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Darci Secchi
Vilmar Guarani
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Do nacional ao local,
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do federal ao estadual: as leis
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e a Educação Escolar Indígena
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Luís Donisete Benzi Grupioni*
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SEF/MEC
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O direito à educação
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transformação em curso, que tem gerado novas
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práticas a partir do desenho de uma nova fun-
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diferenciada nas leis
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ção social para a escola em terras indígenas.
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brasileiras
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Nesse processo, a Educação Indígena saiu do
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gueto, seja porque ela se tornou tema que está
Passados mais de dez anos da promulgação
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contexto específico.
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milação e integração.
mente genérica. Mas como contemplar a extrema
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mas décadas atrás, trata-se de uma verdadeira conhecimentos e práticas de outros grupos e so-
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* Antropólogo, pesquisador do Mari (Grupo de Educação Indígena da Universidade de São Paulo) e consultor do Ministério da Educação para
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Legislação escolar indígena
ciedades. Uma normatização excessiva ou muito tituição: atualizar os direitos e deveres nela ins-
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detalhada pode, ao invés de abrir caminhos, ini- critos, de forma que ela seja útil para regular o
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bir o surgimento de novas e importantes práticas relacionamento dos cidadãos entre si e destes
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pedagógicas e falhar no atendimento a demandas
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com o Estado e com a sociedade como um todo.
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particulares colocadas por esses povos. A propos- Dividida em nove títulos, a Constituição tra-
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ta da escola indígena diferenciada representa, sem
ta dos princípios, direitos e garantias fundamen-
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dúvida alguma, uma grande novidade no sistema
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tais, da organização do Estado, dos poderes
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educacional do país, exigindo das instituições e 131
Legislativo, Executivo e Judiciário, da defesa do
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órgãos responsáveis a definição de novas dinâmi-
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Estado e das instituições democráticas, da tri-
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cas, concepções e mecanismos, tanto para que
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butação e do orçamento, da ordem econômica,
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essas escolas sejam de fato incorporadas e bene-
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ficiadas por sua inclusão no sistema, quanto res- financeira e social.
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A Constituição de 1988 remeteu para a le-
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peitadas em suas particularidades (RCNEI: 34).
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gislação complementar e ordinária algumas de-
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Conhecer a legislação, formulada em âmbito finições, bem como o detalhamento de direitos
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federal, sobre a Educação Escolar Indígena é o apresentados de forma ampla ou genérica, não
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auto-aplicáveis, que precisam de detalhamento
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único caminho para superar o velho e persistente
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impasse que marca a relação dos povos indíge- por meio de lei complementar. Alguns desses
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nas com o direito, qual seja, o da larga distância dispositivos ficaram para a legislação comple-
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entre o que está estabelecido na lei e o que ocor- mentar, porque não cabia seu detalhamento na
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direitos que a legislação lhes assegura, estaremos que elaboraram o novo texto. É o caso, por exem-
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na esfera federal é condição primeira para o esta- de regulamentação do Congresso Nacional por
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va do Brasil entrou em vigor em outubro de 1988, via de extinção, como passaram a ter assegura-
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quando foi promulgada, depois de mais de um do o direito à diferença cultural, isto é, o direito
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ano e meio de trabalho da Assembléia Nacional de serem índios e de permanecerem como tal.
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Constituinte. A Constituição, também conheci- Não cabe mais à União a tarefa de incorporá-
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da como Carta Magna, é a lei maior do país. Não los à comunhão nacional, como estabeleciam as
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existe nenhuma outra lei tão importante quanto constituições anteriores, mas é de sua responsabi-
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ela e nenhuma outra lei pode ir contra o que nela lidade legislar sobre as populações indígenas no in-
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A Constituição estabelece direitos, deveres e índios “os direitos originários sobre as terras que tra-
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procedimentos dos indivíduos e do Estado, dos dicionalmente ocupam”, definindo essa ocupação
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cidadãos e das instituições. Ela substituiu a não só em termos de habitação, mas também em
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modificações ocorridas no tempo e na socieda- meio ambiente e à reprodução física e cultural dos
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de. Este é o sentido de elaborar uma nova Cons- índios. Embora a propriedade das terras ocupadas
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pelos índios seja da União, a posse permanente é de importância fundamental porque trata, de
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dos índios, aos quais se reserva a exclusividade do modo amplo, de toda a educação do país.
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usufruto das riquezas aí existentes. A atual LDB substitui a Lei nº 4.024, de 1961,
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Outra inovação importante da atual Consti- que tratava da educação nacional. No que se re-
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tuição foi garantir aos índios, às suas comunida- fere à Educação Escolar Indígena, a antiga LDB
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des e organizações a capacidade processual para nada dizia. A nova LDB menciona, de forma ex-
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entrar na Justiça em defesa de seus direitos e in- plícita, a educação escolar para os povos indíge-
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teresses. O Ministério Público é chamado a par- nas em dois momentos. Um deles aparece na
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ticipar desse processo, mas não é condição para parte do Ensino Fundamental, no artigo 32, es-
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a sua instauração. Ao Ministério Público cabe a tabelecendo que seu ensino será ministrado em
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defesa dos interesses indígenas e a Justiça Fede- Língua Portuguesa, mas assegura às comunida-
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ral é o fórum para resolver pendências judiciais des indígenas a utilização de suas línguas ma-
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envolvendo os povos indígenas. ternas e processos próprios de aprendizagem. Ou
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Além do reconhecimento do direito dos índi- seja, reproduz-se aqui o direito inscrito no arti-
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os de manterem a sua identidade cultural, a Cons- ○
go 210 da Constituição Federal.
tituição de 1988 lhes garante, no artigo 210, o uso A outra menção à Educação Escolar Indígena
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de suas línguas maternas e processos próprios de está nos artigos 78 e 79 do Ato das Disposições
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manifestações das culturas indígenas. Esses dis- se preconiza como dever do Estado o oferecimen-
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positivos abriram a possibilidade para que a es- to de uma educação escolar bilíngüe e intercultural
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valorização das línguas, dos saberes e das tradi- materna de cada comunidade indígena e propor-
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ções indígenas e deixe de ser instrumento de im- cione a oportunidade de recuperar suas memórias
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posição dos valores culturais da sociedade históricas e reafirmar suas identidades, dando-
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envolvente. Nesse processo, a cultura indígena, lhes, também, acesso aos conhecimentos técnico-
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devidamente valorizada, deve ser a base para o científicos da sociedade nacional. Para que isso
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conhecimento dos valores e das normas de ou- possa ocorrer, a LDB determina a articulação dos
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tras culturas. A escola indígena poderá, então, sistemas de ensino para a elaboração de progra-
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desempenhar importante e necessário papel no mas integrados de ensino e pesquisa, que contem
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Esse direito ao uso da língua materna e dos sua formulação e tenham como objetivo desenvol-
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processos próprios de aprendizagem ensejou ver currículos específicos, neles incluindo os con-
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mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Edu- teúdos culturais correspondentes às respectivas co-
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ficos e diferenciados.
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A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio- dos sistemas de ensino, o que é enfatizado pela
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nal foi aprovada pelo Congresso Nacional no dia prática do bilingüismo e da interculturalidade.
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de dezembro daquele ano. Ela estabelece normas locar em prática esses direitos, dando liberdade
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para todo o sistema educacional brasileiro, fixan- para cada escola indígena definir, de acordo com
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do diretrizes e bases da educação nacional desde suas particularidades, seu respectivo projeto
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a Educação Infantil até a Educação Superior. Tam- político-pedagógico. Assim, por exemplo, o ar-
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bém conhecida como LDB, LDBEN ou Lei Darcy tigo 23 da LDB trata da diversidade de possibili-
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Ribeiro, essa lei está abaixo da Constituição e é dades na organização escolar, permitindo o uso
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Legislação escolar indígena
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alternância regular de períodos de estudo, gru- ção intercultural e bilíngüe e sua regularização
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pos não-seriados ou por critério de idade, com- nos sistemas de ensino.
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petência ou outros critérios. No artigo 26, para O Plano Nacional de Educação prevê, ainda,
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darmos mais um exemplo, fala-se da importân- a criação de programas específicos para atender
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cia de considerar as características regionais e às escolas indígenas, bem como a criação de li-
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locais da sociedade e da cultura, da economia e nhas de financiamento para a implementação dos
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da clientela de cada escola, para que se consiga programas de educação em áreas indígenas. Es- 133
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atingir os objetivos do Ensino Fundamental. Ou tabelece-se que a União, em colaboração com os
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seja, outros dispositivos presentes na LDB evi- estados, deve equipar as escolas indígenas com
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denciam a abertura de muitas possibilidades recursos didático-pedagógicos básicos, incluindo
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para que, de fato, a escola possa responder à de- bibliotecas, videotecas e outros materiais de
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manda da comunidade e oferecer aos educandos apoio, bem como adaptar os programas já exis-
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o melhor processo de aprendizagem. tentes hoje no Ministério da Educação em termos
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de auxílio ao desenvolvimento da educação.
