada, pois não investigamos este

ponto, mas se é idêntica a uma certa opinião.

Portanto, que é ou qual é sua qualidade, visto que não é nenhum dos casos
mencionados:' Por um lado, a escolha deliberada é manifestamente voluntária;

por outro, nem todo voluntário é objeto de escolha deliberada. Seria então o que

alS é decidido preliminarmente:' Com efeito, a escolha deliberada é acompanhada

de pensamento e reflexão. Também o nome parece aludir ao que é escolhido as ciências exatas e aur
antes que outras coisas.

III5

Delibera-se sobre tudo, e tudo é objeto de deliberação, ou não há conselho do que das ciências; (
sobre certas coisas:' Presumivelmente se deve dizer que o objeto de delibera-

a20 çâo não é aquilo sobre o qual deliberaria um parvo ou insano, mas aquelas
coisas sobre as quais o homem sensato deliberaria. Ninguém delibera, então,
sobre os objetos eternos; por exemplo, sobre o universo ou se a diagonal e o

lado são incomensuráveis. Também não sobre os que estão em movimento, Deliberamos não sobre '
mas que se engendram sempre do mesmo modo, seja necessária, seja natural-

a2S mente ou por uma outra causa, como as órbitas e o nascer dos astros. T am-

pouco sobre os que são ora de um jeito, ora de outro, como secas e chuvas.

Tampouco sobre os que ocorrem por acaso, como o descobrimento de um

66 I Ethica Nicomachea I 13 - II/ 8


... pois uns, embora tesouro. Também não se delibera, porém, sobre todos os assuntos humanos;

.É indevante se uma por exemplo, nenhum lacedemônio delibera sobre como os citas melhor se

IIÍD iIM:stigamoseste governariam. Com efeito, nenhuma destas coisas ocorreria por nós mesmos. a30

Deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder, i.e., que podem ser

iomhum dos casos feitas: são estas as que restam.

laIIlente voluntária; Parecem, assim, ser causas a natureza, a necessidade e o acaso; além disso,

lia. Seria então o que o intelecto e tudo o que é feito pelo homem. Cada um de nós homens delibera

:ada i acompanhada sobre aquilo que pode ser feito por si próprio. De um lado, não há conselho

r ao que é escolhido sobre as ciências exatas e autônomas, por exemplo: sobre ortografia (não fica- l1l2bl
mos em dúvida sobre como um termo deve ser escrito); deliberamos, porém,

sobre as coisas que ocorrem por nós mesmos, mas que não ocorrem sempre

do mesmo modo (por exemplo: as da medicina e da arte de enriquecer, e mais

sobre a navegação do que sobre a ginástica: tanto mais quanto menor for seu bS

estado de exatidão). Do mesmo modo para as restantes: mais a respeito das


CJO não há conselho artes do que das ciências; com efeito, ficamos mais em dúvida sobre elas.
loI:;ttO de delibera- Deliberar, então, diz respeito às coisas que ocorrem nas mais das vezes, mas
asano, mas aquelas nas quais é obscuro como resultarão, e àquelas nas quais é indefinido como
im delibera, então, resultarão. Cercamo-nos de conselheiros em relação aos assuntos importantes, blO
.. se a diagonal e o descrentes de nós mesmos como incapazes de discernir o que fazer.
tio em movimento, Deliberamos não sobre os fins, mas sobre as coisas que conduzem aos
~ seja natural- fins. Com efeito, nem o médico delibera se há de curar, nem o orador se há de
=-- dos astros. T am- convencer, nem o político se há de fazer uma boa constituição, nem ninguém
.., secas e chuvas. mais delibera sobre o fim, mas, tendo posto um fim, investigam como e atra- blS
mbrimento de um vés de que o obterão; e, parecendo ocorrer através de vários meios, investigam

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 67


através de qual mais rápida e belamente ocorrerá; sendo produzido por um ~ é objeto de escolha deL
único meio, investigam como ocorrerá através disto e este através de que meio, antigas, que Homero cann

até chegarem à primeira causa, que é a última na ordem da descoberta. De haviam escolhido por deli
b20 fato, o homem que delibera parece investigar e analisar da maneira descrita, o objeto de desejo delibera

como uma construção geométrica (é patente que nem toda investigação é uma será, então, o desejo delibe

deliberação, como as investigações matemáticas, mas toda deliberação é uma função de ter deliberado, c

investigação), e o termo último na análise é o primeiro na execução. Caso Fique, assim, dito em

b2S se deparem com algo impossível, suspendem a investigação; por exemplo, se ~ coisas incide e que co

for preciso dinheiro, mas não se é capaz de ganhá-lo; caso se revele possível,

põem-se a agir. São possíveis aquelas coisas que ocorrem por nós mesmos, pois

as coisas feitas pelos amigos são em um certo sentido feitas por nós mesmos:

o princípio está em nós. Investiga-se ora os instrumentos, ora sua utilização;


Foi dito que o querer c
b30 também nas restantes, investiga-se ora por qual meio, ora como ocorrerá ou
a outros, ao bem aparentc
através de quê.
decorre que não é objeto c
O homem mostra-se, então, conforme foi dito, ser princípio das ações; o
mente (pois, se for objeto d
conselho concerne às coisas feitas por si mesmo; as ações são em vista de ou-
um mal); por sua vez, aos
tras coisas. Portanto, o fim não é objeto de deliberação, mas aquelas coisas que
decorre que não existe obje
conduzem aos fins. Também não são objeto de deliberação os singulares; por

ll13al exemplo, se isto é pão ou se está cozido como deve, pois são do domínio da sen-
que parece bom a cada um
mesmo, no caso, coisas coru
sação. Se sempre se tiver de deliberar, ir-se-á ao infinito. O objeto de deliberação
não se deve dizer que é obj
e o objeto de escolha deliberada são o mesmo, com a ressalva que o objeto de
enquanto o que aparece a Cé
escolha deliberada já está determinado: com efeito, o objeto de escolha delibe-

aS rada é o que foi preferido em função do conselho. Cada um pára de investigar


é objeto do querer o bem sc
aleatório, assim como, com
como agirá quando traz a si o princípio e ao seu condutor: é isto, com efeito, o

68 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


r-oo produzido por um que é objeto de escolha deliberada. Isto fica também evidente pelas constituições
~ aravés de que meio, antigas, que Homero cantou em poemas, pois os reis anunciavam ao povo o que

~ da descoberta. De haviam escolhido por deliberação. Dado que o objeto de escolha deliberada é
~ da maneira descrita, o objeto de desejo deliberado do que está em nosso poder, a escolha deliberada alO

~!IIdainvestigação é uma será, então, o desejo deliberativo do que está em nosso poder, pois, julgando em
:
~mda ddiberação é uma função de ter deliberado, desejamos conformemente à deliberação.
~ na execução. Caso Fique, assim, dito em grandes linhas o que é a escolha deliberada, sobre

~; por exemplo, se que coisas incide e que concerne às coisas que conduzem aos fins.

r-
~ as<> se revele possível,

por nós mesmos, pois


III6
~ '=ias por nós mesmos:

~ ora sua utilização;


Foi dito que o querer concerne ao fim, mas a uns parece concernir ao bem; aIS
~ ora como ocorrerá ou
a outros, ao bem aparente. Aos que dizem que o objeto do querer é o bem,
decorre que não é objeto do querer o que quer aquele que não escolhe correta-
~ princípio das ações; o
mente (pois, se for objeto do querer, será então um bem; era, no entanto, no caso,

r
~ são em vista de OU~

um mal); por sua vez, aos que dizem que o bem aparente é objeto do querer, a20
mas aquelas coisas que
decorre que não existe objeto do querer por natureza, mas é objeto do querer o
~ os singulares; por
que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas,
~á> do domínio da sen-
mesmo, no caso, coisas contrárias). Se, então, estas posições não são satisfatórias,
~ O ~o de deliberação
não se deve dizer que é objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem,
~ rnsalva que o objeto de
r cq.ro de escolha delibe-
enquanto o que aparece a cada um é o bem aparente! Assim, ao homem virtuoso a25

é objeto do querer o bem segundo a verdade; ao homem de pouco valor, o que é


~ mn pára de investigar
l6-r. é isto, com efeito, o aleatório, assim como, com respeito aos corpos, aos que estão em bom estado são

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 69


saudáveis aquelas coisas que são tais segundo a verdade; aos que estão doentes,

outras coisas o serão (e similarmente com as coisas amargas, doces, quentes,

a30 pesadas e outras deste tipo). Com efeito, o homem virtuoso julga corretamente

cada coisa e em cada uma a verdade se manifesta a ele, pois há coisas belas e

agradáveis próprias a cada disposição e presumivelmente o homem virtuoso se

distingue sobretudo pelo faeo de ver o verdadeiro em cada coisa, como se tosse .., é princípio nem g'

um padrão e uma medida delas. À turba o engano, parece, engendra-se devido prirn, isto é evidente 1

1113bl ao prazer, pois, não sendo de faro um bem, parece ser. Buscam, ao menos, O
... que estão em nós,

agradável como um bem e evitam a dor como um mal.


... aros privados de n

.tt>uem castigos e pur


III7
bçodos ou por ignorâ
passo que recompensa
Visto que o fim é, então, objeto do querer e que as coisas que conduzem arr:s e reprimem os pru
ao fim são objeto de deliberação e de escolha deliberada, as ações que concer- 9Ie náo estão em nossc
b5 nem a elas são por escolha deliberada e voluntárias. As atividades das virtudes persuadido a não ficar
envolvem estas coisas. Assim, por certo virtude está em nosso poder, bem caisa deste tipo, pois n;
como o vício. Com efeito, naquelas coisas em que o agir está em nosso poder, (Im mesmo de ignorar,

igualmente está o não agir, e naquelas nas quais o não está em nosso poder, armplo, as penas são
também está o sim, de sorte que, se está em nosso poder agir, quando é belo, ar:ava nele, pois era sen
blO também o não agir estará em nosso poder, quando é desonroso, e se o não Também atribuem per
agir, quando é belo, está em nosso poder, também estará em nosso poder agir, Cf'< devem conhecer e (
quando é desonroso. Se está em nosso poder fazer as coisas belas e as deson- DOS casos em que paree
rosas, e similarmente o não fazer, e se é isto sermos bons e sermos maus, está anva em seu poder; c(

70 I Ethica Nicomachea I 13 - 1II 8


em nosso poder, por conseguinte, sermos equitáveis e sermos maus.

O dito que "ninguém é miserável voluntariamente nem afortunado invo- bIS

hmtariamente" parece ser, de um lado, falso, mas, de outro, verdadeiro, pois

ninguém é afortunado involuntariamente, mas a maldade é voluntária. Ou

bem se deve pôr em dúvida o que foi dito agora e se deve dizer que o homem
não é princípio nem gerador de suas ações, assim como é de seus filhos i Se,

porém, isto é evidente e se não temos como recorrer a outros princípios além b20

dos que estão em nós, estão em nosso poder e são voluntárias aquelas coisas

cujos princípios estão em nós. Em favor destas teses parece haver testemunho

nos atos privados de todos e nos dos próprios legisladores; com efeito, eles

atribuem castigos e punições aos que cometem vilanias que não tenham agido

forçados ou por ignorância da qual eles próprios não foram responsáveis, ao b2S

passo que recompensam os que praticam atos belos, de modo que exortam

estes e reprimem os primeiros. Contudo, ninguém exorta a fazer aquelas coisas

que não estão em nosso poder nem são voluntárias, porque de nada serve ficar

persuadido a não ficar quente, não ter dor, não ter fome ou qualquer outra

coisa deste tipo, pois não menos as sentiremos. Também atribuem penas pelo

bto mesmo de ignorar, quando parece que se é responsável pela ignorância; por b30
exemplo, as penas são dobradas para os embriagados. Com efeito, o ptincípio

estavanele, pois era senhor do não se embriagar, o que foi a causa da ignorância.

Também atribuem penas aos que ignoram alguma prescrição presente nas leis

que devem conhecer e que não são difíceis de se estar a par, assim como nos ou- 1114al

nos casos em que parecem ignorar por causa de negligência, porque o não ignorar

escava em seu poder; com efeito, eram senhores do inteirar-se do assunto.

Ethica Nicomachea I 13 - 1II 8 I 7I


Talvez, porém, a pessoa seja de natureza tal que não se inteira. Porém, eles

.5 próprios são responsáveis do tomarem-se assim. vivendo descuradamente, bem

como de serem injustos e intemperantes, uns por praticarem o mal. outros por
se livrarem às bebidas e coisas deste tipo; com efeito, as atividades concernen-

tes a cada coisa os tornam do tipo respectivo. Isto fica claro nos que treinam

para qualquer uma competição ou prática, pois passam a vida a exercitar-se.

alO O ignorar que as disposições provêm do exercitar-se nos atos particulares é


marca de alguém totalmente insensível; mais ainda, é irracional que o homem
que comete uma injustiça não pretenda ser injusto ou que o homem que cai

na intemperança não pretenda ser inrernperanre, se alguém pratica as ações

pelas quais se tomará injusto, não ignorando, ele é voiuntariamenre injusto.


Todavia, isto não significa que, sendo injusto, cessará de o ser quando quiser e

aIS ficará justo; tampouco o doente cessa de estar doente e fica são quando quer.

Contudo, se assim ocorre que leva uma vida de modo acrático e não obedece

aos médicos, adoecerá voluntariamente. Por um lado, era-lhe, em um momento,


possível de não adoecer; tendo dissipado a saúde, já não lhe é possível, assim
como não é mais possível àquele que lançou uma pedra recuperá-Ia; no entanto,

estava em seu poder o lançar, pois o princípio estava nele. Similarmente, era

a20 possível ao injusto e ao intemperante não se tornarem tais no início. e por isso

o são voluntariamente. Porém, aos que se tornaram injustos ou inremperantes,

já não lhes é possível não o serem.

Não somente os vícios da alma são voluntários, mas, para algumas pes-

soas, são também voluntários os do corpo. os quais censuramos; com efeito,

ninguém censura os que são feios por natureza, mas os que o são por làlta de

a2S exercício e por negligência. Similarmente quanto à fraqueza e à mutilação:

72 I Ethica Nicomachea I 13 - J/l 8


com efeito, ninguém quererá reprovar quem é cego por natureza, por uma

doença ou por uma batida, mas terá antes piedade; todo mundo, porém,

recriminará quem o é por alcoolismo ou por outra intemperança. Assim, dos

vícios concernentes ao corpo, os que estão em nosso poder são reprovados,

mas não os que não estão em nosso poder. Se é assim, igualmente acerca a30

dos outros vícios, os que são reprovados estão em nosso poder.

Se alguém objetasse que todos tendemos ao bem aparente, porém não somos

senhores do modo como aparece, mas tal qual cada um é, tal fim lhe aparece; 1114bl

se, então, cada um é de certo modo causa para si mesmo da disposição, será ele

causa de certo modo também do modo como aparecei se não o é, ninguém é

causa para si mesmo do agir mal, mas faz estas coisas por ignorância do fim,
:lCteditando que através delas obterá o melhor para si. A tendência do fim não bS

é auto-escolhida, mas o homem deve nascer como que possuindo um olho pelo

qualjulgará bem e pelo qual escolherá o bem segundo a verdade, e é bem nascido
aquele a quem isto é naturalmente bom, pois é o que há de maior e de mais belo,

e que não é possível receber ou aprender de um outro, mas, tal como nasceu, blO

assim o terá, e a boa estirpe verdadeira e perfeita é ter isto bem e belamente por

natureza. Se, então, estas coisas forem verdadeiras, em que a virtude será mais

roIuntária do que o vício! A ambos, pois, de mesmo modo, ao homem bom

e ao mau, o fim aparece e se estabelece naturalmente ou de qualquer modo, bIS

mas o que quer que façam, referem o resto a este fim. Então, ou bem um fim

qualquer aparece a cada um não por natureza, mas depende em algum sentido
dele, ou bem o fim é natural; mas, pelo fato de o homem virtuoso fazer o que

resta voluntariamente, a virtude é voluntária, e não menos voluntário será o b20

Ethica Nicomachea I 13 - III 8 I 73


vício. Com efeito, está presente do mesmo modo no homem mau o agir por
si próprio nas ações, ainda que não no fim.

Se, portanto, como foi dito, as virtudes são voluntárias, somos também

causas coadjuvantes em certo sentido das disposições e, pelo fato de sermos

de certa qualidade, pomos o fim que lhe corresponde. Os vícios também são
b2S voluntários, pois são similares.

III8

Discutimos em geral e em grandes linhas a respeito das virtudes o gênero,

que são mediedades, que são disposições por si mesmas de praticar aqueles

atos pelos quais se engendram, que estão em nosso poder e são voluntárias e

b30 que são como a reta razão ordena. Porém, as ações e as disposições não são

voluntárias do mesmo modo; com efeito, de um lado, somos senhores de nossas

ações do início ao fim, desde que conhecedores das circunstâncias; de outro,

11lSal somos senhores do início das disposições, mas o acréscimo caso a caso não é

distinguível, assim como ocorre nas doenças. Porque, porém, estava em nosso

poder nos servir assim ou não assim, por esta razão são voluntárias.

74 I Ethica Nicomachea I 13 - 1Il 8


COMENTÁRIOS

113

Este capítulo, embora faça parte do livro I, constitui, na verdade, o início


de uma nova investigação, que terminará em III 8. Nos capítulos precedentes
(I 1 - 12), Aristóteles introduziu a noção de eudaimonia, tendo-a definido em
geral como atividade da alma segundo virtude perfeita (cf. I 6 1098a16-18 e
111101a14-16; a primeira passagem acrescenta a condição da vida completa
e a segunda introduz, além da vida completa, o acompanhamento de bens
exteriores). Não é ainda claro o que exatamente significa virtude peifeita, a não
ser que envolve, em um sentido relevante, o uso da razão; tampouco é claro
se esta razão é prática, teórica ou uma combinação de ambas. Nesta segunda
unidade temática, que começa em I 13, Aristóteles examinará a noção de vir-
tude moral; em II 6 ele obterá sua definição (a virtude moral é uma disposição
ligada à escolha deliberada) e, no livro IlI, até o fim desta unidade (llI 8),
ele estudará então o que está em torno da noção de escolha deliberada. Feito
isso, ele analisará, de III 9 ao livro V, as virtudes separadamente, iniciando
com a coragem e dando especial ênfase à justiça, tratada em um livro à parte
(livro V). No livro VI, Aristóteles examina a virtude intelectual que opera no
mundo prático, i.e. a prudência. O livro VI tem assim uma íntima conexão
com I 13 - III 8, pois, enquanto nestes é definida a natureza da virtude mo-
ral, naquele é investigada a virtude intelectual que atua no domínio prático;
como a virtude moral é aquela na qual pode operar a razão (prática), que,
ao operar efetivamente, aperfeiçoa a virtude moral, o estudo da prudência
completa a investigação sobre a natureza da virtude moral ao discorrer sobre
a virtude intelectual que torna a virtude moral uma virtude perfeita. Aqui,
em 113, está o início desta investigação: neste capítulo, distingue-se a virtude
moral da virtude intelectual para então tomar aquela como objeto de estudo,
a partir de II 1 até III 8, o que será completado, no livro VI, pelo estudo da

Comentários I 75
virtude intelectual que atua no campo prático, após o exame separado de cada
virtude moral.

l102a5-6 certa atividade da alma segundo perfeita virtude. A definição de


felicidade foi apresentada em I 6 1098a16-17, com o adendo ETL 8' EV ~l<p
TE"El<p, "além disso, em uma vida completá', isto é, com o acréscimo da con-
dição do tempo estendido à vida inteira, não somente o do momento de uma
ação (o ato bom pode esgotar-se no momento em que é praticado, enquanto
a felicidade requer uma duração que acompanha o tempo de vida). Em I 11
1101a14-16, Aristóteles acrescenta ainda uma cláusula concernente aos bens
exteriores (nos quais estão incluídos os bens do corpo). O termo TÉ"ElOc;',

como o próprio Aristóteles reconhece em Met. ~ 16, é ambíguo, podendo ter


o sentido de "completo", o que possui todas as suas partes, ou de "perfeito", o
que atingiu seu ápice. Em certos casos, há a confluência destes dois sentidos,
mas, em outros, eles se distinguem: um terno completo não é necessariamente
perfeito, nem uma feijoada perfeita contém todas as partes do porco. (Há um
terceiro sentido em ~ 16, o de "acabado",o que chegou ao seu fim, mas este
sentido não tem relevância aqui e o próprio Aristóteles, quando resume os
sentidos de TÉ"ElOc;' em ~ 16, refere-se aos dois primeiros sentidos somente).
Na condição do tempo, o sentido é claramente o de completo (Aristóteles
não só ilustra o sentido de completo com o exemplo do tempo em ~ 16 como
rejeita, na EN, que a felicidade possa ocorrer durante um tempo breve). Qual
o sentido de TÉ"ElOc;', no entanto, quando ligado à virtude? A discussão foi
grande entre os comentadores antigos e renasceu com virulência nas últimas
décadas, principalmente em língua inglesa. O problema pode ser resumido
do seguinte modo. Se tomarmos o sentido de completo, então adotamos a
perspectiva inclusivista: a virtude completa é a que possui todas as suas par-
tes: justiça, coragem, temperança e assim por diante. O problema fica então
agudo de conciliar esta tese com X 7-9, que defende que a melhor atividade,
a atividade TE"Ela, é a contemplação. Se, por outro lado, significar peifeito, e
se por isso se entender uma dentre as virtudes (a melhor e mais forte), então
a tese dominante teria já no livro I sua formulação, a despeito de este livro
pugnar em sua maior parte por uma visão inclusivista da felicidade. Mantive
a tradução por peifeito, sem por isso tomar já uma posição neste debate. O

76 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


motivo é que, por perfeito, Aristóteles pode não estar entendendo uma virtude
em detrimento das outras (no caso, a contemplativa), mas um modo especial
de operar das virtudes. Em EN VI (EE V), Aristóteles distingue entre a vir-
rude em seu modo natural - aquele segundo o qual o agente faz o que deve
ser feito, sem, no entanto, dispor das razões pelas quais o que faz é o que deve
ser feito - e a virtude acompanhada de prudência, µETà <ppOV~(JEÚ}S(EE III
71234a29-30) ou "virtude própria", KUpLG àpET~ (VI 13 1144b16-17), aquela
graças à qual o agente faz o que deve fazer segundo as boas razões. A virtude
pafeita seria a virtude que opera deste segundo modo. Na Política, ao examinar
as virtudes próprias ao homem livre, à mulher, à criança e ao escravo, Aristó-
teles observa que ocorrem de modo diverso em cada um: o escravo não tem
bculdade deliberativa, a mulher a possui, mas falta-lhe autoridade, a criança a
tem de modo impe1eito e "quem governa deve ter a virtude moral pe1eita (pois
esta é a função do mestre de obras simpliciter, e a razão é o mestre de obras)"
(Pol. I 13 1260a15-19). Não se trata de atribuir ao homem livre uma virtude
(dentre outras), mas de caracterizar o modo de operar de suas virtudes, e o
que distingue o homem adulto da criança é justamente a presença da razão.
No mesmo sentido, a MM observa que, assim que estiver presente, no ho-
mem virtuoso, o ato de escolher segundo as boas razões, estará igualmente
presente nele a virtude perfeita (Il 3 1200a3: ~ TEÀELG àpET~), justamente
"aquela que dizemos ser acompanhada de prudência" (1200a4). O sentido de
TÉÀELOSparece ser o de tornado pe1eito pela presença da razão no interior da
virtude moral. A felicidade seria constituída não por uma única virtude, mas
pelas virtudes morais que são acompanhadas da virtude intelectual que é a
prudência. A tradução de KGT' àpET~V TEÀElGV por "segundo virtude com-
pletd' poderia também ser interpretada neste sentido (seria cada virtude com
suas partes: a parte afetiva e a parte intelectual ou prudencial), mas é menos
feliz para exprimir este ponto, pois é antes completa porque é perfeita do que
perfeita porque completa.
l102a6 deve-se investigar a virtude. O estudo que aqui inicia tem por obje-
tivo determinar a natureza da virtude, qual seu gênero e diferença específica. A
tradução corrente (como em Ross: "we must consider the nature of excellence",
grifo meu) é filosoficamente segura; Natali, que traduz mais literalmente ("si
dovrà esaminare la virtú", como procurei também fazer), escreve em nota que

Comentários I 77
"aqui se inicia o tratamento da noção de virtude" (grifo meu). Uma parte do
estudo da natureza da virtude compreende o exame do seu modo de aquisição,
mas o problema de sua aquisição não é a "verdadeira questão", como pretende
Gaurhier em seu comentário.
Convém assinalar que virtude traduz aqui àpET~. Como o próprio
Aristóteles reconhece, no início de II 5, o termo tem uma aplicação mais am-
pla do que o contexto propriamente moral ao qual a tradução virtude parece
confiná-lo. Com efeito, para o pensamento antigo, fortemente impregnado de
teleologia, os objetos cumprem certas funções, que são definidas como o que
certo objeto unicamente realiza ou o que ele realiza do melhor modo; dentre
os objetos de certo tipo, aos quais uma ou várias funções são atribuídas, aquele
que exercer bem as funções que o caracterizam será dito um objeto virtuoso.
Deste modo, se a função do cavalo for correr e portar o cavaleiro, o cavalo que
corre bem e que porta bem o cavaleiro será um cavalo virtuoso. Em função
da amplitude de aplicação de àPETlÍ em grego antigo, propôs-se não sem fre-
qüência verter este termo por excelência, o que teria a vantagem suplementar
de evitar um termo (virtude) fortemente matizado pela análise moralista dos
últimos séculos. Tal proposição não deixa de ter seu fundamento, mas não me
parece cogente. Em primeiro lugar, o termo virtude não está definitivamente
marcado pelo viés moralista dos últimos séculos; o uso de um termo moral
não se confunde necessariamente com a interpretação dada a este uso por certa
doutrina moral, por mais hegemônica que seja. De fato, virtude é um termo
que indica a excelência moral, e é esta excelência moral que foi interpretada de
modo moralista nos últimos séculos. O que está sobretudo em questão aqui
é a excelência moral, e o termo que designa a excelência no campo moral é
justamente virtude. Ainda, o oposto de virtude é vício, o que novamente põe
em evidência a dimensão moral que está em questão aqui; por outro lado,
o oposto de excelência é algo como debilidade ou fraqueza, que pode indicar o
fracasso moral, mas, assim como excelência, não o faz em primeira instância:
um homem débil ou fraco não é forçosamente vicioso, e o próprio Aristóteles
dirá que a fraqueza da vontade, ou àKpGatG, não é um vício, embora lhe seja
aparentado. Parece assim preferível guardar o termo clássico, virtude, para
verter em português àPETlÍ, pois ele põe em evidência a dimensão moral que
tal termo quer aqui justamente captar.

78 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


1102al0~11 os legisladores dos cretenses e dos lacedemônios. Segundo Grant,
Aristóteles teria herdado de Platão e Sócrates a preferência pela constituição
de Esparta. No entanto, é preciso matizar esta observação de Grant. A re-
ferência aos legisladores espartanos e cretenses é, de certo modo, inevitável.
Já na República, Platão analisa, no início do livro VlII, o primeiro desvio da
constituição ideal, a constituição dos cretenses e lacedemônios, "exaltada pela
maioria" (544c2), denominada timocracia, a constituição que conserva o as-
pecto militar, mas rejeita o caráter filosófico do Estado perfeito. Cretenses e
lacedemônios entendiam por virtude fundamentalmente a virtude guerreira,
preocupando-se basicamente com a formação de soldados. Também nas Leis
a limitação guerreira da formação dos jovens em Esparta é criticada em nome
de uma educação que envolva também a capacitação para dirigir a cidade, de
sorte que a coragem será "a quarta virtude, e não a primeira, sempre e em to-
dos os lugares, nos indivíduos e na cidade inteirá' (Leges II 667a, que remete
a I 630b~d, onde são postas à sua frente a justiça, a temperança e a sabedoria,
o que faz Clínias reconhecer um rebaixamento: TOV voµo8ÉTllV ~µwv à-
TTO~áÀÀOµEv Eis TOVS TTÓppWvoµo8ÉTus, "nosso legislador é relegado aos
legisladores que estão distantes"). Aristóteles resume perfeitamente bem a
crítica: "aqui se poderia fazer a objeção que Platão fez nas Leis à intenção do
legislador: a constituição inteira considera uma só parte da virtude, a guerreira,
que é útil às conquistas" (Pol. II 9 1271a41-b3); é verdade que os lacedemônios
não cometem o erro de mutilar suas crianças ao querer torná-las atléticas,
como fazem outras cidades, mas, mesmo assim, "brutalizam-nas por meio de
exercícios laboriosos, que pensam serem sobretudo úteis à coragem" (Pol. VlII
4 1338b12-14). Porém, o fato mesmo de um lacedemônio e de um cretense
discutirem legislação com um ateniense nas Leis é sinal que, pelo menos, eles
tinham uma preocupação sistemática com a educação (embora defendessem
uma concepção errada de educação). Neste sentido, Aristóteles observa em
X 10 1180a24-27 que somente em Esparta e em outras poucas outras cidades
o legislador se preocupou com a educação e com as ocupações dos cidadãos
- ainda que erradamente. Não parece, assim, necessário supor, como propôs
Dirlmeier, algo semelhante à relação de Goerhe com o gótico para explicar
como Aristóteles pôde aqui elogiar o que para ele é tudo menos um ideal,
como já tinha deixado claro mesmo no livro VlI da Política.

Comentários I 79
l102a13 segundo o plano traçado no início. Ver especialmente I 1 1094a27-
blO. A subordinação da ética à política, tida como a ciência arquitetônica do
domínio prático, foi defendida em I 1. Deve-se, contudo, observar que a ciência
à qual se subordina a ética é a Política, ou, dito de outro modo, política., isto
é, a ciência relativa às relações humanas, da qual a própria política, (no sen-
tido restrito, como entendemos hoje) é uma espécie, ao lado da ética. Assim,
a ética não está subordinada à política., como se houvesse um homem político
(no sentido corriqueiro) superior ao homem ético; a ética está subordinada à
política., no sentido em que a moral dos indivíduos se realiza unicamente no
interior da cidade, portanto está enraizada na própria polírica.. Porém, relativa-
mente à política., a ética está em posição superior. Com efeito, à política, cabe
determinar qual é o melhor regime; ora, o melhor regime é o regime justo, e
isto é determinado não pela política., mas pela ética, que investiga as condições
da noção de justiça (feito em EN V). Portanto, conceitualmente ao menos,
a política, depende das lições da ética e não o contrário: o bom político é o
político moral. O fato de os políricos, (que marquei como "estadistas", os que
exercem a "arte política"), se verdadeiros, ocuparem-se da virtude é um sinal
que a investigação segue o plano traçado no início, a saber, a subordinação da
ética à política., mediante a subordinação da política, à ética. A homonímia de
política, e política, não é acidental, mas provém de uma estreita relação entre
os termos (o que explica, aliás, sua freqüente confusão), por conseguinte de
algum modo (ainda que não diretamente) a política, está em questão ao estar
envolvida a políríca.,
l102a14~16 pois procurávamos o bem humano e a felicidade humana. O bem
humano, contraposto ao bem universal (defendido pelos platônicos), foi obtido
em I 4 (capítulo dedicado à crítica da noção platônica de bem), particularmente
em 1096b31~34; em I 6 Aristóteles dedica o argumento à determinação que a
felicidade humana é a atividade segundo a virtude e, como a função própria do
homem é agir segundo a razão ou não sem razão, não se trata, para atingir o
bem humano supremo, de fazer isto ou aquilo em detrimento de outras coisas,
mas de bem fazer tudo o que se faz;, e isto significa agir segundo a razão ou não
sem razão. Ao rejeitar o bem platônico, Aristóteles abandona todo projeto de
encontrar um bem universal, comum e único para tudo (EN I 4 1096a27~28:
8~Àov WS OUK av E1ll KOLVÓVTl Ka8óÀou KaL EV).

80 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


l102a17 e,por felicidade, ... A paráfrase interpreta KaL ... oÉ como KaL..
yáp, o que não raramente ocorre em grego, e toma a frase como explicativa
(23, 27~28: Kal T~V EVomµovLav yàp tjJUX~s EVÉpYELaV ÀÉyoµEv, "pois en-
tendemos também que a felicidade é uma atividade da alma"). O ponto é que
a segunda oração serve de razão para a primeira, o que passa despercebido
quando se traduz por "por virtude humana, entendemos não a do corpo, mas
a da alma, e, por felicidade, entendemos uma atividade da alma", Pode-se,
porém, pensar em uma inversão lógica, que tampouco é rara entre os gregos:
a frase traduzida estaria no lugar de "por felicidade, entendemos uma ativi-
dade da alma, e entendemos por virtude humana não a do corpo, mas a da
alma", na qual a ordem das razões é respeitada. Um bom exemplo de inversão
é Sófocles OC 53 "tu aprenderás tudo o que eu também sei" por "também tu
aprenderás tudo o que eu sei",ou Pl. Prot. 351e"éjusto que conduzas o exame,
pois também iniciaste o discurso" por" éjusto que também conduzas o exame,
pois iniciaste o discurso".
l102a19~20assim como quem vai curar os olhos de a~uém também deve conhecer
de certo modo todo o corpo. Adoto o texto de Bywater (Contrib. p. 26), com a cor-
reção de Ramsauer (TTâv <TO> awµa, todo o corpo, e não TTâv awµa, todo corpo,
como nos mss. e em Bekker e Susemihl). Pode-se entender que quem está por
tratar dos olhos deve tratar de todo o corpo (Eustrácio, Michelet) ou que quem
está por tratar dos olhos deve conhecer todo o corpo (paráfrase, Zell, Grant,
Ramsauer, Srewart, Burnet): Aspásio é de pouco uso, pois é conciliador ao
escrever que "o homem político deveria de certo modo conhecer a alma como
quem está por tratar dos olhos ou também de todo o corpo deve conhecer
o corpo" (34, 31-32). Suponho que esteja subentendido que o médico deve
conhecer de algum modo todo o corpo. O ideal da medicina grega era tratar
do corpo inteiro, não só de uma parte; a passagem é, aliás, reminiscente de
Charmides 156b-c: para curar os olhos, é preciso curar a cabeça inteira; para
curar a cabeça, é preciso curar o corpo inteiro. No entanto, o ponto aqui con-
siste em, por comparação, mostrar que também o político, como deve tratar
das virtudes (da alma), precisa ter certo conhecimento da alma em geral, assim
como o médico, ao curar os olhos, deve dispor de certo conhecimento a respeito
de todo o corpo. A reserva de certo modo também é importante, pois indica que
condições de acribia devem ser respeitadas. A paráfrase altera grandemente

Comentários I 8I
essa reserva, ao tornar interrogativo o advérbio de modo: BEL TOV TTOÀLTLKOV
ElBÉvaL TTWS EXEL Tà TTEPL tjJUX~v, WaTTEp KaL TOV µÉÀÀovTa exp8aÀµov
9EpaTTEÚCJELVTOV awµaTos rrcvrõc T~V YVWaLV EXELV àváYKTl, "o homem
político deve conhecer como funciona a alma, assim como quem vai curar os
olhos necessariamente deve ter o conhecimento de todo o corpo" (23, 29-31).
Por outro lado, Joachim parece aceitar uma acribia relativa, mas a mesma para
um e outro: "o político deve conhecer psicologia tanto quanto o oculista deve
conhecer a anatomia humana geral" (p, 61), o que tampouco coincide com o
que está dito. Como o próprio Aristóteles observa, quanto mais nobre for a
política em relação à medicina, tanto mais deve o político conhecer de certo
modo as partes da alma. Isso não parece dizer que sua acribia deve ser igual
ou maior que a do médico, mas somente que é ainda mais necessário certo
conhecimento da alma pelo político do que já é necessário certo conhecimento
de todo o corpo para o médico, quaisquer que sejam as acribias de um e outro
conhecimento.
1102a21~22os médicos talentosos. Os médicos talentosos são aqueles que
terminam seus estudos como filósofos da natureza, buscando princípios gerais
e não somente procedimentos práticos de cura; na verdade, como há uma real
afinidade entre ciência natural e medicina, não somente os filósofos da natu-
reza mais talentosos (de juvent. et senect. 480b28-29: TWV TTEPL<pÚCJEWSrrprry-
µaTEu8ÉvTWV oi xapLÉaTaToL) terminam seus trabalhos com a medicina,
como também "os médicos que perseguem mais filosoficamente a arte iniciam
a medicina a partir dos princípios da ciência natural" (de sensu 1 436a20~b1:
KaL TWV laTpwv oi <pLÀoao<pwTÉpWS T~V TÉXVllv µETLÓVTES ... EX TWV TTEPL
<pÚCJEwsapXOVTaL). Cf. Polit. IV 13 1297b9 para xaptEVTES.
1102a26~27também nos estudos exotéricos. É igualmente admissível a tra-
dução: "mesmo <até> nos escritos exotéricos" (cf. Irwin ad loc.; o mesmo vale
para as passagens citadas abaixo). A discussão acerca dessa expressão foi bas-
tante grande, sobretudo no fim do século passado. Há outras oito passagens
nas quais Aristóteles faz referência a escritos exotéricos, seis das quais se en-
contram nos estudos de ética e política. Na EE I 8 1217b23~24,ao examinar
a doutrina platônica do bem, Aristóteles escreve a respeito das Idéias que o
tema foi estudado "tanto nos escritos exotéricos como nos estudos de filosofia"
entendendo por estes últimos seus escritos técnicos. Esta última expressão,

82 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


KaTà <plÀoa0<pLav, é usada em Pol. IH 12 1282b19 a propósito da tese que o
justo é certa igualdade, ponto investigado ex professo em EN V (EE IV). Em
Pol. I 5 1254a33 a distinção entre governante e governado é dita, na medida
em que se encontra em toda a natureza, mesmo entre os seres inanimados,
"talvez pertencer a uma investigação propriamente exotérica" e não a uma
investigação KaTà <plÀoao<pLav, de maior acribia e exatidão. Em Met. M 1,
Aristóteles observa, novamente a respeito da teoria das Idéias, que "muita
coisa já foi aventada também nos escritos exotéricos" (1076a29-30). Ainda
na EE, a distinção entre bens da alma e exteriores é apresentada "conforme
distinguimos nos escritos exotéricos" (Il 11218b34). Em Pol. VlI 1, há uma
passagem muito semelhante à atual: "considerando-se que muitos temas fo-
ram tratados suficientemente sobre a melhor vida também <mesmo ~> nos
escritos exotéricos, deve-se agora recorrer a eles" (1323a21-23); segue-se uma
passagem sobre os três tipos de bem. Convém observar que, no que tange aos
tipos de vida, Aristóteles escreve na EN que "que já foi dito suficientemente a
seu respeito nos textos publicados" (EV TOlS EYKlJKÀtOlS, I3 1096a3), o que
parece ser uma expressão sinônima de EV TOlS EÇWTEplKÔlS ÀÓyOlS. Em EN
VI 4, é dito que se pode fiar, no tocante à distinção entre ação e produção,
"também nos escritos exotéricos" (1140a3); em Pol. III 6, a propósito dos tipos
de governo, é dito que" freqüentemente os distinguimos também nos escritos
exotéricos" (1278b31); finalmente, na Física, o tratado sobre o tempo inicia o
exame das dificuldades "mediante os escritos exotéricos: o tempo tem ou não
tem ser", passando depois ao exame de sua natureza (IV 10 217b30~32). O
balanço dessas passagens parece indicar que os textos exotéricos são conside-
rados por Aristóteles como textos de divulgação, opostos aos técnicos, escritos
KaTà <plÀoao<pLav. Igualmente, em certo número de casos, os textos exotéricos
parecem ser do próprio Aristóteles, mas nada obriga a limitá-los à sua autoria,
pois podem estar incluídos entre eles textos de outras escolas (ou textos de
Aristóteles sobre outros filósofos). Burnet pensa que, aqui, a expressão indica
os escritos da Academia (mais precisamente, os de Xenócrates). No entanto,
pode-se supor que Aristóteles esteja a referir-se, por exemplo, ao seu próprio
Protréptico, ou a algum outro de seus diálogos. Não há nada de novo no que
proponho: Cícero faz Piso dizer, a respeito de Aristóteles e Teofrasto, que
"de summo autem bono < ... > duo genera librorum sunt, unum populariter

Comentários I 83
scriptum, quod E~WTEplKÓV appellabant, alterum limatius, quod in commen-
tariis reliquerunt" (De finibus V 5 12: "do soberano bem <...> há dois gêneros
de livros, um escrito de modo popular, que chamavam de E~WTEplKÓV, outro
escrito de modo mais sóbrio, que deixaram em suas anotações").
1102a27 aos quais devemos recorrer. O relativo aos quais pode referir-se tanto
a temas quanto a escritos exotéricos (no grego como em português); penso que se
refere aos temas, que são introduzidos a seguir. Sobre esta passagem, Gauthier
sustenta que, em conformidade com a evolução da psicologia de Aristóteles
proposta por Nuyens (I..:Evolution de la Psychologie d'Aristote, Louvain - Paris
1948), a doutrina da alma exposta aqui" é verdadeira aos seus olhos no momento
em que escreve a Ética Nicomaquéid' (p. 93, grifo do autor). Isto significa que
Aristóteles toma não só por satisfatório aos estudos éticos a distinção entre
parte racional e não-racional, mas sobretudo a toma ainda como a boa divisão
da psicologia. Mais ainda, isto faria com que a EN, em função da tese adotada
a respeito da alma, tivesse sido escrita na fase intermediária, aquela na qual,
segundo Nuyens, há um dualismo alma - corpo no qual a alma se serve do
corpo como se fosse um instrumento, após a fase inicial de forte oposição entre
alma e corpo e antes da fase final, o hilemorfismo exposto no De Anima. A
tese de Nuyens recebeu diversas críticas; independentemente disso, contudo,
convém observar que toda esta passagem sobre as partes da alma vem anun-
ciada como meramente satisfatória para os estudos éticos, sem necessariamente
representar a psicologia que, aos olhos de Aristóteles, é a boa interpretação da
natureza da alma. A distinção racional- não-racional permite obter os resul-
tados a que se visa sem obrigar a um exame mais detalhado, e forçosamente
controverso, da natureza da alma. Gauthier vai claramente além do que o texto
fornece. Tanto mais que Aristóteles ressalva aqui e ali que, do ponto de vista
de sua teoria da alma, ele não crê que a divisão em racional e não-racional seja
o bom procedimento. Em primeiro lugar, a função vegetativa, distinta da su-
posta parte não-racional da alma na ação, é apresentada como função comum
a todo embrião, cria, broto ou indivíduo adulto, tese sustentada no De Anima
e apoiada no método lá desenvolvido. Como ela é inteiramente não-racional,
não pode corresponder à parte apetitiva da alma, na nomenclatura adotada por
Platão - embora a ETTl8lJµta platônica resista à razão, ela não é nem pode ser
totalmente imune à razão. Em segundo lugar, é dito ser indiferente se a parte

84 I Ethica Nicomachea I 13 - II/ 8


não-racional deve ser dividida em duas (a que obedece à razão e a isenta de
razão) ou se é a parte racional que deve ser dividida em duas. Tal indiferença
não parece poder ser base de uma tese precisa da alma, mas resultado do uso
de uma doutrina difundida sobre a alma que permite obter o que se quer, a
despeito de suas próprias imprecisões. Creio, assim, que se deve voltar à leitura
tradicional e ver aqui o uso de uma doutrina que Aristóteles não esposaria em
um tratado de psicologia, nem mesmo quando estava escrevendo a EN, mas
que é útil à exposição que está fazendo.
l102a27,28 No caso: uma parte sua é não-racional; a outra, dotada de razão.
Como Ramsauer observa, OLOV designa o que é mais importante e não um
mero exemplo do que está em discussão; tentei verter isso em português por
"no caso". A divisão da alma em parte racional e parte não-racional é expres-
samente atribuída a Platão em MM I 11182a24-25; Platão teria corrigido
assim a versão socrática, que "anulava a parte não-racional da alma" (1182a21),
atribuindo-lhe enfim certo papel nas nossas ações. No Tim. 69c ss., a distinção
entre o princípio da alma imortal e a outra espécie de alma, mortal, que cor-
responde à divisão em racional e não-racional, mostra que esta divisão está na
base da tripartição platônica mais usual em parte racional, impulsiva e apetitiva
da alma (com efeito, a alma mortal, "que contém paixões terríveis e inevitáveis",
69d, é sede do prazer e do impulso, correspondendo, por conseguinte, à ETTl-
9VµLU e ao 9vµós). Provavelmente, como observa Hicks (De anima p. 550), a
divisão em racional e não-racional era comum já nos tempos de Platão, que
se serviu dela para suas análises, refinando-a pela tripartição mais usual. Em
De anima I 5 411b5-6, Aristóteles refere-se àqueles que pretendem que a alma
possa ser dividida em uma parte que pensa e em uma parte que deseja, o que
parece ser uma alusão à escola platônica; mais adiante, em III 9432a25-26,
ele alude à divisão em três partes (racional, impulsiva e apetitiva) ao lado da
divisão em duas, racional e não-racional. A primeira divisão é privilegiada por
Platão, mas a segunda resume a primeira em seus elementos mais básicos e lhe
serve de base; Aristóteles rejeita ambas no De anima. Na linguagem antiga, não
causa nenhum comprometimento falar em partes da alma; o que caracteriza
uma ou outra posição é o modo como a alma é dividida em partes.
1102b4 esta parte e esta capacidade parecem operar sobretudo no sono. No De
somno, Aristóteles escreve que "a parte nutritiva opera durante o sono mais do

Comentários I 85
que na vigília, pois é nesse período que mais se assimila e cresce, dado que não
é preciso para isso de nenhuma sensação" (1454b32A35a3).
l102b8 relativo àquilo com base no qual ela é dita boa ou má. O sono é uma
compressão do órgão sensitivo primeiro causada pelo aumento do calor vital
de modo que se obstrua a percepção, cujo intuito é preservar o animal dando-
lhe um momento de repouso (De somno III 458a28~32). A inatividade não é,
obviamente, da alma inteira, mas somente de certas funções da alma, particu-
larmente daquelas pelas quais o agente é dito ser virtuoso ou vicioso.
1102b9 a não ser que, de a~um modo, em pequena medida, alguns movimentos pe-
netrem. Ver especialmente De msomnus III 462a29~31: "o sonho é a imagem pro-
veniente do movimento das sensações quando se dorme, enquanto se dorme".
Como explica a paráfrase, os movimentos diurnos das sensações penetram de
algum modo nos sonhos e os conformam, nessa medida, à qualidade moral
da pessoa (24, 21-23; ver também Eustrácio 114, 24 - 115, 12). No Problema
XXX 14 957a20-35 é dada a seguinte explicação: uma visão ocorre quando,
estando pensando ou revendo imagens mentais, adormecemos, e por isso ten-
demos a ter visões do que estamos fazendo ou iremos fazer, pois pensamos
ou imaginamos sobretudo a respeito disso. Pela mesma razão, os sonhos dos
homens bons são melhores do que os dos viciosos, pois eles pensam ou ima-
ginam coisas boas no estado de vigília, ao contrário dos viciosos.
l102b13-14 participando, porém, em certa medida, da razão. Aspásio comenta
que, pelo fato de participar em certa medida da parte racional, difere obviamente
da outra parte não-racional, que em nada participa da razão, de sorte que "o não-
racional parece ser homônimo" (35, 16). O problema poderia ser sanado supondo-
se que Aristóteles pensa as duas partes como espécies de um mesmo gênero, o
não-racional, definido como o que não tem razão por si mesmo - o não-racional
que participa da razão não participa de sua própria razão, mas da razão de outra
parte (a parte racional). Provavelmente, porém, isto é um falso problema, pois não
está em questão a psicologia de Aristóteles, mas somente um uso, bem recatado
aliás, de um vocabulário psicológico, não necessariamente aristotélico, ainda que
não incompatível com a boa psicologia de Aristóteles. Se dividirmos, por outro
lado, a parte racional em duas, como Aristóteles sugere no fim do capítulo, então
devemos adaptar a definição do racional como o que pode seguir a razão, de sorte
que se possa ter aqui também um mesmo gênero com duas espécies.

