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LEGISLAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA


Luís Donisete Benzi Grupioni

Darci Secchi

Vilmar Guarani

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Do nacional ao local,




do federal ao estadual: as leis




e a Educação Escolar Indígena






Luís Donisete Benzi Grupioni*



SEF/MEC





O direito à educação


transformação em curso, que tem gerado novas


práticas a partir do desenho de uma nova fun-


diferenciada nas leis

ção social para a escola em terras indígenas.


brasileiras

Nesse processo, a Educação Indígena saiu do


gueto, seja porque ela se tornou tema que está
Passados mais de dez anos da promulgação

na ordem do dia do movimento indígena, seja


da atual Constituição brasileira, é possível afir-


porque há de se construírem respostas qualifi-


mar que o direito dos povos indígenas no Brasil


cadas a essa nova demanda por parte daqueles a


a uma educação diferenciada e de qualidade, ali


quem cabe gerir os processos de educação no

inscrito pela primeira vez, encontrou amplo res-


âmbito do Estado. Com isso, ganham os índios e


paldo e detalhamento na legislação subseqüen-


ganha também a educação brasileira, na medi-


te. É isso que percebemos quando reunimos a


da em que será preciso encontrar novas e


legislação brasileira que trata da Educação Es-


diversificadas soluções, exercitando a

colar Indígena em âmbito nacional.


criatividade e o respeito diante daqueles que pre-


Com a Constituição de 1988, assegurou-se


cisam de respostas diferentes.


aos índios no Brasil o direito de permanecerem


Esse novo ordenamento jurídico, gerado em


índios, isto é, de permanecerem eles mesmos


âmbito federal, tem encontrado detalhamento e

com suas línguas, culturas e tradições. Ao reco-


normatização nas esferas estaduais, por meio de


nhecer que os índios poderiam utilizar as suas


legislações específicas, que adequam preceitos


línguas maternas e os seus processos de apren-


nacionais às suas particularidades locais. Esse é


dizagem na educação escolar, instituiu-se a pos-


o caminho para uma legislação que tem tratado

sibilidade de a escola indígena contribuir para o


de princípios e cuja realização depende de cada


processo de afirmação étnica e cultural desses


contexto específico.

povos e ser um dos principais veículos de assi-


Já se acusou essa legislação de ser excessiva-


milação e integração.
mente genérica. Mas como contemplar a extrema

Depois disso, as leis subseqüentes à Consti-


heterogeneidade de situações e de vivências his-


tuição que tratam da Educação, como a Lei de


tóricas dos mais de 200 povos indígenas no Brasil


Diretrizes e Bases da Educação Nacional e o Pla-


contemporâneo? Essa questão já encontrou uma


no Nacional de Educação, têm abordado o direi-


resposta no Referencial Curricular Nacional para

to dos povos indígenas a uma educação diferen-


as Escolas Indígenas, lançado pelo MEC em 1998:


ciada, pautada pelo uso das línguas indígenas,



pela valorização dos conhecimentos e saberes


Os princípios contidos nas leis dão abertura para


milenares desses povos e pela formação dos pró-

a construção de uma nova escola, que respeite o


prios índios para atuarem como docentes em


desejo dos povos indígenas de uma educação que


suas comunidades. Comparativamente a algu-


valorize suas práticas culturais e lhes dê acesso a


mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira conhecimentos e práticas de outros grupos e so-




* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação para

a política de Educação Escolar Indígena.


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Legislação escolar indígena

ciedades. Uma normatização excessiva ou muito tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-



detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini- critos, de forma que ela seja útil para regular o



bir o surgimento de novas e importantes práticas relacionamento dos cidadãos entre si e destes


pedagógicas e falhar no atendimento a demandas


com o Estado e com a sociedade como um todo.


particulares colocadas por esses povos. A propos- Dividida em nove títulos, a Constituição tra-



ta da escola indígena diferenciada representa, sem
ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-


dúvida alguma, uma grande novidade no sistema


tais, da organização do Estado, dos poderes


educacional do país, exigindo das instituições e 131
Legislativo, Executivo e Judiciário, da defesa do


órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-


Estado e das instituições democráticas, da tri-


cas, concepções e mecanismos, tanto para que


butação e do orçamento, da ordem econômica,


essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-


ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res- financeira e social.


A Constituição de 1988 remeteu para a le-


peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).


gislação complementar e ordinária algumas de-



Conhecer a legislação, formulada em âmbito finições, bem como o detalhamento de direitos



federal, sobre a Educação Escolar Indígena é o apresentados de forma ampla ou genérica, não


auto-aplicáveis, que precisam de detalhamento


único caminho para superar o velho e persistente

impasse que marca a relação dos povos indíge- por meio de lei complementar. Alguns desses

nas com o direito, qual seja, o da larga distância dispositivos ficaram para a legislação comple-

entre o que está estabelecido na lei e o que ocor- mentar, porque não cabia seu detalhamento na

Constituição; outros, porque não foi possível


re na prática. Na medida em que os professores


indígenas e suas comunidades conhecerem os chegar a um consenso entre os parlamentares



direitos que a legislação lhes assegura, estaremos que elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-

plo, da exploração mineral em terras indígenas,


caminhando para que eles se tornem realidade.


que está prevista na Constituição, mas depende


Por sua vez, o conhecimento da legislação gerada


na esfera federal é condição primeira para o esta- de regulamentação do Congresso Nacional por

belecimento da legislação estadual, que deve meio de legislação complementar.


O maior saldo da Constituição de 1988, que


normatizar o funcionamento das escolas indíge-


rompeu com uma tradição da legislação brasi-


nas e dar efetividade ao direito a uma educação


diferenciada para os povos indígenas. leira, diz respeito ao abandono da postura



integracionista, que sempre procurou incorpo-


rar os índios à “comunidade nacional”, vendo-



Direitos indígenas na os como uma categoria étnica e social transitó-



ria fadada ao desaparecimento. Com a aprova-


Constituição Federal de 1988

ção do novo texto constitucional, os índios não


A atual Constituição da República Federati- só deixaram de ser considerados uma espécie em



va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988, via de extinção, como passaram a ter assegura-

quando foi promulgada, depois de mais de um do o direito à diferença cultural, isto é, o direito

ano e meio de trabalho da Assembléia Nacional de serem índios e de permanecerem como tal.

Constituinte. A Constituição, também conheci- Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-

da como Carta Magna, é a lei maior do país. Não los à comunhão nacional, como estabeleciam as

existe nenhuma outra lei tão importante quanto constituições anteriores, mas é de sua responsabi-

ela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nela lidade legislar sobre as populações indígenas no in-

está estabelecido. tuito de protegê-las. A Constituição reconhece aos



A Constituição estabelece direitos, deveres e índios “os direitos originários sobre as terras que tra-

procedimentos dos indivíduos e do Estado, dos dicionalmente ocupam”, definindo essa ocupação

cidadãos e das instituições. Ela substituiu a não só em termos de habitação, mas também em

Constituição promulgada em 1947 e reflete as relação ao processo produtivo, à preservação do



modificações ocorridas no tempo e na socieda- meio ambiente e à reprodução física e cultural dos

de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons- índios. Embora a propriedade das terras ocupadas

pelos índios seja da União, a posse permanente é de importância fundamental porque trata, de



dos índios, aos quais se reserva a exclusividade do modo amplo, de toda a educação do país.



usufruto das riquezas aí existentes. A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,



Outra inovação importante da atual Consti- que tratava da educação nacional. No que se re-


tuição foi garantir aos índios, às suas comunida- fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDB



des e organizações a capacidade processual para nada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-



entrar na Justiça em defesa de seus direitos e in- plícita, a educação escolar para os povos indíge-


teresses. O Ministério Público é chamado a par- nas em dois momentos. Um deles aparece na



ticipar desse processo, mas não é condição para parte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-



a sua instauração. Ao Ministério Público cabe a tabelecendo que seu ensino será ministrado em



defesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede- Língua Portuguesa, mas assegura às comunida-


ral é o fórum para resolver pendências judiciais des indígenas a utilização de suas línguas ma-



envolvendo os povos indígenas. ternas e processos próprios de aprendizagem. Ou



Além do reconhecimento do direito dos índi- seja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-


os de manterem a sua identidade cultural, a Cons- ○
go 210 da Constituição Federal.
tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o uso A outra menção à Educação Escolar Indígena

de suas línguas maternas e processos próprios de está nos artigos 78 e 79 do Ato das Disposições

aprendizagem, cabendo ao Estado proteger as Gerais e Transitórias da Constituição de 1988. Ali



manifestações das culturas indígenas. Esses dis- se preconiza como dever do Estado o oferecimen-

positivos abriram a possibilidade para que a es- to de uma educação escolar bilíngüe e intercultural

cola indígena constitua-se em instrumento de que fortaleça as práticas socioculturais e a língua



valorização das línguas, dos saberes e das tradi- materna de cada comunidade indígena e propor-

ções indígenas e deixe de ser instrumento de im- cione a oportunidade de recuperar suas memórias

posição dos valores culturais da sociedade históricas e reafirmar suas identidades, dando-

envolvente. Nesse processo, a cultura indígena, lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-

devidamente valorizada, deve ser a base para o científicos da sociedade nacional. Para que isso

conhecimento dos valores e das normas de ou- possa ocorrer, a LDB determina a articulação dos

tras culturas. A escola indígena poderá, então, sistemas de ensino para a elaboração de progra-

desempenhar importante e necessário papel no mas integrados de ensino e pesquisa, que contem

processo de autodeterminação desses povos. com a participação das comunidades indígenas em


Esse direito ao uso da língua materna e dos sua formulação e tenham como objetivo desenvol-

processos próprios de aprendizagem ensejou ver currículos específicos, neles incluindo os con-

mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu- teúdos culturais correspondentes às respectivas co-

cação Nacional. munidades. A LDB ainda prevê a formação de pes-


soal especializado para atuar nessa área e a elabo-



ração e publicação de materiais didáticos especí-


Educação Indígena na Lei de

ficos e diferenciados.

Diretrizes e Bases da Educação


Com tais determinações, a LDB deixa claro


Nacional (Lei nº 9.394) que a Educação Escolar Indígena deverá ter um



tratamento diferenciado do das demais escolas



A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela

nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia prática do bilingüismo e da interculturalidade.

17 de dezembro de 1996 e promulgada no dia 20 Outros dispositivos da LDB possibilitam co-



de dezembro daquele ano. Ela estabelece normas locar em prática esses direitos, dando liberdade

para todo o sistema educacional brasileiro, fixan- para cada escola indígena definir, de acordo com

do diretrizes e bases da educação nacional desde suas particularidades, seu respectivo projeto

a Educação Infantil até a Educação Superior. Tam- político-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-

bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei Darcy tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-

Ribeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é dades na organização escolar, permitindo o uso

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Legislação escolar indígena

de séries anuais, períodos semestrais, ciclos, assegurar a especificidade do modelo de educa-



alternância regular de períodos de estudo, gru- ção intercultural e bilíngüe e sua regularização



pos não-seriados ou por critério de idade, com- nos sistemas de ensino.



petência ou outros critérios. No artigo 26, para O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,


darmos mais um exemplo, fala-se da importân- a criação de programas específicos para atender



cia de considerar as características regionais e às escolas indígenas, bem como a criação de li-



locais da sociedade e da cultura, da economia e nhas de financiamento para a implementação dos


da clientela de cada escola, para que se consiga programas de educação em áreas indígenas. Es- 133



atingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ou tabelece-se que a União, em colaboração com os



seja, outros dispositivos presentes na LDB evi- estados, deve equipar as escolas indígenas com



denciam a abertura de muitas possibilidades recursos didático-pedagógicos básicos, incluindo


para que, de fato, a escola possa responder à de- bibliotecas, videotecas e outros materiais de



manda da comunidade e oferecer aos educandos apoio, bem como adaptar os programas já exis-



o melhor processo de aprendizagem. tentes hoje no Ministério da Educação em termos



de auxílio ao desenvolvimento da educação.


Atribuindo aos sistemas estaduais de ensino
Educação indígena no


a responsabilidade legal pela Educação Indíge-

Plano Nacional de Educação ○


na, o PNE assume como uma das metas a ser


(Lei nº 10.172)

atingida nessa esfera de atuação a profis-


sionalização e o reconhecimento público do



A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- magistério indígena, com a criação da categoria

cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu- de professores indígenas como carreira especí-

cação”, que teve início um ano após a sua publi- fica do magistério e com a implementação de

cação. Ali também se estabeleceu que a União programas contínuos de formação sistemática

deveria encaminhar ao Congresso Nacional um do professorado indígena.



Plano Nacional de Educação, com diretrizes e Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que a

metas para os dez anos seguintes. União, em articulação com os demais sistemas

Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla- de ensino e com a sociedade civil, deve proce-

no Nacional de Educação, também conhecido pela der a avaliações periódicas da implementação do



sigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu- plano e que tanto os estados quanto os municí-

cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Na pios deverão, com base no plano, elaborar seus

primeira parte, faz-se um rápido diagnóstico de planos decenais correspondentes.



como tem ocorrido a oferta da educação escolar


Parecer nº 14/99 do

aos povos indígenas. Na segunda, apresentam-se


as diretrizes para a Educação Escolar Indígena. E


Conselho Nacional de Educação


na terceira, estão os objetivos e metas que deve-



rão ser atingidos a curto e a longo prazos. O Conselho Nacional de Educação foi insta-

lado em 26 de fevereiro de 1996. É composto por


Entre os objetivos e as metas previstos no


Plano Nacional de Educação, destaca-se a duas câmaras: a Câmara de Educação Superior e



universalização da oferta de programas educa- a Câmara de Educação Básica, cada qual com 12

cionais aos povos indígenas para todas as séries membros nomeados pelo Presidente da Repú-

blica. Entre as competências do CNE, está a de


do Ensino Fundamental, assegurando autono-


mia para as escolas indígenas tanto no que se emitir pareceres sobre assuntos da área educa-

refere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dos cional e sobre questões relativas à aplicação da

recursos financeiros, e garantindo a participação legislação educacional. Após a promulgação da


LDB, ambas as câmaras do CNE trataram de pre-


das comunidades indígenas nas decisões relati-


vas ao funcionamento dessas escolas. Para que parar as normas necessárias à implantação da

isso se realize, o plano estabelece a necessidade nova estrutura da educação nacional instituída

de criação da categoria “escola indígena” para por aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-

parou diretrizes curriculares para os diferentes A primeira é relativa à criação da categoria



níveis e modalidades de ensino, entre as quais “escola indígena”, reconhecendo-lhe “a condição



as de Educação Indígena. de escolas com normas e ordenamento jurídico



As diretrizes para a Educação Indígena cons- próprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-


tituem o resultado das discussões que ocorreram gica e curricular. Disso resulta a necessidade de



na Câmara de Educação Básica do CNE, quando regulamentação dessas escolas nos Conselhos



essa se lançou na análise de dois documentos en- Estaduais de Educação, bem como a necessida-


caminhados pelo Ministério da Educação (a ver- de de instituir mecanismos de consulta e envol-



são preliminar do Referencial Curricular Nacio- vimento da comunidade indígena na discussão



nal para as Escolas Indígenas e um documento sobre a escola indígena.



especialmente preparado pelo Comitê de Edu- Outro ponto importante da Resolução nº 3/99


cação Escolar Indígena sobre a necessidade de é a garantia de uma formação específica para os



regulamentação da Educação Indígena), bem professores indígenas, podendo essa ocorrer em



como de uma consulta feita pelo Ministério Pú- serviço e, quando for o caso, concomitantemente


blico Federal do Rio Grande do Sul, para cuja ○
com a sua própria escolarização. A resolução es-
relatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden. tabelece que os estados deverão instituir progra-

As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu- mas diferenciados de formação para seus pro-

cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14 fessores indígenas, bem como regularizar a situ-

de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/ ação profissional desses professores, criando

99 da Câmara Básica do Conselho Nacional de uma carreira própria para o magistério indígena

Educação. Dividido em capítulos, o parecer apre- e realizando concurso público diferenciado para

senta a fundamentação da Educação Indígena, ingresso nessa carreira.


determina a estrutura e funcionamento da es- Ao interpretar a LDB, o Conselho Nacional



cola indígena e propõe ações concretas em prol de Educação, por meio dessa resolução, definiu

da Educação Escolar Indígena. as esferas de competência e responsabilidade



Merecem destaque, no parecer que institui pela oferta da educação escolar aos povos indí-

as diretrizes, a proposição da categoria “escola genas. Estabelecido o regime de colaboração



indígena”, a definição de competências para a entre União, estados e municípios, o CNE defi-

oferta da Educação Escolar Indígena, a forma- niu que cabe à União legislar, definir diretrizes e

ção do professor indígena, o currículo da escola políticas nacionais, apoiar técnica e financeira-

e sua flexibilização. Essas questões encontraram mente os sistemas de ensino para o provimento

normatização na Resolução nº 3/99, gerada no de programas de educação intercultural e de for-



âmbito das mesmas discussões que ensejaram mação de professores indígenas, além de criar

este parecer. programas específicos de auxílio ao desenvolvi-


mento da educação. Aos estados, caberá a res-



ponsabilidade “pela oferta e execução da Edu-


Resolução nº 3/99 do

cação Escolar Indígena, diretamente ou por re-



Conselho Nacional de Educação gime de colaboração com seus municípios”, in-


tegrando as escolas indígenas como “unidades



No Diário Oficial da União, de 17/11/1999, foi próprias, autônomas e específicas no sistema



publicada a Resolução nº 3/99, preparada pela estadual” e provendo-as com recursos humanos,

Câmara Básica do Conselho Nacional de Educa- materiais e financeiros, além de instituir e regu-

ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para o lamentar o magistério indígena.

funcionamento das escolas indígenas. Importan- Dessas disposições, decorre, entre outras, a

tes definições foram aí inscritas e regulamentadas, necessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-

no sentido de serem criados mecanismos efetivos


cação criar uma instância interinstitucional, com


para a garantia do direito dos povos indígenas a a participação dos professores e das comunida-

uma educação diferenciada e de qualidade. Algu- des indígenas, para planejar e executar a educa-

mas dessas definições merecem ser destacadas. ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.

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Legislação escolar indígena

Do nacional ao local: encontrar detalhamento nas esferas estaduais,



de forma a se potencializar as oportunidades de


o lugar da legislação estadual


os povos indígenas terem uma escola e uma edu-



O conjunto da legislação nacional a respeito cação que atenda aos seus interesses e às suas


aspirações de futuro.


do direito dos povos indígenas a uma educação


diferenciada, como visto anteriormente, está Feito o itinerário do detalhamento do direito



estruturado a partir de duas vertentes, que ne- dos índios a uma educação diferenciada, algumas


questões colocam-se para o debate, no momento 135


cessariamente precisam convergir, para que esse


direito se materialize: de um lado, trata-se de em que se caminha para novas formulações legais



propiciar acesso aos conhecimentos ditos uni- e administrativas, agora nas esferas estaduais.



versais e, de outro, de ensejar práticas escolares A primeira questão já foi anunciada: a da


persistente lacuna entre a lei e a realidade, en-


que permitam o respeito e a sistematização de


saberes e conhecimentos tradicionais. É da jun- tre o direito explicitado e a prática vivida. Que



ção dessas duas vertentes que deve emergir a tão alternativas se colocam a esse direito? Será que



propagada escola indígena. a busca de novas leis e normatizações seria um


O que a legislação nacional estabelece é um caminho para que aquilo que já foi inscrito ga-



conjunto de princípios que, de modo geral, aten- nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-

de à extrema heterogeneidade de situações vivi- genas contam com outros mecanismos que po-

das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con- deriam ser acionados para que o direito já

temporâneos no Brasil. Essa legislação permite a explicitado seja cumprido? Quais são os impas-

expressão do direito a uma educação diferencia- ses e as dificuldades que impedem o direito de

da, a ser pautada localmente, em respeito às dife- se realizar? São exclusivos do campo educacio-

nal ou dizem respeito à relação dos povos indí-


rentes situações socioculturais e sociolingüísticas


de cada povo indígena, bem como em relação aos genas com o Estado brasileiro?

seus diferentes projetos de futuro. Outra ordem de questões diz respeito à esfe-

Todavia, esses princípios precisam encon- ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-

mas estaduais de ensino a responsabilidade pela


trar respaldo e acolhimento nas normatizações


estaduais que vão disciplinar o funcionamento oferta da Educação Indígena e pela formação e

das escolas indígenas, como unidades integran- regularização profissional dos professores indí-

tes dos sistemas estaduais de ensino, bem como genas, a eles cabe também definir, em plano es-

tadual, a matéria esboçada no plano federal. O


regularizar a situação dos professores indígenas


como profissionais contratados pelo estado ou que caberia definir aos estados? Qual o espaço

pelo município. É aqui, portanto, no âmbito es- de sua atuação? A qual nível de detalhamento aos

tadual, que os princípios federais precisam ga- estados caberia chegar, na definição das ações

educacionais para os povos indígenas? Como


nhar efetividade, gerando normas e procedi-


mentos que lhes possam dar vazão. É nesse garantir que a legislação estadual não se restrin-

âmbito que se consolida o direito a uma edu- ja a princípios federais? Como garantir que a es-

cação diferenciada, na medida em que se cola indígena não sucumba diante das demais

escolas do sistema estadual?


implementa e se realiza o direito a uma escola


própria e diferenciada. Por fim, uma terceira ordem de questiona-



Esse é o momento em que diferentes esta- mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-

dos da Federação se lançam a disciplinar a ma- dígena em particular, a cada projeto de futuro

e de escola, pois é aí que o direito a uma edu-


téria, seja por meio da inclusão da Educação Es-


colar Indígena nas leis orgânicas de educação, cação diferenciada se realiza. E a pergunta

por parte das Assembléias Legislativas, seja por deve inverter a ordem estabelecida: em que

meio de resoluções estaduais, geradas no âmbi- medida o que já está inscrito no plano legal não

to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é, limita as aspirações e os desejos dos povos in-

portanto, o momento de refletir sobre como os dígenas relativamente à escolarização formal



avanços alcançados na esfera federal poderão de seus membros? E para que rumo segue a

Educação Indígena? Haverá espaço para aque- Bibliografia



les grupos que almejam simplesmente um


GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Educação Escolar Indí-


maior conhecimento do Português e das regras


gena no Brasil: a passos lentos. In: RICARDO, Carlos


de comércio com a sociedade envolvente? To- Alberto (Org.). Povos indígenas no Brasil – 1996/2000.


das as escolas indígenas deverão formalizar


São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.


seu ensino, garantindo continuidade de estu- . Os índios e a cidadania. In: Cadernos da TV



dos dentro e fora das terras indígenas? Haverá Escola – Índios no Brasil, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.


condições e espaços para que os índios dêem MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São



Paulo: Loyola, 1979.
um sentido próprio para a escola indígena, fora


SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial


das amarras administrativas e legais já con-


Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília:


quistadas? Enfim, para onde caminha todo SEF/MEC, 1998.


esse processo?


. O governo brasileiro e a Educação Escolar


Enfrentar essas questões está na ordem do dia. Indígena 1995/1998. Brasília: SEF/MEC, 1998.








Apontamentos acerca da


regularização das escolas indígenas






Darci Secchi*

Unemat




Resumo



Os povos ameríndios convivem com algum gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-

tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos, rou a diferença, isto é, manteve resguardado o

porém, a escola colonial recebeu novas adjeti- direito de outorgar direitos. O presente paper pre-

vações (específica, diferenciada, intercultural, bi- tende discutir o processo de regularização das

língüe), e a educação escolar passou a ser tratada escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-

como política pública, como um direito de cida- sidade de conciliar os interesses de todos os su-

dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial jeitos detentores de direitos, em especial, os das

não foi totalmente superado, uma vez que a le- sociedades indígenas.





Um breve sobrevôo Na era dos descobrimentos, os debates acer-



ca da Educação Indígena tiveram como cenário


sobre o campo

o confronto visual dos colonizadores com os ha-



Diversas sociedades indígenas brasileiras con- bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-

am-se o estatuto desses seres naturais e o lugar


vivem, há séculos, com a instituição escolar, e nós,


colonizadores, convivemos com a inquietação que lhes caberia no projeto de exploração. A



quanto ao lugar que ela deve ocupar nos processos questão que se colocava era se eles seriam con-

de colonização e/ou de autonomia desses povos. siderados seres humanos e, tendo alma, se seria




* Professor da UFMT e doutorando em Ciências Sociais pela PUC/SP.


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Legislação escolar indígena

possível educá-los na fé cristã, ou se deveriam ao atual momento econômico, político e



ser simplesmente escravizados. A controvérsia1 epistemológico brasileiro.3 O discurso que havia



acerca da natureza humana dos índios perdurou insuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-



por dois séculos e, a partir dela, estabeleceram- vil” passou a ser apropriado pelo poder público.


se os contornos do projeto colonizador em toda Seria o prelúdio de novos tempos?



a América e em outros continentes.



Nos últimos anos, porém, verificaram-se
Um pouco de história


significativas mudanças no tratamento da 137



temática educacional indígena. Os próprios ín- O modelo integracionista de educação esco-



dios entraram em cena para debater a política lar para o índio no Brasil está associado histori-



de escolarização e para exigir uma educação camente ao binômio proselitismo doutrinário


escolar voltada ao atendimento dos seus inte-


(religioso ou não) e preparação para o trabalho.


resses. A educação escolar passou a ser vista Com esse intuito, atuaram as missões católicas,



como uma política pública, como um direito de as escolas pombalinas, a educação positivista e,



cidadania. Hoje já não se discute se os índios mais recentemente, os missionários e lingüistas


têm ou não têm alma, se devem ou não ser civi- de diferentes confissões.


lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãos A partir da década de 1950, insuflados pelos

detentores de direitos específicos. ares da modernidade e das novas relações inter-



Ainda assim, a secular matriz colonial não foi nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-

totalmente superada. As atuais leis e regulamen- dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-

tos foram produzidos apenas com a audiência dos vos instrumentos jurídicos e novos objetivos para

índios, ou contaram com a participação das co- a educação escolar das “populações tribais e

munidades. Ou, dito de outra forma, a legislação


semitribais”. A Convenção 107 da Organização


admitiu a alteridade e tolerou a diferença, mas Internacional do Trabalho (OIT/1957) preconizou,



manteve resguardado o direito discricionário de entre outros dispositivos, a garantia de educação



conceder direitos. Nela, o reconhecimento à di- em todos os níveis (art. 21); a realização de estu-

versidade cultural, aos direitos específicos, à


dos antropológicos prévios à elaboração de pro-


liturgia diferenciada para as suas escolas etc. se- gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-

riam como marcos ou garantias de um porvir de gua materna seguida de educação bilíngüe (art.

cidadania, de respeito e de valorização das socie- 23); e uma campanha de combate ao preconceito

dades indígenas. Ao tempo em que se consolida-


(art. 25). Porém os artigos 24 e 26 não esconde-


va a tendência de considerar assuntos indígenas2 ram o antigo paradigma integracionista. Vejamos:



apenas os de cunho jurídico e administrativo, viu-



se frutificar inúmeras parcerias e cooperações Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo

entre o poder público, a militância indigenista e


dar às crianças pertencentes às populações inte-


acadêmica e as próprias organizações indígenas ressadas conhecimentos gerais e aptidões que as



na busca de novos horizontes para a “causa indí- auxiliem a se integrar na comunidade nacional.

gena”. Nesse processo, surgiu também um novo [...]


discurso oficial, que substituiu o antigo “refrão Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]

integracionista” por enunciados mais palatáveis com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e





1
Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a sua

captura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.

2
Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem

“questão indígena”. Tomo-as aqui como sinônimos.



3
Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, o

esgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, como

fórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –

pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.

obrigações especialmente no que diz respeito ao tra- senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-



balho e os serviços sociais.4 [Grifos meus.] tros estados.



Os direitos conquistados nesse período


No Brasil, esses dispositivos ingressaram no


recolocaram em novas bases o antigo conflito


mundo jurídico somente uma década mais tar- entre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-



de e se materializaram de fato na Constituição sas” entre escola e Estado passaram a ser vistas



Federal de 1988. Mesmo assim, careciam de como “relações possíveis”.


maiores explicitações, o que seria formalizado, Os anos 1990 caracterizaram-se como um



em meados da década de 1990, com a publica- período de implementação do ideário gestado



ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação na década anterior. As novas palavras de ordem


Nacional (Lei nº 9.394/96).


