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Marco Zingano
Tradução, notas e comentários
Obras Comentadas
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A coleção Obras Comentadas publica traduções comentadas de obras de filosofia.
A série sobre seções temáticas das obras de Aristóteles é organizada e produzida
por professores e pesquisadores universitários de reconhecido trabalho na área e
são discutidas previamente pelo grupo de pesquisa sobre filosofia aristotélica,
dirigido por professores da USP e UNICAMP; a versão final e o comentário,
porém, são de inteira responsabilidade do autor. A série de estudos aristotélicos
visa colocar à disposição do leitor traduções em língua portuguesa, com comentá-
rio acadêmico de natureza filosófica e filológica, no intuito de promover a cultura
clássica e, especialmente, a reflexão sobre a filosofia de Aristóteles.
ISBN 978-85-88023-98-7
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9 788588 023987 >
INTRODUçAO
Introdução I 9
tempo, prevaleceu a tese segundo a qual estes livros comuns eram originários
da EN; tendo ocorrido o desaparecimento dos livros IV, V e VI da EE por
algum extraordinário infortúnio, eles teriam sido substituídos pelos livros cor-
respondentes da EN. Com base sobretudo nos trabalhos de Anthony Kenny,
porém, a opinião corrente é bem diferente. Pensa-se hoje que os livros comuns
pertenceram originariamente à EE e dali foram transpostos, eventualmente
com algumas adaptações, à EN. Mais adiante, fornecerei alguns detalhes sobre
como concebo a relação entre estes dois tratados; de qualquer modo, é ganho
da literatura do séc. XX a inequívoca ascensão da EE às obras autênticas de
Aristóteles.
Enfim, a EN é a obra ética mais conhecida de Aristóteles e, também, a
mais comentada, e isto desde a Antigüidade. O título da obra não é claro
nem aparece como tal nos catálogos mais antigos das obras de Aristóteles.
Pode-se entender por Nicomachea tanto que o livro foi dedicado (pelo próprio
Aristóteles) a (com mais probabilidade) seu filho ou a (com menos probabili-
dade) seu pai, ou mesmo que ele tenha sido editado por seu filho. O mesmo
vale para a EE: por Eudemia se indica ou bem que o tratado foi dedicado ao
amigo Eudemo de Chipre (menos provavelmente) ou ao discípulo Eudemo
de Rhodes (mais provavelmente), ou que foi editado por este último. Já que
não é mais possível obter clareza neste assunto, pois a única coisa inconteste
é que se precisava de dois títulos diferentes para distinguir as obras, sem que
possamos saber o que eles dizem exatamente. Nestas circunstâncias, é con-
veniente usar o título latino, Ethica Nicomachea, ou, na versão aportuguesada,
Ética Nicomaquéia, sem lhe atribuir maior importância do que a capacidade de
distinguir uma obra da outra',
A EN tem uma estrutura bastante clara, a despeito de certos problemas
de edição. Os livros antigos não continham divisão em capítulos; no esquema
a seguir, divido-os segundo os capítulos da edição Bekker, adotados também
por Susemihl (Bywater os dá no corpo do texto em números arábicos), que
remontam pelo menos à versão latina de Grosseteste (circa 1260)ii:
Introdução I II
vemos repetido o mesmo esquema. Também a estrutura geral da Magna Moralia
reproduz, ainda que menos claramente, este esquema geral, que pode ser resu-
mido do seguinte modo: (i) a definição da felicidade, (ii) o estudo da virtude
moral em geral; (iii) o exame das virtudes uma a uma, especialmente da justiça;
(iv) o exame da virtude intelectual que opera na parte prática, isto é, o estudo
da prudência; (v) o exame do fracasso moral presente na acrasia; (vi) a análise
do fenômeno humano da amizade, cimento de nossas relações pessoais; (vii)
um estudo sobre o prazer e, finalmente, (viii)a retomada da noção de felicidade
e a determinação do papel da contemplação para a vida feliz.
Isto não é, obviamente, fruto de coincidência. De fato, pode-se mostrar que
este esquema desdobra uma análise conceitual segundo uma ordem bastante
precisa. A ética aristotélica inicia com o estabelecimento da noção de felicidade;
ela é, neste sentido, tipicamente uma ética eudemonista. A felicidade é definida
como uma certa atividade da alma segundo peifeita virtude (cf. I 61098a16-17). Esta
definição requer, assim, o estudo do que é uma virtude peifeita, o que nos leva a
examinar a natureza da virtude moral. A virtude moral, por sua vez, consiste
em uma mediedade relativa a nós e é definida como uma disposição de escolher
por deliberação (I1 6). Para se compreender propriamente esta definição, é ne-
cessário entender o que é a escolha deliberada; para isso, é preciso determinar
previamente em que consiste um ato voluntário (o que é feito, respectivamente,
em III 4-6 e 1-3). Ao se estudar o que é a escolha deliberada, vê-se que é a
determinação que a razão impõe no domínio prático sob a forma de uma boa
deliberação; é necessário, por conseguinte, estudar a natureza da prudência, que
é justamente a boa deliberação a título de virtude intelectual da parte prática
(o que é realizado no livro VI). Feito este passo, deve-se então examinar qual
é a relação entre prudência e saber, isto é, entre vida ativa e vida contemplativa
(o que é feito em X 6-9). Este é o núcleo argumentativo da ética aristotélica;
na EN, ele corresponde aos livros I 1-12 (felicidade), I 13 - III 8 (virtude mo-
ral; ato voluntário e escolha deliberada), VI (tratado da prudência) e X 6-9
(vida contemplativa e vida política). Tal núcleo argumentativo é recheado, por
sua vez, de temas diretamente ligados à ética. Em primeiro lugar, haja vista a
natureza mesma da matéria prática e suas condições de acribia, convém um
estudo caso a caso das virtudes, o que é feito ao longo de III 9 - V. Depois,
o fracasso moral é analisado sob a forma da acrasia, bem como em um caso
O presente estudo tem por tema a natureza da virtude moral, o que cor-
responde à unidade Ir. Seu início ocorre no fim do primeiro livro, quando,
em I 13, Aristóteles distingue, à base da oposição entre parte racional e parte
não-racional da alma, entre virtude moral e virtude intelectual, passando, nas
páginas seguintes, a estudar a natureza da virtude moral. Tal estudo leva à
análise da escolha deliberada, que aparece já embutida na definição da virtude
moral, sem, contudo, ter sido previamente examinada; este último estudo se
conclui em III 8, que é uma recapitulação de toda esta unidade temática (e
não somente dos primeiros capítulos do terceiro livro). Há, assim, no próprio
texto de Aristóteles marcas relativas à unidade deste tópico, o que nos assegura
poder tratá-lo separadamente",
A última unidade que apresentei, a saber, a unidade VII sobre o prazer,
põe-nos já diante da vexa ta quaestio sobre a unidade agora da EN como um
Introdução I Ij
todo, para além da correlação entre suas partes. Com efeito, temos, na EN,
dois tratados sobre o prazer. No primeiro, que se encontra na parte final do
livro (comum) VII, o prazer é visto como uma atividade não entravada; no
segundo, que se encontra nos capítulos iniciais do livro X, o prazer não é uma
certa atividade, mas antes um coroamento da atividade, algo que se acrescenta
à atividade, sem se identificar a ela ou a um tipo dela. Pode-se tentar mostrar
que as duas perspectivas não são incompatíveis e que, mesmo, o tipo de abor-
dagem levado a cabo em cada tratado explicaria a adoção de uma perspectiva
diferente. No entanto, é forçoso reconhecer que, pelo menos à primeira vista,
as teses sustentadas não são as mesmas e a mera presença de dois tratados
sobre o prazer é um indício de que há problemas concernentes à unidade do
livro, já pelo fato de um tratado não mencionar a existência do outro", Tal
questão envolve inevitavelmente o problema espinhoso de determinar a origem
e a proximidade conceitual dos livros comuns, já que o primeiro tratado do
prazer faz parte de um livro comum. Não há como discorrer sobre este tema
aqui a não ser de modo sucinto, mas talvez não seja mesmo preciso tratá-lo
exaustivamente, pois a unidade em análise aqui, a unidade II sobre a natureza
da virtude moral, não está diretamente envolvida com estes problemas. No
entanto, como ela está indiretamente envolvida, convém fazer algumas obser-
vações, ainda que muito gerais.
É certamente mais do que uma curiosidade observar que, em VI 13, Aris-
tóteles lança mão de uma divisão da virtude moral em virtude natural e virtude
própria que não encontra nenhum apoio explícito no tratado nicomaquéio
da virtude moral nem em outros livros da EN, à exceção dos livros comuns.
Por outro lado, há uma passagem da EE que se vincula diretamente a esta
divisão ausente em EN I 13 - III 8. No que constitui o tratamento eudêmio
das virtudes particulares, ao tratar em EE III 7 de certas disposições que são
louváveis sem serem virtudes, pois são antes afecções, Aristóteles escreve que,
"porque são naturais, elas contribuem às virtudes naturais, pois toda virtude,
como será dito adiante, ocorre de certo modo natural e de um outro modo,
acompanhado de prudência" (1234a27-30)v. Esta passagem faz claramente
alusão a EN VI (EE V) 13 1144bl-17, onde Aristóteles de fato distingue en-
tre virtude natural, a que ou bem temos ao nascer ou bem adquirimos por
hábito, e virtude própria, a "que não se produz sem prudência" (1144b17). O
Introdução I I5
não é possível um bem único para tudo, como pretendia Platão, pois a refração
categorial impede tal universalidade. O argumento ocorre em EN I 4 1096a23-
29 e em EE I 8 1217b25-35, com mínimas e irrelevantes variações de termos,
exceto na conclusão. Com efeito, a EN conclui limitadamente que, por conta da
dispersão categorial do bem, similar à do ser, "não é possível um bem comum,
universal e único" (1096a28); na EE, porém, lemos que, além de não haver nem
um bem único nem um ser único a propósito de todas as categorias, "também
não existe uma ciência única nem do ser nem do bem" (1217b34-35). O que é
surpreendente EE é que ela é incompatível com o
nesta conclusão exclusiva da
projeto aristotélico de uma ciência universal do ser, exposto no livro r da Me-
tafísica, com base na idéia de relação focal, pois, graças a esta noção de unidade
não genérica, é possível uma ciência única do ser (cf. r 21003b12-15). Em um
artigo extremamente fecundo para os estudos aristotélicos, Owen mostrou que
ou bem isto pode ser usado como um sinal da inautenticidade da EE, ou bem,
como sustentou, que a EE foi escrita em um momento intelectual no qual Aris-
tóteles ainda não tinha aplicado a noção de relação focal ao ser (e eventualmente
tampouco ao bem, se é que ele a aplicará ao bem: cf. EN I 4 1096b26-29)"i. Já na
EN, Aristóteles mantém o mesmo argumento contra as pretensões platônicas
de um bem único, mas corrige agora a tese excessiva que por isso tampouco é
possível uma ciência única do ser ou do bem.
O próprio Owen mostrou que, na EE, Aristóteles já dispunha da noção de
relação focal, mas a tinha então aplicado limitadamente aos diferentes tipos
de amizade, sem a expandir a outros casos, como o ser. O tema da amizade
funciona como mais um indício que a EE é um escrito conceitualmente ante-
rior à EN. Com efeito, na EE Aristóteles unifica os três tipos de amizade com
base em uma relação focal: a amizade segundo a virtude é a amizade primeira,
em relação à qual os outros dois tipos são ditos também amizades, a amizade
segundo o prazer e a amizade segundo a utilidade. Deste modo, Aristóteles
pode sustentar que não há uma única amizade, mas três tipos de amizade, e
que eles não se reduzem a um dentre eles, mas a amizade segundo o prazer
e a amizade segundo a utilidade gravitam em torno da amizade segundo a
virtude, à qual fazem inevitavelmente referência. A despeito dos ganhos desta
análise não redutivista dos tipos de amizade, há obviamente uma dificuldade,
e grande, nesta tese. Não parece claro em que sentido a amizade segundo o
Introdução I I7
termos ÉKOWLOV e àKOWlOV têm um uso mais vasto, ou impreciso, do que o
nosso uso atual. Com efeito, em parte eles dizem respeito à agência humana,
delimitando aquilo de que o agente é propriamente responsável e aquilo de
que pode ser desresponsabilizado, mas em parte indicam também se o agente
fez algo de bom grado ou a contragosto, respectivamente. Ambas as noções
nem sempre coincidem: posso fazer por mim próprio algo a contragosto, bem
como realizar algo involuntariamente, que teria feito conscientemente, porém,
de bom grado. É provavelmente por causa do cruzamento destes dois usos
que Aristóteles introduz, no exame da ignorância das circunstâncias, uma
consideração sobre o fato de o agente arrepender-se ou não do que fez: se se
arrepende, diz Aristóteles, o ato é involuntário; se não demonstra arrependi-
mento, embora não seja voluntário, o ato não é propriamente involuntário:
ele é antes não-voluntário. O arrependimento, contudo, parece ser não uma
condição do caráter involuntário ou não-voluntário do ato, mas um critério
para nosso reconhecimento do caráter moral do agente envolvido em atos nos
quais há ignorância das circunstâncias.
Apesar desta confusão entre condição de ser e critério de reconhecimento,
Aristóteles demonstra muita clareza ao determinar o núcleo de significação
destes termos. Segundo a EN, um ato é voluntário se satisfizer conjuntamente
as seguintes duas condições: (i) o princípio está no agente 1\ (ii) o agente co-
nhece as circunstâncias nas quais a ação ocorre. A negação de (a 1\ b) sendo
(~a V -b), o ato será involuntário quando ocorrer (pelo menos) que o prin-
cípio não está no agente ou que o agente ignora as circunstâncias nas quais a
ação ocorre. Este é o núcleo destas noções; a partir dele, Aristóteles examina
casos controversos, como as ações ditas mistas. Ainda, Aristóteles insiste que
a ignorância em questão não é qualquer ignorância, mas somente a ignorân-
cia das circunstâncias, e isto é um esclarecimento filosófico importante. Com
efeito, Platão sustentou ao longo de toda a sua carreira filosófica que ninguém
é perverso voluntariamente (Prot. 345d; Gorg. 50ge; Leges V 731c). Tal tese
controversa está fundada no fato de o agente perverso ignorar o que é o verda-
deiro bem, o que causaria o caráter involuntário de seu ato por conta de uma
noção muito ampla de ignorância, que Aristóteles agora corrige: este tipo de
ignorância não causa o caráter involuntário do ato; ao contrário, ela engendra
a natureza perversa do agente. Além disso, convém salientar que, do modo
Introdução I I9
de aprendizagem em que se encontram. Ademais, retirar dos animais toda
natureza voluntária é excessivo.Parece, assim, mais conveniente dissociar as
noções de voluntário e de agir diferentemente, como ocorre na EN, e insistir
que, para o voluntário, trata-se sobretudo do fato de o princípio da ação estar
no agente, sem que se determine já de que modo atua tal princípio (de modo
simples, como nos animais e, ainda, nas crianças, ou complexo, como no caso
dos homens adultos, quando envolvepensamento e reflexão). Examinando-se
as condições adultas do ato voluntário, vê-se que o que é voluntário em um
adulto está em seu poder fazer ou não fazer, mas isso não é condição do caráter
voluntário do ato como tal; pelo menos, animais e crianças não satisfazem tal
condição. Novamente, vemos que o exame da EN, neste caso sobre o volun-
tário, é filosoficamente mais seguro do que o apresentado na EE e pode ser
mesmo visto como o resultado de uma revisão do que tinha sido apresentado
previamente na EE.
Uma última observação. Embora haja claramente a divisão em um nú-
cleo argumentativo, do qual o tratado da virtude é uma parte (em minha
nomenclatura, a parte I1), e em unidades temáticas que forram como estofo
a arquitetura do livro, como é o caso do exame das virtudes particulares (em
minha nomenclatura, parte IV), as questões conceituais não se domesticam
tão facilmente, como era de se esperar em um tratado de filosofia. A parte
IV inicia com a declaração que, "retomando a investigação, determinemos a
respeito de cada virtude quais são, a que concernem e como procedem; simul-
taneamente ficará claro quantas são" (III 91115a4-5). Espera-se que esta parte
especifique, exemplifique e caracterize em detalhes o que tinha sido obtido na
parte Il. De fato, é isto o que ocorre em geral, pois a parte IV depende concei-
tualmente da parte II. No entanto, um detalhe não deve passar despercebido.
No tratado da virtude moral, Aristóteles introduz a noção de belo, TO KaÀÓv,
e isso em diferentes passagens. No entanto, é somente no exame das virtudes
particulares, a começar pela coragem, que a noção de agir com vistas ao belo, TOV
KaÀov ÉVEKa, ganha consistência. Em um ato de coragem, expomos a vida ao
perigo, e não é raro morrer por causa disto. A noção antiga de bem, TO àyaeóv,
estava fortemente conectada ao que nos é benéfico e vantajoso (assim aparece
freqüentemente no Sócrates de Platão, por exemplo), o que dificilmente se
concilia, ou pelo menos não facilmente, com o ato de pôr em risco a vida, que
Introdução I 2I
o dever do império imediato dos desejos e fins; o eudemonismo aristotélico,
com efeito, não é uma ética do bem-estar dos indivíduos, mas uma reflexão
filosófica sobre o que é isto, bem agir, em uma escala propriamente humana,
concomitantemente separada dos outros animais e do divino, e bem agir acar-
reta por vezes o abandono dos interesses e desejos próprios. Não surpreende
assim que agir com vistas ao belo apareça operando, e decisivamente, no exame
detalhado das virtudes morais; o que surpreende é que a noção de belo, em-
bora seja mencionada na parte I1, não seja aí objeto de estudo expresso, pois
ela guarda o segredo da dimensão altruísta do ato moral. Por falta de análise
expressa, justamente, ela passou à tradição unicamente sob a forma operacional
em que se encontra na parte IV, desacompanhada de uma reflexão explícita
sobre a dimensão altruísta que ela claramente introduz no gesto moral.
Introdução I 23
É um extremo na medida em que o imperativo moral ordena fazer aquilo e
unicamente aquilo que convém fazer, distinguindo-se definitivamente de toda
outra ação possível. Porém, é também um meio termo, pois regula deste modo
a quantidade de emoção que inevitavelmente está envolvida em toda ação.
Um outro tema nos levará a um resultado semelhante. No tratado da pru-
dência (livro VI), Aristóteles propõe substituir a expressão KaTà TOV opeov
ÀÓYov, secundum rationem, aparentemente consensual para designar o bem agir,
por uma outra, o agir µETà ÀÓyov, cum ratione. Assimilou-se freqüentemente
esta substituição à distinção entre agir conforme o dever e agir por dever:
Aristóteles estaria aqui exigindo condições mais restritivas à ação moral, à
qual não bastaria a conformidade exterior ao dever, mas requereria também
o elemento interno de acatamento subjetivo e respeito ao que ordena o im-
perativo moral. No entanto, esta assimilação parece anacrônica. Repondo-se
o texto em seu contexto histórico, vê-se que Aristóteles parece antes querer
dar adeus ao intelectualismo socrático excessivo, que eliminava inteiramente
o elemento emocional, bem como à versão atenuada platônica, que atribuía
ainda, a seus olhos, demasiada proeminência à razão na determinação da ação,
propondo, em seu lugar, uma doutrina na qual a razão (prática) só pode aplicar-
se às ações se houver previamente um hábito moral concernente às emoções.
O µETá de µETà ÀÓyov tem assim o sentido de algo que, posteriormente,
acrescenta-se ao sentimento; em um sentido forte, as emoções têm de estar
previamente educadas moralmente para que a razão possa acompanhá-las e
lhes dar a reta direção. Como Aristóteles escreve em EN X 1179a23-26, quem
não tiver as emoções previamente educadas moralmente não compreenderá
o sentido moral de um conselho ou ordem, assim como uma semente não
prospera em um terreno não preparado. Aqui está uma inovação importante
de Aristóteles em relação à filosofia ateniense clássica: a razão prática requer
algo previamente burilado para poder atuar. É neste sentido que o imperativo
moral será para Aristóteles sempre um ajuste, com vistas ao meio termo, das
emoções já presentes, um contínuo no interior do qual a razão vai operar as
necessárias divisões, mas que precisa pressupor como já dado de modo ade-
quado, sem o que ficaria inane e inativa.
Um segundo motivo, diretamente vinculado a este primeiro, é a natureza
imprecisa que inevitavelmente ronda a determinação moral. A virtude moral é
Introdução I 25
no texto mesmo em que a analisa indícios de que a deliberação diz respeito
também a fins, como procurou fazer especialmente Gauthier". Por diferentes
razões, ambas as tentativas não obtêm êxito. Duas outras estratégias parecem,
porém, mais promissoras. A primeira consiste em salientar que o termo para
meio, em grego, é, literalmente, o que conduz ao fim, e isto inclui mais do que
a nossa noção instrumental moderna de meio, pois engloba, por exemplo, o
modo como agimos. A segunda estratégia, na esteira de Tomás de Aquino, é
de maior fôlego e consiste em assinalar que nada é por si mesmo fim ou meio.
Embora só possamos deliberar sobre os meios em uma dada deliberação, nada
impede que aquilo que era fim nesta deliberação se torne meio para um fim
superior que a envolve e que, a este novo título, torne-se objeto de deliberação.
Deste modo, podemos deliberar sobre tudo, não como fim, mas como meio de
um fim que lhe é superior, exceto sobre o fim último, a felicidade, mas, como
o bem supremo não é um fim ao lado dos outros, e sim o modo ordenado de
todos os fins (ou, em outros termos, um fim formalmente considerado), de
fato podemos deliberar sobre tudo o que conta materialmente como fim.
Ambas as estratégias tornam palatável o que parecia por demais rude à
consciência moral moderna, mas temo que elas não consigam apreender um
elemento a meu ver decisivo na perspectiva aristotélica. A noção de pôr um fim
não é muito clara; Aristóteles entende por isso representar-se a~o como um fim, o
que é obviamente uma atividade mental. No entanto, não parece ser aqui, no
ato de se representar um fim, que Aristóteles pretende assegurar a liberdade
na ação humana. Com efeito, um fim pode ser imposto a mim com base em
uma severa educação ou, mesmo, pode dar-se a mim em função de minha
natureza; qualquer que seja o modo como o fim é dado, contudo, o fato de
eu adotar os meios para obtê-lo por meio de minha deliberação faz com que,
em um sentido relevante, a ação seja minha, ainda que o fim não possa ser
dito meu no mesmo sentido. A consciência moderna pensa a relação moral
fundamentalmente a partir do ato de pôr os fins; a ética aristotélica radica a
responsabilidade do sujeito não na adoção dos fins, mas antes na escolha dos
meios. Como sou eu quem dou preferência por razão a tal meio em detrimento
de tais outros e como o último meio na análise é o primeiro na ação, aquilo
que eu faço é, em um sentido relevante, minha ação, mesmo que eu não possa
ser autor no mesmo sentido de meus fins. No entanto, como os fins se dão
Introdução I 27
adquire uma disposição prática, já não possa agir diferentemente, é sempre
verdade que ele é causa da aquisição de seu caráter, pois a disposição não nos
é dada naturalmente, mas é obtida através da repetição de atos em um certo
sentido à exclusão de seu oposto (de fato XXVII - XXIX, particularmente
199,24-29). Esta idéia de transferência da responsabilidade (sou responsável
hoje pelo que faço, embora não possa mais agir diferentemente, porque fui
responsável pela aquisição da disposição, obtida à base de atos que, naquela
época, estavam ao meu alcance de ser diferentes) tem estirpe aristotélica, pois
Aristóteles justificou a duplicação de pena para os embriagados aleg'a:ndoque,
embora não pudessem agir diferentemente quando bêbedos, podiam ter evi-
tado ficar embriagados (III 71113b30-34). A solução em Aristóteles é limitada
aos casos em que há, de modo momentâneo ou definitivo, a perda do uso da
razão; Alexandre, porém, estende-a a todos os outros casos de disposição
moral, generalizando seu padrão de argumentação. É deste modo, então, que
Alexandre encontra uma solução ao problema do sábio, que de outro modo
seria livre somente na medida em que pudesse agir diferentemente, isto é, so-
mente na medida em que praticasse um mal: a partir do momento em que é
sábio, ele não pode mais fazer senão o bem, mas ele é causa para si mesmo da
aquisição de seu caráter moral e, nesta medida, ele é causa do que faz, mesmo
que não possa mais agir diferentemente. A solução é simétrica para o perverso:
o homem vicioso não pode senão agir viciosamente, mas ele é igualmente causa
para si mesmo da aquisição do caráter moral perverso e, nesta medida, ele é
responsável pelo que faz.
A solução de Alexandre é tão atraente quanto problemática. O homem
goza de liberdade, no sentido de poder fazer isto e seu contrário, unicamente
quando ainda não está desenvolvido do ponto de vista prático, isto é, quando
ainda não adquiriu uma disposição. O homem é, assim, livre quando é adoles-
cente ou imaturo, quando ainda não se tornou o que é - solução talvez elegante,
mas certamente paradoxal. Alexandre procurou atenuar esta conseqüência
pondo em relevo a função deliberativa, que atuaria plenamente já nas ações
que dão origem ao nosso caráter, de modo que teríamos delas um controle
total e, conseqüentemente, um controle parcial das disposições, a título de
agentes racionais que decidem soberanamente sobre os atos particulares que
fazem e que geram, então, as disposições. Alexandre escreve, com efeito, que
Introdução I 29
homem (então moralmente maduro) já não pode agir diferentemente, P.-L.
Donini considerou recentemente que isso é um forte indício" do caráter subs-
tancialmente determinista da ética e da psicologia de Aristóteles?'. Em um
tom similar, David Furley escreveu que "parece que temos uma distinção entre
dois períodos da vida de um homem na teoria de Aristóteles - antes e depois
da formação de seu carárer?", Antes da formação de seu caráter, o homem
é senhor de seus atos, podendo agir em um sentido ou outro; quando está
formado, porém, não lhe éíÚais possível agir no sentido contrário. A solução
que Furley sugere a este aparente paradoxo consiste em sustentar que, do
ponto de vista moral, para Aristóteles, um ato é voluntário se procede de uma
disposição que é voluntária, isto é, se procede de uma disposição cujo início foi
voluntário, quando ainda estava aberta aos contrários. As disposições diferem
em fixidez (Aristóteles distingue, com efeito, entre ÉÇl S, uma disposição fixa, e
~)Lá8Eal';', um estado provisório) e a responsabilidade moral do homem residi-
ria no fato que suas disposições, de onde partem suas (agora de modo rígido)
ações, são disposições criadas pelo próprio agente, na medida em que foram
geradas pela repetição de atos em uma ou outra direção. Esta solução já tinha
sido vislumbrada por Alexandre: o homem é sempre livre porque, a despeito
de sua disposição o determinar agora a agir assim e não de outro modo, ele
foi causa para si próprio da aquisição da disposição, que, por transitividade,
torna-o causa e, conseqüentemente, responsável por seus atos atuais. O pro-
blema torna-se a própria resposta: segundo Furley, o que é significativo é que
Aristóteles "não busca um critério do que é voluntário ou involuntário em se
um homem pode ou não agir de outro modo agora"xiii.
Haveria assim, em Aristóteles, segundo estes intérpretes, a busca de uma
ética da liberdade, mas o resultado seria uma psicologia determinista. É pre-
ciso, porém, evitar uma dramatização excessiva.A despeito da natureza fixa
da disposição como marca do caráter do agente, toda ação, na medida em que
nela se delibera sobre os meios, está aberta à consideração dos contrários. Pode
ser psicologicamente custoso a um agente mudar seus hábitos, mas não lhe
é impossível. Toda ação está aberta em sua realização, se o agente for capaz
de pesar as razões que concernem aos meios para realizar o fim buscado, por
mais disposicionalmente determinado que esteja o agente. Aristóteles, com
efeito, assinalará, em II 1- 2, que a ação não somente tem precedência sobre a
disposição (é a partir dos atos repetidos em uma certa direção que adquirimos
Introdução I jI
diferentes virtudes ou vícios, seja um elemento crucial na análise moral (como
o atesta o simples fato do presente tratado da virtude moral), a sua relevância
para a avaliação de uma ação provém fundamentalmente do fato que a ação
é compreendida de um modo tal que inviabiliza um procedimento fundado
em regras previamente estipuladas, o que favorece fortemente a busca por um
agente moralmente bom quando devemos descobrir qual é a coisa certa para
ser feita. Não se trata de dizer que um ato moralmente bom é (no sentido
de: está fundado em) o que é feito por um agente moralmente bom. O ato é
moralmente bom porque responde a propriedades que o caracterizam como
um meio termo em certas circunstâncias, apartado do excesso e da falta, que
constituem ambos o vício. O agente se torna moralmente bom por ter agido
com freqüência de modo correto. Como, porém, não se pode apelar a códigos
para conhecer o que deve ser feito aqui e agora, o homem virtuoso passa a
ocupar um lugar privilegiado para o reconhecimento do que deve ser feito,
dado que unicamente ele nos serve de critério para a ação. As virtudes têm
assim um lugar relevante na doutrina moral, mas têm este lugar em função
de uma certa teoria da ação. Ser bom é agir bem; o objetivo moral não é ad-
quirir disposições (pois alguém poderia passar sonolento o resto da vida após
as ter adquiridas), mas praticar atos moralmente bons (com base em nossas
disposições mais facilmente fazemos aquelas coisas pelas quais adquirimos
as disposições). Ocorre, contudo, que o reconhecimento do que é, em dadas
circunstâncias, uma boa ação depende crucialmente da capacidade que possui
o agente virtuoso de ver, em tais circunstâncias, o que deve ser feito. As virtu-
des são, portanto, centrais, mas derivadas; resultam das ações, gerando com
mais facilidade o tipo de ação de onde provieram, mas não têm precedência
sobre elas. Além disso, o mundo moral é perpassado por tal obscuridade que
é somente com base nas virtudes do prudente que podemos reconhecer o que
deve ser feito. A ética aristotélica é, deste modo, uma ética da virtude, mas não
é uma ética na qual a virtude é primária ou fundante do agir bem. Segue-se
também, de modo importante, que a ética aristotélica é uma ética que desafia
o princípio da codificabilidade generalizada dos princípios práticos. Uma ética
contemporânea da virtude pode ser compatível com algoritmos morais; a ética
aristotélica, porém, é radicalmente avessa a uma expressão aritmética do dever
e é em função desta aversão que ela se apresenta como uma ética da virtude.
* * *
Introdução I 33
pós-graduação sofreram por um decênio minhas hesitações e dúvidas. Lucas
Angioni, Roberto Bolzani e Fátima Évora têm-me auxiliado constantemente
para que o trabalho de tradução não fique tão insatisfatório. Carlo Natali e
Pierre Destrée fizeram-me valiosas sugestões para a versão final. Não poderia
deixar de mencionar o apoio de Balthazar Barbosa Filho, cuja cultura filosó-
fica só era rivalizada por sua generosidade; muito deste livro, ou mesmo tudo
dependeu do convívio que mantivemos por anos, interrompido tragicamente
por seu súbito falecimento um pouco antes de este manuscrito ser enviado
ao editor. Não preciso lembrar que os defeitos ainda existentes no presente
trabalho devem ser atribuídos exclusivamente a mim. Por fim, confesso que
não poucas vezes pensei em abandoná-lo por inteiro, mas dois sorrisos sempre
iluminaram a noite em que perpetuamente me encontro.
, Há uma discussão instrutiva sobre o problema dos títulos dos tratados de ética em
Vianney Oécarie, Éthique à Eudeme, Vrin 1984, pp. 17-31.
á Uma apresentação e discussão da estrutura das duas Éticas, bem como da MM
encontra-se na introdução da tradução italiana de Carlo Natali da EN (Etica Nico-
machea, Laterza 1999) .
.. Na mais recente tradução francesa da EN, Richard Bodéüs igualmente trata I 13
como fazendo parte de uma segunda unidade, que ele chama de "la vertu", Na sua \
opinião, porém, esta segunda unidade se conclui no fim do livro H; os capítulos IH
1 - 8 constituiriam, para ele, uma terceira parte, denominada "le consentement, la
décision et la responsabilité", É interessante observar que, paralelamente, Bodéüs
desloca a frase 1114b26-30, que, nos manuscritos, dá início ao que convencionamos
marcar como IH 8, para o início de IH 9, o começo de uma quarta parte, intitulada
por ele "les vertus morales particuliêres", que vai, por sua vez, até o final do livro
IV. No nosso entender, o texto dos manuscritos deve ser preservado, pois recapi-
tula, com razão, toda uma unidade temática, a saber, a que se estende de I 13 a IH
8, que tem por tema a natureza da virtude moral e que responde diretamente aos
termos envolvidos na definição de felicidade.
,. Como observou Jonathan Barnes, em um tom, porém, excessivo: "rhat our EN is
not a unity is beyond controversy - the existence of two treatments of pleasure is
enough to prove the factoThe only questions concern who invented our text, and
when, and from what materiaIs, and for what motives" (Roman Aristotle, p. 59, in
Pbilosophia Togata H - Plato and Aristotle in Rome, ed. J. Barnes e M. Griffin, Oxford
1997, pp. 1-69) .
• A frase ÉKáoTT] il"WS àpET~ KUL <jlWEl KUL w..ÀWS em 1234a29 pode ser lida de
dois modos: (i) "praticamente toda virtude ocorre de modo natural e de um outro
modo" ou (ii) "toda virtude ocorre de certo modo natural e de um outro modo",
conforme se liga TTWS a ÉKáoTT], o que parece mais natural nesta sentença, ou a
<t>ÚJEl. Comparando a frase com a passagem à qual remete em VI 13, especialmente
1144b4-5, parece-me preferível a segunda opção. Milita igualmente em favor desta
opção o fato de Aristóteles nunca afirmar, nem na EE nem na EN, que adquirimos
(certas) virtudes de modo natural, como sejá nascêssemos com elas: nascemos com
a capacidade de adquiri-las e nossa natureza pode favorecer ou dificultar a aquisição
em um ou outro sentido, mas as virtudes, como tais, não nos vêm naturalmente,
mas somente de um certo modo naturalmente (pelo menos esta é a lição explícita
de EN IH 1 e de EE H 2). Pode-se ter de nascença uma certa virtude, no sentido
de ter a tendência, desde pequeno, a agir de um modo que naturalmente levará
Introdução I 35
à aquisição da referida virtude; porém, a aquisição propriamente dita se faz pelo
hábito de agir em uma mesma direção.
vi G.E.L. Owen, Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle, editado original-
mente em Aristotle and Plato in the Mid-Fourth Century, ed. L Düring e G.E.L. Owen,
1960, pp. 163-190; traduzido para o português em Sobre a Metafísica de Aristóteles
- ensaios selecionados, ed. M. Zingano, Odysseus 2005, pp. 177-204.
vii Sobre o problema da unidade focal para a amizade, ver especialmente W. Forten-
xii David Furley, Two studies in Greek Atomists, Princeton 1967, pp. 189-190.
xiii David Furley, op. cit., p. 191; mais adiante, Furley escreve que "a 'liberdade' de uma
ação, para Aristóteles, não depende do fato de o agente ser capaz de escolher de
outro modo no momento da ação", p. 226 n.15 (grifo meu).
xiv Ver, por exemplo, J. Annas, An introduction to Plato's Republic (Oxford 1981), que
escreve que, em uma ética centrada no agente, como é o caso da ética da virtude, "a
coisa certa para fazer é identificada ao tipo de coisa feita pela pessoa boa" (p. 157).
G. Watson, ao examinar a tese da primazia do caráter atribuída à ética da virtude,
buscando, porém, compatibilizar tal primazia com a idéia de agir com base em re-
gras codificáveis, entatiza que "uma ética da virtude não consiste na reivindicação
particular da prioridade da virtude sobre a conduta certa, mas na reivindicação mais
geral que a avaliação de uma ação é derivada da avaliação do caráter" (On the primacy
of character, p. 452). A despeito da diferença entre ambos, é claro que, em ambos os
casos, a noção de virtude ou caráter é conceitualmente primeira ou predominante
e a noção de ato bom é secundária ou dependente.
