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HABERMAS A Inclusao Do Outro Estudos de Teoria Politica Editavel Por Vladimir Cerqueira
HABERMAS A Inclusao Do Outro Estudos de Teoria Politica Editavel Por Vladimir Cerqueira
A INCLUSÃO DO ([J)lUT~([J)
estudos de teoria política
Tradução:
George Sperber
Paulo Astor Soethe [UFPR]
TITULO ORIGINAL:
Die Einbeziehung des Anderen - Studien zur politischen Theorie
© Suhrkamp Verlag Frankfurt aro Maio 1996
Zweite Auflage 1997
Alle Rechte vorbehalten
ISBN: 3-518-58233-X
EDIÇÃO BRASILEIRA
Direção
Fidel García Rodríguez, SJ
Edição de texto
Marcos Marcionilo
Revisão
Albertina Pereira Leite Piva
Diagramação
Ronaldo Hideo lnoue
Edições Loyola
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ISBN: 85-15-02438-1
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2002
Sumário
Prefácio ................................................................................................ 7
3 "Racional" versus"verdadeiro"
-ou a moral das imagens de mundo ............................................. 89
A moderna situação de partida ............................................................... 93
De Hobbes a Kant ........................................................................................... 95
A alternativa ao procedimentalismo kantiano ............................................... 98
Uma "terceira" perspectiva para o racional .................................................. 102
O último estágio da justificação ................................................................... 105
Filósofos e cidadãos ...................................................................................... 111
O âmago do liberalismo ............................................................................... 116
7
uma relação de deferência mútua. Essa comunidade projetada de modo
construtivo não é um coletivo que obriga seus membros uniformiza-
dos à afirmação da índole própria de cada um. Inclusão não significa
aqui confinamento dentro do próprio e fechamento diante do alheio.
Antes, a "inclusão do outro" significa que as fronteiras da comunidade
estão abertas a todos- também e justamente àqueles que são estra-
nhos um ao outro - e querem continuar sendo estranhos.
A segunda parte contém uma discussão com John Rawls, para a
qual fui convidado pela redação e pelo editor do ]o urna[ ofPhilosophy.
Nela, procuro demonstrar que a teoria do discurso é mais apropriada
para formular, em termos de conceitos, as intuições morais que nor-
teiam Rawls e que me norteiam. É claro que minha réplica também
serve ao intuito de esclarecer as diferenças entre o liberalismo político
e um republicanismo kantiano tal como eu o entendo.
A terceira parte pretende contribuir para o esclarecimento de uma
controvérsia que voltou a surgir na Alemanha depois da reunificação.
Continuo a fiar a linha que iniciei outrora num ensaio sobre "Cidada-
nia e Identidade Nacional" 1• Do conceito, inspirado pelo romantis-
mo, da nação como uma comunidade de cultura e de destino, etnica-
mente enraizada, que pode reivindicar uma existência própria como
Estado, alimentam-se até hoje muitas convicções e opiniões proble-
máticas: o apelo a um pretenso direito à autodeterminação nacional,
o rechaço simétrico do multiculturalismo e da política de direitos hu-
manos, assim como a desconfiança diante da transferência de direitos
de soberania a instituições supranacionais. Os apologistas da nação-
povo deixam de perceber que são justamente as notáveis conquistas
históricas do estado nacional democrático e seus princípios constitu-
cionais republicanos os que podem dar-nos lições a respeito de como
deveríamos lidar com os problemas da atualidade, decorrentes da pas-
sagem inevitável a formas de socialização pós-nacionais.
A quarta parte ocupa-se da realização dos direitos humanos em
nível global e nacional. O bicentenário do texto sobre a Paz perpétua
dá-nos motivo para uma revisão do conceito kantiano dos direitos do
cidadão do mundo, à luz de nossa experiência histórica. Os Estados-
sujeitos, outrora soberanos, que perderam há muito a pressuposição
de inocência de que partia o direito constitucional, não podem mais
8 A INCLUSÃO DO OUTRO
invocar o princípio da não-intromissão nos assuntos internos. O de-
safio do multiculturalismo comporta-se de forma a especular em face
da questão das intervenções por motivos humanitários. Também aqui
há minorias que procuram proteger-se de seu próprio governo. Essa
discriminação assume, porém, no contexto de um Estado de direito
legítimo em seu todo, a forma mais sutil do poder pela maioria, em
que uma cultura de maioria se funde à cultura política geral. Contudo,
em oposição à proposta com unitarista de Charles Taylor, sustento que
uma "política do reconhecimento"- à qual cabe garantir, com igual-
dade de direitos, a coexistência de diferentes subculturas e formas de
vida dentro de uma só comunidade republicana - tem de cumprir
seu papel sem direitos coletivos nem garantias de sobrevivência.
A quinta parte lembra pressupostos básicos da teoria do discurso
a respeito da concepção de democracia e de Estado de direito. Esse modo
de ver a política deliberativa permite sobretudo uma maior precisão
da igualdade de origem da soberania popular e dos direitos humanos.
Já em setembro de 1992, a Cardozo School of Law de New York
organiwu uma conferência científica, por ocasião da publicação, próxi-
ma então, de Faktizitiit und Geltung. O posfácio contém, por extenso,
a minha réplica aos reparos feitos naquela oportunidade, pelos quais
sou grato.
J. H.
Starnberg, janeiro de 1996
PREFÁCIO 9
1
Uma visão genealógica do
teor cognitivo da morar
o
Frases ou manifestações morais têm, quando podem
ser fundamentadas, um teor cognitivo. Portanto, para termos
clareza quanto ao possível teor cognitivo da moral, temos de
verificar o que significa "fundamentar moralmente" alguma
coisa. Ao mesmo tempo, devemos diferenciar entre, por um
lado, o sentido dessa questão quanto à teoria da moral, ou
seja, se manifestações morais expressam algum saber e como
elas podem ser eventualmente fundamentadas, e, por outro
lado, a questão fenomenológica a respeito de qual teor cogni-
tivo os próprios participantes desses conflitos vêem em suas
manifestações morais. De início, falo em "fundamentação
moral" de maneira descritiva, tendo em vista a prática rudi-
mentar de fundamentação que tem seu lugar nas interações
cotidianas do mundo vivido.
Aqui nós pronunciamos frases que têm o sentido de exi-
gir dos outros determinado comportamento (ou seja, de
reclamar o cumprimento de uma obrigação), de fixar uma
11
forma de agir para nós mesmos (ou seja, de assumirmos uma obri-
gação), de admoestar outros ou nós mesmos, de reconhecer erros, de
apresentar desculpas, de oferecer indenizações etc. Nesse primeiro ní-
vel, as declarações morais servem para coordenar os atas de diversos
atares de um modo obrigatório. É claro que essa "obrigação" pressupõe
o reconhecimento intersubjetivo de normas morais ou de práticas
habituais, que fixam para uma comunidade, de modo convincente, as
obrigações dos atares, assim como aquilo que cada um deles pode es-
perar do outro. "De modo convincente" quer dizer que, toda vez que a
coordenação das ações fracassa no primeiro nível, os membros de uma
comunidade moral invocam essas normas e apresentam-nas como
"motivos" presumivelmente convincentes para justificar suas reivin-
dicações e críticas. As manifestações morais trazem consigo um poten-
cial de motivos que pode ser atualizado a cada disputa moral.
Regras morais operam fazendo referência a si mesmas. Sua ca-
pacidade de coordenar as ações comprova-se em dois níveis de inte-
ração, acoplados de modo retroativo entre si. No primeiro nível, elas
dirigem a ação social de forma imediata, na medida em que compro-
metem a vontade dos atares e orientam-na de modo determinado.
No segundo nível, elas regulam os posicionamentos críticos em caso
de conflito. Uma moral não diz apenas como os membros da comu-
nidade devem se comportar; ela simultaneamente coloca motivos para
dirimir consensualmente os respectivos conflitos de ação. Fazem par-
te do jogo da linguagem moral as discussões, as quais, do ponto de
vista dos participantes, podem ser resolvidas convincentemente com
ajuda de um potencial de fundamentações igualmente acessível a to-
dos. Devido a essa relação íntima com a branda força de convenci-
mento inerente aos motivos, os deveres morais recomendam-se, do
ponto de vista sociológico, como alternativa a outras espécies de solu-
ção de conflitos, não orientadas pelo acordo mútuo. Dito de outra
forma, se a moral carecesse de um teor cognitivo crível, ela não seria
superior às formas mais dispendiosas de coordenação da ação (como
o uso direto da violência ou a influência sobre a ameaça de sanções ou
a promessa de recompensas).
Quando dirigimos o olhar para as discussões morais, temos de
incluir as reações provindas dos sentimentos na classe das manifesta-
ções morais. O conceito central do dever já não se refere apenas ao teor
dos mandamentos morais, mas também ao caráter peculiar da valida-
12 A INCLUSAO DO OUTRO
ção do dever ser, que se reflete também no sentimento de assumir uma
obrigação. Posicionamentos críticos e autocríticos diante de infrações
manifestam-se em atitudes dos sentimentos: do ponto de vista de ter-
ceiros, como repulsa, indignação e desprezo; do ponto de vista do atin-
gido diante de seu próximo, como sentimento de humilhação ou de
ressentimento; do ponto de vista da primeira pessoa, como vergonha e
culpa 1• A isso correspondem, enquanto reações afirmativas dos senti-
mentos, a admiração, a lealdade, a gratidão etc. Como esses sentimen-
tos que assumem posição exprimem implicitamente juízos, a eles cor-
respondem valorações. Julgamos ações e intenções como "boas" ou
"más': enquanto o vocabulário das virtudes se refere a características
das pessoas que agem. Também nesses sentimentos e valorações mo-
rais se revela a pretensão de que os juízos morais possam ser funda-
mentados. Pois eles diferenciam-se de outros sentimentos e valora-
ções pelo fato de estar entretecidos com deveres racionalmente exigí-
veis. Nós justamente não entendemos essas manifestações como ex-
pressão de sensações e preferências meramente subjetivas.
A partir do fato de haver normas morais "em vigor" para os inte-
grantes de uma comunidade, não segue necessariamente que as mes-
mas tenham, consideradas em si, um conteúdo cognitivo. Um obser-
vador sociológico pode descrever um jogo de linguagem moral como
um fato social e pode até mesmo explicar por que os integrantes estão
"convictos" de suas regras morais, sem ele mesmo estar em condições
de acompanhar o raciocínio que explica a plausibilidade desses moti-
vos e interpretações2 • Um filósofo não pode dar-se por satisfeito com
isso. Ele aprofundará a fenomenologia das respectivas disputas mo-
rais para descobrir o que os participantes fazem quando (acreditam)
justificar algo moralmente3 • É claro que "perscrutar" significa algo dife-
14 A INCLUSAO DO OUTRO
atribui às valorações "fortes" um status epistêmico. A consciência re-
flexiva daquilo que, considerado como um todo, é "bom" para mim
(ou para nós) ou queé"determinante"para o meu (ou o nosso) modo
consciente de levar a vida torna possível (na tradição de Aristóteles ou
de Kierkegaard) uma espécie de acesso cognitivo às orientações de valor.
Aquilo que, em cada caso, é valioso ou autêntico impõe-se-nos, em
certa medida, e diferencia-se das meras preferências por meio de uma
qualidade obrigatória, que remete para além da subjetividade das ne-
cessidades e das preferências. Contudo, a compreensão intuitiva de
justiça é revista. A partir da perspectiva de uma concepção própria e
individual do bem, a justiça adaptada às relações interpessoais apre-
senta-se como apenas um valor (seja qual for sua forma de pronun-
ciação), junto a outros valores, e não como escala de medida para jul-
gamentos imparciais, independente dos contextos.
O cognitivismo severo quer, ainda, fazer justiça à reivindicação
categórica de validade dos deveres morais. Ele tenta reconstruir o con-
teúdo cognitivo do jogo moral de linguagem em toda a sua amplidão.
Diferentemente do neo-aristotelismo, na tradição kantiana não se trata
do esclarecimento de uma práxis de fundamentação moral, que se mo-
vimenta dentro do horironte de normas reconhecidas e incontestes,
mas da fundamentação de um ponto de vista moral, a partir do qual
tais normas podem ser julgadas em si de forma imparcial. Aqui a teo-
ria moral fundamenta a possibilidade da fundamentação, na medida
em que reconstrói o ponto de vista que os próprios membros das so-
ciedades pós-tradicionais assumem intuitivamente, quando, diante de
normas morais básicas que se tornaram problemáticas, só podem re-
correr a motivos sensatos. Porém, diferentemente das formas de jogo
empíricas do contratualismo, esses motivos não são concebidos como
motivos relativos aos atores, de modo que o núcleo epistêmico dava-
lidade do dever ser permanece intato.
Em primeiro lugar, caracterizarei a situação inicial, na qual a fun-
damentação religiosa para a validade da moral é desvalorizada (II).
Esse é o pano de fundo para um questionamento genealógico, diante
do qual eu gostaria de examinar as duas variantes do empirismo clás-
sico (III), duas interessantes tentativas de renovação do programa de
explicação empirista (IV-V) e as duas tradições que remontam a Aris-
tóteles (VI) e a Kant (VII). Tudo isso serve para preparar as duas ques-
tões sistemáticas, a respeito de quais intuições morais é possível re-
16 A INCLUSÃO DO OUTRO
morais uma força de convencimento pública. Eles explicavam por que
os mandamentos de Deus não são ordens cegas, mas podem requerer
validação própria, em um sentido cognitivo. Se mesmo sob as condi-
ções de vida moderna não há um equivalente funcional para a moral
como ela mesma, e se o jogo de linguagem moral não pode ser sim-
plesmente substituído por um controle qualquer do comportamento
-percebido como tal-, então o sentido cognitivo de validade com-
provado fenomenologicamente leva-nos a perguntar se a força per-
suasiva de normas e valores já aceitos é algo assim como uma aparên-
cia transcendental ou se ela pode ser justificada também sob condi-
ções pós-metafísicas. A filosofia moral não precisa apresentar ela pró-
pria os fundamentos e as interpretações que, nas sociedades seculari-
zadas, ocupam o lugar dos fundamentos e das interpretações religio-
sas desvalorizadas- ao menos publicamente. Contudo, ela precisaria
designar o gênero de fundamentos e interpretações que poderiam as-
segurar ao jogo de linguagem moral uma força de convicção suficien-
te, também sem uma retaguarda religiosa. Tendo em vista esse ques-
tionamento genealógico, gostaria de ( 1) lembrar a base de validação
monoteísta de nossos mandamentos morais e (2) determinar mais
precisamente o desafio proveniente da moderna situação de partida.
(1) A Bíblia origina os mandamentos morais na revelação da pa-
lavra de Deus. Esses mandamentos devem ser objeto de obediência
imediata, pois estão munidos da autoridade de um Deus onipotente.
Nessa medida, a validade de seu dever ser estaria munida apenas da
qualidade de um "dever': na qual se reflete o poder ilimitado de um
soberano. Deus pode obrigar à obediência. Essa interpretação volunta-
rista, porém, ainda não confere à norma um sentido cognitivo. Esse,
ela o ganha apenas pelo fato de que os mandamentos morais são inter-
pretados como manifestações da vontade de um Deus onisciente e ab-
solutamente justo e bondoso. Os mandamentos não surgem do arbítrio
de um todo-poderoso, mas são manifestações da vontade de um sábio
deus criador, que é também um deus salvador justo e bondoso. A par-
tir das duas dimensões da ordem da criação e da história da salvação
podem ser obtidos fundamentos ontoteológicos e soteriológicos para
o fato de os mandamentos divinos serem dignos de aceitação.
A justificação ontoteológica recorre a uma instalação do mundo
devido à sábia legislação do deus criador. Ela confere ao homem e à
comunidade humana um status destacado em meio à criação e, com
18 A INCLUSÃO DO OUTRO
pode se fazer representar por outro diante de Deus. Essa estrutura co-
municacional marca o relacionamento moral- mediado por Deus-
com o próximo, sob os pontos de vista da solidariedade e da justiça (en-
tendida apenas num sentido mais estrito). Enquanto membro da corou-
nidade universal dos fiéis, estou solidariamente unido ao outro, como
companheiro, como "um dos nossos"; como indivíduo insubstituível
eu devo ao outro o mesmo respeito, como "uma entre todas" as pessoas,
que merecem um tratamento justo enquanto indivíduos inconfundí-
veis. A "solidariedade" baseada na qualidade de membro lembra o liame
social que une a todos: um por todos. O igualitarismo implacável da
"justiça" exige, pelo contrário, sensibilidade para com as diferenças que
distinguem um indivíduo do outro. Cada um exige do outro o respeito
por sua alteridade5• A tradição judeu-cristã considera a solidariedade
e a justiça como dois aspectos de uma mesma questão: elas permitem
ver a mesma estrutura comunicacional de dois lados diferentes.
(2) Com a passagem para o pluralismo ideológico nas socieda-
des modernas, a religião e o ethos nela enraizado se decompõem en-
quanto fundamento público de validação de uma moral partilhada
por todos. Em todo caso, a validação de regras morais obrigatórias
para todos não pode mais ser explicada com fundamentos e interpre-
tações que pressupõem a existência e o papel de um deus transcen-
dental, criador e salvador. Com isso, suprime-se por um lado a au-
tenticação ontoteológica de leis morais objetivamente racionais e, por
outro lado, a ligação soteriológica de sua justa aplicação com bens
salvacionistas objetivamente almejáveis. Aliás, a desvalorização de
conceitos metafísicas básicos (e da correspondente categoria de ex-
plicações) também está relacionada com um deslocamento da auto-
ridade epistêmica, que passa das doutrinas religiosas às modernas
ciências empíricas. Com os conceitos essenciais da metafísica dissol-
ve-se a correlação interna das proposições assertivas com as correspon-
dentes proposições expressivas, avaliatórias e normativas. Aquilo que
é "objetivamente razoável" só pode ser fundamentado na medida em
que o justo e o bom estão fundamentados no ente impregnado da
norma. Aquilo que é "objetivamente almejável" só pode ser funda-
20 A INCLUSAO DO OUTRO
-O utilitarismo, embora ofereça um princípio para fundamen-
tar os julgamentos morais, não permite uma reconstrução apro-
priada do sentido da normatividade por causa de sua orientação
pelo benefício total esperado de determinado modo de agir. O
utilitarismo falha sobretudo ao desconhecer o sentido individu-
alista de uma moral do respeito igual devido a todos.
- O ceticismo fundamentado de forma inetaética leva, como já
foi dito, a descrições revisionistas do jogo de linguagem moral
que perdem o contato com o sentido comum dos participantes.
Elas não podem explicar o que querem explicar: as práticas mo-
rais do cotidiano, que desmoronariam, se os participantes negas-
sem todo conteúdo cognitivo às suas disputas morais8 •
- O funcionalismo moral não é tradicionalista no sentido em
que retorna a padrões de fundamentação pré-modernos. Ele in-
voca a autoridade das tradições religiosas abaladas, mas o faz por
fundamentado, a cuja luz a razão prática aparece como uma disposição natural, que
pode reivindicar objetivamente a sua validade: "Our Bildung actualizes some of the
potentialities we are born with; we do not have to suppose it introduces a non-animal
ingredient into our constitution. And although the structure of the space of reasons
cannot be reconstructed out of facts about our involvement in the 'realm of law', it can
be the framework within which meaning comes into view only because our eyes can be
opened to it by Bildung, which is an element in the normal coming to maturity of the
kind of animais we are. Meaning is nota mysterious gift from outside nature" ["Nossa
Bildung [educação, formação I atualiza algumas das potencialidades com as quais nas-
cemos; não temos que supor que ela introduza um ingrediente não animal em nossa
constituição. E embora a estrutura do espaço das razões não possa ser reconstruída a
partir dos fatos relativos a nosso envolvimento no 'campo da lei', pode ser a moldura
dentro da qual o significado salta à vista somente porque os nosso olhos podem ser
abertos a ela pela Bildung, a qual é um elemento no caminho normal para a idade
madura no tipo de animal que nós somos. O significado não é um dom misterioso de
fora da natureza." (88) McDowell não nega, de forma alguma, a pretensão metafísica
dessa concepção, que não posso discutir aqui em detalhe: "The position is a naturalism
of second nature, and I suggested that we can equally see it as a naturalized platonism.
The idea is that the dictates of reason are there anyway, wether or not one's eyes are
opened to them; that is what happens in a proper upbringing" ["A posição é um natu-
ralismo de segunda natureza, e eu sugeri que também podemos vê-la como um plato-
nismo naturalizado. A idéia é que os ditames da razão estão lá de qualquer modo,
estejam nossos olhos abertos para eles ou não. Isso é o que acontece num processo
apropriado de educação") (91).
8. Cf. H. Lenk, "Kann die sprachanalytische Moralphilosophie neutral sein?"
[Pode a filosofia moral baseada na análise lingüística ser neutra?) in: M. Riedel (ed.),
Rehabilitíerung der praktischen Philosophie, vol. II, Freiburg 1974, 405-422.
9. Cf. E. Tugendhat, Vorlesungen über Ethik, Frankfurt am Main 1993, 199ss. [ed.
br.: Lições sobre ética, Petrópolis, Vozes, 1997].
10. Para a comparação entre razão objetiva e razão subjetiva, c( M. Horkheimer,
Zur Kritik der instrumentellen Vernunft, Frankfurt am Main 1967; H. Schnãdelbach,
"Vernunft". ln: E. Martens, H. Schnãdelbach (ed.), Philosophie, Hamburg 1985,77-115.
22 A INCLUSÃO DO OUTRO
suportem julgamentos ou opiniões, tal como o fazem as razões epis-
têmicas. Elas constituem motivos racionais para os atos, não para as
convicções. Claro que elas "afetam" a vontade apenas na medida em
que o sujeito atuante se apropria de determinada regra de ação. É
fundamentalmente nisso que reside a diferença entre os atos premedi-
tados e os atas motivados espontaneamente. Também um "propósito"
é uma disposição; mas essa, à diferença da "tendência': só se constitui
mediante a liberdade do arbítrio, a saber, na medida em que um ator
adota uma regra de ação. O ator age racionalmente quando o faz a par-
tir de razões, e quando sabe por que está seguindo uma máxima. O em-
pirismo só leva em consideração razões pragmáticas, ou seja, o caso
em que um atar deixa vincular seu arbítrio, pela razão instrumental,
às "regras de destreza" ou aos "conselhos da prudência" (como diz Kant).
