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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

FRANCISCO ERIVÂNIO GARCIA DE SOUSA JÚNIOR


SÉRGIO DA SILVA CÂMARA JÚNIOR

CARNE E OSSO

NATAL
2018
Carne e Osso é um documentário que foi lançado em 2011 por Caio Cavechini e
Carlos Juliano Barros produzido pela equipe do Repórter Brasil e exibido na Globo News
que mostra a rotina dos trabalhadores de frigoríficos no Brasil.
O documentário começa exibindo os cortes e movimentos que um trabalhador
responsável por desossar uma perna de frango executa. Cada corte deve ser feito com
precisão e perfeição. O ritmo de toda a linha de produção é definido pela velocidade da
esteira de produção, herança marcante do modelo de produção fordista.
Os trabalhadores ficavam, no mínimo, oito horas ininterruptas realizando os
mesmos movimentos de forma repetitiva e exaustiva, tinham a obrigatoriedade de manter
a esteira de produção sempre cheia de forma que alguns trabalhadores não tinham
intervalo de almoço para conseguir vencer o ritmo de produção imposto pela esteira.
Além disso, à medida que a produção aumentava, havia também um aumento na cobrança
imposta pelos encarregados de cada setor para aumentar ainda mais a produção, ou seja,
a produção nunca alcançaria um volume adequado para os gestores da organização.
Este fato, além de consequência da busca incessante do empresariado por maiores
lucros, agravou-se ainda mais quando, dentro do contexto da reestruturação produtiva no
Brasil, houve um impulsionamento da busca por superávits comerciais para sanar o
problema da dívida externa à época.
Segundo Giovanni Alves (2000, p. 122) “A partir de 1981, a crise da dívida
externa obrigou o Brasil a adotar, sob pressão do FMI, uma política recessiva, voltada,
principalmente, para a busca de superávits comerciais, capazes de garantir o pagamento
integral dos encargos da dívida externa”. Logo, existia uma maior demanda pelas
mercadorias produzidas nos frigoríficos tendo em vista que a atividade de abate de reses
e exportação de carne bovina era e é um dos maiores pilares de sustentação da economia
do país.
Assim, essa demanda por uma produção cada vez maior cria um problema lógico
considerando que segundo Benjamin Coriat (1994, p. 33), “Há duas maneiras de aumentar
a produtividade. Uma é a de aumentar as quantidades produzidas, a outra é a reduzir o
pessoal de produção. A primeira maneira é, evidentemente, a mais popular. Ela é também
a mais fácil. A outra, com efeito, implica repensar, em todos os seus detalhes, a
organização do trabalho” (apud Ohno, id. p 71). Essa busca por aumentar as quantidades
produzidas é um fato observado em todas as cenas do documentário. Como se não
bastasse aumentar cada vez mais o ritmo da esteira de produção, há relatos no
documentário de trabalhadores que perdiam o direito ao intervalo de almoço para cumprir
sua meta de produção; e pior, alguns eram obrigados a permanecer após o final de sua
jornada de trabalho para vencer a meta de produção acumulada, sendo que as horas
extraordinárias trabalhadas não eram remuneradas.
Não obstante, o trabalho realizado na indústria frigorífica apresentada no
documentário era fiscalizado de tempos em tempos. Nesse ponto podemos destacar duas
questões: (1) o mascaramento das condições e do ambiente de trabalho dos empregados
durante os períodos de fiscalização e (2) a não aplicabilidade das correções apontadas
pelos auditores do Ministério do Trabalho durante a fiscalização.
Essas duas questões levantadas exemplificam claramente o poder exercido pelas
organizações que se sobrepõe muitas vezes a qualquer direito trabalhista. Para entender
isto é necessário resgatarmos o conceito de poder mencionado por Reinaldo Dias (2004,
p. 191) que o define como “toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação
social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade” (apud
WEBER, Max. 1991, p. 33).
O mascaramento das condições de trabalho durante o período de fiscalização é
confirmado no documentário quando se analisa os relatos dos trabalhadores que afirmam
notar uma redução drástica no ritmo da esteira de produção, temperatura do ambiente
interno do frigorífico mais amena e ausência das privações de ida ao banheiro que
existiam no cotidiano dentro da organização durante a permanência dos auditores na
indústria.
Já a não aplicabilidade das medidas corretivas apontadas pelos fiscais (mesmo
diante do mascaramento que existia) ocorre porque as multas e restrições sofridas pelos
frigoríficos, nesse caso, geravam para o proprietário uma despesa bem menor se
comparada àquela que ele teria caso houvesse uma mudança na estrutura organizacional
de forma a cumprir os requisitos exigidos pela legislação trabalhista.
Um outro conceito abordado por Reinaldo Dias é a questão da cultura
organizacional, que um fator que influencia fortemente o comportamento dos
trabalhadores e que pode ser facilmente observada em Carne e Osso. Ao serem
questionados sobre suas condições de trabalho, alguns empregados chegavam a dizer que
“aquilo era necessário”, “era meu trabalho, tinha que fazer”. Facilmente observa-se aqui
que a cultura organizacional predominante na indústria frigorífica é a que têm a sua
essência na execução da tarefa, onde valoriza-se mais o fato de alcançar os objetivos
impostos que a forma de os conseguir.
Talvez o estado de contentamento dos trabalhadores do frigorífico fosse
impulsionado pelos alongamentos supérfluos que eram, às vezes, feitos em grupo num
ambiente totalmente inadequado, criando na mente do empregado a ideia de que a
organização está de alguma forma tentando contribuir para a manutenção de sua saúde.
Isso é observado também através da negligente atuação do médico que atendia os
funcionários da organização, tanto no diagnóstico quanto no tratamento das patologias e
sofrimento psíquico associado apresentados pelos trabalhadores, com o intuito de manter
a qualquer custo os funcionários na linha de produção. Ou ainda, agora fugindo um pouco
do contexto de cultura organizacional e partindo para uma análise mais crítica ao
capitalismo em si, os trabalhadores se contentavam com o emprego que tinham mesmo
diante de condições precárias porque não tinham outra opção de sustento.
Não obstante, toda essa situação agrava-se quando observamos que a precarização
a que os trabalhadores deste ramo estão submetidos intensifica-se com as liberdades dadas
ao empregador através da reforma trabalhista aprovada em 2017 no Brasil.
No ramo dos frigoríficos pode-se destacar os aspectos destacados por Krein et al.
(2018) tais como a alta rotatividade de mão de obra, a institucionalização da terceirização
para atividades fins, a baixa efetividade da força sindical com o fim da contribuição anual
obrigatória e, o estímulo à remuneração variável que atrela integralmente os vencimentos
do trabalhador ao lucro gerado pela produção culminando com o rebaixamento dos
salários.
Como o documentário foi produzido em 2011 a realidade trazida pela reforma
trabalhista ainda não fazia totalmente parte do cotidiano daqueles trabalhadores, porém
suas condições de trabalho já eram bem precárias, algo que infelizmente se intensifica
com a reforma.
No tocante à descarada exploração da força de trabalho a que os funcionários do
frigorífico apresentado em Carne e Osso estão submetidos, é seguro afirmar que esta é
uma condição vivenciada não só por trabalhadores da indústria frigorífica, mas também
por profissionais de outros ramos. A busca incessante das empresas por lucros cada vez
maiores em detrimento das condições de trabalho de seus funcionários aliada aos poderes
concedidos ao empresariado pelo sistema capitalista e às liberdades outorgadas a estes
pela reforma trabalhista transformam as condições de trabalho do proletariado de maneira
tão radical e desumana que chega a ser inadmissível.
Referências Bibliográficas

