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Nº 526 | Ano XVIII | 13/8/2018

Sistema público
de saúde
Aos 30 anos, o desafio de combater o
desmonte do SUS

Sérgio Piola
Nelson Rodrigues dos Santos
José Gomes Temporão
Jairnilson Paim
Reinaldo Guimarães
Carlos Ocké-Reis
Anakeila Stauffer

Leia também
■ Carlos Nobre
■ Bruno Lima Rocha
■ Gabriel Adams
EDITORIAL

Sistema público e universal de saúde


Aos 30 anos, o desafio de combater o desmonte do SUS

N
o ano em que completa três décadas de O médico Reinaldo Guimarães, autor de um
implantação, o Sistema Único de Saúde texto que é considerado peça fundante da Reforma
- SUS já sente as consequências do prin- Sanitária no Brasil, denuncia que o financiamento
cipal golpe que sofreu em sua trajetória. Trata-se do SUS é corroído desde sua criação, e o ápice das
da promulgação da Emenda Constitucional nº constantes alterações nas regras que viabilizam a
95 em dezembro de 2016. De autoria do governo sua sustentação é a EC 95. O economista Carlos
de Michel Temer, ela limitou os gastos públicos Ocké-Reis observa que o caminho para o SUS ser
por 20 anos, fixando em zero o crescimento real único e universal passa pela política e pelo fortale-
das despesas primárias. No momento, os efeitos cimento da base social de apoio, principalmente
mais notórios são a redução de atendimento, a em um contexto em que o sistema está vulnerá-
falta de insumos básicos e a precariedade na ma- vel porque o governo Temer adotou uma política
nutenção de equipamentos, na distribuição de econômica neoliberal que amplia o desemprego e
medicamentos e nos programas de promoção e reduz investimento público e gasto social.
prevenção da saúde. Anakeila Stauffer, da Fundação Osvaldo Cruz
O ataque ao SUS não se resume à EC 95. A - Fiocruz, destaca que a lógica de atendimento aos
tentativa de reduzir o sistema a uma política de usuários do SUS, que vai além do tratamento de
controle de doenças e epidemias ou à profilaxia doenças, levou a constituição de profissionais pre-
favorece o mercado, que ficaria com a rentável fa- parados para promoção da saúde integral.
tia da assistência médica. Para entender a gravi-
Esta edição traz ainda a entrevista com o enge-
dade da ameaça ao maior sistema público e uni-
2 nheiro Carlos Nobre, que analisa os desafios de
versal de saúde do mundo, esta edição da revista
se aliar desenvolvimento econômico e tecnológico
rememora os princípios da criação do SUS, que
para a preservação da floresta Amazônica. Leia
remonta à Constituição de 1988.
também a reportagem produzida pela equipe do
A garantia para que o SUS seja efetivamente um Observatório das Realidades e Políticas
sistema público e universal de saúde passa, ne- Públicas do Vale do Rio dos Sinos - Obser-
cessariamente, pela modificação da EC 95, enfati- vasinos, programa do Instituto Humanitas Uni-
za o médico Sérgio Piola. “Além do absurdo de sinos - IHU, sobre saúde e segurança do trabalha-
congelar a despesa primária por 20 anos, se o país dor e da trabalhadora na região do Vale do Sinos,
retomar o crescimento, retomar um crescimento no período de 2003 a 2016; o artigo de Gabriel
mais acentuado de suas receitas, todo o adicional Adam sobre a guerra comercial entre Estados
vai para a formação de superávit primário, para o Unidos e China; e a entrevista em que Bruno
pagamento de juros e encargos da dívida”, critica. Lima Rocha analisa a conjuntura nacional em
Para o médico Nelson Rodrigues dos San- perspectiva com o cenário eleitoral de 2018.
tos, líder histórico da luta pela Reforma Sanitária, A todas e a todos uma boa leitura e uma exce-
o SUS é um processo inacabado porque, nos seus lente semana.
30 anos de funcionamento, “na prática, predomi-
nou nas políticas de Estado a hegemonia dos in-
teresses e estratégias da acumulação do capital”.
Se o SUS não for prioridade absoluta, o Brasil
terá dois sistemas de saúde: um para os pobres e
outro para a classe média, alerta o médico e ex-
ministro da Saúde José Gomes Temporão.
Ele afirma que a continuidade do sistema depen-
de do aumento do investimento público na saúde
e no programa de atenção primária. O médico
Jairnilson Paim, ao dimensionar o SUS, afir-
ma que ele é mais do que uma política de saúde
pública, e essa compreensão é importante para
Foto: Altemar Alcan-
enfrentar seus limites e fortalecer ações que en- tara - Semcom/ Flickr
volvem desde saúde até assistência social. Creative Commons

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Bruno Lima Rocha: A encruzilhada brasileira: entre as alianças com as elites e a soberania popular
14 ■ Tema de capa | Sérgio Piola: Garantia de mais recursos para o SUS passa pela modificação da
Emenda Constitucional 95
19 ■ Tema de capa | Nelson Rodrigues dos Santos: É preciso destacar a dedicação e persistência
dos gestores descentralizados e trabalhadores do SUS
22 ■ Tema de capa | José Gomes Temporão: Se o SUS não for prioridade absoluta, o Brasil terá dois
sistemas de saúde: um para os pobres e outro para a classe média
27 ■ Tema de capa | Jairnilson Silva Paim: SUS é mais do que uma política de saúde pública
32 ■ Tema de capa | Reinaldo Felippe Nery Guimarães: Financiamento do SUS é corroído desde
sua criação

35 Tema de capa | Carlos Ocké-Reis: Caminho para SUS ser único e universal passa pela política
e pelo fortalecimento da base social de apoio

38 Tema de capa | Anakeila Stauffer: Princípios do SUS transformam a formação dos
profissionais em saúde

44 Carlos Nobre: Amazônia 4.0. A criação de ecossistemas de inovação e o enraizamento de uma
nova bioeconomia

50 João Conceição; João Dias; Lucas Schardong; Marilene Maia: Saúde e segurança do 3
trabalhador. Especial do Trabalho Vale do Sinos 2003-2016

52 Crítica internacional | Gabriel Adam: A guerra comercial entre Estados Unidos e China
54 ■ Publicações | Juan Carlos Scannone: A ética social do Papa Francisco: O Evangelho da
misericórdia segundo o espírito de discernimento
56 ■ Publicações | Atilio Machado Peppe: Uma crítica filosófica à teoria da Sociedade do
Espetáculo em Guy Debord
59 ■ Outras edições

Diretor de Redação Fachin, Cristina Guerini, Evlyn Zilch,


Inácio Neutzling Anielle Silva, Victor Thiesen, William
(inacio@unisinos.br) Gonçalves, Stefany de Jesus Rocha,
Wagner Fernandes de Azevedo e Lidiane
Coordenador de Comunicação - IHU Menezes.
Ricardo Machado – MTB 15.598/RS
(ricardom@unisinos.br)
Jornalistas
João Vitor Santos – MTB 13.051/RS
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A IHU On-Line é a revista do Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Revisão Instituto Humanitas Unisinos - IHU
publicação pode ser acessada às segun- Carla Bigliardi
das-feiras no sítio www.ihu.unisinos.br e Av. Unisinos, 950 | São Leopoldo / RS
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Editoração
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ras, a partir das 8 horas, na Unisinos. O Diretor: Inácio Neutzling
conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Atualização diária do sítio Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas entrevistas publicadas no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU na última semana.

Da incerteza radical à necessidade de se


construir uma alternativa progressista
Giuseppe Cocco, professor titular da Universidade Federal do Rio de Ja-
neiro - UFRJ e editor das revistas Global Brasil, Lugar Comum e Multitudes e
Moysés Pinto Neto, professor no Programa de Pós-Graduação em Educação
e no curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil – ULBRA Canoas,
analisam as articulações e alianças para as eleições de 2018.

O jogo da política nas eleições presidenciais


e as tensões entre a habilidade e o risco
Roberto Romano, professor aposentado da Unicamp; Rudá Ricci, pro-
fessor da Escola Superior Dom Helder Câmara; Ivo Lesbaupin, professor
da UFRJ; e Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação e professor
da USP, analisam as estratégias de alianças do PT para as eleições e o anún-
cio da Capes de que o contingenciamento de recursos ameaça a manutenção
das pesquisas.

4 O surto de sarampo é um relaxamento da


saúde pública e da população
Marcus Lacerda, professor do Programa de Pós-Graduação em Me-
dicina Tropical da Universidade do Estado do Amazonas e da Kent State
University, observa o que representa esse aumento de casos de sarampo
acerca das estratégias de política de saúde pública no Brasil.

A favelização da Amazônia e a necessidade


de repactuar o papel da floresta na economia
Danicley de Aguiar, membro do Greenpeace para a Amazônia, denun-
cia como o descaso com a floresta tem impactado no empobrecimento das
pessoas que lá vivem.

Sínodo dos Jovens é novidade e confirmação


de que o Papa valoriza a juventude
Hilário Dick, graduado em Teologia pela Pontifícia Faculdade do Co-
légio Máximo Cristo Rei e em Filosofia e em Letras pela Unisinos; e Luis
Duarte Vieira, licenciado em Matemática, ambos articuladores da Pas-
toral da Juventude, analisam a importância do Sínodo proposto pelo Papa
Francisco aos jovens.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias


Confira algumas notícias públicas recentemente no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU

Além da pena de morte: A sobrevivência dos China: outro modelo


a evolução da doutrina. mais ricos e como neoliberal ou outra forma
Artigo de Andrea Grillo tramam abandonar de mercado?
o barco

“A modificação do n. 2.267 Para os multimilionários, o A partir da entrevista com


do Catecismo da Igreja Católi- futuro da tecnologia consiste Martin Jacques publicada
ca é o símbolo de um caminho em sua capacidade de fuga. em New Internationalist, de-
de tradução da tradição, do O objetivo é transcender a senvolveu-se um interessan-
qual devemos abordar muitas condição humana e se prote- te debate entre Gaia Perini
outras passagens igualmente ger da mudança climática, os e Gabriele Battaglia, ambos
delicadas: com paciência vi- grandes fluxos migratórios, especialistas em China.
gilante e audácia confiante.” as pandemias globais. O ar- Propomos a leitura da sua troca de
A opinião é do teólogo italiano tigo é de Douglas Rushkoff, opiniões, publicada em Effimera, 23-
Andrea Grillo, professor do escritor, documentarista e 08-2018, e reproduzida nas Notícias
do Dia, em 10-08-2018, disponível em
Pontifício Ateneu Santo An- palestrante estadunidense. http://bit.ly/2w4LtJo.
selmo, em Roma, do Instituto O artigo foi publicado por Ctxt e
Teológico Marchigiano. reproduzido nas Notícias do Dia, em
1-8-2018, disponível em
O artigo foi publicado por Come Se
http://bit.ly/2Mas9on.
Non e reproduzido nas Notícias do
Dia, em 06-08-2018, disponível em
http://bit.ly/2Mas9on.
5

A transparência é uma “As empresas Xingu, o rio que


cura geral? Artigo de tecnológicas buscam pulsa em nós: Juruna
Massimo Faggioli monetizar cada denunciam impactos
instante da vida” de Belo Monte

“Este é um tempo de desola- Éric Sadin veio a Buenos Ai- Em livro lançado hoje (8),
ção para a Igreja, como re- res apresentar seu último livro, indígenas apresentam os re-
conheceu o Papa Francisco La silicolonización del mundo, sultados do monitoramento
em janeiro passado, quan- que se refere aos perigos de feito durante quatro anos na
do estava em Santiago do se deixar subjugar por uma Volta Grande do Xingu (PA).
Chile”, escreve o historiador tecnologia que mede o que fa- E A reportagem é de Isabel Harari,
italiano Massimo Faggioli, zemos para o transformar em publicada por ISA, 09-08-2018, e
professor de Teologia e Es- dados mercantilizados. Agora reproduzida nas Notícias do Dia, em
13-08-2018, disponível em http://bit.
tudos Religiosos na Villano- trabalha em outro livro que ly/2P3Qfj2
va University, nos Estados segue a mesma linha: chamar
Unidos, em artigo publica- a atenção para os avanços tec-
do por Commonweal, 08- nológicos que retiram do ser
08-2018, e reproduzida nas humano sua independência.
Notícias do Dia, em 10-08- Entrevista de Alejandro Duchini,
2018, disponível em http:// publicada por La Gaceta, 12-8-2018,
bit.ly/2B7yUmx. disponível em http://bit.ly/2MlBwSc.

EDIÇÃO 526
AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Ecofeira Unisinos Os projetos políticos La vie algorithmique.


da eleição brasileira de Critique de la raison
Mostra, comercialização
e atividades culturais
2018. (Im)previsões e numérique - A vida
análises algorítmica: crítica da razão
numérica, em tradução
livre. Obra de Éric Sadin
15/ago 16/ ago 20/ago
Horário Horário Horário
1oh às 18h 17h30min às 19h 17h às 18h30min
Local Conferencista Conferencista
Corredor Central do Prof. Dr. Bruno Lima Rocha Prof. Dr. Ícaro Ferraz Vidal
Campus Unisinos – Unisinos Junior – UTP-PR
São Leopoldo, em frente
ao IHU Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros - IHU Companheiros - IHU

6
Revolução 4.0 Ecofeira Unisinos O varguismo e seus
e os riscos da reflexos no trabalhismo
Mostra, comercialização
totalização digital e atividades culturais
e na eleição brasileira
de 2018

20/ago 22/ago 23/ago


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 1oh às 18h 17h30min às 19h
Conferencista Local Conferencista
Prof. Dr. Ícaro Ferraz Vidal Corredor Central do Prof. Dr. Alessandro Batis-
Junior – UTP-PR Campus Unisinos tella – UPF
São Leopoldo, em frente
Local ao IHU Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros - IHU Companheiros - IHU

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Determinantes da Exibição do filme No Debate sobre o filme


desigualdade social e Intenso Agora (Direção: No Intenso Agora
da riqueza no Brasil João Moreira Salles,
Documentário, Brasil,
2017 – 127 min.)

27/ago 28/ago 28/ago


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 17h às 19h30min 19h30min às 22h
Conferencista Local Debatedoras
Prof. Dr. Pedro Herculano Sala Ignacio Ellacuría e Profa. Dra. Marilia Veríssi-
de Souza – IPEA – Companheiros – IHU mo Veronese – Unisinos e
Brasília – DF Profa. Dra. Sinara Santos
Robin – Unisinos
Local
Sala Ignacio Ellacuría e Local
Companheiros - IHU Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU

EDIÇÃO 526
ENTREVISTA

A encruzilhada brasileira: entre as alianças


com as elites e a soberania popular
Bruno Lima Rocha analisa o cenário pré-eleições em
perspectiva com as políticas interna e externa
Patricia Fachin | Edição: Ricardo Machado

A
disputa eleitoral tem se intensi- bilidade e defesa dos biomas naturais”.
ficado cada dia mais, sobretudo Além disso defende que as políticas re-
no contexto pós-convenções e de lativas às reservas estratégicas, como o
começo dos programas televisivos de Pré-Sal, por exemplo, devem passar por
entrevistas com os candidatos. O que o uma profunda reconfiguração para dei-
cenário mostra, no entanto, é pouca no- xarem de ser primárias exportadoras.
vidade em termos de projetos políticos “Simultaneamente, precisamos avan-
e de rompimento com os arranjos da çar na área científica, não permitir a
nova república. “Quaisquer destas can- presença tão intensa de capitais chine-
didaturas, se eleitas, caso não venham ses e transnacionais em setores estru-
a mudar tanto a correlação de forças turais (como a energia elétrica de São
internas e deixar de confiar no modo Paulo) e buscar retomar o tempo perdi-
‘republicano’ de lealdade com as elites do em áreas com tecnologia digital para
8 rádio e TV, semicondutores, energia
dirigentes e da classe dominante, como
na ‘não interferência’ da superpotência alternativa e materiais de construção
(EUA) e da potência concorrente (Chi- sustentáveis”, sustenta.
na), estaremos apenas adiando o futuro Bruno Lima Rocha é graduado em
ciclo de crises institucionais e golpes ju- Jornalismo pela Universidade Federal
rídico-midiáticos”, afirma Bruno Lima do Rio de Janeiro - UFRJ e é mestre
Rocha, em entrevista por e-mail à IHU e doutor em Ciência Política pela Uni-
On-Line. “Logo, o projeto político que versidade Federal do Rio Grande do
componha um protagonismo do povo Sul - UFRGS. Atualmente realiza está-
organizado e dispute a consciência das gio pós-doutoral em Economia Política
maiorias em todos os níveis (assim pela UFRJ. É professor de Relações In-
como promova uma descolonização de ternacionais e Jornalismo na Unisinos.
nossa sociedade) não passa pelas ur- No dia 16 de agosto, às 17h30, Bruno
nas”, complementa. Lima Rocha apresenta a conferência
No que se refere a um projeto de Os projetos políticos da eleição
Brasil, Rocha considera que o “desen- brasileira de 2018. (Im)previsões
volvimento do país deveria ser basea- e análises. O evento faz parte da pro-
do na defesa da soberania popular, da gramação do IHU ideias e é realizado
descolonização, da subordinação das na Sala Ignacio Ellacuría e Companhei-
instituições formais ao povo brasileiro ros - IHU.
e dos projetos baseados em sustenta- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os mentalmente? Bolsonaro1 (PSL-PRTB) representa


projetos políticos que estão em
disputa nas eleições presiden- Bruno Lima Rocha – Vejo qua-
1 Jair Bolsonaro (1955): militar da reserva e deputado
ciais deste ano e em que aspec- tro projetos políticos bastante distin- federal nascido em Campinas (SP). De orientação política
de extrema direita, conservadora e nacionalista, cumpre
tos eles se diferenciam funda- tos. Da direita para a esquerda, Jair sua sétima legislatura na Câmara Federal. Em janeiro de

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“O projeto político que componha um


protagonismo do povo organizado e dispute a
consciência das maiorias em todos os níveis
(assim como promova uma descolonização
de nossa sociedade) não passa pelas urnas”

uma espécie de aventura da extre- Ainda na direita, o Centrão que apoia to, o discurso de Marina Silva7 (Re-
ma-direita, combinando a herança Geraldo Alckmin3 (PSDB e aliados) de-PV) está tentando se localizar
daqueles que reivindicam o papel disputa espaço com candidaturas ao “centro”, mas ainda assim não
dos militares na guerra suja contra a semelhantes, porém, com menos tem uma inflexão diferente no que
insurgência anti-ditadura, com a as- sustentação política, como Henrique diz respeito às medidas de política
censão de duas forças: uma vertente Meirelles4 (MDB-PHS), Álvaro Dias5 econômica. Reconheço que, para as
do mercado financeiro e o rentismo (Podemos e aliados) e João Amoêdo6 candidaturas do centro-direita (Ma-
(que também coabitam outras can- (Novo). Ou seja, qualquer um desses rina), da direita (Alckmin, Meirelles
didaturas) e o apoio de uma parcela candidatos executaria uma política e Dias) e as duas na extrema direita,
daqueles que exploram o neopente- semelhante, ao menos em termos com Amoêdo (ultra-liberalismo) e
costalismo e a Teologia da Prospe- de alinhamentos estratégicos para o Bolsonaro (flertando com o proto-
ridade. Ou seja, é um conservador país e, dentro disso, negociando com fascismo), Marina é a que seria me-
social em todos os sentidos, prestan- as bancadas setoriais conservadoras nos fechada para os temas do século
do o desserviço de colocar as Forças (como a da bíblia, do boi, da bala e XXI, embora nos quesitos direitos 9
Armadas dentro da arena eleitoral, da bola) as pautas que atendam a reprodutivos e temas de políticas de
a começar pelo seu vice, mais que esta clientela. Neste posicionamen- gênero, ela se mostre bastante con-
controverso, o general (da reserva) servadora.
Antônio Hamilton Martins Mourão2.
brasileiro. No dia 11 de dezembro de 2017, o presiden-
A candidatura de Ciro Gomes8 que,
te Michel Temer determinou sua exoneração, ato que foi teoricamente, se posiciona junto ao
2018, anunciou sua filiação ao Partido Social Liberal - PSL, cancelado em seguida, sendo transferido para a reserva
o nono partido político de sua carreira. Foi o deputado no dia 28 de fevereiro de 2018. Em 5 de agosto, foi anun- trabalhismo na “centro-esquerda”,
mais votado do estado do Rio de Janeiro nas eleições ge- ciado como candidato a vice-presidente da República, na
rais de 2014. Ficou conhecido pela luta contra os direitos chapa encabeçada pelo deputado Jair Bolsonaro. (Nota da
é a mais sólida em termos de pro-
LGBT, pela defesa da ditadura e da tortura. Seus embates IHU On-Line) postas econômicas e alinhamento
contra os direitos humanos são constantes. Suas declara- 3 Geraldo Alckmin [Geraldo José Rodrigues Alckmin Fi-
ções controversas já lhe renderam cerca de 30 pedidos de lho] (1952): médico e político brasileiro nascido em Pinda- estratégico do Estado brasileiro. Ao
cassação e três condenações judiciais, desde que foi eleito monhangaba (SP), filiado ao Partido da Social Democracia mesmo tempo, Ciro não foi alçado à
deputado em 1989. Documentos produzidos pelo Exército Brasileira – PSDB. Foi governador de São Paulo entre 2001
Brasileiro na década de 1980 mostram que os superiores e 2006 e de 2011 a 2018, tendo renunciado no dia 6 de composição de alianças pelo lulismo
de Bolsonaro o avaliaram como dono de uma “excessiva abril para disputar as eleições presidenciais. Em 2006, con-
ambição em realizar-se financeira e economicamente”. Se- correu à presidência da república pelo PSDB, sendo derro- e acabou indicando a senadora la-
gundo o superior de Bolsonaro na época, o coronel Carlos tado por Lula. Atualmente é pré-candidato à presidência
Alfredo Pellegrino, “[Bolsonaro] tinha permanentemente da república. (Nota da IHU On-Line)
a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi 4 Henrique de Campos Meirelles (1945): engenheiro civil 7 Marina Silva (1958): política brasileira, ambientalista e
sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo e administrador brasileiro. Fez carreira como executivo do pedagoga. Foi senadora pelo estado do Acre durante 16
dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, setor financeiro no Bank of Boston, tornando-se CEO do anos. Foi Ministra do Meio Ambiente no Governo Lula do
racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argu- BankBoston Corporation. Foi presidente do Banco Central seu início (1/1/2003) até 13 de maio de 2008. Também foi
mentos”. É notório o seu machismo, como evidenciam as do Brasil entre janeiro de 2003 e dezembro de 2010, du- candidata à Presidência da República em 2010 pelo Par-
agressões e ofensas direcionadas a suas colegas parla- rante a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, constituindo-se tido Verde (PV), obtendo a terceira colocação entre nove
mentares. Seu desrespeito à condição feminina não pou- na pessoa que por mais tempo ocupou o cargo na insti- candidatos. Também foi condidata à presidência em 2015
pou nem a filha. Em abril de 2017, em um discurso no Clu- tuição. Em 2002, havia candidatado-se pelo PSDB ao car- pelo PSB, depois da morte de Eduardo Campos. Marina
be Hebraica, no Rio de Janeiro, Bolsonaro fez uma menção go de deputado federal por Goiás, tendo sido eleito. No era vice de Campos e acabou assumindo a chapa. Atual-
à caçula, então com seis 6 anos: “Eu tenho cinco filhos. entanto, optou por aceitar a presidência do Banco Cen- mente ela é candidata à presidência da república (Nota
Foram quatro homens, aí no quinto eu dei uma fraqueja- tral, não assumindo a cadeira de deputado. Desfiliou-se da IHU On-Line)
da e veio uma mulher”. Em uma entrevista para a revista do PSDB (que fazia oposição ao governo Lula) e filiou-se 8 Ciro Gomes (1957): político, advogado e professor
Playboy, em junho de 2011, sua agressividade dirigiu-se posteriormente ao PMDB. Mais tarde, ingressou n PSD. Em universitário nascido em Pindamonhangaba (SP). Filiado
aos gays: “Seria incapaz de amar um filho homossexual”. maio de 2006, quando Michel Temer assumiu a presidên- ao Partido Democrático Trabalhista (PDT), do qual é vi-
Ainda disse preferir que um filho “morra num acidente cia do Brasil, depois do afastamento de Dilma Rousseff, ce-presidente. Ocupou altos cargos políticos no país. Foi
do que apareça com um bigodudo por aí”. Em abril de Meirelles volta à espalnada como Ministro da Fazenda. deputado estadual por duas legislaturas no Ceará, prefeito
2017, durante um discurso no Clube Hebraica, no Rio de Atualmente se licenciou do cargo de ministro é candidato de Fortaleza, governador do Ceará e ministro da Fazen-
Janeiro, afirmou que acabará com todas as terras indíge- à presidência pelo MDB. (Nota da IHU On-Line) da do Governo Itamar Franco, durante a implantação do
nas e comunidades quilombolas do Brasil caso seja eleito 5 Álvaro Dias (1944): é um historiador, professor e político Plano Real, e ministro da Integração Nacional durante o
presidente em 2018. Também disse que terminará com o brasileiro. Filiado ao Podemos (PODE), exerce atualmente projeto de transposição do rio São Francisco no governo
financiamento público para ONGs: “Pode ter certeza que o cargo de Senador da República Federativa do Brasil, re- de Luiz Inácio Lula da Silva. Seu último mandato político
se eu chegar lá não vai ter dinheiro pra ONG. Se depender presentando o Estado do Paraná. É candidato à presidên- foi o de deputado federal entre 2007 e 2010. Radicado
de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de cia do Brasil pelo Podemos. (Nota da IHU On-Line) em Sobral, Ceará desde 1962, é formado em direito pela
casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva 6 João Amoêdo (1962): é um ex-banqueiro, engenheiro, Universidade Federal do Ceará. No setor privado, também
indígena ou pra quilombola”. Atualmente é pré-candidato administrador de empresas, ativista político e palestrante ocupou os cargos de presidente da Transnordestina S/A e
à Presidência da República. (Nota da IHU On-Line) brasileiro. É um dos fundadores do Partido Novo (NOVO), foi um dos diretores da Companhia Siderúrgica Nacional.
2 Antonio Hamilton Martins Mourão (1953): é um gene- partido que presidiu até julho de 2017. Atualmente é can- É candidato à presidência da República para 2018. (Nota
ral de exército da reserva do Exército Brasileiro e político didato à presidência do Brasil. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 526
ENTREVISTA