– “educação bilíngüe e intercultural”, “currícu-


Ao longo desses 30 anos de maturação jurí- los específicos e diferenciados”, “processos pró-



dica e política, muitos atores compuseram o ce- prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-



nário da Educação Escolar Indígena. terializadas no cotidiano das escolas. No entan-

A década de 1970 foi marcada pela emergên- ○

to, nem o poder público estava preparado téc-
cia do chamado “indigenismo alternativo” e por nica e administrativamente para assumir essa

ensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti- tarefa, nem havia legislação específica que ori-

dos como estratégias de oposição e superação do entasse tal procedimento. No contexto desse

paradigma integracionista. Nesse período, as es-


“vazio normativo” e das pressões advindas das


colas oficiais foram vistas com cautela, quando comunidades indígenas, dos grupos de apoio,

não com desconfiança. Propunha-se, em seu lu- de setores da academia e do próprio poder pú-

gar, a criação de escolas alternativas, mormente blico, o Governo Federal e o MEC passaram a

de acepção freireana, desatreladas do espaço do coordenar uma série de iniciativas que resulta-

Estado e das instituições que o representavam. ram na atual arquitetura jurídica e administra-

Na década de 1980, a escola indígena anco- tiva para as escolas indígenas.


rou-se no tripé organização indígena, reflexão


Dentre as principais medidas, destacaram-se:


acadêmica e militância indigenista, parceria que • a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-

produziu uma vasta documentação, participou feriu da Funai para o MEC a responsabilida-

do processo constitucional e ostentou a chan- de pela coordenação e aos estados e municí-


cela de ver as suas bandeiras contempladas na pios a responsabilidade pela execução das

nova Carta. As articulações surgidas nesse con- ações de Educação Escolar Indígena;

texto resultaram na organização de “Núcleos de • a publicação da Portaria Interministerial nos



Educação” ou “Núcleos de Estudos Indígenas” 559/91 e das Portarias/MEC nº 60/92 e 490/


em diversos estados. Em alguns casos – como o


93, instituindo e normatizando o Comitê


de Mato Grosso –, esses núcleos deram origem Nacional de Educação Indígena, fórum que

aos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí- viria subsidiar a elaboração dos planos

operacionais e as ações educacionais nos es-


gena, fóruns multiinstitucionais e de composi-


ção paritária, que definem a política de Educa- tados e municípios;



ção Escolar Indígena nos respectivos estados. • a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-

Na década de 1980, realizaram-se também cação pelo MEC, em 1994, do documento



diversos cursos de capacitação de professores e “Diretrizes para a Política Nacional de Edu-


encontros de Educação Indígena, eventos que cação Escolar Indígena”, a partir do qual de-

deram suporte à organização dos atuais Progra- finiram-se os principais contornos do aten-

mas de Formação de Professores Indígenas, de- dimento escolar indígena;







4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-

sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho

a decidir sus proprias prioridades [...].


138
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa- res “serão planejados com a audiência das comu-



ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta- nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Isto



beleceram as normas específicas para a oferta é, coube às agências externas – governos, acade-


de educação escolar para os povos indígenas;


mias, conselhos – o planejamento dos programas


• a aprovação, na Comissão de Constituição e das escolas com a audiência indígena, e não o



Justiça do Senado Federal, em 6 de dezem- inverso: “as comunidades indígenas planejarão



bro de 2000, após oito anos de tramitação, seus programas com a audiência do poder pú-


da Disposição 169 da Organização Interna- blico, dos conselhos e da academia”. 139



cional do Trabalho, estabelecendo os direi- Dessa forma, a atual legislação deixou de


tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entre


contemplar duas premissas fundamentais para


eles o da Educação Escolar Indígena em to-


a superação do modelo escolar integracionista,


dos os níveis e nas mesmas condições que o
quais sejam, a da iniciativa e a do controle das


restante da comunidade nacional.


sociedades indígenas sobre o processo de con-



ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-


Como vemos, nesta última década, multipli-


mas educacionais. Os índios permaneceram na


caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju- qualidade de ouvintes, e não de propositores de



rídicos e administrativos concernentes à criação, suas próprias políticas. Continuaram sendo

à implementação e ao reconhecimento das esco- expectadores, “atores coadjuvantes”, sem direi-


las indígenas. No entanto, as mudanças tiveram um


to de propor, sem direito de vetar, sem direito


alcance maior apenas nos aspectos operacionais e de outorgar os seus próprios direitos.

metodológicos e não parecem ter rompido total- Um segundo aspecto problemático desse

mente com o modelo conceitual anterior.


modelo de escola diz respeito à sua adjetivação


O paradigma da atual escola específica, dife- como “escola bilíngüe”.



renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es- A primeira versão da escola bilíngüe propu-

cola adaptada formalmente à clientela, não se- nha assegurar “a transição progressiva da língua

ria a antiga escola colonial, agora fantasiada de


materna ou vernacular para a língua nacional ou


novos atributos? Ou seria de fato uma escola do para uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.

“outro”, isto é, dirigida às populações indígenas? 23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, no

E, nesse caso, qual será a matriz conceitual que Brasil, aos missionários lingüistas do Summer

a inspira? Onde se funda essa nova instituição?


Institute of Linguistics (SIL), por meio de uma


portaria da Funai (nº 75/72), que conferiu a essa



Admitindo a alteridade e agência norte-americana o status, o privilégio e



o foro “oficial” no que se tratasse de assuntos


tolerando a diferença

lingüísticos. Segundo o antropólogo Márcio Sil-


Como vimos, o projeto hegemônico das atuais va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha

escolas indígenas teve a sua origem associada à “que até mesmo as ferramentas analíticas desen-

Convenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos, volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-

redefiniu as relações internacionais do trabalho e rar nos documentos oficiais”.5


ensejou incorporar as populações do Terceiro As críticas ao “bilingüismo de transição” – e



Mundo ao projeto de desenvolvimento liberal. não a utilização regular de ambas as línguas –



Naquele movimento, a escola e os seus pro- não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-

gramas educacionais foram definidos anterior e va forma de etnocídio”. Mesmo assim, esse mo-

exteriormente à participação das sociedades in- delo perdurou por três décadas até que foi

dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada na substituído por sua abordagem antagônica, aqui

atual LDB, ao propor que os programas escola- denominada de “bilingüismo compulsório”.








5
Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.

Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-se O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-



no sentido de transitarem de uma situação tantes: as escolas indígenas devem ser específi-



monolíngüe em língua indígena para uma situ- cas e diferenciadas. Mais do que garantir novos



ação de falantes do Português, agora a situação avanços, esses “direitos compulsórios” ratificam


se inverteria. Propunha-se que o bilingüismo a histórica perspectiva discriminatória de



fosse uma característica inerente às escolas in- desqualificação das minorias étnicas e culturais.



dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria- As escolas indígenas – como também as escolas


mente bilíngües. rurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-



O documento Diretrizes para a Política Na- pecíficas e diferenciadas para “reproduzir os co-



cional de Educação Escolar Indígena, produzido nhecimentos próprios”, isto é, para reproduzir a



pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do negação cultural, a negação identitária e a nega-


MEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas: ção da cidadania, elementos que compõem a



essência do cotidiano de quem se sabe e se re-


A escola indígena tem que ser parte do sistema

conhece historicamente discriminado.

de educação de cada povo, na qual, ao mesmo ○
Talvez resida aí a razão da dificuldade de os
tempo em que assegura e fortalece a tradição e o

índios perceberem as escolas diferenciadas


modo de ser indígena, fortalecem-se os elemen-


como algo positivo para os seus projetos socie-


tos para uma relação positiva com outras socie-


dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a tários. Como disse o líder xinguano Marawê

Educação Escolar Indígena tem que ser necessa- Kayabi, “Até agora só sabemos o que é diferencia-

do para pior e nunca para melhor”.


riamente específica e diferenciada, intercultural


e bilíngüe [grifos meus].


Será possível “regularizar”



Parece óbvio que essa formulação generalista


o específico e o diferenciado?

carece de sustentabilidade, embora não se ques-



tione a adoção do bilingüismo em situações Todos nós que atuamos no campo da Edu-

sociolingüísticas diglóssicas. O seu ponto críti-


cação Escolar Indígena, por certo, já nos depa-


co reside na formulação como modelo tipológico ramos com questionamentos para os quais não

obrigatório e único para as escolas indígenas. obtivemos uma resposta satisfatória.



Como se daria o tratamento bilíngüe em es- Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-

colas cujos alunos indígenas se definem como


voam os meus pensamentos, na expectativa de


monolíngües? Ou, inversamente, como se faria a compartilhá-los com meus pares e, assim, qui-

opção por apenas duas línguas em situações de çá, construirmos um caminho mais seguro nes-

multilingüismo? São inúmeros os casos em que se terreno pantanoso.


“coexiste, em um mesmo contexto, mais de uma


O primeiro provém de uma indagação for-


língua indígena e os casos em que a língua indí- mulada por um professor Guarani por ocasião

gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.: de uma etapa do curso de formação de profes-

13). Portanto, a escola verdadeiramente indígena sores em Amambaí/MS. Na ocasião, perguntou-


não é necessariamente bilíngüe, embora o me o professor: “Você poderia me dizer como a



bilingüismo possa ser atualmente recorrente em gente faz para regularizar uma escola, respeitan-

muitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivação do o específico e o diferenciado?” Pensando ter

emblemática” para as escolas indígenas, o ensino


entendido a sua pergunta, passei a expor os pro-


bilíngüe deveria constituir-se numa opção das cedimentos recomendados pela legislação etc.,

comunidades e, como tal, poderia compor ou não mas logo fui interrompido com uma observação:

o currículo e o cotidiano de suas escolas. Essa “Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-

opção, porém, é mais uma vez subtraída das co-


ber. Eu preciso saber se uma escola indígena es-


munidades e impingida como um “direito obri- pecífica e diferenciada deve ter tudo o que está

gatório”. Mais uma vez, admite-se a diversidade e escrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-

domestica-se a diferença, sem, contudo, abrir râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudo

mão do direito de conceder direitos.


aquilo, acho que nunca teremos uma escola es-


140
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

pecífica e diferenciada”. O professor Guarani co- culada aos municípios. A administração estadu-



loca-nos o seguinte problema: como regularizar al não tem intenção de assumir diretamente as



as escolas sem “disciplinar” a diferença? Seria escolas indígenas e está propondo a consolida-



pelo caminho dos adjetivos formalizantes? ção do Sistema Único de Educação Básica pre-


A segunda indagação tem por nascedouro conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-



uma pergunta formulada por um professor ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se como



Parintintim quando se debatia a Resolução nº 3 proceder para que as escolas indígenas não se-


da CEB/CNE, no curso de formação de professo- jam prejudicadas em termos de recursos, acom- 141



res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi- panhamento, concursos, carreira, serviços etc.6



culdade de entender a diferença entre “ano civil” Por essa breve amostra, percebe-se que ain-



e “ano letivo”, um professor perguntou aos cole- da perdura – se não se amplia – a necessidade de


gas: “Mas se a minha comunidade resolver que o “normatização” das escolas indígenas, não



nosso ano letivo deva durar cinco anos, será que obstante as diretrizes, parâmetros, referencial,



pode?”. Após algum debate, quase todos profes- resoluções etc. Grande parte dessa normatização



sores concordaram que poderia. Então o profes- seria desnecessária, creio, se mudássemos o es-


sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai ser pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-



pelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou- zar um único protótipo de escola diferenciada.

be formular uma resposta que convencesse o pre- Creio que uma política pública de Educação

feito ou o secretário de Educação a pagar o mes- Escolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-

mo salário ao professor indígena cujo calendário ses que não a normatização da diferença e a su-

escolar coincide com o ano civil e ao outro que pressão da alteridade. Elas materializam o dis-

“demora” cinco anos para concluir um ano letivo. curso e a prática de um direito concedido e de

A última indagação veio do curso de formação uma cidadania conferida e, portanto, tornam-se

dos professores Xinguano após a conclusão dos veículos de dominação e de imposição.



estudos sobre o tema “Legislação”, em que nos de- Uma política pública de educação deve nas-

bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla- cer dos professores, das lideranças e das comu-

ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car- nidades indígenas e por elas ser controlada. Mas

reira do Magistério, de concurso público, do siste- isso não significa que o poder público, as insti-

ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Após tuições acadêmicas e a sociedade civil em geral

uma semana de estudos, os professores chegaram devem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-

a algumas dúvidas, que pretendo compartilhar bilidade. Ao contrário, cabe-lhes, conjuntamen-



também com vocês. A primeira diz respeito à legi- te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e não

timidade de se “exonerar” um professor indígena apenas implementá-la enquanto tal, o que su-

quando não há consenso entre o poder público e a põe uma estratégia de ação, que pode expressar-

comunidade escolar: o poder público pode exone- se pelos seguintes princípios fundantes:

rar um professor indígena à revelia da comunida- • a garantia da participação indígena em to-



de? Ou a comunidade pode “exonerar” um profes- das as etapas de elaboração, execução e ava-

liação dos programas;


sor concursado à revelia do poder público?


A segunda questão trata das condições de os


• o reconhecimento da legitimidade de insti-


municípios cooperarem com os estados na ofer- tuição parceira por meio da avaliação e da

ta de educação escolar, especialmente na exigên- avalização dos povos ou comunidades indí-


genas com as quais cada instituição atua;


cia de constituírem sistemas próprios. Em Mato


Grosso, por exemplo, apenas três municípios


• a apresentação e a aprovação dos programas


estão constituídos em sistemas próprios, ainda educacionais pelo Conselho de Educação



que a maioria das escolas indígenas esteja vin- Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso





6
Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 em

estados que constituírem o Sistema Único de Educação Básica.



(CEI/MT), fórum interinstitucional e pari- Bibliografia



tário composto por instituições e represen-


ARRUDA, Rinaldo S. Vieira. Os Rikbaktsa: mudança e tradi-


tantes indígenas;


ção. 1992. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação


• a manutenção de vínculo permanente entre em Ciências Sociais. São Paulo, PUC-SP.


BARROS, Maria Cândida D. Lingüística missionária: o Summer


as atividades escolares e as demais iniciati-


Institute of Linguistics. 1993. Tese (Doutorado). Unicamp.
vas do campo da saúde, da regularização


Campinas.


fundiária e da economia indígena;


BATALLA, Guillermo Bonfil. La teoria del control cultural en el


estudio de procesos étnicos., Papeles de la Casa Chata.
• a compatibilização dos programas escolares


Ciudad de México, año 2, n. 3, 1987.


com o calendário sociocultural das socieda-


BRAND, Antonio. Autonomia e globalização, temas fundamen-


des indígenas; tais no debate sobre Educação Escolar Indígena no con-


texto do Mercosul. In: PRIMEIRO ENCONTRO DE EDU-


• o compromisso da continuidade e termina-


CAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DA AMÉRICA LATINA.


lidade dos trabalhos e da manutenção de 1988, Dourados/MS. Anais... Dourados/MS, 1998.


equipes técnicas aptas a acompanhar as CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ES-


ações de Educação Escolar Indígena desen- TADO DE MATO GROSSO. Urucum, jenipapo e giz: a Edu-

cação Escolar Indígena em debate. Cuiabá/MT: Seduc,


volvidas no estado sob a coordenação da Se-


1997.
cretaria de Educação;

FRANCHETTO, Bruna. O papel da educação escolar no pro-


cesso de domesticação das línguas indígenas pela escrita.


• a escolha do Conselho de Educação Escolar


In: POPULAÇÕES INDÍGENAS, EDUCAÇÃO E CIDADA-


Indígena do Estado de Mato Grosso (CEI/ NIA (Mesa-redonda). São Luís: 47ª SBPC, 1995.

MT) como foro privilegiado para dirimir dú-


GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: sobre a


vidas e controvérsias relativas à educação (im)possibilidade da educação escolar indígena no Brasil.


escolar. In: 10º COLE. 1995, Campinas/SP. Anais... Campinas:



Unicamp, 1995.

Para concluir, estendo essa reflexão para IANNI, Octávio. Novo paradigma das ciências sociais. In: Estu-

além da temática da Educação Escolar Indígena dos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, 1994.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDU-


e me atenho especificamente aos contornos das

CACIONAIS. Tema: Educação Escolar Indígena. Brasília:


atuais políticas públicas no Brasil.


Inep/MEC: 1994.

Como nos ensina Octavio Ianni, as políti- MELIÀ, Bartomeu. Ação pedagógica e alteridade: por uma pe-

cas públicas equacionam-se pela conjugação dagogia da diferença. Cadernos de educação básica (série

institucional), Brasília, v. 2, 1993.


de três elementos fundamentais, que ordenam

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação Fun-


as relações entre o Estado e os cidadãos: a na-


damental. Diretrizes para a política nacional de Educação


tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro- Escolar Indígena. Brasília, 1993 (Cadernos de Educação

postas; as formas de decisão e de atuação po- Básica, v. 2).



MUÑOZ, Héctor. Política pública y educación indígena


lítica; e a disposição e a capacidade de com-

escolarizada en America Latina. In: SECCHI, D. (Org.).


posição com as organizações da sociedade ci-


Ameríndia – tecendo os caminhos da Educação Escolar


vil, sejam elas propositivas, reivindicatórias ou Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/CAIEMT, 1998.


de contestação. ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Pueblos



indígenas y tribales: guía para la aplicación del convenio n.


Portanto, uma política de educação esco-

169 de la OIT. Genebra: OIT, 1996.


lar que se pretenda convergente com os inte-


RICARDO, Carlos Alberto. Os índios e a sociodiversidade nati-


resses de sua clientela não poderá descon- va contemporânea no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy;

siderar essa conjugação. No caso específico da GRUPIONI, Luís Donisete B. A temática indígena na esco-

la. Brasília: MEC/Mari/Unesco, 1995.


Educação Escolar Indígena, implica, entre ou-

SECCHI, Darci. Diagnóstico da Educação Escolar Indígena em


tras iniciativas, um permanente exercício de Mato Grosso. Cuiabá/MT: PNUD/Prodeagro, 1995. (Mimeo).

negociações, cooperações, parcerias etc. Sem . (Org.). Ameríndia – tecendo os caminhos da


esses exercícios, não acredito ser possível o Educação Escolar Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/

CAIEMT, 1998.
exercício do controle indígena sobre as suas

SILVA, Márcio F. da. Educação e sociedades indígenas; subsí-


escolas. E, como já foi dito antes, normatização dios aos projetos demonstrativos para populações indíge-

não é sinônimo de adequação. Para ser uma nas. São Paulo: FFLHC/USP, 1999.

boa escola indígena, é preciso antes que ela SILVA, M.; AZEVEDO, M. Diretrizes para a política de Educa-

ção Escolar Indígena. Brasília: MEC, 1994.


seja indígena.

142
PAINEL 5
Legislação escolar indígena

Legislação em Educação




Escolar Indígena





Vilmar Guarani



Funai




143




Resumo





genas elaborados com a participação ativa dos in-


Este resumo apresenta alguns enfoques da le-


gislação em Educação Escolar Indígena: dígenas e de suas organizações para que o Estado



Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali- brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-


ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-


dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-


ra fase na história do Brasil, bem como no passado to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-



recente, nos moldes da legislação então vigente, tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as

com as suas características integracionista e ○



culturas diversas representadas nos mais de 200
assimilacionista. povos indígenas, com seus usos, costumes, línguas,

crenças e tradições, e a importância da Educação


Enfoque atual. Desenvolvemos um relato so-


bre a legislação, observando principalmente a Lei Escolar Indígena como um dos direitos coletivos

nº 6.001/73, o Estatuto do Índio, a Constituição Fe- dos povos indígenas.


Enfoque da perspectiva. Discute a questão


deral, decretos, portaria interministerial, a Lei de


Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação, da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei

entre outras. Veremos, ainda, os instrumentos in- nº 2.057/91 e a da aplicabilidade da legislação em


vigor e outras possibilidades.


ternacionais de defesa e interesses dos povos indí-












































P AINEL 6

OS ETNOCONHECIMENTOS
NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello

José Augusto Laranjeiras Sampaio

Roseli de Alvarenga Corrêa

145
Etnoconhecimento na Escola Indígena





Carlos Alfredo Argüello*



Unicamp – Unemat






Resumo


cartesiano, o reducionismo mecanicista, a


disciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-



pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o


O etnoconhecimento é peça fundamental na


nossa proposta de construção de uma escola indíge- acúmulo, o consumismo, a competição e, apesar



na que seja algo mais que uma escola de brancos pen- de propiciar a utilização dos meios globais de in-


sada para índios. Propomos uma escola que incor- formação, ignora o seu entorno imediato, ignora



pore o saber dos anciãos, as características da educa- o conteúdo cultural dos seus alunos e familiares


ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e e tende a uma padronização estéril.

que resgate da escola do branco os saberes necessá- As correções de rumo, necessárias, foram re-

rios a seu empowerment e à prática da educação alizadas dentro do marco da pulverização disci-

libertadora. plinar e do apelo a tendências para as quais nem



os professores nem as escolas estão preparados:


O dicionário Aurélio traz como primeira transdisciplinaridade e visões estreitas de



acepção da palavra “escola”: “estabelecimento ambientalismo.



público ou privado no qual se ministra, sistema-



ticamente, ensino coletivo”.


Escola indígena

“Estabelecimento de ensino coletivo” pressu-



põe alguns professores, muitos alunos, em local A escola como uma estrutura humana,

determinado. A escola indígena tem o direito le- conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-

sente na Educação Indígena, mas não propicia um


gal de ser uma escola diferenciada. Isso lhe con-


fere um grau de liberdade para organizar os seus ensino coletivo, e sim uma educação artesanal,

currículos, administrar os seus horários e a pos- preceptoral, individualizada, contextualizada e na



sibilidade de organização bilíngüe com direito a qual se fomenta o fazer. Professores são a família,

e a família estendida.

alfabetização na primeira língua etc.


A escola indígena é responsabilidade última Essa escola, baseada na oralidade e na práti-



das prefeituras e dos estados e tem que se enqua- ca exaustiva, não pressupõe competitividade, não

drar nas diretrizes de orientações básicas educa- é dividida em disciplinas e predispõe o


afloramento do pensamento complexo.


cionais da Federação.

A tendência geral hoje é de que os professo- No momento, essa escola está em perigo de

res das escolas indígenas sejam índios e, priorita- extinção. O recente aparecimento da figura do jo-

riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos. vem professor índio assalariado cria outras instân-

cias de poder, saber, comunicação e liderança que


Mesmo assim, a escola indígena é a escola do


branco para o índio. É a mesma escola que o bran- perturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).

co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essa Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-

escola possuirá, então, muitos dos defeitos que se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-

ção” propiciada pela “Escola para Índios”.


possui a escola do branco, a que está ligada gene-


ticamente, com alguns deles apenas suavizados Passo a relatar duas experiências, duas situa-

pelo direito à diferenciação. ções vividas em locais completamente diferentes



A escola do branco prestigia o pensamento e distantes.







* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.

146
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco, Os cursos são ministrados em etapas intensi-



às margens do rio Içana, afluente do rio Negro, vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200



nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado do professores índios de 35 etnias diferentes.



Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, em Nas etapas intermediárias, o professor índio,


meados do ano 2000. enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,



A outra, na etapa de preparação das ativi- trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-



dades dos cursos de licenciatura para profes- sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-


sores indígenas, no campus de Barra do Bugres cola, a visita e a orientação da equipe de profes- 147



da Universidade Estadual de Mato Grosso, em sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-



maio de 2001. bém interagem com a comunidade.



Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in- O trabalho, nessa etapa intermediária, visa a


dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci- resgatar, para a escola, os conhecimentos ances-



dos, solicitando publicamente que instruíssemos trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-



os jovens professores das suas etnias, para que es- rentes saberes, diminuir a separação entre escola



tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas não e comunidade, permitir a docentes e professores


são esses anciões os detentores do conhecimento indígenas um conhecimento melhor da realida-



indígena que nenhum deles, enquanto tal, deve de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com a

ignorar? Não são eles os detentores do que a aca- comunidade.



demia chama de etnoconhecimentos? Não são eles Nesses momentos, o olho atento e treinado

os que conhecem os segredos da mata, dos rios, do docente poderá detectar, na comunidade, sa-

dos animais, os que curam as doenças, os que co- beres, valores, práticas que poderão ser objeto de

nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá- estudo sistematizado com a finalidade de sua in-

rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, as corporação escolar. Por exemplo, junto com as

migrações das aves, as piracemas, as enchentes, o professoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,

tempo certo de plantar? Não são eles os que co- realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, no

nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os que Amazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-

falam com os deuses? Não são eles que conhecem gate, com os professores da escola, do calendário

o segredo da caça e são os melhores artesãos? astronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-

Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo- sões vários “anciões”, que deram sua importante

dificou os seus valores de julgamento? Não será a contribuição.


escola evangelizadora que os queria cristãos? Não Em etapa posterior, reunimo-nos em São

será a escola integracionista que os queria inte- Gabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-

grados, indiferenciados? Não serão as diferentes fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-

escolas que os queriam tratoristas, cortadores de mos durante vários dias, até estabelecermos, em

cana, engrenagens microscópicas na grande má- forma definitiva, um calendário natural circular

quina da economia branca? Não estará também e um calendário astronômico explicados em



a escola indígena, na sua versão “Escola para Ín- Baníwa e em Português.



dios”, prestigiando em demasia os conhecimen- Da riqueza do calendário natural, surgiram


tos e a cultura do branco em detrimento das pró- muitos importantes ensinamentos, como, por

prias culturas? exemplo, o equilíbrio ecológico presa/predador



Quero citar uma experiência que está no co- na sua versão indígena, as constelações Baníwa

meço e irá frutificar somente dentro de cinco foram “traduzidas” para as constelações acadêmi-

anos. Espero então, daqui a cinco anos, poder ter cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-

a oportunidade de informar e prestar contas. tual e a motivação para seguir estudando o céu,

É nosso trabalho formar professores indíge- os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-

nas no 3o grau, licenciados em várias áreas do co- multaneamente, a partir dos diversos olhares.

nhecimento. Coube-me a delicada tarefa de co- É interessante comentar que a introdução do



ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di- computador e um programa de simulação do céu

ferenciadas. encantaram os mais velhos, que, em pouco tem-



po, foram capazes de utilizar esse novo instru- interculturais servirá para ampliar o mundo comum



mento sem constrangimento nenhum. Cito essa a ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-



passagem como um exemplo de saberes comple- possível, seja a união desses mundos individuais.



mentares. É nossa intenção que a escola seja o espaço


Nossa proposta é incorporar, nas atividades da dialógico para a ação mediatizadora. Note-se que



escola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa- essa iniciativa transborda os limites da educação



beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais, em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da


enfim, derrubar os muros1 que a escola do branco experiência indígena na educação. Parafrasean-



possui e que a separam da comunidade e da reali- do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-



dade que a rodeia, o que a escola para índios, como ma de Educação Indígena, há soluções indígenas



citei anteriormente, herdou em algum grau. ao problema da educação”.


Em contrapartida vejo a escola para índios A abertura de 200 vagas para os cursos de li-



como uma forma de “potencialização” ao estilo cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,



freiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização, equivaleriam, na população brasileira, à abertu-


ou empowerment, é um processo que “permite ao ○
ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-
estudante interrogar e, seletivamente, se apropri- dando as proporções populacionais.

ar daqueles aspectos da cultura dominante, que A necessidade de construir o seu próprio ma-

vão lhe prover as bases para novas definições e terial didático, os textos, os equipamentos, em

transformações, em vez de meramente servir à constante diálogo com a realidade em volta, in-

ampla ordem social estabelecida”. cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-

Continuando com Paulo Freire, nosso grande cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-

mestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri- tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-

mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin- tâncias fora da Educação Indígena.

guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se A revalorização da escola, de uma escola cul-

educam entre si mediatizados pelo mundo!” turalmente comprometida, mas aceitando a pers-

Comentar essa sentença inspiradora ocuparia pectiva de Educação Libertadora, poderá servir de

horas, mas vamos nos perguntar tão-somente: modelo a outras minorias, movimentos sociais e,

Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador? basicamente, à escola tradicional, qualquer que

Existem tantos mundos como pessoas há. A seja o nível econômico dos seus alunos, para que,

experiência de vida da pessoa constrói o seu mun- engajada social, crítica e construtivamente, torne-

do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso- se uma solução e deixe de ser um problema.

ladas, culturalmente definidas, produzem mun-



dos individuais com alto grau de semelhanças.



Poderíamos, simplificando, então idealizar um


mundo “padrão” étnico ou tribal.


Bibliografia

Mas o mundo do professor indígena é aber-



to a outras experiências e visões de mundo? E o


BANDEIRA, Maria de Lourdes. Formação de professores


mundo do professor de professores indígenas? índios: limites e possibilidades. In: CONSELHO DE


Como se pode conceber ou construir um mun-


EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DE MATO GROS-


do mediatizador? SO. Urucum, jenipapo e giz: Educação Escolar Indíge-



Na nossa tradição educacional, a escola desco- na em debate. Cuiabá/MT: Seduc, 1997.


FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz


nhece e ignora o processo de mediatização por


e Terra, 2002.
mundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-

FREIRE, Paulo; MACEDO, Donaldo. Alfabetização: leitura


sário que, entre os mundos a dialogar, exista uma


do mundo, leitura da palavra. São Paulo: Paz e Terra,


interseção que gere o mundo comum, que será o 1990.



mediatizador. Então, o diálogo de características MELIÀ, Bartomeu. Ameríndia . Cuiabá/MT, 1998.






1
Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.

