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ENSAIO | ESSAY 15

Os sistemas universais de saúde e o futuro do


Sistema Único de Saúde (SUS)
Universal health systems and the future of the Brazilian Unified
Health System (SUS)

Jairnilson Silva Paim1

DOI: 10.1590/0103-11042019S502

RESUMO Com o objetivo de discutir a situação atual, limites e possibilidades do Sistema Único de Saúde
(SUS) nos próximos anos, tendo em conta as mudanças nos sistemas universais de saúde, este ensaio apre-
senta uma breve revisão da literatura sobre sistemas e reformas setoriais em saúde. Registra as tendências
orientadas para o mercado, discutindo certas diferenças entre sistemas universais de saúde e a proposta
político-ideológica de cobertura universal de saúde. Destaca diversos obstáculos no desenvolvimento his-
tórico do SUS, especialmente o subfinanciamento crônico e a falta de prioridade pelos governos. Comenta
as ameaças à consolidação e o risco de desmonte do SUS ante as políticas econômicas ultraliberais e as
propostas que defendem sistemas de saúde orientados para o mercado. Conclui reiterando que o maior
desafio do SUS continua sendo político, sublinhando a relevância das lutas em defesa da democracia e
das conquistas civilizatórias que integram o projeto da Reforma Sanitária Brasileira.

PALAVRAS-CHAVE Política de saúde. Sistemas de saúde. Sistema Único de Saúde.

ABSTRACT In order to discuss the current situation, limits and possibilities of the Brazilian Unified Health
System (SUS) in the coming years, taking into account changes in universal health systems, this essay presents
a brief review of the literature on health systems and sectoral reforms. It records market-oriented trends,
discussing certain differences between universal health systems and the political-ideological proposal of
universal health coverage. It highlights several obstacles in the historical development of the SUS, especially
chronic underfunding and lack of government priorities. It comments on the threats to the consolidation
and the risk of dismantling the SUS in the face of ultraliberal economic policies and proposals that defend
market-oriented health systems. It concludes by reiterating that the biggest challenge of the SUS remains
political, underlining the relevance of the struggles in defense of democracy and the civilizing achievements
that are part of the Brazilian Health Reform project.

KEYWORDS Health policy. Health systems. Unified Health System.

1 Universidade Federal da
Bahia (UFBA) - Salvador
(BA), Brasil.
jairnil@ufba.br

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado. SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 5, P. 15-28, DEZ 2019
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Introdução Destarte, estudos sobre sistemas de saúde e


reformas setoriais constituem, crescentemente,
Os sistemas universais de saúde represen- parte da literatura sobre políticas de saúde no
tam conquistas civilizatórias do século XX. âmbito internacional2,4-6 e, também, no Brasil1,7-9.
Inspirados no direito à saúde, tal como cogita- A crise do capitalismo verificada na década
do nos movimentos revolucionários europeus de 1970, aliada à reestruturação produtiva e
dos séculos XVIII e XIX, seus primeiros passos ao predomínio do capital financeiro, possibi-
se deram a partir da Revolução Bolchevique, litou a emergência do neoliberalismo nos anos
quando a ação estatal substituía as forças cegas 1980, com a priorização do mercado, a desre-
do mercado – em uma das iniciativas pioneiras gulamentação e os ataques ao Welfare State.
de realização do planejamento, assim como nos Esses fenômenos ficaram conhecidos como
países escandinavos que experimentaram a ‘Reaganomics’ e ‘Thatcherism’ como referên-
social democracia antes da II Guerra Mundial. cias da nova direita representada por Ronald
Após esses acontecimentos históricos, os Reagan nos Estados Unidos da América (EUA)
chamados ‘30 anos de ouro’ do capitalismo e por Margaret Thatcher na Inglaterra10. Uma
foram acompanhados do desenvolvimento avalanche pró-mercado e pró-setor privado
do Welfare State e do reconhecimento dos alastrou-se no mundo sob a ideologia do ne-
direitos sociais, com a expansão dos sistemas oliberalismo, com os propósitos de reduzir o
de proteção social dos tipos bismarkiano e tamanho, o papel e a ação do Estado e de conter
beveridgiano, possibilitando a implantação o desenvolvimento das políticas sociais e dos
dos sistemas universais de saúde1. sistemas de proteção.
A permanência de regimes autoritários Na saúde, foram propostas e implemen-
no sul da Europa, especialmente na Grécia, tadas reformas setoriais, ameaçando os fun-
Portugal e Espanha, postergou as reformas damentos dos sistemas de saúde universais1.
dos sistemas de saúde para a década de 1970 Diferentemente das décadas anteriores em que
no contexto de redemocratização. Mesmo a a Organização Mundial de Saúde (OMS) exercia
Itália, que incluiu a saúde como direito na um papel proeminente na formulação de propos-
Constituição em 1948, depois da derrota do tas para sistemas, políticas e programas de saúde,
fascismo, só conseguiu aprovar a Lei criando o nesse contexto, o protagonismo maior coube ao
Serviço Sanitário Nacional três décadas depois. Banco Mundial, Organização para Cooperação
Na América Latina, apesar da criação do e Desenvolvimento Econômico (Organisation
Serviço Nacional de Saúde do Chile, em 1952, e for Economic Co-operation and Development
do sistema de saúde cubano, após a Revolução de – OECD), fundações americanas, economistas e
19592, bem como da expansão dos seguros sociais organismos multilaterais. O relatório do Banco
e da assistência médica previdenciária em vários Mundial de 1993 – ‘Investir em Saúde’ – ilustra
países, as ditaduras das décadas de 1960 e 1970 esse movimento a ponto de uma diretora da OMS
priorizaram a privatização da saúde em vez de explicitar na Assembleia Mundial da Saúde o
sistemas de saúde universais de caráter público. compromisso de, durante a sua gestão, estabe-
O Brasil foi um dos países que, nas lutas pela lecer relações com o setor privado lucrativo11.
democracia, incluiu a democratização da saúde No caso dos países da América Latina,
na agenda política por meio do movimento as políticas de ajuste macroeconômico
da Reforma Sanitária Brasileira (RSB) e da foram definidas no chamado Consenso de
construção do Sistema Único de Saúde (SUS), Washington12, em 1989, que impôs um recei-
estabelecido pela Constituição de 19883. Desse tuário implicando condicionalidades nas ne-
modo, foi o único país capitalista da América gociações com o Banco Mundial, com o Fundo
Latina que estabeleceu um sistema de saúde Monetário Internacional (FMI) e com o Banco
universal naquele contexto. Interamericano de Desenvolvimento (BID),