tifundiária Katia Abreu9 (PDT-TO) (PC do B) de vice mais provável, cuja para o Brasil na atual conjun-
como representante do agro moder- aliança tem ainda o PROS e o PCO. tura e por quê?
nizado e com alguma noção de nacio- Quase seguro que o substituto de
Bruno Lima Rocha – Essa é uma
nalismo. Eu colocaria o Ciro como Lula será o ex-ministro e ex-prefeito
pergunta delicada, porque quando
um candidato nacionalista clássico, de São Paulo, Fernando Haddad12,
afirmamos o “melhor para o Brasil”,
sem um perfil classista e, como tal, fechando a chapa Haddad-Manuela.
estamos trazendo à tona o modelo
necessariamente, aliando-se com a Em termos de política econômica,
clássico de posicionamento de um
parcela do empresariado brasileiro possivelmente, essa chapa executa-
Estado da Semiperiferia, dentro do
ria medidas semelhantes daquelas
restante. Na centro-esquerda te- Sistema Internacional e do Sul Glo-
propostas por Ciro, modificando o
mos a candidatura do ex-presidente bal. Neste sentido, as candidaturas
estilo de governo e o grau de rejei-
Lula10 (PT) com Manuela D’ávila11 que vão do trabalhismo à esquerda
ção dos grupos de mídia e do apare-
seriam menos prejudiciais ao povo
lho Judiciário, ou mesmo da parce-
9 Kátia Abreu (1962): empresária, pecuarista e política nas-
cida em Goiânia (GO). Atualmente é filiada ao PDT. Já passou la mais engajada politicamente do brasileiro do que o centro-direita, di-
por PPB, PFL, DEM, PSD e PMDB. Foi ministra da Agricultura,
Ministério Público Federal – MPF. reita e extrema direita. O problema
Pecuária e Abastecimento durante o segundo governo de
Dilma Rousseff. É senadora pelo estado do Tocantins. Forma- Já a candidatura de esquerda, apon- de fundo é outro. Primeiro: se o novo
da em Psicologia na Universidade Católica de Goiás, tornou-
se pecuarista ao assumir, com a morte do marido em 1987, tando um reformismo radicalizado governo não reverter as medidas to-
uma fazenda no antigo norte goiano, atualmente Tocantins.
(comparável ao candidato Luiz Iná- madas pelo governo ilegítimo de Te-
Mudou-se para a fazenda mesmo sem muito conhecimento
de como conduzi-la. Ao chegar à fazenda, encontrou dentro cio Lula da Silva, no primeiro turno mer (como a EC do teto dos gastos,
do cofre da propriedade um roteiro completo sobre o que
de 1989) é a de Guilherme Boulos13 por exemplo), não terá margem para
fazer caso o seu marido não pudesse gerenciar a fazenda.
Segundo Kátia, Irajá Silvestre havia deixado uma espécie
e Sônia Guajajara14 (PSOL-PCB), quase nada. Segundo: se esta nova
de inventário, no qual explicava coisas como onde aplicar o
dinheiro, quais dívidas deveriam ser pagas primeiro e quais aglutinando setores de movimentos administração não defender tanto o
eram os investimentos prioritários para o aumento da pro-
sociais brasileiros do século XXI. patrimônio como a soberania nacio-
dutividade da fazenda. Destacou-se entre os produtores da
região e logo tornou-se presidente do Sindicato Rural de nal e suas reservas estratégicas, es-
Gurupi. Em seguida, foi eleita presidente da Federação da
Agricultura e Pecuária do Estado do Tocantins, cargo que tará hipotecando o futuro de nosso
exerceu por quatro mandatos consecutivos entre 1995 e IHU On-Line – Qual desses país. Terceiro: se o Poder Executivo
2005. Em novembro de 2008, foi eleita presidente da Con-
federação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), para o projetos seria mais adequado não retomar o controle sobre o Ban-
triênio 2008 a 2011. A entidade representa 27 federações es-
10 taduais, 2.142 sindicatos rurais por todo o Brasil e mais de 1
co Central e conseguir apoio popular
milhão de produtores sindicalizados. Kátia é pré-candidata à jornalista e política brasileira, filiada ao Partido Comunista para que a autoridade monetária fi-
governadora do Tocantins nas eleições de 2018. Ela convidou do Brasil (PCdoB). Foi deputada federal pelo Rio Grande
a ex-presidente Dilma Rousseff para disputar uma vaga no do Sul entre 2007 a 2015 e líder de seu partido na Câmara que submetida não aos especuladores
Senado Federal do Brasil pelo seu estado, contando com o dos Deputados, em 2013. Exerce atualmente o mandato
seu apoio. Sua atuação em defesa dos agropecuaristas tem de deputada estadual em seu estado. Em 2017, foi indi-
e rentistas, mas sim à soberania po-
gerado animosidade entre alguns ecologistas. Foi rotulada cada por seu partido como pré-candidata à Presidência pular, será muito difícil governar com
pelos ativistas ambientalistas como “Miss Desmatamento”. para a eleição de 2018. Compõe a chapa do PT para a
Também é criticada por manter dois terrenos improdutivos presidência onde poderá postular o cargo de vice em caso um projeto distinto. Quarto: quais-
que concentram 25 mil hectares de terra. Defende a política de confirmação da retirada de Lula do pleito. (Nota da IHU
de uso de sementes alteradas em laboratório patenteadas On-Line)
quer destas candidaturas, se eleitas,
por grandes corporações de biotecnologia como a Mon- 12 Fernando Haddad (1963): advogado, acadêmico e po- caso não venham a mudar tanto a
santo. Em novembro de 2017, o conselho de ética do PMDB lítico nascido em São Paulo (SP). Filiado ao PT. Ministro da
decidiu por expulsar a senadora do partido por criticar o par- Educação entre julho de 2005 e janeiro de 2012, nos go- correlação de forças internas e deixar
tido e o governo de Michel Temer. Filiou-se ao PDT em abril vernos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, e prefeito
de 2018 e é vice na chapa com Ciro Gomes ao Planalto. (Nota de São Paulo entre 2013 e 2016. É professor de Ciência
de confiar no modo “republicano” de
da IHU On-Line) Política da Universidade de São Paulo, instituição onde lealdade com as elites dirigentes e da
10 Luiz Inácio Lula da Silva (1945): Trigésimo quinto presi- graduou-se em direito, fez mestrado em Economia e dou-
dente do Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro torou-se em Filosofia. Trabalhou como analista de investi- classe dominante, como na “não in-
de 2011. É cofundador e presidente de honra do Partido mento no Unibanco e, de 2001 até 2003, foi subsecretário
dos Trabalhadores - PT. Em 1990, foi um dos fundadores e de Finanças e Desenvolvimento Econômico da prefeitura
terferência” da Superpotência (EUA)
organizadores do Foro de São Paulo, que congrega parte de São Paulo, na administração de Marta Suplicy. Integrou e da potência concorrente (China),
dos movimentos políticos de esquerda da América Latina e o Ministério do Planejamento do Governo Lula durante a
do Caribe. Foi candidato a presidente cinco vezes: em 1989 gestão de Guido Mantega (2003–2004), oportunidade na estaremos apenas adiando o futuro
(perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994 (perdeu qual elaborou o projeto de lei que instituiu as Parcerias
para Fernando Henrique Cardoso) e em 1998 (novamen- Público-Privadas (PPPs) no Brasil. Atualmente é o nome a
ciclo de crises institucionais e golpes
te perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e ganhou as concorrer a Presidência da República pelo PT, caso a cam- jurídico-midiáticos. Logo, o projeto
eleições de 2002 (derrotando José Serra) e de 2006 (der- panha de Lula seja impugnada. (Nota da IHU On-Line).
rotando Geraldo Alckmin). Lula bateu um recorde histórico 13 Guilherme Boulos (1982): ativista, político, professor e político que componha um protago-
de popularidade durante seu mandato, conforme medido escritor nascido em São Paulo (SP). Membro da Coordena- nismo do povo organizado e dispute
pelo Datafolha. Programas sociais como o Bolsa Família e ção Nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto
Fome Zero são marcas de seu governo, programa este que - MTST. Reconhecido como uma das principais lideranças a consciência das maiorias em todos
teve seu reconhecimento por parte da Organização das da esquerda no Brasil e pré-candidato à Presidência da
Nações Unidas como um país que saiu do mapa da fome. República pelo PSOL para as eleições de 2018, tendo a os níveis (assim como promova uma
Lula teve um papel de destaque na evolução recente das líder indígena Sônia Guajajara como vice. Formado em descolonização de nossa sociedade)
relações internacionais, incluindo o programa nuclear do Irã Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Hu-
e do aquecimento global. É investigado na operação Lava manas da Universidade de São Paulo - FFLCH-USP, onde não passa pelas urnas. Entretanto,
Jato e foi denunciado em setembro de 2016 pelo Ministério ingressou em 2000. Também é psicanalista e leciona psi-
Público Federal (MPF), apontado como recebedor de vanta- canálise. Atualmente é candidato à presidência pelo PSol. reconheço que as candidaturas que
gens pagas pela empreiteira OAS em um tríplex do Guarujá.
No dia 12 de julho de 2017, Lula foi condenado pelo juiz
(Nota da IHU On-Line)
14 Sônia Bone Guajajara (1974): é uma líder indígena
vão do trabalhismo, centro-esquerda
federal Sérgio Moro, em primeira instância, a nove anos e brasileira, formada em Letras e em Enfermagem, especia- e esquerda reformista são mais apro-
seis meses de prisão em regime fechado por crimes de cor- lista em Educação especial pela Universidade Estadual do
rupção passiva e lavagem de dinheiro. No dia 24 de janeiro Maranhão. Recebeu em 2015 a Ordem do Mérito Cultu- priadas para melhorarem a condição
de 2018, por unanimidade, os três desembargadores da 8ª
Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirma-
ral. Sua militância em ocupações e protestos começou na
coordenação das organizações e articulações dos povos
de vida do que as demais. Insisto: é
ram a condenação de Lula, elevando a pena para 12 anos indígenas no Maranhão - COAPIMA e levou-a à coordena- na acumulação de forças para além
e um mês de prisão. No dia 7 de abril de 2018 Lula, após ção executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
mandado de prisão expedido pelo judiciário, entregou-se à – APIB. Antes disso ainda passou pela Coordenação das do jogo (ou jogatina) eleitoral que
Polícia Federal, onde se mantém sob custódia na Superin- Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira - COIAB. deveria apostar todas as fichas às es-
tendência do órgão em Curitiba. (Nota da IHU On-Line) Atualmente é pré-candidata à vice-presidência na chapa
11 Manuela d’Ávila [Manuela Pinto Vieira d’Ávila ] (1981): com Guilherme Boulos, pelo Psol. (Nota da IHU On-Line) querdas brasileiras.

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IHU On-Line – Como avalia preende esse fenômeno depois IHU On-Line – Quais são as
a postura do PT em insistir na do episódio do impeachment? consequências políticas da alian-
candidatura do ex-presidente ça entre o PSDB e o Centrão?
Bruno Lima Rocha – O PT se
Lula? Qual é o significado po-
tornou uma versão de centro ou Bruno Lima Rocha – Algumas
lítico disso, especialmente con-
centro-esquerda (dependendo da evidências já podem ser refletidas.
siderando a atual situação do
posição dos demais agentes políti- Passa pela disposição das oligar-
país e a necessidade de se pen-
cos) do pragmatismo político mar- quias mais tradicionais, incluindo
sar um projeto de futuro?
cado por um jogo de alianças onde poderosas parcelas da bancada ne-
Bruno Lima Rocha – O PT se viu o mais relevante é atingir postos de opentecostal, de se alinharem com
diante de um dilema. Considerando poder em todas as escalas. Não me um projeto testado (o PSDB), e com
que o ex-presidente foi condenado surpreende e nem tampouco me pa- um experimentado político (Alck-
com ausência de provas contunden- rece uma novidade, pois o jogo de min, ex-governador de São Paulo).
tes e o processo de impeachment da alianças nas eleições municipais Ou seja, na hora das contas de cam-
ex-presidente Dilma foi um golpe ju- de 2016 também teve essa mesma panha, tempo no horário eleitoral
rídico-parlamentar, não lhe restou al- marca. Os simpáticos a essa tese e composição dos palanques esta-
ternativa a não ser consolidar o nome dirão que se trata de uma postura duais, simplesmente as possíveis
de Lula como o referente político pragmática, outros – onde me in- alianças em torno de Bolsonaro cor-
mais importante do país. Se por aca- cluo – condenam veementemente reram para o PSDB. O Centrão e o
so Lula for autorizado a concorrer – é essas práticas, pois elas deslegiti- PSDB implicam também numa ga-
quase certo que ganha –, o país se co- mam todo o processo político por rantia de “governabilidade”, dando
loca, automaticamente, na sequência esquerda, mesmo o PT não sendo, sequência ao programa do governo
da insegurança jurídica. Mas, ao mes- há muito tempo, um partido des- ilegítimo, às medidas de governo
mo tempo, não há sinal algum que te campo. Vale posicionar: o PSOL seguidamente derrotadas nas urnas
as prerrogativas da Força-Tarefa e a ocupa, no século XXI, o posto do PT poderão ser levadas adiante com
evidente seletividade na punição vão na década de 1980. uma ampla maioria no Congresso e
interromper sua atuação. A operação o devido apoio dos conglomerados
Lava-Jato criminalizou todo o mo- de mídia. Por fim, além da rejeição 11
IHU On-Line – De outro lado, a Bolsonaro vinda da direita mais
delo econômico anterior e cometeu
como avalia o isolamento de consolidada – o que não descarta
evidentes irregularidades, como di-
Ciro Gomes? A que atribui esse uma chance de convocarem voto
fundir uma conversa presidencial no
isolamento político? útil nele em segundo turno –, tam-
exercício do mandato (entre Dilma e
Lula). Ao mesmo tempo, estes opera- Bruno Lima Rocha – Ciro Go- bém implica um rechaço ao governo
dores incidem sobre o mundo da po- mes só romperia este isolamen- Temer e tudo o que a ele se asso-
lítica e o empresariado industrial que to em duas situações: se pudesse cia. Como o eleitor tende a vincular
atua no Brasil e nada indica que vão compor com o PSB um campo pró- apenas a candidatura que defende
parar. Há um mérito na punição dos prio, tentando marcar o tal deseja- o legado, a de Meirelles, o PSDB e
crimes de elite e uma absurda parali- do “centro da política”. Outra con- seus aliados podem tentar marcar
sia da economia brasileira. Lula, se- dição seria uma ampla unidade, um campo imageticamente distante
gundo a direção nacional do PT, seria onde ele, Ciro, pudesse encabeçar de Temer, o que não se comprova
um nome para garantir o pacto inter- como candidato a presidente ou quando observamos o padrão de vo-
no ou algum tipo possível de arran- como vice. Com o esvaziamen- tação no Congresso.
jo, mesmo com a sociedade bastante to nacional do PSB – movimento
polarizada. A meu ver, o PT não teria coordenado pelo PT – e a aliança
IHU On-Line – Como você ava-
outra alternativa, embora fosse mais presumida de PCdoB e PT, e mais
lia, de outro lado, a candidatu-
garantido uma tentativa concreta de a articulação do Centrão a favor de
ra de Bolsonaro? O que explica
aliança mais ampla no primeiro tur- Alckmin, os espaços de articula-
o fato de parte do eleitorado de-
no (com Ciro, por exemplo) e, assim, ção de Ciro Gomes realmente es-
clarar intenção de votos a ele?
ampliar a margem de legitimidade. vaziaram. Ainda resta algum tipo
Me preocupa uma vitória apertada de composição de segundo turno, Bruno Lima Rocha – Bolsonaro
no segundo turno, pois vai repetir o como Ciro Gomes, hipoteticamen- tenta marcar uma posição de “outsi-
processo de “venezuelização” vivido te, cotado para a pasta da Fazenda der” (como diz o termo do anglicis-
em 2014 e 2015, culminando no golpe de Haddad (ou Lula). Mas, para mo) e traz a conjunção de tudo de
de abril de 2016. a campanha de primeiro turno, mais nefasto que o Brasil gerou nos
o trabalhismo corre por conta e últimos anos de “transe político”.
possivelmente pode queimar fu- Ele não é um neófito da política pro-
IHU On-Line – Nesta semana turas alianças caso um pacto de fissional – sétimo mandato – mas
PT e MDB anunciaram alianças não agressão com Lula (Haddad) traduz o senso comum conservador
em alguns estados. Como com- e Manuela não seja estabelecido. na era da internet. Para fazer uma

EDIÇÃO 526
ENTREVISTA

caracterização, é como uma con- deputada estadual Manuela d’Ávi- de toda a entrevista. O país precisa
versa impublicável de uma família la (PC do B) e caracteriza a aliança encontrar-se consigo mesmo, com
de classe média ou de um grupo da centro-esquerda consolidada no a América Latina, com a África e o
de homens que, ao contrário de país. A jogada mais importante na Sul Global. Do contrário seremos
se manter no mundo privado, se composição de vice foi a de Alck- eternamente um território inaca-
transforma em bandeira política min, ao convidar a senadora Ana bado, marcado pelo racismo de
coletiva. Na “corrida ao tesouro”, Amélia Lemos (PP-RS). O tucano classe e uma crença absurda nas
iniciada no terceiro turno de 2014, marca uma clivagem, tanto no voto “instituições republicanas”, o que
ele é o que teve maior fôlego e ven- feminino, como no passado arenis- não garante nenhuma capacidade
ceu a batalha das redes sociais con- ta do sul do país, assim como uma de exercício da soberania popular.
tra os adversários de extrema direi- entrada maior nas preferências do Assim, listando de modo geral,
ta. Para analisarmos sua densidade latifúndio. Vice-presidente nunca vejo que o primeiro passo é rever-
eleitoral – ao menos nas pesquisas foi decorativo e diante da instabi- ter as absurdas medidas tomadas
estimuladas –, seria necessário lo- lidade política é uma posição cada pelo governo ilegítimo (como a
calizar as práticas societárias mais vez mais relevante. PEC do Teto dos Gastos; a derru-
abjetas como as execuções extra bada dos Direitos Trabalhistas; a
-legais, a misoginia, o racismo ma- reforma do ensino médio; a recu-
nifestado através de injúria racial IHU On-Line – Por que candi- peração da Petrobras; cessar a pri-
e posicionamento anti-indígena e daturas como a Boulos e Mari- vatização do sistema elétrico, etc.)
um saudosismo irracional do pe- na não têm uma expressão sig- e, ao mesmo tempo, confrontar
ríodo da ditadura. Bolsonaro tenta nificativa de intenções de voto? toda a legislação racista e geno-
modernizar seu discurso, “lavan- Bruno Lima Rocha – A densi- cida - como a PEC do Genocídio,
do-o” para a campanha, mas entra do Marco Temporal para os ter-
dade eleitoral não é o forte de Ma-
em contradição imediata, porque ritórios indígenas e quilombolas,
rina, embora ela sempre se posicio-
choca entre a posição de defesa além de avançar nas garantias dos
ne com uns dez pontos de partida.
da política econômica da ditadura direitos das mulheres e LGBTs.
Acredito que para a ex-ministra do
(como a acertada construção de Meio Ambiente e ex-petista, o que O desenvolvimento do país deve-
12 infraestrutura no Brasil) e terceiri- falta é um projeto definido que a ria ser baseado na defesa da sobe-
zação da área econômica, para um demarque na centro-direita com rania popular, da descolonização,
neoliberal convicto como o econo- alguma organicidade. A Rede se da subordinação das instituições
mista Paulo Guedes. A contempo- comporta como qualquer partido formais ao povo brasileiro e dos
raneidade de Bolsonaro é marcada tradicional brasileiro, com alianças projetos baseados em sustentabi-
na aliança com o pior do neopen- de ocasião e pragmatismo político. lidade e defesa dos biomas natu-
tecostalismo e a chamada “cruzada Já a candidatura de Boulos é muito rais. Logo, passa por defender as
contra ideologia de gênero”, além viável no médio prazo, como foi a de reservas estratégicas, como o Pré-
da confluência com os jovens ultra Lula ao longo do tempo. Se o PSOL Sal e as províncias minerais, mas,
liberais e as redes da Atlas Network mantiver esta proposta eleitoral, urgentemente, em modificar o
na posição reacionária do famige- sem flexibilizar seu programa, pode modelo primário exportador (uma
rado “escola sem partido”. vir a ganhar em eleições futuras, forma de colonialismo). Simul-
isso se tivermos um processo elei- taneamente, precisamos avançar
toral completo a partir do próximo na área científica, não permitir a
IHU On-Line – A escolha dos mandato. Mas, de imediato, é como presença tão intensa de capitais
vices tende a ter que tipo de im- o PT nos anos 1980. Se as bases so- chineses e transnacionais em se-
pactos nas candidaturas do PT, ciais organizadas e a influência digi- tores estruturais (como a energia
do PSDB e do PSC? tal do PSOL não forem hipotecadas elétrica de São Paulo) e buscar re-
Bruno Lima Rocha – São im- por um projeto eleitoralista apenas, tomar o tempo perdido em áreas
pactos distintos. No PSC, o vice as chances de vitória de Boulos em com tecnologia digital para rádio
compõe a chapa com o senador duas ou três eleições podem ser bas- e TV, semicondutores, energia al-
Álvaro Dias, que criou sua própria tante grandes. ternativa e materiais de constru-
legenda e tenta se posicionar ao ção sustentáveis.
“centro” da política, mas termina Porém, nada disso tem validade
IHU On-Line – Quais são os te-
sendo o político mais alinhado com se algum ciclo de crescimento eco-
mas fundamentais a serem dis-
a Lava-Jato e o conservadorismo nômico não for de desenvolvimen-
cutidos no país neste momento,
paranaense. Para o PT, a escolha to, entrando em novas cadeias de
tendo em vista um projeto de
do vice é a escolha do substituto valor e, no final, as camadas mais
desenvolvimento futuro?
de Lula, caso o ex-presidente não pobres da sociedade não se torna-
tenha sua candidatura homologa- Bruno Lima Rocha – Esta sem rem mais organizadas e prontas
da pelo TSE. Na prática, a vice é a dúvida é a pergunta mais delicada para defender seus direitos e con-

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REVISTA IHU ON-LINE

dições de vida. Assim, precisamos Ou seja, como dizia José Gervasio da evidente projeção de poder dos
retomar o controle público sobre Artigas, general de homens e mu- EUA sobre os países latinos, a única
o orçamento, subordinar o Banco lheres livres à frente da Liga Fede- possibilidade para nosso país e Con-
Central ao povo brasileiro e avan- ral: “não podemos contar a não ser tinente é seguir o caminho narrado
çar em políticas públicas em todos com nós mesmos”. O destino do por Aníbal Quijano15, descolonizan-
os níveis de governo. Para assegu- povo brasileiro é decidido com a do nossos saberes e expectativas de
rar a luta pela hegemonia cultural luta popular. Minha certeza é que, realizações. Ao contrário do que pa-
no país, aplicar o Capítulo V da cada vez mais, a defesa de Palma- rece, a constância latino-americana
Constituição Federal e democrati- res e Pindorama não passam pelas é a inconstância político-institucio-
zar a mídia brasileira, ainda mais instituições pós-coloniais e sim nal e a melhoria de vida e avanço dos
na era multiplataformas e de con- pelo protagonismo de nossa popu- direitos coletivos (como num intento
vergência digital. A única saída é lação organizada. de radicalização e aprofundamento
essa disputa associada ao emprego da democracia) depende menos dos
de mecanismos plebiscitários de arranjos entre tecnocratas, elites
democracia, tirando poder das oli- IHU On-Line – Deseja acres- políticas e oligarcas empresariais
garquias e colocando contra a pare- centar algo? e mais do movimento popular auto
de as relações assimétricas dentro -organizado. ■
Bruno Lima Rocha – Acredito
do Estado brasileiro, começando que o período de instabilidade polí-
pela presença do capital especula- tica no Brasil e na América Latina vai
tivo, da acumulação rentista e do
continuar, mesmo porque estamos 15 Anibal Quijano (1930-2018): sociólogo e pensador
estamento togado, que é cada vez humanista peruano, doutor Honoris Causa pelas Univer-
diante de uma contra ofensiva neoli- sidades Central da Venezuela (UCV) e Nacional Autônoma
mais autônomo e opera em defesa de Guadalajara (UAG). Conhecido por ter desenvolvido o
beral e reacionária, antipovo e inimi- conceito de “colonialidade do poder”. Seu trabalho tem
dos próprios interesses.
ga dos povos afro-indo-latino ameri- sido influente nas áreas de estudos pós-coloniais e da te-
oria crítica. Destacou-se por várias publicações que refle-
Por fim, estes desafios citados canos. Diante das ameaças internas, tem sobre a realidade da América Latina. Foi professor da
Universidad Nacional de San Marcos, atuando também na
são decididos na organização po- como no ciclo de golpes jurídico-mi- Universidade de Binghamton, e foi fundador da cátedra
pular e não subordinando no re- diático-parlamentares, da crise do América Latina y la Colonialidad del Poder na Universidad
Ricardo Palma. Considerado como um dos fundadores da
boquismo ao governo de turno. mandonismo por centro-esquerda e sociologia crítica. (Nota da IHU On-Line) 13

Leia mais
- O assassinato de Marielle Franco e a opressão estruturante no Rio de Janeiro. Artigo
de Bruno Lima Rocha, publicado nas Notícias do Dia de 19-03-2018, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Oo7WJ1.
- No Curdistão reside a esperança do Oriente Médio e da Ásia Central. Artigo de Bruno
Lima Rocha, publicado nas Notícias do Dia de 12-12-2014, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2OTcbNT.
- O Brasil sob o avanço da linha neoliberal chilena. Artigo de Bruno Lima Rocha, publica-
do nas Notícias do Dia de 16-05-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dispo-
nível em http://bit.ly/2KFG94p.
- “O lulismo é a baliza desta eleição”. Entrevista especial com Bruno Lima Rocha, publica-
da nas Notícias do Dia de 21-10-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dispo-
nível em http://bit.ly/2MzvgTy.
- O que está em disputa é o conceito de democracia. Entrevista especial com Bruno Lima
Rocha, publicada nas Notícias do Dia de 01-04-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisi-
nos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vW79Y1.
- A ex-esquerda desceu a ladeira e deixou um vácuo no espaço. Entrevista especial com
Bruno Lima Rocha, publicada nas Notícias do Dia de 05-10-2016, no sítio do Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vTmd8Y.
- As ruas em movimento e a democracia direta. Entrevista especial com Bruno Lima Ro-
cha, publicada nas Notícias do Dia de 09-12-2013, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos
– IHU, disponível em http://bit.ly/2vwRdMq.

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

Garantia de mais recursos para o


SUS passa pela modificação da
Emenda Constitucional 95
Sérgio Piola critica a limitação dos gastos públicos por 20 anos,
que fixou em zero o crescimento real das despesas primárias
Vitor Necchi

A
Constituição de 1988 estabele- na aplicação de recursos, principal-
ceu um novo patamar acerca da mente em 2015 e 2016, e uma peque-
saúde da população, ao acabar na recuperação em 2017 não permitiu
com distinções baseadas na situação do se voltar aos níveis de 2013/2014. “O
cidadão no mercado de trabalho e ao problema principal é que, na crise de
“conceber o direito à saúde pela condi- recursos, as despesas que são cortadas
ção de cidadão”. Mas claro que, “em um em primeiro lugar são aquelas relacio-
país tão desigual e territorialmente tão nadas a insumos básicos, manutenção
grande como o Brasil”, não é tão sim- de equipamentos, distribuição de me-
ples a concretização plena desse direito, dicamentos, programas de promoção e
destaca o médico Sérgio Francisco Pio- prevenção, o que prejudica de imediato
la em entrevista concedida por e-mail à o atendimento da população”, destaca.
IHU On-Line.
14 O médico salienta que a garantia de
O Sistema Único de Saúde - SUS é fi- mais recursos para o SUS passa, neces-
nanciado por recursos provenientes dos sariamente, pela modificação da EC 95.
orçamentos fiscais das três instâncias “Além do absurdo de congelar a despe-
de governo. Em 2017, o gasto com o fi- sa primária por 20 anos, se o país reto-
nanciamento do SUS chegou a R$ 265,6 mar o crescimento, retomar um cresci-
bilhões, sendo 43,2% recursos da União, mento mais acentuado de suas receitas,
25,7% dos estados e 31,1% dos municí- todo o adicional vai para a formação de
pios. “Para responder se estes valores superávit primário, para o pagamento
são suficientes ou não, faço a seguinte de juros e encargos da dívida”, critica
comparação: em 2015, o gasto do SUS foi
Piola. “Nada sobrará para os programas
de R$ 1.158 por habitante. Nesse mesmo
sociais e de infraestrutura.”
ano, a despesa per capita da população
que possui planos e seguros privados de Sérgio Francisco Piola é graduado
saúde foi de R$ 2.451, ou seja, mais do em Medicina pela Universidade Fede-
que o dobro”, compara Piola, que ressal- ral do Rio Grande do Sul - UFRGS e es-
va: “A garantia de recursos suficientes pecialista em Saúde Pública pela Escola
para a saúde pública só será alcançada Nacional de Saúde Pública da Fundação
quando governos seguidos colocarem a Oswaldo Cruz. Ocupou cargos de direção,
saúde como uma das principais priori- assessoramento e de pesquisa no Institu-
dades”. De qualquer forma, também é to de Pesquisa Econômica Aplicada - Ipea
necessário que a economia cresça para de 1975 a 2011. Como consultor tempo-
aumentar as receitas públicas. rário, trabalhou para instituições nacio-
nais, internacionais e agências do siste-
A Emenda Constitucional nº 95 limi-
ma ONU (Banco Mundial, OMS/PAHO,
tou os gastos públicos por 20 anos, fi-
PNUD, Unicef). Foi um dos fundadores
xando em zero o crescimento real das
despesas primárias. Perto de completar da Associação Brasileira de Economia da
dois anos da sua promulgação, Piola Saúde - ABrES e ocupou o cargo de pre-
identifica que os efeitos mais notórios sidente da Associação de Economia da
são “a falta de atendimento e falta de Saúde da América Latina e Caribe - AE-
insumos, que sempre aparecem na im- S-LAC. Atualmente é consultor do Ipea.
prensa”. Também já se verifica retração Confira a entrevista.