148
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

O “resgate cultural” como valor:




reflexões sobre experiências de um




antropólogo militante em




programas de formação de




professores indígenas no Nordeste 149




e em Minas Gerais





José Augusto Laranjeiras Sampaio



Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)






Tomo como ponto de partida para essas re- sões de “autenticação” dos ditos valores por


flexões a idéia de que a Educação Escolar In- parte do pólo dominado.

dígena, concebida como “específica” e “dife- Assim, em uma palavra, cabe indagar

renciada”, como a pretendemos e a buscamos como, nesses diálogos e nessas disputas,


construir, não deixa de inscrever-se em um sabidamente desiguais, e por meio de que ca-

campo intersocietário de diálogos e de dispu- nais de poder e de que recursos simbólicos se



tas políticas e simbólicas. produzem e se legitimam, para todo o campo



Nesse campo, as próprias idéias de “dife- da Educação Escolar Indígena – e mesmo para

rença”, de “especificidade” e outras do gênero mais além dele –, as definições do que sejam

aparecem como valores, como objetivos a se- especificidade e diversidade culturais indíge-

rem alcançados e garantidos e, também, exi- nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-

bidos e realçados. nificar para cada um dos pólos e no contexto


Aqui, a “cultura indígena” aparece como o da relação entre esses.



domínio social por excelência, por meio do Pretendo aqui demonstrar, com base em

qual tais valores se expressam, e a “escola in- minha própria experiência em programas de

dígena”, como a via institucional para a sua formação de professores indígenas, como a so-

formalização e reprodução. ciedade nacional imprime, por meio sobretu-



Mas, sendo o campo da Educação Escolar do de seus agentes diretamente engajados no



Indígena necessariamente intersocietário e, campo da Educação Escolar Indígena (profes-



mais que isso, definido pela presença, por um sores formadores, agentes administrativos

lado, de um pólo dominante, o da sociedade etc.), as suas próprias concepções de “cultura



nacional, “doador” e “prestador” de bens e indígena”, “especificidade cultural” etc. e como



serviços – formação de professores, infra-es- o pólo indígena tende a dialogar com tais con-

trutura, material didático, salários, alimentos cepções, a reproduzi-las ou a contrapô-las.


etc. –, e, por outro, de um pólo “receptor”, o Ao ser convidado para participar, como an-

das sociedades indígenas, não se deve supor tropólogo “especialista” em povo Pataxó, do

que os valores e conceitos caros ao campo, Programa de Implantação de Escolas Indíge-



como “diferença”, “especificidade” e “cultura”, nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-

produzam-se e legitimem-se à margem dos mandas, talvez a mais importante delas,



diálogos e disputas políticos e simbólicos ine- dirigida a mim e a alguns outros colegas – e

rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri- não infreqüente em circunstâncias semelhan-

mam-se as marcas ideológicas do pólo domi- tes que eu próprio teria oportunidade de vir a

nante, ainda que tais diálogos e disputas re- novamente vivenciar – por parte tanto de pro-

queiram, formal e necessariamente, expres- fessores indígenas em formação, quanto de



muitos dos responsáveis por essa formação, prias às autopercepções de sua própria socie-



dizia respeito à minha possível contribuição dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-



em um processo percebido como necessário às tante da produção de um real diálogo cultural



ditas formação de professores e implantação com as posições indígenas.


de escolas diferenciadas, claramente definido Na modalidade “positivada” das concep-



por todas as personagens presentes no campo ções etnocêntricas de “culturas indígenas”, as



como “resgate cultural”. oposições anteriormente referidas dão lugar


Em que consistiria, então, o “resgate cul- a outras nas quais tais “culturas” assumem,



tural” sobre o qual se esperava que pudésse- em relação à cultura de ego, o pólo “favorá-



mos, eu e outros antropólogos, percebidos vel”, como em autenticidade cultural x dege-



como “especialistas” em “culturas indígenas”, neração da cultura por colonialismo cultural,


intervir favoravelmente? cultura de massa ou globalização; harmonia



Antes de tentar responder a essa questão, com a natureza x exploração predatória do



cabem aqui duas digressões: uma, relativa a ambiente; igualitarismo, amor ao próximo e


como a sociedade brasileira vem reproduzin- ○
altruísmo x desigualdade social, individualis-
do suas concepções a respeito de idéias como mo e competitividade desumana; sabedoria

“diferença e especificidade culturais” indíge- milenar x futilidades e modismos; vida sau-



nas, de larga aplicação e de eficácia simbólica dável em ambiente “natural”, “mata” x vida

bastante perceptível, hoje, no campo da Edu- insalubre em ambiente citadino, poluído; vida

cação Escolar Indígena; e a segunda, relativa a espiritual rica x pragmatismo materialista;



como essa mesma sociedade e seus agentes etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.

diretos, no dito campo, tendem a perceber a Ao produzir tais oposições, o pensamento


configuração histórica e social tida como típi- dos agentes do pólo dominante, longe de ha-

ca da maioria das sociedades indígenas con- bilitar-se à compreensão e ao diálogo com o



temporâneas em áreas como aquelas em que pólo dominado, apenas projeta sobre este,

tenho trabalhado, em estados do Nordeste e idealizando-o, a própria “má consciência” de


em Minas Gerais. si mesmo.



No que diz respeito à primeira considera- Nessa modalidade, o pólo “autêntico” é



ção, sabe-se que não é difícil à maioria dos percebido como idealmente vivido em uma

agentes da sociedade nacional ora engajados condição de quase “encantamento”, à qual toda

na implantação e na garantia de sistemas di- aproximação do pólo “degenerado” é percebi-



ferenciados de Educação Escolar Indígena per- da como “contaminação”, “deturpação”,



ceber, de modo crítico, as clássicas visões “corrupção” e “ameaça cultural”.



etnocêntricas que negativizam a cultura do in- Aqui, os índices de maior ou menor “auten-

dígena em relação à de ego, por meio de opo- ticidade”, vale dizer, de maiores ou menores

sições, como “preguiçoso” x “trabalhador”, “pri- “taxas” de “diversidade cultural”, medem-se



mitivo” x “civilizado”, “atrasado” x “desenvol- sempre por graus de afastamento do que se



vido”, “fetichista” ou “infiel” x “temente a percebe como sendo os domínios culturais do


Deus”, e muitas outras, que tendem mesmo a pólo “corruptor”.



aproximar a condição indígena à bestialidade É evidente que os sinais diacríticos da “di-



e a das sociedades civilizadas ou ocidentais à versidade” ou da “autenticidade” – poder-se-



própria plenitude da condição humana. ia dizer mesmo da “pureza” – culturais são se-

Por outro lado, ao abandonar tais visões lecionados de acordo com os próprios critéri-

para transpor-se a outras tendentes a valorar os de “diferença” e de “cultura” próprios ao



positivamente “culturas indígenas” e sua “di- pólo dominante.



versidade”, a consciência crítica de agentes da Assim se reproduz a clássica imagem de ín-


sociedade nacional dificilmente percebe estar dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-

com freqüência, ainda assim, arraigada a vi- tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-

sões de “cultura” e de “diferença” muito pró- cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José

150
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

de Alencar, continuamente atualizado, inclu- muito menos “especificidades” e “diferenças”



sive em personagens “reais” de nossa mídia como algo factível de se produzir em proces-



contemporânea, ao cacique Metuktire Raoni. sos sociais de intensa inter-relação cultural e



Em suma, são nos sinais diacríticos de “di- simbólica entre os grupos “diferenciados”, e


ferença cultural” cuidadosa e interessa- não necessariamente o contrário.



damente selecionados pela consciência naci- Assim, um tal modelo não consegue pro-



onal e por grupos organizados de seus agentes duzir a respeito de tais sociedades indígenas


que os projetam, em função de suas próprias nada mais do que o que se poderia chamar de 151



necessidades ideológicas de distinção interna uma “visão lacunar”, por meio da qual essas são



ou externa, positiva ou negativamente, sobre percebidas apenas como “sociedades da au-



as sociedades indígenas, em que parecem, em sência” ou “sociedades da perda”. Aqui, vê-se


princípio, residir as ditas concepções de “es- nelas não o que elas “são” ou o que elas “têm”,



pecificidade” e de “cultura” indígenas domi- mas sempre o que elas teriam “deixado de ser”



nantemente presentes no campo da Educação ou “deixado de ter”, o que teriam “perdido”, que



Escolar Indígena. é, invariável e genericamente, qualificado


Quanto à segunda digressão, quero assina- como tendo sido “a cultura”.



lar que é justamente no contexto ideológico re- Não é preciso enfatizar muito que, aqui,

ferido que se deve buscar a inscrição da per- “culturas” não são percebidas como conjun-

cepção que tem a consciência de tais grupos tos semânticos resultantes de processos so-

de agentes da sociedade nacional a respeito de ciais históricos, vale dizer necessariamente



sociedades indígenas imersas em segmentos dinâmicos, mutáveis, mas como algo dotado

sociais regionais com longo tempo de consti- de certa “substância original”, perceptível em

tuição histórica por processos de colonização “traços” ou “elementos” culturais bastante



de origem européia e capitalista. “palpáveis”, como “a língua”, “os rituais”, “os



Em que pese o que poderia ser percebido conhecimentos tradicionais”, consubstan-



como inestimáveis signos de “especificidade ciados em visões próprias ou “etnoconheci-


cultural” dessas sociedades, em seus ricos e mentos”, costumeiramente associados às nos-



não raros intensos processos de produção e re- sas próprias ciências, em especial às “da na-

produção, invenção ou reinvenção de suas pró- tureza”, da Botânica à Astronomia.



prias identidades e de seus ordenamentos so- Ora, se sociedades indígenas, como a mai-

ciais internos com relação à sociedade envol- oria das do Nordeste e de Minas Gerais, são

vente, a dita consciência nacional tende, em percebidas como “sociedades da falta”, e se os



função da imersão ou interpelação mais estrei- processos históricos que, de fato, constituí-

ta dessas sociedades com segmentos sociais ram-nas são, inversamente, tratados apenas

regionais, a percebê-las apenas como resulta- como “processos de perda”, de “perda da cul-

dos de processos de “corrupção” sociocultural, tura”, não será difícil deduzir qual seja a idéia

ou como “vítimas” do que costumam definir de “resgate cultural” presente em um tal mo-

como “aculturação”. delo ideológico, bem como nas concepções de


Em síntese, em um modelo ideológico que Educação Escolar Indígena dele derivadas.



concebe “as verdadeiras culturas indígenas” Também não é difícil imaginar o que, em

como estados de “encantamento”, de “pureza”, tais circunstâncias, supõe-se que se possa es-

resultantes de isolamento, devendo ser, pois, perar do antropólogo, ou seja, daquele que é

idealmente, imutáveis, e no qual a “especifici- entendido como o especialista no conheci-



dade” e a “diversidade” são funções desse mes- mento de “culturas” e, portanto, como alguém

mo distanciamento do “contágio” com outros possivelmente apto a, por seus estudos, desen-

sistemas culturais, ou do que se costuma defi- volver artes capazes de trazer de volta à “cul-

nir como “preservação da cultura”, não pode tura indígena” a sua “substância” perdida.

mesmo haver lugar para que se percebam cul- Penso que, no âmbito da concepção de cul-

turas como resultantes de processos históricos, tura inerente ao modelo ideológico tratado, a

idéia de “resgate cultural” pode ser percebida indígenas que conheci, ainda como



como uma espécie de proposição de anulação ingressantes em programas de formação “es-



da história, um procedimento pelo qual se po- pecífica” e “diferenciada”, a empreitada do “res-



deria, ao menos em parte, “devolver” às socie- gate cultural” parecia impor-se-lhes como um


dades indígenas a sua “essência” perdida e, no desafio e uma missão inquestionavelmente ne-



limite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es- cessários. Egressos, em sua imensa maioria, de



tado “original” de “encantamento” e de “ver- escolas regionais “indiferenciadas” ou daque-


dadeira” “diversidade”. las até recentemente mantidas pelo regime tu-



Não posso deixar de assinalar também, telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, já



aqui, a presença de uma não infreqüente vi- percebidas por eles como agências de “destrui-



são, a um só tempo “piedosa” e “culpada”, da ção” de suas culturas, tinham incorporada uma


consciência nacional com relação às socieda- aguda consciência de seu papel como agentes



des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las em transformadores do sistema escolar até então



sua busca do “resgate cultural”, estaríamos vigente, mas sem disporem de uma perspecti-


também, a um só tempo, contribuindo para o ○
va crítica da idéia do “resgate cultural” que, ao
seu retorno a um estado perdido de autentici- contrário, lhes era apresentada, ainda que mui-

dade, solucionando, por um lado, o que ten- tas vezes sob formas bastante indiretas, como

demos a identificar como a causa de sua su- requisito indispensável à própria implementa-

posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e, ção de uma Educação Indígena de fato “espe-

por outro, expiando a nossa própria culpa se- cífica” e “diferenciada”.



cular pelas “perdas” que lhes causamos. Vê-se, então, assim, como curiosamente as

De fato, espero que possa estar claro que idéias de “especificidade” e de “diversidade”

não percebo aqui mais que a eloqüente expres- podem, de fato, vir a servir justamente ao seu

são de formas bastante perversas e etnocên- oposto, uma vez que o que se impõe pela de-

tricas de dominação simbólica – vale dizer manda por “resgate cultural” é, na realidade, a

“cultural” –, em que das sociedades indígenas adequação de sociedades indígenas de fato di-

são expropriadas suas imagens, ou auto-ima- ferenciadas a um padrão, a um estereótipo de



gens, e sua historicidade, e transmutadas, con- “cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-

forme dito, em “sociedades da falta”, em fun- lógico dominante.



ção da manutenção e da reprodução, no âm- Se já não se concebe a educação escolar


bito da ideologia dominante, das concepções oferecida às sociedades indígenas como ins-

de “cultura” e de “diferença cultural” preva- trumento para a sua “necessária e inevitável”



lentes na sociedade nacional – e potencialmen- dissolução sociocultural na sociedade envol-



te abaláveis por uma compreensão histórica vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, uma

mais adequada sobre muitas das sociedades educação “específica” e “diferenciada”, não se

indígenas contemporâneas – ou mesmo de deixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-

imagens críticas dessa mesma sociedade, ca- mo sem que se o perceba, a sua redução a um

ras a alguns de seus segmentos. ideal “cultural” “indígena” produzido e impos-


Para as sociedades indígenas em questão, to pela sociedade nacional, cujo imaginário



o “resgate cultural” tende, com freqüência, a tende a identificá-lo e aproximá-lo de algumas



ser percebido, como seria de se esperar em sociedades indígenas “reais”, como algumas da

caso de segmentos sociais subalternos às con- Amazônia.


cepções ideológicas dominantes, nos mesmos Opera aqui, então, um processo de domi-

termos dessas concepções, ou seja, como algo nação cultural no qual os índios são levados a

a ser perseguido dentro dos parâmetros de se tornarem, a um só tempo, vítimas e cúm-



uma idéia reificada de “cultura” e em função plices de seu “seqüestro simbólico”, ou, diria

de sua própria incorporação da “visão lacunar” melhor, a se tornarem verdadeiros “reféns”



que delas tem a consciência nacional. nesse “seqüestro”, no qual o “resgate” é de fato

Em especial, para muitos dos professores percebido como um necessário “preço a pagar”

152
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

pela obtenção de reconhecimentos à legitimi- “resgate da cultura” como o resgate de informa-



dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di- ções necessariamente históricas e, portanto, di-



reitos “diferenciados”. nâmicas, deixando, assim, de ser percebidas



Não saberia relatar com precisão como re- como referentes a uma suposta “cultura de ori-


agi, de início, às diversas formas sob as quais gem”, descontaminada de influências e livre de



se me apresentavam demandas por contribui- “perdas”.



ções em processos de “resgate cultural”. Diria De modo geral, um maior interesse de-


que tentava tratar “criticamente” tais deman- monstrado no conhecimento de suas históri- 153



das sem, contudo, dispor de argumentos ou de as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-



outros meios capazes de eliminá-las ou, mui- tão algumas concepções dominantes, como,



to menos, de atendê-las. por exemplo, a de uma inquestionável conti-


É evidente também que não poderia, por nuidade histórica das atuais unidades sociais,



força apenas de minha própria “consciência ou etnias, desde um período pré-colonial. A



crítica”, intervir significativamente no quadro consideração de que a própria constituição de



ideológico que se me apresentava. Assim, foi tais unidades sociais e étnicas possa ser algo


de fundamental importância todo um proces- resultante dos próprios processos coloniais



so de discussão com muitos outros professo- tende, quase sempre, a ser rejeitada como um

res formadores e, sobretudo, com os próprios dado incômodo e ameaçador.



professores indígenas. Seja como for, penso que a Educação Es-


Apesar da “consciência crítica”, não me fur- colar Indígena específica e diferenciada pode,

tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre- sim, caminhar no sentido da produção de um

sentando aos professores indígenas coisas, conhecimento próprio das sociedades indíge-

como vocabulários de línguas de seus supostos nas sobre si mesmas. Um conhecimento, a um



“antepassados”, relatos dos “seus” costumes, só tempo, informado das concepções teóricas

feitos por viajantes, e a parca iconografia dis- de nossa História e de nossa Antropologia e,

ponível sobre a maioria dos grupos da região assim, capaz de livrar-se das perversas tutelas

nos períodos colonial e imperial etc. Com isso, simbólicas de ideologias dominantes da soci-

o interesse inicial, totalmente dirigido à recu- edade nacional, mas capaz também de engen-

peração de “perdas culturais”, foi se complexi- drar formas próprias de autopercepção de suas

ficando em um interesse por conhecer melhor próprias historicidades e culturas.


os próprios processos históricos de tais “per- Se assim for, essa será, certamente, a pe-

das”, o que se me afigurou como uma tendên- dra angular para o tratamento de quaisquer

cia interessante no sentido da produção de “etnoconhecimentos” na escola indígena, ou



perspectivas mais críticas acerca da idéia de uma espécie de “metaetnoconhecimento”; sem


“resgate”, ou melhor, de uma complexificação dúvida, uma expressão transformada e inova-



dessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o dora, e não tolamente revivalista, da velha

“resgate” de suas historicidades ou de pensar o idéia de “resgate cultural”.
























O etnoconhecimento e a Educação




Matemática na escola indígena






Roseli de Alvarenga Corrêa



Ufop/MG






O tema proposto “O etnoconhecimento e a da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-


Educação Matemática na escola indígena” tica na escola indígena?” são perguntas feitas



pode sugerir, num primeiro momento, uma com freqüência no âmbito mais restrito da



abordagem sobre o modo como os educado- Educação Matemática. As respostas, temos ci-


res se utilizam do etnoconhecimento de um ência disso, alojam-se em terreno mais am-



povo no exercício de sua prática pedagógica na plo e delineiam-se à medida que as idéias se

Educação Escolar Indígena. Esse, naturalmen- voltam para a compreensão da educação e



te, é um dos focos para tal abordagem. No en- escola indígenas na sua historicidade e com-

tanto, penso que, antes de enfocar como a Edu- plexidade.



cação Escolar Indígena pode estar se utilizan- Quando se coloca a possibilidade de criar

do do etnoconhecimento específico de um e desenvolver situações pedagógicas, em cur-



povo, de aspectos de sua cultura, de seus mi- sos de formação de professores indígenas, que

tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor- valorizem as experiências de vida dos alunos,

dar primeiramente a escola indígena, uma ins- o conhecimento de seu povo, sua história e cul-

tituição garantida legal e constitucionalmen- tura, e que levem em conta suas aspirações,

te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dos impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-

povos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda- rações e escolhas do povo indígena para a sua

gem ao tema proposto pede, antes de tudo, que educação específica e como, historicamente,

se pense e se pergunte e que se levantem al- eles se constituíram. Significa, por um lado, co-

guns pontos de vista sobre a Escola Indígena. nhecer melhor o indígena que se fez professor

A abordagem que farei assenta-se sobre a em sua comunidade: no seu trabalho na aldeia

minha própria vivência como educadora não- e na escola, na sua relação com as lideranças,

indígena, que atua em cursos de formação de com os pais dos alunos, com o calendário es-

colar, com os materiais didáticos que selecio-


professores indígenas na área de Matemática


e Educação Matemática. Dúvidas, reflexões, na, cria e constrói para a sua prática pedagó-

críticas, questionamentos estavam e estão gica e, também, nas suas aspirações como pro-

sempre presentes no exercício dessa prática, fissional da educação e sujeito ativo de sua co-

mas também há espaço para o sonho e o pos- munidade. Por outro lado, significa conhecer

sível, e, se hoje já temos algumas respostas, o contexto histórico por meio do qual vem se

elas não se colocam como verdades absolutas, desenvolvendo a Educação Indígena no Brasil

universais, mas como verdades relativizadas e no qual se insere o modo de ser da escola e

em cada cultura, espaço e tempo. do professor indígenas e dos cursos de forma-



Nesse contexto, portanto, em que a crítica ção de professores indígenas.



e a possibilidade podem estar presentes, vejo A construção dessa trajetória investigativa,



que uma das direções a ser trilhada para a Edu- por sua vez, estrutura-se e articula-se também

cação Indígena aponta para modos de apren- a partir das visões e das concepções dos dife-

dizagem abertos – para as experiências e os co- rentes segmentos − além daquelas das comu-

nhecimentos das diversas culturas –, nidades indígenas − atuantes na Educação In-



investigativos e, sobretudo, críticos. dígena e, particularmente, das do educador


“Por que aprender Matemática na escola não-indígena. As representações e práticas



indígena?”, “Que Matemática deve ser ensina- desse educador não-indígena – seu modo de

154
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

ver e entender a Educação Indígena – são con- cie de detalhamento e sofisticação e têm



cebidas como influenciadas e influenciando como fundo a diversidade de situações, de



outras representações e práticas. Na sua tota- cultura e de propostas oferecidas pelas co-



lidade, esses modos de ver e conceber a Edu- munidades indígenas.


cação Indígena e a Educação Matemática na No entanto, embora se considere o peso de



escola indígena dos diferentes segmentos que tais constatações, a questão que ainda se co-



dela se ocupam são também vertentes do ma- loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmar


nancial histórico das concepções educacionais da Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni- 155



brasileiras e universais. dade indígena quer escola? Que função a es-



No momento atual, essa história se faz cola tem ou a comunidade está disposta a lhe



por meio das idéias de educadores influen- conferir?” (D’Angelis, 1999: 20).


ciados pelos novos ares e rumos que toma- Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-



ram, no século XX, algumas áreas de conhe- cessidade da escolarização formal para as po-



cimento, como a Antropologia, a Sociologia, pulações indígenas, não tinham como ser for-



a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo- muladas no contexto e pensamento sobre Edu-


vimento, que eu diria em espiral, chamando- cação Indígena até a primeira metade do sécu-



nos à reflexão sobre a escolarização formal lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-

para as comunidades indígenas, remete-nos priamente, a escola indígena foi usada como um

a uma nova interrogação, qual seja: “É neces- dos principais instrumentos para a descarac-

sária a escolarização formal para as popula- terização e destruição das culturas indígenas na

ções indígenas?”. história do contato com outras culturas, pois,



Uma pequena incursão na história da Edu- “definida e gerida desde fora, imposta e estra-

cação Indígena no Brasil assegura-nos que as nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), as

mudanças significativas iniciadas a partir da escolas e programas oficiais de “educação para



década de 1970, época em que começaram a o índio” tinham como objetivo reforçar os pro-

surgir neste país os movimentos propriamente jetos integracionistas gerados pelo pensamen-

indígenas e aqueles que resultaram na criação to assimilacionista que dominava na relação



de entidades civis de apoio à causa indígena, entre estado e povos indígenas.



começam a produzir seus frutos. No final dos Se a escola, desde o início da colonização

anos 1980, as várias experiências de implanta- até poucas décadas passadas, foi imposta de

ção de escolas indígenas com currículos e pe- fora para dentro das comunidades indígenas,

dagogias próprias já aconteciam juntamente hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-

com a produção de materiais didáticos especí- munidades, “uma espécie de necessidade ‘pós-

ficos e produzidos pelos próprios índios. contato’, que tem sido assumida pelos índios,

A partir dos anos 1990, além da intensifi- mesmo com todos os riscos e resultados con-

cação da pesquisa acadêmica na área, parti- traditórios já registrados ao longo da história”



cularmente entre lingüistas, antropólogos e (Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,

sociólogos, essa pesquisa torna-se mais re- a escola pode vir a ser, “hoje”, 1 um instrumen-

flexiva e crítica de seu próprio trabalho. Os to decisivo na reconstrução e na afirmação das



dias atuais têm sido marcados por uma ava- identidades, apoiada que está pelo texto legal

liação crítica das experiências educacionais que superou a perspectiva integracionista e re-

diferenciadas construídas nas décadas ante- conheceu a pluralidade cultural.


riores. Os debates, temas e problemas tor- E é nas idéias que se originaram nesse pe-

nam-se mais específicos, sofrem uma espé- ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-




1
Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povos

indígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-

da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,

segundo o que diz a Constituição de 1988, Cap. III, § I.



te, pós-Constituição de 1988, que buscamos to dos próprios índios, livre da opressão e au-



estruturar as respostas para a pergunta que tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-



fizemos sobre a necessidade da escolariza- taleceu-se a idéia – ainda não consensual – de



ção formal para as populações indígenas no que as próprias comunidades indígenas sele-


Brasil. cionassem e preparassem seus professores



A pesquisa realizada nos vários segmen- bilíngües. Algumas comunidades ainda relu-



tos envolvidos com a Educação Indígena – tavam em querer “uma escola como a dos


em particular nessa fase de mudanças e ne- brancos” e reivindicavam o aprendizado mais



g o c i a ç õ e s q u e, s e g u n d o L o p e s d a Si l va , rápido do Português pela urgência da situa-



constituiu-se em “processo intenso, rápido, ção de contato.



política e cr iativamente inovador, [que] Foi nas universidades e nas organizações


transformou a escola indígena característi- indigenistas não-governamentais que as idéi-



ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar- as de “fortalecimento cultural” dos povos in-



ticulação de informações, práticas pedagó- dígenas encontraram campo favorável.


gicas e reflexões dos próprios índios sobre ○
Aprofundaram-se os debates em torno das
seu passado e seu futuro, sobre seus conhe- questões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-

cimentos, seus projetos e a definição de seu rios segmentos da sociedade civil brasileira,

lugar em um mundo globalizado” (1995: 10) em seu processo de reorganização, a consci-



– apontou-nos uma variedade de motivos ência cultural e étnica indígena.


favoráveis à presença da escola nas comu- Assim, pelo menos no meio acadêmico e,

nidades indígenas, os quais procuramos digamos, ainda na teoria, era unânime a idéia

agrupar em categorias mais abrangentes. de que:


Assim, com base na diversidade de pontos



de vista e no modo como procuramos sinte- De instrumento de dominação a escola indíge-



tizá-los, direi que a escola é necessária para na passa a ser um instrumento de reafirmação

as comunidades indígenas, porque consti- cultural e étnica, de informação sobre a socie-


tui-se em: dade envolvente e as relações internacionais,



• espaço de reafirmação/revitalização de sua como base para um diálogo em que os índios


são sujeitos que buscam construir seu destino


identidade cultural;

através da reflexão, escolhas e autodetermina-


• espaço de articulação de informações;


ção (Capacla, 1995: 18).


• local de reflexão sobre o destino dos povos



indígenas/a escola como parte do projeto Reconhecida, nos meios acadêmicos, a


de futuro dos povos indígenas;


necessidade de uma escola indígena apoia-



• espaço que possibilita estruturar as rela- da em uma base de reafirmação e fortaleci-


ções com outras sociedades; mento cultural, a questão passa também a



• local de pesquisa de suas próprias neces- ser considerada e expressa pelos próprios

sidades e métodos. índios, particularmente após a Constituição



de 1988. Como diz Jucineide Maria S. Freire,


professora Xukuru, de Pernambuco: “A esco-


A conquista de tais espaços, como já vi-


la indígena tem que ser parte do sistema de


mos, não se deu casualmente. Nos debates


educação de cada povo, no qual se assegura


ocorridos no 1º Encontro Nacional sobre Edu-


e for talece a tradição indígena” (RCNEI,


cação Indígena, em 1979, começaram a se

1998: 58).

delinear as questões norteadoras de debates


As palavras da pr ofessora Mar ineusa


futuros. Nesse encontro, ficou claro o caráter


Gazzetta vêm reforçar, justificar e esclare-


isolado das experiências realizadas até então.

cer a idéia, até então obscura, de como e a


Questionando as políticas da Funai e do Go-


partir de quando os índios e professores in-


verno Federal, “firmava-se a postura de fazer


dígenas se mostraram prontos a assumir,


da escola indígena um meio de fortalecimen-


156
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

diante da sociedade, a sua real identidade etnoconhecimento do povo, expresso por



indígena. meio das suas receitas de comida da roça,



Diz Gazzetta que: dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,



do trançado das redes, dos pacarás, das al-


[...] é muito for te a cultura da identidade, deias, da localização e medida de suas ter-



é muito for te! Depois, as outras coisas. [...] ras, da venda de produtos da roça e artesa-



desde que os por tugueses chegaram aqui, os nato etc., constituíram-se em elementos


povos indígenas estavam condenados a se- vivificadores e significativos, por um lado, 157



rem extintos, isso até 1988, quando aparece para o “desvendar e despertar” do pensa-


a primeira Constituição brasileira, que diz al-


mento matemático Ticuna e, por outro, por


guma coisa, que garante alguma coisa. Claro


demonstrarem as características de um pen-


que não é de graça; todo o movimento, prin-
sar e fazer educação que pudessem permitir


cipalmente das organizações indígenas lá do


à escola indígena, como específica e diferen-


Norte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda


ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-


uma mobilização; eles não ganham isso de


graça, mas você vê que é a primeira vez que te tinha e tem direito.