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Atribuindo aos sistemas estaduais de ensino
Educação indígena no
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a responsabilidade legal pela Educação Indíge-
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A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- magistério indígena, com a criação da categoria
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cional instituiu, no artigo 87, a “Década da Edu- de professores indígenas como carreira especí-
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cação”, que teve início um ano após a sua publi- fica do magistério e com a implementação de
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cação. Ali também se estabeleceu que a União programas contínuos de formação sistemática
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Plano Nacional de Educação, com diretrizes e Ao ser promulgado, o PNE estabeleceu que a
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metas para os dez anos seguintes. União, em articulação com os demais sistemas
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Em 9 de janeiro de 2001, foi promulgado o Pla- de ensino e com a sociedade civil, deve proce-
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sigla PNE, que apresenta um capítulo sobre a Edu- plano e que tanto os estados quanto os municí-
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cação Escolar Indígena, dividido em três partes. Na pios deverão, com base no plano, elaborar seus
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Parecer nº 14/99 do
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rão ser atingidos a curto e a longo prazos. O Conselho Nacional de Educação foi insta-
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universalização da oferta de programas educa- a Câmara de Educação Básica, cada qual com 12
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cionais aos povos indígenas para todas as séries membros nomeados pelo Presidente da Repú-
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mia para as escolas indígenas tanto no que se emitir pareceres sobre assuntos da área educa-
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refere ao projeto pedagógico, quanto ao uso dos cional e sobre questões relativas à aplicação da
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vas ao funcionamento dessas escolas. Para que parar as normas necessárias à implantação da
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isso se realize, o plano estabelece a necessidade nova estrutura da educação nacional instituída
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de criação da categoria “escola indígena” para por aquela lei. A Câmara de Educação Básica pre-
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parou diretrizes curriculares para os diferentes A primeira é relativa à criação da categoria
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níveis e modalidades de ensino, entre as quais “escola indígena”, reconhecendo-lhe “a condição
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as de Educação Indígena. de escolas com normas e ordenamento jurídico
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As diretrizes para a Educação Indígena cons- próprios” e garantindo-lhe autonomia pedagó-
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tituem o resultado das discussões que ocorreram gica e curricular. Disso resulta a necessidade de
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na Câmara de Educação Básica do CNE, quando regulamentação dessas escolas nos Conselhos
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essa se lançou na análise de dois documentos en- Estaduais de Educação, bem como a necessida-
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caminhados pelo Ministério da Educação (a ver- de de instituir mecanismos de consulta e envol-
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são preliminar do Referencial Curricular Nacio- vimento da comunidade indígena na discussão
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nal para as Escolas Indígenas e um documento sobre a escola indígena.
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especialmente preparado pelo Comitê de Edu- Outro ponto importante da Resolução nº 3/99
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cação Escolar Indígena sobre a necessidade de é a garantia de uma formação específica para os
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regulamentação da Educação Indígena), bem professores indígenas, podendo essa ocorrer em
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como de uma consulta feita pelo Ministério Pú- serviço e, quando for o caso, concomitantemente
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blico Federal do Rio Grande do Sul, para cuja ○
com a sua própria escolarização. A resolução es-
relatoria foi indicado o Pe. Kuno Paulo Rhoden. tabelece que os estados deverão instituir progra-
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As Diretrizes Curriculares Nacionais da Edu- mas diferenciados de formação para seus pro-
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cação Escolar Indígena foram aprovadas em 14 fessores indígenas, bem como regularizar a situ-
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de setembro de 1999, por meio do Parecer nº 14/ ação profissional desses professores, criando
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99 da Câmara Básica do Conselho Nacional de uma carreira própria para o magistério indígena
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Educação. Dividido em capítulos, o parecer apre- e realizando concurso público diferenciado para
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cola indígena e propõe ações concretas em prol de Educação, por meio dessa resolução, definiu
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Merecem destaque, no parecer que institui pela oferta da educação escolar aos povos indí-
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indígena”, a definição de competências para a entre União, estados e municípios, o CNE defi-
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oferta da Educação Escolar Indígena, a forma- niu que cabe à União legislar, definir diretrizes e
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ção do professor indígena, o currículo da escola políticas nacionais, apoiar técnica e financeira-
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e sua flexibilização. Essas questões encontraram mente os sistemas de ensino para o provimento
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âmbito das mesmas discussões que ensejaram mação de professores indígenas, além de criar
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Resolução nº 3/99 do
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publicada a Resolução nº 3/99, preparada pela estadual” e provendo-as com recursos humanos,
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Câmara Básica do Conselho Nacional de Educa- materiais e financeiros, além de instituir e regu-
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ção. Essa resolução fixa diretrizes nacionais para o lamentar o magistério indígena.
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funcionamento das escolas indígenas. Importan- Dessas disposições, decorre, entre outras, a
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tes definições foram aí inscritas e regulamentadas, necessidade de cada Secretaria de Estado da Edu-
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para a garantia do direito dos povos indígenas a a participação dos professores e das comunida-
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uma educação diferenciada e de qualidade. Algu- des indígenas, para planejar e executar a educa-
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mas dessas definições merecem ser destacadas. ção escolar diferenciada nas escolas indígenas.
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Legislação escolar indígena
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de forma a se potencializar as oportunidades de
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o lugar da legislação estadual
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os povos indígenas terem uma escola e uma edu-
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O conjunto da legislação nacional a respeito cação que atenda aos seus interesses e às suas
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aspirações de futuro.
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do direito dos povos indígenas a uma educação
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diferenciada, como visto anteriormente, está Feito o itinerário do detalhamento do direito
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estruturado a partir de duas vertentes, que ne- dos índios a uma educação diferenciada, algumas
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questões colocam-se para o debate, no momento 135
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cessariamente precisam convergir, para que esse
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direito se materialize: de um lado, trata-se de em que se caminha para novas formulações legais
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propiciar acesso aos conhecimentos ditos uni- e administrativas, agora nas esferas estaduais.
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versais e, de outro, de ensejar práticas escolares A primeira questão já foi anunciada: a da
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persistente lacuna entre a lei e a realidade, en-
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que permitam o respeito e a sistematização de
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saberes e conhecimentos tradicionais. É da jun- tre o direito explicitado e a prática vivida. Que
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ção dessas duas vertentes que deve emergir a tão alternativas se colocam a esse direito? Será que
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propagada escola indígena. a busca de novas leis e normatizações seria um
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O que a legislação nacional estabelece é um caminho para que aquilo que já foi inscrito ga-
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conjunto de princípios que, de modo geral, aten- nhasse efetividade? Ou será que os povos indí-
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de à extrema heterogeneidade de situações vivi- genas contam com outros mecanismos que po-
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das hoje pelos mais de 210 povos indígenas con- deriam ser acionados para que o direito já
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temporâneos no Brasil. Essa legislação permite a explicitado seja cumprido? Quais são os impas-
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expressão do direito a uma educação diferencia- ses e as dificuldades que impedem o direito de
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da, a ser pautada localmente, em respeito às dife- se realizar? São exclusivos do campo educacio-
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de cada povo indígena, bem como em relação aos genas com o Estado brasileiro?
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seus diferentes projetos de futuro. Outra ordem de questões diz respeito à esfe-
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Todavia, esses princípios precisam encon- ra de normatização estadual. Se cabe aos siste-
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estaduais que vão disciplinar o funcionamento oferta da Educação Indígena e pela formação e
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das escolas indígenas, como unidades integran- regularização profissional dos professores indí-
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tes dos sistemas estaduais de ensino, bem como genas, a eles cabe também definir, em plano es-
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como profissionais contratados pelo estado ou que caberia definir aos estados? Qual o espaço
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pelo município. É aqui, portanto, no âmbito es- de sua atuação? A qual nível de detalhamento aos
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tadual, que os princípios federais precisam ga- estados caberia chegar, na definição das ações
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mentos que lhes possam dar vazão. É nesse garantir que a legislação estadual não se restrin-
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âmbito que se consolida o direito a uma edu- ja a princípios federais? Como garantir que a es-
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cação diferenciada, na medida em que se cola indígena não sucumba diante das demais
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Esse é o momento em que diferentes esta- mentos nos deve conduzir a cada sociedade in-
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dos da Federação se lançam a disciplinar a ma- dígena em particular, a cada projeto de futuro
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colar Indígena nas leis orgânicas de educação, cação diferenciada se realiza. E a pergunta
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por parte das Assembléias Legislativas, seja por deve inverter a ordem estabelecida: em que
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meio de resoluções estaduais, geradas no âmbi- medida o que já está inscrito no plano legal não
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to dos Conselhos Estaduais de Educação. Esse é, limita as aspirações e os desejos dos povos in-
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avanços alcançados na esfera federal poderão de seus membros? E para que rumo segue a
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Educação Indígena? Haverá espaço para aque- Bibliografia
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les grupos que almejam simplesmente um
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GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Educação Escolar Indí-
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maior conhecimento do Português e das regras
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gena no Brasil: a passos lentos. In: RICARDO, Carlos
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de comércio com a sociedade envolvente? To- Alberto (Org.). Povos indígenas no Brasil – 1996/2000.
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das as escolas indígenas deverão formalizar
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São Paulo: Instituto Socioambiental, 2000.
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seu ensino, garantindo continuidade de estu- . Os índios e a cidadania. In: Cadernos da TV
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dos dentro e fora das terras indígenas? Haverá Escola – Índios no Brasil, Brasília, v. 3, p. 25-46, 1999.
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condições e espaços para que os índios dêem MELIÀ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São
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Paulo: Loyola, 1979.
um sentido próprio para a escola indígena, fora
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SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial
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das amarras administrativas e legais já con-
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Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. Brasília:
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quistadas? Enfim, para onde caminha todo SEF/MEC, 1998.
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esse processo?
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. O governo brasileiro e a Educação Escolar
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Enfrentar essas questões está na ordem do dia. Indígena 1995/1998. Brasília: SEF/MEC, 1998.