86 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


1102b14~15no homem que se controla e no acrático. O controle de si e a acra-
sia serão examinados no livro VIL O homem que se controla, assim como o
acrático sabem o que deve ser feito; enquanto o primeiro mantém-se firme, o
segundo, por fraqueza da vontade, termina por fazer o contrário do que re-
conhece como sendo o dever. Ambos são citados aqui por tornarem evidente
a existência de outro princípio na ação, além do racional. O homem que se
controla difere do homem temperante na medida em que enfrenta um conflito
entre as partes da alma, enquanto, no temperante, não há nenhum conflito,
pois sua vontade quer harmonicamente o que ordena a razão.
l102b19 quando se decide. Esta é a quarta vez que o termo rrponípeotç
ou seus cognatos (aqui: rrpootpouuévon/) aparecem no âmbito do sentido
que Aristóteles ainda não determinou, mas que examinará no terceiro livro,
a saber, a escolha deliberada (a expressão KQTà T~V EÇ àpxf]s TTpOaLpEalV
em 1102a13 obviamente não faz parte deste grupo). Destes quatro, a presente
passagem parece significar querer certo fim, a saber, querer mexer os membros
paralisados (podendo ser substituído, portanto, por ~ouÀoµÉvwv), o que faria
dela um exemplo do uso dilatado do termo na língua comum, contra a res-
trição que Aristóteles impôs de ser sempre a busca de meios, jamais de fins.
No entanto, pode-se manter a restrição aristotélica supondo-se que o agente
quer algum fim para o qual movimentar os membros paralisados é um meio
adequado.
1102b21 os ímpetos dos acráticos vão em direçóes contrárias. O termo ópµ~,
ímpeto, é raro na EN; ocorre novamente em III 111116b30, a respeito da cora-
gem, em um passagem com diversas citações de Homero, e em X 10 1180a23,
o último capítulo da EN, em uma observação sobre o fato que, enquanto o
homem que se opõe aos ímpetos dos outros é odiado, a lei, que tem o mesmo
efeito, é bem aceita. O verbo ópµúw é mais freqüente, aparecendo sobretudo
em companhia do 8uµós (IlI 11 1116b30, b35, VlI 7 114a31; com ETTl8uµLa:
VlI 71149a35). De um modo técnico, o termo é reservado às tendências que
o totalmente não-racional manifesta, como o fogo, que tem uma ópµ~ para
cima (EE II 81224a18). O termo é menos raro na EE e ainda mais freqüente
na MM, mas, na EN, seu uso é bastante circunscrito. Talvez aqui sua presença
esteja governada pelo desejo de Aristóteles de comprometer-se minimamente
com o vocabulário usado. Em sua terminologia, o acrático age por ETTl8uµLa

Comentários I 87
contra o que reconhece pela razão como sendo seu dever; aqui, ambos os dese-
jos, o apetite e o desejo racional, são descritos como ímpeto.s que vão em direções
contrárias, como se Aristóteles quisesse evitar o uso de um vocabulário mais
técnico, próprio de sua filosofia.
1102b27~28a do homem temperante e corajoso. Burnet explica a escolha des-
tes termos pelo fato de o temperante, aw<ppwv, ter a virtude da ETTL9uµLa e o
corajoso, àv8pELOS, a do 9uµós, que constituem as duas partes não-racionais
da alma, segundo a tripartição platônica. Isso é bem plausível, mas, para além
da referência à divisão platônica, pode-se ver aqui os dois candidatos a virtude
em liça nos debates culturais da Atenas de Platão e Aristóteles: a temperança,
o novo candidato, típico da cidade, e a coragem, exaltada desde Homero, ideal
guerreiro por excelência. Coragem e temperança figuram, ao lado de prudência
e justiça, a título de virtudes cardinais em Platão.
l102b30 a apetitiva e, em geral, desiderativa. Na psicologia antiga (que Aris-
tóteles retoma), a parte desiderativa (TO OpEKTlKÓV) comporta três casos. Um
primeiro tipo de desejo é o 8uµÓS, que traduzo, faute de mieux, por impulso, a
saber, o que ocorre quando reagimos contra algo, particularmente contra uma
injustiça; ele é usado como sinônimo de opy~, cólera, e o verbo que o acom-
panha freqüentemente é oPYL('Ea8m, encolerizar-se. A ação resultante de uma
reação, justificada ou não, é dita 8là 8uµóv. Aristóteles o liga freqüentemente
ao sentimento de orgulho e de auto-estima, a coragem sendo sua manifesta-
ção mais evidente. Um segundo tipo de desejo é a ETTL8uµta, o desejo ligado
ao que é agradável, como ter ETTL8uµLa por doces, vinhos ou relações sexuais
(Top. VI 8 146bll: "desejo do agradável"; VI 7 146a9: ETTL8uµta ouvouoínç,
"de copulação"). Assim, quem compra muito chocolate age por ETTl8uµta, mas
quem acode a alguém em perigo age por 8uµÓS. Platão, no Pedro, os compara
a dois cavalos que a razão tenta comandar para guiar uma carruagem: um é
como um cavalo fogoso, mas obediente às ordens, enquanto o outro é visto
como o cavalo que puxa sempre à esquerda, esquivo, que busca furtar-se ao
comando do cocheiro. Ambos pertencem à parte não-racional da alma; no
Timeu, a ETTL8uµta é localizada na zona baixa do corpo, ligada aos órgãos
sexuais, enquanto o 8uµós está acima, situado em torno do coração. Em
Aristóteles, não há essa carga fortemente pejorativa dos diálogos platônicos
em relação sobretudo à ETTL8uµLa, mas que concerne também, posto que de

88 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


modo menos exacerbado, ao 8vµÓS; como escreve em UI 3 1111a30~31, "deve-se
encolerizar-se com certas coisas e ter ETTl8vµLade outras, como da saúde e de
aprender'. Irwin traduz 8vµós por emotion, mas isso pode ser enganador, pois
emoção traduz não raramente rrá80s (que Irwin traduz por feeling), e ETTl9vµta
e 9vµós são expressamente mencionados como TTá811em II 4 1105b21-23. O
terceiro caso de desejo é a ~oúÀllalS, que traduzo por querer, sempre faute de
mieux; ela ocorre somente nos seres dotados de razão, pois é um desejo que
se engendra envolvendo considerações e expectativas racionais, por exemplo
a ~oúÀllalS da imortalidade (em grego clássico ninguém diria ter 8vµós ou
E1Tl8vµla de ser imortal). Este terceiro tipo, a ~oúÀTJalS, corresponde, na tri-
partição da alma apresentada por Platão em Rep. IV 435ss., à parte racional
da alma em sua função desiderativa.
É importante ressaltar que esta passagem dá de certo modo adeus às hesi-
tações terminológicas platônicas. Com efeito, Platão não usa, em seus diálogos,
o termo geral desgo (ÕpE~lS), do qual o apetite, o impulso e o querer seriam as
espécies; em seu lugar, aparece com mais freqüência o termo ETTl8vµllTtKÓV,
com a óbvia desvantagem de, ao mesmo tempo, designar o desejo de um bem
falso por causa do prazer (e, assim, claramente contraposto à ~oúÀllalS, que visa,
segundo Platão, ao bem verdadeiro e procede da parte racional). Para Platão,
como fica claro na escatologia final do GÓrgia.s,a alma pura, não ligada ao corpo,
é simples, tendo portanto uma só expressão volitiva (a ~oúÀllalS); o apetite e o
querer são como que refrações do querer da alma quando se encontra ligada ao
corpo. Neste esquema, não há sentido para espécies de querer ante um gênero,
pois os três tipos de querer respondem a uma hierarquia, cuja posição superior
é ocupada pelo querer. Para Aristóteles, porém, não há tal hierarquia; para ele,
úpE~lS é o termo geral, o gênero do desejo, do quall3oúÀllalS, ETTl9vµLae 8vµÓS
são as espécies em um plano idêntico (assim como cotias, macacos e papagaios
são igualmente animais, pois são todos espécies do gênero animal).
1102b32 prestar atenção à razão ... ter razão. Esta expressão pode ser usada
de dois modos: ter razão na matemática significa ter a teoria ou demonstração
de suas proposições, ser capaz de compreendê-las por si mesmo; o pai ter razão
significa que o ouvimos, damos atenção ao seu conselho. O ms. Mb dá em
b33 a variante Tà µa811µaTlKá, que, embora não precise ser aceita, indica com
clareza que não se trata de matemáticos, mas da matemática.

Comentários I 89
l102b33 é persuadida de certo modo pela razão. O verbo TTEt8oµm, como
sugere Chantraine, é provavelmente o verbo original de onde se formou, pos-
teriormente, uma voz ativa transitiva, TTElSW.Ele indica que o sujeito confia ou
deixa-se guiar por alguém ou algo, de onde os sentidos, por vezes diflceis de
distinguir, de ser persuadido e de obedecer. No contexto, há termos que favorecem
o sentido de obediência, como TTEl8apXE1 T0 ÀÓY4-l (b26) e TTEl8aPXlKóv (b31);
no entanto, a estrutura aqui parece jogar com o fato de o grego naturalmente
ligar a obediência à capacidade de ser persuadido - e esta obviamente é obtida
pela razão.
1103al que esta parte é racional. A saber, a parte não-racional obediente
(1102b34: TO aÀoyov) ou, mais precisamente, o aspecto desiderativo em ge-
ral (1102b30: õÀws OPEKTlKÓV). Dirlmeier propôs uma divisão em quatro
membros (duas partes da alma não-racional e duas outras da racional), mas
Gaurhier mostrou satisfatoriamente que não há como distinguir a parte não-
racional que obedece à razão da parte racional que obedece à razão.
1103a5 perspicácia. Gaurhier argumenta que este termo deve ser entendido
no sentido platônico da faculdade de compreender teoricamente com rapidez, e
não no sentido aristotélico de uma faculdade de bem julgar em matéria prática
(que tem os mesmos objetos que a prudência, porém, à diferença desta, não
produz imperativos, mas somente juízos ou valorações), alegando que a divisão
em virtudes intelectuais e morais já se encontra em Platão e que Aristóteles se
limitaria aqui a reproduzir essa doutrina da Academia. No entanto, a aWEalS
em Aristóteles é bem uma virtude intelectual, como a prudência, e nada nos
obriga a vê-lo aqui a reproduzir uma doutrina corrente na Academia; de qualquer
modo, se a aúvEalS for platônica pela razão aludida, então o será igualmente a
<PPÓVTJalS (no sentido, então, de conhecimento teórico), mas há boas razões para
se suspeitar que Aristóteles queira já introduzir a sua própria noção de <PpóVTJOlS
no campo das virtudes intelectuais, justamente ao mencioná-la ao lado da sabe-
doria teórica, ooóío. Contudo, na linha a8 avvETós acompanha unicamente a
sabedoria, podendo ter um sentido agora mais claramente de virtude intelectual
da parte teórica (o mesmo ocorre em EE IH 11220a6). Isso levaria a interpretar
oúvEalS como quer Gauthier, mas talvez Aristóteles queira precisamente deixar
os termos em certa flutuação, sem adotar uma ou outra divisão técnica, como
parece estar ocorrendo na maior parte deste capítulo.

90 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


l103a8-9 elogiamos o sábio segundo sua disposição. Em MM I 5 1185b10-11 é
excluído do domínio do elogio tudo que for proveniente da parte racional, seja
teórica (sabedoria), seja prática (prudência); já em I 341197al7, os prudentes
são ditos dignos de louvor. Na EE, a virtude é dita de dois tipos com base no
fato de elogiarmos não somente os homens justos, mas também os perspica-
zes e os sábios (Il 1 1220a4-6). Grant pensa que, naturalmente, tendemos a
restringir o termo virtude ao campo moral, de sorte que a MM marcaria um
avanço, neste sentido, em relação às duas outras éticas. No entanto, tal ten-
dência é um exagero; como assinala a EN, o sábio não é elogiado, como sábio,
em função do caráter moral, mas por conta de sua disposição virtuosa relativa
ao saber, e esse elogio parece sensato. Quando a posse de uma boa qualidade
coloca algo em uma posição superior, nós a elogiamos com base nessa relação.
Eustrácio constrói o silogismo do seguinte modo: a sabedoria é uma disposição
digna de elogios; toda disposição digna de elogios é uma virtude; portanto,
a sabedoria é uma virtude, "e do mesmo modo a perspicácia e a prudência"
(121,6-7). Aspásio o constrói diferentemente: todas as virtudes são dignas de
elogio; ora, a sabedoria é uma virtude, portanto o sábio é digno de elogios (36,
20-21), pois toma como explicativa (funcionando como premissa) a afirma-
ção que chamamos de virtudes as disposições dignas de elogio (assim como
a paráfrase: "elogiamos, por sua vez, o sábio por conta de sua boa disposição,
a qual é virtude, pois chamamos de virtudes as disposições dignas de elogio",
25, 20~21, o que corresponde ao texto de EE II 11220a6-7: ETTaLVETOV yàp
inrÉKEl TO ~ àpETll "foi suposto que a virtude é digna de elogio"). O silogismo
de Aspásio é melhor que o de Eustrácio, pois põe em evidência a causa: não
é porque é elogiado que é uma virtude, mas é porque é uma virtude que é
dogiado; no entanto, toma como dado que a sabedoria é uma virtude, o que
Eustrácio justamente quer obter como conclusão.

lI!

Este capítulo, claramente continuação do precedente, apresenta o objeto


de estudo desta unidade temática: a virtude moral. Para tanto, contrasta-a
inicialmente com a virtude intelectual para, em seguida, insistir sobre o fato

Comentários I 9I
de a virtude moral não nos ser inata, mas se desenvolver em nós em função da
qualidade de nossas ações. Para este ponto, Aristóteles se servirá da analogia
com as artes, em contraste com os casos de faculdades presentes em nós já em
potência, bastando uma oportunidade para exercitar-se, como as sensações.
O capítulo conclui-se com uma tese simples, mas capital para o argumento
aristotélico, que será repetida no início do capítulo seguinte: a disposição
acompanha e, em um sentido relevante, é dependente das ações.

l103a14 Sendo dupla a virtude. Este é o texto dos manuscritos, que Bekker
conserva; Susemihl propôs Ol TTlls o~Tlls àpETlls OOOlls (que daria: a virtude,
pois, sendo dupla), que Bywater adotou em seu texto. A correção, porém, não
é necessária, pois II 1 segue diretamente I 13 como se fosse o segundo capí-
(e. g. I 2
tulo do mesmo livro, o que com freqüência é ligado pela partícula OÉ
1095a14, 3 1095b14, 4 1096all, 5 1097a15, 8 1098b9, 9 1098b22, 12 1101blO,
para ficar somente no primeiro livro); a correção para o~ somente se imporia
se II 1 abrisse de fato, conceitualmente, um novo livro, o que não é o caso.
11103a15 em grande parte. "Em grande parte" porque também tem gênese
por descoberta, além do ensino. Aspásio escreve que "toda ciência provém do
ensino" (37, 13-14), para logo a seguir assinalar que a sabedoria requer "de
toda evidência ensino ou descoberta" (37, 15). A paráfrase é confusa a este
respeito, pois quer explicar o em grande parte pelo ensino pelo fato de adquirir
também o principio por natureza (alegando que o homem é receptivo da ci-
ência) e de ter "certo aumento pelo costume", àTTO ~e01!S aüÇllaLV Àaµ(3ávEl
Tlvá (26, 7~9). Talvez a paráfrase esteja supondo que, como requer tempo e
dedicação, isso cria certo hábito - o de dedicar-se à ciência -, o que se torna
por fim um fator para certo aumento seu. Aspásio comenta que alguém pode
querer chamar a prática de pesquisa de hábito, E8os, embora esse não seja o
uso próprio do termo; talvez isso indique que, na tradição do comentário a
essa passagem, havia alguma observação a respeito do fato de se chamar tam-
bém de hábito a ocupação científica, o que eventualmente teria ocasionado a
explicação da paráfrase.
11103a16~ 7 por isso requer experiência e tempo. As virtudes intelectuais re-
querem experiência, como toda atividade intelectual, e isso obviamente implica
tempo. Para algumas ciências, porém, como as matemáticas, jovens costumam

92 I Ethica Nicomachea I 13 - I/l 8


exceler;em outras, como a física,contudo, é preciso bem mais tempo, conforme
VI 9 1142a16-18.Em todo caso, experiência e tempo são cruciais especialmente
para a prudência, a virtude intelectual da parte prática, como é insistido no
livro VI. Pode-se, no entanto, perguntar por que Aristóteles introduziu aqui
esta observação, já que, por contraste, esperar-se-ia que as virtudes morais não
tivessem a mesma exigência, quando parece ser o contrário, visto surgirem do
hábito, e o hábito certamente requer tempo e experiência.
l103a17 enquanto a virtude moral resulta do hábito. O verbousado érrepryivoprn,
que designa o que prevalece,supera, sobreviveou é o resultado de algo; indica
aqui que o caráter resulta do hábito, isto é, é acentuado o processo pelo qual
o adquirimos. Com esta observação, Aristóteles toma uma posição clara na
disputa a respeito de se poderem ou não ensinar as virtudes: na medida em
que provêm do hábito, são objeto de uma prática, exercício e correção, não de
ensino. De certo modo, a solução de Aristóteles está prefigurada em Platão, que
havia chegado a uma conclusão semelhante: "o caráter inteiro vem do hábito"
(Leges 792e2: Tà TTâv ~8os 8là EeOS) ou "na verdade, quando as virtudes não
existem de início, podem ser acrescidas depois, por meio de hábitos e exercí-
cios" (Rep. VlI 518el-2: E8Ealv Kal àa~aEalv). No entanto, talvez em Pla-
tão se trate antes de uma concessão: para o homem mediano, para não dizer
medíocre, aquele que não é apto à ciência, só resta o hábito e o treinamento;
para o homem que tem ou é apto à ciência, porém, a virtude está fundada e
garantida pelo saber de que dispõe. Para Aristóteles, contudo, não se trata de
uma concessão: todo homem, sábio ou não, só adquire as virtudes morais pelo
hábito. No entanto, isso não deixa de provocar um problema, expressamente
formulado por Stewart: "~8l~ àpETlÍ como tal, vem EÇ E8ous: mas E80s requer
certa Eix:pma para desenvolver-se" (p. 169); isso não colocaria a virtude em
uma dependência natural? Stewart inspira-se em Grant, que remete a III 7
1114a31-b12 como uma passagem na qual Aristóteles reconheceria esta base
natural não da virtude moral, mas do hábito de onde provém. Contudo, dado
o contexto provavelmente polêmico desta passagem, é preferível remeter a
e.g. MM I 111187b28~30: "o homem que quer ser o mais virtuoso de todos
não o será a menos que secundado pela natureza", O mesmo ponto ressurge
em um livro comum: "pois também somos, logo de nascença, justos, de ten-
dência temperante, valentes e o resto" (VI 13 1144b5-6). O hábito, então,

Comentários I 93
ao engendrar o caráter, não o predetermina em função de uma boa ou má
natureza que teríamos ao nascer? Creio que a resposta de Aristóteles consiste
em aceitar que podemos ter de nascença certas tendências que auxiliam ou
perturbam a aquisição das virtudes, como a intrepidez, que alguns desde cedo
manifestam, ou a timidez, que outros logo evidenciam e da qual raramente se
libertam; porém, o decisivo é que o caráter provém das ações que, por hábito,
são repetidas. A ação pode ser facilitada (ou dificultada) pelas tendências na-
turais, mas não é idêntica a elas, e pode sobrepujar-se a elas, redirecionando
as tendências naturais em função dos hábitos adquiridos.
l103a18 divergindo ligeiramente de ethos. Em grego, E8os, hábito, de onde
viria ~8os, caráter, e ~8LKlÍ, ética ou moral. Burnet observa com razão que os
gregos não viam as palavras como derivadas de outras, mas sua análise baseava-
se numa ligeira alteração de um termo em relação a outro (ver por exemplo
Cratil. 398d5 aµLKpov TTapllyµÉvov, "levemente mudado"; 400bn àv µE:V
Kal aµtKpóv TlS TTapaKÀtV\l, "caso alguém o altere levemente"; 41Oa4 oui-
KpÓV Tt TTapaKÀ.tVOVTES,"levemente alterados"). Basta aplicar tal princípio ao
português para ver que resultado catastrófico resulta: mato e moto divergem
ligeiramente, sem terem nenhuma relação etimológica. Platão se serviu deste
procedimento para propor suas famosas etimologias, a mais célebre das quais
ilustra por excelência sua força enganadora: o corpo, awµa, é o túmulo, af)µa,
da alma. Felizmente, Aristóteles se serve pouco deste procedimento poten~
cialmente enganador, sendo mesmo bastante avesso a etimologias em geral:
em Top. II 6 112a32~38, ele critica quem quer ver em EUµVXOS o sentido (por
decomposição da palavra) de pessoa de bom ânimo ou em EVôatµúlv o de pessoa
com uma excelente divindade, no lugar de ater-se ao uso corrente desses termos
(respectivamente, corajoso e feliz). Mantenho a leitura dos manuscritos, salvo de
b
K (seguido pela paráfrase), que fornece TTapEyKÀ.lvov, "modificado"; Burnet
adota este último (assim como Gauthier), utilizado por Ateneu e pelo esco-
liasta dos Cavaleiros de Aristófanes (no sentido de alteração de prosódia); de
qualquer modo, não há alteração de sentido em jogo.
1103a19 nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza. Para mostrar
em que sentido a virtude moral não nos é natural, Aspásio distingue quatro
sentidos de por natureza: (i) o que sempre ocorre para algo, como o pesado,
que se move sempre para baixo; (ii) o que não existe desde o início, mas que,

94 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


com o tempo, ocorre nas mais das vezes, como o surgimento dos dentes; (iii)
aquilo de que somos receptivos, como a saúde e a doença, contrários quanto
ao corpo, e (iv) aquilo de que somos receptivos e para o qual temos uma pro~
pensão, como a saúde, em relação à qual a doença é contrária à natureza (38,
9~20). Para Aspásio, Aristóteles toma aqui por natureza no sentido básico de
(i) e, por isso, em relação a ele, a virtude não ocorre por natureza. Ela é, po-
rém, natural segundo (iii) e, sobretudo, segundo (iv), "pois somos receptivos
da virtude e do vício e temos mais propensão à virtude" (38,28-30). O verbo
usado, EyytVOµm, enfatiza que, se as virtudes ocorressem de modo natural,
elas nos seriam inatas.
l103a25 nos apeifeiçoamos pelo hábito. Como Aristóteles escreve na Metafísica,
"a virtude é um aperfeiçoamento, TEÃELW(JlS" (L\ 16 1021b20~21). O agente é as-
sim levado à perfeição prática pelo desenvolvimento das virtudes. Mais adiante,
Aristóteles mostrará que o pleno desenvolvimento da virtude moral implica
uma virtude intelectual operando em seu interior, a saber, a prudência.
11103a26 do que naturalmente surge em nós. O verbo usado, rrcpcvívoum.,
designa o estar acompanhando, secundar, estar presente (seguido de dativo pessoal)
ou o surgir, estar disponível, prosperar. No caso, trata-se do fato de as potências
estarem já presentes, como fica claro pelo exemplo dos sentidos, que, segundo
Aristóteles, não são aperfeiçoados, por mais que os exerçamos. Pode-se, é claro,
descrever sua evolução embrionária, mais precisamente o desenvolvimento de
seus órgãos corporais no embrião, mas, quando o órgão está completo, então
a faculdade sensitiva correspondente está em potência nele tal como no adulto.
Em toda esta passagem, Aristóteles joga com três termos próximos, mas de ma-
tizes diferentes: EyytVOµm, TTapaYLvoµm e rrepryívouru, "resultar, advir".
l103a32~33o que é preciso aprender para fazer, isto aprendemos fazendo. Pode-se
entender tanto "aquelas coisas que, rendo-se aprendido a habilidade, devem fazer-
se, aprendem-se íazendo-se" (assim comenta o texto Tomás de Aquino) como
"aquelas coisas que se devem aprender para fazer, aprendem-se fazendo-se"; adotei
a segunda possibilidade, seguindo Gauthíer, que a prefere justamente em função
do contraste com aquelas coisas que exercemos tendo-as já naturalmente.
l103b7 por meio das mesmas coisas. O texto grego é EK TWV aVrwv Kal olà
TWV aVrwv, literalmente: "das mesmas coisas e por meio das mesmas coisas".
O emprego destas duas preposições não deixou de suscitar dúvidas entre os

Comentários I 95
comentadores antigos. Para Aspásio (39, 15-20), ou bem são sinônimas aqui,
ou bem EK TWV am-wv designa mais propriamente que a geração e a corrup-
ção das virtudes ocorrem pelas mesmas causa.s, sem que por isso se diga que
ocorram pelas mesmas atividades (pois uma causa, e.g. a razão, pode ser a mesma
para contrários, como a medicina o é para o remédio e para o veneno); para
deixar claro que não são somente as mesmas causas, mas também as mesmas
atividades, Aristóteles teria acrescentado Kal olà TWV aUTwv. Burnet, no
entanto, remetendo a algumas linhas mais adiante (2 1l04a28), considera
que não há diferença de sentido, o que também é plausível, a explicação de
Aspásio devendo ser atribuída ao excesso de zelo do comentador. A sugestão
de Gauthier parece-me a melhor: o uso das preposições está sintaticamente
comandado pelos verbos (EK TWV am-wv por vívoum., "engendrar-se por meio
das mesmas coisas",e oLà TWV am-wv por <p9ELpoµm, "corromper-se por meio
das mesmas coisas") e por isso ambas as preposições são mencionadas, sem
que haja diferença filosófica daí decorrente.
l103b23 pois as disposições seguem as diferenças das atividades. É preciso distin-
guir duas teses aqui, embutidas na mesma frase. A primeira está claramente
formulada nas linhas que precedem (1103b21-22): as disposições originam~se
das atividades similares. T rata-se da precedência dos atos com relação às dispo-
sições. Isso, no entanto, pode gerar certo embaraço. Com efeito, para Arisró-
teles, uma ação é tal que, se eu faço algo, então posso deixar de fazê-lo. Esta
condição da ação é o fundamento de toda atribuição de responsabilidade ao
agent~ e jaz no centro da ética aristotélica: é porque o que eu fiz era tal que
eu poderia não o ter feito que eu sou responsável pelo que foi engendrado no
mundo por minha ação. Em outros termos, toda ação está logicamente aberta
aos contrários: aquilo a que posso dizer sim, a isto posso dizer não. O funda-
mento desta abertura aos contrários encontra-se no fato de a ação ser decidida
por razões (ainda que impulsionada por desejos) e a razão ser uma faculdade
dos contrários (cf. Met. e 2 1046b4-5). Esta tese, central no aristotelismo, é
expressamente mencionada em III 7 1113b5-14.Por outro lado, a repetição dos
atos em um sentido em detrimento de seu oposto engendra a disposição do
agente de agir neste sentido e não no outro. Ora, como o próprio Aristóteles
declara em V 1129a13-17, a disposição não está aberta aos contrários, mas
fixa um deles em detrimento do outro. Deste modo, o agente maduro, isto é,

96 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


aquele que desenvolveu as disposições com base nas quais ele age assim e não
de outro modo, não estaria agora impossibilitado de agir diferentemente? E,
se já não pode agir diferentemente, como podemos ainda responsabilizá-lo
pelo que faz, se a atribuição de responsabilidade está fundada por sua vez na
possibilidade de agir diferentemente?
Este problema muito preocupou Alexandre, que respondeu que o agente,
por ter sido responsável pela aquisição da disposição, é responsável agora, por
rransitividade, das ações que a disposição o faz realizar, embora já não as possa
realizar de outro modo. Esta resposta encontra-se já no próprio Aristóteles,
mas ela não cumpre o papel que lhe atribui Alexandre. Aristóteles introduziu a
tese da transitividade para preservar a responsabilidade moral em certos casos,
a saber, aqueles nos quais há uma corrupção do uso da razão (um exemplo
disso é o alcoolismo: o alcoólatra não pode agora agir diferentemente, mas,
em certo momento, estava em seu poder tornar-se ou não alcoólatra; o mesmo
vale para a busca desenfreada dos prazeres, que oblitera e corrompe o uso da
razão agora, mas estavam no poder do agente os atos que deram origem a essa
corrupção). Para aqueles em que isso não ocorre, e são maioria, a resposta aris-
totélica encontra-se, na verdade, em uma segunda tese, que vem acoplada a esta
primeira da precedência dos atos às disposições. Esta segunda tese estabelece
a prevalência do ato sobre a disposição. Por maior que seja o condicionamento
psicológico que representa uma disposição, um agente é sempre senhor, no que
diz respeito às ações tomadas separadamente, do sim e do não quanto à reali-
zação dos meios que obterão o fim desejado. Como Aristóteles dirá algumas
linhas adiante (2 11103b30-31), as ações determinam a qualidade das disposi-
ções, e isto quer dizer não somente que elas precedem, mas também que elas
prevalecem sobre as disposições: devemos ficar sempre atentos à qualidade das
ações, pois não só precedem, como, uma vez instituídos os hábitos, as ações
mesmo assim prevalecem sobre eles. Aristóteles considera que as disposições
criam mecanismos de respostas quase tão fixos como a natureza; sua ética
seguramente não é uma ética do perdão, menos ainda a de uma conversão
súbita e radical do agente, mas ele admite que o agente possa sempre, por
maior que seja o condicionamento psicológico, passar a agir diferentemente,
desde que não haja uma corrupção da razão, que está na base da abertura aos
contrários. Se o agente persistir nesta outra direção, talvez com o tempo possa

Comentários I 97
alterar sua própria disposição; sem que haja conversão abrupta, há sempre a
possibilidade da alteração mediante uma lenta e difícil manutenção dos atos
na nova direção. O fato que pode ocorrer simultaneamente a corrupção do
uso da razão não elimina que, na maior parte dos casos, esteja presente por
trás da fixidez psicológica a abertura de cada ação, tomada isoladamente, aos
contrários, e isto porque, nestes casos, o agente pode compreender as razões
envolvidas e agir com base nelas. Alexandre generalizou a resposta que Aris-
tóteles deu somente àqueles casos extremos; ao proceder assim, ele dramati-
zou excessivamente o papel das disposições. Aristóteles reconhece que é uma
alteração difícil, certamente lenta, pois o hábito assemelha-se a uma natureza
(De mem. I 452a28: "o hábito éjá uma natureza"), mas é mesmo assim "mais
fácil mudar o hábito do que a natureza" (VlI 111152a29-30), portanto não
é impossível. Mudanças de disposição são lentas e difíceis, mas podem ocor-
rer; neste sentido, Aristóteles se pergunta se devemos continuar tendo como
amigo um homem antes bom, mas que agora se tornou mau (IX 31165b13).
Aristóteles sustenta a transitividade da responsabilidade de modo limitado,
somente para os casos extremos; na grande maioria dos casos, deve-se distin-
guir entre condicionamento psicológico do agente e estatuto indeterminado
de cada ação com relação aos contrários. O primeiro explica a previsibilidade
do agente, o segundo a sua eventual novidade. Assim, é preciso reconhecer,
além da tese da precedência do ato em relação às disposições, a da prevalência
das ações sobre as disposições; é recorrendo a esta segunda que Aristóteles
desfaz o suposto paradoxo que a primeira parecia gerar, o do homem moral
maduro que já não pode agir diferentemente e, conseqüentemente, já não é
responsável do que faz. A tese da prevalência será novamente posta em realce
em IH 8 1114b30-15a3.

II2

Este capítulo introduz três teses maiores da ética aristotélica. (i) No início,
é enfatizado o tipo de exatidão a que pode aspirar o discurso ético: sua acribia
não pode ser como a do matemático; ao contrário, em algum sentido relevante
é preciso determinar, caso a caso, o que deve ser feito. Isto não elimina gene~

98 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


ralizaçôes na ética, e Aristóteles fala mesmo aqui de "discurso geral", o que
provavelmente faz alusão a estas generalizações, mas a elas não parece ser dado
o papel central que têm, por exemplo, na ética moderna. Muito sucintamente,
a forma básica da decisão prática é: A é bom/mau nas circunstâncias C para todo
agente S, e esta forma se distingue de todo A é B, assim como de nas mais das
vezes A é B. Em um sentido importante, a primeira fórmula está rente ou pró-
xima ao particular de um modo que as duas outras não o estão, nem mesmo
a de tipo nas mais das vezes. (ii) A despeito da imprecisão que o discurso ético
possui, incapaz de prover regras bem precisas para a ação, o discurso filosó-
fico sobre a moralidade parece, contudo, obter resultados bem determinados,
por exemplo: a virtude é um meio termo que pode ser corrompido pela falta
ou pelo excesso, extremos que caracterizam justamente os vícios. A doutrina
do justo meio é a matriz com base na qual Aristóteles examinará as virtudes
morais individualmente. Aqui, ele começa sua apresentação geral. A filosofia
prática, ainda que intimamente conectada às condições de ação, preserva um
registro discursivo distinto daquele em que se encontra o homem moral por
excelência, o homem prudente. (iii) Por último, Aristóteles realça a estreita
ligação entre, de um lado, virtude e vício e, de outro, prazer e desprazer, A
moral está estreitamente conectada a prazer e desprazer, o que leva Aristóteles
a recusar de entrada toda tentativa de definir a virtude como certo tipo de im-
passibilidade ou de ausência de prazer e dor. Não se trata, assim, de eliminar
prazer e desprazer do campo da ação virtuosa, mas de encontrar seu papel na
definição da virtude. Sem identificar o que é bom ao que é agradável ou a um
agradável e o que é mau ao que é penoso ou a um penoso, Aristóteles insiste
na estreita conexão entre estas noções, de sorte que uma explicação satisfató-
ria do fenômeno moral precisa levar em consideração o papel do prazer e do
desprazer relativamente ao valor moral das ações. A expressão usada - a ação
moral diz respeito a prazer e dor - deixa claro tal conexão ao mesmo tempo em
que evita tomar prazer e dor como fundamento do valor moral da ação moral.
São questões conexas, sem por isso se reduzirem uma à outra.

1103b26 Como a presente disciplina não visa ao conhecimento, como as outras


visam. Estas outras são as ciências teóricas, em número de três: matemática,
filosofia primeira e filosofia segunda (ou física); todas elas visam tipicamente

Comentários I 99
ao conhecimento, não à ação. Pode surpreender o leitor contemporâneo que a
ética, posto que seja uma disciplina teórica, não vise ao conhecimento, mas an-
tes a tornar bons os homens. Com efeito, a ética é hoje entendida basicamente
como uma meta-ética, e não parece decorrer daí nenhuma restrição relativa-
mente ao caráter moral do investigador: para compreender o funcionamento
lógico de predicados morais como bom e mau nem precisa o investigador mo-
ralizar nem ser um homem bom. Mais ainda, a exigência parece exorbitante
também do ponto de vista aristotélico, pois, neste mesmo capítulo, trata-se
de investigar o que é a virtude moral, e isto é tipicamente uma investigação
teórica, não prática. Além disso, o próprio Aristóteles distinguiu fortemente
entre o papel do prudente e o do filósofo moral: ao primeiro cabe dar conse-
lhos e encontrar soluçôes práticas; ao segundo, fazer análises conceituais. Se o
prudente não precisa ser filósofo para cumprir o seu papel, por que deveria o
filósofo ser, em algum sentido, prudente (ou pelo menos homem moral) para
cumprir o dele? Isso levou exempli gratia Enrico Berti a escrever que, "à luz da
classificação do livro VI, pode afirmar-se - quão paradoxal isso possa parecer
- que a filosofia prática, ou ciência política, não obstante sua intenção prática, é
uma virtude da razão teorética, pelo fato de ser sempre uma ciência" (As razões
de Aristóteles, p. 145). No entanto, Aristóteles insiste a respeito da ética não
visar ao conhecimento: em I 3 1095a4-6, elejá advertira que as lições de ética
serão inúteis àqueles que seguem as paixões, "visto que o fim <destas lições>
é não o conhecimento, mas a ação".
Uma saída para esta dificuldade pode residir no modo como interpretamos
rrpayµaTEla (traduzido aqui por disciplina). Se se toma este termo no sentido
mais restrito de tratado, tudo o que Aristóteles estaria dizendo é que este tratado
aqui não visa ao conhecimento, mas à ação, porque, por exemplo, tratar-se-ia
de um curso dado ajovens legisladores ou destinado a um público constituído
na maior parte não por filósofos, mas por políticos. Porém, neste caso, nada
impede que a análise filosófica exprofesso do fenômeno moral seja conduzida
tipicamente como qualquer outra ciência. Esta solução, contudo, parece-me
ad hoc; com efeito, em X 10 Aristóteles volta ao ponto e insiste que, "como
foi dito, o fim nos assuntos práticos não consiste em estudar e conhecer cada
item, mas antes em realizá-los" (1179a35-b2), e aqui não há nenhuma alusão
a um público particular que explicaria tal restrição. Penso que se deve tomar

IOO I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


rrpayµaTEla no sentido amplo de disciplina científica (como também o é a fí-
sica: cf Phys. II 3 194b17-18,que é tipicamente TOl) E18ÉvaL XápLV, "com vistas
ao conhecer") e buscar razões mais profundas para esta tese de Aristóteles
- seja para aceitá-la, sejapara recusá-la. Na verdade, Aristóteles parece ter uma
razão forte para insistir nesta subsunçâo à ação moral como decisiva para a
própria constituição do saber em questão, valendo, portanto, igualmente como
seu fim. A ciência parte de princípios que possui previamente; os princípios
relevantes da ciência moral são obtidos por meio do hábito, e isto implica um
envolvimento moral inescapável à própria teoria. Em I 7 1098b3-4, Aristóteles
escreve que TWV àpxwv 8' aI. µEV Erraywyfl ElEWPOVvTaL, aI. 8' al(JEl~(JEl,
dI. 8' EEll<Jµ0 TlVl, Kal aÀÀaL 8' aÀÀwS', "os princípios são apreendidos uns
por indução, outros por sensação, outros ainda por certa habituação, e uns
por uns, outros por outros <destes três modos>"; como comenta Stewart,
"hence EEll<JµÓS'not only produces rhe àpX~ of Habit, or tendency to act in a
particular way, but also, as a kind of Erraywy~, produces a point of view from
which conduct is regarded" (I 113). Pode-se ilustrar este ponto do seguinte
modo. O bem é aquilo a que tudo naturalmente tende; se este princípio fosse
obtido fora do domínio moral e pertencesse ao investigador que, de modo
neutro, examinasse a linguagem e os comportamentos morais, ele teria como
subsumir as atitudes a três grandes tipos de bem, como fez Aristóteles - a
contemplação, a honra política e o prazer -, mas não teria como eliminar a
vida dos prazeres como uma vida moral. Ao contrário, ele dependeria de uma
estatística (na qual, provavelmente, a vida dos prazeres seria majoritariamente
sufragada), de modo análogo a um analista político que comentasse o resultado
de uma eleição meramente constatando que, em tal lugar, tal partido obteve
mais cadeiras do que tal outro, enquanto em outra região a relação foi inversa,
sem poder considerar em que sentido estas modificações são boas para a vida
política da comunidade. Dizer que são boas (ou não) não é um conselho que
o analista político acrescenta à sua análise, mas é uma consideração que go-
verna sua inteira análise das modificações do mapa eleitoral. Isto, porém, ele
só pode fazer a partir de princípios que são obtidos no campo político e que o
colocam, por sua vez, como defensor de uma perspectiva política. De modo
similar, a ética como disciplina filosófica está inevitavelmente enraizada em
uma perspectiva moral: ela não somente constata o que se diz como sendo

Comentários I IOI
bom ou mau, ela toma parte em uma perspectiva sobre o bem e o mal. Ao
fazer isso, a moral como disciplina filosófica (e não somente este tratado aqui)
não é uma ciência teórica como as outras.
1103b30 são elas que determinam também. O termo que traduzi por deter-
minam é, na verdade, um substantivo: tcÚplaL. Este termo aparecerá, com um
sentido técnico, que penso ter aqui, em VI 13 1144b16 ~ KVpla àpET~. A
passagem que, penso, explica este sentido encontra-se em EE II 6 1222b20-29.
Lá é dito que, entre os princípios eficientes, os que são primeiros são denomi-
nados KÚpWL, e entre eles especialmente aqueles cujos resultados são sempre
os mesmos (como parece ser o caso do princípio divino). É dito então que, na
matemática, não há TO tcÚplOV, embora se fale de princípios dominantes por
semelhança (interpreto assim 1222b24-25 OVK EaTl TO KÚplOV, Kal TOl
ÀÉyETal yE KaEl' OµOlÓTT]Ta; ver M. Woods, Eudemian Ethics I, II and
VIII, pp. 126-127). O não haver TO KÚplOV na matemática não está ligado
ao fato de os princípios matemáticos serem imóveis (também o divino o é, e
ele é sobretudo KÚpLOV), mas ao fato que, embora mudados os princípios as
conseqüências se alterem de modo correspondente, eles não operam no sen-
tido aqui relevante, isto é, não mudam por si mesmos, um anulando a outra
hipótese, mas quem os anula um pelo outro é o matemático. A lição parece
ser que o princípio é dito tcÚpLOVse, em um sentido intuitivo e primeiro, ele
próprio for fonte das mudanças e não simplesmente capaz de as repercutir no
que segue. Aristóteles conclui então que "é evidente que, daquelas ações das
quais o homem é princípio dominante, é possível que sejam ou não, e que,
daquelas ações das quais ele domina o ser e o não ser, estas ações estão em seu
poder de ser ou não" (II 6 1223a4-7). Por fim, Aristóteles escreve que as ações
determinam também as disposições porque, se as ações forem boas, assim o
será a disposição; se más, então a disposição será má. Esta passagem retoma o
que foi dito no fim do capítulo acima (II 11103b13-23), mas põe em realce o
sentido de prevalência da ação sobre a disposição, enquanto aquela outra punha
em relevo o sentido de precedência da ação sobre a disposição.
1103b32 O agir segundo a reta razão é corrente; fique valendo como tese. Os edi-
tores modernos dão como texto TO µEV OUv KaTà TOV opElov ÀóyOV rrpáTTELV

KOlVOV Kal lrrrOKElaElw, e apenas Bekker assinala que Nb tem lrrrEpKElaElw


("fique valendo, postergue-se") no lugar de lrrrOKElaElw. Pelo texto moderno,

I02 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


lrrrOKElaElw seria reminiscente do procedimento "quase-matemático" (na ex-
pressão de Allan) típico da EE. A idéia seria que agir segundo a reta razão é a
hipótese a ser adotada, pois comum a todos os filósofos. Embora não apareça
em nenhum outro lugar, lrrrEpKElaElw não deve ser menosprezado. A primeira
razão é filosófica. Enquanto lrrrOKElaElw supõe que Aristóteles aceita a tese
(embora, em VI 13, ele corrija o agir secundum rationem por agir cum ratione, e
esta correção não é negligenciável), lrrrEpKElaElw simplesmente diz que, pelo
momento, vale tal tese (agir secundum rationem), pelo menos até o momento em
que será analisada exprofesso, o que ocorre no livro VI. Nesta leitura, Aristóte-
les não endossa já tal tese, simplesmente suspende seu exame para mais tarde.
A segunda razão, filológica, é que a paráfrase anônima retém lrrrEpKElaElw
(28,17), e é surpreendente que uma paráfrase, por natureza vulgarizadora,
escolha o termo mais raro em detrimento de outro freqüente. Burnet escreve
que a paráfrase "e alguns mss. inferiores" lêem úrrEpKElaElw; no entanto, é
mais prudente a posição de Grant, que assinala que os mss. divergem sobre
o ponto, pois "um número deles fornece lrrrEpKElaElw", pelo menos antes de
se ter um exame detalhado dos manuscritos e de seus valores. Mesmo assim,
para Grant, a autoridade de Bekker e o uso de Aristóteles parecem suficientes
para estabelecer lrrrOKElaElw. É verdade que lrrrOKElaElw é muito freqüente na
EE, e lá corresponde a uma postura metodológica que depois Aristóteles ou
bem abandona na EN ou, pelo menos, atenua-a, embora haja, ao longo da EN,
reminiscências desse uso freqüente na EE. Resta que, aqui, sobre o problema
do agir secundum rationem, o termo raro, lrrrEpKElaElw, parece harmonizar-se
melhor com o que de fato Aristóteles fará do ponto de vista argumentativo
na EN. De qualquer modo, o resultado da análise em VI é que a virtude deve
ser definida não como uma disposição KaTà TOV apElov ÀÓyov, mas µETà TOU
apElou ÀÓyou, isto é, não secundum rationem, mas cum ratione, portanto há uma
modificação por fazer na tese comumente aceita.
1103b33-34 o que é a reta razão e como se relaciona com as outras virtudes.
No livro EN VI (EE V), Aristóteles examinará o que é a reta razão e como
se relaciona com as outras virtudes. Particularmente, mostrará que a razão
em questão é a razão que o prudente tem, isto é, a habilidade de encontrar
mediante deliberação a solução certa para a ação presente cujo fim é bom, de
lograr o justo meio no interior das circunstâncias nas quais a ação se produz.

Comentários I I03
Ficará demonstrado que a prudência pressupõe as virtudes morais, pois, sem
elas, é uma habilidade mal dirigida ou rravoupyla; em VI 13 1144b30-45a2
é enunciado o problema de saber se tampouco é possível haver as virtudes
morais sem a prudência, de modo que, presente esta, todas as outras estarão
presentes. O livro VI, como se sabe, é um livro comum, e esta remissão a ele
poderia funcionar como um sinal ou bem da posição original destes livros na
EN, ou bem de uma revisão com vistas à sua adaptação à EN. Como em EE
II 111234a28-29 ocorre também uma remissão explícita ao livro VI, mais es-
pecificamente a VI 13, a segunda opção parece fortalecida, haja vista as outras
relações de parentesco entre os livros comuns e o restante da EE.
1103b34 Sobre isto. Aristóteles usa EKELVO provavelmente para acentuar a
importância do ponto.
1104al todo discurso de questões práticas tem de ser expresso em linhas gerais e de
modo não exato. Os editores modernos (Bekker, Bywater, Susemihl) fornecem
ó rrepl TWVrrpaKTwv ÀÓyos-, seguindo a lição do comentário
como texto rrâs-
anônimo ao corrigir o que os mss. trazem, rrâs- ó rrepl TWVrrpaKTÉwv ÀÓyos-;
no entanto, voltei à versão dos manuscritos, como aconselha fazer Burnet.
Segundo a versão dos manuscritos, todo discurso de questões práticas, isto
é, sobre o que devemos fazer em tal e tal situação, deve ser dado em grandes
linhas; na versão dos editores modernos, é antes a imprecisão do discurso
sobre questões práticas que é posta em realce, isto é, do discurso que porta
sobre o que são ações e questões similares. Aristóteles, porém, como observa
Burnet, não está falando aqui da dificuldade da ciência prática em geral, mas
da dificuldade de como fornecer regras sobre o que fazer. Como Aristóteles
dirá a seguir, os agentes devem sempre buscar a solução segundo as circuns-
tâncias; isto é uma consideração que faz o filósofo moral e tal consideração
está expressa no registro do que sempre ocorre. No campo prático, o que deve
ser feito, por ser sempre circunstancial, varia enormemente, o que ocasiona a
referida perda de exatidão. Convém assinalar que a caracterização das deci-
sões práticas como devendo ser fornecidas "em linhas gerais e de modo não
preciso" ocorre unicamente na EN, pois nem a idéia nem a expressão figura na
EE. C.c.w. Taylor, em seu recente comentário, considera que esta passagem
poderia sugerir que todas as proposições da teoria ética seguem o registro "nas
mais das vezes";o que é incorreto, a seu ver, pois algumas proposições da teoria

I04 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


ética são expressas em perfeita generalidade. Sua solução consiste em dizer
que há uma sub-classe de proposições éticas, que inclui os fundamentos da
teoria ética, cuja expressão é abstrata e, por isso mesmo, imprecisa, devendo
ser precisada em função das circunstâncias. Porém, o ponto da inexatidão e
expressão unicamente em linhas gerais vale para as decisões práticas, aquelas
que toma o prudente; o que o filósofo faz, a teoria moral, não está aqui sob
análise (quando Aristóteles define o que é a felicidade, ele não pensa estar
fornecendo uma proposição que é válida somente nas mais das vezes).
l104a2-3 como dissemos igualmente no início. Cf I 1094bl1-95a2.
1104a9-10 assim como ocorre na medicina e na arte de navegar. Os mesmos
exemplos ocorrem em In 5 1112b4-5. Aristóteles seguramente não as cita por
acaso, mas com certo tom polêmico, pois Platão fizera delas, no Político, o para-
digma mediante o qual pensa a política a fim de encontrar nela, ao contrário de
Aristóteles, um saber fixo que torna obsoleta toda deliberação a respeito, assim
como ocorreria na medicina e na navegação (ver especialmente 292b e 297e-
300a). Aqui, Aristóteles conclui a passagem sobre a natureza instável das ações,
que não caem sob nenhuma técnica ou preceito (ele usa o termo rrapayyEMa,
"prescrição",que a paráfrase dá como sinônimo de µÉSo8oS'), comparando-as à
medicina e à arte de navegar, como se estas fossem, entre todas as artes, casos
exemplares de indefinição e hesitação. Obviamente navegação e medicina são
artes e, por conseguinte, dispõem de um método, que, com o tempo, desenvol-
verá um saber, como já é o caso para outras artes (e que se depreende do que
Aristóteles afirma em Phys. I 1184a10-12). Resta que Aristóteles parece bem
menos satisfeito que Platão do estado destas duas artes, o que o leva a valer-se
delas como ilustração do contrário que queria Platão. Deve-se observar que os
escritos hipocráticos estão imbuídos da pretensão de eliminar todo acaso da
análise médica, de modo que de cada fenômeno se descobrirá um dia a causa,
o acaso meramente escondendo um fracasso do saber, não uma indetermi-
nação da coisa mesma. Aristóteles, contudo, sustenta que o discurso moral é
impreciso não por uma falha cognitiva nossa, mas por uma indeterminação
inerente a seu objeto mesmo, a ação.
1104al0-ll Embora seja assim a presente discussão, devemos vir em seu socorro.
A expressão devemos vir em seu socorro, como muitos já observaram, relembra
o estilo modesto do Sócrates platônico. Mas qual é o socorro dado? Pode-se

Comentários I IOS
pensar que, como será dito em VII, o conselho de agir segundo a reta razão é
muito amplo e vago, não servindo de nenhum apoio a quem age, de modo que
se deveria, então, tentar determinar com mais exatidão as condições para bem
agir. Como à questão de saber o que fazer a resposta "aja segundo a reta razão"
não fornece nenhuma diretriz prática, o que segue deveria dar indicações me-
nos vagas a respeito. No entanto, o que se segue tem outra natureza; a partir
de agora se entra em uma discussão de caráter filosófico sobre a natureza da
virtude, que se concluirá em n 6 com a afirmação que a qüididade da virtude
é a mediedade. Se o conselho de seguir a reta razão já era vago, que socorro
pode prestar a quem está prestes a agir saber que a qüididade da virtude con-
siste em uma mediedade? O ponto, portanto, parece ser outro. Embora seja
assim a presente discussão, isto é, se tanto o discurso geral quanto o particular
sobre o que fazer estão imersos em uma forte e ineliminável indeterminação,
o socorro que devemos e podemos prestar consistirá não em fornecer regras
práticas gerais, mas em, deslocando-se do discurso prático em direção à aná-
lise filosófica, examinar certas propriedades da ação em geral e da ação moral
particularmente de modo que, do ponto de vista filosófico, ganhe-se alguma clareza
em um domínio que, do ponto de vista prático, está inevitavelmente imerso em
obscuridades. Isto pode parecer um socorro por demais tênue, mas é mesmo
assim algum socorro; com efeito, disciplina filosófica e atitude moral não es-
tão inteiramente desconectadas, mas a primeira depende da última para ter
seus princípios e se vê agora que a segunda depende da primeira para ganhar
alguma clareza e sair de sua inteira imprecisão.
1104a13-14 pois devemos recorrer aos testemunhos visíveis em prol dos invisíveis.
Esta sentença justifica a escolha da saúde e da força como exemplos; por isso a
transpus após eles, quando, no texto grego, ela ocorre antes deles. O estilo parece
jurídico; Burnet cita em apoio Isócrates Ad Dem. 34.2. A mesma frase aparece
em MM I 1185b16 (lendo EK TWV aiaElT]TwV com Susemihl, no lugar de EK TWV
T]elKWV dos mss: se esta última leitura for mantida, então seria sinal que esta frase
teria sido copiada da EN); em forma ligeiramente alterada, mas com a mesma
idéia, ela já tinha sido afirmada um pouco antes, em 1183a26.
1104a24-25 torna-se insensível, por assim dizer. A reserva de Aristóteles
(" insensível, por assim dizer": àvaLaElT]Tós- Tl s) explica-se não somente pelo
fato de raramente ocorrer quem sente menos prazer, "pois tal insensibilidade

Io6 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


não é humana" (III 141119a7), como também, e sobretudo, pelo fato de, hu-
manamente, não é possível não sentir nenhum prazer. Embora a virtude seja
uma mediedade entre dois vícios, a falta e o excesso, os extremos não ocorrem
necessariamente em mesma intensidade ou freqüência, um podendo ser bem
mais raro do que o outro.
1104a25-27 a temperança e a coragem, então, são destruídas pelo excesso e pela
falta, mas preservadas pela mediedade. O termo mediedade (µE<JÓTT]S') aparece aqui
por primeira vez; mais adiante, em Il 6 1107a7, a mediedade será considerada
a qüididade da virtude moraL Tomo o~aqui em um sentido inferencial, como
propõe Burnet, seguindo Bywater; Kb fornece oÉ, conectivo simples; LbMbOb
e Aspásio dão yáp, em sentido explicativo. Aspásio considera que as virtudes
são destruídas pelo excesso e pela falta não no sentido de, já constituídas, serem
destruídas, mas no sentido de terem sua constituição obstada pelos extremos
(41,18-20); a razão seria que, uma vez constituídas as disposições, elas já não
estariam abertas aos contrários, agindo antes assim do que não assim. Porém,
nada exclui o primeiro sentido, haja vista as teses de precedência e prevalência
das ações sobre as disposições.
1104b4-5 o prazer ou dor que sobrevém. A EN contém dois tratados sobre
o prazer. O primeiro encontra-se nos livros comuns (VII 12-1S); o segundo,
em X l-S. No primeiro tratado, o prazer é pensado como uma atividade não
impedida; de acordo o segundo, o prazer não é uma atividade, mas sobrevém
a ela e como que a coroa. O vocabulário usado aqui favorece mais a segunda
do que a primeira versão.
l104b8-9 Com efeito, a virtude moral diz respeito a prazeres e dores. Tese nuclear
da ética aristotélica, segundo a qual a virtude moral, embora não seja definida
pelo prazer ou dor, está direta e umbilicalmente vinculada a ambos, não sendo
possível, assim, pensar a virtude como a supressão de prazer ou dor, mas como
a busca de sua justa medida. Os termos são ~oov~ e ÀÚTrT]; traduzi por prazer e
dor, respectivamente, não sem alguma hesitação. Com efeito, trata-se de prazer
e dor psicológicos e não físicos; uma tradução aceitável para dor seria, nesta
direção, aflição, que acentuaria sua dimensão psicológica, com a vantagem de
ligar-se diretamente ao verbo afligir-se. Contudo, o termo tem também a co-
notação, hoje preponderante, de agonia, angústia ou de profundo sofrimento,
o que é uma possibilidade da dor, mas não a acompanha corriqueiramente.

