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(Cyrano Rosalém)
(Um balcão de um hospital psiquiátrico. Atrás dele encontra-se uma enfermeira em seus afazeres. Entra um
homem de terno e pasta 007.)
(Pausa)
(Pausa)
ENFERMEIRA- (Rápida) Não! Não é necessário! (Apanha o telefone) Eu vou encaminhá-lo ao nosso
psiquiatra...
HOMEM - A Sra. não entendeu. (Delicadamente apanha o telefone da mão dela e recoloca no gancho) Eu
não preciso de um psiquiatra, só preciso ser internado.
HOMEM - Sei, só que quando a música começa, eu sinto um impulso irresistível e saio dançando. Às vezes,
sapateando!
(Pausa)
ENFERMEIRA- O Sr. vai muito a bailes? Sim, porque às vezes a gente fica reprimido e não coloca prá fora
um lado artístico que a gente tem. Eu me lembro de um caso que passou por aqui...
(Ouve-se a música em crescendo. Só a enfermeira não ouve. Homem gruda-se no balcão. Como se movidas
por vontade própria suas pernas começam a dançar. Num crescente elas vão puxando o homem que, aos
poucos, vai desgrudando-se. Seu rosto é puro desespero. A enfermeira, tentando ajudar, segura seus braços.
Mas a força da dança é muito grande, e inicia-se um cabo-de-guerra por cima do balcão. Por fim ele se
solta e sai dançando livremente com todo o corpo. Ao final, volta ao balcão, ofegante.)
ENFERMEIRA- Me desculpe.
HOMEM - Esse é que é o problema. Ainda se fossem músicas que eu gostasse... Mas não... Imagine que
agora era “ELE É O BOM”, com o Eduardo Araújo.
ENFERMEIRA- Verdade! Eu adoro toda essa fase da jovem guarda. (Disfarçando) Se bem que eu era
muito nova nessa época... (De supetão) Quantos anos o Sr. acha que eu tenho?
HOMEM - Não muda de assunto! A Sra. viu o meu acesso, eu preciso me internar.
ENFERMEIRA- (Meio ofendida) Olha, isso não é tão simples assim, não.
ENFERMEIRA- O Sr. não pode pedir sua própria internação. É alguém que precisa pedir pelo Sr.
ENFERMEIRA- Por que o Sr. não tenta ver pelo lado bom da coisa. Afinal, o Sr. está levando arte para as
ruas.
ENFERMEIRA- É! Cada vez que o Sr. tiver um ataque, deixa o chapéu discretamente no chão. As pessoas
vão achar que é show e pode até dar uma grana!
ENFERMEIRA- Com a situação do jeito que está a gente não pode perder nenhuma chance.
HOMEM - A Sra. diz isso porque não era a Sra. que estava dançando “VOU DE TÁXI”, com a Angélica
hoje de manhã na fila do banco.
HOMEM - Pois é.
HOMEM - Iiiihhhhh...
ENFERMEIRA- (Pausa) Desculpe! (Pausa. Suspira) Ai, o Luís Caldas... (Desconfiada) Mas o Sr. sapateou um
fricote? Eu, hein!
HOMEM - Escuta...
HOMEM - Minhas obturações são de porcelana, ó. (Mostra com a boca bem aberta)
ENFERMEIRA- (Olhando e quase falando dentro da boca dele) Ih, o Sr. tá com uma cárie ali...
ENFERMEIRA- Eu entendo. Deve ser mesmo muito difícil conviver com músicas dentro da cabeça. Quando
começou?
HOMEM - Há umas duas semanas. Eu estava na rua, passando em frente a uma Igreja Batista, quando comecei a
ouvir “OUTRA VEZ”, do Roberto Carlos.
HOMEM - Sei, tá. Mas quando a música começou eu até procurei ao redor prá ver se tinha alguém com rádio
perto. Quando percebi que vinha do meu cérebro eu parei, assustado. E então, incontrolavelmente,
eu comecei a dançar. Como a música era romântica, eu dançava suavemente, com passos de balé
clássico, imagine! Tinham uns crioulos num bar em frente tomando cachaça que começaram a
fazer “Huuuummmmmm”... Um deles gritou: “Até que a bicha dança bem!” O pessoal da Igreja
Batista vinha saindo e, ao me ver, começou a gritar “Aleluia, aleluia, irmão”. Enquanto eu
dançava ficaram os dois coros: “Bicha, bicha, aleluia, aleluia!” Que vergonha...