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Apontamentos acerca da
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Darci Secchi*
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Unemat
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Resumo
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Os povos ameríndios convivem com algum gislação atual apenas admitiu a alteridade e tole-
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tipo de escola há quase 500 anos. Nos últimos anos, rou a diferença, isto é, manteve resguardado o
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porém, a escola colonial recebeu novas adjeti- direito de outorgar direitos. O presente paper pre-
○
○
vações (específica, diferenciada, intercultural, bi- tende discutir o processo de regularização das
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○
língüe), e a educação escolar passou a ser tratada escolas indígenas no Brasil, destacando a neces-
○
como política pública, como um direito de cida- sidade de conciliar os interesses de todos os su-
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dania. Entretanto, o antigo paradigma colonial jeitos detentores de direitos, em especial, os das
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não foi totalmente superado, uma vez que a le- sociedades indígenas.
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sobre o campo
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Diversas sociedades indígenas brasileiras con- bitantes das terras recém-conhecidas. Discuti-
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quanto ao lugar que ela deve ocupar nos processos questão que se colocava era se eles seriam con-
○
○
de colonização e/ou de autonomia desses povos. siderados seres humanos e, tendo alma, se seria
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PAINEL 5
Legislação escolar indígena
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ser simplesmente escravizados. A controvérsia1 epistemológico brasileiro.3 O discurso que havia
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acerca da natureza humana dos índios perdurou insuflado as “bandeiras de luta da sociedade ci-
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por dois séculos e, a partir dela, estabeleceram- vil” passou a ser apropriado pelo poder público.
○
se os contornos do projeto colonizador em toda Seria o prelúdio de novos tempos?
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a América e em outros continentes.
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Nos últimos anos, porém, verificaram-se
Um pouco de história
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significativas mudanças no tratamento da 137
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temática educacional indígena. Os próprios ín- O modelo integracionista de educação esco-
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dios entraram em cena para debater a política lar para o índio no Brasil está associado histori-
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de escolarização e para exigir uma educação camente ao binômio proselitismo doutrinário
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escolar voltada ao atendimento dos seus inte-
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(religioso ou não) e preparação para o trabalho.
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resses. A educação escolar passou a ser vista Com esse intuito, atuaram as missões católicas,
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como uma política pública, como um direito de as escolas pombalinas, a educação positivista e,
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cidadania. Hoje já não se discute se os índios mais recentemente, os missionários e lingüistas
○
têm ou não têm alma, se devem ou não ser civi- de diferentes confissões.
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lizados, mas trata-se de considerá-los cidadãos A partir da década de 1950, insuflados pelos
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Ainda assim, a secular matriz colonial não foi nacionais do trabalho, passaram a ser incorpora-
○
totalmente superada. As atuais leis e regulamen- dos, nos países do chamado Terceiro Mundo, no-
○
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tos foram produzidos apenas com a audiência dos vos instrumentos jurídicos e novos objetivos para
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índios, ou contaram com a participação das co- a educação escolar das “populações tribais e
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conceder direitos. Nela, o reconhecimento à di- em todos os níveis (art. 21); a realização de estu-
○
liturgia diferenciada para as suas escolas etc. se- gramas escolares (art. 22); a alfabetização em lín-
○
○
riam como marcos ou garantias de um porvir de gua materna seguida de educação bilíngüe (art.
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cidadania, de respeito e de valorização das socie- 23); e uma campanha de combate ao preconceito
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se frutificar inúmeras parcerias e cooperações Art. 24. O ensino primário deverá ter por objetivo
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na busca de novos horizontes para a “causa indí- auxiliem a se integrar na comunidade nacional.
○
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discurso oficial, que substituiu o antigo “refrão Art. 26 -1. Os governos deverão tomar medidas [...]
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integracionista” por enunciados mais palatáveis com o objetivo de lhes fazer conhecer seus direitos e
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Para Clastres (1995), a controvérsia residia em afirmar que os índios eram como “criaturas de Deus” e, ao mesmo tempo, promover a sua
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captura e escravização. A saída legal para esse dilema seria encontrada na declaração (unilateral) de “antropofagia”.
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2
Ribeiro (1978) e Oliveira (1976) utilizam as expressões “problema” ou “problemática indígena”; Lopes da Silva (1981) e outros preferem
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3
Para Brand (1988: 7), o avanço no arcabouço legal fez-se acompanhar de um crescente “confinamento geográfico e social”. Para ele, o
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esgotamento do modelo integracionista está diretamente ligado ao atual estágio da globalização e do neoliberalismo, que encontrou, como
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fórmula para solucionar o problema dos supérfluos, o seu confinamento em favelas, acampamentos e reservas. Integrar o índio em quê? –
○
pergunta. Como mão-de-obra, já não é mais necessário. Só se for como consumidores marginais, conclui.
○
obrigações especialmente no que diz respeito ao tra- senvolvidos em Mato Grosso, no Acre e em ou-
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balho e os serviços sociais.4 [Grifos meus.] tros estados.
○
○
Os direitos conquistados nesse período
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No Brasil, esses dispositivos ingressaram no
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recolocaram em novas bases o antigo conflito
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mundo jurídico somente uma década mais tar- entre o oficial e o paralelo, e as “relações perigo-
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de e se materializaram de fato na Constituição sas” entre escola e Estado passaram a ser vistas
○
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Federal de 1988. Mesmo assim, careciam de como “relações possíveis”.
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maiores explicitações, o que seria formalizado, Os anos 1990 caracterizaram-se como um
○
○
em meados da década de 1990, com a publica- período de implementação do ideário gestado
○
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ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação na década anterior. As novas palavras de ordem
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Nacional (Lei nº 9.394/96).
○
– “educação bilíngüe e intercultural”, “currícu-
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Ao longo desses 30 anos de maturação jurí- los específicos e diferenciados”, “processos pró-
○
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dica e política, muitos atores compuseram o ce- prios de aprendizagem” – precisavam ser ma-
○
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nário da Educação Escolar Indígena. terializadas no cotidiano das escolas. No entan-
○
A década de 1970 foi marcada pela emergên- ○
○
to, nem o poder público estava preparado téc-
cia do chamado “indigenismo alternativo” e por nica e administrativamente para assumir essa
○
○
ensaios dos primeiros movimentos indígenas, ti- tarefa, nem havia legislação específica que ori-
○
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dos como estratégias de oposição e superação do entasse tal procedimento. No contexto desse
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colas oficiais foram vistas com cautela, quando comunidades indígenas, dos grupos de apoio,
○
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não com desconfiança. Propunha-se, em seu lu- de setores da academia e do próprio poder pú-
○
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gar, a criação de escolas alternativas, mormente blico, o Governo Federal e o MEC passaram a
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de acepção freireana, desatreladas do espaço do coordenar uma série de iniciativas que resulta-
○
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Estado e das instituições que o representavam. ram na atual arquitetura jurídica e administra-
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○
acadêmica e militância indigenista, parceria que • a publicação do Decreto nº 26/91 que trans-
○
○
produziu uma vasta documentação, participou feriu da Funai para o MEC a responsabilida-
○
○
cela de ver as suas bandeiras contempladas na pios a responsabilidade pela execução das
○
○
nova Carta. As articulações surgidas nesse con- ações de Educação Escolar Indígena;
○
○
de Mato Grosso –, esses núcleos deram origem Nacional de Educação Indígena, fórum que
○
○
aos atuais Conselhos de Educação Escolar Indí- viria subsidiar a elaboração dos planos
○
ção Escolar Indígena nos respectivos estados. • a elaboração pelo Comitê Assessor e a publi-
○
○
encontros de Educação Indígena, eventos que cação Escolar Indígena”, a partir do qual de-
○
○
deram suporte à organização dos atuais Progra- finiram-se os principais contornos do aten-
○
○
4 Posteriormente, a Convenção 169, adotada pela 76ª Conferência Internacional do Trabalho (Genebra, junho de 1989), revisou essas propo-
○
○
sições e acrescentou ao texto outras diretrizes, tais como “el derecho a la autoidentificación, a la consulta y a la participación, y el derecho
○
138
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
• a sanção da Lei de Diretrizes e Bases da Educa- res “serão planejados com a audiência das comu-
○
○
ção Nacional (Lei nº 9.394/96), em que se esta- nidades indígenas” (art. 79, § 1º – grifo meu). Isto
○
○
beleceram as normas específicas para a oferta é, coube às agências externas – governos, acade-
○
de educação escolar para os povos indígenas;
○
mias, conselhos – o planejamento dos programas
○
• a aprovação, na Comissão de Constituição e das escolas com a audiência indígena, e não o
○
○
Justiça do Senado Federal, em 6 de dezem- inverso: “as comunidades indígenas planejarão
○
○
bro de 2000, após oito anos de tramitação, seus programas com a audiência do poder pú-
○
da Disposição 169 da Organização Interna- blico, dos conselhos e da academia”. 139
○
○
cional do Trabalho, estabelecendo os direi- Dessa forma, a atual legislação deixou de
○
tos dos povos indígenas e tribais (PIT), entre
○
contemplar duas premissas fundamentais para
○
eles o da Educação Escolar Indígena em to-
○
a superação do modelo escolar integracionista,
○
dos os níveis e nas mesmas condições que o
quais sejam, a da iniciativa e a do controle das
○
restante da comunidade nacional.
