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Revista Brasileira de Geografia Física, v.07, n.

02, 2014, 327-349

Revista Brasileira de
Geografia Física
ISSN:1984-2295
Homepage: www.ufpe.br/rbgfe

A biogeografia na Origem das Espécies

Carlos Francisco Gerencsez Geraldino1


1
Doutorando em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas. Rua João Pandiá
Calógeras 51, Campinas-SP, CEP: 13083-870. Autor para correspondência.

Artigo recebido em 19/08/2013 e aceito em 02/12/2013


RESUMO
O artigo apresenta uma sistematização do papel que a distribuição geográfica cumpre na teoria da evolução dos seres
vivos proposta pelo naturalista britânico Charles Robert Darwin (1809-1882) em seu clássico On the origin of species
by means of natural selection, or the preservation of favored races in the struggle for life, originalmente publicado em
1859. No intuito de trazer subsídios à epistemologia da geografia física, a análise foi realizada a partir da leitura do
texto original comparado às modificações feitas ao longo das outras cinco subsequentes edições, tendo como foco os
argumentos contidos nos dois capítulos da obra destinados exclusivamente à biogeografia. Dentre os principais
resultados obtidos observou-se que a biogeografia – associada à avaliação de Darwin de processos climáticos,
geológicos, geomorfológicos e de demais elementos geográficos como latitude e longitude – participou como um
importante elemento de verificabilidade das teorias de seleção natural e da descendência comum servindo como eixo
empírico de análise para a crítica direcionada à argumentação criacionista, então hegemônica, de múltiplos centros de
criação realizada por meio do desígnio divino.

Palavras-chave: Darwin; Origem das Espécies; biogeografia; geografia física; epistemologia.

The biogeography in the Origin of Species

ABSTRACT
The article presents a systematization of the role that geographic distribution fulfills in the theory of evolution of living
beings proposed by British naturalist Charles Robert Darwin (1809-1882) in his classic On the origin of species by
means of natural selection, or the preservation of favored races in the struggle for life, originally published in 1859. In
order to provide support to the epistemology of physical geography, the analysis was performed from the reading of the
original text compared to the modifications made over the other five subsequent editions, focusing on the arguments
contained in the two chapters of the book exclusively biogeographic. The main results showed that biogeography -
associated with the appreciation by Darwin of climate processes, geological, geomorphological and other geographic
features such as latitude and longitude - participated as an important element of verifiability of theories of natural
selection and common descent serving as the basis for empirical analysis criticism directed to the then hegemonic
argument creationist of multiple centers of creation made by the divine plan.

Keywords: Darwin, Origin of Species, biogeography, physical geography; epistemology.

* E-mail: carlosgeraldino@gmail.com

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1. Introdução composição da teoria de especiação. Bowler


Este texto tem como objetivo (2009) abordou o papel da distribuição
apresentar uma sistematização do papel que a geográfica na OS, porém, fez dando maior
distribuição geográfica cumpre na elaboração ênfase à construção histórica dessa ideia do
teórica da evolução variacional dos seres que à sistematização propriamente ali contida,
vivos proposta pelo naturalista Charles Robert ponto principal desta revisão.
Darwin (1809-1882) em seu clássico On the A apreciação da miríade de vezes em
origin of species by means of natural que os fatores geográficos se fazem presentes
selection, or the preservation of favored races na sustentação teórica de Darwin deve ser
in the struggle for life [OS], originalmente realizada com o cuidado necessário para que
publicado em 1859. Faz-se já bem sabido que não nos percamos nas naturais modificações
as ideias de Darwin em muito influenciaram a que suas considerações passaram ao longo de
constituição da ciência geográfica moderna. toda uma vida voltada à pesquisa. Daí, o foco
Isso é passível de ser verificado no caminho desse artigo dar-se no mais óbvio caminho de
investigativo já palmilhado por um ainda investigação ao qual um geógrafo pode tomar
restrito número de geógrafos que interessados ao intencionar ponderar sobre o papel da
nas fundamentações teóricas de nossa biogeografia no corpo teórico darwiniano, a
disciplina não puderam deixar de prestar a saber: avaliar os dois capítulos de sua
devida atenção à ampla importância desse principal obra, a OS, que sustentam em seus
britânico em nossa epistemologia. Seguindo títulos o papel da distribuição geográfica na
essa trilha, parte-se aqui do pressuposto que organização dos seres vivos.
um estudo sobre a influência de Darwin no A OS teve seis edições diferentes,
arcabouço da ciência geográfica envolve, cinco revistas pelo autor. Tais edições datam
antes de tudo, o estudo da influência da de 1859 (1ª ed.), 1860 (2ª ed.), 1861 (3ª ed.),
distribuição das espécies em sua obra. Isso, 1866 (4ª ed.), 1869 (5ª ed.) e 1872 (6ª ed.).
pois, tão-só com o metódico reconhecimento Em 1876, foi lançada a 6ª edição com adições
do que há de geográfico na obra de Darwin e correções que se sagrou como a versão
pode-se bem avaliar o processo de definitiva da obra. Segundo Barbara
apropriação da teoria darwiniana pelos Bordalejo1 (2012), as mudanças ocorridas ao
geógrafos. Esse tipo de abordagem
investigativa, aliás, já vem sendo realizada
1
Pesquisadora responsável pelo Online Variorum of
por filósofos e historiadores da ciência. Darwin's Origin of Species – disponível no site The
Sulloway (1979), por exemplo, tratou do Complete Work of Charles Darwin Online, editado,
desde 2002, por John van Wyhe – ferramenta pela qual
papel variante que o isolamento geográfico realizamos nossa pesquisa; contém a comparação entre
as mudanças ocorridas durante as seis edições da OS
assumiu ao longo da carreira de Darwin na permitindo, além disso, a visualização de todas as
obras digitalizadas, fato que dizima qualquer dúvida na

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longo das edições pautaram-se na tentativa de análise a seguir foi realizada a partir da leitura
Darwin deixar a obra despersonalizada, do texto original de 1859 metodicamente
reforçada, objetiva, clara, atualizada e com comparado às modificações realizadas ao
melhorias semânticas. A primeira edição longo das outras cinco edições.
contava com 490 páginas divididas em
quatorze capítulos, sendo dois deles 2. A biogeografia na Origem
inteiramente dedicados à geografia, a saber: Darwin inicia os capítulos
capítulo XI Geographical Distribution, com biogeográficos da OS apresentando três
37 páginas, e capítulo XII Geographical grandes fatos relativos à distribuição das
Distribution – continued, com 27 páginas; espécies na superfície terrestre: 1º a
juntos, ambos perfaziam 13% da obra. Não se irredutibilidade dos viventes às condições
apercebe qualquer justificativa teórica para físicas; 2º a conexão entre a localização de
haver a separação da temática em dois barreiras e a disponibilidade de migração; 3º a
capítulos, pois, ao contrário, o que há é uma contiguidade das espécies sobreposta pela
forte conexidade linear entre ambos, o que gradual sucessão de diferenças nas formas e
leva a crer que tal deslindar apenas responda nos hábitos. Sobre o primeiro fato, afirma que
aos anseios de um equilíbrio numérico entre nem o clima ou as demais características
as páginas por capítulo no livro. As edições físicas ambientais teriam força explicativa
que se seguiram depois de 1859 sofreram quando consideradas como as únicas, ou
alterações pontuais, mais no intento de lapidar mesmo as prioritárias, causas do arranjo
do que, propriamente, restaurar. Mesmo com geográfico dos viventes. Isso, na medida em
esses acréscimos e correções, a versão final que pode bem evidenciar a profunda
do texto traz os capítulos sobre a descrição desigualdade de formas vivas alocadas em
geográfica, agora enumerados como XII e nichos com fortes similitudes físicas – tais
XIII, com poucos alterações e ainda como desertos, topos de montanhas, pântanos,
compondo uma parte expressiva da obra, florestas etc. – pelas regiões diferentes do
cerca de 10%. Tais capítulos localizam-se planeta, possuindo características muito
estrategicamente no final do livro compondo parecidas de temperatura, pressão, umidade e
a parte, na última edição, dos oito capítulos pluviosidade sem, no entanto, apresentar, na
comprobatórios que se seguem aos sete maioria das vezes, qualquer tipo de espécies
primeiros que tratam da apresentação e semelhantes entre si. Ilustra o caso, na
discussão da teoria da seleção natural. A passagem abaixo, ao comparar a biota de três
continentes dispostas na mesma faixa
latitudinal, detentoras de características físico-
pronta conferência das fontes originais. Disponível em:
<http://www.darwin-online.org.uk/>. Acesso em: 11 de mesológicas próximas, observando,
maio de 2013.