ETHICA NICOMACHEA
113 - 111 8
113
l102aS Dado que a felicidade é certa atividade da alma segundo perfeita virtude,
alO dientes às leis (temos como exemplo os legisladores dos cretenses e dos la-
cedemônios, bem como outros que possa ter havido como eles). Se este exame
a2S minúcia talvez seja por demais laborioso para o que se propõe.
Alguns temas sobre a alma foram tratados com suficiência também nos
escritos exotéricos, a que devemos recorrer. No caso: uma parte sua é não-
se são duas pela razão, por natureza inseparáveis,como o côncavo e o convexo a30
não menos devemos considerar que também na alma há algo contrário à ra-
b2S zâo, contrapondo-se e resistindo a ela. Não importa como se distingue, mas,
manifestamente, esta parte participa da razão, como dissemos; pelo menos, a Sendo dupla a virtude
do homem que se controla obedece à razão - além disso, presumivelmente lEaual tem gênese e aume
a do homem temperante e corajoso é ainda mais obediente, pois em tudo apcriência e tempo), ao P
É também manifesto que a parte não-racional é dupla: a vegetativa em nada Também fica claro a pé
b30 participa da razão, ao passo que a apetitiva e, em geral, desiderativa participa GIl nós por natureza, pois
de certo modo da razão, na medida em que é acatadora e obediente, do modo diRrso. Por exemplo, a pe
como dizemos prestar atenção à razão do pai e dos amigos, mas não do modo w.uana a mover-se par~
como dizemos ter razão na matemática. A advertência e toda censura e exortação Imçando-a milhares de Ve2
indicam que a parte não-racional é persuadida de certo modo pela razão. Se for -=r-se para baixo, nem qual
l103al preciso dizer que esta parte é racional, será também dupla a parte racional: uma labiruaria a ser diferentem«
propriamente e em si racional, a outra como capaz de ouvir em certa medida .an naturalmente nem co
o pai. Também a virtude é dividida segundo esta diferença, pois dizemos que ~ a recebê-las, aperfeiçc
aS umas são intelectuais e outras, morais: sabedoria, perspicácia e prudência são Além disso, do que natt
falar a respeito do caráter, não dizemos que alguém é sábio ou perspicaz, mas
Também fica claro a partir disso que nenhuma virtude moral se engendra
l~vaemnada
em nós por natureza, pois nada do que existe por natureza habitua-se a ser
tsiderativa participa
diverso. Por exemplo, a pedra, que por natureza se move para baixo, não se a20
Jbcdiente, do modo
habituaria a mover-se para cima, nem mesmo se alguém tentasse habituá-Ia
·mas não do modo
lançando-a milhares de vezes para cima; tampouco o fogo se habituaria a mo-
.eensura e exortação
ver-separa baixo, nem qualquer outro ser que é naturalmente de um modo se
., pela razão. Se for
habituaria a ser diferentemente. Por conseguinte, as virtudes não se engendram
pane racional: uma
nem naturalmente nem contra a natureza, mas, porque somos naturalmente a2S
ir em certa medida
aptos a recebê-las, aperfeiçoamo-nos pelo hábito .
.. pois dizemos que
Além disso, do que naturalmente surge em nós, possuímos primeiramente
iDa e prudência são
suas potências, depois exercitamos as atividades, o que fica claro no caso dos
IOÍS. Com efeito,ao
sentidos (não adquirimos as faculdades sensitivas por ver freqüentemente ou
It ou perspicaz, mas
por ouvir freqüentemente, mas, inversamente, tendo-as, exercemo-las, e não: a30
•sábio segundo sua
exercendo-as, temo-las); adquirimos as virtudes tendo-as primeiramente exer-
:Glgio.
/
citado, assim como com as outras artes - o que é preciso aprender para fazer,
l103bl ticando atos justos, tornamo-nos justos; praticando atos temperantes, tempe-
rantes; praticando atos corajosos, corajosos, Evidência disto é o que ocorre nas
I'"
bS e este é o intento de todo legislador; malogram os que não o fazem bem, e
c.aa., a Dlc:scmc ....
IaI'lperantes, tempe-
II2
10 é o que ocorre nas
Dindo-Ihes hábitos,
Como a presente disciplina não visa ao conhecimento, como as outras visam
Dão o fazem bem, e
(pois inquirimos não para saber o que é a virtude, mas para tornar-nos bons,
dado que, de outro modo, em nada seria útil), é necessário investigar o que
mdra e se corrompe
concerne às ações, como devemos praticá-las, pois são elas que determinam b30
l cítara surgem tanto
também que as disposições sejam de certa qualidade, como dissemos. O agir
5 os demais artesãos
~ndo a reta razão é corrente; fique valendo como tese (será discorrido mais
rurores; por construir
adiante, a esse respeito, sobre o que é a reta razão e como se relaciona com
:ncisaria do mestre,
as outras virtudes). Sobre isto, porém, devemos estar previamente de acordo: l104al
asa com as virtudes:
rodo discurso de questões práticas tem de ser expresso em linhas gerais e de
1105; outros, injustos:
modo não exato, como dissemos igualmente no início que os discursos devem
la ter confiança, tor-
ser exigidos conforme a matéria; o que está envolvido nas ações e as coisas
DO caso dos apetites,
proveitosas nada têm de fixo, assim como tampouco o que concerne à saúde.
re tolerantes; outros,
O discurso geral sendo deste tipo, ainda menos exatidão tem o discurso so- aS
mt jeito nas mesmas
bre os atos particulares, pois não cai sob nenhuma técnica ou preceito, mas
1IIavra: as disposições
os próprios agentes sempre devem investigar em função do momento, assim
lIriso que as ativida-
como ocorre na medicina e na arte de navegar.
an as diferenças das
Embora seja assim a presente discussão, devemos vir em seu socorro. En- alO
110 logo desde jovem
tão, o que por primeiro se deve reconhecer é que tais coisas são naturalmente
portância.
corrompidas por falta e por excesso, como vemos no caso do vigor e da saúde
(pois devemos recorrer aos testemunhos visíveis em prol dos invisíveis): os
com a temperança, a coragem e as outras virtudes. Quem teme e foge de tudo a a;õcs e emoções e se p
a20 e nada suporta torna-se covarde; quem em geral nada teme, mas tudo enfrenta, _.I":'" por isso a virtu
I
torna-se temerário. Igualmente, quem goza de todo prazer e não se abstém de _~':"' as punições que
nenhum torna-se incontinente; quem foge de todos, como os homens rústi-
cos, torna-se insensível, por assim dizer: a temperança e a coragem, então, são ...", como foi dito ante
a2S destruídas pelo excesso e pela falta, mas preservadas pela mediedade. E não lIçio àquelas coisas pelas
somente ocorrem pelas mesmas coisas as gêneses, os crescimentos e as corrup- a.apeito delas; pelos pra
ções, como também as atividades consistirão nas mesmas coisas, pois também «aiar aqueles que não ~
a30 assim ocorre no tocante às outras mais visíveis, como no vigor: ele surge do e.m ou de tantos outro
consumir muito alimento e suportar muitos esforços, e o homem de vigor é o .pc. Épor isso que tarnbé
mais capaz de os fazer. Assim também se passa com as virtudes: do abster-se «~des. Não o fazem
dos prazeres, tornamo-nos temperantes; tornados temperantes, somos os mais «ú> como se deve ou não s,
a3S capazes de abster-nos deles. Igualmente com a coragem: habituados a desprezar JIIr acrescentam. Portanto,
ll04bl as coisas temíveis e a suportá-las, tornamo-nos corajosos: tornados corajosos, pzicar o melhor referenl
seremos os mais capazes de suportar as coisas temíveis. Também se nos tom.
Deve-se tomar como indício das disposições o prazer ou dor que sobrevém -..:Ja pelo seguinte. Com
bS às nossas obras: é temperante quem se abstém dos prazeres corporais e se ale- Ido. o proveitoso e o agra
gra disso mesmo, ao passo que quem se apoquenta com isso é intemperante; _, -, o homem bom é c
quem suporta as coisas temíveis e se alegra, ou pelo menos não se aflige, é co- .dos eles, mas sobretudo
rajoso, ao passo que quem se aflige é covarde. Com efeito, a virtude moral diz c a:nmpanha a tudo o qu
blO respeito a prazeres e dores - por causa do prazer cometemos atos vis,por causa
Dl a saúde; os bem ser educado de certo modo já desde novo, para que se alegre e se aflija com o
In se passa também que se deve: esta é a educação correta. Ademais, se as virtudes dizem respeito
a:me e foge de tudo a ações e emoções e se prazer e dor acompanham toda emoção e toda ação,
•mas tudo enfrenta, também por isso a virtude dirá respeito a prazeres e dores. São indicadores blS
r c não se abstém de também as punições que se dão por meio deles: algumas punições produzem
., os homens rúsri- cura, as que produzem cura ocorrem naturalmente pelos contrários. Além
~em,então,são disso, como foi dito antes, toda disposição da alma tem sua natureza com re-
l mediedade. E não lação àquelas coisas pelas quais a alma naturalmente torna-se melhor ou pior e b20
IoentOS e as corrup- a respeito delas; pelos prazeres e dores os homens tornam-se torpes, ao buscar
ooisas, pois também e evitar aqueles que não se devem, ou quando não se devem, ou como não se
•vigor: ele surge do devem ou de tantos outros tais modos quantos forem delimitados pela defini-
bomem de vigor é o ção. É por isso que também definem as virtudes como certas impassibilidades
nudes: do abster-se e quietudes. Não o fazem bem, contudo, porque falam sem outra qualificação, b2S
lDttS. somos os mais e não como se deve ou não se deve e quando se deve e todas as outras cláusulas que
biruados a desprezar se acrescentam. Portanto, a hipótese é que tal tipo de virtude é de natureza a
udor que sobrevém ainda pelo seguinte. Como são três os objetos de busca e três os de fuga - o b30
ES corporais e se ale- belo, o prôveiroso e o agradável - e três os contrários - o feio, o danoso e o pe-
iDo é intemperante; noso -, o homem bom é correto e o homem perverso é incorreto a respeito de
• não se aflige, é co- rodos eles, mas sobretudo a respeito do prazer, pois este é comum aos animais
•a virtude moral diz e acompanha a tudo o que cai na rubrica busca, pois o belo e o proveitoso são b3S
DI aros vis, por causa manifestamente prazerosos. Ademais, desde a infância somos todos criados llOSal
a25 gramatical e de modo gramatical, e isto é fazer segundo a gramática que está
IIr'C pela dor. Por pois os objetos produzidos pelas artes têm neles próprios o bom estado: basta,
~ pois não é de portanto, que estejam em um certo estado, ao passo que os que são gerados
emou mal. Ade- pelas virtudes são praticados com justiça ou com temperança não quando estão a30
D diz Heráclito; em um certo estado, mas quando o agente também age estando em um certo
lide. pois o bem estado: primeiramente, quando sabe; em seguida, quando escolhe por delibe-
.ma disciplina ração, e escolhe por deliberação pelas coisas mesmas; em terceiro, quando age
an se porta mal artes, estas condições não são enumeradas, exceto o próprio saber; com relação, llOSbl
CR$ e dores, que porém, ao possuir as virtudes, o saber pouco ou nada conta; as outras condições,
- pdas coisas de não pouco, mas tudo podem, as quais justamente resultam do praticar freqüen-
Assim, os atos são ditos justos e temperantes quando são tais quais os que bS
dito corretamente que o justo nasce do praticar atos justos e o temperante, do blO
lJI'Dar-sejustos, praticar atos temperantes; do não os fazer ninguém sequer se avizinha de tor-
eranres, devem nar-se bom. A maioria, porém, não os realiza, mas, refugiando-se no discurso,
mperantes, são crê filosofar e assim tornar-se virtuoso, agindo de modo similar aos doentes
ÍIiCl e música,já que ouvem atentamente os médicos, mas nada fazem do que lhes é prescrito. blS
esmo nas artes? Assim como estes não terão o corpo em bom estado tratando-se deste modo,
[101' acaso como
tampouco aqueles terão a alma em bom estado filosofando deste modo.
: a1go de cunho
ú:ica que está
A seguir, deve-se investigar o que é a virtude. Dado, pois, que os estados que
8mDeza dotados de cap
b20 se geram na alma são três: emoções, capacidades, disposições, a virtude será um
8mDeza (falamos a resp
deles. Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, inveja, alegria, amizade,
ódio, anelo, emulação, piedade, em geral tudo a que se segue prazer ou dor;
9E a virtude é quanto ac
por capacidades, os estados em função dos quais dizemos que somos afetados
b25 pelas emoções: por exemplo, aqueles em função dos quais somos capazes de
dos quais nos portamos bem ou mal com relação às emoções: por exemplo,
com relação ao encolerizar-se, se nos encolerizamos forte ou fracamente, por- Porém, deve-se não se:
tamo-nos mal; se moderadamente, bem, e de modo semelhante com relação às tipo de disposição é. Deve
outras emoções. Então, nem as virtudes nem os vícios são emoções, porque não ado e desempenha bem a
b30 nos dizemos virtuosos ou viciosos em função das emoções, mas nos dizemos a rirtude do olho torna b
em função das virtudes e dos vícios, e porque nem elogiamos nem censuramos alho que vemos bem. Sir
em função das emoções (pois o homem que teme não é elogiado nem o que se o fiz correr bem, portar
encoleriza, tampouco é censurado o que se encoleriza sem outra qualificação, assim é a respeito de tudo
l106al mas o que se encoleriza de um certo modo), mas elogiamos ou censuramos i qual ele se torna um ho
em função das virtudes e dos vícios. Além disso, encolerizamo-nos e tememos de si próprio. Já dissemo
independentemente de uma escolha deliberada, ao passo que as virtudes são estudarmos de que tipo é
certas escolhas deliberadas ou não são sem escolha deliberada. Acrescente-se a Em todo contínuo e
aS estas considerações que dizemos que somos afetados em função das emoções, conforme à própria cois
mas que nos dispomos de um certo modo. Por estes motivos, tampouco são
capacidades:nem nos dizemos bons nem maus pelo faro de sermos simplesmente
capazes de ser afetados, nem elogiamos nem censuramos. Ademais, somos por
pc os estados que natureza dotados de capacidades, mas não nos tornamos bons ou maus por
.a Yirtude será um
natureza (falamos a respeito disso anteriormente). Se, então, as virtudes não alO
"a1egria, amizade, são nem emoções nem capacidades, resta que são disposições. Foi dito, pois, o
~ prazer ou dor;
que a virtude é quanto ao gênero.
lIe somos afetados
lDOlOS capazes de
II5
Ifldes em função
Des: por exemplo,
l fracamente, por- Porém, deve-se não somente dizer que é uma disposição, mas também que
e com relação às tipo de disposição é. Deve-se frisar, então, que toda virtude aprimora o bom es- alS
oções. porque não tado e desempenha bem a função daquilo mesmo de que é virtude. Por exemplo,
mas nos dizemos a virtude do olho torna bons o olho e sua função, pois é mediante a virtude do
Inem censuramos olho que vemos bem. Similarmente, a virtude do cavalo torna bom o cavalo e
iado nem o que se o faz correr bem, portar bem o cavaleiro e resistir bem aos inimigos. Logo, se a20
lIIIr.l qualificação, assim é a respeito de tudo, a virtude do homem também será a disposição graças
• ou censuramos à qual ele se torna um homem bom e graças à qual desempenha bem a função
lD-IlOS e tememos de si próprio. Já dissemos como isto se dá, mas ficará ainda evidente quando a2S
lIe as virtudes são estudarmos de que tipo é a natureza da virtude.
la. Acrescente-se a Em todo contínuo e divisível é possível tomar mais, menos e igual, e isso
~ das emoções, conforme à própria coisa ou relativo a nós; o igual é um meio termo entre
a30 cada um dos extremos, que justamente é um único e mesmo para todos os bIta é censurada, ao pa!
casos; por meio termo relativo a nós, o que não excede nem falta, mas isso não bwado pertencem à virt
é único nem o mesmo para todos os casos. Por exemplo, se dez é muito e dois é an ter em mira o meio t
pouco, toma-se o seis como meio termo da coisa, pois ultrapassa e é ultrapassado pcnence ao ilimitado, co
a3S de modo igual; este meio termo ocorre segundo a proporção aritmética. O meio o acertar dá-se de um ú
termo relativo a nós não deve ser concebido assim: com efeito, se a alguém comer o desviar do alvo, é dih<
l106bl dez minas de peso é muito e duas é pouco, não é verdade que o treinador pres- do vício o excesso e a fa
creverá seis minas, pois isto talvez seja pouco ou muito para quem as receberá: Bravos, pois, de um
para Mílon será pouco, para o principiante nos exercícios será muito. O mesmo
bS para a corrida e a luta. Deste modo, todo conhecedor evita o excesso e a falta
e procura o meio termo e o busca, não o meio termo da coisa, mas o relativo a
nós. Se, então, toda ciência leva a bom termo a função olhando o meio termo e a
ele conduzindo as obras (de onde se costuma arrematar dizendo, das obras que A virtude é, portanl
blO estão bem feitas, que nada há para retirar ou para acrescentar, porque o excesso sísrindo em uma medie
e a falta destroem o bom estado, a mediedade preserva-o), se os bons artesãos isro é, como a delimitar
trabalham, como dissemos, tendo-o em vista e se a virtude - como também a mal por excesso e o mal
bl5 natureza - é mais exata e melhor que toda arte, ela terá em mira o meio termo. ..nas, outras excederem
Quero dizer a virtude moral, pois ela concerne a ações e emoções, nas quais há winude descobre e tom:
excesso, falta e meio termo. Por exemplo, é possível temer, ter arrojo, ter apetite, tplC exprime a qüididad,
b20 encolerizar-se, ter piedade e, em geral, aprazer-se e afligir-se muito e pouco, e c o bem, é um ápice.
ambos de modo não adequado; o quando deve, a respeito de quais, relativamente Nem toda ação adm
a quem, com que fim e como deve é o meio termo e o melhor, o que justamente são denominadas em in
é a marca da virtude. Similarmente, há excesso, falta e meio termo no tocante ~ impudicícia, a inveja e
los os falta é censurada, ao passo que o meio termo acerta e é louvado: acertar e ser
dois é em ter em mira o meio termo. Ademais, o errar dá-se de muitos modos (o mal
hneio o acertar dá-se de um único modo. Por isso um é fácil; o outro, difícil: é fácil
(Dffier o desviar do alvo, é difícil o acertar. E por estas considerações, é então marca
oesmo
a falta
II6
larivo a
nno e a
A virtude é, portanto, uma disposição de escolher por deliberação, con-
rasque
sistindo em uma mediedade relativa a nós, disposição delimitada pela razão, l107al
acesso
isto é, como a delimitaria o prudente. É uma mediedade entre dois males, o
rtesãos
mal por excesso e o mal por falta. Ainda, pelo fato de as disposições faltarem
nbéma
umas, outras excederem no que se deve tanto nas emoções como nas ações, a
•termo.
virtude descobre e toma o meio termo. Por isso, por essência e pela fórmula aS
(D3ÍS há
que exprime a qüididade, a virtude é uma mediedade, mas, segundo o melhor
';rpetite,
e o bem, é um ápice.
KJUCO, e
Nem toda ação admite mediedade, tampouco toda emoção, pois algumas
ramente
são denominadas em imediata conjunção com a vileza, como a malevolência, alO
tamente
a impudicícia, a inveja e, quanto às ações, o adultério, o roubo, o assassinato.
I tocante
destas coisas está no praticar adultério com a mulher com quem, quando ou pmoas tampouco ganh
como se deve, mas o simples cometer qualquer um deles é errar. O mesmo vale .u:ber bens, a medieda
para estimar que também a propósito do agir injustamente, ser covarde e ser «..aricia. Excedem e es
a20 intemperante há mediedade, excesso e falta; haveria assim, pois, mediedade do ec:sbanjador excede em
excesso e da falta, excesso do excesso e falta da falta. No entanto, assim como acEde em recebimento
não há excesso e falta de temperança e coragem pelo fato de o meio termo ser ... grandes linhas e sur
de certo modo um ápice, assim tampouco há, daqueles, mediedade, excesso ~ definido de modo r
a2S ou falta, mas erra quem os pratique, pois, em geral, nem há mediedade do _outros estados: a me
peito há muitos que estejam em falta relativamente aos prazeres. Por esta razão tais
lo ou pessoas tampouco ganharam nome; sejam ditos insensíveis. A respeito do dar e
avale receber bens, a mediedade é generosidade, o excesso e a falta são esbanjamento blü
.e ser e avarícia. Excedem e estão em faltam quanto a isso em direção contrária, pois
10 ser em grandes linhas e sumariamente, satisfazendo-nos com isto mesmo; adiante bI5
Il:eSSO será definido de modo mais preciso a seu respeito. A respeito dos bens também
excesso é falta de gosto e vulgaridade, a falta é mesquinharia. Eles diferem dos b20
em seus desejos é dito ambicioso, quem está em falta é desapegado, quem está
edem,
no meio termo não tem nome. Os estados também não têm nome, exceto o do b30
eme),
ambicioso: ambição. Por isto os que estão nos extremos outorgam-se o espaço
IlfãIta
do meio termo, e nós também chamamos quem está no meio termo por vezes
a25 espirituoso e o estado, espírito; o excesso é bufonaria e quem o tem, bufão; Três sendo os estadc
quem está em falta é um tipo de rústico e a disposição, rusticidade. A respeito wirtude,a mediedade, tO
do agradável restante, o da vida, quem é agradável como se deve é amigo e a sio contrários entre si e
mediedade, amizade; quem excede, se não visa a nada, obsequioso, mas, se GlIl10 o igual é maior rel.
~como prati- pudor não é uma virtude, mas o pudico é louvado. Com efeito, também nestes
de tolerante, casos um é dito meio termo, outro quem excede, <outro quem está em falta; e
Ide irascível; quem excede> é como o acanhado, que tem pudor em relação a tudo; quem está
.. ~.Há em falta ou quem em geral não tem pudor relativamente a nada é despudorado; a3S
IR si, disrin- quem está no meio termo é pudico. Indignação é a mediedade entre inveja e ma- l108bl
lIDIIl palavras levolência, e dizem respeito a dor e prazer gerados no tocante ao que advém aos
~os,en- próximos. Quem tem indignação aflige-se em face dos que imerecidamente têm
udiversão e êxito; o invejoso, excedendo, aflige-se de todos; <quem tem indignação aflige-
IID discorrer se ante os que imerecidamente fracassam,> o malevolente está tanto em falta bS
iEdade é lou- quanto ao afligir que mesmo se alegra. Haverá, alhures, melhor momento para
1Ur.ÍYeÍS. discutir sobre elas. Sobre a justiça, já que não é dita de modo simples, diremos
r. como nos (após estas discussões), feitas as distinções, como são mediedades os dois modos,
I, presunção
II8
la tem, dis-
leio termo é
Três sendo os estados: dois vícios, um por excesso, outro por falta, e uma
.tan, bufão;
virtude, a mediedade, todos se opõem de certo modo a todos, pois os extremos
~Arespeito
e amigo e a
ê
são contrários entre si e ao meio termo e o meio termo aos contrários: assim blS
b20 corajoso se mostra temerário relativamente ao covarde e covarde relativamente _ •• Pn, ser mais cont
dor relativamente ao avaro e avaro relativamente ao esbanjador. Por isso cada _ urremos aos quais
extremo repele o meio termo em direção ao outro: o covarde chama o corajoso Pu- exemplo, nós nan
do outro do que do meio termo, assim como o grande dista mais do pequeno
l109al opõe-se mais em alguns casos a falta; em outros, o excesso. Por exemplo, não a ckttrminar o meio d4
temeridade, que é um excesso, mas a covardia, que é uma falta, opõe-se mais à sabe; assim também, 4
ár.unente Esta é, então, a primeira causa, que provém da própria coisa; a outra
.. esbanja- provém de nós mesmos, pois se mostram mais contrários ao meio termo
risse>cada os extremos aos quais, de algum modo, mais nos inclinamos naturalmente.
o~oso Por exemplo, nós naturalmente tendemos mais aos prazeres, por isso somos alS
Iogamente mais propensos à intemperança do que ao decoro. Dizemos que são mais
contrários os extremos em relação aos quais nos lançamos mais, e por isso
mll)SmalS
Dpequeno
II9
amttários,
l15idade,ao
Foi dito satisfatoriamente que a virtude moral é um meio termo, como o a20
si. Os que
é, que é um meio termo entre dois males, um pelo excesso e o outro pela falta,
..do que os que é tal por mirar o meio termo nas emoções e nas ações. Por isso é árduo ser
leio termo, bom, pois é árduo determinar o meio termo em cada situação - por exemplo, a2S
mpIo, não a determinar o meio de um círculo não é para qualquer um, mas para quem
~maisà sabe; assim também, é para qualquer um e é fácil o encolerizar-se, dar ou gas-
tar dinheiro, mas não é para qualquer um nem é fácil o determinar a quem,
.. queéum
quanto, quando, em vista do que e como fazer. Por esta razão, o bem agir é
,A primeira
raro, louvável e belo. Por isso quem mira o meio termo deve primeiramente
assemelhar-
se apartar do que é mais contrário, como adverte Calipso: a30
ano, mas o
Obra para fora da névoa e onda
amelhante a nau.
que é difícil atingir com extrema exatidão o meio termo, em segunda navegação (ÓrS louvável, mas que
a3S - dizem - deve-se tomar o menor dos males, e isto ocorrerá sobretudo segundo pois atingiremos assin
l109bl o modo que descrevemos. Devemos ficar atentos aos erros aos quais somos mais
propensos: alguns tendem para uns; outros, para outros. Isto se torna conhecido
pelo prazer e pela dor por que passamos. Devemos puxar a nós mesmos em
por vezes louvamos os que estão em falta e os chamamos de tolerantes, por mees que com vistas a ,
vezes louvamos os que têm caráter difícil e os denominamos de viris. E mesmo bzer algo ignóbil retei
não é censurado quem se distancia do certo somente um pouco, seja para mais, 6:zesse, mas morreriar
b20 seja para menos, mas quem se distancia em maior medida, pois ele não passa propósito do lançamer
despercebido. Não é fácil determinar pela razão até que ponto e em quanto ele é ade: ninguém lança, :
salvação de si mesmo;
censurável, pois tampouco o é algum outro objeto sensível: tais objetos ocorrem
Portanto, tais ações sã(
nos casos particulares e a discriminação é matéria de sensação.
.egação ções louvável, mas que por vezes devemos tender ao excesso, por vezes à falta, b2S
segundo pois atingiremos assim do modo mais fácil o meio termo, isto é, o bem.
DOS mais
mhecido IIIl
IDOS em
llS tanto
Como a virtude diz respeito a emoções e ações e como os atos voluntários b30
!ptlUda.
são censurados e louvados, ao passo que os involuntários são objeto de perdão e
[econtra
por vezes também de piedade, é presumivelmente necessário aos estudiosos da
,de sen-
virtude definir o voluntário e o involuntário, bem como é útil aos legisladores
~Helena
tanto para a distribuição de honrarias quanto para a aplicação de punições.
,assun o
Parecem ser involuntárias as ações praticadas por força ou por ignorância. b3S
1Disas, fi- É forçado o ato cujo princípio é exterior ao agente, princípio para o qual o 11lOal
IIID.com que dominam a situação, levarem-no a algum lugar. Há discussão para saber se
: mesmo são voluntárias ou involuntárias as ações praticadas por medo de males maiores
lia. por antes que com vistas a algo belo; por exemplo, se um tirano ordenasse a alguém aS
lmesmo fazer algo ignóbil retendo em seu poder pais e filhos que seriam salvos se o
112 mais,
fizesse, mas morreriam se não o fizesse. Algo semelhante ocorre também a
ação se dá conforme a ocasião. Voluntário e involuntário, então, devem ser ditos são voluntárias no r
com referência ao momento em que se pratica a ação. Age voluntariamente, voluntárias, pois as ~
al5 pois o princípio do movimentar os membros do corpo em tais ações reside são voluntárias. Nãc
no próprio agente; estão no poder do agente fazer ou não fazer as ações cujo de que outras, pois t
princípio reside nele próprio. Tais ações são, então, voluntárias, mas absoluta- dissesse que as coisa
mente, presumivelmente, são involuntárias, pois ninguém escolheria quaisquer compelem-nos a agir
destes atos por si mesmos. Algumas vezes os homens são mesmo louvados por causa delas. Na vere
a20 ações de tal tipo, quando suportam algo ignóbil ou penoso em troca de efeitos os que são feitos por
grandiosos e belos; quando ocorre o inverso, são censurados, pois é típico de t derrisório, então, c
uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe em função de algo nada ser presa fácil de tais
as circunstâncias agr
ou medianamente belo. Em alguns casos, porém, não há louvor, mas perdão,
O ato forçado, pc
a2S quando alguém faz o que não deve fazer por tais coisas que excedem à natureza
pessoa forçada em ns
humana e que ninguém suportaria. A algumas coisas presumivelmente não
há como sermos compelidos, mas se deve antes morrer sofrendo as dores mais
Alcmeon a matar a própria mãe na peça de Eurípides). Por vezes é difícil julgar
a30 qual coisa se deve escolher ao preço de qual outra e o que suportar em troca de
Todo ato feito po
quê, e é ainda mais difícil perseverar nas resoluções, pois nas mais das vezes o
produz aflição e arreF
que é esperado é penoso, e aquilo a que somos compelidos é vil; de onde há ou
se sentindo incomoda
não louvor e censura a respeito de quem é compelido.
em que não sabia, mas
11lObl Que coisas, então, devem ser ditas forçadas:' Não seriam, sem mais, aque-
~e. Assim, de quen
las cuja causa está fora do agente e à qual ele em nada contribui? As que são
se arrepende; quem n
por si involuntárias, mas que são no momento escolhidas em troca de outras
woluntário; com efeitc
laIl ser ditos são voluntárias no momento e em troca de outras. Assemelham-se mais às
ações reside são voluntárias. Não é fácil dizer quais coisas devem ser escolhidas ao preço
11 ações cujo de que outras, pois há muitas diferenças nos particulares. Se, porém, alguém
IaS absoluta- dissesse que as coisas agradáveis e belas são forçadas (pois, sendo exteriores, blO
ia quaisquer compelem-nos a agir), tudo seria assim forçado, pois todos fazemos tudo por
lJIJ\':ldospor causa delas. Na verdade, os atos por força e involuntários são penosos, mas
adeefeitos os que são feitos por causa do agradável e belo são acompanhados de prazer;
ser presa fácil de tais coisas, e responsabilizar-se a si mesmo pelas belas, mas
Ir algo nada
as circunstâncias agradáveis pelas ignóbeis. blS
IDaS perdão,
I à natureza
o ato forçado, portanto, mostra-se ser aquele cujo princípio é exterior, a
,dores mais
tmnpeliram III2
lIi&:il julgar
an troca de
Todo ato feito por ignorância é não voluntário, mas é involuntário o que
'elas vezes o produz aflição e arrependimento, pois quem fez algo por ignorância, em nada
'aode há ou se sentindo incomodado quanto à ação, não agiu voluntariamente, na medida b20
ignorância, pois quem está bêbedo ou encolerizado não parece agir por ig-
norância, mas por uma das causas mencionadas, não sabendo o que faz, mas sobrenu
ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e por causa de tal erro os
b30 homens tornam-se injustos e, em geral, maus; já involuntário quer dizer não
(pois por sua causa os homens são censurados), mas a ignorância das cír-
llllal cunstâncias particulares, aquelas nas quais e acerca das quais se desenrola
Sendo involuntária a ~
a ação. Nelas se exerce a piedade e o perdão: aquele que age ignorando uma
age, o que faz, sobre o que ou em que age, por vezes com o que age (por exemplo,
p as ações praticadas P'
aS com um instrumento), com vistas a que (por exemplo, com vistas à salvação)
todas elas, a menos que seja insano, e é óbvio que tampouco ignoraria quem
está agindo; como, com efeito, ignoraria a si mesmo? Alguém, porém, poderia
.w. única causa? É igu~
ignorar o que faz; por exemplo, quando dizem que lhes escapou ao falar, ou,
~ é preciso desejar: é P'
alO como Ésquilo deixou escapar mistérios, que não sabia que eram secretos, ou,
agir por ig- nas quais se desenrola a ação; aquele que ignora uma delas parece ter agido in-
m perverso parece ser sumamente importante entre as circunstâncias nas quais ocorre a
: tal erro os ação. Do ato dito involuntário por causa de tal ignorância deve ainda a ação
I deliberada
Ie desenrola
Sendo involuntária a ação realizada por força e por ignorância, o voluntário
onndouma
parece ser aquilo cujo princípio reside no agente que conhece as circunstâncias
particulares nas quais ocorre a ação. Não é presumivelmente correto dizer, pois,
:as são: quem
que as ações praticadas por impulso ou por apetite são involuntárias, pois, neste a2S
por exemplo,
caso, em primeiro lugar, nenhum outro animal poderá agir voluntariamente,
IS à salvação)
tampouco poderão as crianças. Depois, quer isto dizer que não fazemos nada
hiaignorar
voluntariamente por apetite ou por impulso, ou que fazemos as coisas belas
..-ana quem
voluntariamente e involuntariamente as ignóbeis? Não é isto risível, havendo
Ián, poderia
uma única causa? É igualmente absurdo dizer que são involuntárias as coisas
ao fãIar, ou,
que é preciso desejar: é preciso encolerizar-se a respeito de algumas e ter apetite a30
secretos, ou,
por outras (por exemplo: pela saúde e pela instrução). E as ações involuntárias
Iguém pode
parecem ser penosas; as por apetite, agradáveis. Além disso, qual é a diferença
t pontiaguda
quanto ao ser involuntário dos erros cometidos por cálculo ou por impulso? Por
au.dando a
um lado, ambos são a evitar; por outro, parecem não ser menos humanas as 11l1bl
~comoos
pertencem ao homem. Postular que são involuntárias é, assim, um absurdo. ~er de objetos imp
blS continente, ao contrário, age escolhendo deliberadamente, não por apetite. E 9:Jt é o mesmo que um
é à escolha deliberada que o apetite se opõe, não é ao apetite que o apetite se .-mre coisas boas ou ms
opõe. O apetite concerne ao agradável e ao penoso; a escolha deliberada, nem Escolhemos deliberadam
Menos ainda é um impulso, pois os atos por impulso minimamente pare- aIxer ou evitar. A escolha
escolha deliberada de objetos impossíveis e, se alguém declarasse escolher I:.oas, mas opinamos sob
diz respeito também àquelas ações que de modo algum são realizadas por
ninguém escolhe por deliberação, porém, tais coisas, mas aquelas que crê en- b2S
gendrar por si próprio. Ademais, o querer diz respeito sobretudo ao fim, mas
.goe-se o exame da a escolha deliberada concerne ao que conduz ao fim (por exemplo: queremos
ee mais apta a discri-
estar saudáveis, mas escolhemos deliberadamente que coisas nos tornarão sau-
addmerada, por um
dáveis; queremos ser felizes e o declaramos, mas não é apropriado dizer que
..., que o voluntário,
escolhemos deliberadamente ser felizes). Em suma, pois, a escolha deliberada b30
5C m outros arumais
parece dizer respeito àquelas coisas que estão em nosso poder.
lDI1a. e dizemos que
Tampouco é uma opinião, pois a opinião parece ser sobre qualquer coisa, e
.6a deliberada.
não menos sobre as coisas eternas e impossíveis do que sobre as que estão em
:. impulso, querer ou
nosso poder. Ademais, a opinião se divide em falsa e verdadeira, não em boa e
ÃIm efeito, a escolha
má; a escolha deliberada, sobretudo nestes últimos. Talvez, no entanto, ninguém 11l2al
ec impulso, porém, o
declare que a escolha deliberada é o mesmo que a opinião em geral. Tampouco
:adamente; o homem
que é o mesmo que um tipo de opinião: com efeito, é por escolher deliberada-
R. não por apetite. E
mente coisas boas ou más que somos de uma certa qualidade, não por opinar.