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REVISTA IHU ON-LINE

“A CF de 1988 acabou de vez


com essas distinções calcadas
na situação junto ao mercado de
trabalho e concebeu o direito à
saúde pela condição de cidadão”

IHU On-Line – Conforme a mináveis listas de espera para aces- das por meio do Fundo de Participa-
Constituição de 1988, todo ci- so a alguns tipos. Para avançarmos ção dos Estados (FPE).
dadão tem direito ao SUS. Na nesses quesitos, é necessário ex-
No caso da União, com a EC 29 a
prática, isso ocorre? pandir e organizar melhor a oferta,
vinculação partiu do valor empenha-
usar melhor os recursos humanos e
Sérgio Francisco Piola – Não se do em 1999, com um acréscimo real
financeiros disponíveis e, dentro das
pode negar que o direito à saúde ou o de 5% para o ano 2000 e, a partir
possibilidades do país, ir dando ao
acesso à atenção à saúde provida pelo daí, se aplicava sobre o valor empe-
SUS os recursos necessários para o
setor público, que parece ser mais o nhado a cada ano a variação nominal
cumprimento das responsabilidades
foco da pergunta, passou a ser algo do Produto Interno Bruto - PIB dos
definidas na Constituição.
mais concreto depois da Constituição dois anos anteriores. Atualmente,
de 1988. Na verdade, um pouco antes depois da Emenda Constitucional
de 1988, o acesso à atenção à saúde já IHU On-Line – Qual a origem 952 de 2016, a EC do Novo Regime
vinha se universalizando e se tornan- do financiamento do SUS e por Fiscal, a participação federal no fi- 15
do mais igualitário, por força da im- que os valores são insuficientes? nanciamento do SUS foi fixada em
plementação das Ações Integradas de 15% da Receita Corrente Líquida -
Saúde - AIS e do Sistema Unificado Sérgio Francisco Piola – Os re- RCL para 2017 e, de 2018 até 2036,
e Descentralizado de Saúde - SUDS, cursos destinados ao financiamento o valor ficará congelado em termos
acabando com as desigualdades na do SUS têm origem nos orçamentos reais, uma vez que o piso será reajus-
atenção decorrentes de ter ou não a fiscais das três instâncias de gover- tado apenas de acordo com o índice
cobertura da previdência urbana, de no. Desde a aprovação da Emenda de inflação.
ser ou não coberto pela previdência Constitucional 29 de 2000, depois
de anos de instabilidade no financia- Em 2017, o gasto das três esferas
rural ou de não estar protegido por
mento do sistema, foram vinculados de governo com o financiamento
não estar inserido no mercado formal
recursos fiscais das três esferas de do SUS atingiu o valor de R$ 265,6
de trabalho.
governo para o SUS. bilhões, sendo 43,2% originário do
A Constituição Federal – CF de governo federal, 25,7% dos estados e
1988 acabou de vez com essas dis- Pela EC 291 de 2000, o município 31,1% dos municípios. Para respon-
tinções calcadas na situação junto deve aportar, no mínimo, 15% da der se estes valores são suficientes
ao mercado de trabalho e concebeu sua receita própria, entendida como
o direito à saúde pela condição de recursos de impostos recolhidos por 2 Emenda Constitucional nº 95: a EC 95 limita por 20
anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a pro-
cidadão. Dessa decisão ao exercício essa instância, mais as transferên- posta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo
presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na
concreto do direito, existe uma gran- cias constitucionais, leia-se fundo condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de
de distância, principalmente em um de participação dos municípios, en- equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me-
canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto
país tão desigual e territorialmente quanto o Estado deve aportar, no dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação
tão grande como o Brasil. Mesmo mínimo, 12% de sua receita própria, acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con-
com todos os avanços, alguns têm que corresponde aos impostos esta- sumidor Amplo - IPCA. É considerada umas das maiores
mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas
maior facilidade no acesso aos servi- duais, mais as transferências recebi- refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori-
camente crescem todos os anos acima da inflação, como
ços. A igualdade no acesso depende, educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento
1 Emenda Constitucional nº 29: aprovada em 13 de se- dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida-
necessariamente, de uma melhor tembro de 2000, a EC 29 assegura recursos mínimos para des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e
distribuição da oferta de serviços, o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode
Estabeleceu a vinculação de recursos nas três esferas de resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a
reconhecidamente muito desigual governo para um processo de financiamento mais está- área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC
vel do Sistema Único de Saúde - SUS, além de reforçar o 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada
no território brasileiro. Depende papel do controle e fiscalização dos Conselhos de Saúde PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à
também de melhor gestão dos servi- e de prever sanções para o caso de descumprimento dos Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016,
limites mínimos de aplicação em saúde. (Nota da IHU no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl . (Nota
ços existentes, diminuindo as inter- On-Line) da IHU On-Line)

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

ou não, faço a seguinte comparação: primária por 20 anos, se o país re- de nesse nível de atenção, o que aca-
em 2015, o gasto do SUS foi de R$ tomar o crescimento, retomar um ba sobrecarregando os serviços de
1.158 por habitante. Nesse mesmo crescimento mais acentuado de suas pronto atendimento e aumentando
ano, a despesa per capita da popula- receitas, todo o adicional vai para a hospitalizações.
ção que possui planos e seguros pri- formação de superávit primário, para Então, o SUS não tem só um pro-
vados de saúde foi de R$ 2.451, ou o pagamento de juros e encargos da blema de insuficiência de recursos,
seja, mais do que o dobro. dívida. Nada sobrará para os progra- mas também tem sérios problemas
mas sociais e de infraestrutura. de gestão e de organização da aten-
IHU On-Line – Como garantir ção. Aliás, de um colega nosso ouvi
recursos para o SUS?
“A garantia a seguinte afirmação, que merece
nossa reflexão: “Para fazer o que faz,
Sérgio Francisco Piola – A ga-
rantia de recursos suficientes para de recursos o SUS até que tem recursos suficien-
tes, mas para fazer o que está previs-
a saúde pública só será alcançada
quando governos seguidos coloca- suficientes to na Constituição – acesso universal
e atendimento integral – necessitará
rem a saúde como uma das prin-
cipais prioridades. Mesmo assim, para a saúde de um aporte maior de recursos”.

mais recursos para a saúde, educa-


ção e outros investimentos prioritá- pública só será IHU On-Line – A distribui-
rios só serão possíveis se, junto com
a manutenção do status de ações go-
alcançada ção de papéis e recursos entre
União, estados e municípios
vernamentais prioritárias, haja cres-
cimento da economia, até mesmo
quando ocorre de que maneira?

para aumentar as receitas públicas. governos Sérgio Francisco Piola – O SUS


é um sistema complexo em termos de
O estabelecimento de pisos consti-
tucionais, como feito na saúde des- seguidos gestão por incluir três instâncias de
governos e mais de 5.500 gestores. E,
16 de a Emenda Constitucional 29 de
2000, ajuda, não resta dúvida. Com colocarem a diga-se de passagem, 5.500 gestores
com capacidades de gestão e de recur-
a vinculação existente na saúde, no
período de 2003 a 2017, houve um
saúde como sos humanos e financeiros enorme-
mente diferenciadas. No SUS, muitos
crescimento real dos gastos públicos
com saúde nas três esferas de gover-
uma das papéis são compartilhados, até porque
se uma instância não cumprir deter-
no, passando de 3,16% do PIB em
2003 para 4,05% do PIB em 2017.
principais minada ação, a outra poderá ser insta-
da a fazê-lo. Isso ocorre, por exemplo,
Em valores per capita, a preços de
2017, significou passar de um gasto
prioridades” nos casos de judicialização.

de R$ 670 em 2003 para R$ 1.279 A distribuição dos papéis está, de


em 2017, ou seja, o gasto per capita certa forma, estabelecida na Cons-
IHU On-Line – De que nature- tituição e na Lei 8.0803 de 1990. Na
cresceu 90%, quase dobrou.
za são os principais problemas CF de 88, cuidar da saúde está entre
Diminuir o gasto tributário, que é do sistema? Recursos? Gestão? as competências comuns das três es-
toda espécie de incentivos fiscais, re- feras de governo (Art. 23). O Art. 30
núncias de arrecadação etc., também Sérgio Francisco Piola – O SUS
da CF traz essa competência comum
ajuda, embora não haja garantia que padece de insuficiência crônica de
de forma mais específica para a esfera
os recursos tributários recuperados recursos. Isso fica patente quando
municipal: Art. 30, Item VII – “Pres-
sejam destinados à saúde. Nos úl- comparamos o gasto público brasi-
tar, com a cooperação técnica e finan-
timos anos, como se sabe, o gasto leiro, seja como proporção do PIB,
ceira da União e do Estado, serviços
tributário, leia-se incentivos fiscais, seja em valores per capita, com o
de atendimento à saúde da popula-
renúncias, isenções, ultrapassaram gasto praticado em outros países,
ção”. Ou seja, o município é o único
R$ 250 bilhões/ano. seja se compararmos o gasto per
ente que tem menção mais clara e es-
capita do SUS com a despesa assis- pecífica da responsabilidade. Mas os
Hoje, garantir mais recursos para tencial per capita do segmento de
o SUS também passa, necessaria- municípios, em sua grande maioria,
planos e seguros privados de saúde. não são e nem serão autossuficientes
mente, pela modificação da Emen-
da Constitucional 95 de 2016, que Por outro lado, o SUS tem pro- em termos de oferta de serviços.
criou teto para despesas primárias, blemas de gestão muito evidentes.
3 Lei Orgânica da Saúde ou Lei Nº 8.080/1990: regu-
ou seja, para as despesas feitas com Como ainda não temos uma atenção la, em todo o território nacional, as ações e serviços de
programas e ações do governo. Além primária que seja mais qualificada, saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter
permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas
do absurdo de congelar a despesa mais efetiva, há pouca resolubilida- de direito público ou privado. (Nota da IHU On-Line)

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

O sistema tem que funcionar em demente descentralizada, como é o IHU On-Line – Se for conside-
rede, algumas redes serão estaduais SUS, devem ser distribuídos os re- rado o gasto per capita do SUS,
e outras, nacionais. Apesar da Lei cursos do MS para os estados e para em que patamar o Brasil se en-
8.080 deixar mais explícito o papel os mais de 5.500 municípios? Quais contra, em relação a outros paí-
ou as responsabilidades das secre- deveriam ser as prioridades nas ses de modelo similar de acesso
tarias estaduais e do Ministério da transferências do MS para estados e universal?
Saúde, pode-se dizer que estes regra- municípios?
Sérgio Francisco Piola – O sis-
mentos não ajudam a organização
A Lei 8.080 de 1990 já trazia no tema de serviços de saúde do Brasil,
do sistema de forma mais adequada,
seu artigo 35 um conjunto de crité- assim como em outros países, inclu-
principalmente para se atingir a tão
rios que deveriam nortear as trans- sive aqueles que têm modelo similar
necessária garantia da integralidade
ferências federais para estados e mu- de acesso universal, como é o caso
da assistência, ou seja, quando um
nicípios. Os critérios previstos não de Reino Unido, Portugal, Espanha,
determinado município não pode
foram operacionalizados, tampouco Alemanha e Itália, entre outros, é
resolver a uma necessidade de saúde
o que foi definido para esta mesma financiado com recursos públicos e
e tem que encaminhar a pessoa para
matéria na Lei 8.1424 de 1990. Mais privados, estes últimos provenien-
outro ponto de atenção situado em
de 20 anos depois, a LC 141/20125 tes das famílias e de empresas na
outra municipalidade.
definiu um novo conjunto de crité- compra direta de serviços ou me-
A tendência, e não poderia ser mui- rios para estabelecer a distribuição diante a utilização de planos e segu-
to diferente, é o gestor municipal se dos recursos federais e determinou ros privados de saúde. A produção
preocupar apenas com o que pode ser que o MS definisse uma metodologia de serviços também é, geralmente,
feito em seu município, mas alguém pactuada na Comissão Intergestores feita por instituições públicas ou
tem que pensar as redes de atenção Tripartite - CIT a ser aprovada pelo privadas. O que faz a diferença, o
que se constituem entre municípios. Conselho Nacional de Saúde. Já se que nos distingue desses países que
Este seria um papel bem típico da passaram quase seis anos desde a também têm sistemas de acesso
secretaria estadual. Resumindo: as aprovação da LC 141 e nada foi leva- universal, é o nível de participação
responsabilidades dos entes federa- do ao Conselho Nacional de Saúde. dos recursos públicos no financia-
tivos na organização do sistema, na mento do sistema e o fato de que, no 17
organização das redes de atenção, na
garantia da integralidade, é um pon-
“O SUS não Brasil, o financiamento público não
é direcionado apenas para o SUS.
to que tem que ser reequacionado
para um melhor funcionamento do
tem só um Vejamos estas duas questões.

SUS e melhor atendimento das ne-


cessidades da população.
problema de O gasto total em saúde no Brasil,
público e privado, correspondia em

Com relação aos recursos financei- insuficiência 2014 a cerca de 8,3% do Produto In-
terno Bruto - PIB. Isso não é pouco.
ros, como dito anteriormente, em
2017, a União respondeu por 43,2%
de recursos, Na verdade, é bastante próximo ao
percentual que Reino Unido (9%),
dos recursos do SUS, os estados por
25,7% e os municípios por 31,1%.
mas também Espanha (9%) e Portugal (9,5%) gas-
tam em saúde. O que faz a diferença
Hoje, quem mais aplica recursos no
SUS são os municípios. Pela vincu-
tem sérios é que, nesses países, a maior parte é
de recursos públicos para garantir a
lação constitucional, devem aplicar
pelo menos 15% de suas receitas
problemas de universalidade no acesso.

próprias, mas na verdade aplicam


em média mais de 20%. Muito mais
gestão e de No Brasil, apesar de o SUS também
ter o compromisso de prover acesso
do que o piso. Os estados, por sua organização universal e atendimento integral, a
participação dos recursos públicos
da atenção”
vez, devem aplicar, no mínimo, 12%
no gasto total com saúde é inferior
de suas receitas próprias. Em 2017,
a 50%, mais precisamente 46%, se-
aplicaram em média 13%, mas há
gundo dados de 2014 da Organiza-
muitos que não cumpriram este piso
4 Lei nº 8.142: promulgada em 28 de dezembro de 1990, ção Mundial de Saúde. Nos países
por anos. dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do
Sistema Único de Saúde - SUS e sobre as transferências
citados anteriormente, em 2014 o
Mais de 85% dos recursos do Mi- intergovernamentais de recursos financeiros na área da gasto público correspondeu a 83%
saúde. (Nota da IHU On-Line)
nistério da Saúde - MS são distribu- 5 Lei Complementar nº 141: promulgada em 13 de janei- do total no Reino Unido, a 71% na
ídos para aplicação pelos estados e ro de 2012, regulamenta o § 3º do art. 198 da Constitui-
ção Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem
Espanha e a 65% em Portugal. Por
municípios. Este é outro ponto que aplicados anualmente pela União, Estados, Distrito Federal outro lado, mesmo gastando pro-
e Municípios em ações e serviços públicos de saúde; esta-
sempre gerou e ainda gera muita dis- belece os critérios de rateio dos recursos de transferências porção desprezível do PIB, mais de
cussão. Com base em que critérios, para a saúde e as normas de fiscalização, avaliação e con-
trole das despesas com saúde nas três esferas de governo.
8,3%, como disse, como o nosso PIB
em um sistema de execução gran- (Nota da IHU On-Line) não é dos maiores e como temos

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

uma população bastante grande, na velhice é muito mais caro? Em que sempre aparecem na impren-
mais de 200 milhões de pessoas, segundo lugar, a tendência é de os sa. O acompanhamento dos gastos
o per capita que o Brasil gasta em planos passarem, cada vez mais, a totais do SUS feito por algumas
saúde acaba sendo bem inferior ao exigirem participação no custeio, instituições de pesquisa, como
dos países mencionados e até mes- ou seja, que o usuário participe no Instituto de Pesquisa Econômica
mo de vizinhos latino-americanos pagamento de parte da fatura no Aplicada – Ipea, Centro Brasilei-
como Argentina e Uruguai. Assim, ato do fornecimento do serviço. ro de Estudos de Saúde – Cebes 6,
quando os valores são colocados É uma forma muito perversa de Associação Brasileira de Saúde
em dólares PPC (paridade de poder “moderar” a demanda na saúde, Coletiva – Abrasco etc., permite
de compra), o que permite a com- pois quem demanda serviços pelo verificar que houve retração na
paração entre os gastos dos países paciente é o profissional de saúde aplicação de recursos, principal-
usando-se uma moeda padrão e que, em muitos casos, por moti- mente nos anos de 2015 e 2016, e
retirando os efeitos das flutuações vos diversos, até pela forma que que uma pequena recuperação em
do câmbio e dos diferentes preços são remunerados seus serviços, 2017 não permitiu se voltar aos ní-
relativos nos diferentes países, se não têm nenhum estímulo a uma veis de 2013/2014.
tem os seguintes resultados para utilização mais criteriosa, até pelo
O problema principal é que, na
2015, para o gasto público por ha- contrário.
crise de recursos, as despesas que
bitante, segundo dados da Orga- são cortadas em primeiro lugar são
nização Mundial de Saúde: Brasil aquelas relacionadas a insumos bá-
– 606 $PPC; Reino Unido – 2.803
$PPC; Portugal – 1.744 $PPC; Es- “Hoje, garantir sicos, manutenção de equipamen-
tos, distribuição de medicamentos,
panha – 2.102 $PPC; Alemanha
– 3.990 $PPC; Uruguai – $PPC mais recursos programas de promoção e preven-
ção, o que prejudica de imediato o
1.272. Ou seja, o gasto público per
capita no Brasil é menos da metade
para o SUS atendimento da população.

do gasto do Uruguai e mais de três


vezes inferior ao da Espanha.
também pas- Certamente a crise econômica
e o desemprego trazem reflexos
18
sa, necessa- perversos sobre o bem-estar e a
saúde da população e sobre o fun-
IHU On-Line – Empresas pri-
vadas, que tratam saúde como
riamente, pela cionamento dos serviços públicos.
Há sinais de que esses elementos
mercadoria, vêm expandindo
sua ação e contam com meca-
modificação podem já ter começado a surtir
efeito sobre as condições de saú-
nismos eficientes de pressão
junto a governos e legislado-
da Emenda de. Foi anunciado aumento na
taxa de mortalidade infantil, in-
res. Do ponto de vista da popu- Constitucio- vertendo tendência de queda que
vinha se observando havia déca-
lação, quais as consequências
dessa situação? nal 95 de 2016, das. Mas esse dado deve ser usa-
do com cautela, pois concomitan-
Sérgio Francisco Piola – Para
a população, a expansão dos pla-
que criou teto temente ocorreu uma diminuição

para despe-
no número de nascidos vivos. Es-
nos e seguros privados de saúde tamos convivendo com o aumento
vende a ilusão de que seus pro-
blemas de acesso aos serviços de
saúde serão resolvidos. Nada mais
sas primárias” do número de casos de sarampo.
Na região Amazônica, parece que
o fato está relacionado à entrada
enganoso. Primeiro, porque esse de venezuelanos não imunizados.
segmento está na sua maior parte Será que houve um certo “relaxa-
vinculado ao mercado de trabalho, IHU On-Line – A Emenda
Constitucional nº 95 limita os mento” com a cobertura das ações
mais de 70% dos beneficiários de de imunização ou já seria reflexo
planos e seguros privados de saú- gastos públicos por 20 anos,
fixando em zero o crescimento da diminuição de recursos? ■
de pertencem a planos empresa-
riais que são, em parte, custeados real das despesas primárias.
Quase dois anos depois da
pelas empresas empregadoras.
promulgação dela, que efeitos
Mas quando o usuário se aposen-
já são percebidos no sistema
tar, ou mesmo ficar desemprega-
de saúde?
do, como fará para custear um pla-
6 Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes: é uma
no que, como segurado individual, Sérgio Francisco Piola – Os entidade nacional criada em 1976, cuja missão histórica é
será bem mais oneroso? Como casos mais notórios são a falta de a luta pela democratização da sociedade e a defesa dos
direitos sociais, em particular o direito universal à saúde.
fará para custear um plano que atendimento e falta de insumos, (Nota da IHU On-Line)

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

É preciso destacar a dedicação e


persistência dos gestores descentralizados
e trabalhadores do SUS
Nelson dos Santos faz a ressalva ao mesmo tempo que cita a prevalência do
velho modelo de atenção privatista, assistencialista e mercantilizado
Vitor Necchi

O
SUS é um processo inacabado cendo o velho modelo de atenção priva-
porque, nos seus 30 anos de tista, assistencialista e mercantilizado,
funcionamento, “na prática, com desumanas e tantas vezes mortais
predominou nas políticas de Estado a esperas no atendimento especializado”,
hegemonia dos interesses e estratégias tem que se destacar a “incansável dedi-
da acumulação do capital”, avalia o mé- cação e persistência diária dos gestores
dico Nelson Rodrigues dos Santos. No descentralizados e trabalhadores de
seu entendimento, para a implemen- saúde do SUS”. Graças a isso, se con-
tação plena do sistema falta “a cons- seguiu, no final dos anos 1990, incluir
cientização/mobilização democrática a população antes excluída e realizar na
das maiorias na sociedade, capazes de prática a atenção básica de alta qualida-
elevar o pacto social a patamar mais ci- de e resolutividade em inúmeros pon-
vilizado e a um Estado com novas estra- tos no território nacional.
tégias e prioridades”. 19
Nelson Rodrigues dos Santos é
Em entrevista concedida por e-mail à um líder histórico da luta pela Refor-
IHU On-Line, ele lembra que o esta- ma Sanitária. Graduado e doutor em
belecimento do SUS foi consequência Medicina e especialista em Saúde Pú-
de dois contextos: um internacional, blica pela Universidade de São Paulo
de “engendramento da globalização - USP. Foi professor de Saúde Coletiva
neoliberal, da financeirização dos or- na Universidade Estadual de Londrina
çamentos públicos e do desmanche dos e de Medicina Preventiva e Social da
Estados de Bem-Estar Social - Ebes”, Universidade Estadual de Campinas
e outro nacional, “no rumo oposto do - Unicamp. Atuou como consultor da
esgotamento da ditadura, com imensa Organização Pan-Americana da Saúde
mobilização da sociedade pela demo- - Opas/OMS. Assumiu funções de dire-
cratização do Estado e aprovação na ção no Sistema Público de Saúde, nos
Constituição do Título da Ordem So- níveis municipal, estadual e nacional.
cial, explicitamente de Ebes”. Atualmente é professor colaborador da
Ao analisar as três décadas de funcio- Unicamp e presidente do Instituto de
namento do SUS, Nelson dos Santos Direito Sanitário Aplicado - Idisa.
destaca que, “ainda que venha prevale- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O estabeleci- nacional do engendramento da glo- ção do Estado e aprovação na Cons-
mento do SUS decorreu de que balização neoliberal, da financeiri- tituição do Título da Ordem Social,
processo e se deu em que con- zação dos orçamentos públicos e do explicitamente de Ebes.
texto? Qual era o propósito da desmanche dos Estados de Bem-Es-
sua criação? tar Social - Ebes e b) contexto nacio-
nal no rumo oposto do esgotamento IHU On-Line – O que foi o Mo-
Nelson Rodrigues dos Santos da ditadura, com imensa mobiliza- vimento da Reforma Sanitária
– Duplo contexto: a) contexto inter- ção da sociedade pela democratiza- Brasileira - MRSB e qual a sua

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

importância para o estabeleci- zado oportuno aos 10% a 20% res- e sobre as transferências intergover-
mento do SUS? tantes; e b) vem sustentando, com namentais de recursos financeiros
polpuda renúncia fiscal e outras na área da saúde] e 141/2012 [dispõe
Nelson Rodrigues dos Santos
subvenções, o mercado na presta- sobre os valores mínimos a serem
– O MRSB foi parte de um movi-
ção de serviços (empresas privadas aplicados anualmente pela União,
mento bem maior da sociedade nos
de planos e seguros de saúde). estados, Distrito Federal e municí-
anos 1970 e 1980 por liberdades de-
pios em ações e serviços públicos
mocráticas, derrubada da ditadura e
democratização do Estado. O MRSB
tem duas raízes: a) a acadêmica, de
“A incansável de saúde; estabelece os critérios de
rateio dos recursos de transferências
produção e ensino de novos conhe-
cimentos na área da Saúde Coleti-
dedicação e para a saúde e as normas de fiscali-
zação, avaliação e controle das des-
va e de sistemas de saúde públicos persistência pesas com saúde nas três esferas de
governo] e no Decreto 7.508/2011
universalistas em países europeus e
outros; e b) a crescente implemen- diária dos ges- [dispõe sobre a organização do Sis-
tema Único de Saúde, o planejamen-
tação de unidades de saúde em pe-
riferias urbanas de cidades médias tores descen- to da saúde, a assistência à saúde e a
articulação interfederativa].
e grandes, na época, sob explosivo
crescimento migratório origina- tralizados e
do da pauperização da população
rural e de minimunicípios, imple- trabalhadores IHU On-Line – Após três dé-
cadas de criação do SUS, qual o
mentação essa que gerou crescente
competência no atendimento multi-
de saúde do impacto desta política de saúde
para a população brasileira?
profissional e na gestão de sistemas
municipais de saúde, concorridos
SUS conseguiu, Quais as suas melhores con-
quistas?
encontros de secretarias municipais
de Saúde e consistente Movimen-
já ao final dos Nelson Rodrigues dos Santos

anos 1990,
– Ainda que venha prevalecendo o
20 to Municipal de Saúde - MMS. O velho modelo de atenção privatis-
MRSB e o MMS cruzaram-se positi-
vamente na 8ª Conferência Nacional incluir a ta, assistencialista e mercantiliza-
do, com desumanas e tantas vezes
de Saúde, em 1986, fortaleceram-se
reciprocamente e formularam a pro- população mortais esperas no atendimento es-
pecializado, a incansável dedicação

antes excluída”
posta do SUS na Comissão Nacional e persistência diária dos gestores
da Reforma Sanitária, que embasou descentralizados e trabalhadores de
o debate constitucional em 1988. saúde do SUS conseguiu, já ao final
dos anos 1990, incluir a população
IHU On-Line – O que falta
IHU On-Line – O senhor es- antes excluída (quase metade da
para a implementação plena do
creveu que o SUS é “um proces- população total), além de realizar
sistema?
so inacabado e com desvios”. na prática – não em regra, mas em
Por quê? Nelson Rodrigues dos Santos inúmeros “pontos” no território na-
– A conscientização/mobilização cional – atenção básica de alta qua-
Nelson Rodrigues dos San- democrática das maiorias na socie- lidade e resolutividade. O mesmo se
tos – Inacabado porque nos 30 dade, capazes de elevar o pacto so- verifica na Vigilância em Saúde, na
anos do SUS, na prática, predomi- cial a patamar mais civilizado e a um atenção ambulatorial e comunitária
nou nas políticas de Estado a hege- Estado com novas estratégias e prio- em Saúde Mental, nas urgências/
monia dos interesses e estratégias ridades, com substancial elevação da emergências, nos hemocentros, na
da acumulação do capital, que, na parcela federal no financiamento do Saúde do Trabalhador, no controle
saúde, a) vem impedindo, com in- SUS e adoção de estratégias constru- da aids e nos maiores programas pú-
clemente subfinanciamento federal, toras do novo modelo de atenção à blicos no mundo de imunização e de
a mudança do modelo de atenção, saúde. Por exemplo, a efetivação da transplante de órgãos e tecidos.
que proporcionaria atenção básica diretriz constitucional da regiona-
para a população, promovendo a lização, conforme disposto nas Leis
IHU On-Line – A combina-
saúde, protegendo contra os riscos 8.080/1990 [dispõe sobre as con-
ção de crise econômica com
de doenças transmissíveis, dege- dições para a promoção, proteção e
austeridade fiscal tem pro-
nerativas, mentais e de violência e recuperação da saúde, a organização
vocado que consequências no
também realizando diagnósticos e e o funcionamento dos serviços cor-
setor da saúde?
tratamentos precoces, com resolu- respondentes], 8.142/1990 [dispõe
ção de 80% a 90% das necessidades sobre a participação da comunidade Nelson Rodrigues dos San-
de saúde e atendimento especiali- na gestão do Sistema Único de Saúde tos – A nossa austeridade fiscal

