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A NOÇÃO DE SUJEITO NA OBRA DE LACAN

E NA CLINICA ANALITICA
Antonio Godino Cabas

Como sabemos, a noção de sujeito foi introduzida na psicanálise por Lacan. Isto
significa que –falando com propriedade- não é uma noção formulada por Freud. Contudo,
também sabemos que ao introduzí-la, Lacan sublinhou sua pertinência e necessidade. Por
isso, sua primeira preocupação foi de destacar no texto freudiano todos os elementos que
integram o problema e antecipam ao par que justificam a necessidade de introduzirmos
um termo novo no vocabulário analítico. Relembremos, pois, os antecentes freudianos…

I – EM FREUD

1- A psicanálise é uma clínica


No seu texto Múltiplo interesse da psicanálise Freud define a psicanálise como
duas coisas:
a) por um lado, uma teoria que se propõe explicar a natureza humana e,
b) por outro, um procedimento clínico destinado à cura de certas formas patológicas.
Em parte, estas palavras parecem subscrever a idéia –hoje muito difundida-
segundo a qual a psicanálise é, digamos, uma teoria da condição humana; isto é, uma
antropologia. Contudo vale notar que para além dela, Freud inclui a dimensão clínica.
Um plano que transcende toda e qualquer pretensão filosófica. Antes que uma teoria a
psicanálise é uma clínica. Significa que é uma prática e que, como tal, inclui entre os seus
pressupostos a transformação material da ‘coisa’ sobre a qual opera.
Daí que, nesse mesmo texto, Freud tenha incluido um adendo onde observa:
“Nas formas mais graves das perturbações mentais, propriamente ditas, a
psicanálise não alcança resultado positivo algum”.1
Esta citação introduz uma distinção muito precisa. Pois enquanto as psicoses e as
neuroses são tratáveis, as parafrenias e as esquizofrenias são inaccesíveis à influência
analítica. Isso reduz o valor da dimensão explicativa e separa a clínica da antropologia.
Uma separaçåo que se torna definitiva quando formula a advertência que a psicanálise
nåo é uma Weltanshcaaung, isto é uma cosmovisåo ou uma representaçåo do mundo2.

2- A distinção: terapeutica / analítica


De resto, é muito cedo, desde Psicoterapia da histeria (1895) que ele estabeleceu
uma diferenciação entre a terapeutica e a analítica que manteve até o fim. Tanto e a tal
ponto que em 1919, ele chega a dizer:
“Por vezes somos obrigados a aceitar pacientes desorientados e ineptos
para a existência que precisam de auxilio terapeutico; mas em hipótese
alguma podemos considerar esta abordagem como um tratamento
analítico propriamente dito”.3

1
S FREUD – Múltiplo interés del psicoanálisis – Vol XIII, pag. 171
Amorortu Editores, Buenos Aires, 1975.
2
S FREUD – La resistencia contra el psicoanálisis – 1924 – Vol. XIX, pag 227
Amorortu Editores, Buenos Aires, 1975.
3
S FREUD – Nuevos caminos de la terapia psicoanalítica – 1919 – Vol XIX, pag. 151

1
Donde, se deduz que quando em 1895 ele abandona a hipnose não é pela ausência
de resultados terapeuticos mas por constatar que os mesmos eram passageiros por
dependerem da influência da sugestão. Neste sentido, o método analítico surgiu como
uma alternativa. Como um meio de fundar a cura na contramão da sugestão.
E de um modo tão definitivo que ao ratificar essa distinção, em 1919, ele o faz
com o objetivo de fixar o principio que os efeitos terapeuticos não bastam para fazer de
um tratamento uma psicanálise propriamente dita.