Comentários I I07
Scifrimento seria possível igualmente, o que engloba sofrimento físico e moral,
mas preferi dor, por ser o termo mais neutro e geral deste campo semântico.
Embora primariamente psicológicos, prazer e dor têm uma contraparte física.
A passagem procede então mediante oito argumentos em favor da tese que a
virtude moral está ineliminavelmente ligada a prazeres e dores: (i) b9-13, prazer
e dor influem nas ações; (ii) b13-16, prazer e dor acompanham toda ação; (iii)
b16-18, as punições procedem por dor, portanto o vício, que elas corrigem, é
seu contrário, o prazer; (iv) b18-28, prazer e dor nos fazem agir mal; (v) b29-
110Sal, há três objetos que servem de motivo para a ação e, destes, o prazer
é o mais freqüente e está contido nos dois outros; (vi) al-3, a tendência ao
prazer é inata; (vii) a3-S, prazer e dor servem para julgar nossas ações; (viii)
a7-1O,é mais difícil à razão opor-se ao prazer do que ao impulso. Segundo
Grant, estas provas se sobrepõem e a passagem inteira pode ser acusada de
falta de método. Este juízo parece severo demais; Aristóteles pretende sim-
plesmente arrolar razões para mostrar que prazer (dor) está ligado à virtude
(vício), sem, contudo, adotar uma linguagem fundacionalista (o prazer não
é a razão ou o fundamento por que uma ação é boa). Natali considera (i) o
argumento mais importante; Burnet sustenta que (iv) é o argumento central.
Na verdade, (i) e (iv) são muito próximos, (iv) tendo a vantagem de enunciar
uma tese a ser recusada.
l104bll-12 É por isso que, como diz Platão, deve-se ser educado de certo modo já
desde novo. Burnet observa que o artigo e o presente do indicativo (Ws- Ó TIÀÓTWV
<PT]<JlV) mostram que Aristóteles se refere ao Platão dos diálogos. Platão discorre
sobre o tema em Rep. In 401e-402a, mas provavelmente a passagem aludida
aqui é Leis n 6S3a, sobretudo porque, nesta passagem, a educação é dita ser
"a primeira aquisição pelas crianças da virtude", o que é retomado aqui pela
afirmação que "esta é a educação correta" (o fato de alegrar-se e afligir-se com
o que se deve é igualmente mencionado na República e nas Leis). A posição do
1TWs- ("de certo modo") é ambígua, pois se pode entender que se deve ser edu-
cado de certo modo já desde novo ou que se deve ser educado de certo modo, a saber,
de modo que se alegre e se aflija com o que se deve, como é dito em seqüência
(o que é reafirmado em X 11172a21-23). Esta leitura parece muito natural,
mas a primeira alternativa não deve ser descartada, principalmente porque, no
projeto paidêutico platônico, a educação deve começar já no ventre das mães,

Io8 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


tese certamente controversa, da qual, se estiver fazendo aqui referência a Leis
VII 790 a-e, Aristóteles teria certo interesse em desvincular-se.
1104b18-19 como foi dito antes. A passagem referida é II 2 1l04a27-b3.
O texto da vulgata, mantido aqui, é wS' Kal rrpórepov E'LrrOµEV; Kb fornece
como leitura wS' Kal1TP4>T]V E'LrroµEv, "como dissemos recentemente", o que
faria referência ao caráter quotidiano dos cursos professados por Aristóteles.
Bywater, que privilegia K'', edita rrp4>TJv, que seguem Burnet e Gauthier.
Excetuando os fragmentos, esta seria a única vez que tal termo figuraria nas
obras de Aristóteles.
l104b23 delimitados pela difinição. A expressão inrõ TOU Àóyou OLOpl(ETaL.
é

Como se sabe, À(yyoS' pode adotar diferentes valores,e se pode hesitar aqui entre
o sentido de regra (que adotaria o prudente) e o de definição (ou fórmula), que
proporia o filósofo. Adotei a segunda possibilidade porque, em III 2 lll1a3-6,
Aristóteles determina os tipos de circunstâncias que estão em questão, e isto
é feito no quadro de uma definição do ato voluntário Uá que é uma de suas
condições o conhecimento das circunstâncias nas quais a ação se produz),
tipicamente conduzida pelo filósofo. Cabe ao prudente determinar qual ou
quais circunstâncias têm valor moral relevante em certa ação, mas é tarefa do
filósofo determinar, em função da definição (do ato voluntário, base da ação
moral), quais são os tipos que podem ter relevância moral.
1104b24-25 certas impassibilidades e quietudes. Na versão correspondente da
EE, é dito que "todos definem precipitadamente" assim a virtude (II 41222a3:
8LOpl(OVTaL 1TáVTES' rrpoXElpWS'). O próprio Aristóteles faz eco a este modo de
definir a virtude ao escrever,em Phys. VII 3 246b19-20, que "a virtude torna ou
àrraElÉS' ou sensívelde certo modo" e, em Top. IV 5 125b22-23, que "o àrraEl~S'
é dito corajoso e tolerante". Isto pode querer dizer que, para além do círculo da
Academia, outros filósofos também definiam assim a virtude. É plausível,con-
tudo, que esteja pensando mais propriamente nos membros da Academia, e,
entre estes, especialmente em Espeusipo, que, segundo o relato de Clemente de
Alexandria, sustentava que os homens morais visam à ausência de perturbação
(Strom. II 22: aTox<Í(EGElm TOUs- àyaEloUs- TÍ']S' àOXÀT]alaS'). No Pilebo, quem
segue a vida unicamente intelectual (que é rejeitada como a melhor vida para o
homem) é descrito como TO rmpérrm. àrraElTjs- 1TáVTWVTWVTOlomwv (scl.TWV
~8ovwv), "inteiramente apathês relativamente a todos os prazeres" (21e2).

Comentários I
l104b27-28 Portanto, a hipótese é que tal tipo de virtude é de natureza a praticar
o melhor riferente a prazeres e dores. O termo lrrrÓKELTal faz pensar no método
"quase matemático", nos termos de Allan, da EE (if. o comentário a 1103b32).
O anônimo interpreta tal virtude como a virtude que está ligada aos prazeres
e dores como se deve, quando se deve etc., no que é seguido, a nosso ver correta-
mente, por Stewart, Tal virtude é TWV ~EÀTl<JTWV rrpcucrucú, o que traduzi,
sem muita convicção, por de natureza a praticar o melhor. Como Aristóteles
distingue expressamente, em suas éticas, entre ação e produção, preferi esta
perífrase pouco natural a fim de não utilizar termos como produtiva ou efetiva,
pois estão fortemente ligados ao mundo da arte e da produção. Aristóteles
chega aqui à conclusão que buscava, o que é marcado por uma partícula con-
clusiva, apa ("portanto"), mas, mesmo assim, acrescenta outros argumentos
até o fim do parágrafo para fortalecer sua posição.
l104b30~31Como são três os objetos de busca e três os de fuga. A expressão
para objetos de busca é Tà Eis- TàS' alpÉ<JELS' e a tentação é grande de traduzir
por objetos de escolha, mas a noção de a'(pE<JlS' está freqüentemente associada
e mesmo assimilada à de OlWKTÓV, tipicamente objeto de busca (if. I 5 1097a30-
34; VII 10 1151b1), o que sugere fortemente a tratá-la como um sinônimo
desta. A vantagem é também conceitual, pois, como Aristóteles insiste,
toda escolha diz respeito a um meio, enquanto o objeto de busca é um fim
a partir do qual deliberamos sobre os meios. Igualmente, Aristóteles insiste
que o acrático age por causa de um apetite, mas não por escolha deliberada
(if. In 41111b13-14); ora, em IX 41166b8-9 é dito que os acráticos buscam
(alpOUVTaL) o que lhes parece agradável, mas que é de fato prejudicial, no
lugar do que lhes parece ser bom, e aqui certamente não podemos dizer que
escolhem o que lhes é agradável, pois, em um sentido importante, escolher
é pesar razões e o acrático não age pesando razões. Esta lista dos objetos de
busca aparece em Top. I 13 105a28 e III 3 118b28; nos livros sobre a amizade,
Aristóteles falará de três objetos de amizade, o bem (àyaElóv, que substitui
KaÀóv), o agradável e o útil (XP~<JlµOV, que substitui <Juµ<!>Épov; cf. VIII
2 1155b19). A respeito dos objetos de fuga, a maioria dos manuscritos dá
à<Juµ<!>ópou, enquanto Kb e a antiqua traductio fornecem ~Àa~Epov, danoso,
preferido por todos os editores. Não há diferença de sentido, mas ~Àa~E-
póv é muito mais freqüente em Aristóteles. Este é um bom lugar para dar

IIO I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


preferência a Kb, como sistematicamente faz Bywater, mas, na passagem em
exame, em 1104b20, é preferível manter ETl ("aindá') da vulgata contra OTl
("que ") de Kb.
l105a7-8 é mais difícil combater o prazer do que o impulso, como diz Heráclito.
Heráclito (22 DK B85: Plur. Coriol. 22) diz que ué difícil combater o ardor,
pois vende o que quer ao preço da alma" (ElUµWL µáXEGElaL xaÀETTóv' o yàp
OV ElÉÀT]l, l\Jux~S' WVELTaL), EluµóS' tendo aqui o sentido mais amplo de desejo.
Aristóteles conhece bem esta afirmação de Heráclito, pois a cita, em termos
muito próximos, em EE II 7 1223b23-24 e em Pol. V 111315a30-31. Se Aris-
tóteles a cita aqui, ele o faz de modo bem menos preciso: Heráclito não está
dizendo que é mais difícil combater o prazer do que o impulso, mas que é
difícil combater o impulso - e mais difícil ainda o prazer, acrescenta Aristó-
teles. Nada impede, contudo (como sugere c.C.W. Taylor, p. 81), supor que
Aristóteles faça menção a outra passagem de Heráclito, da qual não temos
nenhum outro testemunho.

II3

Aristóteles responde, neste capítulo, a uma objeção que pode ser feita à
sua tese: se nos tornamos justos praticando atos justos, por que devemos nos
tornar o que somos, visto que já praticamos atos justos? A resposta consiste
em distinguir entre fazer algo com certa propriedade (por exemplo: auxiliar
alguém) e fazer esta mesma coisa de certo modo, a saber, tal qual faria o ho-
mem justo, isto é, porque é moralmente correto fazer tal coisa. Fazer tal qual o
homem justo requer agir com base em razões que, em um sentido relevante,
são razões do agente, e são tipicamente razões morais, ao passo que algo que
é justo pode ser feito acidentalmente ou sob a instrução de outra pessoa. A
julgar pelo tom sarcástico com que finaliza este parágrafo, Aristóteles não
parece levar muito a sério quem eventualmente faz ou mesmo historicamente
fez tal objeção (mas que, neste último caso, não foi nomeado). Ao oferecer sua
resposta, porém, Aristóteles menciona três condições do estado do agente: (a)
saber, (b) escolha deliberada, (c) fixidez, e o exame destas três condições é de
grande importância.

Comentários I III
l105a23-24 É, pois, um gramático quando faz algo de cunho gramatical e de modo
gramatical. São dadas duas condições: (i) o objeto tem certa propriedade e (ii)
o agente o produz de modo gramatical. A condição (ii) é interpretada a seguir
como atuar com base em um conhecimento que está, em um sentido intuitivo,
naquele que o produz (excluindo, por conseguinte, que seja por acaso ou por
instrução de outrem): em um sentido relevante, são as suas (boas) razões.
l105a26-27 Além disso, não é nem mesmo similar no tocante às artes e às vir-
tudes. A analogia é, agora, retrabalhada, pois o produto de uma arte tem nele
próprio o bom estado, ao passo que o objeto de ação requer, além de ser um
bom X, que certas exigências sejam satisfeitas por parte do agente, para além
de simplesmente provir dele em um sentido intuitivo.
l105a30-31 mas também quando o agente age estando em certo estado. Além do
resultado (o que é feito) ter certa propriedade (por exemplo: auxiliar alguém a
empurrar o carro que estragou na Marginal), é preciso também que o agente
esteja em certo estado. A dificuldade desta passagem está em determinar
exatamente em que consiste este certo estado em que deve estar o agente.
Aristóteles menciona três condições: (a) saber, (b) escolher por deliberação e
(c) agir de modo firme. Não é muito claro o que entende, como veremos, em
cada uma destas condições, que podem, além disso, ser tomadas separatim ou
ser vistas como uma mesma condição que, a cada etapa, vai sendo aprofun-
dada. Na condição (b) aparece o termo rrpOaLpOÚµEVOS' em sentido técnico,
novamente sem que o leitor saiba ainda exatamente o que Aristóteles entende
por esta noção que ele próprio introduziu na análise filosófica. O que me pa-
rece fundamental aqui é evitar um tipo de telescopagem interpretativa. Como
no livro III Aristóteles examina as condições (nesta ordem) do voluntário, da
escolha deliberada e da disposição, o intérprete naturalmente pensa poder ver
nas três condições aqui aquelas mesmas que serão desenvolvidas mais adiante.
Porém, como veremos, isso causa problemas insolúveis de interpretação da
presente passagem.
Em primeiro lugar, não é claro o que designa (a). Pode ser (i) o conhe-
cimento que a ação é virtuosa. Isto é, o que faz ele o faz sob a descrição de um
ato virtuoso. Ou se trata de (ii) o conhecimento das circunstâncias nas quais se
produz a ação; com efeito, este tipo de conhecimento é uma das condições do
ato voluntário e o ato voluntário está na base da atribuição de responsabilidade

II2 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


moraL Pode designar também (iii) o conhecimento de regras (no caso, regras de
conduta e comportamento, como não bater nas pessoas); neste sentido, seu des-
conhecimento gera não o caráter involuntário do ato, mas a natureza perversa
do agente (como o próprio Aristóteles reconhece em In 2). Ou, finalmente,
pode designar (iv)o conhecimento técnico, claramente envolvido na fabricação
de objetos, mas também presente nas ações (alguém, ao defender sua pátria,
maneja com maior ou menor conhecimento e destreza os equipamentos de
guerra; nenhum conhecimento destes equipamentos o incapacita a defender
efetivamente sua pátria). (i) pode ser posto de lado, pois agir sob a descrição
de ato virtuoso requer satisfazer também as outras condições, (b) e (c). Como
se espera, prolepticamente, encontrar aqui o que será examinado no livro
In como condições do ato moral, as atenções ficam voltadas a (ii) e (iii), (ii)
sendo o candidato mais promissor, pois o próprio Aristóteles analisa a ação
moral nesta ordem: primeiro seu caráter voluntário, depois as condições de
deliberação e, finalmente, a disposição como conseqüência dos atos repetidos
em certa direção com base nas duas primeiras condições. No entanto, há duas
dificuldades, e de peso. Em primeiro lugar, EloÉvaL, conhecer, é empregado, na
continuação deste capítulo, no sentido de conhecimento teórico sobre a natu-
reza da ação e dos predicados morais, isto é, no sentido de disciplina filosófica
ou teoria da ação (moral), e este uso está em clara ruptura com o sentido de
saber em (ii). Saber teria, então, dois sentidos bem distintos: primeiro, saber
as circunstâncias, mas logo depois saber teórico, no sentido da teoria filosófica
moral. Em segund.o lugar, Aristóteles afirma enfaticamente: que, no c.a:.>c üar,
ações virtuosas, o saber (qualquer que ele seja), tem pouco ou nenhum valor;
ora, no sentido (ii) isto é obviamente falso. A leitura (ii) requer a atribuição
de dois sentidos a saber neste curto capítulo, o saber com pouco valor na ação
sendo moral sendo o saber teórico. A solução (iii), saber as regras de conduta
para agir bem, em nada altera a situação, com o problema, suplementar, de
introduzir a noção de regras e preceitos práticos, cuja função, pelo menos nos
livros II e III, tem um papel apagado.
Uma segunda dificuldade diz respeito a (b): Aristóteles introduz a noção
de escolha deliberada, ainda à espera de análise, e a ela liga a idéia de deliberar
pelas próprias coisas, o que, como se verá, pode estar em conflito com o que
diz ex professo da deliberação, a saber, que é unicamente dos meios e nunca dos

Comentários I II3
fins. Uma terceira dificuldade diz respeito a (c): trata-se da disposição moral, que
então é posta como condição de todo ato moral, ou antes de um requerimento
menos forte, o fato de o agente dever agir sem hesitação, sem ir e vir conti-
nuamente a respeito do mesmo ponto? A estas dificuldades está ligada uma
quarta: o agir moral deve satisfazer separatim estas três condições ou elas são
como que um aprofundamento de uma mesma condição? No primeiro caso,
o agir moral requereria uma estabilidade (c); é evidente que, no caso de um
agente plena ou propriamente virtuoso, (c) está satisfeito a título de disposição
moral (que é estável), mas é de fato verdade que, para toda ação moral, (c) a
título de disposição deve ser o caso? Não podemos imaginar um ato moral que
alguém pratica, com base em razões que reconhece como boas em um dado
momento, sem ainda ter a disposição moral para tanto? Aparentemente, para
preservar a noção de três condições separatim, é preciso dar a (c) uma leitura
menos forte do que disposição moral. O agente deve agir (c) de modo firme e
inalterado, isto é, sem hesitar, dito de outro modo: sem a todo momento re-
cuar e duvidar sobre que caminho seguir. A disposição moral é assim, mas
nem todo ato sem hesitação é um ato proveniente de uma disposição moral.
Esta solução é atraente, mas se pode ainda supor que (a), (b) e (c) estejam
em certa relação de irnbricaçâo, tal que (a) se expande em (b) e (b) redunda
em (c), agora podendo ser lido a título de disposição moral, na perspectiva da
virtude plena (embora isso não seja necessário), sem que todo ato tenha de
satisfazer (a) + (b) + (c) para que seja um ato moral. Pode haver casos em
que (c) não é satisfeito (a título de disposição), mas o ato é mesmo assim um
ato moral, ou mesmo pode ser o caso que (b) não ocorra (atos súbitos não são
acompanhados de deliberação), sem deixar de ser um ato moral. Por sua vez,
(a) apresentaria, nesta interpretação, o patamar mínimo exigido para que não
somente o que é feito tenha certa propriedade, mas que também o agente se
encontre em certo estado. No entanto, (a) é declarado ter pouco ou nenhum
valor, o que torna pouco plausível esta interpretação. Parece, assim, preferível
a interpretação anterior.
l105a31 quando sabe. Esta é a primeira condição, Eàv ElowS'; a que ela
exatamente se refere? A maioria dos comentadores supõe que se trata do
conhecimento das circunstâncias, aquele, como se verá no livro III, cuja igno-
rância provoca o caráter involuntário do ato. Há, porém, duas dificuldades

II4 I Ethica Nicomachea I 13 - II/ 8


se for este o tipo de conhecimento envolvido aqui. Em primeiro lugar, fica
difícil compreender como Aristóteles dirá, em seguida, que, para a aquisição
das virtudes, este saber pouco ou nada conta, pois ele próprio diz, no livro V,
que quem comete involuntariamente atos (in)justos não se torna por isso um
homem (in)justo. Em segundo lugar, não há então como compreender a va-
riação semântica de saber neste capítulo a não ser pretextando uma solução de
continuidade, o que não é descabido, mas que só deve ser aceito se não houver
outro modo de explicar os diferentes sentidos deste termo nestas poucas linhas.
Se, porém, entendermos por quando sabe o saber técnico que está evidentemente
envolvido nas artes e ofícios e que se pode intuitivamente aceitar também para
a ação moral, pelo menos com vistas à sua eficácia, então o capítulo inteiro fica
coerente. No entanto, para isso é preciso abandonar a tentativa proléptica de
ver nestas condições o que Aristóteles dirá do ato virtuoso no livro III; aqui,
estamos no contexto de uma objeção e a resposta move-se fundamentalmente
no interior de tal contexto.
l105a31-32 em seguida, quando escolhe por deliberação, e escolhe por deliberação
pelas coisas mesmas. A segunda condição está assim expressa no texto que Bekker
Susemihl e Bywater editam: ETIElT' Eàv TIpOmpOúµEvOS', KalTIpOmpOúµEvOS'
Ol' amá. Kb fornece ETIElTa Kal TIpOmpOÚµEVOS' Olà TaUTa ("em seguida,
escolhendo por deliberação por estas coisas"), enquanto LbNbOb dão ETIElT'
Eàv TIpOaLpOÚµEVOS' Ol' amá ("em seguida, quando escolhe por deliberação
pelas próprias coisas"). O texto editado é, assim, resultado da mistura das
duas transmissões. A paráfrase dá ETIElTa Eàv TIpOmpOúµEvOS' ("em seguida,
quando escolhe por deliberação"), o que pouco auxilia para decidir sobre qual
é o texto de Aristóteles. O olà Tama de Kb não pode senão remeter àquelas
coisas que são objeto de saber em (a); segundo a lição dos outros manuscri-
tos, Ol' amá, delibera-se com vistas às próprias coisas que motivam a ação.
Elas são as mesmas coisas que figuram como objeto do saber em (a), mas a
formulação aqui é mais geral e abstrata. Parece natural que, se a reiteração
de TIpOaLpOÚµEVOS'for mantida, ela deve ser completada com a versão mais
abstrata Ol' amá. A reiteração, porém, pode ser somente efeito da edição
moderna do texto, devendo, por conseguinte, ser tratada com cautela. Isto
não é de somenos importância, pois, se repetido, é como se uma condição
(b2) fosse explicitada, e isto em um contexto em que o vocabulário típico da

Comentários I IIS
ética aristotélica está fortemente presente (afinal, rrpocíoeotc é um termo de
estrita estirpe aristotélica). Nesta situação, a preferência por Ol' amá pode
adquirir um interesse novo. Com efeito, a deliberação é sempre dos meios,
mas aqui parece ser enfatizado que o agente escolhe pelas próprias coisas, o que
aparentemente sugere, para me valer das palavras de Gauthier, que a escolha
"incide sobre o fim, o único [em contraste com os meios] que é escolhido por
ele próprio e não por outro bem que poderia decorrer daqui" (ad loc; em con-
seqüência, Gauthier-Jolif assim traduzem a segunda condição: "ensuite, qu'il
les accomplisse intentionnellement, - et ajoutons: intentionnellement en raison
delles-mêmes", na mesma linha, Bodéüs traduz por: "ensuire, le décider et, ce
faisant, vouloir les actes qu'il accomplit pour eux-mêmes"}. Teríamos aqui uma
deliberação que incide sobre os fins, contra o que Aristóteles propõe no livro
III, em função do acréscimo Ol' amá. O acréscimo, contudo, não favorece
tanto a posição de Gaurhier, Talvez ele seja efeito da edição moderna do texto;
mas, mesmo que este seja o texto de Aristóteles, é possível dar uma interpre-
tação que não colide com as lições expressas da limitação da escolha deliberada
a meios e nunca a fins e que mais naturalmente se adapta à sintaxe da frase,
com ou sem reiteração. O agente deve deliberar sobre os meios para obter os fins
com vistas a estes próprios fins que figuravam como conteúdos do saber. Dito de
outro modo, o agente não foge, mas permanece na batalha com vistas ao fim
mesmo de salvar sua cidade, e não porque e.g. lhe foi oferecida uma quantia
de dinheiro para ficar em seu posto. Alguém pode deliberar bem com base
em outro fim do que aquele pelo qual está sendo avaliado moralmente, e a
condição 8l' amá visa aparentemente tão-somente a garantir a relação entre a
deliberação e estes certos fins (morais) que são seus princípios ou regras, sem
por isso provocar um conflito com a doutrina ex prcifesso da escolha deliberada.
Como Broadie escreveu em seu comentário, "o ponto não é, como alguns in-
térpretes pensam, que o homem moral se decide pela ação por si mesma, pois
é consistente <...> fazer D com vistas à saúde e valorizar a saúde com vistas
à felicidadé' (ad loc.)". No fundo, Kb e LbNbOb coincidem, o texto moderno
sendo resultado de um zelo excessivo: a condição (b) apresenta a deliberação
sobre os meios com vistas àquelas mesmas coisas que foram postas como ob-
jeto de saber em (a). Qualquer que seja o texto, porém, rrpompoúµEvOS' tem
o sentido claramente ativo do agente que escolhe por deliberação D com vistas

II6 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


a obter um fim F, sem introduzir (pace Gauthier) uma deliberação sobre fins.
Mais ainda, se, como proponho, as condições (a,b,c) não estão aqui como
cavalo-de-Tróia para o livro III, de modo que (a) seja o conhecimento técnico,
(b) rrpOaLpOÚµEVOS' OL' amá não pode ser usada (como freqüentemente se
tenta fazer) para corrigir a alegada limitação insuportável da deliberação aos
meios (buscando concebê-la como também dos fins), mas, inversamente, deve
ser entendida como uma primeira formulação, útil aos propósitos presentes,
cuja tese propriamente deve ser buscada somente lá no livro III. Aqui, tudo
de que Aristóteles precisa é afirmar que o agente moral deve deliberar e que
esta deliberação deve estar ligada àqueles mesmos fins sob os quais a perspec-
tiva moral está sendo analisada (o que exclui, portanto, que delibere ao agir,
mas sua deliberação diga respeito a outros tópicos que aqueles envolvidos na
avaliação moral da ação).
l105a33-34 quando age portando-se de modo firme e inalterável. Esta é a terceira
condição, a condição (c). Aristóteles associa freqüentemente à noção de dispo-
sição não somente a firmeza, mas igualmente a dificuldade para ser mudada,
ambas claramente sublinhadas aqui. Como escreve Grant, "nenhum ponto é
mais enfatizado nas Éticas do que a estabilidade das EÇElS' morais uma vez
formadas" (ad loc.). Isso é verdade; as disposições são fixas, mas nem tudo o
que fazemos sem hesitar provém de uma disposição. Talvez Aristóteles queira
enfatizar somente que o agente não pode estar em um estado de hesitação, ora
adotando a, ora adotando Na, sem por isso comprometer-se a já lhe atribuir
uma disposição moral bem estabelecida. Convém observar que os traduto-
res freqüentemente introduzem o termo disposição; Rowe, por exemplo, que,
normalmente, é muito cuidadoso, traduz por" from a firm and unchanging
disposirion", quando, na verdade, não há o termo EÇlS' no texto grego.
1105bl Relativamente ao possuir as outras, as artes. c.c.w. Taylor observou
corretamente que uma tradução literal produz um falso sentido ("relativamente
ao possuir as outras artes"), visto que Aristóteles está a contrastar as virtudes
com as artes. Para um uso similar, ele remete a Górgias 473c3.
1105b2-3 o saber pouco ou nada conta. Este é o texto da vulgata, que seguem
Bekker e Susemihl: Bywater, por conta de sua preferência a Kb, segue este úl-
timo manuscrito, que inverte a ordem: "nada ou pouco contá'. Pouca diferença,
ou nenhuma, por certo, mas o primeiro membro é tintura retórica, artimanha

Comentários I II7
de orador, que, se premido, concederá por certo a segunda opção. O problema
maior desta passagem está no valor por ser atribuído a saber: em que sentido o
saber pouco (ou, melhor, nada) conta na aquisição das virtudes? Parece ser no
sentido de conhecimento teórico; mas, neste caso, se foi antes tomado no sentido
de saber das circunstâncias, então adquire aqui outro sentido, o de "uma teoria
da ação", como escreve Stewart, que observa: "Aristóteles usa EloÉvaL em dois
sentidos no presente contexto, um dos quais ele afirma e o outro ele nega a
necessidade para a moral" (I 185). Era já, como lembrou Natali, a explicação
do comentário anônimo, que glosa este saber como "conhecer a causa e dar
uma demonstração" (129, 24). O preço para pagar, nesta interpretação, é o
divórcio dos sentidos de saber nestas poucas linhas. No entanto, se se tomar
antes saber no sentido de saber técnico, isto explica porque TO EloÉVaL pouco
ou nada conta para a virtude, o que permitirá a ironia seguinte a respeito dos
que crêem ser suficiente. saber (teoricamente) para agir (praticamente) bem.
O ponto já foi discutido nos diálogos socráticos de Platão, especialmente no
Laques: neste diálogo sobre a coragem, a personagem Láques entende como
saber (envolvido na ação moral) unicamente o saber técnico, o que faz com
que, apesar de sua admissão que bem agir é agir com base em um saber, ele
diga que aquele que age bem sem saber (técnico) é mais corajoso do quem faz o
mesmo com saber (técnico), em clara dissonância com sua admissão. A correção
quanto ao tipo de saber (que é primeira ou privilegiadamente saber moral) é
feita, na segunda parte deste diálogo, por Nícias, que sustenta uma posição
de estirpe socrática (o que, contudo, não o evita de cair em dificuldades na
parte final do diálogo).
l105b3-4 as quais justamente resultam do praticar freqüentemente atos justos e
temperantes. O pronome relativo (a1TEp, as quais justamente) remete às outras con-
dições (rô 8' ana). Bywater sugeriu escrever EhTEP no lugar de a1TEp, no que
foi seguido por Gauthier; neste caso, é a aquisição das virtudes que provém do
praticar freqüentemente atos justos e temperantes (e Gauthier traduz coeren-
temente: "pour cette raison même que cest l'accomplissement des choses justes
et tempérées qui produit la possession des vertus"}. Não parece necessária a
correção, contudo. As outras condições são (b) e (c): a escolha deliberada e a
inalterabilidade. A escolha deliberada está, como se vê em II 6, no centro da
virtude moral, que é adquirida pelo hábito; a disposição naturalmente resulta

II8 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


de agir freqüentemente em uma direção. Ademais, a escolha deliberada supõe
o caráter voluntário (portanto o conhecimento das circunstâncias). Broadie
exclui (a) do escopo de ã1TEp, alegando que "é somente uma condição sine qua
non para a ação contar como feita por virtude possuída" que não se desenvolve
pela prática freqüente, mas ela toma (a) como conhecimento das circunstâncias;
se, porém, (a) for entendido no sentido que propusemos, então é claro por que
deve ser excluído: não é uma condição sine qua non para a ação contar como
virtuosa, ao contrário do conhecimento das circunstâncias.
l105b18 filosofando deste modo. Quem são os que filosofam deste modo?
Não somente, mas certamente também a tradição expressa nos diálogos socrá-
ticos de Platão, que supõem que o conhecimento da virtude é uma condição
necessária e suficiente para ser virtuoso, sem precisar a exata natureza deste
conhecimento porque ele é, em um sentido importante, indistintamente saber
moral e técnico.

II4

Começa aqui o estudo propriamente dito da natureza da virtude. Neste


capítulo, é apresentado o gênero da virtude: trata-se de uma disposição. O
argumento procede por eliminação, mas o caráter exaustivo da lista apresen-
tada não é defendido; recorre-se a práticas da língua e a intuições básicas para
eliminar os maus candidatos, restando somente o terceiro e bom candidato,
a disposição.

l105b19 deve-se investigar o que é a virtude. O capítulo inicia com a questão


típica da busca de uma definição: o que é a virtude, Tl E<JTlV ~ àpET~. A pri-
meira parte da resposta consiste em fornecer o gênero da virtude, o que será
feito neste capítulo. A definição segue aqui claramente o padrão de um gênero
ao qual é acrescentada a diferença específica.
l105b20 emoções, capacidades, disposições. O argumento procede por elimi-
nação. Aristóteles não parece preocupado aqui em garantir o caráter exaustivo
de sua lista, mesmo que se possa sempre objetar, contra este tipo de argumento,
que a lista fornecida não é exaustiva - no caso, que há outros estados que se

Comentários I II9
geram na alma além dos citados. Há, porém, um modo de enfatizar que, no
aristotelismo, são três e somente três os estados para serem considerados. A
virtude pertence à categoria da qualidade (I 6 1096a2S: EV T<!JrrOl<!J ai. àpE-
Tal); ora, em Cato VIII, Aristóteles divide a categoria da qualidade em quatro
grupos: (i) EÇlS' e oláElEalS', (ii) éoa KaTà oúvaµLV <pualKTjv ~ àouvaµlav
ÀÉYETaL, (iii) rraElT]TLKalrrOlóTT]TES' e (iv)axf]µa e µop<p~. O grupo (iv) deve
ser desconsiderado, pois diz respeito à forma e aparência do corpo, enquanto
a virtude vale para a alma. Restam, assim, somente três, que são justamente
os que aparecem na lista da EN: (i) disposição e estado, Aristóteles dando
preferência na EN à noção de disposição; (ii) o que é dito como capacidade
ou incapacidade natural são as capacidades de nossa lista e (iii) as qualidades
afetivas incluem as emoções. No entanto, a lista não é muito rígida, pois o
próprio Aristóteles acrescenta, nas Categorias, que "talvez outro tipo de quali-
dade se evidencie; em todo caso, os tipos que são sobretudo mencionados são
aproximadamente em tal número" (10a25-26), o que faz com que se possa
manter ainda certa hesitação quanto à exaustividade da lista, mesmo a quem
se apóie em Categorias VIII.
Uma observação sobre a tradução de rráEloS' por emoção. Toda emoção é
uma afecção, mas nem toda afecção é uma emoção; a audição é certo tipo de
afecção (rráEloS' Tl), mas não é uma emoção. Do ponto de vista ético, porém,
as afecções que importam são as emoções; ser afetado é em algum sentido, na
ética, ter uma emoção. Emoções são afecções envolvidas na ação que contêm
um elemento cognitivo (para sentir medo, por exemplo, é preciso considerar
que algo presente é capaz de causar dano à nossa vida, e esta consideração é
de natureza cognitiva); nem todas as afecções estão ligadas à ação, tampouco
todas contêm um elemento cognitivo que as governe. Não será possível,porém,
manter sempre a mesma tradução, pois rráEloS' em alguns contextos designa o
que nomeamos, de modo mais largo ou menos preciso, de afecção, o mesmo
ocorrendo com os termos cognatos, especialmente com o verbo rráaxw.
l105b21-23 Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, invga, alegria,
amizade, ódio, anelo, emulação, piedade. É sempre difícil traduzir uma lista de
emoções, pois se trata de transpor, à nova língua, toda uma sutil anatomia
da alma humana baseada no uso da primeira língua. Esta lista de Aristóteles
(E1TLEluµlav, OPYTlV, <pó~ov, ElpáaoS', <pElóvov, Xapáv, <plÀlav, uioos, rróêov,

I20 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


(f]ÀOV, EÀEOV) pode ser comparada à que Platão fornece no Pilebo das dores
da alma somente (sem mistura com o corpo): cólera, medo, anelo, lamento, amor,
emulação e inveja (àpy~v Kal <j>ó~ov Kal rróêov Kal Elpf]vov Kal EPWTa Kal
(f]Àov Kal <j>Elóvov: 47el-2, repetida em 50b7-c1; mais adiante, em 65c6, Tà
à<j>poolaw, tipicamente sexual, é dito ser o desejo mais intenso, mas obvia-
mente tem a ver com o corpo). Na Retórica II 1-11, Aristóteles analisa mais
detidamente as emoções humanas, escrevendo por assim dizer o primeiro
tratado de um gênero que terá particular acolhida na reflexão filosófíca até a
modernidade, a saber, o tratado das paixões. Aqui, na EN, sua lista começa
com duas emoções que funcionam também como tipos de desejo: o apetite
(EmEluµla), desejo do agradável, e a cólera (apy~), que funciona como sinô-
nimo de impulso (EluµÓS'). A este último estão estreitamente ligados o medo
(<j>ó~oS') e o arrojo (ElpáaoS' ). As emoções seguintes envolvem necessariamente
a imaginação e contêm claramente elementos típicos do desejo racional que
é a ~ouÀ~alS' (por exemplo, a amizade envolve ~oúÀT]<JlS' àyaElov, VIII 2
1155b29). Destas, convém comentar três. (i) A amizade (<j>lÀla) figura tam-
bém no tratado das paixões da Retórica, mas, mais adiante, será estudada em
dois livros (VIII e IX) e assimilada senão à virtude, pelo menos a certo tipo
de virtude (VIII 111543: EaTl yàp àPET~ TLS' ~ µET' àPETf]S', "é certa
virtude ou é acompanhada de virtude"). Em VnI 8, o elemento afetivo será
dito <j>lÀT]<JlS'e distinguido da amizade propriamente dita, que será tratada
como uma virtude. Na lista de II 4, porém, é a amizade (<j>LÀla) que figura
como uma emoção. (ii) A inveja (<j>ElóvoS')é bem uma emoção e, a este título,
figura na lista. Neste mesmo capítulo, é dito que ninguém é considerado
(moralmente) bom ou mau pelo fato de ter uma emoção, mas por tê-la forte,
fraca ou moderadamente. Isto deve valer, portanto, também para a inveja; no
entanto, um pouco adiante, em II 6 1107a11,é dito que aquele que tem inveja
é perverso ou mau pelo simples fato de ter tal emoção. A posição de II 6 parece
mais sensata, pois a emulação, (f]ÀoS', contém o elemento positivo que even-
tualmente alguém poderia querer creditar à inveja, que é antes inteiramente
negativa; não se pode negar, contudo, que há um conflito entre estas duas
passagens, bem próximas uma da outra, e um conflito de porte. (iii) Por fim,
rróêoç é um termo raro em Aristóteles; aparece na lista das emoções de MM
I 7 1186a12-13, mas não é analisado no tratado das paixões da Retórica. Sob a

Comentários I I2I
forma do verbo a ele ligado, aparece vez e outra, como em Das partes dos animais
(I 5 644b27) a propósito de nossa ânsia de conhecer os astros e seres divinos
(rrepl WV ElOÉVaL rroElovµEv, "que ansiamos conhecer", na tradução de Lucas
Angioni). Na língua corrente, rróeoS' designa não raramente o sentimento de
saudade, sentimento de afeição ligado a pessoas ou coisas perdidas ou ausentes,
como sugere a etimologia fantasiosa em Crátilo 420a3-6, mas também se refere
ao desejo amoroso, e mesmo sexual, como o rróeoS' por uma mulher nas Rãs
de Aristófanes (v.55). Verti o termo por anelo, que tem uma conotação culta
em português similar à de rróêoç em grego clássico.
1106a3-4 as virtudes são certas escolhas ou não são sem escolha deliberada. A
afirmação envolveum termo não analisado, escolha deliberada, mas é bastante
cautelosa, pois não afirma que as virtudes são escolhas deliberadas, mas sim
que são certo tipo de escolha deliberada, e ainda corrige isso dizendo que
talvez sejam não sem escolha deliberada. A fórmula é deliberadamente vaga;
há uma relação entre virtude e escolha deliberada, mas esta relação precisa
ainda ser investigada.
l106al0 falamos a respeito disso anteriormente. A referênciaé a II 11103a18-b25.
l106a12-13 Foi dito, pois, o que a virtude é quanto ao gênero. Na EN, Aris-
tóteles estabelece como gênero da virtude a disposição, EÇlS'. Isto evidencia
uma clara preferência da parte de Aristóteles em pensar a virtude não como
OLá8EGlS', estado, mas como disposição. A distinção entre estado e disposição é ba-
sicamente de grau: uma disposição é um estado tornado fixo, quase rígido; um es-
tado é uma disposição ainda maleável. Esta preferência de Aristóteles, contudo,
parece coincidir com uma evolução em sua terminologia em direção se não
de um afastamento, pelo menos de um descolamento do que era praticado na
Academia. Com efeito, nas Difinitiones, texto apócrifo que nos foi transmitido
no corpus platonicum, mas que certamente reflete procedimentos da primeira
Academia, a definição da virtude que é fornecida em primeiro lugar é o de ser
oLáElE<JlS' ~ ~EÀTl<JTT], o melhor estado. Encontramos esta mesma definição bem
no início da Ethica Eudemia: "a virtude é o melhor estado ou disposição ou po-
tência" (II 11218b38-19a1), mas Aristóteles já demonstra, neste capítulo inicial,
a preferência em falar de uma melhor disposição (~ ~EÀTl<JTT] EÇlS': 1219a3, a32;
o mesmo em MM I4 1185a38). Conseqüentemente, as virtudes serão assim
definidas na EE: a coragem é a melhor disposição relativa ao medo e ao arrojo,

I22 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


III 11228a37; a temperança é a melhor disposição em relação aos prazeres do
corpo, III 2 1231a36-37,e assim por diante. O vocabulário da disposição estará
ainda mais assente na EN; mesmo assim, a oLáElEalS' reaparecerá, algumas
vezes, lá onde se esperaria encontrar antes o termo E~lS' (e.g. II 7 1107b16,
b30; 1108a24; II 8 1108b11). Tal variação terminológica, porém, não implica
nenhuma mudança de perspectiva ou análise, sendo antes um resquício de
procedimentos passados ou de práticas correntes na Academia.

II5

Aristóteles completa a definição da virtude moral examinando qual pode


ser sua diferença específica. Para tanto, ele examina a noção, central para sua
ética, de mediedade, caracterizando-a não como uma média aritmética, mas
como relativa a nós. Igualmente, Aristóteles introduz a noção de ter em mira
como básica para a busca do meio termo moral.

1106a15 Deve-se frisar, então, que toda virtude. A passagem 1106a15 - 24,
sobre a função de algo e sua virtude, é claramente reminiscente de Rep. I 352e,
passagem que, após curta recapitulação da discussão de Sócrates com Trasí-
maco, conclui o primeiro livro.Já em 352e é introduzida a virtude do cavalo;
a dos olhos é discutida em 353b. O argumento é que, para cada coisa que tiver
uma função (operação), há uma virtude nela, a saber, fazer (operar) bem o
que faz (opera). Esta tese é rapidamente assimilada a outra, dela próxima, mas
bem mais controversa, segundo a qual cada coisa tem uma e uma única ope-
ração que lhe é própria ou a faz melhor do que qualquer outra coisa (352e2).
A operação própria de uma coisa é o que só ela realiza ou que realiza melhor
do que as demais (353a6-7). Esta segunda tese é fundamental para a estraté-
gia argumentativa da República, que parte dela, mas não a discute; ela permi-
tirá, especialmente, dividir os homens em três classes ou funções, tripartição
que depois é introduzida na alma humana. A primeira tese é perfeitamente
compatível com uma pluralidade de funções, ao passo que a segunda privi-
legia a exclusividade. O exemplo aqui das funções do cavalo vai é consoante
à primeira versão, mas é inegável que Aristóteles por vezes passa à segunda

Comentários I I23
versão: o famoso argumento da "função humana" em EN I 61097b24-98a20
esposa a segunda versão (assim como o curioso menosprezo em que tem a
faca" délfica", um tipo de canivete suíço, pois "a natureza faz uma coisa para
um só uso", Pol. I 2 1252b3).
l106a24 Já dissemos como isto se dá. A referência é objeto de disputa. Pode
ser, como quer boa parte dos comentadores, II 2 1104a10-26, a respeito de como
o excesso e a falta destroem o bom termo, que é obtido pelo meio termo. Ou
pode ser, como querem Grant, com hesitação, e, em sua seqüência, Gauthier,
II 3 1105a26-33, sobre as condições que o agente deve satisfazer para que o
ato seja moralmente bom. Muito depende, é claro, de a que isto se refere. Se
for à natureza da virtude (o que é plausível, pois a passagem diz que novos es-
clarecimentos serão apartados sobre este ponto e se trata aqui da natureza da
virtude), então talvez II 2 não sirva propriamente, pois trata antes da aquisição
das virtudes e não de sua natureza; II 3 parece mais adequado, pois examina
as condições para que uma ação seja virtuosa. Porém, se isto estiver simples-
mente fazendo referência ao tema da função própria, então talvez a passagem
seja II 2, ou mesmo I 6. Neste caso, o que se aprende aqui, além do que já
se sabia, é que bem fazer x (x sendo a operação de algo) consiste em buscar a
mediedade em questão.
1106a26 Em todo contínuo e divisível. Grant tomou o último termo como
o segundo caso da quantidade, a saber, o discreto, e viu aqui o par "contí-
nuo - discreto", exaustivo (mas oposto) da quantidade. O mesmo ocorre em
Stewart. L1LaLpETÓV, porém, não é discreto, mas divisível (discreto em grego é
OLWpWµÉvov). Na verdade, o e é explicativo: todo contínuo, isto é: todo divisível.
Com efeito, o contínuo é definido como o que é divisível em partes sempre
divisíveis (De caelo I 1 268a6; Phys. VI 1 231b16).
l106a35-36 segundo a proporção aritmética. Ou: segundo a média aritmética. As-
sim ela é definida em Teon De utilitate mathematicae 85.10; ver também Timeu 36a.
l106b3 Mílon. Lutador de vigor e fome proverbiais. É difícil precisar o
peso de uma mina, pois havia vários tipos, variando de 373 gr. a 1120 gr.
1106b5 todo conhecedor. O termo E7TLaT~µWV vale claramente aqui por
"técnico", "especialista", aquele que domina uma arte.
1106b15-16 ela tem em mira o meio termo. Trata-se da apódose, cujas pró-
tases são (i) 1106b8-9 (com parêntesis de b9 a b12), (ii) b13-14 e (iii) b14-15,

I24 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


segundo Bekker e Susemihl, que sigo aqui. Bywater estende o parêntesis de
b9 a b14, aceitando somente duas prótases. Esta variação, porém, pode ser
negligenciada. Dois pontos são importantes aqui. Primeiro, o tipo de argu-
mento. Trata-se de um argumento a fortiori: se já a arte (o artista) faz suas
obras tendo em vista o termo médio, com mais razão então procederá assim
a virtude, visto que ela é (como também a natureza) melhor e mais exata que
a arte. Segundo e mais importante ponto: a apódose diz que a virtude tem
em mira o meio termo. Em grego: TOl) µÉaou GV àrl (JToXa(JTLK!Í. A noção
de ter em mira é introduzida por primeira vez aqui. Ela voltará a ser afirmada
logo abaixo, em 1106b27-28, bem como será retomada na recapitulação que II
9 oferece de toda esta passagem (1109a22, 30). O termo volta a aparecer em
VI 8: a boa deliberação, que justamente caracteriza a prudência, "é o'roxac-
TLKÓS do melhor ato para o homem com base em um cálculo" (1141b13-14).
O termo está bem presente na determinação da busca do termo médio, mas
que exatamente significa? No contexto ético-político, este termo já havia sido
usado por Platão, tanto na República como nas Leis, para indicar notadamente
aquilo a que visa o legislador ao propor uma lei (e.g. Rep. V 462a4; Leges 635a2,
693c8, 701d7, 717a4). A idéia básica é que o legislador tem algo em mira - ge-
neralizando: tornar bons os cidadãos - e tentativamente propõe certas leis,
que podem ter êxito ou malograr, em função de que pode ser preciso revê-las
à luz da intenção do legislador. Há uma margem entre êxito e fracasso que
está fora do controle do conceito, mas é interna à própria formulação; assim,
a comparação básica é com o arqueiro, que tem em mira o alvo (e possui certa
competência em fazer isso), mas que não pode assegurar-se de antemão de
seu êxito ou malogro, dada uma série de circunstâncias que estão fora de seu
controle. A analogia aparece em Leis XI 934b5: a lei deve visar a algo como o
arqueiro tem em mira seu alvo, ambos movimentando-se nesta zona cinzenta
em que pode ocorrer êxito ou fracasso. Daqui surge a idéia de um fim que
serve de alvo para as nossas vidas e, tendo-o em mira, devemos fazer tudo o
mais, como escreve Platão em Rep. VII 519c (sob forma negativa: as pessoas
não instruídas não conseguem ter um só alvo na vida e realizar tudo o mais o
tendo em mira). A analogia com o arqueiro e o fim último a que visamos apa-
recem em Aristóteles conjugados em I 11094a23-24: havendo um fim último,
seu conhecimento terá grande importância, pois assim melhor o obteremos,

Comentários I I25
como arqueiros que miram o alvo. Ter em mira algo permite fazer cálculos
sobre como melhor o obter, mas isso não elimina a zona cinzenta entre êxito
e fracasso, que faz parte do próprio cálculo, como no caso dos arqueiros; deste
modo, embora esteja acompanhado de cálculo e razão, o ato de mirar o alvo
não pode ser assimilado a uma dedução ou simples inferência.
1106b16 Quero dizer a virtude moral. A restrição é feita porque ter em mira
o termo médio não vale para toda virtude, visto não valer para as virtudes
intelectuais.
l106b23-24 Similarmente, há excesso, falta e meio termo no tocante às ações.
Aristóteles argumentou de modo plausível que há excesso, falta e meio termo
para as emoções; sua argumentação é tanto mais plausível quanto as emoções
permitem uma quantificação e, deste modo, uma análise segundo o contínuo. É
possível,porém, aplicar tal exame às ações? Ora, éjustamente o fato de a noção
de mediedade requerer uma análise segundo o contínuo que escandaliza Kant:
"não se pode procurar a diferença entre a virtude e o vício no grau segundo o
qual certas máximas são observadas, mas é preciso procurá-la unicamente na
qualidade específica destas máximas (em sua relação à lei); em outros termos,
o famoso princípio (de Aristóteles) que a virtude consiste em um meio termo
entre dois vícios é falso. Tome-se por exemplo a boa economia doméstica como
meio termo entre dois vícios, a prodigalidade e a avareza: ela não pode ser re-
presentada a título de virtude nem como provindo da diminuição progressiva
do primeiro destes dois vícios nem como provindo do aumento das despesas
fornecido pelo último vício, como se, partindo de duas direções opostas, estes
dois vícios se encontrassem na boa economia; ao contrário, cada um deles tem
sua própria máxima, que contradiz necessariamente a do outro" (Metafísica das
Virtudes, introd. xiii). Em nota a esta passagem, Kant refere-se a esta doutrina
como uma" insípida sabedoria", De certo modo, Aristóteles parece pressentir
tal crítica, pois escreve, no capítulo seguinte, que o termo médio é um extremo
(lI 6 1107a7-8); no entanto, ele não parece querer abrir mão da noção de me-
diedade como reveladora da essência da virtude moral. A virtude moral diz
respeito a ações e emoções. ações ocorrem em função das emoções que estão
em sua origem, pois as emoções, que dizem respeito a prazer e dor, determi-
nam o movimento do desejo, que é princípio da ação. As emoções podem ser
tratadas quantitativamenre, mas as ações que daí derivam por meio do desejo

I26 I Ethica Nicomachea 1 13 - III 8


aplicam às emoções o quando se deve, a quem se deve, como se deve, e certamente
isso já não é um tratamento meramente quantitativo. No entanto, mediante
sua ligação figadal às emoções, as ações podem ser tratadas quantitativamente.
Para retomar uma bela expressão de Gaurhier, "cest donc en réglant la passion
que la vertu regle Íactíviré" (lI 142). As ações sujeitam-se assim à análise do
excesso, falta ou justo meio relativos às emoções que exprimem: encolerizar-
se em demasia ou em relação a quem não se deve é um excesso emotivo que
coloca a ação fora do compasso da virtude. Para uma doutrina na qual a "fa-
culdade de desejar" não pode ter papel determinante no valor moral da ação,
tal resposta não pode ter acolhida.
1106b25-26 nas quais o excesso erra e a falta é censurada, ao passo que o meio
termo acerta e é louvado. Este é o texto de Bekker e Susemihl, que seguem os
mss. e que Natali manteve; Rassow, seguido por Bodéüs, propôs "nas quais o
excesso e a falta erram e são censurados, ao passo que o meio termo acerta e
é louvado"; Bywater, seguido por Burnet, atetiza <jJÉYETaL, tendo como resul-
tado: "nas quais o excesso e a falta erram, ao passo que o meio termo acerta e é
louvado". A lição disso tudo é que, por vezes, o zelo dos editores é demasiado.
Ramsauer escreveu a propósito desta passagem: "vide elegantiam sermonis
notiones correlatas et oppositas disponentis",
l106b27-28 Portanto, a virtude é certa mediedade, consistindo em ter em mira
o meio termo. Esta conclusão, que é a parte central da passagem e permitirá a
definição da virtude moral no início do próximo capítulo, tem uma partícula
na oração participial (cJTOxaaTLK!Í yE oio« TOl! µÉaou) que pode ser inter-
pretada de dois modos. O yE pode ser tomado com valor restritivo / limita-
tivo, o que daria algo como: "<ao menos> enquanto consistir em ter em mira
o meio termo" (Bodéüs: "puisquelle fait à tout le moins viser le milieu"; Rowe:
"in so far as it is effective at hitting upon what is intermediaté'). Este uso, que
é predominante na língua, denota que a oração principal é válida somente na
medida em que a oração participial for válida. Ramsauer escreve: "particulâ
yE adjectâ excusatur quasi audacia loquendi qua nova vox 'µEO"ÓTllS ~ àpET~'
modo proposita esr", Ou yE pode ter um uso enfático, com valor epexegético
em orações participiais: ser uma mediedade é isto mesmo, ter em mira o meio
termo. Leio a frase neste último padrão.
l106b29-30 como conjecturavam os pitagóricos. Ver I 61096b5-6.