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entre outros1. A reestruturação observada nas privatização15-19. Sistemas nacionais de saúde,


décadas de 1980 e 1990 visava à consolidação como os da Alemanha e da Inglaterra, adotaram
de um modelo voltado para a liberalização e políticas de competição regulada e comercia-
flexibilização econômica, à abertura para in- lização, comprometendo a universalidade20-22.
vestimento estrangeiro e à redução do aparato Países do sul da Europa que realizaram refor-
estatal e da política social13. mas nas décadas de 1970 e 1980, criando ser-
Na saúde, as políticas neoliberais redirecio- viços nacionais de saúde universais23, como
navam o setor para os seguintes eixos: a) recon- os ibéricos, foram os mais afetados pela crise
figuração do financiamento; b) privatização do e submetidos a políticas de austeridade fiscal
público rentável; c) seletividade de interven- neoliberais prescritas pela Troika (FMI, Banco
ções; d) focalização de populações; e) impulso Central Europeu e Comissão Europeia), com
ao asseguramento individual; f ) conformação programas sociais e repercussão nas políticas
de pacotes básicos de atenção. Esse processo de saúde24. Mesmo países escandinavos e da
de reforma incorpora a lógica mercantil nas Europa continental enfrentaram tentativas de
instituições públicas, fortalece os discursos tec- desmonte dos seus sistemas de saúde estrutu-
nocráticos, desqualifica a politicidade inerente rados no século XX25,26. As desigualdades em
ao campo sanitário e privilegia propostas de saúde se manifestaram até em países conside-
diluição das responsabilidades do Estado14. O rados mais equitativos como Grã-Bretanha,
mercado era considerado a solução, enquanto Holanda e Suécia23.
o Estado representava o problema. Toda uma A preocupação com o futuro dos sistemas
retórica centrada na contenção de custos, na universais de saúde e com as perspectivas
livre escolha, na competitividade, na expansão do SUS, em especial, mobilizou o Conselho
de prestadores privados, nas cestas básicas de Nacional de Secretários de Saúde (Conass)
serviços de saúde invadia as políticas de saúde12. a promover um seminário internacional em
Por mais de três décadas, os países capita- 2018, discutindo os sistemas de saúde do Reino
listas passaram por um processo de reformas Unido, do Canadá (Quebec), de Portugal, da
econômicas neoliberais centrado nos ajustes Costa Rica e do Brasil. Entre as conclusões do
macroeconômicos, na redução drástica do encontro, destaca-se a relevância do Estado de
gasto público, no fortalecimento do mercado Bem-Estar Social, cabendo à gestão estadual do
e nas privatizações1,10. A implantação do SUS SUS contribuir para os debates, para a produção
nesse período tem sido realizada em um científica e para a difusão do conhecimento com
contexto extremamente adverso, enquanto vistas à sustentabilidade do sistema universal
a reforma do sistema de saúde colombiano, de saúde brasileiro27. Nesse sentido, o presen-
mediante a aprovação da Lei nº 100 em 1993, te texto visa discutir a situação atual, limites
contou com o apoio de organizações inter- e possibilidades do SUS nos próximos anos,
nacionais, por sua orientação pró-mercado. considerando certas mudanças registradas na
Consequentemente, a reforma setorial na literatura sobre sistemas universais de saúde.
Colômbia e depois no México14seguiu cami-
nhos muito distintos da RSB e do SUS9.
Presentemente, verifica-se uma radica- Alguns tipos de sistemas e
lização dessas reformas setoriais em níveis reformas de saúde
global e nacional, sobretudo após a crise eco-
nômica mundial de 2008, envolvendo cortes Entre 1945 e 1975, verifica-se uma grande
orçamentários, copagamento, restrições de expansão econômica nos países23, configu-
serviços, transferência de custos para os rando três tipos básicos de sistema de saúde: o
usuários, diminuição de responsabilidades americano, o inglês e o soviético2. O primeiro,
por parte do Estado e aumento das formas de de caráter liberal, com escassa participação