○
sociedades indígenas sobre o processo de con-
○
○
ceber, planejar, executar e gerir os seus progra-
○
Como vemos, nesta última década, multipli-
○
mas educacionais. Os índios permaneceram na
○
caram-se e aperfeiçoaram-se os instrumentos ju- qualidade de ouvintes, e não de propositores de
○
○
rídicos e administrativos concernentes à criação, suas próprias políticas. Continuaram sendo
○
○
alcance maior apenas nos aspectos operacionais e de outorgar os seus próprios direitos.
○
○
metodológicos e não parecem ter rompido total- Um segundo aspecto problemático desse
○
renciada, bilíngüe e intercultural, isto é, da es- A primeira versão da escola bilíngüe propu-
○
○
cola adaptada formalmente à clientela, não se- nha assegurar “a transição progressiva da língua
○
novos atributos? Ou seria de fato uma escola do para uma das línguas oficiais do país” (OIT, art.
○
○
“outro”, isto é, dirigida às populações indígenas? 23, inciso 2). Essa empreitada seria atribuída, no
○
○
E, nesse caso, qual será a matriz conceitual que Brasil, aos missionários lingüistas do Summer
○
Como vimos, o projeto hegemônico das atuais va, a parceria entre o Estado e o SIL foi tamanha
○
○
escolas indígenas teve a sua origem associada à “que até mesmo as ferramentas analíticas desen-
○
○
Convenção 107 da OIT, que, há cinqüenta anos, volvidas pelos lingüistas do SIL passaram a figu-
○
○
Naquele movimento, a escola e os seus pro- não tardaram, afinal tratava-se da mais “repulsi-
○
○
gramas educacionais foram definidos anterior e va forma de etnocídio”. Mesmo assim, esse mo-
○
exteriormente à participação das sociedades in- delo perdurou por três décadas até que foi
○
○
dígenas. A mesma perspectiva foi explicitada na substituído por sua abordagem antagônica, aqui
○
○
5
Cf. Silva, 1999: 10. Uma análise crítica acerca da atuação do SIL pode ser encontrada também em Barros (1993) e em outros trabalhos da autora.
○
Se antes o aprendizado dos alunos dirigia-se O mesmo ocorre com os dois adjetivos res-
○
○
no sentido de transitarem de uma situação tantes: as escolas indígenas devem ser específi-
○
○
monolíngüe em língua indígena para uma situ- cas e diferenciadas. Mais do que garantir novos
○
○
ação de falantes do Português, agora a situação avanços, esses “direitos compulsórios” ratificam
○
se inverteria. Propunha-se que o bilingüismo a histórica perspectiva discriminatória de
○
○
fosse uma característica inerente às escolas in- desqualificação das minorias étnicas e culturais.
○
○
dígenas, isto é, que essas fossem compulsoria- As escolas indígenas – como também as escolas
○
mente bilíngües. rurais, ribeirinhas e das favelas – devem ser es-
○
○
O documento Diretrizes para a Política Na- pecíficas e diferenciadas para “reproduzir os co-
○
○
cional de Educação Escolar Indígena, produzido nhecimentos próprios”, isto é, para reproduzir a
○
○
pelo Comitê de Educação Escolar Indígena do negação cultural, a negação identitária e a nega-
○
MEC e lançado em 1994, não deixou dúvidas: ção da cidadania, elementos que compõem a
○
○
essência do cotidiano de quem se sabe e se re-
○
A escola indígena tem que ser parte do sistema
○
conhece historicamente discriminado.
○
de educação de cada povo, na qual, ao mesmo ○
Talvez resida aí a razão da dificuldade de os
tempo em que assegura e fortalece a tradição e o
○
dades [...]. Como decorrência da visão exposta, a tários. Como disse o líder xinguano Marawê
○
○
Educação Escolar Indígena tem que ser necessa- Kayabi, “Até agora só sabemos o que é diferencia-
○
o específico e o diferenciado?
○
tione a adoção do bilingüismo em situações Todos nós que atuamos no campo da Edu-
○
co reside na formulação como modelo tipológico ramos com questionamentos para os quais não
○
○
Como se daria o tratamento bilíngüe em es- Relaciono a seguir alguns dos que ainda po-
○
monolíngües? Ou, inversamente, como se faria a compartilhá-los com meus pares e, assim, qui-
○
○
opção por apenas duas línguas em situações de çá, construirmos um caminho mais seguro nes-
○
○
língua indígena e os casos em que a língua indí- mulada por um professor Guarani por ocasião
○
○
gena é a própria língua nacional” (Silva, op. cit.: de uma etapa do curso de formação de profes-
○
○
bilingüismo possa ser atualmente recorrente em gente faz para regularizar uma escola, respeitan-
○
○
muitas escolas. Ora, mais do que uma “adjetivação do o específico e o diferenciado?” Pensando ter
○
bilíngüe deveria constituir-se numa opção das cedimentos recomendados pela legislação etc.,
○
○
comunidades e, como tal, poderia compor ou não mas logo fui interrompido com uma observação:
○
○
o currículo e o cotidiano de suas escolas. Essa “Eu sei, eu sei, mas não é isso que eu preciso sa-
○
munidades e impingida como um “direito obri- pecífica e diferenciada deve ter tudo o que está
○
○
gatório”. Mais uma vez, admite-se a diversidade e escrito nas Diretrizes, nos Referenciais, nos Pa-
○
○
domestica-se a diferença, sem, contudo, abrir râmetros, na Resolução nº 3. Se for preciso tudo
○
140
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
pecífica e diferenciada”. O professor Guarani co- culada aos municípios. A administração estadu-
○
○
loca-nos o seguinte problema: como regularizar al não tem intenção de assumir diretamente as
○
○
as escolas sem “disciplinar” a diferença? Seria escolas indígenas e está propondo a consolida-
○
○
pelo caminho dos adjetivos formalizantes? ção do Sistema Único de Educação Básica pre-
○
A segunda indagação tem por nascedouro conizado pela LDB, mas não previsto na Resolu-
○
○
uma pergunta formulada por um professor ção nº 3. Nesse contexto, perguntou-se como
○
○
Parintintim quando se debatia a Resolução nº 3 proceder para que as escolas indígenas não se-
○
da CEB/CNE, no curso de formação de professo- jam prejudicadas em termos de recursos, acom- 141
○
○
res do Alto Rio Madeira. Depois de superar a difi- panhamento, concursos, carreira, serviços etc.6
○
○
culdade de entender a diferença entre “ano civil” Por essa breve amostra, percebe-se que ain-
○
○
e “ano letivo”, um professor perguntou aos cole- da perdura – se não se amplia – a necessidade de
○
gas: “Mas se a minha comunidade resolver que o “normatização” das escolas indígenas, não
○
○
nosso ano letivo deva durar cinco anos, será que obstante as diretrizes, parâmetros, referencial,
○
○
pode?”. Após algum debate, quase todos profes- resoluções etc. Grande parte dessa normatização
○
○
sores concordaram que poderia. Então o profes- seria desnecessária, creio, se mudássemos o es-
○
sor perguntou: “Mas o meu pagamento vai ser pectro de nosso olhar e desistíssemos de ideali-
○
○
pelo ano letivo ou pelo ano civil?” Ninguém sou- zar um único protótipo de escola diferenciada.
○
○
be formular uma resposta que convencesse o pre- Creio que uma política pública de Educação
○
○
feito ou o secretário de Educação a pagar o mes- Escolar Indígena deva apoiar-se em outras ba-
○
mo salário ao professor indígena cujo calendário ses que não a normatização da diferença e a su-
○
○
escolar coincide com o ano civil e ao outro que pressão da alteridade. Elas materializam o dis-
○
○
“demora” cinco anos para concluir um ano letivo. curso e a prática de um direito concedido e de
○
A última indagação veio do curso de formação uma cidadania conferida e, portanto, tornam-se
○
○
estudos sobre o tema “Legislação”, em que nos de- Uma política pública de educação deve nas-
○
○
bruçamos – literalmente – sobre textos da legisla- cer dos professores, das lideranças e das comu-
○
ção estadual de Mato Grosso, que tratavam da car- nidades indígenas e por elas ser controlada. Mas
○
○
reira do Magistério, de concurso público, do siste- isso não significa que o poder público, as insti-
○
○
ma único, dos sistemas próprios, essas coisas. Após tuições acadêmicas e a sociedade civil em geral
○
○
uma semana de estudos, os professores chegaram devem ignorá-la ou eximir-se de sua responsa-
○
também com vocês. A primeira diz respeito à legi- te, discuti-la, consolidá-la, viabilizá-la, e não
○
○
timidade de se “exonerar” um professor indígena apenas implementá-la enquanto tal, o que su-
○
○
quando não há consenso entre o poder público e a põe uma estratégia de ação, que pode expressar-
○
comunidade escolar: o poder público pode exone- se pelos seguintes princípios fundantes:
○
○
de? Ou a comunidade pode “exonerar” um profes- das as etapas de elaboração, execução e ava-
○
municípios cooperarem com os estados na ofer- tuição parceira por meio da avaliação e da
○
○
que a maioria das escolas indígenas esteja vin- Escolar Indígena do Estado de Mato Grosso
○
○
○
○
○
○
6
Até esta data, não obtivemos resposta à consulta formulada ao Conselho Nacional de Educação sobre a aplicação da Resolução nº 3 em
○
○
○
tário composto por instituições e represen-
○
ARRUDA, Rinaldo S. Vieira. Os Rikbaktsa: mudança e tradi-
○
tantes indígenas;
○
ção. 1992. Tese (Doutorado). Programa de Pós-Graduação
○
• a manutenção de vínculo permanente entre em Ciências Sociais. São Paulo, PUC-SP.