Com o objetivo de discutir as possibili-


aparecem numa Car ta oficial alguns direitos.

dades desse “como fazer” na escola indíge-

Então, o que acontece? De repente, com es- ○

ses direitos, eles começam a ver uma luz no na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-

fim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan- mento de um trabalho desenvolvido no Cur-

do eles começam a pensar no projeto de fu- so de Formação de Professores Ticuna, ex-



turo deles, a escola hoje faz par te desse pro- pondo idéias de como o etnoconhecimento,

jeto; é um elemento estranho, mas já incor- a Educação Matemática e a escola indígena


porado e ressignificado pela maioria dos po- podem, juntos, numa situação de transcen-

vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro é dência, oferecer condições para a promoção

a reafirmação identitária, é a questão da ter- das diversas categorias que expressamos,


ra, é a questão dos marcadores todos, da or-


quando se perguntou da necessidade e im-


ganização social e tudo; então, a escola não


portância da escola indígena para os povos

pode ser igual à escola do branco, tem que


indígenas. E é principalmente no enfoque

ser uma escola coerente com esse projeto.


que damos à escola indígena como espaço de


Isso parece muito claro para eles. [...] O pro-


reafirmação/revitalização de sua cultura que


blema esbarra no “como fazer isso”. Por cau-

a questão do etnoconhecimento na escola in-


sa dessa nossa escola, essa tradição, nós


dígena mais se fortalece.


não temos uma educação brasileira, não con-


seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra- Essa proposta que apresentamos também

vada em 2/9/1999). pretendeu oferecer ao professor Ticuna mo-


mentos de reflexão sobre o seu trabalho como



É dentro dessa problemática do “como fa- professor, como criador de estratégias peda-

zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei, gógicas com base em seu saber, em elemen-

neste trabalho, ações pedagógicas estruturadas tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-

pria visão de mundo, sua sensibilidade e


em idéias geradas pela experiência e conheci-


mentos incorporados no exercício de uma prá- criatividade.



tica voltada para cursos de formação de pro- O trabalho foi desenvolvido com base no

fessores indígenas e, em particular, para o Cur- texto “História do buriti”, um pequeno livro es-

so de Formação de Professores Ticuna da re- crito e ilustrado pela aluna Hermelinda Ahuê

gião do Alto Solimões, Amazonas – promovido Coelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-

pela Organização Geral dos Professores Ticuna ciplinas do curso. Contando a história do

Bilíngües (OGPTB). buriti, a autora traz para o leitor aspectos da


Algumas das ações pedagógicas propos- história do mundo Ticuna em sua relação com

tas na área de Matemática, durante as eta- a natureza e em suas relações sociais.



pas do curso, e que estiveram assentadas no Eis o texto de Hermelinda:



História do buriti Com a intenção de escrever a “História do



buriti”, a autora conta também um pouco da



2
Hermelinda Ahuê Coelho, aldeia Canimarú, 1996 história de seu povo, fala da relação do homem



e dos animais com a floresta e com essa espé-


O buriti serve para o homem comer e fazer cie de palmeira, muito resistente às inunda-



vinho. ções. Por meio do texto, o leitor percebe que


Serve também para alimentar os animais.


derrubar um buriti muito alto para retirar seus


Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas frutos ainda é uma prática, embora discutível



restingas.
nos dias atuais, e salienta também, inclusive


As pessoas plantam o buriti perto da casa.


por meio das ilustrações, alguns aspectos das


Os animais que comem o buriti são: anta,


relações sociais da aldeia, quando diz da divi-


veado,
são dos frutos, de como lidar com eles e, por


jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.


fim, de tomar o vinho.


O buriti quando está na água não morre.


As frutas, quando amolecem na árvore, caem. Para nós, leitores, o texto de Hermelinda

Aí os animais comem, debaixo do buriti.



nos faz mais conhecedores do povo Ticuna, da
região onde vive e de uma espécie nativa da

O tempo de buriti é quando as frutas estão


pretas. Aí as pessoas vão buscar. floresta, quando traz algumas respostas para

Quando o buriti está muito alto, as pessoas questões do tipo:


– Para que serve o buriti?


derrubam para tirar os frutos.


Aí as pessoas vão buscar o buriti e dividem


– Onde existe buriti? Onde o homem planta


entre elas. a palmeira?



Juntam no aturá e levam para casa. E aí deixam


– Quem come de seus frutos?

quatro dias para ficar preto.



Quando já está preto o buriti, deixa em uma – Quando é tempo de o homem colher os

vasilha com água para amolecer. frutos?



Duas horas e ele já amolece bem. – Como as pessoas fazem para colhê-los e

Aí as pessoas comem e fazem o vinho para levá-los para a aldeia?


beber e tomar com farinha.


– O que as pessoas fazem de seus frutos?




Com base nesse texto e em suas ilustrações, Além das questões sociais e culturais en-

preparei um material para ser lido e discutido volvendo a relação entre as pessoas da aldeia

em sala de aula com os alunos. Em sua primei- e a sua vida na floresta, o texto aponta tam-

ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre- bém para questões espaciais, temporais e

quantitativas presentes nessa relação.


tendia, faço as seguintes considerações:


A leitura do texto de Hermelinda nos dá Onde existe? Quando é tempo? Quantos



muitas informações sobre essa espécie de pal- aturás? Quantos dias? São estas as perguntas

meira chamada buriti. que podem ser feitas quando a intenção é co-

lher o fruto e aproveitá-lo como alimento.


A autora diz para que serve o buriti, onde


ele é encontrado nativo na mata e, também, Podemos fazer muitas outras perguntas.

que as pessoas o plantam perto de suas casas. Tudo depende do que já conhecemos sobre o

Fala dos animais que comem seu fruto e da assunto e também de nossa vontade e neces-

sidade de conhecer mais, de pesquisar mais a


época em que as frutas estão boas para serem


colhidas pelas pessoas. As frutas são divididas fundo e de ampliar nossos conhecimentos.

entre as pessoas e levadas para a aldeia. De- Assim, também, os inúmeros textos produ-

pois de alguns dias, quando já amolecidas, as zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,

contando a história de seu povo, a sua relação


frutas servem para comer e fazer vinho.






2
Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo de

apresentar as ilustrações feitas pela autora.


158
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena

com a floresta e os animais, seus mitos e lendas, direção e sentido – e que o estudo das “matemá-



relatando suas festas, seu artesanato, a culiná- ticas” pode ser realizado com seus alunos, em



ria, a fabricação de utensílios etc., constituem, sala de aula, apoiado no etnoconhecimento de



para o leitor indígena e não-indígena, fontes seu povo, retomando, rediscutindo, revitalizando


inesgotáveis de conhecimento, de aprendizado, aspectos de sua cultura e redimensionando-os



de indagações, juntamente com outros textos para o momento presente. Os trabalhos criados



que trazem o conhecimento de outras culturas. pelos professores nas etapas posteriores do cur-


Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc. so para as séries iniciais do Ensino Fundamen- 159



Com esse texto da professora Hermelinda, tal atestam essas afirmações.



entre muitos outros que poderiam ser coloca-



dos para nosso estudo, nossas considerações e
Bibliografia


nossos questionamentos – e trabalhados em si-



tuação didática –, pretendemos expressar as CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a Educação In-


dígena no Brasil (1975-1995). Resenhas de teses e


idéias que vêm orientando nosso jeito de ser e


livros . Brasília: MEC, 1995.


agir durante as etapas do curso de formação de
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Contra a ditadura da escola.


professores, as quais visam ao aprendizado da


Cadernos Cedes: Educação Indígena e Interculturalidade.


Matemática e, neste momento, estruturam tam- Campinas, 2000.

bém a criação e a organização deste trabalho D’ANGELIS, Wilmar R.; VEIGA, Juracilda (Orgs.). Leitura

(Corrêa, 1999). e escrita em escolas indígenas. Campinas: ALB/Mer-


Em sua segunda parte, denominada “O tex- cado de Letras, 1997.



DIAS DA SILVA, Rosa H. A autonomia como valor e articu-


to na sala de aula”, aponto para o uso interdis-

lação de possibilidades: o movimento dos professores


ciplinar de “História do buriti”, pelos próprios


indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a


questionamentos suscitados nas mais diversas

construção de uma política de Educação Escolar Indí-


áreas de conhecimento, incentivando o que-


gena. Cadernos Cedes : Educação Indígena, Campi-


rer saber mais e a pesquisa em novas fontes e nas, ano 19, n. 49, p. 62-75, dez.1999.

textos. No caso específico da Matemática, re- GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: so-

fletimos com os alunos que: bre a (im)possibilidade da Educação Escolar Indígena



no Brasil. In: D’ANGELIS, Wilmar R.;VEIGA, Juracilda


(Orgs.). Leitura e escrita em escolas indígenas . Cam-


A partir de agora, estaremos dando a este texto


pinas: ABL/Mercado de Letras, 1997.


um direcionamento para as questões matemá- LOPES DA SILVA, Aracy. Prefácio. In: CAPACLA, Marta

ticas presentes nas diversas situações descritas,


Valéria . O debate sobre a Educação Indígena no Bra-


sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen- sil (1975-1995). Resenhas de teses e livros . Brasília:

to de que as idéias matemáticas que se origina- MEC, 1995.


rão de nossos questionamentos estão imersas, LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís Donisete B.

envoltas, relacionando-se com idéias que (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídi-

estruturam conhecimentos e culturas diversas os para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC–



que, na sua totalidade, podem nos oferecer con- Mari–Unesco, 1995.


MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São


dições dignas de vida no mundo (Corrêa, 1999).


Paulo: Loyola, 1979.


. Educação indígena na escola. Educação


Sem dúvida, considero que tal encaminha-


Indígena. Campinas, ano 19, n. 49, dez. 1999.


mento dado ao trabalho abre possibilidades para MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação

tornar a escola indígena um espaço para a


Fundamental. Referencial Curricular Nacional para as


reafirmação e revitalização da identidade cultu- Escolas Indígenas. Brasília: SEF/MEC, 1998.



ral do povo indígena, assim como para outras ca- SILVA, Márcio Ferreira; AZEVEDO, Marta Maria. Pensan-

do as escolas dos povos indígenas no Brasil: o movi-


tegorias mencionadas. No caso do professor


mento dos professores indígenas do Amazonas,


Ticuna, a leitura, análise e discussão conjunta do

R o ra i m a e A c r e. I n : L O P E S DA S I LVA , A ra c y ;
texto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-

GRUPIONI, Luís Donisete B. (Orgs.). A temática indí-


bre o que é a Matemática – em particular, nas


gena na escola: novos subsídios para professores de


questões relacionadas com grandeza, posição, 1º e 2º graus. Brasília: MEC–Mari–Unesco, 1995.




P AINEL 7

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber

Maria Cristina Troncarelli

Zélia Maria Rezende

Marlene de Oliveira

161
O Curso de Formação




de Professores Ticuna






Jussara Gomes Gruber



Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)






Resumo





Em 1993, os professores membros da Organi- O curso de formação faz parte do Projeto Edu-



zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-


(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que des organizadas em programas especiais voltados


lhes possibilitasse concluir o segundo grau com ○
para as questões de saúde, terra, meio ambiente,
habilitação para o exercício do Magistério. O curso

direitos indígenas, arte e cultura. No âmbito desse


deveria ser desenvolvido em módulos, no período projeto, desenvolvem-se também atividades de



das férias escolares, de modo que todos os profes- capacitação de supervisores índios e a organização

sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.

atividades docentes. Trata-se, portanto, de uma experiência bas-



O Curso de Formação de Professores Ticuna é, tante abrangente, que traz como parte da forma-

portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par- ção do professor todos os aspectos que devem

ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi- constar de uma escola diferenciada, como a pro-

no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais dução de materiais didáticos específicos, calen-

170 completaram o Ensino Médio em agosto de dário, programa curricular, planejamento, estudo

2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui- da legislação, entre outros, com a finalidade de

rão o Ensino Médio. O curso desenvolveu-se em 15 possibilitar a autonomia pedagógica e administra-


etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas. tiva das escolas Ticuna.










A formação de educadores


indígenas para as escolas xinguanas





Maria Cristina Troncarelli, Estela Würker e Jackeline Rodrigues Mendes



Instituto Socioambiental (ISA)/Xingu/MS






Introdução

em 3.800 pessoas distribuídas em 32 aldeias, três



O Parque Indígena do Xingu, localizado no postos indígenas e dez postos de vigilância.



estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu e A partir de 1994, foi iniciada a formação de

seus formadores, tem uma extensão de 2.642.003 professores indígenas no parque, o que resultou

na criação de trinta escolas nas aldeias e nos


hectares. Nele vivem 14 etnias: Kuikuro,


Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá, postos. Também participam desse processo pro-

Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti, fessores Panara, que atualmente residem na Ter-

Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois

162
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

professores da Terra Indígena Kaiabi. Este texto


ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,


tem como objetivo mostrar o desenvolvimento Universidade de Londrina, Universidade



desse trabalho, enfatizando as práticas pedagó- Metodista de Piracicaba, Museu Goeldi e


gicas da equipe de formadores e dos professores


Unifesp.


indígenas.




Desenvolvimento


Histórico


163
do curso de formação



A primeira referência do processo de esco-



larização no Parque Indígena do Xingu foi a es- O curso de Magistério desenvolve-se por


cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em meio de duas etapas intensivas anuais de trinta



1976, começou a funcionar com a presença de dias, sendo uma por semestre. Além das etapas



uma professora não-índia. Os alunos eram, em intensivas, é realizado o acompanhamento pe-


sua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin- dagógico dos professores nas escolas das aldei-



culadas a esse posto indígena. Nos outros pos- as. Participam do curso 61 professores indígenas



tos, esse modelo se repetiu durante a década de de todos os povos do parque e os Panara, que



1980, sempre de forma intermitente, pois de- lecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-

pendiam de pessoas contratadas pela Funai. ○


lescentes, totalizando trinta escolas em funcio-


Algumas dessas professoras elaboraram mate- namento.

riais didáticos na Língua Portuguesa, usando o O princípio norteador do projeto é a gestão



Português regional. Os alunos, predominante- territorial, por meio da conscientização sobre as


mente monolíngües em Língua Indígena, eram questões ambientais, da valorização das diver-

alfabetizados em Português. sas culturas existentes no parque e do desenvol-



No fim da década de 1980, todas as escolas vimento da autonomia dessas comunidades para

estavam desativadas por falta de professores. Ex- lidar com as relações de contato. A abordagem

alunos da escola do Posto Diauarum, das etnias de questões relativas ao meio ambiente tem o

Kaiabi, Suyá e Yudjá, começaram a ensinar em objetivo de contribuir para a conscientização da



suas próprias comunidades o que aprenderam, população xinguana para a importância da pre-

sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin- servação e do uso racional dos recursos naturais.

dicaram um curso para aprender a serem profes- Essa iniciativa está sintonizada com a política de

sores. Em função dessa demanda, a Fundação vigilância da área e das fronteiras do parque e

Mata Virgem organizou reuniões com as lideran- com a mobilização em relação à proteção das

ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte- nascentes dos rios formadores do Xingu, por

resse no desenvolvimento de um projeto de for- meio de um projeto desenvolvido pela Associa-



mação de professores indígenas. Em 1994, deu- ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo Instituto

se início à primeira etapa do curso de Formação Socioambiental (ISA).



de Professores para o Magistério nos PIN O projeto de educação está voltado à reali-

Diauarum e Pavuru, contando com a participa- zação de um intercâmbio entre as várias cultu-

ção de pessoas enviadas por todas as etnias do ras e à valorização das línguas indígenas, desse

parque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu- modo reavivando o interesse dos jovens pelas

nidade deseja ter um professor não-índio. Esse próprias histórias, danças, artesanato, língua,

projeto, em 1995, ficou sob responsabilidade da pela vida social e cultural da comunidade.

Associação Vida e Ambiente e, em 1996, passou a Uma das formas de valorização das línguas

ser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental. indígenas vem sendo o processo de construção

A equipe do projeto é composta por educa- da sua escrita. Na década de 1980, havia, por

dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi- parte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-

óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol- vimento da escrita em suas próprias línguas. O

vidas há vários anos com algum tipo de trabalho referencial de escola para as comunidades

na área. Além da equipe do ISA, há consultores xinguanas era baseado nas experiências ante-


riores, em que professores não-índios ensinavam tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-



Português e Matemática, por isso a escrita fazia dividual, mas aos poucos começaram a atuar



sentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis- como professores em suas aldeias.



so, o argumento das comunidades era de que Passamos a observar, então, que os temas tra-


ninguém esqueceria a própria língua. O deslo- balhados durante as etapas do curso eram refe-



camento da Língua Trumai pela Língua Portu- rência para os professores atuarem em sala de



guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikuro aula. Em função disso, priorizamos a questão


vem servindo de exemplo para enfatizar a neces- metodológica de ensino no desenvolvimento dos



sidade de valorizar o ensino da Língua Indígena conteúdos em todas as disciplinas. Buscamos dar



também nas escolas. Em assembléias de lideran- ênfase à reflexão pedagógica, ao planejamento



ças de todo o parque, vários chefes têm reafir- de aulas, ao registro destas no diário de classe e


mado a necessidade de se aprender Português e à produção de materiais didáticos.



Matemática; entretanto, começam também a Um caminho interessante que vem sendo



apontar a necessidade de fortalecimento da Lín- desenvolvido na abordagem de temas e conteú-


gua Indígena. Esse discurso tem sido mais ○
dos novos, relacionado à elaboração de materi-
enfatizado por lideranças e comunidades da re- ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criação

gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escrita de textos pelos professores sobre esses assuntos.

nas línguas indígenas ainda é bastante A equipe do ISA organiza apostilas, tratando de

incipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, e conteúdos novos, para serem estudadas nos cur-

a maioria das comunidades ainda não valoriza sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-

essa prática, concentrando sua expectativa em los professores, com textos produzidos por eles,

que a escola ensine a falar e escrever a Língua tornando esses conteúdos mais acessíveis aos

Portuguesa. alunos, uma vez que esses educadores conse-



Na avaliação dos professores indígenas, é guem imprimir em seus textos uma visão e um

importante criar materiais didáticos na língua modo próprio de se expressar sobre os temas.

materna, a fim de facilitar a compreensão de Um exemplo desse trabalho foi a realização


vários conceitos pelos alunos (transmissão de do Livro de história – volume 1 (publicado pelo

doenças, alguma operação matemática, por MEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-

exemplo). portância da história, o ensino, na escola, das



O projeto de formação também tem traba- histórias tradicionais de início do mundo, as his-

lhado no sentido de preparar os professores para tórias do contato de cada povo xinguano conta-

a participação na sociedade nacional como ci- das pelos professores e pelos não-índios

dadãos, para que possam gerir seu território, (Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e a

defender seus interesses e direitos. Essa prepa- história da chegada dos europeus ao Brasil. O

ração tem envolvido o aprendizado de diversas segundo livro, Brasil e África – uma visão

habilidades necessárias para as relações de con- xinguana, traz informações sobre a escravidão

tato e de gerenciamento do território (aprendi- indígena e africana no Brasil, as religiões afro-



zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri- brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-

ta – em diversas situações interacionais, o uso mação da sociedade brasileira, procurando mos-



do dinheiro nas situações de compra e venda, trar a sua diversidade cultural, com o objetivo

conhecimento e compreensão de leis etc.). de oferecer uma visão mais ampla do que a usu-

al dicotomia “mundo índio” e “mundo branco”.


Um dos professores do curso escreveu sobre a


Metodologia

formação do povo brasileiro, tema de redação de



No início do projeto, poucos eram os parti- uma das etapas do curso:


cipantes que tinham vivenciado algum proces-



so de escolarização, muitos aprenderam Portu- [...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-

guês e foram alfabetizados durante as etapas do vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-

curso. A expectativa da maioria dos participan- tes. Depois apareceram outros moradores de ou-

164
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

o acompanhamento, o assessor da equipe cola-


tro país, que foram os portugueses. Através dos


portugueses também vieram muitos estrangeiros bora com orientações sobre planejamento de



de vários países para se instalar no Brasil. Atual- aula, resolução das dificuldades do professor e


mente a população brasileira é formada por mui-


avaliação do aprendizado dos alunos, como tam-


tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe- bém procura ouvir a avaliação da comunidade



cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi) sobre a escola. Esses assessores elaboram rela-



tórios que fornecem subsídios importantes para


Em muitos desses livros, além dos textos dos a avaliação do desenvolvimento do professor. 165



professores indígenas, temos mantido textos da Como orientação pedagógica nos cursos de



equipe do ISA ou de outras pessoas (escritores, formação, solicitamos aos professores que regis-


especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-


trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-


dores etc.) que possam trazer contribuição à rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-



compreensão e à ampliação do tema tratado. am esses registros de forma sintética. Aos pou-



Outro exemplo de reelaboração de conceitos cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-


foi observado no diário de classe do professor mente, todos os professores fazem registros de



Jeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis- suas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-



trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ- mação. Esses diários estão servindo de base para

nico e inorgânico, estudado nas aulas de saúde: ○


a discussão e a elaboração do projeto político-


pedagógico das escolas xinguanas pelos profes-

Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo sores e também estão fornecendo elementos

perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata. para que, a partir do próprio trabalho, os profes-

O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.

é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa Por meio do acompanhamento pedagógico,

usada, espinha de peixe e veneno de formiga. tem sido possível observar as diferentes estraté-

gias de aula usadas pelos professores. As aulas


Por meio desses exemplos, pode-se observar são realizadas sempre num ritmo bastante lento

que a formação desenvolvida não é homoge- e tranqüilo. Os professores propõem atividades



neizadora. Cada professor adapta à sua realida- coletivas, mas se preocupam em dar atenção es-

de o que aprendeu durante os cursos.


pecial a cada aluno por meio de um atendimen-


Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relata to individual. Muitas vezes, o professor propõe

uma aula sobre a Constituição brasileira e os di- aos alunos que façam atividades na lousa, ou

reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti- então o professor se senta com cada aluno para

rado de um livro didático da cidade. Em segui-


ler e corrigir as atividades que ele realizou. Cada


da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexão aluno espera tranqüilamente que os outros co-

sobre os direitos da criança indígena, não se res- legas terminem a atividade proposta, prestando

tringindo ao livro didático. Ele usou também o muita atenção ao desempenho de cada um dos

capítulo “Dos índios” da Constituição, texto es- colegas da classe. Isso acontece sem que haja

tudado durante uma das etapas do curso. nenhum problema de indisciplina ou desatenção

No processo de formação, há duas maneiras por parte dos alunos. Sob o ponto de vista dos

de acompanhar e de compreender o desenvol- não-índios, a dinâmica da aula pode parecer


vimento do trabalho do professor nas escolas: o muito lenta, mas acreditamos que ela é própria

acompanhamento pedagógico das escolas reali- da pedagogia diferenciada do professor índio,



zado por educadores da equipe e a leitura dos processo que ocorre dentro da concepção de

diários de classe dos professores indígenas. tempo vivenciada no cotidiano das pessoas nas

O acompanhamento pedagógico é uma ati- aldeias.



vidade fundamental, pois é a oportunidade de Com relação ao ritmo de desenvolvimento



avaliar o resultado da formação desenvolvida por das aulas, existe uma diferença marcada entre

os povos do Alto e os do Baixo Xingu. No Alto, os


meio da prática pedagógica do professor índio


nas escolas de suas respectivas aldeias. Durante conteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-


pido em comparação com as aulas dos profes- sendo abordados na escola como temas para a



sores da região do Baixo Xingu. Em contra- leitura, a produção de textos e as dramatizações.



partida, os diários de classe demonstram que, na Os professores vêm desempenhando um pa-



região do Baixo, o número de dias letivos é mai- pel importante no contexto da educação para a


or que na região do Alto. Tal situação tem levado saúde. Durante as aulas vêm trabalhando com a



a equipe a refletir sobre o fato de que os conteú- compreensão das causas, sintomas e medidas de



dos dentro do currículo das escolas não podem prevenção de doenças como a cárie, as diarréi-


estar atrelados ao tempo e que o ano letivo nas as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-



escolas do PIX vem sendo cumprido no período de. Os agentes de saúde chegaram a participar



de um ano e meio a dois anos, pois as escolas de algumas etapas do curso, num trabalho inte-



param de funcionar no período de festas e ativi- grado, e são convidados pelos professores a par-


dades na roça. ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Esse



O acompanhamento pedagógico e a leitura trabalho articula-se com o da formação de agen-



dos diários de classe são instrumentos privilegia- tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-


dos para compreender como o professor escolhe ○
gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde e
os temas/conteúdos para trabalhar na escola, as Meio Ambiente da Universidade Federal de São

atividades que vai utilizar para ensinar esses te- Paulo (antiga EPM).

mas e a seqüência que pretende dar no desenvol- Outro tema que tem merecido destaque nos

vimento das aulas. Ambos servem de subsídios cursos é a relação entre recursos naturais, cultu-

para o planejamento dos cursos de formação. ra e economia, abordada de maneira interdisci-



Os cursos de formação e o acompanhamento plinar na Geografia, Antropologia, Ecologia, Saú-



pedagógico às escolas vêm incentivando o desen- de e História. Os professores indígenas começam


volvimento de pesquisas pelos professores indí- a refletir sobre as mudanças na economia dos

genas em suas comunidades. Alguns professores povos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-

dos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyá ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-

começaram a gravar e transcrever histórias nar- lho tem caminhado no sentido de desenvolver

radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizou uma análise comparativa das diferenças entre a

uma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava- economia tradicional das comunidades e a eco-

ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contra nomia de mercado e de que maneira a interfe-

os Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua- rência da economia de mercado pode ocasionar

renta tipos de tatuagem e registrou a história de a desestabilização da economia tradicional.



origem. Professores Kaiabi também estão desen-



volvendo uma pesquisa sobre trançado, assim Mudanças na economia do meu povo

como os Kuikuro, os Kalapalo, os Matipu e os Antes de entrar em contato com os não-ín-


Nahukuá, sobre a marcação do tempo pelos anti-


dios, usávamos ou destruíamos os recursos na-


gos (calendário indígena) a partir das estrelas e turais de acordo com as necessidades da co-

de fenômenos da natureza, como o desabrochar munidade. Fazíamos artesanato para o uso da



das flores e os períodos de seca e chuva associa- família, pescávamos, caçávamos para o consu-

dos com os recursos naturais. mo da família, fazíamos os enfeites para nos



A maioria dos professores vem trabalhando enfeitar, plantávamos para consumo da família

com temas relacionados à saúde e ao meio am- e também fazíamos canoa para o seu uso.

Quando a pessoa precisava de alguma coisa,


biente, além de, nas disciplinas de Língua Por-


tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalho a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-

tesanato e comida.
da escola na preparação dos alunos para as situ-

Depois do contato com os não-índios, a vida


ações diversas de contato. Há uma preocupação


mudou muito, o povo começou a pensar em pro-


dos professores de contextualizar o conteúdo


duzir mais pensando na venda, para poder ganhar

ensinado no processo de alfabetização e de de-


dinheiro para comprar anzol, linha, arma etc.


senvolvimento da escrita dos alunos. Os acon-


Depoimento de Aturi Kaiabi


tecimentos do cotidiano da aldeia também vêm


166
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

Essa reflexão tem estimulado a pesquisa so-


O que é manejo


bre as formas tradicionais de manejo dos recur- Manejo é o jeito de usar os recursos naturais.



sos naturais e caminhado em conjunto com o iní- Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,


transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-


cio de novas experiências de manejo, como as fle-


chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou a car. O manejo de antigamente era melhor do que



o de agora.
apicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-


O manejo dos recursos mudou aqui no Par-


vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.


que do Xingu. Com a demarcação, a região de 167


cada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-


O cuidado que o meu povo tem com a natureza


tensificou a exploração dos recursos naturais. Os


Na comunidade eu vejo a preocupação em rela-


recursos naturais, que antes eram feitos só para
ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,


uso, agora estão sendo vendidos.


para não queimar remédios que ficam perto do pátio.


Hoje em dia está havendo mudança de inte-


Outra preocupação que apareceu agora para


resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-
o povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-


indígena está ficando mais forte do que a indíge-


ta da roça é para cuidar e distribuir por família para


na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-


plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.
to das formas de manejar os recursos naturais


Na época de roçado, eles perguntam uns aos

esteja sendo esquecido.
outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a ○

Criação coletiva dos professores indígenas


casa?” Aí eles vão e cortam a palha que está den-


no 13º Curso

tro da roça. Então alguma parte eles aproveitam,



mas de todo jeito queima.