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entretanto, a extrema diferença no que tange Atlântico, Índico e Pacífico –, porém,


às formas de espécies encontradas. dispostos em condições físico-climáticas
semelhantes (Ambiente Y), fato derivado de
In the southern hemisphere, if we compare large
tracts of land in Australia, South Africa, and pertencerem à mesma paralela (Latitude 35º
western South America, between latitudes 25°
and 35°, we shall find parts extremely similar in S). Todavia, a relação de parentesco das
all their conditions, yet it would not be possible
to point out three faunas and floras more utterly formas e hábitos entre esses grupos se
dissimilar. Or again we may compare the encontra mais evidentemente dada pela
productions of South America south of lat. 35°
with those north of 25°, which consequently contiguidade territorial sul-americana
inhabit a considerably different climate, and
they will be found incomparably more closely (espécies A e A´) do que pelo fato de
related to each other, than they are to the
productions of Australia or Africa under nearly pertenceram à mesma latitude e condições
the same climate2 (Darwin, 1859, p. 347).
físicas ambientais. Também se pode
Os dados acima podem ser sintetizados num inicialmente entrever na passagem supracitada
quadro (vide Quadro 1). o intuito do autor em estabelecer as bases de
uma argumentação onde a distribuição
Quadro 1. Distribuição geográfica dos grupos de geográfica dos seres vivos – ou “produções”
espécies em relação às latitudes e aos ambientes
América África como se refere, termo que bem resume os ares
Austrália
do Sul do Sul anglo-industriais da época – começa a servir
latitude espécies ambiente como eixo empírico de análise para a crítica,
25º S A´ X
como veremos mais à frente, direcionada à
latitude espécies espécies espécies ambiente
argumentação criacionista, então hegemônica.
35º S A B C Y
(Org. a partir de Darwin, 1859, p. 347) Além disso, ao assinalar que as espécies em
latitudes diferentes – portanto, em climas
Observa-se no Quadro 1 que os três grupos distintos – seriam mais parecidas do que às
distintos de espécies representados pelas espécies localizadas na mesma paralela –
letras iniciais do alfabeto estão isolados porém, em continentes distintos – busca
geograficamente – no caso, pelos oceanos conectar a explicação do primeiro fato
exposto ao segundo, ou seja, o papel
preponderante das barreiras geográficas como
2
“No hemisfério sul, se compararmos grandes trechos obstáculo à livre migração. Para isso, adiciona
de terra na Austrália, África do Sul e América do Sul
ocidental, entre as latitudes 25º e 35º, vamos encontrar à argumentação a observação que as espécies
partes extremamente similares em todas essas
condições, ainda que não seja possível apontar três quando entremeadas por acidentes
faunas e floras tão completamente distintas. Ou ainda
podemos comparar as produções da América do Sul da geográficos como lagos, grandes rios,
lat. 35º com às do norte na lat. 25º, mesmo habitando cordilheiras de montanhas, mares e oceanos
um clima consideravelmente diferente, se encontram
incomparavelmente muito mais próximas umas das apresentam-se bem diferentes, mesmo
outras do que são em relação às produções da Austrália
ou da África que estão sob quase o mesmo clima” habitando praticamente as mesmas condições
(tradução nossa).

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físicas. Obtendo, a partir disso, uma lei historicidade e a geograficidade dos viventes
biogeográfica pautada na função diretamente ao sintetizar os três fatos apresentados na
proporcional entre o grau de dificuldade de observação: “We see in these facts some deep
transposição da barreira geográfica e o grau organic bond, prevailing throughout space
de diferenciação das formas e hábitos dos and time, over the same areas of land and
seres. Daí, então, o porquê do segundo fato, a water, and independent of their physical
importância das barreiras, acabar por conditions3” (id., p. 350); completando, ainda,
esclarecer o primeiro, a desconexão entre que: “The naturalist must feel little curiosity,
ser/meio físico. who is not led to inquire what this bond is4”
O terceiro fato alçado por Darwin não (ibid.). Tal ligação anunciada nada mais é que
se relaciona menos com os dois anteriores. a comum hereditariedade de todos os seres
Trata-se da contiguidade das espécies vivos somada às diferenças das modificações
formando bioregiões identitárias sobrepostas impostas pela ocupação de distintos nichos
pela gradual interseção de diferenças. Esse ambientais. Ou seja, uma população ocupando
caso procura justamente complementar a determinada área tende a se manter uniforme
explicação dada à semelhança entre as em suas características devido ao efeito
espécies (vide no Quadro 1 espécies A e A´) mitigador de variedades pronunciadas
que havia sido apontada quanto delineou os realizado pelo constante intercruzamento
dois primeiros. Apresentando uma série de entre seus indivíduos, no entanto, bastam
exemplos que demonstram a estreita relação ligeiras alterações nas condições ambientais
entre as formas e hábitos das espécies com ou a transposição das barreiras que até então
determinada extensão territorial – como o das impediam a expansão, levando parte dessa
duas espécies de ema (Rhea) do mesmo população a enfrentar outras relações
gênero, que encontrou durante a viagem do interespecíficas alhures, para que haja a
H.M.S. Beagle, uma habitando as planícies do reconfiguração da tessitura ecológica que, por
Estreito de Magalhães e a outra habitando sua vez, rearranjará as formas de luta pela
mais ao norte as planícies de La Plata – sobrevivência explorando assim novas formas
Darwin procura defender que a localização e hábitos dos indivíduos. Com o passar do
atual das espécies deve ser considerada como tempo, o acúmulo dessas novas características
um resultado da dispersão de um centro fará a população do tempo 1, fossilizada nas
difusor e não a partir da explicação de
múltiplos centros de criação. A fim de 3
“Vemos nesses fatos alguma profunda ligação
pressionar o ponto de vista criacionista, para orgânica, prevalecendo através do espaço e do tempo,
nas mesmas áreas de terra e água, e independente das
logo depois deslegitimá-lo por meio da tese suas condições físicas” (tradução nossa).
4
“O naturalista deve sentir pouca curiosidade, aquele
da herança com modificação, traz ao debate a que não é levado a perguntar qual relação é essa”
(tradução nossa).

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camadas terrestres, não ser mais reconhecível único centro com posterior dispersão.
como da mesma espécie de sua população Contudo, capitalizando beneficamente para si
descendente contemporânea no tempo 2; tal e os princípios de heurística e empiria que
qual, parte da população antes situada na fundamentam a vera causa newtoniana contra
região A que migrou para região B enfrentará as elucubrações metafísicas não evidenciáveis
novos desafios evolutivos e, pelo isolamento ofertadas pela Teologia Natural.
reprodutivo, se transformará gradualmente em A partir da explicitação e interconexão
outra espécie. Tempo e espaço entram, então, entre os três fatos biogeográficos apontados
como categorias analíticas, simultâneas e por Darwin, pode-se ter um juízo mais
necessárias, da transmutação dos seres. Para aprimorado do papel que as determinações
forjar essas duas dimensões numa mesma geográficas cumprem na configuração dos
teoria, segundo Mayr (1991), Darwin seres. Um primeiro tópico que chama atenção
acresceu ao evolucionismo vertical proposto é a mudança da ideia que os seres vivos estão
por Lamarck, onde havia somente a perfeitamente adaptados aos seus ambientes.
consideração temporal comandando a Sobre o assunto, Bizzo (2010), seguindo
mudança das formas numa mesma cadeia Ospovat (1995), comenta que até a nova
filética, a categoria espaço, propondo assim proposta de Darwin vir a público, a ideia
um evolucionismo do tipo horizontal, do qual majoritária nos círculos de pesquisadores da
a diversidade da vida passou a ser natureza era de que os viventes estavam numa
representada por um modelo de ramificação relação de pleno encaixe com a somatória
como o de uma árvore rascunhada nas páginas físico-orgânica das condições ambientais.
26 e 36 de seu caderno de anotações B (1837- Isso, pois, o pensamento por trás dessa ideia
8) e depois publicada no quarto capítulo da era pautado nas elucubrações dadas pela
OS. Com posse desse novo compêndio Teologia Natural, mais especificamente, na
explicativo, Darwin sentiu-se acastelado para famosa analogia do relógio, inspirada em
asseverar: “He who rejects it, rejects the vera Cícero (106a.C.-43a.C.), construída pelo
causa of ordinary generation with subsequent teólogo inglês Willian Paley (1743-1805).
migration, and calls in the agency of a Paley, uma das principais influências dos
miracle5” (1859, p. 352). Firmando um campo professores de Darwin em Cambridge,
de batalha entre duas teorias biogeográficas: a argumentava que da mesma maneira que
que propõe os múltiplos centros de criação quando achamos um relógio num descampado
por desígnio divino e a sua proposta de um iremos logo intuir um relojoeiro autor da sua
intrincada complexidade, quando estudamos