○
BARROS, Maria Cândida D. Lingüística missionária: o Summer
○
as atividades escolares e as demais iniciati-
○
Institute of Linguistics. 1993. Tese (Doutorado). Unicamp.
vas do campo da saúde, da regularização
○
Campinas.
○
fundiária e da economia indígena;
○
BATALLA, Guillermo Bonfil. La teoria del control cultural en el
○
estudio de procesos étnicos., Papeles de la Casa Chata.
• a compatibilização dos programas escolares
○
Ciudad de México, año 2, n. 3, 1987.
○
com o calendário sociocultural das socieda-
○
BRAND, Antonio. Autonomia e globalização, temas fundamen-
○
des indígenas; tais no debate sobre Educação Escolar Indígena no con-
○
texto do Mercosul. In: PRIMEIRO ENCONTRO DE EDU-
○
• o compromisso da continuidade e termina-
○
CAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DA AMÉRICA LATINA.
○
lidade dos trabalhos e da manutenção de 1988, Dourados/MS. Anais... Dourados/MS, 1998.
○
equipes técnicas aptas a acompanhar as CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO ES-
○
○
ações de Educação Escolar Indígena desen- TADO DE MATO GROSSO. Urucum, jenipapo e giz: a Edu-
○
1997.
cretaria de Educação;
○
Indígena do Estado de Mato Grosso (CEI/ NIA (Mesa-redonda). São Luís: 47ª SBPC, 1995.
○
Unicamp, 1995.
○
Para concluir, estendo essa reflexão para IANNI, Octávio. Novo paradigma das ciências sociais. In: Estu-
○
além da temática da Educação Escolar Indígena dos Avançados, São Paulo, v. 8, n. 21, 1994.
○
○
Inep/MEC: 1994.
○
Como nos ensina Octavio Ianni, as políti- MELIÀ, Bartomeu. Ação pedagógica e alteridade: por uma pe-
○
cas públicas equacionam-se pela conjugação dagogia da diferença. Cadernos de educação básica (série
○
○
tureza, o alcance e o conteúdo das ações pro- Escolar Indígena. Brasília, 1993 (Cadernos de Educação
○
resses de sua clientela não poderá descon- va contemporânea no Brasil. In: LOPES DA SILVA, Aracy;
○
siderar essa conjugação. No caso específico da GRUPIONI, Luís Donisete B. A temática indígena na esco-
○
○
tras iniciativas, um permanente exercício de Mato Grosso. Cuiabá/MT: PNUD/Prodeagro, 1995. (Mimeo).
○
○
esses exercícios, não acredito ser possível o Educação Escolar Indígena. Cuiabá/MT: Seduc/CEIMT/
○
○
CAIEMT, 1998.
exercício do controle indígena sobre as suas
○
escolas. E, como já foi dito antes, normatização dios aos projetos demonstrativos para populações indíge-
○
○
não é sinônimo de adequação. Para ser uma nas. São Paulo: FFLHC/USP, 1999.
○
boa escola indígena, é preciso antes que ela SILVA, M.; AZEVEDO, M. Diretrizes para a política de Educa-
○
○
142
PAINEL 5
Legislação escolar indígena
Legislação em Educação
○
○
○
Escolar Indígena
○
○
○
○
Vilmar Guarani
○
○
Funai
○
○
○
143
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
genas elaborados com a participação ativa dos in-
○
Este resumo apresenta alguns enfoques da le-
○
gislação em Educação Escolar Indígena: dígenas e de suas organizações para que o Estado
○
○
Enfoque histórico. Visa a demonstrar a reali- brasileiro passasse a adotar uma posição mais aber-
○
ta em prol dos direitos indígenas. Ainda, no aspec-
○
dade da Educação Escolar Indígena em sua primei-
○
ra fase na história do Brasil, bem como no passado to da atualidade, buscar-se-á compreender a ques-
○
○
recente, nos moldes da legislação então vigente, tão da coexistência entre o Estado brasileiro e as
○
bre a legislação, observando principalmente a Lei Escolar Indígena como um dos direitos coletivos
○
○
Diretrizes e Bases e o Plano Nacional de Educação, da Educação Escolar Indígena no Projeto de Lei
○
○
OS ETNOCONHECIMENTOS
NA ESCOLA INDÍGENA
Carlos Alfredo Argüello
145
Etnoconhecimento na Escola Indígena
○
○
○
○
Carlos Alfredo Argüello*
○
○
Unicamp – Unemat
○
○
○
○
○
Resumo
○
cartesiano, o reducionismo mecanicista, a
○
disciplinaridade, traz implícita a idéia ou princí-
○
○
pios do progresso, a escrita, o cálculo, a teoria, o
○
O etnoconhecimento é peça fundamental na
○
nossa proposta de construção de uma escola indíge- acúmulo, o consumismo, a competição e, apesar
○
○
na que seja algo mais que uma escola de brancos pen- de propiciar a utilização dos meios globais de in-
○
sada para índios. Propomos uma escola que incor- formação, ignora o seu entorno imediato, ignora
○
○
pore o saber dos anciãos, as características da educa- o conteúdo cultural dos seus alunos e familiares
○
○
ção indígena ancestral, integrada à comunidade, e e tende a uma padronização estéril.
○
que resgate da escola do branco os saberes necessá- As correções de rumo, necessárias, foram re-
○
○
rios a seu empowerment e à prática da educação alizadas dentro do marco da pulverização disci-
○
○
põe alguns professores, muitos alunos, em local A escola como uma estrutura humana,
○
○
determinado. A escola indígena tem o direito le- conceitual, onde se aprende, sempre esteve pre-
○
fere um grau de liberdade para organizar os seus ensino coletivo, e sim uma educação artesanal,
○
○
sibilidade de organização bilíngüe com direito a qual se fomenta o fazer. Professores são a família,
○
e a família estendida.
○
das prefeituras e dos estados e tem que se enqua- ca exaustiva, não pressupõe competitividade, não
○
○
cionais da Federação.
○
A tendência geral hoje é de que os professo- No momento, essa escola está em perigo de
○
○
res das escolas indígenas sejam índios e, priorita- extinção. O recente aparecimento da figura do jo-
○
○
riamente, pertençam à mesma etnia dos alunos. vem professor índio assalariado cria outras instân-
○
branco para o índio. É a mesma escola que o bran- perturbam a estrutura ancestral (Bandeira, 1997).
○
○
co pensou para ele, mas a serviço do índio. Essa Os anciões, os sábios, os antigos mestres sentem-
○
○
escola possuirá, então, muitos dos defeitos que se ignorantes diante dos avanços da “Nova Educa-
○
ticamente, com alguns deles apenas suavizados Passo a relatar duas experiências, duas situa-
○
○
* Coordenador da Área de Ciências Matemáticas e da Natureza das licenciaturas para professores indígenas da Unemat.
○
146
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
Uma, na escola das etnias Baníwa-Coripaco, Os cursos são ministrados em etapas intensi-
○
○
às margens do rio Içana, afluente do rio Negro, vas, no campus de Barra do Bugres, MT, para 200
○
○
nas terras indígenas do Alto Rio Negro, estado do professores índios de 35 etnias diferentes.
○
○
Amazonas, perto da fronteira com a Colômbia, em Nas etapas intermediárias, o professor índio,
○
meados do ano 2000. enquanto leciona na sua escola, realiza tarefas,
○
○
A outra, na etapa de preparação das ativi- trabalhos e pesquisas ligadas ao seu curso univer-
○
○
dades dos cursos de licenciatura para profes- sitário. Também recebe em sua aldeia, na sua es-
○
sores indígenas, no campus de Barra do Bugres cola, a visita e a orientação da equipe de profes- 147
○
○
da Universidade Estadual de Mato Grosso, em sores do curso (docentes), que, desse modo, tam-
○
○
maio de 2001. bém interagem com a comunidade.