Comentários I I27
1106b35 Bravos, pois, de um só modo, mas maus de muitos modos. Verso de
autor desconhecido.

II6

Neste capítulo, Aristóteles formula sua definição de virtude moral. Nesta


definição, a noção de mediedade, preparada nos capítulos anteriores, é apresen-
tada sob a forma de uma disposição relativa à escolha deliberada; isto obriga
a um exame da noção de escolha, o que será feito no livro III. Antes, porém,
Aristóteles examina uma conseqüência de sua definição em função da noção
de mediedade, que é apresentada como a qüididade da virtude moral, a saber,
que os extremos não respondem a condições circunstanciais, mas estão sob
interdição absoluta.

l106b36-1107a2 A virtude é, portanto, uma disposição de escolher por delibe-


ração, consistindo em uma mediedade relativa a nós, disposição delimitada pela razão,
isto é, como a delimitaria o prudente. Após longa preparação, obtém-se enfim a
definição da virtude moral. Já tinha sido mostrado que a virtude moral é uma
escolha deliberada ou não ocorre sem escolha deliberada (41106a3-4), que o
gênero da virtude moral é a disposição (4 1106all-12) e que agir virtuosamente
equivale a descobrir um meio termo entre dois extremos, o excesso e a falta (5
1l06b14-18). Todos estes pontos convergem nesta definição da virtude moral.
A definição segue, igualmente, um padrão bem claro: a virtude moral é uma
E~LS 1TpOaLpETL~ assim como a ciência é uma EÇL':O;à1TOOELKTLKlÍ (disposição
demonstrativa, VI 3 1139b31-32), a arte é uma EÇLS 1TOLllTLKlÍ (disposição produ-
tiva, VI4 1140a4), a prudência é uma EÇLS 1TpaKTLKlÍ (disposição de agir, VI 5
1140b5). Traduzi EÇLS 1TpoaLpETLKlÍ por disposição de escolherpor deliberação na
falta de uma opção melhor. Disposição eletiva seria enganador, penso, pois torna
disposição antes objeto que sujeito da escolha. Outras opções seriam: disposição
passível de escolha deliberada (mas acentuaria demasiadamente o caráter passivo
de 1TpOmpETLKlÍ. quando a escolha é mais do que uma mera possibilidade),
disposição que escolhe por deliberação (pondo o acento no sentido ativo de 1TpO-
aLpETLKlÍ; contudo, nem todo ato virtuoso ocorre por meio de escolha) ou

I28 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


disposição ligada à escolha deliberada (com o defeito de deixar muito vago o tipo
de relação existente). A idéia, porém, é clara: trata-se de uma disposição que
provém de atos de certo tipo - os que envolvem escolha deliberada - e que
torna o sujeito ainda mais apto a praticar atos de tal tipo. Entendida deste
modo, a disposição consiste em um meio termo relativo a nós, isto é, a esco-
lha que ocorre em seu interior é a preferência dada, com base em razões, a
um item que figura como meio termo entre dois extremos, o excesso e a falta.
O padrão desta escolha é aquele feito pelo prudente, que pesa razões rivais
e, vendo a verdade nas circunstâncias em que se produz a ação, decide-se por
isto de preferência àquilo. A definição é retrospectiva (ao retomar o que já
tinha sido demonstrado) e, ao mesmo tempo, prospectiva, ao introduzir, de
um lado, a noção de escolha deliberada e ao indicar que o padrão desta escolha
é personificado pelo homem prudente. Isso indica que se deve ainda investigar a
natureza da escolha deliberada (o que será feito em III 1- 8) e sua realização
pelo prudente (examinado ao longo do livro VI). Também nisto a definição
de virtude moral segue um modelo. Com efeito, a definição de felicidade, certa
atividade da alma segundo perfeita virtude, era simultaneamente retrospectiva e
prospectiva, pois retomava a idéia de certa atividade da alma, mas supunha
uma investigação ulterior do que pode ser a virtude moral (perfeita), o que,
por sua vez, leva-nos agora a uma investigação sobre a escolha deliberada e
seu papel no interior da virtude moral, mediante a introdução prospectiva de
termos ainda não elucidados (escolha deliberada e homem prudente).
Alguns detalhes de texto impõem-se à atenção. A vulgata dá o texto que
segue Bekker e que traduzi; Susemihl adota uma lição que provém de Aspásio
e que dá como texto "a virtude é, portanto, uma disposição de escolherpor deliberação,
consistindo em uma mediedade relativa a nós, mediedade determinada <WpL(JµÉv\l> pela
razão, isto é, como determinaria o prudente", enquanto Bywater adota além desta a
segunda variante proposta também por Aspásio, o que dá como texto: 'a virtude
é, portanto, uma disposição de escolher por deliberação, consistindo em uma mediedade
relativa a nós, mediedade determinada <WpL(JµÉvn> pela razão, isto é, aquela razão
pela qual «~»determinaria o prudente". Há dois pontos para serem examinados
aqui. (i) Na versão de Bywater, mediante a adoção de ~, a razão é posta em
realce no ato de determinar a mediedade que caracteriza a disposição moral,
ao passo que, na versão dos mss., que Susemihil segue aqui, a disposição de

Comentários I I29
escolher por deliberação é vista como que guiada pelo prudente, que é posto
assim em realce ante a razão que segue, pois não teríamos outro acesso que não
seja o ato de ele próprio personificar tal razão. Esta última leitura parece~me
a melhor: a ética aristotélica enlatiza justamente o papel do prudente como
nosso único critério para saber o que deve ser feito. (ii) Um segundo problema
é de maior alcance: trata-se de saber se se deve adotar wpwµÉvll, seguindo os
manuscritos, ou wpwµÉvn, segundo a lição de Aspásio. É tentador corrigir o
texto à luz da indicação de Aspásio, pois uma passagem de VI 1, que parece
retomar o texto em análise, declara que foi exposto anteriormente que o meio
termo é "como a reta razão prescreve" (1138b20; b29). Isto de fato foi exposto
anteriormente, mas não é seguro que esteja remetendo precisamente a esta
passagem. De fato, é lição do exame das virtudes particulares que o justo meio
é como prescreve a reta razão (ver, por exemplo, III 14 1119a16). Talvez VI 1
esteja referindo-se a esta lição e não precisamente à que estamos estudando na
definição da virtude moral (que traz razão somente, em não reta razão) . Tudo
depende de como entendermos aqui o termo "óyos. Ele pode ser entendido
ou como a faculdade que opera as decisões ou como o ato ou resultado desta
faculdade ao operar. Se ele é entendido como o ato ou resultado da faculdade,
então se deve preferir WPL<JµÉvn, isto é, deve-se ligar o ato à determinação de
cada mediedade pela reta razão. Nesta perspectiva, é ainda preciso esclarecer
que resultado é esse: trata-se de uma regra ou antes de uma decisão pontual,
expressa em imperativos morais que se esgotam na particularidade do caso
a que visam? Gauthier traduz em prol das regras: "la vertu est un étar habi-
tuel qui dirige la décision consistant en un juste milieu relatif à naus, dont
la norme est la regle morale, cest-à-dire celle-là que lui donnerait le sage". No
entanto, não há nada que justifique a introdução de normas aqui como deseja
Gauthier; além disso, o fato de o papel do prudente sobrepor-se às próprias
regras vai em direção contrária. Assim, embora seja plausível pensar que "óyos
designe aqui não exatamente a faculdade, mas os atos que resultam desta facul-
dade, contudo estes atos ou resultados não são normas (com a estrutura típica
de generalizações), mas antes decisões (rentes ao particular) que toma o pru-
dente em vista das circunstâncias nas quais se opera a ação e que, por causa
deste particularismo, fazem dele (do prudente), em seu exercício racional, o
critério de que dispomos para saber o que fazer. Certamente portanto não

I30 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


seriam regras (o que obscureceria o papel do prudente em proveito delas),
mas antes decisões (que supõem a contínua presença do prudente para sua
tomada). Mesmo assim, não se pode descartar que ÀÓyoS aqui não esteja por
resultado ou ato (o que alhures é referido mais precisamente por Ó ÀÓyoS Ó
op8ÓS), mas antes designe afaculdade de operar as decisões, a saber, a faculdade
prática encarnada pelo prudente. Se se toma ÀÓyoS no sentido de faculdade,
então parece mais natural ligar seu operar à disposição de escolher deliberação.
O meio termo em que consiste a virtude de cada ato é determinado pela reta
razão, enquanto a disposição de escolher por deliberação é delimitada - no
sentido de aí encontrar seus fines ou marcas delimitantes - pela razão como
faculdade prática, ou, mais precisamente, pelo seu operar nas decisões que toma
o prudente (dadas as características que Aristóteles atribui ao uso prático da
razão). A disposição moral encontra no domínio racional prático seus confins,
seu ambiente próprio - e esta razão é tal qual a exerce o prudente. Compare-
se com a ciência: ela é uma disposição demonstrativa, que consiste na busca
de um termo médio, que é da coisa mesma, e esta disposição é governada por
uma razão, a razão teórica, que, por contraste com a razão prática, não está
na dependência do uso que dela faz o homem (como é o caso na prudência).
Penso que Aristóteles aqui, na definição de virtude moral, alude ao fato que
a disposição virtuosa se situa no ambiente racional prático, encontrando em
tal ambiente suas marcas decisivas, o que me parece estar ressaltado na versão
que trazem os manuscritos. Isso, no entanto, ficou como que deixado de lado
em função da discussão sobre o ponto (i), se a determinação do meio termo
se dá por regras ou é uma decisão enraizada no particularismo prudencial, o
que, à primeira vista, parecia ser o elemento mais importante.
Enfim, convém mencionar a posição de Bodéüs, que adota a versão dos
mss., mas que entende WPL<JµÉVll ÀÓy(fl como a difinição formal e a liga a vir-
tude. Bodéüs traduz assim a passagem: "par conséquent, la vertu est un état
décisionnel qui consiste en une moyenne, fixée relativement à nous. C'est sa
définitíon formelle et cest ainsi que la dé6.nirait l'homme sagacé'. Pode-se, com
efeito, referir WPL<JµÉVll ÀÓY(fl à virtude moral, porém parece difícil aceitar que
se entenda por isso a definição formal de algo. A principal dificuldade desta
leitura estájustamente em que, então, será preciso atribuir ao homem prudente
(l'homme sagace, em sua tradução) o papel de dar a difinição da virtude, o que

Comentários I I3I
é, contudo, uma tarefa do filósofo, pois ao prudente cabe dizer quais atos são
virtuosos e não a definição da virtude moral. É preferível, portanto, voltar à
leitura tradicional e ligar WPWµÉVll à disposição de escolher por deliberação
(EÇLS' TIpOmpETLKlÍ), que é delimitada pela razão, a saber, tal como o prudente
a delimitaria. Convém assinalar que a tradução de Dunlop da versão árabe dá
certo apoio à versão de Bodéüs. Com efeito, lê-se nesta tradução: "virtue then
is a condition having free choice, existing in rhe mean which is for us, a mean
difined in word as the intelligent man defines it", Aparentemente, a tradução
árabe tomou wpwµÉVll ÀÓY<µ como quer Bodéüs, mas, ao ligar este sintagma
a mediedade, e não a virtude, supondo portanto como texto em grego wpLaµÉV\l
ÀÓY<µ, toma certa distância em relação à sua proposta ...
l107a6-7 por essência e pelafórmula que exprime a qüididade. A expressão em
grego é: KaTà µEV T~V owí.av KaL Tàv ÀÓyov Tàv Tí. ~v ÀÉyOVTa; ambas as
expressões fazem tipicamente parte da análise metafísica, sendo examinadas
especialmente no livro VII da Metafísica. Particularmente, a questão Tí. ~v
ELVaL é usada para determinar o que X é precisamente e faz parte do jargão
metafísico de Aristóteles. Este é um dos raros momentos, na EN, em que Aris-
tóteles se utiliza de termos característicos de outras disciplinas, especialmente
de sua metafísica. Aqui, serve para ressaltar a importância que atribui à noção
de mediedade para a definição da virtude moral.
l107all a inveja. No entanto, um pouco antes, em II 4 1105b22, inveja
figurava como uma emoção cuja presença ou ausência em nós não nos torna
nem bons nem maus. O problema parece ter passado despercebido pelos co-
mentadores. Aspásio chega mesmo a ilustrar o ponto com o exemplo da inveja
(49,28-31), sem ver nisso nenhum problema. Broadie observa que inveja era
uma emoção moralmente neutra, mas não insiste sobre o ponto.
l107all o adultério. Aspásio relata que, já em seu tempo, objetava-se que
"alguns adultérios são louváveis,por exemplo se alguém, tendo seduzido a mu-
lher de um tirano e deste modo entrado na casa e morto o tirano, libertasse o
país" (50, 2-5); segundo ele, não se deve inquietar-se por causa desta objeção,
"pois isto não é adultério, mas o adultério implica, pelo termo, a intemperança,
o ser vencido pelos prazeres e a ilegalidade, assim como o assassinato não é
dito ocorrer quando se mata alguém, pois alguém pode matar de modo justo e
digno de elogios, por exemplo um pirata hostil, mas na palavra assassinato está

I32 I Ethica Nicomachea 1 13 - III 8


contido o matar de modo injusto e ilegal" (50, 5-9). O ponto é claro quanto
a assassinar em sua distinção em relação a matar, mas parece sutil demais para
adultério: a pessoa parece ter realmente cometido um adultério, embora o te-
nha concebido como um meio para entrar na casa do tirano e o eliminar. O
ponto ficaria mais claro se fosse estuprar: não há como moralmente elogiar um
ato de estupro, nem mesmo como meio para um fim aceitável. No entanto,
isso escamotearia o que adultério põe claramente em evidência: a dependência
de certas valorações para que um termo possa indicar analiticamente um ato
moralmente inaceitável, de modo que o fato de o indicar analiticamente não é
a razão última de seu caráter imoral. Obviamente, algumas destas valorações
são racionalmente justificáveis, o que estupro evidencia melhor do que adultério,
mas isto não deve fazer esquecer que são valorações (no caso: da razão).
l107a12 censuradas. Segundo Bekker, KbLbNbObdão ÀÉYETaL, "são ditas",
que ele edita, assim como Bywater; Susemihl, porém, dá preferência à versão
de Mb, <jJÉYETaL, que mantive na tradução.
l107a25-27 nem há mediedade do excesso e da falta nem excesso efalta da me-
diedade. Os extremos - o excesso e a falta - estão sob interdição absoluta, não
circunstancial. Aristóteles pode aceitar interdições absolutas sem que isso coloque
um problema para sua doutrina do meio termo e da particularidade das deci-
sões do homem prudente. São objeto de interdição sem exceção os extremos
e atos que funcionem como extremos; qualquer que seja a dificuldade para
descrever as condições que exigem ou implicam, o fato é que sua interdição
não decorre de nenhuma consideração circunstancial, ao passo que, para de-
terminações positivas da ação, o que deve ser feito é determinado em função
das circunstâncias nas quais ocorre a ação. Pode ocorrer que a caracterização
de um extremo seja altamente difícil e sofisticado e que a determinação de
uma ação positiva seja banal, haja vista as circunstâncias nas quais ocorre;
no entanto, o fundamental não é a dificuldade (ou uma eventual dúvida que
pode sempre restar), mas a natureza do que leva à hesitação: considerações
circunstanciais ou somente dificuldades de descrição. Convém ressaltar que
o caráter analítico de perversidade moral que alguns termos contêm não fun-
ciona como indício que Aristóteles teria de finalmente abandonar a doutrina
do meio termo (como propôs Barnes), pois o fato de certas ações ou emoções
não serem determinadas em função das circunstâncias faz parte da própria

Comentários I I33
doutrina da mediedade - desde que apareçam como interdições absolutas, isto
é, como universais negativas, e isto ocorre quando são extremos ou funcionam
como extremos. A doutrina aristotélica dá, assim, lugar a diferentes registros:
a decisão particular que toma o prudente, a regra que daí pode ser gerada,
tomadas certas precauções, e interdições absolutas, que respondem à situação
dos extremos, a respeito dos quais não há meio termo.

II 7 - 9

Aristóteles propõe um catálogo de virtudes particulares, apresentando seus


traços gerais a partir de sua doutrina da mediedade. Trata-se de constituir uma
anatomia da alma humana, identificando as virtudes, a título de medíedades,
bem como os excessos e as faltas. Nem sempre os itens estão disponíveis na
língua; Aristóteles não se furta a completar seu quadro teórico com nomes
que ele próprio cunha ou que eram usados em círculos filosóficos limitados.
Igualmente, Aristóteles mostra como certos excessos ou faltas podem parecer
mais ou menos louváveis, em função de um contraste variável, a ponto mesmo
de poderem usurpar o terreno central da mediedade ou passar despercebidos
à linguagem moral.

1107a30 mais vagos. A maioria dos manuscritos fornece KOWÓTEPOL, "mais


comuns", que Bywater segue em sua edição; O'' e a tradução antiga latina dão
KEVWTEpOL, que editam Bekker e Susemihl. A paráfrase reproduz KOLVÓTEpOL

(36, 8); Aspásio, como observa Gauthier, oscila entre as duas lições (51, 11:
KOWÓTEpOL; 27: KEVOl). Gaurhier sugere fortemente KOWÓTEpoL, mas estamos
diante de um caso típico em que é muito difícil escolher entre as duas lições.
Os termos universais são comuns, certamente, mas não por isso são vagos. O
problema aqui de serem mais comuns é que são mais vagos; talvez isto nos
sugira adotar a lição mais difícil, mais vagos.
1107a32-33 investiguemo-los com base no quadro. O termo ÀllTrTÉOV tem aqui,
parece-me, o sentido de investigandum est, como ocorre também nos An. Posto I
4 73a24 (ver Waitz ad loc.). Sobre o quadro (oLaypa<p~), nenhum manuscrito
o apresenta como tal, embora possamos reconstituí-lo a partir do texto. Em

I34 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


compensação, a EE apresenta um quadro similar (Il 3 1220b38-21aI2), lá cha-
mado de imoypa<j>~. O quadro da EE apresenta 14 virtudes distribuídas em
três colunas: (i) excesso, (ii) falta e (iii) mediedade. Os termos se recobrem em
grande parte, mas há também divergências. Destas últimas, a mais importante
concerne à última virtude listada na EE, a saber: (i) astúcia, (ii) ingenuidade e
(iii) prudência. O problema é que esta virtude não é moral, mas intelectual; na
tabela da EN, a prudência já não é citada (contudo, ver nota a 1108b9-1O).
l107b2 há muitos casos sem nome. A partir de sua grelha conceitual, Aris-
tóteles tentará pôr nomes a todas as possibilidades; para tanto, precisa do
termo médio, do excesso e da falta, mas a língua grega nem sempre preenche
facilmente as lacunas. Alguns nomes deviam fazer parte do nascente jargão
filosófico; outros foram cunhados por Aristóteles, como àÓPYllTOS e, possi-
velmente, µLKp01TpE1T~S. O termo àvaLa811Tos já existia, mas era usado no
sentido de quem não percebe (sentido ativo) ou que não é percebido (sentido
passivo), e não no sentido que Aristóteles quer aqui, o da insensibilidade aos
prazeres.
l107b4 está em falta. O termo grego é E,\)...E( 1TWV,aquele cujo vício é a falta.
Traduzi, faute de mieux, por estar em falta, o que não é inteiramente satisfatório,
mas pelo menos evita um vocabulário mais arriscadamente anacrônico, como
pecar por falta, a despeito do uso não religioso contemporaneamente existente
de pecar.
l107b15 adiante. Cf. IV 1-3
l107b21 adiante. Cf. IV 4-6.
l107b29 desapegado. O termo é à<j>LÀÓTLµOS, termo raro, usado basica-
mente só pelo próprio Aristóteles. Em função de sua carga negativa de falta,
parece preferível a modesto ou abnegado, ambos positivamente marcados.
l108a2 no que segue. Cf. IV 10 1125b23-24.
l108a20 veraz. Em grego: àÀ1l8~s TLS, "verdadeiro em algum sentido". O
termo àÀ1l8~s designa fundamentalmente o não ter erro (teórico), e somente
muito dificilmente a insinceridade, de onde a dificuldade de linguagem em
que se encontra Aristóteles.
l108a22 dissimulação. O termo grego é ELpwvELa, usado particularmente
para caracterizar a atitude de Sócrates em seus argumentos elêncticos.
l108a30-31 Há também mediedades nas afeições e no que é acerca das emoções.

Comentários I I35
Aristóteles usa como termo TTae~µaTa para o primeiro caso. Não há nenhum
contraste sistemático, na EN ou em outras obras, entre TTá80s e TTá811µa, e
não raramente os tradutores os tomam por sinônimos (o trabalho clássico a
este respeito é de Hermann Bonirz, Über TTáeos und TTá811µa im Aristotelischen
Sprachgebrauche, Aristotelischen Studien V, em reação à distinção proposta por
Bernays entre "afecção inesperada" e "afecção inerente, permanente", respecti-
vamente). c.c.w. Taylor os distingue como "episódio de emoção" (TTáellµa)
e "tipo de emoção" (TTáeos), o que responde certamente a um uso da língua
para os nomes terminados em - µa, mas isso não parece ser esclarecedor aqui
nem é sistemático em Aristóteles. Os TTae~µaTa parecem indicar aqui algo
próximo e intimamente conectado às emoções, sem ser ainda uma emoção;
traduzi, faute de mieux, por "afeição".
1108a33-34 <outro quem está em falta; e quem excede>. O texto parece pre-
cisar de complementação, por causa de alguma lacuna. Sigo a versão sugerida
por Rassow e adotada por Susemihl (Coraes propõe uma adição similar);
Bywater e Bekker editam o texto sem adição.
1108b5 <quem tem indignação aflige-se ante os que imerecidamente
fracassam>. Novamente, sigo o complemento sugerido por Sauppe e adotado
por Susemihl.
l108b7 alhures. Sobre o pudor, ver IV 15; a indignação não é discutida
na EN, mas um capítulo lhe é atribuído em Retórica II 9.
1108b7-8 já que não é dita de modo simples. No livro V, Aristóteles dis-
tinguirá dois tipos de justiça: a justiça em um sentido amplo, que equivale
em geral a ser moral em relação a outrem (justiça.), e a justiça no sen-
tido preciso das leis relativas à distribuição de bens e à correção (justiça.).
Ocorre que a justiça) não é examinada lá como sendo uma mediedade; de
fato, ela o seria somente em um sentido muito vago, a saber, no sentido de
ser idêntica às diferentes virtudes ligadas às relações com outrem. Por esta
razão duvidou-se da autenticidade da frase. Por outro lado, a justiça2 é dita
ser uma mediedade, mas não do mesmo modo que as outras virtudes (V
9 1133b32-33), pois, embora seja um termo médio, ela não está entre dois
extremos (seu oposto é somente um, a injustiça). É preciso, porém, conside-
rar que a justiça2 é examinada segundo dois tipos, a justiça distributiva e a
justiça corretiva, e Aristóteles pode estar fazendo alusão a estes dois casos,

I36 I Ethica Nicomachea I I3 - III 8


pois, de fato, o tipo de termo médio é distinto em cada um (a justiça distri-
butiva é proporcional ao mérito de cada pessoa, enquanto a justiça corretiva
está fundada aritmeticamente sobre a igualdade das pessoas, sem levar em
consideração questões de valor próprio, posição social ou mérito). Nesta
perspectiva, porém, a expressão OUXáTTÀWs
ÀÉYETaLnão é muito feliz, pois
justiça distributiva e corretiva são espécies da justiça2 (cf. V 5 1130b31-31al)
e Aristóteles não se refere a gêneros com espécies distintas como sendo ditos
de modo não simples (animal também possui diferentes espécies e nem por
isso é dito de vários modos).
l108b9-10 e trataremos igualmente das virtudes racionais. A frase final do
capítulo 8 apresenta duas dificuldades. Primeiramente, as virtudes intelec-
tuais não são examinadas a título de mediedades. Esta dificuldade pode ser
oE KaLpode ser tratado de modo brando,
obviada observando-se que ÓµOLWS'
indicando somente uma conjunção (a saber, que as virtudes dianoéticas serão
também tratadas, o que de fato ocorre no livro VI), sem com isso dizer que
serão tratadas como mediedades, assim como o foram as virtudes morais (as
mesmas possibilidades ocorrem para igualmente em português). Somente em
EE II 3 a prudência é apresentada como meio termo entre a astúcia e a inge-
nuidade (1221aI2, 36-38), mas, mesmo assim, no livro EN VI, que equivale a
EE V, e a respeito do qual temos fortes indícios que pertence ou que foi con-
cebido originariamente no contexto da Ética Eudêmia, não há nenhum traço
de um tratamento da prudência a título de mediedade (a astúcia é dita ser a
habilidade intelectual de encontrar os meios para os fins que são moralmente
reprováveis, enquanto a prudência é a habilidade relativa aos fins moralmente
bons: VI 13 1144a23-29). Resta, ainda, a segunda, e maior, dificuldade: em
nenhum outro lugar Aristóteles se refere às virtudes intelectuais pela expres-
são ÀOyLKalàpETaL,virtudes lógicas. O termo ÀOYLKÓS
tem vários sentidos em
Aristóteles: pode indicar (i) um caráter meramente verbal, com forte carga
negativa, ou (ii) uma discussão lingüística, que pode ser positiva e que geral-
mente é oposta a uma discussão <pualKWsou, menos freqüentemente, a um
exameàvaÀUTLKWs.
A despeito de certos casos pouco claros, não há nenhuma
outra ocorrência no sentido usado aqui; por esta razão, Grant considera esta
frase uma interpolação, Ramsauer é contrário à sua manutenção, Burnet a
ateriza, assim como Gauthier.

Comentários I I37
1108b33 Os que maximamente distam entre si. A definição encontra-se em
Categorias 6 6a18: "definem-se como contrários os itens que distam maxima-
mente entre si dentro do mesmo gênero". Grant observa que, nesta passagem
da EN, Aristóteles passa de uma contrariedade absoluta (os termos que ma-
ximamente distam entre si) a uma contrariedade relativa (os termos que mais
distam entre si), adotando assim uma perspectiva de graus na contrariedade.
O ponto é que, se a e b são contrários (pois maximamente distam entre si),
mas o meio termo c dista mais de a do que dista de b, então c é mais contrário
a a do que o é a b.
1109a17 nos lançamos mais. O termo grego é ETTLooaLS,que significa, avanço,
progresso, propensão; como Grant observou, porém, a noção de inclinação já é
a
dada, no texto, na linha 15, mediante a expressão TTpOS µâÀÀov TTE<j>ÚKaµÉv
TTWS,"de algum modo mais nos inclinamos naturalmente", o que o levou a tra-
por uma perífrase, "we run to greater lenghts". Como
duzir ETTLOOGLS Kb fornece
EXOµÉVTTWS,"de algum modo temos", no lugar deTTE<j>úKaµÉv
TTWS,
"de algum
modo naturalmente", Bywater (Contrib. P: 30) sugeriu a correção ~TTOµÉVTTWS,
"dirigimo-nos, tendemos de algum modo", proposição bastante elegante, que
Burnet adotou em sua edição, mas que não é necessária para o sentido.
1109a24 Por isso é árduo ser bom. O termo grego aqui vertido por bom é
crrouôciov.
1109a31 como adverte Calipso. Na verdade, não é Calipso quem aconselha
a assim proceder, mas Circe (Od. XII 108-110); além disso, os versos citados
são os que Ulisses repete ao timoneiro (vv. 219-220).
1109a34 Visto que é difícil atingir com extrema exatidão o meio termo. A frase
contém como que um oximoro. Pode-se ligar também o advérbio a difícil e
traduzir: "visto que atingir o meio termo é extremamente difícil", mas perde
então a elegância que lhe dá o oximoro.
1109bl segundo o modo que descrevemos. Aristóteles apresenta na seqüência,
de 1109bl a b13, uma série de conselhos morais para se encontrar o meio termo,
tomando o papel antes do prudente do que do filósofo. A idéia básica é uma
"curá' pelo contrário: se temos uma tendência para x, devemos nos puxar para
o seu contrário, ~x; o perigo para ser evitado é basicamente o prazer. É o único
momento em que se encontra, naEN, um tipo de cartilha moral.
l109bl0 diante de Helena. A passagem está na Ilíada III 156-60.

I38 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


l109b18 E mesmo. Trata-se de um uso especial de àÀÀá, partícula normal-
mente adversativa, mas que aqui denota um tipo de conclusão para ser tirada,
um pouco a contragosto, do que precede; cf. Dennisron, pp. 13-14.
l109b21 pela razão. O termo grego é Til> À.ÓY4J e seu sentido está estreita-
mente ligado ao que tiver sido atribuído a Àóyos na definição da virtude moral
em II 6. Pode-se dar uma interpretação branda desta passagem, como em Rowe
("it is not easy to fix it in words"}, ou tentar ver aqui mais um momento em
que apareceria a noção de regra moral, a despeito do caráter controverso de
tal interpretação, como em Gauthier - Jolif ("il nest pas facile de donner une
regle qui le déterrnine"), mas penso que está em jogo aqui o contraste entre
razão, de natureza generalizanre, e sensação, que fica rente ao particular, apre-
endendo caso a caso. Com efeito, na seqüência, Aristóteles escreve o mesmo
se dá com os outros objetos da sensação, pois "tais objetos ocorrem nos casos
particulares e a discriminação é matéria de sensação". A frase "a discriminação
é matéria de sensação" (EV TTI atae~aEL ~ KpLaLS) ocorre outra vez na EN
(IV 111126b4; a correção Ramsauer, adotada por Bywater, parece impor-se).
O fato de a determinação do que deve ser feito depender em um sentido rele-
vante da sensação não impede que imperativos ou conselhos sejam formulados
com termos, e apropriadamente formulados; o que está, porém, em questão
é a generalização destes imperativos e conselhos de modo que se dispense a
discriminação caso a caso para sua determinação.

Ill 1 - 3

Nos três primeiros capítulos do terceiro livro, Aristóteles examina a noção


de voluntário e seu oposto, o involuntário. O primeiro capítulo investiga, me-
diante o estudo dos casos mistos, a condição de ser forçado e compelido, um
dos sinais do ato involuntário. No segundo capítulo, ele se volta ao exame da
ignorância que também leva ao caráter involuntário do ato, a saber, a ignorân-
cia das circunstâncias particulares nas quais a ação se desenrola. Nesta parte,
ele descreve os tipos de circunstâncias no interior das quais a ação ocorre. No
terceiro capítulo, Aristóteles propõe inicialmente as definições do involuntário
e do voluntário e descarta, à luz destas definições, a tese segundo a qual atos

Comentários I I39
por impulso ou por apetite seriam involuntários. Muito se discutiu sobre a
terminologia proposta por Aristóteles. Especialmente, observou-se que as no-
ções aristotélicas de voluntário e involuntário se constituíam no cruzamento,
nem sempre claro, de duas perspectivas distintas. A primeira diria respeito
ao agente fazer algo de bom grado ou de mau grado; se o faz de bom grado,
fá-lo-ia voluntariamente, mas se o faz contrariado, fá-la-ia involuntariamente.
A segunda corresponderia mais propriamente à noção de autoria da ação:
se é ele quem está na origem da ação, fá-la voluntariamente; se o princípio
está fora dele, fá-la involuntariamente. As duas perspectivas se recobrem em
parte, mas não inteiramente, o que explicaria o caráter algo insatisfatório da
análise de Aristóteles, denunciada por Gauthier, por exemplo, como mera-
mente enunciando os balbucios de uma doutrina da vontade. Por esta razão,
alguns tradutores optaram pelo par voluntário I contra-voluntário no lugar de
voluntário / involuntário, supondo assim melhor captar o recobrimento, por ve-
zes somente parcial, de uma destas perspectivas pela outra (pondo ênfase, no
contra-voluntário, ao fato de ocorrer a contragosto). No entanto, é de se obser-
var que Aristóteles não parece confuso. Para ele, um ato voluntário é aquele
que satisfaz a conjunção de duas condições: (i) o princípio da ação está, em
um sentido intuitivo, no agente (isto é, em um sentido intuitivo ele está na
origem da ação) e (ii) o agente conhece as circunstâncias nas quais se desen-
rola a ação. A negação de ((i) e (ii)] sendo [~(i) ou ~(ii)J, o involuntário é ou
bem o ato cujo princípio está fora do agente ou tal que o agente desconhece
as circunstâncias nas quais se desenrola a ação. Questões sobre se o agente
agiu de modo contrariado ou não não são levadas em conta por Aristóteles na
definição do voluntário e do involuntário. Tais problemas aparecem somente
quando Aristóteles introduz a noção de arrependimento e, deste modo, pro-
põe-se a distinguir entre (ii) atos involuntários e (iii) atos não voluntários no
interior dos atos cometidos por ignorância das circunstâncias: posso fazer algo
ignorando uma das circunstâncias, mas, ao não demonstrar arrependimento,
o ato é antes não voluntário do que involuntário (porém, certamente não é
voluntário). A distinção entre (ii) e (iii) se faz após e supondo a distinção ló-
gica entre (i) e (ii); ela é um apêndice a esta distinção e serve para dar lugar
a certa caracterização moral do agente nos casos de atos involuntários, sem
questionar o caráter básico da primeira distinção para os atos humanos. Se o

I40 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


agente soubesse, não o teria feito, no caso (ii); mas, no caso (iii), se soubesse,
talvez o tivesse feito (e então seria voluntário; contudo, talvez justamente não
o faria se conhecedor pleno das circunstâncias, sem, porém, arrepender-se se
o fizesse desconhecendo uma das circunstâncias).

1109b31 os atos voluntários. Aristóteles escreve "osvoluntários", Tà ÉKOVcJLa,

o que leva a ler prima facie "as ações e emoções voluntárias". No entanto, a se-
qüência do texto deixa claro que voluntário e involuntário se aplicam a ações,
não a emoções; estas últimas podem ser fracas ou violentas, claras ou turvas,
contidas ou abruptas, mas não são ditas voluntárias ou involuntárias, pois
não é questão que satisfaçam as condições do ato voluntário ou involuntário.
Aspásio (58, 9-14) sugere que se poderia falar de "emoção voluntária" no sen-
tido de ser voluntário o dispor-se favorável ou negativamente a algo, de modo
que seria voluntário, por exemplo, o não ressentir mal algo, mas conclui que
qualificamos unicamente as ações como voluntárias ou involuntárias, nunca
as emoções. Em grego, os masculinos ÉKWV e aKwv qualificam os agentes, en-
quanto os neutros ÉKOÚCHOV e àKOOOLOV são ditos dos atos. Não se é obrigado
a ler em TOLC;- ÉKOUOLOLC;- "as ações e as emoções voluntárias", pois a referência
a emoções explica-se pela remissão em geral ao que foi tratado anteriormente,
ao longo do livro lI, sem interferir diretamente no próximo ponto por ser
estudado, a ação voluntária e a involuntária.
c.c.w. Taylor argumenta expressamente em favor de se incluírem as emo-
ções entre o que é voluntário e involuntário. Ele escreve que in ordinary Greek
li

an akousion pathos is something which happens to one in accordance wírh ones


will (e.g. someone who consents to being killed suffers a hekousion pathos; cf.
1136a13-14), and while one would not ordinarily be blamed for rhe former
kind of pathos, one might well be blamed for the latter" (p. 127). A citação
refere-se a V 11, onde Aristóteles cita os versos de Alcmeon, de Eurípides, nos
quais o próprio Alcmeon anuncia sucintamente que matou sua própria mãe,
Phegeu perguntando, em seguida, se ele a matou e ela morreu voluntariamente
ou se ele a matou e ela morreu não voluntariamente (há correções para esta
passagem, que não alteram, porém, o ponto em análise aqui). Deve-se obser-
var, porém, primeiro, que são versos de Eurípides; ademais, Aristóteles, aos
reportá-los, nos diz que soam de modo estranho (àTÓTTWC;-, 1136aI2); segundo,

Comentários I I4I
estes versos deixam-se facilmente interpretar do seguinte modo: a mãe deixa-se
matar voluntariamente, isto é, não reage, e é este não reagir que é voluntário,
não o ser afetado.
l109b33 perdão. Convém ressaltar que a ética antiga é uma ética de respon-
sabilização, jamais de remissão; a noção cristã de perdão daria à ética antiga
um tom que lhe é estrangeiro. Existe um domínio de atos que podem ser per-
doados, a saber, os involuntários, as ações mistas agravadas por circunstâncias
que as tornam insuportáveis à natureza humana (111Oa25-26), bem como o
domínio dos desejos naturais (VII 6 1149b4), mas não há nenhuma tese de
remissão aplicada aos voluntários, dirigida a absolver o homem perverso: "não
há perdão para a perversidade, assim como a nenhum outro ato que se deve
evitar", VII 3 1146a3-4. O homem equânime exerce corretamente o perdão
somente "a respeito de algumas coisas" (TIEpL EVW, VI 111143a22), não sobre
qualquer coisa; "o perdão é o juízo discriminativo correto do homem equâ-
nime" (1143a23). O perdão no sentido cristão aplica-se a tudo; ao perdoar, não
se vê mais o pecado, que fica como que jogado para trás (Is. 38,17), extirpado
(Ex. 32,32) ou destruído (Is. 6,7); o Novo Testamento eníariza, além disso,
que o perdão é gratuito (Lc. 7,42; Mt, 18,25). O termo usado é ã<j>EO"LS (no
sentido de libertação: Lc. 4,18; no sentido de perdão: Mc. 1,4; 3,29; Lc. 3,3;
At. 10,43; Ef. 1,7).
1109b34 bem como é útil aos legisladores. A lei ateniense parece fundada, a
propósito do assassinato, na dicotomia entre os atos feitos com premeditação,
EK TIpOVOlas, e os involuntários, de modo que, aparentemente, "torna as ações
premeditadas coextensivas às ações voluntárias" (Irwin, Reason and responsibility,
p. 119). Assim parece ser a lei de Drácon (cf. M. Gagarin, Drakon and the early
athenian homicide law); o mesmo se pode depreender da passagem a respeito
dos processos de homicídio na Constituição de Atenas (57.3). A Magna Moralia
parece igualmente refletir tal estado de coisas, pois, em I 16, a ação voluntária
é vista como a que é praticada com planejamento, µETà owvolas (1188b37)
ou EK owvolas (1188b26), enquanto o ato sem premeditação, OUK EK TIpO-
voíns, é involuntário: assim, a infeliz mulher que matou seu amante ao dar-
lhe uma poção supostamente afrodisíaca foi absolvida pelo Areópago porque
o matou involuntariamente, já que manifestamente agiu sem premeditação,
µ~ EK TIpOVOlas (1188b35), e, em geral, é dito agir involuntariamente quem

I42 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


agride ou mata outra pessoa sem o ter previamente planejado, µllÔEV TTpOOW-
VOlleElS- (1188b30). Platão, ao longo do livro IX das Leges, já tinha mostrado
o caráter insatisfatório desta dicotomia. Na Ethica Eudemia, Aristóteles elogia
os legisladores que distinguem atos involuntários, voluntários e premeditados
(É KOÚ<JLa, àKoÚ<JLa, EK rrpovoícs: II 10 1226b38), pois estão mais próximos
da verdade, ainda que não de forma clara; ele não menciona, porém, quem são
esses legisladores. De modo semelhante, EN V (que é um livro comum, escrito
provavelmente originalmente para a EE) distingue, no interior dos voluntários,
entre os deliberados e os não deliberados (V 10 1135b8-10). Na EE, porém,
Aristóteles continua, como o fizera na MM, a pensar o voluntário sob a rubrica
geral do KaTà OLávowv (lI 7 1223a25i em 8 1224a7 o voluntário é dito entrar
na categoria do que é de certo modo refletido, EV T0 oWVOOÚµEVÓV TTWS-),o
que não deixa de causar certas dificuldades no tratamento que lhe dá a EE.
Já na EN, o ato voluntário é definido como o que satisfaz duas condições: (i)
o princípio está no agente e (ii) o agente conhece as circunstâncias nas quais
se desenvolve a ação. Procedendo deste modo, Aristóteles já não parte da
compreensão jurídica corrente, mas pretende agora, na EN, corrigir a noção
confusa que está na base dos códigos legais, que, de certo modo, ainda havia
guiado suas análises na EE e na MM.
1110a2 princípio para o qual o agente ou o paciente em nada contribui. O agente
em nada contribui ao princípio da ação; por outro lado, ele contribui de al-
gum modo ao ato, pois está envolvido na ação (se não estivesse, não haveria
o próprio ato, portanto tampouco o ato involuntário). A tradução de Gama
Kury é enganosa aqui: segundo sua tradução, "o agente não contribui de forma
alguma para o ato", o que obviamente não é possível.
1110a4-5 antes que com vistas a algo belo. Tomo ~ no sentido de "antes que",
Se, porém, ~ for tomado no sentido de "ou', haveria aqui dois quesitos: o pri-
meiro diria respeito a ações a que somos coagidos por medo de males maiores,
e sua resposta seria dada imediatamente; o segundo, a atos realizados com vis-
tas a algo belo, e sua resposta se encontraria mais adiante, no fim do capítulo,
em 111Ob9-16.É deste modo que traduz, por exemplo, Natali, assim como a
ROT; Aspásio, porém, considera que não é sensato pôr-se a questão de saber
se são voluntários ou involuntários os atos realizados com vistas a algo belo,
de sorte que propõe ler ~ no sentido de "do que", µâ,uov ~ (60,18-19), isto

Comentários I I43
é, há um só problema, o de saber se são voluntários ou involuntários os atos
realizados "por medo de males maiores antes que com vistas a algo belo": o que
o agente faz, ele o pratica não porque queria propriamente fazê-lo com vistas
a algo belo, mas porque foi forçado a fazê-lo por medo de males maiores. A
interpretação de Aspásio parece-me preferível; com base nela, pode-se supor
que Aristóteles escreveu KaÀóv Tl (que verti aqui por "algo belo") também
com o intuito de dizer que este belo o é somente em parte, visto ser obtido ao
preço de urna ação em si desonrosa. Além disso, l11lOb9-16 examina uma
questão sofística, que Aristóteles não leva muito a sério e à qual dificilmente
faria menção no início do tratamento da questão.
1110a13 pois são escolhidas. O fato de serem escolhidas em última instância
pelo agente (pois ele finalmente decide se cede ou não às injunções do tirano)
faz com que as ações mistas estejam mais próximas dos atos voluntários do que
dos involuntários, embora tenham elementos característicos destes últimos, a
saber, o dilema no qual o agente se encontra lhe é causado ou provocado exte-
riormente, por pressão de outra pessoa ou coisa. Aspásio (61, 10-22) realça bem
isso em seu comentário: não se trata de dizer que a escolha é uma condição do
ato voluntário, mas de assinalar que a existência de uma escolha última torna
a ação mista mais próxima do ato voluntário do que do involuntário, pois toda
escolha supõe o caráter voluntário do ato, embora a situação de impasse em
que se encontra lhe seja involuntária. A. Alberti, porém, considera que, para
Aspásio, "uma ação é voluntária se é o produto de uma escolha efetiva, isto
é, se o agente preferiu tal ação, embora tivesse a possibilidade de não a prati-
car ou de fazer a ação contrária" (Il volontario e la sce/ta in Aspasio, p.112). No
entanto, a condição é excessiva; tudo o que Aspásio mostra é que, visto que,
em última instância, o agente escolheu agir de um modo, a saber, ceder ou
não ceder, então a ação, ainda que, sem outra consideração, seja involuntária
(pois o agente foi posto involuntariamente na situação em que se encontra),
assemelha-se mais à voluntária por conta desta escolha última, instância na
qual o agente exerce sua liberdade, por ínfima que seja.
Há uma tendência, entre os comentadores, a tornar a escolha deli-
berada condição do caráter voluntário de um ato, o que parece ir além da tese
aristotélica. Pode-se claramente ver tal tendência em Joachim (p. 96). No
mesmo diapasão, Irwin atribuiu três teses a Aristóteles: (i) alguém é respon-