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estatal e prioridade para o mercado. O segundo, sob o argumento da busca de maior eficiência
apesar de inserido em uma sociedade capi- e equidade. Assim, enquanto países que saíam
talista, apresenta forte presença do Estado; de ditaduras ou de governos autoritários –
e, embora não houvesse impedimento para como Brasil, Espanha e Portugal – buscaram
a prática liberal da medicina, os serviços de reformas de caráter universalista e público,
saúde eram predominantemente públicos. Já o outros apostaram em reformas que, apesar de
tipo soviético era resultante de mudanças pro- manterem a natureza pública dos sistemas de
fundas do sistema de saúde após a Revolução saúde, expressavam as influências das lógicas
de 1917, cujos serviços eram integralmente do mercado – como a Inglaterra, a Alemanha,
estatais, possibilitando o uso da denominação a Suécia, entre outros.
‘medicina socializada’. A Suécia, por exemplo, promoveu uma
Tendo em conta estudos comparativos rea- reforma voltada para a adoção da competiti-
lizados posteriormente, verificam-se algumas vidade no setor saúde entre 1992 e 1995. Seu
atualizações daquela classificação de modo sistema de saúde, estruturado desde 1864,
a registrar distintas conformações: a) tipo passou por poucas mudanças entre 1958 e
orientado para o mercado, ‘residual’ ou do 1983, mas, nas décadas de 1980 e 1990, seguiu
livre mercado, como nos EUA, na Holanda e o modelo das reformas setoriais orientadas
na Suíça, e seus desdobramentos ulteriores ao mercado real que adotavam o discurso da
denominados de ‘competição gerenciada’ e/ eficiência, efetividade, equilíbrio econômi-
ou ‘pluralismo estruturado’1, com separação co e qualidade da atenção, estabelecendo as
entre financiamento, prestação de serviços e seguintes medidas: a) copagamento dos usu-
regulação (Colômbia e México); b) público bis- ários; b) separação da prestação de serviços
markiano, apoiado em seguros sociais (França, e financiamento; c) reforma da gerência de
Alemanha e vários países da América Latina); hospitais visando competição; d) geração de
c) público beveridgiano, com financiamento sistemas de pré-pagamento mediante seguros.
fiscal e prestação majoritariamente pública Apesar dos resultados iniciais exitosos, foram
de serviços (Reino Unido, Portugal, Espanha, evidenciados, posteriormente, problemas de
Itália, Brasil etc.); d) monopólio estatal com sobreutilização de serviços, diminuição da sa-
financiamento e prestação públicos (Cuba). tisfação dos usuários, aparecimento de alguns
Enquanto na primeira conformação o sistema monopólios na atenção médica e fortes assi-
de saúde está orientado pelo mercado (pró- metrias de informação diante do mercado da
-mercado), as demais são baseadas em prin- saúde. Portanto, a reforma sueca voltada para a
cípios universalistas. competição e redução de custos não alcançou
Contudo, com a crise do Welfare State e os objetivos propostos28.
com as propostas de redução do Estado, com No presente século, muitas dessas reformas
restrições às políticas sociais e aos sistemas têm continuidade, embora uma radicalização
de proteção social, surgiu uma onda de re- de reformas pró-mercado tenha sido consta-
formas de sistemas de saúde flexibilizando tada com a crise do capitalismo de 2008 em
os fundamentos dos sistemas de saúde uni- vários países, envolvendo a redução da ação
versais1. Além da separação entre provedores do Estado na prestação de serviços, mediante
e prestadores, com a distinção das funções de diversas formas de privatização, implicando
financiamento, regulação e prestação de ser- impactos nos custos, na qualidade dos cuida-
viços, bem como a introdução da competição dos e nos resultados16,28-30.
entre instituições públicas e privadas12, essas O Serviço Nacional de Saúde (NHS) da
reformas pró-mercado tinham um caráter Inglaterra, considerado referência para di-
incremental, promovendo arranjos organi- versos sistemas de saúde universais, tem
zativos e de gestão para a redução de custos, passado, também, por mudanças significativas