5
os seres vivos e suas relações uns com os
“Aquele que rejeita isso, rejeita a vera causa da
geração comum com a consequente migração, e outros na natureza, infinitamente mais
acredita na ação de um milagre” (tradução nossa).

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complexas que um mero relógio, nos resta Afinal, a migração para novas áreas é muitas
apenas reconhecer a participação da mente de das vezes a última instância aos seres que
uma entidade superior capaz de realizar tal sofrem pressões seletivas, como escassez de
magnitude. Obviamente que essa metáfora recursos ou aumento de seus predadores, em
agradava muito os interesses dos círculos seu local original. Não há o porquê de mudar
anglicanos, religião oficial da época; porém, se o vivente se encontra em perfeita conexão
mais do que isso, pautava toda uma agenda de com seu estar. Aliás, é justamente sobre a
pesquisa baseada na coleta de evidências na reconfiguração da relação entre ser e estar
natureza a fim de constatar a Divina que se trata. O encaixe ontológico ser/estar
Providência. No entanto, a proposta de desfeito por Darwin quebrou a harmonia
Darwin, explicitamente malthusiana, era de anglicana de natureza permitindo a leitura da
que havia uma luta constante entre os seres paisagem natural como um perene confronto
pela sobrevivência e, dentro dessa concepção interespecífico e intraespecífico. A relação
belicista de natureza, o encaixe perfeito entre os seres e seus estares deixou de ser
vivente/meio de Paley não fazia sentido, pois explicada por relações casuísticas simplórias
se de fato existisse, não deixaria lacuna advindas de uma entidade benevolente e
alguma para ocorrer competição, daí o invisível para se tornar uma rede complexa e
fundamental princípio de gradação por estocástica de interações e transformações
adaptabilidade estaria ausente e, que, poucas décadas depois, será nomeada por
consequentemente, qualquer transformação Ernst Haeckel (1834-1919) de Ecologia.
dos vivos resultaria impossível. Porém, como Outro tópico importante sobre as
aponta Bizzo, “[...] em algum momento no determinações biogeográficas exposto nos
início de 1857, ocorre a Darwin pensar que os capítulos analisados refere-se à separação
organismos podem não estar perfeitamente teórica entre ambiente físico e ambiente vivo,
adaptados ao meio ambiente” (2010, p. 29); e bem como, a hierarquização causal de ambos
essa ideia irá amparar toda a sua decorrente no que tange à faculdade de transformação
teoria das espécies, pois a lacuna de dos seres. Dos múltiplos elementos
possibilidade aberta entre os seres e seus constituintes do meio onde se alocam os
respectivos ambientes, somada ao que Mayr viventes, Darwin apontará para a relação
(1991) chamou de emergência do pensamento mantida entre os indivíduos orgânicos como
populacional após a leitura de Thomas sendo mais importante do que o vínculo com
Malthus (1766-1834) em 1838, fez com que as condições físicas que se enquadram. Ou
surgisse não só a concepção de mutabilidade seja, o poder causal do ambiente vivo será
dos viventes, mas também, a resposta às suas encimado ao poder causal do ambiente físico.
intensas mobilidades pela superfície terrestre. Por conseguinte, quando houver qualquer

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aumento da já instável relação sustentada utilizados, a vantagem e consequente


entre uma espécie e às demais que lhe são seleção/preservação de novas formas e
diretamente relacionadas haverá, por meio da hábitos. A migração e o isolamento
variação e seleção, um maior acréscimo da geográfico não acarretariam quaisquer
modificação de suas formas e hábitos do que mudanças desde que o deslocamento para
se houvesse sido desequilibrada as relações áreas remotas fosse realizado com a rede
entre essa espécie e os elementos físicos que interespecífica preservada. Todavia, quando
lhe envolvem. A passagem a seguir sintetiza apenas uma parte das espécies dessa rede
bem essas considerações, nela Darwin rumar alhures, o tecido ecológico se desfiará
argumenta que provocando maior competição e
possibilidades que propulsionariam a
If, for instance, a number of species, which
stand in direct competition with each other, produção de novas espécies. Assim, mesmo
migrate in a body into a new and afterwards
isolated country, they will be little liable to cumprindo um papel indireto, a ação das
modification; for neither migration nor isolation
in themselves can do anything. These principles determinações físico-ambientais, das
come into play only by bringing organisms into migrações e do isolamento geográfico não
new relations with each other, and in a lesser
degree with the surrounding physical deixa de desempenhar um importante fator na
conditions6 (1859, p. 351).
teoria da seleção natural. Não é por menos
Acima, Darwin deixa claro que o conta em
que grande parte da soma das páginas desses
sua teoria é a relação entre os seres viventes,
dois capítulos se dedica a demonstrar
ou seja, o meio vivo; determinações físicas do
exemplos das intervenções de acidentes
ambiente só são lhe admitidas como fatores
geográficos na explicação da distribuição
causais da transmutação enquanto agentes
biogeográfica do planeta.
indiretos. Mudanças de temperatura, de
Adentrando cada vez mais em
altitude e de pressão teriam que ter a força de
argumentos biogeográficos para fundamentar
desmembrar alguns dos laços ecológicos
sua teoria do centro único de criação, Darwin
mantidos entre os seres para que, aí sim,
passa então a considerar por quais meios as
pudesse haver novas regras na luta natural
espécies conseguiram se espraiar pela
entre os competidores; ocasionando, por meio
superfície terrestre, se isolando
da exploração de atributos outrora não
reprodutivamente, e ramificando-se em
formas diferentes. Para isso, pondera sobre
6
“Se, por exemplo, um número de espécies, que estão três possíveis fatores: 1º as mudanças
em concorrência direta entre si, migra junto para uma
nova e outrora isolada região, essas espécies estarão geológicas; 2º as mudanças climáticas e; 3º os
menos sujeitas à modificação; pois nem a migração ou meios acidentais de dispersão. Sobre o
o isolamento em si mesmo podem causar alguma coisa.
Esses princípios entram em jogo apenas quando os primeiro, aponta para o consenso existente
organismos são trazidos para nossas relações entre eles,
e em menor grau com as condições físicas do arredor” entre os geólogos da época que todas as
(tradução nossa).