○
○
Em ambas as ocasiões, antigas lideranças in- O trabalho, nessa etapa intermediária, visa a
○
dígenas, sábios anciões fizeram discursos pareci- resgatar, para a escola, os conhecimentos ances-
○
○
dos, solicitando publicamente que instruíssemos trais indígenas, valorizar os detentores dos dife-
○
○
os jovens professores das suas etnias, para que es- rentes saberes, diminuir a separação entre escola
○
○
tes não fossem tão ignorantes como eles. Mas não e comunidade, permitir a docentes e professores
○
são esses anciões os detentores do conhecimento indígenas um conhecimento melhor da realida-
○
○
indígena que nenhum deles, enquanto tal, deve de nas aldeias e escolas e o diálogo direto com a
○
○
demia chama de etnoconhecimentos? Não são eles Nesses momentos, o olho atento e treinado
○
os que conhecem os segredos da mata, dos rios, do docente poderá detectar, na comunidade, sa-
○
○
dos animais, os que curam as doenças, os que co- beres, valores, práticas que poderão ser objeto de
○
○
nhecem os segredos do céu, conhecem o calendá- estudo sistematizado com a finalidade de sua in-
○
rio astronômico que rege, na Terra, as chuvas, as corporação escolar. Por exemplo, junto com as
○
○
migrações das aves, as piracemas, as enchentes, o professoras Marta Azevedo e Judite Albuquerque,
○
○
tempo certo de plantar? Não são eles os que co- realizamos na Escola Paanhali, no rio Içana, no
○
○
nhecem os rituais, as danças, as cerimônias, os que Amazonas, da etnia Baníwa, um trabalho de res-
○
falam com os deuses? Não são eles que conhecem gate, com os professores da escola, do calendário
○
○
o segredo da caça e são os melhores artesãos? astronômico Baníwa. Trouxemos para as discus-
○
○
Quem destruiu a sua auto-estima, quem mo- sões vários “anciões”, que deram sua importante
○
○
escola evangelizadora que os queria cristãos? Não Em etapa posterior, reunimo-nos em São
○
○
será a escola integracionista que os queria inte- Gabriel da Cachoeira, AM, com alguns desses pro-
○
○
grados, indiferenciados? Não serão as diferentes fessores indígenas e mais cinco anciões. Trabalha-
○
○
escolas que os queriam tratoristas, cortadores de mos durante vários dias, até estabelecermos, em
○
cana, engrenagens microscópicas na grande má- forma definitiva, um calendário natural circular
○
○
tos e a cultura do branco em detrimento das pró- muitos importantes ensinamentos, como, por
○
○
Quero citar uma experiência que está no co- na sua versão indígena, as constelações Baníwa
○
○
meço e irá frutificar somente dentro de cinco foram “traduzidas” para as constelações acadêmi-
○
anos. Espero então, daqui a cinco anos, poder ter cas e vice-versa, possibilitando o diálogo intelec-
○
○
a oportunidade de informar e prestar contas. tual e a motivação para seguir estudando o céu,
○
○
É nosso trabalho formar professores indíge- os fenômenos astronômicos, climáticos etc., si-
○
○
nas no 3o grau, licenciados em várias áreas do co- multaneamente, a partir dos diversos olhares.
○
ordenar a área de Ciências dessas licenciaturas di- computador e um programa de simulação do céu
○
○
○
○
mento sem constrangimento nenhum. Cito essa a ambos, num processo cuja meta ideal, mas im-
○
○
passagem como um exemplo de saberes comple- possível, seja a união desses mundos individuais.
○
○
mentares. É nossa intenção que a escola seja o espaço
○
Nossa proposta é incorporar, nas atividades da dialógico para a ação mediatizadora. Note-se que
○
○
escola, a comunidade, os velhos mestres, seus sa- essa iniciativa transborda os limites da educação
○
○
beres e ensinamentos, os conhecimentos tribais, em geral, que irá se beneficiar, sem dúvida, da
○
enfim, derrubar os muros1 que a escola do branco experiência indígena na educação. Parafrasean-
○
○
possui e que a separam da comunidade e da reali- do Bartomeu Melià (1998), “Não há um proble-
○
○
dade que a rodeia, o que a escola para índios, como ma de Educação Indígena, há soluções indígenas
○
○
citei anteriormente, herdou em algum grau. ao problema da educação”.
○
Em contrapartida vejo a escola para índios A abertura de 200 vagas para os cursos de li-
○
○
como uma forma de “potencialização” ao estilo cenciaturas, reservadas aos professores indígenas,
○
○
freiriano. Segundo Paulo Freire, potencialização, equivaleriam, na população brasileira, à abertu-
○
○
ou empowerment, é um processo que “permite ao ○
ra de aproximadamente 100 mil vagas, resguar-
estudante interrogar e, seletivamente, se apropri- dando as proporções populacionais.
○
○
ar daqueles aspectos da cultura dominante, que A necessidade de construir o seu próprio ma-
○
○
vão lhe prover as bases para novas definições e terial didático, os textos, os equipamentos, em
○
○
transformações, em vez de meramente servir à constante diálogo com a realidade em volta, in-
○
ampla ordem social estabelecida”. cluindo a pobreza, é um desafio que, uma vez ven-
○
○
Continuando com Paulo Freire, nosso grande cido, como tudo leva a pensar que o será, consti-
○
○
mestre, gostaria de citar, da Pedagogia do opri- tuir-se-á em modelo a ser seguido por outras ins-
○
mido, a seguinte afirmação: “Ninguém educa nin- tâncias fora da Educação Indígena.
○
○
guém. Ninguém educa a si mesmo. Os homens se A revalorização da escola, de uma escola cul-
○
○
educam entre si mediatizados pelo mundo!” turalmente comprometida, mas aceitando a pers-
○
○
Comentar essa sentença inspiradora ocuparia pectiva de Educação Libertadora, poderá servir de
○
horas, mas vamos nos perguntar tão-somente: modelo a outras minorias, movimentos sociais e,
○
○
Qual é esse mundo mediatizador? Intermediador? basicamente, à escola tradicional, qualquer que
○
○
Existem tantos mundos como pessoas há. A seja o nível econômico dos seus alunos, para que,
○
○
experiência de vida da pessoa constrói o seu mun- engajada social, crítica e construtivamente, torne-
○
do, e as comunidades étnicas mais ou menos iso- se uma solução e deixe de ser um problema.
○
○
Bibliografia
○
e Terra, 2002.
mundos que nem sequer ensinam a ler. Será neces-
○
1
Ver Ciranda das Ciências – A Ciência na Escola: Palestra “A escola sem muros”.
○
148
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
○
reflexões sobre experiências de um
○
○
○
antropólogo militante em
○
○
○
programas de formação de
○
○
○
professores indígenas no Nordeste 149
○
○
○
e em Minas Gerais
○
○
○
○
José Augusto Laranjeiras Sampaio
○
○
Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai) – Universidade do Estado da Bahia (Uneb)
○
○
○
○
○
Tomo como ponto de partida para essas re- sões de “autenticação” dos ditos valores por
○
○
flexões a idéia de que a Educação Escolar In- parte do pólo dominado.
○
○
dígena, concebida como “específica” e “dife- Assim, em uma palavra, cabe indagar
○
○
construir, não deixa de inscrever-se em um sabidamente desiguais, e por meio de que ca-
○
○
Nesse campo, as próprias idéias de “dife- da Educação Escolar Indígena – e mesmo para
○
rença”, de “especificidade” e outras do gênero mais além dele –, as definições do que sejam
○
○
aparecem como valores, como objetivos a se- especificidade e diversidade culturais indíge-
○
○
rem alcançados e garantidos e, também, exi- nas e do que podem essas, enfim, estar a sig-
○
○
domínio social por excelência, por meio do Pretendo aqui demonstrar, com base em
○
○
qual tais valores se expressam, e a “escola in- minha própria experiência em programas de
○
○
dígena”, como a via institucional para a sua formação de professores indígenas, como a so-
○
mais que isso, definido pela presença, por um sores formadores, agentes administrativos
○
serviços – formação de professores, infra-es- o pólo indígena tende a dialogar com tais con-
○
○
etc. –, e, por outro, de um pólo “receptor”, o Ao ser convidado para participar, como an-
○
○
das sociedades indígenas, não se deve supor tropólogo “especialista” em povo Pataxó, do
○
○
como “diferença”, “especificidade” e “cultura”, nas em Minas Gerais, descobri que uma das de-
○
diálogos e disputas políticos e simbólicos ine- dirigida a mim e a alguns outros colegas – e
○
○
rentes ao campo, sem que, sobre eles, impri- não infreqüente em circunstâncias semelhan-
○
mam-se as marcas ideológicas do pólo domi- tes que eu próprio teria oportunidade de vir a
○
○
nante, ainda que tais diálogos e disputas re- novamente vivenciar – por parte tanto de pro-
○
○
○
○
dizia respeito à minha possível contribuição dade, permanecendo, pois, etnocêntrica e dis-
○
○
em um processo percebido como necessário às tante da produção de um real diálogo cultural
○
○
ditas formação de professores e implantação com as posições indígenas.
○
de escolas diferenciadas, claramente definido Na modalidade “positivada” das concep-
○
○
por todas as personagens presentes no campo ções etnocêntricas de “culturas indígenas”, as
○
○
como “resgate cultural”. oposições anteriormente referidas dão lugar
○
Em que consistiria, então, o “resgate cul- a outras nas quais tais “culturas” assumem,
○
○
tural” sobre o qual se esperava que pudésse- em relação à cultura de ego, o pólo “favorá-
○
○
mos, eu e outros antropólogos, percebidos vel”, como em autenticidade cultural x dege-
○
○
como “especialistas” em “culturas indígenas”, neração da cultura por colonialismo cultural,
○
intervir favoravelmente? cultura de massa ou globalização; harmonia
○
○
Antes de tentar responder a essa questão, com a natureza x exploração predatória do
○
○
cabem aqui duas digressões: uma, relativa a ambiente; igualitarismo, amor ao próximo e
○
○
como a sociedade brasileira vem reproduzin- ○
altruísmo x desigualdade social, individualis-
do suas concepções a respeito de idéias como mo e competitividade desumana; sabedoria
○
○
nas, de larga aplicação e de eficácia simbólica dável em ambiente “natural”, “mata” x vida
○
○
bastante perceptível, hoje, no campo da Edu- insalubre em ambiente citadino, poluído; vida
○
como essa mesma sociedade e seus agentes etnoconhecimentos x cientificismo estéril etc.