Ao mesmo tempo, vêm sendo estudados a


Outra preocupação que eles têm: não derru-

ocupação do entorno do PIX e os impactos


bar mais o pé da palha quando estiver precisan-


ambientais causados pelas atividades econômi-


do. Cortar só a palha e deixar um pouco da sua


palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro da cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-

minha aldeia que eu estou morando. dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-

cam em risco a vida da população xinguana, bem


Depoimento de Jemy Kaiabi


como a mobilização de lideranças, professores e



comunidades na defesa das nascentes dos rios



formadores do Xingu que se encontram fora do


território demarcado.

O meu povo cuida para não queimar o pé de


pequi, para não acabar a fruta.



Cada ano o chefe pede para as pessoas não Ocupação do espaço geográfico

tocarem o fogo.

Os povos indígenas do Brasil ocuparam ou


Também o sapezal que tem em volta da aldeia, ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.

se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa. Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-

Depoimento de Sepé Kuikuro


brevivência com a natureza, sabemos aproveitar


a riqueza sem destruir. Da natureza tiramos o re-



curso para alimentar, remédio para curar doenças,


recursos para a construção de casas, terra para



O meu povo tem cuidado com os pés de plantar, materiais para fazer artesanato, frutos para

buritizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros, comer e caças do mato também.

Nós, índios, sabemos usar a riqueza, os re-


somente eles estão cortando a palha de buritizeiro


quando eles estão fazendo construção de casa. cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-

Também eles não queimam os buritizeiros, por- mais, peixes e pessoas.


que são muito importantes os buritizeiros para uti- A ocupação do espaço geográfico dos não-

lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Por índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-

isso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés samento planejado para destruir a natureza, para

de buritizeiros. fazer pastos, plantar capim, plantar soja, arroz,



Depoimento de Awayatu Aweti cana-de-açúcar, trigo etc.


Os não-índios destroem a natureza para




essa necessidade, procuramos trabalhar com


construir as grandes cidades e com eles trazem


muitos tipos de equipamentos que produzem pe- esses professores o mesmo tema, mas de ma-



tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemas neira que o ritmo de aprendizado seja respei-


para os moradores do Brasil, que são a poluição


tado, com um planejamento de trabalho espe-


do ar, água, terra, a contaminação de pessoas, cífico para cada grupo. Assim, em virtude dos



animais, peixes. Esses equipamentos causam
diferentes ritmos de aprendizagem dos parti-


grandes assoreamentos nas bacias dos rios e


cipantes do curso, vinte professores foram for-


principalmente os incêndios nas matas.
mados até 2000, outros dezesseis concluirão o


Isso está cada vez mais trazendo doenças


curso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-


diferentes para o povo brasileiro.


dos ao longo dos próximos dois ou três anos.


Depoimento de Aturi Kaiabi


Dos vinte professores formados, 19 ingressa-


ram no Curso de Licenciatura promovido pela


Espera-se que a escola seja um espaço po-


Unemat, que deverá habilitá-los no prazo de


lítico de reflexão e de informação que instru-

cinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e no
mentalize a população xinguana para a mobi-


Ensino Médio.
lização política que permita amenizar os im-

Com relação à regularização das escolas,


pactos ambientais causados pela ocupação do


em 1996 a política estadual apontava como al-


entorno do PIX e possibilite a defesa das nas-


ternativa o processo de municipalização. Em


centes dos rios formadores do Xingu que se en-

razão da especificidade da situação jurídica do


contram fora do território demarcado. Um dos

parque, retalhado por dez municípios, o ISA


objetivos da formação de professores é que es-


não acreditava ser a municipalização o melhor


tes se tornem multiplicadores de conhecimen-


caminho para as escolas, pois comprometia a


tos que fortaleçam a participação dos povos in-

unidade política interna dos povos xinguanos.


dígenas na sociedade brasileira como cida-


Entretanto, o projeto seguiu essa orientação,


dãos, com melhores condições de gerir e de-


organizando, em conjunto com a Seduc, uma


fender seu território, seus interesses e direitos,


venda e aquisição de bens, uso adequado e reunião com os prefeitos e os secretários de


Educação dos municípios envolvidos, na qual


conservação dos recursos naturais, busca de


foi apresentado o Projeto de Formação e foram


alternativas econômicas auto-sustentáveis e


feitas as reivindicações de criação das escolas,


melhoria da qualidade de vida.


contratação dos professores e manutenção da


infra-estrutura (materiais escolares, equipa-


Histórico da regularização do

mentos, construção de escolas etc.). Com ex-



curso e das escolas ceção de um município, todos os outros cria-



ram as escolas por meio de decretos. No en-


A Proposta Curricular do Curso de Forma- tanto, somente alguns municípios atenderam



ção de Professores do PIX para o Magistério foi às solicitações de contratação e de envio de


aprovada pelo Conselho Estadual de Educação


materiais. A maioria deles é de difícil acesso


de Mato Grosso em abril de 1998. Inicialmen-


para o deslocamento dos professores.


te previsto com seis anos de duração, consta- Lideranças e professores da maioria das al-

tamos a necessidade de seu prolongamento, deias avaliaram como problemático o proces-


pois identificamos três grupos distintos de


so de municipalização das escolas. Assim, en-


professores: um grupo com dificuldade de


viaram representantes a Cuiabá, que reivindi-


compreensão da Língua Portuguesa ou dificul- caram ao governador e ao secretário de Edu-



dade de aprendizado; um grupo intermediá- cação a estadualização das escolas do parque.


rio, que consegue entender e se expressar em


Essa proposta foi aceita pela Seduc/MT, que


Português; e outro grupo com um desempenho


propôs a criação de três escolas centrais; as


melhor, tanto na compreensão da escrita da demais escolas ficaram anexadas a estas.



Língua Indígena quanto da Língua Portuguesa Em maio de 1998, os professores participa-


e nas operações aritméticas. Para atender a


ram da 3ª Assembléia da Atix, na qual esteve


168
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

presente a maioria das lideranças do parque. A relação com os municípios tem sido di-



Esse encontro do grupo de professores e lide- fícil: os secretários municipais não participam



ranças propiciou a discussão sobre a vincu- das reuniões com professores e lideranças in-



lação das escolas ao estado ou aos municípi- dígenas no PIX; há diferenças salariais entre


os. Foi um processo difícil de discussão entre os municípios; algumas prefeituras continu-



a equipe do ISA, professores e lideranças. Para am enviando merenda escolar inadequada ao



a equipe de formação, foi um processo per- contexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,


meado de inquietações, tais como: como ex- carnes enlatadas etc.); não há critérios defi- 169



plicar da melhor maneira o funcionamento dos nidos para a contratação de índios ou não-



órgãos governamentais em suas diversas ins- índios como professores, sendo contratados



tâncias? Como optar por um atendimento me- até missionários; interferências do ponto de


lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí- vista pedagógico (não-aceitação dos diários



tica adequada para as escolas indígenas? Ao dos professores da forma como vêm sendo



mesmo tempo, se o processo de regularização elaborados, impressão de livros didáticos ina-



das escolas não se iniciasse, a demanda por dequados, por exemplo), envio insuficiente de


escolarização levaria a um número maior de materiais escolares; falta de clareza na apli-



crianças e jovens fora do PIX. cação de recursos governamentais no atendi-

Nessa assembléia, foi decidida a estadua- mento das escolas.



lização de 21 escolas e nove continuaram À medida que as escolas se configuram


municipalizadas, ligadas a três municípios como entidades regularizadas no sistema de



(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). A ensino público, maiores contradições são en-

intenção das lideranças e dos professores foi contradas no respeito à sua especificidade.

experimentar os dois tipos de vínculo. Para as Apesar do avanço da legislação que legitima

escolas estadualizadas, foram escolhidos três o direito à especificidade, as contradições se



diretores entre os professores índios. Eles têm multiplicam, pois o modelo de atendimento

se responsabilizado pela compra de materiais é o mesmo das escolas não-indígenas. Para


com recursos da Seduc/MT e pela prestação de suplantar essas dificuldades, é necessária a



contas, além de terem redigido o pedido de au- articulação entre órgãos governamentais e

torização de funcionamento das escolas ao instituições não-governamentais que atuam



CEE/MT, um dos passos burocráticos necessá- na Educação Escolar Indígena e com lideran-

rios. Uma das conquistas dos professores in- ças e professores indígenas, concretizando a

dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren- participação destes no processo de gestão

da escolar nas próprias comunidades, evitan- das escolas.



do a introdução de alimentos industrializados Um fator positivo de todo esse processo de


por intermédio da escola. Para isso, foi flexibi- discussão sobre a escola no PIX vem sendo a

lizada e adaptada a burocracia na prestação de oportunidade de articulação entre professores



contas desses recursos. A Secretaria de Estado e lideranças. É importante que haja continui-

de Educação de Mato Grosso tem-se mostra- dade desse fórum de discussões, porque tem

do disposta a incentivar a participação de li- possibilitado aos professores do PIX a percep-



deranças e professores indígenas na gestão das ção de que seu trabalho está inserido num con-

escolas, apoiando reuniões para discutir o texto maior da política dos povos que vivem

atendimento. Desde 1997 a Seduc/MT mantém no PIX, de gerenciamento e defesa do territó-


uma educadora que se integrou à equipe do rio, e que o seu vínculo profissional deve ser

projeto e que participa dos cursos e do acom- com a sua comunidade, evitando que sua atu-

panhamento pedagógico às escolas e contribui ação fique reduzida a um vínculo contratual



para o aprimoramento do trabalho. com os órgãos governamentais.








Curso de Magistério de Ensino




Fundamental para professores




indígenas de Minas Gerais






Zélia Maria Rezende*


Seduc/MG





O estado de Minas Gerais, constituído por • a aprendizagem como um processo contínuo e


global que avança em função das experiências


diversos grupos socioculturais, abriga uma plu-


ralidade cultural e lingüística, compondo um vivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-



rico mosaico de diferentes tradições, conheci- tórico e social, sendo o etnoconhecimento o


pressuposto metodológico que retrata essa con-

mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-


cepção de aprendizagem;
zado na expressão “Minas são várias”. ○

As sociedades indígenas destacam-se nesse • a experiência escolar como um tempo de vivência



quadro de diversidade e riqueza cultural. cultural e espaço de produção coletiva;



Em 1995, nascia o Programa de Implantação • a ampliação da compreensão crítica da rea-



de Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto de lidade e da capacidade de atuação sobre ela;

uma parceria entre os Krenak, os Maxakali, os


• a apropriação crítica de instrumentos cultu-


Pataxó e os Xacriabá, a Secretaria de Estado da rais e recursos tecnológicos nos diversos



Educação, a Universidade Federal de Minas Ge- âmbitos da vida sociocultural;



rais, a Fundação Nacional do Índio e o Instituto


• a formação profissional de educadores capa-

Estadual de Florestas. Voltado para o objetivo


zes de pensar e criar instrumentos e processos


maior de apoiar a autodeterminação dos povos


próprios e adequados de conhecimento e de


indígenas mineiros, esse programa tinha como transformação da realidade em suas aldeias.

proposta criar e colocar em funcionamento es-


colas indígenas vinculadas à rede estadual de


Considerando as intenções educativas, cons-


ensino nas quatro áreas do estado, procurando


tituíram objetivos específicos do curso:


construir democraticamente propostas experi-


• construir coletivamente a proposta curri-


mentais, diferenciadas, multilíngües e inter-

cular do curso, substituindo, acrescentando


culturais para a formação específica do profes-


ou complementando as proposições do Pro-


sor e para as escolas de cada povo indígena. jeto UHITUP (“alegria”, na Língua Maxakali),

No escopo do programa, o projeto de formação desenho inicial desse currículo;


de professores indígenas ocupou e ocupa o espaço


• habilitar o professor cursista indígena ao exer-


central, tendo por princípio básico a construção te-


cício do Magistério, mediante conclusão do


órica e conceitual conjunta entre formadores,


Curso de Magistério de Ensino Fundamental


formandos e respectivas comunidades, a partir da para Professores Indígenas, em nível médio;


experimentação e da pesquisa, sempre com um sen-


• viabilizar o ingresso do professor indígena na


tido de processo em direção à criação coletiva da


carreira do Magistério e sua integração no pla-


chamada Educação Escolar Indígena mineira.


no de cargos e salários do órgão contratante;


O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-


tal para Professores Indígenas, realizado de 1996 • construir propostas específicas para as es-

colas indígenas, por meio da elaboração de


a 1999, teve como pressupostos e intenções


propostas curriculares, materiais didáticos,


educativas:




* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora da

Coordenadoria de Apoio às Escolas Indígenas/SEF/MEC.


170
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

sistemas de avaliação e calendários esco- A autonomia e a independência diante de seu



lares adequados às necessidades, aos inte- processo de formação são dimensões sempre



resses e aos projetos de futuro de cada buscadas durante o curso de formação e para isso


povo;


foi de fundamental importância o exercício do es-


• fortalecer os processos interativos nos calen- tudo autônomo, da pesquisa independente, do



dários naturais, sociais e rituais dos espaços registro individual e sistematizado, seja com a



em que as escolas estão situadas. presença e a coordenação dos formadores, seja


Tendo como base os



principais problemas vivi-



dos pelos povos indígenas
Estudo da cultura


Múltiplas


de Minas Gerais, três e da natureza TERRITÓRIO
linguagens


questões foram eleitas • Culturas indígenas


ÁGUA • Línguas indígenas


para nortear todo o traba- • Geografia • Língua Portuguesa


• História CULTURA


lho, em uma perspectiva • Literatura


• Ciências Químicas, • Artes


transdisciplinar, abran-
Físicas e Biológicas


gendo três áreas de co- • Educação Física

• Uso do território Pedagogia

nhecimento indicadas
indígena


indígena
pelo diagnóstico e nos de-
• Fundamentos

bates entre os povos indí-


da Educação

genas, os formadores e os

• Iniciação à pesquisa

órgãos envolvidos no pro- • Prática pedagógica



grama, conforme a repre- • Estrutura e funciona-


sentação a seguir. mento da escola



Achei boa a idéia des-



se currículo, porque há mis-



tura das matérias, acho que


uma matéria puxa a outra mesmo, acho que é isso


nos momentos de intervalos entre as etapas in-


mesmo. E a gente precisa, porque a gente tem que


tensivas do curso, viabilizando o que chamamos

aprender, sabendo pra que aquilo que a gente tá


de ensino não-presencial.

aprendendo vai servir.



Creuza Nunes Lopes, Tanto a gente tá ensinando como tá aprenden-


professora Xacriabá em formação


do. Então eu acho isso muito importante.



Antonio Aragão da Silva,


O diálogo, a negociação de significados e a professor Pataxó em formação



interação entre os múltiplos olhares sobre a rea-


lidade são alguns dos elementos presentes numa


O processo de avaliação do curso foi desen-


postura metodológica coerente com a proposta volvido a partir de três vertentes:



aqui desenvolvida. • a avaliação processual, mediante fichas de



Os projetos de trabalho, as oficinas e outras auto-avaliação construídas coletivamente e


atividades significativas foram algumas das preenchidas tanto pelos cursistas como pelos

ações que possibilitam um enfoque globalizador formadores, avaliando diferentes aspectos;



do conhecimento, em que, em um só processo, • a avaliação feita pela comunidade e conduzida



atitudes, valores, conceitos e habilidades são pela coordenação por etnia, por meio de reu-

construídos no exercício de resolver questões ou niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;

vivenciar situações. A investigação e a observa-


• a avaliação pelo Conselho de Formadores,


ção, os debates e os registros em múltiplas lin- baseada em um memorial e em um trabalho


guagens, as vivências culturais, os jogos, as brin-


final. O memorial consiste na descrição, pelo


cadeiras e a criação de instrumentos foram pro-


cursista, de sua história de vida inserida no


cessos incentivados e muito valorizados. contexto de sua formação como professor.




Conclusões transcritas de dois memoriais O trabalho final, desenvolvido em grupo,



dão uma idéia de como os cursistas estão vendo consistiu em escolher um tema para desenvol-



seu processo de formação, em sua etapa formal- ver com os alunos, planejar e executar o plane-



mente final: jado na sua sala de aula, registrando as diversas


etapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-



Durante todo este curso aprendi muitas coi- ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação e



sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu- os resultados obtidos individualmente, prepa-


nos. Na minha escola o aluno aprende a viver em rando um único relatório crítico de todo o tra-



comunidade, aprende os ensinamentos do nosso
balho. O formato desse trabalho final para os


povo, aprende a resgatar a consciência do cida-


Maxakali foi diferente – gravação em vídeo so-


dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-


bre sua cultura.


tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-


nho algumas dificuldades, mas estou consciente


tal para Professores Indígenas foi concebido


do que é bom para mim e meu povo. E, além do


mais, já tenho uma consciência de qual cidadão como um ciclo único e estruturado em:

que quero formar. [...] Mas ainda não aprendi tudo,



• etapas intensivas: ensino presencial no Par-
que Estadual do Rio Doce;

pois a escola que eu considero é aquela em que,


cada dia, a gente aprende um pouco mais. Uma


• etapas intermediárias: ensino presencial em


escola renovadora, de portas abertas, sempre área indígena e ensino não-presencial;



buscando novos horizontes.


Kanátyo, professor Pataxó em formação • estágios supervisionados.



As etapas intensivas foram organizadas em



oito módulos, concebidos como um processo


O curso foi acontecendo e os nossos conheci- global de formação em que, partindo de situa-

mentos foram aumentando, cada módulo que acon- ções-problema reais, os cursistas têm contato

tecia, cada visita que em área o projeto fazia, cada


com atividades e conteúdos disciplinares diver-


disciplina que a gente estudava, cada pesquisa que


sificados, não havendo uma fragmentação entre


com os nossos mais velhos da aldeia se fazia, cada


o que tradicionalmente a teoria curricular cha-

pessoa que no projeto entrava, com o estágio na


ma de objetivos, conteúdos e métodos. Efetiva-


escola da aldeia que a gente fazia, com os traba-


mente, não há como falar em conteúdo, isto é,


lhos de jornal e rádio que a gente produzia, com as


peças de teatro que a gente apresentava, com a


de “o quê” se ensina sem se discutir intenção

educativa e metodologia, ou seja, o “porquê” e o


escrita de livros, com a briga com os políticos para


“como” se ensina.

dar apoio ao nosso trabalho, com os congressos


que a gente participava, com o apoio dos nossos A preparação de cada módulo envolve

aliados que nos incentivaram, com a tradicional roda toda a equipe docente que, partindo da ava-

liação do processo de ensino-aprendizagem


embaixo da árvore, que no decorrer dos módulos


todo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo do módulo anterior e das demandas propos-

que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muito tas pelos cursistas, participa de um movimen-

forte. A cada dia que passa, eu aprendo mais um


to interdisciplinar e transdisciplinar, na pre-


pouco e tenho o apoio da comunidade no paração e no desenvolvimento das ações



gerenciamento e na organização da escola. Eu educativas propostas.


penso em estudar mais, me especializar na área


Durante as etapas intermediárias, realiza-


de Educação, como Pedagogia, e talvez me formar


ram-se módulos de ensino presencial, envolven-


em mestrado e doutorado. Eu sonho com isso, por-


do disciplinas que ganham mais sentido e signi-

que a necessidade do povo Xacriabá é muito gran-


ficado dentro do cotidiano das aldeias: Cultura


de em expandir a educação dentro do seu territó-


Indígena, Língua Indígena e Uso do Território


rio. Nossos alunos precisam de terminar o Ensino


Indígena. Apesar de essas disciplinas serem de-

Fundamental e prosseguir os estudos até a univer-


senvolvidas fora das etapas intensivas, elas não


sidade. Vamos lutar para isso acontecer.


se tornaram “apêndices” dentro do processo de


José Nunes de Oliveira,


professor Xacriabá em formação formação dos cursistas.


172
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

Durante as etapas intermediárias, acontece-


Troca de experiências e convívio com outras


ram também atividades de ensino não-pre- culturas. Conheci muita gente diferente e elas,



sencial. Orientados pelos formadores nas etapas de certa forma, colaboraram para que eu ocu-


passe um espaço que nunca havia ocupado an-


intensivas, os cursistas desenvolveram ativida-


des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre- tes, dentro e fora da comunidade



paração de material didático, entre outras. Valmores Conceição da Silva,


professor Pataxó em formação


O estágio supervisionado constituiu-se em


um instrumento de formação em serviço. Após 173



O trabalho específico por etnia no curso
o quarto módulo intensivo de ensino presencial,


de formação mostrou resultados positivos


a Secretaria de Estado da Educação criou esco-


imediatos no rendimento acadêmico, na


las indígenas e designou os cursistas como do-


racionalidade de organização dos cursos, na
centes dessas escolas.


afirmação étnica e na valorização pessoal.


O estágio teve como foco central a reflexão


O Conselho Estadual de Educação de Mi-


da prática pedagógica incidindo sobre todos os


nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-


aspectos da vida cotidiana da escola e possibili-


vação do Curso de Magistério de Ensino
tando a construção gradativa de uma pedagogia


Fundamental para Professores Indígenas,

indígena, com características próprias e adequa-


considera que “essa escola torna-se real-
das à Educação Escolar de cada povo.

mente tempo de vivência e produção cole-


O caminho do trabalho por povo indígena


tiva transformando-se em espaço educati-


foi ficando cada vez mais evidente, especial-

vo para todos que dela participam: os pro-


mente quando os cursistas começaram a atuar


fessores não-índios, os professores indíge-


como professores em suas escolas indígenas.


nas, os órgãos envolvidos e as comunidades


Sua prática escolar assim como suas deman-

indígenas”.
das, interesses e objetivos diferenciados fo-

O curso teve a duração de quatro anos,


ram delineando a proposta de trabalho espe-


com cargas horárias presenciais e não-presen-


cífica por etnia. Os diferentes processos de


ciais, abrangendo um total de 3.216 horas.


implantação das escolas nas quatro áreas pro-

Recebeu autorização de funcionamento do


vocaram intensa reflexão coletiva no sentido


Conselho Estadual de Educação em novem-


de trabalhar com as especificidades dos qua-


bro de 1998 e certificou os 66 professores in-


t ro g r u p o s é t n i c o s d e m a n e i ra m a i s

dígenas em dezembro de 1999.


aprofundada e levaram à criação das coorde-

A partir de 2000, vem sendo desenvolvida


nações por etnia, quando começam a se con-


a formação continuada desses professores nas


figurar quatro cursos de formação distintos e


quatro áreas indígenas, por equipes específi-


específicos e geradores de processos distin-


cas por etnia, durante 44 horas a cada mês.


tos de escolas indígenas, refletindo o que o

Essa formação tem sido centrada em ações de


projeto vem chamando de “Pedagogia Indíge-


planejamento mensal das atividades dos pro-


na”. No entanto, não foi perdida a visão do


fessores indígenas, produção de material di-


todo, a unidade do processo, evidenciada nos


dático, observação das aulas e reflexão cole-


momentos de vivências conjuntas:

tiva da prática pedagógica.



O processo contínuo de reflexão e de com-


É muito bom saber que existem muitos grupos


promisso com a realidade da execução neces-


indígenas junto de nós: Xacriabá, Krenak, Pataxó,


Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani, sariamente propõe mudanças, desafios, mais

perguntas que respostas, o que não deixa de


Tupinikim, povos da Bolívia etc. Foi uma alegria


muito grande conhecer todo esse povão. Aprendi ser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-

muitas coisas com as trocas de experiências. recem, a menos que se comece a caminhar.

Maria Aparecida Lopes dos Passos, E, ao nos colocarem o espelho da perplexida-


professora Xacriabá em formação de, ajudam-nos a crescer.






Formação de Professores de séries




iniciais do Ensino Fundamental para




o contexto indígena Xokleng e




Kaingang: igualando oportunidades,




fortalecendo identidades,




consolidando o direito à diferença





Marlene de Oliveira



Seduc/SC





Resumo



O Curso de Formação e Habilitação de Professo- comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-

res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-

Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo plina é realizada na modalidade de ensino a distância.

desenvolvido pela SED/SC como experiência peda- O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-

gógica em regime especial desde 1999, em cumpri- postos que orientam o Referencial Curricular Nacional

mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-

79, e concretizando as proposições do Plano Nacional ção e à implementação de um programa de educação



de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-

Indígena, bem como atendendo às determinações do de indígena, bem como à formação de educadores ca-

Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-

e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-

cinco anos, a categoria de professor leigo. tado no documento “Educação Escolar Indígena”, que

Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-

Estadual de Educação/SC e destina-se a professores cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas

indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas, multidisciplinares, elaborado com a colaboração de

além de outros índios interessados, indicados por suas professores índios.







Considerando os preceitos constitucionais básica, e sabendo-se que a construção de uma



e as diretrizes do MEC, que apontam para a ela- sociedade democrática envolve, também, o re-

boração de um currículo intercultural, bilíngüe, conhecimento da diversidade étnica e a garan-


tia do direito de manifestação dos costumes e


específico e diferenciado, a Secretaria da Edu-


cação e do Desporto do Estado de Santa tradições das diferentes culturas, faz-se neces-

Catarina, por intermédio do Núcleo de Educa- sária a ampliação de oportunidades de educa-



ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar uma ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-

cesso educativo de cada etnia, pois sem a esco-


proposta de educação que contemple o siste-


ma educacional da sociedade envolvente, va- la esses povos estão excluídos do processo his-

lorizando as culturas e as tradições das comu- tórico global e atual da sociedade na qual se

nidades indígenas. inserem.


É com base nesse entendimento e nas dis-


Diante do quadro que se produz nas comu-


nidades indígenas, em que a maioria de seus cussões promovidas pelo NEI com as comuni-

membros não possui sequer a escolarização dades, desde 1994, que vimos propondo pro-

174
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas

gramas específicos visando à formação de re- como à formação de educadores capazes de as-



cursos humanos para o exercício da docência sumir essas tarefas e de técnicos capacitados a



entre os próprios indígenas, considerando suas assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está



tradições socioculturais e estimulando a emer- pautado no documento “Educação Escolar In-


gência de métodos de ensino que garantam a dígena”, que integra a Proposta Curricular de



produção de uma literatura nas línguas nativas. Santa Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-



O estado de Santa Catarina abriga três damental e Médio: Temas Multidisciplinares,


etnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – que que considera fundamental a formação de re- 175



somam 8 mil índios. cursos humanos para o exercício da docência



Os Guarani não possuem áreas demarcadas, entre os profissionais indígenas, considerando



o que faz com que ocupem terras de outros gru- suas tradições e estimulando a emergência de


pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi- métodos de ensino que garantam a produção



lidade social, não é possível proceder a um de uma literatura na língua nativa.



mapeamento preciso e definitivo desse grupo. Entre os vários aspectos apontados pela Pro-



Entretanto, em 1990, registra-se sua presença posta Curricular de Santa Catarina, destaca-se


em pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa- a discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-



ção tradicional. cação Escolar Indígena, passando pela questão

Os Kaingang, um dos maiores grupos que da cultura como elemento determinante nas

sobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos, relações educacionais estabelecidas entre a es-

aproximadamente, e ocupam as áreas de Xape- cola e a comunidade indígena.



có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), Toldo Propõe que o currículo, entendido como

toda a organização da escola − seus conteúdos,


Chimbangue e Kondá (Chapecó), Toldo Pinhal


(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz). a forma como são distribuídos os períodos leti-

Os Xokleng somam aproximadamente 1.800 vos, o material didático, entre outros aspectos

índios e constituem o único grupo Xokleng do −, seja discutido e elaborado em parceria com

Brasil. Ocupam a área indígena de Ibirama e a comunidade indígena. Para tanto, trabalha-

Palmas. se na perspectiva de construção desse currícu-



Para viabilizar o atendimento educacional lo diferenciado com os professores que atuam



a essas comunidades, a Secretaria de Estado da nas escolas indígenas, a partir da prática desen-

Educação e do Desporto mantém 26 escolas volvida nessas unidades escolares e da contri-


indígenas, que atendem a 722 alunos de 1ª a buição da comunidade indígena.