CARNE e Osso. Direção: Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros. Produção: Maurício
Hashizume; Repórter Brasil, 2011.

KREIN, J. D. et al. Flexibilização das relações de trabalho: insegurança para os


trabalhadores. In:___. Dimensões críticas da reforma trabalhista no Brasil. 1ª ed.
Campinas, SP: Curt Nimuendajú, 2018. cap. 03, p. 95-122.

DIAS, Reinaldo. A Cultura e as Organizações. In:___. Sociologia & Administração. 3ª


ed. Campinas, SP: Alínea, 2004. cap. 10, p. 179-188.

DIAS, Reinaldo. O Poder nas Organizações. In:___. Sociologia & Administração. 3ª ed.
Campinas, SP: Alínea, 2004. cap. 11, p. 189-200.

CORIAT, Benjamin. O Espírito Toyota. In:___. Pensar pelo Avesso. 1ª ed. Rio de
Janeiro: Revan, 1994. cap. 01, p. 29-49.

ALVES, Giovanni. Desenvolvimento Capitalista e Reestruturação Produtiva. In:___. O


novo e precário mundo do trabalho. São Paulo: Biotempo, 2000. cap. 04, p. 101-119.

ALVES, Giovanni. O Toyotismo Restrito. In:___. O novo e precário mundo do


trabalho. São Paulo: Biotempo, 2000. cap. 05, p. 120-138.

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