○
○
configuração histórica e social tida como típi- dos agentes do pólo dominante, longe de ha-
○
○
temporâneas em áreas como aquelas em que pólo dominado, apenas projeta sobre este,
○
○
ção, sabe-se que não é difícil à maioria dos percebido como idealmente vivido em uma
○
○
agentes da sociedade nacional ora engajados condição de quase “encantamento”, à qual toda
○
etnocêntricas que negativizam a cultura do in- Aqui, os índices de maior ou menor “auten-
○
dígena em relação à de ego, por meio de opo- ticidade”, vale dizer, de maiores ou menores
○
○
própria plenitude da condição humana. ia dizer mesmo da “pureza” – culturais são se-
○
Por outro lado, ao abandonar tais visões lecionados de acordo com os próprios critéri-
○
○
sociedade nacional dificilmente percebe estar dio – nu, forte, emplumado e cercado de vege-
○
○
com freqüência, ainda assim, arraigada a vi- tação luxuriante – tão cara à nossa consciên-
○
○
sões de “cultura” e de “diferença” muito pró- cia nacional, desde, pelo menos, o Peri, de José
○
150
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
sive em personagens “reais” de nossa mídia como algo factível de se produzir em proces-
○
○
contemporânea, ao cacique Metuktire Raoni. sos sociais de intensa inter-relação cultural e
○
○
Em suma, são nos sinais diacríticos de “di- simbólica entre os grupos “diferenciados”, e
○
ferença cultural” cuidadosa e interessa- não necessariamente o contrário.
○
○
damente selecionados pela consciência naci- Assim, um tal modelo não consegue pro-
○
○
onal e por grupos organizados de seus agentes duzir a respeito de tais sociedades indígenas
○
que os projetam, em função de suas próprias nada mais do que o que se poderia chamar de 151
○
○
necessidades ideológicas de distinção interna uma “visão lacunar”, por meio da qual essas são
○
○
ou externa, positiva ou negativamente, sobre percebidas apenas como “sociedades da au-
○
○
as sociedades indígenas, em que parecem, em sência” ou “sociedades da perda”. Aqui, vê-se
○
princípio, residir as ditas concepções de “es- nelas não o que elas “são” ou o que elas “têm”,
○
○
pecificidade” e de “cultura” indígenas domi- mas sempre o que elas teriam “deixado de ser”
○
○
nantemente presentes no campo da Educação ou “deixado de ter”, o que teriam “perdido”, que
○
○
Escolar Indígena. é, invariável e genericamente, qualificado
○
Quanto à segunda digressão, quero assina- como tendo sido “a cultura”.
○
○
lar que é justamente no contexto ideológico re- Não é preciso enfatizar muito que, aqui,
○
○
ferido que se deve buscar a inscrição da per- “culturas” não são percebidas como conjun-
○
○
cepção que tem a consciência de tais grupos tos semânticos resultantes de processos so-
○
sociedades indígenas imersas em segmentos dinâmicos, mutáveis, mas como algo dotado
○
○
sociais regionais com longo tempo de consti- de certa “substância original”, perceptível em
○
não raros intensos processos de produção e re- sas próprias ciências, em especial às “da na-
○
○
prias identidades e de seus ordenamentos so- Ora, se sociedades indígenas, como a mai-
○
ciais internos com relação à sociedade envol- oria das do Nordeste e de Minas Gerais, são
○
○
função da imersão ou interpelação mais estrei- processos históricos que, de fato, constituí-
○
○
ta dessas sociedades com segmentos sociais ram-nas são, inversamente, tratados apenas
○
regionais, a percebê-las apenas como resulta- como “processos de perda”, de “perda da cul-
○
○
dos de processos de “corrupção” sociocultural, tura”, não será difícil deduzir qual seja a idéia
○
○
ou como “vítimas” do que costumam definir de “resgate cultural” presente em um tal mo-
○
○
concebe “as verdadeiras culturas indígenas” Também não é difícil imaginar o que, em
○
○
como estados de “encantamento”, de “pureza”, tais circunstâncias, supõe-se que se possa es-
○
○
resultantes de isolamento, devendo ser, pois, perar do antropólogo, ou seja, daquele que é
○
dade” e a “diversidade” são funções desse mes- mento de “culturas” e, portanto, como alguém
○
○
mo distanciamento do “contágio” com outros possivelmente apto a, por seus estudos, desen-
○
○
sistemas culturais, ou do que se costuma defi- volver artes capazes de trazer de volta à “cul-
○
nir como “preservação da cultura”, não pode tura indígena” a sua “substância” perdida.
○
○
mesmo haver lugar para que se percebam cul- Penso que, no âmbito da concepção de cul-
○
○
turas como resultantes de processos históricos, tura inerente ao modelo ideológico tratado, a
○
idéia de “resgate cultural” pode ser percebida indígenas que conheci, ainda como
○
○
como uma espécie de proposição de anulação ingressantes em programas de formação “es-
○
○
da história, um procedimento pelo qual se po- pecífica” e “diferenciada”, a empreitada do “res-
○
○
deria, ao menos em parte, “devolver” às socie- gate cultural” parecia impor-se-lhes como um
○
dades indígenas a sua “essência” perdida e, no desafio e uma missão inquestionavelmente ne-
○
○
limite, fazê-las “retornar” ou “reviver” o seu es- cessários. Egressos, em sua imensa maioria, de
○
○
tado “original” de “encantamento” e de “ver- escolas regionais “indiferenciadas” ou daque-
○
dadeira” “diversidade”. las até recentemente mantidas pelo regime tu-
○
○
Não posso deixar de assinalar também, telar do indigenismo oficial e, enquanto tal, já
○
○
aqui, a presença de uma não infreqüente vi- percebidas por eles como agências de “destrui-
○
○
são, a um só tempo “piedosa” e “culpada”, da ção” de suas culturas, tinham incorporada uma
○
consciência nacional com relação às socieda- aguda consciência de seu papel como agentes
○
○
des indígenas. Ao dispormo-nos a apoiá-las em transformadores do sistema escolar até então
○
○
sua busca do “resgate cultural”, estaríamos vigente, mas sem disporem de uma perspecti-
○
○
também, a um só tempo, contribuindo para o ○
va crítica da idéia do “resgate cultural” que, ao
seu retorno a um estado perdido de autentici- contrário, lhes era apresentada, ainda que mui-
○
○
dade, solucionando, por um lado, o que ten- tas vezes sob formas bastante indiretas, como
○
○
demos a identificar como a causa de sua su- requisito indispensável à própria implementa-
○
○
posta inadaptação ou, mesmo, infelicidade e, ção de uma Educação Indígena de fato “espe-
○
cular pelas “perdas” que lhes causamos. Vê-se, então, assim, como curiosamente as
○
○
De fato, espero que possa estar claro que idéias de “especificidade” e de “diversidade”
○
não percebo aqui mais que a eloqüente expres- podem, de fato, vir a servir justamente ao seu
○
○
são de formas bastante perversas e etnocên- oposto, uma vez que o que se impõe pela de-
○
○
tricas de dominação simbólica – vale dizer manda por “resgate cultural” é, na realidade, a
○
○
“cultural” –, em que das sociedades indígenas adequação de sociedades indígenas de fato di-
○
gens, e sua historicidade, e transmutadas, con- “cultura indígena” imposto pelo sistema ideo-
○
○
bito da ideologia dominante, das concepções oferecida às sociedades indígenas como ins-
○
○
te abaláveis por uma compreensão histórica vente, ao se lhes autorizar, ao contrário, uma
○
mais adequada sobre muitas das sociedades educação “específica” e “diferenciada”, não se
○
○
indígenas contemporâneas – ou mesmo de deixa de se lhes impor, muitas vezes, até mes-
○
○
imagens críticas dessa mesma sociedade, ca- mo sem que se o perceba, a sua redução a um
○
○
ser percebido, como seria de se esperar em sociedades indígenas “reais”, como algumas da
○
○
cepções ideológicas dominantes, nos mesmos Opera aqui, então, um processo de domi-
○
○
termos dessas concepções, ou seja, como algo nação cultural no qual os índios são levados a
○
○
uma idéia reificada de “cultura” e em função plices de seu “seqüestro simbólico”, ou, diria
○
que delas tem a consciência nacional. nesse “seqüestro”, no qual o “resgate” é de fato
○
○
Em especial, para muitos dos professores percebido como um necessário “preço a pagar”
○
152
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
dade de seus pleitos, sobretudo pleitos por di- ções necessariamente históricas e, portanto, di-
○
○
reitos “diferenciados”. nâmicas, deixando, assim, de ser percebidas
○
○
Não saberia relatar com precisão como re- como referentes a uma suposta “cultura de ori-
○
agi, de início, às diversas formas sob as quais gem”, descontaminada de influências e livre de
○
○
se me apresentavam demandas por contribui- “perdas”.