~ que o apetite se
dba deliberada, nem Escolhemos deliberadamente obter, evitar ou algo semelhante; opinamos sobre o
que é, a quem convém ou de que modo é, mas de modo algum opinamos sobre aS
• minimamente pare- obter ou evitar.A escolha deliberada é louvada pelo fato de estar subordinada ao
que se deve mais de que pelo fato de ser reta; a opinião, pelo fato de ser verda-
lIIt afim. pois não há deira. Escolhemos deliberadamente sobretudo aquelas coisas que sabemos serem
~ dedarasse escolher boas, mas opinamos sobre as que de modo algum sabemos. Não parecem ser
Portanto, que é ou qual é sua qualidade, visto que não é nenhum dos casos
mencionados:' Por um lado, a escolha deliberada é manifestamente voluntária;
por outro, nem todo voluntário é objeto de escolha deliberada. Seria então o que
de pensamento e reflexão. Também o nome parece aludir ao que é escolhido as ciências exatas e aur
antes que outras coisas.
III5
Delibera-se sobre tudo, e tudo é objeto de deliberação, ou não há conselho do que das ciências; (
sobre certas coisas:' Presumivelmente se deve dizer que o objeto de delibera-
a20 çâo não é aquilo sobre o qual deliberaria um parvo ou insano, mas aquelas
coisas sobre as quais o homem sensato deliberaria. Ninguém delibera, então,
sobre os objetos eternos; por exemplo, sobre o universo ou se a diagonal e o
lado são incomensuráveis. Também não sobre os que estão em movimento, Deliberamos não sobre '
mas que se engendram sempre do mesmo modo, seja necessária, seja natural-
a2S mente ou por uma outra causa, como as órbitas e o nascer dos astros. T am-
pouco sobre os que são ora de um jeito, ora de outro, como secas e chuvas.
.É indevante se uma por exemplo, nenhum lacedemônio delibera sobre como os citas melhor se
IIÍD iIM:stigamoseste governariam. Com efeito, nenhuma destas coisas ocorreria por nós mesmos. a30
Deliberamos sobre as coisas que estão em nosso poder, i.e., que podem ser
laIIlente voluntária; Parecem, assim, ser causas a natureza, a necessidade e o acaso; além disso,
lia. Seria então o que o intelecto e tudo o que é feito pelo homem. Cada um de nós homens delibera
:ada i acompanhada sobre aquilo que pode ser feito por si próprio. De um lado, não há conselho
r ao que é escolhido sobre as ciências exatas e autônomas, por exemplo: sobre ortografia (não fica- l1l2bl
mos em dúvida sobre como um termo deve ser escrito); deliberamos, porém,
sobre as coisas que ocorrem por nós mesmos, mas que não ocorrem sempre
sobre a navegação do que sobre a ginástica: tanto mais quanto menor for seu bS
até chegarem à primeira causa, que é a última na ordem da descoberta. De haviam escolhido por deli
b20 fato, o homem que delibera parece investigar e analisar da maneira descrita, o objeto de desejo delibera
como uma construção geométrica (é patente que nem toda investigação é uma será, então, o desejo delibe
deliberação, como as investigações matemáticas, mas toda deliberação é uma função de ter deliberado, c
investigação), e o termo último na análise é o primeiro na execução. Caso Fique, assim, dito em
b2S se deparem com algo impossível, suspendem a investigação; por exemplo, se ~ coisas incide e que co
for preciso dinheiro, mas não se é capaz de ganhá-lo; caso se revele possível,
põem-se a agir. São possíveis aquelas coisas que ocorrem por nós mesmos, pois
as coisas feitas pelos amigos são em um certo sentido feitas por nós mesmos:
ll13al exemplo, se isto é pão ou se está cozido como deve, pois são do domínio da sen-
que parece bom a cada um
mesmo, no caso, coisas coru
sação. Se sempre se tiver de deliberar, ir-se-á ao infinito. O objeto de deliberação
não se deve dizer que é obj
e o objeto de escolha deliberada são o mesmo, com a ressalva que o objeto de
enquanto o que aparece a Cé
escolha deliberada já está determinado: com efeito, o objeto de escolha delibe-
~ da descoberta. De haviam escolhido por deliberação. Dado que o objeto de escolha deliberada é
~ da maneira descrita, o objeto de desejo deliberado do que está em nosso poder, a escolha deliberada alO
~!IIdainvestigação é uma será, então, o desejo deliberativo do que está em nosso poder, pois, julgando em
:
~mda ddiberação é uma função de ter deliberado, desejamos conformemente à deliberação.
~ na execução. Caso Fique, assim, dito em grandes linhas o que é a escolha deliberada, sobre
~; por exemplo, se que coisas incide e que concerne às coisas que conduzem aos fins.
r-
~ as<> se revele possível,
r
~ são em vista de OU~
um mal); por sua vez, aos que dizem que o bem aparente é objeto do querer, a20
mas aquelas coisas que
decorre que não existe objeto do querer por natureza, mas é objeto do querer o
~ os singulares; por
que parece bom a cada um (a pessoas diferentes coisas diferentes parecem boas,
~á> do domínio da sen-
mesmo, no caso, coisas contrárias). Se, então, estas posições não são satisfatórias,
~ O ~o de deliberação
não se deve dizer que é objeto do querer sem mais e segundo a verdade o bem,
~ rnsalva que o objeto de
r cq.ro de escolha delibe-
enquanto o que aparece a cada um é o bem aparente! Assim, ao homem virtuoso a25
a30 pesadas e outras deste tipo). Com efeito, o homem virtuoso julga corretamente
cada coisa e em cada uma a verdade se manifesta a ele, pois há coisas belas e
distingue sobretudo pelo faeo de ver o verdadeiro em cada coisa, como se tosse .., é princípio nem g'
um padrão e uma medida delas. À turba o engano, parece, engendra-se devido prirn, isto é evidente 1
1113bl ao prazer, pois, não sendo de faro um bem, parece ser. Buscam, ao menos, O
... que estão em nós,
igualmente está o não agir, e naquelas nas quais o não está em nosso poder, armplo, as penas são
também está o sim, de sorte que, se está em nosso poder agir, quando é belo, ar:ava nele, pois era sen
blO também o não agir estará em nosso poder, quando é desonroso, e se o não Também atribuem per
agir, quando é belo, está em nosso poder, também estará em nosso poder agir, Cf'< devem conhecer e (
quando é desonroso. Se está em nosso poder fazer as coisas belas e as deson- DOS casos em que paree
rosas, e similarmente o não fazer, e se é isto sermos bons e sermos maus, está anva em seu poder; c(
bem se deve pôr em dúvida o que foi dito agora e se deve dizer que o homem
não é princípio nem gerador de suas ações, assim como é de seus filhos i Se,
porém, isto é evidente e se não temos como recorrer a outros princípios além b20
dos que estão em nós, estão em nosso poder e são voluntárias aquelas coisas
cujos princípios estão em nós. Em favor destas teses parece haver testemunho
nos atos privados de todos e nos dos próprios legisladores; com efeito, eles
atribuem castigos e punições aos que cometem vilanias que não tenham agido
forçados ou por ignorância da qual eles próprios não foram responsáveis, ao b2S
passo que recompensam os que praticam atos belos, de modo que exortam
que não estão em nosso poder nem são voluntárias, porque de nada serve ficar
persuadido a não ficar quente, não ter dor, não ter fome ou qualquer outra
coisa deste tipo, pois não menos as sentiremos. Também atribuem penas pelo
bto mesmo de ignorar, quando parece que se é responsável pela ignorância; por b30
exemplo, as penas são dobradas para os embriagados. Com efeito, o ptincípio
estavanele, pois era senhor do não se embriagar, o que foi a causa da ignorância.
Também atribuem penas aos que ignoram alguma prescrição presente nas leis
que devem conhecer e que não são difíceis de se estar a par, assim como nos ou- 1114al
nos casos em que parecem ignorar por causa de negligência, porque o não ignorar
como de serem injustos e intemperantes, uns por praticarem o mal. outros por
se livrarem às bebidas e coisas deste tipo; com efeito, as atividades concernen-
tes a cada coisa os tornam do tipo respectivo. Isto fica claro nos que treinam
aIS ficará justo; tampouco o doente cessa de estar doente e fica são quando quer.
Contudo, se assim ocorre que leva uma vida de modo acrático e não obedece
estava em seu poder o lançar, pois o princípio estava nele. Similarmente, era
a20 possível ao injusto e ao intemperante não se tornarem tais no início. e por isso
Não somente os vícios da alma são voluntários, mas, para algumas pes-
ninguém censura os que são feios por natureza, mas os que o são por làlta de
doença ou por uma batida, mas terá antes piedade; todo mundo, porém,
mas não os que não estão em nosso poder. Se é assim, igualmente acerca a30
Se alguém objetasse que todos tendemos ao bem aparente, porém não somos
senhores do modo como aparece, mas tal qual cada um é, tal fim lhe aparece; 1114bl
se, então, cada um é de certo modo causa para si mesmo da disposição, será ele
causa para si mesmo do agir mal, mas faz estas coisas por ignorância do fim,
:lCteditando que através delas obterá o melhor para si. A tendência do fim não bS
é auto-escolhida, mas o homem deve nascer como que possuindo um olho pelo
qualjulgará bem e pelo qual escolherá o bem segundo a verdade, e é bem nascido
aquele a quem isto é naturalmente bom, pois é o que há de maior e de mais belo,
e que não é possível receber ou aprender de um outro, mas, tal como nasceu, blO
assim o terá, e a boa estirpe verdadeira e perfeita é ter isto bem e belamente por
natureza. Se, então, estas coisas forem verdadeiras, em que a virtude será mais
mas o que quer que façam, referem o resto a este fim. Então, ou bem um fim
qualquer aparece a cada um não por natureza, mas depende em algum sentido
dele, ou bem o fim é natural; mas, pelo fato de o homem virtuoso fazer o que
Se, portanto, como foi dito, as virtudes são voluntárias, somos também
de certa qualidade, pomos o fim que lhe corresponde. Os vícios também são
b2S voluntários, pois são similares.
III8
que são mediedades, que são disposições por si mesmas de praticar aqueles
atos pelos quais se engendram, que estão em nosso poder e são voluntárias e
b30 que são como a reta razão ordena. Porém, as ações e as disposições não são
11lSal somos senhores do início das disposições, mas o acréscimo caso a caso não é
distinguível, assim como ocorre nas doenças. Porque, porém, estava em nosso
poder nos servir assim ou não assim, por esta razão são voluntárias.
113
Comentários I 75
virtude intelectual que atua no campo prático, após o exame separado de cada
virtude moral.
Comentários I 77
"aqui se inicia o tratamento da noção de virtude" (grifo meu). Uma parte do
estudo da natureza da virtude compreende o exame do seu modo de aquisição,
mas o problema de sua aquisição não é a "verdadeira questão", como pretende
Gaurhier em seu comentário.
Convém assinalar que virtude traduz aqui àpET~. Como o próprio
Aristóteles reconhece, no início de II 5, o termo tem uma aplicação mais am-
pla do que o contexto propriamente moral ao qual a tradução virtude parece
confiná-lo. Com efeito, para o pensamento antigo, fortemente impregnado de
teleologia, os objetos cumprem certas funções, que são definidas como o que
certo objeto unicamente realiza ou o que ele realiza do melhor modo; dentre
os objetos de certo tipo, aos quais uma ou várias funções são atribuídas, aquele
que exercer bem as funções que o caracterizam será dito um objeto virtuoso.
Deste modo, se a função do cavalo for correr e portar o cavaleiro, o cavalo que
corre bem e que porta bem o cavaleiro será um cavalo virtuoso. Em função
da amplitude de aplicação de àPETlÍ em grego antigo, propôs-se não sem fre-
qüência verter este termo por excelência, o que teria a vantagem suplementar
de evitar um termo (virtude) fortemente matizado pela análise moralista dos
últimos séculos. Tal proposição não deixa de ter seu fundamento, mas não me
parece cogente. Em primeiro lugar, o termo virtude não está definitivamente
marcado pelo viés moralista dos últimos séculos; o uso de um termo moral
não se confunde necessariamente com a interpretação dada a este uso por certa
doutrina moral, por mais hegemônica que seja. De fato, virtude é um termo
que indica a excelência moral, e é esta excelência moral que foi interpretada de
modo moralista nos últimos séculos. O que está sobretudo em questão aqui
é a excelência moral, e o termo que designa a excelência no campo moral é
justamente virtude. Ainda, o oposto de virtude é vício, o que novamente põe
em evidência a dimensão moral que está em questão aqui; por outro lado,
o oposto de excelência é algo como debilidade ou fraqueza, que pode indicar o
fracasso moral, mas, assim como excelência, não o faz em primeira instância:
um homem débil ou fraco não é forçosamente vicioso, e o próprio Aristóteles
dirá que a fraqueza da vontade, ou àKpGatG, não é um vício, embora lhe seja
aparentado. Parece assim preferível guardar o termo clássico, virtude, para
verter em português àPETlÍ, pois ele põe em evidência a dimensão moral que
tal termo quer aqui justamente captar.
Comentários I 79
l102a13 segundo o plano traçado no início. Ver especialmente I 1 1094a27-
blO. A subordinação da ética à política, tida como a ciência arquitetônica do
domínio prático, foi defendida em I 1. Deve-se, contudo, observar que a ciência
à qual se subordina a ética é a Política, ou, dito de outro modo, política., isto
é, a ciência relativa às relações humanas, da qual a própria política, (no sen-
tido restrito, como entendemos hoje) é uma espécie, ao lado da ética. Assim,
a ética não está subordinada à política., como se houvesse um homem político
(no sentido corriqueiro) superior ao homem ético; a ética está subordinada à
política., no sentido em que a moral dos indivíduos se realiza unicamente no
interior da cidade, portanto está enraizada na própria polírica.. Porém, relativa-
mente à política., a ética está em posição superior. Com efeito, à política, cabe
determinar qual é o melhor regime; ora, o melhor regime é o regime justo, e
isto é determinado não pela política., mas pela ética, que investiga as condições
da noção de justiça (feito em EN V). Portanto, conceitualmente ao menos,
a política, depende das lições da ética e não o contrário: o bom político é o
político moral. O fato de os políricos, (que marquei como "estadistas", os que
exercem a "arte política"), se verdadeiros, ocuparem-se da virtude é um sinal
que a investigação segue o plano traçado no início, a saber, a subordinação da
ética à política., mediante a subordinação da política, à ética. A homonímia de
política, e política, não é acidental, mas provém de uma estreita relação entre
os termos (o que explica, aliás, sua freqüente confusão), por conseguinte de
algum modo (ainda que não diretamente) a política, está em questão ao estar
envolvida a políríca.,
l102a14~16 pois procurávamos o bem humano e a felicidade humana. O bem
humano, contraposto ao bem universal (defendido pelos platônicos), foi obtido
em I 4 (capítulo dedicado à crítica da noção platônica de bem), particularmente
em 1096b31~34; em I 6 Aristóteles dedica o argumento à determinação que a
felicidade humana é a atividade segundo a virtude e, como a função própria do
homem é agir segundo a razão ou não sem razão, não se trata, para atingir o
bem humano supremo, de fazer isto ou aquilo em detrimento de outras coisas,
mas de bem fazer tudo o que se faz;, e isto significa agir segundo a razão ou não
sem razão. Ao rejeitar o bem platônico, Aristóteles abandona todo projeto de
encontrar um bem universal, comum e único para tudo (EN I 4 1096a27~28:
8~Àov WS OUK av E1ll KOLVÓVTl Ka8óÀou KaL EV).
Comentários I 8I
essa reserva, ao tornar interrogativo o advérbio de modo: BEL TOV TTOÀLTLKOV
ElBÉvaL TTWS EXEL Tà TTEPL tjJUX~v, WaTTEp KaL TOV µÉÀÀovTa exp8aÀµov
9EpaTTEÚCJELVTOV awµaTos rrcvrõc T~V YVWaLV EXELV àváYKTl, "o homem
político deve conhecer como funciona a alma, assim como quem vai curar os
olhos necessariamente deve ter o conhecimento de todo o corpo" (23, 29-31).
Por outro lado, Joachim parece aceitar uma acribia relativa, mas a mesma para
um e outro: "o político deve conhecer psicologia tanto quanto o oculista deve
conhecer a anatomia humana geral" (p, 61), o que tampouco coincide com o
que está dito. Como o próprio Aristóteles observa, quanto mais nobre for a
política em relação à medicina, tanto mais deve o político conhecer de certo
modo as partes da alma. Isso não parece dizer que sua acribia deve ser igual
ou maior que a do médico, mas somente que é ainda mais necessário certo
conhecimento da alma pelo político do que já é necessário certo conhecimento
de todo o corpo para o médico, quaisquer que sejam as acribias de um e outro
conhecimento.
1102a21~22os médicos talentosos. Os médicos talentosos são aqueles que
terminam seus estudos como filósofos da natureza, buscando princípios gerais
e não somente procedimentos práticos de cura; na verdade, como há uma real
afinidade entre ciência natural e medicina, não somente os filósofos da natu-
reza mais talentosos (de juvent. et senect. 480b28-29: TWV TTEPL<pÚCJEWSrrprry-
µaTEu8ÉvTWV oi xapLÉaTaToL) terminam seus trabalhos com a medicina,
como também "os médicos que perseguem mais filosoficamente a arte iniciam
a medicina a partir dos princípios da ciência natural" (de sensu 1 436a20~b1:
KaL TWV laTpwv oi <pLÀoao<pwTÉpWS T~V TÉXVllv µETLÓVTES ... EX TWV TTEPL
<pÚCJEwsapXOVTaL). Cf. Polit. IV 13 1297b9 para xaptEVTES.
1102a26~27também nos estudos exotéricos. É igualmente admissível a tra-
dução: "mesmo <até> nos escritos exotéricos" (cf. Irwin ad loc.; o mesmo vale
para as passagens citadas abaixo). A discussão acerca dessa expressão foi bas-
tante grande, sobretudo no fim do século passado. Há outras oito passagens
nas quais Aristóteles faz referência a escritos exotéricos, seis das quais se en-
contram nos estudos de ética e política. Na EE I 8 1217b23~24,ao examinar
a doutrina platônica do bem, Aristóteles escreve a respeito das Idéias que o
tema foi estudado "tanto nos escritos exotéricos como nos estudos de filosofia"
entendendo por estes últimos seus escritos técnicos. Esta última expressão,
Comentários I 83
scriptum, quod E~WTEplKÓV appellabant, alterum limatius, quod in commen-
tariis reliquerunt" (De finibus V 5 12: "do soberano bem <...> há dois gêneros
de livros, um escrito de modo popular, que chamavam de E~WTEplKÓV, outro
escrito de modo mais sóbrio, que deixaram em suas anotações").
1102a27 aos quais devemos recorrer. O relativo aos quais pode referir-se tanto
a temas quanto a escritos exotéricos (no grego como em português); penso que se
refere aos temas, que são introduzidos a seguir. Sobre esta passagem, Gauthier
sustenta que, em conformidade com a evolução da psicologia de Aristóteles
proposta por Nuyens (I..:Evolution de la Psychologie d'Aristote, Louvain - Paris
1948), a doutrina da alma exposta aqui" é verdadeira aos seus olhos no momento
em que escreve a Ética Nicomaquéid' (p. 93, grifo do autor). Isto significa que
Aristóteles toma não só por satisfatório aos estudos éticos a distinção entre
parte racional e não-racional, mas sobretudo a toma ainda como a boa divisão
da psicologia. Mais ainda, isto faria com que a EN, em função da tese adotada
a respeito da alma, tivesse sido escrita na fase intermediária, aquela na qual,
segundo Nuyens, há um dualismo alma - corpo no qual a alma se serve do
corpo como se fosse um instrumento, após a fase inicial de forte oposição entre
alma e corpo e antes da fase final, o hilemorfismo exposto no De Anima. A
tese de Nuyens recebeu diversas críticas; independentemente disso, contudo,
convém observar que toda esta passagem sobre as partes da alma vem anun-
ciada como meramente satisfatória para os estudos éticos, sem necessariamente
representar a psicologia que, aos olhos de Aristóteles, é a boa interpretação da
natureza da alma. A distinção racional- não-racional permite obter os resul-
tados a que se visa sem obrigar a um exame mais detalhado, e forçosamente
controverso, da natureza da alma. Gauthier vai claramente além do que o texto
fornece. Tanto mais que Aristóteles ressalva aqui e ali que, do ponto de vista
de sua teoria da alma, ele não crê que a divisão em racional e não-racional seja
o bom procedimento. Em primeiro lugar, a função vegetativa, distinta da su-
posta parte não-racional da alma na ação, é apresentada como função comum
a todo embrião, cria, broto ou indivíduo adulto, tese sustentada no De Anima
e apoiada no método lá desenvolvido. Como ela é inteiramente não-racional,
não pode corresponder à parte apetitiva da alma, na nomenclatura adotada por
Platão - embora a ETTl8lJµta platônica resista à razão, ela não é nem pode ser
totalmente imune à razão. Em segundo lugar, é dito ser indiferente se a parte
Comentários I 85
que na vigília, pois é nesse período que mais se assimila e cresce, dado que não
é preciso para isso de nenhuma sensação" (1454b32A35a3).
l102b8 relativo àquilo com base no qual ela é dita boa ou má. O sono é uma
compressão do órgão sensitivo primeiro causada pelo aumento do calor vital
de modo que se obstrua a percepção, cujo intuito é preservar o animal dando-
lhe um momento de repouso (De somno III 458a28~32). A inatividade não é,
obviamente, da alma inteira, mas somente de certas funções da alma, particu-
larmente daquelas pelas quais o agente é dito ser virtuoso ou vicioso.
1102b9 a não ser que, de a~um modo, em pequena medida, alguns movimentos pe-
netrem. Ver especialmente De msomnus III 462a29~31: "o sonho é a imagem pro-
veniente do movimento das sensações quando se dorme, enquanto se dorme".
Como explica a paráfrase, os movimentos diurnos das sensações penetram de
algum modo nos sonhos e os conformam, nessa medida, à qualidade moral
da pessoa (24, 21-23; ver também Eustrácio 114, 24 - 115, 12). No Problema
XXX 14 957a20-35 é dada a seguinte explicação: uma visão ocorre quando,
estando pensando ou revendo imagens mentais, adormecemos, e por isso ten-
demos a ter visões do que estamos fazendo ou iremos fazer, pois pensamos
ou imaginamos sobretudo a respeito disso. Pela mesma razão, os sonhos dos
homens bons são melhores do que os dos viciosos, pois eles pensam ou ima-
ginam coisas boas no estado de vigília, ao contrário dos viciosos.
l102b13-14 participando, porém, em certa medida, da razão. Aspásio comenta
que, pelo fato de participar em certa medida da parte racional, difere obviamente
da outra parte não-racional, que em nada participa da razão, de sorte que "o não-
racional parece ser homônimo" (35, 16). O problema poderia ser sanado supondo-
se que Aristóteles pensa as duas partes como espécies de um mesmo gênero, o
não-racional, definido como o que não tem razão por si mesmo - o não-racional
que participa da razão não participa de sua própria razão, mas da razão de outra
parte (a parte racional). Provavelmente, porém, isto é um falso problema, pois não
está em questão a psicologia de Aristóteles, mas somente um uso, bem recatado
aliás, de um vocabulário psicológico, não necessariamente aristotélico, ainda que
não incompatível com a boa psicologia de Aristóteles. Se dividirmos, por outro
lado, a parte racional em duas, como Aristóteles sugere no fim do capítulo, então
devemos adaptar a definição do racional como o que pode seguir a razão, de sorte
que se possa ter aqui também um mesmo gênero com duas espécies.
Comentários I 87
contra o que reconhece pela razão como sendo seu dever; aqui, ambos os dese-
jos, o apetite e o desejo racional, são descritos como ímpeto.s que vão em direções
contrárias, como se Aristóteles quisesse evitar o uso de um vocabulário mais
técnico, próprio de sua filosofia.
1102b27~28a do homem temperante e corajoso. Burnet explica a escolha des-
tes termos pelo fato de o temperante, aw<ppwv, ter a virtude da ETTL9uµLa e o
corajoso, àv8pELOS, a do 9uµós, que constituem as duas partes não-racionais
da alma, segundo a tripartição platônica. Isso é bem plausível, mas, para além
da referência à divisão platônica, pode-se ver aqui os dois candidatos a virtude
em liça nos debates culturais da Atenas de Platão e Aristóteles: a temperança,
o novo candidato, típico da cidade, e a coragem, exaltada desde Homero, ideal
guerreiro por excelência. Coragem e temperança figuram, ao lado de prudência
e justiça, a título de virtudes cardinais em Platão.
l102b30 a apetitiva e, em geral, desiderativa. Na psicologia antiga (que Aris-
tóteles retoma), a parte desiderativa (TO OpEKTlKÓV) comporta três casos. Um
primeiro tipo de desejo é o 8uµÓS, que traduzo, faute de mieux, por impulso, a
saber, o que ocorre quando reagimos contra algo, particularmente contra uma
injustiça; ele é usado como sinônimo de opy~, cólera, e o verbo que o acom-
panha freqüentemente é oPYL('Ea8m, encolerizar-se. A ação resultante de uma
reação, justificada ou não, é dita 8là 8uµóv. Aristóteles o liga freqüentemente
ao sentimento de orgulho e de auto-estima, a coragem sendo sua manifesta-
ção mais evidente. Um segundo tipo de desejo é a ETTL8uµta, o desejo ligado
ao que é agradável, como ter ETTL8uµLa por doces, vinhos ou relações sexuais
(Top. VI 8 146bll: "desejo do agradável"; VI 7 146a9: ETTL8uµta ouvouoínç,
"de copulação"). Assim, quem compra muito chocolate age por ETTl8uµta, mas
quem acode a alguém em perigo age por 8uµÓS. Platão, no Pedro, os compara
a dois cavalos que a razão tenta comandar para guiar uma carruagem: um é
como um cavalo fogoso, mas obediente às ordens, enquanto o outro é visto
como o cavalo que puxa sempre à esquerda, esquivo, que busca furtar-se ao
comando do cocheiro. Ambos pertencem à parte não-racional da alma; no
Timeu, a ETTL8uµta é localizada na zona baixa do corpo, ligada aos órgãos
sexuais, enquanto o 8uµós está acima, situado em torno do coração. Em
Aristóteles, não há essa carga fortemente pejorativa dos diálogos platônicos
em relação sobretudo à ETTL8uµLa, mas que concerne também, posto que de
Comentários I 89
l102b33 é persuadida de certo modo pela razão. O verbo TTEt8oµm, como
sugere Chantraine, é provavelmente o verbo original de onde se formou, pos-
teriormente, uma voz ativa transitiva, TTElSW.Ele indica que o sujeito confia ou
deixa-se guiar por alguém ou algo, de onde os sentidos, por vezes diflceis de
distinguir, de ser persuadido e de obedecer. No contexto, há termos que favorecem
o sentido de obediência, como TTEl8apXE1 T0 ÀÓY4-l (b26) e TTEl8aPXlKóv (b31);
no entanto, a estrutura aqui parece jogar com o fato de o grego naturalmente
ligar a obediência à capacidade de ser persuadido - e esta obviamente é obtida
pela razão.
1103al que esta parte é racional. A saber, a parte não-racional obediente
(1102b34: TO aÀoyov) ou, mais precisamente, o aspecto desiderativo em ge-
ral (1102b30: õÀws OPEKTlKÓV). Dirlmeier propôs uma divisão em quatro
membros (duas partes da alma não-racional e duas outras da racional), mas
Gaurhier mostrou satisfatoriamente que não há como distinguir a parte não-
racional que obedece à razão da parte racional que obedece à razão.
1103a5 perspicácia. Gaurhier argumenta que este termo deve ser entendido
no sentido platônico da faculdade de compreender teoricamente com rapidez, e
não no sentido aristotélico de uma faculdade de bem julgar em matéria prática
(que tem os mesmos objetos que a prudência, porém, à diferença desta, não
produz imperativos, mas somente juízos ou valorações), alegando que a divisão
em virtudes intelectuais e morais já se encontra em Platão e que Aristóteles se
limitaria aqui a reproduzir essa doutrina da Academia. No entanto, a aWEalS
em Aristóteles é bem uma virtude intelectual, como a prudência, e nada nos
obriga a vê-lo aqui a reproduzir uma doutrina corrente na Academia; de qualquer
modo, se a aúvEalS for platônica pela razão aludida, então o será igualmente a
<PPÓVTJalS (no sentido, então, de conhecimento teórico), mas há boas razões para
se suspeitar que Aristóteles queira já introduzir a sua própria noção de <PpóVTJOlS
no campo das virtudes intelectuais, justamente ao mencioná-la ao lado da sabe-
doria teórica, ooóío. Contudo, na linha a8 avvETós acompanha unicamente a
sabedoria, podendo ter um sentido agora mais claramente de virtude intelectual
da parte teórica (o mesmo ocorre em EE IH 11220a6). Isso levaria a interpretar
oúvEalS como quer Gauthier, mas talvez Aristóteles queira precisamente deixar
os termos em certa flutuação, sem adotar uma ou outra divisão técnica, como
parece estar ocorrendo na maior parte deste capítulo.
lI!
Comentários I 9I
de a virtude moral não nos ser inata, mas se desenvolver em nós em função da
qualidade de nossas ações. Para este ponto, Aristóteles se servirá da analogia
com as artes, em contraste com os casos de faculdades presentes em nós já em
potência, bastando uma oportunidade para exercitar-se, como as sensações.
O capítulo conclui-se com uma tese simples, mas capital para o argumento
aristotélico, que será repetida no início do capítulo seguinte: a disposição
acompanha e, em um sentido relevante, é dependente das ações.
l103a14 Sendo dupla a virtude. Este é o texto dos manuscritos, que Bekker
conserva; Susemihl propôs Ol TTlls o~Tlls àpETlls OOOlls (que daria: a virtude,
pois, sendo dupla), que Bywater adotou em seu texto. A correção, porém, não
é necessária, pois II 1 segue diretamente I 13 como se fosse o segundo capí-
(e. g. I 2
tulo do mesmo livro, o que com freqüência é ligado pela partícula OÉ
1095a14, 3 1095b14, 4 1096all, 5 1097a15, 8 1098b9, 9 1098b22, 12 1101blO,
para ficar somente no primeiro livro); a correção para o~ somente se imporia
se II 1 abrisse de fato, conceitualmente, um novo livro, o que não é o caso.
11103a15 em grande parte. "Em grande parte" porque também tem gênese
por descoberta, além do ensino. Aspásio escreve que "toda ciência provém do
ensino" (37, 13-14), para logo a seguir assinalar que a sabedoria requer "de
toda evidência ensino ou descoberta" (37, 15). A paráfrase é confusa a este
respeito, pois quer explicar o em grande parte pelo ensino pelo fato de adquirir
também o principio por natureza (alegando que o homem é receptivo da ci-
ência) e de ter "certo aumento pelo costume", àTTO ~e01!S aüÇllaLV Àaµ(3ávEl
Tlvá (26, 7~9). Talvez a paráfrase esteja supondo que, como requer tempo e
dedicação, isso cria certo hábito - o de dedicar-se à ciência -, o que se torna
por fim um fator para certo aumento seu. Aspásio comenta que alguém pode
querer chamar a prática de pesquisa de hábito, E8os, embora esse não seja o
uso próprio do termo; talvez isso indique que, na tradição do comentário a
essa passagem, havia alguma observação a respeito do fato de se chamar tam-
bém de hábito a ocupação científica, o que eventualmente teria ocasionado a
explicação da paráfrase.
11103a16~ 7 por isso requer experiência e tempo. As virtudes intelectuais re-
querem experiência, como toda atividade intelectual, e isso obviamente implica
tempo. Para algumas ciências, porém, como as matemáticas, jovens costumam
Comentários I 93
ao engendrar o caráter, não o predetermina em função de uma boa ou má
natureza que teríamos ao nascer? Creio que a resposta de Aristóteles consiste
em aceitar que podemos ter de nascença certas tendências que auxiliam ou
perturbam a aquisição das virtudes, como a intrepidez, que alguns desde cedo
manifestam, ou a timidez, que outros logo evidenciam e da qual raramente se
libertam; porém, o decisivo é que o caráter provém das ações que, por hábito,
são repetidas. A ação pode ser facilitada (ou dificultada) pelas tendências na-
turais, mas não é idêntica a elas, e pode sobrepujar-se a elas, redirecionando
as tendências naturais em função dos hábitos adquiridos.
l103a18 divergindo ligeiramente de ethos. Em grego, E8os, hábito, de onde
viria ~8os, caráter, e ~8LKlÍ, ética ou moral. Burnet observa com razão que os
gregos não viam as palavras como derivadas de outras, mas sua análise baseava-
se numa ligeira alteração de um termo em relação a outro (ver por exemplo
Cratil. 398d5 aµLKpov TTapllyµÉvov, "levemente mudado"; 400bn àv µE:V
Kal aµtKpóv TlS TTapaKÀtV\l, "caso alguém o altere levemente"; 41Oa4 oui-
KpÓV Tt TTapaKÀ.tVOVTES,"levemente alterados"). Basta aplicar tal princípio ao
português para ver que resultado catastrófico resulta: mato e moto divergem
ligeiramente, sem terem nenhuma relação etimológica. Platão se serviu deste
procedimento para propor suas famosas etimologias, a mais célebre das quais
ilustra por excelência sua força enganadora: o corpo, awµa, é o túmulo, af)µa,
da alma. Felizmente, Aristóteles se serve pouco deste procedimento poten~
cialmente enganador, sendo mesmo bastante avesso a etimologias em geral:
em Top. II 6 112a32~38, ele critica quem quer ver em EUµVXOS o sentido (por
decomposição da palavra) de pessoa de bom ânimo ou em EVôatµúlv o de pessoa
com uma excelente divindade, no lugar de ater-se ao uso corrente desses termos
(respectivamente, corajoso e feliz). Mantenho a leitura dos manuscritos, salvo de
b
K (seguido pela paráfrase), que fornece TTapEyKÀ.lvov, "modificado"; Burnet
adota este último (assim como Gauthier), utilizado por Ateneu e pelo esco-
liasta dos Cavaleiros de Aristófanes (no sentido de alteração de prosódia); de
qualquer modo, não há alteração de sentido em jogo.