Assim, ele obedece ao princípio da racionalidade dos fins: "Quem quer
um fim, também quer (na medida em que a razão tem uma influência
decisiva sobre seus atos) o meio imprescindível para tanto, que está
em seu poder" (Fundamentação da Metafísica dos Costumes, BA 45).
Sobre essa base, os dois enfoques clássicos do empirismo recons-
troem o cerne racional da moral. A filosofia moral escocesa parte de
sentimentos morais e entende por moral aquilo que funda a coerência
solidária de uma comunidade (a). O contratualismo refere-se imedia-
tamente aos interesses e entende por moral aquilo que garante a jus-
tiça de um trânsito social normativamente regulado (b). As duas teo-
rias defrontam-se, no fim, com a mesma dificuldade: elas não podem
explicar apenas com motivos racionais a obrigatoriedade dos deveres
morais, que remete para além da força obrigatória da inteligência.
(a) Posicionamentos morais exprimem sentimentos de aprova-
ção ou reprovação. Hume os entende como os sentimentos típicos de
um terceiro que julga as pessoas agentes a partir de uma distância be-
nevolente. Uma congruência no julgamento moral de um caráter sig-
nifica portanto uma convergência de sentimentos. Mesmo que a apro-
vação e a reprovação exprimam simpatia e rejeição, sendo portanto de
natureza emocional, é racional para um observador reagir desse modo.
Porque nós consideramos que uma pessoa é virtuosa se demonstrar
ser útil e agradável (useful and agreeable) para nós e para nossos ami-
gos. Essa demonstração de simpatia, por sua vez, enche a pessoa vir-
tuosa de orgulho e satisfação, enquanto a repreensão mortifica o recrimi-
nado e, portanto, desperta nele desprazer. Por isso é que também há
11. A. C. Baier, Moral Prejudices, Cambridge, Mass. 1994, 184ss. Em vez da sim-
patia, Baier recorre ao fenômeno da confiança infantil: "Trust. .. is letting other
persons ... take care of something the truster cares about, where such 'caring for' involves
some exercise of discretionary powers" !"Confiança ... é deixar outros ... tomar conta
de algo que aquele que confia tem em alta conta, 'tomar conta' implicando algum exer-
cido de poder discricionário"] ( 105) .Isso tem a vantagem de que a consideração moral,
vista com fidelidade fenomenológica, pode ser descrita como uma compensação rica
em facetas entre independência e vulnerabilidade; ao mesmo tempo, porém, tem ades-
vantagem de que, ao transferir o modelo desenvolvido a partir das relações assimétricas
entre pais e filhos para as relações simétricas entre adultos, surge o problema da con-
fiabilidade e do abuso de confiança (cf. capítulos 6, 7 e 8).
24 A INCLUSÃO DO OUTRO
com as pessoas que conhece face a face em favor de urna solidariedade
para com estranhos. Contudo, quando as dimensões de urna comuni-
dade de seres morais que merecem igual respeito ultrapassam o limite
do compreensível, os sentimentos constituem urna base evidentemen-
te estreita demais para a solidariedade entre seus rnernbros 12 •
(b) O contratualisrno deixa de lado logo de início o aspecto da
solidariedade, porque refere a questão da fundamentação normativa
de um sistema de justiça imediatamente aos interesses do indivíduo
- e com isso desloca a moral dos deveres para os direitos. A figura
mental jurídica do direito subjetivo a campos de ação garantidos pela
lei para a persecução dos interesses individuais vai ao encontro de urna
estratégia de fundamentação que opera com motivos pragmáticos e
que se orienta pela pergunta sobre ser ou não racional que o indiví-
duo subordine sua vontade a um sistema de regras. Para além disso, a
figura generalizada do contrato, que provém do direito privado e fun-
damenta tais direitos simetricamente, é apropriada para a construção
de urna ordem baseada no livre acordo. Tal ordem é justa, ou é boa no
sentido moral, quando satisfaz uniformemente os interesses de seus
participantes. O contrato social surge da idéia de que qualquer aspi-
rante precisa ter um motivo racional para se tornar participante de
livre e espontânea vontade e para submeter-se às normas e procedi-
mentos correspondentes. O conteúdo cognitivo daquilo que faz com
que urna ordem seja moral ou justa repousa, portanto, na aquiescência
agregada de todos e de cada um dos participantes; ele se explica mais
acuradarnente a partir da racionalidade da avaliação dos bens que
cada um deles efetua a partir da sua própria perspectiva de interesses.
Esse enfoque se defronta com duas objeções. Por um lado, a as-
similação das questões morais às questões da justiça política de urna
associação de pessoas que integram o mesmo sistema jurídico 13 tem a
desvantagem de que com base nela não é possível fundamentar um
12. O problema da relação de sentimentos para com estranhos também não pode
ser solucionado pela transformação de simpatia ou confiança em compaixão. Embora
nossa capacidade de acompanhar no sentimento as criaturas capazes de sofrimento vá
bem além do que os sentimentos positivos diante de pessoas úteis, agradáveis e dignas
de confiança, a compaixão não é uma base suficiente para fundamentar um respeito
igual perante outros, também e justamente em sua alteridade, que não podemos acom-
panhar no sentimento.
13. Cf. Mackie (1977); idem, "Can there be a right-based Moral Theory?" in:
Waldron (ed.), Theories of Right, Oxford 1984, 168-181.
14. Cf. E. Tugendhat, "Zum Begriff und zur Begründung der Moral". ln: idem,
Philosophische Aufoatze, Frankfurt am Main 1992,315-333.
15. E. Tugendhat (1993}, 75.
16. Cf. J. Elster, The Cement ofSociety, Cambridge 1989, cap. 3.
26 A INCLUSAO DO OUTRO
bém não há um caminho que leve diretamente de volta aos sentimen-
tos de reprovação internalizada a partir da fundamentação contratua-
lista de uma ordem normativa. Sentimentos morais exprimem posicio-
namentos, os quais implicam juízos morais. E, no caso de um conflito,
nós não discutimos a respeito da validade dos juízos morais apenas
com motivos pragmáticos ou preferenciais. O empirismo clássico não
dá conta desse fenômeno, porque exclui motivos epistêmicos. Em úl-
tima instância, ele não pode explicar a força vinculatória das normas
morais a partir das preferências.
28 A INCLUSÃO DO OUTRO
elementos reguladores com funções de coordenação ao longo da evo-
lução do gênero humano. A normatividade das regras que fazem pa-
recer racional aos membros dos grupos cooperativos ter tais senti-
mentos, ou seja, reprovar comportamentos que se desviem da norma,
assim como oferecer ou esperar desculpas condizentes como repara-
ção por um fracasso na coordenação dos atos, não possui uma racio-
nalidade que possa ser reconhecida pelos próprios participantes. Con-
tudo, para um observador, a autoridade que se manifesta nos juízos
de racionalidade dos participantes explica-se a partir do "valor re-
produtivo" das normas internalizadas e das correspondentes atitudes
dos sentimentos. O fato de elas serem vantajosas do ponto de vista
da evolução deve ficar expresso por seu caráter subjetivamente con-
vincente. A tarefa filosófica propriamente dita consiste, então, em
estabelecer uma conexão plausível entre aquilo que é funcional para
o observador e aquilo que é considerado racional pelos participantes.
Esse problema torna-se palpável no mais tardar quando os autores
não mais podem confiar apenas nas normas internalizadas, mas pas-
sam a discutir explicitamente quais são as normas que devem admitir
como válidas.
A língua funciona, aliás, como o mais importante meio de coor-
denação das ações. Juízos e posicionamentos morais que se apóiam
em normas internalizadas se exprimem numa linguagem carregada
de emoções. Contudo, quando o consenso normativo de fundo des-
morona e novas normas precisam ser elaboradas, faz-se mister outra
forma de comunicação. Nessas circunstâncias, os participantes preci-
sam confiar na força orientadora dos "discursos normativos": "I shall
call this influence normative governance. lt is in this governance of
action, belief and emotion that we might find a place for phenomena
that constitute acceptance of norms, as opposed to merely internali-
zing them. When we work out at a distance, in community, what to do
or think or feel in a situation we are discussing, we come to accept
norms for the situation" 20 •
21. Gibbard (I 992 ), 193 "A speaker treats what he is saying as an objective matter
of rationality ifhe can demand its acceptance by everybody. More precisely, the test is
this: could he coherently make his demands, revealing their grounds, and still not
browbeat his audience? What makes for browbeating in this test is a question of conver-
sational inhibitions and embarassments." [Um falante trata aquilo que diz como uma
questão de racionalidade objetiva se ele puder pedir a sua aceitação por parte de todos.
Mais precisamente, o teste é este: poderia ele fazer coerentemente os seus pedidos,
revelando os seus motivos, e ainda assim não intimidar o seu público? O que leva a
intimidar neste teste é uma questão de embaraços e inibições conversacionais.)
30 A INCLUSAO DO OUTRO
dade 22 . Portanto, não causa surpresa o fato de que as normas que
ganham aceitação sob essas condições resultam, no fim, numa moral
da responsabilidade igual para todos. Como o processo discursivo
não foi moldado no sentido da mobilização dos motivos melhores,
mas pela capacidade de contágio das expressões mais impressio-
nantes, não se pode falar aqui em "fundamentação".
Por isso, Gibbard precisa explicar por que, sob condições de co-
municação pragmaticamente excelentes, elas deveriam encontrar
anuência justamente nas normas que demonstram ser as melhores do
ponto de vista funcional de seu "valor de sobrevivência", objetiva-
mente elevado e específico: "ln normative discussion we are influenced
by each other, but not only by each other. Mutual influence nudges
us towards consensus, if ali goes well, but not toward any consensus
whatsoever. Evolutionary considerations suggest this: consensus may
promote biological fitness, but only the consensus of the right kind. The
consensus must be mutually fitness-enhancing, and so to move toward
it we must be responsive to things that promote our biological fit-
ness"23. Gibbard percebe o problema que reside no fato de os resulta-
dos obtidos a partir da perspectiva de pesquisa objetiva terem de ser
juntados aos resultados de que os participantes da discussão se con-
vencem, por considerá-los sensatos a partir de sua própria perspec-
tiva. Qualquer procura por uma explicação será, contudo, vã. Não se
fica sabendo por que as condições improváveis de comunicação dos
discursos normativos deveriam ser "seletivas" no mesmo sentido e por
que deveriam levar ao mesmo resultado de um incremento da pro-
babilidade de sobrevivência coletiva, esperável dos mecanismos da
evolução natural 24 .
32 A INCLUSÃO DO OUTRO
munidade; elas dependem de orientações de valor precedentes, inter-
subjetivamente compartilhadas. Em todo caso, esses motivos não expli-
cam por que poderia ser racional, para os atores que se encontram num
estado pré-moral e que só conhecem esse estado, passar para um estado
moral. Quem formula de antemão as razões de sua decisão em favor de
uma vida moral, as quais só poderiam surgir da reflexão sobre as vanta-
gens jâ experimentadas de um contexto interativo moralmente regra-
do, deixou de lado a visão egocêntrica de uma escolha racional e, em
seu lugar, orienta-se por concepções do bem viver. Ele submete sua
reflexão prâtica à questão ética sobre qual o tipo de vida que ele deveria
levar, sobre quem ele é e quem quer ser, o que é bom para ele, para o
todo, e a longo prazo etc. Razões que recaem sob esse ponto de vista só
ganham força motivadora no sentido em que tangem a identidade e a
autoconsciência de um ator jâ formado por uma comunidade moral.
É assim que também Martin Seel entende (e aceita) esse argu-
mento. Embora a felicidade de uma vida bem-sucedida não resida numa
vida moral, hâ do ponto de vista de um sujeito que se preocupa com
seu bem viver razões racionais para se envolver com circunstâncias
morais (sejam quais forem). Jâ a partir da perspectiva ética é possível
reconhecer que não pode haver um bem viver fora de uma comunida-
de moral. É claro que isso quer dizer apenas que "hâ interfaces neces-
sârias entre um bem viver e uma vida moral, mas não quer dizer, pelo
contrârio, que o bem viver seja possível somente dentro dos limites de
um bem viver moral" 26 • Tugendhat, porém, interessa-se menos pelo
relacionamento entre o bem viver e a moral, e mais pela fundamenta-
ção ética de ser moral. E essa só pode levar a um paradoxo, caso se
insista na diferença entre o que é bom para cada um e a consideração
moral pelos interesses dos outros - como faz Tugendhat, com razão.
Na medida em que um ator se deixa convencer, por motivos éticos, de
que deveria preferir as circunstâncias de vida morais às pré-morais, ele
relativiza o sentido vinculatório da consideração moral pelos outros,
cuja validade categórica ele deveria admitir sob essas circunstâncias.
Seel registra a circunstância de que "a consideração moral. . . (é
transcendente) em face das razões preferenciais que temos para ao me-
nos observar o respeito moral'm. Mas ele não tira disso conclusões cor-
26. M. Seel, Versuch über die Form des Glücks, Frankfurt am Main 1995, 206.
27. Seel (1995), 203s.
28. Seel (1995), 203: "Embora à pergunta 'ser moral para quê?' possa ser dada
uma resposta bastante- ou apenas- preferencialmente fundamentada: porque ape-
nas o ser moral torna o mundo mais amistoso e abre a convivência solidária com os
outros; mas com este passo fundamentado preferencialmente nós aceitamos padrões
de comportamento que de nenhuma forma são deduziveis de orientações preferen-
cialmente fundamentadas.»(203)
34 A INCLUSÃO DO OUTRO
tamente quais normas morais eles deveriam se pôr de acordo. Nessa
questão ninguém pode reivindicar mais autoridade do que qualquer
outro; todos os pontos de vista para um acesso privilegiado à verdade
moral estão invalidados. O contrato social não tinha conseguido dar
uma resposta satisfatória ao desafio dessa situação, porque a partir de
um acordo orientado pelos interesses entre parceiros contratuais só pode
surgir, no melhor dos casos, um controle de comportamento social
imposto de fora para dentro, mas não uma concepção vinculatória a
respeito de um bem comum, nem muito menos a concepção de um
bem concebido universalisticamente. Tugendhat descreve a situação de
partida de modo semelhante à minha proposta. Os membros de uma
comunidade moral não demandam um controle de comportamento
social vantajoso para todos que possa ocupar o lugar da moral; eles não
querem substituir o jogo moral de linguagem como tal, mas apenas a
base religiosa de sua validação.
Esse questionamento leva à reflexão sobre as bases para o acordo
que, depois da religião e da metafísica, restaram como ilnico recurso
possível para a fundamentação de uma moral da consideração igual
para todos: "Se o que é bom deixa de ser prescrito de forma transcen-
dente, o respeito pelos membros da comunidade, que passa a ser ilimi-
tado, ou seja, o respeito por todos os outros - por sua vontade e seus
interesses - é que, segundo parece, passa a fornecer os princípios da
bondade': Ou para dizê-lo de modo mais marcante: a intersubjetividade
assim entendida passa a ocupar o lugar da prescrição transcendente ( ... ).
Como são as obrigações mútuas ( ... ) o que perfaz a forma de qualquer
moral, pode-se dizer também: na medida em que o conteúdo, ao qual
se referem as reivindicações, nada mais é do que o respeito por aquilo
que todos querem, agora o conteúdo corresponde à formd 9 •
Dessa forma Tugendhat chega ao princípio kantiano da generali-
zação a partir das condições simétricas da situação de partida, na qual
se confrontam as partes, destituídas de todos os seus privilégios e que,
nessa medida, estão em igualdade de condições para entrar num acor-
do sobre as normas fundamentais, que podem ser aceitas racional-
mente por todos os participantes30 • É claro que ele não dá satisfações a
36 A INCLUSÃO DO OUTRO
se dissolve na razão instrumental, muda a constelação de razão e von-
tade- e com isso o conceito da liberdade subjetiva. Então, a liberdade
não mais se esgota na capacidade de vincular o arbítrio às máximas da
inteligência, mas se manifesta na autovinculação da vontade pelo dis-
cernimento. "Discernimento" significa aqui que uma decisão pode ser
justificada com a ajuda de razões epistêmicas. Em geral, razões epistê-
micas sustentam a verdade de declarações assertivas; em situações prá-
ticas, a expressão "epistêmico" carece de uma explicação. Razões prag-
máticas referem-se às preferências e metas de uma pessoa. Em última
análise, quem decide a respeito desses "dados" é a autoridade epis-
têmica do próprio ato r, que tem de saber quais são suas preferências e
metas. Uma reflexão prática só pode conduzir ao "discernimento" se
se estender para além do mundo do ator, de acesso subjetivamente
privilegiado, para um mundo intersubjetivamente compartilhado.
Assim a reflexão sobre experiências, práticas e formas de vida comuns
torna consciente um saber ético, do qual não dispomos graças apenas
à autoridade epistêmica da primeira pessoa.
A conscientização de algo implicitamente sabido não significa o
mesmo que a cognição de objetos ou fatos 31 . "Cognições" são contra-
intuitivas, enquanto os "discernimentos" obtidos pela reflexão explici-
tam um saber pré-teórico, organizam-no em contextos, examinam a
sua coerência e, através disso, também fazem a sua sondagem crítica32 •
Os "discernimentos" éticos devem-se à explicação daquele saber que
os indivíduos comunicativamente socializados adquiriram na medida
em que cresceram para dentro de sua cultura. No vocabulário avalia-
dor e nas regras de aplicação das sentenças normativas sedimentam-
se as partes constitutivas mais gerais do saber prático de uma cultura.
À luz de seus jogos de linguagem impregnados de elementos de ava-
liação, os atores desenvolvem não apenas representações de si próprios
e da vida que gostariam de levar em geral; eles também descobrem em
cada situação traços de atração e de rejeição, os quais não podem en-
tender sem "ver" como devem reagir a eles33 . Como sabemos intuitiva-
31. B. Williams, Ethics and the Limits of Philosophy, London, 1985, cap. 8.
32. John Rawls fala neste contexto em 'reflective equilibrium' [equilíbrio re-
flexivo].
33. McDowell insurge-se contra uma interpretação objetivista destas 'salient
features' [características salientes] de uma situação: "The relevant notion of salience
cannot be understood except in terms of seeing something as a reason for acting which
silences ali others': [A relevante noção da saliência não pode ser entendida a não ser
em termos de ver algo como uma razão para agir, a qual silencia todas as outras. I
McDowell, "Virtue and Reason", Monist, 62, 1979, 345. Ele explica "discernimentos"
éticos a partir da interação entre, por um lado, a orientação da vida e a autoconsciência
de uma pessoa, e pelo outro, a sua compreensão de cada situação, impregnada de valo-
res. Essas análises ainda podem ser entendidas- para aquém do realismo- no sen-
tido de uma ética neo-aristotélica instruída por Wittgenstein.
34. Cf. }. McDowell, "Are Moral Requirements Hypotheticallmperatives?", Pro-
ceedings of the Aristotelian Society, supl. 52, 1978, 13-29.
38 A INCLUSÃO DO OUTRO
preferências e metas não são mais algo dado, mas são elas mesmas
passíveis de discussão 35 • Dependendo de minha autoconsciência e por
meio da reflexão sobre aquilo que para nós, dentro do horizonte de nos-
so mundo compartilhado, tem um valor intrínseco, elas podem mu-
dar de um modo fundamentado.
Sob o ponto de vista ético nós esclarecemos, portanto, questões
clínicas de uma vida que está sendo bem-sucedida, ou melhor, que
não está indo pelo caminho errado, as quais se colocam no contexto
de determinada forma de vida ou de uma história de vida individual.
A reflexão prática é executada na forma de um auto-entendimento
hermenêutico. Ela articula valorações fortes, pelas quais orienta-se
minha autoconsciência. A crítica das auto-ilusões e dos sintomas de
uma forma de vida forçada ou alienada mede-se na idéia de uma vida
vivida de modo consciente e coerente. Aqui, a autenticidade de um
projeto de vida, analogamente à pretensão de veracidade de atos ex-
pressivos de linguagem, pode ser compreendida como uma pretensão
de validade de grau mais elevado36•
O modo como sentimos nossa vida está mais ou menos determi-
nado pelo modo como nós mesmos nos entendemos. Por isso os dis-
cernimentos éticos sobre a interpretação dessa autocompreensão in-
tervêm na orientação de nossa vida. Como discernimentos que vincu-
lam a vontade, eles provocam uma condução consciente da vida. Nisso
se manifesta a vontade livre no sentido ético. Do ponto de vista ético,
a liberdade de vincular meu arbítrio a máximas da prudência se trans-
forma na liberdade de decidir-me por uma vida autêntica37 •
É claro que os limites dessa forma de ver ética aparecem logo que
entram em jogo questões a respeito da justiça, pois a partir dessa pers-
pectiva a justiça é rebaixada a um valor junto a outros valores. Obriga-
ções morais são mais importantes para uma pessoa do que para outra,
têm maior significado num contexto do que noutro. É certo que, tam-
bém do ponto de vista ético, pode-se levar em conta a diferença semân-
tica entre vinculação ao valor e obrigação moral, dando certa prioridade
35. Cf. Charles Taylor, As fontes do self, São Paulo, Edições Loyola, 1997, parte I.
36. Também as teorias, por exemplo, colocam uma pretensão de validade "mais
elevada» ou mais complexa; elas não podem ser "verdadeiras» ou "falsas» no mesmo
sentido que cada uma das proposições delas deduzidas.
37. A exacerbação existencialista desta decisão para uma escolha radical confim-
de essa liberdade com um processo epistemicamente dirigido.
38. ["A vida ética em si é importante, mas ela pode ver que outras coisas além dela
mesma são importantes ... Há uma espécie de consideração ética que conecta direta-
mente importância e prioridade deliberativa, e ela é a obrigação.") Williams ( 1985 ), 184s.