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massas terrestres dispersadas como ilhas já and removes many a difficulty: but to the best of
my judgment we are not authorized in admitting
tiveram entre si e, também, entre os such enormous geographical changes within the
period of existing species. It seems to me that
continentes próximos, caminhos de ligação. we have abundant evidence of great oscillations
of level in our continents; but not of such vast
Estas vias serviriam como pontes nos oceanos changes in their position and extension, as to
para que espécies pudessem migrar e se have united them within the recent period to
each other and to the several intervening
difundir por todo o planeta. “Changes of level oceanic islands8 (ibid., p. 357).

in the land must also have been highly Nessa passagem, uma soma de considerações
7
influential ” (ibid., p. 356) afirma, admitindo importantes está exposta. Uma primeira que
ainda que sucessivos processos de imersão e chama a atenção é a implícita diferenciação
emersão de terra no oceano poderiam sim ter temporal feita entre o campo geológico e o
participado decisivamente ao longo da campo biológico. Darwin, mesmo admitindo
história da vida na Terra. No entanto, ao que grandes mudanças de níveis possam ter
apresentar a tese do naturalista Edward Forbes sido influentes na antiga distribuição
(1815-1854) Darwin começa a demonstrar seu biogeográfica, argumenta não haver provas
distanciamento da aceitação de explicações suficientes para convencer-se que a geologia
geológicas para a recente distribuição explicaria a atual disposição da biologia.
biogeográfica. Forbes, a partir de estudos Endossando essa convicção ao expor, logo à
botânicos e geológicos, argumenta no ensaio frente dessa passagem, que ao observarmos a
On the connexion between the distribution of composição das rochas de ilhas oceânicas
the existing fauna and flora of the British deveríamos, para fazer valer a tese de Forbes,
Isles and the geological changes which have encontrar granitos, xistos metamórficos,
affected their area (1846) a favor da rochas fossilificadas antigas ao invés de
existência de uma recente área continental recentes “mere piles of volcanic matter”
elevada que se estenderia sobre todo [meras pilhas de matéria vulcânica] (ibid., p.
Mediterrâneo, Norte da África até o 358). Pois se as ilhas tivessem mesmo sido
arquipélago de Açores em meio ao Atlântico. topos de montanhas que afundaram teriam
Sobre essa tese de Forbes e de outros que ter a presença de rochas mais antigas
naturalistas que se inclinavam a favor de assim como o topo de montanhas continentais
mudanças geológicas subsidiarem as
8
dispersões de espécies por ilhas e continentes, “Esta visão corta o nó Górdio da dispersão da mesma
espécie para os pontos mais distantes, e remove muitas
Darwin aferiu dificuldades, mas o meu melhor julgo diz não estarmos
autorizados a admitir essas enormes mudanças
geográficas dentro do período das espécies existentes.
This view cuts the Gordian knot of the dispersal
Parece-me que temos provas abundantes de grandes
of the same species to the most distant points,
oscilações de nível em nossos continentes, mas não de
tão vastas mudanças em sua posição e extensão para tê-
los unidos, dentro do período recente, uns com os
7
“Mudanças no nível da terra devem também ter sido outros e com as várias diversas ilhas oceânicas”
altamente influentes” (tradução nossa). (tradução nossa).

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atuais. De tal modo, a tese de uma área de Antonio Snider-Pellegrini (1802-1885) de que
continuidade prévia entre ilhas oceânicas e os a América e África já foram ligadas;
continentes não teria correspondência antecipando-se a teoria da Deriva Continental
geológica. Aliás, não só a geologia, mas de Alfred Wegener (1880-1830) e a atual
considerações geomorfológicas também Tectônica de Placas que corroboram esse
reforçariam esse argumento ao denunciar fenômeno. Porém, como comenta Kutschera
grandes profundidades do oceano entre as (2009), a ideia apresentada por Snider-
ilhas e o continente mais próximo, inibindo a Pellegrini se utilizava de elementos
ideia de existir um único escudo entre essas fantasiosos – por exemplo, ao combinar dois
terras emersas. Portanto, mesmo que alguma apropriados mapas sobre a separação dos
vez ao longo da história da Terra houvesse continentes à história sobrenatural do dilúvio
emergido passagens entre ilhas e continentes, – que em nada ajudaram no convencimento
esse fato não seria passível de ser utilizado na dos geólogos da época.
explicação da biogeografia recente. Darwin, Inclinado a não aceitar as “prodigious
assim, procura demonstrar a descontinuidade geographical revolutions” [prodigiosas
existente de uma temporalidade muito mais revoluções geográficas] (1859, p. 358)
profunda provinda da geologia frente à propostas por Forbes, Darwin teve que lançar
temporalidade das espécies recentes. A mão de outras hipóteses para desatar o nó
explicação de Forbes, dessa feita, falharia por górdio da distribuição geográfica dos viventes
sua incomensurabilidade. sob a concepção do centro único de criação.
Outra consideração importante contida As alternativas foram as mudanças climáticas
na passagem supracitada é a maneira que o e os meios acidentais de dispersão. Sobre
autor admitia a movimentação das massas papel do clima, não o expõem de maneira
continentais. Ressalvaguardado todo o generalizante, optando por concentrar
anacronismo presente no juízo a seguir, pode- esforços ao analisar o quanto que esse fator
se reconhecer o seu aceite aos movimentos exógeno foi responsável por disseminar
epirogênicos e a recusa dos movimentos espécies idênticas em topos de cordilheiras
orogênicos. Ou seja, Darwin crê, sob a clara distantes; esse caso é analisado mais a frente.
influência do uniformitarismo de Charles Já sobre os meios acidentais de migração faz
Lyell (1797-1875), na movimentação vertical um compêndio de possibilidades que na
lenta e gradual das massas continentais, e não última edição da OS passam do número de
em mudanças horizontais relativamente mais uma dezena de formas casuais de transporte
rápidas entre os continentes. Isso, mesmo ao se tratar apenas das plantas. Utilizando-se
embora tivesse sido publicada na mesma de fontes advindas das inúmeras cartas
época da OS a proposta do geógrafo francês trocadas com sua rede de pesquisadores,

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livros de renomados naturalistas e, espécies e seus meios de expansão e


principalmente, de testes laboratoriais limitação. Como aludiu Bowler (2009), essa
realizados em Down House, Darwin apresenta tarefa de mapear a reconstrução completa do
grande criatividade e afinco nas diálogo entre vida e geografia coube à
experimentações ao expor com perfeita próxima geração de pesquisadores que
descrição metodológica e números exatos de assumiram a agenda de pesquisa darwiniana,
dias o quanto que, por exemplo, galhos secos com Alfred Wallace (1823-1913) e Ernst
flutuando em águas salgadas teriam ao Haeckel sendo os dois maiores destaques.
transportarem cápsulas de sementes e frutos; Darwin, por sua vez, procurou apresentar três
corpos de aves mortas preservariam em si classes de fatos que julgou serem os que mais
sementes que poderiam germinar ao aportar apresentariam dificuldades para a
em terra firme; frutos maiores perdurariam na fundamentação da teoria dos centros únicos
superfície da água sendo levados pelas de criação. São eles: 1º a presença das
correntes marinhas para praias distantes. mesmas espécies em topos de montanhas
Apresentando, também, formas cabíveis de separadas por enormes distâncias e em pontos
dispersão por meios de icebergs, nuvens de também distantes nas regiões ártica e
gafanhotos, sementes contidas em bicos e pés antártica; 2º a existência de espécies
de aves; enfim, exemplos que compunham aparentadas limitadas em lagos e rios
uma lista suficientemente grande para que diferentes; 3º a ocorrência de espécies
convencesse qualquer leitor que seria “[...] a análogas nas ilhas e nas terras continentais
marvellous fact if many plants had not thus próximas, separadas por quilômetros de águas
become widely transported9” (ibid., p. 364). salgadas. A abordagem do primeiro exemplo
Depois de ponderar as variáveis encerra o capítulo inicial sobre distribuição
geográficas na rica distribuição dos seres, geográfica na OS e os dois demais compõem
Darwin se concentrou em tratar alguns casos o conteúdo do capítulo de continuação do
que considerou mais agudos para fundamentar tema na obra. Uma breve análise desses
sua proposta de centro único de criação. exemplos está respectivamente disposta a
Assim, no resumo que pretendeu ser a OS – seguir.
“one long argument” [um longo argumento]
(ibid., p. 459) – Darwin não buscou realizar 2.1 Ilhas na terra
um grande compêndio que abarcasse de Uma primeira grande dificuldade que
maneira geral todas as conexões entre a teoria de centro comum se depararia, na
ótica de Darwin, seria achar a explicação do

9
como que espécies praticamente idênticas
“[...] um fato maravilhoso/estranho se muitas plantas
não tivessem sido então amplamente transportadas” poderiam habitar cumes de montanhas
(tradução nossa).