I44 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


sável, isto é, candidato apropriado ao louvor e à censura, se e somente se agir
voluntariamente; (ii) animais e crianças agem voluntariamente; (iii) animais e
crianças não são responsáveis por suas ações (Reason and responsibility, P: 125).
Obviamente, elas formam um conjunto inconsistente; embora reconheça que
não há passagem explícita para (iii), Irwin a supõe evidente e se põe a corrigir
(i), tentando mostrar que é preciso introduzir a noção de escolha deliberada
para fundar a responsabilidade já no seio do voluntário. De modo similar, mais
recentemente, D. Bostock argumentou que a noção de ETT' airr0 significa pro-
priamente "estar em minha mente", e isto quer dizer que é minha escolha ou
decisão, de modo que, escreve Bosrock, "parece sensato sugerir que sua primeira
condição <sei. do voluntário> é a seguinte: a causa de uma ação voluntária deve
ser uma escolha ou decisão do agente, e isto é como ele deve 'contribuir' para
ela, pois então estará em seu poder se age ou não de tal modo" (Aristotle's Ethics,
Oxford 2000, p. 105). Isto equivale a voltar ao contexto teórico da EE e seus
problemas, na qual o voluntário ainda era pensado, aos moldes do direito ate-
niense, sob a noção geral de ato refletido; na EN, porém, Aristóteles descola a
reflexão ou escolha deliberada do voluntário e assume que crianças podem ser
responsabilizadas em um plano ralo moral, ao agirem voluntariamente, sem que
tenham agido por escolha deliberada, pelo fato de poderem apeifeiçoar-se no uso
da razão; é com base nisso que são punidas ou recompensadas. A tese é cons-
tante em Aristóteles: toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato
voluntário ocorre por escolha deliberada. A criança está, por definição, na zona
de transição entre um e outro. Além disso, o voluntário é o terreno primeiro da
responsabilidade (no sentido de ser sua condição necessária) e, por conta dela,
na medida em que, ainda que ralamente, ela aparece sob forma de apreender as
razões, é a região primeira do elogio e da censura, que se expandem a partir daí
à escolha deliberada, que é seu campo privilegiado. O voluntário constitui assim
condição necessária da censura ou louvor morais, que já podem ser aplicados a
crianças de modo ralo. Do ponto de vista do caráter moral, contudo, o louvor e a
censura cristalizam-se em torno da escolha deliberada do agente; crianças, porém,
não podem ser avaliadas desde este ponto de vista, pois não dispõem ainda de
escolha deliberada e a avaliação moral plena é feita segundo a escolha deliberada,
da qual o ato voluntário é condição necessária, mas não suficiente.
Isto é resultado de certa modificação por parte de Aristóteles. Com efeito,

Comentários I I45
na EE, visto pensar o voluntário sob a noção geral de reflexão e pensamento,
Aristóteles escreve que "não dizemos que a criança age, tampouco o animal,
mas o que já age por raciocínio" (lI 8 1224a28-30). Na EN, a criança age vo-
luntariamente (o que é afirmado por duas vezes, uma expressamente, III 4
1111b8, outra como conseqüência cuja negação evidencia o erro da premissa,
III 3 l111a26), pois ela satisfaz plenamente as duas condições que a EN es-
tabelece para o voluntário. A criança age voluntariamente e há casos em que
pode ser responsabilizada (em diferentes graus); por ser responsável, é passível
de elogio e censura. O que vale, porém, para a criança vale também para o
animal; assim como na EE criança e animal estavam excluídos do domínio da
ação, assim também, na EN, criança e animal agem voluntariamente. O que é
embaraçoso, pois não parece ser sensato falar de elogio ou censura aos animais.
Deve-se, porém, observar o seguinte: embora andem juntos, criança e animal
diferem em um sentido importante, pois a primeira ainda não tem razão, en-
quanto o segundo simplesmente não dispõe de razão. No tocante aos animais,
eles podem ficar neste domínio que o voluntário inaugura, mas não há sen-
tido em lhes atribuir responsabilidade, tampouco louvor ou censura com base
nisso, pois não há educação ou formação de seu caráter moral, toda reprimenda
ou recompensa aos animais estando baseada no caráter nocivo ou benéfico
que podem ter aos homens, não mais do que cultivamos plantas benéficas
e exterminamos as nocivas. Aristóteles parece assim propor um matiz entre
voluntário e responsável: ser responsável requer o voluntário, mas o voluntário
pode vir separado da responsabilidade, como é o caso nos animais.
Pode-se objetar a isso que, embora não pareça sensato dizer que um animal
é responsável por um evento, é sensato dizer que ele é causa desse evento. Como
o mesmo termo, 0'( TLOV, designa em grego o responsável e a causa, Aristóteles
não conseguiria livrar-se de certa confusão, podendo-se mesmo identificar a
ambigüidade do termo como o vilão dessa confusão. No entanto, penso que
Aristóteles não é vítima da ambigüidade de sua língua. Para ser causa, basta
satisfazer a condição do voluntário; para ser responsável, isto não é suficiente. A
língua não o ajudou, mas Aristóteles precisou escolher em função da força de
seu próprio sistema: ou bem as crianças ficam foram da ação e do voluntário,
como na EE, ou bem os animais participam da ação e do voluntário, como
na EN. Escolhida a segunda via, resta a Aristóteles descolar responsabilidade

I46 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


e voluntário, ao mesmo tempo em que assinala que a condição necessária de
toda responsabilidade é o caráter voluntário do ato. Deste modo, ele pode
atribuir causalidade, sem se comprometer com responsabilidade (mas não o in-
verso), embora disponha de um só termo para ambas as noções. Possuir um só
termo, contudo, é uma infelicidade da língua, não um anátema contra qualquer
análise. Assim, a tese de Irwin, que (i) alguém é responsável se e somente se agir
voluntariamente, é excessiva, pois Aristóteles não introduz o bicondícional,
mas a implicação em uma só direção: se é responsável, então é voluntário. O
voluntário é condição necessária, mas não suficiente da responsabilidade. Se
o princípio estiver no agente, o ato é voluntário; se a natureza do princípio for
tal que possibilitar aperfeiçoamento por elogio ou censura, por mínimo que
seja tal aperfeiçoamento, então é o caso de se responsabilizar o agente. Isto
é um avanço considerável quanto ao direito ateniense, pois ele previa não só
a responsabilização legal de animais, como também a de objetos inanimados
(Consto Athen. 57.3;Platão menciona igualmente tal prática, pela qual os objetos
condenados eram jogados para fora das fronteiras, salientando que ela não é
aplicável aos raios: Leges IX 873e-74a).
1110a17~18 estão no poder do agente fazer ou náo fazer as ações cujo princípio
reside nele próprio. Stewart observa que este princípio é muito geral para valer
sem outra qualificação, pois o movimento do coração é EV airréiJ ("está no
agenté') sem ser br' airréiJ ("está no poder do agente"). Gauthier aproveita
a ocasião para denunciar uma confusão entre aquilo cujo princípio está em
nós (EV ~µlv) e aquilo que está em nosso poder (E<j>' ~µlv); esta confusão
evidenciaria, segundo ele, o caráter rudimentar da concepção aristotélica da
liberdade. O ponto, no entanto, não é confuso nem rudimentar. Aristóteles
menciona o caso das batidas do coração no De motu animalium, juntamente
com o intumescimento do pênis, cujos princípios, que estão em nós, não estão,
porém, em nosso poder (De motu 11 703b6-10); Aristóteles reconhece sem ne-
nhuma dificuldade ou incompatibilidade que as funções vegetativas da alma
têm seu princípio em nós, mas não caem sob a alçada do agente dizer sim
ou não a elas. Ele não está dizendo, aqui, que (todas) as coisas cujo princípio
está em nós estão em nosso poder de sim ou não, mas sim que, no caso das
ações mistas, os atos cujo princípio está em nós estão em nosso poder de sim
ou não, pois em última instância escolhemos ceder ou não, e o que escolhe-

Comentários I I47
mos está em nosso poder de sim ou não (excetuando-se alguns casos, como
quando excede ao que suporta a natureza humana). É importante ressaltar
que Aristóteles não está aqui explicando a condição EVairr0 pela de E<j>'ai.n-0;
simplesmente, ele observa que a primeira remete à segunda, pois, no caso das
ações mistas, o agente, por mais compelido que esteja a agir, escolhe mesmo
assim ceder ou não ceder, e, sempre que há escolha, há possibilidade do sim
e do não. Na verdade, Aristóteles, quanto ao voluntário, quer explicar o E<j>'
ai.n-0 pelo EV airr0, e esta é uma novidade da Ethica Nicomachea. Com efeito,
na Ethica Eudemia, Aristóteles introduz como condição do voluntário o estar
em nosso poder de fazer ou não fazer (EE II 91225b8-1O; a mesma condição
é repetida em EN V 10 1135a23~25,com um WaiTEP Kal iTpáTEpOV E'lPllTaL,
"como também foi dito antes"; a referência não remete a nada da EN, mas sim à
passagem citada da Ethica Eudemia, o que é mais um sinal que o livro V, comum
à EE, foi escrito originalmente no contexto da EE), e isto está provavelmente
ligado ao fato de pensar em geral o voluntário, nesta obra, como o que é EK
owvotas, "segundo um plano"; a conseqüência é que o voluntário passa a ser
condição não só necessária como suficiente da plena responsabilidade moral,
confundindo-se então com a escolha deliberada e não podendo ser atribuído
a animais ou crianças. Na EN, Aristóteles procura separar claramente os dois
planos: toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato voluntário é
segundo escolha deliberada; crianças e animais agem voluntariamente, mas
não segundo escolhas deliberadas (cf. também Phys. II 6 197b5-S).
11l0a21 em trocade ifeitosgrandiosos e belos.Joachim mostrou pertinentemente
que àVTl não significa tomar algo "em detrimento de" outra coisa, mas tomar
algo "aopreço de" "em troca de",em um cálculo de vantagens e desvantagens na
mesma ação; Joachim remete a Rhet. II 23 1399b13-19como ilustração.
1110a22-23 é típico de uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe em
função de a~o nada ou medianamente belo. Suportar torpezas por algo nada ou
medianamente belo é marca de uma pessoa inferior, mas de um homem virtu-
oso se for em troca de algo belo e importante. Que coisas torpes pode, porém,
praticar o homem virtuoso? Aspásio não tem dúvidas: devem-se suportar pe-
quenas torpezas, µLKpà alaxpá, em troca de grandes bens, por exemplo: se um
tirano ordenar a um homem vestir-se publicamente de mulher sob a ameaça
de, caso não o fizer, destruir seu país e sua família (61,25-29). O ato é ígnóbil,

I48 I Ethica Nicomachea I 13 -1Il 8


mas pequeno; a recompensa, grandiosa! Como bem observou Gaurhier, é me-
nos um ato imoral do que um ato inconveniente. O comentador anônimo não
edulcora, porém, o ponto, e talvez vá muito longe: se alguém cometer adultério
com a mulher do tirano com o intuito de descobrir algum segredo importante,
comete um ato vil (o adultério), mas "não de modo vil, pois o agir de modo vil
está na escolha deliberada", OVK aiaxpWs' Ev yàp Tft TTpOaLpÉaEL TO aiaxpWs
(142, 13-14). Não se trata de algo menor, pois o adultério é apresentado, no
livro Il, como não devendo nunca ser cometido, pois torna inevitavelmente
perverso quem o comete. Para o comentador, o ponto é que seria elogiado
em função daquilo em troca de que comete um ato vil (pequeno ou grande);
é neste sentido que age ou não de modo vil em função de sua escolha deli-
berada. O exemplo do adultério é enganador, e pode nos parecer aceitável;
no entanto, se o substituirmos por estupro ou tortura, então fica mais claro
que não é evidente que homem virtuoso possa cometer qualquer ato vil em
troca de bens maiores. Talvez não seja por acaso que Aristóteles escreva que
é marca do homem virtuoso suportar o torpe em troca do grandioso, mas de
um homem inferior o suportar o que há de mais torpe em troca de nada ou do
medianamente grandioso. Modernamente, o problema pode ser formulado do
seguinte modo: é moralmente aceitável torturar um terrorista que sabe onde
está localizada uma bomba que, se explodir, poderá matar muitas pessoas:'
A resposta de Aristóteles parece indicar que não, pois a tortura faz parte dos
atos que são em si mesmos imorais, não havendo circunstância alguma que
os torne moralmente aceitáveis.
1110a26 A algumas coisas presumivelmente não há como sermos compelidos.
Segundo Richards. oix EaTLV não significa "é impossível" (pois seria clara-
mente possível), mas "não deve", ou &1. No entanto, Aristóteles está de fato
sustentando que não há, em alguns casos, como ser compelido a fazer algo. Ele
distingue, com efeito, entre os atos aos quais somos coagidos ou compelidos
e aqueles que nos são impostos por força. Estes últimos são ditos ~lma; os
primeiros, clvaYKala (se, quando seguro um punhal, alguém toma meu braço
e apunhala outra pessoa, mato-a involuntariamente por força, mas não fui
coagido ou compelido a matá-la). Para os clvaYKala, dizer que "não havia
escolha" significa propriamente que uma única coisa devia racionalmente ser
escolhida, e não que toda escolha estava suspensa; para os ~lma, ao contrário,

Comentários I I49
não está em questão escolha alguma, o agente em nada participando de ne-
nhum princípio da ação. Na linguagem popular, como observa Dover (GPM
p. 109), um homem confrontado com a escolha entre a fome e o roubo será
tentado a roubar - os gregos falariam de ser coagido ou compelido a fazer algo,
não que agiu por força. O matricídio serve de exemplo para os casos em que
não se pode ser compelido a fazer certa coisa, o agente devendo antes escolher
a própria morte, mesmo sob as piores torturas.
1110a28 Alcmeon. A peça perdida de Eurípedes Alcmeon é citada tam-
bém na Poet. 14 1453b24-25. Amphiaraos, rei de Argos, escondeu-se para não
participar da expedição contra Tebas, na qual sabia que pereceria; sua mulher
Eriphyle indicou onde se escondia em troca de um colar de ouro; antes de partir
para Tebas, ao subir em seu carro, Amphiaraos esconjurou seu filho Alcmeon
se não vingasse sua morte executando quem o denunciou. Alcmeon, ao matar
sua mãe, procura justificar seu ato alegando que se via forçado pelo pai. Desta
defesa, Aristóteles cita em V 11 1136a13-14 uma parte, caracterizada como
escrita por Eurípides de "modo bizarro", àTÓTTWS, pois supõe que alguém possa
sofrer uma injustiça voluntariamente: "- Matei minha mãe, para ser breve.
- Voluntariamente tu, voluntariamente ela, ou ela não voluntariamente, tu
não voluntariarnenter",
1110a31 nas resoluções.Ou "em relaçãoàs pessoas conhecidas",tomando-o por
um dativo plural masculino (e não neutro), como interpreta Aspásio (62,S-12).
1110bl de onde há ou não louvor. Como a negação está no fim da frase,
pode-se igualmente ligá-la somente ao último termo e entender que" de onde
há louvor e censura a respeito de quem é compelido ou não <é compelido>".
Penso, no entanto, que a negação se reporta a toda a proposição; com efeito,
o argumento precedente consistiu em mostrar que, a respeito da coerção, há
casos em que não ocorre louvor ou censura, mas perdão, mesmo que seja difícil
determiná-los com exatidão.
1110bl forçadas. Aristóteles volta ao tema geral dos I3laLa, depois de ter
examinado os casos em que há um compromisso do agente na escolha última
do que fazer (Tà àvaYKala).
1110b2 sem mais. Pode-se entender tanto que se deve dizer áTTÀ,ÜYç; (sem mais)
que o involuntário é o que satisfaz as duas condições listadas, como entender
que se deve dizer que é involuntário áTT À,wç;; o que satisfaz as duas condições

ISO I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


listadas. A primeira solução foi adotada e.g. por Dirlmeier e Natali (Azioni e
Movimenti, P: 167, mantido em sua tradução); a segunda, por Ross (mantida
na revisão de Urmson) e Gaurhier, a qual prefiro.
1110b4-5 são, de um lado involuntárias por si; de outro, são voluntárias no mo-
mento e em troca de outras. O agente, em relação ao que é compelido a fazer,
tem um espaço mínimo de escolha, por ínfimo que seja, o que torna a ação,
em função desta escolha, voluntária; no entanto, per se ou tomada em geral, a
ação é involuntária. Em um influente artigo, Irwin sustentou que Aristóteles
distingue agir por força e agir compelido de modo que somente o primeiro é
involuntário, pois "ação a que somos compelidos, mesmo quando excede à na-
tureza humana, é voluntária" (Reason and responsibility, p. 121). Ela é voluntária
somente quando considerada no instante da decisão que tomamos de ceder ou
não ceder, mas, como o próprio Aristóteles eníatiza, per se a ação é involuntá-
ria, pois ninguém a escolheria por si mesma. Ademais, Irwin argumenta que
Aristóteles não teve êxito em distinguir as ações mistas de outros casos que não
envolvem coerção, como quando alguém toma uma bebida amarga, não por si,
mas como medicamento, de sorte que "qualquer ação escolhida como meio a
outro fim parece satisfazer as condições de Aristóteles para ser uma ação mista,
mas isto certamente não é o que pretende" (p.136). Esse argumento, porém, é
falso, pois o ponto está no fato que, enquanto está em mim o princípio da ação
de e.g. tomar um medicamento (o que me leva a preferir tal bebida amarga),
não está em mim o princípio de e.g. prestar falso testemunho, mas no tirano,
que me compele a tanto, a cuja coerção, contudo, decido ceder ou não ceder
no momento em que presto ou não presto falso testemunho.
1110bl0 pois, sendo exteriores, compelem-nos a agir. A objeção confunde o que
Aristóteles acaba de distinguir. Os objetos agradáveis são exteriores a nós e
de certa forma se impõem a nós, forçando-nos a agir em sua direção, assim
como os àvaYKala, que comportam uma decisão última do agente, embora o
princípio maior seja exterior ao agente; o objetar alega então que o agradável
é ~laLOV,pois os àvayKala caem sob o ~laLa em sentido geral. O ponto
mais importante aqui consiste em observar que não é o objeto exterior que me
compele a agir, mas o busco ou o evito em função da representação que me
faço dele, respectivamente, como um bem ou como um mal; ora, esta repre-
sentação é, no sentido relevante (de o princípio estar ou não estar no agente),

Comentários I ISI
minha representação, o que evidencia o caráter voluntário de meu ato. Esta
passagem foi examinada por Alexandre nos Problemas Éticos XII.
1110bl0 tudo seria assim forçado. Alguns manuscritos e a antiqua traductio
(Paris 1497) lêem OlrrW, "assim",que Bekker e Susemihl editam, e que traduzi
aqui; Aspásio também, pois comenta que "tal argumento transforma todos os
erros em atos involuntários" (62, 29-30). No entanto, manuscritos importan-
tes (KbLbMb) trazem a lição airrij1, "para ele",que Bywater adota, o que daria
como texto: tudo seriaforçado para ele. Por sua vez, a edição aldina traz ou Tij1
airrij1, "não para ele",o que não faz, porém, sentido.
1110b13 é derrisório, então. Adoto o texto e a pontuação de Bekker e Su-
semihl, contra a de Bywater, que lê yEÀolov OÉ, ligado à frase anterior por
ponto e vírgula, que daria: "mas é derrisório <...»".
1110b14-15 e responsabilizar-se a si mesmo pelas belas, mas as circunstâncias
agradáveis pelas ignóbeis. Aristóteles refere-se aqui talvez a Górgias, que, em
seu Elogio de Helena, reivindicava a autoria de um argumento segundo o qual
Helena em nada teria sido a causa da guerra de Tróia (DK B 11 §2). Górgias
pretende ter mostrado que Helena agiu ou (a) por intervenção divina, ou (b)
forçada, ou Cc)persuadida por um argumento ou (d) capturada pelo amor,
não devendo ser responsabilizada em nenhum dos casos. A lista pretende
ser exaustiva quanto aos tipos de motivo para a ação, concluindo que nin-
guém deve ser tomado como causa de nada (pelo menos não do que é objeto
de censura), embora Górgias se apresente como o autor do elogio (que ele
próprio descrevia como um "jogo" ou "chiste", TTaLyvLOv). O argumento (d)
representa os casos em que se age atraído pelo agradável. A argumentação de
Górgias, como observou J. Barnes, "fracassa, mas é uma peça significativa da
filosofia: introduz o problema do determinismo na filosofia moral e antecipa,
in nuce, vários dos maus argumentos posteriormente avançados com tal força
e alcance pelos oponentes irredutíveis da liberdade humana" (The Presocratic
Philosophers II p. 228).
11l0b19 aflição e arrependimento. Aristóteles parece acrescentar urna condição
ao caráter involuntário de uma ação, a saber, que h.ya arrependimento e aflição
por parte do autor. Porém, arrependimento e aflição parecem ser propriamente
critérios para o reconhecimento do caráter moral do agente envolvido em um ato
involuntário mais do que uma condição do próprio ato. Além do mais, um ato

IS2 I Ethica Nicomachea I 13 - /Il 8


involuntário pode ter conseqüências benéficas, o agente não tendo motivo para
arrepender-se ou afligir-se. Quem comete um dano involuntariamente e não
se arrepende ao dar-se conta disso não constitui um caso distinto quanto ao
ato, somente evidencia um caráter moral duvidoso, não mais do que alguém
que faz algo belo involuntariamente e se alegra com isso age por esta razão de
modo voluntário, mas somente revela um caráter moral louvável.
1110b21-22 na medida em que não se aflige. Se a aflição for uma marca
do ato involuntário, então talvez a melhor tradução seja "contra-voluntário",
pois este último termo traz à tona o fato de o agente estar contrariado e estar
agindo de mau grado (assim justifica e.g. Sarah Broadie a tradução feita por
Rowe dos termos em questão). No entanto, esta condição não é retomada
na definição que Aristóteles apresenta de voluntário e involuntário em II 3
ll11a22-22 e parece ligar-se antes, a título de apêndice, a conseqüências que
permitem o reconhecimento do caráter moral da pessoa envolvida em um ato
involuntário.
1110b22 Assim, de quem age por ignorância. Arrepender-se ou não arre-
pender-se reporta-se a quem age por ignorância. Não se refere em geral ao
voluntário e involuntário, como se tivéssemos três casos: (i) voluntário, (ii)
involuntário e (iii) não voluntário, tampouco introduz uma característica do
involuntário em geral, mas especifica que, no interior do involuntário por ig-
norância, há de ser feita ainda a consideração a respeito de o agente manifestar
ou não arrependimento.
1110b31 a ignorância na escolha deliberada. Se, como fez Michelet, EV Tfl
rrp0aLpÉ(JEL ayvoLa (a ignorância na escolha deliberada) opõe-se a KaElóÀou
ayvoLa (ignorância geral), então a ignorância da escolha deliberada deve dizer
respeito aos meios empregados, enquanto a ignorância geral é aquela das re-
gras gerais que devem ser seguidas ou os fins gerais, como o mandamento de
não matar; reproduz-se assim a oposição entre a escolha deliberada (sempre
sobre os meios) e o querer (que incide também sobre os fins). Posso ignorar
que tal meio é inaceitável para tal fim (por exemplo, jogar a carga ao mar para
navegar mais rápido) ou posso conhecer corretamente quais são os bons meios
para algo, mas desconhecer que as regras e os costumes interditam tal fim,
por exemplo: manter relações sexuais em praça pública. Convenções sociais
fazem parte das regras gerais que o agente não deve desconhecer. No entanto,

Comentários I IS3
Aspásio (64,7-8: "ele <Aristóteles> chama a mesma ignorância <na escolha
deliberada> de <ignorância> do universal"), o autor da paráfrase anônima,
Grant, Ramsauer, Burnet e Joachim tomam Ka8óÀov ayVOLa como sinô-
nimo de EV Til rrpootpéosi ayvow; Stewart aprova esta leitura com certa
relutância, adotando-a finalmente porque considera que ovo'
em b32 pode ter
o sentido expletivo negativo de "isto é ... não"; Richards se mostra também de
certo modo hesitante; Irwin resume bem a posição de todos, observando que
"ignorância do que é benéfico","ignorância na escolha deliberada" e "ignorância
do universal" referem-se ao mesmo fenômeno (Hardie é da mesma opinião:
"são descrições alternativas de um tipo de ignorância, não descrições de tipos
diferentes de ignorânciá', Aristotle's Ethical Theory p.157). Gauthier apresenta
uma razão discutível para sustentar que as três ignorâncias em questão são
idênticas: pretende mostrar deste modo que esta passagem permite ver que
a escolha deliberada é definitivamente também sobre os fins e não somente
sobre os meios, pois, se a KaeÓÀOV ayvow é ignorância" do universal': então
ela é ignorância do fim; se é equivalente à EV Til rrpocrpéoei ayvow, deste
modo fica evidenciado que a rrpouipecns, segundo ele, "tem aqui seu sentido
corrente de intenção moral", dirigida ao fim e não somente aos meios. No en-
tanto, se se tomam como idênticas, a razão para tanto provavelmente não é a
fornecida por Gauthier, mas aquela dada já por Aspásio (é dita uma ignorância
geral porque, por sua causa, o agente ignora o que lhe é benéfico, que são os
meios obtidos por deliberação), sem prestar apoio à tese que Gaurhier quer
sustentar, segundo a qual a escolha deliberada é também do fim. Creio, porém,
que se deve voltar a Michelet (e a Giphanius, que ele cita): a ignorância (i) do
que é benéfico parece conter dois casos distintos, (a) a ignorância que alguém
poderia alegar dizendo que desconhecia que tal meio era impróprio para obter
tal fim (próprio) e (b) a ignorância de regras e costumes gerais que podem ser
tomados como fins para a ação. Ambos os casos são causas da perversidade
do caráter e não da involuntariedade da ação. O ponto é que se trata de opor
dois tipos de ignorância (a ignorância do que é benéfico e a ignorância par~
ticular) e não três tipos de ignorância (ignorância do meio, do universal e do
particular). A ignorância do que é benéfico inclui tanto a ignorância do meio
(em uma deliberação) como também a de um fim (na ignorância geral), que
podem vir acompanhadas (ou não) de outra ignorância, a ignorância particular

IS4 I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8


(a respeito das circunstâncias nas quais ocorre a ação). A expressão KaElóÀou
ÀÓyoS apareceu em II 2 1l04a5 no sentido de regras e preceitos gerais a res-
peito das ações humanas.
lllla4 sobre o que ou em que age. Interpreto TL e TlVL como neutros: a dis-
tinção seria entre o objeto e o âmbito da ação (assim Gaurhíer, seguido por Za-
natta). Aspásio (64,33-65,2) toma EV TlVL como "sobre alguém", pressupondo
uma distinção entre coisa e pessoa. Ele menciona igualmente a possibilidade
de se compreender EV TlVL como o lugar ("no templo", em seu exemplo); no
entanto, o próprio Aspásio descarta esta leitura.
1111a9escapou-lhes aofalar. A passagem é incerta do ponto de vista grama-
tical, mas o ponto é claro: há ignorância do que estão fazendo ao dizer algo
que não pretendiam.
1111al0 como Ésquilo deixou escapar os mistérios. Ésquilo foi acusado de ter
revelado os segredos dos mistérios de Elêusis; defendeu-se argumentando que,
não sendo iniciado, não sabia que eram mistérios (cf. Rep. VIII 563b-c); foi
absolvido (cf. Clemente de Alexandria, Stromates II xiv 60).
lllla12 Merope. Em Cresphonte, peça perdida de Eurípides (ver Poet.
14 1454a5-6): Merope está a ponto de matar seu filho, mas o reconhece a
tempo.
lllla14 dando a beber. Bernays propôs esta correção; os manuscritos tra-
zem rroíouc, parto aor. de rruko, bater, ou rral(w, brincar, nem um nem outro
cedendo um sentido satisfatório.
lllla14 querendo tocar. Susemihl adotou essa correção, assim como Bywa-
ter; a vulgata e Bekker fornecem oE1~m ~OUÀÓµEVOS, expressão que já ocorreu
a propósito da catapulta: "querendo mostrar". Gaurhier, seguindo Rackham,
escreve opáçaL, "pegar com a mão".
1111a15 os lutadores de mão. Grant e Stewarr, baseados em Aspásío, to-
mam-nos por sparrings; segundo Gaurhier, trata-se de uma luta na qual se
tenta fazer o adversário :yoelhar-se somente através do contato pelos dedos
entrelaçados das mãos.
l111a18-19 o fim parece ser sumamente importante entre as circunstâncias nas
quais ocorre a ação. É natural ligar KupLwTaTa a EV TOls KUpLWTáTOLS que
precede imediatamente, lendo algo como "as circunstâncias mais importantes
parecem ser..:'; neste caso, contudo, falta o segundo membro que Kal (e) deveria

Comentários I ISS
juntar. Uma possibilidade é ler em EV OIS lÍ TTpâçLS' este segundo candidato.
Aspásio, neste sentido, propõe como os dois candidatos para o que é mais
importante: (i) o fim e (iia) sobre o que ou em quem age, identificando EV OIS'
lÍ TTpâçLS' a TTEpl Tl ~ EV TlVL TTpáTTEL, cuja segunda parte ele via como se
referindo à pessoa (assim também a paráfrase, que menciona "as pessoas e o
resultado"). Em linha similar, a recensio recognita dá como texto duas circuns-
tâncias como as mais importantes: "in quibus operacio et cuius graciá'. Aqueles
que adotam esta leitura devem atetizar EV OIS' ~ TTpâçLS' da linha a16, pois de-
veria significar limitadamente "sobre o que ou em que age", quando claramente
significa, se a expressão for mantida nesta linha, todas as circunstâncias nas
quais se produz a ação (Ramsauer procedeu deste modo, eliminando EV ols
~ TTpâçLS' da linha a16 para manter a leitura de Aspásio, no que foi apoiado
por Stewart, que segue a mesma interpretação). Rackham, no entanto, adota
uma adição proposta por H. Richards e lê KupLwTaTa o' ELVaL OOKEl EV otS'
~ TTpâçLS <6' > KaL 01 EVEKa (no que é seguido por Gauthier e pela ROT), o
que dispensa a atetizaçâo de EV OLS' lÍ TTpâçLS' da linha a16: resulta disto que
as condições principais nas quais se desenrola a ação são (i) o fim e (iib) o ato
que é realizado. O motivo do acréscimo é que EV OIS' ~ TTpâçLS' designa todas
as condições (como já ocorrera na linha aI6), não podendo ser usado, neste
contexto, para escolher uma dentre elas. Isto faz com que os candidatos sejam
preferencialmente (i) o fim e (iib) o que é feito (Dirlmeier, no entanto, traduz
literalmente a passagem: "und die wesentlichen sind eben die Umstânde einer
Handlung und ihre Zielserzung", sem considerar que, deste modo, todas as
circunstâncias são tomadas como as mais importantes).
No entanto, pode-se entender que KUpLwTaTa é o superlativo adverbial, po-
dendo-se esperar não um plural, mas um singular: algo, ainda por ser nomeado,
que parece ser sumamente importante. Neste caso, o KaL tem a função estrutural de
dar ênfase, pondo o termo a que se ajunta em evidência. Como escreve Den-
niston (p. 317), neste caso "KaL is Iirtle more than a particle of emphasis, like
o~.As such, ir precedes, and emphasizes, various parts of speech", como em
Rep. IV 445d4 ou Men. 95c2-3 (como observa Denniston, "a connective sense
hardly seems appropriate here', P: 320). Nesta perspectiva, a frase, KUpLwTaTa
o' ELVQL oOKÊL EV OLS' ~ TTpâçLS' Kal 01 EVEKa, pode ser interpretada sem
nenhuma correção, indicando que, entre as circunstâncias, o fim parece ser

Is6 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


sumamente importante. Aspásio pressentiu isso, pois dedicou a maior parte de
seu comentário a mostrar por que o fim é obviamente uma condição essencial
entre aquelas cuja ignorância torna a ação isso involuntária (65, 15-28); ele
escreveu mesmo que "o fim é a circunstância mais importante nas ações que
ocorrem por ignorânciá', KUpuDTaTov ow EV TOLS OL' ayvOLaV TO OÚ EVEKa
(65,28) e tentou reduzir todos os outros casos à ignorância do fim (65,21-22:
"todos os outros como que se reduzem a ele"). Se for assim, encontramos aqui
a passagem mais clara na qual Aristóteles sustenta a importância da intenção
na ação (o fim pretendido), sem, porém, reduzir todo o valor moral a ela (ao
contrário, como assinalará em III 4, a escolha deliberada é o que há de mais
próprio ao valor moral de uma ação). Grant assinala que é bizarro dizer que
alguém ignora o fim da ação, como se houvesse um fim independente que o
agente ignoraria, mas o ponto é que o agente ignora o que está realmente ob-
tendo, não o que pretende obter. Trata-se de um descompasso entre aquilo
a que visa o agente e o resultado que de fato obtém (por exemplo, quando
alguém mata uma pessoa, querendo, porém, salvá-la, ao fazê-la beber uma
poção; cf V 10 1135bI4-16).
11l1a21-23 Sendo involuntária a ação realizada por força e por ignorância, o
involuntário parece ser aquilo cujo princípio reside no agente que conhece as circunstân-
cias particulares nas quais ocorre a ação. Aristóteles apresenta sua definição do
voluntário e do involuntário: tomando p por princípio no agente e q por o agente
conhece as circunstâncias da ação, o voluntário é p A q; o involuntário, ~p V ~q. O
voluntário é a conjunção desses dois fatores, o involuntário ocorrendo se pelo
menos um deles for negado, segundo a regra da di~unção. Este é um caso claro
em que Aristóteles reconhece que atribuição (ou não) do caso depende do re-
sultado da conjunção ou disjunção do valor de verdade de duas proposições.
Para Aspásio, curiosamente, haveria uma assimetria, pois o involuntário seria
equívoco (ou homônimo, no vocabulário aristotélico), já que depende de dois
tipos distintos, o involuntário por ignorância e o involuntário que resulta do
fato que o princípio está fora do agente, enquanto o voluntário seria unívoco
(ou sinônimo, no vocabulário aristotélico), oú ~ àpx~ EV airr0 ELOÓTL Tà
Ka8' EKaaTa EV OlS ~ rrpâçLS constituindo uma definição única (65,33-66,3).
Aspásio é obviamente iludido pela estrutura gramatical superficial: enquanto
para o involuntário parece haver duas condições, ~LÇlKal OL' ayvOLav, a força

Comentários I I57
e a ignorância, o voluntário parece ter uma única, ou ~ àpXTJ EV airr(il EL8óTL
Tà Kae' EKaaTa EV ols ~ TTpâ~LS', "o princípio no agente que conhece as
circunstâncias particulares nas quais ocorre a ação". No entanto, no voluntário
há a conjunção de duas condições, cuja negação é a disjunção de seus opostos.
De qualquer modo, se estivesse correto ao sustentar que o involuntário é equí-
voco, então o seu oposto, o voluntário, também seria equívoco. Como Aspásio
sustenta que o voluntário é unívoco, ele explica o "problema" da equivocidade
do involuntário pelo fato de Aristóteles não fornecer propriamente uma defi-
nição do involuntário, mas meramente uma exposição, EKeE(JLS', de seus casos
(assim como não se define um termo homônimo, mas se listam seus diversos
casos; se tivesse, porém, fornecido uma definição, teria de ser unívoca, pois
seu contrário, o voluntário, é definido univocamente: 59, 1-11).
Por outro lado, convém salientar que Aristóteles partiu, na EN, do involun-
tário para então obter a definição do voluntário. Na EE e na MM, ele define
primeiro o voluntário, o que procura fazer através da noção-guia de agir com
reflexão, KaTà OLávOLav, de certo modo baseando-se na legislação vigente, o
que não deixa de criar problemas, pois a escolha (deliberada) ou reflexão já está
como que embutida no próprio voluntário. Na EN, a condição de o princípio
estar no agente é compreendida por contraste com a de estar fora do agente,
que nos é mais clara e intuitiva, o que permite não introduzir já no voluntário
a escolha, que será analisada em seqüência e que supõe o caráter voluntário do
ato, mas não se confunde com ele. Examinar pelo contrário é um procedimento
usual em Aristóteles, sobretudo quando o termo é homônimo; assim, para
explicitar a homonímia de justiça, em V 1, ele explora primeiro a homonímia
de iryustiça, que nos é menos obscura para apreender.
l111a25 por impulso ou por apetite. Trata-se dos desejos da parte não-racional;
poder-se-ia supor, com efeito, que nos são involuntários, visto não provirem da
parte racional. No entanto, ambos são meus desejos, no sentido relevante aqui de
terem o princípio em mim como agente, e, por conseguinte, são voluntários.
ll11a26 nenhum outro animal poderá agir voluntariamente, tampouco poderão as
crianças. Aristóteles volta a afirmar mais adiante, em 4 ll11bS-9, que animais e
crianças agem voluntariamente. No entanto, no sexto livro, Aristóteles exclui os
animais do campo da ação (VI 2 1139a20), assim como, na Ethica Eudemia, ele
escreve que "não dizemos que a criança age nem o animal" (Il 7 1224a28~29; cf. II

ISS I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8


6 1222aI8~20: "somente o homem, entre os animais, é princípio de certo tipo de
ações: de nenhum outro animal diríamos que agé'). Um meio de conciliar todas
estas passagens consiste em assinalar que a passagem em EE II 7 parece trazer
a resposta, pois, na linha seguinte, Aristóteles escreve que, para agir, é preciso já
dispor de uma faculdade racional (lI 71224a30). Assim, em um sentido estrito
(que requer o uso da razão), animais e crianças não agem (os primeiros por es-
tarem desprovidos de razão, os últimos por ainda não disporem da razão); em
um sentido largo, porém, que corresponde ao uso comum da língua, e ao qual
Aristóteles faz menção aqui, animais e crianças agem voluntariamente. Rarn-
sauer comenta, neste sentido: "neque enim vere TTpâÇLC; est quae a non conscio
fit. Esta é a posição adotada pelos comentadores.
aut a privare arbitrii libertate
No entanto, esta posição forte, presente na EE e na MM, parece depender da
atribuição de reflexão (portanto, de razão) já ao ato voluntário, o que já não é
o caso na EN, que exige unicamente que o princípio da ação não esteja fora do
agente (a passagem de VI 2 está novamente a indicar a origem eudemiana dos
livros comuns). Na EN, Aristóteles adota uma posição moderada a respeito da
ação - a qual inclui como agentes as crianças e os animais, além dos homens
adultos - que vem de par com a nova interpretação do voluntário, a qual já não
inclui como condição a reflexão ou a escolha deliberada. Parece-me que antes
de tentar conciliar, convém reconhecer que Aristóteles mudou de posição, e que
a tese sustentada na EN é bem mais satisfatória.
l111a29 havendo uma única causa? Pode-se traduzir também por "um único
homem sendo causá', mas parece melhor, seguindo a paráfrase, entender que
a causa é única, o que torna inaceitável a cesura entre atos belos voluntários e
ignóbeis involuntários.
1111bl as emoções não-racionais. O termo TTá811 é omitido pela primeira
mão de Kb, manuscrito importante para o estabelecimento do texto; deve-se
entender, então, que os erros não-racionais não são menos humanos do que os
erros cometidos por cálculo. As "aíecções" ou "emoções" aqui são propriamente,
como observou Bumet, tipos de desejo.
1111bl-2 de sorte que também as ações por impulso e por apetite pertencem ao
homem. Este é o texto da antiqua traductio e de Kb, com a correção sugerida
por Susemihl e adotada por Bywater; a vulgata dá como texto aL oE TTpáçELC;
TOV àv8pWTTOU emo 81JµoV KaL ETTL8uµLac;, "mas as ações do homem são por

Comentários I IS9
impulso e por apetite", Bekker adotou a vulgata, o que implica que as ações
humanas provêm do impulso e do apetite; na paráfrase lê-se, neste sentido,
que "todas as ações humanas (rrâaaL ai àvepwmvaL rrpáçELS) se engendram
a partir destas afecções, a saber, impulso e apetite" (45,3-5), o que seguramente
é falso. Susemihl preferiu atetizar rrá911 da linha 1111bl e àrro 9uµ0l! KUL

Em9uµ(as de l111b2, o que dá como texto: "de sorte que também as ações
<não-racionais> são <ações> do homem".

IH 4

Aristóteles examina neste capítulo a noção central de sua ética da preferên-


cia racional, a saber: a noção de escolha deliberada. Em 1112a1Oreencontramos
o termo da linguagem comum para escolha, d(pEaLS, mas Aristóteles insiste
que, do ponto de vista de sua ética, escolher é fundamentalmente escolher por
razões, o que o levaa dar preferência ao termo rrpoalpeotç. Traduzi-lo por esco-
lha parece, assim, pouco, pois é possível escolher algo sem proceder por razões,
assim como me parece insuficiente decisão, pois posso decidir-me irrefletida-
mente à ação; vali-me da expressão escolha deliberada para pôr em realce o ato
de pesar de razões desta escolha, o ato de pesar razões sendo essencialmente
deliberativo. Aristóteles principia aqui distinguindo a escolha deliberada dos
três tipos de desejo (impulso, apetite e querer), bem como da opinião, para
então localizar a escolha deliberada na reflexão vinculada à ação.

l111b5 mais própria à virtude. A virtude moral inclui a escolha deliberada


como sua qualidade distintiva: ela é definida como um hábito de escolha de-
liberada, II 6 1106b36. O valor moral é mais propriamente apreendido não
pelo que é feito, mas pela deliberação sobre como fazer; com efeito, um homem
vicioso pode fazer algo que é, em si, virtuoso, mas que é feito por uma razão
não virtuosa (querer vangloriar-se, escapar de uma pena etc.). Isto assegura ao
domínio interno uma prerrogativa sobre o domínio externo quanto à análise do
valor moral da ação. Alguém poderia objetar, no entanto, que não basta isso,
pois a virtude moral é ainda mais propriamente o hábito de visar a um fim
moral, quaisquer que sejam as habilidades para realizá-lo (seguramente úteis,

I60 I Ethica Nicomachea I [3 - /lI 8


T
!

porém não indispensáveis); neste caso, embora a escolha deliberada seja mais
: implica que as ações
IC )ê--se, neste sentido, apta do que as ações para desvelar o caráter de uma pessoa, ela parece mesmo

~El S") se engendram


assim inferior ou subordinada à intenção, que funcionaria como o reduto úl-
timo do valor moral de uma ação. Pode-se mesmo reivindicar que, na intenção,
5). o que seguramente
1h1 e àlTO 9uµou KUl
trata-se da conformidade (ou não) da máxima, segundo a qual agimos, à lei ou

cpe também as ações princípio objetivo do agir, que, grosso modo, reclamaria do agente uma perspec-
tiva universal ou pelo menos não egoísta na ação, na qual se esgotaria a base
moral (ou imoral) da ação, o resto não sendo senão considerações técnicas de
realização e exeqüibilidade. Kant pôde assim sustentar que o valor moral da
ação reside propriamente na intenção do agente e negar à deliberação sobre
os meios uma função moral, limitando-a a considerações técnicas; mais ainda,

Ie sua ética da preíerên- criticou acerbamenre a substituição do mundo das intenções pelo da delibera-

l11.2a10 reencontramos ção. Talvez isto explique por que alguns comentadores (como Ross e Gauthíer)
tentaram ver nesta passagem um sentido de "intenção" no uso aristotélico de
mas Aristóteles insiste
aalmente escolher por lTPOUlpE<JlS, a despeito da limitação explícita da escolha deliberada aos meios
e nunca aos fins: se a lTPOUlpE<JlS" permite "ver" melhor a moralidade da ação,
IlS. Traduzi-lo por esco-
então tem de envolver pelo menos um pouco de "intenção': pois é aqui que re-
m proceder por razões,
~docidir~me irrefletida~ sidiria em última instância o valor moral de uma ação. No entanto, Aristóteles
usa o superlativo aqui; ele não nega o mundo da intenção, que recebe relevo
112 pôr em realce o ato
no ato de pôr um fim. Intenções (no sentido do fim buscado), como vimos
I sendo essencialmente
em IH 2 1111a18~ 19, constituem a circunstância mais importante no interior
:escolha deliberada dos
da qual ocorre a ação. Aristóteles reconhece o domínio da intencionalidade e
0JIIl0 da opinião, para
dá um lugar às intenções. Como escreveu D. Furley, isto não quer dizer que
bdaà ação.
"Aristóteles estivesse pronto com uma teoria articulada da intencionalidade,

_ a escolha deliberada <mas que> estava suficientemente consciente da intencionalidade dos objetos
do desejo" (Self-Movers 1978, republicado em Cosmic Problems, p.131). Contudo,
la hábito de escolha de-
e este é o ponto aqui, ainda que tenha dado lugar às intenções, Aristóteles
lIQIalte apreendido não
analisa a racionalidade prática sobretudo como o ato de pesar razões rivais a
~aJIIlefeito, um homem
partir de um fim posto (pela virtude moral). Isto inclui levar em consideração
~é frito por uma razão
o ponto de vista de outras pessoas (o prudente é aquele que vê o que deve ser
la c:rc.). Isto assegura ao
feito não só para si, mas também para os outros) e, embora Aristóteles não
.,., quanto à análise do
o tenha feito explicitamente, nada impede, em certas circunstâncias, que este
IDIO. que não basta isso,
alargamento do ponto de vista moral englobe todo agente como racional. No
Ihiro de visar a um fim
entanto, é preciso reconhecer que a moral aristotélica encontra no espaço an-
i-Io (seguramente úteis,

Comentários I I6I
tagônico da deliberação a partir de fins já postos o momento privilegiado da mais plausível
justificação de nossas ações, pelo que difere grandemente da moral moderna, se que': "parec
para a qual as profundezas do coração constituem o reduto último da avaliação solidária de u
e justicação morais. A ética aristotélica é uma ética de exame e justificação do traduzir por "}
que fazemos; a ética moral cristã, e em grande parte a ética moderna, é uma para o vernácr
ética de silêncio e contrição sobre o que no fundo desejamos. certa artificial
llllb7 é manifestamente. Como ocorre freqüentemente em Aristóteles, bem, tanto 80.
<pUlVETaL indica algo que é manifesto, traduzido aqui por" é manifestamente". força maior 11d
Por outro lado, OOKEL pode introduzir uma opinião que, eventualmente, é contudo, é obs
modificada, corrigida ou rejeitada, o que ocorre sobretudo em contextos dia- para a ética na
léticos (nos quais uma boa tradução seria: "opina-se que"). No entanto, na EN é necessário qt
e especialmente neste terceiro livro, a maior parte dos casos de OOKEL indica menros sejam _
algo que parece, que é objeto razoável de afirmação, uma evidência que Aris- de modo generl
tóteles aceita como sua e que seria enganoso traduzir por "opina-se que", visto defensor do rru
que não introduz nenhum contexto dialético. Neste sentido, OOKEL figura gura no texto p
freqüentemente ao lado de EOlKE, como ocorre neste terceiro livro, que indica como um "opin
mais clara e fortemente um indício, uma evidência para sustentar uma posição evidências. Adc
independentemente de um contexto dialético (mas mais fraca que <PUlVETaL). Nicomaquéia nã_
Após os trabalhos de Burnet, passou a ser considerado moeda corrente que o tenha feito na É
método da ética é essencialmente um método dialético. Por método dialético inovador a evid,
deve-se entender um modo de prova que visa a preservar se não todas, pelo trar-se também
menos o maior número possível de opinião reputadas; a apresentação por lll1b9 os a
excelência deste modo encontra-se em EN VII 1, a respeito da prova por ser mais eficazment
oferecida no tocante ao problema da acrasia. O livro VII, porém, é um livro casos mais evide
comum e, se há sinais concordantes que os livros comuns procedem dialetica~ ilustra assim: 'pc
mente, assim como os demais livros da Ética Eudêmia (com os quais partilham llllbl0por
um mesmo ambiente conceitual), deve-se salientar que as passagens expressas a expressão KaTcJ
sobre o método na Ética Nicomaquéia não dão apoio a procedimentos dialéri- xão prévia que Cl
coso Ao contrário, tais passagens põem em relevo o problema de acribia das espaço todo que;
proposições práticas (ignorado ou pelo menos passado em silêncio na EE) e parte, porém, da
ignoram por inteiro questões de reputabilidade destas mesmas proposições. ação em uma dii
No tratado aqui traduzido, especialmente no livro III, há uma profusão de súbito pode serv
OOKEL, EOLKE e <palVETaL, o que pode indicar duas coisas distintas: (a) uma evento previsto oi
série cada vez mais plausível ou reputada de opiniões ou (b) uma série cada vez respeito à corager

I62 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


IDlIJlento privilegiado da mais plausível de evidências. No caso (a), uma tradução adequada seria "opina-
amte da moral moderna, se que': "parece bem que", "é manifesto que", respectivamente; esta série seria
aIuro último da avaliação solidária de uma discussão dialética da ética na EN. No caso (b), pode-se
Ie esame e justificação do traduzir por "parece que", "mostra-se que" e "é manifesto que': buscando verter
e a ética moderna, é uma para o vernáculo aqueles três graus de plausibilidade da evidência, ao preço de
Icscjamos. certa artificíalidade, contudo, pois, em (b), "parece" freqüentemente traduz, e
~te em Aristóteles, bem, tanto OOKEL como ÉOlKE, o terceiro termo, <palVETaL, introduzindo uma
lipor" é manifestamente", força maior na evidência que" é manifesto que" capta melhor. O importante,
lo que. eventualmente, é contudo, é observar que (b) não se compromete com uma discussão dialética
ROJdo em contextos dia- para a ética na EN; embora essas evidências possam ser opiniões ou ditos, não
cpej.Noentanto, naEN é necessário que o sejam, tampouco é necessário que as premissas dos argu-
lIos casos de OOKEL indica mentos sejam Ev8oça, opiniões reputadas, ou que os argumentos procedam
~uma evidência que Aris- de modo generoso, buscando salvar o maior número possível de opiniões. Um
ir por ..opina-se que", visto defensor do método dialético inclusive na EN deve supor que um "parece" fi~
::IR sentido, 80KEL figura gura no texto porque uma opinião o sustenta e pode, neste sentido, entendê-lo
It meeiro livro, que indica como um "opina-se que". Penso, porém, que se trata de uma busca genuína de
8Cl sustentar uma posição evidências. Adotei (b), por conseguinte, considerando que o método na Ética
mais fraca que <pai VETaL ). Nicomaquéia não se compromete com um procedimento dialético (embora o
:ado moeda corrente que o tenha feito na Ética Eudêmia), recorrendo, ao contrário, de modo consistente e
Iiro. Por método dialético inovador a evidências, como atitudes e reações, entre as quais podem encon-
acrvar se não todas, pelo trar-se também opiniões, mas às quais elas não se reduzem.
ada.s; a apresentação por llllb9 os atos súbitos. Aristóteles introduz os atos súbitos para contrastar
..RSpcito da prova por ser mais eficazmente o voluntário (gênero) com a escolha deliberada (espécie). Os
10 VII, porém, é um livro casos mais evidentes de atos súbitos são os atos feitos por impulso; Aspásio os
..-os procedem dialetica- ilustra assim: "por exemplo, as ações feitas subitamente por impulso" (67, 10) .
.. (oom os quais partilham 11l1bl0 por escolha deliberada. O que os atos súbitos não podem satisfazer:
p as passagens expressas a expressão KaTà TIpoalpE<JLV acentua a dilatação temporal envolvida na reíle-
p a procedimentos dialéri- xão prévia que culmina em uma ação; no caso dos atos súbitos, a ação toma o
.. problema de acribia das espaço todo que a deliberação poderia em parte ocupar. Os atos súbitos fazem
., em silêncio na EE) e parte, porém, da virtude moral, pois esta é uma disposição que condiciona a
111» mesmas proposições. ação em uma direção em detrimento de seu oposto. Ocasionalmente, o ato
111 m. há uma profusão de súbito pode servir de revelador do caráter de uma agente mais do que um
• 0Jisas distintas: (a) uma evento previsto ou um ato premeditado; o próprio Aristóteles observa que, com
~CIIl (b) uma série cada vez respeito à coragem, soldados profissionais e pessoas que contaram com muita