39. ["Estas espécies de obrigações muitas vezes comandam a mais elevada prio-
ridade deliberativa ... Contudo, também podemos ver como elas nem sempre preci-
sam comandar a mais elevada prioridade, mesmo em agentes eticamente bem dispos-
tos.") Williams (1985), 187.
40 A INCLUSÃO DO OUTRO
de vista do conteúdo, suficientemente informativa, deve (sobretudo
com vistas à felicidade das gerações futuras) levar a um paternalismo
insuportável; uma concepção isenta de substância, distanciada de to-
dos os contextos locais, deve destruir o conceito do bem 40 •
Se pretendemos levar em consideração a presumida imparcia-
lidade dos julgamentos morais e a pretensão categórica de validade
das normas vinculatórias, temos de desatrelar a perspectiva horizontal
(dentro da qual são regradas as relações interpessoais) da perspectiva
vertical (a dos projetas individuais de vida), e tornar independente a
resposta a perguntas genuinamente morais. A pergunta abstrata so-
bre o que é do interesse uniforme de todos ultrapassa a pergunta ética
contextualizada a respeito do que é o melhor para nós. A intuição de
que as questões da justiça surgem de uma ampliação idealizadora do
questionamento ético continua, porém, fazendo sentido.
Se interpretarmos a justiça como aquilo que é igualmente bom
para todos, o "bem" contido na moral constitui uma ponte entre a
justiça e a solidariedade. Pois também a justiça entendida universalis-
ticamente exige que uma pessoa responda pela outra - e que, aliás,
cada um também responda pelo estranho, que formou a sua identida-
de em circunstâncias de vida totalmente diferentes e entende-se a si
mesmo à luz de tradições que não são as próprias. O bem na justiça
lembra que a consciência moral depende de determinada autocom-
40. Martin Seel ( 1995) esforça-se em encontrar tal conceito formal do bem. Mas
a idéia de uma determinação formal do bem, diferente da moral no sentido kantiano,
é um espeto de pau. A tentativa de Seel de explicar a constituição e as condições de
uma vida bem-sucedida não pode abrir mão da designação de bens fundamentais (se-
gurança, saúde, liberdade de ir e vir), de conteúdos (trabalho, interação, jogo e con-
templação) e de metas da condução da vida (autodeterminação com abertura para o
mundo). Essas são pressuposições e valorações antropológicas faliveis, que não apenas
são controvertidas de uma cultura para outra, mas que aqui, no diálogo intercultural,
permanecem controvertidas por bons motivos. Também uma compreensão não-criterial
de tal projeto das possibilidades humanas tem conseqüências paternalistas, mesmo
quando apenas pretende encaminhar conselhos bem-intencionados: "Mas se alguém
não quiser este bem? Teremos de dizer-lhe que está renunciando ao melhor".( 189) O
conteúdo manifesto de uma antropologia do bem, que for além do esclarecimento da
argumentação lógica das condições dos discursos hermenêuticos de auto-interpreta-
ção, fica preso de modo peculiar ao contexto de seu surgimento -como o demonstra
o exemplo de Heidegger, cuja ontologia existencial delata para qualquer leitor atento, a
partir da perspectiva de uma ou duas gerações, não apenas o jargão mas também as
vantagens politicas de seu tempo (cf. R. Wolin, The Politics ofBeing, NewYork, 1990).
4l.Seel (1995),223.
42. Quem apresenta uma arquitetura teórica semelhante é R. Dworkin, Founda-
tions ofLiberal Equality, The Tanner Lectures on Human Values. XI, Salt Lake City, 1990.
43. Cf. nota 40.
42 A INCLUSÃO DO OUTRO
que a moral pode ser entendida como um dispositivo de proteção con-
tra a vulnerabilidade específica das pessoas. Mas o saber a respeito da
suscetibilidade constitutiva de um ser que só pode formar sua identi-
dade na externação em meio a relações interpessoais e estabilizá-la em
relações de reconhecimento intersubjetivo emana da familiaridade
intuitiva com as estruturas gerais de nossa própria forma de vida co-
municativa. É um saber geral profundamente enraizado, que se apre-
senta enquanto tal apenas em casos de desvios clínicos - a partir de
experiências de como e quando a identidade de um indivíduo socia-
lizado corre perigo. O recurso a um saber dessa espécie, determinado
por tais experiências negativas, não traz o peso da pretensão de indi-
car positivamente o que significa uma vida boa. Só os próprios envol-
vidos, a partir da perspectiva dos que participam de consultas prá-
ticas, podem ter clareza a respeito do que em cada caso é uniforme-
mente bom para todos. O bem relevante do ponto de vista moral apre-
senta-se caso a caso a partir da perspectiva ampliada do nós de uma
comunidade que não exclui ninguém. Aquilo que de bom é subsumi-
do no justo é a forma de um ethos intersubjetivo compartilhado en-
quanto tal e é, com isso, a estrutura da pertença a uma comunidade,
que, aliás, livrou-se das amarras de uma comunidade exclusiva.
Essa correlação entre solidariedade e justiça inspirou Kant a ex-
plicar o ponto de vista segundo o qual as questões a respeito da justiça
podem ser julgadas de modo imparcial, a partir do modelo da autole-
gislação de Rousseau: "De acordo com ela todo ser racional deve agir
como se, através de suas máximas, fosse um membro legislador no
reino geral dos fins" 44 • Kant fala de um "reino dos fins" porque cada
um de seus membros não se contempla a si mesmo e a todos os outros
como um mero meio, mas sempre também como um "fim em si mes-
mo': Enquanto legislador, ninguém é súdito da vontade de um estra-
nho; mas ao mesmo tempo cada membro está submetido às leis que a
si próprio outorga, assim como todos os outros. Na medida em que
Kant substitui a figura de direito privado do contrato pela figura de
direito público da legislação republicana, ele pode juntar num só os
dois papéis da moral, separados do ponto de vista do direito: o papel
do cidadão que participa da legislação e o do indivíduo privado, sub-
44. Kant, Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, Werke, (Weischedel), Vol. IV,
72 [ed. br.: Fundamentação da metafísica dos costumes, Lisboa, Edições 70, 1995].
Uma lei é válida no sentido moral quando pode ser aceita por
todos, a partir da perspectiva de cada um. Como apenas as leis "gerais"
cumprem com a condição de regrar uma matéria no interesse unifor-
me de todos, é nesse momento de capacidade de generalização dos
interesses respeitados pela lei que a razão prática se faz valer. Logo,
agindo como um legislador democrático, passa a assumir o ponto de
vista moral a pessoa que consulta a si mesma para saber se a praxe que
resultaria do respeito generalizado de uma norma cogitada hipoteti-
camente poderia ser aceita por todos os potencialmente envolvidos
enquanto legisladores potenciais. No papel de co-legislador, cada pes-
soa participa de uma empreitada cooperativa e aceita, com isso, uma
perspectiva intersubjetivamente ampliada, a partir da qual se pode
examinar se uma norma que é objeto de discussão pode ser conside-
rada generalizável segundo o ponto de vista de todos os participantes.
Quando se dá essa cogitação, são considerados também motivos prag-
máticos e éticos, que não perdem sua relação interna com a situação
de interesses e com a autoconsciência de cada pessoa individual. Con-
tudo, esses motivos relativos aos atores não contam mais como moti-
vos e orientações de valor de pessoas individuais, mas como contri-
buições epistêmicas para um discurso de exame das normas, realiza-
do com o intuito do mútuo entendimento. Como uma praxe legislati-
va só pode ser exercida em comum, não é mais suficiente a regra de
ouro do uso monológico e egocêntrico desses testes de generalização.
As razões morais têm um modo de vincular o arbítrio diferente
das razões pragmáticas ou éticas. No momento em que a autovincula-
ção da vontade assume a forma da autolegislação, vontade e razão se
44 A INCLUSÃO DO OUTRO
interpenetram integralmente. Por isso, Kant só reconhece como "livre"
a vontade autónoma, determinada pela razão. Só age livremente aquele
que permite que sua vontade seja determinada por sua compreensão
daquilo que todos poderiam desejar. "Só um ser racional tem a capa-
cidade de agir segundo a representação das leis, isto é, segundo princí-
pios, ou uma vontade. Como para a dedução das ações a partir das leis
é necessária a razão, a vontade não é outra coisa do que razão prática" 45 •
Certamente todo ato de autovinculação da vontade exige da razão prá-
tica razões para que ocorra; mas, enquanto ainda entrarem em jogo
determinações subjetivamente casuais e a vontade não tiver apagado
todos os momentos da coação, a vontade não será realmente livre.
A normatividade que nasce per seda capacidade de autovincu-
lação da vontade ainda não tem um sentido moral. Quando um agen-
te se apropria de regras técnicas da habilidade ou de conselhos prag-
máticos da prudência, leva sua arbitrariedade a submeter-se à razão
prática; as razões para isso, no entanto, têm força determinante ape-
nas com vista a preferências e fins. Ainda que de forma diversa, isso
vale também para razões éticas. Embora a autenticidade das vincula-
ções a valores ultrapasse o horizonte da racionalidade finalista mera-
mente subjetiva, as valorações severas só ganham força objetiva e ca-
paz de determinar a vontade com vista a experiências práticas e for-
mas de vida casuais, ainda que partilhadas intersubjetivamente. Nos
dois casos, os imperativos e recomendações correspondentes só po-
dem reclamar para si uma validade condicionada: só valem sob o pres-
suposto de situações de interesse subjetivamente dadas, ou sob o
pressuposto de tradições intersubjetivamente partilhadas.
Para alcançar uma validação incondicionada ou categórica, obri-
gações morais precisam derivar-se de leis que emancipem a vontade
das determinações casuais (caso a vontade esteja comprometida com
essas determinações) e que, por si mesmas, se mesclem à razão prática.
Pois à luz de normas como essas, fundamentadas sob o ponto de vis-
ta moral, também os fins, preferências e orientações de valor casuais
que exercem coações externas sobre a vontade podem ser subme-
tidas a um julgamento crítico. Razões podem levar até mesmo a von-
tade heteronômica a submeter-se a máximas; mas a autovinculação
continua presa a situações de interesse dadas por razões pragmáticas
46. Isso é desconsiderado por Chr. M. Korsgaard, The Sources ofNormativity. The
Tanner Lectures on Human Values, n. XV ( 1994), pp. 88ss.
47. Cf. Kant, vol. IV, p. 69.
48. O mesmo se pode dizer de Tugendhat, cf. IV, 2, acima.
46 A INCLUSÃO DO OUTRO
podem mais contar com um acordo prévio sobre condições de vida e
situações de interesse mais ou menos homogêneas, o ponto de vista
moral só pode se realizar sob condições de comunicação que garan-
tam que cada um, também da perspectiva de sua própria autocom-
preensão e compreensão de mundo, possa testar a aceitabilidade de
uma norma elevada a práxis comum. O imperativo categórico con-
tém assim uma forma de leitura concernente à teoria do discurso. Em
seu lugar, surge o princípio discursivo "D': segundo o qual só podem
requerer validação normas que possam contar com a concordância
de todos os envolvidos como participes de um discurso prático49 •
Partimos da questão genealógica sobre ainda ser possível justifi-
car ou não o teor cognitivo de uma moral do respeito indistinto e da
responsabilidade solidária por toda e qualquer pessoa após a perda
de valor do fundamento religioso de sua validação. Por fim, sob a
mesma perspectiva, gostaria de submeter a prova o resultado que al-
cançamos pela interpretação intersubjetiva do imperativo categórico.
Para tanto é preciso separarmos dois problemas. De uma parte, é pre-
ciso esclarecer quais são, afinal, os elementos das instituições origi-
nais que a ética discursiva põe a salvo no universo desenganado das
tentativas de fundamentação pós-metafísicas, e em que sentido ainda
se pode falar de uma validação cognitiva de juízos e posicionamentos
morais (VII). De outra parte, é precípuo perguntar se uma moral que
parte da reconstrução racional de instituições tradicionais, inicial-
mente religiosas, não permanece conteudisticamente presa a seu con-
texto original, não obstante seu caráter estimativo, ou seja, estar em
permanente processo de avaliação (VIII).
48 A INCLUSÃO DO OUTRO
agir de outra maneira. Isso não impede, porém, que outros motivos
acabem sendo mais fortes 50•
Com a perda da base validativa sotereológica, altera-se em espe-
cial o sentido da obrigatoriedade normativa. A própria diferenciação
entre dever e vinculação de valor, entre o que é moralmente certo e
eticamente almejável, aguça a validação do dever tornando-a em nor-
matividade, a que corresponde tão-somente a formação imparcial de
juízos. Outra conotação deve-se à mudança da perspectiva, de Deus
para o homem. "Validade" significa agora que normas morais conta-
rão com a concordância de todos os envolvidos, quando esses, em dis-
cursos práticos, testarem em conjunto se a respectiva práxis vem ao
encontro do interesse de todos em igual medida. Nessa concordância
expressam-se duas coisas: a razão falível dos sujeitos em conselho, que
se convencem mutuamente de que uma norma introduzida hipote-
ticamente merece reconhecimento, e a liberdade dos sujeitos legislado-
res, que se entendem ao mesmo tempo como autores das normas a que
se submetem como destinatários. No sentido validativo das normas mo-
rais, ficam vestígios tanto da falibilidade do espírito humano que des-
cobre, quanto da construtividade do espírito humano que projeta.
(2) O problema sobre em que sentido juízos e posicionamentos
morais podem requerer validade revela-se ainda sob outro aspecto
quando trazemos à memória as asserções essenciais com que os man-
damentos foram justificados onto-teologicamente, no passado, como
partes de um mundo racionalmente estabelecido. Enquanto foi possí-
vel manifestar o teor cognitivo da moral por meio de asserções descri-
tivas, os juízos morais foram falsos ou verdadeiros. Porém, desde que o
realismo moral não se deixa mais defender pela evocação da metafísica
da criação e do direito natural (ou de sucedâneos para eles), a valida-
ção da obrigatoriedade de asserções morais não pode mais ser assimi-
lada pela validação da verdade de asserções descritivas. Alguns dizem
como são as coisas no mundo, outros dizem o que devemos fazer.
Se supomos que sentenças só podem ser válidas no sentido de se-
rem "verdadeiras" ou "falsas': e que se deve entender a "verdade" no sen-
tido de uma correspondência entre sentenças e objetos ou fatos, tor-
51. Para o que segue cf. }. Heath, Morality and Social Action, tese de doutoramento
na Northwestern University, 1995, pp. 86-102.
52. Cf. D. Davidson, Wahrheit und Interpretation, Frankfurt am Main, 1986.
53. Cf. }. Habermas, "Exkurs zur Argumentationstheorie". ln: Theorie des
kommunikativen Handelns, Frankfurt am Main, 1981, vol. l, pp. 44-71; e, do mesmo
autor, 1992, pp. 276ss.
50 A INCLUSÃO DO OUTRO
O plano pragmático para a fundamentação abre caminho para
um conceito epistêmico de verdade que tem por tarefa oferecer uma
saída à teoria das correspondências. Com o predicado de verdade re-
ferimo-nos ao jogo de linguagem da justificação, ou seja, da solvência
pública das reivindicações de validação. Por outro lado, não se deve
igualar "verdade" com fundamentabilidade- warranted assertibility.
A utilização "cautelar" do predicado- 'p' pode estar muito bem fun-
damentado e mesmo assim não ser verdadeiro- alerta-nos para a
diferença semântica entre "verdade" como qualidade inalienável das
asserções e "aceitabilidade racional" como qualidade das declarações,
mas condicionada pelo contexto54 • Essa diferença pode ser entendida
no horizonte das justificações possíveis como a distinção entre "justi-
ficado em nosso contexto" e "justificado em qualquer contexto". De
nossa parte, podemos fazer jus a essa diferença por meio de uma idea-
lização atenuada de nossos processos argumentativos- se concebi-
dos como passíveis de prosseguimento. À medida que afirmamos 'p'
e que reivindicamos verdade para 'p', assumimos- embora conscien-
tes da falibilidade- a obrigação de defender 'p' contra todas as obje-
- , • 55
çoes possiveis .
Nesse contexto, interessa-me muito menos a complexa relação
entre verdade e justificação do que compreender o conceito de ver-
dade- já depurado pelas conotações de correspondência- como um
caso especial de validade, enquanto se introduz esse conceito geral de
validade referenciado à solvência discursiva de reivindicações de vali-
dação. Com isso, abre-se um espaço conceituai em que se pode abrigar
o conceito de validade normativa, e mais especialmente de validade
moral. A correção de normas morais (ou de asserções normativas ge-
rais) e de mandamentos singulares pode ser entendida por analogia
à verdade de sentenças assertivas. O que vincula os dois conceitos de
validação é o procedimento da solvência discursiva das reivindica-
54. R. Rorty, "Pragmatism, Davidson and Truth': ln: E. LePre (org.). Truth and
Interpretation, Londres, 1986, pp. 264ss.
55. O conceito da "solvibilidade discursiva", reativo, referente não a estados
ideais, mas ao enfraquecimento de restrições potenciais, aproxima-se do conceito de
"superassertibility": C. Wright, Truth and Objectivity, Cambridge, 1992, pp. 33ss. So-
bre a crítica a meu conceito anterior de verdade, ainda orientado por Peirce, v. A.
Wellmer, Ethik und Dialog, Frankfurt am Main, 1986, pp. 102 ss; cf. ainda Wingert,
1993, pp. 264ss.
52 A INCLUSÃO DO OUTRO
A ética discursiva justifica o teor de uma moral do respeito indis-
tinto e da responsabilidade solidária por cada um. Certamente, ela só
chega a isso pela via da reconstrução racional dos conteúdos de uma
tradição moral abalada em sua base validativa religiosa. Se a maneira
de ler o imperativo categórico assumida pela teoria discursiva perma-
necesse atrelada a essa tradição da origem, essa genealogia se interpo-
ria ao objetivo de comprovar o teor cognitivo dos juízos morais em
geral. Ainda falta uma fundamentação, a partir da teoria moral, do
próprio ponto de vista moral.
Na verdade, o princípio discursivo responde ao constrangimento
que acomete os membros de comunidades morais aleatórias quando
estes, durante a transição para sociedades modernas, pluraristas em sua
visão de mundo, incorrem no dilema de continuar, como antes, discu-
tindo sobre juízos e posicionamentos morais munidos de razões, ades-
peito de já ter desmoronado seu consenso substancial de fundo no que
concerce às normas morais subjacentes. Tanto em nível global quanto
dentro da própria sociedade a que pertencem, essas pessoas envolvem-
se em conflitos de conduta que elas mesmas, muito embora seu ethos já
esteja em ruínas, ainda entendem como conflitos morais, e portanto
solúveis a partir de certa fundamentação. O cenário a seguir não retrata
nenhum "estado primordial': mas sim um percurso estilizado de ma-
neira ideal e tipificada, tal como ele poderia dar-se sob condições reais.
Tomo como ponto de partida que os envolvidos pretendem so-
lucionar seus conflitos sem violência ou acertos ocasionais, mas sim
através de um acordo mútuo. Assim, propõe-se de saída a tentativa de
estabelecer um conselho e desenvolver, sobre uma base profana, uma
autocompreensão ética comum a todos. Sob as condições de vida di-
versificadas das sociedades pluralistas, porém, uma tentativa como essa
está fadada ao fracasso. Os envolvidos aprendem que, ao se certifica-
rem criticamente de suas fortes convicções valorativas, ainda preser-
vadas na prática, são constatadas concepções divergentes sobre o que
seja o bem. Suponhamos que insistam, ainda assim, em sua intenção
de chegar a um acordo mútuo, e que não queiram simplesmente subs-
tituir o convívio moral já ameaçado por um modus vivendi qualquer.
Em face da debilidade de um acordo substancial sobre os conteú-
dos das normas, os envolvidos vêem-se abandonados a uma circuns-
58. Cf. A. Honneth. Kampf und Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992; R. Forst,
Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994.
59. Cf. L. Wingert, 1984, pp. 295ss. Sobre a estrutura perspectória da ação orien-
tada ao acordo mútuo, v. o artigo que intitula J. Habermas, 1983, pp. 127ss., em espe-
cial pp. 144-152.
60. As implicações desse duplo aspecto foram elaboradas energicamente por
Wingert, 1993.
54 A INCLUSÃO DO OUTRO
mente diferentes de todos os outros61 • O respeito reciprocamente equâ-
nime por cada um, exigido pelo universalismo sensível a diversifica-
ções, é do tipo de uma inclusão não-niveladora e não-apreensória do
outro em sua alteridade.
Mas como justificar afinal a transição para uma moral pós-tradi-
cional? As obrigações enraizadas na ação comunicativa e tradicio-
nalmente ajustadas a ela não vão por si sós62 para além dos limites da
família, do clã, da cidade ou da nação. É diferente, porém, com a for-
ma reflexiva da ação comunicativa: argumentações apontam per se para
além de todas as formas particulares de vida. Pois, nos pressupostos
programáticos de discursos ou de conselhos racionais, o teor norma-
tivo de suposições empreendidas na ação comunicativa é generalizado,
abstraído e descingido, ou seja, é estendido a uma comunidade que
insere e que, em princípio, não exclui nenhum sujeito capaz de falar e
agir, desde que esteja em condições de dar contribuições relevantes.
Essa idéia mostra a saída daquela situação em que os envolvidos per-
deram o suporte ontoteológico e precisam criar com base em si mes-
mos as próprias orientações normativas. Tal como mencionado, os
envolvidos só podem recorrer às coisas que têm em comum e das quais
dispõem naquele momento. Depois do último fracasso, essas coisas em
comum ficaram reduzidas à provisão de qualidades formais disponí-
veis na situação de conselho, que podem ser partilhadas performativa-
mente por seus integrantes. Todos, afinal, já estão envolvidos no em-
preendimento cooperativo de um conselho reunido na prática.
Essa é uma base muito frágil, mas a neutralidade conteudística
de sua subsistência comum pode representar também uma chance em
face do constrangimento ocasionado pelo pluralismo de cosmovisões.