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separadas por distâncias longínquas e, ao polos se espraiou por toda a faixa temperada
mesmo tempo, habitarem as regiões polares. da Europa, América do Norte e Ásia, trazendo
Como teriam chegado lá sem a intervenção de consigo as espécies outrora autóctones do
um criador? O expressivo isolamento Ártico e fazendo migrar rumo ao equador as
geográfico desses pontos na superfície – tais espécies temperadas. As espécies árticas se
como ilhas na terra – somado à evidência de espalharam tornando uniforme a biota das
condições físicas semelhantes entre eles não terras meridionais dos continentes norte-
constituiriam a prova cabal para a aceitação americano e euroasiático, apesar de separados
de um encaixe perfeito seres/ambientes feito pela imensidão das águas do Atlântico. Isso
por uma entidade suprassensível em múltiplos porque haviam partido da mesma e contígua
centros de criação? Tal questão faria, no região polar. No término do período glacial, e
mínimo, qualquer espírito acometido por um o consequente recuo do clima gélido aos
lapso agnóstico-materialista retirar-se para um polos, tais espécies, agora alocadas nas baixas
momento de reflexão. No caso de Darwin, a latitudes, tiveram duas alternativas
reflexão foi feita e junto a ela veio a direção geográficas para sobreviverem: buscar o frio
para uma nova proposição. É a partir das que lhes é necessário por meio do retorno às
evidências de glaciação recente, então altas latitudes ou por meio da ascensão às
anunciadas por Louis Agassiz (1807-1873) e altas altitudes. Assim, parte das mesmas
trabalhadas aos seres por Forbes, que Darwin espécies que na época da glaciação
vai ler a paisagem britânica, descrevendo que alastravam-se pelas planícies no Novo e do
“The ruins of a house burnt by fire do not tell Velho Mundo migrou ao polo e a outra parte
their tale more plainly, than do the mountains subiu aos cumes das montanhas nas regiões
of Scotland and Wales, with their scored temperadas, mantendo-se lá desde então. Daí,
flanks, polished surfaces, and perched sem a necessidade de um criador supremo,
boulders, of the icy streams with which their tem-se a explicação das afinidades entre os
10
valleys were lately filled ” (1859, p. 366). A seres das montanhas distantes, com também,
explicação dada à afinidade dos seres nos o parentesco com os seres do Ártico. Essa
cumes das montanhas remonta ao tempo que teoria, além disso, explica o porquê de haver
as temperaturas do mundo abaixaram de tal maior afinidade entre as espécies polares do
forma que o clima glacial dominante nos que entre as espécies alpinas. Pois, apesar das
referidas semelhanças, há um grau
relativamente maior de variabilidade
10
“As ruínas de uma casa queimada por fogo não encontrado entre as espécies alpinas quando
diriam mais claramente sobre ela, do que as montanhas
da Escócia e do País de Gales, com seus flancos comparadas ao conjunto das espécies árticas.
recortados, superfícies polidas e pedras sobrepostas
pelas geleiras das quais seus vales foram outrora E a glaciação, mais uma vez, adentra aqui
preenchidos” (tradução nossa).

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como fator explicativo. No fim dela, com o aquecimento global. Apoiado num consenso
retorno do clima glacial às altas latitudes, as dos cientistas da época que dizia que antes da
espécies que voltaram ao Ártico mantiveram- última glaciação a Terra teria sofrido um
se com suas mútuas relações intactas, assim, período cujas temperaturas estavam mais
como a rede ecológica não foi desfeita, não quentes do que na atualidade, Darwin
houve impulso à especiação. Já as espécies explicou que os indivíduos que hoje vivem
que rumaram para as altas altitudes da zona nas latitudes de 60º estavam habitando,
temperada isolaram-se geograficamente nos devido ao calor geral, paralelas mais ao norte,
picos das montanhas e tiveram suas mútuas como as de 66º-67º; assim, beneficiando-se da
relações prejudicadas – pois não se presume diminuição da calota polar, puderam ter
que a toda rede ecológica foi acesso migratório a uma grande extensão
homogeneamente dispersa nesses cumes – onde as terras mais setentrionais do planeta
resultando numa desestabilidade ecológica unem os continentes euroasiático ao norte-
que, por sua vez, inferiu num aumento de americano. Conferindo às terras do hemisfério
variação das formas. A biogeografia norte, no período anterior à glaciação, um
resultante de todo esse processo pode ser maior grau de parentesco entre as espécies
constatada na presença de espécies subárticas e temperadas. Porém, no período
semelhantes no polo e nos cumes de distantes subsequente de resfriamento, a terra
montanhas na zona temperada, com o setentrional que outrora se fazia como
importante porém de encontrarmos maior caminho de livre transição migratório
grau de variabilidade entre as espécies alpinas aclimatou-se de tal forma que impediu essa
do que entre as árticas. interespeciação. As espécies dos continentes
Darwin, regozijando da segurança que antes unidos migraram para o sul e
a teoria da glaciação havia lhe dado, não se permaneceram por uma longa temporada
furtou ainda de aventar outra perspicaz isoladas geográfica e reprodutivamente.
questão antes que qualquer criacionista lhe Entrando, ainda, em contato com os seres
inquirisse de sobressalto. Se a glaciação meridionais desses continentes. O isolamento
explica perfeitamente o padrão de distribuição e, principalmente, esse contato contribuiu
biogeográfica das montanhas e do ártico, para o desfazimento parcial da rede ecológica
como essa teoria responderia ao fato de hoje da qual eram imersas. E, uma vez desfeita
haver espécies subárticas e temperadas algumas das relações interespecíficas, a
parecidas nos sopés das montanhas e nas especiação entrou em cena deixando nas
grandes planícies da América do Norte e da espécies da zona temperada setentrional a
Europa? A resposta de Darwin dessa vez não marca branda de um parentesco espaço-
foi a glaciação, mas seu oposto, o temporal distante pré-glaciação.

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Portanto, sucessivos aquecimentos e Em relação à latitude, há que se lembrar de


esfriamentos globais fundamentaram a teoria que no período de aquecimento, antes da
de dispersão biogeográfica de Darwin como glaciação, as espécies possuíam livre trânsito
alternativa ao reconhecimento de profundas entre os continentes americano e euroasiático
mudanças geológicas, produtoras de pontes mantendo relações entre si e,
sobre os oceanos, como agentes de revoluções consequentemente, uma maior uniformidade.
geográficas. E em toda essa cadeia explicativa Quando o calor foi diminuindo, anunciando o
é possível observar a importante presença de período glacial, as espécies que transitavam
elementos caracteristicamente geográficos entre essas duas grandes massas de terra
que subsidiaram o entendimento dos laços e através do polo norte migraram mais ao sul e
deslaços do tecido ecológico, ora foram separadas pelo gelo ao norte e pelos
mantenedores de formas, ora produtores de oceanos na direção Leste-Oeste. As espécies
especiação. No que tange especificamente ao polares mais adaptadas ao frio migraram
papel da latitude e da altitude nesse intricado menos ao sul tendo que se relacionar/competir
enredo, a relação com a teoria da seleção com menos espécies meridionais. Já as
natural pode ser expressa num quadro espécies temperadas menos adaptadas ao frio
sintético a seguir (vide Quadro 2). tiveram que migrar bem mais ao sul tendo que
se relacionar/competir com uma maior
Quadro 2. Relação entre o grau de latitude/altitude e o quantidade de espécies. As espécies
grau de competição e afinidade das espécies
Latitude/Altitude Espécies temperadas não só enfrentaram uma maior
+ - competição + afinidade competição quantitativa com as espécies
- + competição - afinidade meridionais, mas também uma maior
(Org. a partir de Darwin, 1859, p. 365-72) competição qualitativa, pois quando mais ao
sul se deslocavam, mais tiveram que se
O Quadro 2 demonstra um dos princípios relacionar com diferenças pronunciadas entre
biogeográficos implicitamente aventados por
os nativos americanos e os nativos
Darwin, a saber: o grau de altitude e de euroasiáticos. Assim, nesse jogo de vai-e-vem
latitude do estar dos seres é diretamente
latitudinal causado pelas extremidades
proporcional à suas afinidades e inversamente climáticas recentes, as espécies adaptadas
proporcional às suas competições; em outras
mais ao frio – portanto, às maiores latitudes –
palavras, quanto maior for o grau de altitude se dispuseram menos com outras, preservando
ou de latitude em que os habitats das espécies
maior grau de afinidade entre si. As espécies
se situarem, maior será a semelhança entre menos adaptadas ao frio – portanto, adaptadas
elas pelo fato de terem sido expostas a um
às menores latitudes – se depararam com uma
menor grau de competição na seleção natural. maior quantidade e qualidade de espécies,