Comentários I I63
sorte em casos anteriores podem agir de modo aparentemente corajoso em situa-
como dirá mais ad.i3
ções previstas, mas, em casos súbitos de perigo, revelam-se bem menos corajosos
estão em oposição, D
do que os cidadãos que, nas mesmas situações, demonstram uma coragem tão
de provar o que é d.
inaudita quanto despreparada e não premeditada (III 111117a17~22).
- 47b5). Adoto o te
ll11bll querer. Terceiro tipo de desejo, a ~oúÀTJ<JLS é exclusiva aos homens, dá preferência a K" (
pois somente um ser racional reflexivo pode tomar interesse por seus objetos,
apetite não se opõe ai
como ser imortal. Animais agem por impulso ou apetite, mas somente os
llllb18 minima
homens agem também por ~OÚÀTJ<JlS. Um homem reage contra um insulto
atos realizados por im
por impulso, ou se deleita com uma torta de chocolate por apetite, mas o que
no mais alto grau". A
o faz assistir a uma longa tragédia é a ~OÚÀTJ<JlS", o querer. Como tipo de de- caso do impulso do q
sejo, pertence à parte não-racional da alma, que pode, porém, ouvir a razão,
escolha deliberada, m
à qual se contrapõe a razão deliberativa, que constitui a parte racional prática casos evidentes de ate
que opera sobre todos os três tipos de desejo (impulso, apetite e querer). Pa- escolha deliberada. At
leograficamente, ~OÚÀTJ<JlS é não raramente confundida nos manuscritos com
súbitos, e nesta medid
~OÚÀE1J<JlS, deliberação, o que não é sem conseqüências para a interpretação.
de encolerizar-se, que.
lll1b15·16 não é ao apetite que o apetite se opõe. Aspásio observa que isto próprio impulso. Qua
é objeto de contestação, pois alguém pode ter o apetite de tomar os bens de
pelo menos aos olhos
outro e envergonhar-se disto por apetite da honra. A solução de Aspásio con-
mente por impulso, m
siste em ressaltar que o ponto é que a boa escolha deliberada é sempre oposta
precisamente a reflexã
ao mau impulso, enquanto o impulso pelos bens e aquele da honra não são
11l1b20 afim. Lin
sempre contrários, introduzindo conseqüentemente uma nota adverbial no
para esta proximidade
resumo da tese: "é dito então corretamente que o impulso nem sempre é
é a parte diretora da ~
oposto ao impulso", EUÀÓyWS"ouv ÀÉyETaL, TO µ~ ELVaL ElTl8UµlGV <lEI. liberada. Ele explica (b
EvaVTlOV ElTl9UµLÇl (68,15~16). Tomás de Aquino oferece outra explicação:
ter deliberado, o quere
apetite e escolha deliberada são opostos no continente e no incontinente, no baseia-se em III 5 111
sentido que o primeiro escolhe pela razão o oposto do que o segundo deseja
YÓµE9a KGTà T~V 1301
por apetite, mas o apetite de um não está oposto ao do outro, pois ambos têm
desejamos segundo o (
o mesmo objeto, a saber: o prazer dos sentidos. Isto não equivale a afirmar
outra versão, que se cor
que um apetite não possa ser oposto a outro apetite; Tomás de Aquino dá
do que foi deliberado,d
como exemplo de contrariedade entre apetites o apetite de movimento e o de
Aristóteles não está di
repouso em um mesmo homem. A explicação de Tomás de Aquino indica a
ação por um querer, COI

solução, na medida em que enfatiza que é no quadro da análise do acrático e


ao querer, mas que, qu
da continência que Aristóteles afirma que um apetite não se opõe ao outro, apetite, os três tipos de
sem afirmar por isso que nunca tal oposição ocorre alhures. No caso da acrasia,
deliberação, realizando

I64 I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8


~rorajoso em situa- como dirá mais adiante Aristóteles, não são os apetites (ai Em9uµlaL) que
mmenos cor:yosos estão em oposição, mas um apetite se opõe a uma decisão (a saber, o desejo
11 urna coragem tão de provar o que é doce e a decisão de não provar tal coisa: VII 5 1147a35
17al7~22). - 47b5). Adoto o texto dos mss., seguido por Bekker e Susemihl: Bywarer
dusiva aos homens, b
dá preferência a K (assim Aspásio 68,5) e lê Em9uµia o' Em9uµlÇl ou, "o
Ie por seus objetos, apetite não se opõe ao apetite".
~ mas somente os ll11b18 minimamente. Daqui Burnet conclui que "cada um pode ver que
contra um insulto atos realizados por impulso são <lrrpOUlpETa <não escolhidos por deliberação>
~apetite, mas o que no mais alto grau'. A conclusão é, porém, excessiva; é ainda mais evidente no
~Como tipo de de- caso do impulso do que no do apetite que não devem ser confundidos com a
rân, ouvir a razão, escolha deliberada, muito provavelmente porque certos atos por impulso são
trtt racional prática casos evidentes de atos súbitos, mas nem todo ato por impulso é privado de
lCIÍte e querer). Pa- escolha deliberada. Atos súbitos são <lrrpOaLpETa; atos por impulso podem ser
• manuscritos com súbitos, e nesta medida são privados de reflexão; há, porém, um modo correto
lIr.l a interpretação. de encolerizar-se, que justamente supõe a intervenção da razão no interior do
ia observa que isto próprio impulso. Quando Agamêmnon retira publicamente (e injustamente,
Ie tomar os bens de pelo menos aos olhos de Aquiles) a escrava Briseida, Aquiles reage violenta-
~ de Aspásio con- mente por impulso, mas não sem reflexão (a intervenção de Atena simboliza
:ada é sempre oposta precisamente a reflexão).
Ie da honra não são ll11b20 afim. Literalmente: "bem próximo". Aspásio fornece duas razões
• nota adverbial no para esta proximidade: (a) o querer é o desejo da parte racional da alma, que
DIso nem sempre é é a parte diretora da escolha deliberada, e (b) o querer é parte da escolha de-
IIUL E1TL9uµlaV <lEI. liberada. Ele explica (b) argumentando que, quando o intelecto escolhe após
l[Ie outra explicação: ter deliberado, o querer, que é um desejo, lança-se à ação (68,29~30). Aspásio
IDO incontinente, no baseia-se em In 5 1113all~12 EK TOU ~OUÀ.EíxJQ<J9m yàp KpivavTES OPE-
1ft o segundo deseja yÓµE9a KaTà T~V ~OÚÀ.ll<JlV, "pois, julgando a partir do que foi deliberado,
aro. pois ambos têm desejamos segundo o querer" (75,1O~11), mas, como ele mesmo observa, há
.. equivale a afirmar outra versão, que se conclui por KaTà T~V ~OÚÀ.EU<JLV,"pois, julgando a partir
laW de Aquino dá do que foi deliberado, desejamos segundo a deliberação". Nesta segunda versão,
Ie movimento e o de Aristóteles não está dizendo que, mediante deliberação, o agente lança-se à
Ide Aquino indica a ação por um querer, como se a escolha deliberada fosse interna (unicamente)
lOálise do acrático e ao querer, mas que, qualquer que tenha sido seu desejo (querer, impulso ou
ÍD se opõe ao outro, apetite, os três tipos de desejo), o homem, tendo deliberado, age segundo sua
I.No caso da acrasia, deliberação, realizando (ou não) o objeto de seu desejo. Esta segunda versão

Comentários I I6S
é a adotada pelo editores modernos (exceto Gaurhier). Tomás de Aquino, de é ele próprio passioa
sua parte, retoma (a) introduzindo diretamente sua tese sobre a vontade: esco- interna, que fraque;
lha deliberada e querer são próximos porque pertencem ambos a um mesmo dos atos provocados
poder, a faculdade racional desiderativa ou vontade, voluntas. Quando a von- evitar de os ter, poá
tade se dirige ao bem sem outra qualificação, trata-se do querer; quando está não se trata de perm
ordenada a um bem preciso, então é escolha deliberada. O objeto de escolha a cada emoção o pon
deliberada passa a ser então adotado, no fim da deliberação, como objeto do As paixões devem se
querer. Comentando 1113all~ 12, Tomás de Aquino (que lê secundum consdium, razão, elas não deva:
o que supõe KaTà T~V ~OÚÀT)<JLV) volta a afirmar que a escolha deliberada é um aqui distinguir clara
ato da vontade. Se tomarmos por vontade o desejo procedente da apreensão qual se liga Tomás, ~
de um objeto segundo o livre juízo (PIP< 26 al), i.e., a condição de apreensão escolha deliberada Cf
bipolar do desejo humano (que pode ser do sim e do não), trata-se aqui de um no qual há (a) os três 1

ajuste salutar de vocabulário, pois a escolha deliberada pertence ao gênero do todos à parte não~rac
voluntário, que satisfaz o critério do princípio intrínseco porque, à sua base, que está localizada n
está a condição maior de agência racional - ser bipolar - e, neste sentido, a prática, e que opera SI

escolha deliberada é um ato da vontade (em outros termos: trata-se de uma parece ser o propriam
doutrina da vontade em Aristóteles que se desdobra nas doutrinas do volun- llllb22 mas há ~
tário, dos tipos de desejo e da escolha deliberada a partir dos fins estabelecidos fornecem o texto dos I

pelo desejo). Ocorre, contudo, que Tomás de Aquino toma por voluntas a Boú- Contributions, Oxford 1
ÀT)<JLS', em oposição aos dois outros tipos de desejo, conforme uma tradução impossíveis. Bywater arg
bem estabelecida Uá presente em Cícero, Tusc. IV 612) e seguindo aqui duas modo todo objeto do c
tradições distintas do aristotelismo (a patrística e o estoicismo); neste sentido, Ethica Eudemia o inrroc
a restrição proposta da escolha deliberada a um só tipo de desejo parece estar (I 171189a6). Aspásiol
além do que exige Aristóteles. A proximidade entre querer e escolha deliberada entanto, se a passagem
consistiria no fato que a escolha deliberada só ocorre no interior do querer, à frase há querer de objetes
exclusão dos dois outros tipos de desejo. Porém, a proximidade entre querer e sejam impossíveis (o qt
escolha deliberada é afirmada aqui a partir de algo aceito por todos, à base de alguns deles podem sei
uma evidência, a saber, que ambos requerem em algum sentido a razão, sem 1111b24 um ator. I
que, no entanto, Aristóteles esteja pressupondo que a escolha deliberada só curso, mas isso não dq
ocorra no interior do querer, à exclusão do impulso e do apetite. Com efeito, mente envolvido no cor:
para Aristóteles há igualmente um modo correto para ter apetite de objetos e 1111b26·27Admu
encolerizar-se ante certos atos, o que supõe uma atividade racional de escolha rada concerne ao que conde
deliberada também no interior destes dois tipos de desejo. Na perspectiva to- para sua tese que a escol
mista, deve-se dizer que o ato de deixar-se conduzir ou não pelas paixões não que se tome como sube

I66 I Ethica Nicomachea I 13 .m 8


lãmás de Aquino, de é ele próprio passional, mas provém da voluntas, ~OÚÀT]<JlS, com sua deliberação
~ a vontade: esco- interna, que fraqueja diante das emoções, e nesta medida somos responsáveis
iambos a um mesmo dos atos provocados por impulso e apetite (pois, por outro lado, não podemos
.. Quando a von- evitar de os ter, pois somos de natureza mortal). Para Aristóteles, contudo,
~querer; quando está não se trata de permanecer imune ou resistente às emoções, mas de encontrar
~O objeto de escolha a cada emoção o ponto correto, determinado racionalmente, de sua realização.
~, como objeto do As paixões devem ser realizadas segundo uma justa medida, que é obtida pela
~1ê5tCUndum consilium, razão, elas não devem ser impedidas ou meramente toleradas. É importante
lPJIha deliberada é um aqui distinguir claramente dois esquemas. De um lado, há o esquema (i) ao
~te da apreensão qual se liga Tomás, a saber: (a) desejos não-racionais e (b) desejo racional, a
iandição de apreensão escolha deliberada operando no interior de (b). De outro, há o esquema (ii)
~).trara-se aqui de um no qual há (a) os três tipos de desejo (impulso, apetite, querer), que pertencem
penmce ao gênero do todos à parte não-racional que pode ouvir a razão, e (b) a escolha deliberada,
bo porque, à sua base, que está localizada na parte racional, mais precisamente: na parte racional
, - e. neste sentido, a prática, e que opera sobre os três tipos de desejo. Este segundo esquema me
lIDOS: trata-se de uma parece ser o propriamente aristotélico.

• doutrinas do volun- lll1b22 mas há querer de objetos impossíveis. Sigo Bekker e Susemihl, que
rdos fins estabelecidos fornecem o texto dos manuscritos; Bywater acrescenta um também <Kal> (cf.
lIDa por voluntas a ~oú- Contributions, Oxford 1892, ad loc.), o que dá: mas o querer também é de objetos
atônne uma tradução impossíveis. Bywater argumenta que não só o argumento o requer (pois de outro
t e seguindo aqui duas modo todo objeto do querer seria inane), como também a versão paralela da
~); neste sentido, Ethica Eudemia o introduz (EE II 10 1225b33), bem como a da Magna Mora/ia
.de desejo parece estar (1 17 1189a6). Aspásio igualmente o acrescentou em seu comentário (69,5). No
la' e escolha deliberada entanto, se a passagem for lida com E<JTlV no sentido de ser possível, então da
lo interior do querer, à frase há querer de objetos impossíveis não decorre que todos os objetos do querer
-.udade entre querer e sejam impossíveis (o que obrigaria a introduzir o também), mas somente que
io por todos, à base de alguns deles podem ser ou o são.

• sentido a razão, sem l111b24 um ator. Posso querer que um atleta ou um ator vença seu con-
~esroIha deliberada só curso, mas isso não depende de mim, e sim do ator ou atleta que está direta-
!lo ~tite. Com efeito, mente envolvido no concurso.

... apetite de objetos e lll1b26~27Ademais, o querer diz respeito sobretudo aofim, mas a escolha delibe~
~ racional de escolha rada concerne ao que conduz aofim. Gauthier tentou encontrar aqui apoio textual
.. Na perspectiva to- para sua tese que a escolha deliberada diz respeito também aos fins, propondo

• não pelas paixões não que se tome como subentendido na segunda oração o µâÀÀov ("sobretudo")

Comentários I I67
da primeira, de modo que se leia nesta passagem que o querer concerne so-
escolha deliberada ao cpII
bretudo ao fim, ao passo que a escolha deliberada diz respeito sobretudo (mas
relação com o que está a
não exclusivamente) aos meios (ele segue assim a tradução proposta no iní-
llllb30-31 T~
cio do séc. XIX por Thurot: ..dailleurs, un vceux ou un souhait se rapporte
menciona agora um 'JIUI
plutôt à la fin, tandis que, dans le choix ou la préíérence, on a plutôt en vue
que o tenha introd~
les moyens"). Isto não é gramaticalmente impossível, mas é filosoficamente
candidatos plausíveis ~
pouco provável. Na passagem correspondente da Ethica Eudemia (à qual, aliás,
mente, umaópEçLS &..
Gauthier remete), Aristóteles escreve que o querer e a opinião dizem respeito so-
pouco provável como rmi
bretudo ao fim, "mas a escolha deliberada não diz respeito ao fim: lTpoalPE<JLS8'
afirma que ninguém ~
ouc E<Jnv (EE II 10 1226a17; a mesma negação será feita na Ethica Nicomachea,
opinião (1111b34~12a1) ••
em III 5 1112bll~12). No mesmo diapasão, Aspásio fornece como texto de
Aristóteles ~ µEV ~OÚÀll<JLSTOU TÉÀOSE<JTlV,~ OE rrpocípeotc TWVrrpos cio escolar de refutação. N
TO TÉÀOS (69,1O~11), ignorando o µâÀÀov da primeira oração. Na paráfrase Platão retoma a tese soa:i

anônima, lê-se ~ µEV ~OÚÀll<JLSTOU TÉÀOUSE<JTlVàEl, ~ OE rrponípeots sabedoria (88c); para jusà
"o querer diz respeito sempre ao fim, a escolha
TWVrrpos TO TÉÀOS<PEpÓVTWV, homem que vai a Larissz:
deliberada aos meios referentes ao fim' (45,35-36), o que também não presta como também "por uma I
, , I 0"lIIII
apoio a Gaurhier, pois, se devêssemos ler o termo da primeira oração suben- ... µ11ElTLaTaµEVOS, 71 I
tendido na segunda, teríamos então de ler que o querer concerne sempre ao do saber, a reta opinião ,
fim e a escolha deliberada sempre aos meios. Stewart, por sua vez, prefere virtuosa; há, porém, uma~
fazer µâÀÀov governar a proposição inteira, sob o pretexto que, apesar de Platão não deixa de re:saII
Aristóteles, na Ethica Eudemia, caracterizar o querer como sobretudo do fim, opinião é volúvel, podmd.
na Ethica Nicomachea ele tem uma noção bem precisa do querer, que se vê li- favor divino; mais ainda..
mitado agora unicamente ao fim, como fica evidente na frase que abre III 6 e estabelecida entre opinUD
resume o argumento precedente (1113a15: "foi dito que o querer concerne ao havendo entre ambas um.
fim'). Conseqüentemente, Stewart propõe como tradução algo do tipo: "ade- não quer identificar o bc.
mais, é mais <µâÀÀov> correto dizer que queremos o fim e que escolhemos opinião), mas haveria. CDI
os meios". Deve-se observar, no entanto, que a tese de Aristóteles não precisa escolha deliberada podo:iI
limitar o querer ao fim, pois basta salientar que é sobretudo do fim, o que já mero sucedâneo do sahcr;.:
o distingue da escolha deliberada; por outro lado, é conveniente não limitar o
que é unicamente o sabee,
querer ao fim, pois pode ser também de um meio, na medida em que, sendo
da opinião ao mesmo tmII
primeiramente de um fim, torna-se, por intervenção da deliberação, querer do
mente a escolha deliberaiL
meio que realiza o fim. Quem quer os fins quer os meios que reconhece como
modo considerar como CI:
adequados para realizar os fins.
rada, introduzindo uma cp
ll11b29~30Em suma, pois, a escolha deliberada parece dizer respeito àquelas
Aristóteles freqüentetncm
coisas que estão em nosso poder. Contrariamente à expectativa de assimilação da
é a, determina certo IllÍIm

I68 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


~ concerne so- escolha deliberada ao querer, Aristóteles quer apreendê-la pondo-a em estreita
im sobretudo (mas relação com o que está em nosso poder ou ao nosso alcance, Tà E<P'~µLV.
! proposta no iní- lll1b30-31 Tampouco é uma opinião. Após os três primeiros, Aristóteles
abait se rapporte menciona agora um quarto e último candidato: a opinião. Pode-se estranhar
IDa plutôt en vue que o tenha introduzido, pois (a) os três primeiros eram tipos de desejo, e são
~ filosoficamente candidatos plausíveis porque a escolha deliberada é um desejo (mais precisa-
_ (à qual, aliás,
mente, uma OpEÇlS owvoT}TlKTÍ), mas a opinião não é um desejo, que a torna
~ respeito so-
pouco provável como mais um candidato; além disso, (b) o próprio Aristóteles
Di. npooíoeots o'
I afirma que ninguém identifica a escolha deliberada à opinião, tampouco a certa
~ Nicomachea,
opinião (1111b34~12a1),o que parece fazer de tal candidatura um mero exerci-
~ como texto de
cio escolar de refutação. No entanto, talvez o ponto tenha interesse. No Mênon,
~<JlS TWV TIpOs-
Platão retoma a tese socrática forte, segundo a qual a virtude é ela própria uma
Içáo. Na paráfrase
sabedoria (88c); para justificar uma restrição a esta tese, ele cita o exemplo do
li bE TTpOUlpE<JlS
homem que vai a Larissa: não só pode ele ir a Larissa conhecendo o caminho,
Ir ~ fim, a escolha
como também "por uma conjectura exata, mas sem saber" (op9Ws' ooçú(wv
iImbém não presta
!ma oração suben- ... µ~ ElTl<JTÚµEVOS, 97b). O objetivo de Platão consiste em introduzir, além
~esempreao do saber, a reta opinião (op9~ oóÇa) como também podendo dirigir a ação
br- sua vez, prefere virtuosa; há, porém, uma diferença considerável entre reta opinião e saber, que
Im que, apesar de Platão não deixa de ressaltar já no Mênon: enquanto o saber é fixo, definitivo, a
isobretudo do fim, opinião é volúvel,podendo sempre ser perdida, dependendo, no fundo, de um
perer, que se vê [i- favor divino; mais ainda, no Teeteto, Platão mostra que a relação comumente
Iase que abre III 6 e estabelecida entre opinião reta e saber é uma mera similaridade de resultados,
lpIerer concerne ao havendo entre ambas um fosso epistemológico intransponível. De fato, Platão
.aJgo do tipo: "ade- não quer identificar o bem agir a agir segundo uma opinião (no caso, a reta
I e que escolhemos opinião), mas haveria, com base nessa argumentação, um sentido em que a
lIixeles não precisa escolha deliberada poderia ser uma opinião, a saber, aquele em que seria um
do do fim, o que já mero sucedâneo do saber, sem ser, no entanto, causa própria do ato virtuoso,
lIimte não limitar o que é unicamente o saber. Por esta razão Aristóteles menciona a candidatura
!lida em que, sendo da opinião ao mesmo tempo em que assinala que ninguém identifica própria-
liberação,querer do mente a escolha deliberada à opinião ou a um tipo de opinião: ele pode deste
PIle reconhece como modo considerar como exaustiva a sua lista de candidatos à escolha delíbe-
rada, introduzindo uma quarta candidatura, fraca, mas, no limite, admissível.
Jizp respeito àquelas Aristóteles freqüentemente argumenta do seguinte modo: para saber o que
la de assimilação da é a, determina certo número de membros e elimina aqueles que não podem

Comentários I I69
corresponder até ficar com aquele que é o bom candidato; para tanto, precisa rações morais. O lOU!
assegurar~se que a lista é exaustiva, pois se pode sempre objetar a este tipo de à retitude da boa ddi
argumentação que há outro candidato que não foi posto à prova. prime a correta relaç
lll1b34 Talvez, no entanto, ninguém declare. Tomo µEV ow em um sentido dos meios a respeito cl
corretivo, usado raramente na prosa, mas pelo qual, nas palavras de Denniston, deliberação a respeito
"the speaker objects to his own words, virtually carrying on a dialogue with em VIla 1142b22: a
himself" (p. 478). Outro caso deste uso, fornecido por Denniston, é Rhet. II retítude "que obtém 1

231399a15. se trata de examinar ,


1112a3A obter, evitar ou algo semelhante. Mantenho ~, com Bekker, Suse- somente de distinguir
mihl e a maioria dos editores, contra Bywater, que propõe sua excisâo, baseado fato que a escolha dei
em K Aristóteles sugere que os termos envolvidos na escolha deliberada se-
b• e mesmo mais do que
jam do mesmo campo semântico de obter ou evitar, sem precisar sustentar que enquanto a opinião é.
se reduzem a estes dois únicos termos; isto basta para o que quer estabelecer referência. Ao contr.iÍI
aqui. Se ~ for eliminado, então Tl TWV TOlO1rrWV relere-se aos bens e males fim, para o qual busca
que procuramos obter ou evitar por escolha deliberada. pode ser correta em li

1112a5 mas de modo a~um opinamos. Como observa Stewart, lTávu inten- Fosse avaliada merana
sifica a partícula negativa ou, assim como em 1112a8. da opinião, cujo elogio
1112a6 mais do que pelo fato de ser reta. Pode parecer surpreendente que escolha deliberada é ta
Aristóteles afirme que a escolha deliberada é louvada mais por ter um fim para o qual busca a a.:
moralmente bom do que por apresentar uma correta relação entre meios e fins mos em geral, com eki
(que pode se realizar igualmente com um fim moralmente reprovável). Como que delibera bem soba
Aspásio não tem este apêndice (70, 2), Rackham decidiu retirá-lo do texto, 1112al0-11 eswI.
tomando-o por uma glosa ajuntada posteriormente, apesar de bem atestada. lhem" é alpEL<J8m, escaI
Pode-se também mantê-lo e interpretá-lo diferentemente, a saber, tomando mente matizar, quando
~ por ~TOl e ler algo como "ou, em outros termos, por ser correta", como reflexivo, daí surgindo:
sugerem Ramsauer ("particulam ~ non quam sed aut"), Srewart, Dirlmeier 1112all-12 se fDIIIII

e Gauthier (que prefere, contudo, seguir Rackham). No entanto, pode-se observa Stewart, a toe,

argumentar a favor de sua manutenção no texto, na tradução proposta, mos- panha) a escolha ddma
trando que, segundo Aristóteles, embora a escolha deliberada seja examinada 10 1226b9 EK o~TJS fia
primeiramente em relação à retitude dos meios para a obtenção de um dado provém de uma opiniã
fim, a boa deliberação (no sentido moral de "boa") depende igualmente da opinião precede ou aa:II

qualidade moral do fim: uma deliberação correta a respeito dos meios, cujo mente se pode ser ida.i
fim é, porém, moralmente reprovável, não constitui um caso de prudência, está envolvida com as Gf
mas de rrcvoupví« (VI 13 1144a27), a engenhosidade desligada de conside- nossas opiniões, não pa

I70 I Ethica Nicomachea I 13 • /lI 8


la tanto, precisa rações morais. O louvor é basicamente moral, e isso explica porque o louvor
lar a este tipo de à retitude da boa deliberação, embora comporte dois elementos (um que ex-
luva. prime a correta relação dos meios ao fim, o outro o fato de ser deliberação
, em um sentido dos meios a respeito do fim que é bom), dirige-se especialmente ao fato de ser
IS de Denniston, deliberação a respeito do fim que é bom (o mesmo ponto é posto em relevo
la dialogue with em VI 10 1142b22: a boa deliberação contém a retitude dos meios, mas é a
jusron, é Rhet. II retitude "que obtém um bem", ~ àya90u TEUKTlKf]). Nesta passagem, não
se trata de examinar a dupla correção que constitui a boa deliberação, mas

11 Bekker, Suse- somente de distinguir a escolha deliberada da opinião pondo em evidência o


l~o, baseado fato que a escolha deliberada é igualmente louvada por ter um fim correto,
I.a deliberada se- e mesmo mais do que por ser ela própria uma reta determinação dos meios,
IH sustentar que enquanto a opinião é elogiada por ser verdadeira, sem ter estes dois pólos de

iquer estabelecer referência. Ao contrário, a escolha deliberada tem dois pólos de análise: o

lOS bens e males fim, para o qual busca os meios, e a proporção dos meios em vista do fim. Ela
pode ser correta em relação à proporção dos meios, mas não quanto ao fim.

~ lTávu inten- Fosse avaliada meramente em termos desta proporção, estaria mais próxima
da opinião, cujo elogio se reporta unicamente à verdade; ocorre, porém, que a
irpreendente que escolha deliberada é também e mesmo sobretudo avaliada em função do fim,

~por ter um fim para o qual busca a correta proporção e pela qual é também avaliada: preteri-
Jm[I'e meios e fins mos em geral, com efeito, alguém que delibera mal sobre fins bons a alguém

~vel).Como que delibera bem sobre fins maus.


~~lo do texto, 1112al0·11 escolhem por vício as coisas que não devem. O termo para "esco-
de bem atestada. lhem" é aLpEL<J9m, escolher, buscar, termo que justamente Aristóteles quer forte~

l saber, tomando mente matizar, quando o adota em sua ética, pondo em evidência o elemento

~ correta", como reflexivo, daí surgindo a noção de TTpompEL<J9aL, escolher por deliberação.

Icwart, Dirlmeier 1112all~ 12 se uma opinião precede ou acompanha a escolha deliberada. Como
mranto, pode-se observa Stewart, a tese de Aristóteles é que a opinião precede (e então acom-

lo proposta, mos- panha) a escolha deliberada, embora não possa ser identificada a ela (cf. EE II

la seja examinada 10 1226b9 EX oóÇTlS ~OUÀEUTlKi]S E<JTLV ~ rrponipeotç, "a escolha deliberada
~deumdado provém de uma opinião deliberativa"]. É, porém, irrelevante saber aqui se a
lIe igualmente da opinião precede ou acompanha a escolha deliberada, pois queremos saber so-

b dos meios, cujo mente se pode ser identificada a ela. No aristotelismo, a ação necessariamente

110 de prudência, está envolvida com as opiniões que o agente tem; se suspendêssemos todas as

ligada de conside- nossas opiniões, não poderíamos agir.

Comentários I I7I
1112a15 Seria então. As partículas em questão (àÀ.À' àpa yE) levam a
pensar que se trata de um pis aller, candidato aceito por falta de outro melhor aristocrático, recorn.llll
(o mesmo ocorre a respeito do candidato para a unidade de significação de dos chefes que t~
bem em I 4 1096b27). A razão disto será explicitada no capítulo seguinte,
III 5 1113a3~4: o objeto de escolha deliberada inclui seguramente a delibe- ver o povo como
ração, mas é uma deliberação já concluída ou determinada. Há uma relação como inteiramente
obviamente íntima entre deliberação e escolha deliberada, mas elas não se
identificam: enquanto a deliberação é um tipo de investigação que "ainda não
é uma asserção", OVTTW <pá<JLS (IV 10 1142b13), a escolha deliberada justa- (44) ou julgar os
mente envolve necessariamente o reconhecimento cognitivo do conteúdo de tinha a decisão final ldI
uma asserção, o que pode ser realizado tanto pela afirmação da conclusão 45.4), pois devia ~
que termina a deliberação quanto pela ação que ela exprime. O ponto é que a 8~µov), que, por sua ..
escolha deliberada acrescenta à investigação (deliberativa) o acatamento sub- era a consideração práiI
jetivo ou assentimento que esta não comporta; por esta razão a identificação cisão final dependia ..

ti~
proposta aqui ainda é provisória. J. Rhodes, A Co~
1112a15 o que é decidido preliminarmente. Em V 10 1135b10~11 Aristóteles sobre 45.4, assim COOIDJ
utiliza o verbo lTpO~OUÀEÚW no sentido de deliberar previamente, premeditar, 1912, 2ed.). A assembIii
acentuando o sentido temporal envolvido no TTpÓ de TTPO~E~OUÀEVµÉVOV. a menos que ela
Aqui, ao contrário, o rrpó indica menos o aspecto temporal e mais a preferên- selho, A discussão ao.
cia atribuída a algo entre outras coisas. Isto é posto em relevo pela explicação político ateniense de u.
introduzida a seguir: a escolha deliberada é acompanhada de razão e pensa~ terminar por privi1egi.
mento, µETà ÀÓyou KGl owvoLaSi no lugar de uma referência a um tempo pública, pois recorre aGI

prévio de discussão, Aristóteles põe em relevo a presença da razão e de um marca de um aristocra


processo de escolha, o que certamente implica a anterioridade temporal em pode-se alegar que AriI
relação ao ato, mas não se resolve nela. Convém assinalar que lTpO~OUÀEÚW propriedade da escolha~
designa particularmente o ato de redigir um projeto de decreto pelo Conselho tando imediatamente (.
dos Quinhentos, decreto que será, então, submetido à ratificação da Assem- que é o processo de u.
bléia. Há, assim, algo que é previamente decidido, o que faz alusão ao sentido conselhos homéricos do
temporal, mas, sobretudo, há algo que foi decidido ou determinado (entre ao lTpO~OÚÀEUµG o assa
várias possibilidades, há uma somente que será apresentada à ratificação), não é o caso dos consel
o que faz alusão antes ao processo de dar preferência a algo em detrimento que já estava plenamerss
de outras possibilidades. De qualquer modo, o tom político da discussão 1112a16 acompanl.
certamente está presente por trás de sua análise filosófica. Mais adiante, em ambos os termos marca
III 5 1113a2~9,Aristóteles volta a discutir a íntima relação entre deliberação sobre circunstâncias e _

I72 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


r àpa yE) levam a e escolha deliberada, mas, então, ele ilustra a relação com um exemplo bem
~ de outro melhor aristocrático, recorrendo a Homero, que pôs em versos os conselhos antigos
~de significação de dos chefes que tomavam decisões que depois eram anunciadas ao povo, ao qual
• capítulo seguinte, competia unicamente executá-las. No caso presente, a ratificação não permite
,_-amente a delíbe- ver o povo como mero executor da decisão já tomada, tampouco a decisão
la. Há uma relação como inteiramente determinada; ao contrário, como o próprio Aristóteles
la. mas elas não se assinala na Constituição de Atenas, o Conselho possuía diferentes atribuições,
jIÇáo que "ainda não como determinar preliminarmente os comandos militares mais importantes
la deliberada jusca- (44) ou julgar os casos referentes a magistrados (45), mas o Conselho não
~ do conteúdo de tinha a decisão final (ele era aKupos, sem autoridade, sobre estes assuntos:
~o da conclusão 45.4), pois devia reportá-los à assembléia (45:4: lTpO~OUÀEÚEl o' ELs TOV

.. O ponto é que a oí'jµov), que, por sua vez, votava definitivamente o ponto. A lTpO~OÚÀEUOLS
t o acatamento sub- era a consideração prévia por um conselho menor sobre um ponto cuja de-
mo a identificação cisão final dependia da votação por um corpo maior (ver especialmente P.
J. Rhodes, A Commentary on the Aristotelian Athenaion Politeia, Oxford 1981,
15b10~11 Aristóteles sobre 45.4, assim como John Sandys, Aristotle's Constitution of Athens, London
IIIJIeIlte, premeditar, 1912, 2ed.). A assembléia, porém, não podia manifestar-se sobre uma questão
q»oPEj30UÀEUµÉVOV. a menos que ela tivesse sido previamente considerada e deliberada pelo Con-
.... e mais a preferên~ selho. A discussão aristotélica da deliberação nutre-se seguramente do fato
~ pela explicação político ateniense de tomar decisões por deliberação, mas Aristóteles parece
lia de razão e pensa~ terminar por privilegiar uma figura antiga (e muito modesta) de discussão
~aumtempo pública, pois recorre aos conselhos dos tempos homéricos. Talvez isto seja
;a da razão e de um marca de um aristocratismo (e mesmo palaciano); em sua defesa, contudo,
ridade temporal em pode-se alegar que Aristóteles está preocupado unicamente em salientar a
J- que lTpO~OUÀEÚW propriedade da escolha deliberada de ser já determinada ou completa, resul-
lDttO pelo Conselho tando imediatamente (se nada impede) na ação, ao contrário da deliberação,
.;f.cação da Assem- que é o processo de tomada de decisão, e isto é mais bem ilustrado pelos
~ alusão ao sentido conselhos homéricos do que pelas assembléias atenienses. Com efeito, falta
I dttaminado (entre ao lTpO~oúÀEuµa o assentimento que somente a assembléia pode dar, o que
~ à ratificação), não é o caso dos conselhos antigos, pois ao povo cabia somente executar o
f:algo em detrimento que já estava plenamente decidido.
.mnco da discussão 1112a16 acompanhada de pensamento e reflexão. Stewart observou que
CI- Mais adiante, em ambos os termos marcam um processo (associação de idéias, consideração
;io entre deliberação sobre circunstâncias e sobre as possibilidades de ação etc.), distinto do ato

Comentários I I73
que conclui o processo. Sua proposta de tradução é elegante: "choise implies
reasoning, and a process of thought".
1112a17 ao que é escolhido antes que outras coisas. A preposição rrpó tem
primeiramente o sentido de "antes" (no espaço ou no tempo), mas logo de-
senvolveu o sentido lógico de "ao invés de", "de preferência á', justamente Neste capítulo. Ali
quando governa o genitivo, como é o caso aqui. Stewart, Joachim, Dirlmeier expressamente sua taIt

e Gauthier entendem o TTpÓ no sentido de precedência temporal: a anterio- fins, jamais sobre os p
ridade cronológica na escolha deliberada se manifestaria pelo fato que algo geral sobre o objeto de
é escolhido antes de outra coisa, por exemplo: tal meio antes de tal outro, e mais das vezes, é obsc.
assim por diante até a obtenção do fim. Por outro lado, Aspásio e Tomás de como o objeto própriDl
Aquino dão o peso maior à noção de atribuir preferência a algo em derri-
mento de outra coisa, pois é esta noção que está no núcleo lógico de escolher 1112a19 consJbo.l
racionalmente. O que caracteriza basicamente a escolha racional é o ato de ~OÚÀEU<JlS",o ato~dd
pesar razões rivais e só secundariamente o fato disto exigir um tempo pré- selho, a reunião de pa
vio à ação que realiza o fim escolhido; fosse o aspecto temporal o sentido aparece outras vezes _
básico, não se compreenderia por que a operação de dar preferência a certas 1112a20~21náoi.
coisas em detrimento de outras é sentida como o cerne de uma escolha. Os coisas sobre as quais o ,..
f, l' ~,.
dois planos se cruzam, mas há prioridade para o plano horizontal da preíe- UTTEp OU ... UTTEp..,_ J
rência em relação ao plano vertical do tempo; é no plano horizontal que se comum no dernóricoc e
concentram os problemas filosóficos da escolha racional. A passagem aqui, valente em português_
no entanto, não é clara a respeito de qual dos dois sentidos deve ser adotado "em cima disso" no h.-
(Thurot é singularmente hesitante: ele traduz a passagem por "puisqu' il se dit 80~90). Há quatro OUIJI

d'une chose adoptée avant une autre, ou plutôt quune autre"). Tampouco a VIII 2 1155b16 e X 1 J
passagem correspondente da Ethica Eudemia II 10 1226b6~8 é clara: "a escolha na Magna Moralia, o ..
deliberada é uma escolha, porém não simples, mas de algo antes que outro", 1112a21 Ningu.áa~
~ yàp lTpOalpE<JLS d(pE<JLS µÉv E<JTLV, OUX emÀwS" 8É, àU' ÉTÉpou rrpó Gauthier, Bekker e S.
ÉTÉpou. Felizmente, a Magna Moralia elimina a ambigüidade do rrpó escre- lugar de 8f).
vendo que rrpompoúueêu TOOE àVTL TOOUOE, OlOV TO ~ÉÀTLOV àVTL TOU 1112a21 os objttos d
XElpOVOS, "escolhemos por deliberação isto contra aquilo, a saber: o melhor da deliberação: os obja
contra o pior" (I 171189a13~14), pois seguramente não escolhemos o melhor µ~ EVOExóµEva ~
"antes" do pior, mas "em troce de", "no lugar do" pior. Neste sentido, P. Auben- sua ordenação (De c..I
que (La Prudence chez Aristote, P: 126) denunciou o contra-senso de Joachim e como os objetos ~
corretamente centrou sua análise da escolha deliberada sobre o sentido básico tratados TI àKlVT)Ta,,.
de dar preferência a certas coisas em detrimento de outras. parte dos objetos em.

I74 I Ethica Nicomachea I 13 - /lI 8


l
pore: "choise implies
I
III5
~p-eposição rrpó tem
1aDpO), mas logo de-
lKocia á', justamente Neste capítulo, Aristóteles, ao examinar o objeto de deliberação, afirma
~ Joachim, Dirlmeier expressamente sua tese segundo a qual só deliberamos sobre o que conduz aos
• ttmporal: a anterio- fins, jamais sobre os próprios fins. Antes disso, porém, ele obtém uma tese
Iria pelo fato que algo geral sobre o objeto de deliberação, a saber, que é tanto o que, ocorrendo nas
D anteS de tal outro, e mais das vezes, é obscuro quanto a como sucederá (como no caso da medicina),
Ito Aspásio e Tomás de como o objeto próprio da ação, que não é mais assim do que não assim.
facia a algo em detri-
~ lógico de escolher 1112a19 conselho. Aristóteles emprega indiferentemente o termo de ação
lia racional é o ato de ~OÚÀEU<JlS', o ato de deliberar, como o substantivo ~ouÀ1Í, que designa o con-
raigir um tempo pré- selho, a reunião de pessoas a fim de deliberar sobre algo. O termo conselho
_, temporal o sentido aparece outras vezes neste capítulo: 1112b1, b32, 1113a4.
la preferência a certas 1112a20~21 não é aquilo sobre o qual deliberaria um parvo ou insano, mas aquelas
lIe de uma escolha. Os coisas sobre as quais o homem sensato deliberaria. O detalhe é que sobre está grafado
~ horizontal da preíe- imEp OD ... lrrrEp wv. Aristóteles usa muito pouco esta locução, que ficará
boo horizontal que se comum no demótico; o ático clássico exige a TTEpl OD o •• lTEPL WV (algo equi-
_ A passagem aqui, valente em português seria encontrar em um escritor dos anos 70 a expressão
lidos deve ser adotado "em cima disso" no lugar de "sobre isso",barbarismo que se difundiu nos anos
~ por "puisqu' il se dit 80~90). Há quatro outros casos na Ethica Nicomachea: 13 1096a4, 141096b30,
~alJmn. Tampouco a VIII 2 1155b16 e X 11172a26. A locução lrrrEP OD (wv) é, porém, freqüente
ib6-8 é clara: "a escolha na Magna Moralia, o que pode ser um sinal de redação tardia desse texto.
~aIgOantes que outro", 1112a21 Ninguém delibera, então. Adoto a versão de Bywater, seguido por
f &É. àll' ÉTÉpou rrpó Gaurhier, Bekker e Susemihl seguem o texto da vulgata, que fornece oÉ no
pidade do rrpó escre- lugar de 8~.
rm pÉÀTlOV àVTl TOU 1112a21 os objetos eternos. Primeiro grupo dos objetos excluídos do campo
...,. a saber: o melhor da deliberação: os objetos eternos, que não podem ser de outro modo, Tà

.acolhemos o melhor µ~ EVOExóµEva aÀÀwS' EXElV. Este grupo inclui objetos como o universo e
_ sentido, P. Auben- sua ordenação (De Cael. II 14 296a33: "a ordem do cosmos é eterna"), bem
ia:a-smso de Joachim e como os objetos matemáticos. Estes últimos são obtidos por abstração e são
lasobre o sentido básico tratados fi àKlVT]Ta, qua imutáveis, Met. E 11026a9, e nesta medida fazem
.-ns- parte dos objetos eternos. Quanto ao universo, o primeiro motor, que move

Comentários I I75
sem ser movido, faz evidentemente parte dos objetos eternos; por outro lado, (o termo canônico é TO ..
as esferas celestes, que estão em movimento (pois movem e são movidas), são ocorre por acaso é dito ~
igualmente tidas em movimento eterno (para que o movimento, assegurado assim do que de outro lIIIIIIi
pelas esferas, que movem sendo movidas, seja eterno, é preciso supor, no aris- "tanto assim como nâo ..
totelismo, um primeiro motor que move sem ser movido; ambos os casos são outro ocorre" (De Intap. 9_
incluídos neste primeiro grupo). primeira a propósito da ..
1112a23~24 Também não sobre os que estão em movimento, mas que se engen~ Além do mais, Arist~
dram sempre do mesmo modo. Os objetos excluídos do campo da deliberação das vezes o que é acidmal!
desta vez são os que sofrem mudança (EV KW~<JEl), mas que se produzem 1112a27 Tampouco.
sempre do mesmo modo (<lEI. OE KaTà Tama ywóµEva). O que os distin- no domínio das ações ):._
gue dos membros do grupo anterior não é propriamente o fato de estarem aUróµaTov). No caso da ~
em movimento (as esferas celestes também o estão), mas o de serem gerados. tro resultado é acid~
Este grupo inclui: (i) eventos como solstícios e surgimentos dos astros, que aUróµaTov como o ~
ocorrem por necessidade (o sol e os outros planetas manterão sempre seus 1112a28~29 como GJ"
movimentos, contrariamente ao temor dos antigos filósofos: Met. e 8 1050b22~ em Heródoto, o povo ..-
24); (ii) movimentos
morrem,
repetidos do mundo
e a morte lhes ocorre inevitavelmente,
sublunar. Homens,
portanto
por exemplo,
necessariamente;
j grego organizado em ~
ao nosso alcance é enfãriz.i
os cabelos dos homens, porém, tornam-se nas mais das vezes grisalhos (pois serem escolhidos para a ..
alguém pode perdê-los antes, ou morrer). Este segundo grupo inclui assim constituição para os CÍt:3s-.
uma causa natural sob o registro das mais das vezes, cuja exceção se faz por próprias leis, menos ainda.
acidente, sem destruir o fato que o mesmo fenômeno se engendra do mesmo Eudemia II 10 1226a29 c: _
modo. A menção, porém, que se engendram sempre do mesmo modo (<lEI. OE Índia (o que talvez esteja"
KaTà Tama vu-óuevo') faz dificuldade, pois o que ocorre nas mais das vezes que os gregos passassem .UI
se opõe ao que ocorre sempre; no entanto, Aristóteles costuma aproximá-los, Moralia, o fato de não dc:Ià
caracterizando em geral o objeto físico como o que ocorre necessariamente se interessar por eles: -llOI5i
ou nas mais das vezes de um mesmo modo (if. Phys. II 8 198b35: "todos os na Índia, mas não deliba:a
objetos naturais ocorrem ou sempre ou nas mais das vezes"). Por fim, Aris- 1112a30~31Deliba..
tóteles acrescenta "ou por outra causá', pois não compete à ética determinar ser feitas. Adoto o texto *:
as causas deste segundo grupo com a mesma exatidão que a física, podendo que interpreto no sentido t
deixar em aberto a possibilidade de outro tipo de causa. mss. seria: deliberamos .soI.r
1112a26 Tampouco sobre os que são ora de um jeito, ora de outro. A expressão No capítulo anterior, Ao.
é rara em Aristóteles, aparecendo somente outra vez no tratado espúrio Sobre deliberada; aqui, ele o lip;
as cores. Stewart sugere que, a partir dos exemplos - secas e chuvas -, se pode yàp TO 1TpaKTOvKGl TO ...
identificá-los com os objetos que ocorrem por acaso, como em Phys. II 8 198b35 de escolha deliberadã.