Haveria perspectiva de encontrar um equivalente para a fundamenta-
ção conteudística-tradicional de um comum acordo normativo básico,
caso a própria forma comunicacional em que se cumprem as reflexões
práticas comuns redundasse em um aspecto sobre o qual fosse possí-
vel fundamentar normas morais e que, por ser imparcial, fosse con-
vincente para todos os envolvidos. O "bem transcendente" que falta
61. Por isso, para se cumprir a condição de imparcialidade, não basta que al-
guém isento pondere o bem e o mal em jogo para uma pessoa "qualquer"; posição
diversa é a de Tugendhat, 1993, p. 353.
62. Cf. Seel, 1995, p. 204.
56 A INCLUSAO DO OUTRO
Sobre isso, três comentários: os "interesses específicos e orienta-
ções valorativas" põem em questão as razões pragmáticas e éticas dos
participantes em particular. A inclusão desses dados deve prevenir uma
marginalização da autocompreensão e da compreensão de mundo de
participantes em particular e assegurar em geral a sensibilidade her-
menêutica por um espectro suficientemente amplo de contribuições.
Além disso, a assunção recíproca e generalizada de perspectivas alheias
("cada um"- "por todos em conjunto") exige não apenas empatia,
mas também uma intervenção interpretativa na autocompreensão e
na compreensão de mundo dos participantes, que precisam se manter
abertos a revisões das descrições de si mesmos e dos outros (e abertos,
portanto, a revisões da linguagem utilizada em tais descrições). O pro-
pósito da "aceitação geral e não coativa", por fim, fixa o aspecto sob o
qual as razões apresentadas extraem dos motivos para a ação o senti-
do relativo aos atares, e sob o qual assumem um sentido epistêmico
sob o ponto de vista da consideração simétrica.
(c) Os próprios envolvidos talvez se dêem por satisfeitos com essa
regra de argumentação (ou com uma regra semelhante), à medida que
ela se mostre útil e não conduza a resultados contra-intuitivos. É pre-
ciso evidenciar que normas capazes de conquistar concordância geral
- os Direitos Humanos, por exemplo - estão marcadas por uma
práxis fundadora orientada dessa maneira. Mas do ponto de vista do
teórico da moral ainda resta um último passo fundador.
Podemos tomar como ponto de partida que a práxis de justifica-
ção e reunião em conselhos- a que chamamos argumentação- po-
de ser encontrada em todas as culturas e sociedades (se não de forma
institucionalizada, ao menos como uma práxis informal) e que não
há equivalente algum desse tipo de solução de problemas. Em face
da disseminação universal da práxis argumentativa e da falta de al-
ternativas para ela, fica difícil contestar a neutralidade do princípio
discursivo. Mas, considerada a abdução de 'U', pode ser que esteja
subjacente aqui, às escondidas, um pré-entendimento etnocêntrico
(e com ele uma determinada concepção do que é bom), não parti-
lhado por outras culturas. A suspeita de um comprometimento eu-
rocêntrico que recai sobre uma compreensão de moralidade opera-
cionalizada por 'U' poderia perder força se fosse possível, de modo
aceitável, tornar "imanente" a explicação para o ponto de vista mo-
ral, ou seja, se esse ponto de vista moral pudesse ser explicado a par-
63. Cf. Konrad Ott, "Wie begründet man ein Diskussionsprinzip der Moral?". ln:
Vom Begründen zum Handeln, Tübingen, 1996, pp. 12-50.
64. Cf. M. Niquet, Transzendentale Argumente, Frankfurt am Main, 1991; idem,
Nichthintergehbarkeit und Diskurs, tese de livre-docência (inédita), Frankfurt am
Main, 1995.
58 A INCLUSAO DO OUTRO
coação, só poderão ser decisivas as razões para o assentimento de uma
norma discutível. Por fim, sob a premissa de uma orientação segun-
do o acordo mútuo, presumida reciprocamente em todos os envol-
vidos, essa aceitação "não coativa" só pode dar-se "em comum".
Contra a objeção ao círculo65 , deve-se mencionar que o teor dos
pressupostos argumentativos gerais ainda não é "normativo", em sen-
tido moral. Pois a possibilidade de inserção significa apenas a con-
dição de acesso irrestrito ao discurso, e não a universalidade de uma
norma de ação vinculativa, qualquer que seja. A distribuição eqüi-
tativa de liberdades comunicativas no discurso e a exigência de sin-
ceridade em favor do discurso significam deveres e direitos argumen-
tativos, e de forma alguma morais. Igualmente, a ausência de coação
refere-se ao próprio processo argumentativo, e não a relações inter-
pessoais externas a essa práxis. As regras constitutivas do jogo argu-
mentativo determinam o intercâmbio de argumentos e de posicio-
namentos de "sim" /"não"; elas têm o sentido epistêmico de possibi-
litar a justificação de asserções, e não o sentido prático imediato de
motivar ações.
O cerne da fundamentação do ponto de vista moral consiste, para
a ética discursiva, em que só através de uma regra argumentativa seja
possível transferir o teor normativo desse jogo de linguagem epis-
têmico para a seleção de normas acionais, sugeridas em discursos prá-
ticos -junto com sua reivindicação de validação moral. A obrigato-
riedade moral não pode resultar, por si só, de algo como uma impo-
sição transcendental de pressupostos argumentativos inevitáveis; mais
que isso, ela se liga a objetos peculiares do discurso prático - a nor-
mas nele introduzidas, e às quais remontam as razões arregimenta-
das nas reuniões em conselho. Destaco essa circunstância lembrando
que 'U' pode se tornar plausível a partir do teor normativo de pressu-
postos argumentativos ligado a um conceito (fraco, e portanto não pre-
julgador) de fundamentação de normas.
A estratégia de fundamentação ora sugerida partilha o ânus dos
esforços para tornar-se plausível com um questionamento genealó-
gico atrás do qual se escondem algumas suposições caras à teoria da
65. Cf. Tugendhat, 1993, pp. 161ss. A crítica de Tugendhat refere-se a uma versão
de meu argumento presente na segunda edição de Moralbewuj3tsein und kommunikatives
Handeln [Consciência moral e agir comunicativo, ed. br. cit.] e já revista portanto em
1984(!);v.tb.J.Habermas, 1991,p.134,nota 17.
66. É o que acentua W. Rehg, Insight and Solidarity, Berkeley, 1984, pp. 65ss.; v.
tb. S. Benhabib, "Autonomy, Modernity and Community". ln: Situating the Self, Cam-
bridge, 1992, pp. 68-88.
67. Cf. K.-0. Apel, "Die transzendentalpragmatische Begründung der Kommuni-
kationsethik': ln: Diskurs und Verantwortung, Frankfurt am Main, 1988, pp. 306-369.
68. V. nota 56, acima.
69. Cf. Habermas, 1992, pp. 135ss. e o Posfácio à 4. ed., pp. 674ss.
70. Cf. R. Alexy, Theorie der juristischen Argumentation, Frankfurt am Main, 1991;
idem, Begriff und Geltung des Rechts. Freiburg, 1992; idem, Recht, Vernunft, Diskurs,
Frankfurt am Main, 1995. Cf. tb. K. Baynes, The Normative Grounds o[Social Criticism,
Albany, 1992; S. Benhabib, "Deliberative Rationality and Models of Democratic
Legitimacy", Constellations, n. I ( 1994): 26-52; e sobretudo R. Forst, 1994.
60 A INCLUSÃO DO OUTRO
2
Reconciliação por meio do
uso público da razão*
61
democrático de direito: ''Our exercise of politicai power is fully proper
only, when it is exercised in accordance with a constitution the essentials
of which ali citizens as free and equal may reasonably be expected to
endorse in the light of principies and ideais acceptable to their common
human reason." 1 Essa frase provém do livro com o qual Rawls encerrou,
por enquanto, um processo de ampliação e revisão de sua teoria da
justiça, que demorou vinte anos. Do mesmo modo como antes se diri-
gira contra as posições utilitaristas, ele hoje reage sobretudo contra as
posições contextualistas, que contestam o pressuposto de uma razão
comum a todos os seres humanos.
Como admiro esse projeto, compartilho sua intenção e considero
corretos seus resultados essenciais, o dissentimento de que quero falar
acaba ficando dentro dos estreitos limites de um briga de família. Mi-
nhas dúvidas limitam-se a saber se Rawls faz valer suas importantes
intuições normativas, pertinentes na minha opinião, de um modo sem-
pre convincente. Antes de tudo, porém, gostaria de lembrar os contor-
nos do projeto, tal como ele agora se apresenta.
Rawls fundamenta princípios segundo os quais se deve instituir
uma sociedade moderna, se ela tiver de garantir a cooperação justa e
imparcial entre seus cidadãos, como pessoas livres e iguais. Num pri-
meiro passo, ele esclarece o ponto de vista a partir do qual represen-
tantes fictícios poderiam responder a essa questão de modo imparcial.
Ele explica por que as partes, na assim chamada condição primitiva,
por-se-iam de acordo quanto a dois princípios, a saber: primeiro, o
princípio liberal, de acordo com o qual são concedidas a todos os cida-
dãos iguais liberdades subjetivas de ação. Segundo, o princípio subor-
dinado que regula e fixa os mesmos direitos de acesso aos cargos públi-
cos para todos e que diz que as desigualdades sociais só podem ser acei-
tas na medida em que ao menos tragam vantagens aos cidadãos menos
privilegiados. Num segundo passo, Rawls mostra que essa concepção,
sob aquelas condições de um pluralismo que ela mesma promove, pode
esperar ser objeto de aprovação. Do ponto de vista ideológico, o libera-
lismo político é neutro porque é uma construção racional, sem su~citar
ele próprio uma reivindicação de verdade. Num terceiro passo, Rawls
esboça finalmente os direitos fundamentais e os princípios do Estado
l. J. Rawls. Politicai Liberalism TV, New York 1993, p. 137 led. br.: Liberalismo
político, São Paulo, Ática, 2000 ].
62 A INCLUSAO DO OUTRO
de direito que podem ser deduzidos dos dois principias supremos de
justiça. Na seqüência desses passos, apresentarei alguns reparos, que se
dirigem menos contra o projeto como tal, e mais contra alguns aspec-
tos de sua realização. Temo que Rawls faça concessões a posições filo-
sóficas contrárias, que prejudicam a clareza de sua própria abordagem.
A minha crítica, feita com intenções construtivas, inicia-se de
modo imanente. Em primeiro lugar, tenho dúvidas de se o design da
condição primitiva é apropriado em todos os sentidos para explicar e
para assegurar o ponto de vista do julgamento imparcial de princípios
de justiça entendidos de modo deontológico (1). Além disso, tenho a
impressão de que Rawls deveria diferenciar mais nitidamente as ques-
tões de fundamentação das questões de aceitabilidade; ele parece ter
intenção de conquistar a neutralidade ideológica de sua concepção de
justiça ao preço de sua reivindicação cognitiva de validação (II). Essas
duas decisões relativas à estratégia de sua teoria têm como conseqüência
uma construção do Estado de direito que subordina o principio de
legitimação democrática a direitos liberais fundamentais. Assim, Rawls
malogra seu objetivo de compatibilizar a liberdade dos modernos e a
liberdade dos antigos (III). Encerro com uma tese a respeito do auto-
entendimento da filosofia política: nas condições do pensamento pós-
metafísico, ela deve ser modesta, mas não da maneira errada.
O papel de adversário que me foi atribuído pela redação do ]ou r-
na[ of Philosophy obriga-me a exacerbar objeções e reparos tentativas.
Essa exacerbação pode ser justificada com a intenção amistosa e pro-
vocante de mexer com a "economia doméstica" argumentativa, nada
fácil de manejar, de uma teoria altamente complexa e muito bem
lucubrada, de tal modo que ela possa fazer valer suas potencialidades2 •
o
O design da condição primitiva
3. J. Rawls, "Der Vorrang der Grundfreiheiten". ln: idem, Die ldee des politischen
Liberalismus, Frankfurt am Main 1992, 176.
4. Cf. J. Rawls, "Gerechtigkeit ais FairneB". ln: idem ( 1992), 273s., nota 20.
64 A INCLUSÃO DO OUTRO
objetivo de demonstração a que originalmente deveria servir o design
da condição primitiva, ele continuou a insistir claramente em que o
sentido do ponto de vista moral pode ser operacionalizado desse modo.
Isso traz conseqüências desagradáveis, três das quais quero discutir a
seguir: ( 1) Podem as partes, na condição primitiva, perceber apenas
com base em seu egoísmo racional os interesses prioritários de seus
clientes? (2) É lícito que os direitos fundamentais sejam assimilados
como bens fundamentais? (3) O véu da insciência garante a imparcia-
lidade do juízo?5
( 1) Rawls não consegue sustentar de forma conseqüente a deci-
são de fazer com que cidadãos "plenamente" autónomos sejam repre-
sentados por partes às quais falta essa espécie de autonomia. Os cida-
dãos são, por pressuposto, pessoas morais, possuidoras de um senso
de justiça e da capacidade de ter uma concepção própria do bem, as-
sim como de um interesse em que essas predisposições sejam racio-
nalmente aperfeiçoadas. Devido a seu design objetivamente racional,
as partes são desoneradas justamente dessas características racionais
das pessoas morais. Mesmo assim, espera-se que elas entendam e res-
peitem adequadamente esses "interesses da mais elevada ordem" dos
cidadãos, resultantes justamente dessas características. Elas têm de
contar, por exemplo, com que os cidadãos autónomos respeitem os
interesses dos outros à luz de princípios justos e não apenas por inte-
resse próprio; com que se deixem obrigar a um comportamento leal;
com que se deixem convencer, pelo uso público de sua razão, da legiti-
midade das instituições e políticas existentes etc. As partes, portanto,
devem entender, levar a sério e tornar objeto de sua negociação as con-
seqüências de uma autonomia que lhes é vedada em sua extensão in-
tegral, assim como as implicações do uso de uma razão prática a que
elas próprias não podem recorrer. Isso ainda poderia parecer plausível
em face de uma percepção vicária do interesse auto-referido e voltado
ao seguimento das diferentes concepções do que seja bom, individual-
mente desconhecidas. Mas será que o sentido das questões da justiça
pode ficar intocado pelo modo de ver de egoístas racionais? Em todo
caso, as partes, dentro das fronteiras de seu egoísmo racional, são in-
5. A partir de outro ponto de vista, há uma crítica da abordagem pela teoria das
decisões em T. M. Scanlon, "Contractualism and Utilitarianism». ln: A. Sen, B. Williams
(eds.), Utilitarianism and Beyond, Cambridge 1982, l23ss.
66 A INCLUSAO DO OUTRO
contudo, ela desvia a atenção para os constrangimentos conceituais
resultantes da intenção inicial de resolver o problema hobbesiano do
ponto de vista da teoria das decisões. Pois mais uma conseqüência
do design da condição primitiva a partir da teoria das decisões é a in-
trodução de bens fundamentais. E esta definição de rota tem relevância
para a ulterior ampliação da teoria.
(2) Para atares que decidem racionalmente, vinculados à pers-
pectiva da primeira pessoa, o aspecto normativo, seja qual for, só pode
se apresentar como conceitos de interesses ou valores, que são preen-
chidos por bens. Os bens são aquilo que é por nós almejado, aquilo
que é bom para nós. Coerentemente, Rawls introduz "bens fundamen-
tais" como meios generalizados de que as pessoas podem precisar para
realizar os seus planos de vida. Embora as partes saibam que, para os
cidadãos de uma sociedade bem ordenada, alguns desses bens funda-
mentais assumem o caráter de direitos, elas próprias, na situação da
condição primitiva, só podem descrever direitos como uma catego-
ria de bens entre outras. Para elas, a questão que diz respeito aos prin-
cípios de justiça só pode se colocar como uma questão da justa distri-
buição de bens fundamentais. Com isso, Rawls se envolve com um
conceito de justiça baseado na ética dos bens, que se encaixa melhor
nas abordagens aristotélicas ou utilitaristas do que em sua própria teo-
ria dos direitos, que parte do conceito da autonomia. Como Rawls se
prende a uma concepção de justiça segundo a qual a autonomia dos
cidadãos se constitui mediante direitos, o paradigma distributivo lhe
traz dificuldades. Os direitos só podem ser "gozados" na medida em
que deles se faz uso. Eles não podem ser assimilados a bens distribu-
tivos, sem abrir mão de seu sentido deontológico. Uma distribuição
uniforme de direitos só ocorre quando os jurisconsortes se reconhe-
cem mutuamente como livres e iguais. Naturalmente, existem direi-
tos a uma participação justa no todo dos bens e das oportunidades,
mas os direitos em si regulam relações entre atares- e não podem ser
"possuidos" por estes como se fossem coisas9 • Se eu não estiver co-
metendo um erro, Rawls vê-se obrigado pelos constrangimentos da
estratégia conceituai do modelo ainda eficiente da escolha racional a
não conceber imediatamente as liberdades fundamentais como di-
reitos fundamentais, mas a reinterpretá-las por ora como bens funda-
68 A INCLUSAO DO OUTRO
mindo, as normas se diferenciam dos valores, primeiro por meio de
suas relações com diferentes tipos de ação comandada por regras ou
direcionadas para objetivos; segundo, pela codificação binária ou gra-
dual de suas pretensões de validade; terceiro, por sua obrigatoriedade
absoluta (ou relativa); e quarto, por meio dos critérios que deve preen-
cher o conjunto dos sistemas de normas e de valores.
Ora, Rawls quer levar em conta a intuição deontológica que se
exprime nessas diferenciações. Por isso, ao dar primazia ao primeiro
princípio, em detrimento do segundo, ele precisa corrigir o nivela-
mento da dimensão deontológica que aceitara primeiro - devido
ao design da condição primitiva. Contudo, a partir da perspectiva da
primeira pessoa, pela qual nós nos orientamos de acordo com nos-
sos interesses e valores, não é possível fundamentar uma primazia
absoluta das mesmas liberdades subjetivas de ação diante dos bens
fundamentais regulados pelo segundo princípio. Esse ponto foi cla-
ramente salientado por H. L. A. Hart 11 em sua crítica. É interessante
que Rawls enfrenta essa crítica apenas na medida em que inclui pos-
teriormente entre seus bens fundamentais uma qualificação que lhes
assegura uma relação com as liberdades fundamentais enquanto di-
reitos fundamentais, a saber, ele só confere validade como bens fun-
damentais aos bens sociais que são apropriados para os planos de vida
e para o desenvolvimento da capacidade moral dos cidadãos como pes-
soas livres e iguais12 • Além do mais, Rawls diferencia entre bens funda-
mentais que são constitutivos no sentido moral para a moldura ins-
titucional da sociedade bem ordenada e os bens fundamentais res-
tantes, na medida em que ele inclui no primeiro princípio a garantia
do "justo valor" da liberdade 13 •
Contudo, essa determinação adicional estabelece tacitamente uma
diferenciação deontológica entre direitos e bens que contradiz a clas-
sificação de direitos e bens feita de início. Porque o justo valor de liber-
dades iguais mede-se pelo preenchimento de condições efetivas para
um exercício com igualdade de oportunidades dos direitos correspon-
dentes- e desse modo apenas os direitos podem ser qualificados. Não
11. Cf. H. L. A. Hart, "Rawls on Liberty and its Priority". ln: N. Daniels (ed.),
Reading Rawls, New York, 1975, 230ss.
12. Cf. W. Hinsch, Introdução a: Rawls (1992), 36ss.
13. J. Rawls, "Vorrang': ln: idem (1992), 178ss. e 196ss.
70 A INCLUSÃO DO OUTRO
justa como lei geral. Mas enquanto aplicamos monologicamente esse
exame mais pretensioso, restam perspectivas individuais isoladas, a
partir das quais cada um de nós imagina privadamente o que todos
poderiam querer. Isso é insatisfatório. O que de meu ponto de vista é
igualmente bom para todos só faria parte cfctiva do interesse uniforme
de cada um se, em cada uma das coisas que me parecem evidentes, se
refletisse uma consciência transcendente, isto é, uma compreensão de
mundo universalmente válida. Nas condições do moderno pluralismo
social e ideológico, ninguém mais poderá partir desse pressuposto. Se
quisermos salvar a intuição do princípio kantiano de universalização,
poderemos reagir a esse fato do pluralismo de diferentes maneiras.
Pela limitação da informação, Rawls ftxa as partes da condição pri-
mitiva numa perspectiva comum e neutraliza assim de antemão, me-
diante um artifício, a multiplicidade das perspectivas particulares de
interpretação. A ética do discurso, pelo contrário, vê o ponto de vista
moral como encarnado no procedimento de uma argumentação levada
a efeito intersubjetivamente, que exorta os participantes a erguerem as
barreiras de suas perspectivas de interpretação.
A ética do discurso apóia-se na intuição de que a aplicação do
princípio de universalização bem entendido exige uma "assunção ideal
de papéis", feita em conjunto. Contudo, ela interpreta essa idéia de-
senvolvida por G. H. Mead com os meios de uma teoria pragmática
da argumentação 14•
Sob os pressupostos comunicacionais de um discurso não-coa-
tivo, preocupado em inserir e conduzido entre participantes livres e
iguais, cada um é exortado a assumir a perspectiva- e com isso a auto-
compreensão e compreensão de mundo - de todos os outros; desse
cruzamento de perspectivas constrói-se uma perspectiva em primeira
pessoa do plural ("nossa") idealmente ampliada, a partir da qual todos
podem testar em conjunto se querem fazer de uma norma discutível a
15. Cf. W. R. Rehg, Insight and Solidarity. The Discourse Ethik of}ürgen Habermas,
Berkeley, 1994.
72 A INCLUSAO DO OUTRO
Se é tão pesado o ânus da prova ocasionado pela subtração de
informações que se inflige com o véu da insciência às partes em con-
dição primitiva, então é natural que, para se diminuir esse encargo, se
operacionalize o ponto de vista moral de maneira distinta. Penso aqui
no procedimento aberto de uma práxis argumentativa que acate as
severas pressuposições do "uso público da razão" e que não descarte já
de antemão o pluralismo das convicções e cosmovisões. Esse procedi-
mento pode ser elucidado sem a recorrência aos conceitos substan-
ciais básicos, que Rawls usa para construir a condição primitiva.