4ª séries do Ensino Fundamental, e uma esco- O Curso de Formação e Habilitação de Pro-



la que oferece toda a educação básica a apro- fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-

ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227 mental para o Contexto Indígena Xokleng e

alunos. As ações voltadas para essas escolas são Kaingang vem sendo desenvolvido pela SED/

propostas pelo Núcleo de Educação Escolar SC como experiência pedagógica em regime



Indígena (NEI), diretamente vinculado à Dire- especial desde 1999, em cumprimento ao que

toria de Ensino Fundamental, constituído em dispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-

1996, no qual estão representadas as lideran- cretizando as proposições do Plano Nacional



ças indígenas, coordenadorias regionais de de Educação, no que diz respeito à Educação



Educação, escolas indígenas, universidades e Escolar Indígena, bem como atendendo às de-

outras instituições comprometidas com a cau- terminações do Fundo de Desenvolvimento do


sa indígena. Ensino Fundamental e Valorização do Magis-



O trabalho é realizado com base nos pres- tério que extingue, no prazo de cinco anos, a

supostos que orientam o Referencial Curricular categoria de professor leigo. Foi aprovado pelo

Nacional para as Escolas Indígenas, no que se Parecer nº 248/98 do Conselho Estadual de


refere à elaboração e à implementação de um Educação/SC e destina-se a professores indí-



programa de educação que atenda aos anseios genas leigos que já atuam nas escolas indíge-

e aos interesses da comunidade indígena, bem nas, além de outros índios interessados, indi-

cados por suas comunidades de origem. dagógicos e oficinas de produção literária



Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20% Kaingang e Xokleng.



da carga horária de cada disciplina é realizada Os docentes do curso integram o NEI como



na modalidade de ensino a distância. Entre docentes e consultores, contam com reconhe-


uma etapa presencial e outra, os alunos desen- cida experiência na área de Educação Indígena



volvem trabalhos, tais como: estudos orienta- e constituem uma equipe interdisciplinar para



dos; coleta de dados nas suas comunidades, a elaboração de proposta teórico-metodológica


buscando responder ou elucidar questões para cada etapa de ensino, com o acompanha-



surgidas no período presencial e estágios que mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,



contemplem observação, participação e regên- responsáveis por atividades extraclasse com



cia de sala de aula com o respectivo registro Língua Kaingang e Xokleng.


dessas práticas. A avaliação perpassa todas as etapas pre-



Ocorre em etapas concentradas, durante o senciais e não presenciais e é realizada pelo



recesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 dias conjunto dos participantes (cursistas, docen-


em julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae- ○
tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-
tano Costa, e em etapas intermediárias nos das, tendo a função de redimensionar o pro-

meses de maio e setembro – seis dias, perfazen- cesso educativo, detectando dificuldades, en-

do um total de 636 horas aula/ano. traves e redimensionando atividades e práti-



A opção por etapas concentradas deve-se ao cas pedagógicas.


fato de os alunos, em sua maioria, atuarem Todas as disciplinas e atividades desenvol-



como professores leigos, não alterando, assim, vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-

o andamento dos seus trabalhos e, também, fessor-aluno a construir coletivamente uma


para que não fiquem tempo demasiado sem o proposta curricular das séries iniciais especí-

contato com suas aldeias. fica e diferenciada, intercultural e bilíngüe, ou



Todas as disciplinas de base comum, den- seja, uma proposta com organização curri-

tro do possível, procuram se adequar à ótica cular, conteúdos, metodologia, calendário es-

das culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen- colar, avaliação e material didático que expres-

do relações com o já conhecido e fornecendo sem a visão de mundo e o modo de ser



instrumental para que o professor-aluno inda- Kaingang e Xokleng.



gue-se e busque conhecer mais sobre a sua O curso integra o Programa de Formação

própria realidade. Continuada para Educadores que Atuam no



Além dessas disciplinas de base comum, o Contexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-

curso inclui as disciplinas de Sociologia Cultu- ras/ano de capacitação a todos os educadores



ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga- que atuam na Educação Indígena e o Curso Su-

nização Social Kaingang/Xokleng, Metodologia pletivo de 5ª a 8 ª séries com Qualificação para



de Pesquisa, Saúde Pública, Metodologia do o Magistério Indígena, em módulos, que aten-



Ensino da Língua Kaingang/Xokleng e Metodo- de à especificidade do contexto escolar indí-



logia do Ensino Bilíngüe. gena, visando à qualificação, em nível de En-


Ocorreram miniestágios distribuídos ao sino Fundamental, dos profissionais que atu-



longo do curso, computados nas horas de en- am nesse contexto. Inclui no quadro curricular

sino a distância, realizados em Língua Portu- as disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-

guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com a tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, de

produção de relatórios e a participação em se- acordo com a comunidade à qual se destina) e



minários para apresentação e problematização Metodologia de Ensino. Esse curso foi autori-

dessa atividade. zado pelo CEE/SC, por meio do Parecer nº 217/



Os cursistas também participam de proje- 98, e inclui a capacitação das equipes vincula-

tos especiais de pesquisa e fomento cultural das aos Centros de Educação de Adultos

em suas comunidades, além de oficinas para (Ceas), assim como a produção de material

produção de material de apoio e recursos pe- específico.



P AINEL 8

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula

Terezinha Furtado de Mendonça

177
Professores indígenas:




processos formativos e algumas




indagações





Eunice Dias de Paula*



Cimi/MT






As reivindicações por uma escola indígena formativos vivenciados por esse professor nos



com um ensino que atenda às expectativas dos anos que antecederam a sua prática pedagógi-



diferentes povos têm na figura do professor in- ca em sala de aula. Há uma concepção de for-



dígena um dos seus eixos basilares. De fato, ao mação fortemente marcada pela depreciação
pensarmos na longa trajetória desses quinhen- ○

○ em relação ao professor que não passou por
tos anos, em que as políticas públicas destina- processos de escolarização seriados, estabele-

das a essas populações, via de regra, foram cidos por nossa sociedade, em escolas fora das

pautadas por ações que visavam à assimilação aldeias, e que, portanto, estaria menos apto a

e ao apagamento da diversidade étnica presen- cursar um segundo grau com habilitação para

te neste país, constatamos que os diversos o Magistério em escolas indígenas. Como o que

agentes educacionais utilizados pelos coloni- se privilegia é a formação dada nos cursos or-

zadores cumpriram com eficácia seu papel,


ganizados por não-índios, esse professor é, qua-


implementando modelos educacionais favorá- se sempre, considerado não-escolarizado ou



veis ao intento maior do projeto colonial. com escolaridade insuficiente. Queremos res-

Quando uma nova história começou a ser saltar o contra-senso embutido nessa concep-

traçada, há cerca de trinta anos, com os povos ção, pois se o que se espera é que ele seja um

indígenas exigindo escolas que estivessem a bom professor indígena, o processo formativo

serviço de seus projetos de vida, nada mais proporcionado pelas comunidades é que deve-

coerente que pessoas das diversas etnias as- ria ser considerado relevante.

sumissem essa função, considerando o domí- Concordamos que o exercício do Magisté-



nio lingüístico e cultural próprio a um mem- rio acarreta responsabilidades variadas, que

bro interno ao grupo, sem dúvida, superior ao têm que ser contempladas dentro do que as

de qualquer não-índio, que, mesmo dotado de comunidades expressam em relação às expec-


boas intenções e preparo técnico, não pode ser tativas do trabalho do professor, responsabili-

comparado a quem nasceu e foi criado em ou- dades bastante diferentes das que ele pode en-

tro chão cultural, passando por experiências contrar entre os especialistas de Educação In-

formativas únicas, como os rituais de inicia- dígena, como “entender a vida dos brancos”, por

ção, os ensinamentos necessários à sobrevi- exemplo. Sobretudo se considerarmos que a



vência, os conhecimentos mitológicos etc. escola é uma instituição que está sendo apro-

Entretanto, de modo bastante paradoxal, priada pelos povos indígenas, mas que, nesse

constatamos que, se a figura do professor indí- movimento de apropriação, carrega consigo


gena parece consensualmente aceita no discur- uma organização de conhecimentos em tempos



so e na prática dos detentores do poder, encai- e espaços muito diferentes dos sistemas edu-

xada nos programas de Educação Escolar Indí- cativos tradicionais. A par dessas considerações,

gena que se multiplicaram no país, o mesmo ousamos afirmar que a formação dos profissio-

não se pode dizer a respeito dos processos nais de Educação Escolar Indígena não pode ser





* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.

178
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

pensada de um modo desconectado do proces- organizamos, a pedido deles, cursos de Língua



so formativo vivenciado pelos professores em Tapirapé, assessorados pela Profª Dra. Yonne



suas comunidades, sob risco de continuarmos Leite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeiro



a agir do mesmo modo que os primeiros colo- desses cursos, realizado em 1997, os professo-


nizadores. Ou a escola se insere nos sistemas res desejavam tomar decisões ortográficas, mas



educacionais indígenas, como algo necessário se sentiam inseguros a respeito de determina-



na realidade de contato com nossa sociedade, das palavras. Na avaliação, solicitaram que os


ou ela não será uma escola indígena, como aler- próximos cursos fossem realizados na aldeia, a 179



ta Melià.1 fim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.



Queremos aqui destacar três experiências Esse fato é bastante significativo, pois demons-



formativas em que vimos atuando como asses- tra a articulação que pode existir entre novos


soria e que têm buscado superar essa contradi- conhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-



ção, por meio de vários caminhos. Entre os trumental de análise lingüística, e o profundo



Tapirapé, povo com o qual convivemos há um conhecimento da Língua Tapirapé, exercido



longo tempo, a escolha inicial de pessoas con- pelas pessoas idosas.


sideradas aptas a serem professores aconteceu Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-



após longas discussões com a comunidade e a ruku, da região do rio dos Peixes, município de

decisão se encaixou num padrão cultural típi- Juara, em Mato Grosso, participaram do Proje-

co: os primeiros professores pertenciam a fa- to Tucum – Formação para Professores Indíge-

mílias tradicionais das quais podiam ser esco- nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-

lhidas as lideranças. Após alguns anos, quando so. Entretanto, queriam elaborar a proposta

necessitaram de novos professores, o critério de curricular de suas escolas, uma vez que preten-

escolha utilizado foi o fato de dois rapazes te- dem oficializá-las como escolas indígenas. Para

rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar, isso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-

nesses dois casos, o fato de que os critérios se- nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-

letivos discutidos pela comunidade podem ser lho está sendo desenvolvido há dois anos em

completamente diferentes do que a simples encontros periódicos, dos quais participam não

passagem por bancos escolares durante alguns só os professores, mas toda a comunidade.2 São

anos. A preparação deles foi sendo feita por momentos muito ricos, pois todas as pessoas

meio de um acompanhamento cotidiano, estão envolvidas na discussão a respeito de


permeado por um processo de reflexão e avali- como querem a escola para seus filhos, definin-

ação em reuniões com a comunidade. A habili- do todo o planejamento escolar, desde o calen-

tação para o Magistério aconteceu pela partici- dário até os conteúdos considerados importan-

pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelas tes no processo de aprendizagem concebido

prefeituras da região do Médio Araguaia em como necessário para a realidade atual.



Mato Grosso. Esse curso destinava-se também Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-

a professores leigos das zonas rurais dos muni- dos no Movimento dos Professores Indígenas

cípios envolvidos, portanto não tinha a carac- Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desde

terística de ser voltado exclusivamente a pro- a década de 1980, vinham lutando há muito

fessores indígenas. Um trabalho de “tradução” tempo para ter um curso de Magistério especí-

do curso fez-se necessário e, assim, o elo com a fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),

vida da aldeia foi se mantendo. Como havia assumido pela Secretaria de Educação do Esta-

uma lacuna no tocante à formação lingüística, do em 1999, em parceria com vários municí-





1
Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-

dos, MS, em maio de 1998.



2
Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,

Regional MT.

pios, passou por uma longa gestação, envolven- a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,



do professores indígenas, lideranças e aliados foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-



dos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve- tica os Fundamentos da Educação Tradicional,



se a esse processo amadurecido a possibilida- realizando diferentes tipos de danças e de ce-


de de avanços significativos em relação ao que rimoniais, alternava momentos de exposição



conhecemos em termos de cursos para profes- teórica para os cursistas, usando cartazes com



sores indígenas. mitos desenhados. Em todas as etapas, tem


Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá acontecido a presença desses caciques



“constitui-se num processo integrado às práti- rezadores, que realizam todas as manhãs um



cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quais ritual conhecido como jehovasa, uma bênção



se baseiam em três grandes fontes – teko (cul- matinal para que tudo corra bem durante o dia.


tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que são Além disso, são consultados sobre assuntos



também os eixos fundamentais pelos quais vão que os professores, jovens em sua maioria, não



se articular os conteúdos e a metodologia do dominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-

curso”. 3 Essa proposta não ficou só no papel, ○

ria sobre as relações entre grafismo e escrita,
concretizando-se de várias formas: os alunos se exemplificando com motivos trançados em ar-

sentem absolutamente à vontade para se ex- cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador de

pressar em sua própria língua, durante as eta- Panambi, explicou em Guarani os nomes dos

pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen- motivos decorativos. Foi uma surpresa para

sação de estar participando de um grande muitos, que não sabiam que havia denomina-

fórum de debates sobre a situação da língua, os ções diferentes para identificar os desenhos

valores culturais, ou sobre os sistemas educa- geométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-

cionais próprios e o que representa a presença çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi

da escola; a “aula”, não raras vezes, transforma- (Palavras floridas tradicionais), produzido pe-

se em assembléia, e ao professor “ministrante” los professores a partir de pesquisas nas comu-



cabe aprender com verdadeiros mestres do nidades. O livro foi batizado pelos caciques

povo Guarani/Kaiowá. rezadores e rezadoras de várias aldeias, numa



A estreita ligação do projeto com a vida cerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.

Guarani está assegurada também pela possibi- A dimensão desse ato excede qualquer plane-

lidade da participação constante de caciques jamento curricular que possa ser feito pelos

rezadores durante as etapas presenciais do cur- técnicos das Secretarias de Educação, pois sig-

so, conforme afirmado num dos princípios me- nifica, de fato, algo produzido pela Educação

todológicos: Escolar sendo introduzido no sistema simbó-



lico-religioso do povo, como ressaltado por


[...] da produção do conhecimento, que implica Melià (op. cit.).



criar condições favoráveis para desenvolver o Acreditamos que o breve relato dessas três

processo de descoberta, pesquisa, criação e apro-


experiências de processos formativos de pro-


priação dos conhecimentos. Para suprir essa ne-


fessores indígenas mostra outros caminhos


cessidade, será assegurada, também, durante o


possíveis de trilhar. Resta saber se os respon-

curso, a participação efetiva de caciques Guarani/


sáveis pelas políticas públicas em Educação


Kaiowá, os quais garantem a orientação de ques-


estarão dispostos a assumir realmente o que


tões próprias da cultura tradicional, sob o seu


preconiza a Constituição Federal, que garante


ponto de vista (idem, ibidem: 15).

aos povos indígenas e, claro, aos seus profes-



Durante a etapa de Fundamentos da Edu- sores o direito aos processos próprios de apren-

cação, por mim ministrada em janeiro de 2000, dizagem.








3
Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.

180
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

Projeto Tucum




Relato de uma experiência de formação




de professores indígenas em Magistério






Terezinha Furtado de Mendonça*


181


Seduc/MT






Resumo




rias de Educação dos estados e municípios a


O presente artigo retrata a experiência de for-


incumbência de sua aplicação, em consonân-
mação de professores indígenas para o Magisté-


cia com a Secretaria Nacional de Educação do


rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-


MEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº


do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do


estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água 26/91, de 4 de fevereiro de 1991.

Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias Também no mesmo ano, foram publicadas

a Portaria Interministerial nº 559/91 e as Porta-


diferentes: Paresi, Rikbaktsa, Irantxe, Kayabi,


Munduruku, Apiaká, Nambikwara, Umutina, rias nº 60/92 e 490/93, instituindo no Ministé-



Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas rio da Educação o Comitê de Educação Escolar

que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram Indígena, cuja finalidade é subsidiar as ações

em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos educacionais indígenas, servindo de referência

cursos do terceiro grau indígena na Unemat. aos planos operacionais dos estados e municí-

pios. A partir de então, foi elaborado pelo co-


mitê o documento Diretrizes para a Política


A política brasileira, por muitos anos, igno-


rou as demandas apresentadas nas questões in- Nacional de Educação Escolar Indígena, nor-

dígenas, quando colocadas nas discussões; o teando as ações a serem implementadas nas

que prevalecia era um discurso integracionista esferas federal, estadual e municipal.


No estado de Mato Grosso, o enfrenta-


dessas populações, ignorando as diversidades


de sociedades aqui existentes. mento da questão da Educação Indígena é an-



Com a promulgação da Constituição Fede- terior ao Decreto nº 27/91. A Secretaria Esta-



ral de 1988, foram assegurados os direitos in- dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-

petência legal, já atuava junto às populações


dígenas em um capítulo específico (Dos Ín-


dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife- indígenas, atendendo a algumas de suas neces-

rença, isto é, à alteridade cultural, estabelecen- sidades no campo educacional.



do-se a partir daí um novo paradigma rela- Em setembro de 1987, em função das difi-

culdades e da multiplicidade de instituições e


cional. A União passa a ter a incumbência de


legislar sobre as populações indígenas, com entidades que vinham atuando nessa questão,

uma nova concepção que não aquela de incor- buscou-se uma articulação dos diferentes tra-

poração à sociedade nacional. balhos pela criação do Núcleo de Educação In-


dígena de Mato Grosso (NEI/MT). Sem ter um


No ano de 1991, a Educação Escolar Indí-


gena sai da esfera da Fundação Nacional do caráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se como

Índio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi- um fórum de discussão de ações entre as di-

nistério da Educação (MEC), tendo as Secreta- versas instituições.







* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral do

Projeto Tucum.

A partir de 1989, a Secretaria de Estado de nais, bem como para agregar forças e habilitar



Educação cria a Divisão de Educação Indíge- professores, levando em conta a diversidade



na e Ambiental, extinta na reestruturação da étnica e suas especificidades culturais, respei-



Secretaria, no ano de 1992. Essa divisão, em tando, dessa forma, o projeto educacional das


sua curta história, procurou desenvolver sua comunidades e sua necessidade de diferencia-



ação em consonância com o NEI, buscando mento.



responder às reivindicações das sociedades in- Em 1995, com o objetivo de reunir todas as


dígenas, encaminhadas por intermédio das li- agências envolvidas com a Educação Escolar



deranças de suas comunidades e por entida- Indígena, realizaram-se quatro seminários re-



des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar- gionais, a fim de pensar uma proposta comum



ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen- de formação de professores indígenas.


to da “modernização do Estado” e da gestão da Criou-se o Projeto Tucum – Programa de



qualidade total. Formação de Professores Índios para o Magis-



Com o atual governo, a questão indígena é tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto por


retomada, discutida e analisada sob um novo ○
se tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-
enfoque, constatando-se a inexistência de uma to faz parte da matéria-prima na confecção dos

política indigenista estadual. O tema passa a adornos, em todas as etnias do estado, e é na-

ser incluído no Plano de Meta. Nesse docu- tiva tanto no cerrado quanto na mata.

mento, algumas propostas são delineadas, ser- A escolha do nome não foi por acaso. Há

vindo como diretrizes para a implantação de uma associação do fazer criativo e cuidadoso

políticas. do artesanato com a formação de professores



A Coordenadoria de Assuntos Indígenas do indígenas que aponta para a significação da


Estado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga- educação como técnica, como prática social

do à Casa Civil, é reativada e orientada pelo e cultural. É uma relação metafórica entre cul-

Programa de Governo, passando a articular tura e educação como técnica que deve ins-

forças para a implementação da política trumentalizar o índio para a ação social do


indigenista. contato.

O estado de Mato Grosso congrega 38 soci- Esse nome envolve sentidos, significações

edades indígenas, perfazendo uma população que se aderem ao projeto, vir tualizando

aproximada de 28 mil pessoas, distribuídas em objetivações. Entretanto, no curso do proces-


41 municípios do estado. No que se refere à re- so de construção do Projeto Tucum, esses sen-

alidade escolar, essa população dispõe de 150 tidos foram um desafio contínuo.

escolas, entre estaduais e municipais, atenden- Colocando-se como resposta, como enca-

do aproximadamente a 6.500 alunos. minhamento de reivindicações de direitos es-


Com o objetivo de assessorar as escolas in- pecíficos das populações indígenas no campo

dígenas, prestar atendimento técnico aos do- educacional, o projeto foi pensado como or-

centes indígenas e às agências que trabalham ganização coletiva da prática pedagógica, em



com a Educação Escolar Indígena, a fim de de- regime de co-responsabilidade dos diversos

liberar sobre a política indigenista estadual na atores em torno do processo de formação di-

área da educação, foi criado o Conselho de ferenciada de professores da Educação Esco-



Educação Escolar Indígena de Mato Grosso lar Indígena.



(CEI/MT), pelo Decreto n o 265/95, de 20 de Coordenação-geral, coordenação regional,


julho de 1995. docência, assessoria pedagógica, assessoria de



Com a elaboração do Diagnóstico da Edu- área de conhecimento, consultoria e monitoria



cação Escolar Indígena em Mato Grosso eram instâncias de gestão e execução da pro-

(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur- posta pedagógica funcionalmente articuladas,

gência da implantação de um Programa de numa dinâmica de cooperação, interação e



Formação de Professores Indígenas que con- intercomplementaridade. O nexo de ligação



temple uma continuidade das ações educacio- entre elas foi construído pela consciência da

182
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

importância do papel e do desempenho na fessor, ao currículo do projeto, à organização



ação conjunta. Procurou-se superar o nexo de do trabalho, à função socializadora e cultural,



ligação tradicional, construído segundo uma à afirmação das identidades e dos valores e ao



concepção funcionalista de organização, por trabalho docente do professor cursista. Assim,


meio de funções hierarquizadas. o professor cursista e seu desempenho



O projeto teve como objetivos a capaci- cognitivo não foram os únicos aspectos a se-



tação e a habilitação de professores índios, o rem avaliados.


acesso e o desenvolvimento escolar por meio O projeto buscou romper com a lógica da 183



do diálogo intercultural, condições de desen- avaliação somativa, pela qual o aluno precisa



volvimento do processo educativo fundado nas ter número “x” de pontos para ser aprovado.



culturas e formas de pensamento indígena, Dessa forma, não se pensou na prova como


condições de produção do conhecimento de único instrumento de avaliação. Outros meios



processos interativos escola/comunidade e precisaram ser construídos, sempre a partir de



fortalecimento desse processo, valorização do critérios não mais ligados aos números de pon-



profissional de educação das escolas indíge- tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-


nas, elaboração de proposta curricular diferen- nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).



ciada, bilíngüe e intercultural para as escolas O curso foi desenvolvido de forma parce-

indígenas em que os cursistas atuam. lada, para atender à realidade das comunida-

A proposta pedagógica do projeto visou des, que não permitem ao professor índio au-

romper com a concepção dicotômica entre sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-

educação e prática social, constituindo-se em qüentar um curso regular sem, com isso, cau-

processo de conhecimento integrado às práti- sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foi

cas vividas. Os eixos fundamentais do desen- estruturado em três etapas:



volvimento das comunidades indígenas esta- Etapa intensiva. Realizada no período de



vam baseados em seu território, sua língua e férias e recessos escolares, com duração de

quatro a cinco semanas; foram trabalhadas


sua cultura, portanto estes foram os eixos que


nortearam o currículo do projeto (Governo do as disciplinas de ensino, sob a orientação



Estado do Mato Grosso, Projeto Tucum, p. 30- de docentes e o acompanhamento de


monitores. Antes de cada Etapa intensiva


35).

foram realizados encontros preparatórios


Em se tratando do currículo, pretendeu-se


de formação e planejamento da etapa para


abordar conteúdos das culturas indígenas e de

docentes, monitores e coordenação, con-


outras, assim como os conhecimentos univer-


tando com assessoria específica de cada


sais que interessavam às necessidades de con-


área disciplinar.

tinuidade e transformação daqueles grupos.


Etapa intermediária. Compreendeu todas


Para isso, usaram-se, durante todo o processo

as atividades realizadas pelo cursista entre


educativo, as Línguas Indígenas e a Língua Por-


uma Etapa intensiva e outra. Obedeceu a


tuguesa, como instrumento de comunicação e


uma carga horária prevista na grade


objeto de estudo, em busca da manutenção e


curricular e a um cronograma de ativida-

da dinamização dessas línguas e culturas. Por-


des, atendendo às necessidades específicas


tanto, o Projeto Tucum teve por base um cur-


do cursista e de cada comunidade. As ati-


rículo diferenciado, específico, intercultural e vidades foram desenvolvidas na aldeia, sob



bilíngüe. a coordenação do monitor.


Entendendo a educação como um direito,


Estágio supervisionado. Foi a atividade re-


no projeto não coube avaliar para classificar,


alizada na aldeia, que contou com a pre-


excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por- sença do monitor que observou, discutiu e

tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo- analisou com os cursistas a sua atuação em

bais do processo, inserindo tanto as questões


sala de aula, debateu os problemas encon-


ligadas ao processo ensino-aprendizagem trados no dia-a-dia do trabalho e na rela-



como as que se referem à intervenção do pro- ção escola/comunidade.



O projeto foi organizado em quatro pólos pios básicos da escola indígena do Ministério



regionais, tendo por clientela 200 professores da Educação, o curso de formação de profes-



indígenas, atingindo indiretamente um públi- sores indígenas para o Magistério assume, ne-



co aproximado de 4.500 alunos. O primeiro cessariamente, uma qualidade constituinte de


pólo, situado no Município de Tangará da Ser- política pública em nível de estado e de muni-



ra, abrangia um total de seis municípios, en- cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-



volvendo oito etnias. O segundo, situado no reno, tem sido o do envolvimento das prefei-


Município de Água Boa, abrangeu quatro mu- turas de municípios com populações indíge-



nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu- nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-



nicípio de General Carneiro, abrangeu quatro do de aprender a Educação Indígena como



municípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólo dever, conseqüentemente como compromisso


situou-se no Município de Paranatinga, abran- público, tem exigido disposição constante.



gendo três municípios e duas etnias. A invisibilidade dos índios como cidadãos



As etapas tiveram início em 1996, sendo mediatiza interesses e motivações de profes-


esse trabalho coordenado pelo estado, por ○
sores, repercutindo, por exemplo, na questão
meio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoria da monitoria. O monitor deveria desempenhar

PNUD/Prodeagro, contando ainda com a par- um papel estratégico no processo pedagógico



ticipação da Funai, das prefeituras municipais do projeto, com permissão de observar, acom-

e das seguintes ONGs: Conselho Indigenista panhar e avaliar o desempenho do professor


Missionário (Cimi), Operação Amazônia Nati- índio, como cursista e como profissional da

va (Opan), Sociedade Internacional de Lingüís- educação em atividade em sala de aula, forne-



tica (SIL), Congregação das Missionárias cendo dados e indicações aos docentes acerca

Lauritas, Missão Salesiana, Junta Missionária das dificuldades, insuficiências e necessidades



Nacional ( JMN), Congregação das Ir mãs específicas, enfim, colaborando com ajustes de

Catequistas Franciscanas (Cicaf ). percurso. No desenvolvimento do projeto, con-



As assessorias do projeto estavam vincula- tudo, a monitoria se configurou como proble-


das às seguintes instituições: Universidade Fe- ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, uma

deral de Mato Grosso (UFMT), Universidade rotatividade reiterada de monitores, com con-

Estadual de Mato Grosso (Unemat), Universi- seqüências pedagógicas críticas no âmbito de



dade de Campinas (Unicamp) e Universidade ensino-aprendizagem, acompanhamento e


Federal de Santa Catarina (UFSC). avaliação proposta. Essa flutuação teve dupla

O projeto contou com financiamento do face: de um lado, a precariedade e a indefinição



Banco Mundial, por meio do Programa de De- da situação funcional dos monitores nas pre-

senvolvimento Agroambiental (Prodeagro) e feituras, a baixa remuneração, as dificuldades


com apoio do Programa das Nações Unidas de deslocamento para as aldeias e, de outro, a

para o Desenvolvimento (PNUD). baixa motivação de professores em trabalhar



Posteriormente, já no ano de 1998, a polí- com Educação Indígena.



tica de formação de professores indígenas es- A cada desistência ou afastamento de um


tendeu-se para o atendimento da demanda dos monitor, enfrentou-se o desafio de encontrar



catorze povos da Terra Indígena do Xingu. um substituto, de resolver a situação funcio-



A experiência da Secretaria de Estado de nal e de capacitação na metodologia do proje-



Educação e da Coordenadoria de Assuntos In- to. Essas dificuldades configuravam uma ten-

dígenas, em parceria com outros agentes e com dência de acumulação de papéis, até que se

lideranças indígenas, em objetivar a proposi- equacionasse a contratação de um novo



ção de formação de professores indígenas para monitor. A acumulação da função de monitor



o Magistério, envolve o enfrentamento de de- do projeto com a de assessor pedagógico ou


safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá- de docente na sede do município, ou em al-

tica de Educação Indígena, em conformidade guns de seus distritos, limitou, restringiu e



com as diretrizes gerais definidoras de princí- comprometeu o papel pedagógico de monitor.