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

vem destinando mais de 50% do efeitos dessa EC apontam para ace- Nelson Rodrigues dos Santos
Orçamento Geral da União - OGU lerar um desmanche já iniciado an- – No contexto atual, o financiamen-
ao pagamento de prestações da dí- teriormente, com queda no controle to federal continuará caindo, inclusi-
vida pública, seus altíssimos juros, da aids, de doenças imunoprevení- ve após as eleições de outubro.
spreads e outros serviços de dívida veis (sarampo e outras), do câncer
que a torna impagável e eterniza- de mama e outros2.
da. Permanece e agrava-se a im- IHU On-Line – O SUS surgiu
possibilidade do OGU de bancar a partir de uma grande mobili-
projeto de nação com estratégias IHU On-Line – E a longo pra- zação. Esse movimento precisa
voltadas para o desenvolvimento zo, quais as consequências? ser reeditado para garantir a
socioeconômico e políticas públi- Nelson Rodrigues dos Santos manutenção do que já foi con-
cas universalistas para os direitos – Se o longo prazo se estender ao fi- quistado? O que pode ser feito?
humanos fundamentais contem- nal da vigência da EC 95, certamente Nelson Rodrigues dos Santos
plados em nossa Constituição, en- na prática já não teremos o SUS, só – Só uma mobilização pelo menos
tre eles a saúde. restando uma revisão constitucional tão grande e rica como a dos anos
referendando espaço público so- 1980 e mais: com conscientização,
IHU On-Line – A EC 95 limita mente para financiar o mercado na politização e novas estratégias no
os gastos públicos por 20 anos, saúde e atender a baixíssimo custo âmbito da crescente complexida-
fixando em zero o crescimento os mais pobres. de das relações sociais acumulada
real das despesas primárias. nos últimos 30 anos, decorrente
Quase dois anos depois da pro- da globalização da comunicação
mulgação da Emenda, que efei- IHU On-Line – Neste contexto,
social com informática/volume/
tos já são percebidos no siste- quais as possibilidades de finan-
ciamento do sistema de saúde? velocidade impensáveis. O mesmo
ma de saúde?
ocorre na automação e nas rela-
Nelson Rodrigues dos Santos na condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de ções de produção e de trabalho, a
– O agudo subfinanciamento fede- equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me-
geoeconomia e geopolítica mobi-
ral expresso por seguidos e contun-
canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto 21
dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas lizando-se em “placas tectônicas”,
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação
dentes golpes orçamentários por acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con- e a emergência do Estado mínimo
igual nos 30 anos do SUS, incluindo sumidor Amplo - IPCA. É considerada umas das maiores
mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas para as maiorias trabalhadoras até
a queda da parcela federal em 2015 refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori-
as de nível superior e Estado má-
camente crescem todos os anos acima da inflação, como
para 13,2% da receita corrente líqui- educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento ximo para a elite financeira-espe-
da, entregou para o governo pós-im- dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida-
culativa e dos conglomerados no
des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e
peachment um SUS depauperado, a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode
resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a processo produtivo (que tendem a
arqueado, com baixo poder político área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC
1% da população)3. ■
de reação e mobilização para impe- 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada
PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à
dir ou derrubar a EC 95/20161. Os Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016,
no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota
da IHU On-Line)
1 Emenda Constitucional 95/2016: a EC 95 limita por 2 Para complementar esta resposta, o entrevistado remete 3 Para complementar esta entrevista, Nelson Rodrigues
20 anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a ao artigo SUS 30 anos: o início, a caminhada e o rumo, dos Santos sugere a leitura do texto SUS pós 30 anos:
proposta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, disponível proposições para implantação desde já, disponível em
pelo presidente Michel Temer – quando ele ainda estava em https://bit.ly/2vRNHM4 https://bit.ly/2vSeSGS

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

Se o SUS não for prioridade absoluta, o


Brasil terá dois sistemas de saúde: um para
os pobres e outro para a classe média
José Gomes Temporão afirma que a continuidade do sistema
depende do aumento do investimento público na saúde
e no programa de atenção primária
João Vitor Santos; Vitor Necchi; Wagner Fernandes de Azevedo | Edição: Patricia Fachin

A
pesar de os princípios concei- trário, estamos determinando que o
tuais que orientam o Sistema país terá dois sistemas de saúde: um
Único de Saúde - SUS estarem para os pobres e outro para a classe
garantidos na Constituição de 88 e na média e para aqueles que podem pa-
Lei Orgânica do Sistema de Saúde, nos gar por planos e seguros de saúde”. Se
últimos 30 anos, em vez de se apos- isso ocorrer, “seria o fim e a derrota
tar num “sistema integrado, em que desse projeto humanista, generoso e
o Estado tem o controle do conjunto inovador que é o SUS”.
da rede pública e privada, houve um
Temporão diz ainda que o foco de
desenvolvimento desconectado, em
atuação do Sistema Único de Saúde
paralelo, de dois subsistemas”, o pú-
22 deveria ser no aumento da atenção
blico e o privado, resume o médico
básica à saúde, especialmente no atu-
sanitarista José Gomes Temporão na
al contexto em que há uma mudança
entrevista a seguir, concedida à IHU
demográfica no país. “A população
On-Line por telefone.
está envelhecendo de maneira muito
Na avaliação de Temporão, o atual rápida, e isso significa uma redução
quadro de fragilização do SUS se ex- drástica de doenças infectocontagio-
plica por questões políticas e porque sas, desnutrição e um aumento signi-
o país “não avançou numa questão ficativo de diabetes, hipertensão, do-
fundamental”, que é entender o Sis- enças cardiovasculares e câncer. Isso
tema Único de Saúde como um “pa- exige uma mudança radical do mo-
trimônio” da sociedade que “deve ser delo de atenção”, explica. “Esse mo-
preservado, qualificado e garantido,
delo não dá mais conta da realidade
no sentido de que ele ficará para as
epidemiológica, porque agora existem
próximas gerações”.
doenças crônicas, em razão das quais
Diante da atual crise fiscal do Estado os pacientes precisam tomar medica-
brasileiro, Temporão defende que a mentos por longos períodos.”
continuidade do SUS depende de um
José Gomes Temporão é graduado
aumento do gasto público na área da
em Medicina pela Universidade Fede-
saúde e para isso, sugere, é preciso fa-
ral do Rio de Janeiro - UFRJ, mestre
zer uma reforma tributária. Se o SUS
em Saúde Pública pela Escola Nacional
não for recolocado “como prioridade
de Saúde Pública da Fundação Oswaldo
absoluta na saúde”, o médico teme
Cruz e doutor em Medicina Social pelo
“que estejamos no limiar de ter um
Instituto de Medicina Social da Uni-
SUS empobrecido, fragilizado, com
versidade do Estado do Rio de Janeiro
uma visão negativa, que é para aten-
- UERJ. Foi ministro da Saúde durante
der a população mais pobre”. E faz
uma ressalva: “Não foi para isso que parte do segundo mandato do governo
o SUS foi feito; ele foi feito e constru- Lula, entre 2007 e 2011. Atualmente é
ído para atender a toda a população”. diretor executivo do Instituto Sul-Ame-
No seu entendimento, é “essa questão ricano de Governo em Saúde.
que temos que enfrentar ou, do con- Confira a entrevista.

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

“Se do ponto de vista estrutural


há uma fragilização do SUS,
do ponto de vista conjuntural
temos um ataque a ele”

IHU On-Line – Três décadas filosóficos e suas garantias constitu- blico, mas é curioso perceber que es-
depois da implantação do Sis- cionais estão em pleno vigor, mas, sas medidas não afetam os próprios
tema Único de Saúde - SUS, em do ponto de vista prático, o que se vê congressistas, porque eles continua-
que estágio se encontram os é uma gradual fragilização – apesar rão se utilizando do seguro de saúde
princípios que sustentaram a dos avanços – do sistema público e privado e ficam imunes a eventuais
sua criação? um fortalecimento do setor privado. problemas de acesso à saúde, pre-
Se inserirmos essa pergunta no con- cariedade e tempo de espera. Eles
José Gomes Temporão – Se texto atual, a situação se agrava, por- jogam essa problemática para o con-
analisarmos de um ponto de vista que temos um governo que é inimi- junto da sociedade, o que acaba afe-
formal e factual, os princípios estão go do Sistema Único de Saúde, que tando os mais pobres.
aí, inscritos na Constituição e ga- trabalha cotidianamente contra ele,
rantidos na Lei Orgânica do Sistema É claro que além dessa questão po-
que representa os interesses priva-
de Saúde. Mas, do ponto de vista lítica existem problemas sérios de
dos e está o tempo todo colocando na
político, esses princípios – univer- mesa propostas de fragilização e pri-
financiamento, e a própria aprova- 23
salidade, gratuidade, integralidade, ção da EC 95, que congela os gastos
vatização do SUS. Se do ponto de vis-
gestão democrática descentralizada sociais no país por 20 anos, é uma
ta estrutural há uma fragilização do
– se encontram em risco. Isso por- medida vil que está condenando mi-
SUS, do ponto de vista conjuntural
que nos últimos 30 anos, em vez lhares de brasileiros à morte. As evi-
temos um ataque a ele.
de um sistema integrado, em que o dências estão aí, com uma série de
Estado tem o controle do conjun- artigos mostrando que várias doen-
to da rede pública e privada, houve IHU On-Line – Nesse cenário, ças infectocontagiosas voltaram, que
um desenvolvimento desconectado, os maiores limites do SUS hoje a mortalidade infantil vinha caindo e
em paralelo, de dois subsistemas: são de recursos ou de gestão? voltou a subir, que há caos nas uni-
do sistema público, que atende 75% dades de emergência etc. Portanto,
José Gomes Temporão – Essa existe um problema financeiro que
da população brasileira em todas as é uma falsa questão. Na verdade, a
suas necessidades, desde um proce- é filho de um problema político.
principal questão não é nem de ges- De outro lado, problema de gestão
dimento bem simples até um trans- tão, nem financeira. O Brasil não
plante de órgãos; e de um segundo existe em todo sistema de saúde em
avançou numa questão fundamen- qualquer lugar do mundo. Se você
sistema que contempla os outros tal, que é quando a sociedade de um
25% da população que têm acesso a abrir os jornais europeus, verá que
determinado país percebe, no seu também existe tempo de espera e
planos e seguros de saúde e medici- sistema público universal, um patri-
na privada. Chama atenção que es- uma série de críticas aos modelos de
mônio dessa sociedade que deve ser
ses 25% que têm acesso ao setor pri- saúde, ou seja, os sistemas de saúde
preservado, qualificado e garantido,
estão sempre tentando se renovar do
vado para suas necessidades diárias no sentido de que ele ficará para as
ponto de vista da gestão. Mas sempre
dependem, para muitas das ações de próximas gerações. É exatamente
fico muito preocupado quando o mi-
saúde, do SUS. Por exemplo, o setor isso que acontece hoje nos países eu-
nistro da Saúde de plantão assume
de transplante de órgãos atende a ropeus. Mas nós, infelizmente, não
com o discurso de que irá melhorar a
90% da população brasileira, assim alcançamos esse grau de consciência
gestão, afirmando que problemas de
como a vigilância sanitária epide- política sobre saúde. Esse é o prin-
recursos não existem, porque isso é
miológica, e o mesmo acontece com cipal problema, ou seja, trata-se de
uma fraude. Aliás, é o que está sendo
o atendimento de urgência e emer- uma questão política.
dito desde o golpe que tirou do poder
gência, vacinas etc.
Veja que o congresso aprova me- a presidente Dilma, mas hoje vemos
Esta é uma das grandes contradi- didas que ferem a sustentabilidade como a situação piorou ainda mais.
ções do sistema hoje: seus princípios econômica e política do sistema pú- Os arautos da boa gestão fizeram o

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

que para melhorar o sistema? Então, esse estrato dos trabalhadores nun- e a Lei Orgânica, o SUS já nasceu
resumiria dizendo o seguinte: existe ca apoiou o SUS na prática. Isso foi atacado politicamente, porque fo-
uma questão macro que é política e um vetor fundamental e importan- ram colocados obstáculos a sua ple-
existem os desdobramentos que essa tíssimo de consolidação do setor pri- na implementação e qualificação.
questão afeta, que é o financiamen- vado, quando se considera que 90% Mas agora diria que é um dos mo-
to, a sustentabilidade econômica e a das pessoas cobertas por planos de mentos mais agudos no sentido de
sustentabilidade do SUS. saúde fazem parte de planos coleti- que temos um governo que está mais
vos, vinculados ao emprego, onde o preocupado em resolver os proble-
patrão custeia parte dos gastos. mas financeiros e econômicos do se-
IHU On-Line – O senhor tor privado do que em construir um
mencionou anteriormente que sistema público para todos.
também ocorreram avanços
no SUS. Pode apontar alguns
deles e mencionar também
“Os senadores
IHU On-Line – A EC 951 limita
quais são as principais amea- aprovam os gastos públicos por 20 anos,
ças ao sistema?
José Gomes Temporão – Os
medidas que fixando em zero o crescimento
real das despesas primárias.
avanços foram incontestes: a me-
lhoria da expectativa de vida, a re-
ferem a susten- Quase dois anos depois da pro-
mulgação dela, existem efeitos
dução da mortalidade por doenças
crônicas, a redução da mortalidade
tabilidade que já são percebidos no siste-
ma de saúde?
infantil e da mortalidade materna.
No mundo todo, só os EUA fazem
econômica e José Gomes Temporão – Os

política do
efeitos são evidentes. No Rio de Ja-
mais transplantes do que o Brasil, e neiro, por exemplo, há um caos na
os nossos programas de vacinação e
de tratamento de aids são referên- sistema rede pública de saúde: faltam leitos,
pessoas estão desamparadas, estão

público, mas é
cia mundial. Além disso, o Brasil é morrendo sem assistência, há o re-
24 o país do mundo que tem o maior torno do sarampo, que estava com-
programa de atenção primária, que
cobre 120 milhões de brasileiros. Ou curioso pletamente controlado, o retorno da
mortalidade infantil etc. Está acon-
seja, nesses 30 anos houve uma mu-
dança brutal em termos de qualida- perceber que tecendo o que houve na Grécia e em
Portugal, ou seja, a austeridade faz
de, de acesso, de cobertura, sempre
com muita dificuldade e precarieda- essas medidas mal à saúde.

de, mas ao mesmo tempo – e essa é


uma questão paradoxal – ocorreram
não afetam os IHU On-Line – A EC 95 está
melhorias que poderiam ter sido
mais significativas se tivéssemos go-
próprios impactando a atenção básica
da saúde dentro do SUS? Como
vernos que apoiassem mais o SUS e
dessem recursos financeiros e tecno-
senadores” a atenção básica era tratada
até então e como ela vem sen-
lógicos necessários e suficientes. As do tratada agora em função da
ameaças são estas: a própria fragi- restrição orçamentária?
lização política do sistema ao longo
dessas décadas. IHU On-Line – Em algum ou- 1 Emenda Constitucional nº 95: a EC 95 limita por 20
tro momento, ao longo desses anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a pro-
posta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo
Também é importante chamar 30 anos, o sistema já esteve presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na
atenção para uma contradição: ao mais ameaçado do que agora? condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de
equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me-
mesmo tempo que os sindicatos dos canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto
trabalhadores sempre apoiaram o José Gomes Temporão – Di- dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação
SUS na retórica, na prática eles sen- ria que no seu nascedouro, porque acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con-
sumidor Amplo (IPCA). É considerada umas das maiores
tavam com os patrões e negociavam o SUS nasce na contramão das po- mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas
para si e suas famílias planos e se- líticas liberais dos anos 90, como o refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori-
camente crescem todos os anos acima da inflação, como
guros de saúde, e isso envolveu os thatcherismo, na Inglaterra. Ou seja, educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento
dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida-
próprios trabalhadores do SUS, que nasce na contracorrente, porque des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e
se utilizam de seguros para si e para conceitualmente ele se coloca contra a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode
resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a
suas famílias. Isso criou uma situa- a ideologia neoliberal e pressupõe área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC
241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada
ção esquizofrênica no sentido de que um Estado forte e provedor de segu- PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à
se tratava de um apoio apenas no ridade social. Naquele nascedouro, Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016,
no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota
discurso; na verdade revelou-se que quando foi aprovada a Constituição da IHU On-Line)

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

José Gomes Temporão – Sem no pronto atendimento, na atenção isso, e o primeiro deles é que existe
dúvida as restrições não são apenas de urgência e emergência. Mas esse uma nova geração de pais, que não
orçamentárias, porque ocorreram modelo não dá mais conta da reali- conviveram com a doença, e podem
algumas medidas políticas, como, dade epidemiológica, porque agora ter relaxado na questão de manter a
por exemplo, a redução do número existem doenças crônicas, em razão caderneta de vacinação em dia. Um
de agentes comunitários de saúde, e das quais os pacientes precisam to- segundo fenômeno é o movimento
isso afeta profundamente políticas mar medicamentes por longos perí- antivacina, que já é muito forte nos
de prevenção, promoção e de vaci- odos. Normalmente, esses pacien- EUA, mas no Brasil isso é secundário,
nação. Outra medida tomada de for- tes têm comorbidades, ou seja, têm porque afeta mais um grupo de clas-
ma equivocada foi a flexibilização do mais de uma doença conjuntamente, se média, que tem uma visão crítica a
repasse de recursos federais para os e precisam ser acompanhados per- respeito da medicina e de falsas no-
municípios. Antes existia uma série manentemente por profissionais de tícias de que algumas vacinas pode-
de exigências e de contrapartidas e saúde e, nesse cenário, as políticas riam causar problemas de saúde.
destinos a serem dados a esses re- de prevenção e promoção à saúde Mas, a meu ver, o motivo principal
cursos, mas agora o gestor da ponta têm um papel fundamental. da volta de doenças antes controla-
pode decidir como vai usar esses re- das é a fragilidade da atenção bási-
Por isso, se um prefeito acha que
cursos, ou seja, se utilizará esses re- ca e a falta de recursos financeiros.
vai resolver os problemas de saúde
cursos em vigilância epidemiológica, E aí existe uma especificidade: nos
instalando um pronto-socorro, está
em vigilância sanitária, em atenção últimos anos houve uma perda da
enganado, porque esse modelo está
básica ou hospitalar. Visões “hospi- comunicação e da informação, ou
fadado ao fracasso. O modelo agora
talocêntricas” e “medicalizantes” na seja, uma fragilização da capacida-
é uma atenção primária de qualida-
ponta podem fragilizar as bases es- de convocatória do governo federal,
de, resolutiva, capaz de resolver na
truturais da atenção básica, da vigi- estados e municípios em relação à
ponta do sistema 80% dos problemas
lância epidemiológica e sanitária do de saúde. Todos os países do mundo população, para que ela se vacine e
país. Então, são medidas que conju- que possuem sistemas de saúde que se proteja.
gam restrições financeiras e medidas funcionam com qualidade têm seu
tomadas pelo governo que afetam a
qualidade e a sustentabilidade das
sistema baseado na atenção primária.
IHU On-Line – Recentemente,
25
Mas o Brasil ainda tem uma cultura
políticas públicas. a Agência Nacional de Saúde
de que o que resolve saúde é hospital,
– ANS chegou a cogitar a libe-
e muitos prefeitos acreditam nisso.
ração de outras modalidades
IHU On-Line – Mesmo em Então, ao invés de investir recursos e
de planos de saúde privados,
período em que houve grande esforços na estruturação de uma rede
para que as empresas buscas-
investimento na saúde básica, básica de atendimento à saúde, ficam
sem mais clientes e em outras
vem sendo muito forte no Bra- gastando dinheiro de forma irrespon-
formas de atendimento. Que
sil a chamada “cultura do pron- sável na construção de hospitais, que
ameaças o avanço das lógicas
to atendimento e das emergên- muitas vezes são caríssimos para se-
de sistemas privados de saúde
cias”, levando a esses locais rem construídos e mais caros ainda
podem trazer ao SUS? E como
muitos casos que poderiam ser para serem mantidos. O que temos
fazer frente a essas ameaças?
resolvidos na rede básica. Essa que buscar é um equilíbrio nesse mo-
cultura pode ser atribuída a ló- delo: a reconstrução de um modelo, José Gomes Temporão – Es-
gicas que, há 30 anos, tentam colocando toda ênfase na atenção pri- sas propostas de franquia, planos
desidratar o SUS? Por quê? mária. É claro que o hospital é impor- de saúde simplificados e clínicas
tante, mas ele se integra a uma rede populares, nada mais são do que
José Gomes Temporão – Eu di- e deixa de ser a referência central do estratégias que não têm nada a ver
ria que essa afirmação tem um pro- sistema de saúde. com a proteção da saúde da popula-
blema. O que está acontecendo é que ção brasileira. O impacto disso so-
há uma profunda mudança no Bra- bre a garantia de condições de saú-
sil, especialmente do ponto de vista de, redução de danos, de qualidade
IHU On-Line – Atualmente, o
demográfico, porque a população no acesso, é zero! Essas medidas se
Brasil vive um surto de saram-
está envelhecendo de maneira muito inserem numa lógica mercantil de
po, que há poucos anos foi pra-
rápida, e isso significa uma redução resolver problemas financeiros do
ticamente eliminado do país.
drástica de doenças infectocontagio- mercado. E diria mais: todas essas
Como compreender esse re-
sas, desnutrição e um aumento sig- são falsas propostas de melhoria, de
crudescimento da doença? Há
nificativo de diabetes, hipertensão, atendimento e de proteção, porque
equívocos nas políticas públicas
doenças cardiovasculares e câncer. quando se estimula o plano simplifi-
de prevenção e imunização?
Isso exige uma mudança radical do cado, se fará com que o usuário se di-
modelo de atenção, que então era um José Gomes Temporão – São rija ao SUS quando tiver um proble-
modelo, como você falou, baseado vários fatores que contribuem para ma de saúde mais complexo. Então,

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

esse movimento e o lobby existente lias e, no caso das famílias, esse gas- que vão se apresentar tratam da
no Congresso em relação a isso têm to é com medicamentos, o que afeta questão da saúde como uma prio-
a ver com interesses em políticas an- proporcionalmente as famílias de ridade? As pesquisas mostram que
ti-SUS, políticas que não têm nada baixa renda. a principal preocupação do bra-
a ver com o interesse público e com sileiro hoje é saúde, e quando se
Então, o grande desafio do Bra-
uma visão de saúde pública de prote- pergunta à população sobre como
sil é aumentar o gasto público. E
ger a população e melhorar a quali- ela vê o SUS, a resposta geralmen-
como fazer isso se já temos uma
dade. São “gambiarras” que se tenta te é positiva. A população brasilei-
carga tributária de 35%? É preciso
colocar na política de saúde, que não ra vê o SUS como uma política que
mudar a lógica da maneira como os
vão resolver nada. deve ser sustentada, estimulada e
tributos são arrecadados no país.
preservada.
Hoje quem paga imposto no Bra-
IHU On-Line – Como garantir sil são os assalariados, mas temos Estamos diante de um desafio
recursos para o financiamen- que enfrentar esse problema, e esse enorme: vamos ter um novo gover-
to da saúde pública? Quais os é o desafio da reforma tributária e no que vai recolocar o SUS como
desafios para, de fato, se im- fiscal, implantando impostos so- prioridade absoluta na saúde? Caso
plementar a forma de financia- bre grandes fortunas e heranças, isso não aconteça, temo que esteja-
mento que foi concebida à épo- e mudando a lógica do sistema de mos no limiar de ter um SUS empo-
ca da criação do SUS? arrecadação dos impostos, que é brecido, fragilizado, com uma visão
altamente regressiva. Proporcio- negativa, que é para atender a popu-
José Gomes Temporão – Na nalmente, os mais pobres pagam lação mais pobre. Mas não foi para
época da implementação do SUS foi mais impostos que os mais ricos. isso que o SUS foi feito; ele foi feito
garantido na Constituição que 30% Então, enfrentando para valer uma e construído para atender a toda a
dos recursos da seguridade social reforma fiscal e tributária, tería- população. Se o SUS não for forta-
iriam para o SUS, mas perdemos mos recursos suficientes para gra- lecido, teremos um sistema privado
isso nos anos 90, no início da cons- dualmente aumentar o gasto públi- que cada vez cresce mais com sub-
trução do sistema. co em saúde no gasto total. sídios e renúncias fiscais. Dados
26 Para garantir recursos adequados do Ipea mostram que cerca de 25
e suficientes para a saúde pública, bilhões de reais por ano deixam de
IHU On-Line – Tendo em vista
é preciso, primeiro, dizer o seguin- entrar no SUS para subsidiar clí-
o atual cenário da conjuntura
te: quando olhamos para os países nicas, hospitais e planos e seguros
brasileira e a conjuntura mun-
que são referência em atendimento de saúde. É essa questão que temos
dial, que projeções é possível
à saúde, como Inglaterra e demais que enfrentar ou, do contrário, es-
fazer para o SUS?
países europeus, percebemos que tamos determinando que o país terá
a participação do gasto público no José Gomes Temporão – Es- dois sistemas de saúde: um para os
gasto total em saúde é muito alto; tamos diante da eleição presiden- pobres e outro para a classe média
está acima de 80% na Inglaterra e cial e as campanhas vão começar, e para aqueles que podem pagar
acima de 70% nos demais países. No e há uma indefinição em relação a por planos e seguros de saúde. Isso
Brasil ocorre o contrário: menos da um dos candidatos, o ex-presiden- seria o fim e a derrota desse proje-
metade do gasto é público; a maioria te Lula. Mas, por outro lado, a mi- to humanista, generoso e inovador
do gasto é das empresas e das famí- nha pergunta é: as candidaturas que é o SUS. ■

Leia mais
- A contaminação do SUS pela fragilidade da atenção básica e má formação de médi-
cos. Entrevista especial com José Gomes Temporão, publicada nas Notícias do Dia de 21-
01-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Meb7pf.
- “A construção do SUS é um processo histórico”. Entrevista com José Gomes Tempo-
rão, publicada na revista IHU On-Line, número 376, de 17-10-2011, disponível em http://bit.
ly/2np3vCh.
- O SUS e a dimensão ontológica do cuidado. Entrevista com José Gomes Temporão,
publicada na revista IHU On-Line, número 492, de 05-09-2016, disponível em http://bit.
ly/2MApyRi.