74 A INCLUSÃO DO OUTRO
dida que socializasse seus cidadãos de forma correta 16 . Com vistas ao
factum do pluralismo social e de cosmovisões, que só mais tarde pas-
sou a ser levado a sério em suas reflexões, Rawls acredita ser preciso
testar de forma semelhante se a concepção da justiça em geral, intro-
duzida por via teórica, incide "sobre a arte do possível" e se ela, em tal
medida, é "praticável" 17 • Antes de mais nada, é preciso que o conceito
central de pessoa, sobre o qual a teoria se apóia, seja tão neutro que
possa ser aceito a partir das perspectivas interpretativas de diferentes
visões de mundo. Deve-se demonstrar, portanto, que a justiça enquanto
honestidade pode compor a base de um "consenso abrangente". Irri-
ta-me aí a suposição de Rawls de que tal prova de aceitabilidade seja
de tipo semelhante ao da prova de consistência que ele mesmo, no
primeiro plano, aplicara em face da possibilidade de auto-estabilização
de uma sociedade bem-ordenada.
Essa paralelização metódica é irritante porque desta vez a prova
não pode ser tirada internamente à teoria. O teste quanto à neutralida-
de de visão de mundo dos conceitos sustentadores básicos segue ou-
tras premissas que não aquelas de uma conferição hipotética da capa-
cidade reprodutiva de uma sociedade já instituída segundo princípios
de justiça. O próprio Rawls fala agora de "dois planos" da formação de
teorias. Os princípios fundamentados no primeiro plano precisam ser
submetidos publicamente à discussão no segundo plano, porque apenas
aí se pode levar em conta o fato do pluralismo e tornar retroativo o
corte abstrativo da condição primitiva. Diante do fórum do uso pú-
blico da razão, a teoria em seu todo precisa ser exposta à crítica dos
cidadãos; trata-se aí não mais de cidadãos fictícios de uma sociedade
justa, sobre os quais se podem emitir enunciados no interior da teoria,
mas sim de cidadãos de carne e osso; a teoria precisa manter em aber-
to o término de um teste como esse. Rawls também tem em vista dis-
cursos reais com final em aberto: "What if it turns out that the principies
of justice as fairness cannot gain the support of reasonable doctrines,
so that the case for stability fails? ( ... ) We should have to see whether
acceptable changes in the principies of justice would achieve stability" 18•
19. J. Rawls, "Gerechtigkeit ais FairneB: politisch, nicht metaphysisch': ln: J. Rawls,
1992, pp. 263s.
76 A INCLUSAO DO OUTRO
mental da teoria já fracassa pelo fato de os cidadãos terem primeiro
de se convencer da concepção de justiça, antes que se possa firmar tal
consenso. Essa última não deve ser erradamente "política", não deve
simplesmente conduzir a um modus vivendi. A própria teoria precisa
fornecer premissas "que nós e os outros reconhecemos como racio-
nais quando temos o objetivo de alcançar uma convenção praticável
sobre os pontos fundamentais da justiça política" 20 • Ao excluir uma
interpretação funcionalista da justiça enquanto honestidade, no en-
tanto, Rawls precisa acatar uma relação epistêmica qualquer entre a
validade de sua teoria e a perspectiva de uma comprovação de sua
neutralidade de visão de mundo em discursos públicos. O efeito so-
cial estabilizador de um consenso abrangente explica-se então a par-
tir da atestação cognitiva da suposição de que a concepção de justiça
enquanto honestidade comporte-se de maneira neutra em face de
"doutrinas circunscritivas". Não penso que Rawls se apóie em premis-
sas que o tenham impedido de chegar a essas conclusões; noto, ape-
nas, que ele hesita em expressá-las, porque associa à designação "po-
lítico" uma restrição segundo a qual a teoria da justiça não poderia
estar munida de um anseio epistêmico, da mesma forma que seu efeito
prático esperado não poderia tornar-se dependente da aceitabilidade
racional de seus enunciados. Surge-nos, portanto, a ocasião para per-
guntar por que Rawls não considera sua teoria como apta à verifica-
ção e em que sentido ele se utiliza aqui do predicado "racional" ao
invés de dizer "verdadeiro".
(2) Uma teoria da verdade não poder ser verdadeira ou falsa, só
pode assumir, em uma interpretação atenuada, o sentido comprome-
tedor de que enunciados normativos não retratam nenhuma ordem
de fatos morais que dependa de nós. Em uma interpretação bastante
severa, essa tese assume o sentido valorativamente cético de que por
trás do anseio de validação de enunciados normativos esconde-se algo
puramente subjetivo- sentimentos, desejos ou opções expressos, do
ponto de vista gramatical, de uma maneira desencaminhadora. Para
Rawls, no entanto, realismo valorativo e ceticismo valorativo são igual-
mente aceitáveis. Para os enunciados normativos - e para a teoria da
justiça como um todo-, a intenção de Rawls é assegurar certa obriga-
toriedade apoiada em um reconhecimento intersubjetivo fundamen-
21. "What rational agents lack is the particular form of moral sensibility that
underlies the desire to engage in fair cooperation as such, and so on terms that others
as equals might reasonably be expected to endorse" [O que falta aos agentes racionais
é a forma particular de sensibilidade moral que fundamenta o desejo de se engajar em
uma cooperação justa e honesta como tal, e isso de modo que se possa esperar racio-
nalmente dos outros, como iguais, que eles apóiem tal coisa! J. Rawls, 1993, p. 51.
78 A INCLUSÃO DO OUTRO
por não considerar tal coisa problemática) e, por outro lado, à di-
mensão pragmática da condição pública em que se dá a fundamenta-
ção de normas (o que desperta especial interesse no contexto de nossa
reflexão). A condição pública de seu uso, por assim dizer, está inscrita
na razão. "Pública" é a perspectiva comum a partir da qual os cidadãos
se convencem reciprocamente do que seja justo ou injusto, com a força
do melhor argumento. É tão-somente essa perspectiva do uso pú-
blico da razão, partilhada por todos, que confere objetividade às con-
vicções morais. Rawls denomina "objetivos" os enunciados normativos
válidos; e a objetividade ele fundamenta com base em procedimentos,
ou seja, com referência a um uso público da razão que satisfaz certas
condições contrafactuais: "Politicai convictions (which are also moral
convictions) are objective- actually found on an order of reasons
- if reasonable and rational persons, who are sufficiently intelligent
and conscientious in exercising their powers of practical reason ...
would eventually endorse those convictions ... provided that these
persons know the relevant facts and have sufficiently surveyed the
grounds that bear on the matter under conditions favorable to due
reflection" 22 • Embora Rawls acrescente, a essa altura, que razões só
podem ser especificadas como boas razões por meio de um progra-
ma de justiça já reconhecido, esse programa, por sua vez, tem que
contar com a concordância dos envolvidos sob as mesmas condições
ideais23 • Por isso, suponho que precisamos entender Rawls de modo
que, também segundo a concepção dele, o procedimento do uso pú-
blico da razão continue sendo para os enunciados normativos a última
instância de comprovação.
À luz dessa reflexão, seria cabível dizer que o predicado "racional"
refere-se ao cumprimento de um anseio de validação atendido por via
discursiva. Por analogia a um programa de verdade não-semântico, pu-
rificado de noções de correspondência, poderíamos entender "racional"
como um predicado para a validade de enunciados normativos24• Evi-
dentemente, Rawls não pretende chegar a tal conclusão - que a meu
ver é correta; do contrário, ele teria de evitar o irritante uso lingüístico
segundo o qual imagens de mundo não precisam ser "verdadeiras': mes-
80 A INCLUSÃO DO OUTRO
de um estado constitucional justo" 25 • Esse modo de ver as coisas é muito
simpático; mas como conciliá-lo exatamente com as razões pelas quais
Rawls e eu aceitamos uma primazia do justo sobre o bom?
Questões de justiça são acessíveis a uma decisão fundada- fun-
dada no sentido de uma aceitabilidade racional-, porque elas, a partir
de uma perspectiva descingida de modo ideal, referem-se ao que cor-
responde equanimemente aos interesses de todos. Em face disso, ques-
tões "éticas" em sentido estrito não admitem um julgamento que seja
obrigatório para todas as pessoas morais, e isso porque questões como
tais se referem, sob a perspectiva da primeira pessoa, ao que no todo
e a longo prazo é bom para mim ou para nós enquanto uma determi-
nada coletividade - mesmo que tal coisa não seja igualmente boa
para todos. Imagens de mundo metafisicas e religiosas estão ao menos
impregnadas de respostas a perguntas éticas; pois nelas, de maneira
exemplar, articulam-se identidades e esboços de vida. Portanto, ima-
gens de mundo medem-se antes pela autenticidade dos estilos de vida
que as marcam do que pela verdade dos enunciados que elas contêm.
É justamente por serem "abrangentes" no sentido de que interpretam
o mundo como um todo que não se podem entender as imagens de
mundo como uma quantidade ordenada de enunciados descritivos;
elas não se diluem em sentenças aptas à verificação e tampouco cons-
tituem um sistema simbólico que seja verdadeiro ou falso como tal.
De qualquer maneira, ele se apresenta a nós sob as condições de um
pensamento pós-metafisico, sob as quais se deve fundamentar a jus-
tiça enquanto honestidade.
Mas então não é possível tornar a validade de uma concepção de
justiça dependente da verdade de uma imagem de mundo "racional':
seja ela qual for. Sob essa premissa é muito mais sensato analisar os
diferentes anseios de validação que vinculamos a enunciados descri-
tivos, avaliativos e normativos (de diferentes tipos) independente-
mente daquela síndrome característica a reivindicações de validação
disparadas de maneira obscura nas interpretações religiosas e meta-
físicas do mundo 26 •
25. J. Rawls, "Der Gedanke eines übergreifenden Konsenses". ln: J. Rawls, 1992,
p. 332.
26. Cf. J. Habermas, "Motive nachmetaphysischen Denkens". ln: J. Habermas,
Nachmetaphysiches Denken, Frankfurt am Main, 1988, pp. 35-60 led. br.: Pensamento
pós-metafísico, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1990 ].
82 A INCLUSÃO DO OUTRO
de questões práticas (no sentido de uma coação trascendental ate-
nuada). Rawls crê que uma teoria da justiça não poderia ser"suficien-
temente estruturada" somente por uma alegação procedimental como
essa. Já que prezo em minha reflexão a divisão de trabalho entre teoria
moral e teoria da ação, não considero esse reparo decisivo; a estrutu-
ração conceituai dos contextos acionais a que se referem as questões
da justiça política não é tarefa de uma teoria normativa. Com o con-
teúdo de conflitos carentes de solução impõe-se a nós toda uma rede
de conceitos básicos da teoria da ação para interações regradas nor-
mativamente- uma rede em que têm lugar conceitos como pessoa e
relação interpessoal, agente e ação, comportamento divergente da nor-
ma ou conforme a ela, imputabilidade e autonomia, e mesmo senti-
mentos morais subjetivamente estruturados. Esses conceitos neces-
sitam de uma análise prévia. E, então, quando damos ao conceito da
razão prática a versão procedimental que o próprio Rawls sugere com
seu conceito de uso público da razão, podemos dizer que válidos são
justamente os princípios que, sob as condições discursivas, poderiam
merecer reconhecimento intersubjetivo isento de coações. Há então
uma questão a mais, que se deve responder, a propósito, de forma
amplamente empírica, sobre quando é que os princípios válidos tam-
bém asseguram estabilidade política sob as condições do pluralismo
moderno de visões de mundo. A seguir, será meu interesse executar o
enfoque procedimental tão-somente com vistas a uma conclusão que
diz respeito à elucidação do estado democrático de direito.
Os liberais acentuaram as "liberdades dos modernos", em pri-
meira linha a liberdade de crença e consciência, bem como a defesa da
vida, da liberdade e propriedade pessoal, ou seja, o cerne dos direitos
civis subjetivos; em face disso, o republicanismo defendeu as "liber-
dades dos antigos': quais sejam os direitos políticos de participação e
comunicação que possibilitam a práxis autodeterminante dos cida-
dãos. Rousseau e Kant tinham a ambição de derivar os dois elementos
de uma mesma raiz, ambos como primordiais: nem se podem sim-
plesmente abafar os direitos básicos liberais da práxis autodetermina-
dora como sendo restrições externas, nem se pode instrumentalizá-
los em prol dessas mesmas restrições. Também Rawls segue essa intui-
ção; entretanto, da conformação de sua teoria em dois níveis resulta
uma vantagem dos direitos fundamentais liberais que chega de certa
maneira a obscurecer o processo democrático.
27. Cf. as Tanner Lectures de Rawls, em que se lê no final do parágrafo VII: "O
pensamento encaminha-se para a integração de um procedimento efetivo à estrutura
básica da sociedade capaz de refletir a representação justa e honesta das pessoas, a qual
se conquista por meio da condição primitiva': Rawls, 1992, p. 203.
84 A INCLUSÃO DO OUTRO
das indesejadas. Isso se mostra, por exemplo, no limite rígido entre a
identidade política e a identidade não-pública dos cidadãos. De acordo
com Rawls, esse limite é traçado por direitos fundamentais liberais
que delimitam de antemão a autolegislação e, com isso, a esfera do que
é político, ou seja, sobretudo da formação política da vontade.
Rawls usa a expressão "político" em sentido triplo. Até aqui co-
nhecemos o significado teórico específico: uma concepção de justiça é
política e não metafísica quando é neutra em relação a visões de mun-
do. Mais adiante, Rawls usa a expressão "político" como de costume
para a classificação de assuntos de interesse público, de modo que a
filosofia política se restringe aí à justificação do contexto institucional
e da estrutura básica de uma sociedade. Finalmente, os dois significa-
dos estabelecem uma ligação interessante quando se fala de "valores
políticos': Nesse terceiro significado, "o político" forma uma reserva
tanto para convicções que os cidadãos têm em comum como para os
pontos de vista da delimitação regional de um campo objetivo. Rawls
- nesse ponto quase um neokantiano como Max Weber - trata a
esfera política de valores, que nas sociedades modernas se destaca de
outras esferas culturais, como algo dado. Pois é só com a referência a
valores políticos, sejam quais forem, que ele pode cindir a pessoa mo-
ral em uma identidade pública do cidadão e em uma identidade não-
pública da pessoa em particular, determinada por uma respectiva con-
cepção própria do que seja bom. Essas duas identidades formam assim
os pontos de referência para duas esferas, das quais uma é defendida
pelos direitos políticos de participação e comunicação e a outra, por
direitos liberais à liberdade. E nisso tem primazia a defesa legal básica
da esfera civil, ao passo que "as liberdades políticas" continuam tendo
"consideravelmente um papel instrumental de defesa das demais li-
berdades"28. Com referência à esfera política de valores exclui-se por-
tanto uma esfera de liberdade anterior à política, eximida da interven-
ção por parte da autolegislação democrática.
Contudo, um estabelecimento de limites como esse entre auto-
nomia privada e pública, firmado a priori, contradiz não apenas a ins-
tituição republicana segundo a qual a soberania dos povos e os direi-
tos humanos derivam da mesma raiz. Ela contradiz também a expe-
riência histórica, em especial a circunstância de que os estabelecimen-
28. J. Rawls, "Der Vorrang der Grundfreiheiten': ln: J. Rawls, 1992, p. 169.
29. Cf. S. Benhabib, "Models of Public Space".In: S. Benhabib, Situating the Self.
Cambridge, 1992, pp. 89-120.
30. Cf. ). Rawls, 1993, p. 215.
31. Esse princípio jurídico de Kant retorna no primeiro princípio de Rawls.
86 A INCLUSÃO DO OUTRO
A relação dialética entre autonomia privada e pública só se torna
clara por meio da possibilidade de institucionalização do status de um
cidadão como esse, democrático e dotado de competências para o es-
tabelecimento do Direito, e isso somente com o auxílio do direito coer-
civo. No entanto, porque esse direito se direciona a pessoas que, sem
direitos civis subjetivos, não podem assumir de forma alguma o status
de pessoas juridicamente aptas, as autonomias privada e pública dos
cidadãos pressupõem-se reciprocamente. Como já mencionamos, os
dois elementos já estão entrelaçados no conceito do direito positivo e
coercivo: não haverá direito algum, se não houver liberdades subje-
tivas de ação que possam ser juridicamente demandadas e que garan-
tam a autonomia privada de pessoas em particular juridicamente aptas;
e tampouco haverá direito legítimo, se não houver o estabelecimento
comum e democrático do Direito por parte de cidadãos legitimados
para participar desse processo como cidadãos livres e iguais. Quando
esclarecemos de tal maneira o projeto do Direito, é fácil notar que a
substância normativa dos direitos à liberdade já está contida no ins-
trumento que é ao mesmo tempo necessário à institucionalização jurí-
dica do uso público da razão por parte de cidadãos soberanos. O objeto
central da análise a seguir é formado então pelos pressupostos da co-
municação e pelos processos de uma formação discursiva da opinião
e da vontade, em que o uso público da razão se manifesta 32 •
Em comparação com a teoria da justiça de Rawls, uma teoria da
moral e do direito como essa, voltada aos procedimentos, é ao mesmo
tempo mais modesta e menos modesta. Ela é mais modesta, porque se
restringe aos aspectos procedimentais do uso público da razão e por-
que desenvolve o sistema dos direitos a partir da idéia de sua insti-
tucionalização legal. Ela pode deixar mais perguntas abertas, porque
confia mais no processo de uma formação racional da opinião e da
vontade. Em Rawls, os pesos são divididos de outra forma: enquanto
se reserva à filosofia a precedência para desenvolver a idéia potencial-
mente consensual de uma sociedade justa, os cidadãos utilizam essa
idéia como base a partir da qual julgam as instituições e os políticos
ora subsistentes. Em face disso, sugiro que a filosofia se restrinja ao
esclarecimento do processo democrático e do ponto de vista moral, à
88 A INCLUSÃO DO OUTRO
3
"Racional" versus
"verdadeiro"- ou a moral
das imagens de mundo*)
89
face de imagens de mundo ou comprehensive doctrines [doutrinas cir-
cunscritivas] concorrentes. Rawls associa à expressão "político" uma
interpretação muito particular de neutralidade: "It means that we must
distinguish between how a politicai conception is presented and its
being part, or derivable within, a comprehensive doctrine" 2 • O tipo
de neutralidade caracterizado pela natureza "política" da "justiça como
honestidade" pode ser elucidado pelo fato de que se pode apresentar
essa concepção como sendo "vaga': O que se tem em mente com esse
status, Rawls explica-o com uma das assunções mais notáveis de sua
teoria: "I assume ali citizens to affirm a comprehensive doctrine to
which the politicai conception they accept is in some way related. But
a distinguishing feature of a politicai conception is that it is ... ex-
pounded apart from, or without reference to, any such wider back-
ground ... The politicai conception is a module ... that fits into and
can be supported by various reasonable comprehensive doctrines that
endure in the society regulated by it" (PL, p. 12) 3•
Nessa segunda acepção, a expressão "político" não se refere a uma
matéria determinada, mas sim a um status epistêmico particular ao
qual aspiram as concepções políticas de justiça: elas devem se integrar
como partes coerentes a diversas imagens de mundo. Muito embora
as concepções políticas de justiça possam ser apresentadas indepen-
dentemente de contextos ligados a visões de mundo em particular, e
mesmo "esclarecidas" dessa forma, ou seja: muito embora possam ser
introduzidas de maneira plausível, elas só podem ser fundamentadas
em uma doutrina circunscritiva. Também o liberalismo político se
arroga um status como esse. E como ele precisa ser explicado no âm-
bito dessa teoria, a expressão "vago" tem aqui uma dupla referência.
De um lado, designa uma condição necessária de todas as concepções
2. ["Isso quer dizer que precisamos distinguir entre, de um lado, a maneira pela
qual uma concepção política é apresentada e, de outro, sua parte existente, ou, o que
se pode derivar nesse âmbito, uma doutrina circunscritiva"l Cf. J. Rawls. Politicai
Liberalism. New York, 1993, p. 12 (doravante cit. como PL) [ed. br.: Rawls, Liberalismo
político, São Paulo, Atica, 20001.
3. ["Aceito que todos os cidadãos afirmem uma doutrina compreensiva, com a
qual a concepção política que eles aceitam está de certo modo relacionada. Mas uma
característica distintiva da concepção política é que ela é ... interpretada separada de,
ou sem referência a, qualquer circunstância mais ampla ... A concepção política é um
módulo ... que cabe em e pode ser apoiada por várias doutrinas racionais compreensi-
vas que persistem na sociedade que por ela se regula" 1.
90 A INCLUSÃO DO OUTRO
de justiça que se possam cogitar como candidatas à inclusão em um
"consenso abrangente': De outro lado, o predicado "vago" deve apli-
car-se à própria teoria que o explica: "justiça como honestidade" é uma
das candidatas mais promissoras. Esse uso auto-referencial de "vago"
pode ser entendido como anseio político. Rawls espera que, sob as
condições de um "equilíbrio reflexivo ilimitado"\ a própria teoria ofe-
reça um fundamento sobre o qual os cidadãos da sociedade norte-ame-
ricana (e mesmo de toda e qualquer sociedade "moderna") possam al-
mejar um consenso político fundamentaL
Menos plausível é que Rawls ainda onere o uso auto-reflexivo da
expressão "vago" com outro anseio, teórico. Ele parece supor que uma
teoria vaga no campo do que é político assuma uma mesma posição
no campo da filosofia e contorne assim todas as questões controver-
sas da metafísica- "leaving philosophy as it is" [deixando a filosofia
como ela é]. Não é de se esperar que Rawls possa elucidar o status epis-
têmico de uma concepção vaga de justiça sem que precise tomar po-
sição em relação a questões filosóficas, que talvez nem se incluam na
categoria do que é "metafísico", mas que certamente ultrapassam a
esfera do "político".