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intensificando a seleção natural e preservando principalmente no quadro botânico do planeta


um menor grau de afinidade entre si. feito pelo seu colaborador mais fiel Joseph
Em relação à altitude, a história não Dalton Hooker (1817-1911), Darwin
foi muito diferente. No início do desgelo demonstrou haver uma semelhança entre a
glacial, as espécies mais adaptadas ao frio que vegetação temperada e a aquela encontrada
não fizeram a migração de retorno às altas em regiões mais elevadas da faixa tropical,
latitudes, ou se extinguiram, ou subiram porém, com um largo predomínio das
gradualmente às altitudes das cordilheiras. espécies setentrionais em relação às
Apesar do isolamento geográfico nos cumes meridionais. Dos vários exemplos alçados
dessas montanhas impedir o intercruzamento para endossar essa tese, chegou a citar o caso
entre elas, proporcionando certo grau de da Serra dos Órgãos do Brasil onde alguns
variação, por outro turno, também gêneros europeus podem ser encontrados. A
proporcionou a manutenção delas num nível glaciação, mais uma vez, fez-se como a chave
topográfico peculiar o bastante para que não explicativa para esses fatos. No entanto, dessa
adentrassem em direto confronto com a maior vez veio acompanhada por um dos dados
quantidade de espécies que lutavam nos sopés geográficos mais abranges: a desigual
e nas planícies. A segurança que essas distribuição de terras e mares entre os dois
espécies obtiveram no topo das montanhas hemisférios terrestres. No período glacial
proporcionou uma menor competição com as houve uma migração para o sul das formas
outras espécies e, consequentemente, uma temperadas do hemisfério norte e no sentido
maior preservação das suas afinidades. Logo, contrário para as formas temperadas do
o grau de suas semelhanças tornou-se hemisfério sul. Ambas se encontraram no
proporcionalmente maior do que o grau das equador tendo, inclusive, o ultrapassado,
semelhanças encontradas entre os seres que deixando seus descendentes no hemisfério
habitavam menores altitudes. oposto. Ao fim da era do gelo, algumas dessas
Até então, vimos que toda a formas subiram às regiões planálticas da faixa
explicação ofertada por Darwin na utilização tropical e por lá permaneceram desde então.
de elementos geográficos para a Ocorre, como dito, que as formas vegetais do
fundamentação de suas teorias das espécies hemisfério norte fizeram-se muito mais
esteve contida no hemisfério norte. Porém, a presentes nos planaltos da faixa tropical
partir do momento que sua atenção se volta ao meridional do que as do sul no norte. E esse
hemisfério sul o intuito de resolver o fato, segundo Darwin, casa-se perfeitamente
problema das identidades das espécies nos com a teoria da seleção natural. Pois, a
cumes montanhosos extrapola-se para uma quantidade de terras emersas no hemisfério
apreciação biogeográfica global. Apoiando-se norte do planeta é expressivamente maior do

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que no hemisfério sul, detendo a ordem de great height under the equator. The various
beings thus left stranded may be compared with
70% do total de terras do planeta. E essa savage races of man, driven up and surviving in
the mountain-fastnesses of almost every land,
expressiva relação desigual de terras – which serve as a record, full of interest to us, of
70%Norte the former inhabitants of the surrounding
/30%Sul – faz-se diretamente lowlands11 (ibid., p. 382).
proporcional à capacidade de subjugação na
Acima, observa-se o vaivém das “águas
seleção natural. Ou seja, a maior extensão de
vitais” espraiando-se pelas planícies,
terra disponível aos viventes do hemisfério
cruzando os limites latitudinais, subindo as
norte fez com que houvesse uma maior
montanhas, invadindo territórios alheios e se
capacidade de carga nessas regiões
ambientando em planaltos distantes de seu
intensificando, por sua vez, a competição
centro de origem; com as águas do norte, mais
entre eles, resultando, assim, em seres mais
turbulentas que as do sul, dominando os
adaptados. Quanto, então, as espécies
territórios meridionais. Como notou Bowler
setentrionais e meridionais se encontraram no
(2009), esta passagem também traz uma
equador, no auge do período glacial, houve
explícita referência ao colonialismo britânico,
uma disputa da qual as formas do norte,
quando Darwin, ao tomar emprestado uma
provindas de “more efficient workshops”
analogia feita por Lyell, refere-se às raças
[oficinas mais eficientes] (ibid., p. 380),
atrasadas de homens selvagens meridionais
sobrepujaram as do sul, atravessando o
isoladas – fueguinos americanos, aborígenes
equador e se fazendo presentes nos planaltos
tasmanianos, melanésios e africanos que viu
tropicais e temperados do sul, ao mesmo
com os próprios olhos a bordo do Beagle –
tempo em que resguardavam seu domínio nos
como relíquias passadas daquilo que outrora
planaltos tropicais e temperados do norte. A
foi a civilização setentrional europeia.
síntese de toda essa geobiopolítica proposta
A única mudança mais significativa
por Darwin – entendida como uma relação
passível de ser verificada nos dois capítulos
tríade entre espaço-vida-poder – é
metaforicamente apresentada na rica
passagem que encerra o primeiro capítulo 11
“Pode-se dizer que as águas vitais fluíram durante
destinado à distribuição geográfica; lá está um período curto vindas do norte e vindas do sul, tendo
cruzado a linha do equador; mas fluíram com maior
escrito: força a partir do norte de modo que livremente
inundaram o sul. Da mesma forma que a maré deixa
sua marca em linhas horizontais, subindo mais nas
The living waters may be said to have flowed costas elevadas, as águas vitais deixaram suas marcas
during one short period from the north and from no topo de nossas montanhas, em uma linha que
the south, and to have crossed at the equator; suavemente vai das planícies árticas às grandes
but to have flowed with greater force from the altitudes sob o equador. Os vários seres então deixados
north so as to have freely inundated the south. encalhados possam talvez ser comparados às raças de
As the tide leaves its drift in horizontal lines, homens selvagens, levados a sobreviver nos fortes das
though rising higher on the shores where the montanhas de quase toda terra, servindo como o
tide rises highest, so have the living waters left registro, do qual temos pleno interesse, dos antigos
their living drift on our mountain-summits, in a habitantes das planícies circunvizinhas” (tradução
line gently rising from the arctic lowlands to a nossa).