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na organização, gestão e prestação de serviços da contrarreforma dos sistemas universais de


de saúde31, sobretudo a partir do Health and saúde, quebrando a universalidade, restringin-
Social Care Act de 2012. Desde 1980, com o do direitos e aprofundando as desigualdades
predomínio do neoliberalismo, as reformas sociais34. O Decreto Real nº 16/2012 modificou
do NHS apontam para sua ‘liberalização’ em o seu sistema de saúde, afastando a Espanha
diferentes momentos: a) transição da lógica das características de sistema universal be-
profissional e sanitária para uma lógica ge- veridgiano para se transformar em outro de
rencial/comercial (1979-1990); b) estruturação corte bismarkiano, possivelmente tendo como
de uma burocracia para a administração do horizonte um modelo residual anglo-saxão35.
‘mercado interno’ e expansão de medidas pró- Os cortes no setor público estão acelerando os
-mercado (1991-2004); c) abertura ao mercado, gastos privados, o que implicará a segmentação
fragmentação e descontinuidade dos serviços, maior do sistema, com um componente privado
fragilização do modelo territorial, assumindo que atende parte da população com maiores
a saúde como um mercado para prestadores recursos e um componente público voltado
públicos e privados (2005-2012). A nova es- para os estratos populares. Entre as medidas
trutura do NHS após a reforma de 2012 aponta adotadas, encontram-se o aumento dos valores
para um risco à equidade e o peso de um con- de coparticipação financeira na prestação de
texto global – político, econômico e histórico serviços e a definição de modalidades básica,
– que ameaça o direito universal à saúde. O suplementar e acessória que aprofunda a frag-
mercado da saúde expandiu-se, tornando o mentação dos serviços34. Assim, esse processo
sistema público híbrido e direcionando re- de reforma tenta esconder o desvio de recursos
cursos públicos para o setor privado32. Cerca públicos para o setor privado23,24.
de 11% da população dispõe, atualmente, de Na América Latina, o caso da Colômbia12
seguro de saúde privado, com diversificação foi muito elogiado pelos organismos interna-
na cobertura de serviços33. cionais, inclusive pela OMS, mas apresentou
Portugal criou, em 1979, o Serviço Nacional sérios problemas no que tange à segmentação
de Saúde (SNS), sofrendo os efeitos da pri- dos sistemas e à fragmentação dos serviços14,
meira crise do petróleo que se mantiveram com negação da atenção, altos gastos adminis-
por muitos anos. Entre 2008 e 2013, suportou trativos e corrupção9. Estudos apontam para
o impacto da crise econômica internacional, o crescimento da judicialização36 iniquidades
mas comprometeu até a reforma da Atenção no gasto per capita entre regimes, ineficiên-
Primária à Saúde (APS) iniciada em 2005. Em cia da intermediação financeira, elevação dos
maio de 2011, teve de assinar um Memorando custos de medicamentos, aumento de cesáreas
de Entendimento com a Troika para obter em- e da mortalidade materna37. A mudança das
préstimo e, assim, enfrentar o deficit e as pres- funções do Estado, passando de prestador
sões das agências de rating30. Presentemente, de serviços para regulador, não obstante o
o sistema de saúde português caracteriza-se discurso da eficiência, produziu poluição nor-
pela existência simultânea do SNS com vários mativa, descumprimento de regras, conflitos
subsistemas de assistência, inclusive seguros de interesses, crise regulatória e predomínio
de saúde privados23. de perspectivas rentistas individualistas38.
Já a Espanha, com o restabelecimento da de- Ao submeter os serviços de saúde aos desíg-
mocracia em 1977, instituiu o Sistema Nacional nios do mercado, as reformas setoriais, como a da
de Saúde em 1986, expandindo a cobertura em Colômbia, fortalecem o poder do setor privado,
saúde. Todavia, o sistema privado de saúde tem transformando a vida em um negócio. A lógica
aumentado desde o final da década de 1990, econômica prevalece sobre os valores e prin-
intensificando tal tendência com a atual crise cípios morais configurando um cenário hostil,
econômica e financeira. Participa, desse modo, subordinado à rentabilidade e à voracidade