A expressão "metafísico", na verdade, ganha um sentido próprio a
partir da oposição a "político': Sociedades modernas, por causa de seu
pluralismo religioso e cultural, dependem de um consenso abrangente
sobre questões relacionadas à justiça política, e neutro em relação a
visões de mundo em particular. Sem dúvida, mesmo uma teoria que
pretenda apenas apoiar tal consenso tem de ser "política e não meta-
física': nesse sentido. Disso ainda não resulta, de modo algum, que a
própria teoria política possa mover-se "por completo no campo do que
é político" (R, p. 133) e manter-se isenta das controvérsias filosóficas
remanescentes. Discussões filosóficas podem ultrapassar a esfera do po-
lítico em muitas direções. A filosofia, afinal, é um empreendimento
institucionalizado que se dá sob a forma de uma busca cooperativa
da verdade, e não cultiva necessariamente uma relação interna ao que
é "metafísico" (no sentido do Liberalismo político). Se a explicação do
status epistêmico de uma concepção "vaga" nos enreda em discussões
não-políticas sobre a razão e a verdade, isso não significa eo ipso o envol-
"RACIONAL" VERSUS"VERDADEJRO" 91
vimento em questões e controvérsias metafísicas. De maneira indireta,
como que performativa, a investigação a seguir deve aclarar esse pon-
to. Ela procurará, de modo explícito, clarear o status epistêmico de uma
concepção vaga de justiça em sentido - capciosamente - político.
Eu gostaria de checar como funciona a divisão de trabalho entre
o político e o metafísico, que se espelha em uma especial dependência
do "racional" em relação ao "verdadeiro': Não é nada evidente que ra-
zões publicamente defensáveis e independentes de seus agentes pos-
sam ter peso decisivo apenas em favor da "racionalidade" de uma con-
cepção política, ao passo que razões não-públicas e dependentes dos
agentes devam bastar para a reivindicação autóctone e consolidada de
uma "verdade" moral. A resposta generosa e detalhada de Rawls a mi-
nhas observações tentativas 5 deixa claros - entre outras coisas - os
tipos de justificação que conduzem a um "overlapping consensus': Sob
a luz desses esclarecimentos, gostaria de desenvolver a seguinte tese:
enquanto os cidadãos racionais não estiverem em condições de adotar
um "ponto de vista moral" que se mostre independente das perspectivas
das diferentes imagens de mundo assumidas por cada um deles em
particular e que as preceda, não podemos esperar deles um "consenso
abrangente". O conceito "racional"- reasonable- ou inflaciona-se
ao ponto de se tornar atenuado demais para assinalar a validade de
uma concepção de justiça subjetivamente reconhecida; ou é definido
de forma suficientemente severa, mas de modo que o que seja prati-
camente "racional" coincide com o moralmente correto. Eu gostaria
de demonstrar que- e por que- Rawls não consegue evitar enfim o
total esvaziamento das exigências da razão prática - exigências essas
que são na verdade arrancadas das imagens de mundo racionais e não
se limitam a refletir sobreposições bem-sucedidas dessas mesmas ima-
gens de mundo6 •
Antes que eu comece medias in res, permitam-me caracterizar o
desafio da situação moderna da consciência à qual as teorias da justiça
têm de reagir, de um maneira ou de outra (1). Logo a seguir, esboça-
rei com a brevidade possível o passo filosófico que leva de Hobbes a
Kant (2), pois essa posição constitui o pano de fundo para a peculiar
alternativa de Rawls (3). Na parte central, analisarei (4) a divisão dos
92 A INCLUSÃO DO OUTRO
ônus de prova entre as concepções "racionais" de justiça e as "verdadei-
ras" morais das imagens de mundo, para então (5) discutir as dificul-
dades daí decorrentes para a construção da justificativa de um consen-
so abrangente. Finalmente, (6) menciono argumentos em favor de uma
concepção procedimental e próxima a Kant, qual seja a concepção de
"uso público da razão': Quando se entende a justiça política dessa ma-
neira, (7) a autolegislação democrática assume o lugar ocupado no li-
beralismo político pelas liberdades negativas. Assim, os realces deslo-
cam-se e posicionam-se em favor de um republicanismo kantiano.
e
A moderna situação de partida
"RACIONAL" VERSUS"VERDADEIRO" 93
Rawls reage a essa situação moderna da consciência com a pro-
posta de uma concepção de justiça suficientemente neutra, em torno
da qual se possa cristalizar um acordo político básico, firmado entre
cidadãos com diferentes concepções religiosas ou metafisicas. Filóso-
fos morais e teóricos da política entenderam como sua tarefa em co-
mum a elaboração de um equivalente racional para as justificações
tradicionais atribuídas a normas e princípios. Em sociedades tradi-
cionais, a moral era parte integrante de imagens de mundo ontológicas
ou ligadas à história da salvação que podiam contar com grande acei-
tação pública. Normas e princípios morais equivaliam a elementos de
uma "ordem das coisas" racional e impregnada de noções de valor, ou
então elementos de um caminho exemplar de salvação. Em nosso con-
texto é especialmente interessante que essas explicações "realistas" te-
nham podido aparecer sob o modo assertivo de sentenças aptas à ve-
rificação. Porém, depois da invalidação pública das explicações reli-
giosas e metafisicas, e com o crescimento da autoridade epistêmica
das ciências empíricas, distinguiu-se mais fortemente entre os enun-
ciados normativos e os enunciados descritivos, de um lado, e entre os
enunciados normativos e os juízos de valor e enunciados vivenciais,
de outro. Seja qual for o posicionamento assumido diante da discus-
são sobre ser e dever, o fato é que, com a transição para a modernidade,
a razão "objetiva" incorporada na natureza e na história da salvação
foi deposta pela razão "subjetiva" do espírito humano. Com isso, im-
pôs-se a questão sobre o teor cognitivo de sentenças normativas em
geral e sobre a respectiva possibilidade de fundamentá-las.
Essa questão representa um desafio sobretudo para aqueles (como
Rawls e eu) que refutam tanto o realismo moral quanto o ceticismo
moderno em relação aos valores. A suposição recíproca de uma capa-
cidade de julgamento moral que observamos na práxis cotidiana exige
uma explicação que não contesta o caráter racional de argumentações
morais. A circunstância de que disputas morais continuem em curso
revela algo sobre a infra-estrutura da vida social, que está perpassada de
reivindicações triviais de validação. A integração social depende ampla-
mente de um agir que se oriente pelo acordo mútuo e que esteja emba-
sado sobre o reconhecimento de reivindicações de validação falíveis 7 •
94 A INCLUSÃO DO OUTRO
Diante desse contexto, nem a premissa com a qual Hobbes pre-
tendeu tirar a filosofia prática de seu beco sem saída torna-se mais plau-
sível. Hobbes pretendeu reduzir a razão prática a uma razão instru-
mental. Na tradição da teoria hobbesiana do contrato, há até hoje en-
foques inteligentes que logram, de forma harmónica, entender razões
morais no sentido de motivos racionais e atribuir juízos morais à esco-
lha racional. O contrato social é sugerido como um procedimento para
o qual é suficiente haver o interesse próprio e esclarecido dos partici-
pantes. Aos contratantes basta refletir se é racional ou propositado, à
luz de seus desejos e preferências, adotar uma regra comportamental
ou um sistema de regras desse tipo. Contudo, como demonstra o pro-
blema dos que deixam para tomar decisões oportunistas de última hora
quando tudo já está praticamente resolvido, essa estratégia ignora o
sentido especificamente obrigatório de normas vinculativas e de enun-
ciados morais válidos. De passagem, limito-me ao argumento que T.
M. Scanlon usou contra o utilitarismo: "The right-making force of a
person's desire is specified by what might be called a conception of
moral argumentation; it is not given, as the notion of individual well-
being may be, simply by the idea of what is rational for an individual to
desire" 8 . Contudo, se não se pode elucidar o teor cognitivo de enuncia-
dos normativos segundo os conceitos da racionalidade instrumental,
qual é o tipo de razão prática a que devemos recorrer?
De Hobbes a Kant
"RACIONAL" VERSUS"VERDADEIRO" 95
tivas" que garantem a verdade das concepções morais que nelas re-
pousam. Nas duas direções acabamos deparando impedimentos. Na
primeira direção, precisamos diferenciar claramente a razão prática
da teórica, mas de tal forma que ela não ponha a perder seu teor cog-
nitivo. Nesse caso, estamos envolvidos com um pluralismo perma-
nente de visões consideradas verdadeiras no círculo de seus defen-
sores, muito embora todos saibam que apenas uma delas pode ser
realmente verdadeira.
Na tradição kantiana, a razão prática determina a perspectiva de
um julgamento imparcial de normas e princípios. Esse "ponto de vista
moral" é operacionalizado com a ajuda de diferentes preceitos e pro-
cedimentos - seja o imperativo categórico, seja uma troca ideal de
papéis, tal como em Mead, seja uma regra argumentativa, como em
Scanlon, seja a construção de uma condição primitiva que impõe res-
trições adequadas à escolha racional das partes, tal como sugere Rawls.
Esses diferentes delineamentos têm a finalidade última de possibilitar
uma convenção ou um acordo tal, que os resultados de nossa intuição
satisfaçam a deferência eqüânime e a responsabilidade solidária de-
vidas a cada um. Como os princípios e normas selecionados dessa
maneira exigem para si um reconhecimento geral, essa união erigida
por via correta precisa qualificar-se em sentido epistêmico. As razões
postas na balança precisam ter peso epistêmico e não podem expres-
sar tão-somente o que certas pessoas consideram racional fazer, se-
gundo suas respectivas preferências dadas.
Uma possibilidade de apreender o papel epistêmico de reuniões
práticas em conselho é a descrição exata, sob o ponto de vista moral,
da maneira pela qual os interesses pessoais que entram nessas reu-
niões como motivos racionais vão alterando seu próprio papel e sig-
nificado ao longo da argumentação. Pois em discursos práticos o que
"conta" para o resultado são apenas os interesses apresentados como
valores intersubjetivamente reconhecidos e que se candidatam a ser
aceitos no teor semântico das normas válidas. Somente as orienta-
ções de valor generalizáveis ultrapassam esse limiar, ou seja, somente
as orientações de valor que podem ser aceitas com boas razões por
todos os participantes (e envolvidos) para servirem à normatização
de uma matéria carente de regulamentação- e que com isso ganham
força normativamente vinculativa. Um "interesse" pode ser descrito
como "orientação de valor" quando é partilhado por outros integran-
96 A INCLUSÃO DO OUTRO
tes em situações parecidas. Portanto, caso se deva considerar um in-
teresse sob o ponto de vista moral, é preciso que ele se desprenda da
vinculação à perspectiva de uma primeira pessoa. Tão logo ele seja
traduzido para um vocabulário avaliativo subjetivamente partilhado,
aponta para além de desejos ou preferências e então, como candidato
a uma generalização valorativa no âmbito de fundamentações mo-
rais, pode assumir o papel epistêmico de um argumento. O que in-
gressa no discurso como desejo ou preferência só passa no teste de
generalização mediante a descrição de um valor que seja considerado
por todos os participantes em geral como aceitável para a regulamen-
tação da respectiva matéria.
Suponhamos que a reunião prática em conselho possa ser con-
cebida como uma forma de argumentação que se diferencie tanto da
escolha racional quanto do discurso factual. Aí então uma teoria da ar-
gumentação orientada de maneira pragmática se apresentaria como
caminho para se elaborar a concepção de uma razão prática distinta
tanto da razão instrumental quanto da teórica. Seria possível garantir
um sentido cognitivo a sentenças obrigacionais sem assimilá-las a sen-
tenças assertivas ou atribuí-las à racionalidade instrumental. Ainda
persiste, no entanto, a analogia entre verdade e correção normativa, o
que imporia novas questões. Não poderíamos eximir-nos das já co-
nhecidas controvérsias sobre conceitos semânticos e pragmáticos de
fundamentação e de verdade, nem tampouco da discussão sobre a
relação entre significação e validação, sobre a construção e o papel de
argumentos, sobre lógica, procedimento e forma comunicativa da ar-
gumentação, e assim por diante. Precisaríamos ocupar-nos da rela-
ção do universo social com os universos objetivo e subjetivo, e não
poderíamos escapar do debate permanente acerca da racionalidade.
Por isso é muito compreensível a tentativa de Rawls de evitar discus-
sões desse tipo- e mesmo que não se classifiquem essas controvér-
sias como sendo "metafísicas".
Por outro lado, se a estratégia de desoneração de uma separação
clara entre o político e o metafísico pode ou não ter êxito, essa é outra
questão. Inicialmente, Rawls procurou seguir a estratégia kantiana de
avanço; em Uma teoria da justiça ele se havia imposto a tarefa de aclarar
o "ponto de vista moral" com o auxílio da condição primitiva. De qual-
quer modo, a construção da "justiça como honestidade" nutriu-se de
uma razão prática que se corporifica nas duas "capacidades elevadas"
98 A INCLUSÀO DO OUTRO
tre o político e o metafísico, o que resulta na separação entre o con-
teúdo- sobre o qual todos os cidadãos podem estar de acordo - e as
respectivas razões- a partir das quais o indivíduo pode aceitar esse
conteúdo como sendo verdadeiro. Essa construção parte tão-somente
de duas perspectivas: cada cidadão vincula a perspectiva de partici-
pante à de observador. Observadores podem descrever processos na
esfera política, tais como, por exemplo, o fato do surgimento de con-
sensos abrangentes. Podem saber que esse consenso se ajusta em de-
corrência da sobreposição bem-sucedida das diversas partes de dife-
rentes imagens religiosas e metafísicas de mundo, e que ele contribui,
desse modo, para que haja estabilidade na coletividade. Porém, nesse
ajuste dos observadores, o qual tem por fim a objetivação, os cida-
dãos não podem imergir reciprocamente nas demais imagens de
mundo, nem reconstituir os respectivos teores de verdade a partir de
cada uma das demais perspectivas internas. Banidos às fronteiras dos
discursos que se limitam a constatar fatos, veda-se aos cidadãos um
posicionamento em face do que os participantes crentes ou convic-
tos consideram verdadeiro, correto e valoroso, a partir de suas pers-
pectivas de primeira pessoa. Tão logo os cidadãos tenham a intenção
de se expressar sobre as verdades morais ou, em geral, sobre as "con-
cepções do que tem valor na vida humana" (PL, p. 175), eles se vêem
obrigados a reassumir a perspectiva de participante inscrita em sua
própria imagem de mundo. Pois os enunciados morais ou os juízos
de valor só podem ser fundamentados a partir do contexto de inter-
pretações de mundo mais próximo. Razões morais para uma con-
cepção de justiça que se tenha presuntivamente em comum são, por
definição, razões não-públicas.
Só a partir da perspectiva de seu próprio sistema interpretativo
é que os cidadãos podem se convencer da verdade de uma concepção
de justiça- adequada para todos. É ao obter uma aprovação funda-
mentada de maneira não-pública por todos os envolvidos que tal con-
cepção comprova sua adequação como base comum para uma justi-
ficação pública de princípios constitucionais. Portanto, a validação
pública do conteúdo desse "consenso abrangente" acatado por to-
dos, ou seja, sua "racionalidade", decorre tão-somente da feliz cir-
cunstância de que no resultado final converjam as razões não-pú-
blicas motivadas pelas mais diversas vias. Das premissas de diferen-
tes visões resulta, nas conseqüências, uma concordância. Com isso, é
"RACIONAL" VERSUS"VERDADEIRO" 99
decisivo para a adoção da teoria no todo que os participantes pos-
sam observar essa convergência como mero fato social: "The express
contents of these doctrines have no normative role in public justifi-
cation" [Os conteúdos expressos dessas doutrinas não desempenham
papel normativo no processo de justificação pública] (R, p. 144). Pois
nesse estágio Rawls não concede a seus cidadãos uma terceira pers-
pectiva, uma perspectiva que venha acrescer-se à dos observadores e
participantes. Antes que se chegue a um consenso abrangente, não
há qualquer perspectiva pública, intersubjetivamente partilhada, que
possa tornar possível aos cidadãos alcançar uma formação de juízo
"de casa': por assim dizer. Podemos dizer que falta o "ponto de vista
moral" sob o qual os cidadãos, em um conselho público e comunal,
possam desenvolver e justificar uma concepção política. O que Rawls
denomina "uso público da razão" pressupõe, como base comum, um
consenso político fundamental já alcançado. Essa base só é ocupada
pelos cidadãos post festum, ou seja, na seqüência da "sobreposição"
de suas diferentes convicções de fundo que se vão ajustando: "Only
when there is a reasonable overlapping consensos can politicai
society's politicai conception of justice be publicy... justified" [So-
mente quando há um consenso racional decorrente da sobreposição
é que se pode justificar publicamente a concepção política de justiça
de uma sociedade política] (R, p. 144).
Decisiva para a relação complementar entre o político e o me-
tafísico é uma descrição da situação de partida tal como representada
a partir da visão de "crentes': ou seja, da visão que representa a parte
"metafísica". Na divisão de trabalho entre o político e o metafísico re-
flete-se a relação complementar entre o agnosticismo público e a con-
fissão privada, entre o daltonismo confessional de um poder estatal
neutro e a força iluminadora de visões de mundo que pelejam pela
"verdade" no sentido enfático. As verdades morais que como antes
continuam abrigadas em imagens de mundo religiosas e metafísicas
partilham dessa forte reivindicação de verdade, mesmo que o fato do
pluralismo também lembre que as doutrinas circunscritivas não estão
mais aptas à justificação pública.
A engenhosa distribuição dos ónus de prova liberta a filosofia
política de sua inquietante tarefa de criar um sucedâneo para a funda-
mentação moral das verdades morais. O metafísico, embora tenha sido
riscado da agenda pública, continua sendo o fundamento último para
10. Cf. L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993, parte II,
pp. 166ss.
11. Seguirei os "três tipos" de justificação na seqüência indicada por Rawls. Essa
seqüência lógica não é entendida como uma ordem cronológica de estágios, mas assi-
nala o caminho em que cada contemporâneo pode radicalizar seu posicionamento em
relação a questões atuais de justiça política. Tão logo sua crítica questione o consenso
político fundamental vigente, a partir da visão de uma concepção de justiça concor-
rente, já caberá a esse mesmo contemporâneo defender sua alternativa a caminho de
uma gênese lógica como essa.
13. ["O conteúdo expresso dessas doutrinas não tem função na justificação pú-
blica; cidadãos não levam em conta o conteúdo de outras doutrinas ... Antes levam em
conta e concedem alguma importância apenas ao fato- a existência- do próprio con-
senso racional coincidente».]
14. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994, p. 159.
15. Cf. Forst, 1994, pp. 152-161 e 72ss.
16. "The particular meaning of the priority of rights is that comprehensive con-
ceptions of the good are admissible ... only if their pursuit conforms to the politicai
conception of justice" ["O significado próprio de prioridades de direitos é que as concep-
ções compreensivas do bem são admissíveis ... apenas se a busca desse bem é conforme
à concepção política de justiça"] (PL, p. 176, Fn. 2).
17. "ln this case (i. e. when an overlapping consensus is achieved) citizens embed
their shared politicai conception in their reasonable comprehensive doctrines. Then
we hope that citizens will judge (by their comprehensive view) that politicai values are
normally (though not always) prior to, or outweigh, whatever non-political values
may conflict with them" ["Nesse caso (i. é, quando um consenso abrangente é alcan-
çado), os cidadãos fixam sua concepção política comum em suas doutrinas racionais
compreensivas. Esperamos que então esses cidadãos julguem (com sua visão com-
preensiva) que os valores políticos são normalmente (embora não sempre) prioritá-
rios, ou mais valiosos, que quaisquer valores não-políticos que possam entrar em
conflito com eles") (R., p. 147).
11 0 A INCLUSÃO DO OUTRO
sentes nas imagens de mundo "racionais': Uma exigência da razão prá-
tica, à qual as imagens de mundo tenham de se curvar no caso de um
consenso abrangente dever se tornar possível, só pode justificar-se,
evidentemente, em virtude de uma autoridade epistêmica que inde-
penda das próprias imagens de mundo 18 •
Com uma razão prática que se emancipasse da dependência da
moral das imagens de mundo, no entanto, a relação interna entre o
verdadeiro e o racional passaria evidentemente a estar acessível. Essa
vinculação tem de permanecer opaca somente enquanto a fundamen-
tação de uma concepção política só puder ser discernida a partir do
contexto da respectiva imagem de mundo. Contudo, a direção desse
ponto de vista inverte-se caso a precedência dos valores políticos tenha
de se legitimar a partir de uma razão prática que defina, ela mesma,
quais são as imagens de mundo que se podem considerar racionais.
Filósofos e cidadãos
20. [" ... de que de fato (a oferta filosófica) será capaz de formatar (grifo meu)
essas doutrinas em relação a si mesma"].
121
ram uma "entidade estatal" racional; de outro, havia escritores e histo-
riadores, sobretudo eruditos e intelectuais, que, com a propagação da
unidade mais ou menos imaginária de uma "nação cultural': estiveram
ocupados em preparar a unificação estatal imposta (apenas em um se-
gundo momento) por via diplomático-militar (por Cavour ou Bismarck,
por exemplo). Uma terceira geração de Estados nacionais muito diver-
sos surgiu após a Segunda Guerra Mundial, como decorrência do pro-
cesso de descolonização, sobretudo na África e na Ásia. Não raro, esses
Estados fundados nos limites do domínio colonial precedente já re-
clamavam soberania antes mesmo que as formas de organização esta-
tais importadas pudessem lançar raízes sobre o substrato de uma na-
ção- que ultrapassava os limites tribais. Nesses casos, Estados artificiais
tiveram de ser "preenchidos" com nações que iam crescendo posterior-
mente. Por fim, a tendência à formação de Estados nacionais indepen-
dentes continuou na Europa Oriental e Meridional, após o colapso da
União Soviética, na trilha de secessões mais ou menos violentas; na si-
tuação social e económica precária desses países, os velhos apelos etno-
nacionais foram suficientes para mobilizar populações vacilantes de
modo que assumissem a luta pela independência.