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sobre a distribuição geográfica ao longo das cruzamento do equador das produções vindas
edições da OS foi a inserção da proposta dos polos e regiões temperadas. Isso o
teórica de James Croll (1821-1890). Até a sua possibilitou pensar numa maior expansão e
quarta edição, a obra trazia a ideia de que o miscelânea entre os seres distantes causando,
período de glaciação foi concomitante entre dessa forma, maior especiação resultante de
os hemisférios norte e sul. Porém, como competição.
Bowler (id.) apontou, a partir da edição de
1869 Darwin somou à tese das glaciações 2.2 Águas doces
ocorrerem simultaneamente a possibilidade de Desde sua primeira coleta em água
ter havido períodos glaciais em apenas um doce, feita no Brasil abordo do Beagle,
dos dois hemisférios. Essa adição teórica veio Darwin mostrou-se surpreso com o grau de
de trocas de cartas e da posterior publicação semelhanças encontradas entre as espécies
do livro Climate and Time, em 1864, de Croll. habitantes de distantes redes hidrográficas.
Sua teoria propunha que os períodos de Sentimento compreensível quando se
glaciação decorriam, em maior medida, pelas considera a amplitude das barreiras entre as
excentricidades astronômicas vivenciadas águas doces de lagos e rios, separadas por
pelo planeta do que pela então teoria mais largas faixas terrestres, ou mesmo, pela
aceita da alteração da distribuição de terras e vastidão de águas salgadas dos oceanos. Essa
mares na superfície, devido às elevações e constatação de que espécies confinadas em
abaixamentos dos continentes. O eixo de lagos e rios distantes uns dos outros
rotação da Terra passava por uns períodos de possuírem afinidade em formas e hábitos
inclinação que resultavam numa exposição encaixava-se perfeitamente à teoria de centros
mais abrangente de um hemisfério à luz solar, múltiplos de criação e, consequentemente, na
enquanto que o outro sofreria uma glaciação. evidência de um criador supremo e cuidadoso
Como demonstrou Fleming (2006), Darwin – o bastante para alocar os seres num encaixe
ao contrário de Lyell, que não aceitou a maior exato com seus respectivos ambientes. A
influência da condição astronômica do que a dificuldade que Darwin encontrou nesse
distribuição geográfica nas mudanças do tópico foi demonstrar o quanto que esses seres
clima da Terra – reconheceu a proposição de teriam a possibilidade de serem transportados
Croll por justamente essa o permitir endossar por entre fontes de água doce próximas,
a sua teoria de especiação sem a necessidade vencendo barreiras terrestres e de água
de recorrer às explicações, tais como a de salgada, colonizando novos hábitats e
Forbes, de grandes mudanças geográficas mantendo-se, ainda, com poucas variações em
recentes. Com a admissão da teoria de Croll, relação aos seus descendentes do centro de
Darwin pode intensificar ainda mais o origem, apesar de enfrentarem novas

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competições promotoras de especiação. Para Ilhas Falklands e em algumas bacias do


isso, dedicou-se a considerar o caso dos continente sul-americano. Com essa nova
peixes, por crer ser esse um dos mais difíceis descoberta, o que Darwin cria ser impossível
de explicar. até 1869 é revisto e endossado à sua teoria da
Ao longo do comentário sobre a descendência comum em 1872. E a
capacidade dispersiva dos peixes pode-se explicação aventada para o fato dessa espécie
verificar uma sutil e importante mudança habitar diferentes continentes remete
textual entre as edições. Nas cinco primeiras, novamente à sua teoria de dispersão por
portanto, de 1859 até 1869, Darwin escreveu: aquecimento na Antártica associada à
“We can here consider only a few cases. In capacidade, presente em alguns peixes, de se
regard to fish, I believe that the same species acostumarem à transição da água salgada para
never occur in the fresh waters of distant a água doce. Já no que concerne à dispersão
continents12” (1859, p. 383-4); já na sexta dentro de um mesmo continente, Darwin
edição, essa passagem foi alterada para: “We alude que pode ter sido causada por diversos
can here consider only a few cases; of these, meios acidentais como redemoinhos que
some of the most difficult to explain are levariam peixes e/ou suas ovas às águas
presented by fish. It was formerly believed vizinhas, ou enchentes que, por sua vez,
that the same fresh-water species never acabariam por unir temporariamente dois rios.
existed on two continents distant from each Sobre a junção de rios, levanta também a
13
other ” (1872, p. 343). Além da hipótese de ter sido realizada por meio de
despersonalização, a última citação contém mudanças geomorfológicas fluviais recentes
uma substancial mudança provinda da com o adendo de, nesse caso, haver tido mais
divulgação dos estudos do ictiólogo Albert tempo para a migração de espécies distintas
Günther (1830-1914) – descritos em todo um do que o período de cheias eventuais.
novo parágrafo acrescentado logo abaixo dela Uma vez explicada a dispersão dos
– sobre presença da espécie de peixe seres de água doce, Darwin partiu para o
Gallaxias attenuatus nas costas e nas águas segundo desafio desse tópico que era explicar
doces da Tasmânia, da Nova Zelândia, das como os seres apresentavam semelhanças
entre si apesar de terem de enfrentar a cada
lago ou rio colonizado diferentes pressões
12
“Nós aqui podemos considerar apenas poucos casos.
Em relação aos peixes, acredito que a mesma espécie seletivas que resultariam em formas e hábitos
nunca ocorre em águas doces de distintos continentes”
(tradução nossa). distintos. Para isso, primeiro lembrou que o
13
“Nós aqui podemos considerar apenas poucos casos, número de tipos de habitantes de lagoas e rios
destes, alguns dos mais difíceis de explicar são
apresentados pelos peixes. Antigamente acreditava-se é sempre inferior ao número de espécies
que as mesmas espécies de água doce nunca existiram
em dois continentes distantes um do outro” (tradução encontradas numa área terrestre com tamanho
nossa).

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de área correspondente, resultando numa argumentativa em cima de três casos, a saber:


menor competição e consequente menor 1º as espécies das ilhas são em menor
seleção e diferenciação dos seres. Esse fato quantidade do que as continentais; 2º nas ilhas
também explicaria o porquê desses habitantes existe maior proporção de espécies
aquáticos possuírem menor nível de endêmicas; 3º verifica-se nas ilhas a ausência
complexidade e também de serem mais de animais de certas classes tendo seus
sujeitos as invasões de imigrantes carregados lugares naturais ocupados por outros.
por aves que viajam por entre fontes de água Sobre o primeiro, apoia-se na
doce. Portanto, dispersões acidentais de vários contagem de espécies em áreas de tamanhos
tipos somada às menores pressões seletivas proporcionais feita em terras continentais e
existentes formaram a chave explicativa de terras insulares, observando uma menor
Darwin contra o argumento do desígnio quantidade de espécies nas ilhas. Assim,
divino no caso das produções de água doce. Darwin inicia sua argumentação dizendo que
aquele que acredita na criação perfeita de
2.3 Nativos insulares cada espécie para cada ambiente por desígnio
Qual é a razão dos habitantes das ilhas divino terá dificuldade de explicar o porquê
Galápagos e de Cabo Verde serem tão das espécies inseridas pelo homem nas ilhas
semelhantes às espécies encontradas, se adaptarem melhor que as espécies nativas,
respectivamente, na América e na África? E algumas vezes até mesmo extinguindo-as.
por que, apesar das condições físicas Afinal, a perfeição não tem graduação. E se as
correlatas desses dois arquipélagos, seus espécies insulares já estavam perfeitamente
viventes diferem tanto entre si? Na busca de encaixadas aos seus ambientes não há a
respostas para essas questões, Darwin inicia possibilidade de ser inserida maior perfeição.
reafirmando sua discordância da tese que os E mesmo que houvesse uma gradação teria
habitantes das ilhas chegaram via pontes que se admitir que o homem soube melhor
terrestres em períodos recentes. A explicação encaixar as espécies aos meios insulares do
para o fato de que os habitantes de ilhas são que Deus; argumento esse, no mínimo, pouco
aparentados aos dos continentes próximos cristão. Assim, há uma menor quantidade de
inclina-se em prol aos meios eventuais de espécies insulares do que continentais, porém,
dispersão. Todavia, mais do que apenas expor evidencia-se um potencial nas ilhas de abarcar
essa dispersão, busca levantar outros fatos que mais diversidades de espécies. O que prova
são mais bem explicados à luz da teoria da que as espécies insulares não foram nem
descendência comum, junto à seleção natural, perfeitamente e nem isoladamente criadas lá.
do que quando explicados pela teoria Sobre o segundo, a maior proporção
criacionista. Para isso, desenvolve sua linha de espécies endêmicas, ressalta que já era algo