3- A específicidade do tratamento analítico


Por fim, em 1920, ao relatar a psicogénese de um caso de homosexualidade
feminina, Freud produz uma nota suplementar. Após atender a jóvem durante três meses
e meio com uma frequência de seis sessões semanais –o que significa um protocolo
clínico nada desprezível- dá por encerrado o tratamento e confessa que a análise nunca
fora iniciada. E nesse contexto ele diz:
“Em toda uma série de casos a análise se decompõe em duas fases. Em
uma primeira fase o médico … familiariza o paciente com as premissas
da análise .… Em uma segunda fase é o paciente quem se apossa do
material, trabalha e tenta recuperar o material reprimido. Sómente
durante este trabalho, pelo vencimento das resistencias, experimenta a
mudança interior que se pretende alcançar e adquire a convicção que o
tornam independente da autoridade médica”. 4
Percebe-se, claramente, que para Freud uma anamnese não é uma análise. Que o
traço que define a psicanálise não é a elaboração de um historial clínico explicativo. O
que define uma análise é a disposição do paciente de trabalhar sobre o recalque, vencer as
resistencias, avançar para além do impulso a não querer saber, se manter atento às
interpretações que lhe proporciona o próprio inconsciente e alcançar uma mudança
independente e duradoura na sua posição subjetiva.
Como podemos ver, a definição que Freud dá do que é uma análise supõe uma
série de condições e uma experiência muito precisas.

II- COM FREUD

1- Lacan e a queståo do ensino


Sabemos que Lacan ingressou na história da transmissão analítica de forma tardia.
Em 1951, sendo presidente da filial francesa da IPA, ele abriu um seminário destinado à
formação dos candidatos com base na leitura dos textos freudianos. Também sabemos
que este ensino tornou-se objeto de fortes controversias que desaguaram na scisão de
1953. E sabemos, por fim, que estas objeções voltaram a surgir em 1963 quando se selou
de maneira definitiva a linha divisória que, doravante, viria a distinguir o tipo de ensino
propugnado pela IPA e a formação tal e como passara a ser concebida por Lacan.
Diante de tais antecedentes, é fácil entender porque a preocupação com a
psicanálise pura (em contraposição à psicanálise aplicada), a definição do que é a

Amorortu Editores, Buenos Aires, 1975.


4
S FREUD – Psicogénesis de un caso de homosexualidad femenina – Vol XVIII, pag. 146
Amorrortu Editores, Buenos Aires, 1975.

2
analítica e finalmente o que ele designou como psicanálise em intensão ocupam um lugar
tão central no seu ensino. Com efeito, seu primeiro objetivo foi de relembrar que o ensino
da psicanálise depende do que uma análise ensina 5. Uma frase que parece tautológica
mas que prisa com clareza a premissa que rege sua doutrina.