Hoje, portanto, o Estado nacional impôs-se definitivamente so-
bre as formações políticas mais antigas'. Certamente as cidades-esta-
do clássicas haviam tido sucessores na Europa moderna, por ora em
cidades da Itália Setentrional e - na região da antiga Lotaríngia -
nos cinturões urbanos de que surgiram a Suíça e os Países Baixos. Tam-
bém reapareceram as estruturas dos Impérios da Antigüidade, inicial-
mente sob a forma do Sacro Império Romano-Germânico, e mais tar-
de nos Estados pluriétnicos dos Impérios russo, otomano e austro-
húngaro. Mas nesse ínterim o Estado nacional recalcou essas heranças
pré-modernas. No momento, observamos a profunda transformação
da China, o último dos antigos impérios.
Na concepção de Hegel, toda formação histórica, a partir do mo-
mento de sua maturidade, está condenada à decadência. Não é preciso
adotar sua filosofia da história para reconhecer que essa marcha vito-
riosa do Estado nacional tem também sua face irónica. A seu tempo, o
Estado nacional foi uma resposta convincente ao desafio histórico de
o
"Estado, e "Nação,
2. Em seu artigo "Über den Gemeinspruch", Kant distingue claramente "a igual-
dade (do indivíduo) a cada outro enquanto súdito" da "liberdade do ser humano" e da
"autonomia do cidadão", Werke (Weischedel), vol. VI, p. 145.
3. "O modelo de nações ingressou na história européia sob a natureza de con-
ceitos opostos assimétricos': H. Münkler, "Die Nation ais Modell politischer Ordnung",
Staatswissenschaft und Staatspra.xis, ano 5, cad. 3 (1994): p. 381.
GD
A tensão entre nacionalismo e republicanismo
7. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992, pp. 493ss.
II. J. M. Guéhenno, Das Ende der Demokratie, München-Zürich, 1994, pp. 86s.
147
de "etnonacionalismo", para salientar a indisponível relação com as
origens, seja no sentido físico de uma ascendência comum, seja no
sentido mais amplo de uma herança cultural comum.
As terminologias estão longe de ser inocentes. Elas sugerem de-
terminado modo de ver. A recente criação do termo "etnonaciona-
lismo" passa por cima da diferença fixada na terminologia tradicio-
nal entre "ethnos" e "demos" 2• A expressão salienta a proximidade
entre, por um lado, as etnias, ou seja, as comunidades de ascendên-
cia, pré-políticas, organizadas segundo relações de parentesco, e, por
outro lado, as nações organizadas como Estados e que pelo menos
aspiram à independência política. Com isso, contradiz-se implici-
tamente a pressuposição de que as comunidades étnicas são "mais
naturais" e "mais antigas': do ponto de vista da evolução, do que as na-
ções3. A "consciência do nós': fundada num imaginário parentesco
de sangue ou identidade cultural, de pessoas que compartilham a cren-
ça numa origem comum e se identificam mutuamente como "mem-
bros" de uma mesma comunidade, diferenciando-se assim dos que
os rodeiam, deveria constituir o cerne comum das comunidades étni-
cas ou nacionais. Em vista desses aspectos comuns, as nações dife-
renciar-se-iam essencialmente de outras comunidades étnicas pela
sua complexidade e tamanho: "It is the largest group that can command
a person's loyalty because of felt kinship ties; it is, from this perspective,
the fully extended family" 4 .
Esse conceito etnológico de nação entra em concorrência com o
conceito empregado historicamente, porque apaga as referências es-
pecíficas à ordem do Estado democrático de direito, à historiografia
política e à dinâmica da comunicação de massas, às quais a consciência
nacional surgida na Europa do século XIX deve seu caráter reflexivo e
2. Cf. M. R. Lepsius, "'Ethnos' und 'Demos'". ln: idem:, lnteressen, Ideen und lnsti-
tutionen, Opladen 1990, 247 -256; idem, Demokratie in Deutschland, Gõttingen 1993.
3. Cf. C. Leggewie, "Ethnizitiit, Nationalismus und multikulturelle Gesellschaft".
ln: H. Berding (ed.), Nationales Bewufttsein und kollektive Identitiit, Frankfurtam Main
1995,54.
4. [É o maior grupo que pode comandar a lealdade de uma pessoa devido ao
sentimento de liames de parentesco; é, a partir desta perspectiva, a família extensa ple-
na.] W. Connor, Ethnonacionalism, Princeton U. P., 1994, 202: Ou r answer to that often
asked question, "What is a nation'; is that it is a group ofpeople who feel they are ancestrally
related ["Nossa resposta à pergunta freqüentemente formulada, "o que é uma nação?':
é que ela é um grupo de pessoas que ~entem que são ancestralmente relacionadas.]
5. Cf. H. Schulze, Staat und Nation in der Europaischen Geschichte, München, 1994.
6. Cf. p. ex. P. Sahlins, Boundaries, University of California Press, Berkeley 1989.
o
Construções da soberania popular
no direito constitucional
21.1. Maus, '"Volk' und 'Nation' im Denken der Autklãrung", Bliitter für deutsche
und internationale Politik, 5, 1994, 604.
22. Cf. R. Forst, Kontexte der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main 1994, Cap. I e III.
23. Cf. I. Maus, Zur Aufkli:irung der Demokratietheoríe, Frankfurt am Main 1992.
24. [Dizer que todos os povos ... têm direito a um processo democrático pressu-
põe uma pergunta anterior. Quando uma coleção de pessoas constitui uma entidade re
'um povo' re com direito a se autogovernar democraticamente?] R. A. Dahl, Democracy
and Its Critics, Yale U. P., New Haven e Londres, 1989, 193.
31. Cf. Ch. Taylor, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank-
furtam Main 1993.
32. Cf. J. Habermas, "Kampf um Anerkennung im demokratischen Rechtsstaat",
vide adiante.
33. ["O princípio da maioria em si depende de pressupostos prévios a respeito
da unidade: depende de que a unidade dentro da qual ele deve operar seja em si legíti-
ma e de que os assuntos aos quais é aplicado recaiam apropriadamente em sua jurisdi-
ção. Com outras palavras, o fato de o escopo e o domínio da regra majoritária serem
apropriados para uma unidade específica depende de pressupostos para cuja justifica-
tiva o princípio da maioria em si nada pode contribuir e que, por isso mesmo, ficam
além do alcance da própria teoria democrática"] Dahl (1989), 104.
39. Quanto à discussão desse aspecto na obra de Walzer, cf. B. Jahn, "Humanitãre
lntervention und das Selbstbestimmungsrecht der Võlker': Politische Vierteljahresschrift,
34,1993,567-587.
40. M. Walzer, Just and Unjust Wars. A Moral Argument with Historical Illustrations
(1977). N. Y. 1992.
41. ["A idéia de uma integridade comunitária deriva sua força moral e política
dos direitos dos homens e das mulheres contemporâneos a viver como membros de
uma comunidade histórica e de exprimir a cultura por eles herdadas, mediante formas
políticas elaboradas por eles mesmos"] M. Walzer, "The Moral Standing of States",
Philosophyand Public Affairs, 9, 1980,209-229, aqui 211.
43. ["O mero fato de a multidão compartir alguma forma de vida em comum re
tradições, costumes, interesses, história, instituições e fronteiras comuns re não é su-
ficiente para gerar uma comunidade política genuína, independente, legítima':] G.
Doppelt, "Walzer's Theory of Morality in International Relations", Philosophy and Pu-
blic Affairs, 8, I 978, 3-2, aqui 19.
44. Cf. D. Senghaas, Wohin driftet die Welt?, Frankfurt am Main 1994,185.
45. Cf. K. O. Nass, "Grenzen und Gefahren humanitarer Interventíonen·: Europa-
Archiv, I O, 1993, 279-288.
46. Cf. Ch. Greenwood, "Gibt es ein Recht aufhumanitãre Jntervention?': Europa-
Archiv, 23, 1993, 93-106.
53. ["Em toda parte o problema era 'preencher' Estados'pré-fabricados' com con-
teúdos nacionais. Isso coloca a interessante questão de por que os Estados pós-colo-
niais têm que ser nações ... A construção de uma nação, enquanto desenvolvimento,
significa a extensão de sentimento ativo de pertença a toda a população, a aceitação
segura da autoridade do Estado, a redistribuição de recursos para fomentar a igualda-
de dos membros, assim como a extensão de uma operacionalidade efetiva do Estado
à periferia"] Ch. Joppke, Nation-Buildingafter World War Two, (European lnstitute),
Florença 1995, p. 10.
177
Conselho de Ministros, bem como as decisões do Tribunal Europeu,
intervêm cada vez mais profundamente nas relações dos Estados-mem-
bros. No âmbito dos direitos de soberania que foram transferidos à
União, o Poder Executivo Europeu pode impor suas decisões à revelia
do descontentamento de governos nacionais. Ao mesmo tempo, en-
quanto o Parlamento Europeu dispuser apenas de competências bran-
das, falta a essas decisões uma legitimação democrática imediata. Os
órgãos executivos da Comunidade derivam sua legitimação da legiti-
mação dos governos dos Estados-membros. Eles não são órgãos de
um Estado que tivesse sido constituído por um ato da vontade dos
cidadãos europeus unidos. Com o passaporte europeu não se vincu-
lam até o momento quaisquer direitos que fundamentem uma cida-
dania democrática de base estatal.
A conseqüéncia politica: em face dos federalistas, que exigem uma
configuração democrática da UE, Grimm adverte contra um desgaste
ainda maior das competências dos Estados nacionais no âmbito do
direito europeu. Segundo ele, o déficit democrático não seria solucio-
nado pela "redução estatizante" dos problemas, mas sim aprofundado.
Novas instituições políticas - um Parlamento Europeu munido das
competências usuais, uma Comissão alçada a governo, uma Segunda
Câmara que substituísse o Conselho de Ministros e um Tribunal Eu-
ropeu com competências ainda maiores - não constituem per se so-
lução alguma. Enquanto não se lhes infundir vida, elas antes corrobo-
ram a tendência de crescimento da autonomia de uma política buro-
crática, já perceptível no âmbito nacional. Até hoje, porém, faltam os
pressupostos reais de uma formação da vontade dos cidadãos integrada
em âmbito europeu. O euroceticismo quanto ao direito constitucional
leva portanto a um argumento empiricamente fundamentado: enquan-
to não houver um povo europeu suficientemente "homogêneo" para
formar uma vontade política, não deve tampouco haver uma Cons-
tituição européia.
Para discussão: minhas ponderações voltam-se (a) contra ades-
crição incompleta das alternativas e (b) contra a fundamentação nor-
mativa (não totalmente isenta de ambigüidades) das exigências fun-
cionais para uma formação democrática da vontade.
Sobre (a): D. Grimm evidencia as conseqüências indesejadas que
a transformação da União Européia em um Estado confederado de
constituição democrática poderia ocasionar, caso as novas instituições
185
em geral, e afasta toda guerra" (Streit der Fakultaten, WerkeVI, 364 1).
Surpreendente aí é a conseqüência: " ... e afasta toda guerra". Isso
aponta para que as normas do direito das gentes, que regulam a guer-
ra e a paz, só devam estar vigentes de maneira peremptória, isto é, só
devam vigorar até o momento em que o pacifismo jurídico, ao qual
Kant apontou em seu texto "Sobre a paz perpétua", tenha levado ao
estabelecimento de uma categoria cosmopolita e, portanto, à supres-
são da guerra.
Naturalmente, Kant desenvolve essa idéia segundo os conceitos
do direito racional e no horizonte de experiência de sua época. As
duas coisas afastam-nos de Kant. Com o imerecido "saber melhor"
alardeado pelas gerações mais jovens, reconhecemos hoje que a cons-
trução sugerida por Kant enfrenta dificuldades conceituais e já não se
mostra mais adequada a nossas experiências históricas. Por isso, tra-
tarei primeiro de rememorar as premissas assumidas por Kant como
ponto de partida. Elas dizem respeito a todos os três passos de seu
raciocínio: tanto à definição do fim imediato, a paz perpétua, à defi-
nição do verdadeiro objetivo, a forma jurídica de uma aliança entre
os povos, e à solução histórico-filosófica do problema aí proposto, a
concretização da idéia da condição cosmopolita (I). A isso sucede a
pergunta sobre como se apresenta a idéia kantiana à luz da história
dos últimos duzentos anos (II) e de que maneira essa idéia precisa
ser reformulada em vista da situação mundial em nossos dias (III). A
alternativa esboçada por juristas, politólogos e filósofos à reincidên-
cia em uma condição natural suscitou restrições ao universalismo do
direito cosmopolita e à política de direitos humanos, que podem ser
atenuadas por meio de uma diferenciação adequada entre direito e
moral em relação ao conceito de direitos humanos (IV). Essa diferen-
ciação também apresenta a chave para uma metacrítica dos argumentos
de Carl Schmitt contra os fundamentos humanistas do pacifismo ju-
rídico, argumentos a propósito bem-sucedidos sob o ponto de vista
da história de sua recepção (V).
entre os povos se ela se tornasse regra geral"(§ 60, Werke VI, 473 ), os exemplos que ele
apresenta - a ruptura de contratos do direito internacional ou a divisão de um país
vencido (como a Polónia, em seu tempo) -deixam claro o status acidental dessa
figura de pensamento. Uma "guerra punitiva" contra inimigos injustos continua sendo
uma noção sem maiores conseqüências enquanto continuarmos contando com Esta-
dos soberanos. Pois não é possível para os Estados soberanos reconhecer uma instância
judicial que julgue de maneira imparcial as violações a regras nas relações interestatais,
sem que eles restrinjam sua própria soberania. Somente a vitória e a derrota são deci-
sivos sobre "de que lado está o direito" ( Werke VI, 200).
3. Cf. H. Schulze, Staat und Nation in der Europiiischen Geschichte, München, 1994.
4. Cf. D. Archibugi; D. Held (orgs.), Cosmopolitan Democracy, Cambridge, 1995.
Introdução, pp. lOss.
9. Cf. ). S. Nye, "Soft Power", Foreign Policy, n. 80, pp. 153-171, 1990.
12. Cf. o texto que intitula: J. Habermas, Die Normalitiit einer Berliner Republik,
Frankfurt am Main, 1995, pp. 167ss.
13. Sobre o "povo como soberano em aprendizado': cf. H. Brunkhorst, Demokratie
und Differenz. Frankfurt am Main, 199ss.
15. Cf. os exemplos dados por Chr. Greenwood, "Gibt es ein Recht aufhumanitãre
Intervention?", Europa-Archiv, n. 4, pp. 93-106, 1993. Na citação acima, p. 94.
16. Cf. J. Habermas, Vergangenheit ais Zukunft, München, 1993. pp. 10-44.
22. É o que afirma H. Quaritsch em seu Posfácio a Carl Schmitt, Das international-
rechtliche Verbrechen des Angrijfskrieges (1945), Berlin, 1994. pp. 125-247. No contexto
acima, pp. 236ss.
23. Cf. as análises e conclusões de Chr. Grenwood, op. cit., 1993.
24. Greenwood ( 1993) chega à seguinte conclusão: "Atua1mente, já parece estar
mais consolidada a idéia de que as Nações Unidas poderiam lançar mão de suas atri-
buições para intervir em um Estado por razões humanitárias" (p. 104).
25. Cit. cf. Greenwood, 1993, p. 96.
29. E. O. Czempiel investiga essas estratégias com base em diversos exemplos, tal
como em: G. Schwarz, "Internationale Politik und der Wandel von Regimen': Sonderheft
der Zeitschrift für Politik, Zürich, pp. 55-75, 1989.
30. Sigo aqui D. Archibugi, "From the United Nations to Cosmopolitan Demo-
cracy".ln: Archibugi; Held, op. cit., 1995, pp. 121-162.
33. C. Schmitt, Der Begriff des Politischen ( 1932), Berlin, 1963. p. 55. O mesmo
argumento é apresentado por J. Jsensee ( 1995): "Desde que há intervenções, elas servi-
ram às ideologias, aos princípios confessionais nos séculos XVI e XVII, aos principias
monarquistas, jacobinistas, humanitários, à revolução socialista mundial. Agora che-
gou a vez dos direitos humanos e da democracia. Na longa história da intervenção, a
ideologia serviu para dourar os interesses de expansão de poder dos que intervinham
e para ungir a efetividade da medida com uma aura de legitimação" (p. 429).
34. Cf. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991. p. 76.
38. S. Kõnig, Zur Begründung der Menschenrechte. ln: Hobbes - Locke - Kant,
Freiburg, 1994, pp. 26ss.
40. Cf. a análise da estrutura dos direitos humanos em: H. A. Bedau, "Internatio-
nal Human Rights". ln: T. Regan; D. van de Weer (orgs.), And justice for Ali, Totowa,
1983, p. 297, onde o autor se reporta a Henry Shue: "The emphasis on duties is meant
to avoid leaving the defense of human rights in a vacuum, bereft of any moral signi-
ficance for the specific conduct of others. But the duties are not intended to explain
and generate the duties" ("A ênfase nos deveres é para evitar que a defesa dos direitos
humanos caia num vácuo, destituida de todo significado moral para a conduta especí-
fica dos demais. Mas deveres não foram feitos para explicar ou gerar direitos; ao con-
trário, os direitos é que costumam explicar e gerar deveres"].
41. Cf. S. Kõnig, 1994, pp. 84ss.
42. Quanto à diferenciação entre ética, direito e moral, v. R. Forst, Kontexte der
Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1994. pp. 131-142.
43. Cf. C. Schmitt, 1994.
pp. 867-883, 1994. Enzensberger apóia-se sobre uma descrição altamente seletiva da
situação internacional, na qual deixa de mencionar a surpreendente expansão das for-
mas democráticas do Estado na América Latina, África e Europa Oriental nos últimos
vinte anos (cf. E. O. Czempiel, Weltpolitik im Umbruch, München, 1993. pp. 103ss.).
Além disso, ele põe às avessas a complexa relação entre a assimilação fundamentalista
de potenciais de conflito no interior do Estado, de um lado, as espoliações sociais e as
tradições liberais inexistentes, de outro, transformando-as, de maneira precipitada,
em constantes antropológicas. O conceito ampliado de paz, justamente ele, propõe
estratégias profiláticas e não-violentas, além de tornar conscientes restrições pragmá-
ticas das quais necessariamente decorrem intervenções humanitárias - como mos-
tram o exemplo da Somália e a situação totalmente diversa na antiga Iugoslávia. Sobre
o casuísmo de diversos tipos de intervenção, v. D. Senghaas, 1994, pp. 185ss.
51. A. Gehlen, Moral und Hypermora~ Frankfurt am Main, 1969.
52. C. Schmitt, Glossarium (1947-1951), Berlin, 1991, p. 259.
53. Cf. C. Schmitt, 1991, p. 229.
56. Cf. J. Habermas, Kleine Politische Schriften I-IV. Frankfurt am Main, 1981,
pp. 328-339.
57. Klaus Günther, "Kampf gegen das Bõse? Wider die ethische Aufrüstung der
Kriminalpolitik': Kritische /ustiz. n. 27, pp. 135-157, 1994 (acréscimos entre parênteses
são meus).
58. K. Günther, 1994, p. 144 (acréscimo meu, entre parênteses).
229
Uma constituição pode ser entendida como projeto histórico que
os cidadãos procuram cumprir a cada geração. No Estado democrá-
tico de direito, o exercício do poder político está duplamente codifi-
cado: é preciso que se possam entender tanto o processamento insti-
tucionalizado dos problemas que se apresentam quanto a mediação
dos respectivos interesses, regrada segundo procedimentos claros,
como efetivação de um sistema de direitos'. Mas nas arenas políticas,
quem se defronta são agentes coletivos, que discutem sobre objetivos
coletivos e acerca da distribuição dos bens coletivos. Apenas diante de
um tribunal e no âmbito de um discurso jurídico é que se trata ime-
diatamente de direitos individuais cobráveis através de ação judicial.
Quanto ao direito vigente, também ele precisa ser interpretado de
maneira diversa em face de novas necessidades e situações de inte-
resse. Essa disputa acerca da interpretação e imposição de reivindica-
ções historicamente irresolvidas é uma luta por direitos legítimos, nos
quais estão implicados agentes coletivos que se defendem contra a
desconsideração de sua dignidade. Nessa "luta por reconhecimento",
segundo demonstrou A. Honneth, articulam-se experiências coletivas
de integridade feridi. Esses fenômenos são conciliáveis com uma teoria
dos direitos de orientação individualista?
As conquistas políticas do liberalismo e da social-democracia,
decorrentes do movimento emancipatório burguês e do movimento
de trabalhadores europeu, sugerem uma resposta afirmativa a essa
pergunta. Ambos tiveram por objetivo suplantar a privação de direi-
tos de grupos desprivilegiados e, com isso, a fragmentação da socie-
dade em classes sociais; contudo, a luta social contra a opressão de
grupos que se viram privados de chances iguais de vida no meio social
concretizou-se sob a forma da luta pela universalização socioestatal
dos direitos do cidadão, empreendida tão logo o reformismo socioli-
beral viu-se capaz de agir. Na verdade, após a bancarrota do socia-
lismo de Estado restou apenas essa perspectiva: por meio da promo-
ção do status do trabalho assalariado dependente, alcançado com o
acréscimo de direitos de compartilhamento e participação política,
cabe à massa da população a chance de viver com expectativas bem
fundadas de contar com segurança, justiça social e bem-estar. As in-
I. Cf. J. Habermas, Faktizitat und Geltung, Frankfurt am Main, 1992. cap. III.
2. A. Honneth, Kampf um Anerkennung, Frankfurt am Main, 1992.
3. Cf. Ch. Taylor et alii, Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frank-
furtam Main, 1993, pp. 13ss.
8. Cf. D. L. Rhode, Justice and Gender, Cambridge, Mass., 1989. Parte Um.
9. Cf. N. Fraser, "Struggle over needs". ln: Unruly Practices, Oxford, 1989.
pp. 144-160.