184
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas

A dedicação exclusiva à monitoria seria um de representantes dificulta a consolidação de



requisito fundamental, quer fosse sob o posicionamentos em patamares de atualidade



enfoque das implicações pedagógicas, quer das discussões e decisões. Permitiram ver, no



sob o enfoque da dispersão geográfica das áre- âmbito dialógico dessas organizações entre si


as indígenas e das aldeias no interior dessas e com as outras, que a flutuação de represen-



áreas, necessitando de deslocamentos perió- tantes dificultou o avanço das discussões, li-



dicos ao longo de cada mês. mitando a ampliação e o aprofundamento da


Cada município deveria oferecer seu qua- interlocução. Permitiram ver que a experiên- 185



dro de monitores para atuar no projeto. Hou- cia do trabalho coletivo envolveu uma fase do



ve casos em que prefeituras “importavam” processo, um patamar específico de relação



monitores, por não disporem de profissionais pedagógica no interior do Projeto Tucum.


no município. Essa solução foi inadequada Esses desafios instigaram a capacidade de



para preencher a vacância de monitoria. Era resolução de dificuldades entre todos os envol-



imprescindível que o monitor fosse um profis- vidos, permitindo rever passos, lidar com con-



sional local, com conhecimento da realidade flitos, perceber erros, reconhecer fragilidades


e experiência no Magistério. Alguns pólos e contradições.



vivenciaram essa dificuldade de forma dramá- A avaliação de um projeto como o que ora

tica, havendo monitor que atendia a cursistas estamos apresentando supõe o tratamento de

de três povos indígenas diferentes. diferentes enfoques que dão forma a essa com-

Outro grande desafio foi desenvolver o pro- plexa realidade.



jeto em parceria com diversas organizações Para efeitos do presente trabalho, destaca-

não-governamentais de apoio aos índios. Es- rei alguns desses aspectos que tiveram maior

sas organizações possuíam orientações e agen- consenso e visibilidade quando da realização



das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro- da avaliação pelos diversos segmentos que par-

cesso, um trabalho intenso de construção de ticiparam do projeto (monitores, docentes,



consensos. Essas organizações, como já regis- cursistas, coordenação, consultores etc.).


tramos anteriormente, participaram da cons- Para melhor abordá-los, irei agrupá-los em



trução do projeto, da sua proposta pedagógi- quatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar as

ca e da sua execução. suas diferentes naturezas – aspectos pedagó-



Essa participação mais direta no processo gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-

pedagógico deu-se por intermédio de asses- jamos um pouco de cada um desses núcleos.

s o r i a s e m o n i t o r i a s. No q u e c o n c e r n e à Pedagógicos. A avaliação de todos os seg-



monitoria, ainda que por motivos plenamen- mentos expressou enfaticamente a impor-

tância da adoção de uma metodologia de


te justificáveis, registrou-se também a ocor-


rência de rotatividade, embora com implica- estudos centrada na pesquisa e nos conhe-

ções menos dramáticas, uma vez que a ques- cimentos culturais de cada povo. Esses dois

elementos constituíram as âncoras do pro-


tão da invisibilidade do índio não se colocou.


grama e conferiram-lhe unidade e se-


Mas, ainda assim, a flutuação desses moni-


qüenciação, não obstante as interrupções

tores implicou descontinuidade na sua ação


sofridas ao longo do período, quer pela


educativa.

alternação das etapas de realização, quer


Assim como os monitores, nem sempre os por problemas de ordem administrativa e



representantes dessas organizações nas etapas financeira.


de planejamento foram os mesmos, implican-


Operacionais. Talvez estes aspectos te-


do idas e vindas na discussão de aspectos mais


nham sido os que trouxeram maiores pro-


sensíveis, como a questão lingüística. Essas blemas e que, portanto, exigiram maior es-

idas e vindas permitiram ver diferentes dimen- forço e cooperação interinstitucional para

sões problemáticas da rica experiência de um superá-los. Embora o trabalho em parce-



projeto em parceria. Permitiram ver, no con- ria tenha sido um grande avanço nesse pro-

junto das organizações em si, que a flutuação jeto, a sua concretização no cotidiano não

tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cada longo do percurso do Projeto Tucum desper-



instituição tem o seu próprio tempo insti- taram para a necessidade de se elaborar polí-



tucional, seu ritmo, suas prioridades, en- ticas públicas específicas para a Educação Es-


fim, o seu modo próprio de tratar as ques-


colar Indígena no Estado de Mato Grosso.


tões que lhe são apresentadas. Isso exige Os Cursos de Licenciaturas Específicos


um permanente esforço de todos os parcei-


para Professores Indígenas, que tiveram iní-


ros para valorizar os pontos de consenso e


cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-


buscar superar os atritos e os dissensos.
sam à formação e à habilitação de professo-



Políticos. A implementação de políticas pú- res indígenas para o exercício docente no En-


blicas envolvendo diferentes atores exige a


sino Fundamental e Médio. Abrangem três


consolidação de um relacionamento que


áreas diferentes – Ciências Matemáticas e da


respeite a diversidade e que transite por di-
Natureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes e


ferentes administrações, partidos políticos,


Literatura – e estão vinculados à Universida-


interesses locais e regionais etc. Nesse sen-

de do Estado de Mato Grosso em parceria com

tido, a realização do Projeto Tucum pode ○
outras instituições. Um dos objetivos do pro-
ser considerada uma iniciativa que conse-

jeto é possibilitar o acesso dos povos indíge-


guiu angariar apoiadores e aliados de dife-


nas a esse nível de ensino e contribuir para o


rentes espaços políticos, da mídia e de toda


a sociedade civil. A construção coletiva de fortalecimento dos projetos de vida e de fu-



projetos nos quais todos podem obter re- turo de cada povo.

sultados mostrou-se um caminho viável A implementação de uma política de Edu-



para atender a tantas demandas acumula- cação Escolar Indígena construída coletiva-

das ao longo de cinco séculos de domina- mente, que contempla os programas de Ade-

ção e de desrespeito para com os assuntos quação Institucional, Fortalecimento das Es-

indígenas. colas e Formação de Professores, tem sido um



Financeiros. Quando da elaboração do Pro- novo desafio na continuidade do processo



jeto Tucum, optou-se por agregá-lo ao deflagrado a partir do Projeto Tucum.


Prodeagro1 e por utilizar essa fonte de re-



cursos para custear os seus gastos. Mais tar-



de, porém, percebeu-se que a dependência


exclusiva de recursos externos traria uma Bibliografia



série de dificuldades operacionais (incom-


GOVERNO DO ESTADO DO MATO GROSSO. Plano de


patibilidade da liberação dos recursos com


Meta, 1995/2006 – plano estratégico. Estudos prelimi-


a programação dos gastos, inadimplências,

nares. Cuiabá, 1994.


cortes, reduções, conjuntura econômica


. Projeto Tucum: a construção coletiva do tra-


mundial etc.), além de reforçar o já consa- balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.

grado descompromentimento de recursos


. Conselho de Educação Escolar Indígena


próprios para o financiamento dos assun- de Mato Grosso (CEI/MT). Urucum, jenipapo e giz: a

tos indígenas. Esse aprendizado fez com que Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-

todos os projetos subseqüentes fossem fi- linhas, 1997.



nanciados por um leque de diversos apoia- . A construção coletiva de uma política de


dores e com diferentes fontes de recursos. Educação Escolar Indígena para Mato Grosso. Cuiabá:

SEE/MT, 2000a.
Nesse sentido, o Projeto Tucum teve um

. Relatórios de avaliação final do Projeto


grande êxito ao apontar a necessidade de


Tucum: monitores, docentes, consultores, cursistas e


fazer incluir nos orçamentos públicos recur-

coordenadores. Cuiabá: SEE/MT, 2000b.


sos específicos para os assuntos indígenas.


SECCHI, Darci. Diagnóstico da Educação Escolar Indíge-


As reflexões e as ações que aconteceram ao na em Mato Grosso. Cuiabá: PNUD/Prodeagro, 1995.








1
Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.

P AINEL 9

EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang

Arlene Bonfim

187
Experiência em formação




de professores





Bruno Kaingang



Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR






Resumo




de qualidade para as mais variadas culturas e



Este trabalho quer enfocar a situação pela realidades existentes no Brasil. Falando nisso,


qual a Educação Indígena passou com a chegada


ainda recentemente muitas escolas localizadas


dos europeus às Américas, quando houve uma
em terras indígenas encontravam-se fora dos

grande desestruturação na educação. Marcado por

○ sistemas de ensino dos estados, sendo, portan-
grandes conquistas de terra, esse momento fez

to, “clandestinas”. Nessas escolas, a maioria dos


com que ocorressem drásticas transformações na


vida política, social e cultural dos povos indíge-


professores tem formação de Magistério, em

nível de Ensino Médio, mas parte desses docen-


nas. Sendo assim, os povos indígenas foram sub-


tes não concluiu o Ensino Fundamental. Isso


metidos a uma nova visão de sociedade, seguin-


do o modelo europeu. dificulta o ensino e a aprendizagem dos alunos



Essa nova visão de sociedade imposta obrigou indígenas e a prática da língua materna com a

alfabetização, como está garantida na Consti-


os povos indígenas a se organizar para fazer frente


aos novos desafios propostos pela sociedade oci- tuição de 1988. Isso sem contar que o professor

dental. Nesse sentido, foram organizados vários indígena não conta com estímulos para a sua

encontros e cursos de formação de professores prática pedagógica.


Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos A Constituição brasileira garante que a es-

desafios impostos aos povos indígenas do Brasil. cola indígena tem que ter tratamento diferen-

ciado, respeitando-se a especificidade de cada



A Educação Indígena passou por um proces- sociedade indígena. No artigo 210, estabelece

so de desestruturação desde a chegada da co- que o Ensino Fundamental deve ser ministra-

lonização européia nas Américas, há quinhen- do na Língua Portuguesa, respeitando e asse-



tos anos. Esse momento de conquista das ter- gurando às sociedades indígenas a utilização de

ras e extermínio dos povos e suas culturas fez suas línguas maternas. Essa garantia é assegu-

com que o mundo indígena passasse por uma rada e regulamentada na Lei de Diretrizes e

dura transformação política, econômica, social Bases da Educação Nacional, de 1996, que ain-

e cultural. Assim, a educação tradicional dos da estabelece a articulação dos sistemas de edu-

povos passou a ter uma nova visão, européia, cação para a oferta da Educação Escolar Indí-

uma educação que não respeita as diferenças gena em forma bilíngüe e intercultural, de

existentes entre as sociedades, dessa maneira modo que garanta a recuperação de sua cultu-

criando conflitos de identidade cultural e de ra e sua história étnica.


Diante da situação que a Educação Indíge-


nação. Se pensarmos no Brasil, veremos que não


existe uma educação que busque a formação do na estava vivendo no final do século XX, as co-

cidadão e sim uma formação voltada para o munidades indígenas, representadas por suas

mercado de trabalho. lideranças, tomaram a iniciativa de buscar al-


ternativas para a situação educacional dos


Quando se trata de Educação Indígena, ve-


remos que, passado o século XX, ainda não te- Kaingang do sul do Brasil. As lideranças e os

mos uma Educação Indígena estruturada com professores Kaingang começaram uma longa

suas especificidades e cujos educadores possu- discussão com entidades interessadas na Edu-

cação Indígena. As alianças com universidades,


am a devida formação que garanta um ensino


188
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

professores e organizações não-governamentais criando, então, a necessidade de ampliar o qua-



possibilitaram que a educação Kaingang tomas- dro de professores mais críticos no que se refe-



se rumos mais consistentes, surgindo então o re às questões indígenas e não só à educação,



primeiro curso de Magistério de Ensino Médio. pois para os índios a educação não está


Essa necessidade é visualizada pela histó- desvinculada da vida e de todas as relações exis-



ria de luta dos Kaingang, pois a população es- tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-



tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes- se as novas lideranças em suas comunidades,


soas e com índice de crescimento constante. chamando para si a responsabilidade da cons- 189



Situando-se em mais de trinta comunidades trução das mais diversas demandas existentes



Kaingang no sul do país, eles se encontram en- nas terras indígenas. Com o objetivo de fazer



tre os cinco povos indígenas mais populosos uma educação de qualidade e uma formação de


do Brasil. cidadãos críticos na busca de melhoria para to-



Além disso, o número de professores não- dos, esses professores nunca perdem de vista



indígenas era superior ao de professores indí- as alianças formadas em torno da educação.



genas. Grande parte destes professores não tem Com uma clareza maior da Educação Indí-


nenhuma formação específica para trabalhar gena, surge a necessidade de aperfeiçoamento



com Educação Indígena, possuindo somente o desses professores Kaingang e de ampliação do

Magistério. Isso sem contar que a maioria de- quadro de professores; reiniciam-se as lutas por

les vê o indígena com a mesma carga de estere- formação continuada e formação inicial. Sur-

ótipo que a população regional, o que seria su- gem vários encontros de formação promovidos

ficiente para prejudicar o desenrolar do proces- pela Secretaria da Educação do Estado e outros

so escolar sob sua orientação. Para piorar essa realizados pelos próprios professores Kaingang.

situação, as escolas das comunidades indígenas Nesses encontros, a participação das lideranças

tinham a mesma organização curricular e o (caciques) é muito importante, pois são elas que

material didático das demais escolas da rede vão garantir e dar suporte político para os pro-

pública. Além disso, muitas escolas ainda con- fessores atuarem e pensarem novas alternativas

tinuam adotando orientação das Secretarias de para as comunidades Kaingang.



Educação sem nenhuma especificidade. Por outro lado, o número de professores ain-

Diante disso, e apoiados na Constituição de da era insignificante, e o de professores não-in-



1988, os professores criam a sua própria orga- dígenas continuava sendo maior, como é até

nização jurídica, a Associação dos Professores hoje. A tão esperada educação de qualidade es-

Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come- tava – e permanece – distante, pois a desquali-

çam uma discussão mais acirrada sobre a im- ficação dos professores para trabalhar com in-

plantação do ensino específico diferenciado. dígenas ainda não tinha sido superada; para

Dessa luta, surge então o primeiro curso de piorar isso, possuem em suas mãos as direções

Magistério específico para os professores dessas escolas nas terras indígenas.



Kaingang, já citado, que começa em 1993, gra- Com isso, surge a discussão sobre a auto-

ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí, nomia nas escolas indígenas, pois as escolas em

o Conselho de Missão entre Índios (Comin), o terras indígenas adotavam todo o sistema das

Conselho Indigenista Missionário, a Secretaria escolas tradicionais. Assim, a necessidade de



da Educação do Estado do Rio Grande do Sul e formação ainda é maior, pensando então em

a APBKG, com apoio financeiro do Ministério garantir um controle da administração da es-


da Educação, formando então ou diplomando, cola, seja pedagógico ou administrativo. Isso



em 1996, 22 professores, com habilitação espe- garantiria uma aproximação maior às es-

cífica para trabalhar educação bilíngüe e pecificidades de cada comunidade Kaingang,



intercultural nas escolas Kaingang. com maior qualidade do ensino e com a práti-

Esses professores Kaingang passam a atuar ca do bilingüismo em todas as escolas situadas



em suas comunidades e a ter uma ligação mais nas comunidades.



afetiva com as pessoas da comunidade escolar, Pensando na ampliação, na conquista da



autonomia e na garantia da recuperação do es- na terra indígena de Guarita, Município de Re-



paço perdido ao longo do tempo na formação dentora, e outro no Município de Benjamin



dos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 a Constant do Sul, RS.



discussão sobre a formação de novos professo- Mais uma vez, as lideranças dessas comu-


res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi- nidades estão presentes com seu apoio aos pro-



dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, as fessores, acompanhando todas as discussões no



lideranças indígenas e a APBKG, com o apoio que diz respeito à educação e às questões que


da Prefeitura Municipal de Benjamin Constant envolvem suas comunidades, pois a situação



do Sul, começam o processo de discussão, vi- hoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-



sando atingir a garantia da especificidade da te daquela que todos nós estamos acostumados



Educação Kaingang e a conquista da autonomia a ver ao longo dos quinhentos anos de nosso


educacional nas terras indígenas. país. Certamente, não será essa luta por forma-



Essa idéia de formação de uma nova turma ção que irá garantir a existência das comunida-



de professores concretiza-se em janeiro de des indígenas, mas também a insistência na


2001, sendo iniciada, então, a formação de mais ○
busca por uma sociedade mais justa em que
uma turma de professores com um número de cada professor seja mais um instrumento de

cem professores Kaingang, divididos em dois luta por melhoria em todos os setores da socie-

núcleos estratégicos no Rio Grande do Sul: um dade.










A Educação Escolar Indígena




no Estado do Amazonas:


Projeto Pira-Yawara




Arlene Bonfim

Seduc/AM





Introdução

às necessidades demonstradas pelas comunida-



Integrando-se aos dispositivos legais da des indígenas, que passam a gerir seus proces-

Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguram sos próprios de aprendizagem e a ocupar seus

o uso e a manutenção das línguas maternas e o espaços diante da sociedade majoritária, ao


respeito aos processos próprios de aprendiza- mesmo tempo que lhes garante o direito a uma

gem das sociedades indígenas no processo es- escola com características específicas, que bus-

colar, é que o estado do Amazonas, por meio da que a valorização de seu conhecimento tradici-

Secretaria de Estado da Educação e Qualidade onal, fornecendo-lhes, ainda, instrumentos para


do Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi- enfrentar o contato com outras sociedades.

tos indígenas, ao coordenar e executar a política Para atender a esse grande desafio, elaborou-

de Educação Escolar Indígena, com prioridade se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-

atribuída à formação de professores. vo assegurar condições de acesso e de perma-


Considerando não somente os preceitos le- nência na escola à população escolarizável na



gais estabelecidos, o estado do Amazonas vem educação básica nas terras indígenas, garantin-

atendendo, fundamentalmente, aos interesses e do uma educação diferenciada, específica,


190
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

intercultural, bilíngüe, comunitária e de quali- tucional, que sirva de fórum de discussão e



dade que responda aos anseios desses povos. de debate, para que as comunidades indíge-



nas possam determinar a formulação de uma


política lingüística a serviço da qual a escola


Ações do Projeto Pira-Yawara


estará atuando.



• Formação inicial de professores indígenas. • A escola indígena deve ser diferenciada, es-



• Formação continuada de professores indí- pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-


genas. nitária e de qualidade. 191



• Formação continuada de técnicos das Se- • Aprendizado via pesquisa como forma de



cretarias Municipais de Educação. compreensão da realidade, no qual os



• Assessoria técnico-pedagógica e adminis- etnoconhecimentos se aliem às diferentes in-


formações e aos conhecimentos técnico-cien-


trativa às Secretarias Municipais de Educa-


ção (Semeds). tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-


cimento é mais importante do que sua repro-


• Formação continuada de técnicos da Secre-


dução. Por meio da pesquisa, os componen-


taria de Estado da Educação e Qualidade do


tes curriculares passam a ter por função pos-
Ensino (Seduc/AM).

sibilitar a reflexão, a compreensão crítica da

• Diagnóstico lingüístico e antropológico da ○

realidade e a capacidade de atuação sobre a
realidade indígena no estado do Amazonas.

situação sociocultural do povo em questão.


• Desenvolvimento e fomento do uso das lín-



guas indígenas no estado do Amazonas.


Objetivo

• Produção, editoração, publicação e distri-


buição de material didático específico e di- Formar os professores indígenas que estão

ferenciado. em sala de aula nas comunidades indígenas,



• Publicações didático-pedagógicas. como professores pesquisadores de seu próprio


universo cultural, possibilitando-lhes condições


• Distribuição de material escolar e didático-


para gerir seus processos próprios de aprendi-


pedagógico.

zagem e fortalecendo a identidade étnica de seus



membros.
Formação inicial de professores

indígenas

Forma de execução


Concepção Etapas letivas intensivas. Ensino presencial,


num posto indígena ou numa aldeia, sob a


• Formulação de uma política cultural que


orientação de docentes das diferentes áre-


atribua lugar e função à escola indígena por


as do conhecimento.
meio da participação efetiva dos professo-

res, em conjunto com suas comunidades. Etapas letivas intermediárias. Atividades de-

senvolvidas pelo professor na comunidade.


• Programa de formação como espaço insti-





Estrutura organizacional do programa




Etapa letiva intermediária



Etapa letiva

Modalidade N o de etapas Estágio Total (h/a)


intensiva Atividade Estágio não-


complementar superior

superior

Ensino Fundamental 5 3.200


2.300 900 – –

Ensino Médio/Normal 4 1.710 2.400


250 300 140


Total geral 9 4.010 1.150 5.600


440


Formação continuada de professores Formação continuada de técnicos das



indígenas Secretarias Municipais de Educação




Ao reconhecer a necessidade de formação A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16


inicial e continuada dos próprios índios para de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:



atuarem como professores de suas comunida-



des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua- [...] que os profissionais responsáveis pela



lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementar Educação Indígena, em todos os níveis, sejam


a Política Estadual de Educação Escolar Indíge- preparados e capacitados para atuar junto às po-



na, assegurando a autonomia das escolas indí- pulações étnicas e culturalmente diferenciadas



genas tanto no que se refere à construção de seu


projeto político-pedagógico, quanto à partici- sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-



pação plena de cada comunidade nas decisões ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de



relativas ao funcionamento dessas escolas.

[...] garantir às comunidades indígenas uma

Adequado às peculiaridades culturais dos ○

educação escolar básica de qualidade, laica e


diferentes grupos, o Programa de Formação

diferenciada, que respeite e fortaleça seus cos-


Continuada de Professores Indígenas tem

tumes, tradições, línguas, processos próprios de


como objetivo capacitar os professores indíge-


aprendizagem e reconheça suas organizações


nas para a elaboração de currículos específi-


sociais (artigo 1).

cos para suas escolas, respeitando os modos



de vida dos índios, suas visões de mundo e as


As Secretarias Municipais de Educação do Es-


situações sociolingüísticas específicas por eles


tado, na sua maioria, às quais grande parte das es-


vivenciadas.
colas das terras indígenas está subordinada, ainda

Os cursos têm duração de 120 horas/aula e


apresentam sérias dificuldades quanto à compre-


são realizados nas sedes dos municípios, ou em


ensão e à aceitação da existência dessas escolas e


alguma aldeia indígena, conforme decisões to-


criam resistências quanto à implementação de


madas pelas lideranças e pelos professores in-


novos modelos de educação, como também à ofer-

dígenas, em conjunto com os representantes


ta da Educação Escolar Indígena municipal.


das Secretarias Municipais de Educação, sob a


Além do mais, os recursos humanos que


orientação da Gerência de Educação Escolar


compõem o quadro técnico dessas Secretarias


Indígena – Seduc/AM.
são reduzidos e não possuem formação adequa-

Os processos de discussão e de reflexão crí-


da para atendimento às peculiaridades culturais


tica da realidade ocorridos no contexto do cur-


dos diferentes grupos indígenas, de modo que


so, no qual questões relevantes vão surgindo a


possam garantir o apoio e o acompanhamento

partir dessas discussões e da própria atuação


pedagógico às escolas indígenas.


docente, são gerados com base nos pressupos-


Com base nos preceitos legais estabelecidos e


tos históricos e legais da educação em geral e


nos direitos fundamentais conquistados pelos po-


da Educação Escolar Indígena em particular, os


vos indígenas, a Seduc/AM, por meio da Gerência

quais auxiliarão os professores indígenas na


de Educação Escolar Indígena, vem garantindo e


construção dos projetos político-pedagógicos


assegurando a qualidade do Programa de Forma-


de suas escolas antes mesmo de sua formação


ção Continuada de Técnicos das Secretarias Mu-


inicial.
nicipais de Educação, capacitando-os no domínio

da metodologia e das bases legais e conceituais que


Temáticas desencadeadoras do processo


regem a política de Educação Escolar Indígena no


de discussão do grupo

estado e no país para o trato com essas popula-


• Base legal e conceitual da Educação Esco- ções e apoio às escolas indígenas na formulação

lar Indígena de seus projetos político-pedagógicos.



• Referencial Curricular Nacional para as Es- O Programa de Formação Continuada de



colas Indígenas (RCNEI) Técnicos das Secretarias Municipais de Educa-


192
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

ção tem como proposta a discussão de temas que Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vem



possam contribuir para a reflexão e a implemen- desenvolvendo uma política de articulação e de



tação de novas políticas e de práticas pedagógi- cooperação técnico-administrativa e financeira



cas e curriculares em áreas indígenas. com os municípios do estado, apoiando e fortale-


É executado nas sedes municipais, em cursos cendo, na estrutura organizacional das Secretarias



de 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par- Municipais de Educação, o desenvolvimento de



ticipação de diretores e professores de escolas uma política municipal de Educação Escolar Indí-


municipais e professores indígenas, bem como de gena, em consonância com a política estadual e 193



representantes de instituições locais ligadas à pro- com as diretrizes nacionais, política essa que con-



blemática indígena, sejam governamentais ou sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-



não-governamentais, sob a orientação da Gerên- nas, os diferentes níveis de contato dessas etnias


cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM). com a sociedade local e nacional e as peculiarida-



des regionais.



Temáticas básicas do programa Para atender a essa finalidade, a Secretaria



de Estado de Educação e Qualidade do Ensino
• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e


(Seduc/AM), por meio da Gerência de Educação


operacionalização.

Escolar Indígena, vem desencadeando nos mu-
• Base legal da Educação Escolar Indígena, ○

nicípios envolvidos no processo de escolariza-


cumprimento e legalidade constitucional.


ção dos povos indígenas uma série de ativida-


• Base conceitual da Educação Intercultural,


des que, direta ou indiretamente, servem de in-

com ênfase nos conceitos básicos de cultu-


centivo e promoção da melhoria da Educação


ra, diversidade cultural, cultura lingüística,


Escolar Indígena, fortalecendo e valorizando a


etnocentrismo e relativismo cultural.

língua materna, as expressões culturais e artísti-


• Referencial Curricular Nacional para as Es-


cas, a história, o exercício pleno da cidadania e


colas Indígenas (RCNEI), como instrumento


da interculturalidade e demais conhecimentos


formativo e de reflexão das novas intenções


desses grupos étnicos que habitam o Amazonas,


educativas que devem orientar as políticas

bem como apoiando outras atividades que tam-


públicas educacionais para as escolas indí-


bém participam do processo educacional, como


genas brasileiras.

as de saúde, educação ambiental, cidadania e


• Proposições para o desenvolvimento da Polí-


direitos humanos.
tica de Educação Escolar Indígena Municipal.

Diante desse quadro, o Programa de Asses-



soria Técnico-Pedagógica e Administrativa às


Também durante o Programa de Formação


Semeds tem como proposta o desenvolvimento


Inicial e Continuada de Professores Indígenas,


de ações que possam contribuir para o incenti-


são capacitados em serviço técnicos e coorde-


vo, a promoção, a implantação e/ou a implemen-

nadores pedagógicos das Secretarias Municipais


tação de políticas e de práticas pedagógicas e


de Educação, de modo que possam participar


curriculares para as escolas indígenas.


das discussões e, dessa forma, acompanhar as



atividades relativas ao processo de Educação


Principais ações

Escolar Indígena nas escolas indígenas.



• Assessoramento à elaboração e apoio aos


projetos de Educação Escolar Indígena em


Assessoria técnico-pedagógica e

andamento que tenham o reconhecimento


administrativa às Secretarias

das comunidades indígenas.


Municipais de Educação

• Incentivo à implantação de projetos que vi-


sem à melhoria da Educação Escolar Indíge-


Com o compromisso legal de instrumentalizar-


se, definindo metas e ações de Educação Escolar na, bem como a realização de cursos de for-

Indígena que atendam às demandas das comuni- mação de professores indígenas nas regiões

onde os grupos étnicos ainda não dispõem


dades indígenas e às diretrizes estabelecidas pelo


de iniciativas dessa ordem.


Ministério da Educação, a Secretaria de Estado da


• Incentivo a uma política de articulação en- A proposta de uma escola indígena diferenciada



tre os vários segmentos locais à problemáti- representa uma grande novidade no sistema edu-



ca indígena, sejam governamentais ou não- cacional do País e exige das instituições e órgãos


governamentais, bem como o estabeleci- responsáveis a definição de novas dinâmicas,



mento de parcerias, para que juntos possam concepções e mecanismos, tanto para que essas


apoiar e garantir o desenvolvimento das


escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-


ações relativas à Educação Escolar Indígena. das por sua inclusão no sistema oficial quanto



• Incentivo e apoio à criação de uma coorde- respeitadas suas peculiaridades.



nação ou setor responsável pela implemen-


tação de programas de Educação Escolar In- Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-



dígena na estrutura organizacional das Se- na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-



cretarias Municipais de Educação. dro de técnicos devidamente preparados para atu-


ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-


• Orientações quanto à política indigenista


brasileira e à legislação de ensino atual que damental que o estado disponha de um programa


trata da Educação Escolar Indígena, desta- ○
de formação para a sua equipe técnica, que sirva
cando a importância de seu cumprimento e de incentivo e apoio à implantação das novas po-

legalidade constitucional. líticas públicas de Educação Escolar Indígena.