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financeira37. Trata-se de um caso exemplar que que, nos primeiros, prevalece uma cidadania
evidencia os limites das reformas setoriais re- plena; enquanto na UHC, constata-se uma
centes com intensa participação de mercados39. cidadania residual, alinhada a uma visão liberal
No entanto, a OMS, por influência da cuja intervenção governamental focalizada e
Fundação Rockefeller e do Banco Mundial, voltada para a assistência.
tem adotado a proposta Cobertura Universal
em Saúde (Universal Health Coverage –UHC),
construída no período 2004-201012, como con- O sistema de saúde
traponto aos sistemas universais de saúde de brasileiro e o futuro do SUS
caráter público. Assim, em 2005, a Assembleia
da OMS aprovou a Resolução 58.33 cujo sub- O SUS sofreu sérios obstáculos no seu desenvol-
título era ‘cobertura universal e seguro social vimento histórico diante do subfinanciamento
de saúde’; e, em 2011, a Resolução 64.9 sobre crônico e da falta de prioridade pelos governos
‘financiamento sustentável da saúde e cobertu- após a promulgação da Constituição de 1988.
ra universal’. Essa iniciativa se amplia em 2015 Enfrenta, presentemente, ameaças à sua conso-
quando a cobertura universal foi incluída na lidação e o risco de desmonte ante as políticas
Agenda 2030 como meta de um dos Objetivos econômicas ultraliberais no plano interno e,
de Desenvolvimento Sustentável (ODS)9. Já internacionalmente, diante da proposta UHC
em 2019, o documento ‘Cobertura Universal e da ação política dos que defendem sistemas
de Saúde: caminhando juntos para construir de saúde orientados para o mercado.
um mundo mais saudável’ foi aprovado por Apesar das conquistas significativas41,42, os
aclamação pela Assembleia da Organização problemas, obstáculos e desafios enfrentados
das Nações Unidas (ONU), em Nova York40. pelo SUS nas três últimas décadas adquirem
Desse modo, nos últimos anos, tem-se veri- ainda maior proeminência diante das crises
ficado um debate internacional sobre diferen- econômica e política desde 2014, especial-
tes concepções de universalidade em saúde6,9, mente decorrente das consequências do golpe
enquanto o futuro dos sistemas universais de parlamentar-midiático de 2016 e dos resulta-
saúde tem sido motivo de preocupação dos que dos das eleições presidenciais de 2018. Assim,
defendem o direito à saúde como inerente à ci- o SUS não foi consolidado como um sistema de
dadania e não vinculado ao poder de compra ou saúde universal, tal como proposto pela RSB
inserção dos indivíduos no mercado de trabalho. e assegurado pela Constituição43.
Para certos autores, a UHC no âmbito inter- A expansão da oferta de serviços públicos
nacional procura compatibilizar sistemas de em três décadas de SUS foi acompanhada do
saúde universais com reformas pró-mercado crescimento do setor privado na prestação
no sentido de harmonizar a prestação de ser- de serviços, no financiamento, nos arranjos
viços em contextos de recursos escassos, con- da gestão como as Organizações Sociais (OS),
formando uma ‘universalidade de mercado’14. Parcerias Público-Privadas (PPP), empresas
Seu propósito é reduzir o papel do Estado, públicas, entre outros1; e, especialmente, no
confinando-o no espaço da regulação do crescimento de empresas de intermediação,
sistema de saúde, com base em três compo- como as operadoras de planos e seguros pri-
nentes: a) foco no financiamento por com- vados de saúde, aprofundando a financeiri-
binação de fundos (pooling); b) afiliação por zação da saúde44,45. A força desses interesses
modalidade de asseguramento; c) definição privados manifesta-se no Congresso Nacional
de cesta limitada de serviços9. Esses autores e no financiamento das campanhas eleitorais
apresentam as características distintas das para candidatos ao Executivo a ao Legislativo.
propostas de sistemas universais de saúde e O governo derivado do impeachment de 2016
de ‘cobertura universal em saúde’, destacando fortaleceu um processo que estava em curso,

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radicalizando a oposição ao SUS e buscando político-ideológica da Cobertura Universal em