I76 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


--------,..-------- - ----- ._._ --------_._------------

(o termo canônico é TO uírróprrrov). A expressão se presta a isso, pois o que


ocorre por acaso é dito ocorrer OUOEV µâÀÀov OVr-ws- il EXEÍVWS, "não mais
assim do que de outro modo" (An. Prior. I 13 32b13), OlrrWS KUl µi) Olrrw<),
"tanto assim como não assim" (An. Prior. I 13 32bll), Ó1TÓTEP' ETUXE, "um ou
outro ocorre" (De Interp. 919a19), todas estas expressões concordando com a
primeira a propósito da diversidade de manifestação do que ocorre por acaso.
Além do mais, Aristóteles opõe ao que ocorre necessariamente ou nas mais
das vezes o que é acidental ou casual (cf. Met. E 2 1026b27~37).
1112a27 Tampouco sobre os que ocorrem por acaso. O acaso aqui (~ TVxT]) ocorre
no domínio das ações humanas e é contrastado assim com o acaso natural (TO
ai.rrÓµaTOv). No caso da TVxT], há um fim perseguido, em relação ao qual ou-
tro resultado é acidentalmente obtido. Na Physica II6 Aristóteles apresenta TO
,que ai.rróµoTov como o gênero do qual a TVxT] (sorte ou fortuna) é a espécie.
xus 1112a28-29 como os citas melhor se governariam. Os citas representam, já
b22~ em Heródoto, o povo nômade por excelência, reflexo invertido do mundo
iplo, grego organizado em cidades. Que não haja deliberação sobre o que não está
atte; ao nosso alcance é enfatizado, algo ironicamente, pelo fato de os lacedemônios
(pois serem escolhidos para a suposta tarefa de deliberar sobre qual seria a melhor
assim constituição para os citas - espartanos eram pouco afeitos a deliberar sobre suas
I: por próprias leis, menos ainda sobre a melhor constituição para os citas. Na Ethica
amo Eudemia II 10 1226a29 e na Magna Moralia I 171189a21, o exemplo dado é a
IEl f>E Índia (o que talvez esteja ligado às campanhas de Aiexandrc, que hz:eram com
que os gregos passassem a se interessar pela Índia). Como fica claro na Magna
IIi-los, Moralia, o fato de não deliberar sobre certos assuntos humanos não implica não
IDtIlte se interessar por eles: "nos inteiramos freqüentemente dos fatos que ocorrem
los os na Índia, mas não deliberamos sobre nenhum deles" (I 17 1189a20~21).
, Aris ~ 1l12a30~31 Deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder, i. e. que podem
lDJJl3I ser feitas. Adoto o texto de Susemihl e Bywater, que introduzem Kal de Kb,
dmdo que interpreto no sentido expletivo (assim como Irwin). O texto dos outros
mss. seria: deliberamos sobre os itens que podem ser feitos que estão em nosso poder.
RSSão No capítulo anterior, Aristóteles ligou o que está em nosso poder à escolha
, Sobre deliberada; aqui, ele o liga ao objeto de ação; cf. Met. E 1 1025b24 TO airro
e pode yàp TO TIpaKTOV KOI. TO TIpOmpETÓV, "o mesmo é o objeto de ação e o objeto
198b35 de escolha deliberada",

Comentários I I77
---
1112a31~33 Parecem, assim, ser causas a natureza, a necessidade e o acaso; além quais, embora a Sg.
disso, o intelecto e tudo o que éfeito pelo homem. Nas Leis, Platão apresentou uma das, emerge a expraII1
lista semelhante (888e~889a: Tà µEV <pÚOH, Tà OE TÚXll, Tà OE olà TÉXVYlV), texto de Sófocles ~
que Aristóteles retoma em Met. Z 7 1032a12~ 13 e em A 3 1070a6~7. Em ne- a ela se refere, se paIi
nhuma delas aparece explicitamente o tema da ação, embora em An. Posto II wÀE<J' opyá, "a pai:áI!
11 94b34~95a6 e Phys. II 6 197a5~13 o intelecto seja citado, e a olávola em Z beste) te destruiu"; ..
7. Gauthier comenta que "Aristóteles, neste capítulo, não faz senão aplicar de KaTa~~<Jll, "mas por1
modo desajeitado à ação moral noções primitivamente elaboradas para explicar Hades", o prefixo _
a atividade de produção". Menos incisivo, mas no mesmo diapasão, Edward fato de ser ela ~
Moore escreve que esta lista "deve ser considerada como uma classificação inaugura a cena triWi
popular de causas familiar aos ouvintes <... > antes que uma da qual Aristó- rodeada por eles. F.
teles seria o responsável" (An Introduction, 1878). No entanto, a lista apresenta entranhas pur~
duas novidades, e destas novidades Aristóteles seguramente é o responsável. a mulher de origem 114
Primeiro: o domínio da técnica pode estar incluído aqui, mas o está em lTâv ~apúeuµoS', acaba ....
TO Dl' àv9pwlTou, isto é, está subordinado à ação, o que é uma tese impor- como vingança a T~
tante do aristotelismo. Esta subordinação será examinada no sexto livro. Em irremediavelrnenre _
segundo, e mais importante, lugar, o homem aparece como causa em sentido da cena; de agora ~~
próprio e eminente graças ao intelecto, ETl OE vOUs, ao lado das outras causas o espetáculo da deri.I
comumente aceitas (o intelecto aqui é o intelecto prático, pois a inscrição do da agência humana 111
homem como causa no sentido pleno de suas ações se faz através da atribuição mais específico, encDIIIIIi
de uma potência racional deliberativa ao homem). No mundo cultural grego, implanta o homem. ..
esta frase tem uma enorme ressonância. O teatro grego fez a experiência cê- aceitas. Em Platão hiI
nica da liberação ante o divino: de Ésquilo a Sófocles e a Eurípides, o agente, uma atribuição da '-!
que antes não fazia senão realizar um plano concebido alhures, nas disputas ao contrário, o homaII
entre os deuses, permanecendo um joguete nas suas mãos (como na Ilíada, uma trivialidade, ~
em que de início é anunciado
cisão de Zeus), é paulatinamente
integralmente
que tudo o que ocorre se realiza segundo a de-
posto na frente da cena e responsabilizado
de seus atos (ainda que em peças como Édipo-Tirano a presença
niense que Aristóa:Iaii
que faz, o homem
de sua grandeza.
t"
do divino siga os moldes antigos, pois Édipo tem um destino traçado pelos 1112a33 Cada ..
deuses, que ele descobre lentamente sob a forma de tragédia). Assim, Antígone àv9pwlTWV EKO<JTOl"
é uma jovem que age por conta própria; sua decisão de dar a Polinice uma a ROT: "every class ~
sepultura, a despeito do decreto de Creonte que proibia expressamente tal their own efforrs-. N.j
ato, ainda que apresentada sob forma de piedade religiosa, é perpassada por precedente ou consa;ll
estranhos desejos, referidos ambiguamente ao seu irmão, mas do interior dos Aristóteles acrescma.

I78 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


r~o acaso; além quais, embora a figura do incesto repita incansavelmente a sina dos Labdáci-
~touuma das, emerge a expressão amorosa pessoal, íntima e intransferível do agente. O
~&à TÉxvllV), texto de Sófocles apresenta deste modo uma jovem decidida, que, como o coro
1Oa6--7. Em ne- a ela se refere, se precipita em sua própria ruína (v. 875 <JEo' amóyvwToS
Em An. Posto II WÀE<J'opyá, "a paixão de que eras tu conhecedora (ou que tu mesma conce-
~ávoLa emZ beste) te destruiu"; vv. 821~2àÀÀ' amóvoµos (ma µÓVT]o~ 9V1lTWV' AlOTlV
lIDáo aplicar de KaTa~~<JTI,"mas por viver de modo próprio única entre os mortais desce ao
lipara explicar Hades", o prefixo amó acentuando a autoria e responsabilidade próprias, o
pasão, Edward fato de ser ela unicamente a causa de sua perda). Esta frágil e pálida figura
~ classificação inaugura a cena trágica estritamente humana, isenta de deuses, ainda que
ia qual Aristó- rodeada por eles. Em Eurípides, as personagens continuarão a exprimir as
llista apresenta entranhas puramente humanas da ação; assim, Medéia é apresentada como
~o responsável. a mulher de origem bárbara que, movida por ciúme e por um rancor pesado,
io está em rrôv ~apúeuµos, acaba por fazer uma sopa de seus próprios filhos para oferecê-la
ma tese impor- como vingança a Teseu, sabedora do ato execrável que comete, mesmo assim
iSCtto livro. Em irremediavelmente conduzida a isso por seu 9uµós. Os deuses estão ausentes
lIS:t em sentido da cena; de agora em diante, sua função consiste meramente em abrir e fechar
• outras causas o espetáculo da deriva humana. A reflexão filosófica sobre a liberação cênica
I a inscrição do da agência humana tem seu ponto culminante em Aristóteles, ou, para ser
ÉS da atribuição mais específico, encontra sua expressão própria nesta frase que, de um só vez,
~culrural grego, implanta o homem, graças à sua razão, ao lado das causas plenas comumente
Iexperiência cê- aceitas. Em Platão há ainda uma presença divina, uma tripartição da alma e
pies, o agente, uma atribuição da fortuna que ultrapassam a medida humana; em Aristóteles,
ltS. nas disputas ao contrário, o homem está plenamente ancorado em si mesmo. Antes de ser
~ na Ilíada, uma trivialidade, esta frase é o resumo de um longo percurso intelectual are-
la segundo a de- niense que Aristóteles endossa e reformula em sua significação filosófica: do
icsponsabilizado que faz, o homem é plenamente causa, tanto de sua deriva e tragédia, quanto
r.rmo a presença de sua grandeza.
., traçado pelos 1112a33 Cada um de nós homens. Bom número de traduções toma TWV o'
~,Antígone ávBpwlTWV EKa<JTOl como significando "classe" ou "grupo" de homens, como
ta Polinice uma a ROT: "every class of men deliberates about the things rhat can be done by
pessamente tal their own efforts". No entanto, isto introduz um ponto sem efeito na análise
'perpassada por precedente ou conseqüente do objeto de deliberação. Como Stewart observa,
I cio interior dos Aristóteles acrescenta esta frase para evitar que se compreenda que cada um

Comentários I I79
delibere sobre tudo que é feito pelo homem; na verdade, cada um delibera Kal rrept Tàs ooças- i
somente sobre o que pode ser feito por ele próprio. que sobre as ciências1
1112b2 como um termo deve ser escrito. Comparando esta passagem com paráfrase (47, 26-27) e
MM I 17 1189b19~21("ninguém delibera sobre como deve escrever o nome têm o texto tradicioa.
de Archicles, pois está fixado como se deve escrever o nome de Archicles"), o respectivamente, ..n:uwi
ponto não é como se deve escrever tal e tal letra, mas qual é a grafia correta de quam disciplinas").1lI
um nome. Em Ale. I 107a1~3,Sócrates pergunta a Alcibíades se ele se pronun~ cos de artes em 11131
ciaria em uma assembléia na qual os atenienses estivessem deliberando sobre acribia, na qual as ca
"como se escreve corretamente", rrws a.v op9Ws ypá<pOLEV, a que Alcibíades o permite as distinguil
responde com um sonoro certamente não). ciência, um saber; ma
1112b4~5 (por exemplo: as da medicina e da arte de enriquecer, e mais sobre a diferir quanto à urgâxl
navegação do que sobre a ginástica. Aristóteles seguramente não cita por acaso estas uma e outra em funç3.
duas artes; com efeito, Platão fizera delas, no Político, o paradigma mediante o 1112b8~9 Deüba.
qual se propôs a pensar a política a fim de encontrar também nela um saber que mas que nas quais é oi.:
se estabelece e torna obsoleta toda deliberação a respeito, assim como ocorreria resultarão. Adoto 01] cp
na medicina e na navegação (ver especialmente 292 e 297~300a). Em EN II
b
a vantagem é que a JII
2 1104a9~10, Aristóteles, porém, conclui a passagem sobre a natureza instável que precede; de quaJ.p
das ações, que não caem sob nenhuma técnica ou método (ele usa o termo ver aqui a conclusão d.
lTapaYYEÀla, que a paráfrase dá como sinônimo de µÉ900os), comparando-as TOV não tem compita
à medicina e à arte de navegar, como se estas fossem, entre todas as artes, casos OLe:; Tà àOLÓPL<JTOV r-
exemplares de indefinição e hesitação. Obviamente navegação e medicina são I 17 1189b24~26Ev <i~
artes e, por conseguinte, dispõem de um método, que, com o tempo, desenvol- lTpaKTolS Tà àópuJ'71I
verá um saber, como já é o caso para outras artes (o que se depreende do que <... > vige nas ações o
Aristóteles afirma em Phys. I 1184a10~12). Resta que Aristóteles parece bem Rassow (Forschungen. \I
menos satisfeito que Platão do estado destas duas artes, o que o leva a valer- "nas quais é indefinido4
se delas como ilustração do contrário que queria Platão, a saber, a isenção de de lTWs àlTO~~<JETQl ••
deliberação por força de um saber presente. Deve-se observar que os escritos filosófica é o valor de 11
hipocráticos estão imbuídos da pretensão de eliminar todo acaso da análise cláusula KUl EV ote:; ciIi.
médica, de modo que de cada fenômeno se descobrirá um dia a causa, o acaso [3ouÀEúc<J9m o~Ev nis
sendo meramente uma palavra vazia, que esconde um fracasso do saber, não última é fácil suprir ;rW;
uma indeterminação da coisa mesma. uma nova idéia, mas 1.111
1112b6~7 mais a respeito das artes do que das ciências. Gaurhier argumenta algo diferente, a saber, I
que TàS" TÉxvaS não dá nenhum sentido aceitável, pois, nesta passagem, as (Contributions, ad loc.). j
ciências se identificam às artes; como Aspásio fornece como texto µâÀÀov OE obscuras como resuh:a

I80 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


da um delibera Kal lTEpl Tàs oóÇaS" ~ Tà<; ElTL<JT~µaS" (72,28: "mais sobre as opiniões do
que sobre as ciências"), Gauthier propõe que se adote esta última leitura. A
Ipassagem com paráfrase (47, 26~27) e o comentário anônimo (150, 20~21),no entanto, rnan-
-=rever o nome têm o texto tradicional (assim como a Ethica vetus e Grosseteste o supõem:
~ Archicles"), o respectivamente, "magis circa artes quam circa disciplinas" e "magis circa artes
p6.a correta de quam disciplinas"). De fato, Aristóteles deu como casos de ciências casos típi-
It de se pronun~ cos de artes em 1112b1~6,mas, aqui, parece querer introduzir uma escala de
lixrando sobre acribia, na qual as ciências aparecem como mais exatas do que as artes, o que
lque Alcibíades o permite as distinguir deste modo. À arte corresponde uma competência; à
ciência, um saber; entre competência e saber há uma gradação, o que as faz
ID". r mais sobre a diferir quanto à urgência da deliberação; apesar disso, a deliberação ocorre em
• por acaso estas uma e outra em função de uma mesma insuficiência de acribia.
pna mediante o 1112b8-9 Deliberar, então, diz respeito às coisas que ocorrem nas mais das vezes,
!!Ia um saber que mas que nas quais é obscuro como resultarão, e àquelas nas quais é indifinido como
• como ocorreria resultarão. Adoto o~ que se encontra em Aspásio (como já o fez Gauthier):
00"). Em EN II a vantagem é que a passagem vale (mais) claramente como um resumo do
l13[Urezainstável que precede; de qualquer modo, a leitura tradicional oÉ igualmente permite
[de usa o termo ver aqui a conclusão do que foi dito anteriormente. A frase EV OLe:;àOLÓpL<J-
ilcomparando~as TOV não tem complemento explícito; Ramsauer propôs completá-la com EV
• as artes, casos OLe:; TO àOlÓpL<JTOV ("e nas quais há o indefinido'), inspirando-se em MM
D c medicina são I 17 1189b24~26 EV OLe:;àÓpL<JTÓV E<JTlV TO Ws OEL <...> E<JTLV o' EV TOLS
~, desenvol- TTpaKToLS TO àÓPL<JTOV ("nas quais é indeterminado o como se deve agir
Iqxeende do que <... > vige nas ações o indeterminado"). Apoiando-se na mesma passagem,
irdes parece bem Rassow (Forschungen, Weimar 1874) propôs EV Ole:; TO Wc; OEL àOlÓpl<JTOV,
~ o leva a valer- "nas quais é indefinido o como se deve agir". Pode-se, porém, supor a repetição
iLa, a isenção de de lTWs àlTO~~<JETm, subentendido na segunda oração. De maior importância
• que os escritos filosófica é o valor de Kal. A maior parte dos comentadores segue Bywater: "a
acaso da análise cláusula Kal Ev OLe:;àOLÓpL<JTOV é explanatória e funciona como aposto de TO
• a causa, o acaso l3ouÀEtE<J9m o~ Ev TOL<; Ws ETTl TO lToÀú, à8~ÀOLS 8E lTWs àlTO~fpETal, e desta
110 do saber, não última é fácil suprir lTWs àlTO~fpETm após àOLÓPL<JTOV.Não temos, portanto,
uma nova idéia, mas uma repetição do que acabou de ser dito em uma forma
~argumenta algo diferente, a saber, nas matérias nas quais o resultado é indeterminado"
rsa passagem, as (Contributions, ad loc.). A tradução da passagem ficaria, então: "mas que são
IRXtO µâÀÀov OE obscuras como resultarão, isto é, nas quais é indefinido <como resultarão>".

Comentários I I8I
Se for assim, então o objeto de deliberação é o que ocorre nas mais das vezes;
neste sentido, Joachim concluiu que Aristóteles "restringe a deliberação a TO
Ws ElTl TO lTOÀÚ". Irwin, que adotou o texto de Rassow, igualmente interpreta
a passagem como uma restrição do objeto de deliberação ao que ocorre nas
mais das vezes, querendo ver aqui uma passagem em desfavor do partícula-
rismo ético freqüentemente atribuído a Aristóteles (verA ética como uma ciência
inexata, Analytica 13 1996, pp. 13~73;Ethics as an Inexact Science, pp. 100~129,
OUP 2000). No entanto, creio que se deve voltar a interpretar Kal como um fenômeno e::sat ',
que um dia se i •
aditivo e ver na passagem não um só, mas dois objetos de deliberação. De um na ação, através -
lado, há o objeto das artes, caracterizado em 1112b3 como µ~ ooaÚTws o'
sobrepõe o que ~
àEl, "que não é sempre do mesmo modo", isto é, que se apresenta sob a forma
vro VI, o homem
do mais das vezes, TO Ws ElTl TO rroxú, Sobre este objeto, a deliberação ocorre como a boa deliberação.
quando não é claro como o evento se desenrolará, isto é, sua presença se faz
a deliberação: o o,*-
em função de uma obscuridade epistêrnica. À medida que a competência em
Nicomachea, Aristótdrs.
um domínio avança (ou o saber em uma ciência), a deliberação se torna cada
deliberada, e à segunda~
vez menos urgente, e a decisão do especialista toma o lugar do procedimento
a ética da prefer::i~.
deliberativo. Por esta razão Aristóteles apresentou uma gradação deliberativa dinar à escolha -
das artes às ciências e a vinculou ao estágio de acribia de cada uma; a delíbe-
deve ser corrigida. a ~
ração é um procedimento de fato na tomada de decisões a seu respeito, mas
a clivagem entre um e CIIIII!
não de direito, sendo antes um fenômeno evanescente em função do desen-
de Rassow, que t~~
volvimento do saber e da competência (se certa técnica ou ciência alcançar
de uma correção, se
sua acribia própria, ainda que seu objeto guarde certa indeterminação, pois
o objeto de ação, que b~
pertence ao mundo sublunar do Ws ElTl TO lToÀú, já não há sentido em deli-
que resume a discussãD"
berar sobre como agir, mas devemos nos reportar à opinião do especialista,
Pier-Luigi Donini (81
pois o resto de indeterminação pertence à acidentalidade da própria coisa, e
dois candidatos em uuj
sobre o acidente não há deliberação). Por outro lado, é igualmente objeto de
produção, tomando a.II!
deliberação o objeto de ação (apresentado em 1112a30~34); a seu respeito, a
reria ad utrumlibet, COIDI.
deliberação não é um procedimento evanescente de decisão, mas se enraíza
vezes assim; este últimocl
na própria coisa. Nos Anal. Priora I 13, Aristóteles apresenta a ação como
disposição. Para ele, o ~
um contingente indeterminado, TO àÓpl<JTOV, que, por natureza, não é mais
probabilidade de ~.
assim do que não assim (isto é, está ontologicamente aberto igualmente a um
vel; a batalha naval, ao 0IIIIIi
e outro dos contrários), contrapondo-a justamente ao contingente natural,
menos alguns dos quais"
lTE<pUKÓS, que ocorre o mais das vezes assim, embora sempre possa ocorrer
o que a tornaria um cIIIIIIIi
de outro modo (I 13 32b4~22); na mesma direção, ele escreve em EN V 12
que a ablução matinal dd

182 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


las vezes; 1137b29~30 que TOU àOPl<JTOV àÓpl<JTOS Kal Ó Kavwv, "do indeterminado a
lIÇão a TO regra também é indeterminada", Como veremos a seguir, Aristóteles dedica
Ilttrpreta III 7 ao exame do fato que toda ação é ontologicamente aberta aos contrários,
eoere nas de modo que a todo sim um não sempre pode ser contraposto; esta tese da
particula~ indeterminação da ação em relação aos contrários é peça fundamental da ética
IM ciência aristotélica. Com base nela, Aristóteles pode mostrar que, se a deliberação é
.100~129, um fenômeno evanescente nos assuntos técnicos, à espera de uma competência
~( como que um dia se instalará em seu lugar, ela é o procedimento racional de direito
ío. De um na ação, através unicamente do qual à indeterminação ontológica da ação se
IlÚTWS o' sobrepõe o que determina a razão. É por isto que Aristóteles define, no li-
baforma vro VI, o homem prudente como aquele que sabe bem deliberar e a prudência
~ocorre como a boa deliberação. Parece assim haver não um, mas dois candidatos para
PÇa se faz a deliberação: o objeto técnico e o objeto de ação (na primeira frase da Ethica
lincia em Nicomachea, Aristóteles separou a ação da arte, atribuindo à primeira a escolha
anacada deliberada, e à segunda o método, I 1 1094a1; no terceiro livro, ele examina
caedimento a ética da preferência, da escolha deliberada, e, no sexto, os articula ao subor-
ldiberativa dinar à escolha determinada o método das técnicas e artes). Se a passagem
t; a delibe- deve ser corrigida, a versão proposta por Ramsauer tem o mérito de acentuar
peito, mas a clivagem entre um e outro dos dois membros da frase, ao contrário da versão
,do desen- de Rassow, que tende a amalgamá-los. Penso, contudo, que, na necessidade
la alcançar de uma correção, se pode introduzir como sujeito subentendido TO lTpaKTÓV,
DÇáo, pois o objeto de ação, que foi discutido algumas linhas acima, e ao qual esta frase,
lo em deli- que resume a discussão precedente, faria apelo.
iptriUista, Pier-Luigi Donini (Ethos, Torino 1989) argumenta igualmente a favor de
ria coisa, e dois candidatos em 1112b8, mas recusa-se a ver em um deles o objeto de
~objeto de produção, tomando cada um como sendo um tipo de ação, uma que ocor-
.respeito, a reria ad utrumlibet, como uma batalha naval, a outra ocorrendo nas mais das
IIe enraíza vezes assim; este último caso seria de toda ação quando comandada por uma
lÇáocomo disposição. Para ele, o fato de Sócrates lavar-se ao levantar tem uma altíssima
Dão é mais probabilidade de ocorrer, pois provém de uma disposição, de um caráter está-
~teaum vel; a batalha naval, ao contrário, depende de uma conjunção de fatores, a pelo
lIIe natural, menos alguns dos quais não corresponde propriamente nenhuma disposição,
la ocorrer o que a tornaria um evento com uma probabilidade bem menor de ocorrer
.ENV 12 que a ablução matinal de Sócrates. Esta divisão não me parece convincente

Comentários I I83


pelas razões a serem expostas no comentário a III 7: a disposição caracteriza (a disposição étia é~
psicologicamente o agente, não determina o estatuto ontológico da ação. A hurnanOS;po~g
expressão TO WS'ElTl TO lTOÀú ocorre em outras quatro passagens da EN: em tutivamente i .

V I 1129a24 é empregada para assinalar que, costumeiramente, se um termo de agir assim e ......
tem vários sentidos, seu contrário também os terá; em VIII 13 1161a27,para como se fosse um
ressaltar que freqüentemente pessoas de mesma idade e de mesmo grupo têm é em função da -
os mesmos hábitos; em IX 2 1164b31,para exprimir que usualmente devemos bilidade do caráter
retribuir os favores recebidos antes de nos servir de nossas posses para gozá~las
com amigos. Enfim, em I 11094b21 para pôr em relevo que de premissas do
tipo TO WS'ElTl TO lTOÀú as conclusões serão de mesmo tipo; esta passagem fins. Aristóteles
é evocada particularmente, por muitos comentadores, para evidenciar que a
ação cai sob o registro do mais das vezes. Deve-se, porém, observar que, na
linha precedente, Aristóteles assinalou que de coisas instáveis (entre as quais
inclui o bem da ação, 1094b17) as conclusões serão igualmente instáveis, o que
faz com que tenhamos dois grupos, um TO Ws ElTl TO TTOÀÚ e outro instável
ou àÓpL<JTOV, o que concorda singularmente com a leitura proposta aqui de
1112b8~9,a saber, que TO WS ElTl TO lToÀú caracteriza o objeto de produção,
não a ação, enquanto o instável ou àÓpL<JTOV demarca o objeto de ação, não
o de produção. A razão pela qual se procura colocar a ação sob a égide do TO
Ws ElTl TO lToÀú é o fato que os atos humanos são seguidamente constantes, instrumentos mc:diIIII
de sorte que podemos prever com muita probabilidade ou mesmo adivinhar o (if.1112b15~16e
que um agente fará; mais ainda, para que seja possível a deliberação, é preciso aos instrumentos
um domínio constante que torne possível o cálculo, pois, se fosse inteiramente também TO avsµ
indeterminado, nenhuma previsão seria possível, e se delibera somente com isso alte~e seu .
base em previsões. A isso se deve observar que, em primeiro lugar, a ação se consegumte, uma
faz com um contorno de produções ou detalhes técnicos, que estão, estes, de- noção moderna de .
finitivamente sob a custódia do mais das vezes, TO Ws ElTl TO lToÀú. A parte do ponto de vista
técnica envolvida em toda ação é perfeitamente previsível segundo um saber
ou competência. Em segundo lugar, as decisões concernentes propriamente
às ações (e não às produções envolvidas nas ações) podem basear-se em uma
constância e regularidade não porque a ação ela própria segue a regra do TO um fim que lhe é ~
Ws ElTl TO rroxú, mas porque o estado psicológico dos agentes tende a solidi- não pode servir de -i
ficar-se em disposições, e disposições práticas respondem de modo constante a exceção do fim ~
situações semelhantes. É o fenômeno psicológico do caráter estável do agente Esta solução fará '-I

I84 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


~ caracteriza (a disposição ética é um estado da alma) que empresta regularidade aos atos
jioo da ação. A humanos; por si mesma, a ação é sempre aberta aos contrários, ela é consti-
jI:nS da EN: em tutivamente instáveL Mesmo que um agente tenha o hábito ou a disposição
to se um termo de agir assim e não assim, de modo que podemos prever seu comportamento
S 1161a27,para como se fosse um relógio, ele sempre pode, a cada ação, agir diferentemente:
grupo têm
lDlO é em função da indeterminação da ação que pode ressurgir por trás da esta-
IDmte devemos bilidade do caráter moral do agente, por mais forte que ela seja, o inusitado
ts para goz;á~las que ronda todo agir humano.
Ie premissas do 1112bll~12Deliberamos não sobre osfins, mas sobre as coisas que conduzem aos
; esta passagem fins. Aristóteles enuncia sua tese da limitação de toda deliberação ao que conduz
iridenciar que a ao fim, à exclusão deste último, e se prepara para dar uma série de exemplos.
b;ervar que, na Esta tese será o escolho da ética aristotélica na modernidade; com efeito, não
~(entre as quais parece ela implicar que a razão seja tomada em um sentido meramente instru-
~iostáveis,o que mental, incapaz de incidir sobre os fins, quando justamente o que importa do
c outro instável ponto de vista moral é a racionalidade dos finsr Das diversas tentativas para
roposta aqui de salvar esta tese, duas delas devem ser retidas; em ambas a estratégia consiste
10 de produção, em atenuar o mais possível o que parece inaceitável à moralidade moderna. A
tIO de ação, não primeira tentativa consiste em observar que a expressão Tà TTOPs Tà TÉÀ TI não
ab a égide do TO é perfeitamente equivalente à nossa noção de meios, pois inclui não somente os
lEDtt constantes, instrumentos mediante os quais agimos, mas também o modo como agimos
.., adivinhar o (if.1112b15~16e 28~31);ora, a noção moderna de meio retere-se exclusivamente
raa;ão, é preciso aos instrumentos em detrimento do modo como se age (Aristóteles escreve
lIISIe inteiramente também TO <Juµ<pÉpov, "o que convém", ou Tà ÀOLrrd, "o restante', sem que
n somente com isso altere seu campo semântico). A deliberação sobre os meios inclui, por
• lugar, a ação se conseguinte, uma consideração sobre o modo como agimos, o que vai além da
t eseão, estes, de- noção moderna de meio e torna menos insatisfatória a doutrina aristotélica
IÕ lToÀ.ú. A parte do ponto de vista moderno. A segunda e mais importante tentativa consiste
pndo um saber em ressaltar, como já o fez Tomás de Aquino, que nada é por si meio ou fim,
lrSpropriamente mas o que funciona aqui como meio pode funcionar alhures como fim; ora,
lISr3C~se
em uma como todo fim de uma deliberação pode ser posto como meio para se obter
~ a regra do TO um fim que lhe é superior, até o último fim, a felicidade, que, por sua vez,já
IS tende a solidi-
não pode servir de meio para outra coisa, então deliberamos sobre tudo, à
.,do constante a exceção do fim último, não como fins, mas como meios para fins superiores .
estável do agente Esta solução fará fortuna; cito-a na pena de John Brewer: "a deliberação não

Comentários I ISS
incide sobre os fins, mas sobre os meios, isto é, não sobre os fins como fins. podendo gerar fins
Com efeito, em nosso progresso em direção ao fim último, cada fim se torna fundamentalmente
um meio com vistas ao fim último, portanto todos os fins são meios e objeto conduz ao desejo, mas
de deliberação, exceto o último fim" (The Nicomachean Ethics, Oxford 1836). À da ética moderna, qat
objeção que precisamente o fim mais importante fica fora da alçada da razão os bons fins engens'
deliberativa, a saber, o fim último, se pode responder que a felicidade não é um do variegado, da -
fim ao lado dos outros, mas um fim que inclui ou engloba todos os outros (cf. (por impulso, apetite .
I 5 1097b15~20; MM I 2 1184a15~29, especialmente 28~29: "a felicidade não racionalmente as c~
é algo separado dos fins, mas é estes fins"); deliberando sobre os fins a título e plasticidade da ~
de meios para a felicidade, deliberamos sobre o conteúdo da felicidade, pois homem, sem que os 6IIIIIiI
ela não é outra coisa senão estes fins. um único modo de ~
Estas observações atenuam em muito o que parece inaceitável na restrição razões concernentes .....
da deliberação aos meios, mas permanecem ambas em um âmbito negativo, espaço do inusitado, ~
pois mostram que, sob certas considerações, pelo menos deliberamos sobre homem, a saber, a ~
outra coisa que meramente os meios no sentido moderno do termo. A elas avaliativo forte na ~

mas.
deve-se acrescentar, creio, outra observação, de caráter positivo, sobre a tese campo do desejo (unifiaj
de Aristóteles, que não visa a atenuar a tese, mas a compreender seu signifi~ segunda ordem),
cado. O comentário anônimo remete em geral aos Analíticos, isto é, compara a própria não é motivo JlIIIII

em.
posição do fim em uma deliberação à dos princípios em uma demonstração; sição moral, ela não o p
assim como não podemos demonstrar os princípios, sob pena de cair em modernos significa
uma redução ao infinito, assim também não podemos deliberar sobre os fins, foram atribuídas à raz3Di
sob pena de uma progressão infinita. A felicidade como fim supremo serve que o homem não tem cIej
de freio a esta progressão, na medida em que se admite que pelo menos um qualquer coisa que ~.
fim escapa à deliberação; esta admissão é suficientemente forte para validar a escala de preferência; na di
tese de Aristóteles. A comparação é esclarecedora do ponto de vista lógico, ao aos estudos, a vida c<XUIIIII
qual se pode ajuntar ainda uma observação do ponto de vista propriamente mas isto não é exclu~
ético. Aristóteles pretende estabelecer as bases de uma moral da preferência ausência impede a vida Q
fundada em razões. Argumentos racionais objetivos são parte essencial da a restrição da razão priãI
escolha operada pelo agente, mas não são os únicos que devem ser levados é solidária desta perspeai
em conta, pois além deles há o fator primeiro, que inaugura a busca, o fato de ética da preferência, Ya E
haver tais e tais fins. O procedimento de escolha por razões a partir dos fins décima segunda e décioa
pode pôr impedimentos ou mesmo censurar a busca de tal fim (quando, por 1112b15 tendo posto •
exemplo, todo meio disponível é moralmente inaceitável); a razão não é, assim, texto TO TÉÀOS, "tendo,.
vista como uma mera escrava das paixões. Tampouco, porém, é vista como 1112b15-20 Com tJlj

I86 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


DS fins como fins. podendo gerar fins puros, como queria Kant. A razão prática tem um papel
~cada fim se torna fundamentalmente avaliativo,podendo interferir de modo que se aborte o que
Iáo meios e objeto conduz ao desejo, mas não cabe a ela criar os próprios desejos. Ao contrário
~Oxford 1836). À da ética moderna, que procura restringir os fins, reservando-se unicamente
~ alçada da razão os bons fins engendrados pela razão, a ética aristotélica se move no contexto
~denãoéum do variegado, da multiplicidade de fins, que são dados de diferentes modos
~ os outros (cf. (por impulso, apetite ou querer), em relação a todos os quais é preciso avaliar
~ •a felicidade não racionalmente as condições de execução. Há assim uma aposta na diversidade
In os fins a título e plasticidade da natureza humana, pois tudo pode aparecer como fim a um
da felicidade, pois homem, sem que os fins devam ser restringidos a alguns somente, mas há
um único modo de avaliar a moralidade do agente, a saber, o ato de pesar as
~l na restrição razões concernentes aos meios pelos quais busca os fins. O desejo humano é o
~ âmbito negativo, espaço do inusitado, mas a avaliação do agir segue parâmetros idênticos a todo
ddiberamos sobre homem, a saber, a racionalidade da escolha dos meios. A razão tem um papel
~do termo. A elas avaliativo forte na determinação de nossas ações, podendo percorrer o inteiro
.,airo, sobre a tese campo do desejo (unificado formamelmente pela felicidade como desejo de
~r seu signifi~ segunda ordem), mas ela não pode se substituir ao desejo, pois a razão por si
~ isto é, compara a própria não é motivo para a ação. A razão parte de um fim posto pela dispo-
~ demonstração; sição moral, ela não o gera puramente; retomar a tese aristotélica nos tempos
~ pena de cair em modernos significa em grande parte moderar as exigências excessivas que
baar sobre os fins, foram atribuídas à razão como geradora dos próprios fins. É tese aristotélica
Iàn supremo serve que o homem não tem de fazer isto ou aquilo à exclusão de outras coisas, mas
pie pelo menos um qualquer coisa que faça deve ser feita segundo razões (pode-se estabelecer uma
'-te para validar a escala de preferência; na ética aristotélica, há boas razões para se ter a dedicação
It de vista lógico, ao aos estudos, a vida contemplativa, como uma atividade por excelênciavirtuosa,
I
ifrista propriamente mas isto não é excludente com relação a qualquer outro fim nem mesmo sua
!IJCli da preferência ausência impede a vida feliz, ainda que a alije do modo primeiro da felicidade);
!parte essencial da a restrição da razão prática à deliberação sobre os meios e não sobre os fins
i deYem ser levados é solidária desta perspectiva de uma natureza humana variegada (sobre uma
I

~a busca, o fato de ética da preferência, ver E. Tugendhat, Lições sobre Ética, Vozes 1997, terceira,
~ a partir dos fins décima segunda e décima terceira lições).
~ 6m (quando, por 1112b15 tendo posto um fim. Sigo a vulgata; Kb e Aspásio fornecem como
lazão não é, assim, texto TO TÉÀ.OS, "tendo posto o fim", que Bywater introduz em sua edição.
.-ãn. é vista como 1112b15-20 Com efeito, nem o médico delibera ... que é a última na ordem da

Comentários I I87
descoberta. Pace Joachim, que escreve que, "embora lTpOalpE<JLS não signifique apresentação geral da.
'preferênciá, i. e., não envolva essencialmente escolha entre alternativas, em aos fins no plural:p.a
muitos casos a deliberação será de fato um ato de pesar alternativas", a análise próprio, sem afirm.ar 1
aristotélica, ao contrário, consiste justamente na tentativa de pensar a moral por si próprio, como a
sob a perspectiva de uma preferência baseada em razões, a rrpocípemc envol- 1112b33 O fim. ,.
vendo essencialmente a escolha entre alternativas. Para toda esta passagem, é (IV Etrj, "portanto, m.
conveniente consultar Z 71032a23~b31, que exemplifica casos de deliberação, estabelecido, mas a ~
especialmente a do médico para curar um paciente. ter, OUK yàp (IV EIT).I
1112b21 como uma construção geométrica. Stewart escreve que" devemos (1112b11). A ~ti
supor que a referência é ao que é conhecido como método analítico de prova de uma conclusão •
em geometria - um método que Proclo e Diógenes Laércio dizem que Platão 1113al~2 pois.w."
inventou, embora haja traços de seu emprego antes de sua época", Aristóte- lismo e retomada em ..
les compara em grandes termos a busca de meios a partir de um fim a um IV 11 1126b4 e Vil SI
problema de construção em geometria; apressa~se, contudo, a distinguir a 1113a2Sesemprr~
deliberação da construção matemática, ainda que sejam ambas casos de in- soal, como sugere ~

por.
vestigação, (~TTj<JLS. um TlS como s~"
1112b30·31 também nas restantes, investiga-se ora por qual meio, ora como ocor- que é confirmado
rerá ou através de quê. A frase não é clara. O restante parece serem as outras 1113a2~5parecem daIii
ações (Michelet supôs que se tratava das outras categorias, mas não é convin- 1113a3 com a ~
cente). A disjunção deve ficar entre os instrumentos e o modo de agir; se o ponto prima facie panIII
primeiro membro ÓTE µEV OL' oL estiver pelos instrumentos (OL' oL sendo é o objeto de urna ~
neutro), então ÓTE OE rrwS" ~ oLà TlVOS está pelo modo de agir e ~ tem valor ver algo a mais nesta otIiII
explicativo ("isto é, através de quê"). Pode-se, no entanto, ver em OL' oL um valendo-se, porém. de.
masculino ("através de quem"), de sorte que a disjunção seria apresentada em que ao objeto sobre 01
seguida ("como ou através de quê"). a propósito de 11~
1112b33 as ações são em vista de outras coisas. Gauthier, fazendo eco a Ra- certamente o tem ~~
msauer, considera que Aristóteles "se contradiz formalmente ao recusar ex- a escolha deliberada. ..
pressamente à ação (lTpâÇLS) a imanência que tinha reconhecido como sua berada é o objeto de dIl
característica própria", No entanto, como já tinha observado Stewart, se o põe o agente em açio; •
bem-agir, a El!1Tpaçla, é descrito como tendo seu fim em si mesma, cada ação, obtido o objeto de ~
porém, é feita em vista de outra coisa, a saber, seu fim, o que não contradiz (VII 5 1147a28). 0b.iII
a imanência: faço á, á' e á" para obter o fim T, a ação completa a incluindo futuro, como não ~
á, á', á" e T (I 1 1094a18: EL o~ TL TÉÀOS E<JTl TWV lTpaKTwv Ô Ol' amo o que prescreve a ~
~ouÀóµE9a, "se há um fim das ações que desejamos por si próprio"). Nesta esteja a ponto de ~

ISS I Ethica Nicomachea I 13 - lI! 8


EOlS" não signifique apresentação geral da deliberação, convém observar que Aristóteles se refere
IR alternativas, em aos fins no plural: para cada série de ações, há um fim que desejamos por si
lI'Darivas", a análise próprio, sem afirmar que há um único fim de todas as séries, que desejamos
lde pensar a moral por si próprio, como talvez o faça no disputado passo em I 11094a18~22.
rapoolpE<JlS envol- 1112b33 Ofim, portanto, não é objeto de deliberação. Sigo Susemihl: OUKap'
ida esta passagem, é av dTj, "portanto, não é", que faz desta frase não a retomada de um ponto já
~ de deliberação, estabelecido, mas a conclusão formalmente estabelecida. O texto de Bywa-
ter,OUK yàp av E'lTj, baseado em K b
, supõe que o ponto já foi estabelecido
~ que" devemos (1112bll). A vulgata OVK av oVv, que Bekker segue, pressupõe que se trata
D analítico de prova de uma conclusão agora estabelecida.
io dizem que Platão 1113al·2 pois são do domínio da sensação Tese bem estabelecida no aristote-
lia época", Aristóre- lismo e retomada em três outras passagens da Ethica Nicomachea: II 9 1109b23,
.. de um fim a um IV 111126b4 e VII 5 1147a26 .
IOdo, a distinguir a 1113a2 Se sempre se tiver que deliberar. A frase pode ser tomada em sentido pes~
lambas casos de in- soal, como sugere Srewart, que, comparando-a a EE II 10 1226b2, propõe suprir
um TlS' como sujeito; prefiro seguir Granr, que a toma em sentido impessoal, o
li mo, ora como ocor- que é confirmado por 1113~51Ta~TaL yàp EKU<JTOS',
"cada um cessá'. As linhas
laX serem as outras 1113a2~5 parecem deslocadas, pois ficam melhor ao fim de 1113a9.
... mas não é convin- 1113a3 com a ressalva que o objeto de escolha deliberada já está determinado. O
~modo de agir; se o ponto prima facie parece ser simplesmente que o objeto de escolha deliberada
lmtOS (OL' oÍ! sendo é o objeto de uma deliberação já concluída; no entanto, há boas razões para
de agir e ~ tem valor ver algo a mais nesta diferença. Como Aspásio deixa claro em seu comentário,
-. get' em OL' oÍ! um valendo-se, porém, de um vocabulário estóico, este algo a mais se trata do fato
Ia'ia apresentada em que ao objeto sobre o qual se delibera é acrescido o assentimento (70, 30~31,
a propósito de 1112a13). Embora Aristóteles não explicite esse elemento, ele
~ fn:endo eco a Ra- certamente o tem em mente quando insiste que a ação segue imediatamente
DaJre ao recusar ex- a escolha deliberada, se nada impedir fisicamente. O objeto de escolha deli-
PJOhecido como sua berada é o objeto de deliberação ao qual assentimos, e assentir a uma decisão
!n'3do Stewart, se o põe o agente em ação; por esta razão, se nada impede do ponto de vista físico,
si mesma, cada ação, obtido o objeto de escolha deliberada, o agente passa imediatamente à ação
o que não contradiz (VII 51147a28). Obviamente, alguém pode deliberar sobre algo em relação ao
IIIlUlpleta a incluindo futuro, como não beber antes de conduzir, sem se pôr imediatamente a fazer
IpOKTWv Ô OL' oírrõ o que prescreve a decisão, mas não há sentido em assentir a isso, a menos que
r si próprio"). Nesta esteja a ponto de beber, devendo conduzir em seguida. Aristóteles conhece

Comentários I I89
obviamente bem o fato de tomar decisões por deliberação, sem que se siga a Na verdade, esta láaI
isso uma ação, particularmente em relação aos casos em que essas promessas versão paralela da EE (H I
de ação não se realizam quando as circunstâncias requerem sua efetivação, fe~ é dito que o agente pára~
nômeno humano, particularmente humano: ele examina, por exemplo, a figura ~ àpx~TfJS )'EVÉ<JEWS;"
do homem acrático que delibera previamente sobre o que fará ou deixará de berta deliberativa e o ~
fazer, mas que fraqueja no ato mesmo de fazer ou deixar de fazer. O acrático TO ~YO{,µEVOV tem o ..
delibera, mas Ialta-lhe no momento oportuno o assentimento ao qual se segue mente o que inicia a .-
imediatamente a ação, nada o impedindo fisicamente. no de incess. animal, ArisIiii
1113a4 é o que foi preferido. Bywater prefere o texto de K , KPl9Év, "discri-
b
parte que comanda (9"
minado, julgado", baseado em 1113a11. No entanto, Alexandre e Aspásio lêem do animal seguind~a. ~
com a vulgata TTpOKpl9Év, o que é um forte apoio para guardar esta leitura. centopéia, ele observa ~
Embora o verbo TTpOKTLVWtenha os dois significados de rrpó, "preferir" e "dis- (16 713a32), o carangmj!
criminar anteriormente", manifestando, portanto, a mesma ambigüidade do patas que comandam. ~
rrpó de TTpoaLpE<JlS, ele é preponderantemente usado no sentido de "preferir uma perna funciona ~
algo a outra coisa', o que é significativo nesta passagem. TOV TTOOU TOV ~Yo(~
1113a6 e ao seu condutor. Aspásio sugere a explicação seguinte: "isto é, ao o sentido daquilo que ~
intelecto" (74,32); a glosa fez fortuna, tanto mais que TO ~)'O{,µEVOV foi cedo o sentido em questão ~
assimilado ao ~YEµOVlKÓV estóico, o princípio diretor da alma, a razão. A frase criança é imperfeita. da~
é então tomada como explicativa, KaL tendo uma função expletiva. O comen- criança, mas também a.~
tário anônimo vai na mesma direção (152, 32). Joachim Perin (Paris, 1548) a 1260a33; o sentido aqui"
traduziu por "arque ad eam animi sui partem, quae tenet principatum"; Denis mas se deve observar ~
Lambin (Paris, 1558), que a traduziu por "et ad eam sui partem quae praeest, em exame, trata-se de _
atque imperai', acrescentou em nota que "nempe rationern seu mentem po~ genitivo devendo ser ~
tius", A Ethica vetus lê, porém, "requiescit enim unusquisque querens quomodo mostrar que, uma vez ...
operabitur, quando in se ipsum reduxerit principium, et in anrecedentern id", põe a buscá-lo como SCII~

no mesmo sentido Grosseteste: "quiescit enim unusquisque querens qualirer lízá-lo, isto é, traz o ~
operabitur, quando in se ipsum reducet principium, et ipsius in anrecedens", (o membro do corpo. ~
Lendo na recensio recognita "et ipsum in anrecedens", Tomás de Aquino comenta lê exatamente neste soai
do seguinte modo: se o agente, ao trazer o princípio da ação a si mesmo, querer, e nosso querer i. ,
percebe que há vários princípios, ele busca o princípio precedente, que não é deliberada, procuranlOl5~
senão o último meio, o meio a partir do qual a ação tem início. Insurgindo-se antecedens é como a palIIII!
contra esta lição, Gauthier escreve que "se coloca assim uma afirmação banal assim, voltar à leitura dr~
e já expressa no lugar do único texto decisivo de Aristóteles sobre a faculdade mação do intelecto CDlDDI
de que fez a sede da decisão" (Comment., ad locum). condições para cessar die.