1103a19 nenhuma virtude moral se engendra em nós por natureza. Para mostrar
em que sentido a virtude moral não nos é natural, Aspásio distingue quatro
sentidos de por natureza: (i) o que sempre ocorre para algo, como o pesado,
que se move sempre para baixo; (ii) o que não existe desde o início, mas que,
Comentários I 95
comentadores antigos. Para Aspásio (39, 15-20), ou bem são sinônimas aqui,
ou bem EK TWV am-wv designa mais propriamente que a geração e a corrup-
ção das virtudes ocorrem pelas mesmas causa.s, sem que por isso se diga que
ocorram pelas mesmas atividades (pois uma causa, e.g. a razão, pode ser a mesma
para contrários, como a medicina o é para o remédio e para o veneno); para
deixar claro que não são somente as mesmas causas, mas também as mesmas
atividades, Aristóteles teria acrescentado Kal olà TWV aUTwv. Burnet, no
entanto, remetendo a algumas linhas mais adiante (2 1l04a28), considera
que não há diferença de sentido, o que também é plausível, a explicação de
Aspásio devendo ser atribuída ao excesso de zelo do comentador. A sugestão
de Gauthier parece-me a melhor: o uso das preposições está sintaticamente
comandado pelos verbos (EK TWV am-wv por vívoum., "engendrar-se por meio
das mesmas coisas",e oLà TWV am-wv por <p9ELpoµm, "corromper-se por meio
das mesmas coisas") e por isso ambas as preposições são mencionadas, sem
que haja diferença filosófica daí decorrente.
l103b23 pois as disposições seguem as diferenças das atividades. É preciso distin-
guir duas teses aqui, embutidas na mesma frase. A primeira está claramente
formulada nas linhas que precedem (1103b21-22): as disposições originam~se
das atividades similares. T rata-se da precedência dos atos com relação às dispo-
sições. Isso, no entanto, pode gerar certo embaraço. Com efeito, para Arisró-
teles, uma ação é tal que, se eu faço algo, então posso deixar de fazê-lo. Esta
condição da ação é o fundamento de toda atribuição de responsabilidade ao
agent~ e jaz no centro da ética aristotélica: é porque o que eu fiz era tal que
eu poderia não o ter feito que eu sou responsável pelo que foi engendrado no
mundo por minha ação. Em outros termos, toda ação está logicamente aberta
aos contrários: aquilo a que posso dizer sim, a isto posso dizer não. O funda-
mento desta abertura aos contrários encontra-se no fato de a ação ser decidida
por razões (ainda que impulsionada por desejos) e a razão ser uma faculdade
dos contrários (cf. Met. e 2 1046b4-5). Esta tese, central no aristotelismo, é
expressamente mencionada em III 7 1113b5-14.Por outro lado, a repetição dos
atos em um sentido em detrimento de seu oposto engendra a disposição do
agente de agir neste sentido e não no outro. Ora, como o próprio Aristóteles
declara em V 1129a13-17, a disposição não está aberta aos contrários, mas
fixa um deles em detrimento do outro. Deste modo, o agente maduro, isto é,
Comentários I 97
alterar sua própria disposição; sem que haja conversão abrupta, há sempre a
possibilidade da alteração mediante uma lenta e difícil manutenção dos atos
na nova direção. O fato que pode ocorrer simultaneamente a corrupção do
uso da razão não elimina que, na maior parte dos casos, esteja presente por
trás da fixidez psicológica a abertura de cada ação, tomada isoladamente, aos
contrários, e isto porque, nestes casos, o agente pode compreender as razões
envolvidas e agir com base nelas. Alexandre generalizou a resposta que Aris-
tóteles deu somente àqueles casos extremos; ao proceder assim, ele dramati-
zou excessivamente o papel das disposições. Aristóteles reconhece que é uma
alteração difícil, certamente lenta, pois o hábito assemelha-se a uma natureza
(De mem. I 452a28: "o hábito éjá uma natureza"), mas é mesmo assim "mais
fácil mudar o hábito do que a natureza" (VlI 111152a29-30), portanto não
é impossível. Mudanças de disposição são lentas e difíceis, mas podem ocor-
rer; neste sentido, Aristóteles se pergunta se devemos continuar tendo como
amigo um homem antes bom, mas que agora se tornou mau (IX 31165b13).
Aristóteles sustenta a transitividade da responsabilidade de modo limitado,
somente para os casos extremos; na grande maioria dos casos, deve-se distin-
guir entre condicionamento psicológico do agente e estatuto indeterminado
de cada ação com relação aos contrários. O primeiro explica a previsibilidade
do agente, o segundo a sua eventual novidade. Assim, é preciso reconhecer,
além da tese da precedência do ato em relação às disposições, a da prevalência
das ações sobre as disposições; é recorrendo a esta segunda que Aristóteles
desfaz o suposto paradoxo que a primeira parecia gerar, o do homem moral
maduro que já não pode agir diferentemente e, conseqüentemente, já não é
responsável do que faz. A tese da prevalência será novamente posta em realce
em IH 8 1114b30-15a3.
II2
Este capítulo introduz três teses maiores da ética aristotélica. (i) No início,
é enfatizado o tipo de exatidão a que pode aspirar o discurso ético: sua acribia
não pode ser como a do matemático; ao contrário, em algum sentido relevante
é preciso determinar, caso a caso, o que deve ser feito. Isto não elimina gene~
Comentários I 99
ao conhecimento, não à ação. Pode surpreender o leitor contemporâneo que a
ética, posto que seja uma disciplina teórica, não vise ao conhecimento, mas an-
tes a tornar bons os homens. Com efeito, a ética é hoje entendida basicamente
como uma meta-ética, e não parece decorrer daí nenhuma restrição relativa-
mente ao caráter moral do investigador: para compreender o funcionamento
lógico de predicados morais como bom e mau nem precisa o investigador mo-
ralizar nem ser um homem bom. Mais ainda, a exigência parece exorbitante
também do ponto de vista aristotélico, pois, neste mesmo capítulo, trata-se
de investigar o que é a virtude moral, e isto é tipicamente uma investigação
teórica, não prática. Além disso, o próprio Aristóteles distinguiu fortemente
entre o papel do prudente e o do filósofo moral: ao primeiro cabe dar conse-
lhos e encontrar soluçôes práticas; ao segundo, fazer análises conceituais. Se o
prudente não precisa ser filósofo para cumprir o seu papel, por que deveria o
filósofo ser, em algum sentido, prudente (ou pelo menos homem moral) para
cumprir o dele? Isso levou exempli gratia Enrico Berti a escrever que, "à luz da
classificação do livro VI, pode afirmar-se - quão paradoxal isso possa parecer
- que a filosofia prática, ou ciência política, não obstante sua intenção prática, é
uma virtude da razão teorética, pelo fato de ser sempre uma ciência" (As razões
de Aristóteles, p. 145). No entanto, Aristóteles insiste a respeito da ética não
visar ao conhecimento: em I 3 1095a4-6, elejá advertira que as lições de ética
serão inúteis àqueles que seguem as paixões, "visto que o fim <destas lições>
é não o conhecimento, mas a ação".
Uma saída para esta dificuldade pode residir no modo como interpretamos
rrpayµaTEla (traduzido aqui por disciplina). Se se toma este termo no sentido
mais restrito de tratado, tudo o que Aristóteles estaria dizendo é que este tratado
aqui não visa ao conhecimento, mas à ação, porque, por exemplo, tratar-se-ia
de um curso dado ajovens legisladores ou destinado a um público constituído
na maior parte não por filósofos, mas por políticos. Porém, neste caso, nada
impede que a análise filosófica exprofesso do fenômeno moral seja conduzida
tipicamente como qualquer outra ciência. Esta solução, contudo, parece-me
ad hoc; com efeito, em X 10 Aristóteles volta ao ponto e insiste que, "como
foi dito, o fim nos assuntos práticos não consiste em estudar e conhecer cada
item, mas antes em realizá-los" (1179a35-b2), e aqui não há nenhuma alusão
a um público particular que explicaria tal restrição. Penso que se deve tomar
Comentários I IOI
bom ou mau, ela toma parte em uma perspectiva sobre o bem e o mal. Ao
fazer isso, a moral como disciplina filosófica (e não somente este tratado aqui)
não é uma ciência teórica como as outras.
1103b30 são elas que determinam também. O termo que traduzi por deter-
minam é, na verdade, um substantivo: tcÚplaL. Este termo aparecerá, com um
sentido técnico, que penso ter aqui, em VI 13 1144b16 ~ KVpla àpET~. A
passagem que, penso, explica este sentido encontra-se em EE II 6 1222b20-29.
Lá é dito que, entre os princípios eficientes, os que são primeiros são denomi-
nados KÚpWL, e entre eles especialmente aqueles cujos resultados são sempre
os mesmos (como parece ser o caso do princípio divino). É dito então que, na
matemática, não há TO tcÚplOV, embora se fale de princípios dominantes por
semelhança (interpreto assim 1222b24-25 OVK EaTl TO KÚplOV, Kal TOl
ÀÉyETal yE KaEl' OµOlÓTT]Ta; ver M. Woods, Eudemian Ethics I, II and
VIII, pp. 126-127). O não haver TO KÚplOV na matemática não está ligado
ao fato de os princípios matemáticos serem imóveis (também o divino o é, e
ele é sobretudo KÚpLOV), mas ao fato que, embora mudados os princípios as
conseqüências se alterem de modo correspondente, eles não operam no sen-
tido aqui relevante, isto é, não mudam por si mesmos, um anulando a outra
hipótese, mas quem os anula um pelo outro é o matemático. A lição parece
ser que o princípio é dito tcÚpLOVse, em um sentido intuitivo e primeiro, ele
próprio for fonte das mudanças e não simplesmente capaz de as repercutir no
que segue. Aristóteles conclui então que "é evidente que, daquelas ações das
quais o homem é princípio dominante, é possível que sejam ou não, e que,
daquelas ações das quais ele domina o ser e o não ser, estas ações estão em seu
poder de ser ou não" (II 6 1223a4-7). Por fim, Aristóteles escreve que as ações
determinam também as disposições porque, se as ações forem boas, assim o
será a disposição; se más, então a disposição será má. Esta passagem retoma o
que foi dito no fim do capítulo acima (II 11103b13-23), mas põe em realce o
sentido de prevalência da ação sobre a disposição, enquanto aquela outra punha
em relevo o sentido de precedência da ação sobre a disposição.
1103b32 O agir segundo a reta razão é corrente; fique valendo como tese. Os edi-
tores modernos dão como texto TO µEV OUv KaTà TOV opElov ÀóyOV rrpáTTELV
Comentários I I03
Ficará demonstrado que a prudência pressupõe as virtudes morais, pois, sem
elas, é uma habilidade mal dirigida ou rravoupyla; em VI 13 1144b30-45a2
é enunciado o problema de saber se tampouco é possível haver as virtudes
morais sem a prudência, de modo que, presente esta, todas as outras estarão
presentes. O livro VI, como se sabe, é um livro comum, e esta remissão a ele
poderia funcionar como um sinal ou bem da posição original destes livros na
EN, ou bem de uma revisão com vistas à sua adaptação à EN. Como em EE
II 111234a28-29 ocorre também uma remissão explícita ao livro VI, mais es-
pecificamente a VI 13, a segunda opção parece fortalecida, haja vista as outras
relações de parentesco entre os livros comuns e o restante da EE.
1103b34 Sobre isto. Aristóteles usa EKELVO provavelmente para acentuar a
importância do ponto.
1104al todo discurso de questões práticas tem de ser expresso em linhas gerais e de
modo não exato. Os editores modernos (Bekker, Bywater, Susemihl) fornecem
ó rrepl TWVrrpaKTwv ÀÓyos-, seguindo a lição do comentário
como texto rrâs-
anônimo ao corrigir o que os mss. trazem, rrâs- ó rrepl TWVrrpaKTÉwv ÀÓyos-;
no entanto, voltei à versão dos manuscritos, como aconselha fazer Burnet.
Segundo a versão dos manuscritos, todo discurso de questões práticas, isto
é, sobre o que devemos fazer em tal e tal situação, deve ser dado em grandes
linhas; na versão dos editores modernos, é antes a imprecisão do discurso
sobre questões práticas que é posta em realce, isto é, do discurso que porta
sobre o que são ações e questões similares. Aristóteles, porém, como observa
Burnet, não está falando aqui da dificuldade da ciência prática em geral, mas
da dificuldade de como fornecer regras sobre o que fazer. Como Aristóteles
dirá a seguir, os agentes devem sempre buscar a solução segundo as circuns-
tâncias; isto é uma consideração que faz o filósofo moral e tal consideração
está expressa no registro do que sempre ocorre. No campo prático, o que deve
ser feito, por ser sempre circunstancial, varia enormemente, o que ocasiona a
referida perda de exatidão. Convém assinalar que a caracterização das deci-
sões práticas como devendo ser fornecidas "em linhas gerais e de modo não
preciso" ocorre unicamente na EN, pois nem a idéia nem a expressão figura na
EE. C.c.w. Taylor, em seu recente comentário, considera que esta passagem
poderia sugerir que todas as proposições da teoria ética seguem o registro "nas
mais das vezes";o que é incorreto, a seu ver, pois algumas proposições da teoria
Comentários I IOS
pensar que, como será dito em VII, o conselho de agir segundo a reta razão é
muito amplo e vago, não servindo de nenhum apoio a quem age, de modo que
se deveria, então, tentar determinar com mais exatidão as condições para bem
agir. Como à questão de saber o que fazer a resposta "aja segundo a reta razão"
não fornece nenhuma diretriz prática, o que segue deveria dar indicações me-
nos vagas a respeito. No entanto, o que se segue tem outra natureza; a partir
de agora se entra em uma discussão de caráter filosófico sobre a natureza da
virtude, que se concluirá em n 6 com a afirmação que a qüididade da virtude
é a mediedade. Se o conselho de seguir a reta razão já era vago, que socorro
pode prestar a quem está prestes a agir saber que a qüididade da virtude con-
siste em uma mediedade? O ponto, portanto, parece ser outro. Embora seja
assim a presente discussão, isto é, se tanto o discurso geral quanto o particular
sobre o que fazer estão imersos em uma forte e ineliminável indeterminação,
o socorro que devemos e podemos prestar consistirá não em fornecer regras
práticas gerais, mas em, deslocando-se do discurso prático em direção à aná-
lise filosófica, examinar certas propriedades da ação em geral e da ação moral
particularmente de modo que, do ponto de vista filosófico, ganhe-se alguma clareza
em um domínio que, do ponto de vista prático, está inevitavelmente imerso em
obscuridades. Isto pode parecer um socorro por demais tênue, mas é mesmo
assim algum socorro; com efeito, disciplina filosófica e atitude moral não es-
tão inteiramente desconectadas, mas a primeira depende da última para ter
seus princípios e se vê agora que a segunda depende da primeira para ganhar
alguma clareza e sair de sua inteira imprecisão.
1104a13-14 pois devemos recorrer aos testemunhos visíveis em prol dos invisíveis.
Esta sentença justifica a escolha da saúde e da força como exemplos; por isso a
transpus após eles, quando, no texto grego, ela ocorre antes deles. O estilo parece
jurídico; Burnet cita em apoio Isócrates Ad Dem. 34.2. A mesma frase aparece
em MM I 1185b16 (lendo EK TWV aiaElT]TwV com Susemihl, no lugar de EK TWV
T]elKWV dos mss: se esta última leitura for mantida, então seria sinal que esta frase
teria sido copiada da EN); em forma ligeiramente alterada, mas com a mesma
idéia, ela já tinha sido afirmada um pouco antes, em 1183a26.
1104a24-25 torna-se insensível, por assim dizer. A reserva de Aristóteles
(" insensível, por assim dizer": àvaLaElT]Tós- Tl s) explica-se não somente pelo
fato de raramente ocorrer quem sente menos prazer, "pois tal insensibilidade
Comentários I I07
Scifrimento seria possível igualmente, o que engloba sofrimento físico e moral,
mas preferi dor, por ser o termo mais neutro e geral deste campo semântico.
Embora primariamente psicológicos, prazer e dor têm uma contraparte física.
A passagem procede então mediante oito argumentos em favor da tese que a
virtude moral está ineliminavelmente ligada a prazeres e dores: (i) b9-13, prazer
e dor influem nas ações; (ii) b13-16, prazer e dor acompanham toda ação; (iii)
b16-18, as punições procedem por dor, portanto o vício, que elas corrigem, é
seu contrário, o prazer; (iv) b18-28, prazer e dor nos fazem agir mal; (v) b29-
110Sal, há três objetos que servem de motivo para a ação e, destes, o prazer
é o mais freqüente e está contido nos dois outros; (vi) al-3, a tendência ao
prazer é inata; (vii) a3-S, prazer e dor servem para julgar nossas ações; (viii)
a7-1O,é mais difícil à razão opor-se ao prazer do que ao impulso. Segundo
Grant, estas provas se sobrepõem e a passagem inteira pode ser acusada de
falta de método. Este juízo parece severo demais; Aristóteles pretende sim-
plesmente arrolar razões para mostrar que prazer (dor) está ligado à virtude
(vício), sem, contudo, adotar uma linguagem fundacionalista (o prazer não
é a razão ou o fundamento por que uma ação é boa). Natali considera (i) o
argumento mais importante; Burnet sustenta que (iv) é o argumento central.
Na verdade, (i) e (iv) são muito próximos, (iv) tendo a vantagem de enunciar
uma tese a ser recusada.
l104bll-12 É por isso que, como diz Platão, deve-se ser educado de certo modo já
desde novo. Burnet observa que o artigo e o presente do indicativo (Ws- Ó TIÀÓTWV
<PT]<JlV) mostram que Aristóteles se refere ao Platão dos diálogos. Platão discorre
sobre o tema em Rep. In 401e-402a, mas provavelmente a passagem aludida
aqui é Leis n 6S3a, sobretudo porque, nesta passagem, a educação é dita ser
"a primeira aquisição pelas crianças da virtude", o que é retomado aqui pela
afirmação que "esta é a educação correta" (o fato de alegrar-se e afligir-se com
o que se deve é igualmente mencionado na República e nas Leis). A posição do
1TWs- ("de certo modo") é ambígua, pois se pode entender que se deve ser edu-
cado de certo modo já desde novo ou que se deve ser educado de certo modo, a saber,
de modo que se alegre e se aflija com o que se deve, como é dito em seqüência
(o que é reafirmado em X 11172a21-23). Esta leitura parece muito natural,
mas a primeira alternativa não deve ser descartada, principalmente porque, no
projeto paidêutico platônico, a educação deve começar já no ventre das mães,
Como se sabe, À(yyoS' pode adotar diferentes valores,e se pode hesitar aqui entre
o sentido de regra (que adotaria o prudente) e o de definição (ou fórmula), que
proporia o filósofo. Adotei a segunda possibilidade porque, em III 2 lll1a3-6,
Aristóteles determina os tipos de circunstâncias que estão em questão, e isto
é feito no quadro de uma definição do ato voluntário Uá que é uma de suas
condições o conhecimento das circunstâncias nas quais a ação se produz),
tipicamente conduzida pelo filósofo. Cabe ao prudente determinar qual ou
quais circunstâncias têm valor moral relevante em certa ação, mas é tarefa do
filósofo determinar, em função da definição (do ato voluntário, base da ação
moral), quais são os tipos que podem ter relevância moral.
1104b24-25 certas impassibilidades e quietudes. Na versão correspondente da
EE, é dito que "todos definem precipitadamente" assim a virtude (II 41222a3:
8LOpl(OVTaL 1TáVTES' rrpoXElpWS'). O próprio Aristóteles faz eco a este modo de
definir a virtude ao escrever,em Phys. VII 3 246b19-20, que "a virtude torna ou
àrraElÉS' ou sensívelde certo modo" e, em Top. IV 5 125b22-23, que "o àrraEl~S'
é dito corajoso e tolerante". Isto pode querer dizer que, para além do círculo da
Academia, outros filósofos também definiam assim a virtude. É plausível,con-
tudo, que esteja pensando mais propriamente nos membros da Academia, e,
entre estes, especialmente em Espeusipo, que, segundo o relato de Clemente de
Alexandria, sustentava que os homens morais visam à ausência de perturbação
(Strom. II 22: aTox<Í(EGElm TOUs- àyaEloUs- TÍ']S' àOXÀT]alaS'). No Pilebo, quem
segue a vida unicamente intelectual (que é rejeitada como a melhor vida para o
homem) é descrito como TO rmpérrm. àrraElTjs- 1TáVTWVTWVTOlomwv (scl.TWV
~8ovwv), "inteiramente apathês relativamente a todos os prazeres" (21e2).
Comentários I
l104b27-28 Portanto, a hipótese é que tal tipo de virtude é de natureza a praticar
o melhor riferente a prazeres e dores. O termo lrrrÓKELTal faz pensar no método
"quase matemático", nos termos de Allan, da EE (if. o comentário a 1103b32).
O anônimo interpreta tal virtude como a virtude que está ligada aos prazeres
e dores como se deve, quando se deve etc., no que é seguido, a nosso ver correta-
mente, por Stewart, Tal virtude é TWV ~EÀTl<JTWV rrpcucrucú, o que traduzi,
sem muita convicção, por de natureza a praticar o melhor. Como Aristóteles
distingue expressamente, em suas éticas, entre ação e produção, preferi esta
perífrase pouco natural a fim de não utilizar termos como produtiva ou efetiva,
pois estão fortemente ligados ao mundo da arte e da produção. Aristóteles
chega aqui à conclusão que buscava, o que é marcado por uma partícula con-
clusiva, apa ("portanto"), mas, mesmo assim, acrescenta outros argumentos
até o fim do parágrafo para fortalecer sua posição.
l104b30~31Como são três os objetos de busca e três os de fuga. A expressão
para objetos de busca é Tà Eis- TàS' alpÉ<JELS' e a tentação é grande de traduzir
por objetos de escolha, mas a noção de a'(pE<JlS' está freqüentemente associada
e mesmo assimilada à de OlWKTÓV, tipicamente objeto de busca (if. I 5 1097a30-
34; VII 10 1151b1), o que sugere fortemente a tratá-la como um sinônimo
desta. A vantagem é também conceitual, pois, como Aristóteles insiste,
toda escolha diz respeito a um meio, enquanto o objeto de busca é um fim
a partir do qual deliberamos sobre os meios. Igualmente, Aristóteles insiste
que o acrático age por causa de um apetite, mas não por escolha deliberada
(if. In 41111b13-14); ora, em IX 41166b8-9 é dito que os acráticos buscam
(alpOUVTaL) o que lhes parece agradável, mas que é de fato prejudicial, no
lugar do que lhes parece ser bom, e aqui certamente não podemos dizer que
escolhem o que lhes é agradável, pois, em um sentido importante, escolher
é pesar razões e o acrático não age pesando razões. Esta lista dos objetos de
busca aparece em Top. I 13 105a28 e III 3 118b28; nos livros sobre a amizade,
Aristóteles falará de três objetos de amizade, o bem (àyaElóv, que substitui
KaÀóv), o agradável e o útil (XP~<JlµOV, que substitui <Juµ<!>Épov; cf. VIII
2 1155b19). A respeito dos objetos de fuga, a maioria dos manuscritos dá
à<Juµ<!>ópou, enquanto Kb e a antiqua traductio fornecem ~Àa~Epov, danoso,
preferido por todos os editores. Não há diferença de sentido, mas ~Àa~E-
póv é muito mais freqüente em Aristóteles. Este é um bom lugar para dar
II3
Aristóteles responde, neste capítulo, a uma objeção que pode ser feita à
sua tese: se nos tornamos justos praticando atos justos, por que devemos nos
tornar o que somos, visto que já praticamos atos justos? A resposta consiste
em distinguir entre fazer algo com certa propriedade (por exemplo: auxiliar
alguém) e fazer esta mesma coisa de certo modo, a saber, tal qual faria o ho-
mem justo, isto é, porque é moralmente correto fazer tal coisa. Fazer tal qual o
homem justo requer agir com base em razões que, em um sentido relevante,
são razões do agente, e são tipicamente razões morais, ao passo que algo que
é justo pode ser feito acidentalmente ou sob a instrução de outra pessoa. A
julgar pelo tom sarcástico com que finaliza este parágrafo, Aristóteles não
parece levar muito a sério quem eventualmente faz ou mesmo historicamente
fez tal objeção (mas que, neste último caso, não foi nomeado). Ao oferecer sua
resposta, porém, Aristóteles menciona três condições do estado do agente: (a)
saber, (b) escolha deliberada, (c) fixidez, e o exame destas três condições é de
grande importância.
Comentários I III
l105a23-24 É, pois, um gramático quando faz algo de cunho gramatical e de modo
gramatical. São dadas duas condições: (i) o objeto tem certa propriedade e (ii)
o agente o produz de modo gramatical. A condição (ii) é interpretada a seguir
como atuar com base em um conhecimento que está, em um sentido intuitivo,
naquele que o produz (excluindo, por conseguinte, que seja por acaso ou por
instrução de outrem): em um sentido relevante, são as suas (boas) razões.
l105a26-27 Além disso, não é nem mesmo similar no tocante às artes e às vir-
tudes. A analogia é, agora, retrabalhada, pois o produto de uma arte tem nele
próprio o bom estado, ao passo que o objeto de ação requer, além de ser um
bom X, que certas exigências sejam satisfeitas por parte do agente, para além
de simplesmente provir dele em um sentido intuitivo.
l105a30-31 mas também quando o agente age estando em certo estado. Além do
resultado (o que é feito) ter certa propriedade (por exemplo: auxiliar alguém a
empurrar o carro que estragou na Marginal), é preciso também que o agente
esteja em certo estado. A dificuldade desta passagem está em determinar
exatamente em que consiste este certo estado em que deve estar o agente.
Aristóteles menciona três condições: (a) saber, (b) escolher por deliberação e
(c) agir de modo firme. Não é muito claro o que entende, como veremos, em
cada uma destas condições, que podem, além disso, ser tomadas separatim ou
ser vistas como uma mesma condição que, a cada etapa, vai sendo aprofun-
dada. Na condição (b) aparece o termo rrpOaLpOÚµEVOS' em sentido técnico,
novamente sem que o leitor saiba ainda exatamente o que Aristóteles entende
por esta noção que ele próprio introduziu na análise filosófica. O que me pa-
rece fundamental aqui é evitar um tipo de telescopagem interpretativa. Como
no livro III Aristóteles examina as condições (nesta ordem) do voluntário, da
escolha deliberada e da disposição, o intérprete naturalmente pensa poder ver
nas três condições aqui aquelas mesmas que serão desenvolvidas mais adiante.
Porém, como veremos, isso causa problemas insolúveis de interpretação da
presente passagem.
Em primeiro lugar, não é claro o que designa (a). Pode ser (i) o conhe-
cimento que a ação é virtuosa. Isto é, o que faz ele o faz sob a descrição de um
ato virtuoso. Ou se trata de (ii) o conhecimento das circunstâncias nas quais se
produz a ação; com efeito, este tipo de conhecimento é uma das condições do
ato voluntário e o ato voluntário está na base da atribuição de responsabilidade
Comentários I II3
fins. Uma terceira dificuldade diz respeito a (c): trata-se da disposição moral, que
então é posta como condição de todo ato moral, ou antes de um requerimento
menos forte, o fato de o agente dever agir sem hesitação, sem ir e vir conti-
nuamente a respeito do mesmo ponto? A estas dificuldades está ligada uma
quarta: o agir moral deve satisfazer separatim estas três condições ou elas são
como que um aprofundamento de uma mesma condição? No primeiro caso,
o agir moral requereria uma estabilidade (c); é evidente que, no caso de um
agente plena ou propriamente virtuoso, (c) está satisfeito a título de disposição
moral (que é estável), mas é de fato verdade que, para toda ação moral, (c) a
título de disposição deve ser o caso? Não podemos imaginar um ato moral que
alguém pratica, com base em razões que reconhece como boas em um dado
momento, sem ainda ter a disposição moral para tanto? Aparentemente, para
preservar a noção de três condições separatim, é preciso dar a (c) uma leitura
menos forte do que disposição moral. O agente deve agir (c) de modo firme e
inalterado, isto é, sem hesitar, dito de outro modo: sem a todo momento re-
cuar e duvidar sobre que caminho seguir. A disposição moral é assim, mas
nem todo ato sem hesitação é um ato proveniente de uma disposição moral.
Esta solução é atraente, mas se pode ainda supor que (a), (b) e (c) estejam
em certa relação de irnbricaçâo, tal que (a) se expande em (b) e (b) redunda
em (c), agora podendo ser lido a título de disposição moral, na perspectiva da
virtude plena (embora isso não seja necessário), sem que todo ato tenha de
satisfazer (a) + (b) + (c) para que seja um ato moral. Pode haver casos em
que (c) não é satisfeito (a título de disposição), mas o ato é mesmo assim um
ato moral, ou mesmo pode ser o caso que (b) não ocorra (atos súbitos não são
acompanhados de deliberação), sem deixar de ser um ato moral. Por sua vez,
(a) apresentaria, nesta interpretação, o patamar mínimo exigido para que não
somente o que é feito tenha certa propriedade, mas que também o agente se
encontre em certo estado. No entanto, (a) é declarado ter pouco ou nenhum
valor, o que torna pouco plausível esta interpretação. Parece, assim, preferível
a interpretação anterior.
l105a31 quando sabe. Esta é a primeira condição, Eàv ElowS'; a que ela
exatamente se refere? A maioria dos comentadores supõe que se trata do
conhecimento das circunstâncias, aquele, como se verá no livro III, cuja igno-
rância provoca o caráter involuntário do ato. Há, porém, duas dificuldades
Comentários I IIS
ética aristotélica está fortemente presente (afinal, rrpocíoeotc é um termo de
estrita estirpe aristotélica). Nesta situação, a preferência por Ol' amá pode
adquirir um interesse novo. Com efeito, a deliberação é sempre dos meios,
mas aqui parece ser enfatizado que o agente escolhe pelas próprias coisas, o que
aparentemente sugere, para me valer das palavras de Gauthier, que a escolha
"incide sobre o fim, o único [em contraste com os meios] que é escolhido por
ele próprio e não por outro bem que poderia decorrer daqui" (ad loc; em con-
seqüência, Gauthier-Jolif assim traduzem a segunda condição: "ensuite, qu'il
les accomplisse intentionnellement, - et ajoutons: intentionnellement en raison
delles-mêmes", na mesma linha, Bodéüs traduz por: "ensuire, le décider et, ce
faisant, vouloir les actes qu'il accomplit pour eux-mêmes"}. Teríamos aqui uma
deliberação que incide sobre os fins, contra o que Aristóteles propõe no livro
III, em função do acréscimo Ol' amá. O acréscimo, contudo, não favorece
tanto a posição de Gaurhier, Talvez ele seja efeito da edição moderna do texto;
mas, mesmo que este seja o texto de Aristóteles, é possível dar uma interpre-
tação que não colide com as lições expressas da limitação da escolha deliberada
a meios e nunca a fins e que mais naturalmente se adapta à sintaxe da frase,
com ou sem reiteração. O agente deve deliberar sobre os meios para obter os fins
com vistas a estes próprios fins que figuravam como conteúdos do saber. Dito de
outro modo, o agente não foge, mas permanece na batalha com vistas ao fim
mesmo de salvar sua cidade, e não porque e.g. lhe foi oferecida uma quantia
de dinheiro para ficar em seu posto. Alguém pode deliberar bem com base
em outro fim do que aquele pelo qual está sendo avaliado moralmente, e a
condição 8l' amá visa aparentemente tão-somente a garantir a relação entre a
deliberação e estes certos fins (morais) que são seus princípios ou regras, sem
por isso provocar um conflito com a doutrina ex prcifesso da escolha deliberada.
Como Broadie escreveu em seu comentário, "o ponto não é, como alguns in-
térpretes pensam, que o homem moral se decide pela ação por si mesma, pois
é consistente <...> fazer D com vistas à saúde e valorizar a saúde com vistas
à felicidadé' (ad loc.)". No fundo, Kb e LbNbOb coincidem, o texto moderno
sendo resultado de um zelo excessivo: a condição (b) apresenta a deliberação
sobre os meios com vistas àquelas mesmas coisas que foram postas como ob-
jeto de saber em (a). Qualquer que seja o texto, porém, rrpompoúµEvOS' tem
o sentido claramente ativo do agente que escolhe por deliberação D com vistas
Comentários I II7
de orador, que, se premido, concederá por certo a segunda opção. O problema
maior desta passagem está no valor por ser atribuído a saber: em que sentido o
saber pouco (ou, melhor, nada) conta na aquisição das virtudes? Parece ser no
sentido de conhecimento teórico; mas, neste caso, se foi antes tomado no sentido
de saber das circunstâncias, então adquire aqui outro sentido, o de "uma teoria
da ação", como escreve Stewart, que observa: "Aristóteles usa EloÉvaL em dois
sentidos no presente contexto, um dos quais ele afirma e o outro ele nega a
necessidade para a moral" (I 185). Era já, como lembrou Natali, a explicação
do comentário anônimo, que glosa este saber como "conhecer a causa e dar
uma demonstração" (129, 24). O preço para pagar, nesta interpretação, é o
divórcio dos sentidos de saber nestas poucas linhas. No entanto, se se tomar
antes saber no sentido de saber técnico, isto explica porque TO EloÉVaL pouco
ou nada conta para a virtude, o que permitirá a ironia seguinte a respeito dos
que crêem ser suficiente. saber (teoricamente) para agir (praticamente) bem.
O ponto já foi discutido nos diálogos socráticos de Platão, especialmente no
Laques: neste diálogo sobre a coragem, a personagem Láques entende como
saber (envolvido na ação moral) unicamente o saber técnico, o que faz com
que, apesar de sua admissão que bem agir é agir com base em um saber, ele
diga que aquele que age bem sem saber (técnico) é mais corajoso do quem faz o
mesmo com saber (técnico), em clara dissonância com sua admissão. A correção
quanto ao tipo de saber (que é primeira ou privilegiadamente saber moral) é
feita, na segunda parte deste diálogo, por Nícias, que sustenta uma posição
de estirpe socrática (o que, contudo, não o evita de cair em dificuldades na
parte final do diálogo).
l105b3-4 as quais justamente resultam do praticar freqüentemente atos justos e
temperantes. O pronome relativo (a1TEp, as quais justamente) remete às outras con-
dições (rô 8' ana). Bywater sugeriu escrever EhTEP no lugar de a1TEp, no que
foi seguido por Gauthier; neste caso, é a aquisição das virtudes que provém do
praticar freqüentemente atos justos e temperantes (e Gauthier traduz coeren-
temente: "pour cette raison même que cest l'accomplissement des choses justes
et tempérées qui produit la possession des vertus"}. Não parece necessária a
correção, contudo. As outras condições são (b) e (c): a escolha deliberada e a
inalterabilidade. A escolha deliberada está, como se vê em II 6, no centro da
virtude moral, que é adquirida pelo hábito; a disposição naturalmente resulta
II4
Comentários I II9
geram na alma além dos citados. Há, porém, um modo de enfatizar que, no
aristotelismo, são três e somente três os estados para serem considerados. A
virtude pertence à categoria da qualidade (I 6 1096a2S: EV T<!JrrOl<!J ai. àpE-
Tal); ora, em Cato VIII, Aristóteles divide a categoria da qualidade em quatro
grupos: (i) EÇlS' e oláElEalS', (ii) éoa KaTà oúvaµLV <pualKTjv ~ àouvaµlav
ÀÉYETaL, (iii) rraElT]TLKalrrOlóTT]TES' e (iv)axf]µa e µop<p~. O grupo (iv) deve
ser desconsiderado, pois diz respeito à forma e aparência do corpo, enquanto
a virtude vale para a alma. Restam, assim, somente três, que são justamente
os que aparecem na lista da EN: (i) disposição e estado, Aristóteles dando
preferência na EN à noção de disposição; (ii) o que é dito como capacidade
ou incapacidade natural são as capacidades de nossa lista e (iii) as qualidades
afetivas incluem as emoções. No entanto, a lista não é muito rígida, pois o
próprio Aristóteles acrescenta, nas Categorias, que "talvez outro tipo de quali-
dade se evidencie; em todo caso, os tipos que são sobretudo mencionados são
aproximadamente em tal número" (10a25-26), o que faz com que se possa
manter ainda certa hesitação quanto à exaustividade da lista, mesmo a quem
se apóie em Categorias VIII.