10. Cf. S. Benhabib, Situating the Self Oxford, 1992. Parte II.
11. Cf. P. Berman (org.), Debating P. C., NewYork, 1992; cf. aí também J. Searle,
"Storm over the University': pp. 85-123.
12. Cf. J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade, São Paulo, Martins
Fontes, 2000.
13. A. Gutmann manifesta-se sobre o método de desmascaramento como a se-
guir: "Em geral, conduz-se essa argumentação abreviada em favor de grupos sub-re-
presentados na universidade e depreciados na sociedade; é dificil divisar, no entanto,
de que maneira ele pode ser de alguma serventia para quem quer que seja. Tanto do
ponto de vista lógico quanto do ponto de vista prático, ele mina seu próprio funda-
mento. De acordo com sua lógica interna, a tese desconstrutivista de que parâmetros
intelectuais nada mais são senão mascaramentos de anseios por poder conduz a que
também nela se espelhe um anseio de poder, qual seja o dos próprios desconstrutivistas.
Mas se as pessoas de fato só têm em mente o poder político, por que é que elas se
dedicam a questões intelectuais que certamente não são o caminho mais rápido e mais
seguro para alcançá-lo, e nem mesmo o caminho mais cómodo?" Ch. Taylor et alii,
Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung, Frankfurt am Main, 1993. p. 139.
20. Cf. a decisão da Suprema Corte no caso Wisconsin versus Yoder, 406 U. S. 205
(1972).
21. Cf. D. Cohn-Bendit, Th. Schmid, Heimat Babylon, Hamburgo, 1992, pp. 316ss.
25. D. J. van de Kaa, "European Migration at the End of History", European Re-
view, vol. l, jan. 1993, p. 94.
26. Cf. E. Wiegand, "Auslãnderfeindlichkeit in der Festung Europa. Einstellungen
zu Fremden im europãischen Vergleich". ln: Informationsdienst Soziale Indikatoren
(ZUMA), n. 9, jan. 1993, p. 1-4.
27. Cf. M. Walzer, "What does it mean to be an American", Social Research, vol.
57, outono de 1999, p. 591-614, em que se constata que a concepção com unitarista não
faz jus à complexa composição de uma sociedade multicultural (p. 613).
28. Cf. R. Brubaker, Citizenship and Nationhood in France and Germany, Cam-
bridge, Mass., 1992, pp. 128ss.
33. Cf. K. J. Bade, "Jmmigration and Integration in Germany since 1945", Euro-
pean Review, v. I, 1993, pp. 75-79.
34. Idem, ibidem, p. 77.
35. Cf. o capítulo que intitula também o volume em J. Habermas, Die Normalitiit
einer Berliner Republik, Frankfurt am Main, 1995.
269
que se volte ao interesse da sociedade: imagina-se o Estado como apa-
rato da administração pública, e a sociedade como sistema de circula-
ção de pessoas em particular e do trabalho social dessas pessoas, es-
truturada segundo leis de mercado. A política, sob essa perspectiva, e
no sentido de formação política da vontade dos cidadãos, tem a fun-
ção de congregar e impor interesses sociais em particular mediante
um aparato estatal já especializado no uso administrativo do poder
político para fins coletivos.
Segundo a concepção "republicana", a política não se confunde
com essa função mediadora; mais do que isso, ela é constitutiva do
processo de coletivização social como um todo. Concebe-se a polí-
tica como forma de reflexão sobre um contexto de vida ético. Ela cons-
titui o medium em que os integrantes de comunidades solidárias sur-
gidas de forma natural se conscientizam de sua interdependência
mútua e, como cidadãos, dão forma e prosseguimento às relações
preexistentes de reconhecimento mútuo, transformando-as de forma
voluntária e consciente em uma associação de jurisconsortes livres e
iguais. Com isso, a arquitetônica liberal do Estado e da sociedade so-
fre uma mudança importante. Ao lado da instância hierárquica regu-
ladora do poder soberano estatal e da instância reguladora descen-
tralizada do mercado, ou seja, ao lado do poder administrativo e dos
interesses próprios, surge também a solidariedade como terceira fonte
de integração social.
Esse estabelecimento da vontade política horizontal, voltada ao
entendimento mútuo ou ao consenso almejado por via comunicativa,
deve gozar até mesmo de primazia, se considerado do ponto de vista
tanto genético quanto normativo. Para a práxis de autodeterminação
por parte dos cidadãos no âmbito do Estado, aceita -se uma base social
autónoma que independa da administração pública e da mobilidade
socioeconômica privada, e que impeça a comunicação política de ser
tragada pelo Estado e assimilada pela estrutura de mercado. Na con-
cepção republicana, confere-se significado estratégico tanto à opinião
pública de caráter político quanto à sociedade civil, como seu susten-
táculo. Ambos devem conferir força integrativa e autonomia à práxis
de entendimento mútuo entre os cidadãos do Estado 1• Ao desacopla-
l. Cf. H. Arendt, Oberdie Revolution, München, 1965 [ed. br.: Da revolução, São
Paulo, Ática, 1995]; idem, Macht und Gewalt, München, 1970.
2. Cf. F. I. Michelman, "Politicai Truth and the Rute of Law", Tel Aviv Univ. Stu-
dies in Law, n. 8, 1988, p. 283: "The politicai society envisioned by bumper-sticker
republicans is the society of private right bearers, an association whose first principie is
the protection of lives,liberties and estates, of its individual members. ln that society,
the state is justified by the protection it gives to those prepolitical interests; the purpose
of the constitution is to ensure that the state apparatus, the government, provides such
protection for the people at large rather than serves the special interests of the governors
or their patrons; the function of citizenship is to operate the constitution and thereby
motivate the governors to act according to that protective purpose; and the value to
you of your politicai franchise - your right to vote and speak, to have your views
heard and counted- is the handle it gives you on influencing the system so that it will
adequately heed and protect your particular, pre-political rights and other interests".
["A sociedade política que os adesivos republicanos esboçam é a sociedade dos porta-
dores de direitos privados, uma associação cujo primeiro princípio é a proteção das
vidas, liberdades e propriedades de seus membros individuais. Nessa sociedade, o es-
tado é justificado pela proteção que dá aos interesses pré-políticos; o propósito da
constituição é assegurar que o aparato estatal, o governo, proveja proteção para o povo,
sem servir a interesses privados dos governantes ou de seus patrões; a função da cida-
dania é praticar a constituição e, portanto, motivar os governantes a agirem segundo
esse objetivo de proteção; e o valor do direito político de cada um - direito a voto e
expressão, direito de ter a própria opinião ouvida e levada em conta- é o suporte que
ele dá ao indivíduo, para que ele influencie o sistema a dar atenção e proteção aos
interesses pré-políticos particulares e a outros interesses"].
3. Sobre a liberdade positiva versus a negativa, cf. Ch. Taylor, "Was ist menschliches
Handeln?". ln: Negative Freiheit?, Frankfurt am Main, 1988, pp. 9ss.
4. Cf. F. I. Michelman, 1988, p. 284: "ln civic constitutional vision, politicai society
is primarly the society not of right-bearers but of citizens, an association whose first
principie is the creation and provision of a public realm within which a people, together,
argue and reason about the right terms of social coexistence, terms that they will set
together and which they understand as their common good ... Hence the state is justified
by its purpose of establishing and ordering the public sphere within which persons can
achieve freedom in the sense of self-government by the exercise of reason in public
dialogue". ("Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente aso-
ciedade não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, uma associação cujo princí-
pio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual uma popula-
ção, em conjunto, discuta e raciocine sobre os termos do direito à coexistência social,
termos que serão definidos em conjunto e entendidos como bem comum ... A partir
disso o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública
dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo
exercício da razão no diálogo público"].
285
direito em que o poder governamental ainda não foi democratizado.
Em suma, há ordens jurídicas estatais sem instituições próprias a um
Estado de direito, e há Estados de direito sem constituições democrá-
ticas. Essas razões empíricas para um tratamento acadêmico dos dois
objetos marcado pela divisão do trabalho, porém, não significam de
modo algum que possa haver do ponto de vista normativo um Estado
de direito sem democracia.
A seguir, pretendo abordar a relação interna entre Estado de di-
reito e democracia sob vários aspectos. Essa relação resulta do próprio
conceito moderno de direito (I), bem como da circunstância de que
hoje o direito positivo não pode mais obter sua legitimidade recorren-
do a um direito superior (II). O direito moderno legitima-se a partir
da autonomia garantida de maneira uniforme a todo cidadão, sendo
que a autonomia privada e a pública pressupõem-se mutuamente (III).
Essa concatenação conceituai também passa a ter validade na dialética
entre as igualdades jurídica e factual, suscitada pelo paradigma jurí-
dico socioestatal em face da compreensão liberal do direito e que hoje
compele a uma autocompreensão procedimentalista do Estado demo-
crático de direito (IV). Para concluir, explicarei o paradigma jurídico
procedimentalista a partir do exemplo da política feminista pela igual-
dade de direitos (V).
o
Qualidades formais do direito moderno
GD
Sobre a mediação
entre soberania popular e direitos humanos
299
resposta correta a cada caso, aos conflitos de valores típicos das socie-
dades multiculturais (II). Michel Rosenfeld, com a visão do jurista, dá
continuidade à discussão acerca da primazia do procedimento sobre um
comum acordo substancial de fundo, e sugere por fim uma alternativa
que vem a ser desenvolvida por A.]. Jacobson sob a forma de uma con-
cepção dinâmica do direito (III). Bill Regh, com sua interessante per-
gunta sobre a relação entre discurso e decisão, dá ensejo à passagem para
questões mais essenciais sobre a construção teórica. Michael Power
aborda o papel das idealizações, ao passo que J. Lenoble me defronta
com contestações ligadas à crítica da razão, concernentes à abordagem
de uma teoria da ação comunicativa em seu todo (IV). Assim como
Lenoble, também David Rasmussen, Robert Alexy e Gunther Teubner
dão-me ocasião para abordar uma vez mais a lógica dos discursos de
aplicação prática (V). Ulrich Preu6 e Günther Falkenberg discutem sob
diversos aspectos a relação entre autonomia privada e pública, ao passo
que Dick Howard e Gabriel Motzkin dedicam-se ao teor político de
minha teoria do direito (VI). Por fim, posiciono-me diante de restri-
ções feitas no âmbito da sociologia do direito, por Mark Gould a partir
de uma visão parsoniana de esquerda, e por Niklas Luhmann a partir da
teoria dos sistemas (VII).
o
O bom e o justo
31 0 A INCLUSAO DO OUTRO
recursos de neutralização normativa das diferenças: (a) a garantia da
coexistência em igualdade de direitos e (b) o asseguramento da legi-
timação mediante procedimentos.
Para (a), torna-se essencial distinguir entre questões de justiça e
questões concernentes ao bem viver. Isso pode ser ilustrado a partir de
situações como a eutanásia e o aborto, por exemplo. Imaginemos que
se tenha chegado à conclusão - em discussões públicas conduzidas
de modo suficientemente discursivo (o que não estou afirmando em
relação aos exemplos mencionados, mas apenas supondo, em prol da
argumentação) - que não se pode chegar a uma versão neutra dessa
situação polêmica, no que diz respeito à visão de mundo, já que as
descrições concorrentes da matéria que se pretende regulamentar estão
entrelaçadas com a autocompreensão de diversas confissões, comuni-
dades interpretativas, subculturas etc., articulada de maneira religiosa
ou com base em determinada visão de mundo. Assim, estaria posto
um conflito de valor que não poderia ser resolvido nem por via dis-
cursiva nem através de acordo. Em uma sociedade pluralista consti-
tuída sob a forma de um Estado de direito, evidentemente não se po-
deria regrar uma situação eticamente controversa como essa, ao menos
não por meio da descrição eticamente marcada- a partir da visão do
universo dos jurisconsortes - de uma autocompreensão particular
(mesmo que se tratasse da autocompreensão da cultura majoritária).
Mais que isso, é preciso buscar uma regulamentação neutra (tal como
no caso da sentença proferida pela Corte Constitucional Federal alemã,
que determinou a retirada de crucifixos das salas de aula no estado da
Baviera, fortemente marcado pela tradição cristã), ou seja, uma regu-
lamentação capaz de encontrar, no plano mais abstrato da coexistên-
cia de diversas comunidades eticamente integradas, o reconhecimento
racionalmente motivado de todas as partes envolvidas no conflito e
que convivem em igualdade de direitos. Para essa mudança do plano
da abstração é necessária uma mudança de perspectiva. Os envolvidos
precisam deixar de lado a pergunta sobre que regulamentação é "me-
lhor para nós" a partir da respectiva visão que consideram "nossa"; em
vez disso, precisam checar, sob o ponto de vista moral, que regulamen-
tação "é igualmente boa para todos" em vista da reivindicação prio-
ritária da coexistência sob igualdade de direitos.
Quando se fala da dificuldade que McCarthy vincula a essa abs-
tração, trata-se aí, na verdade, de uma restrição. A mudança de pers-
13. Cf. J. Rawls, Eine Theorie der Gerechtigkeit, Frankfurt am Main, 1975. pp.
I06ss. [ed. br.: Uma teoria da justiça, São Paulo, Martins Fontes, 32000 ].
16. Cf. J. Habermas, "Grenzen des Neohistorismus". ln: Die nachholende Revolu-
tion, Frankfurt am Main, 1990, pp. 149-156.
17. Cf. }. Habermas, Posfácio. ln: Faktizitiit und Geltung, Frankfurt am Main,
1994, p. 667, nota 3.
19. Cf. minha crítica in: J. Habermas, Erliiuterungen zur Diskursethik, Frankfurt
am Main, 1991, pp. 176-184 e 209-218.
20. Cf., porém, L. Wingert, Gemeinsinn und Moral, Frankfurt am Main, 1993.
21. Sobre o que segue, cf. B. Peters, Rationalitiit, Recht und Gesellschaft, Frank-
furtam Main, 199l,Cap. VII.
23. Por conta dos muitos mal-entendidos, seria muito desgastante abordar aqui
a crítica a minha recepção do direito: se sou um "positivista», Jacobson é um "adepto
do direito natural':
28. Cf. K.-0. Apel, "Falibilismus, Konsenstheorie der Wahrheit und Letzt-
begründung". ln: Forum für Philosophie (org.), Philosophie und Begründung, Frank-
furtam Main, 1987, pp. 116-211.
30. Albrecht Wellmer, em conjunto com Davidson, trata do exemplo sob o pon-
to de vista que interessa aqui: "Autonomie der Bedeutung und Principie of Charity aus
sprachpragmatischer Sicht" ( 1994). Desse manuscrito inédito também aproveito adis-
tinção entre o conhecimento do significado literal de uma sentença e o saber acerca da
adequação situacional de sua aplicação.
34. Cf. R. Alexy, Baden-Baden, 1985; nesse meio tempo foi publicado: R. Alexy,
Begriff und Geltung des Rechts, Freiburg!München, 1992.
35. Cf. K. Günther, Der Sinn für Angemessenheit, Frankfurt am Main, 1988, pp.
268-276; Habermas, 1992, pp. 309ss.
36. Alexy, 1985, p. 133.
37. Idem, ibidem.
39. Não posso dedicar-me aqui à respectiva discussão entre Alexy e Günther:
K. Günther, "Criticai Remarks on Robert Alexy's 'Special case Thesis"', Ratio ]uris,
vol. 6, 1993, pp. 143-156; R. Alexy. "Justification and Application of Norms",loc. cit.,
pp. 157-170.
41. Cf., p. ex., Ch. Larmore, "Die Wurzeln radikaler Demokratie': Deutsche Zeitung
für Philosophie, 41, 1993.
44. Pontos de contato foram oferecidos pelas reflexões de Jürgen Seifert sobre a
"constituição como fórum", dedicadas de forma nada casual à memória de A. R. L.
Gurland: do mesmo autor, cf. "Haus oder Forum. Wertsystem oder offene Verfassung".
ln: J. Habermas, Stichworte zur 'Geistigen Situation der Zeit', Frankfurt am Main,1979.
pp. 321-339; lá também se encontra bibliografia complementar. Cf. nesse ínterim J. P.
Müller, Demokratische Gerechtigkeit, München, 1993.
45. Cf. Posfácio à 4. ed. de Faktizitat und Geltung.
46. Cf. H. Shue, "Mediating Duties': Ethics 98, jul. 1988, pp. 678-704.
51. O texto de Luhmann foi publicado em alemão com esse título em: Rechts-
historisches ]ourna~ 12, 1993, pp. 36-56.
(I) inédito
(2) Reconciliation through the Public Use of Reason: Remarks on John
Rawls' Politicai Liberalism, The ]ournal of Philosophy, XCII, mar. 1995,
pp. 109-131
(3) inédito
(4) versão ampliada de: The European Nation State- lts Achievements
and Limitations, Ratio Juris, 9, jun. 1996, pp. 125-137
(5) inédito
(6) Remarks on Dieter Grimm's 'Does Europe Need a Constitution?', Euro-
pean Law Journa~ 1, nov. 1995, pp. 303-307
(7) in: Kritische Justiz. 28, 1995, pp. 293-319
(8) in: Ch. Taylor et alii. Multikulturalismus und die Politik der Anerken-
nung [Multiculturalismo e a política do reconhecimento]. f/m, 1993.
pp. 147-196
(9) versão ampliada de uma colaboração para a "Festschrift" em homena-
gem a Iring Fetscher: H. Münkler (org.). Die Chancen der Freiheit. Mu-
nique, 1992, pp. 11-24
(I O) in: U. PreuB (org.). Zum Begriff der Verfassung [Sobre o conceito de
constituição]. f/m, 1994, pp. 83-94.
(I 1) em inglês in: Cardozo Law Review, vol. 17, mar. 1996, Part II, pp. 1477-
1558
385
Índice de nomes
Bade, K. J. 264
Baier, A. C. 24
Baynes, K. 60, 63
Bedau, H. A. 216
Beiner, R. 245
Benhabib, Sheyla 60, 71, 86, 239
Berding, Helmut 148, 152
Berman, P. 241
Bernstein, Richard F. 300, 30 I
Bismarck, Otto von 122, 258, 266
Bluntschli, Johann Caspar 133, 153
Bõckenfõrde, Ernst Wolfgang 151
Bodin, Jean 282
Brubaker, Richard 258
Brumlik, Micha 198
Brunkhorst, Hauke 198, 199, 30 I
Bryde, B. O. 156
Caracalla 143
Carens, ). H. 259
Carter, )immy 210
Cavou r, C'Ãlmillo Benso, Graf von 122
Cohn-Bendit, Daniel 251,259
Connor, W. 148
Cooper, R. 207
Czempiel, ErnstOtto 144, 198,209,223
Dahl, R. A. 160, 164, 165
Daniels, N. 69
Davidson, Donald 50, 51, 348
Derrida, Jacques 347,364,384
Doppelt, G. 171
Dummett, Michael 343
Dworkin, Ronald 40, 42, 70, 233, 244,
260
Elster, Jon 26
Emmer, P. C. 261
Engels, Friedrich 366
Enzensberger, Hans Magnus 222, 223
387
Gurland, A. R. L. 367 Kant, lmmanuel 15, 23, 28, 43, 45, 46.
Gutmann, Amy 232, 241 61,83.86,92,93,95, 104,118,126,
129, 159, 160, 185-197, 199,202-
Habermas,Jürgen 16,19,20,47,49,50, 204, 206, 208, 211, 214, 216, 217,
52,54,59,60, 71, 72, 79,81,91,94, 222,223,227,232,286,287,291,373
106, 117, 137, 152, 156, 164, 197, Kelsen, Hans 211
199, 202, 211, 225, 230, 235, 241, Kesting, Hanno 366
253, 254, 259, 267, 278, 300, 301, Kierkegaard, Sõren 15
306, 308, 310, 314, 319-321, 323, Kirchheimer, Otto 366
345,354-356,361,366,367,373,375 Knieper, R. 139, 195
Hare, Richard M. 14 Kõnig, S. 214,216
Hart, H. L. A. 13, 69 Korsgaard, Chr. M. 46
Hauser, L. 16 Koselleck, Reinhart 366
Heath, J. 50 Kymlicka, W. 249
Hegel, G. W. F. 54, 71, 118, 122, 143,
157,194,208,220,233,319 Lafont, Cristina 353
Heidegger, Martin 41 Larmore, Charles 117, 365
Held, D. 193,210 Leggewie, Claus 148
Heller, Hermann 173 Lênin, W.I. 154, 223
Hinsch, Wilfried 69 Lenk, Hans 21
Hitler, Adolf 200 Lenoble, Jacques 300, 345-349, 351-353
Hobbes, Thommas 92, 95, 101, 106, 130, LePre, E. 51
149,163,214,221 Lepsius, M. Rainer 122, 148
Hõffe, Otfried 213,342 Lindholm, T. 208
Honneth, Axel 54, 198, 222, 230, 308 Locke,John 213,214,286,291
Horkheimer, Max 22, 223 Lübbe, Hermann 147,152,174
Howard, Dick 300, 372, 373 Luhmann, Niklas 380
Hoy,D. 308 Lukács, Georg 194
Huber, W. 204 Lyotard, François 358, 364
Humboldt, Wilhelm von 54
Hume, David 23 Maclntyre, Alasdair 305, 323
Hurley, S. 213 Mackie, J. L. 20, 25
Husserl, Edmund 353 Martens, Ekkehard 22
Marx, Karl 124
Ipsen, H. P. 173 Maus,Ingeborg 154,157,159
Isensee, J. 20 1. 212 McCarthy, Thomas A. 89, 308, 322
McDowell, J. 20, 21, 37,38
Jacobson, Arthur J. 336 Mead, George Herbert 42, 54, 71,96
Jahn, B. 169 Michelman, Frank I. 269,271,272,274,
Jellinek 82 275,277
Joas, H. 308 Milo,R. 98
Joppke, Ch. 175 Minow, Martha 335
Motzkin, Gabriel 300, 372, 373
Kaa, D. J. van de 256 Müller, J. P. 367
Kambartel, Friedrich 325 Münkler, Herfried 126