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previsto em sua teoria, pois quando uma não ocorrem nas ilhas situadas a mais de 500
espécie é ocasionalmente implantada num km do continente, os mamíferos aéreos,
novo e isolado lugar causará mudanças nas porém, ocorrem em quase todas. A exceção
formas de competição da seleção natural dessa regra pode ser um tipo de raposa
vigente o que resultará em maior especiação. parecida com lobo nativa das Ilhas Falklands.
Daí, o porquê das espécies peculiares serem Todavia, apesar de suficientemente distantes,
mais comuns nas ilhas. O isolamento essas ilhas do Atlântico Sul possuem um
geográfico participa de forma secundária grande banco de areia ligando-as ao
nesse processo, ao proporcionar o isolamento continente mais próximo; o que pode, junto
reprodutivo que agirá diretamente como com a possibilidade de eventuais icebergs
motor da evolução. Porém, nem todas as terem trazidos essa espécie, um acúmulo
espécies insulares são endêmicas, isso, devido sedimentar temporário ter servido como
a dois fatores. Primeiro, as espécies podem passagem. Ratificando a observação feita pelo
migrar num conjunto com outras, preservando geógrafo francês Jean-Baptiste Bory de Saint-
a rede ecológica que mantinha no continente Vincent (1778-1846) que as ilhas oceânicas
e, assim, conservando as suas formas. não possuem uma população de batráquios,
Segundo, algumas ilhas podem receber Darwin argumenta que essa ausência de
periodicamente populações de migrantes do sapos, rãs, salamandras também não poderia
continente – arrastados para lá por condições ser explicada por aspectos físicos das ilhas,
físicas cíclicas, como correntes marítimas e de pois quando essas espécies são introduzidas
vento – que, cruzando com os habitantes nelas pelo homem, tornam-se pestes em
insulares, romperiam seu isolamento poucos anos. O fato desses seres não
reprodutivo mantendo suas semelhanças. conseguirem sobreviver a qualquer exposição
O terceiro e último fato aponta para a de água salgada, o que impediria a migração,
ausência de animais de certas classes tendo ergue-se como mais provável. Em relação ao
seus lugares naturais ocupados por outros; reino das plantas, chama a atenção para a
como é o caso dos répteis gigantes das presença nas ilhas de plantas com ganchos
Galápagos e das aves com asas-apêndices na adaptados unicamente para agarrem nos pelos
Nova Zelândia que acabaram por ocupar o dos mamíferos terrestres que nelas estão
lugar dos mamíferos nessas ilhas. A ausentes. O que pressupõem que essas plantas
explicação de que certas ordens de espécies foram adaptadas em outras regiões com a
conseguem migrar e outras não, resulta como presença de mamíferos e migraram para essa
mais coerente do que aquela que assinala para ilha, sustendo garras agora inúteis em seu
as diferenças nas condições físicas dessas sistema reprodutor. É de se até prever que
ilhas. Pois, enquanto os mamíferos terrestres pressões seletivas futuras farão estas garras

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desaparecerem. Outro exemplo botânico das formas e hábitos dos seres; 4º tal como
utilizado é o das árvores encontradas nas ilhas apontou Mayr (1991), observa-se que Darwin
cujas correspondentes continentais estão na só após considerar o papel da categoria
condição de arbustos. Dada a maior espaço pode obter o modelo teórico de
dificuldade de se aceitar a migração de evolucionismo horizontal capaz de explicar a
sementes maiores de árvores, o que se inclina ramificada diversidade da vida; 5º dos
como mais provável é ter havido o transporte múltiplos elementos constituintes do meio
casual de sementes de arbustos que ao onde se alocam os viventes, Darwin assinalou
aportarem nessas ilhas venceram a população para a relação mantida entre os indivíduos
arbustiva nativa e ganharam, ao longo dos orgânicos como sendo mais importante do
anos, as alturas em formas de árvores. Em que o vínculo com as condições físicas que se
todos esses casos, a migração casual e natural, enquadram; 6º Darwin alertou para a
mais uma vez, mostra-se como mais razoável incomensurabilidade temporal entre o campo
do que a alocação propositiva e supranatural. geológico e o campo biológico,
argumentando, contra Forbes, não haver
3. Conclusões provas suficientes para o convencimento de
Dentro do exposto e no intuído de que a geologia, por meio de revoluções
apresentar uma síntese sobre o papel que a geográficas, pudesse vir a explicar a atual
biogeografia cumpre na OS, segue um disposição biogeográfica do planeta; 7º sob a
sumário dos pontos aqui apresentados: 1º a influência do uniformitarismo de Lyell,
biogeografia participa como um importante Darwin inclinou-se à apenas considerar a
elemento de verificabilidade das teorias de movimentação vertical, lenta e gradual das
seleção natural e do centro comum com massas terrestres, não acolhendo em suas
posterior dispersão servindo como eixo teorias as mudanças horizontais relativamente
empírico de análise para a crítica direcionada mais rápidas entre os continentes; 8º na recusa
à argumentação criacionista de múltiplos de aceitar grandes mudanças geológicas como
centros de criação determinada por desígnio chave explicativa da distribuição
divino; 2º Darwin defende a tese da biogeográfica, Darwin lançou mão de duas
irredutibilidade dos viventes às condições alternativas: as mudanças climáticas e os
físicas apontando para a imperfeita conexão meios acidentais de dispersão. Sobre o papel
entre os seres com seus estares; 3º é passível do clima utilizou em sua argumentação tanto
de ser constatada na OS a lei biogeográfica a glaciação quanto o aquecimento global
pautada na função diretamente proporcional como promotores de grandes migrações.
entre o grau de dificuldade de transposição da Sobre os meio acidentais de dispersão, além
barreira geográfica e o grau de diferenciação de expor uma enorme gama de maneiras de

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ocorrência, buscou levantar fatos que seriam online.org.uk/>. Acesso em: 29 de abril de
mais bem explicados à luz da teoria da 2013.
descendência comum, junto à seleção natural,
do que quando explicados pela teoria Bowler, P. J. (2009). Geographical
criacionista; 9º verifica-se nos capítulos Distribution in the Origin of Species. In:
analisados a lei biogeográfica que diz que o Ruse, Michael & Richards, Robert (org.). The
grau de altitude e de latitude do estar dos Cambridge Companion to the “Origin of
seres é diretamente proporcional à suas Species”. New York: Cambridge University
afinidades e inversamente proporcional às Press.
suas competições; 10º também, e por fim, se
verifica que a expressiva relação desigual de Darwin, C. R. (1859). On the origin of species
terras emersas entre os hemisférios norte e sul by means of natural selection, or the
reflete-se de forma diretamente proporcional à preservation of favored races in the struggle
capacidade de subjugação dos seres na for life. London: John Murray.
ocorrência da seleção natural.
______. (1872). The origin of species by
4. Agradecimentos means of natural selection, or the preservation
Agradeço ao Prof. Dr. Antonio Carlos Vitte of favored races in the struggle for life. 6ª ed.
pelos apontamentos feitos sobre a primeira London: John Murray.
versão deste artigo e também à Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Fleming, J. R. (2006). James Croll in Context:
pela concessão da bolsa de estudo (FAPESP The Encounter between Climate Dynamics
processo nº 2012/19824-0). and Geology in the Second Half of the
Nineteenth Century. History of Meteorology,
5. Referências n. 3, p. 43-53.
Bizzo, N. (2010). Darwin e o rompimento
com teologia natural de Paley. Brazilian Kutschera, U. (2009). Symbiogenesis, natural
Geographical Journal: Geosciences and selection, and the dynamic Earth. Theory
Humanities research medium, nº 1, p. 21-32. Biosci., n. 128, p. 191-203.

Bordalejo, B. (2012) Introduction to the Mayr, E. (1991) One Long Argument:


Online Variorum of Darwin's Origin of Charles Darwin and the Genesis of Modern
Species. In: Wyhe, John van (ed.). 2002-. The Evolutionary Thought. Printed in USA:
Complete Work of Charles Darwin Online. Harvard University Press.
Disponível em: <http://darwin-

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Ospovat, D. (1995). The development of Sulloway, F. (1979) Geographic isolation in


Darwin’s theory: natural history, natural Darwin`s thinking: the vicissitudes of a
theology and natural selection, 1838-1859. crucial idea. Studies in the History of
Cambridge: Cambridge University Press. Biology, v. 23, p. 23-65.

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