13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

SUS é mais do que uma


política de saúde pública
Para Jairnilson Paim, compreender o conceito do sistema
é fundamental para enfrentar seus limites e fortalecer
ações que envolvem desde saúde até assistência social
João Vitor Santos

D
esde sua criação, o Sistema setores de esquerda usam a expressão
Único de Saúde - SUS trouxe saúde pública em contraposição à ‘saú-
inúmeros avanços para a saú- de privada’, caindo na armadilha de
de pública no Brasil. É o que defende restringir o SUS conforme a ideologia
Jairnilson Silva Paim, doutor em Saúde dominante”, adverte.
Coletiva. “O SUS dispõe de uma rede de
Ainda na entrevista, concedida por
instituições de ensino e pesquisa que
e-mail à IHU On-Line, o médico ob-
interage com os serviços de saúde, pos-
serva como essa epidemia de sarampo
sibilitando que um conjunto de pessoas
“é um dos preços pagos pela desestru-
adquiram conhecimentos, habilidades
turação do SUS”. Para ele, o argumen-
e valores vinculados aos seus princípios
to de que as pessoas buscam menos as
e diretrizes”, destaca.
vacinas porque se baseiam em notícias
Para o médico, esses avanços revelam falsas de redes sociais insuflado por
o potencial do SUS e sua própria natu-
27
movimentos como o antivacínico não
reza. Afinal, é preciso compreendê-lo serve para explicar o fenômeno em toda
como algo muito além de uma política a população. “Será que situações desse
de saúde pública. “O SUS é um sistema tipo, até possíveis de serem observadas
público, não um ‘sistema de saúde pú- na classe média, podem ser generali-
blica’. A integralidade da atenção supõe zadas para o conjunto da população?”,
a articulação de ações de promoção, questiona.
proteção e recuperação da saúde. Com
o SUS, buscava-se superar o Tratado Jairnilson Silva Paim é graduado
das Tordesilhas que separava a saúde em Medicina, mestre em Medicina e
pública, confinada no Ministério da Saúde e doutor em Saúde Coletiva pela
Saúde, e a assistência médica prestada Universidade Federal da Bahia – UFBA.
pela medicina previdenciária (Inamps) É professor de Política de Saúde do Ins-
e pelo setor privado”, esclarece. tituto de Saúde Coletiva da UFBA e co-
ordenador do Observatório de Análise
Segundo Jairnilson, os ataques a que
Política em Saúde. Entre suas publica-
o sistema vem sendo submetido parte
ções estão Reforma Sanitária Brasi-
justamente dessa lógica de o reduzir a
leira: contribuição para compreensão
uma política. Por isso defende que se
e crítica (Salvador: Edufba/Rio de Ja-
tenha clareza nesse conceito. “Quando
neiro: Editora Fiocruz, 2008), O que é
os conservadores, os liberais e a mídia
o SUS (Rio de Janeiro: Editora Fiocruz,
misturam o SUS com a saúde pública
2009), Desafios da Saúde Coletiva no
não o fazem inocentemente: querem
limitar o SUS ao controle de doenças e Século XXI (Salvador: Edufba, 2006),
epidemias ou à profilaxia, de modo que Saúde Coletiva: Teoria e Prática (Rio
a assistência médica fique submetida de Janeiro: Medbook, 2013) e a Crise
ao mercado ou, no limite, seja ofereci- da saúde pública e a utopia da Saúde
da apenas para os pobres”. Esse erro é Coletiva (Salvador: Casa da Qualidade,
tão sério que é cometido até mesmo por 2000).
setores mais progressistas. “Até mesmo Confira a entrevista.

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Há cerca de direitos sociais e de saúde e à pro- o que foi projetado nesse mo-
dois anos, o senhor nos con- moção da cidadania. mento sobre o SUS de fato se
cedeu uma entrevista1 em que, tornou uma realidade?
Destacava, ainda, que aqueles par-
entre outros pontos, destacava
lamentares que ocupavam o Con- Jairnilson Silva Paim – Em
as ameaças que o Sistema Úni-
gresso Nacional e votavam pela 2018, quando se comemora o SUS
co de Saúde - SUS vinha sofren-
aprovação da PEC 241 e da PEC 55, nos seus 30 anos, vários balanços,
do. De lá para cá, o que mudou
ameaçando a vida e a saúde de mi- análises críticas e debates têm sido
nesse cenário de ameaças?
lhões de brasileiros e brasileiras por realizados, apontando conquistas,
Jairnilson Silva Paim – A situ- duas décadas, certamente seriam inclusive vinculadas ao projeto e ao
ação piorou radicalmente, seja pelas julgados pela História como perpe- processo da Reforma Sanitária Bra-
ações desastradas na condução do tradores de um crime de lesa-pátria. sileira - RSB4. Nesse particular, des-
Ministério da Saúde, após o golpe Portanto, não foram só os ministros tacaria o número especial da Revista
de Estado de 2016, seja pelos efeitos e o governo Temer os responsáveis Ciência & Saúde Coletiva lançado no
da Emenda Constitucional - EC 95. pelo que constatamos hoje, mas to- 12º. Congresso Brasileiro de Saúde
Naquele ano, fiz inúmeras palestras dos os parlamentares que apoiaram Coletiva, contando com a participa-
e entrevistas chamando a atenção a EC 95 e a grande mídia que a de- ção de mais de 100 pesquisadores
para o desmonte do SUS e as pos- fendeu. Hoje, hipocritamente, essa brasileiros de todas as regiões do
síveis repercussões da PEC 241 da mesma mídia faz de conta que se país. Podem ainda ser menciona-
Câmara dos Deputados e da PEC 55 surpreende com a piora da situação dos o artigo “Trinta anos de Sistema
do Senado da República que resul- de saúde e, cinicamente, aproveita o Único de Saúde - SUS: uma transi-
taram na EC 95. Esta congelava por colapso dos serviços de saúde para ção necessária, mas insuficiente”5,
20 anos o teto de gasto público, com- culpar o SUS. Além disso, verifica- da Profa. Ligia Bahia, com as críticas
prometendo especialmente a saúde, mos retrocessos na Política Nacional de diversos debatedores; a reporta-
a educação, a ciência e tecnologia, de Atenção Básica - Pnab, na política gem “30 anos SUS: Os sistemas uni-
a segurança pública, o saneamento, de saúde mental, no repasse de re- versais na encruzilhada”, na Revista
entre outros setores. cursos para os municípios, na baixa Poli – Saúde, Educação, Trabalho6; e
28 Analisamos as diversas faces da
cobertura vacinal, na mortalidade a discussão da mesa-redonda “Desa-
infantil, na epidemia de sarampo, na fios e perspectivas do SUS”, no últi-
destruição do SUS, juntamente com ameaça da poliomielite, no cresci- mo Abrascão7.
o presidente da Associação Brasi- mento de casos de malária etc.
leira de Saúde Coletiva - Abrasco, Em todas essas iniciativas são reco-
Gastão Wagner de Souza Campos,   nhecidos os avanços do SUS, apesar
e a Profa. Lígia Bahia2 por iniciati- IHU On-Line – O sistema pri- do subfinanciamento crônico, dos
va do Le Monde Diplomatique Bra- vado de saúde é a principal problemas da gestão, da privatização
sil e da Plataforma Política Social ameaça ao SUS atualmente? do setor e da sabotagem dos gover-
no Instituto Polis no 7º Seminário Por quê? nos. Destacaria o reconhecimento
Público - Golpe do SUS, sob a me- legal do direito à saúde, a descentra-
Jairnilson Silva Paim – Sim, lização da gestão, o controle social, a
diação de Silvio Bava on line3. Res-
atualmente, a maior ameaça de ampliação da atenção primária vin-
saltava que, enquanto a população
todas é a privatização da atenção culando 60% da população brasilei-
cresce, envelhece e muda o seu perfil
através da financeirização do setor ra às equipes de saúde da família e
epidemiológico com uma tripla car-
saúde. Pesquisas recentes indicam o desenvolvimento da vigilância em
ga de doenças e agravos (doenças
movimentos do capital no âmbito da saúde. Além disso, o SUS dispõe de
transmissíveis, doenças crônicas
saúde que ultrapassam o território uma rede de instituições de ensino
e transtornos mentais, acidentes e
nacional, mesmo antes da aprovação e pesquisa que interage com os ser-
violências), o governo federal re-
da lei que permite a participação do viços de saúde, possibilitando que
duz recursos para o SUS. Chamava
capital estrangeiro na saúde no país. um conjunto de pessoas adquiram
a atenção de que, além das mortes,
Sob a dominância financeira, o capi- conhecimentos, habilidades e valo-
doenças e sofrimentos que seriam
tal corrói as bases do SUS, tornan- res vinculados aos seus princípios
produzidos com a quebra da uni-
do mais complexa a regulação, bem e diretrizes. Um legado de avanços
versalidade, isto significava rasgar a
como a luta em defesa de um sistema pode ser identificado na realização
Constituição no que diz respeito aos
de saúde universal como a proposta de transplantes, no Samu e no con-
1 A entrevista, intitulada A macropolítica de saúde públi-
do SUS.
ca, foi publicada na revista IHU On-Line número 491, de 4 Reforma Sanitária Brasileira: o movimento da Reforma
22-8-2016, disponível em http://bit.ly/2nkBL1v. (Nota da
IHU On-Line)
  Sanitária nasceu no meio acadêmico no início da década de
1970 como forma de oposição técnica e política ao regime
2 Ligia Bahia: graduada em Medicina pela Universidade IHU On-Line – O SUS foi con- militar. Nesse contexto destacaram-se nessa luta também
Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra e doutora em figuras do âmbito político como Sérgio Arouca, David Capis-
Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente é cebido, também, no bojo das trano e Gilson de Carvalho. (Nota da IHU On-Line)
professora adjunta da UFRJ. (Nota da IHU On-Line)
3 Le Monde Diplomatique Brasil, No. 101, outubro de
discussões geradas com a Re- 5 Disponível em http://bit.ly/2APbWAc. (Nota do entrevistado)
6 no. 58, jul/ago, 2018. (Nota do entrevistado)
2016, p. 40. (Nota do entrevistado) forma Sanitária. Até que ponto 7 Disponível em http://bit.ly/2nj3qA6. (Nota do entrevistado)

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trole do tabagismo, do HIV/aids e da ideologia dominante. No Brasil e na Jairnilson Silva Paim – A aten-
qualidade do sangue. E o país tam- América Latina, se constituiu o cam- ção básica junto à vigilância e pro-
bém avançou no desenvolvimento de po da Saúde Coletiva justamente para moção da saúde são fundamentais
sistemas de informação em saúde, superar a saúde pública e a medicina para o SUS não só para a acessibi-
importantes para o monitoramento preventiva, possibilitando a sua ar- lidade, mas sobretudo para a efe-
e avaliação, bem como na pesquisa ticulação com a Reforma Sanitária tividade das intervenções. Muito
e na avaliação tecnológica em saúde. Brasileira e a formulação do SUS. do que se conseguiu na melhoria
dos indicadores de saúde nesses 30
  Saneamento não é SUS, como anos de SUS, assim como na redu-
IHU On-Line – O SUS também também não o são a renda, o tra- ção de internações, pode ser atri-
é concebido como algo que vai balho, a alimentação, a habitação, buído à atenção básica, conforme
além da saúde pública. Mas ve- a segurança, o ambiente etc. São demonstram várias pesquisas pu-
mos que os investimentos se determinantes ou condicionantes blicadas no Brasil e no exterior. A
restringem a ações de saúde, muito relevantes para a garantia compreensão dos retrocessos passa
deixando de lado, por exemplo, do direito à saúde, como as políti- pelas políticas adotadas pelos gol-
programas como de ampliação cas econômicas e sociais, que re- pistas, cujo discurso dominante no
de redes de saneamento. Por querem ações intersetoriais. Tanto Ministério da Saúde era o do corte
que isso ocorre? E quais os de- a Constituição quanto a legislação dos gastos e a prática priorizada era
safios para tornar esse um sis- e as normas do SUS ressaltam as da privatização.
tema muito maior do que uma políticas intersetoriais, chegando a
política de saúde pública? apontar alguns mecanismos para a
sua coordenação. Antes do golpe, o IHU On-Line – Recentemente,
Jairnilson Silva Paim – O SUS
Ministério da Cidade formulou uma temos visto o avanço de doen-
não é a mesma coisa que saúde pú-
política de saneamento muito bem ças tropicais, como a malária
blica. O SUS não foi concebido como no Norte, sem falar em dengue,
uma “política de saúde pública”. fundamentada na perspectiva da
integralidade e da equidade, mas a zika e chikungunya em todo o
Não podemos confundir “sistema de país, que pareciam praticamen-
saúde pública” com sistema público EC 95 também compromete a sua
e universal de saúde. O SUS é um implementação. A Lei Complemen- te erradicadas. Como compre- 29
tar 141 estabelece um conjunto de ender a volta dessas doenças?
sistema público, não um “sistema de E que relação podemos estabe-
saúde pública”. No art. 197 da Cons- critérios para indicar o que é SUS e
lecer com a falta de investimen-
tituição da República, verificamos o que é responsabilidade de outros
tos em atenção básica e no pró-
que as ações e serviços públicos de setores, com seus orçamentos espe-
prio SUS como um todo?
saúde constituem um sistema úni- cíficos, mas passíveis de definição
co, em cujas diretrizes encontra-se de políticas intersetoriais. Jairnilson Silva Paim – A as-
o atendimento integral. Portanto, a sociação desse perfil epidemioló-
A gestão fatiada das políticas pú-
integralidade da atenção supõe a ar- gico com os ataques ao SUS já era
blicas decorrente da distribuição
ticulação de ações de promoção, pro- alertada desde 2014. Só a grande
de cargos entre partidos pode ser
teção e recuperação da saúde. Com o mídia pode, irresponsavelmente,
uma explicação, junto com a cultu-
SUS, buscava-se superar o “Tratado aparentar surpresa com esses fatos.
ra organizacional dominante, para o Aliás, como abutres, ainda usa esses
das Tordesilhas” que separava a saú-
exercício restrito de políticas inter- resultados para ampliação do sensa-
de pública, confinada no Ministério
setoriais. As recomendações da Co- cionalismo e demonizar os serviços
da Saúde, e a assistência médica
missão Nacional dos Determinantes públicos de saúde. Diversos pesqui-
prestada pela medicina previdenciá-
da Saúde entregues à Presidência da sadores brasileiros em parceria com
ria (Inamps) e pelo setor privado.
República há uma década têm sido centros de pesquisa internacionais
Quando os conservadores, os libe- solenemente ignoradas. estão investigando essas relações e
rais e a mídia misturam o SUS com os custos sociais do “austericídio”.
a saúde pública, não o fazem inocen-  
temente: querem limitar o SUS ao IHU On-Line – Há alguns
controle de doenças e epidemias ou à anos, houve investimento em IHU On-Line – O Brasil tam-
profilaxia, de modo que a assistência atenção básica, equipes de saú- bém tem tido aumento de casos
médica fique submetida ao mercado de da família, contratação de de sarampo, especialmente em
ou, no limite, seja oferecida apenas agentes comunitários, entre Roraima, atribuída a entrada
para os pobres. Do outro lado, seg- outras medidas. Atualmente, o de venezuelanos. Autoridades
mentos progressistas e até mesmo quadro é outro. Como compre- locais dizem que a doença só
setores de esquerda usam a expres- ender esses retrocessos? E por tem expandido porque as pes-
são saúde pública em contraposição que a atenção básica, a saúde soas têm desconsiderado o ca-
à “saúde privada”, caindo na arma- preventiva, é tão importante lendário básico de vacinação.
dilha de restringir o SUS conforme a num sistema como o SUS? Mas o que esse argumento e

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

esse caso, como um todo, reve- vacinais culpando os pais por des- efetivamente público, democrático,
lam sobre a estratégia e política cuidarem da imunização dos filhos integral e igualitário. Não só porque
de vacinação no país? ou devido às fake news das redes o SUS tem a ver com o dever do Es-
sociais com suspeitas da eficácia das tado e o direito dos cidadãos em re-
Jairnilson Silva Paim – Não
vacinas ou dos efeitos colaterais. lação à saúde, nem porque necessita
sou epidemiologista nem especialis-
Pergunto: que estudos ou evidências alargar as bases sociais, políticas e
ta em imunizações, mas a pergunta
podem sustentar tais “explicações”? ideológicas em sua defesa, a partir
demanda por algumas considera-
Será que situações desse tipo, até de uma consciência sanitária crítica.
ções. Os refugiados venezuelanos
possíveis de serem observadas na É político porque lida com a questão
não são culpados pela epidemia de
classe média, podem ser generaliza- do modelo de desenvolvimento, com
sarampo no Norte. Se mantivésse-
das para o conjunto da população? as desigualdades (sociais, raciais, ét-
mos a imunidade de massa assegu-
nicas, de gênero etc.), com a articu-
rada pelas altas coberturas vacinais   lação público-privada, com a demo-
observadas até 2015 certamente não IHU On-Line – Quais os riscos cratização da atenção à saúde, com o
teríamos esse número de casos. O de um sistema de saúde públi- complexo econômico e industrial da
país sempre lidou com viagens in-
ca sem o SUS? E, no Brasil de saúde, com a questão ambiental na
ternacionais, incluindo países com
hoje, há possibilidade de isso cidade e no campo, com o orçamento
casos dessas doenças na Europa, e
ocorrer? e a disputa dos fundos públicos face
quando eles apareciam rapidamente
Jairnilson Silva Paim – Reitero aos interesses do capital financeiro.
se realizavam ações de bloqueio.
que o SUS não é parte de um “sistema Tenho batido nessa tecla há mais de
Essa epidemia é um dos preços 10 anos. Até mesmo a revista The
de saúde pública”. Ele é um sistema
pagos pela desestruturação do SUS, Lancet admitiu que o maior desafio
universal de saúde. Mas pode vir a
comprometendo até mesmo a re- do SUS é político, como destacou na
ser reduzido a ponto de retroceder
putação do Programa Nacional de capa da Série Health in Brazil, em
a uma espécie de “sistema de saúde
Imunizações - PNI e do sistema de maio de 2011.
pública” americanizado, restrito ao
vigilância epidemiológica. O PNI era
controle de doenças e à regulação  
motivo de orgulho nacional, diante
30 de produtos e serviços de interesse IHU On-Line – Deseja acres-
do reconhecimento internacional.
para a saúde, como o Centro de Con- centar algo?
E a vigilância epidemiológica bra-
sileira era uma das mais avançadas trole e Prevenção de Doenças - CDC
e o Food and Drug Administration - Jairnilson Silva Paim – Não é
das Américas, como demonstrou em suficiente afirmar que o maior desa-
2009 diante da epidemia do H1N1 FDA8, e ao atendimento dos pobres
e miseráveis. Assim, poderemos nos fio do SUS é político. Uma reforma
ou em 2015 com a identificação da social como a RSB e uma totalidade
zika no Nordeste. Era fato conhecido deparar com um simulacro do SUS se
não atuarmos politicamente em sua complexa e concreta como o SUS
que os brasileiros eram o povo que não são irreversíveis, mas também
mais respondia prontamente às con- defesa, combatendo os seus coveiros.
não são facilmente aniquiladas. Há
vocações para a vacinação.   lutas que serão travadas até as elei-
A corrida para as unidades de saú- IHU On-Line – Quais os desa- ções de outubro, e outras necessárias
de em busca da vacina contra a febre fios para se recuperar e pôr em para defender a democracia diante
amarela nos últimos anos é um bom prática o espírito do sistema de uma instabilidade que certamen-
exemplo, pois foi muito divulgada universal de saúde concebido te perseguirá um novo governo. Mas,
pela mídia. E as respostas do gover- ainda em meio à Constituinte antes de mais nada, pode-se iniciar
no foram um desastre. Primeiro, de- e Reforma Sanitária? E como processos (começando por onde for
morou a reagir. Depois, estabeleceu podemos relacionar esses de- possível e com as formas organizati-
prioridades de locais e faixas etárias. safios com as eleições de 2018? vas de que já se dispõe) que redun-
Em seguida, liberou geral, pois parece dem na constituição de novos sujei-
Jairnilson Silva Paim – Mesmo tos sociais, individuais e coletivos
que sobraram vacinas. E, finalmente,
que pareça um truísmo não há como (sujeitos da práxis e sujeitos da an-
se deu conta de que não era possível
escapar: o maior desafio do SUS é po- títese) articulados à RSB e à Saúde
dispor de vacinas para todos e deci-
lítico. É político o desafio de torná-lo Coletiva, de modo que nas próximas
diu fracionar a dose, com o pretexto
único. É político o desafio de fazê-lo décadas seja possível retomar as ini-
de atender a recomendação da Orga-
nização Mundial da Saúde - OMS. ciativas para a redução das desigual-
8 Food and Drug Administration: agência federal do
Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados dades no Brasil, para o aprofunda-
Enfim, era um conjunto de ingre- Unidos, um dos departamentos executivos federais dos
Estados Unidos. A FDA é responsável pela proteção e pro-
mento da cidadania e para o avanço
dientes para desacreditar o PNI e moção da saúde pública através do controle e supervisão e a radicalização da democracia.
desmoralizar o SUS, criando muitas da segurança alimentar, produtos de tabaco, suplementos
dietéticos, prescrição e over-the-counter medicamentos
dúvidas e perplexidades na popu- farmacêuticos, vacinas, biofarmacêuticos, transfusões de O que fazer? Passa pela revaloriza-
lação. Agora, aparece uma suposta sangue, dispositivos médicos, radiação eletromagnética, ção do conceito ampliado de saúde,
cosméticos e alimentos para animais e produtos veteriná-
explicação para as baixas coberturas rios. (Nota da IHU On-Line) possibilitando a articulação com as

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REVISTA IHU ON-LINE

lutas pelos direitos humanos, pela Associação Brasileira de Economia o Brasil9 com vistas à candidatura
redução das desigualdades e pela me- da Saúde - Abres etc.), a conjuntura para a Presidência da República e
lhoria da qualidade de vida (urbana, ensejou a construção da Frente Povo a segunda, divulgada em 3 de julho
familiar, pessoal, ambiental, ocupa- sem Medo e da Frente Brasil Popu- deste ano - Por uma frente para o
cional etc.). Já o como fazer supõe lar, entre outras iniciativas, que tem Parlamento compromissada com a
a revisão das vias de construção da possibilitado mobilizações e articu- reconstrução e o desenvolvimento
RSB (sócio-comunitária, técnico-ins- lação política contra o retrocesso e do Brasil 10 está voltada para parla-
titucional e legislativo-parlamentar), os ataques à democracia, em torno mentares comprometidos com uma
mesmo com diferença de ênfase em da bandeira Nenhum Direito a Me- agenda progressista.
instituições ou movimentos sociais. nos. Tais movimentos tendem a se
Cabe, também, estabelecer táticas Finalmente, não bastam o proseli-
expressar no processo eleitoral e na
junto aos conselhos e outras formas tismo em defesa do SUS e a prática
configuração das forças políticas que
organizativas (Fórum, Frentes, orga- ideológica do movimento sanitário.
conquistarem espaços nos âmbitos
nizações de bases em locais de traba- A busca de formas organizativas mais
federal e estadual.
lho – saúde e escolas/universidades orgânicas pode sugerir novos arran-
etc.), apostando na mobilização/ Nessa perspectiva, duas inciativas jos para que a militância da RSB atue
conscientização e, especialmente, relevantes foram acionadas pelas mais prontamente na conjuntura,
na unidade, agilidade e efetividade. Fundações ligadas a partidos que evitando que o movimento seja atro-
Para além dos movimentos sociais permitem apontar convergências pelado ou dirigido pelos fatos. ■
progressistas e das entidades da RSB para um programa de governo pro-
(Centro Brasileiro de Estudos em gressista. A primeira, de fevereiro de 9 Saiba mais em http://bit.ly/2OUQlt4. (Nota do entrevistado)
10 Saiba mais em http://bit.ly/2vst1eo. (Nota do entrevis-
Saúde - Cebes, Abrasco, Rede Unida, 2018 - Unidade para Reconstruir tado)

Leia mais
31
- A macropolítica de saúde pública. Entrevista com Jairnilson Paim, publicada por IHU
On-Line número 491, de 22-8-2016, disponível em http://bit.ly/2nkBL1v.
- “O maior desafio do Sistema Único de Saúde hoje, no Brasil, é político”. Entrevista com
Jairnilson Paim, publicada por IHU On-Line número 376, de 17-10-2011, disponível em
http://bit.ly/2aERZyE.
- A necessidade de avançar na democratização da saúde. Entrevista com Jairnilson
Paim, publicada por IHU On-Line número 233, de 28-7-2007, disponível em http://bit.ly/2b-
9ma0m.

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

Financiamento do SUS é
corroído desde sua criação
Reinaldo Guimarães destaca que o ápice das constantes
alterações nas regras que viabilizam a sustentação financeira
do sistema é a Emenda Constitucional nº 95
Vitor Necchi | Edição: João Vitor Santos

O
Sistema Único de Saúde - SUS é brio financeiro aparece. “As causas são
uma marca no que diz respeito várias e estão provocando a migração
ao atendimento integral à popu- para os planos de problemas que até
lação. “Embora nem sempre fique claro, então os mesmos atribuíam exclusiva-
100% da população usam algum serviço mente ao SUS. Dentre essas causas está,
do SUS e cerca de 75% usam esses ser- certamente, a absorção acrítica de uma
viços exclusivamente”, destaca o médi- ideologia de maximização da incorpo-
co sanitarista Reinaldo Guimarães, em ração de tecnologias como indicador
entrevista concedida por e-mail à IHU de efetividade”, detalha. O problema é
On-Line. Mas tudo isso tem um preço, que, nesse cenário de dificuldades por
e é daí que surge o argumento de que o todos os lados, os planos privados são
SUS não cabe no orçamento. Entretan- favorecidos em detrimento do SUS. “Os
to, Guimarães lembra que o sistema foi planos são um sistema não universal,
32 pensado com formas de financiamento e por aqui o perigo está em pretender
que garantiriam sua viabilidade. O pro- salvá-los da cada vez maior insolvência
blema é que, desde sempre, essas dire- às custas de transferir suas responsabi-
trizes não foram seguidas. lidades para o SUS”, alerta.
“As bases conceituais e financeiras do Reinaldo Felippe Nery Guima-
SUS começaram a ser corroídas ime- rães é médico sanitarista graduado
diatamente após a sua criação”, pon- pela Universidade Federal do Rio de
tua. “Essa corrosão expressou-se es- Janeiro - UFRJ, mestre em Saúde Co-
sencialmente em sucessivas alterações letiva pela Universidade do Estado do
de seu financiamento, sempre a menor, Rio de Janeiro – UERJ e doutor Ho-
chegando ao atual limite dos dispositi- noris Causa pela Universidade Federal
vos da Emenda Constitucional nº 95. A da Bahia - UFBA. Instituiu a Política
serem mantidos, penso que há possibi- Nacional de Ciência e Tecnologia em
lidades concretas de destruição do sis- Saúde, iniciando um processo de auto-
tema”, completa. nomia nacional na produção científica
Ao mesmo tempo, o médico lembra e inovação tecnológica. Foi diretor do
que a lógica dos planos de saúde aca- Departamento de Ciência e Tecnologia
ba se configurando como outra ameaça. do Ministério da Saúde e vice-presi-
Segundo ele, os planos sofrem proble- dente de Pesquisa e Desenvolvimento
mas semelhantes aos do SUS, pois é Tecnológico da Fundação Osvaldo Cruz
óbvio que, sem uma fonte financiadora - Fiocruz.
que cubra todos os custos, o desequilí- Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor é um apresentado no 1º Simpósio so- Constituição de 1988. Quais os


dos autores do texto A questão bre Política Nacional de Saúde princípios contidos nesse docu-
Democrática da Saúde1, que foi na Câmara Federal, em outu- mento?
bro de 1979, e é considerado a
peça fundante da reforma sani- Reinaldo Guimarães – As ideias
1 Disponível em http://bit.ly/2np3CO6 . (Nota da IHU On
-Line) tária no Brasil, antes mesmo da ali contidas falavam da necessidade