Uma observação sobre a tradução de rráEloS' por emoção. Toda emoção é
uma afecção, mas nem toda afecção é uma emoção; a audição é certo tipo de
afecção (rráEloS' Tl), mas não é uma emoção. Do ponto de vista ético, porém,
as afecções que importam são as emoções; ser afetado é em algum sentido, na
ética, ter uma emoção. Emoções são afecções envolvidas na ação que contêm
um elemento cognitivo (para sentir medo, por exemplo, é preciso considerar
que algo presente é capaz de causar dano à nossa vida, e esta consideração é
de natureza cognitiva); nem todas as afecções estão ligadas à ação, tampouco
todas contêm um elemento cognitivo que as governe. Não será possível,porém,
manter sempre a mesma tradução, pois rráEloS' em alguns contextos designa o
que nomeamos, de modo mais largo ou menos preciso, de afecção, o mesmo
ocorrendo com os termos cognatos, especialmente com o verbo rráaxw.
l105b21-23 Entendo por emoções apetite, cólera, medo, arrojo, invga, alegria,
amizade, ódio, anelo, emulação, piedade. É sempre difícil traduzir uma lista de
emoções, pois se trata de transpor, à nova língua, toda uma sutil anatomia
da alma humana baseada no uso da primeira língua. Esta lista de Aristóteles
(E1TLEluµlav, OPYTlV, <pó~ov, ElpáaoS', <pElóvov, Xapáv, <plÀlav, uioos, rróêov,
Comentários I I2I
forma do verbo a ele ligado, aparece vez e outra, como em Das partes dos animais
(I 5 644b27) a propósito de nossa ânsia de conhecer os astros e seres divinos
(rrepl WV ElOÉVaL rroElovµEv, "que ansiamos conhecer", na tradução de Lucas
Angioni). Na língua corrente, rróeoS' designa não raramente o sentimento de
saudade, sentimento de afeição ligado a pessoas ou coisas perdidas ou ausentes,
como sugere a etimologia fantasiosa em Crátilo 420a3-6, mas também se refere
ao desejo amoroso, e mesmo sexual, como o rróeoS' por uma mulher nas Rãs
de Aristófanes (v.55). Verti o termo por anelo, que tem uma conotação culta
em português similar à de rróêoç em grego clássico.
1106a3-4 as virtudes são certas escolhas ou não são sem escolha deliberada. A
afirmação envolveum termo não analisado, escolha deliberada, mas é bastante
cautelosa, pois não afirma que as virtudes são escolhas deliberadas, mas sim
que são certo tipo de escolha deliberada, e ainda corrige isso dizendo que
talvez sejam não sem escolha deliberada. A fórmula é deliberadamente vaga;
há uma relação entre virtude e escolha deliberada, mas esta relação precisa
ainda ser investigada.
l106al0 falamos a respeito disso anteriormente. A referênciaé a II 11103a18-b25.
l106a12-13 Foi dito, pois, o que a virtude é quanto ao gênero. Na EN, Aris-
tóteles estabelece como gênero da virtude a disposição, EÇlS'. Isto evidencia
uma clara preferência da parte de Aristóteles em pensar a virtude não como
OLá8EGlS', estado, mas como disposição. A distinção entre estado e disposição é ba-
sicamente de grau: uma disposição é um estado tornado fixo, quase rígido; um es-
tado é uma disposição ainda maleável. Esta preferência de Aristóteles, contudo,
parece coincidir com uma evolução em sua terminologia em direção se não
de um afastamento, pelo menos de um descolamento do que era praticado na
Academia. Com efeito, nas Difinitiones, texto apócrifo que nos foi transmitido
no corpus platonicum, mas que certamente reflete procedimentos da primeira
Academia, a definição da virtude que é fornecida em primeiro lugar é o de ser
oLáElE<JlS' ~ ~EÀTl<JTT], o melhor estado. Encontramos esta mesma definição bem
no início da Ethica Eudemia: "a virtude é o melhor estado ou disposição ou po-
tência" (II 11218b38-19a1), mas Aristóteles já demonstra, neste capítulo inicial,
a preferência em falar de uma melhor disposição (~ ~EÀTl<JTT] EÇlS': 1219a3, a32;
o mesmo em MM I4 1185a38). Conseqüentemente, as virtudes serão assim
definidas na EE: a coragem é a melhor disposição relativa ao medo e ao arrojo,
II5
1106a15 Deve-se frisar, então, que toda virtude. A passagem 1106a15 - 24,
sobre a função de algo e sua virtude, é claramente reminiscente de Rep. I 352e,
passagem que, após curta recapitulação da discussão de Sócrates com Trasí-
maco, conclui o primeiro livro.Já em 352e é introduzida a virtude do cavalo;
a dos olhos é discutida em 353b. O argumento é que, para cada coisa que tiver
uma função (operação), há uma virtude nela, a saber, fazer (operar) bem o
que faz (opera). Esta tese é rapidamente assimilada a outra, dela próxima, mas
bem mais controversa, segundo a qual cada coisa tem uma e uma única ope-
ração que lhe é própria ou a faz melhor do que qualquer outra coisa (352e2).
A operação própria de uma coisa é o que só ela realiza ou que realiza melhor
do que as demais (353a6-7). Esta segunda tese é fundamental para a estraté-
gia argumentativa da República, que parte dela, mas não a discute; ela permi-
tirá, especialmente, dividir os homens em três classes ou funções, tripartição
que depois é introduzida na alma humana. A primeira tese é perfeitamente
compatível com uma pluralidade de funções, ao passo que a segunda privi-
legia a exclusividade. O exemplo aqui das funções do cavalo vai é consoante
à primeira versão, mas é inegável que Aristóteles por vezes passa à segunda
Comentários I I23
versão: o famoso argumento da "função humana" em EN I 61097b24-98a20
esposa a segunda versão (assim como o curioso menosprezo em que tem a
faca" délfica", um tipo de canivete suíço, pois "a natureza faz uma coisa para
um só uso", Pol. I 2 1252b3).
l106a24 Já dissemos como isto se dá. A referência é objeto de disputa. Pode
ser, como quer boa parte dos comentadores, II 2 1104a10-26, a respeito de como
o excesso e a falta destroem o bom termo, que é obtido pelo meio termo. Ou
pode ser, como querem Grant, com hesitação, e, em sua seqüência, Gauthier,
II 3 1105a26-33, sobre as condições que o agente deve satisfazer para que o
ato seja moralmente bom. Muito depende, é claro, de a que isto se refere. Se
for à natureza da virtude (o que é plausível, pois a passagem diz que novos es-
clarecimentos serão apartados sobre este ponto e se trata aqui da natureza da
virtude), então talvez II 2 não sirva propriamente, pois trata antes da aquisição
das virtudes e não de sua natureza; II 3 parece mais adequado, pois examina
as condições para que uma ação seja virtuosa. Porém, se isto estiver simples-
mente fazendo referência ao tema da função própria, então talvez a passagem
seja II 2, ou mesmo I 6. Neste caso, o que se aprende aqui, além do que já
se sabia, é que bem fazer x (x sendo a operação de algo) consiste em buscar a
mediedade em questão.
1106a26 Em todo contínuo e divisível. Grant tomou o último termo como
o segundo caso da quantidade, a saber, o discreto, e viu aqui o par "contí-
nuo - discreto", exaustivo (mas oposto) da quantidade. O mesmo ocorre em
Stewart. L1LaLpETÓV, porém, não é discreto, mas divisível (discreto em grego é
OLWpWµÉvov). Na verdade, o e é explicativo: todo contínuo, isto é: todo divisível.
Com efeito, o contínuo é definido como o que é divisível em partes sempre
divisíveis (De caelo I 1 268a6; Phys. VI 1 231b16).
l106a35-36 segundo a proporção aritmética. Ou: segundo a média aritmética. As-
sim ela é definida em Teon De utilitate mathematicae 85.10; ver também Timeu 36a.
l106b3 Mílon. Lutador de vigor e fome proverbiais. É difícil precisar o
peso de uma mina, pois havia vários tipos, variando de 373 gr. a 1120 gr.
1106b5 todo conhecedor. O termo E7TLaT~µWV vale claramente aqui por
"técnico", "especialista", aquele que domina uma arte.
1106b15-16 ela tem em mira o meio termo. Trata-se da apódose, cujas pró-
tases são (i) 1106b8-9 (com parêntesis de b9 a b12), (ii) b13-14 e (iii) b14-15,
Comentários I I25
como arqueiros que miram o alvo. Ter em mira algo permite fazer cálculos
sobre como melhor o obter, mas isso não elimina a zona cinzenta entre êxito
e fracasso, que faz parte do próprio cálculo, como no caso dos arqueiros; deste
modo, embora esteja acompanhado de cálculo e razão, o ato de mirar o alvo
não pode ser assimilado a uma dedução ou simples inferência.
1106b16 Quero dizer a virtude moral. A restrição é feita porque ter em mira
o termo médio não vale para toda virtude, visto não valer para as virtudes
intelectuais.
l106b23-24 Similarmente, há excesso, falta e meio termo no tocante às ações.
Aristóteles argumentou de modo plausível que há excesso, falta e meio termo
para as emoções; sua argumentação é tanto mais plausível quanto as emoções
permitem uma quantificação e, deste modo, uma análise segundo o contínuo. É
possível,porém, aplicar tal exame às ações? Ora, éjustamente o fato de a noção
de mediedade requerer uma análise segundo o contínuo que escandaliza Kant:
"não se pode procurar a diferença entre a virtude e o vício no grau segundo o
qual certas máximas são observadas, mas é preciso procurá-la unicamente na
qualidade específica destas máximas (em sua relação à lei); em outros termos,
o famoso princípio (de Aristóteles) que a virtude consiste em um meio termo
entre dois vícios é falso. Tome-se por exemplo a boa economia doméstica como
meio termo entre dois vícios, a prodigalidade e a avareza: ela não pode ser re-
presentada a título de virtude nem como provindo da diminuição progressiva
do primeiro destes dois vícios nem como provindo do aumento das despesas
fornecido pelo último vício, como se, partindo de duas direções opostas, estes
dois vícios se encontrassem na boa economia; ao contrário, cada um deles tem
sua própria máxima, que contradiz necessariamente a do outro" (Metafísica das
Virtudes, introd. xiii). Em nota a esta passagem, Kant refere-se a esta doutrina
como uma" insípida sabedoria", De certo modo, Aristóteles parece pressentir
tal crítica, pois escreve, no capítulo seguinte, que o termo médio é um extremo
(lI 6 1107a7-8); no entanto, ele não parece querer abrir mão da noção de me-
diedade como reveladora da essência da virtude moral. A virtude moral diz
respeito a ações e emoções. ações ocorrem em função das emoções que estão
em sua origem, pois as emoções, que dizem respeito a prazer e dor, determi-
nam o movimento do desejo, que é princípio da ação. As emoções podem ser
tratadas quantitativamenre, mas as ações que daí derivam por meio do desejo
Comentários I I27
1106b35 Bravos, pois, de um só modo, mas maus de muitos modos. Verso de
autor desconhecido.
II6
Comentários I I29
escolher por deliberação é vista como que guiada pelo prudente, que é posto
assim em realce ante a razão que segue, pois não teríamos outro acesso que não
seja o ato de ele próprio personificar tal razão. Esta última leitura parece~me
a melhor: a ética aristotélica enlatiza justamente o papel do prudente como
nosso único critério para saber o que deve ser feito. (ii) Um segundo problema
é de maior alcance: trata-se de saber se se deve adotar wpwµÉvll, seguindo os
manuscritos, ou wpwµÉvn, segundo a lição de Aspásio. É tentador corrigir o
texto à luz da indicação de Aspásio, pois uma passagem de VI 1, que parece
retomar o texto em análise, declara que foi exposto anteriormente que o meio
termo é "como a reta razão prescreve" (1138b20; b29). Isto de fato foi exposto
anteriormente, mas não é seguro que esteja remetendo precisamente a esta
passagem. De fato, é lição do exame das virtudes particulares que o justo meio
é como prescreve a reta razão (ver, por exemplo, III 14 1119a16). Talvez VI 1
esteja referindo-se a esta lição e não precisamente à que estamos estudando na
definição da virtude moral (que traz razão somente, em não reta razão) . Tudo
depende de como entendermos aqui o termo "óyos. Ele pode ser entendido
ou como a faculdade que opera as decisões ou como o ato ou resultado desta
faculdade ao operar. Se ele é entendido como o ato ou resultado da faculdade,
então se deve preferir WPL<JµÉvn, isto é, deve-se ligar o ato à determinação de
cada mediedade pela reta razão. Nesta perspectiva, é ainda preciso esclarecer
que resultado é esse: trata-se de uma regra ou antes de uma decisão pontual,
expressa em imperativos morais que se esgotam na particularidade do caso
a que visam? Gauthier traduz em prol das regras: "la vertu est un étar habi-
tuel qui dirige la décision consistant en un juste milieu relatif à naus, dont
la norme est la regle morale, cest-à-dire celle-là que lui donnerait le sage". No
entanto, não há nada que justifique a introdução de normas aqui como deseja
Gauthier; além disso, o fato de o papel do prudente sobrepor-se às próprias
regras vai em direção contrária. Assim, embora seja plausível pensar que "óyos
designe aqui não exatamente a faculdade, mas os atos que resultam desta facul-
dade, contudo estes atos ou resultados não são normas (com a estrutura típica
de generalizações), mas antes decisões (rentes ao particular) que toma o pru-
dente em vista das circunstâncias nas quais se opera a ação e que, por causa
deste particularismo, fazem dele (do prudente), em seu exercício racional, o
critério de que dispomos para saber o que fazer. Certamente portanto não
Comentários I I3I
é, contudo, uma tarefa do filósofo, pois ao prudente cabe dizer quais atos são
virtuosos e não a definição da virtude moral. É preferível, portanto, voltar à
leitura tradicional e ligar WPWµÉVll à disposição de escolher por deliberação
(EÇLS' TIpOmpETLKlÍ), que é delimitada pela razão, a saber, tal como o prudente
a delimitaria. Convém assinalar que a tradução de Dunlop da versão árabe dá
certo apoio à versão de Bodéüs. Com efeito, lê-se nesta tradução: "virtue then
is a condition having free choice, existing in rhe mean which is for us, a mean
difined in word as the intelligent man defines it", Aparentemente, a tradução
árabe tomou wpwµÉVll ÀÓY<µ como quer Bodéüs, mas, ao ligar este sintagma
a mediedade, e não a virtude, supondo portanto como texto em grego wpLaµÉV\l
ÀÓY<µ, toma certa distância em relação à sua proposta ...
l107a6-7 por essência e pelafórmula que exprime a qüididade. A expressão em
grego é: KaTà µEV T~V owí.av KaL Tàv ÀÓyov Tàv Tí. ~v ÀÉyOVTa; ambas as
expressões fazem tipicamente parte da análise metafísica, sendo examinadas
especialmente no livro VII da Metafísica. Particularmente, a questão Tí. ~v
ELVaL é usada para determinar o que X é precisamente e faz parte do jargão
metafísico de Aristóteles. Este é um dos raros momentos, na EN, em que Aris-
tóteles se utiliza de termos característicos de outras disciplinas, especialmente
de sua metafísica. Aqui, serve para ressaltar a importância que atribui à noção
de mediedade para a definição da virtude moral.
l107all a inveja. No entanto, um pouco antes, em II 4 1105b22, inveja
figurava como uma emoção cuja presença ou ausência em nós não nos torna
nem bons nem maus. O problema parece ter passado despercebido pelos co-
mentadores. Aspásio chega mesmo a ilustrar o ponto com o exemplo da inveja
(49,28-31), sem ver nisso nenhum problema. Broadie observa que inveja era
uma emoção moralmente neutra, mas não insiste sobre o ponto.
l107all o adultério. Aspásio relata que, já em seu tempo, objetava-se que
"alguns adultérios são louváveis,por exemplo se alguém, tendo seduzido a mu-
lher de um tirano e deste modo entrado na casa e morto o tirano, libertasse o
país" (50, 2-5); segundo ele, não se deve inquietar-se por causa desta objeção,
"pois isto não é adultério, mas o adultério implica, pelo termo, a intemperança,
o ser vencido pelos prazeres e a ilegalidade, assim como o assassinato não é
dito ocorrer quando se mata alguém, pois alguém pode matar de modo justo e
digno de elogios, por exemplo um pirata hostil, mas na palavra assassinato está
Comentários I I33
doutrina da mediedade - desde que apareçam como interdições absolutas, isto
é, como universais negativas, e isto ocorre quando são extremos ou funcionam
como extremos. A doutrina aristotélica dá, assim, lugar a diferentes registros:
a decisão particular que toma o prudente, a regra que daí pode ser gerada,
tomadas certas precauções, e interdições absolutas, que respondem à situação
dos extremos, a respeito dos quais não há meio termo.
II 7 - 9
(36, 8); Aspásio, como observa Gauthier, oscila entre as duas lições (51, 11:
KOWÓTEpOL; 27: KEVOl). Gaurhier sugere fortemente KOWÓTEpoL, mas estamos
diante de um caso típico em que é muito difícil escolher entre as duas lições.
Os termos universais são comuns, certamente, mas não por isso são vagos. O
problema aqui de serem mais comuns é que são mais vagos; talvez isto nos
sugira adotar a lição mais difícil, mais vagos.
1107a32-33 investiguemo-los com base no quadro. O termo ÀllTrTÉOV tem aqui,
parece-me, o sentido de investigandum est, como ocorre também nos An. Posto I
4 73a24 (ver Waitz ad loc.). Sobre o quadro (oLaypa<p~), nenhum manuscrito
o apresenta como tal, embora possamos reconstituí-lo a partir do texto. Em
Comentários I I35
Aristóteles usa como termo TTae~µaTa para o primeiro caso. Não há nenhum
contraste sistemático, na EN ou em outras obras, entre TTá80s e TTá811µa, e
não raramente os tradutores os tomam por sinônimos (o trabalho clássico a
este respeito é de Hermann Bonirz, Über TTáeos und TTá811µa im Aristotelischen
Sprachgebrauche, Aristotelischen Studien V, em reação à distinção proposta por
Bernays entre "afecção inesperada" e "afecção inerente, permanente", respecti-
vamente). c.c.w. Taylor os distingue como "episódio de emoção" (TTáellµa)
e "tipo de emoção" (TTáeos), o que responde certamente a um uso da língua
para os nomes terminados em - µa, mas isso não parece ser esclarecedor aqui
nem é sistemático em Aristóteles. Os TTae~µaTa parecem indicar aqui algo
próximo e intimamente conectado às emoções, sem ser ainda uma emoção;
traduzi, faute de mieux, por "afeição".
1108a33-34 <outro quem está em falta; e quem excede>. O texto parece pre-
cisar de complementação, por causa de alguma lacuna. Sigo a versão sugerida
por Rassow e adotada por Susemihl (Coraes propõe uma adição similar);
Bywater e Bekker editam o texto sem adição.
1108b5 <quem tem indignação aflige-se ante os que imerecidamente
fracassam>. Novamente, sigo o complemento sugerido por Sauppe e adotado
por Susemihl.
l108b7 alhures. Sobre o pudor, ver IV 15; a indignação não é discutida
na EN, mas um capítulo lhe é atribuído em Retórica II 9.
1108b7-8 já que não é dita de modo simples. No livro V, Aristóteles dis-
tinguirá dois tipos de justiça: a justiça em um sentido amplo, que equivale
em geral a ser moral em relação a outrem (justiça.), e a justiça no sen-
tido preciso das leis relativas à distribuição de bens e à correção (justiça.).
Ocorre que a justiça) não é examinada lá como sendo uma mediedade; de
fato, ela o seria somente em um sentido muito vago, a saber, no sentido de
ser idêntica às diferentes virtudes ligadas às relações com outrem. Por esta
razão duvidou-se da autenticidade da frase. Por outro lado, a justiça2 é dita
ser uma mediedade, mas não do mesmo modo que as outras virtudes (V
9 1133b32-33), pois, embora seja um termo médio, ela não está entre dois
extremos (seu oposto é somente um, a injustiça). É preciso, porém, conside-
rar que a justiça2 é examinada segundo dois tipos, a justiça distributiva e a
justiça corretiva, e Aristóteles pode estar fazendo alusão a estes dois casos,
Comentários I I37
1108b33 Os que maximamente distam entre si. A definição encontra-se em
Categorias 6 6a18: "definem-se como contrários os itens que distam maxima-
mente entre si dentro do mesmo gênero". Grant observa que, nesta passagem
da EN, Aristóteles passa de uma contrariedade absoluta (os termos que ma-
ximamente distam entre si) a uma contrariedade relativa (os termos que mais
distam entre si), adotando assim uma perspectiva de graus na contrariedade.
O ponto é que, se a e b são contrários (pois maximamente distam entre si),
mas o meio termo c dista mais de a do que dista de b, então c é mais contrário
a a do que o é a b.
1109a17 nos lançamos mais. O termo grego é ETTLooaLS,que significa, avanço,
progresso, propensão; como Grant observou, porém, a noção de inclinação já é
a
dada, no texto, na linha 15, mediante a expressão TTpOS µâÀÀov TTE<j>ÚKaµÉv
TTWS,"de algum modo mais nos inclinamos naturalmente", o que o levou a tra-
por uma perífrase, "we run to greater lenghts". Como
duzir ETTLOOGLS Kb fornece
EXOµÉVTTWS,"de algum modo temos", no lugar deTTE<j>úKaµÉv
TTWS,
"de algum
modo naturalmente", Bywater (Contrib. P: 30) sugeriu a correção ~TTOµÉVTTWS,
"dirigimo-nos, tendemos de algum modo", proposição bastante elegante, que
Burnet adotou em sua edição, mas que não é necessária para o sentido.
1109a24 Por isso é árduo ser bom. O termo grego aqui vertido por bom é
crrouôciov.
1109a31 como adverte Calipso. Na verdade, não é Calipso quem aconselha
a assim proceder, mas Circe (Od. XII 108-110); além disso, os versos citados
são os que Ulisses repete ao timoneiro (vv. 219-220).
1109a34 Visto que é difícil atingir com extrema exatidão o meio termo. A frase
contém como que um oximoro. Pode-se ligar também o advérbio a difícil e
traduzir: "visto que atingir o meio termo é extremamente difícil", mas perde
então a elegância que lhe dá o oximoro.
1109bl segundo o modo que descrevemos. Aristóteles apresenta na seqüência,
de 1109bl a b13, uma série de conselhos morais para se encontrar o meio termo,
tomando o papel antes do prudente do que do filósofo. A idéia básica é uma
"curá' pelo contrário: se temos uma tendência para x, devemos nos puxar para
o seu contrário, ~x; o perigo para ser evitado é basicamente o prazer. É o único
momento em que se encontra, naEN, um tipo de cartilha moral.
l109bl0 diante de Helena. A passagem está na Ilíada III 156-60.
Ill 1 - 3
Comentários I I39
por impulso ou por apetite seriam involuntários. Muito se discutiu sobre a
terminologia proposta por Aristóteles. Especialmente, observou-se que as no-
ções aristotélicas de voluntário e involuntário se constituíam no cruzamento,
nem sempre claro, de duas perspectivas distintas. A primeira diria respeito
ao agente fazer algo de bom grado ou de mau grado; se o faz de bom grado,
fá-lo-ia voluntariamente, mas se o faz contrariado, fá-la-ia involuntariamente.
A segunda corresponderia mais propriamente à noção de autoria da ação:
se é ele quem está na origem da ação, fá-la voluntariamente; se o princípio
está fora dele, fá-la involuntariamente. As duas perspectivas se recobrem em
parte, mas não inteiramente, o que explicaria o caráter algo insatisfatório da
análise de Aristóteles, denunciada por Gauthier, por exemplo, como mera-
mente enunciando os balbucios de uma doutrina da vontade. Por esta razão,
alguns tradutores optaram pelo par voluntário I contra-voluntário no lugar de
voluntário / involuntário, supondo assim melhor captar o recobrimento, por ve-
zes somente parcial, de uma destas perspectivas pela outra (pondo ênfase, no
contra-voluntário, ao fato de ocorrer a contragosto). No entanto, é de se obser-
var que Aristóteles não parece confuso. Para ele, um ato voluntário é aquele
que satisfaz a conjunção de duas condições: (i) o princípio da ação está, em
um sentido intuitivo, no agente (isto é, em um sentido intuitivo ele está na
origem da ação) e (ii) o agente conhece as circunstâncias nas quais se desen-
rola a ação. A negação de ((i) e (ii)] sendo [~(i) ou ~(ii)J, o involuntário é ou
bem o ato cujo princípio está fora do agente ou tal que o agente desconhece
as circunstâncias nas quais se desenrola a ação. Questões sobre se o agente
agiu de modo contrariado ou não não são levadas em conta por Aristóteles na
definição do voluntário e do involuntário. Tais problemas aparecem somente
quando Aristóteles introduz a noção de arrependimento e, deste modo, pro-
põe-se a distinguir entre (ii) atos involuntários e (iii) atos não voluntários no
interior dos atos cometidos por ignorância das circunstâncias: posso fazer algo
ignorando uma das circunstâncias, mas, ao não demonstrar arrependimento,
o ato é antes não voluntário do que involuntário (porém, certamente não é
voluntário). A distinção entre (ii) e (iii) se faz após e supondo a distinção ló-
gica entre (i) e (ii); ela é um apêndice a esta distinção e serve para dar lugar
a certa caracterização moral do agente nos casos de atos involuntários, sem
questionar o caráter básico da primeira distinção para os atos humanos. Se o
o que leva a ler prima facie "as ações e emoções voluntárias". No entanto, a se-
qüência do texto deixa claro que voluntário e involuntário se aplicam a ações,
não a emoções; estas últimas podem ser fracas ou violentas, claras ou turvas,
contidas ou abruptas, mas não são ditas voluntárias ou involuntárias, pois
não é questão que satisfaçam as condições do ato voluntário ou involuntário.
Aspásio (58, 9-14) sugere que se poderia falar de "emoção voluntária" no sen-
tido de ser voluntário o dispor-se favorável ou negativamente a algo, de modo
que seria voluntário, por exemplo, o não ressentir mal algo, mas conclui que
qualificamos unicamente as ações como voluntárias ou involuntárias, nunca
as emoções. Em grego, os masculinos ÉKWV e aKwv qualificam os agentes, en-
quanto os neutros ÉKOÚCHOV e àKOOOLOV são ditos dos atos. Não se é obrigado
a ler em TOLC;- ÉKOUOLOLC;- "as ações e as emoções voluntárias", pois a referência
a emoções explica-se pela remissão em geral ao que foi tratado anteriormente,
ao longo do livro lI, sem interferir diretamente no próximo ponto por ser
estudado, a ação voluntária e a involuntária.
c.c.w. Taylor argumenta expressamente em favor de se incluírem as emo-
ções entre o que é voluntário e involuntário. Ele escreve que in ordinary Greek
li
Comentários I I4I
estes versos deixam-se facilmente interpretar do seguinte modo: a mãe deixa-se
matar voluntariamente, isto é, não reage, e é este não reagir que é voluntário,
não o ser afetado.
l109b33 perdão. Convém ressaltar que a ética antiga é uma ética de respon-
sabilização, jamais de remissão; a noção cristã de perdão daria à ética antiga
um tom que lhe é estrangeiro. Existe um domínio de atos que podem ser per-
doados, a saber, os involuntários, as ações mistas agravadas por circunstâncias
que as tornam insuportáveis à natureza humana (111Oa25-26), bem como o
domínio dos desejos naturais (VII 6 1149b4), mas não há nenhuma tese de
remissão aplicada aos voluntários, dirigida a absolver o homem perverso: "não
há perdão para a perversidade, assim como a nenhum outro ato que se deve
evitar", VII 3 1146a3-4. O homem equânime exerce corretamente o perdão
somente "a respeito de algumas coisas" (TIEpL EVW, VI 111143a22), não sobre
qualquer coisa; "o perdão é o juízo discriminativo correto do homem equâ-
nime" (1143a23). O perdão no sentido cristão aplica-se a tudo; ao perdoar, não
se vê mais o pecado, que fica como que jogado para trás (Is. 38,17), extirpado
(Ex. 32,32) ou destruído (Is. 6,7); o Novo Testamento eníariza, além disso,
que o perdão é gratuito (Lc. 7,42; Mt, 18,25). O termo usado é ã<j>EO"LS (no
sentido de libertação: Lc. 4,18; no sentido de perdão: Mc. 1,4; 3,29; Lc. 3,3;
At. 10,43; Ef. 1,7).
1109b34 bem como é útil aos legisladores. A lei ateniense parece fundada, a
propósito do assassinato, na dicotomia entre os atos feitos com premeditação,
EK TIpOVOlas, e os involuntários, de modo que, aparentemente, "torna as ações
premeditadas coextensivas às ações voluntárias" (Irwin, Reason and responsibility,
p. 119). Assim parece ser a lei de Drácon (cf. M. Gagarin, Drakon and the early
athenian homicide law); o mesmo se pode depreender da passagem a respeito
dos processos de homicídio na Constituição de Atenas (57.3). A Magna Moralia
parece igualmente refletir tal estado de coisas, pois, em I 16, a ação voluntária
é vista como a que é praticada com planejamento, µETà owvolas (1188b37)
ou EK owvolas (1188b26), enquanto o ato sem premeditação, OUK EK TIpO-
voíns, é involuntário: assim, a infeliz mulher que matou seu amante ao dar-
lhe uma poção supostamente afrodisíaca foi absolvida pelo Areópago porque
o matou involuntariamente, já que manifestamente agiu sem premeditação,
µ~ EK TIpOVOlas (1188b35), e, em geral, é dito agir involuntariamente quem
Comentários I I43
é, há um só problema, o de saber se são voluntários ou involuntários os atos
realizados "por medo de males maiores antes que com vistas a algo belo": o que
o agente faz, ele o pratica não porque queria propriamente fazê-lo com vistas
a algo belo, mas porque foi forçado a fazê-lo por medo de males maiores. A
interpretação de Aspásio parece-me preferível; com base nela, pode-se supor
que Aristóteles escreveu KaÀóv Tl (que verti aqui por "algo belo") também
com o intuito de dizer que este belo o é somente em parte, visto ser obtido ao
preço de urna ação em si desonrosa. Além disso, l11lOb9-16 examina uma
questão sofística, que Aristóteles não leva muito a sério e à qual dificilmente
faria menção no início do tratamento da questão.
1110a13 pois são escolhidas. O fato de serem escolhidas em última instância
pelo agente (pois ele finalmente decide se cede ou não às injunções do tirano)
faz com que as ações mistas estejam mais próximas dos atos voluntários do que
dos involuntários, embora tenham elementos característicos destes últimos, a
saber, o dilema no qual o agente se encontra lhe é causado ou provocado exte-
riormente, por pressão de outra pessoa ou coisa. Aspásio (61, 10-22) realça bem
isso em seu comentário: não se trata de dizer que a escolha é uma condição do
ato voluntário, mas de assinalar que a existência de uma escolha última torna
a ação mista mais próxima do ato voluntário do que do involuntário, pois toda
escolha supõe o caráter voluntário do ato, embora a situação de impasse em
que se encontra lhe seja involuntária. A. Alberti, porém, considera que, para
Aspásio, "uma ação é voluntária se é o produto de uma escolha efetiva, isto
é, se o agente preferiu tal ação, embora tivesse a possibilidade de não a prati-
car ou de fazer a ação contrária" (Il volontario e la sce/ta in Aspasio, p.112). No
entanto, a condição é excessiva; tudo o que Aspásio mostra é que, visto que,
em última instância, o agente escolheu agir de um modo, a saber, ceder ou
não ceder, então a ação, ainda que, sem outra consideração, seja involuntária
(pois o agente foi posto involuntariamente na situação em que se encontra),
assemelha-se mais à voluntária por conta desta escolha última, instância na
qual o agente exerce sua liberdade, por ínfima que seja.
Há uma tendência, entre os comentadores, a tornar a escolha deli-
berada condição do caráter voluntário de um ato, o que parece ir além da tese
aristotélica. Pode-se claramente ver tal tendência em Joachim (p. 96). No
mesmo diapasão, Irwin atribuiu três teses a Aristóteles: (i) alguém é respon-
Comentários I I45
na EE, visto pensar o voluntário sob a noção geral de reflexão e pensamento,
Aristóteles escreve que "não dizemos que a criança age, tampouco o animal,
mas o que já age por raciocínio" (lI 8 1224a28-30). Na EN, a criança age vo-
luntariamente (o que é afirmado por duas vezes, uma expressamente, III 4
1111b8, outra como conseqüência cuja negação evidencia o erro da premissa,
III 3 l111a26), pois ela satisfaz plenamente as duas condições que a EN es-
tabelece para o voluntário. A criança age voluntariamente e há casos em que
pode ser responsabilizada (em diferentes graus); por ser responsável, é passível
de elogio e censura. O que vale, porém, para a criança vale também para o
animal; assim como na EE criança e animal estavam excluídos do domínio da
ação, assim também, na EN, criança e animal agem voluntariamente. O que é
embaraçoso, pois não parece ser sensato falar de elogio ou censura aos animais.
Deve-se, porém, observar o seguinte: embora andem juntos, criança e animal
diferem em um sentido importante, pois a primeira ainda não tem razão, en-
quanto o segundo simplesmente não dispõe de razão. No tocante aos animais,
eles podem ficar neste domínio que o voluntário inaugura, mas não há sen-
tido em lhes atribuir responsabilidade, tampouco louvor ou censura com base
nisso, pois não há educação ou formação de seu caráter moral, toda reprimenda
ou recompensa aos animais estando baseada no caráter nocivo ou benéfico
que podem ter aos homens, não mais do que cultivamos plantas benéficas
e exterminamos as nocivas. Aristóteles parece assim propor um matiz entre
voluntário e responsável: ser responsável requer o voluntário, mas o voluntário
pode vir separado da responsabilidade, como é o caso nos animais.
Pode-se objetar a isso que, embora não pareça sensato dizer que um animal
é responsável por um evento, é sensato dizer que ele é causa desse evento. Como
o mesmo termo, 0'( TLOV, designa em grego o responsável e a causa, Aristóteles
não conseguiria livrar-se de certa confusão, podendo-se mesmo identificar a
ambigüidade do termo como o vilão dessa confusão. No entanto, penso que
Aristóteles não é vítima da ambigüidade de sua língua. Para ser causa, basta
satisfazer a condição do voluntário; para ser responsável, isto não é suficiente. A
língua não o ajudou, mas Aristóteles precisou escolher em função da força de
seu próprio sistema: ou bem as crianças ficam foram da ação e do voluntário,
como na EE, ou bem os animais participam da ação e do voluntário, como
na EN. Escolhida a segunda via, resta a Aristóteles descolar responsabilidade
Comentários I I47
mos está em nosso poder de sim ou não (excetuando-se alguns casos, como
quando excede ao que suporta a natureza humana). É importante ressaltar
que Aristóteles não está aqui explicando a condição EVairr0 pela de E<j>'ai.n-0;
simplesmente, ele observa que a primeira remete à segunda, pois, no caso das
ações mistas, o agente, por mais compelido que esteja a agir, escolhe mesmo
assim ceder ou não ceder, e, sempre que há escolha, há possibilidade do sim
e do não. Na verdade, Aristóteles, quanto ao voluntário, quer explicar o E<j>'
ai.n-0 pelo EV airr0, e esta é uma novidade da Ethica Nicomachea. Com efeito,
na Ethica Eudemia, Aristóteles introduz como condição do voluntário o estar
em nosso poder de fazer ou não fazer (EE II 91225b8-1O; a mesma condição
é repetida em EN V 10 1135a23~25,com um WaiTEP Kal iTpáTEpOV E'lPllTaL,
"como também foi dito antes"; a referência não remete a nada da EN, mas sim à
passagem citada da Ethica Eudemia, o que é mais um sinal que o livro V, comum
à EE, foi escrito originalmente no contexto da EE), e isto está provavelmente
ligado ao fato de pensar em geral o voluntário, nesta obra, como o que é EK
owvotas, "segundo um plano"; a conseqüência é que o voluntário passa a ser
condição não só necessária como suficiente da plena responsabilidade moral,
confundindo-se então com a escolha deliberada e não podendo ser atribuído
a animais ou crianças. Na EN, Aristóteles procura separar claramente os dois
planos: toda escolha deliberada é voluntária, mas nem todo ato voluntário é
segundo escolha deliberada; crianças e animais agem voluntariamente, mas
não segundo escolhas deliberadas (cf. também Phys. II 6 197b5-S).