I90 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


;ío. sem que se siga a Na verdade, esta leitura está longe de ser ruim como supõe Gauthier, Na
~fPle essas promessas versão paralela daEE (II 10 1226b12~12), assim como em Rhet. I 41359a38~b1,
jaIl sua efetivação, fe~ é dito que o agente pára de deliberar quando encontra "o princípio do processo",
~pmexemplo, a figura ~ àpx~ Tfis rEVÉ<JEWS;ora, o princípio do processo é o último meio na desce-
~ &cá ou deixará de berta deliberativa e o primeiro na ação, aquele que dá início à ação. Com efeito,
, de fazer. O acrático TO ~rOÚµEVOV tem o sentido do que vai à frente, o que inicia a ação, especial-
IIDJOO ao qual se segue mente o que inicia a marcha, opondo-se ao que lhe segue, TO ÉlTÓµEVOV;assim,
no de incess. animaI., Aristóteles explica a marcha dos vermes mostrando como a
~ J(h, KPL9Év,"discri- parte que comanda (9 709a29: T0 ~rouµÉv<µ) se lança à frente, a parte traseira
~ e Aspásio lêem do animal seguindo~a, ou, com relação aos animais com diversas patas, como a
,guardar esta leitura. centopéia, ele observa que as patas intermediárias são ~rOÚµEva KUl ÉlTÓµEVU
~1rpÓ, "preferir" e "dis- (16 713a32), o caranguejo sendo o único animal que tem mais de um par de
IIDU ambigüidade do patas que comandam, ~rouµÉvouS' rróõos (16 713b14). No caso do homem,
D sentido de "preferir uma perna funciona dando início à marcha (12 711a22
como a condutora,
TOV rróôo TOV O que comanda, TO ~rOÚµEVOV, tem claramente
~rOÚµEVOV).
iD seguinte: "isto é, ao o sentido daquilo que dá início à ação (não é o único sentido, mas parece ser
~ ÍJYOÚµEVOVfoi cedo o sentido em questão aqui; em uma passagem da Política, como a virtude da
~ a razão. A frase criança é imperfeita, ela é dita não poder ser referida unicamente à própria
~ cq>letiva. O comen- criança, mas também ao seu preceptor, quem a dirige, TOV ~rOÚµEVOV, 112
lPcrin (Paris, 1548) a 1260a33; o sentido aqui é próximo do de princípio condutor como intelecto,
Ilprincipatum"; Denis mas se deve observar que se realiza em pessoas diferentes, enquanto, no caso
~partem quae praeest, em exame, trata-se de uma parte do próprio sujeito, amou TO ~rOÚµEVOV, o
!KIIl seu mentem po- genitivo devendo ser tomado como partitivo). Na Ética, o ponto consiste em
pe querens quomodo mostrar que, uma vez que alguém considera que algo é um bem para ele e se
~in anrecedenrem id", põe a buscá-lo como seu objeto de desejo, investiga por que meios poderá rea-
• querens qualiter lizá-lo, isto é, traz o princípio da ação a si mesmo, como agente, e à parte de si
r pios in anrecedens", (o membro do corpo, por exemplo) com a qual dará início à ação. A paráfrase
iis de Aquino comenta lê exatamente neste sentido: referimos o princípio do objeto buscado ao nosso
I da ação a si mesmo, querer, e nosso querer à escolha deliberada (48,37A9,1). Ao referir à escolha
puedente, que não é deliberada, procuramos o meio que, último na análise, é o primeiro na ação; o
I início. Insurgindo-se antecedens é como a perna que faz andar porque se projeta à frente. É preciso,
Iama afirmação banal assim, voltar à leitura de Grosseteste e da paráfrase; não há aqui a "única" afir-
Iks sobre a faculdade mação do intelecto como sede da escolha deliberada, mas um exame das duas
condições para cessar de deliberar: referir o princípio a si (isto é, considerar

Comentários I I9I
algo bom, e esta consideração é minha consideração) e à parte que comandará povo votava o que o GIl
a ação, decidindo por qual último meio se dará enfim início à obtenção do sem o consentimenm-4

a.
objeto desejado: abro a maçaneta, dou um passo à frente etc. a razão é que o c~
Il13a7 é isto, com efeito, o que é objeto de escolha deliberada. Se, na frase anterior, meramente executar
TO ~yOÚµEvOV for tomado como quer Aspásio, no sentido do intelecto, então do corpo pôr em m-I
TO rrpompoúrevov está na voz média: "esta é a parte que decide". Coerente- a ele questioná-lo, I
mente, Perion a traduz por "haec enim pars est quae deligit" e Lambin por 1113a12 desejam. ..
"haec enim est quae consilium capit"; assim também Gaurhier ("pois é ela que T~V !3oÚÀT]<JlV, "~
decide"). Porém, se a passagem for entendida no sentido que propõe Tomás de por um manuscrito ~
Aquino, então TO rrpompoúievov
erente, Grosseteste
está na voz passiva; de modo igualmente co-
e a vetus Ethica dão como texto "hoc enim est quod eligitur':
melhor"), Aspásio cia..
porém, também a ~
que me parece ser a boa tradução (Lambin, que protesta contra esta tradução, segundo o querer, ~
acrescenta em nota que "outros traduziram por 'isto é, pois, o que é escolhido' excluindo-o dos dois ~
<hoc enim est quod eligitur>, mas não está correto; Tomás de Aquino interpretou é bem atestada e pc:r-1
erroneamente esta passagem por culpa dos tradutores antigos"). tivo, de modo que se fiII
1113aS·9 pois os reis anunciavam ao povo o que haviam escolhido por deliberação. tipo de desejo, e não CIIII
Em In 4 1112a15, Aristóteles se serviu do vocabulário democrático ateniense precedente~ A~
para reíerir-se à escolha deliberada; aqui, recua aos tempos homéricos, fazendo tivo (ÕpEÇLS ~ouXE~
apelo ao modo antigo de decisão, que excluía o povo do ato deliberativo, reser- desejo à exclusão das ...
vado exclusivamente aos chefes. Para Aspásio, contudo, os reis representam a T~V ~OÚÀEU<JLV. .~
parte deliberativa, enquanto o povo é metáfora do desejo: o desejo votando as
decisões e coníormando-se a elas, engendra~se a escolha deliberada (74,33~75,3).
O comentário anônimo vai no mesmo sentido: o povo vota sobre o que foi

de_
decidido, assim como o desejo assente ao intelecto e conjuntamente engendram
a ação (151,1~3). Ambos tomam as constituições antigas pelas modernas, pois, Neste capítulo,
nos tempos homéricos, os reis anunciavam ao povo as decisões que haviam com as teses platôn.ia e~
tomado nos conselhos, cabendo ao povo unicamente executar o que havia sido como condição necrssW
decidido, sem nenhum poder de votação. A paráfrase oferece outra explica- obtida mediante c~
ção, que está, contudo, igualmente baseada na modernização democrática ambas; ao contrário. dai
dos conselhos antigos, democratização, aliás, extremada: os reis representam análise da ação. Seu •

0..
o querer; o povo, a escolha deliberada. Nos três casos, o exemplo é lido à luz como fim de uma ação..
da interpretação de III 4. Se, como proponho, o ponto consiste em trazer a não é algo que mera
si o princípio e àquilo que o põe em marcha, compreende-se melhor por que ção necessária da lógica ~
Aristóteles abandona o exemplo da Atenas democrática (na qual de fato o pelo prudente. Este aIO.
I92 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
Irtt que comandará povo votava o que o Conselho preparava como decisão, mas que ficava inane
Iiício à obtenção do sem o consentimento ~ou recusa - popular) e se volta aos tempos homéricos:
ac. a razão é que o conselho dos chefes decidia soberanamente, cabendo ao povo
Se. na &ase anterior, meramente executar a tarefa, assim como meramente incumbe a um membro
~do intelecto, então do corpo pôr em marcha o movimento decidido por deliberação, sem caber
~decide". Coerente- a ele questioná-lo,
Iigit" e Lambin por 1113a12 desejamos conformemente à deliberação. Gaurhier e Irwin lêem KaTà
Lia ("pois é ela que T~V ~OÚÀll<JLV, "segundo o querer: pois, embora esta lição seja dada unicamente
~ propõe Tomás de por um manuscrito (Mb, que, como o próprio Gauthier comenta, "não é o
IOdo igualmente co- melhor'), Aspásio cita esta leitura em primeiro lugar (75, 11), mencionando,
ID est quod eligitur", porém, também a outra, que adotei (KaTà T~V ~OÚÀEU<JlV). Para quem lê
DDtta esta tradução, segundo o querer, trata-se de restringir o objeto de escolha deliberada ao querer,
I.o que é escolhido' excluindo-o dos dois outros tipos de desejo. No entanto, KaTà T~V ~OÚÀEU<JLV
iAquino interpretou é bem atestada e permite interpretar a tese aristotélica de modo não restri-
âgos"). tivo, de modo que se faça com que a escolha deliberada opere sobre qualquer
Ihdo por deliberação. tipo de desejo, e não exclusivamente sobre um só. Nas linhas imediatamente
lDOCráticoateniense precedentes, Aristóteles escreve que a escolha deliberada é o desejo delibera-
Loméricos, fazendo tivo (ÕpEÇLS ~OUÀEUTlK1Í) do que está em nosso poder, não que é um único
,deliberativo, reser- desejo à exclusão dos outros, o que favorece a leitura não restritiva de KaTà
15 Ris representam a T~V ~OÚÀEU<JLV.
10 desejo votando as
iIJcr.uia (74,33~75,3).
I116
lDCl sobre o que foi
tamerlte engendram
~ modernas, pois, Neste capítulo, de estrutura aparentemente dialética Uá que há o confronto
b:isões que haviam com as teses platônica e sofística), Aristóteles sustenta a tese do bem aparente
Dr o que havia sido como condição necessária, mas não suficiente, do bem. Esta tese, ainda que
tRce outra explica- obtida mediante contraste com as duas outras, não é o resultado dialético de
ização democrática ambas; ao contrário, ela inaugura uma perspectiva inteiramente nova para a
as reis representam análise da ação. Seu significado filosófico é grande: todo objeto, para figurar
~lo é lido à luz como fim de uma ação, tem de ser tomado como tal pelo agente. O bem aparente
IIDSÍSte em trazer a não é algo que mera ou enganosamente figura como um bem; é uma condi-
~ melhor por que ção necessária da lógica do bem, seja ele perseguido pelo homem vulgar ou
l(na qual de fato o pelo prudente. Este ato de tomar algo como um bem faz com que o contexto

Comentários I I93
intencional seja inevitável no domínio prático. Condições de intencionalidade é primeiramente a COOI

não tornam relativo o domínio moral, mas o incrustam em uma região opaca, lídade, que pode, seoa
a dos desejos e intenções, da qual não tem mais como sair. É neste capítulo bem aparente no semid
que Aristóteles afirma que o homem moral funciona como que um padrão e proposições práticas i p
medida das coisas belas e agradáveis, afirmação reiterada na Ethica Nicomachea, uma passagem do t» A
mas que não encontra nenhum paralelo na Ethica Eudemia. que o bom e o mau. COI

sem mais, os segundo&:


1113a16 ao bem. Sigo a leitura de Aspásio (Tàya90u, e não àya90u dos intencionalidade é ina:a
mss.), que Bywater e Susemihl adotam. A tese apresentada é a platônica: em é necessariamente ubíqm
Górgias 466ss. é sustentada a doutrina que o querer é exclusivamente do que é casos. Por outro lado. a
bom realmente, Tàya90u ~ ~OÚÀT]<JlS" (cf. também Mênon 78a, Banquete 205a). seja bom; por trás do lá
Há outros objetos de desejo (os do impulso e do apetite), mas eles se vinculam não o bom desenvolvin.:
àquilo que apenas parece ser bom, não sendo de fato bom, TO <PalVÓµEVOV Portanto, também a doi
àya9óv. Na tese platônica, o bem aparente é carregado de teor pejorativo, porque assim o parece, I

mera aparência de que é bom. crença a seu respeito (A 'l


1113a16 a outros, ao bem aparente. A tese oposta é a de Protágoras; cf. Met. parece bom porque de.j
K 6 1062b13 e r 5 lO09a6; Theaet. 152a. A resposta que Aristóteles proporá Platão, nem, menos _
será assim, como freqüentemente ocorre em sua filosofia, uma recusa simul- tágoras). Tomás de J\cpI
tânea do platonismo e dos sofistas. racional ou a vontade é I
1113a17 Aos que dizem que o objeto do querer é o bem. Sigo a vulgata fornece, é requerido que se tr:II:Ie t
que dá como texto TOLS µE:V TO ~OVÀT]TOVTàya90v ÀÉYOU<Jl,texto que ado- a algo, mas somente qDlel
tam Bekker e Susemihl; o texto de Bywater, que se inspira em Aspásio (75, n- 8, i). O mesmo tx-
22) e em o-, é TOlS" µE:V ~OUÀT]TOVTàya90v ÀÉYOU<Jl,"aos que dizem que o que surpreende: em li 11
bem é objeto do querer". àya9óv, é o ~OUÀT]TW. o.
1113a19 era, no entanto, no caso, um mal. Em grego: ~v Õ, EL OÜTWS ETUXE, TO ÉKá<JT4l àya9óv. i 01
KaKóv. O imperfeito remete ao que foi acordado (alguém quer algo que é, po~ surpreende nesta pa.ss3fJI
rém, um mal), sem ter valor de passado. Traduzi, faute de mieux, por no caso. parece a cada um é ol;m
1113a23~24 é objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem, enquanto deve ser objeto do qtJCD:II
o que aparece a cada um é o bem aparente? Tese decisiva de Aristóteles, obtida ral (Stewart considera _
mediante a recusa da doutrina platônica e a dos sofistas. Por um lado, é bom mediante uma distinçãol
o que é realmente bom, ex parte rei; por outro lado, algo tem de parecer como se tivermos em mente 'JII
um bem, isto é, ser tomado como tal, para que ser objeto de busca. Deste condição subjacente ~
modo, parecer um bem, ou seja, ser um <PalVÓµEVOV àya9óv, não é mera- o bem real deve primeint
mente uma aparência, de caráter enganador, como queria o platonismo, mas parte do sujeito, deve r.-

I94 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


Ie intencionalidade é primeiramente a condição lógica do bem humano, isto é, sua inrenciona-
l uma região opaca, lidade, que pode, secundariamente, se revelar como uma crença falsa, um
.. É neste capítulo bem aparente no sentido platônico do termo. O comportamento lógico das
iD que um padrão e proposições práticas é posto claramente em contraste com o das teóricas em
• Ethica Nicomachea, uma passagem do De Anima: "o verdadeiro e o falso estão no mesmo gênero
r. que o bom e o mau, com a diferença que os primeiros são verdadeiro ou falso
sem mais, os segundos são bom ou mau para alguém" (III 7 431bl1~12). A
~e não àya90u dos intencionalidade é inextricável do mundo prático, enquanto tal fenômeno não
la é a platônica: em é necessariamente ubíquo no teórico, ainda que possa estar presente em certos
.wamente do que é casos. Por outro lado, não basta crer que algo seja bom para que ele de fato
~ Banquete 205a). seja bom; por trás do véu intencional está a realidade da coisa, que favorece ou
lIaS eles se vinculam não o bom desenvolvimento do sujeito que o considera de um modo ou outro.
~ TO <palVÓµEVOV Portanto, também a doutrina de Protágoras é rejeitada, pois algo não é bom
I de teor pejorativo, porque assim o parece, embora o bem humano não possa se fazer sem uma
crença a seu respeito (A 7 1072a29: "desejamos porque parece bom, antes que
iProtágoras; cf. Met. parece bom porque desejamos"; nem" desejamos porque é bom", como queria
Mstóteles proporá Platão, nem, menos ainda, "é bom porque desejamos", como sustentava Pro-
, uma recusa simul- tágoras). Tomás de Aquino é esclarecedor: "o bem ao qual tendem o apetite
racional ou a vontade é um bem apreendido, bonum apprehensum; assim, não
" a vulgata fornece, é requerido que se trate de um bem in rei veritate para que a vontade se dirija
1IlKJt, texto que ado- a algo, mas somente que ele seja apreendido como um bem" (Summa Theol. Ia
ira em Aspásio (75, Il" 8, i). O mesmo ponto é apresentado na MM, mas com um vocabulário
IDS que dizem que o que surpreende: em II 111208b39~09a1, lê-se que o bem sem mais, TO émÀWs
àya9óv, é o ~OUÀTJTÓV, o objeto de querer, mas o que parece bom a cada um,
5'• el OlrrwS" ETUXE, TO ÉKá<JT<p àya9óv, é o ~OUÀTJTÉOV, o que deve ser objeto de querer. O que
~ algo que é, po~ surpreende nesta passagem é que esperaríamos o contrário, a saber, que o que
~.aavc, por no caso. parece a cada um é objeto de querer, o bem propriamente dito sendo o que
~ o bem, enquanto deve ser objeto do querer, supondo que o deve introduz uma obrigação mo-
~Aristóteles, obtida ral (Stewart considera mesmo que o autor de MM esquivou-se do problema
Pu- um lado, é bom mediante uma distinção puramente verbal); no entanto, ela é compreensível
~ de parecer como se tivermos em mente que o fato de aparecer a alguém como um bem é uma
., de busca. Deste condição subjacente mesmo ao que é in rei veritate bom, de sorte que mesmo
IJ09óv, não é mera- o bem real deve primeiro ser objeto de uma crença sobre sua qualidade por
10 platonismo, mas parte do sujeito, deve tendo um valor puramente lógico. Em outros termos:

Comentários I I95
ser um bem aparente é uma condição necessária (daí ser ~OUÀllTÉOV), embora comenta, a respeito
não suficiente de algo ser de fato bom para alguém. desejo do bem (~. ..
Esta tese de Aristóteles é interpretada de modo muito diverso por Gauthier, ~oÉoS'), há uma di6aII
que pode ser tomado como representante de uma forte corrente de interpre-
tação: "a aspiração <le souhait, como Gaurhier traduz ~OÚÀll<JlS> é o princípio
de uma ação verdadeiramente humana, que é a ação virtuosa, o apetite e o
impulso sendo o princípio de ações de tipo animal, que são as ações viciosas.
O objeto de desejo é o bem (aparente, se se trata do desejo não-racional: real,
se se trata da aspiração), isto é, o fim" (Comm. p. 211). Gauthier apóia-se em
A 7 1072a27~28, Em9uµllToV µEV yàp TO <palVÓµEVOV àyu9óv, ~OUÀllTOV
OE lTpWTOV TO OV KaÀÓV, "o bem aparente é objeto do apetite, mas o bem que criticável; o termo
é real é o objeto primeiro do querer". Deve-se, no entanto, observar que, pri- (o que é expr~
meiro, esta passagem da Metafísica responde a outros problemas e talvez não o traduz, em I 9 11
se a possa ligar diretamente com o que se disputa aqui; mesmo assim, deve-se
observar, em segundo lugar, que a oposição se situa mais precisamente entre
um objeto de desejo, TO Em9uµllTÓV, que pode ser falso, e o objeto primeiro
de desejo, TO TIpWTOV ~OUÀllTÓV, que tem de corresponder àquilo que é de
fato bom (para que o sistema do mundo funcione ordenadamente); terceiro,
a passagem é concluída pela afirmação, mencionada na nota anterior, que
desejamos porque parece bom, não que parece bom porque desejamos, o que
volta a afirmar o contexto intencional inevitável em que se encontra o bem,
seja ele de fato ou somente em aparência um bem. Por um lado, Aristóteles
pode escrever que o objeto de desejo" é o bem ou o bem aparente" (De Anima
III 10 433a28~29; Phys. II 3195a26), não porque quer salientar que um tipo de
desejo (o querer) apreende o bem, enquanto os outros dois tipos (o impulso e o
apetite) apreendem o bem aparente, mas porque, dado o fenômeno intencional
que marca todo objeto de desejo, o que é buscado, do ponto de vista do objeto, o que é posto em
pode ser de fato um bem ou meramente aparecer como tal, ambigüidade que ralmente boas.
pervade o querer assim como o impulso ou o apetite. Por outro lado, Arisró-
teles escreve que "em todos estes casos o que é realmente éo que parece tal ao
homem virtuoso", TO <palVÓµEVOV TÇJ <JlTOUOaL(tl (X 5 1176a15~16) - o bem
aparente não é o que parece tal somente ao homem vicioso, mas também o
que parece tal ao homem virtuoso, com o detalhe que, por definição, o que clima; o barômetro i
a este último parece um bem é de fato um bem. Em Top. VI 8, Aristóteles em que ele próprio oáD

I96 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


~TÉOV), embora comenta, a respeito de certas teses platônicas, que se o querer é definido como
desejo do bem (ÕpEÇlS àyu90u) e o apetite como desejo do agradável (ÕPEÇtS
~ por Gauthier, ~OÉos), há uma dificuldade aqui para os platônicos, pois deveriam postular
rente de interpre- a existência de uma Idéia do bem aparente e do agradável aparente, mas ob-
ns> é o princípio viamente "não há Idéia de nada aparente" (147a6~7).O motivo de terem de
osa, o apetite e o postular uma Idéia de bem aparente ou de agradável aparente é o fato que,
,as ações viciosas. para ser objeto do desejo, "não é necessário que seja bom ou agradável, mas
oão--racional;real, somente que pareça tal" (147a3A).
dúer apóia-se em 1113a25 Assim, ao homem virtuoso. O crrouôoloc é o homem virtuoso,
ya9óv, ~OUÀ.Y}TOV moralmente bom, oposto ao <pouÀ.os, o homem de pouco valor, moralmente
e, mas o bem que criticável; o termo ocupa o lugar de *àpEToLos, que não existe na língua grega
observar que, pri- (o que é expressamente assinalado por Aristóteles em Cato 8 10b5~9).Dirlmeier
emas e talvez não o traduz, em I 9 1099a23, quando o termo aparece por primeira vez, por "o
mo assim, deve-se representante perfeito da vida nobre", e comenta que "Aristóteles coloca no
RCisamente entre lugar da Idéia <seloplatônica do Bem> a figura do representante perfeito de
e o objeto primeiro tudo o que é nobre", o que é uma figura forte, "mas perigosá', pois se imporia
àquilo que é de
:I' mais pelo zelo de sua estirpe do que propriamente pela bondade de seu cora-
bmente); terceiro, ção, como um herói nietzschiano. Isto é, no entanto, certamente excessivo.O
IIOU anterior, que termo seguramente tem um sabor aristocrático, mas Aristóteles o usa pelas
~~jamos, o que razões mencionadas no tratado das Categorias; trata-se do homem virtuoso,
e encontra o bem, que age sempre com seriedade, <JlTOUO~, que não é negligente, mas está sem-
alado, Aristóteles pre atento aos assuntos humanos. O homem virtuoso não só age bem, como
..-ente" (De Anima também apreende as razões de seu agir; ao apreendê-las, ele se torna prudente,
J;H que um tipo de <ppÓVlµOS. Aristóteles precisa destes dois termos para mapear com mais exa-
fos (o impulso e o tidão o domínio da virtude: enquanto no <PPÓVlµOS" é ressaltado o papel da
r-neno intencional virtude intelectual que opera no interior das virtudes morais, no <JlTOUOOLOs

ide vista do objeto, o que é posto em realce é o fato de suas disposições serem virtuosas ou mo-
Iambigüidade que ralmente boas.
IIJ[I'O lado, Arisró- 1113a30,31 a verdade se manifesta a ele. Como escreveu E. Moore (An
~., que parece tal ao Introduction, 1878), o orrouônioç não é o padrão ou a justa medida, "mas sua
1íal5~16) - o bem reconhecida conformidade ao padrão permite-nos usá-lo com um substituto a
li), mas também o ele. Similarmente, não é o barômetro, mas a pressão da atmosfera que regula o
li' definição, o que clima; o barômetro é somente um meio conveniente para marcar os fenômenos
I VI 8, Aristóteles em que ele próprio não influi". O bem é ajusta medida, e o prudente é aquele

Comentários I I97
T
a quem a justa medida aparece como tal; não há nenhuma

o barômetro é o instrumento ao qual ele aparece como tal.


circularidade
não mais do que o tempo chuvoso é o tempo sob certa pressão e umidade,

1113a33 como sefosse um padrão e uma medida delas. O homem de valor serve
aqui,
e
I
de critério para sabermos o que fazer, pois o que é realmente bom parece a ele
como um bem; cf. IV 14 1128a32, IX 4 1166a12~13, IX 9 1170a21~22, X 5
1176a15~16. O comentário anônimo o apresenta como KpLT~pLOV Kal. Kavwv. opinião.
Gauthier comenta que "a regulação objetiva de Platão é substituída, em certa 1113b5~6as
medida, por uma regulação subjetiva", Isso pode ser enganador, pois não há
propriamente uma "regulação" subjetiva, mas somente uma "condição" subjetiva
para que o bem apareça ou seja considerado como taL Aristóteles permanece
fiel à tese de uma verdade na ação, um bem objetivo, mas reconhece o ambiente
subjetivo ou intencional como inevitavelmente envolvendo o domínio prático.
Para cada situação, há uma e unicamente uma coisa que deve ser feita, mas isto
não é isento ou independente do modo de tomar algo a certo título. Aristóte-
les não abandona a objetividade do bem; o que ele abandona é a naturalidade
do bem, agora para sempre imerso em um contexto intencionaL O juízo do
homem de valor não é constitutivo do ser bom das coisas; ele é o guia em que
podemos confiar para atravessar o espesso véu da intensionalidade lógica em
que se exprimem as proposições práticas. Dirlmeier, por sua vez, confunde
uma tese lógica com uma observação sociológica ao dizer que as normas éticas agente para sua otu:4
últimas para Aristóteles são, na Ethica Nicomachea, "as tradições nobres de seu 1113b6 Assim, p"
povo", visto que o <JTTOUOaLOS lhes serve de regra. KaL ~ àpET~), que
1113bl Buscam, ao menos. Sigo Susemihl, que lê yoUv (Mb), que tem um OE KaL ~ àPETTÍ da
valor restritivo, "pelo menos", "na medida em que"; Bekker ou Bywater lêem
ow (KbLb), "assim", "em conclusão".

III 7 ação humana, em


àquilo a que posso
logicamente aberta ao
Como é típico nas obras filosóficas de Aristóteles, o tratado é concluído ou de outro modo.
com um exame de opiniões correntes: (a) observação sobre o dito que "ninguém 1113b13 e se i _
é miserável voluntariamente nem afortunado involuntariamente" (l113b14 valor temporal de ~
- 1114a3); (b) discussão do fenômeno da negligência e de seus problemas de dativos àya801S e ~
t

I98 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8

'.
"
aridade aqui, responsabilidade moral (1114a3~31);(c) exame de uma objeção, segundo a qual
e umidade, e não somos senhores do modo como as coisas nos aparecem e, por isso, não
podemos ser responsáveis de nossas disposições (1114a31 - 1114b25).
ik valor serve
parece a ele
11 1113b4 que concernem a elas. Como Grant observa, não é claro a que
1b21~22,X 5 se refere rrepl TalJTa; a paráfrase propõe "os meios"; Srewarr é de mesma
v KUl Kavwv. opinião.
ida. em certa 1113b5~6 as atividades das virtudes. Segundo Gauthier, Aristóteles diz ex-
; pois não há pressamente o contrário em VI 13 1144a20~22, e ele vê nesta passagem uma
ição" subjetiva "novamanifestação da contradição irredutível que opõe à doutrina da imanên-
es permanece cia da ação moral a análise psicológica da ação", entendendo por "atividades
a= o ambiente das virtudes" o ato de pôr os fins. Gauthier é seguramente excessivo;embora,
1ÚnÍ0prático. como já observou Grant, a expressão não seja usual (Aristóteles escreve de
m.,masisto preferência ol KaT' àpET~V EVÉPYElal, "as atividades segundo uma virtude"),
alo. Aristóte- ela não compromete a doutrina aristotélica, pois simplesmente alude às ativi-
Inaruralidade dades que os homens praticam a partir de suas disposições ou virtudes morais,
ti. O juízo do e estas atividades se referem à busca de meios para realizar os fins almejados,
_gwaemque não à própria atividade de pôr os fins. A passagem de VI 13 mencionada por
ade lógica em Gaurhier, por sua vez, precisa que a virtude põe o fim, o que não é em nada
IEZ, confunde contraditório com a busca dos meios pelas atividades postas em operação pelo
aonnas éticas agente para sua obtenção.
nobres de seu 1113b6 Assim, por certo a virtude. Adoto o texto de Bywater e Susemihl (o~
Kal ~ àpET~), que seguem a paráfrase, ao contrário de Bekker, que mantém o
~quetem um 8É Kal ~ àpET~ da vulgata. Como escreveRassow, "afrase é uma conseqüência
Bywater lêem do que vem antes" (Forsch. ad loc.).
1113b7~11 Com eftito, naquelas coisas .,. quando é desonroso. Expressão por
excelência da tese aristotélica concernente à liberdade ao agir: no domínio da
ação humana, em função da presença da razão como procedimento de decisão,
àquilo a que posso dizer sim posso igualmente dizer não. A ação que faço está
logicamente aberta ao sim e ao não; pela decisão que tomo, ela se faz assim
lo é concluído ou de outro modo.
cp1e "ninguém 1113b13 e se é isto sermos bons e sermos maus. O imperfeito ~v não tem
RIr" (1113b14 valor temporal de passado, mas faz referência a uma suposição retomada; os
,problemas de dativos àya9Ôl5' e KaKoLS,por sua vez, resultam do fenômeno lingüístico de

Comentários I I99
atração por E<P' ~µlv que lhes segue, não respondendo, como bem mostrou
Trendelenburg (Rhein. Museum II 1828, P: 457), ao sintagma filosófico aristo-
télico TO àyue0 EtVaL.
1113b13 está em nosso poder, por conseguinte. A expressão ocorreu diversas
vezes ao longo deste parágrafo; ela pode funcionar como sinônimo de objeto
de escolha deliberada. Alexandre, no de Fato, define TO E<P' ~µlv como TO
yL yVÓµEVOV µETà T~S KUTà ÀÓyov TE KUl Kplmv O"UyKUTUeÉO"EúlS, "o que
está acompanhado de assentimento por razão ejuízo", ou, sucintamente, "as-
sentimento raciona!", ÀOyUCT]O"uyKuTáeEO"LS; todo ele é voluntário, mas nem
todo voluntário é E<P' ~µlv (o que coincide com a apresentação do objeto de
deliberação em III 4 11l1b7~8); nos Problemas Éticos XII, Alexandre volta a
apresentá-lo como "sendo os objetos voluntários que são objetos de deliberação
e por deliberação" (160,1). Donini propôs que a primeira pessoa do plural não
é acidental, "pois ninguém é deixado a sós para decidir pela virtude ou pelo
vício, todo mundo é filho de uma família e membro de uma cidade, que põe
à disposição, em teoria, de todo indivíduo os recursos mínimos para obter a
excelência moral; a virtude depende, assim, e seguramente, de um nós" (Ethos,
p. 119). Isto é uma verdade sociológica importante, mas o ponto de Aristóteles
consiste em assinalar que cada um, ao agir, é senhor do sim e do não quanto
aos meios, e nisto a decisão é individual, por maiores que sejam as influências,
inegáveis, do meio social: nós somos senhores de nossas ações porque cada um
de nós é senhor de suas ações.
1113b14-15 ninguém é miserável voluntariamente nem afortunado involunta~
riamente. Sigo o texto de Bywater: µuKápLOS' parece ser a leitura de todos os
manuscritos, Bekker e Susemihl adotando a correção µáKUp proposta por
Victorius; o sentido, porém, é o mesmo. O comentário anônimo menciona
o verso de Epicarmo OV&lS ÉKWV TIOVllPOs- 000' aTIUV EXúlV, "ninguém é
miserável voluntariamente nem vítima de infortúnio", que Gauthier retoma.
O verso citado por Aristóteles aparece também no diálogo platônico apócrifo
Do justo: Sócrates o cita, com efeito, na forma proposta por Victorius, OOOElS'
ÉKWV TIOVllPOS ovo' aKúlv µáKap. Sócrates quer ver aqui que ninguém é mau
voluntariamente nem feliz involuntariamente; o verso, todavia, parece dizer
antes que "ninguém é infeliz voluntariamente, nem feliz involuntariamente".
O termo TIOVllPÓS tem, com efeito, dois sentidos: infeliz e maldoso. Aristóteles

200 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


parece igualmente ler maldoso e não infeliz. Em português, miserável tem uma
ambigüidade semelhante.
1113b17 o quefoi dito agora. Cf IH 5 1112a31~33 e 1112b30~31.
1113b20-21 além dos que estão em nós, estão em nossopoder. Bekker dá como
texto rrnpà Tàs E<j>' ~µlv, WVKal ai. àpXaL E<j>' ~µlv, "além dos que estão em
nosso poder, estão em nosso poder •.:', que é confusão freqüente nos manuscri-
tos; Susemihl e Bywater seguem a proposta de Rassow, que igualmente adotei
(TIapà TàS' EV ~µlv, WV Kal ai. àpXaL EV ~µlv). Os princípios em questão
aqui são, prioritariamente, os princípios eficientes ou motores, isto é, os meios
descobertos por deliberação; basta a Aristóteles a tese que não precisamos a
recorrer a nenhum princípio motor fora de nós para estabelecer seu ponto.
No entanto, sua tese é também compatível com um sentido mais amplo de
princípio, capaz de englobar os princípios finais, a saber, os fins representados
pelo agente a partir de urna atividade intelectual. No fim do capítulo, Aristóte-
les alude à possibilidade de um aperfeiçoamento da faculdade de pôr os fins, o
que implica que é uma atividade noética, embora cuidadosamente não entre em
detalhes a seu respeito. A ROT (Revised Oxford Translation) traz sempre, ao longo
deste capítulo, "princípio motor" no lugar de àpx~; é de fato o ponto da tese, mas
isto termina abruptamente com a possibilidade de ver entre os princípios algo
além do princípio motor, o que não parece ser a intenção de Aristóteles.
Segundo Bosrock, afirmar que, visto não podermos ir a causas da ação que
estejam fora do agente, então temos de admitir que a ação está em seu poder
"is plainly a non sequirur" (Aristotelian Ethics, p.114), pois do fato de os desejos
estarem no agente claramente não se segue que ele os controla, pois "se eles
causam as escolhas, então também as escolhas não estão em seu poder" (p.
115). O problema é que, justamente, para a filosofia clássica, e especialmente
para Aristóteles, a razão funciona como um reduto último que não pode ser
causado de modo eficiente: o fim é a causa final de minha deliberação, mas não
determina a escolha dos meios, que é a causa motriz de minha ação. Aristóteles
parece adotar uma posição compatibilista: os fins podem ser dados exterior-
mente, mas, se delibero acerca dos meios, então sua escolha é minha escolha e
a ação será, em um sentido relevante, minha ação. Sua tese não é compatível
com a necessitação do agir, mas é compatível com uma causa anterior, a causa
da deliberação, que não determina os caminhos próprios do deliberar.

Comentários I 20I
1113b31-32 as penas são dobradas. Lei atribuída a Pítaco, tirano de Mití-
Iene no início do séc. VI; cf. IX 6 1167a32; Pol. H 121274b18~23; Rhet. II 25
1402b9~12.Como observa Irwin, "Aristóteles não supõe que sejamos respon~
sáveispela ação causada pela ignorância, mas somente que somos responsáveis
pela ignorância que causou a ação".
1114a4 a não se inteirar. Figura aparentemente anódina do fracasso moral,
o homem que não se preocupa com os outros faz-se acompanhar, no entanto,
do injusto e do intemperante, muito provavelmente porque o comportamento
moral tem sua fonte no ato de interessar-se pelo outro, não ser negligente, em
suma, demonstrar µEÀÉTll, cura, enquanto o comportamento imoral encontra
suas raízes no fenômeno do descuido, do desinteresse.
1114all-12 mais ainda, é irracional ... não pretenda ser intemperante. Rassow
propôs deslocar esta frase à linha seguinte, após "eleé voluntariamente injusto";
mantive, porém, a ordem de Bekker, preservada também por Bywater.
1114a12 não ignorando. Pode-se entender que o agente não ignora (i) as
circunstâncias particulares no interior das quais se produzem as ações; sendo
elas,por conseguinte, voluntárias, ele se torna injusto voluntariamente. Ou bem
que o agente não ignora que (ii) se tornará injusto ao praticar atos injustos.
O argumento desta seção e da parte subseqüente do argumento favorecem a
segunda leitura.
1114a14 eficará justo. A ética aristotélica é recalcitrante ao perdão, assim
como ignora a noção de conversão, que, como nota Gauthier, apoiando-se em
P. Mesnard, "é tão essencial ao cristianismo".
1114a15 Contudo. Adoto a correção proposta por Rassow (Kal TOl), que
Susemihl introduz em seu texto; Bywater segue Bekker, guardando a leitura
da vu 1gata, KaL," 11"e.
1114a17 tendo dissipado. Como observa Grant, "jogar forá' ou "abandonar"
é o único sentido em que TIpOLEO"em é utilizado na ética; o objeto do verbo,
não explicitado no texto grego, é "a saúde".
1114a18 o lançar. Os manuscritos mais importantes lêem "lançar e atirar",
alguns poucos fornecem, porém, como leitura "pegar e atirar". É possível que
"e atirar" (Kal p1t/!m) tenha sido introduzido no texto como glosa de ~aÀElv,
e, uma vez introduzido, tenha provocado a alteração de ~a'\Elv em Àa~Elv,
"pegar", ou bem que, produzida acidentalmente a alteração de ~aÀElv em

202 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


Àa~Êlv, foi acrescentado Kal P1t/im em função do sentido da frase. Sigo o
texto de Bywater, que atetiza Kal Pit/im; Susemihl preferiu Àa~Êlv Kal plt/im,
enquanto Bekker manteve ~aÀE1v Kal Pit/im.
1114a21 já não lhes é possível não o serem. Sigo o texto de Susemihl: yEVO-
µÉVOLS' 8' OVKÉTLEÇEO"TLVµ~ Etvm (Bywater lê yEVOµÉVOLS 8' OVKÉTL EGTL
µll'~Mb
ELVm; '
: yEVOµEVOLS 1::"" OUK EGTLV µll,r ELvm;
u Lb: yEVOµEVOLS
' ~" OUK
u

EÇEO"TLVµ~ Etvm; O sentido é basicamente o mesmo). Tomada literalmente,


a frase diz que, a certo momento do desenvolvimento da vida de um homem,
ele se torna incorrigível do ponto de vista prático. Em VII 11 1152a32~33,
Aristóteles cita, com aprovação, o poeta Eveno a respeito do hábito: "eu digo
que é uma ocupação de longo tempo, amigo, e então / fica, ao cabo desta
ocupação, uma natureza para os homens". Aristóteles menciona também os
"homens incuravelmente maus" (V 13 1137a29) e, no tratado sobre a Memória,
~811 TO EeOS).
o hábito é dito operar como uma natureza (2 452a28: <j>ÚCTLS
Todavia, ele se apressa a não dramatizar a situação, pois observa, em VII 11
1152a30, que "é mais fácil alterar o hábito do que a natureza": pode ser difícil
alterá-lo, mas não é impossível.
1114a27-28 ou por outra intemperança. Esta outra intemperança, prova~
velmente, faz referência ao excesso de relações sexuais, pois, nos Problemata
(pertencente ao que tudo indica à primeira escola aristotélica), é enunciado o
problema de saber por que os que têm relações sexuais freqüentes perdem a
acuidade da visão (a razão dada é que a parte superior fica freqüentemente mais
seca do que devia, já que a umidade se dirige sobretudo para a parte inferior
do corpo; o mesmo efeito ocorre com os eunucos, por causa da mutilação, que
provoca neles, ainda, o inchaço das pernas: IV 3 876b24~32).
1114a32 do modo como aparece. Em grego: T~S' <j>avTaGlaS', que não deve
ser tomada aqui no sentido aristotélico técnico (a saber, a faculdade da alma
que preserva o que é dado na sensação sob a forma de imagens sobre as quais
o intelecto vai operar, funcionando como uma ponte entre razão e sensação),
mas no contexto da objeção, a saber: não somos senhores do modo como
aparece o bem. Para o objetor, o modo como aparece é um fenômeno pura~
mente natural.
1114a32 tal qual cada um é. Alexandre tem, mais simplesmente, "mas como
cada um é <OlOS>, tal fim lhe aparece", Probo Éticos XXIX.

Comentários I 203
1114bl-3 se, então ... do modo como aparece. Os comentadores modernos
vêem nesta frase uma primeira réplica à objeção formulada em 1114a31~b1.
Segundo Susemihl, 1114a31~b1seria a inteira objeção, à qual todo o resto da
passagem, de 1114b1 a b16, forneceria a resposta; Bywater, no entanto, divide
o texto diferentemente: à objeção inicial uma primeira réplica é sugerida em
1114b1~3;em seqüência a esta resposta, a objeção é retomada em 1114b3~l1,
à qual uma nova resposta é dada em 1114bll-16. A escansão de Bywater é
preferida pelos comentadores modernos; Irwin e Narali, por exemplo, a ado-
tam para a divisão e interpretação do texto. A passagem 1114b1~3EL µEV oDv
... amOs- a'l TLOS é tomada como uma primeira réplica em função sobretudo
de 1114b22~24,linhas nas quais Aristóteles afirma que somos causas coad-
juvantes das disposições e pomos os fim segundo a nossa natureza: como a
natureza prática é constituída por nosso caráter, e dele somos em parte causa,
então somos igualmente em parte causa do pôr os fins. Creio, porém, que se
perde deste modo a estrutura do argumento e, sobretudo, a força da resposta
de Aristóteles. Um sinal disso está no fato que o argumento é apresentado de
um modo curioso, com uma primeira réplica no interior da objeção, à qual
vem se ajuntar uma segunda resposta. Além disso, essa primeira réplica seria
simplesmente uma mera afirmação da tese aristotélica, a qual está, porém,
posta em questão pela objeção - como se ignorasse o que está sendo refutado.
Ainda, deve-se igualmente assinalar que µEV ow em 1114b2 é pouco apto a
introduzir uma réplica à objeção precedente (embora não impossível). O que
é mais importante, porém, é que se pode dar à objeção uma formulação mais
forte, se se considera que ela vai de 1114a31 a b11, à qual uma resposta con-
tundente é fornecida por Aristóteles. O argumento parece~me ser o seguinte,
a objeção estando dividida em três partes: (la, apresentação da tese geral)
"tendemos todos ao bem aparente, porém não somos senhores do modo como
aparece, mas tal qual cada um é, tal fim lhe aparece; se, portanto, cada um é de
certo modo causa para si mesmo da disposição, será ele causa de certo modo
também do modo como aparece"; (Ib, desenvolvimento quanto ao vício): "se
não o é <isto é, se não é senhor do modo como aparece, como é suposto nesta
objeção>, <então: início da apódose> ninguém é causa para si mesmo do agir mal,
mas faz a si estas coisas por ignorância do fim, acreditando que através delas se
obterá o melhor para si"; (lc, desenvolvimento quanto à virtude): "a tendência

204 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


do fim não é auto-escolhida, mas o homem deve nascer como que possuindo
um olho pelo qual julgará bem e pelo qual escolherá o bem segundo a verdade,
e é bem nascido aquele a quem isto é naturalmente bom, pois é o que há de
maior e de mais belo, e que não é possível receber ou aprender de outro, mas,
tal como nasceu, assim se comportará, e a boa estirpe verdadeira e perfeita é
ter isto bem e belamente por natureza", A objeção está fundada na suposição
que ninguém é senhor do modo como algo lhe aparece como um bem ou como
um mal e argumenta que, se somos senhores das disposições, como é suposto
na tese aristotélica, então temos de ser senhores do modo como aparecem;
ora, como, segundo a objeção, ninguém é senhor do modo como aparecem,
ninguém pode ser senhor das disposições, e a virtude e o vício dependem em
suma da natureza com que nascemos e não das decisões que tomamos. O
ponto de 1114b1~3EI.µE:V oUv ... amOs- a'LTLOS não consiste na expressão, sob
forma de primeira réplica, da tese aristotélica que, se somos senhores de certo
modo das disposições, então somos senhores parcialmente do modo como o
bem a nós aparece, pois as disposições constituem nossa natureza prática e o
fim é posto em função da natureza prática do agente; ao contrário, o ponto
de 1114b1~3consiste em assinalar que, para sermos senhores de nossas dispo-
sições, temos de supor que somos senhores do modo como um objeto a nós
aparece - ora, essa suposição é, segundo a objeção, excessiva,pois ninguém é
senhor do modo como o objeto a ele aparece, por conseguinte tampouco de
suas disposições. Como nossas disposições provêm dos atos que fazemos, elas
só podem estar em nosso poder se os atos o estiverem; estes só podem estar em
nosso poder se o modo como algo nos aparece está em nosso poder. O modo
como algo nos aparece é causa do ato, que por sua vez é causa da disposição;
a objeção consiste em remontar à base da cadeia e argumentar que ninguém é
suposto ser senhor do modo como um objeto lhe aparece. A esta longa objeção,
Aristóteles oferece a seguinte solução: (2a, problema da objeção): "se, então,
estas coisas forem verdadeiras, em que a virtude será mais voluntária do que
o vícioi", ou seja, é suposta uma simetria entre ser bom e ser mau do ponto
de vista da natureza, o que destrói para a virtude a reivindicação de nos ser
própria. No entanto, o objetor poderia aceitar abandonar a reivindicação de
autoria das virtudes, visto que não a quer para os vícios. Aristóteles precisa
então de uma resposta mais forte: (2b, solução): "<são, na verdade, um e outro

Comentários I 205
voluntários>; a ambos, pois, de mesmo modo, ao bom e ao mau, o fim aparece
e se estabelece naturalmente ou de qualquer modo, mas o que quer que façam,
referem o resto a este fim. Então, ou bem um fim qualquer aparece a cada um
não por natureza, mas depende em algum sentido dele, ou bem o fim é natural;
<no fundo, isto pouco importa> mas, pelo fato de o homem virtuoso fazer o
que resta voluntariamente, a virtude é voluntária, e não menos voluntário será
o vício. Com efeito, do mesmo modo está presente no homem mau o agir por
si próprio nas ações, ainda que não no fim". O ponto principal de ataque à ob-
jeção, assim, é a afirmação que, qualquer que stja a natureza do fim - seja ele posto
naturalmente ou por nós mesmos -, o fato é que realizamos o resto (isto é, os
meios para obter o fim) por nossa própria escolha, o que nos torna autores de
nossas ações, ainda que não do fim. Trata-se de uma doutrina depurada ou
moderada da liberdade: se somos capazes de decidir soberanamente sobre os
meios para obter um fim, não precisando recorrer a outras causas do que as que
estão em nós mesmos, então somos causas do que fazemos e, conseqüentemente,
responsáveis de nossos atos. A partir desta tese moderada, que serve de solução
à objeção movendo-se no seu próprio campo (pois não precisa estabelecer que
pomos nós mesmos os fins, somente que deliberamos soberanamente sobre
os meios para realizar os fins, qualquer que seja o modo pelo qual os fins são
postos), Aristóteles poderá propor, em segundo lugar, que somos causa coad-
juvante de nossas disposições na medida em que somos causa plena de nossos
atos e que a conjunção de atos em um mesmo sentido cria a disposição; ora,
como o modo como aparece um fim está em relação com o modo como somos
e nossa natureza prática é determinada por nossas disposições, terminamos
por nos amoldar e de certo modo determinar que fim aparece a nós. Somos,
então, de certo modo causa do modo como o fim nos aparece, mas isso não é
condição para sermos senhores de certo modo de nossas disposições, é antes
sua conseqüência. O tom da objeção é fortemente platônico. Sobre o tema da
boa estirpe ou bom nascimento, Ev<pVta, ver Mênon 99 ss. Em X 10 1179b20~23
Aristóteles escreve que "uns crêem que os homens se tornam bons por natureza,
outros pelo hábito, outros pelo ensino; ora, é claro que não pertence a nós o por
natureza, mas pertence aos que são verdadeiramente bem-afortunados graças a
certas causas divinas"; o homem afortunado foi desenvolvido particularmente
na EE VIII 2, mas já não é tratado na EN.

206 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


1114b3 se não o é, ninguém. Este é o texto (el OE µ1Í OOOElS') adotado por
Bekker, Ramsauer, Bywater e Gauthier, em conformidade com Kb e Ob; Su-
semihl e Rassow seguem a lição dos outros manuscritos, El OE µllOElS, "se
ninguém", assim como Alexandre. Nesta última leitura, a apódose começa em
1114b8 ("e é bem nascido ..:'); na leitura proposta, a apódose começa em 1114b3
("ninguém é causa ..."). O ponto importante me parece ser tomar o "se não o
é" como uma evidência para a objeção: para sermos senhores em certo modo
de nossas disposições, temos de ser senhores de certo modo de aparecer dos
fins; ora, segundo a objeção, isto não está em nosso poder.
1114b6 A tendência do fim. O termo grego é aOOalpETos, literalmente, que
escolhe ou toma um objeto por si próprio. O termo, que aparece em escritores
clássicos como T ucídides, Sófocles, Eurípides e Demóstenes, é o que de mais
próximo o grego tem por oferecer para a noção moderna de autonomia. O termo
grego airrovoµla não pode ser usado neste sentido, pois tem o sentido pejorativo
de alguém que faz para si as próprias leis, desconsiderando os bons costumes:
é assim que, no Amatorius de Plutarco, Ismenodora, bela viúva, tendo-se servido
de meios pouco convencionais para obter os favores do jovem Bacchon, caiu em
desgraça "por causa de sua airrovoµla" (755B #11; algo como: "por causa de
sua desenvolrura", na política, porém, aÜTovoµla designa a independência de
que gozam as cidades gregas e é usado com grande freqüência pelos oradores
atenienses). Aristóteles, porém, não pretende fazer da noção de aOOalpETos o
ponto central de sua doutrina da razão prática como causa própria; ao contrário,
o ponto nodal de sua tese consiste na noção de TIpoalpEGLS, de escolha deliberada
concernente aos meios pelos quais realizamos os fins que nos aparecem, não o ato
de pôr ou tomar os fins. Tendo estabelecido o ato de sopesar razões no tocante
aos meios, Aristóteles passa então a demonstrar que, ao determinar o desenrolar
de suas ações, o agente pode influir na criação de seu caráter; influindo nela,
determina de certo modo como os fins lhe aparecem, pois estes estão em con-
sonância com sua natureza, e sua natureza prática é delimitada por seu caráter.
Ser aLealpEToS' é conseqüência de agir rrponpoúievos, não sua condição, como
pretende a doutrina moderna da autonomia.
1114b6·7 como que possuindo um olho. Como observa Narali (La Saggezza, P:
126 n. 44), esta passagem tem uma clara intenção polêmica contra Platão, que,
em Rep. VI 518b~519d, compara a obtenção de princípios práticos a um tipo de

Comentários I 207
visão; a isto Aristóteles contrapõe "o olho que provém da experiência" (VI 12
1143b13~14),através do qual o prudente vê corretamente o que deve ser feito.
1114b17 mas depende em algum sentido dele. Literalmente, "mas há algo
também dele", "de chez luto
1114b21 ainda que não nofim. Em grego: Kal el µ~ EV Ti!> TÉÀEL. A edi-
ção aldina apresenta Kal EV Ti!> TÉÀEL, "e no fim", enquanto K'' sugere Kal EV
TEÀEl<[l, "e no completo", que Cardwell (Aristotelis Ethic. Nicom. Oxford 1830)
refere a X 51176a17 TOV TEÀElOU Kal µaKaplou àv8pós, "do homem perfeito
e afortunado", de modo que se leia "e no homem perfeito".
1114b22 comofoi dito. Segundo Stewart, trata-se do que é sustentado pelo
oponente da objeção anterior; no entanto, parece mais natural ver aqui uma
remissão ao que foi exposto ao longo de todo o livro III, a saber, que a virtude
é voluntária, assim como o vício, o que é a tese aristotélica.
1114b23~24 pelo fato desermos de certa qualidade. Admissão complemen-
tar: como agimos voluntariamente e de nossas ações nascem as disposições,
somos causa coadjuvante delas e, nesta medida, como nossas disposições
constituem nossa segunda natureza ou qualidade moral, fixando nosso cará-
ter, pomos de certo modo os fins, pois eles aparecem em conformidade com
a natureza prática do agente. Isto significa que o ato de se representar algo
como um bem pode ser aperfeiçoado, o que de fato é uma característica do
intelecto (no caso, prático). Esta tese difere de modo crucial da que é apre~
sentada em 1114b1~3(que, a meu ver, faz parte da objeção), pois nela é dito
que, se sou senhor da disposição, isto ocorre porque sou senhor do modo
como aparece o fim (o agente tem de ser auealpETos para ser propriamente
responsável, o que o isenta de seus atos maus, embora, em relação aos bons,
ele seja sua causa por ter uma boa natureza, um olho natural pelo qual julga
corretamente o que é bom e mau); na tese aristotélica, apresentada aqui, ao
contrário, como as ações são voluntárias, então somos de certo modo causa
coadjuvante das disposições; como as disposições constituem nossa natureza
prática e os fins aparecem em conformidade com a qualidade do agente, en-
tão podemos controlar de certo modo como aparecem os fins. Assim, para
Aristóteles, não é porque somos senhores do modo como aparecem os fins
que controlamos de certo modo nossas disposições, mas porque somos (de
certo modo) causa de nossas disposições (ao sermos causa própria das ações

208 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8


que as engendram) terminamos por pôr nós mesmos os fins, aqueles que
correspondem à qualidade moral que adquirimos. Na base disto tudo está
o fato que, dado um fim, escolhemos os meios para realizá-lo, de modo que
nossas ações são voluntárias.

III 8

Pequeno parágrafo de conclusão, um tipo de arremate de toda a discussão,


iniciada em I 13, sobre a natureza da virtude moral.

1114b26-30 Discutimos em geral ... como a reta razão ordena. Como mostra
Irwin, esta passagem resume os livros H e III 1~8,evidenciando a unidade
temática da discussão da virtude do caráter (I 13 - IH 8). Grant, porém,
considera que funciona como uma ponte de IH 1~8à discussão que se segue
imediatamente das virtudes particulares, possuindo marcas de ter sido acres-
centada para servir deliberadamente de ligação. Mesmo assim, IH 7 1114a3~10
retoma a doutrina da formação do caráter com base no que foi dito no início
de Il: contra Grant se pode dizer que, em geral, o livro III explora o que foi
explicitado em H, a saber, que a virtude ou bem é ou bem não ocorre sem
escolha deliberada, preparando a discussão sobre qual é a boa deliberação
prática, isto é, a prudência, discussão realizada ao longo do livro VI, após o
exame das virtudes particulares.
1114b30-15a3 Porém, as ações ... por esta razão são voluntárias. Susemihl
desloca esta passagem para o fim de IH 7, fazendo com que IH 8 contenha
somente o sumário. Spengel considera que estas linhas "talvez contenham
somente uma nota marginal", sem poder funcionar como conclusão, pois, se
fossem a conclusão do que foi estabelecido previamente, deveriam se limitar
a afirmar que o vício é tão voluntário quanto à virtude (Arist. Studien, P: 37);
no entanto, Aristóteles mostrou igualmente que as disposições introduzem
uma fixidez psicológica tal que influi no modo como aparecem os fins e,
qualquer que seja sua conseqüência para a ação moral, pelo menos de sua
criação nós somos responsáveis, mediante a decisão sobre os meios para re-
alizar uma ação.

Comentários I 209
1114b31 do início ao fim. De toda ação, somos senhores do início ao fim:
outra expressão da tese aristotélica que, para cada ação, se posso dizer sim,
então posso dizer não. Se distinguirmos entre ação básica e ação complexa,
então o homem é soberano de uma ação complexa porque soberano de cada
ação básica.

2IO I Ethica Nicomachea I 13 - III 8

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