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REVISTA IHU ON-LINE

“Embora nem sempre fique


claro, 100% da população
usam algum serviço do SUS
e cerca de 75% usam esses
serviços exclusivamente”

de instituir um sistema público uni- em 1979, são construções político- 20 anos. A serem mantidos, penso
ficado de saúde capaz de dar conta sociais que se inscrevem na conjun- que há possibilidades concretas de
dos cuidados requeridos por toda a tura de lançamento do livro. destruição do sistema.
população. É preciso lembrar que,
Quanto à situação atual, há duas Quanto aos planos de saúde, res-
naquele momento, só tinham acesso
vertentes de análise. A primeira diz ponsáveis atualmente por parte dos
aos serviços de saúde pública aque- respeito aos indicadores populacio- cuidados à saúde de cerca de 25%
les que estavam sob a capa do regi- nais de saúde que segundo evidên- da população, estão cada vez mais
me da assistência médica da Previ- cias objetivas expostas em artigos sendo aprisionados por constrangi-
dência Social (Inamps). Esses eram publicados em revistas prestigiosas mentos financeiros que crescente-
apenas os trabalhadores que tinham vêm melhorando significativamen- mente põem em risco a sua susten-
emprego formal, com carteira de tra- te em todo esse período. A segunda tabilidade. As causas são várias e
balho assinada, ampla minoria dos vertente diz respeito à análise do estão provocando a migração para
cidadãos e cidadãs brasileiros. Além funcionamento do sistema de saúde, os planos de problemas que até en-
disso, o documento reivindicava o
33
seja em sua esfera pública (o SUS), tão os mesmos atribuíam exclusiva-
retorno ao regime democrático, haja seja na sua esfera privada (planos de mente ao SUS. Dentre essas causas
vista que o país estava, então, sob saúde). A principal virtude do com- está, certamente, a absorção acrítica
um regime autoritário militar anti- ponente público foi instituir-se nos de uma ideologia de maximização da
democrático. marcos da sua proposta original, incorporação de tecnologias como
isto é, dar acesso a todas e todos a indicador de efetividade. Lembrar
cuidados de promoção, prevenção que a dinâmica do desenvolvimento
IHU On-Line – O seu livro
e cuidados aos enfermos. Embora e produção de novas tecnologias em
Saúde e Medicina no Brasil:
nem sempre fique claro, 100% da saúde é o principal item no cresci-
contribuições para um debate
população usam algum serviço do mento das despesas com saúde nos
(Editora Graal, 1978) é apon-
SUS e cerca de 75% usam esses ser- sistemas não universais, como nos
tado como importante para a viços exclusivamente. Estados Unidos da América. Os pla-
socialização de um pensamen-
Não obstante o cumprimento des- nos são um sistema não universal, e
to crítico em saúde no país. No
sa importante missão original, res- por aqui o perigo está em pretender
contexto em que foi escrito, o
ta muito a avançar, em termos de salvá-los da cada vez maior insol-
que a obra propunha e, 40 anos
qualidade e de acolhimento. É im- vência às custas de transferir suas
depois, que análise o senhor faz
portante não esquecer que as bases responsabilidades para o SUS.
da saúde e da medicina atuais?
conceituais e financeiras do SUS co- IHU On-Line – No início dos
Reinaldo Guimarães – Aque- meçaram a ser corroídas imediata-
le livro teve a virtude de ampliar mente após a sua criação. Essa cor- canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto
as fronteiras da reflexão no campo rosão expressou-se essencialmente
dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação
da saúde pública, abrindo caminho em sucessivas alterações de seu fi- acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con-
sumidor Amplo - IPCA. É considerada umas das maiores
para o que viria a se chamar saúde nanciamento, sempre a menor, che- mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas
coletiva. Serviu como uma das fer- gando ao atual limite dos disposi- refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori-
camente crescem todos os anos acima da inflação, como
ramentas que ajudaram a construir tivos da Emenda Constitucional nº educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento
dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida-
esse novo campo de produção acadê- 952, que congela gastos públicos por des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e
mica e de prática política. O Centro a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode
resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a
Brasileiro de Estudos de Saúde - Ce- 2 Emenda Constitucional nº 95: a EC 95 limita por 20 área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC
anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a pro- 241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada
bes, que já existia desde 1976, e a As- posta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à
sociação Brasileira de Saúde Coleti- presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016,
condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota
va - Abrasco, que viria a ser criada equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

anos 2000, o senhor instituiu tecnologia e inovação do país, foi de- tica de desenvolvimento produtivo
a Política Nacional de Ciên- batida em maior profundidade pela que logrou encontrar um ponto de
cia, Tecnologia e Inovação em primeira vez antes de minha pre- convergência entre a ampliação do
Saúde3, iniciando um proces- sença no Ministério da Saúde. Isso acesso da população a medicamen-
so de autonomia nacional na ocorreu em 1994, por ocasião da 1ª tos estratégicos e o desenvolvimento
produção científica e inovação Conferência Nacional de Ciência e tecnológico e produtivo na indústria
tecnológica. Que balanço pode Tecnologia em Saúde, mas foi du- farmacêutica brasileira e que, em
ser feito desse processo desde a rante a 2ª Conferência, em 2004, 2009, foi concluída a reforma da
sua implantação? que se construiu uma política explí- política de assistência farmacêutica,
Reinaldo Guimarães – Na ver- cita nesse campo. As condições para tendo nela sido incorporadas as duas
dade, a necessidade do envolvimen- que isso acontecesse derivaram, no modalidades do programa de Far-
to do SUS e, em particular, de seu plano institucional, da criação da mácias Populares, criadas em 2006
gestor federal na política de ciência, Secretaria de Ciência, Tecnologia e e 2009. O balanço de todo esse pro-
Insumos Estratégicos no ministé- cesso, que continua ativo, me parece
3 Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação rio em 2003. Foi no âmbito dessa amplamente positivo, muito embora
em Saúde – PNCTIS: é parte integrante da Política Na-
cional de Saúde, formulada no âmbito do SUS. O artigo secretaria que aumentou bastante a ameaçado pelos mesmos constran-
200, inciso V, da Constituição Federal estabelece as com-
petências do SUS e, dentre elas, inclui o incremento do
presença do SUS no apoio à pesqui- gimentos decorrentes da Emenda
desenvolvimento científico e tecnológico em sua área de sa científica e tecnológica em saúde, Constitucional nº 95 e já apontados
atuação. Saiba mais sobre a política em http://bit.ly/2Md-
7Vu8. (Nota da IHU On-Line) que em 2008 foi inaugurada a polí- acima. ■

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13 DE AGOSTO | 2018
REVISTA IHU ON-LINE

Caminho para SUS ser único e universal


passa pela política e pelo fortalecimento
da base social de apoio
Para Carlos Ocké-Reis, sistema está vulnerável porque Temer
adotou política econômica neoliberal que amplia desemprego
e reduz investimento público e gasto social
Vitor Necchi

N
a avaliação do economista Car- morte, seja por se constituir junto com
los Ocké-Reis, o Sistema Único o setor de energia na experiência mais
de Saúde - SUS passa por um bem-sucedida de ‘capitalismo de Esta-
momento delicado, pois o governo de do’ no Brasil, investir na saúde pública
Michel Temer quer tornar as políticas nos permitirá voltar a dialogar rapi-
públicas de saúde refém “dos interes- damente com os de baixo, ajudando a
ses mercantis do setor em linha com a mudar a correlação de forças contra os
proposta privatista em voga em certas golpistas, os fascistas e os neoliberais”.
agências internacionais em torno da
Ele projeta que a próxima eleição
‘cobertura universal em saúde’”.
presidencial será determinante para o
Em entrevista concedida por e-mail à futuro do SUS. “Saúde é democracia,
IHU On-Line, afirma que um sistema 35
saúde é um direito social, ou seja, saú-
complexo e fundamental para a popula-
de não é mercadoria”, destaca. “O que
ção se encontra tão vulnerável porque,
esperar? No mínimo, a defesa dos pres-
“depois do golpe parlamentar, Temer
supostos constitucionais do SUS.”
adotou política econômica neoliberal
que amplia o desemprego e que reduz o Carlos Ocké-Reis é economista,
investimento público e o gasto social”. mestre e doutor em Saúde Coletiva
O efeito da política de austeridade fiscal pela Universidade do Estado do Rio de
é o agravamento das condições de vida Janeiro - UERJ, com estágio pós-dou-
e de saúde da população. “Veja o caso toral pela Yale School of Management
do retorno de doenças evitáveis ou a (New Haven, EUA), e especialista em
tendência de piora da taxa de mortali- International Health Economics pelo
dade infantil”, exemplifica. Centre for Health Economics, Uni-
Para Ocké-Reis, o caminho para o SUS versity of York (York, Inglaterra). É
ser, de fato, único e universal “passa técnico de Planejamento e Pesquisa
pela política, passa pelo fortalecimento do Instituto de Pesquisa Econômica
da base social de apoio”. Na atual con- Aplicada - Ipea. Ex-diretor do De-
juntura, ele acha fundamental “que as partamento de Economia da Saúde,
políticas sociais se afirmem em um novo Investimentos e Desenvolvimento
ciclo de desenvolvimento, promovendo do Ministério da Saúde e ex-assessor
crescimento, desprivatizando o Estado, econômico da presidência da Agên-
reduzindo a desigualdade e fomentando cia Nacional de Saúde Suplementar -
a produção de ciência e tecnologia”. ANS. Autor de SUS: o desafio de ser
O economista considera que, no caso único (Editora Fiocruz, 2012).
do SUS, “seja por lidar com a vida e a Confira a entrevista.

IHU On-Line – A Agência Na- novas regras para cobrança de Carlos Ocké-Reis – Ela foi suspen-
cional de Saúde Suplementar coparticipação e de franquia sa provisoriamente pela própria ANS.
- ANS, por meio da Resolução em planos de saúde. Qual o Tal medida favorece o mercado e de-
Normativa Nº 433, estabeleceu efeito disso no SUS? sorganiza as linhas de cuidado do SUS.

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – O Estado ajuda dos interesses mercantis do setor em IHU On-Line – No final de
a financiar os planos de saúde linha com a proposta privatista em 2015, o senhor projetou que
privados via renúncia fiscal. voga em certas agências internacio- em 2016 o SUS poderia ter dé-
Qual o montante de impostos nais em torno da “cobertura univer- ficit pelo terceiro ano seguido
que deixam de ser recolhidos e sal em saúde”. (R$ 16,7 bilhões), caso a CPMF
qual a consequência? não fosse aprovada – o que

“Parece-nos
acabou ocorrendo. Qual a situ-
Carlos Ocké-Reis – Segundo da-
ação hoje? E por que o sistema
dos oficiais, os subsídios totalizaram
aproximadamente R$ 32,5 bilhões
em 2015 (equivalente a 1/3 do que
então é deficitário?
Carlos Ocké-Reis – Escrevi,
foi aplicado pelo governo federal nas
ações e serviços públicos de saúde).
fundamental, recentemente, artigo com o econo-
mista Francisco Funcia, publicado
Parte desses recursos poderiam ser na atual no livro intitulado Economia para

conjuntura,
investidos na atenção primária no poucos2, organizado por Ana Luiza
quadro de desmonte do SUS provo- Matos de Oliveira, Esther Dweck
cado pela introdução da EC 951.
que as e Pedro Rossi, em que estimamos
que o SUS perdeu em torno de

IHU On-Line – As operadoras políticas sociais R$ 6,5 bilhões entre 2016 e 2018,
quando comparamos o piso míni-
de saúde estão cada vez mais
concentradas, centralizadas e se afirmem em mo da saúde (EC 95) com o piso
vigente no modelo de financiamen-
internacionalizadas. Do ponto
de vista dos usuários, quais as um novo to anterior ao golpe (EC 293). Se
entrarmos no debate dos restos a
implicações disso?
ciclo de desen- pagar, esse montante está bastan-
te subestimado. A situação é grave,
Carlos Ocké-Reis – Diminui o

36
poder de barganha dos consumido- volvimento” principalmente se observarmos a
queda de receita de estados e mu-
res e fragiliza a capacidade regula-
tória do Estado, fazendo com que nicípios no quadro de estagnação
IHU On-Line – Os ataques em da economia brasileira.
as metas clínicas e epidemiológicas
curso contra o SUS decorrem
definidas pelo Ministério da Saúde
do quê?
entrem cada vez mais em choque
Carlos Ocké-Reis – Apesar IHU On-Line – O senhor es-
com a lógica de rentabilidade de
creveu que o governo federal
tais operadoras. da instabilidade trazida pela cri-
deve ampliar o financiamento,
se econômica internacional, que
melhorar a gestão e fortalecer
se arrasta desde 2008, a saúde é
IHU On-Line – O governo Te- a participação social do SUS.
uma fronteira de acumulação de
mer tem que posicionamento Como isso pode ser feito?
capital que se expande por diver-
no que se refere às políticas pú- sas razões no primeiro quartel do Carlos Ocké-Reis – Nossa es-
blicas de saúde? século 21. tratégia é defensiva e de acúmulo de
Carlos Ocké-Reis – Quer torná forças. Hoje a prioridade é revogar
-las refém, quer moldá-las a partir a EC 95 e a internacionalização do
IHU On-Line – Por que um mercado de serviços de saúde (pla-
1 Emenda Constitucional nº 95: a EC 95 limita por 20 sistema complexo e fundamen- nos e hospitais privados).
anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a pro- tal para a população se encon-
posta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo
presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na tra tão vulnerável?
condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de
equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me- IHU On-Line – O que falta
Carlos Ocké-Reis – Depois do
canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto para o SUS ser, de fato, único e
dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas golpe parlamentar, Temer adotou
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação universal?
acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con- política econômica neoliberal que
sumidor Amplo (IPCA). É considerada umas das maiores
mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas
amplia o desemprego e que reduz 2 Economia para poucos – Impactos sociais da austeridade
refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori- o investimento público e o gasto e alternativas para o Brasil, de Ana Luiza Matos de Oliveira,
camente crescem todos os anos acima da inflação, como Esther Dweck e Pedro Rossi (Orgs.) (São Paulo: Autonomia
educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento social. Essa política de austerida- Literária, 2018). (Nota do entrevistado)
dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida- 3 Emenda Constitucional nº 29: aprovada em 13 de se-
des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e de fiscal agrava as condições de tembro de 2000, a EC 29 assegura recursos mínimos para
a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode vida e de saúde das brasileiras e o financiamento das ações e serviços públicos de saúde.
resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a Estabeleceu a vinculação de recursos nas três esferas de
área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC dos brasileiros. Veja o caso do re- governo para um processo de financiamento mais está-
241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada vel do Sistema Único de Saúde – SUS, além de reforçar o
PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à torno de doenças evitáveis ou a papel do controle e fiscalização dos Conselhos de Saúde
Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016, tendência de piora da taxa de mor- e de prever sanções para o caso de descumprimento dos
no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota limites mínimos de aplicação em saúde. (Nota da IHU
da IHU On-Line) talidade infantil. On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

Carlos Ocké-Reis – Esse ca- ampliação das conquistas no IHU On-Line – O resultado da
minho passa pela política, passa âmbito do SUS? próxima eleição presidencial
pelo fortalecimento da base social será determinante para forta-
Carlos Ocké-Reis – De um lado,
de apoio do SUS. Parece-nos então lecimento ou enfraquecimento
nenhum gasto público social contri-
fundamental, na atual conjuntura, do SUS? O que se pode esperar
bui tanto para o crescimento do PIB
que as políticas sociais se afirmem dos principais candidatos apre-
quanto os que são feitos em educa-
em um novo ciclo de desenvolvi- sentados até o momento?
ção e saúde (efeito multiplicador).
mento, promovendo crescimento,
Cada R$ 1 gasto com saúde gera R$ Carlos Ocké-Reis – Sim, deter-
desprivatizando o Estado, reduzin-
1,70 para o PIB. De outro, estudo minante. Saúde é democracia, saúde
do a desigualdade e fomentando a
realizado pela professora Sulamis é um direito social, ou seja, saúde
produção de ciência e tecnologia.
Daim, por mim e pelo meu colega no não é mercadoria. O que esperar?
No caso do SUS, seja por lidar com
Ipea Fernando Gaiger estimou que o No mínimo, a defesa dos pressu-
a vida e a morte, seja por se cons-
SUS é claramente redistributivo até postos constitucionais do SUS. Mas
tituir junto com o setor de energia
o oitavo décimo de renda. Em outras caso queiramos alargar sua univer-
na experiência mais bem-sucedida
palavras, considerando o caráter in- salidade e sua unicidade, a utilização
de “capitalismo de Estado” no Bra-
tensivo da força de trabalho na saú- de 2,5% das reservas internacionais
sil, investir na saúde pública nos
de, no curtíssimo prazo, podemos em caráter emergencial poderia ala-
permitirá voltar a dialogar rapida-
atacar em duas frentes simultanea- vancar, entre outros, o Programa
mente com os de baixo, ajudando a
mente: reduzir a taxa de desempre- Mais Médicos (Estratégia de Saúde
mudar a correlação de forças con-
go e mitigar os efeitos negativos da da Família) para avançar na reforma
tra os golpistas, os fascistas e os
política de austeridade sobre as clas- pública do SUS no contexto das re-
neoliberais.
ses populares e médias, em cenário formas estruturais proclamadas pelo
IHU On-Line – O que pode de deterioração das condições epide- campo democrático, popular e socia-
ser feito para preservação e miológicas do país. lista da sociedade brasileira. ■

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EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

Princípios do SUS transformam a


formação dos profissionais em saúde
Anakeila Stauffer destaca que a lógica de atendimento aos usuários, que
vai além do tratamento de doenças, levou a constituição de profissionais
preparados para promoção da saúde integral
João Vitor Santos

S
em qualquer receio de cair no lu- viabilizando o projeto do SUS, pois além
gar comum, a professora Anake- de ir minando as possibilidades de parti-
ila Stauffer destaca que, antes de cipação da classe trabalhadora, vai deli-
se falar de SUS, é preciso compreender e mitando um financiamento que não ga-
reiterar o que é esse sistema. “O SUS não rante a manutenção e a ampliação de um
é só um projeto para a Saúde, mas um sistema universal e equânime de saúde”,
projeto de sociedade que ampliou a con- analisa. Anakeila ainda denuncia uma ló-
cepção de saúde da sociedade brasileira, gica “privatista e neoliberal” que “permi-
combatendo a lógica hospitalocêntrica te que se destinem verbas para o capital
e curativa e colocando em foco a deter- em suas mais diversas facetas”, enquanto
minação social da saúde”, conceitua, em o SUS vai desidratando. A perversidade
entrevista concedida por e-mail à IHU é tamanha que, segundo ela, nem passa
On-Line. Para ela, a preocupação cen- mais pela ideia de acabar com o Sistema.
38 tral é promover a saúde, com a “compre- “Hoje, os grandes empresários da saúde
ensão de que questões como condições não querem mais propriamente acabar
de emprego, de moradia, segurança e com o SUS, querem receber recursos
saneamento, entre muitos outros, têm públicos para ‘participar’, ‘organizar’ ou
influência direta sobre o quadro de saú- ajudar a ‘gerir’ o SUS”, destaca. É uma
de individual e coletivo”. espécie de verniz de boa intenção sobre
Logo, para fazer frente a esses desafios, um desejo que nada tem a ver com um
é necessário repensar a formação de pro- conceito de democracia e saúde coletiva.
fissionais como médicos, enfermeiros e Anakeila de Barros Stauffer é di-
técnicos de enfermagem. “Ao ampliar retora da Escola Politécnica de Saúde
o conceito de saúde, o projeto do SUS Joaquim Venâncio – EPSJV, unidade da
evidenciou também a necessidade de se Fundação Osvaldo Cruz – Fiocruz que
atuar com equipes multiprofissionais, promove atividades de ensino, pesqui-
mostrando que a saúde não se restringe sa e cooperação. Doutora em Educação,
ao trabalho médico”, acrescenta. Assim, é pedagoga e professora na educação
nesse contexto se inserem as Escolas Téc- pública há 24 anos. Também colabo-
nicas do SUS, criadas para qualificar a ra com o Programa de Pós-Graduação
formação de quem vai atuar no Sistema. em Educação Profissional em Saúde da
Entretanto, embora tenham trazido Escola Politécnica e ainda atuou como
avanços e mudanças na concepção de professora da Universidade do Estado
profissional da saúde, essa fatia que do Rio de Janeiro – UERJ, junto ao
compõe o SUS, no atual contexto políti- Departamento de Gestão de Sistemas
co e econômico, é tão ameaçado como o Educacionais e Políticas Públicas.
Sistema em si. “O neoliberalismo foi in- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os Anakeila Stauffer – Inicialmen- ampliou a concepção de saúde da


avanços e limites da saúde pú- te, é necessário destacar que o SUS sociedade brasileira, combatendo a
blica no Brasil nesses 30 anos não é só um projeto para a Saúde, lógica hospitalocêntrica e curativa e
de SUS? mas um projeto de sociedade que colocando em foco a determinação

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REVISTA IHU ON-LINE

“A Saúde não é só a ausência


de doenças, e deve ser
considerada a partir de seus
determinantes sociais”

social da saúde. Ou seja, a compreen- zando o projeto do SUS, pois além vância, por exemplo, a atuação dos
são de que questões como condições de ir minando as possibilidades de trabalhadores técnicos nas equipes.
de emprego, de moradia, segurança participação da classe trabalhadora, Hoje, é impossível, por exemplo,
e saneamento, entre muitos outros, vai delimitando um financiamento pensar o SUS sem os agentes co-
têm influência direta sobre o quadro que não garante a manutenção e a munitários de saúde, que compõem
de saúde individual e coletivo. Mais ampliação de um sistema universal e a Estratégia de Saúde da Família e
do que isso, o SUS reconheceu o que equânime de saúde. têm sido muito atacados ultima-
chamamos de direito universal à saú- mente, num momento em que se
Outra dimensão desafiante se refe-
de: com todos os problemas, que não ataca, no conjunto, a maior política
re à humanização da saúde. Não que
podemos deixar de reconhecer, há 30 social que o Brasil construiu.
este campo seja mais brutal que tan-
anos, no Brasil, todos têm direito a
tos outros em nossa sociedade. Mas
acessar os serviços públicos de saúde
é que vivemos numa época de tan- IHU On-Line – De que forma
em todos os níveis. Quem não viveu a
realidade de antes do SUS pode não
tas violências que isto desafia ainda a senhora observa o discurso 39
mais as dimensões do cuidado, de de que o SUS não cabe no or-
fazer muita ideia, mas essa em de
recuperação de nossa humanidade, çamento e que precisa ser re-
fato, um avanço civilizatório.
de nossa delicadeza perdida. visto? O que há por trás dessa
No entanto, se naquele momen- lógica?
Por fim, um dos principais desafios
to histórico das décadas de 1970 e
é que voltemos a lutar não somente Anakeila Stauffer – Por trás des-
1980 foi possível formular um pro-
pelo SUS, mas, quem dera, pudésse- sa lógica está o discurso privatista e
jeto como o SUS, impulsionado pelo
mos recuperar algumas palavras de neoliberal que assola o país e que per-
Movimento da Reforma Sanitária1,
ordem da época, como “saúde, de- mite que se destinem verbas para o
com a atuação de movimentos sindi-
mocracia e socialismo!”. capital em suas mais diversas facetas,
cais, de categorias de profissionais,
de usuários da saúde, toda essa “fer- inviabilizando a consolidação de di-
mentação de gente” e de propostas reitos básicos para a população. Sem
IHU On-Line – Como compre-
foram solapadas pelas políticas neo- trazer uma linha histórica tão longa,
ender o processo histórico de
liberais da década de 1990, enfren- podemos nos concentrar nos últimos
trabalho em saúde no Brasil?
tamos, a partir destas políticas, uma anos em que, após o ajuste fiscal do
De que forma a criação do SUS
mudança não só econômica, como Governo Dilma, realizado para se
realinha essas lógicas de traba-
também política e cultural. Isso aca- responder às pressões de uma eleição
lho em saúde?
bou fragilizando os trabalhadores, polarizada, modificou-se o cálculo de
inserindo ideários individualistas, Anakeila Stauffer – O SUS é investimentos no SUS. Isso corres-
acentuando a acumulação do capi- construído, dia a dia, por trabalha- pondeu, no ano de 2016, a uma perda
tal e intensificando os processos de dores de todos os níveis de ensino de R$ 1,2bilhão. Da mesma forma,
exploração dos trabalhadores. O ne- – profissionais de nível superior, extinguiu-se a possibilidade de que
oliberalismo, portanto, foi inviabili- trabalhadores técnicos e auxiliares os investimentos do Pré-Sal fossem
– e de áreas que vão além do cam- investidos na Saúde.
1 Reforma Sanitária: o movimento da Reforma Sanitária po restrito da saúde. Ao ampliar o
nasceu no contexto da luta contra a ditadura, no início da Para piorar o cenário que já não
conceito de saúde, o projeto do SUS
década de 1970. A expressão foi usada para se referir ao tinha nada de promissor, tivemos
conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças evidenciou também a necessidade
e transformações necessárias na área da saúde. Essas mu- a aprovação da EC 952, que congela
danças não abarcavam apenas o sistema, mas todo o setor de se atuar com equipes multipro-
saúde, em busca da melhoria das condições de vida da
população. As propostas da Reforma Sanitária resultaram fissionais, mostrando que a saúde 2 Emenda Constitucional nº 95: a EC 95 limita por 20
na universalidade do direito à saúde, oficializado com a não se restringe ao trabalho mé- anos os gastos públicos. Os senadores aprovaram a pro-
Constituição Federal de 1988 e a criação do Sistema Único posta (PEC 241/16) em 13/12/2016. Foi encaminhada pelo
de Saúde - SUS. (Nota da IHU On-Line) dico. Nesse processo, ganha rele- presidente Michel Temer – quando ele ainda estava na