11l0a21 em trocade ifeitosgrandiosos e belos.Joachim mostrou pertinentemente
que àVTl não significa tomar algo "em detrimento de" outra coisa, mas tomar
algo "aopreço de" "em troca de",em um cálculo de vantagens e desvantagens na
mesma ação; Joachim remete a Rhet. II 23 1399b13-19como ilustração.
1110a22-23 é típico de uma pessoa inferior suportar o que há de mais torpe em
função de a~o nada ou medianamente belo. Suportar torpezas por algo nada ou
medianamente belo é marca de uma pessoa inferior, mas de um homem virtu-
oso se for em troca de algo belo e importante. Que coisas torpes pode, porém,
praticar o homem virtuoso? Aspásio não tem dúvidas: devem-se suportar pe-
quenas torpezas, µLKpà alaxpá, em troca de grandes bens, por exemplo: se um
tirano ordenar a um homem vestir-se publicamente de mulher sob a ameaça
de, caso não o fizer, destruir seu país e sua família (61,25-29). O ato é ígnóbil,
Comentários I I49
não está em questão escolha alguma, o agente em nada participando de ne-
nhum princípio da ação. Na linguagem popular, como observa Dover (GPM
p. 109), um homem confrontado com a escolha entre a fome e o roubo será
tentado a roubar - os gregos falariam de ser coagido ou compelido a fazer algo,
não que agiu por força. O matricídio serve de exemplo para os casos em que
não se pode ser compelido a fazer certa coisa, o agente devendo antes escolher
a própria morte, mesmo sob as piores torturas.
1110a28 Alcmeon. A peça perdida de Eurípedes Alcmeon é citada tam-
bém na Poet. 14 1453b24-25. Amphiaraos, rei de Argos, escondeu-se para não
participar da expedição contra Tebas, na qual sabia que pereceria; sua mulher
Eriphyle indicou onde se escondia em troca de um colar de ouro; antes de partir
para Tebas, ao subir em seu carro, Amphiaraos esconjurou seu filho Alcmeon
se não vingasse sua morte executando quem o denunciou. Alcmeon, ao matar
sua mãe, procura justificar seu ato alegando que se via forçado pelo pai. Desta
defesa, Aristóteles cita em V 11 1136a13-14 uma parte, caracterizada como
escrita por Eurípides de "modo bizarro", àTÓTTWS, pois supõe que alguém possa
sofrer uma injustiça voluntariamente: "- Matei minha mãe, para ser breve.
- Voluntariamente tu, voluntariamente ela, ou ela não voluntariamente, tu
não voluntariarnenter",
1110a31 nas resoluções.Ou "em relaçãoàs pessoas conhecidas",tomando-o por
um dativo plural masculino (e não neutro), como interpreta Aspásio (62,S-12).
1110bl de onde há ou não louvor. Como a negação está no fim da frase,
pode-se igualmente ligá-la somente ao último termo e entender que" de onde
há louvor e censura a respeito de quem é compelido ou não <é compelido>".
Penso, no entanto, que a negação se reporta a toda a proposição; com efeito,
o argumento precedente consistiu em mostrar que, a respeito da coerção, há
casos em que não ocorre louvor ou censura, mas perdão, mesmo que seja difícil
determiná-los com exatidão.
1110bl forçadas. Aristóteles volta ao tema geral dos I3laLa, depois de ter
examinado os casos em que há um compromisso do agente na escolha última
do que fazer (Tà àvaYKala).
1110b2 sem mais. Pode-se entender tanto que se deve dizer áTTÀ,ÜYç; (sem mais)
que o involuntário é o que satisfaz as duas condições listadas, como entender
que se deve dizer que é involuntário áTT À,wç;; o que satisfaz as duas condições
Comentários I ISI
minha representação, o que evidencia o caráter voluntário de meu ato. Esta
passagem foi examinada por Alexandre nos Problemas Éticos XII.
1110bl0 tudo seria assim forçado. Alguns manuscritos e a antiqua traductio
(Paris 1497) lêem OlrrW, "assim",que Bekker e Susemihl editam, e que traduzi
aqui; Aspásio também, pois comenta que "tal argumento transforma todos os
erros em atos involuntários" (62, 29-30). No entanto, manuscritos importan-
tes (KbLbMb) trazem a lição airrij1, "para ele",que Bywater adota, o que daria
como texto: tudo seriaforçado para ele. Por sua vez, a edição aldina traz ou Tij1
airrij1, "não para ele",o que não faz, porém, sentido.
1110b13 é derrisório, então. Adoto o texto e a pontuação de Bekker e Su-
semihl, contra a de Bywater, que lê yEÀolov OÉ, ligado à frase anterior por
ponto e vírgula, que daria: "mas é derrisório <...»".
1110b14-15 e responsabilizar-se a si mesmo pelas belas, mas as circunstâncias
agradáveis pelas ignóbeis. Aristóteles refere-se aqui talvez a Górgias, que, em
seu Elogio de Helena, reivindicava a autoria de um argumento segundo o qual
Helena em nada teria sido a causa da guerra de Tróia (DK B 11 §2). Górgias
pretende ter mostrado que Helena agiu ou (a) por intervenção divina, ou (b)
forçada, ou Cc)persuadida por um argumento ou (d) capturada pelo amor,
não devendo ser responsabilizada em nenhum dos casos. A lista pretende
ser exaustiva quanto aos tipos de motivo para a ação, concluindo que nin-
guém deve ser tomado como causa de nada (pelo menos não do que é objeto
de censura), embora Górgias se apresente como o autor do elogio (que ele
próprio descrevia como um "jogo" ou "chiste", TTaLyvLOv). O argumento (d)
representa os casos em que se age atraído pelo agradável. A argumentação de
Górgias, como observou J. Barnes, "fracassa, mas é uma peça significativa da
filosofia: introduz o problema do determinismo na filosofia moral e antecipa,
in nuce, vários dos maus argumentos posteriormente avançados com tal força
e alcance pelos oponentes irredutíveis da liberdade humana" (The Presocratic
Philosophers II p. 228).
11l0b19 aflição e arrependimento. Aristóteles parece acrescentar urna condição
ao caráter involuntário de uma ação, a saber, que h.ya arrependimento e aflição
por parte do autor. Porém, arrependimento e aflição parecem ser propriamente
critérios para o reconhecimento do caráter moral do agente envolvido em um ato
involuntário mais do que uma condição do próprio ato. Além do mais, um ato
Comentários I IS3
Aspásio (64,7-8: "ele <Aristóteles> chama a mesma ignorância <na escolha
deliberada> de <ignorância> do universal"), o autor da paráfrase anônima,
Grant, Ramsauer, Burnet e Joachim tomam Ka8óÀov ayVOLa como sinô-
nimo de EV Til rrpootpéosi ayvow; Stewart aprova esta leitura com certa
relutância, adotando-a finalmente porque considera que ovo'
em b32 pode ter
o sentido expletivo negativo de "isto é ... não"; Richards se mostra também de
certo modo hesitante; Irwin resume bem a posição de todos, observando que
"ignorância do que é benéfico","ignorância na escolha deliberada" e "ignorância
do universal" referem-se ao mesmo fenômeno (Hardie é da mesma opinião:
"são descrições alternativas de um tipo de ignorância, não descrições de tipos
diferentes de ignorânciá', Aristotle's Ethical Theory p.157). Gauthier apresenta
uma razão discutível para sustentar que as três ignorâncias em questão são
idênticas: pretende mostrar deste modo que esta passagem permite ver que
a escolha deliberada é definitivamente também sobre os fins e não somente
sobre os meios, pois, se a KaeÓÀOV ayvow é ignorância" do universal': então
ela é ignorância do fim; se é equivalente à EV Til rrpocrpéoei ayvow, deste
modo fica evidenciado que a rrpouipecns, segundo ele, "tem aqui seu sentido
corrente de intenção moral", dirigida ao fim e não somente aos meios. No en-
tanto, se se tomam como idênticas, a razão para tanto provavelmente não é a
fornecida por Gauthier, mas aquela dada já por Aspásio (é dita uma ignorância
geral porque, por sua causa, o agente ignora o que lhe é benéfico, que são os
meios obtidos por deliberação), sem prestar apoio à tese que Gaurhier quer
sustentar, segundo a qual a escolha deliberada é também do fim. Creio, porém,
que se deve voltar a Michelet (e a Giphanius, que ele cita): a ignorância (i) do
que é benéfico parece conter dois casos distintos, (a) a ignorância que alguém
poderia alegar dizendo que desconhecia que tal meio era impróprio para obter
tal fim (próprio) e (b) a ignorância de regras e costumes gerais que podem ser
tomados como fins para a ação. Ambos os casos são causas da perversidade
do caráter e não da involuntariedade da ação. O ponto é que se trata de opor
dois tipos de ignorância (a ignorância do que é benéfico e a ignorância par~
ticular) e não três tipos de ignorância (ignorância do meio, do universal e do
particular). A ignorância do que é benéfico inclui tanto a ignorância do meio
(em uma deliberação) como também a de um fim (na ignorância geral), que
podem vir acompanhadas (ou não) de outra ignorância, a ignorância particular
Comentários I ISS
juntar. Uma possibilidade é ler em EV OIS lÍ TTpâçLS' este segundo candidato.
Aspásio, neste sentido, propõe como os dois candidatos para o que é mais
importante: (i) o fim e (iia) sobre o que ou em quem age, identificando EV OIS'
lÍ TTpâçLS' a TTEpl Tl ~ EV TlVL TTpáTTEL, cuja segunda parte ele via como se
referindo à pessoa (assim também a paráfrase, que menciona "as pessoas e o
resultado"). Em linha similar, a recensio recognita dá como texto duas circuns-
tâncias como as mais importantes: "in quibus operacio et cuius graciá'. Aqueles
que adotam esta leitura devem atetizar EV OIS' ~ TTpâçLS' da linha a16, pois de-
veria significar limitadamente "sobre o que ou em que age", quando claramente
significa, se a expressão for mantida nesta linha, todas as circunstâncias nas
quais se produz a ação (Ramsauer procedeu deste modo, eliminando EV ols
~ TTpâçLS' da linha a16 para manter a leitura de Aspásio, no que foi apoiado
por Stewart, que segue a mesma interpretação). Rackham, no entanto, adota
uma adição proposta por H. Richards e lê KupLwTaTa o' ELVaL OOKEl EV otS'
~ TTpâçLS <6' > KaL 01 EVEKa (no que é seguido por Gauthier e pela ROT), o
que dispensa a atetizaçâo de EV OLS' lÍ TTpâçLS' da linha a16: resulta disto que
as condições principais nas quais se desenrola a ação são (i) o fim e (iib) o ato
que é realizado. O motivo do acréscimo é que EV OIS' ~ TTpâçLS' designa todas
as condições (como já ocorrera na linha aI6), não podendo ser usado, neste
contexto, para escolher uma dentre elas. Isto faz com que os candidatos sejam
preferencialmente (i) o fim e (iib) o que é feito (Dirlmeier, no entanto, traduz
literalmente a passagem: "und die wesentlichen sind eben die Umstânde einer
Handlung und ihre Zielserzung", sem considerar que, deste modo, todas as
circunstâncias são tomadas como as mais importantes).
No entanto, pode-se entender que KUpLwTaTa é o superlativo adverbial, po-
dendo-se esperar não um plural, mas um singular: algo, ainda por ser nomeado,
que parece ser sumamente importante. Neste caso, o KaL tem a função estrutural de
dar ênfase, pondo o termo a que se ajunta em evidência. Como escreve Den-
niston (p. 317), neste caso "KaL is Iirtle more than a particle of emphasis, like
o~.As such, ir precedes, and emphasizes, various parts of speech", como em
Rep. IV 445d4 ou Men. 95c2-3 (como observa Denniston, "a connective sense
hardly seems appropriate here', P: 320). Nesta perspectiva, a frase, KUpLwTaTa
o' ELVQL oOKÊL EV OLS' ~ TTpâçLS' Kal 01 EVEKa, pode ser interpretada sem
nenhuma correção, indicando que, entre as circunstâncias, o fim parece ser
Comentários I I57
e a ignorância, o voluntário parece ter uma única, ou ~ àpXTJ EV airr(il EL8óTL
Tà Kae' EKaaTa EV ols ~ TTpâ~LS', "o princípio no agente que conhece as
circunstâncias particulares nas quais ocorre a ação". No entanto, no voluntário
há a conjunção de duas condições, cuja negação é a disjunção de seus opostos.
De qualquer modo, se estivesse correto ao sustentar que o involuntário é equí-
voco, então o seu oposto, o voluntário, também seria equívoco. Como Aspásio
sustenta que o voluntário é unívoco, ele explica o "problema" da equivocidade
do involuntário pelo fato de Aristóteles não fornecer propriamente uma defi-
nição do involuntário, mas meramente uma exposição, EKeE(JLS', de seus casos
(assim como não se define um termo homônimo, mas se listam seus diversos
casos; se tivesse, porém, fornecido uma definição, teria de ser unívoca, pois
seu contrário, o voluntário, é definido univocamente: 59, 1-11).
Por outro lado, convém salientar que Aristóteles partiu, na EN, do involun-
tário para então obter a definição do voluntário. Na EE e na MM, ele define
primeiro o voluntário, o que procura fazer através da noção-guia de agir com
reflexão, KaTà OLávOLav, de certo modo baseando-se na legislação vigente, o
que não deixa de criar problemas, pois a escolha (deliberada) ou reflexão já está
como que embutida no próprio voluntário. Na EN, a condição de o princípio
estar no agente é compreendida por contraste com a de estar fora do agente,
que nos é mais clara e intuitiva, o que permite não introduzir já no voluntário
a escolha, que será analisada em seqüência e que supõe o caráter voluntário do
ato, mas não se confunde com ele. Examinar pelo contrário é um procedimento
usual em Aristóteles, sobretudo quando o termo é homônimo; assim, para
explicitar a homonímia de justiça, em V 1, ele explora primeiro a homonímia
de iryustiça, que nos é menos obscura para apreender.
l111a25 por impulso ou por apetite. Trata-se dos desejos da parte não-racional;
poder-se-ia supor, com efeito, que nos são involuntários, visto não provirem da
parte racional. No entanto, ambos são meus desejos, no sentido relevante aqui de
terem o princípio em mim como agente, e, por conseguinte, são voluntários.
ll11a26 nenhum outro animal poderá agir voluntariamente, tampouco poderão as
crianças. Aristóteles volta a afirmar mais adiante, em 4 ll11bS-9, que animais e
crianças agem voluntariamente. No entanto, no sexto livro, Aristóteles exclui os
animais do campo da ação (VI 2 1139a20), assim como, na Ethica Eudemia, ele
escreve que "não dizemos que a criança age nem o animal" (Il 7 1224a28~29; cf. II
Comentários I IS9
impulso e por apetite", Bekker adotou a vulgata, o que implica que as ações
humanas provêm do impulso e do apetite; na paráfrase lê-se, neste sentido,
que "todas as ações humanas (rrâaaL ai àvepwmvaL rrpáçELS) se engendram
a partir destas afecções, a saber, impulso e apetite" (45,3-5), o que seguramente
é falso. Susemihl preferiu atetizar rrá911 da linha 1111bl e àrro 9uµ0l! KUL
Em9uµ(as de l111b2, o que dá como texto: "de sorte que também as ações
<não-racionais> são <ações> do homem".
IH 4
porém não indispensáveis); neste caso, embora a escolha deliberada seja mais
: implica que as ações
IC )ê--se, neste sentido, apta do que as ações para desvelar o caráter de uma pessoa, ela parece mesmo
cpe também as ações princípio objetivo do agir, que, grosso modo, reclamaria do agente uma perspec-
tiva universal ou pelo menos não egoísta na ação, na qual se esgotaria a base
moral (ou imoral) da ação, o resto não sendo senão considerações técnicas de
realização e exeqüibilidade. Kant pôde assim sustentar que o valor moral da
ação reside propriamente na intenção do agente e negar à deliberação sobre
os meios uma função moral, limitando-a a considerações técnicas; mais ainda,
Ie sua ética da preíerên- criticou acerbamenre a substituição do mundo das intenções pelo da delibera-
l11.2a10 reencontramos ção. Talvez isto explique por que alguns comentadores (como Ross e Gauthíer)
tentaram ver nesta passagem um sentido de "intenção" no uso aristotélico de
mas Aristóteles insiste
aalmente escolher por lTPOUlpE<JlS, a despeito da limitação explícita da escolha deliberada aos meios
e nunca aos fins: se a lTPOUlpE<JlS" permite "ver" melhor a moralidade da ação,
IlS. Traduzi-lo por esco-
então tem de envolver pelo menos um pouco de "intenção': pois é aqui que re-
m proceder por razões,
~docidir~me irrefletida~ sidiria em última instância o valor moral de uma ação. No entanto, Aristóteles
usa o superlativo aqui; ele não nega o mundo da intenção, que recebe relevo
112 pôr em realce o ato
no ato de pôr um fim. Intenções (no sentido do fim buscado), como vimos
I sendo essencialmente
em IH 2 1111a18~ 19, constituem a circunstância mais importante no interior
:escolha deliberada dos
da qual ocorre a ação. Aristóteles reconhece o domínio da intencionalidade e
0JIIl0 da opinião, para
dá um lugar às intenções. Como escreveu D. Furley, isto não quer dizer que
bdaà ação.
"Aristóteles estivesse pronto com uma teoria articulada da intencionalidade,
_ a escolha deliberada <mas que> estava suficientemente consciente da intencionalidade dos objetos
do desejo" (Self-Movers 1978, republicado em Cosmic Problems, p.131). Contudo,
la hábito de escolha de-
e este é o ponto aqui, ainda que tenha dado lugar às intenções, Aristóteles
lIQIalte apreendido não
analisa a racionalidade prática sobretudo como o ato de pesar razões rivais a
~aJIIlefeito, um homem
partir de um fim posto (pela virtude moral). Isto inclui levar em consideração
~é frito por uma razão
o ponto de vista de outras pessoas (o prudente é aquele que vê o que deve ser
la c:rc.). Isto assegura ao
feito não só para si, mas também para os outros) e, embora Aristóteles não
.,., quanto à análise do
o tenha feito explicitamente, nada impede, em certas circunstâncias, que este
IDIO. que não basta isso,
alargamento do ponto de vista moral englobe todo agente como racional. No
Ihiro de visar a um fim
entanto, é preciso reconhecer que a moral aristotélica encontra no espaço an-
i-Io (seguramente úteis,
Comentários I I6I
tagônico da deliberação a partir de fins já postos o momento privilegiado da mais plausível
justificação de nossas ações, pelo que difere grandemente da moral moderna, se que': "parec
para a qual as profundezas do coração constituem o reduto último da avaliação solidária de u
e justicação morais. A ética aristotélica é uma ética de exame e justificação do traduzir por "}
que fazemos; a ética moral cristã, e em grande parte a ética moderna, é uma para o vernácr
ética de silêncio e contrição sobre o que no fundo desejamos. certa artificial
llllb7 é manifestamente. Como ocorre freqüentemente em Aristóteles, bem, tanto 80.
<pUlVETaL indica algo que é manifesto, traduzido aqui por" é manifestamente". força maior 11d
Por outro lado, OOKEL pode introduzir uma opinião que, eventualmente, é contudo, é obs
modificada, corrigida ou rejeitada, o que ocorre sobretudo em contextos dia- para a ética na
léticos (nos quais uma boa tradução seria: "opina-se que"). No entanto, na EN é necessário qt
e especialmente neste terceiro livro, a maior parte dos casos de OOKEL indica menros sejam _
algo que parece, que é objeto razoável de afirmação, uma evidência que Aris- de modo generl
tóteles aceita como sua e que seria enganoso traduzir por "opina-se que", visto defensor do rru
que não introduz nenhum contexto dialético. Neste sentido, OOKEL figura gura no texto p
freqüentemente ao lado de EOlKE, como ocorre neste terceiro livro, que indica como um "opin
mais clara e fortemente um indício, uma evidência para sustentar uma posição evidências. Adc
independentemente de um contexto dialético (mas mais fraca que <PUlVETaL). Nicomaquéia nã_
Após os trabalhos de Burnet, passou a ser considerado moeda corrente que o tenha feito na É
método da ética é essencialmente um método dialético. Por método dialético inovador a evid,
deve-se entender um modo de prova que visa a preservar se não todas, pelo trar-se também
menos o maior número possível de opinião reputadas; a apresentação por lll1b9 os a
excelência deste modo encontra-se em EN VII 1, a respeito da prova por ser mais eficazment
oferecida no tocante ao problema da acrasia. O livro VII, porém, é um livro casos mais evide
comum e, se há sinais concordantes que os livros comuns procedem dialetica~ ilustra assim: 'pc
mente, assim como os demais livros da Ética Eudêmia (com os quais partilham llllbl0por
um mesmo ambiente conceitual), deve-se salientar que as passagens expressas a expressão KaTcJ
sobre o método na Ética Nicomaquéia não dão apoio a procedimentos dialéri- xão prévia que Cl
coso Ao contrário, tais passagens põem em relevo o problema de acribia das espaço todo que;
proposições práticas (ignorado ou pelo menos passado em silêncio na EE) e parte, porém, da
ignoram por inteiro questões de reputabilidade destas mesmas proposições. ação em uma dii
No tratado aqui traduzido, especialmente no livro III, há uma profusão de súbito pode serv
OOKEL, EOLKE e <palVETaL, o que pode indicar duas coisas distintas: (a) uma evento previsto oi
série cada vez mais plausível ou reputada de opiniões ou (b) uma série cada vez respeito à corager
Comentários I I63
sorte em casos anteriores podem agir de modo aparentemente corajoso em situa-
como dirá mais ad.i3
ções previstas, mas, em casos súbitos de perigo, revelam-se bem menos corajosos
estão em oposição, D
do que os cidadãos que, nas mesmas situações, demonstram uma coragem tão
de provar o que é d.
inaudita quanto despreparada e não premeditada (III 111117a17~22).
- 47b5). Adoto o te
ll11bll querer. Terceiro tipo de desejo, a ~oúÀTJ<JLS é exclusiva aos homens, dá preferência a K" (
pois somente um ser racional reflexivo pode tomar interesse por seus objetos,
apetite não se opõe ai
como ser imortal. Animais agem por impulso ou apetite, mas somente os
llllb18 minima
homens agem também por ~OÚÀTJ<JlS. Um homem reage contra um insulto
atos realizados por im
por impulso, ou se deleita com uma torta de chocolate por apetite, mas o que
no mais alto grau". A
o faz assistir a uma longa tragédia é a ~OÚÀTJ<JlS", o querer. Como tipo de de- caso do impulso do q
sejo, pertence à parte não-racional da alma, que pode, porém, ouvir a razão,
escolha deliberada, m
à qual se contrapõe a razão deliberativa, que constitui a parte racional prática casos evidentes de ate
que opera sobre todos os três tipos de desejo (impulso, apetite e querer). Pa- escolha deliberada. At
leograficamente, ~OÚÀTJ<JlS é não raramente confundida nos manuscritos com
súbitos, e nesta medid
~OÚÀE1J<JlS, deliberação, o que não é sem conseqüências para a interpretação.
de encolerizar-se, que.
lll1b15·16 não é ao apetite que o apetite se opõe. Aspásio observa que isto próprio impulso. Qua
é objeto de contestação, pois alguém pode ter o apetite de tomar os bens de
pelo menos aos olhos
outro e envergonhar-se disto por apetite da honra. A solução de Aspásio con-
mente por impulso, m
siste em ressaltar que o ponto é que a boa escolha deliberada é sempre oposta
precisamente a reflexã
ao mau impulso, enquanto o impulso pelos bens e aquele da honra não são
11l1b20 afim. Lin
sempre contrários, introduzindo conseqüentemente uma nota adverbial no
para esta proximidade
resumo da tese: "é dito então corretamente que o impulso nem sempre é
é a parte diretora da ~
oposto ao impulso", EUÀÓyWS"ouv ÀÉyETaL, TO µ~ ELVaL ElTl8UµlGV <lEI. liberada. Ele explica (b
EvaVTlOV ElTl9UµLÇl (68,15~16). Tomás de Aquino oferece outra explicação:
ter deliberado, o quere
apetite e escolha deliberada são opostos no continente e no incontinente, no baseia-se em III 5 111
sentido que o primeiro escolhe pela razão o oposto do que o segundo deseja
YÓµE9a KGTà T~V 1301
por apetite, mas o apetite de um não está oposto ao do outro, pois ambos têm
desejamos segundo o (
o mesmo objeto, a saber: o prazer dos sentidos. Isto não equivale a afirmar
outra versão, que se cor
que um apetite não possa ser oposto a outro apetite; Tomás de Aquino dá
do que foi deliberado,d
como exemplo de contrariedade entre apetites o apetite de movimento e o de
Aristóteles não está di
repouso em um mesmo homem. A explicação de Tomás de Aquino indica a
ação por um querer, COI
Comentários I I6S
é a adotada pelo editores modernos (exceto Gaurhier). Tomás de Aquino, de é ele próprio passioa
sua parte, retoma (a) introduzindo diretamente sua tese sobre a vontade: esco- interna, que fraque;
lha deliberada e querer são próximos porque pertencem ambos a um mesmo dos atos provocados
poder, a faculdade racional desiderativa ou vontade, voluntas. Quando a von- evitar de os ter, poá
tade se dirige ao bem sem outra qualificação, trata-se do querer; quando está não se trata de perm
ordenada a um bem preciso, então é escolha deliberada. O objeto de escolha a cada emoção o pon
deliberada passa a ser então adotado, no fim da deliberação, como objeto do As paixões devem se
querer. Comentando 1113all~ 12, Tomás de Aquino (que lê secundum consdium, razão, elas não deva:
o que supõe KaTà T~V ~OÚÀT)<JLV) volta a afirmar que a escolha deliberada é um aqui distinguir clara
ato da vontade. Se tomarmos por vontade o desejo procedente da apreensão qual se liga Tomás, ~
de um objeto segundo o livre juízo (PIP< 26 al), i.e., a condição de apreensão escolha deliberada Cf
bipolar do desejo humano (que pode ser do sim e do não), trata-se aqui de um no qual há (a) os três 1
ajuste salutar de vocabulário, pois a escolha deliberada pertence ao gênero do todos à parte não~rac
voluntário, que satisfaz o critério do princípio intrínseco porque, à sua base, que está localizada n
está a condição maior de agência racional - ser bipolar - e, neste sentido, a prática, e que opera SI
escolha deliberada é um ato da vontade (em outros termos: trata-se de uma parece ser o propriam
doutrina da vontade em Aristóteles que se desdobra nas doutrinas do volun- llllb22 mas há ~
tário, dos tipos de desejo e da escolha deliberada a partir dos fins estabelecidos fornecem o texto dos I
pelo desejo). Ocorre, contudo, que Tomás de Aquino toma por voluntas a Boú- Contributions, Oxford 1
ÀT)<JLS', em oposição aos dois outros tipos de desejo, conforme uma tradução impossíveis. Bywater arg
bem estabelecida Uá presente em Cícero, Tusc. IV 612) e seguindo aqui duas modo todo objeto do c
tradições distintas do aristotelismo (a patrística e o estoicismo); neste sentido, Ethica Eudemia o inrroc
a restrição proposta da escolha deliberada a um só tipo de desejo parece estar (I 171189a6). Aspásiol
além do que exige Aristóteles. A proximidade entre querer e escolha deliberada entanto, se a passagem
consistiria no fato que a escolha deliberada só ocorre no interior do querer, à frase há querer de objetes
exclusão dos dois outros tipos de desejo. Porém, a proximidade entre querer e sejam impossíveis (o qt
escolha deliberada é afirmada aqui a partir de algo aceito por todos, à base de alguns deles podem sei
uma evidência, a saber, que ambos requerem em algum sentido a razão, sem 1111b24 um ator. I
que, no entanto, Aristóteles esteja pressupondo que a escolha deliberada só curso, mas isso não dq
ocorra no interior do querer, à exclusão do impulso e do apetite. Com efeito, mente envolvido no cor:
para Aristóteles há igualmente um modo correto para ter apetite de objetos e 1111b26·27Admu
encolerizar-se ante certos atos, o que supõe uma atividade racional de escolha rada concerne ao que conde
deliberada também no interior destes dois tipos de desejo. Na perspectiva to- para sua tese que a escol
mista, deve-se dizer que o ato de deixar-se conduzir ou não pelas paixões não que se tome como sube
• doutrinas do volun- lll1b22 mas há querer de objetos impossíveis. Sigo Bekker e Susemihl, que
rdos fins estabelecidos fornecem o texto dos manuscritos; Bywater acrescenta um também <Kal> (cf.
lIDa por voluntas a ~oú- Contributions, Oxford 1892, ad loc.), o que dá: mas o querer também é de objetos
atônne uma tradução impossíveis. Bywater argumenta que não só o argumento o requer (pois de outro
t e seguindo aqui duas modo todo objeto do querer seria inane), como também a versão paralela da
~); neste sentido, Ethica Eudemia o introduz (EE II 10 1225b33), bem como a da Magna Mora/ia
.de desejo parece estar (1 17 1189a6). Aspásio igualmente o acrescentou em seu comentário (69,5). No
la' e escolha deliberada entanto, se a passagem for lida com E<JTlV no sentido de ser possível, então da
lo interior do querer, à frase há querer de objetos impossíveis não decorre que todos os objetos do querer
-.udade entre querer e sejam impossíveis (o que obrigaria a introduzir o também), mas somente que
io por todos, à base de alguns deles podem ser ou o são.
• sentido a razão, sem l111b24 um ator. Posso querer que um atleta ou um ator vença seu con-
~esroIha deliberada só curso, mas isso não depende de mim, e sim do ator ou atleta que está direta-
!lo ~tite. Com efeito, mente envolvido no concurso.
... apetite de objetos e lll1b26~27Ademais, o querer diz respeito sobretudo aofim, mas a escolha delibe~
~ racional de escolha rada concerne ao que conduz aofim. Gauthier tentou encontrar aqui apoio textual
.. Na perspectiva to- para sua tese que a escolha deliberada diz respeito também aos fins, propondo
• não pelas paixões não que se tome como subentendido na segunda oração o µâÀÀov ("sobretudo")
Comentários I I67
da primeira, de modo que se leia nesta passagem que o querer concerne so-
escolha deliberada ao cpII
bretudo ao fim, ao passo que a escolha deliberada diz respeito sobretudo (mas
relação com o que está a
não exclusivamente) aos meios (ele segue assim a tradução proposta no iní-
llllb30-31 T~
cio do séc. XIX por Thurot: ..dailleurs, un vceux ou un souhait se rapporte
menciona agora um 'JIUI
plutôt à la fin, tandis que, dans le choix ou la préíérence, on a plutôt en vue
que o tenha introd~
les moyens"). Isto não é gramaticalmente impossível, mas é filosoficamente
candidatos plausíveis ~
pouco provável. Na passagem correspondente da Ethica Eudemia (à qual, aliás,
mente, umaópEçLS &..
Gauthier remete), Aristóteles escreve que o querer e a opinião dizem respeito so-
pouco provável como rmi
bretudo ao fim, "mas a escolha deliberada não diz respeito ao fim: lTpoalPE<JLS8'
afirma que ninguém ~
ouc E<Jnv (EE II 10 1226a17; a mesma negação será feita na Ethica Nicomachea,
opinião (1111b34~12a1) ••
em III 5 1112bll~12). No mesmo diapasão, Aspásio fornece como texto de
Aristóteles ~ µEV ~OÚÀll<JLSTOU TÉÀOSE<JTlV,~ OE rrpocípeotc TWVrrpos cio escolar de refutação. N
TO TÉÀOS (69,1O~11), ignorando o µâÀÀov da primeira oração. Na paráfrase Platão retoma a tese soa:i
anônima, lê-se ~ µEV ~OÚÀll<JLSTOU TÉÀOUSE<JTlVàEl, ~ OE rrponípeots sabedoria (88c); para jusà
"o querer diz respeito sempre ao fim, a escolha
TWVrrpos TO TÉÀOS<PEpÓVTWV, homem que vai a Larissz:
deliberada aos meios referentes ao fim' (45,35-36), o que também não presta como também "por uma I
, , I 0"lIIII
apoio a Gaurhier, pois, se devêssemos ler o termo da primeira oração suben- ... µ11ElTLaTaµEVOS, 71 I
tendido na segunda, teríamos então de ler que o querer concerne sempre ao do saber, a reta opinião ,
fim e a escolha deliberada sempre aos meios. Stewart, por sua vez, prefere virtuosa; há, porém, uma~
fazer µâÀÀov governar a proposição inteira, sob o pretexto que, apesar de Platão não deixa de re:saII
Aristóteles, na Ethica Eudemia, caracterizar o querer como sobretudo do fim, opinião é volúvel, podmd.
na Ethica Nicomachea ele tem uma noção bem precisa do querer, que se vê li- favor divino; mais ainda..
mitado agora unicamente ao fim, como fica evidente na frase que abre III 6 e estabelecida entre opinUD
resume o argumento precedente (1113a15: "foi dito que o querer concerne ao havendo entre ambas um.
fim'). Conseqüentemente, Stewart propõe como tradução algo do tipo: "ade- não quer identificar o bc.
mais, é mais <µâÀÀov> correto dizer que queremos o fim e que escolhemos opinião), mas haveria. CDI
os meios". Deve-se observar, no entanto, que a tese de Aristóteles não precisa escolha deliberada podo:iI
limitar o querer ao fim, pois basta salientar que é sobretudo do fim, o que já mero sucedâneo do sahcr;.:
o distingue da escolha deliberada; por outro lado, é conveniente não limitar o
que é unicamente o sabee,
querer ao fim, pois pode ser também de um meio, na medida em que, sendo
da opinião ao mesmo tmII
primeiramente de um fim, torna-se, por intervenção da deliberação, querer do
mente a escolha deliberaiL
meio que realiza o fim. Quem quer os fins quer os meios que reconhece como
modo considerar como CI:
adequados para realizar os fins.
rada, introduzindo uma cp
ll11b29~30Em suma, pois, a escolha deliberada parece dizer respeito àquelas
Aristóteles freqüentetncm
coisas que estão em nosso poder. Contrariamente à expectativa de assimilação da
é a, determina certo IllÍIm
Comentários I I69
corresponder até ficar com aquele que é o bom candidato; para tanto, precisa rações morais. O lOU!
assegurar~se que a lista é exaustiva, pois se pode sempre objetar a este tipo de à retitude da boa ddi
argumentação que há outro candidato que não foi posto à prova. prime a correta relaç
lll1b34 Talvez, no entanto, ninguém declare. Tomo µEV ow em um sentido dos meios a respeito cl
corretivo, usado raramente na prosa, mas pelo qual, nas palavras de Denniston, deliberação a respeito
"the speaker objects to his own words, virtually carrying on a dialogue with em VIla 1142b22: a
himself" (p. 478). Outro caso deste uso, fornecido por Denniston, é Rhet. II retítude "que obtém 1
1112a5 mas de modo a~um opinamos. Como observa Stewart, lTávu inten- Fosse avaliada merana
sifica a partícula negativa ou, assim como em 1112a8. da opinião, cujo elogio
1112a6 mais do que pelo fato de ser reta. Pode parecer surpreendente que escolha deliberada é ta
Aristóteles afirme que a escolha deliberada é louvada mais por ter um fim para o qual busca a a.:
moralmente bom do que por apresentar uma correta relação entre meios e fins mos em geral, com eki
(que pode se realizar igualmente com um fim moralmente reprovável). Como que delibera bem soba
Aspásio não tem este apêndice (70, 2), Rackham decidiu retirá-lo do texto, 1112al0-11 eswI.
tomando-o por uma glosa ajuntada posteriormente, apesar de bem atestada. lhem" é alpEL<J8m, escaI
Pode-se também mantê-lo e interpretá-lo diferentemente, a saber, tomando mente matizar, quando
~ por ~TOl e ler algo como "ou, em outros termos, por ser correta", como reflexivo, daí surgindo:
sugerem Ramsauer ("particulam ~ non quam sed aut"), Srewart, Dirlmeier 1112all-12 se fDIIIII
e Gauthier (que prefere, contudo, seguir Rackham). No entanto, pode-se observa Stewart, a toe,
argumentar a favor de sua manutenção no texto, na tradução proposta, mos- panha) a escolha ddma
trando que, segundo Aristóteles, embora a escolha deliberada seja examinada 10 1226b9 EK o~TJS fia
primeiramente em relação à retitude dos meios para a obtenção de um dado provém de uma opiniã
fim, a boa deliberação (no sentido moral de "boa") depende igualmente da opinião precede ou aa:II
qualidade moral do fim: uma deliberação correta a respeito dos meios, cujo mente se pode ser ida.i
fim é, porém, moralmente reprovável, não constitui um caso de prudência, está envolvida com as Gf
mas de rrcvoupví« (VI 13 1144a27), a engenhosidade desligada de conside- nossas opiniões, não pa
iquer estabelecer referência. Ao contrário, a escolha deliberada tem dois pólos de análise: o
lOS bens e males fim, para o qual busca os meios, e a proporção dos meios em vista do fim. Ela
pode ser correta em relação à proporção dos meios, mas não quanto ao fim.