2- Os fundamentos freudianos
Daí que a sua primeira providência tenha sido de extrair os fundamentos
freudianos do que é uma psicanálise propriamente dita.
1- O primeiro fundamento pode ser resumido pelo aforismo que diz que uma análise
aspira a ‘tornar consciente o inconsciênte’. Com a consequência que o
reconhecimento do inconsciente nos obriga a reconhecer a presença de um Eu
para além da consciencia. Um eu acéfalo se levarmos em conta que ele está
implícito e inmerso na série dos pensamentos inconscientes.
2- O segundo deriva da descoberta que o encadeiamento dos pensamentos
inconscientes supõe a presença do desejo. Com a consequência que a existência
do desejo supõe a presença de um querer ou uma vontade, subentendendo-se que
esta vontade prefigura um sujeito. Um sujeito de desejo, na contramão das
aspirações do ‘eu’ e dos ideais da consciencia.
3- O terceiro fundamento deriva da descoberta, para além do inconsciente, da pulsão.
Uma dimensão, cuja força de impulsão e cuja meta de satisfação é tão radical que
–não por acaso- evoca a noção de causa. Causa material. A consequência é que, a
descoberta da pulsão implica na correlativa assunção de uma causa do desejo e,
por extensão, do sujeito em questão.
4- O quarto é a descoberta que no fim do circuito pulsional há uma exigência de
satisfação –um imperativo de gozo- com a correlativa consequência que a
descoberta desta dimensão pressupõe a destituição subjetiva e a correlativa
assunção da causa em questão. O que representa uma subversão.
5- O quinto e último tem a arquitetura de um aforismo. Lacan o define como um
legado, o legado de Freud, cujo enunciado diz: Wo Es war, soll Ich werden.
“Onde Isso era, alí, deve o sujeito advir”. Tal a tradução. Que Lacan suscreve. O
que não impede uma série de exercicios destinados a interrogar seu sentido. Pois,
que pode isso querer dizer? Que o Eu deva substituir o Isso? Ou que é o sujeito do
inconsciente, que deve moldar-se para assumir as determinações do Isso pulsional
e o gozo correspondente?
No fundo, este recenseamento recolhe as linhas principais de uma elaboração cujo
centro reside na exigência freudiana que, para que uma análise possa ser definida como
tal é condição sine qua non que o paciente em trabalho de análise tenha assumido não
apenas a tarefa de vencer a resistência mas também se disposto a acolher, para sí, em
primeira pessoa, as consequências que se depreendem da existência do inconsciente.
Mesmo quando os dados desta elaboração se mostrem contrários as idéias que ele tem de
sí e do mundo. Esta admissão é o primeiro passo para essa transformação que a
psicanálise freudiana designa como cura.

III – APÓS FREUD


5
J LACAN – La psychanalyse et son enseignement – pag. 440. In: Ecrits - Editions du Seuil, Paris, 1966.

3
1- Lacan e os fundamentos
No mais, em 1954 a doutrina analítica dava sinais de estar à beira de um impasse.
A interpretação –inicialmente subordinada à associação livre e a isso que Freud designara
como Construções em psicanálise- parecia ter se desvencilhado destas amarras e
navegava, livre e solta, no meio analítico. Interpretar era coisa de analista e a única
exigência que se lhe fazia era que tivesse uma mínima ressonância teórica.
Lacan contesta este status quo e abre sua crítica com um sério questionamento
contra a tendência objetivante. Algo que ele resume de forma irónica quando adverte que
“…não se trata de explicar porque é que a moça é muda, mas… de fazé-la falar” 6. Por
sinal, uma sentença que admite paráfrases. A saber que…
- não se trata de explicar porque o inconsciente cala mas… de fazé-lo falar,
- não se trata de julgar porque a verdade é silenciosa, mas… de fazé-la se manifestar,
- não se trata de dizer porque a pulsão de morte é muda, mas… de fazé-la se revelar.
Para ele, a coisa é muito clara. Não é ao analista que incumbe falar pelo
inconsciente, manifestar-se em nome da verdade ou revelar a pulsão. O próprio do
analista é saber fazer e, aliás, de um modo tal que o inconsciente venha a falar, a verdade
venha a se dizer, a pulsão venha a revelar-se. Em nome próprio –se pudermos dizer. É por
isso e só para isso, que o analista está aí. Com o adendo que sua pericia se encerra no que
o paciente aceita acolher essa mensagem que lhe chega como se fosse de longe… e em
forma invertida. E tudo isto porque, a psicanálise não é uma Weltanschaaung. Tampouco
uma hermeneutica.

2- As primeiras pontuações
Assim, entende-se pois que desde o início ele tenha tomado uma posição
principista. De se contrapôr à tendência objetivante. De advogar pela dimensão subjetiva.
De invocar o sujeito. E aí, não há de surpreender ver as fórmulas se reiterarem, repetirem
e transformarem: “assunção subjetiva, subjetivação, realização do sujeito…”. Contudo, é
verdade que dada a intenção crítica face à tendência objetivante elas dão a impressão de
representarem uma alternativa; vide, uma opçåo moral. Como quem diz: “não convém
virar à direita; melhor à esquerda” querendo dizer: “é sempre preferível seguir pela
vereda subjetiva”.
Mas se tal fosse o caso, há que advertir. Que a estridência do debate não nos
ensurdeça ao ponto de esquecermos o ponto central. Porque, para além do calor da
polémica, o que está em pauta é a tese de Feud que define a cura como uma mudança.
Radical. Uma transformação na posição do sujeito.