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

as despesas da União por 20 anos. kungunya6, Febre Amarela silvestre7, foi a instituição, a partir da década
Ou seja, essa PEC [que depois se entre outros... de 1990, do receituário neoliberal na
transforma em Emenda Constitu- América Latina, tendo por principais
cional] da morte, inviabiliza os in- atores os organismos internacionais
vestimentos em políticas sociais e IHU On-Line – Quais as dife- (não somente as agências multila-
as projeções de perdas para o SUS renças e semelhanças entre a terais de crédito, como também as
correspondem a um montante de educação profissional em saú- agências de fomento e cooperação)
R$ 417 bilhões, segundo a entre- de no Brasil e em países do que atuaram fortemente na homoge-
vista de Francisco Funcia3, que tra- Mercosul? neização das políticas econômicas e
balha para o Conselho Nacional de Anakeila Stauffer – Antes de sociais, incidindo nas políticas edu-
Saúde, a nossa revista Poli de co- responder a essa pergunta, vou indi- cacionais e na regulação do trabalho.
memoração dos 30 anos do SUS4. car um livro escrito por um grupo de Outra semelhança é que, no que
Outra questão que nubla ainda pesquisadores aqui da EPSJV, inti- tange à educação profissional em
mais nosso futuro se refere aos re- tulado “A formação de trabalhado- saúde, sua origem se vincula às po-
passes da União aos outros entes res técnicos em saúde no Brasil e no líticas de saúde e, de acordo com
federativos – o que corresponde a Mercosul”, fruto de uma pesquisa co- as particularidades e a história de
2/3 do orçamento federal. Ante- ordenada pela EPSJV. Atualmente, cada país, esta discussão vai se es-
riormente à portaria 3992/2017, os estamos realizando uma outra pes- tendendo para o campo educacio-
recursos tinham “áreas carimba- quisa, multicêntrica. Sintetizo aqui nal e do trabalho. Em alguns paí-
das” e estratégicas para o SUS, em algumas questões. Vamos começar
ses, mais recentemente, tem sido
que era obrigatório o investimento. lembrando uma coisa: o Mercosul8
realizado um esforço de se consti-
Agora, os gestores municipais e es- foi constituído como um acordo co-
tuírem políticas comuns entre es-
taduais têm maior liberdade para mercial entre seus Estados membros
sas áreas voltadas aos trabalhado-
efetivar tais investimentos – o que e, desde seu princípio, a definição de
res técnicos em saúde.
significa, na prática, maior dificul- diretrizes políticas comuns nas áreas
dade para fiscalização e, provavel- sociais se fazia presente. Ainda pudemos constatar na pes-
mente, menos investimento em quisa que houve uma tendência à
40 Contudo, os países que compõem o
áreas como a vigilância em saúde, elevação da escolaridade desses
bloco não se encontram isolados do
por exemplo, que têm menos visi- trabalhadores e trabalhadoras,
mundo e assim, infelizmente, uma
bilidade e, portanto, geram menos deslocando-se a formação para o
das semelhanças que enfrentamos
‘votos’. Agora, você imagine isso nível superior. Na realidade bra-
num cenário de emergências sani- perto de Entebbe, capital da República de Uganda, onde o
sileira, a formação desses profis-
tárias como o que estamos vivendo, vírus foi isolado pela primeira vez em 1947. É relacionado sionais ainda se enquadra no nível
aos vírus da dengue, da febre amarela e encefalite do Nilo,
com os recentes casos de Zika5, Chi- os quais igualmente fazem parte da família Flaviviridae. médio, ou seja, como última etapa
(Nota da IHU On-Line)
6 Chicungunha [ou chikungunya ou catolotolo]: é uma
da Educação Básica. Nos países
condição de interino – ao Legislativo com o objetivo de infecção causada por um arbovírus, do gênero Alphavirus do Mercosul, tal formação se dá
equilibrar as contas públicas por meio de um rígido me- (Togaviridae), que é transmitido aos seres humanos pelas
canismo de controle de gastos. Chamada de PEC do Teto fêmeas dos mosquitos do gênero Aedes. Até recentemen- também após os doze anos de es-
dos Gastos, determina que, a partir de 2018, as despesas te havia sido detectado somente na África (onde estava
federais só poderão aumentar de acordo com a inflação restrito a um ciclo silvestre), na Ásia Oriental e na Índia,
colaridade como no Brasil, só que
acumulada conforme o Índice Nacional de Preços ao Con- onde sua transmissão era principalmente urbana, envol- sendo enquadrada como uma for-
sumidor Amplo (IPCA). É considerada umas das maiores vendo os vetores Aedes aegypti e Aedes albopictus. No
mudanças fiscais em décadas. Uma das principais críticas Brasil, casos da doença foram detectados pela primeira mação técnica de nível superior.
refere-se ao fato de que a PEC limita gastos que histori- vez em agosto de 2010. (Nota da IHU On-Line)
camente crescem todos os anos acima da inflação, como 7 O vírus que causa a febre amarela urbana ou a silvestre
Para além dessa dimensão da cer-
educação e saúde. Outra crítica incide no congelamento é exatamente o mesmo. Isso significa que os sinais, sinto- tificação, o que se faz necessário
dos gastos com programas sociais. Especialistas e entida- mas e evolução da doença são exatamente os mesmos.
des setoriais avaliam que a medida prejudica o alcance e Tudo igual. Qual é a diferença, então? A diferença está pesquisar – e que não é um pro-
a qualidade dos serviços públicos oferecidos. A EC pode “apenas” nos mosquitos transmissores e na forma de con-
resultar na redução de R$ 12 bilhões em repasses para a tagio. A febre amarela silvestre é transmitida por mosqui-
cesso fácil porque exige equipes
área da saúde em dois anos. Para saber mais sobre a PEC tos (Haemagogus e o Sabethes) que vivem nas matas e na de pesquisa dos diferentes países
241, acesse a entrevista com Grazielle David, intitulada beira dos rios. Estes mosquitos picaram macacos contami-
PEC 241/16: Uma afronta à saúde, aos direitos sociais e à nados e depois picaram pessoas que adoeceram. Por isso debruçadas num mesmo processo
Constituição, publicada nas Notícias do Dia de 11-7-2016, há relato de mortes de macacos nas regiões acometidas.
no sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2aZEQgl. (Nota A febre amarela urbana não existe no Brasil desde 1942
de investigação – é o processo de
da IHU On-Line) e é transmitida quando um mosquito urbano, o Aedes trabalho. Analisar o processo de
3 Francisco Funcia: possui graduação em Ciências Econô- aegypti, pica uma pessoa doente e depois pica outra pes-
micas pela PUC de São Paulo e é mestre em Economia soa susceptível, transmitindo a doença. Exatamente como trabalhado a que estes trabalha-
Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. acontece com a dengue, zika e chikungunya. (Nota da IHU
Atualmente é Consultor da Vignoli e Funcia Consultores On-Line) dores estão vinculados nos possi-
Ltda. e Técnico da FGV Projetos, além de professor da Uni- 8 Mercado Comum do Sul (Mercosul): é uma organi- bilitaria estabelecer equivalências
versidade Municipal de São Caetano do Sul. (Nota da IHU zação intergovernamental fundada a partir do Tratado
On-Line) de Assunção de 1991. Estabelece uma integração inicial- e diferenciações mais próximas à
4 A revista está disponível em http://bit.ly/2OZk4RW. mente econômica, configurada atualmente em uma união
(Nota da IHU On-Line) aduaneira, na qual há livre-comércio intrazona e política realidade, observando-se como o
5 Vírus da zica: [vírus da zika ou vírus de Zika]: é um vírus comercial comum entre seus membros. Situados todos na mundo do trabalho vem impac-
do gênero Flavivirus. Em humanos, transmitido através da América do Sul, são atualmente cinco membros plenos.
picada do mosquito Aedes aegypti, causa a doença tam- Em sua formação original, o bloco era composto por Ar- tando seus processos formativos,
bém conhecida como zika — que embora raramente acar- gentina, Brasil, Paraguai e Uruguai; mais tarde, a ele aderiu
rete complicações para seu portador, apresenta indícios a Venezuela, que está suspensa do bloco a partir de de- a regulação e a regulamentação do
de poder causar microcefalia congênita (quando adqui- zembro de 2016. Há ainda cinco países associados (Chile, exercício profissional, sua inser-
rido por gestante, podendo prejudicar o feto em alguns Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) e dois observadores
casos). O nome Zika tem sua origem na floresta de Zika, (Nova Zelândia e México). (Nota da IHU On-Line) ção no processo de trabalho.

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REVISTA IHU ON-LINE

Privatização da formação lutar pela profissionalização dos tra- trabalhadores(as) técnicos(as) do


profissional balhadores técnicos de nível médio SUS fica em plano inferior o que,
e elementar da saúde, buscando as consequentemente, vai colocando à
Há também diversas assimetrias brechas das leis. Buscava-se cons- míngua, a potencialidade formativa
entre os países que compõem o blo- tituir um processo pedagógico que destas instituições.
co, sobretudo devido à constituição correspondesse à realidade do es-
de seus sistemas de educação e de tudante trabalhador já inserido no
saúde – o que não poderia destrin- sistema de saúde – o que não e fá- Precarização do ensino e
char neste espaço. Mas é importante cil de ser compreendido no sistema do trabalho
destacar que se vive um processo de educacional. Foi esta preocupação
privatização da formação profissio- que criou o Projeto Larga Escala e Há que se destacar ainda que os
nal em saúde, assim como um pro- que deu origem às Escolas Técnicas cortes orçamentários irão impactar
cesso de flexibilização e exploração do SUS – ETSUS. A ideia era que se de forma brutal a formação des-
do trabalhador da saúde que tem le- constituísse uma escola descentra- ses trabalhadores que, apesar de se
vado muitos ao adoecimento. lizada, que melhorasse o processo constituírem como o maior quan-
de ensino-aprendizagem e que pos- titativo de trabalhadores em nosso
sibilitasse uma formação em saúde sistema, são os mais invisibilizados.
IHU On-Line – Qual o papel Não esqueçamos que estão submeti-
que contribuísse para a melhoria das
das Escolas Técnicas do SUS e dos a contratos de trabalho cada vez
ações de saúde junto à população.
como elas compõem o Sistema? mais precários, devido a processos
Contudo, uma grande fragilidade de privatização do SUS.
Anakeila Stauffer – A história
das ETSUS se refere exatamente à
da constituição das escolas técnicas Por fim, voltando à dimensão
forma descentralizada como se cons-
do SUS é uma história muito bonita educacional, também vivemos um
tituíram. A maioria das escolas não
de luta e, atualmente, de resistência. processo de privatização da educa-
tem um corpo de docentes fixos e se
Parte dessa história pode ser consul- ção, que incide sobre as políticas
organiza a partir de uma equipe mí-
tada na tese9 de uma professora nos- de formação de técnicos, chegando
nima. Outra questão delicada é que
sa, já aposentada, Isabel Brasil10. Até a descaracterizar, de forma brutal, 41
o fato de os docentes serem origi-
a década de 1980, as iniciativas de a formação e o trabalho de alguns
nários da saúde, apresentando uma
formação dos trabalhadores técni- desses trabalhadores (como é o caso
formação pedagógica mais fragiliza-
cos se davam de forma pulverizada, do PROFAGS, um programa do go-
da, apesar de, muitas vezes, serem
muitas vezes no formato de treina- verno federal que promete investir
experts em seus campos de atuação.
mentos, com concepção mecanicista um bilhão de reais – mais do que
Por fim, o maior desafio que estas
e centrada no simples ato de “faça qualquer outra ação de Educação
escolas enfrentam se refere ao fi-
como se pede”. Eram cursos rápi- Profissional em Saúde – para formar
nanciamento de suas ações. Embora
dos no estilo “cursos Walita”11. Isso Agentes Comunitários de Saúde e
sejam majoritariamente vinculadas
gerava um problema não só na certi- agentes de combate a endemias em
às secretarias estaduais de saúde,
ficação de tais cursos, como também técnicos de enfermagem, descarac-
a maioria, desde sua constituição,
não solucionava os problemas de terizando esses trabalhadores).).
atua através de incentivos de progra-
elevação da escolaridade dos traba-
mas provenientes do governo federal
lhadores da saúde e não incidia na
– como o Profae13, o Profaps14–, não IHU On-Line – Quais as simi-
melhoria das ações de saúde.
tendo autonomia financeira. Assim, laridades e distinções na for-
É diante desse cenário que a enfer- em épocas de restrição orçamen- mação de profissionais para
meira Izabel dos Santos12 começa a tária, a dimensão da formação dos atuarem no sistema público e
no sistema privado de saúde?
9 Intitulada “A formação profissional em serviço no cená- 13 Projeto de Profissionalização Dos Trabalhadores Da
rio do Sistema Único de Saúde” (2002). Acesse a publica- Área Da Enfermagem – Profae: Considerado pelo Banco Anakeila Stauffer – Penso que
ção que teve origem na dissertação em http://bit.ly/2A- Interamericano de Desenvolvimento (BID) como uma das
ZSgdd. (Nota da IHU On-Line) experiências de formação de técnicos de nível médio de temos que partir do princípio de que,
10 Isabel Brasil: possui graduação e licenciatura em Ciên- maior êxito no mundo, o Profae, criado em 2000, fez parte
cias Biológicas pela Universidade Federal Rural do Rio de da estratégia do Ministério da Saúde para melhorar a qua-
independentemente de se estar num
Janeiro (1978), Mestrado em Educação pela Universidade lificação, em todo o país, de cerca de 230 mil trabalhado- sistema público ou privado de saúde,
do Estado do Rio de Janeiro (1991) e Doutorado em Edu- res – atendentes e auxiliares de enfermagem – que já atu-
cação: História, Política, Sociedade pela Pontifícia Universi- avam no sistema de saúde – visando melhorar a qualidade todos os trabalhadores e trabalhado-
dade Católica de São Paulo (2002). (Nota da IHU On-Line) dos serviços. Mesclando EaD com momentos presenciais,
11 Como mencionado em nossa pesquisa citada anterior- o ‘Curso de Formação Pedagógica em Educação Profis-
ras da saúde estão lidando com vidas
mente, fazendo alusão a um eletrodoméstico que prepara sional na Área da Saúde: Enfermagem’ foi desenvolvido humanas e todo ser humano tem o
rapidamente os alimentos. (Nota da entrevistada) pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) em
12 Izabel do Santos: enfermeira aposentada pelo Ministé- parceria com 45 instituições de ensino em todas as regiões direito à Saúde. Isto está no artigo
rio da Saúde, foi consultora do Projeto de Profissionaliza- brasileiras do país e habilitou, de 2001 a 2005, mais de 196 de nossa Constituição (1988) e,
ção dos Trabalhadores da Área de Enfermagem Ministério 13 mil enfermeiros para a função docente nos cursos de
da Saúde. Pioneira na luta pela educação profissional em qualificação profissional do Profae. (Nota da IHU On-Line) portanto, deve ser seguido por qual-
saúde, Izabel dos Santos morreu aos 83 anos, e é conside- 14 Profissionais de Nível Médio para a Saúde – Profaps:
rada uma referência nesse campo. Idealizadora do progra- herdeiro do Profae, o Programa de Formação de Profis- quer tipo de instituição de saúde.
ma Larga Escala, lutou desde o início de sua vida profis-
sional pela equidade na assistência à saúde e qualificação
sionais de Nível Médio para a Saúde abarca nove cursos
técnicos considerados estratégicos para a qualificação do
Outra dimensão que não pode ser
dos trabalhadores dessa área. (Nota da IHU On-Line) SUS. (Nota da IHU On-Line) esquecida é que a Saúde não é só a

EDIÇÃO 526
TEMA DE CAPA

ausência de doenças, e deve ser con- e pelas distintas formas de privati- básica no Brasil, visto que, atuando
siderada a partir de seus determinan- zação da gestão pública (via parce- no território, desenvolvem ações de
tes sociais, ou seja, a dimensão não ria público-privada, por exemplo, educação e de promoção da saúde.
se resume à dimensão individual e se principalmente através das chama- Contudo, ainda é muito difícil su-
constitui como dimensão coletiva. das Organizações Sociais - OS). A perarmos as atuações fragmentadas
terceirização fragiliza o vínculo dos nas equipes de saúde e, não raro, es-
A partir desse pensamento, para o
trabalhadores que se sentem ame- tes trabalhadores são subalterniza-
aspecto formativo o desafio é o mes-
açados por lutarem por melhores dos na implementação das políticas
mo: formarmo-nos, enquanto classe
condições de trabalho, assim como mais permanentes e, consequente-
trabalhadora, para entender e lutar
por sua formação. mente, em seu direito à formação.
por um SUS universal, igualitário;
entender que Saúde e Educação não Uma outra questão problemáti- O fato é que o trabalho dos ACS é
são mercadorias e, neste sentido, ca é que as mudanças realizadas na reconhecido como potencializador
por mais que se esteja trabalhando Política Nacional de Atenção Básica da Atenção Básica. Num seminário
numa instituição privada, o direito – PNAB durante este governo têm realizado aqui na escola, em 2016,
do ser humano que ali está é de ser reificado a visão biomédica e medi- o então coordenador geral de Ações
atendido em sua integralidade. Mas calizante, abandonando a concepção Técnicas em Educação na Saúde do
isso, evidentemente, é muitas vezes de cuidado integral e, consequente- Departamento de Gestão da Educa-
limitado pela lógica privada mer- mente, buscando apagar o papel das ção na Saúde da Secretaria de Ges-
cantil, que trata a saúde das pessoas determinações sociais nos processos tão do Trabalho e da Educação na
e da população como um negócio de saúde e de adoecimento da popu- Saúde do Ministério da Saúde, Al-
cujo objetivo principal é gerar lucro lação brasileira. diney Doreto15, ressaltou que “Ne-
e para grupos empresariais cada vez nhuma tecnologia salvou tantas vi-
Por fim, outra dimensão desafia-
maiores. Por isso, defendemos que das como a incorporação do ACS na
dora para se pensar a formação para
o SUS precisa ser público, universal Estratégia Saúde da Família”. Con-
trabalhadores atuarem na Atenção
e estatal. tudo, sabemos que o Ministério da
Básica se refere à dimensão da par-
ticipação social –mecanismo funda- Saúde, em parceria com as Escolas
42 Técnicas do Sistema Único de Saú-
IHU On-Line – Quais os maio- mental para a instituição cotidiana
de um SUS público e universal. Nes- de – ETSUS, só financiou o primeiro
res desafios para se trabalhar módulo da formação técnica desses
na formação de profissionais te sentido, é dever nosso, enquanto
instituição de Educação pública para trabalhadores (equivalente a 400
para atuarem na atenção bási- horas). Ora, aí está uma contradição
ca à saúde hoje no Brasil? o SUS, efetivar a formação nessa di-
mensão participativa e democráti- muito grande, pois se admite a ação
Anakeila Stauffer – O maior de- ca não só para os trabalhadores do fundamental desses trabalhadores,
safio é compreendermo-nos como SUS, mas também ampliando para mas não se garante sua formação e,
classe trabalhadora. Neste sentido, a sociedade civil, para movimentos além do mais, fragilizam-se as ET-
deveríamos ter o compromisso de sociais e para conselheiros de saúde, SUS ao não possibilitarem que estas
responder ao direito à saúde, garan- pulverizando o SUS como um pro- ofertem a formação completa, visto
tindo o atendimento às necessidades jeto societário e não somente como que não possuem autonomia finan-
de saúde da população, sendo esta algo importante para os trabalhado- ceira. Outra contradição refere-se
um dever do Estado. Contudo, esse res e trabalhadoras do SUS. ao vínculo destes trabalhadores
modelo privatista invade todas as di- que, por serem contratados de for-
mensões da vida humana e também ma precária em boa parte do país,
incide no que a classe trabalhadora IHU On-Line – Por que o tra- acabam desvinculando-se dos pro-
entende como sua necessidade de balho de agentes comunitários cessos formativos viabilizados pelas
formação: lhe é incutido, portanto, de saúde é tão importante num ETSUS e gerando uma rotatividade
que a formação deve ser utilitarista sistema como o SUS? Quais os grande nos serviços.
o que acarreta uma educação frag- desafios para preparar pessoas
Ao pensarmos na dimensão for-
mentada, muitas vezes oferecida por para trabalharem nessa área?
mativa que oferecemos na EPSJV,
instituições privadas duvidosas.
Anakeila Stauffer – Se os Agen- se ela tem um potencial crítico dian-
No que tange à Atenção Básica, ela tes Comunitários de Saúde – ACS te dessa realidade de precarização
vem sofrendo pressões que trazem surgiram como trabalhadores da e exploração do trabalhador e de
contradições importantes, pois, ao saúde que deveriam responder às
mesmo tempo em que busca garan- emergências de saúde pública, hoje 15 Aldiney José Doreto: Possui graduação em Enferma-
gem pela Universidade Estadual de Maringá (2000). Pós-
tir a ampliação da oferta pública de se compreende que sua atuação vai Graduação em Educação Profissional na Área de Saúde:
Enfermagem (FIOCRUZ), Formulação e Gestão de Políticas
serviços à classe trabalhadora, sua além dessa dimensão, constituindo- Públicas(UNICENTRO). Mestrando do Programa de Pós-
expansão tem sido realizada através se como trabalhadores fundamen- Graduação em Enfermagem (UFPR). É Assessor da Direção
na Escola de Saúde Pública do Paraná - Secretaria de Esta-
da terceirização da força de trabalho tais para a consolidação da atenção do da Saúde do Paraná. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

combate à mercantilização da vida, IHU On-Line – Como conce- mente acabar com o SUS, querem
ela se depara com esta mesma rea- ber o fortalecimento do SUS receber recursos públicos para
lidade que, muitas vezes, dificulta a hoje? “participar”, “organizar” ou ajudar
presença e o melhor aproveitamen- a “gerir” o SUS. Dinheiro público
Anakeila Stauffer – Em pri-
to deste trabalhador do processo de tem que ir para o sistema públi-
meiro lugar, revogando a Emen-
ensino-aprendizagem constituído no co estatal. Casado a tudo isso, é
da Constitucional 95, do teto dos
interior da Escola. Uma das dimen- preciso fortalecer as instituições
gastos, que foi o tiro de misericór-
sões fundamentais para a formação e serviços públicos. Mas essas são
dia num sistema que já vem sendo
deste trabalhador se refere à Educa- medidas ‘práticas’ que, no entan-
subfinanciado desde a sua criação.
ção Popular em Saúde como um dos to, só são possíveis a partir de
Não existe saúde de qualidade sem
pilares para se consolidar a atenção uma ação maior, mais importante
recursos e o investimento público
básica, visto que esta considera a di- e mais difícil: a mobilização social.
em saúde no Brasil é absurdamente
mensão da participação, do questio- É preciso retomar a organização
baixo. Em segundo lugar – o que é
namento da própria realidade para a dos trabalhadores, em sindicatos,
a contraface dessa primeira medi-
sua transformação, do compartilha- movimentos sociais, movimento
da –, deixar de subsidiar o grande
mento de conhecimentos e saberes, estudantil etc, para dentro e para
capital privado que tem avançado
do planejamento coletivo. E isso o fora da área da saúde. É preciso
sobre a saúde.
que é senão o elemento constituinte reacender a chama de mobilização
da atuação do ACS junto à população Hoje, os grandes empresários da social que, 30 anos atrás, tornou
de seu território? saúde não querem mais propria- possível o SUS.■

43

EDIÇÃO 526
ENTREVISTA

Amazônia 4.0. A criação de ecossistemas


de inovação e o enraizamento
de uma nova bioeconomia
Carlos Nobre analisa os desafios de se aliar desenvolvimento
econômico e tecnológico e preservação da floresta
Patricia Fachin

N
o contexto da Revolução 4.0 e açaí. Até duas décadas atrás, um fruto
da economia do século XXI, é de consumo tradicional local. Hoje, da
preciso apostar na bioecono- polpa do açaí derivam dezenas de dife-
mia baseada no uso dos ativos bioló- rentes produtos para as indústrias ali-
gicos e biomiméticos para desenvolver mentícia, nutracêutica, cosmética etc.,
a Amazônia, defende Carlos Nobre na gerando já mais de 1,5 bilhão de dóla-
entrevista a seguir, concedida à IHU res para a economia Amazônica a cada
On-Line. Nessa perspectiva, explica, ano, tendo melhorado a renda de mais
a “‘Terceira Via’ que propomos é exa- de 250 mil produtores. Se este mesmo
tamente buscar uma alternativa econô- caminho fosse aplicado a várias deze-
mica ao confronto entre a Primeira e a nas de produtos Amazônicos, esta nova
Segunda Via, destacando o papel que as bioeconomia seria muito maior do que
novas tecnologias que nos chegam irre- aquela proveniente de pecuária, grãos e
44 versivelmente através da Quarta Revo- exploração madeireira”, adverte.
lução Industrial podem desempenhar Carlos Nobre é graduado em Enge-
em fazer emergir o enorme valor tan- nharia Eletrônica pelo Instituto Tecno-
gível dos ativos biológicos e biomimé- lógico de Aeronáutica - ITA e doutor em
ticos da biodiversidade. Estes valores Meteorologia pelo Massachusetts Insti-
estão ainda ‘escondidos’ e precisamos tute of Technology - MIT. Foi pesqui-
de ciência e tecnologia intensivos na re- sador no Instituto Nacional de Pesqui-
gião para torná-los uma realidade”. sas da Amazônia - Inpa e no Instituto
A terceira via para o desenvolvimento Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe.
da Amazônia se contrapõe a outros dois Atualmente é membro do Joint Stee-
modelos, que até recentemente foram ring Committee do World Climate Re-
privilegiados na discussão: “conciliar a search Programme - WCRP, preside os
proteção dos ecossistemas em unidades Conselhos Diretores da Rede Brasileira
de conservação, terras indígenas e reser- de Pesquisas sobre Mudanças Climáti-
vas extrativistas (...) com a chamada in- cas - Rede Clima e do Painel Brasileiro
tensificação sustentável da agropecuária de Mudanças Climáticas - PBMC, e é
e contenção dos desmatamentos causa- coordenador do Instituto Nacional de
dos pela expansão das fronteiras agríco- Ciência e Tecnologia para Mudanças
las e da mineração e hidroeletricidade, Climáticas - INCT-MC.
isto é, um modelo intensivo em recursos A entrevista foi originalmente pu-
naturais”, informa o pesquisador. blicada por Notícias do dia de 09-08-
Nobre ainda frisa que o potencial dos 2018, no sítio do Instituto Humanitas
ativos biológicos e biomiméticos da Unisinos - IHU, disponível em http://
biodiversidade é enorme. “Vejamos, bit.ly/2OZ8NRx.
como exemplo, a cadeia produtiva do Confira a entrevista.

IHU On-line – Alguns ativistas não só ser protegida ambiental- para a Amazônia. Concorda com
que defendem a Amazônia ar- mente, mas é fundamental se essa visão? Na sua avaliação, o
gumentam que a região precisa pensar um modelo econômico Estado brasileiro tem consciên-

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“A política de expansão das unidades de


conservação e demarcação de terras
indígenas foi fator preponderante na
redução de mais de 70% nas taxas anuais
de desmatamento entre 2005 e 2014”

cia da importância de se elabo- de, isto é, um modelo intensivo em de, aliados a maneiras inovadoras
rar um modelo econômico ade- recursos naturais (que denomina- de aproveitamento do vasto conhe-
quado para a Amazônia? mos de “Segunda Via”). Este deba- cimento tradicional, respeitando a
te não ajudou a frear a expansão do justa e correta repartição de benefí-
Carlos Nobre – Sem dúvida, o
desmatamento, ainda que se deva cios com as populações locais deten-
grande potencial econômico de re-
reconhecer que a política de expan- toras deste conhecimento.
giões com alta biodiversidade como
são das unidades de conservação e
a Amazônia está exatamente na di-
demarcação de terras indígenas foi
versidade de espécies e no potencial IHU On-line – Por que o in-
fator preponderante na redução de
aproveitamento econômico dos ati- vestimento em conhecimen-
mais de 70% nas taxas anuais de
vos biológicos e biomiméticos em to científico e tecnológico na
desmatamento entre 2005 e 2014.
uma inovadora bioeconomia. Ainda Amazônia é, na sua avaliação, o
que haja, em qualquer plano gover- A “Terceira Via” que propomos é melhor modelo de desenvolvi-
namental para a Amazônia, alguma exatamente buscar uma alternati- mento para a região? Que bene- 45
menção à valorização de cadeias pro- va econômica ao confronto entre a fícios esse modelo traria não só
dutivas oriundas da biodiversidade, Primeira e a Segunda Via, destacan- para a região, mas para o Brasil
os investimentos públicos e privados do o papel que as novas tecnologias como um todo?
em ciência, tecnologia e inovação que nos chegam irreversivelmente
para fazer emergir esta nova bioeco- através da Quarta Revolução Indus- Carlos Nobre – O potencial dos
nomia são extremamente reduzidos, trial podem desempenhar em fazer ativos biológicos e biomiméticos da
quando comparados aos investimen- emergir o enorme valor tangível dos biodiversidade é enorme. Vejamos,
tos numa economia baseada na subs- ativos biológicos e biomiméticos da como exemplo, a cadeia produtiva
tituição da floresta para produção de biodiversidade. Estes valores estão do açaí. Até duas décadas atrás, um
carne, grãos e minérios. ainda “escondidos” e precisamos de fruto de consumo tradicional local.
ciência e tecnologia intensivos na Hoje, da polpa do açaí derivam de-
região para torná-los uma realida- zenas de diferentes produtos para as
IHU On-line – Pode nos expli-
car em que consiste a “terceira
via” para o desenvolvimento
sustentável da Amazônia, ba-
seado numa noção de conheci-
mento científico e tecnológico,
segundo sua proposta?
Carlos Nobre – Por muito tempo,
o debate sobre o desenvolvimento da
Amazônia ficou restrito a se buscar
conciliar a proteção dos ecossiste-
mas em unidades de conservação,
terras indígenas e reservas extrati-
vistas (que chamamos de “Primeira
Via”) com a chamada intensificação
sustentável da agropecuária e con-
tenção dos desmatamentos causados
pela expansão das fronteiras agríco-
las e da mineração e hidroeletricida-