a sua substituição por um sistema de saúde Saúde; d) desfinanciamento; e) insuficiência
segmentado, fragmentado e americanizado. da infraestrutura pública; e) reprodução do
No plano estrutural, a financeirização invade modelo médico hegemônico43.
o setor saúde no sentido contrário ao SUS. Para além desses obstáculos, a problemática
Assim, a dominância financeira determina relação público-privada no sistema de saúde
movimentos subterrâneos do capital pouco brasileiro expressa a contradição fundamen-
visíveis no plano fenomênico46. tal do SUS. A contração de gastos no setor
As emendas introduzidas na Constituição público faz parte dessa problemática, quando a
(cerca de 100) implicam a ruptura do receita bruta das operadoras que atende cerca
pacto social da Nova República. A Emenda de 25% da população é superior ao orçamento
Constitucional 95 (EC-95) constitucionali- do Ministério da Saúde, responsável pela saúde
za o subfinanciamento do SUS até 203647 e de pelo menos 75% das brasileiras e brasileiros.
representa, até o presente, a mais radical das Enquanto as despesas do SUS aumentaram
intervenções voltadas para um ‘SUS reduzido’. 0,5% em valores reais entre 2012 e 2016, a
Assim, o governo aprofundou a contrarreforma receita bruta dos planos e seguros de saúde
da RSB, tornando o SUS um simulacro. O subfi- privados elevou-se em 27%. Assim, em 2016,
nanciamento crônico e o desfinanciamento o per capita da média dos planos foi 2,55 vezes
imposto pela EC-95 ao SUS comprometem a maior que o do SUS49.
universalização e a expansão de serviços pú- O Brasil ilustra de modo contundente as
blicos, tendendo ao agravamento caso seja con- tensões na construção e na defesa de um sistema
cretizada a ameaça do ministro da economia de saúde universal, sobretudo considerando as
por meio da proposta dos ‘3 D’– Desindexar, suas desigualdades sociais e de saúde, a situação
Desobrigar e Desvincular o orçamento48. de país capitalista periférico, a crise econômi-
Apesar de tudo, os oponentes que atuam ca e política, as fragilidades institucionais, o
contra a RSB têm evitado uma ‘guerra de movi- crescimento de ideologias conservadoras e ne-
mento’, o que implicaria ataque frontal e direto oliberais, bem como as ameaças à democracia.
ao SUS. Exceto na gestão do Ministério da Saúde O golpe de 2016 e as eleições presidenciais de
no Governo Temer, francamente hostil ao SUS, 2018 reforçaram esses obstáculos e ameaças, in-
os adversários do sistema universal têm sido cidindo sobre a correlação de forças no âmbito
mais sutis. Na contrarreforma que construíram das políticas de saúde.
nos últimos anos, parecem acionar mais uma Ainda assim, não é plausível a extinção do
‘guerra de posição’ ou de trincheiras, mantendo SUS. Além da força relativa dos seus defen-
parte da Constituição e das leis referentes à sores, um conjunto de interesses vinculados
saúde, porém sufocando o sistema por meio ao capital, ao Estado e às classes dominantes
do garroteamento via teto de gastos (EC-95), aponta para a sua manutenção, como recurso
terceirizações, reformas trabalhista, previden- de legitimação e cooptação ou como locus de
ciária e administrativa, bem como descons- expansão do capital. Portanto, unidade, agili-
titucionalizando direitos por meio de novas dade e efetividade continuam fundamentais
propostas de revisão constitucional – PEC 186 para a militância em defesa do SUS, da de-
Emergencial e PEC 188 do Pacto Federativo. mocracia e do projeto civilizatório da RSB.
Reconhecidos os avanços do SUS em diver- Como se advertira em outras oportunidades,
sas oportunidades, cabe concentrar a atenção, cumpre incidir sobre a correlação de forças,
presentemente, nos principais obstáculos e altamente desfavorável no presente, e acu-
ameaças tais como: a) limitadas bases sociais e mular novas energias, apostando em novas
políticas; b) interesses econômicos e financei- formas organizativas43.
ros ligados às empresas de saúde; c) proposta Castro et al.42 analisam os 30 anos do SUS,

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com seus progressos, ajudando na redução atual e da posição do ex-ministro da saúde,