~ lTávu inten- Fosse avaliada meramente em termos desta proporção, estaria mais próxima
da opinião, cujo elogio se reporta unicamente à verdade; ocorre, porém, que a
irpreendente que escolha deliberada é também e mesmo sobretudo avaliada em função do fim,
~por ter um fim para o qual busca a correta proporção e pela qual é também avaliada: preteri-
Jm[I'e meios e fins mos em geral, com efeito, alguém que delibera mal sobre fins bons a alguém
l saber, tomando mente matizar, quando o adota em sua ética, pondo em evidência o elemento
~ correta", como reflexivo, daí surgindo a noção de TTpompEL<J9aL, escolher por deliberação.
Icwart, Dirlmeier 1112all~ 12 se uma opinião precede ou acompanha a escolha deliberada. Como
mranto, pode-se observa Stewart, a tese de Aristóteles é que a opinião precede (e então acom-
lo proposta, mos- panha) a escolha deliberada, embora não possa ser identificada a ela (cf. EE II
la seja examinada 10 1226b9 EX oóÇTlS ~OUÀEUTlKi]S E<JTLV ~ rrponipeotç, "a escolha deliberada
~deumdado provém de uma opinião deliberativa"]. É, porém, irrelevante saber aqui se a
lIe igualmente da opinião precede ou acompanha a escolha deliberada, pois queremos saber so-
b dos meios, cujo mente se pode ser identificada a ela. No aristotelismo, a ação necessariamente
110 de prudência, está envolvida com as opiniões que o agente tem; se suspendêssemos todas as
Comentários I I7I
1112a15 Seria então. As partículas em questão (àÀ.À' àpa yE) levam a
pensar que se trata de um pis aller, candidato aceito por falta de outro melhor aristocrático, recorn.llll
(o mesmo ocorre a respeito do candidato para a unidade de significação de dos chefes que t~
bem em I 4 1096b27). A razão disto será explicitada no capítulo seguinte,
III 5 1113a3~4: o objeto de escolha deliberada inclui seguramente a delibe- ver o povo como
ração, mas é uma deliberação já concluída ou determinada. Há uma relação como inteiramente
obviamente íntima entre deliberação e escolha deliberada, mas elas não se
identificam: enquanto a deliberação é um tipo de investigação que "ainda não
é uma asserção", OVTTW <pá<JLS (IV 10 1142b13), a escolha deliberada justa- (44) ou julgar os
mente envolve necessariamente o reconhecimento cognitivo do conteúdo de tinha a decisão final ldI
uma asserção, o que pode ser realizado tanto pela afirmação da conclusão 45.4), pois devia ~
que termina a deliberação quanto pela ação que ela exprime. O ponto é que a 8~µov), que, por sua ..
escolha deliberada acrescenta à investigação (deliberativa) o acatamento sub- era a consideração práiI
jetivo ou assentimento que esta não comporta; por esta razão a identificação cisão final dependia ..
ti~
proposta aqui ainda é provisória. J. Rhodes, A Co~
1112a15 o que é decidido preliminarmente. Em V 10 1135b10~11 Aristóteles sobre 45.4, assim COOIDJ
utiliza o verbo lTpO~OUÀEÚW no sentido de deliberar previamente, premeditar, 1912, 2ed.). A assembIii
acentuando o sentido temporal envolvido no TTpÓ de TTPO~E~OUÀEVµÉVOV. a menos que ela
Aqui, ao contrário, o rrpó indica menos o aspecto temporal e mais a preferên- selho, A discussão ao.
cia atribuída a algo entre outras coisas. Isto é posto em relevo pela explicação político ateniense de u.
introduzida a seguir: a escolha deliberada é acompanhada de razão e pensa~ terminar por privi1egi.
mento, µETà ÀÓyou KGl owvoLaSi no lugar de uma referência a um tempo pública, pois recorre aGI
.. O ponto é que a oí'jµov), que, por sua vez, votava definitivamente o ponto. A lTpO~OÚÀEUOLS
t o acatamento sub- era a consideração prévia por um conselho menor sobre um ponto cuja de-
mo a identificação cisão final dependia da votação por um corpo maior (ver especialmente P.
J. Rhodes, A Commentary on the Aristotelian Athenaion Politeia, Oxford 1981,
15b10~11 Aristóteles sobre 45.4, assim como John Sandys, Aristotle's Constitution of Athens, London
IIIJIeIlte, premeditar, 1912, 2ed.). A assembléia, porém, não podia manifestar-se sobre uma questão
q»oPEj30UÀEUµÉVOV. a menos que ela tivesse sido previamente considerada e deliberada pelo Con-
.... e mais a preferên~ selho. A discussão aristotélica da deliberação nutre-se seguramente do fato
~ pela explicação político ateniense de tomar decisões por deliberação, mas Aristóteles parece
lia de razão e pensa~ terminar por privilegiar uma figura antiga (e muito modesta) de discussão
~aumtempo pública, pois recorre aos conselhos dos tempos homéricos. Talvez isto seja
;a da razão e de um marca de um aristocratismo (e mesmo palaciano); em sua defesa, contudo,
ridade temporal em pode-se alegar que Aristóteles está preocupado unicamente em salientar a
J- que lTpO~OUÀEÚW propriedade da escolha deliberada de ser já determinada ou completa, resul-
lDttO pelo Conselho tando imediatamente (se nada impede) na ação, ao contrário da deliberação,
.;f.cação da Assem- que é o processo de tomada de decisão, e isto é mais bem ilustrado pelos
~ alusão ao sentido conselhos homéricos do que pelas assembléias atenienses. Com efeito, falta
I dttaminado (entre ao lTpO~oúÀEuµa o assentimento que somente a assembléia pode dar, o que
~ à ratificação), não é o caso dos conselhos antigos, pois ao povo cabia somente executar o
f:algo em detrimento que já estava plenamente decidido.
.mnco da discussão 1112a16 acompanhada de pensamento e reflexão. Stewart observou que
CI- Mais adiante, em ambos os termos marcam um processo (associação de idéias, consideração
;io entre deliberação sobre circunstâncias e sobre as possibilidades de ação etc.), distinto do ato
Comentários I I73
que conclui o processo. Sua proposta de tradução é elegante: "choise implies
reasoning, and a process of thought".
1112a17 ao que é escolhido antes que outras coisas. A preposição rrpó tem
primeiramente o sentido de "antes" (no espaço ou no tempo), mas logo de-
senvolveu o sentido lógico de "ao invés de", "de preferência á', justamente Neste capítulo. Ali
quando governa o genitivo, como é o caso aqui. Stewart, Joachim, Dirlmeier expressamente sua taIt
e Gauthier entendem o TTpÓ no sentido de precedência temporal: a anterio- fins, jamais sobre os p
ridade cronológica na escolha deliberada se manifestaria pelo fato que algo geral sobre o objeto de
é escolhido antes de outra coisa, por exemplo: tal meio antes de tal outro, e mais das vezes, é obsc.
assim por diante até a obtenção do fim. Por outro lado, Aspásio e Tomás de como o objeto própriDl
Aquino dão o peso maior à noção de atribuir preferência a algo em derri-
mento de outra coisa, pois é esta noção que está no núcleo lógico de escolher 1112a19 consJbo.l
racionalmente. O que caracteriza basicamente a escolha racional é o ato de ~OÚÀEU<JlS",o ato~dd
pesar razões rivais e só secundariamente o fato disto exigir um tempo pré- selho, a reunião de pa
vio à ação que realiza o fim escolhido; fosse o aspecto temporal o sentido aparece outras vezes _
básico, não se compreenderia por que a operação de dar preferência a certas 1112a20~21náoi.
coisas em detrimento de outras é sentida como o cerne de uma escolha. Os coisas sobre as quais o ,..
f, l' ~,.
dois planos se cruzam, mas há prioridade para o plano horizontal da preíe- UTTEp OU ... UTTEp..,_ J
rência em relação ao plano vertical do tempo; é no plano horizontal que se comum no dernóricoc e
concentram os problemas filosóficos da escolha racional. A passagem aqui, valente em português_
no entanto, não é clara a respeito de qual dos dois sentidos deve ser adotado "em cima disso" no h.-
(Thurot é singularmente hesitante: ele traduz a passagem por "puisqu' il se dit 80~90). Há quatro OUIJI
d'une chose adoptée avant une autre, ou plutôt quune autre"). Tampouco a VIII 2 1155b16 e X 1 J
passagem correspondente da Ethica Eudemia II 10 1226b6~8 é clara: "a escolha na Magna Moralia, o ..
deliberada é uma escolha, porém não simples, mas de algo antes que outro", 1112a21 Ningu.áa~
~ yàp lTpOalpE<JLS d(pE<JLS µÉv E<JTLV, OUX emÀwS" 8É, àU' ÉTÉpou rrpó Gauthier, Bekker e S.
ÉTÉpou. Felizmente, a Magna Moralia elimina a ambigüidade do rrpó escre- lugar de 8f).
vendo que rrpompoúueêu TOOE àVTL TOOUOE, OlOV TO ~ÉÀTLOV àVTL TOU 1112a21 os objttos d
XElpOVOS, "escolhemos por deliberação isto contra aquilo, a saber: o melhor da deliberação: os obja
contra o pior" (I 171189a13~14), pois seguramente não escolhemos o melhor µ~ EVOExóµEva ~
"antes" do pior, mas "em troce de", "no lugar do" pior. Neste sentido, P. Auben- sua ordenação (De c..I
que (La Prudence chez Aristote, P: 126) denunciou o contra-senso de Joachim e como os objetos ~
corretamente centrou sua análise da escolha deliberada sobre o sentido básico tratados TI àKlVT)Ta,,.
de dar preferência a certas coisas em detrimento de outras. parte dos objetos em.
.acolhemos o melhor µ~ EVOExóµEva aÀÀwS' EXElV. Este grupo inclui objetos como o universo e
_ sentido, P. Auben- sua ordenação (De Cael. II 14 296a33: "a ordem do cosmos é eterna"), bem
ia:a-smso de Joachim e como os objetos matemáticos. Estes últimos são obtidos por abstração e são
lasobre o sentido básico tratados fi àKlVT]Ta, qua imutáveis, Met. E 11026a9, e nesta medida fazem
.-ns- parte dos objetos eternos. Quanto ao universo, o primeiro motor, que move
Comentários I I75
sem ser movido, faz evidentemente parte dos objetos eternos; por outro lado, (o termo canônico é TO ..
as esferas celestes, que estão em movimento (pois movem e são movidas), são ocorre por acaso é dito ~
igualmente tidas em movimento eterno (para que o movimento, assegurado assim do que de outro lIIIIIIi
pelas esferas, que movem sendo movidas, seja eterno, é preciso supor, no aris- "tanto assim como nâo ..
totelismo, um primeiro motor que move sem ser movido; ambos os casos são outro ocorre" (De Intap. 9_
incluídos neste primeiro grupo). primeira a propósito da ..
1112a23~24 Também não sobre os que estão em movimento, mas que se engen~ Além do mais, Arist~
dram sempre do mesmo modo. Os objetos excluídos do campo da deliberação das vezes o que é acidmal!
desta vez são os que sofrem mudança (EV KW~<JEl), mas que se produzem 1112a27 Tampouco.
sempre do mesmo modo (<lEI. OE KaTà Tama ywóµEva). O que os distin- no domínio das ações ):._
gue dos membros do grupo anterior não é propriamente o fato de estarem aUróµaTov). No caso da ~
em movimento (as esferas celestes também o estão), mas o de serem gerados. tro resultado é acid~
Este grupo inclui: (i) eventos como solstícios e surgimentos dos astros, que aUróµaTov como o ~
ocorrem por necessidade (o sol e os outros planetas manterão sempre seus 1112a28~29 como GJ"
movimentos, contrariamente ao temor dos antigos filósofos: Met. e 8 1050b22~ em Heródoto, o povo ..-
24); (ii) movimentos
morrem,
repetidos do mundo
e a morte lhes ocorre inevitavelmente,
sublunar. Homens,
portanto
por exemplo,
necessariamente;
j grego organizado em ~
ao nosso alcance é enfãriz.i
os cabelos dos homens, porém, tornam-se nas mais das vezes grisalhos (pois serem escolhidos para a ..
alguém pode perdê-los antes, ou morrer). Este segundo grupo inclui assim constituição para os CÍt:3s-.
uma causa natural sob o registro das mais das vezes, cuja exceção se faz por próprias leis, menos ainda.
acidente, sem destruir o fato que o mesmo fenômeno se engendra do mesmo Eudemia II 10 1226a29 c: _
modo. A menção, porém, que se engendram sempre do mesmo modo (<lEI. OE Índia (o que talvez esteja"
KaTà Tama vu-óuevo') faz dificuldade, pois o que ocorre nas mais das vezes que os gregos passassem .UI
se opõe ao que ocorre sempre; no entanto, Aristóteles costuma aproximá-los, Moralia, o fato de não dc:Ià
caracterizando em geral o objeto físico como o que ocorre necessariamente se interessar por eles: -llOI5i
ou nas mais das vezes de um mesmo modo (if. Phys. II 8 198b35: "todos os na Índia, mas não deliba:a
objetos naturais ocorrem ou sempre ou nas mais das vezes"). Por fim, Aris- 1112a30~31Deliba..
tóteles acrescenta "ou por outra causá', pois não compete à ética determinar ser feitas. Adoto o texto *:
as causas deste segundo grupo com a mesma exatidão que a física, podendo que interpreto no sentido t
deixar em aberto a possibilidade de outro tipo de causa. mss. seria: deliberamos .soI.r
1112a26 Tampouco sobre os que são ora de um jeito, ora de outro. A expressão No capítulo anterior, Ao.
é rara em Aristóteles, aparecendo somente outra vez no tratado espúrio Sobre deliberada; aqui, ele o lip;
as cores. Stewart sugere que, a partir dos exemplos - secas e chuvas -, se pode yàp TO 1TpaKTOvKGl TO ...
identificá-los com os objetos que ocorrem por acaso, como em Phys. II 8 198b35 de escolha deliberadã.
Comentários I I77
---
1112a31~33 Parecem, assim, ser causas a natureza, a necessidade e o acaso; além quais, embora a Sg.
disso, o intelecto e tudo o que éfeito pelo homem. Nas Leis, Platão apresentou uma das, emerge a expraII1
lista semelhante (888e~889a: Tà µEV <pÚOH, Tà OE TÚXll, Tà OE olà TÉXVYlV), texto de Sófocles ~
que Aristóteles retoma em Met. Z 7 1032a12~ 13 e em A 3 1070a6~7. Em ne- a ela se refere, se paIi
nhuma delas aparece explicitamente o tema da ação, embora em An. Posto II wÀE<J' opyá, "a pai:áI!
11 94b34~95a6 e Phys. II 6 197a5~13 o intelecto seja citado, e a olávola em Z beste) te destruiu"; ..
7. Gauthier comenta que "Aristóteles, neste capítulo, não faz senão aplicar de KaTa~~<Jll, "mas por1
modo desajeitado à ação moral noções primitivamente elaboradas para explicar Hades", o prefixo _
a atividade de produção". Menos incisivo, mas no mesmo diapasão, Edward fato de ser ela ~
Moore escreve que esta lista "deve ser considerada como uma classificação inaugura a cena triWi
popular de causas familiar aos ouvintes <... > antes que uma da qual Aristó- rodeada por eles. F.
teles seria o responsável" (An Introduction, 1878). No entanto, a lista apresenta entranhas pur~
duas novidades, e destas novidades Aristóteles seguramente é o responsável. a mulher de origem 114
Primeiro: o domínio da técnica pode estar incluído aqui, mas o está em lTâv ~apúeuµoS', acaba ....
TO Dl' àv9pwlTou, isto é, está subordinado à ação, o que é uma tese impor- como vingança a T~
tante do aristotelismo. Esta subordinação será examinada no sexto livro. Em irremediavelrnenre _
segundo, e mais importante, lugar, o homem aparece como causa em sentido da cena; de agora ~~
próprio e eminente graças ao intelecto, ETl OE vOUs, ao lado das outras causas o espetáculo da deri.I
comumente aceitas (o intelecto aqui é o intelecto prático, pois a inscrição do da agência humana 111
homem como causa no sentido pleno de suas ações se faz através da atribuição mais específico, encDIIIIIi
de uma potência racional deliberativa ao homem). No mundo cultural grego, implanta o homem. ..
esta frase tem uma enorme ressonância. O teatro grego fez a experiência cê- aceitas. Em Platão hiI
nica da liberação ante o divino: de Ésquilo a Sófocles e a Eurípides, o agente, uma atribuição da '-!
que antes não fazia senão realizar um plano concebido alhures, nas disputas ao contrário, o homaII
entre os deuses, permanecendo um joguete nas suas mãos (como na Ilíada, uma trivialidade, ~
em que de início é anunciado
cisão de Zeus), é paulatinamente
integralmente
que tudo o que ocorre se realiza segundo a de-
posto na frente da cena e responsabilizado
de seus atos (ainda que em peças como Édipo-Tirano a presença
niense que Aristóa:Iaii
que faz, o homem
de sua grandeza.
t"
do divino siga os moldes antigos, pois Édipo tem um destino traçado pelos 1112a33 Cada ..
deuses, que ele descobre lentamente sob a forma de tragédia). Assim, Antígone àv9pwlTWV EKO<JTOl"
é uma jovem que age por conta própria; sua decisão de dar a Polinice uma a ROT: "every class ~
sepultura, a despeito do decreto de Creonte que proibia expressamente tal their own efforrs-. N.j
ato, ainda que apresentada sob forma de piedade religiosa, é perpassada por precedente ou consa;ll
estranhos desejos, referidos ambiguamente ao seu irmão, mas do interior dos Aristóteles acrescma.
Comentários I I79
delibere sobre tudo que é feito pelo homem; na verdade, cada um delibera Kal rrept Tàs ooças- i
somente sobre o que pode ser feito por ele próprio. que sobre as ciências1
1112b2 como um termo deve ser escrito. Comparando esta passagem com paráfrase (47, 26-27) e
MM I 17 1189b19~21("ninguém delibera sobre como deve escrever o nome têm o texto tradicioa.
de Archicles, pois está fixado como se deve escrever o nome de Archicles"), o respectivamente, ..n:uwi
ponto não é como se deve escrever tal e tal letra, mas qual é a grafia correta de quam disciplinas").1lI
um nome. Em Ale. I 107a1~3,Sócrates pergunta a Alcibíades se ele se pronun~ cos de artes em 11131
ciaria em uma assembléia na qual os atenienses estivessem deliberando sobre acribia, na qual as ca
"como se escreve corretamente", rrws a.v op9Ws ypá<pOLEV, a que Alcibíades o permite as distinguil
responde com um sonoro certamente não). ciência, um saber; ma
1112b4~5 (por exemplo: as da medicina e da arte de enriquecer, e mais sobre a diferir quanto à urgâxl
navegação do que sobre a ginástica. Aristóteles seguramente não cita por acaso estas uma e outra em funç3.
duas artes; com efeito, Platão fizera delas, no Político, o paradigma mediante o 1112b8~9 Deüba.
qual se propôs a pensar a política a fim de encontrar também nela um saber que mas que nas quais é oi.:
se estabelece e torna obsoleta toda deliberação a respeito, assim como ocorreria resultarão. Adoto 01] cp
na medicina e na navegação (ver especialmente 292 e 297~300a). Em EN II
b
a vantagem é que a JII
2 1104a9~10, Aristóteles, porém, conclui a passagem sobre a natureza instável que precede; de quaJ.p
das ações, que não caem sob nenhuma técnica ou método (ele usa o termo ver aqui a conclusão d.
lTapaYYEÀla, que a paráfrase dá como sinônimo de µÉ900os), comparando-as TOV não tem compita
à medicina e à arte de navegar, como se estas fossem, entre todas as artes, casos OLe:; Tà àOLÓPL<JTOV r-
exemplares de indefinição e hesitação. Obviamente navegação e medicina são I 17 1189b24~26Ev <i~
artes e, por conseguinte, dispõem de um método, que, com o tempo, desenvol- lTpaKTolS Tà àópuJ'71I
verá um saber, como já é o caso para outras artes (o que se depreende do que <... > vige nas ações o
Aristóteles afirma em Phys. I 1184a10~12). Resta que Aristóteles parece bem Rassow (Forschungen. \I
menos satisfeito que Platão do estado destas duas artes, o que o leva a valer- "nas quais é indefinido4
se delas como ilustração do contrário que queria Platão, a saber, a isenção de de lTWs àlTO~~<JETQl ••
deliberação por força de um saber presente. Deve-se observar que os escritos filosófica é o valor de 11
hipocráticos estão imbuídos da pretensão de eliminar todo acaso da análise cláusula KUl EV ote:; ciIi.
médica, de modo que de cada fenômeno se descobrirá um dia a causa, o acaso [3ouÀEúc<J9m o~Ev nis
sendo meramente uma palavra vazia, que esconde um fracasso do saber, não última é fácil suprir ;rW;
uma indeterminação da coisa mesma. uma nova idéia, mas 1.111
1112b6~7 mais a respeito das artes do que das ciências. Gaurhier argumenta algo diferente, a saber, I
que TàS" TÉxvaS não dá nenhum sentido aceitável, pois, nesta passagem, as (Contributions, ad loc.). j
ciências se identificam às artes; como Aspásio fornece como texto µâÀÀov OE obscuras como resuh:a
Comentários I I8I
Se for assim, então o objeto de deliberação é o que ocorre nas mais das vezes;
neste sentido, Joachim concluiu que Aristóteles "restringe a deliberação a TO
Ws ElTl TO lTOÀÚ". Irwin, que adotou o texto de Rassow, igualmente interpreta
a passagem como uma restrição do objeto de deliberação ao que ocorre nas
mais das vezes, querendo ver aqui uma passagem em desfavor do partícula-
rismo ético freqüentemente atribuído a Aristóteles (verA ética como uma ciência
inexata, Analytica 13 1996, pp. 13~73;Ethics as an Inexact Science, pp. 100~129,
OUP 2000). No entanto, creio que se deve voltar a interpretar Kal como um fenômeno e::sat ',
que um dia se i •
aditivo e ver na passagem não um só, mas dois objetos de deliberação. De um na ação, através -
lado, há o objeto das artes, caracterizado em 1112b3 como µ~ ooaÚTws o'
sobrepõe o que ~
àEl, "que não é sempre do mesmo modo", isto é, que se apresenta sob a forma
vro VI, o homem
do mais das vezes, TO Ws ElTl TO rroxú, Sobre este objeto, a deliberação ocorre como a boa deliberação.
quando não é claro como o evento se desenrolará, isto é, sua presença se faz
a deliberação: o o,*-
em função de uma obscuridade epistêrnica. À medida que a competência em
Nicomachea, Aristótdrs.
um domínio avança (ou o saber em uma ciência), a deliberação se torna cada
deliberada, e à segunda~
vez menos urgente, e a decisão do especialista toma o lugar do procedimento
a ética da prefer::i~.
deliberativo. Por esta razão Aristóteles apresentou uma gradação deliberativa dinar à escolha -
das artes às ciências e a vinculou ao estágio de acribia de cada uma; a delíbe-
deve ser corrigida. a ~
ração é um procedimento de fato na tomada de decisões a seu respeito, mas
a clivagem entre um e CIIIII!
não de direito, sendo antes um fenômeno evanescente em função do desen-
de Rassow, que t~~
volvimento do saber e da competência (se certa técnica ou ciência alcançar
de uma correção, se
sua acribia própria, ainda que seu objeto guarde certa indeterminação, pois
o objeto de ação, que b~
pertence ao mundo sublunar do Ws ElTl TO lToÀú, já não há sentido em deli-
que resume a discussãD"
berar sobre como agir, mas devemos nos reportar à opinião do especialista,
Pier-Luigi Donini (81
pois o resto de indeterminação pertence à acidentalidade da própria coisa, e
dois candidatos em uuj
sobre o acidente não há deliberação). Por outro lado, é igualmente objeto de
produção, tomando a.II!
deliberação o objeto de ação (apresentado em 1112a30~34); a seu respeito, a
reria ad utrumlibet, COIDI.
deliberação não é um procedimento evanescente de decisão, mas se enraíza
vezes assim; este últimocl
na própria coisa. Nos Anal. Priora I 13, Aristóteles apresenta a ação como
disposição. Para ele, o ~
um contingente indeterminado, TO àÓpl<JTOV, que, por natureza, não é mais
probabilidade de ~.
assim do que não assim (isto é, está ontologicamente aberto igualmente a um
vel; a batalha naval, ao 0IIIIIi
e outro dos contrários), contrapondo-a justamente ao contingente natural,
menos alguns dos quais"
lTE<pUKÓS, que ocorre o mais das vezes assim, embora sempre possa ocorrer
o que a tornaria um cIIIIIIIi
de outro modo (I 13 32b4~22); na mesma direção, ele escreve em EN V 12
que a ablução matinal dd
Comentários I I83
•
pelas razões a serem expostas no comentário a III 7: a disposição caracteriza (a disposição étia é~
psicologicamente o agente, não determina o estatuto ontológico da ação. A hurnanOS;po~g
expressão TO WS'ElTl TO lTOÀú ocorre em outras quatro passagens da EN: em tutivamente i .
V I 1129a24 é empregada para assinalar que, costumeiramente, se um termo de agir assim e ......
tem vários sentidos, seu contrário também os terá; em VIII 13 1161a27,para como se fosse um
ressaltar que freqüentemente pessoas de mesma idade e de mesmo grupo têm é em função da -
os mesmos hábitos; em IX 2 1164b31,para exprimir que usualmente devemos bilidade do caráter
retribuir os favores recebidos antes de nos servir de nossas posses para gozá~las
com amigos. Enfim, em I 11094b21 para pôr em relevo que de premissas do
tipo TO WS'ElTl TO lTOÀú as conclusões serão de mesmo tipo; esta passagem fins. Aristóteles
é evocada particularmente, por muitos comentadores, para evidenciar que a
ação cai sob o registro do mais das vezes. Deve-se, porém, observar que, na
linha precedente, Aristóteles assinalou que de coisas instáveis (entre as quais
inclui o bem da ação, 1094b17) as conclusões serão igualmente instáveis, o que
faz com que tenhamos dois grupos, um TO Ws ElTl TO TTOÀÚ e outro instável
ou àÓpL<JTOV, o que concorda singularmente com a leitura proposta aqui de
1112b8~9,a saber, que TO WS ElTl TO lToÀú caracteriza o objeto de produção,
não a ação, enquanto o instável ou àÓpL<JTOV demarca o objeto de ação, não
o de produção. A razão pela qual se procura colocar a ação sob a égide do TO
Ws ElTl TO lToÀú é o fato que os atos humanos são seguidamente constantes, instrumentos mc:diIIII
de sorte que podemos prever com muita probabilidade ou mesmo adivinhar o (if.1112b15~16e
que um agente fará; mais ainda, para que seja possível a deliberação, é preciso aos instrumentos
um domínio constante que torne possível o cálculo, pois, se fosse inteiramente também TO avsµ
indeterminado, nenhuma previsão seria possível, e se delibera somente com isso alte~e seu .
base em previsões. A isso se deve observar que, em primeiro lugar, a ação se consegumte, uma
faz com um contorno de produções ou detalhes técnicos, que estão, estes, de- noção moderna de .
finitivamente sob a custódia do mais das vezes, TO Ws ElTl TO lToÀú. A parte do ponto de vista
técnica envolvida em toda ação é perfeitamente previsível segundo um saber
ou competência. Em segundo lugar, as decisões concernentes propriamente
às ações (e não às produções envolvidas nas ações) podem basear-se em uma
constância e regularidade não porque a ação ela própria segue a regra do TO um fim que lhe é ~
Ws ElTl TO rroxú, mas porque o estado psicológico dos agentes tende a solidi- não pode servir de -i
ficar-se em disposições, e disposições práticas respondem de modo constante a exceção do fim ~
situações semelhantes. É o fenômeno psicológico do caráter estável do agente Esta solução fará '-I
Comentários I ISS
incide sobre os fins, mas sobre os meios, isto é, não sobre os fins como fins. podendo gerar fins
Com efeito, em nosso progresso em direção ao fim último, cada fim se torna fundamentalmente
um meio com vistas ao fim último, portanto todos os fins são meios e objeto conduz ao desejo, mas
de deliberação, exceto o último fim" (The Nicomachean Ethics, Oxford 1836). À da ética moderna, qat
objeção que precisamente o fim mais importante fica fora da alçada da razão os bons fins engens'
deliberativa, a saber, o fim último, se pode responder que a felicidade não é um do variegado, da -
fim ao lado dos outros, mas um fim que inclui ou engloba todos os outros (cf. (por impulso, apetite .
I 5 1097b15~20; MM I 2 1184a15~29, especialmente 28~29: "a felicidade não racionalmente as c~
é algo separado dos fins, mas é estes fins"); deliberando sobre os fins a título e plasticidade da ~
de meios para a felicidade, deliberamos sobre o conteúdo da felicidade, pois homem, sem que os 6IIIIIiI
ela não é outra coisa senão estes fins. um único modo de ~
Estas observações atenuam em muito o que parece inaceitável na restrição razões concernentes .....
da deliberação aos meios, mas permanecem ambas em um âmbito negativo, espaço do inusitado, ~
pois mostram que, sob certas considerações, pelo menos deliberamos sobre homem, a saber, a ~
outra coisa que meramente os meios no sentido moderno do termo. A elas avaliativo forte na ~
mas.
deve-se acrescentar, creio, outra observação, de caráter positivo, sobre a tese campo do desejo (unifiaj
de Aristóteles, que não visa a atenuar a tese, mas a compreender seu signifi~ segunda ordem),
cado. O comentário anônimo remete em geral aos Analíticos, isto é, compara a própria não é motivo JlIIIII
em.
posição do fim em uma deliberação à dos princípios em uma demonstração; sição moral, ela não o p
assim como não podemos demonstrar os princípios, sob pena de cair em modernos significa
uma redução ao infinito, assim também não podemos deliberar sobre os fins, foram atribuídas à raz3Di
sob pena de uma progressão infinita. A felicidade como fim supremo serve que o homem não tem cIej
de freio a esta progressão, na medida em que se admite que pelo menos um qualquer coisa que ~.
fim escapa à deliberação; esta admissão é suficientemente forte para validar a escala de preferência; na di
tese de Aristóteles. A comparação é esclarecedora do ponto de vista lógico, ao aos estudos, a vida c<XUIIIII
qual se pode ajuntar ainda uma observação do ponto de vista propriamente mas isto não é exclu~
ético. Aristóteles pretende estabelecer as bases de uma moral da preferência ausência impede a vida Q
fundada em razões. Argumentos racionais objetivos são parte essencial da a restrição da razão priãI
escolha operada pelo agente, mas não são os únicos que devem ser levados é solidária desta perspeai
em conta, pois além deles há o fator primeiro, que inaugura a busca, o fato de ética da preferência, Ya E
haver tais e tais fins. O procedimento de escolha por razões a partir dos fins décima segunda e décioa
pode pôr impedimentos ou mesmo censurar a busca de tal fim (quando, por 1112b15 tendo posto •
exemplo, todo meio disponível é moralmente inaceitável); a razão não é, assim, texto TO TÉÀOS, "tendo,.
vista como uma mera escrava das paixões. Tampouco, porém, é vista como 1112b15-20 Com tJlj
~a busca, o fato de ética da preferência, ver E. Tugendhat, Lições sobre Ética, Vozes 1997, terceira,
~ a partir dos fins décima segunda e décima terceira lições).
~ 6m (quando, por 1112b15 tendo posto um fim. Sigo a vulgata; Kb e Aspásio fornecem como
lazão não é, assim, texto TO TÉÀ.OS, "tendo posto o fim", que Bywater introduz em sua edição.
.-ãn. é vista como 1112b15-20 Com efeito, nem o médico delibera ... que é a última na ordem da
Comentários I I87
descoberta. Pace Joachim, que escreve que, "embora lTpOalpE<JLS não signifique apresentação geral da.