HOMEM - O quê?
ENFERMEIRA- Epilepsia. Todo mundo que tem ataque tem epilepsia. A sua é epilepsia musicogênica.
HOMEM - Eu sou uma pessoa culta, educada, saudável. Passei a vida inteira ouvindo música clássica, jazz,
E agora me aparece esse problema, e ainda por cima só com música brega!
ENFERMEIRA- Ah, não! Ah, não, que eu gosto dessas músicas e eu não sou brega!
ENFERMEIRA- (Ofendida) Só porque o Sr. não gosta do Luís Caldas e do Roberto não quer dizer que eles
são brega.
HOMEM - (Muito irritado) Prá mim são, porra! Que merda que você tem com isso?
HOMEM - Não é questão de baixar o nível, cacete, é que você me deixou nervoso. E toda vez que eu fico
nervoso me vem... Me vem... Me vem...
ENFERMEIRA- (Ansiosa) Me vem o quê?
HOMEM - (Começando a se mexer) Me vem uma música e uma baita vontade de dançar.
(Começa a dançar descontroladamente. A enfermeira sai em sua perseguição. Ouve-se estática de rádio com
a música por baixo.)
ENFERMEIRA- (Ignorando) O Sr. tem uma seleção ótima! É como uma parada musical. Eu diria que em
seu cérebro o Sr. tem... Como é mesmo no rádio... Já sei: “AS DEZ MAIS”! É isso! (Grandiosa) “AS DEZ
MAIS DO CÓRTEX CEREBRAL”!
(E a enfermeira continua...)
ENFERMEIRA- É fantástico, é inesperado, é incrível, minha gente. De dentro do cérebro deste homem. Um
homem como eu, como vocês. Um homem que podia estar aí ao seu lado, ouvindo esse programa. Pois de
dentro do cérebro medíocre e comum deste homem sai a melhor seleção musical da década... É fabuloso...
HOMEM - Calma...
ENFERMEIRA- (Cada vez mais empolgada) Não, ele não vai sair daqui sem um prêmio. Porque aqui, no
nosso programa, o talento é reconhecido.
ENFERMEIRA- Você participa e você ganha. Ligue prá gente, a felicidade pode estar mais próxima do que
você imagina...
(Ela o agarra.)
ENFERMEIRA- Me larga!
ENFERMEIRA- Pensa que eu não sei das suas intenções? (Grita) Socorro!
HOMEM - (Assustado, meio sem saber o que fazer) Eu só queria me internar... Eu só queria me internar...
Só me internar...
(Decide sair dali. Livra-se dela. Apanha a maleta 007. Quando vai saindo a maleta se abre e deixa cair
sapatilhas, meias, collants, tutu, e mais um vasto material de dança. Pausa. Enfermeira apanha uma
sapatilha e olha para ele com ar de reprovação.)
ENFERMEIRA- (Irônica) Contador...
ENFERMEIRA- (Respirando fundo) Tá bom, Alfredo, você já deu o show de hoje. Agora volta pro seu
quarto. Mais
tarde eu passo lá, tá?
(Alfredo vai catando suas coisas e pondo na maleta, enquanto enfermeira fala para a platéia.)
ENFERMEIRA- É sempre assim, gente. Todo dia o Alfredo vem dar um showzinho aqui na portaria. O
médico mandou não contrariar. Então eu não “contrareio”. Mas eu já estou ficando cansada disso. Tô ficando
estressada mesmo, sabe.
(Enquanto ela fala, ele vai saindo. De repente ele começa a cantar uma música brega de sucesso.)
(Ele continua. Enfermeira vai até a mesa e, com raiva, liga o rádio. Ouve-se estática enquanto ela procura
uma estação. Quando ela acha, entra a música que Alfredo estava cantando no ponto exato onde ele estava.
Enfermeira assusta-se. Ele canta um pouco junto com o rádio e diz:)
FIM
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