• Orientações quanto aos princípios gerais a Daí a necessidade de a Secretaria de Estado



serem observados no desenvolvimento de da Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)


projetos e programas municipais de Educa- manter e preparar uma equipe de técnicos es-

ção Escolar Indígena, conforme estabelecem pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-

as Diretrizes para a Política Estadual e Nacio- to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-

nal de Educação Escolar Indígena.


pais de Educação, no assessoramento de seus


• Promoção de estudos e discussão sobre as quadros técnicos para a oferta de educação es-

bases conceituais da educação intercultural. colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-

• Orientações quanto ao reconhecimento ofi- nas, produção de material de informação e



cial e à regularização legal de todos os esta- acompanhamento e avaliação da qualidade das


belecimentos de ensino localizados no inte- ações relativas à Educação Escolar Indígena.



rior das terras indígenas, no que se refere ao O Programa de Formação Continuada de


calendário escolar, metodologia e avaliação


Técnicos da equipe central tem como proposta


adequados à realidade sociocultural das co-


a construção e o desenvolvimento de habilida-


munidades indígenas. des e competências para que os técnicos bus-



• Orientações quanto à utilização do Referen- quem e aprofundem seus conhecimentos, am-


cial Curricular Nacional para as Escolas In-


pliando seu quadro de referência, de modo que


dígenas (RCNEI) como instrumento de dis-


sirvam de incentivo e apoio à implementação


cussão e implementação de políticas e prá-


das novas Políticas Públicas de Educação Esco-

ticas pedagógicas e curriculares em terras


lar Indígena nas esferas estadual e municipal.


indígenas.

Sem a composição e a manutenção de equi-


• Proposições para o desenvolvimento da Po-


pes de técnicos e consultores, não seria possível


lítica Pública de Educação Escolar Indígena


executar as linhas de ações estabelecidas pela

para o município, entre outras.


Secretaria de Estado da Educação e Qualidade



do Ensino (Seduc/AM) para o desenvolvimento



da Política Pública de Educação Escolar Indíge-


Formação continuada de técnicos

na no Estado do Amazonas, dada a diversidade


da Secretaria de Estado da Educação


de povos que habitam nossa região.


e Qualidade do Ensino (Seduc/AM)


Para isso, vem contando com uma consultoria


especializada, integrada por profissionais com ex-


O documento O Governo Brasileiro e Educação


Escolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre- periência reconhecida e comprovada no campo

taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma: da Educação Escolar Indígena, composta por

194
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

sociolingüista, antropólogo, especialista em Diagnóstico lingüístico



etnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge- e antropológico da realidade indígena



na, os quais realizam atividades temporárias de
no estado do Amazonas



capacitação da equipe técnica central e de acom-


O Governo do Amazonas, por meio da Secre-
panhamento e avaliação das ações de Educação


taria de Estado da Educação e Qualidade do En-


Escolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, ou


sino (Seduc/AM), considera necessário realizar


mesmo executam trabalhos mais pontuais desti-


um diagnóstico da situação da Educação Esco- 195
nados à estruturação e ao desenvolvimento da



lar Indígena. A intenção é realizar um quadro de
própria Gerência de Educação Escolar Indígena –


expectativas para referenciar os procedimentos


Seduc/AM.


da Gerência de Educação Escolar Indígena e,



conseqüentemente, levar a bom termo as ações
A formação continuada


do governo do estado.


e o aperfeiçoamento dos técnicos da


O diagnóstico tem como propósito não simples-


equipe central dão-se por meio de diversas


mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-


providências, de modo que possam:


boração das informações no contexto da formação


• assessorar os professores indígenas na pro- dos professores. Assim, é possível colocar os pro-


dução de materiais didático-pedagógicos, na ○

fessores indígenas em conexão com outras realida-
construção de currículos, metodologias e sis- des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-

temas de avaliação, no contexto dos progra-


cer um processo pedagógico por meio da coleta de


mas de formação; dados. Tal iniciativa corresponde ao método de tra-



• atuar como docentes em curso de formação balho que vem sendo desenvolvido na formação de

inicial e/ou continuada de professores indí- professores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-

genas;

sa durante o processo de aprendizagem.


• assessorar as Secretarias Municipais de Edu-



cação; Para que o tratamento dado pelas políticas pú-



• colaborar com idéias criativas e buscar solu- blicas à educação escolar esteja em consonância

com o que as comunidades indígenas, de fato,


ções inovadoras que sirvam de base para im-


plantar e desenvolver uma educação transfor- querem e necessitam, é preciso que os sistemas

madora; educacionais estaduais e municipais considerem


a grande diversidade cultural e étnica dos povos


• participar de cursos e eventos relacionados


indígenas no Brasil e revejam seus instrumentos


com Educação Indígena (seminários, congres-


jurídicos e burocráticos, uma vez que tais instru-


sos, reuniões, encontros pedagógicos de pro-

mentos foram instituídos para uma sociedade


fessores indígenas, debates etc.) ou com ou-


que sempre se representou como homogênea


tras áreas afins ou de interesse da Gerência,

(Referencial Curricular Nacional para as Escolas


como lingüística, antropologia, ecologia, pe-


Indígenas, p. 12).

dagogia, saúde e outras;



• estagiar em instituições governamentais ou


não-governamentais com projetos em reali-


O planejamento da Educação Escolar Indígena,


zação na área de Educação Escolar Indígena;


em cada sistema de ensino, deve contar com a


• realizar estudos e pesquisas para atualização participação de representantes de professores



de informações, e outras. indígenas, de organizações indígenas e de apoio



aos índios, de universidades e órgãos governa-


Durante a realização dos cursos de capacitação mentais. (Resolução CEB nº 3, de 10/11/1999)



de equipe técnica central, também são convocados



os técnicos das Secretarias Municipais de Educação Principais ações



que atuam nas escolas indígenas, bem como os pro- • Realizar um levantamento e estabelecer con-

fissionais representantes de instituições envolvidas


tato com todos os projetos de Educação Es-


na questão da Educação Escolar Indígena. colar Indígena em curso no Amazonas.




• Estabelecer prioridades junto às populações ficiência expressiva (por exemplo: no ensino de



que reivindicam Educação Escolar Indígena, Matemática na escola em uma Língua Indígena,



mas que não contam com nenhum apoio ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-


institucional.


jeto de informática etc.).


• A discussão da forma como deve se desen- Tem sido demanda dos povos indígenas no



volver cada levantamento deve contar com Amazonas, por exemplo, dos Munduruku de


a participação de representantes indígenas,


Borba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-


que serão colaboradores em todos os senti- eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-



dos: poderão dizer qual a melhor época para tado colabore nos seus projetos político-lingüís-


a realização dos trabalhos (questões climá-


ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar o


ticas e atividades econômicas, por exemplo,


uso das suas línguas, de modo que elas possam


podem influenciar) e poderão ajudar a defi-
efetivamente ser utilizadas no processo educa-


nir quais as informações importantes para


tivo e em todas as outras situações.


constar no levantamento.


• Realizar um amplo diagnóstico da situação ○

da população indígena que habita zonas ur-



Principais ações
banas de todo o estado. • Responder às demandas dos povos indíge-

nas para apoiar o processo de recuperação,


desenvolvimento e fomento do uso das lín-


Desenvolvimento e fomento

guas indígenas no estado do Amazonas.


do uso das línguas indígenas no


• Elaborar e executar projetos na área de de-


estado do Amazonas

senvolvimento das línguas indígenas, para-


lelamente ou não aos cursos de formação de


Do Projeto Pira-Yawara decorre uma preocu-


professores do Projeto Pira-Yawara, em par-


pação com o uso efetivo das línguas indígenas


ceria com organizações indígenas e com en-


do povo em questão, normalmente a única lín-

tidades especializadas na área.


gua conhecida pela criança que chega à escola,


• Manter um programa editorial próprio nas


o que implica dizer estímulo a que os professo-


línguas indígenas no estado do Amazonas.


res indígenas preparem seus materiais didáticos


e de leitura na Língua Indígena e não (somente)



em Português. Exemplos disso são os livros pu- Produção, editoração, publicação



blicados até o momento pelo projeto.


e distribuição de material didático

No entanto, as línguas indígenas, que são lín-


específico e diferenciado

guas de minorias muito pequenas diante do



grande número de falantes de Português, neces- Esse programa tem como proposta instituir,

sitam de uma política de desenvolvimento e fo- entre os professores, a formação de índios como

mento do uso para que possam ser utilizadas pesquisadores de seu próprio universo cultural

com plenitude também em áreas outras que não e, igualmente, como escritores e redatores de

a da cultura tradicional, que se fazem necessá- material didático-pedagógico em suas Línguas



rias para a vida dos índios na e com a sociedade Maternas e/ou Portuguesa, referentes aos

contemporânea. Assim, como ocorreu em tan- etnoconhecimentos de suas sociedades.


tos outros países, as línguas indígenas podem ser Encaminhadas pelos vários componentes que

instrumentalizadas para que expressem aspec- integram a estrutura curricular do Programa de



tos da tecnologia e da sociedade brasileira e/ou Formação de Professores, as atividades de pesqui-



ocidental, o que permite que continuem sendo sa, como princípio metodológico do programa,

utilizadas nas novas condições que vão se colo- desencadeiam a interpretação, a construção e a

cando para os povos indígenas. O trabalho de reelaboração de conhecimentos gerados a partir



desenvolvimento lingüístico visa justamente da reflexão sobre a realidade socioeconômica,



ampliar o campo de uso das línguas minoritárias cultural e lingüística de cada povo indígena en-

para que não deixem de ser utilizadas por insu- volvido no processo, em que os etnoconhecimen-

196
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas

tos, aliados às diferentes informações oriundas Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-



dos conhecimentos técnico-científicos, expres- rária produzida inteiramente na língua Sateré-



sam claramente a importância da produção des- Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos de



ses materiais, ao instituir entre os professores não atividades recreativas, de valores que regem a


somente a autoria de cada um dos materiais por conduta humana, como a importância da soli-



eles próprios escritos, mas, principalmente, ao dariedade, da união, da vida, da necessidade do



eliminar a grande distância entre quem pensa e saber, da felicidade e do trabalho exercido pelo


quem executa a prática educativa. professor em sala de aula. 197



A ênfase dada ao processo de pesquisa per- O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta uma



mite a produção diversificada de materiais, ora literatura em que a sensibilidade, aliada às ques-



escritos na Língua Materna, ora escritos na Lín- tões étnicas e culturais desse povo, é retratada a


gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro- partir de cada uma das palavras e mensagens



fessores, constituindo-se, assim, em instrumen- produzidas. Esse livro reflete a longa trajetória



tos de construção curricular desenvolvidos a percorrida pelos professores durante o processo



partir da realidade, prática social e cultural de de produção textual, considerando o desenvol-


cada professor indígena e integrados à sua prá- vimento das modalidades da fala e escrita.



tica docente, para permitir a reflexão sobre seu Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-

efeito pedagógico em sala de aula. duzido na língua Sateré-Mawé. É um livro de lei-



A política de apoio à produção, à editoração turas acompanhadas de atividades escolares, nas


e à publicação de literatura indígena realiza-se quais os alunos indígenas irão expressar de for-

com a distribuição e o acompanhamento desses ma escrita e oral suas idéias e experiências, bem

materiais nas escolas das aldeias. como reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-

senvolvendo temas ligados aos textos.



Publicações didático-pedagógicas Produzido na Língua Materna, Sateré-Mawé



Nemahara Hap Ko’i é um livro rico em cores e


A coleção Seres vivos é composta de três volu-


detalhes ilustrativos, nos quais os autores apre-


mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri- sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-

meira produção escrita, a coleção apresenta, na sua cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-

maioria, textos na Língua Portuguesa, por decisão tos das várias aldeias da região.

dos próprios professores indígenas. A variedade de


Os Sateré-Mawé e a arte de construir é uma


seus temas aborda a fauna e a flora da área indíge- obra que relata o poder da criança e o conheci-

na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadro mento do povo no domínio e na utilização dos

natural das regiões compreendidas entre os rios recursos oferecidos pela natureza, na construção

Marau e Urupadi e levam, por seu valor, conteúdo


e na manifestação de sua cultura. Por meio de


e forma, à compreensão das inter-relações desse textos informativos, que se harmonizam com as

povo com a natureza e com a cultura. ricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-

Huhu’e Hap é um jornal indígena no qual os


pos de artesanato ainda hoje confeccionados e


conhecimentos lingüísticos dos professores são


utilizados por esse povo.


ampliados a partir de textos produzidos na lín- O poder curativo das ervas medicinais é na-

gua materna. É um instrumento pedagógico- turalmente apresentado a partir das diferentes


educativo que veicula a divulgação de notícias,


plantas utilizadas pelos Sateré-Mawé na cura de


como atividades culturais realizadas nas várias


suas doenças. Os meios de tratamento, preparo


aldeias encontradas ao longo dos rios Marau e e uso dos remédios são orientados por meio de

Urupadi, assembléias indígenas ocorridas na re- dois livros produzidos, sendo um na Língua Por-

gião, questões ligadas às atividades educativas e


tuguesa, As plantas que curam, e outro na Lín-


o trabalho realizado pela escola, fatos sociais


gua Materna, Mikoi Mohag Wuat Waku Rakaria


cotidianos, entre outras. É seu objetivo servir Set Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricas

como instrumento de uso e aperfeiçoamento da ilustrações sobre as plantas medicinais usadas


língua escrita.

pelos índios Sateré-Mawé da região.



A obra Histórias, lendas e mitos Sateré-Mawé cultura e da própria existência, ao mesmo tem-



retrata de forma descritiva a riqueza mítica e a po em que demonstram sentimentos de digni-



tradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas em dade ao partilharem com alegria a reconquista



suas crenças, objetos sagrados e conhecimentos de suas terras. A obra apresenta textos diversifi-


acumulados. Os textos são produzidos na Lín- cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valor



gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações. cultural e histórico para esse povo.



Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul- Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,


tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen- Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-



ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawé na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia Vila



relacionados aos modos de vida na aldeia, hábi- Batista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-



tos, costumes, território habitado e explorado. tenção de gerar junto aos alunos e à comunidade


Apresenta ainda uma visão crítica do processo processos de discussão e reflexão acerca dos há-



de dominação ao qual os índios foram submeti- bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-



dos ao longo de sua história. los habitantes da aldeia, em comparação com os


Histórias de vida é uma obra ilustrada produ- ○
da cultura tradicional dos antigos.
zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos que O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-

falam das experiências e dos fatos marcantes ocor- Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escrito

ridos com os professores ao longo de suas vidas. na Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-

O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado, bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-

é uma produção recentemente publicada pela miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,

Seduc/AM, produzido no contexto do Programa de aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-

Formação de Professores Indígenas de São Gabriel na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-

da Cachoeira. Apresenta textos escritos em onze Mari. Além disso, há uma descrição do caminho

línguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako, percorrido durante a viagem, falando das dificul-

Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka e dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,

Wanano, possibilitando práticas pedagógicas além dos hábitos e costumes praticados. É uma

diversificadas e plurilíngües. Os textos abordam obra baseada em fatos reais, que retrata a realida-

assuntos diferentes, conforme a opção de cada de vivida pelos índios no Brasil e que permite uma

etnia, que vão desde receitas de remédios caseiros reflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-

à mitologia da região. gem entre as culturas branca e indígena.


Aldeias Munduruku é uma obra didática que



retrata a situação atual das aldeias Munduruku, Distribuição de material escolar



localizadas ao longo dos rios Canumã e Mari-Mari, e didático-pedágógico



da Terra Indígena Coatá-Laranjal, no Município de A Secretaria do Estado da Educação e Quali-


Borba. Rico em cores e detalhes, apresenta um


dade do Ensino (Seduc/AM) vem implementando


conjunto de textos descritivos sobre a história e a


ações no sentido de prover as escolas indígenas de


geografia das aldeias, formas de organização, mo- recursos materiais e didáticos, tanto no que se re-

dos de vida, crenças e costumes práticos do povo. fere ao material de apoio ao trabalho do professor,

Concebendo a terra como fonte que gera e


quanto às necessidades dos alunos em sala de aula.


permite a vida, como também sagradas e pro-


Para isso, são disponibilizados kits escolares


fundas as relações que com elas estabelecem, os para professores e alunos indígenas:

professores Munduruku, da Terra Indígena • Kit do aluno: apontador, borracha, caderno


Coatá-Laranjal, decidiram produzir o livro


vertical e de desenho, caneta, cola plástica,


Kwata-Laranjal, história e reconquista da terra. lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,

É uma publicação que sintetiza a intenção dos entre outros.



autores de relatar o processo de demarcação de • Kit do professor: caderno universitário, car-


suas terras, como também as lutas e os massa-


tolina, caneta, fita gomada, papel madeira,


cres praticados contra eles e por eles contra os pincel atômico e régua de 30 centímetros,

invasores brancos em defesa do território, da entre outros.



P AINEL 10

PRÁTICA DE SALA DE AULA NA


ESCOLA INDÍGENA
Yolanda dos Santos Mendonça

Alzenira Felipe Marques

199
Prática de sala de aula




na escola indígena





Yolanda dos Santos Mendonça*







Resumo



aprendizagem combinam espaços e momen-



Construir uma escola a serviço dos interesses tos formais e informais com concepções pró-



dos povos indígenas e gerenciada por índios, as- prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-


sumindo um papel fundamental na medida em


nidade é muito importante nesse processo,


que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-
pois possui sua sabedoria para ser transmiti-

mico e atuante, em processo construtivo e infor-


da e distribuída por seus membros e mostra
mativo, voltado para uma educação específica, di-

valores procedentes próprios de sociedades


ferenciada e de qualidade, visando à orientação e


originalmente orais, noções próprias cultural-


à formação de cidadãos índios com espírito críti-

mente formuladas e variáveis de uma socieda-


co e tomadas de decisões rápidas e eficazes no


de indígena a outra, da pessoa humana e dos


convívio social; estimular e desenvolver compe-


tências que contribuam para a educação do povo seus atributos, capacidades e qualidades. Há

indígena Potiguara. inúmeras particularidades, mas há caracterís-


ticas comuns. Cada experiência cognitiva e


O professor índio tem papel desafiante e


articulador para tornar a Educação Escolar Indí- afetiva carrega múltiplos significados econô-

gena indispensável ao progresso de seu povo, em micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.

direção aos mais nobres ideais, transformando a


Admite diversos seres e forças da natureza com


escola num espaço privilegiado para análise, dis- as quais estabelecem relação de cooperação e

cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple- intercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-

no desenvolvimento do potencial dos alunos.


terminadas qualidades.

Temos que ter autodeterminação para esse



Graças à mobilização e à união dos profes- movimento de articulação, pois quem faz a

sores indígenas junto aos Poderes Públicos é Educação Escolar Indígena ser específica, di-

que hoje já avançamos para a continuidade da ferenciada e de qualidade somos nós, e essa só

vida do planeta. A publicação RCNEI me fez será concretizada com a participação direta

ver, a partir da análise feita nessa obra, que dos interessados para garantir a sua realização.

seria um ponto de partida para minha profis- Devem ser oferecidas as condições necessá-

são, na qual tomei como educação transforma- rias para que a comunidade gerencie sua escola,

dora aquela que permite que as informações demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-

adquiridas no decorrer do processo de apren- lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-

dizagem se tornem possibilidades de ações genas são coletivos. Temos o direito de decidir

para a recriação de uma realidade dramática sobre nossa história, nossa identidade, pensan-

que nos interpela quotidianamente. Cada povo do em nossas crianças como parte do presente

indígena que vive no Brasil é dono de univer- para não destruirmos nosso futuro. Temos que

sos culturais próprios e memória de percursos ter a escola como projeto próprio, e dela nos

e experiências históricas diversas. Esse é um apropriarmos como instrumento de luta pela


processo sem fim. autonomia. Para isso, temos um enorme desafio



Os momentos e as atividades do ensino- diante de inúmeras tensões que podem surgir







* Professora na Paraíba.

200
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena

com a introdução do ensino escolar. Temos que correndo e fui aos poucos me entrosando com



ter postura e um trabalho adequado e responsá- as lideranças e as comunidades.



vel de comprometimento como articuladores, Lembrei-me das músicas de Toré, já que as



facilitadores, intervindo, orientando, problema- crianças gostavam de cantar outras músicas e


tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi- representar outras danças. Então, a música foi



dade dos alunos para com os novos conhecimen- o meu suporte. Mas músicas que nos fizessem



tos. Temos que formar uma escola da experiên- tocar no coração à vontade e o pulsar do peito,


cia, da convivência e da clareza. por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa- 201



É importante que nossas crianças apren- grada de cada povo. Tive que me desdobrar para



dam sobre a vida de nossos antepassados e a fazer com que as crianças entendessem que elas



história mais nova, de mudanças nas aldeias e vivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-


dos chefes que lideram nosso povo. É impor- que muitos não queriam nem saber, pois já es-



tante preparar os alunos para que, no futuro, tavam muito influenciados pelo outro modelo



eles possam continuar nosso trabalho. E a es- educacional. Foi aí que tive que introduzir pro-



cola pode ajudar a manter nossa cultura, para cedimentos didático-pedagógicos para que eles


que nós possamos manter nosso território. É entendessem que somos um todo e, por meio



preciso abrirmos os olhos e vermos que nesse de leituras e escritas relatadas por eles mesmos,

território estão plantadas nossas raízes, que juntos buscamos informações na nossa própria

hoje nasceram e se enramaram com uma for- família. Fomos montando e descobrindo novi-

ça enorme, que cada vez mais desabrocham dades que serviram de experiências e motiva-

para fortalecer a nossa sagrada identidade. São ções para uma realidade da própria criança. No

inúmeras as falsas informações que distorcem momento em que trabalhamos cada estrofe da

a realidade e impedem as pessoas de melhor música do Toré, as crianças ficam curiosas, e



conhecer os índios. Grande parte do nosso sempre vem o porquê. Quando vamos cantan-

povo desconhece ou pouco sabe sobre os ver- do e apresentando a história do passado do



dadeiros donos desta terra. Devemos romper nosso povo com clareza e confiança, fazemos

com essas informações enganosas, acabar com um trabalho para desenvolver o que elas ouvi-

esse preconceito que foi e continua sendo res- ram e visualizaram. Aí começa o interesse para

ponsável por mortes e doenças no mundo in- saber mais: sempre perguntam o que fazer de

teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor- agora em diante para não passar pelo que nos-

te da vida social e está diretamente ligada às sos antepassados passaram.



crenças e aos conhecimentos. A terra somos Temos que ter cuidado para não causar im-

nós. Temos que ser dinâmicos e práticos para pacto, pois muitas crianças se revoltam. O que

que os alunos desenvolvam suas capacidades temos que fazer é conscientizá-las, para cuidar

e aprendam os conteúdos necessários, para do pouco que nos resta. Se assim o fizermos,

construírem instrumentos de compreensão da vamos conquistar mais, porque o que temos



realidade, com participação, e para assumir a não é o suficiente para o muito que nos leva-

valorização da cultura de sua própria comuni- ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,

dade, respeitando direitos e diferenças dos sem medo de conhecer e buscar nossos direi-

outros povos indígenas. tos. Só temos esses direitos se antes cumprir-



Por meio de experiências da minha vida co- mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-

tidiana e de contatos com diversas pessoas de ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-

outras etnias, percebi que meu povo cada dia cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-

mais estava sendo enganado e que nossas cri- bém aos velhos e até às pessoas mais novas,

anças cada dia mais desconheciam quem eram para invocarem os encantados e resolverem

na verdade. Foi daí que fiz uma análise e to- algo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-

mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as- nhos, sempre temos alguém do nosso lado.

sim estarei ajudando a mim mesma. Conver- Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-

sei bastante, mostrei os perigos que estávamos ra da terra. O vento é o respirar dos que já se

foram. A água e o rio são o sangue derramado


mos, pois ela interfere na política envolvente


do nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os- e encaracolada, porque, no momento em que



sos dos nossos parentes que já foram plantados. as crianças e as comunidades descobrem sua



Gradativamente, fazemos com que as cri- verdadeira história e como ainda estão sendo


anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre- tratadas, passam a ter consciência e interfe-



ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa- rem nas tomadas de decisões, como também



rações entre o que ouviram e o que são no pre- vão sentir curiosidade em se conhecer melhor


sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-


e conhecer seu próprio território.











A Pedagogia do Texto na



prática da sala de aula na Escola




Indígena Tupinikim



Alzenira Felipe Marques*








Preocupados com o resgate da cultura de der com o tempo, caso não seja sistematizado

nosso povo, estamos procurando enfocar, nas e passado de uma geração à outra.

escolas das aldeias, problemáticas que afetam



nossa vida cotidiana. O relato a seguir centra-


Descrevendo o manguezal

se num exemplo dessas práticas diárias reali-


zadas na comunidade indígena de Caeira Ve- Com o passar dos anos e com o crescente

lha, composta de índios Tupinikim. número de diversas culturas invadindo nosso



Durante um mês, desenvolvemos o tema território, o nosso mangue sofreu várias in-

fluências negativas. Buscando conhecer e pre-


“Ecossistema Manguezal”, com o objetivo de


sensibilizar a comunidade indígena para a pre- servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-

servação do mangue que circunda nossa aldeia pusemos a desenvolver um projeto em que cada

e que vem sendo usado como nosso meio de aluno e seus pais pudessem expor seus conhe-

cimentos e adquirir outros num anseio de pre-


sobrevivência e reprodução cultural. Nas inú-


meras atividades que foram realizadas, procu- servação da natureza e de sua riqueza cultural.

ramos envolver escola e comunidade. O manguezal a que estamos nos referindo



A problemática levantada ao desenvolver é o Piraqueaçu, situado entre Santa Cruz e o


Córrego Fundo, em Aracruz, no Espírito Santo.


esse tema foi a seguinte: estudar e compreen-


der de que forma nós, moradores da aldeia, Esse manguezal é conhecido por ser um dos

podemos nos organizar para a preservação des- maiores da América Latina.



se ecossistema, tendo como pano de fundo o O manguezal é área preservada, conforme a


Constituição Federal (1988), a Resolução


fato de que todo saber corre o risco de se per-







* Educadora indígena Tupinikim, Aldeia Caeira Velha, ES.



202
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena

Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-



4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº do a faixa etária de nossos alunos.



4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa Durante a sistematização desses conheci-


“mina de tesouro” não deve ser preservada só


mentos, nossa fonte primeira foi a memória


porque a lei assim reza, mas porque é um peda- oral dos alunos, dos pais e dos mais velhos da



ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimos aldeia, usando para isso entrevistas e pales-



que a vida está nas coisas simples e ao mesmo tras. Fizemos também algumas visitas ao


tempo grandes. manguezal, onde foram recolhidos diversos 203



Cada espécie encontrada nesse manguezal tipos de recursos.



tem sua beleza e importância. Nesse espaço, en- Num segundo momento, selecionamos,


contramos moluscos e crustáceos variados: os-


agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-


tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso, lizadas e interdisciplinares nas quais não havia



papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré, fragmentação dos conhecimentos, mas um só



siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Esses saber. Nessa segunda fase, outro princípio da


seres vivos podem ser encontrados ao longo de


Pedagogia do Texto que nos orientou foi o de


toda a extensão do Mangue Piraqueaçu. confrontar o saber empírico dos alunos e da



A maior parte da fauna do manguezal vem comunidade com outros saberes sistematizados

do ambiente marinho, o que não exclui o ter- em livros (saberes considerados científicos).

restre, pois nele vivem aves, répteis, anfíbios,


Estudamos flora e fauna, clima, espaço geográ-


mamíferos e insetos. A flora do manguezal é fico e outros conteúdos a partir de atividades



constituída pela espécie denominada mangue, variadas, tais como a produção de diferentes

a qual possui característica própria e é procu- gêneros de textos (argumentativo, explicativo,


rada pelos mariscos para sua proteção. Apesar dissertativo etc.), teatro de varas, problemas

de sua beleza e encanto, o manguezal possui envolvendo medidas, compra, venda, sistema

também perigos, o que não intimida aqueles monetário, jogos, quebra-cabeças, artesanato

que dele dependem para o seu sustento. com argila e sementes, desenhos variados.

Finalizamos o nosso estudo com um gosto-



A Pedagogia do Texto so almoço em que foi servida uma saborosa



no estudo do manguezal moqueca. Tudo isso foi realizado num clima de



seriedade e de busca de conhecimento.


Para que os alunos compreendessem o



manguezal do ponto de vista cultural e ao mes-


Conclusão

mo tempo científico, lançamos mão dos prin-


cípios da Pedagogia do Texto, na medida em que Estivemos diante do desafio que foi para

esta valoriza o conhecimento local, cultural e nós, educadores e educandos, tentar compre-

até mesmo individual do sujeito numa dimen- ender o mangue a partir de diferentes perspec-

são de crescimento. tivas. Podemos dizer que atingimos nosso ob-


Orientando-nos por esses princípios, em jetivo e aprendemos, sobretudo, que a preser-



um primeiro momento, tentamos descobrir o vação do manguezal será de fato uma conquis-

conhecimento empírico que os alunos deti- ta quando todos se conscientizarem da sua im-

nham acerca do mangue. Esses conhecimentos portância.


foram primeiro sistematizados em textos indi- Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-

viduais e depois em textos coletivos. Buscamos refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto para

relacionar cada saber com o tempo, chegando nós, educadores, quanto para os alunos.









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