'preferênciá, i. e., não envolva essencialmente escolha entre alternativas, em aos fins no plural:p.a
muitos casos a deliberação será de fato um ato de pesar alternativas", a análise próprio, sem afirm.ar 1
aristotélica, ao contrário, consiste justamente na tentativa de pensar a moral por si próprio, como a
sob a perspectiva de uma preferência baseada em razões, a rrpocípemc envol- 1112b33 O fim. ,.
vendo essencialmente a escolha entre alternativas. Para toda esta passagem, é (IV Etrj, "portanto, m.
conveniente consultar Z 71032a23~b31, que exemplifica casos de deliberação, estabelecido, mas a ~
especialmente a do médico para curar um paciente. ter, OUK yàp (IV EIT).I
1112b21 como uma construção geométrica. Stewart escreve que" devemos (1112b11). A ~ti
supor que a referência é ao que é conhecido como método analítico de prova de uma conclusão •
em geometria - um método que Proclo e Diógenes Laércio dizem que Platão 1113al~2 pois.w."
inventou, embora haja traços de seu emprego antes de sua época", Aristóte- lismo e retomada em ..
les compara em grandes termos a busca de meios a partir de um fim a um IV 11 1126b4 e Vil SI
problema de construção em geometria; apressa~se, contudo, a distinguir a 1113a2Sesemprr~
deliberação da construção matemática, ainda que sejam ambas casos de in- soal, como sugere ~
por.
vestigação, (~TTj<JLS. um TlS como s~"
1112b30·31 também nas restantes, investiga-se ora por qual meio, ora como ocor- que é confirmado
rerá ou através de quê. A frase não é clara. O restante parece serem as outras 1113a2~5parecem daIii
ações (Michelet supôs que se tratava das outras categorias, mas não é convin- 1113a3 com a ~
cente). A disjunção deve ficar entre os instrumentos e o modo de agir; se o ponto prima facie panIII
primeiro membro ÓTE µEV OL' oL estiver pelos instrumentos (OL' oL sendo é o objeto de urna ~
neutro), então ÓTE OE rrwS" ~ oLà TlVOS está pelo modo de agir e ~ tem valor ver algo a mais nesta otIiII
explicativo ("isto é, através de quê"). Pode-se, no entanto, ver em OL' oL um valendo-se, porém. de.
masculino ("através de quem"), de sorte que a disjunção seria apresentada em que ao objeto sobre 01
seguida ("como ou através de quê"). a propósito de 11~
1112b33 as ações são em vista de outras coisas. Gauthier, fazendo eco a Ra- certamente o tem ~~
msauer, considera que Aristóteles "se contradiz formalmente ao recusar ex- a escolha deliberada. ..
pressamente à ação (lTpâÇLS) a imanência que tinha reconhecido como sua berada é o objeto de dIl
característica própria", No entanto, como já tinha observado Stewart, se o põe o agente em açio; •
bem-agir, a El!1Tpaçla, é descrito como tendo seu fim em si mesma, cada ação, obtido o objeto de ~
porém, é feita em vista de outra coisa, a saber, seu fim, o que não contradiz (VII 5 1147a28). 0b.iII
a imanência: faço á, á' e á" para obter o fim T, a ação completa a incluindo futuro, como não ~
á, á', á" e T (I 1 1094a18: EL o~ TL TÉÀOS E<JTl TWV lTpaKTwv Ô Ol' amo o que prescreve a ~
~ouÀóµE9a, "se há um fim das ações que desejamos por si próprio"). Nesta esteja a ponto de ~
Comentários I I89
obviamente bem o fato de tomar decisões por deliberação, sem que se siga a Na verdade, esta láaI
isso uma ação, particularmente em relação aos casos em que essas promessas versão paralela da EE (H I
de ação não se realizam quando as circunstâncias requerem sua efetivação, fe~ é dito que o agente pára~
nômeno humano, particularmente humano: ele examina, por exemplo, a figura ~ àpx~TfJS )'EVÉ<JEWS;"
do homem acrático que delibera previamente sobre o que fará ou deixará de berta deliberativa e o ~
fazer, mas que fraqueja no ato mesmo de fazer ou deixar de fazer. O acrático TO ~YO{,µEVOV tem o ..
delibera, mas Ialta-lhe no momento oportuno o assentimento ao qual se segue mente o que inicia a .-
imediatamente a ação, nada o impedindo fisicamente. no de incess. animal, ArisIiii
1113a4 é o que foi preferido. Bywater prefere o texto de K , KPl9Év, "discri-
b
parte que comanda (9"
minado, julgado", baseado em 1113a11. No entanto, Alexandre e Aspásio lêem do animal seguind~a. ~
com a vulgata TTpOKpl9Év, o que é um forte apoio para guardar esta leitura. centopéia, ele observa ~
Embora o verbo TTpOKTLVWtenha os dois significados de rrpó, "preferir" e "dis- (16 713a32), o carangmj!
criminar anteriormente", manifestando, portanto, a mesma ambigüidade do patas que comandam. ~
rrpó de TTpoaLpE<JlS, ele é preponderantemente usado no sentido de "preferir uma perna funciona ~
algo a outra coisa', o que é significativo nesta passagem. TOV TTOOU TOV ~Yo(~
1113a6 e ao seu condutor. Aspásio sugere a explicação seguinte: "isto é, ao o sentido daquilo que ~
intelecto" (74,32); a glosa fez fortuna, tanto mais que TO ~)'O{,µEVOV foi cedo o sentido em questão ~
assimilado ao ~YEµOVlKÓV estóico, o princípio diretor da alma, a razão. A frase criança é imperfeita. da~
é então tomada como explicativa, KaL tendo uma função expletiva. O comen- criança, mas também a.~
tário anônimo vai na mesma direção (152, 32). Joachim Perin (Paris, 1548) a 1260a33; o sentido aqui"
traduziu por "arque ad eam animi sui partem, quae tenet principatum"; Denis mas se deve observar ~
Lambin (Paris, 1558), que a traduziu por "et ad eam sui partem quae praeest, em exame, trata-se de _
atque imperai', acrescentou em nota que "nempe rationern seu mentem po~ genitivo devendo ser ~
tius", A Ethica vetus lê, porém, "requiescit enim unusquisque querens quomodo mostrar que, uma vez ...
operabitur, quando in se ipsum reduxerit principium, et in anrecedentern id", põe a buscá-lo como SCII~
no mesmo sentido Grosseteste: "quiescit enim unusquisque querens qualirer lízá-lo, isto é, traz o ~
operabitur, quando in se ipsum reducet principium, et ipsius in anrecedens", (o membro do corpo. ~
Lendo na recensio recognita "et ipsum in anrecedens", Tomás de Aquino comenta lê exatamente neste soai
do seguinte modo: se o agente, ao trazer o princípio da ação a si mesmo, querer, e nosso querer i. ,
percebe que há vários princípios, ele busca o princípio precedente, que não é deliberada, procuranlOl5~
senão o último meio, o meio a partir do qual a ação tem início. Insurgindo-se antecedens é como a palIIII!
contra esta lição, Gauthier escreve que "se coloca assim uma afirmação banal assim, voltar à leitura dr~
e já expressa no lugar do único texto decisivo de Aristóteles sobre a faculdade mação do intelecto CDlDDI
de que fez a sede da decisão" (Comment., ad locum). condições para cessar die.
Comentários I I9I
algo bom, e esta consideração é minha consideração) e à parte que comandará povo votava o que o GIl
a ação, decidindo por qual último meio se dará enfim início à obtenção do sem o consentimenm-4
a.
objeto desejado: abro a maçaneta, dou um passo à frente etc. a razão é que o c~
Il13a7 é isto, com efeito, o que é objeto de escolha deliberada. Se, na frase anterior, meramente executar
TO ~yOÚµEvOV for tomado como quer Aspásio, no sentido do intelecto, então do corpo pôr em m-I
TO rrpompoúrevov está na voz média: "esta é a parte que decide". Coerente- a ele questioná-lo, I
mente, Perion a traduz por "haec enim pars est quae deligit" e Lambin por 1113a12 desejam. ..
"haec enim est quae consilium capit"; assim também Gaurhier ("pois é ela que T~V !3oÚÀT]<JlV, "~
decide"). Porém, se a passagem for entendida no sentido que propõe Tomás de por um manuscrito ~
Aquino, então TO rrpompoúievov
erente, Grosseteste
está na voz passiva; de modo igualmente co-
e a vetus Ethica dão como texto "hoc enim est quod eligitur':
melhor"), Aspásio cia..
porém, também a ~
que me parece ser a boa tradução (Lambin, que protesta contra esta tradução, segundo o querer, ~
acrescenta em nota que "outros traduziram por 'isto é, pois, o que é escolhido' excluindo-o dos dois ~
<hoc enim est quod eligitur>, mas não está correto; Tomás de Aquino interpretou é bem atestada e pc:r-1
erroneamente esta passagem por culpa dos tradutores antigos"). tivo, de modo que se fiII
1113aS·9 pois os reis anunciavam ao povo o que haviam escolhido por deliberação. tipo de desejo, e não CIIII
Em In 4 1112a15, Aristóteles se serviu do vocabulário democrático ateniense precedente~ A~
para reíerir-se à escolha deliberada; aqui, recua aos tempos homéricos, fazendo tivo (ÕpEÇLS ~ouXE~
apelo ao modo antigo de decisão, que excluía o povo do ato deliberativo, reser- desejo à exclusão das ...
vado exclusivamente aos chefes. Para Aspásio, contudo, os reis representam a T~V ~OÚÀEU<JLV. .~
parte deliberativa, enquanto o povo é metáfora do desejo: o desejo votando as
decisões e coníormando-se a elas, engendra~se a escolha deliberada (74,33~75,3).
O comentário anônimo vai no mesmo sentido: o povo vota sobre o que foi
de_
decidido, assim como o desejo assente ao intelecto e conjuntamente engendram
a ação (151,1~3). Ambos tomam as constituições antigas pelas modernas, pois, Neste capítulo,
nos tempos homéricos, os reis anunciavam ao povo as decisões que haviam com as teses platôn.ia e~
tomado nos conselhos, cabendo ao povo unicamente executar o que havia sido como condição necrssW
decidido, sem nenhum poder de votação. A paráfrase oferece outra explica- obtida mediante c~
ção, que está, contudo, igualmente baseada na modernização democrática ambas; ao contrário. dai
dos conselhos antigos, democratização, aliás, extremada: os reis representam análise da ação. Seu •
0..
o querer; o povo, a escolha deliberada. Nos três casos, o exemplo é lido à luz como fim de uma ação..
da interpretação de III 4. Se, como proponho, o ponto consiste em trazer a não é algo que mera
si o princípio e àquilo que o põe em marcha, compreende-se melhor por que ção necessária da lógica ~
Aristóteles abandona o exemplo da Atenas democrática (na qual de fato o pelo prudente. Este aIO.
I92 I Ethica Nicomachea I 13 - III 8
Irtt que comandará povo votava o que o Conselho preparava como decisão, mas que ficava inane
Iiício à obtenção do sem o consentimento ~ou recusa - popular) e se volta aos tempos homéricos:
ac. a razão é que o conselho dos chefes decidia soberanamente, cabendo ao povo
Se. na &ase anterior, meramente executar a tarefa, assim como meramente incumbe a um membro
~do intelecto, então do corpo pôr em marcha o movimento decidido por deliberação, sem caber
~decide". Coerente- a ele questioná-lo,
Iigit" e Lambin por 1113a12 desejamos conformemente à deliberação. Gaurhier e Irwin lêem KaTà
Lia ("pois é ela que T~V ~OÚÀll<JLV, "segundo o querer: pois, embora esta lição seja dada unicamente
~ propõe Tomás de por um manuscrito (Mb, que, como o próprio Gauthier comenta, "não é o
IOdo igualmente co- melhor'), Aspásio cita esta leitura em primeiro lugar (75, 11), mencionando,
ID est quod eligitur", porém, também a outra, que adotei (KaTà T~V ~OÚÀEU<JlV). Para quem lê
DDtta esta tradução, segundo o querer, trata-se de restringir o objeto de escolha deliberada ao querer,
I.o que é escolhido' excluindo-o dos dois outros tipos de desejo. No entanto, KaTà T~V ~OÚÀEU<JLV
iAquino interpretou é bem atestada e permite interpretar a tese aristotélica de modo não restri-
âgos"). tivo, de modo que se faça com que a escolha deliberada opere sobre qualquer
Ihdo por deliberação. tipo de desejo, e não exclusivamente sobre um só. Nas linhas imediatamente
lDOCráticoateniense precedentes, Aristóteles escreve que a escolha deliberada é o desejo delibera-
Loméricos, fazendo tivo (ÕpEÇLS ~OUÀEUTlK1Í) do que está em nosso poder, não que é um único
,deliberativo, reser- desejo à exclusão dos outros, o que favorece a leitura não restritiva de KaTà
15 Ris representam a T~V ~OÚÀEU<JLV.
10 desejo votando as
iIJcr.uia (74,33~75,3).
I116
lDCl sobre o que foi
tamerlte engendram
~ modernas, pois, Neste capítulo, de estrutura aparentemente dialética Uá que há o confronto
b:isões que haviam com as teses platônica e sofística), Aristóteles sustenta a tese do bem aparente
Dr o que havia sido como condição necessária, mas não suficiente, do bem. Esta tese, ainda que
tRce outra explica- obtida mediante contraste com as duas outras, não é o resultado dialético de
ização democrática ambas; ao contrário, ela inaugura uma perspectiva inteiramente nova para a
as reis representam análise da ação. Seu significado filosófico é grande: todo objeto, para figurar
~lo é lido à luz como fim de uma ação, tem de ser tomado como tal pelo agente. O bem aparente
IIDSÍSte em trazer a não é algo que mera ou enganosamente figura como um bem; é uma condi-
~ melhor por que ção necessária da lógica do bem, seja ele perseguido pelo homem vulgar ou
l(na qual de fato o pelo prudente. Este ato de tomar algo como um bem faz com que o contexto
Comentários I I93
intencional seja inevitável no domínio prático. Condições de intencionalidade é primeiramente a COOI
não tornam relativo o domínio moral, mas o incrustam em uma região opaca, lídade, que pode, seoa
a dos desejos e intenções, da qual não tem mais como sair. É neste capítulo bem aparente no semid
que Aristóteles afirma que o homem moral funciona como que um padrão e proposições práticas i p
medida das coisas belas e agradáveis, afirmação reiterada na Ethica Nicomachea, uma passagem do t» A
mas que não encontra nenhum paralelo na Ethica Eudemia. que o bom e o mau. COI
Comentários I I95
ser um bem aparente é uma condição necessária (daí ser ~OUÀllTÉOV), embora comenta, a respeito
não suficiente de algo ser de fato bom para alguém. desejo do bem (~. ..
Esta tese de Aristóteles é interpretada de modo muito diverso por Gauthier, ~oÉoS'), há uma di6aII
que pode ser tomado como representante de uma forte corrente de interpre-
tação: "a aspiração <le souhait, como Gaurhier traduz ~OÚÀll<JlS> é o princípio
de uma ação verdadeiramente humana, que é a ação virtuosa, o apetite e o
impulso sendo o princípio de ações de tipo animal, que são as ações viciosas.
O objeto de desejo é o bem (aparente, se se trata do desejo não-racional: real,
se se trata da aspiração), isto é, o fim" (Comm. p. 211). Gauthier apóia-se em
A 7 1072a27~28, Em9uµllToV µEV yàp TO <palVÓµEVOV àyu9óv, ~OUÀllTOV
OE lTpWTOV TO OV KaÀÓV, "o bem aparente é objeto do apetite, mas o bem que criticável; o termo
é real é o objeto primeiro do querer". Deve-se, no entanto, observar que, pri- (o que é expr~
meiro, esta passagem da Metafísica responde a outros problemas e talvez não o traduz, em I 9 11
se a possa ligar diretamente com o que se disputa aqui; mesmo assim, deve-se
observar, em segundo lugar, que a oposição se situa mais precisamente entre
um objeto de desejo, TO Em9uµllTÓV, que pode ser falso, e o objeto primeiro
de desejo, TO TIpWTOV ~OUÀllTÓV, que tem de corresponder àquilo que é de
fato bom (para que o sistema do mundo funcione ordenadamente); terceiro,
a passagem é concluída pela afirmação, mencionada na nota anterior, que
desejamos porque parece bom, não que parece bom porque desejamos, o que
volta a afirmar o contexto intencional inevitável em que se encontra o bem,
seja ele de fato ou somente em aparência um bem. Por um lado, Aristóteles
pode escrever que o objeto de desejo" é o bem ou o bem aparente" (De Anima
III 10 433a28~29; Phys. II 3195a26), não porque quer salientar que um tipo de
desejo (o querer) apreende o bem, enquanto os outros dois tipos (o impulso e o
apetite) apreendem o bem aparente, mas porque, dado o fenômeno intencional
que marca todo objeto de desejo, o que é buscado, do ponto de vista do objeto, o que é posto em
pode ser de fato um bem ou meramente aparecer como tal, ambigüidade que ralmente boas.
pervade o querer assim como o impulso ou o apetite. Por outro lado, Arisró-
teles escreve que "em todos estes casos o que é realmente éo que parece tal ao
homem virtuoso", TO <palVÓµEVOV TÇJ <JlTOUOaL(tl (X 5 1176a15~16) - o bem
aparente não é o que parece tal somente ao homem vicioso, mas também o
que parece tal ao homem virtuoso, com o detalhe que, por definição, o que clima; o barômetro i
a este último parece um bem é de fato um bem. Em Top. VI 8, Aristóteles em que ele próprio oáD
ide vista do objeto, o que é posto em realce é o fato de suas disposições serem virtuosas ou mo-
Iambigüidade que ralmente boas.
IIJ[I'O lado, Arisró- 1113a30,31 a verdade se manifesta a ele. Como escreveu E. Moore (An
~., que parece tal ao Introduction, 1878), o orrouônioç não é o padrão ou a justa medida, "mas sua
1íal5~16) - o bem reconhecida conformidade ao padrão permite-nos usá-lo com um substituto a
li), mas também o ele. Similarmente, não é o barômetro, mas a pressão da atmosfera que regula o
li' definição, o que clima; o barômetro é somente um meio conveniente para marcar os fenômenos
I VI 8, Aristóteles em que ele próprio não influi". O bem é ajusta medida, e o prudente é aquele
Comentários I I97
T
a quem a justa medida aparece como tal; não há nenhuma
1113a33 como sefosse um padrão e uma medida delas. O homem de valor serve
aqui,
e
I
de critério para sabermos o que fazer, pois o que é realmente bom parece a ele
como um bem; cf. IV 14 1128a32, IX 4 1166a12~13, IX 9 1170a21~22, X 5
1176a15~16. O comentário anônimo o apresenta como KpLT~pLOV Kal. Kavwv. opinião.
Gauthier comenta que "a regulação objetiva de Platão é substituída, em certa 1113b5~6as
medida, por uma regulação subjetiva", Isso pode ser enganador, pois não há
propriamente uma "regulação" subjetiva, mas somente uma "condição" subjetiva
para que o bem apareça ou seja considerado como taL Aristóteles permanece
fiel à tese de uma verdade na ação, um bem objetivo, mas reconhece o ambiente
subjetivo ou intencional como inevitavelmente envolvendo o domínio prático.
Para cada situação, há uma e unicamente uma coisa que deve ser feita, mas isto
não é isento ou independente do modo de tomar algo a certo título. Aristóte-
les não abandona a objetividade do bem; o que ele abandona é a naturalidade
do bem, agora para sempre imerso em um contexto intencionaL O juízo do
homem de valor não é constitutivo do ser bom das coisas; ele é o guia em que
podemos confiar para atravessar o espesso véu da intensionalidade lógica em
que se exprimem as proposições práticas. Dirlmeier, por sua vez, confunde
uma tese lógica com uma observação sociológica ao dizer que as normas éticas agente para sua otu:4
últimas para Aristóteles são, na Ethica Nicomachea, "as tradições nobres de seu 1113b6 Assim, p"
povo", visto que o <JTTOUOaLOS lhes serve de regra. KaL ~ àpET~), que
1113bl Buscam, ao menos. Sigo Susemihl, que lê yoUv (Mb), que tem um OE KaL ~ àPETTÍ da
valor restritivo, "pelo menos", "na medida em que"; Bekker ou Bywater lêem
ow (KbLb), "assim", "em conclusão".
'.
"
aridade aqui, responsabilidade moral (1114a3~31);(c) exame de uma objeção, segundo a qual
e umidade, e não somos senhores do modo como as coisas nos aparecem e, por isso, não
podemos ser responsáveis de nossas disposições (1114a31 - 1114b25).
ik valor serve
parece a ele
11 1113b4 que concernem a elas. Como Grant observa, não é claro a que
1b21~22,X 5 se refere rrepl TalJTa; a paráfrase propõe "os meios"; Srewarr é de mesma
v KUl Kavwv. opinião.
ida. em certa 1113b5~6 as atividades das virtudes. Segundo Gauthier, Aristóteles diz ex-
; pois não há pressamente o contrário em VI 13 1144a20~22, e ele vê nesta passagem uma
ição" subjetiva "novamanifestação da contradição irredutível que opõe à doutrina da imanên-
es permanece cia da ação moral a análise psicológica da ação", entendendo por "atividades
a= o ambiente das virtudes" o ato de pôr os fins. Gauthier é seguramente excessivo;embora,
1ÚnÍ0prático. como já observou Grant, a expressão não seja usual (Aristóteles escreve de
m.,masisto preferência ol KaT' àpET~V EVÉPYElal, "as atividades segundo uma virtude"),
alo. Aristóte- ela não compromete a doutrina aristotélica, pois simplesmente alude às ativi-
Inaruralidade dades que os homens praticam a partir de suas disposições ou virtudes morais,
ti. O juízo do e estas atividades se referem à busca de meios para realizar os fins almejados,
_gwaemque não à própria atividade de pôr os fins. A passagem de VI 13 mencionada por
ade lógica em Gaurhier, por sua vez, precisa que a virtude põe o fim, o que não é em nada
IEZ, confunde contraditório com a busca dos meios pelas atividades postas em operação pelo
aonnas éticas agente para sua obtenção.
nobres de seu 1113b6 Assim, por certo a virtude. Adoto o texto de Bywater e Susemihl (o~
Kal ~ àpET~), que seguem a paráfrase, ao contrário de Bekker, que mantém o
~quetem um 8É Kal ~ àpET~ da vulgata. Como escreveRassow, "afrase é uma conseqüência
Bywater lêem do que vem antes" (Forsch. ad loc.).
1113b7~11 Com eftito, naquelas coisas .,. quando é desonroso. Expressão por
excelência da tese aristotélica concernente à liberdade ao agir: no domínio da
ação humana, em função da presença da razão como procedimento de decisão,
àquilo a que posso dizer sim posso igualmente dizer não. A ação que faço está
logicamente aberta ao sim e ao não; pela decisão que tomo, ela se faz assim
lo é concluído ou de outro modo.
cp1e "ninguém 1113b13 e se é isto sermos bons e sermos maus. O imperfeito ~v não tem
RIr" (1113b14 valor temporal de passado, mas faz referência a uma suposição retomada; os
,problemas de dativos àya9Ôl5' e KaKoLS,por sua vez, resultam do fenômeno lingüístico de
Comentários I I99
atração por E<P' ~µlv que lhes segue, não respondendo, como bem mostrou
Trendelenburg (Rhein. Museum II 1828, P: 457), ao sintagma filosófico aristo-
télico TO àyue0 EtVaL.
1113b13 está em nosso poder, por conseguinte. A expressão ocorreu diversas
vezes ao longo deste parágrafo; ela pode funcionar como sinônimo de objeto
de escolha deliberada. Alexandre, no de Fato, define TO E<P' ~µlv como TO
yL yVÓµEVOV µETà T~S KUTà ÀÓyov TE KUl Kplmv O"UyKUTUeÉO"EúlS, "o que
está acompanhado de assentimento por razão ejuízo", ou, sucintamente, "as-
sentimento raciona!", ÀOyUCT]O"uyKuTáeEO"LS; todo ele é voluntário, mas nem
todo voluntário é E<P' ~µlv (o que coincide com a apresentação do objeto de
deliberação em III 4 11l1b7~8); nos Problemas Éticos XII, Alexandre volta a
apresentá-lo como "sendo os objetos voluntários que são objetos de deliberação
e por deliberação" (160,1). Donini propôs que a primeira pessoa do plural não
é acidental, "pois ninguém é deixado a sós para decidir pela virtude ou pelo
vício, todo mundo é filho de uma família e membro de uma cidade, que põe
à disposição, em teoria, de todo indivíduo os recursos mínimos para obter a
excelência moral; a virtude depende, assim, e seguramente, de um nós" (Ethos,
p. 119). Isto é uma verdade sociológica importante, mas o ponto de Aristóteles
consiste em assinalar que cada um, ao agir, é senhor do sim e do não quanto
aos meios, e nisto a decisão é individual, por maiores que sejam as influências,
inegáveis, do meio social: nós somos senhores de nossas ações porque cada um
de nós é senhor de suas ações.
1113b14-15 ninguém é miserável voluntariamente nem afortunado involunta~
riamente. Sigo o texto de Bywater: µuKápLOS' parece ser a leitura de todos os
manuscritos, Bekker e Susemihl adotando a correção µáKUp proposta por
Victorius; o sentido, porém, é o mesmo. O comentário anônimo menciona
o verso de Epicarmo OV&lS ÉKWV TIOVllPOs- 000' aTIUV EXúlV, "ninguém é
miserável voluntariamente nem vítima de infortúnio", que Gauthier retoma.
O verso citado por Aristóteles aparece também no diálogo platônico apócrifo
Do justo: Sócrates o cita, com efeito, na forma proposta por Victorius, OOOElS'
ÉKWV TIOVllPOS ovo' aKúlv µáKap. Sócrates quer ver aqui que ninguém é mau
voluntariamente nem feliz involuntariamente; o verso, todavia, parece dizer
antes que "ninguém é infeliz voluntariamente, nem feliz involuntariamente".
O termo TIOVllPÓS tem, com efeito, dois sentidos: infeliz e maldoso. Aristóteles
Comentários I 20I
1113b31-32 as penas são dobradas. Lei atribuída a Pítaco, tirano de Mití-
Iene no início do séc. VI; cf. IX 6 1167a32; Pol. H 121274b18~23; Rhet. II 25
1402b9~12.Como observa Irwin, "Aristóteles não supõe que sejamos respon~
sáveispela ação causada pela ignorância, mas somente que somos responsáveis
pela ignorância que causou a ação".
1114a4 a não se inteirar. Figura aparentemente anódina do fracasso moral,
o homem que não se preocupa com os outros faz-se acompanhar, no entanto,
do injusto e do intemperante, muito provavelmente porque o comportamento
moral tem sua fonte no ato de interessar-se pelo outro, não ser negligente, em
suma, demonstrar µEÀÉTll, cura, enquanto o comportamento imoral encontra
suas raízes no fenômeno do descuido, do desinteresse.
1114all-12 mais ainda, é irracional ... não pretenda ser intemperante. Rassow
propôs deslocar esta frase à linha seguinte, após "eleé voluntariamente injusto";
mantive, porém, a ordem de Bekker, preservada também por Bywater.
1114a12 não ignorando. Pode-se entender que o agente não ignora (i) as
circunstâncias particulares no interior das quais se produzem as ações; sendo
elas,por conseguinte, voluntárias, ele se torna injusto voluntariamente. Ou bem
que o agente não ignora que (ii) se tornará injusto ao praticar atos injustos.
O argumento desta seção e da parte subseqüente do argumento favorecem a
segunda leitura.
1114a14 eficará justo. A ética aristotélica é recalcitrante ao perdão, assim
como ignora a noção de conversão, que, como nota Gauthier, apoiando-se em
P. Mesnard, "é tão essencial ao cristianismo".
1114a15 Contudo. Adoto a correção proposta por Rassow (Kal TOl), que
Susemihl introduz em seu texto; Bywater segue Bekker, guardando a leitura
da vu 1gata, KaL," 11"e.
1114a17 tendo dissipado. Como observa Grant, "jogar forá' ou "abandonar"
é o único sentido em que TIpOLEO"em é utilizado na ética; o objeto do verbo,
não explicitado no texto grego, é "a saúde".
1114a18 o lançar. Os manuscritos mais importantes lêem "lançar e atirar",
alguns poucos fornecem, porém, como leitura "pegar e atirar". É possível que
"e atirar" (Kal p1t/!m) tenha sido introduzido no texto como glosa de ~aÀElv,
e, uma vez introduzido, tenha provocado a alteração de ~a'\Elv em Àa~Elv,
"pegar", ou bem que, produzida acidentalmente a alteração de ~aÀElv em
Comentários I 203
1114bl-3 se, então ... do modo como aparece. Os comentadores modernos
vêem nesta frase uma primeira réplica à objeção formulada em 1114a31~b1.
Segundo Susemihl, 1114a31~b1seria a inteira objeção, à qual todo o resto da
passagem, de 1114b1 a b16, forneceria a resposta; Bywater, no entanto, divide
o texto diferentemente: à objeção inicial uma primeira réplica é sugerida em
1114b1~3;em seqüência a esta resposta, a objeção é retomada em 1114b3~l1,
à qual uma nova resposta é dada em 1114bll-16. A escansão de Bywater é
preferida pelos comentadores modernos; Irwin e Narali, por exemplo, a ado-
tam para a divisão e interpretação do texto. A passagem 1114b1~3EL µEV oDv
... amOs- a'l TLOS é tomada como uma primeira réplica em função sobretudo
de 1114b22~24,linhas nas quais Aristóteles afirma que somos causas coad-
juvantes das disposições e pomos os fim segundo a nossa natureza: como a
natureza prática é constituída por nosso caráter, e dele somos em parte causa,
então somos igualmente em parte causa do pôr os fins. Creio, porém, que se
perde deste modo a estrutura do argumento e, sobretudo, a força da resposta
de Aristóteles. Um sinal disso está no fato que o argumento é apresentado de
um modo curioso, com uma primeira réplica no interior da objeção, à qual
vem se ajuntar uma segunda resposta. Além disso, essa primeira réplica seria
simplesmente uma mera afirmação da tese aristotélica, a qual está, porém,
posta em questão pela objeção - como se ignorasse o que está sendo refutado.
Ainda, deve-se igualmente assinalar que µEV ow em 1114b2 é pouco apto a
introduzir uma réplica à objeção precedente (embora não impossível). O que
é mais importante, porém, é que se pode dar à objeção uma formulação mais
forte, se se considera que ela vai de 1114a31 a b11, à qual uma resposta con-
tundente é fornecida por Aristóteles. O argumento parece~me ser o seguinte,
a objeção estando dividida em três partes: (la, apresentação da tese geral)
"tendemos todos ao bem aparente, porém não somos senhores do modo como
aparece, mas tal qual cada um é, tal fim lhe aparece; se, portanto, cada um é de
certo modo causa para si mesmo da disposição, será ele causa de certo modo
também do modo como aparece"; (Ib, desenvolvimento quanto ao vício): "se
não o é <isto é, se não é senhor do modo como aparece, como é suposto nesta
objeção>, <então: início da apódose> ninguém é causa para si mesmo do agir mal,
mas faz a si estas coisas por ignorância do fim, acreditando que através delas se
obterá o melhor para si"; (lc, desenvolvimento quanto à virtude): "a tendência
Comentários I 205
voluntários>; a ambos, pois, de mesmo modo, ao bom e ao mau, o fim aparece
e se estabelece naturalmente ou de qualquer modo, mas o que quer que façam,
referem o resto a este fim. Então, ou bem um fim qualquer aparece a cada um
não por natureza, mas depende em algum sentido dele, ou bem o fim é natural;
<no fundo, isto pouco importa> mas, pelo fato de o homem virtuoso fazer o
que resta voluntariamente, a virtude é voluntária, e não menos voluntário será
o vício. Com efeito, do mesmo modo está presente no homem mau o agir por
si próprio nas ações, ainda que não no fim". O ponto principal de ataque à ob-
jeção, assim, é a afirmação que, qualquer que stja a natureza do fim - seja ele posto
naturalmente ou por nós mesmos -, o fato é que realizamos o resto (isto é, os
meios para obter o fim) por nossa própria escolha, o que nos torna autores de
nossas ações, ainda que não do fim. Trata-se de uma doutrina depurada ou
moderada da liberdade: se somos capazes de decidir soberanamente sobre os
meios para obter um fim, não precisando recorrer a outras causas do que as que
estão em nós mesmos, então somos causas do que fazemos e, conseqüentemente,
responsáveis de nossos atos. A partir desta tese moderada, que serve de solução
à objeção movendo-se no seu próprio campo (pois não precisa estabelecer que
pomos nós mesmos os fins, somente que deliberamos soberanamente sobre
os meios para realizar os fins, qualquer que seja o modo pelo qual os fins são
postos), Aristóteles poderá propor, em segundo lugar, que somos causa coad-
juvante de nossas disposições na medida em que somos causa plena de nossos
atos e que a conjunção de atos em um mesmo sentido cria a disposição; ora,
como o modo como aparece um fim está em relação com o modo como somos
e nossa natureza prática é determinada por nossas disposições, terminamos
por nos amoldar e de certo modo determinar que fim aparece a nós. Somos,
então, de certo modo causa do modo como o fim nos aparece, mas isso não é
condição para sermos senhores de certo modo de nossas disposições, é antes
sua conseqüência. O tom da objeção é fortemente platônico. Sobre o tema da
boa estirpe ou bom nascimento, Ev<pVta, ver Mênon 99 ss. Em X 10 1179b20~23
Aristóteles escreve que "uns crêem que os homens se tornam bons por natureza,
outros pelo hábito, outros pelo ensino; ora, é claro que não pertence a nós o por
natureza, mas pertence aos que são verdadeiramente bem-afortunados graças a
certas causas divinas"; o homem afortunado foi desenvolvido particularmente
na EE VIII 2, mas já não é tratado na EN.
Comentários I 207
visão; a isto Aristóteles contrapõe "o olho que provém da experiência" (VI 12
1143b13~14),através do qual o prudente vê corretamente o que deve ser feito.
1114b17 mas depende em algum sentido dele. Literalmente, "mas há algo
também dele", "de chez luto
1114b21 ainda que não nofim. Em grego: Kal el µ~ EV Ti!> TÉÀEL. A edi-
ção aldina apresenta Kal EV Ti!> TÉÀEL, "e no fim", enquanto K'' sugere Kal EV
TEÀEl<[l, "e no completo", que Cardwell (Aristotelis Ethic. Nicom. Oxford 1830)
refere a X 51176a17 TOV TEÀElOU Kal µaKaplou àv8pós, "do homem perfeito
e afortunado", de modo que se leia "e no homem perfeito".
1114b22 comofoi dito. Segundo Stewart, trata-se do que é sustentado pelo
oponente da objeção anterior; no entanto, parece mais natural ver aqui uma
remissão ao que foi exposto ao longo de todo o livro III, a saber, que a virtude
é voluntária, assim como o vício, o que é a tese aristotélica.
1114b23~24 pelo fato desermos de certa qualidade. Admissão complemen-
tar: como agimos voluntariamente e de nossas ações nascem as disposições,
somos causa coadjuvante delas e, nesta medida, como nossas disposições
constituem nossa segunda natureza ou qualidade moral, fixando nosso cará-
ter, pomos de certo modo os fins, pois eles aparecem em conformidade com
a natureza prática do agente. Isto significa que o ato de se representar algo
como um bem pode ser aperfeiçoado, o que de fato é uma característica do
intelecto (no caso, prático). Esta tese difere de modo crucial da que é apre~
sentada em 1114b1~3(que, a meu ver, faz parte da objeção), pois nela é dito
que, se sou senhor da disposição, isto ocorre porque sou senhor do modo
como aparece o fim (o agente tem de ser auealpETos para ser propriamente
responsável, o que o isenta de seus atos maus, embora, em relação aos bons,
ele seja sua causa por ter uma boa natureza, um olho natural pelo qual julga
corretamente o que é bom e mau); na tese aristotélica, apresentada aqui, ao
contrário, como as ações são voluntárias, então somos de certo modo causa
coadjuvante das disposições; como as disposições constituem nossa natureza
prática e os fins aparecem em conformidade com a qualidade do agente, en-
tão podemos controlar de certo modo como aparecem os fins. Assim, para
Aristóteles, não é porque somos senhores do modo como aparecem os fins
que controlamos de certo modo nossas disposições, mas porque somos (de
certo modo) causa de nossas disposições (ao sermos causa própria das ações
III 8
1114b26-30 Discutimos em geral ... como a reta razão ordena. Como mostra
Irwin, esta passagem resume os livros H e III 1~8,evidenciando a unidade
temática da discussão da virtude do caráter (I 13 - IH 8). Grant, porém,
considera que funciona como uma ponte de IH 1~8à discussão que se segue
imediatamente das virtudes particulares, possuindo marcas de ter sido acres-
centada para servir deliberadamente de ligação. Mesmo assim, IH 7 1114a3~10
retoma a doutrina da formação do caráter com base no que foi dito no início
de Il: contra Grant se pode dizer que, em geral, o livro III explora o que foi
explicitado em H, a saber, que a virtude ou bem é ou bem não ocorre sem
escolha deliberada, preparando a discussão sobre qual é a boa deliberação
prática, isto é, a prudência, discussão realizada ao longo do livro VI, após o
exame das virtudes particulares.
1114b30-15a3 Porém, as ações ... por esta razão são voluntárias. Susemihl
desloca esta passagem para o fim de IH 7, fazendo com que IH 8 contenha
somente o sumário. Spengel considera que estas linhas "talvez contenham
somente uma nota marginal", sem poder funcionar como conclusão, pois, se
fossem a conclusão do que foi estabelecido previamente, deveriam se limitar
a afirmar que o vício é tão voluntário quanto à virtude (Arist. Studien, P: 37);
no entanto, Aristóteles mostrou igualmente que as disposições introduzem
uma fixidez psicológica tal que influi no modo como aparecem os fins e,
qualquer que seja sua conseqüência para a ação moral, pelo menos de sua
criação nós somos responsáveis, mediante a decisão sobre os meios para re-
alizar uma ação.
Comentários I 209
1114b31 do início ao fim. De toda ação, somos senhores do início ao fim:
outra expressão da tese aristotélica que, para cada ação, se posso dizer sim,
então posso dizer não. Se distinguirmos entre ação básica e ação complexa,
então o homem é soberano de uma ação complexa porque soberano de cada
ação básica.