das desigualdades no acesso aos serviços de explicitamente contrário ao SUS, configura-se
saúde e no alcance de resultados no estado de uma apreensão do ‘menos pior’. As tentativas
saúde. Apesar dos sucessos (42.975 equipes de de alteração das políticas de saúde mental,
saúde da família em 2018, contemplando 130 HIV/Aids e saúde indígena estão em curso,
milhões de pessoas ou 62% da população, além embora o ministro se mantenha relativamente
de 264 mil Agentes Comunitários de Saúde e afastado da agenda palaciana. Concluem que
de 26 mil equipes de saúde bucal, declínio da as políticas da área não geraram apoios nem
mortalidade infantil, hospitalizações evitáveis, rejeições visíveis e que o debate do sistema e
redução das desigualdades raciais na mortali- das políticas foi rebaixado: “As políticas de hi-
dade etc.), persistem problemas, de modo que o perajuste fiscal conjugadas com preconceitos
SUS encontra-se em uma encruzilhada diante e discriminações turbinam a desigualdade es-
das medidas de austeridade, particularmente trutural da situação de saúde no Brasil”50(268).
em relação à EC-95. Examinam possibilidades Mesmo sem a saúde ter sido objeto de in-
para o futuro, considerando cenários finan- vestidas obscurantistas deletérias em 2019,
ceiros e possíveis resultados até 2030 para o como ocorreu nas áreas de educação, cultura,
sistema de saúde brasileiro. Chamam a atenção diplomacia, direitos humanos, segurança e
para as políticas fiscal, econômica, ambiental, meio ambiente, os obstáculos estruturais e
educacional e de saúde (especialmente para conjunturais, acima analisados, persistem para
adolescentes e atenção primária) do governo o futuro do SUS. Todavia, tal como aconteceu
em 2019 que colocam numerosos riscos para em muitos países que passaram por políticas de
o SUS. Os autores reconhecem que os cená- austeridade e por tentativas de desmonte dos
rios considerados indicam o declínio das con- sistemas universais de saúde, as lutas sociais
quistas em relação à mortalidade infantil e de se colocam como um dos antídotos contra a
outros indicadores, além de possível aumento privatização e contra o retrocesso.
da sífilis e de outras Doenças Sexualmente
Transmissíveis (DST).
Mais recentemente, examinando as polí- Comentários finais
ticas de saúde do governo iniciado em 2019,
Bahia e Cardoso50 ressaltam que os 30 anos As crises econômicas configuram barreiras
do SUS, completados no ano anterior, passa- para os sistemas de saúde, embora alguns
ram quase despercebidos, enquanto o sistema autores reconheçam que representam estí-
de saúde inglês (NHS) comemorou seus 70 mulos para a reforma setorial30. Outros22,35
anos de criação em grande estilo. Atribuem às apontam os obstáculos postos contra os sis-
crises política e econômica do País a falta de temas universais de saúde em tais contextos.
reconhecimento e de debates sobre o futuro Desde a promulgação da Constituição
do sistema público no Brasil. Registram que federal de 1988, o Brasil mudou muito no
é difícil argumentar sobre os méritos de um âmbito da saúde. Não obstante os avanços
sistema universal de saúde no contexto atual. importantes, persistem problemas antigos;
O SUS, reduzido a um mecanismo de atenção e novos têm surgido, de modo que o objetivo
aos pobres, tem sido preservado; e não há maior de assegurar o direito universal à saúde,
nenhuma proposta para extingui-lo, mas a via consolidação do SUS, não foi alcançado.
saúde é um tema periférico no governo atual. A polarização epidemiológica e a regressão
Destacam que, depois da saída dos médicos sanitária, tal como observadas no México14,
cubanos, tem havido pouco espaço para polê- constituem ameaças concretas para a situação
micas na saúde. Diferentemente da educação e de saúde no Brasil nos próximos anos.
de outros ministérios da área social no governo Em 2019, pesquisadores e militantes da

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Os sistemas universais de saúde e o futuro do Sistema Único de Saúde (SUS) 23

RSB, vinculados à Associação Brasileira de revigoramento e a recuperação do SNS bus-


Saúde Coletiva (Abrasco), difundiram, na XVI cados nos últimos anos52 constituem um dos
Conferência Nacional de Saúde, um estudo bus- desafios para a próxima década, enquanto um
cando contribuir para a análise da situação de teste decisivo na defesa do Estado Social30.
saúde no Brasil, com base nos resultados de pes- Na América Latina, tem sido apontado
quisas sobre a evolução das condições de saúde um movimento pendular entre o desenvol-
da população e do sistema de saúde brasileiro vimentismo e o monetarismo neoliberal de
nos últimos 30 anos51. Os autores destacaram modo que períodos de expansão associam-
o fortalecimento do setor privado e do capital -se a desequilíbrios financeiros e monetários
na área da saúde, em detrimento do interesse que geram respostas estabilizadoras com ele-
público e do SUS, discutindo estratégias de luta vados custos sociais depois37. A Venezuela,
pelo direito à saúde no contexto atual. por exemplo, apresenta um gasto em saúde
A grave crise econômica e política, a partir predominantemente privado, mesmo com a
de 2015, assim como as incertezas geradas pelo elevação do gasto público desde o final da
governo iniciado em 2019 são ingredientes ne- década de 1990 até 2008. Depois sofreu um
gativos para o desenvolvimento do SUS. Bahia e silencioso processo de privatização do sistema
Cardoso50 ressaltam que os sistemas universais de saúde durante a crise, de forma que o gasto
de países europeus estão sendo questionados, público representava, em 2014, apenas 29,3%
presentemente, mas não desmontados. Mesmo do gasto total em saúde53, enquanto o gasto
com a crise econômica de 2008, políticas de por desembolso direto correspondeu a 64% do
austeridade, vitória eleitoral de coalizões de gasto total54. Desse modo, cabe considerar os
centro-direita e direita nos países europeus desafios comuns postos para os países diante
não erodiram a concepção de direito. da “crescente internacionalização das relações
Apesar disso, o crescimento da privatização e sociais e de produção”21(2172) e, especialmente,
o fortalecimento da competição de mercado na da financeirização dos sistemas de saúde.
saúde têm coincidido com a eleição de gover- Apesar das reformas setoriais implementa-
nos conservadores12. Constata-se um aumento das sob a égide do capital, as análises realizadas
percentual das despesas privadas em saúde sobre as experiências nos diversos países16
nos países do sul da Europa: 24,5% na Itália, indicam que os seguros de saúde, privados
30,1% na Espanha, 34% em Portugal e 39,4% na ou públicos, não superam as fortalezas dos
Grécia. Apesar do reconhecimento formal do sistemas públicos universais de saúde9,19.
direito à saúde e do acesso universal e gratuito Estes são mais eficientes, racionais e efetivos.
para todos os cidadãos, verifica-se a expansão Representam uma das grandes “histórias de
dos seguros saúde privados e o aumento de sucesso das sociedades modernas”55(33).
despesas diretas dos indivíduos e famílias com Os EUA, por exemplo, apesar de apresen-
saúde, tornando mais desiguais os sistemas tarem um gasto per capita em saúde pratica-
nacionais de saúde nesses países. Por isso a mente o dobro daquele verificado na Alemanha
pertinência de investigar as desigualdades em e no Canadá, exibem indicadores de saúde,
saúde produzidas pelas reformas setoriais e como esperança de vida e de mortalidade in-
pelas políticas de austeridade em curso23. fantil, mais desfavoráveis8. Nesse país mais
No âmbito político, a redução das desigual- rico do mundo, cerca de 46 milhões de pessoas
dades em saúde, a sustentabilidade financeira (15% da população) não tinham no início da
dos sistemas universais e a melhoria da efi- segunda década do século XXI cobertura de
ciência, qualidade e efetividade, ao lado do serviços de saúde, nem direito ao Medicaid e
desenvolvimento da regulação e da governança ao Medicare1. Portanto, propostas político-
dos serviços, inserem-se em uma agenda das -ideológicas como a Cobertura Universal em
políticas de saúde. No caso de Portugal, o Saúde (UHC) e concepções de universalidade