Filme (ano), autor EDIÇÃO 526


ENTREVISTA

indústrias alimentícia, nutracêuti- to inovador e invistam fortemente quirir os conhecimentos sobre os


ca, cosmética etc., gerando já mais em P&D, algo extremamente defi- ativos biológicos e biomiméticos
de 1,5 bilhão de dólares para a eco- ciente na indústria brasileira como e poder se beneficiar economica-
nomia Amazônica a cada ano, tendo um todo. mente deste conhecimento. Assim,
melhorado a renda de mais de 250 é central à implementação da Ter-
mil produtores. Se este mesmo ca- ceira Via que a capacitação se inicie
minho fosse aplicado a várias deze- “É possível, com os povos da floresta e comuni-
nas de produtos Amazônicos — com
ciência e tecnologia para agregação sim, o Brasil dades locais, ao mesmo tempo que
se desenvolvam as condições para
de valor desde a base de produção
para beneficiar as populações lo- continuar a ser o surgimento das bioindústrias de
vários tamanhos e complexidades,
cais —, esta nova bioeconomia seria
muito maior do que aquela prove- uma potência mas majoritariamente em vilas e
cidades amazônicas.
niente de pecuária, grãos e explora-
ção madeireira.
na produção
IHU On-line – Qual é a capaci-
Em primeiro lugar, traria mais de alimentos dade atual do Brasil em inves-
desenvolvimento local, principal-
mente se forem criadas inúmeras utilizando os tir nesse modelo que o senhor
propõe e, nesse sentido, quais
bioindústrias na própria região
Amazônica, produzindo e exportan- cerca de 270 os desafios para colocar esse
projeto em andamento?
do produtos de muito maior valor
agregado, gerando melhores em- milhões de Carlos Nobre – Ainda que este-
jamos atravessando uma profunda
pregos e inclusão social. A econo-
mia da Amazônia tornando-se mais
hectares já recessão econômica, refletida em

em atividade
cortes radicais no financiamento
importante irá obviamente benefi-
público de C&T, não se necessitaria
ciar o país como um todo.
46 agropecuária de valores gigantescos para a prova
de conceito da Terceira Via. O maior
IHU On-line – Que papel as
universidades da região pode- e silvicultura” desafio é iniciar a implementação de
alguns experimentos pilotos para
riam desempenhar na elabora- mostrar que é factível capacitar co-
ção desse projeto que o senhor munidades em utilização de moder-
propõe? IHU On-line – Sempre que se nas tecnologias para modernização
fala em desenvolvimento da radical do aproveitamento do po-
Carlos Nobre – É essencial que Amazônia, ativistas da região tencial da biodiversidade Amazôni-
as universidades desempenhem chamam atenção para a neces- ca. Estamos propondo a criação dos
papel central. Em primeiro lugar, sidade de incluir a população chamados “Laboratórios Criativos
formando pessoas para esta nova da floresta neste projeto. Como Amazônicos”, estruturas portáteis
bioeconomia, algo ainda muito a população da região seria in- e itinerantes que viajariam pela
distante do típico currículo escolar cluída na sua proposta? Amazônia promovendo a capacita-
das universidades da Amazônia, os
Carlos Nobre – A Quarta Revo- ção de populações no uso de novas
quais reproduzem acriticamente
lução Industrial não está somente tecnologias em cadeias produtivas
modelos de universidades, forma-
produzindo a união das tecnologias existentes e principalmente para
ções, carreiras de outras regiões do
digitais, biológicas e de materiais, geração de novos usos e produtos a
país. Em segundo lugar, os labora-
mas concomitantemente está tor- partir dos ativos biológicos e biomi-
tórios públicos das universidades
nando possível o acesso simplifica- méticos da floresta.
e dos institutos de pesquisa devem
ser equipados como ‘laboratórios do a estas novas tecnologias a um
avançados de biologia’ para forne- custo cada vez menor. Isso propicia IHU On-line – O senhor tem
cer o conhecimento a ser transfor- pela primeira vez que tais tecnolo- alertado para a importância
mado em aplicações para esta nova gias cheguem aos povos da flores- de um “forte engajamento” en-
bioeconomia e também para formar ta em qualquer remoto rincão da tre as instituições de pesquisa
uma nova geração de pesquisadores Amazônia. Por outro lado, o conhe- da região amazônica para pôr
e empreendedores para esta ino- cimento é o maior valor econômico esse projeto em prática. Como
vadora bioeconomia, base de uma do século XXI e não necessaria- as diferentes instituições que
revolucionária bioindustrialização mente a transformação material. atuam na região têm se posi-
para a região. Há igualmente pa- Deste modo, há que se capacitar cionado sobre a sua propos-
pel relevante para que estas novas os povos da floresta, incluindo as ta de desenvolvimento para a
bioindústrias nasçam com o espíri- comunidades indígenas, para ad- Amazônia? Há mais concor-

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dância ou discordância e por implementada com sucesso em outras mais de 70% da população é urbana.
quais razões? regiões tropicais, inclusive da América Não diferente da caótica urbaniza-
do Sul, ricas em biodiversidade. ção das cidades brasileiras, o fluxo
Carlos Nobre – A iniciativa da
migratório para as cidades grandes
Terceira Via Amazônica, que também IHU On-line – Para além da
e médias tem resultado em grandes
denominamos “Amazônia 4.0”, em expansão do agronegócio, que
contingentes de pobres urbanos, que,
alusão à Quarta Revolução Indus- outros modelos de desenvolvi-
apesar de estarem mais próximos
trial, está em seus primórdios de dis- mento ditos “ambientalmente
a oportunidades educacionais e de
cussão e aprofundamento conceitual. corretos” para a Amazônia se
atendimento de saúde, não atingiram
Há, de modo geral, grande concor- contrapõem à sua proposta e es-
níveis mínimos de qualidade de vida.
dância entre instituições de pesquisa tão em disputa neste momento?
A violência no campo é outra carac-
Amazônicas de que se deve buscar
Carlos Nobre – Ainda há uma terística infeliz do modo de ocupação
modelos alternativos e sustentáveis
prevalência na atuação de muitas das terras na Amazônia, onde preva-
de desenvolvimento e que uma bio-
ONGs ambientalistas sérias de uma lece o crime organizado de grilagem
economia baseada na floresta em pé
tentativa de ‘disciplinar’ o grande de terras e exploração ilegal de ma-
deve ser testada e deve adquirir es-
agronegócio para frear a expansão deira e de metais e pedras de valor,
cala. Deve-se mencionar que a ideia
da fronteira agropecuária na Amazô- interligado também ao tráfico inter-
de uma bioeconomia baseada na bio-
nia. Politicamente, o mundo da con- nacional de drogas e de armas. Um
diversidade é antiga na Amazônia. O
servação e o mundo da expansão do triste e sério problema que deve ser
elemento inovador da Terceira Via é
modelo intensivo em recursos natu- enfrentado pela nação como um todo.
propor trazer para o seio da floresta
rais continuam em acirrada disputa
e das comunidades as modernas tec- IHU On-line – Algum dos can-
e atraem a maior parte das atenções.
nologias que lhes propiciarão enorme didatos à presidência da Repú-
Até porque, temos visto uma forte
poder de gerar novos conhecimentos blica sinaliza um projeto de de-
tendência de enfraquecimento da
e agregar valor aos produtos produzi- senvolvimento para a Amazônia
legislação ambiental no país. A cha-
dos localmente. ancorado no modelo que o se-
mada intensificação sustentável da
nhor sugere?
IHU On-line – O senhor tem agropecuária é condição necessária,
discutido essa proposta de de- mas muito longe de ser suficiente Carlos Nobre – Estas ideias de 47
senvolvimento para a Amazônia para de fato frear o desmatamento da uma nova bioeconomia baseada no
no meio político, com algum se- Amazônia e do Cerrado. Ao contrário, uso dos ativos biológicos e biomi-
tor do Estado especificamente? quando a atividade da agropecuária méticos da Amazônia fazendo uso
Qual tem sido a repercussão po- torna-se muito mais rentável devido das modernas tecnologias da Quar-
lítica da proposta? ao aumento da produtividade, a ten- ta Revolução Industrial ainda não
dência é que ocupe área ainda maior atingiram campanhas presidenciais,
Carlos Nobre – Alguns represen-
e se expanda. até porque os conceitos ainda estão
tantes da classe política já tiveram
em desenvolvimento e as campa-
conhecimento da proposta. Porém, o Frear o desmatamento requer uma
nhas buscam linguagens acessíveis
nível de discussão dessas propostas política pública de desmatamento
de comunicação com a população. A
ainda é restrito. Temos conversado zero, que é, aliás, o desejo da maior
maioria dos candidatos postos até o
com o Fundo Amazônia sobre a ne- parte da população brasileira. É pos-
momento é ligada ao grande agrone-
cessidade de trazer inovação de ponta sível, sim, o Brasil continuar a ser
gócio e dificilmente se interessaria
para a Amazônia, criando ‘ecossiste- uma potência na produção de ali-
por um modelo revolucionário e ino-
mas de inovação’ que permitam o en- mentos utilizando os cerca de 270
vador como a Terceira Via Amazôni-
raizamento de uma nova bioeconomia. milhões de hectares já em atividade
ca, ainda que repitam sem pestanejar
agropecuária e silvicultura.
que irão “proteger a Natureza”.
IHU On-line – O senhor já de-
clarou que sua proposta de de- IHU On-line – Alguns ambien-
IHU On-line – Qual sua ava-
senvolvimento para a Amazônia talistas têm chamado atenção
liação da Coalizão Brasil Clima,
envolverá, numa segunda fase, para um processo de “faveli-
Florestas e Agricultura, movi-
as outras Amazônias. O que tem zação” da Amazônia, fazendo
mento multisetorial compos-
pensado nesse sentido? referência ao empobrecimento
to por mais de 170 membros,
e ao aumento da violência na
Carlos Nobre – Globalmente entre entidades que lideram
região. Na sua avaliação, esse
falando, o aproveitamento da bio- o agronegócio no Brasil, as
fenômeno de fato existe? Quais
diversidade tropical em inovadores principais ONGs da área de
são suas causas?
modelos de bioeconomia é bastante meio ambiente e clima e repre-
modesto, quase inexistente. Se tal ini- Carlos Nobre – Como no resto sentantes do meio acadêmico,
ciativa puder mostrar-se viável para do Brasil, a tendência de urbanização que apresentará aos principais
a Amazônia, é provável que possa ser também ocorre na Amazônia, onde candidatos às eleições deste

EDIÇÃO 526
ENTREVISTA

ano um conjunto de 28 propos- factíveis e, de modo geral, apontam hectares de terras públicas. Trata-se
tas, relacionadas ao uso da ter- um caminho de redução da expan- de um roteiro de bom-senso. Por ou-
ra? Elas são factíveis de serem são da fronteira agrícola, com ganhos tro lado, já há setores do agronegócio,
alcançadas em um mandato de de produtividade, além de sinalizar alguns representados na Coligação,
quatro anos? a importância da regularização fun- que apoiam até mesmo candidatos
Carlos Nobre – Sou membro da diária e destinação para fins de con- com posições totalmente antagônicas
Coalizão. Sim, as 28 propostas são servação dos mais de 60 milhões de ao Livro Verde da Coligação. ■

Leia mais
- SC: O fenômeno é natural, mas a intensificação pode ser uma conseqüência do aque-
cimento global. Entrevista especial com Carlos Nobre, publicado nas Notícias do Dia de
16-12-2008, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2vTqIjT.
- Mudanças climáticas e o Brasil: conseqüências reais, soluções viáveis. Entrevista es-
pecial com Carlos Nobre, publicado nas Notícias do Dia de 22-08-2008, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2Onc0ZY.
- A Amazônia está aquecendo. Entrevista especial com Carlos Nobre, publicado nas No-
tícias do Dia de 17-11-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2OZW8xw.
- Amazônia, desmatamento e clima. Entrevista especial com Carlos Nobre, publicado nas
Notícias do Dia de 02-03-2010, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2M9m78g.

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 526
REPORTAGEM | OBSERVASINOS

50 Saúde e segurança do trabalhador.


Especial do Trabalho Vale do Sinos
2003-2016
João Conceição; João Dias; Lucas Schardong; Marilene Maia

Entre 2003 e 2016 foram registrados trabalhadores no ano de 2003 e uma taxa
83.336 acidentes de trabalho no Vale do de mortalidade por acidentes de trabalho
Sinos, com uma taxa média de mais de de 11,53 a cada 100 mil. Em 2016, a taxa
17 acidentes a cada mil trabalhadores na de ocorrência de acidentes foi de 14 a cada
região e uma média de 5.952 acidentes mil trabalhadores. Os dados mostram que
por ano. Ao longo de 2018 o Observató- no período de crescimento econômico,
rio das Realidades e Políticas Públicas em 2010, por exemplo, a taxa foi de mais
do Vale do Rio dos Sinos - ObservaSinos, de 19.
programa do Instituto Humanitas Uni- O Rio Grande do Sul teve uma taxa de
sinos – IHU, vem desenvolvendo uma ocorrência de acidentes maior que a brasi-
série histórica sobre o trabalho entre os leira no ano de 2003, a cada mil trabalha-
anos de 2003 e 2016, período de grande dores 23 sofreram acidentes do trabalho,
movimentação e transição econômica, porém a taxa de mortalidade por aciden-
política e social no Brasil. Os dados ana- tes do trabalho gaúcha foi de 7 a cada mil
lisados são dos 14 municípios do Conse- trabalhadores, índice menor que o brasi-
lho Regional de Desenvolvimento - leiro no mesmo período. Em 2016, o esta-
Corede do Vale do Rio dos Sinos, região do apresentou uma taxa de 19. Apesar da
de atuação do Observatório. queda em relação ao ano de 2003, o Rio
No contexto nacional, a taxa também é de Grande do Sul, no ano de 2016, apresentou
pouco mais de 17 acidentes para cada mil a maior taxa de ocorrência de acidentes do

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REVISTA IHU ON-LINE

“Em 2003, foram registrados 5.237


acidentes de trabalho no Vale do
Sinos; 18 em cada mil trabalhadores
do Vale do Sinos sofreram um
acidente de trabalho no ano”

trabalho do Brasil, acima da média do país. aqueles que se tornam trabalhadores in-
Em 2010, a taxa foi de 24, mas neste ano, formais, as chances triplicam. Além disso,
o estado de Alagoas teve o maior volume de acordo com o estudo, a categoria que
do Brasil, com 30 ocorrências a cada mil. tem menos óbitos é a de trabalhadores 51
Em maio de 2018, o Ministério do Traba- domésticos, e é muito mais seguro traba-
lho e o Ministério Público do Trabalho no lhar para grandes empresas do que para
Rio Grande do Sul divulgaram um estudo pequenas empresas.
inédito sobre acidentes de trabalho no es- Em 2003, foram registrados 5.237 aci-
tado. O levantamento apurou que 506 tra- dentes de trabalho no Vale do Sinos;
balhadores morreram em 2016, em decor- 18 em cada mil trabalhadores do Vale do
rência de acidentes de trabalho, sendo que Sinos sofreram um acidente de trabalho
o número de registros oficiais de óbitos no no ano. O número aumentou até o ano de
ano de 2016 foi 139. 2008, quando foram registrados 6.506 aci-
O estudo concluiu que um a cada três dentes de trabalho, 20 acidentes para cada
óbitos de trabalhador/a com carteira as- 1.000 trabalhadores. Entre 2009 e 2014 a
sinada não tem Comunicação de Aci- média de acidentes foi de 6.155 acidentes/
dente de Trabalho - CAT emitida. As ano. Em 2016, a taxa de acidentes foi de
Comunicações correspondem a apenas 15 a cada 1.000 trabalhadores, totalizando
27,4% dos óbitos encontrados na pes- 5.346 acidentes de trabalho na região.
quisa. O trabalhador que deixa de traba- A reportagem completa está disponível
lhar com carteira assinada e se torna nas Notícias do Dia, no sítio do Instituto
autônomo tem duas vezes mais chances Humanitas Unisinos - IHU, em http://bit.
de morrer em um acidente típico¹. Para ly/2vAsmHG. ■

EDIÇÃO 526
CRÍTICA INTERNACIONAL

A guerra comercial entre


Estados Unidos e China
Gabriel Adam

“ C
om a guerra comercial empreendida com a China,
o Governo Trump procura obter dividendos econô-
micos no plano doméstico, ao mesmo tempo que al-
meja frear os planos chineses de ser a principal potência do
sistema internacional. Contudo, os efeitos finais da disputa
podem ser mais nefastos para os EUA do que para sua ri-
val”, escreve Gabriel Adam.
Gabriel Adam é doutor em Ciência Política e professor
dos cursos de Relações Internacionais e Direito na Unisinos.
Eis o artigo.

Desde meados do século XX os Estados Unidos têm procurado manter sua posição de principal
potência global. O final da União Soviética e o consequente término da Guerra Fria acentuaram
52 nos governos estadunidenses a percepção de que o “excepcionalismo” de seu país lhe confere o
destino de liderar o sistema internacional. Tal visão perpassou todos os governos estaduniden-
ses do período, não sendo diferente no mandato de Donald Trump. O que difere a cada governo
são as estratégias e táticas implantadas para manter o status quo internacional e a compreensão
de quem são os principais inimigos a serem enfrentados. Durante o Governo Obama, duas gran-
des potências eram consideradas as grandes ameaças à segurança e ao poderio estadunidense:
Rússia e China. A forma como Washington vinha lidando ao longo desta década com as duas
contendoras era diversa, pois o grau de agressividade discursiva e de ataques diplomáticos e
econômicos sempre foi maior em relação à Rússia. A diferenciação não desapareceu, mas no
Governo Trump já se identificam posicionamentos mais duros em relação à potência asiática,
como se demonstra na guerra comercial empreendida com os chineses em 2018. O presente tex-
to almeja identificar as causas motivadoras deste embate comercial que se desenha, bem como
assinalar alguns efeitos possíveis caso a situação se prolongue.
No ano de 2017, as trocas de bens entre China e Estados Unidos apresentaram um déficit para
este último superior a 327 bilhões de dólares. O quadro de prejuízo na balança de pagamentos
estadunidense não é exclusivo de suas relações com a China, mas como esta é a sua principal
parceira econômica, e possui a segunda maior economia do mundo, passou a ser o alvo preferen-
cial de medidas econômicas da Casa Branca. Em março de 2018, o Governo Trump anunciou o
aumento das tarifas de importação de aço para 25% e de alumínio para 10%. Apesar de ser pouco
afetada diretamente, a China aumentou tarifas para um total de 3 bilhões de dólares de produtos
importados dos EUA. No mês de julho, Washington impôs uma tarifa de 25% sobre um volume
de 34 bilhões de dólares de importações da China, recebendo resposta na mesma medida. No
início de agosto, os EUA anunciaram planos de aumentar tarifas de 10% para 25% sobre um
montante de 200 bilhões de dólares de produtos importados da China. O Governo Xi Jinping
declarou que se isto ocorrer, contramedidas serão adotadas.
Além de tentar diminuir seu déficit comercial, no plano doméstico as atitudes de Trump visam
ao seu eleitorado. Durante a campanha presidencial, parte importante de seu discurso sinalizava
para a proteção da economia do país e a consequente recuperação de empregos em território na-
cional. Há sérias dúvidas se a agressiva política comercial em curso reposicionará a indústria dos
EUA num contexto global e gerará benefícios ao trabalhador estadunidense, contudo o Governo
Trump tem insistido neste argumento.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Beijing lançou o Made in China 2025,


programa de avanço em áreas como
tecnologia da informação, robótica,
maquinário agrícola e biomedicina”

Quanto às causas de natureza global, a China tem se tornado cada vez mais assertiva na busca de
aumento de poder internacional. Projetos como a Nova Rota da Seda, o Banco Asiático de Inves-
timento e Infraestrutura e a construção de ilhas artificiais no Mar do Sul da China denotam que
Pequim tem atuado em todas as frentes para se consolidar como grande potência. Especificamente
quanto à produção industrial, o país lançou o Made in China 2025, programa cujo objetivo é alcan-
çar em tecnologia e qualidade industrial os EUA e a União Europeia em áreas como tecnologia da in-
formação, robótica, maquinário agrícola e biomedicina. Ao observar o conjunto das ações chinesas,
os EUA sentem sua liderança global severamente ameaçada, o que demandaria uma resposta. Como
um conflito armado com a China está fora de cogitação, resta a Washington empreender a atual dis-
puta de natureza comercial. Isto leva à necessidade de avaliar os efeitos desta política.
Quanto aos ganhos à economia doméstica, o nobel de economia Joseph Stiglitz entende que
medidas retaliatórias chinesas tenderão a diminuir os empregos estadunidenses, não somente
pela perda no mercado chinês, mas porque o aumento das tarifas dos EUA tornará suas expor-
tações menos competitivas. Além disto, os preços dos produtos importados aumentarão, o que
diminuirá o poder de compra da população.
No aspecto global, os ganhos estadunidenses do conflito comercial são ainda mais duvidosos. Os 53
EUA estão tentando atrair os europeus para o seu lado da disputa, o que não é uma tarefa fácil.
O Brexit retirou da União Europeia a principal aliada estadunidense, o que pode obrigar a Casa
Branca a fazer escolhas entre Londres e Bruxelas num futuro próximo. Ademais, não é possível
posicionar a China como uma ameaça direta à Europa perante a população do continente. Tam-
bém é preciso considerar as relações econômicas sino-europeias e o prejuízo que a União Europeia
teria em embarcar na guerra comercial de Trump. Cabe agora trazer à equação as ações chinesas.
Diante da agressividade estadunidense, Pequim está estreitando suas parcerias multilaterais, so-
bretudo com os países do sul global. Na Cúpula dos BRICS de 2018 Xi Jiping conseguiu atrair os
demais países do grupo para uma condenação do grupo ao unilateralismo e ao protecionismo. A
possibilidade de ampliar a Organização da Cooperação de Xangai para incluir outro alvo recorren-
te dos EUA, o Irã, também reforçaria a posição chinesa no contexto eurasiático.
Como se pode observar, caso mantenham sua atual postura, os EUA podem sair como prin-
cipais perdedores da guerra comercial com os chineses. Primeiramente, porque os lucros eco-
nômicos alardeados são incertos. Em segundo lugar, a imagem passada pela Casa Branca é de
arrogância e egoísmo, o que permitirá à China capitalizar apoios cruciais e sedimentar alianças
não apenas para fortalecer sua economia, mas também tendo em foco a disputa que se desenha
com os EUA pela posição de potência mais relevante do sistema internacional1. ■

1 Ainda sobre a China, acesse a entrevista A ascensão da China, a disputa pela Eurásia e a Armadilha de Tucídides, publicada pelo IHU, disponível em http://
bit.ly/2NWICto. O IHU também vem publicando inúmeros textos acerca desse tema. Entre eles China: outro modelo neoliberal ou outra forma de mercado?,
disponível em http://bit.ly/2w4LtJo; e China, uma ordem pós-neoliberal?, disponível em http://bit.ly/2MhhCso. Leia mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/
noticias (Nota da IHU On-Line)

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto Stumpf
Paes Leme (aleme@unisinos.br) e Profª Drª Nádia Barbacovi (nbmenezes@unisinos.br).
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha (blimar@unisinos.br)

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PUBLICAÇÕES

A ética social do Papa Francisco:


O Evangelho da misericórdia segundo
o espírito de discernimento

O
número 135 dos Cadernos Teologia Pública, publicado pelo Institu-
to Humanitas Unisinos - IHU, traz o artigo de Juan Carlos Scanno-
ne em que aborda perspectiva teológicas que orientam o atual pon-
tífice. “Quando recebi o pedido da Editora Vaticana para escrever um breve
volume sobre a ética social de Francisco, imediatamente pensei que o fio
condutor devia ser a misericórdia, ‘princípio hermenêutico de seu pontifi-
cado’. Este princípio sucede-se imediatamente a outra característica pró-
pria do santo Padre: seu desejo
de ‘uma igreja pobre para os po-
bres ’. Com todas as consequên-
cias que isto implica, ainda com
respeito a nossa frágil ‘irmã mãe
terra’”, explica o autor. Para ele,
54 não se trata apenas do conteúdo,
mas ainda do método da ética
e doutrina social seguidas pelo
Papa. “Dediquei a última parte
deste volume ao discernimen-
to, carisma inaciano outorgado
a Francisco, mas que ele ofere-
ce à igreja universal para o seu
necessário ‘perscrutar os sinais
dos tempos’. Por conseguinte, a
presente exposição é composta
de três partes: 1) a boa nova da
misericórdia; 2) uma igreja po-
bre para os pobres; 3) o discer-
nimento eclesial dos sinais dos
tempos”, completa.
Juan Carlos Scannone é je-
suíta, foi professor em diversas
universidades latino-americanas
e europeias, incluindo a Pontifí-
cia Universidade Gregoriana de
Roma. É ex-reitor da Faculdade
de Filosofia e Teologia de San
Miguel, da Universidade del Sal-
vador. Ingressou na Companhia
de Jesus em 1948 e foi ordena-
do sacerdote em 1962. Obteve
licenciatura em Filosofia pela Faculdade de San Miguel (Argentina), e em
Teologia pela Universidade de Innsbruck (Áustria). Obteve doutorado em
Filosofia pela Universidade de Munique (Alemanha). A partir de 1969 foi
professor de Filosofia e de Teologia na Universidad del Salvador (em Bue-

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REVISTA IHU ON-LINE

nos Aires). Foi diretor da revista Stromata. Entre 1988 e 1998 foi um dos
vice-presidentes da União Mundial de Associações Católicas de Filosofia.
Foi integrante da Academia Europeia “Scientiarum et Artium” e vice-presi-
dente da Sociedade Argentina de Teologia.
A versão completa deste Cadernos Teologia Pública está disponível em
http://bit.ly/2vSvtdA.
Esta e outras edições dos Cadernos IHU também podem ser obtidas dire-
tamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo
da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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PUBLICAÇÕES

Uma crítica filosófica à teoria


da Sociedade do Espetáculo
em Guy Debord

A
edição 276 dos Cadernos IHU ideias traz o texto de Atilio Machado
Peppe em que analisa a obra do filósofo francês Guy Debord. Segundo
ele, a teoria da Sociedade do Espetáculo está no bojo das insurrei-
ções do Maio de 68 e “é uma ousada tentativa contemporânea de atualização
da crítica marxiana de superação revolucionária do capitalismo”. O autor
ainda explica que “tal sistema imerso na superabundância de mercadorias
teria se tornado imensa acumulação de
espetáculos mediada por uma cultura
alienante de consumidores passivos”.
“Debord aposta na consciência revolu-
cionária de pequenos conselhos operá-
rios independentes para contrarrestar
as representações espetaculares. Mas,
ao superestimar o poder revolucionário
56 desses grupos, revelam-se pressupostos
filosóficos que a crítica filosófica inspira-
da em Lima Vaz considera ineficazes em
face de uma crise civilizacional comple-
xa cuja superação exige uma práxis ético
-política fundada nas sabedorias do Bem
Viver”, completa Peppe.
Atilio Machado Peppe é doutoran-
do do Programa de Pós-Graduação do
Departamento de Filosofia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PU-
C-SP, bolsista da Capes. Graduado em Fi-
losofia na Faculdade dos Jesuítas RJ, gra-
duado em Economia na PUC-SP e mestre
de Ciência Política pela Universidade de
São Paulo - USP. Especialista em Políti-
cas Públicas e Gestão Governamental -
EPPGG em exercício na SRTE-SP.
A versão completa deste Cadernos IHU
ideias está disponível em http://bit.
ly/2AXzT8N.
Esta e outras edições dos Cadernos
IHU também podem ser obtidas dire-
tamente no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, no campus São Leopoldo
da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@
unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

SUS por um fio. De sistema público e


universal de saúde a simples negócio
Edição 491 – Ano XVI – 22-8-2016

O Sistema Único de Saúde - SUS vinha sendo amplamente debatido e


defendido nas páginas impressas e eletrônicas do Instituto Humanitas
Unisinos - IHU ao logo de todo o ano de 2016. A este tema foram dedi-
cadas inúmeras entrevistas e artigos, num período em que foram inten-
sificados ataques ao SUS. Por isso, a revista IHU On-Line dessa semana
voltou ao tema, pois, se é verdade que o SUS sempre tem vivido em crises,
nenhuma é de tal gravidade como a que eclodiu em 2016.

SUS: 20 anos de curas e batalhas


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Edição 260 – Ano VIII – 2-6-2008

Em 2008, comemoravam-se 20 anos de criação do SUS, e o assunto


foi destaque nessa edição da IHU On-Line. Passadas duas décadas de
funcionamento, muitos ainda não se davam conta da importância do SUS e
do quanto seus serviços estavam inseridos no cotidiano da população, não
apenas por meio dos tratamentos e consultas; todos somos beneficiados
pelo SUS, por exemplo, pelo sistema de vacinação. No entanto, as críticas e
os problemas ainda eram grandes. E foi para discutir a situação atual do
SUS, a partir dos 20 anos de sua história, que a IHU On-Line conversou
com alguns especialistas e profissionais da área da saúde.

Saúde Coletiva. Uma proposta integral e


transdisciplinar de cuidado
Edição 233 – Ano VII – 27-8-2007
“Ter saúde’, de fato, não tem a ver com ‘não adoecer’, mas com as nossas
condições de enfrentamento do próprio adoecimento, se e quando ele
ocorrer”, afirma Victor Valla, na entrevista publicada nessa edição da
IHU On-Line, que busca entender melhor a Saúde Coletiva como proposta
integral e transdisciplinar de cuidado. Discutimos o tema precisamente
no momento em que hospitais do país, especialmente no Nordeste, viviam
semanas de caos. Não é por nada que a Profa. Dra. Stela Meneghel, do
PPG de Saúde Coletiva da Unisinos, denunciou que, “desde o momento da
formulação do SUS, as elites interessadas na manutenção de privilégios e do
modelo assistencial privado de saúde iniciaram um boicote”.

EDIÇÃO 526
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