3- O obstáculo na questão
É por isso que o seminário de 1956, consagrado ao tema das psicoses, tem uma
importância tão grande. Afinal, o que a psicose demonstra é a existência de uma
impossibilidade. A impossibilidade do psicótico em realizar a referida assunção
subjetiva. A não ser através de uma severa eclosão delirante. Ou seja, declarando um
surto. Para o psicótico o objetivo da cura é inexeqüivel. Simplesmente, porque não há, na
psicose, um correlato para a posição do sujeito.

6
J LACAN – Le seminaire, Livre I – Les ecrits techniques de Freud – Cap IV, pag 53
Editions du Seuil, Paris, 1975.

4
O motivo é simples. Ao psicótico falta um significante. Um significante capaz de
representar sua posição na cadéia. Não é pois uma falta qualquer. É uma foraclusão.
Assim, falta-lhe o significante que Lacan designa como: do nome-do-pai. E, não havendo
significante para representar a posição do sujeito, esse lugar é ocupado (invadido -?-)
pelo Outro do delirio e pela injunção do gozo. Daí a pergunta que funda o seminário: um
tratamento possível?
A partir daquí o problema do estatuto do sujeito e, mais ainda, a questão de sua
definição clínica, formal e material se transformam, para Lacan, em um problema
epistémico de primeira magnitude e da maior preemência.

4- O sujeito em questão
Eis porque, de 1957 a 1965 –do Seminário IV ao Seminário XIII- Lacan vai
realizar uma tarefa titánica até concluir. Uma tarefa que –de acordo com o título de um
dos seus escritos- terminará pondo o sujeito em questão7.
Porque?
Em primeiro lugar, porque do ponto de vista clínico o Sujeito não é algo (uma
substância) e nem alguém (um ente). É uma função em estado de latência que o trabalho
da análise põe em marcha e opera como fundamento da cura 8. Portanto, uma função do
inconsciênte. Do saber inconsciente. E, por permanecer como uma suposição sempre
atrelada ao saber, o Sujeito é suposto ao saber. Ao saber do inconsciente.
Já do ponto de vista formal, ele só pode ser concebido em relação ao simbôlico.
Portanto, é ligado ao significante. O que não quer dizer que o Sujeito é um significante.
Pois, se for para dizé-lo nesses termos teriamos de concebê-lo como uma hiância. Como
o intervalo que separa um significante do Outro… significante. No mais, essa hiância
implica uma realidade pulsativa, o que nos leva ao ponto de vista material.
Do ponto de vista material o Sujeito é um corte. Pressupõe uma falta e, por essa
via, prefigura o fundamento do desejo. É a castração simbólica, sem a qual não há
pulsação nem desejo passível de ser assumido. Por lógica consequência, não há “quem”
em condições de ficar a postos para assumí-lo.
De resto, e para concluir, convém lembrar que –para Lacan- a cura analítica
pressupõe um passo a mais. A necessidade de realizar que o Sujeito não é causa de sí. Ele
é causado. Por um objeto que Lacan denota com a letra: “a”. E é nesse encontro do
sujeito com o objeto-causa, nesse encontro do corte com a falta, que sobrevêm um dos
desfechos da cura: a destituição subjetiva. A saber, a realização da sua inconsistência.

Curitiba, Julho de 2010.

7
J LACAN – Du sujet enfin en question – In Ecrits, pag. 229. - Editions du Seuil, Paris, 1966.
8
A GODINO CABAS – O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan – pags 15/17
Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2009.

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