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sem fundamentação teórica consistente e diálogo social com estratégia para transfor-
evidências científicas suficientes parecem mar o SUS baseado no direito à saúde com
responder a outros interesses: aprendizagem da experiência internacional,
envolvendo trabalhadores do SUS, academia
É plausível supor que o interesse econômico e sociedade civil.
por trás da saturação do mercado de seguro Entretanto, não é aconselhável subestimar
privado de saúde na Europa e EUA e a crise o poder dos atores privados,
econômica de 2008 tenham influenciado a
concepção de UCH, na busca de clientela para seja nas organizações multilaterais, seja
esse mercado em países com grandes econo- nos sistemas de saúde em nível nacional,
mias, como o Brasil, Índia e África do Sul9(1768). o que exige repensar as estratégias para
preservar direitos conquistados com lutas
No sentido oposto, aumentam o debate e as seculares11(14).
disputas políticas e judiciais na comunidade
europeia, especialmente na Espanha, diante Nessa perspectiva, tornam-se fundamentais
da contrarreforma, com manifestações en- a mobilização popular pelo direito à saúde, a
volvendo a população, profissionais de saúde, montagem de coalizões políticas em defesa dos
judiciário e certas organizações, reprovando sistemas universais e públicos de seguridade
as mudanças do sistema universal34. O cresci- social e de saúde, a atuação no parlamento, a
mento das mobilizações sociais e profissionais, participação sindical, a efetivação de deman-
quando unitárias, massivas e mantidas, indica das jurídicas ( judicialização), a articulação
que é possível conter processos privatizantes. de novos e múltiplos atores nessas lutas, bem
No caso do Brasil, cumpre reiterar os esfor- como o fortalecimento da direção estatal para
ços acadêmicos e políticos para desnudar os a regulação do setor privado12,14,56.
movimentos do capital e as tentativas em curso O maior desafio nos tempos atuais continua
de modificar a universalidade, assim como sendo político: atravessar a tormenta, resistin-
os custos da desregulamentação, da interme- do aos “ataques e riscos de desmantelamento
diação financeira e da captura de recursos do SUS pelas políticas de ajuste fiscal”9(1764). As
da saúde por negócios de alta rentabilidade. lutas em defesa da democracia e das conquistas
Castro et al.42 ressaltam que a defesa da saúde civilizatórias que integram o projeto da RSB
como direito, combinada com criatividade e apontam para a pertinência de construir uma
habilidade, fez o SUS um exemplo de inova- identidade em torno do direito à saúde e de
ção de sistema de saúde na América Latina e constituir novos sujeitos sociais para a ação
uma referência para o mundo. Desse modo, política contra-hegemônica57.
formulam as seguintes recomendações: 1)
Os princípios do SUS devem ser mantidos;
2) financiamento suficiente e eficiente alo- Colaborador
cação de recursos devem ser assegurados; 3)
prestação de serviços por meio de redes inte- Paim J (0000-0003-0783-262X)* é responsá-
gradas; 4) desenvolvimento de novo modelo vel pela elaboração do manuscrito. s
de governança interfederativa; 5) expansão de
investimentos no setor saúde; 6) promoção do

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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