○
○
ções em processos de “resgate cultural”. Diria De modo geral, um maior interesse de-
○
que tentava tratar “criticamente” tais deman- monstrado no conhecimento de suas históri- 153
○
○
das sem, contudo, dispor de argumentos ou de as não é, por si só, suficiente para pôr em ques-
○
○
outros meios capazes de eliminá-las ou, mui- tão algumas concepções dominantes, como,
○
○
to menos, de atendê-las. por exemplo, a de uma inquestionável conti-
○
É evidente também que não poderia, por nuidade histórica das atuais unidades sociais,
○
○
força apenas de minha própria “consciência ou etnias, desde um período pré-colonial. A
○
○
crítica”, intervir significativamente no quadro consideração de que a própria constituição de
○
○
ideológico que se me apresentava. Assim, foi tais unidades sociais e étnicas possa ser algo
○
de fundamental importância todo um proces- resultante dos próprios processos coloniais
○
○
so de discussão com muitos outros professo- tende, quase sempre, a ser rejeitada como um
○
○
Apesar da “consciência crítica”, não me fur- colar Indígena específica e diferenciada pode,
○
○
tava a colaborar com o “resgate cultural”, apre- sim, caminhar no sentido da produção de um
○
○
sentando aos professores indígenas coisas, conhecimento próprio das sociedades indíge-
○
“antepassados”, relatos dos “seus” costumes, só tempo, informado das concepções teóricas
○
○
feitos por viajantes, e a parca iconografia dis- de nossa História e de nossa Antropologia e,
○
○
ponível sobre a maioria dos grupos da região assim, capaz de livrar-se das perversas tutelas
○
nos períodos colonial e imperial etc. Com isso, simbólicas de ideologias dominantes da soci-
○
○
o interesse inicial, totalmente dirigido à recu- edade nacional, mas capaz também de engen-
○
○
peração de “perdas culturais”, foi se complexi- drar formas próprias de autopercepção de suas
○
○
os próprios processos históricos de tais “per- Se assim for, essa será, certamente, a pe-
○
○
das”, o que se me afigurou como uma tendên- dra angular para o tratamento de quaisquer
○
○
dessa idéia, capaz, por exemplo, de pensar o dora, e não tolamente revivalista, da velha
○
○
○
○
○
Matemática na escola indígena
○
○
○
○
○
Roseli de Alvarenga Corrêa
○
○
Ufop/MG
○
○
○
○
○
O tema proposto “O etnoconhecimento e a da e aprendida?”, “Como trabalhar Matemá-
○
Educação Matemática na escola indígena” tica na escola indígena?” são perguntas feitas
○
○
pode sugerir, num primeiro momento, uma com freqüência no âmbito mais restrito da
○
○
abordagem sobre o modo como os educado- Educação Matemática. As respostas, temos ci-
○
res se utilizam do etnoconhecimento de um ência disso, alojam-se em terreno mais am-
○
○
povo no exercício de sua prática pedagógica na plo e delineiam-se à medida que as idéias se
○
○
te, é um dos focos para tal abordagem. No en- escola indígenas na sua historicidade e com-
○
cação Escolar Indígena pode estar se utilizan- Quando se coloca a possibilidade de criar
○
○
povo, de aspectos de sua cultura, de seus mi- sos de formação de professores indígenas, que
○
tos e crenças, de seu saber e fazer, devo abor- valorizem as experiências de vida dos alunos,
○
○
dar primeiramente a escola indígena, uma ins- o conhecimento de seu povo, sua história e cul-
○
○
tituição garantida legal e constitucionalmen- tura, e que levem em conta suas aspirações,
○
○
te nos dias atuais e pleiteada pela maioria dos impõe-se a necessidade de conhecer tais aspi-
○
povos indígenas. Nessa perspectiva, a aborda- rações e escolhas do povo indígena para a sua
○
○
gem ao tema proposto pede, antes de tudo, que educação específica e como, historicamente,
○
○
se pense e se pergunte e que se levantem al- eles se constituíram. Significa, por um lado, co-
○
○
guns pontos de vista sobre a Escola Indígena. nhecer melhor o indígena que se fez professor
○
A abordagem que farei assenta-se sobre a em sua comunidade: no seu trabalho na aldeia
○
○
minha própria vivência como educadora não- e na escola, na sua relação com as lideranças,
○
○
indígena, que atua em cursos de formação de com os pais dos alunos, com o calendário es-
○
e Educação Matemática. Dúvidas, reflexões, na, cria e constrói para a sua prática pedagó-
○
○
críticas, questionamentos estavam e estão gica e, também, nas suas aspirações como pro-
○
○
sempre presentes no exercício dessa prática, fissional da educação e sujeito ativo de sua co-
○
mas também há espaço para o sonho e o pos- munidade. Por outro lado, significa conhecer
○
○
sível, e, se hoje já temos algumas respostas, o contexto histórico por meio do qual vem se
○
○
elas não se colocam como verdades absolutas, desenvolvendo a Educação Indígena no Brasil
○
○
universais, mas como verdades relativizadas e no qual se insere o modo de ser da escola e
○
que uma das direções a ser trilhada para a Edu- por sua vez, estrutura-se e articula-se também
○
cação Indígena aponta para modos de apren- a partir das visões e das concepções dos dife-
○
○
dizagem abertos – para as experiências e os co- rentes segmentos − além daquelas das comu-
○
○
indígena?”, “Que Matemática deve ser ensina- desse educador não-indígena – seu modo de
○
154
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
ver e entender a Educação Indígena – são con- cie de detalhamento e sofisticação e têm
○
○
cebidas como influenciadas e influenciando como fundo a diversidade de situações, de
○
○
outras representações e práticas. Na sua tota- cultura e de propostas oferecidas pelas co-
○
○
lidade, esses modos de ver e conceber a Edu- munidades indígenas.
○
cação Indígena e a Educação Matemática na No entanto, embora se considere o peso de
○
○
escola indígena dos diferentes segmentos que tais constatações, a questão que ainda se co-
○
○
dela se ocupam são também vertentes do ma- loca, segundo o indigenista e lingüista Wilmar
○
nancial histórico das concepções educacionais da Rocha D’Angelis, é: “Para que uma comuni- 155
○
○
brasileiras e universais. dade indígena quer escola? Que função a es-
○
○
No momento atual, essa história se faz cola tem ou a comunidade está disposta a lhe
○
○
por meio das idéias de educadores influen- conferir?” (D’Angelis, 1999: 20).
○
ciados pelos novos ares e rumos que toma- Essas perguntas, aliadas à nossa sobre a ne-
○
○
ram, no século XX, algumas áreas de conhe- cessidade da escolarização formal para as po-
○
○
cimento, como a Antropologia, a Sociologia, pulações indígenas, não tinham como ser for-
○
○
a Psicologia, a Lingüística e outras. Esse mo- muladas no contexto e pensamento sobre Edu-
○
vimento, que eu diria em espiral, chamando- cação Indígena até a primeira metade do sécu-
○
○
nos à reflexão sobre a escolarização formal lo passado. Antes da década de 1970, mais pro-
○
○
para as comunidades indígenas, remete-nos priamente, a escola indígena foi usada como um
○
○
a uma nova interrogação, qual seja: “É neces- dos principais instrumentos para a descarac-
○
sária a escolarização formal para as popula- terização e destruição das culturas indígenas na
○
○
Uma pequena incursão na história da Edu- “definida e gerida desde fora, imposta e estra-
○
cação Indígena no Brasil assegura-nos que as nha aos índios” (Lopes da Silva, 1995: 10), as
○
○
década de 1970, época em que começaram a o índio” tinham como objetivo reforçar os pro-
○
○
surgir neste país os movimentos propriamente jetos integracionistas gerados pelo pensamen-
○
começam a produzir seus frutos. No final dos Se a escola, desde o início da colonização
○
○
anos 1980, as várias experiências de implanta- até poucas décadas passadas, foi imposta de
○
ção de escolas indígenas com currículos e pe- fora para dentro das comunidades indígenas,
○
○
dagogias próprias já aconteciam juntamente hoje a escola torna-se, para essas mesmas co-
○
○
com a produção de materiais didáticos especí- munidades, “uma espécie de necessidade ‘pós-
○
○
ficos e produzidos pelos próprios índios. contato’, que tem sido assumida pelos índios,
○
A partir dos anos 1990, além da intensifi- mesmo com todos os riscos e resultados con-
○
○
cularmente entre lingüistas, antropólogos e (Dias da Silva, 1999: 64-66). Segundo a autora,
○
○
sociólogos, essa pesquisa torna-se mais re- a escola pode vir a ser, “hoje”, 1 um instrumen-
○
dias atuais têm sido marcados por uma ava- identidades, apoiada que está pelo texto legal
○
○
liação crítica das experiências educacionais que superou a perspectiva integracionista e re-
○
○
riores. Os debates, temas e problemas tor- E é nas idéias que se originaram nesse pe-
○
○
nam-se mais específicos, sofrem uma espé- ríodo, pós-década de 1970 e, principalmen-
○
○
○
○
○
1
Esse “hoje” significa que, após a Constituição de 1988, se inaugurou no Brasil a possibilidade de uma nova fase nas relações entre os povos
○
indígenas, o Estado e a sociedade civil. A educação formal indígena está apenas começando a ser pensada e exercida de forma diferencia-
○
○
da, de modo a assegurar “às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”,
○
○
○
estruturar as respostas para a pergunta que tônoma” (Capacla, 1995: 21). A partir daí, for-
○
○
fizemos sobre a necessidade da escolariza- taleceu-se a idéia – ainda não consensual – de
○
○
ção formal para as populações indígenas no que as próprias comunidades indígenas sele-
○
Brasil. cionassem e preparassem seus professores
○
○
A pesquisa realizada nos vários segmen- bilíngües. Algumas comunidades ainda relu-
○
○
tos envolvidos com a Educação Indígena – tavam em querer “uma escola como a dos
○
em particular nessa fase de mudanças e ne- brancos” e reivindicavam o aprendizado mais
○
○
g o c i a ç õ e s q u e, s e g u n d o L o p e s d a Si l va , rápido do Português pela urgência da situa-
○
○
constituiu-se em “processo intenso, rápido, ção de contato.
○
○
política e cr iativamente inovador, [que] Foi nas universidades e nas organizações
○
transformou a escola indígena característi- indigenistas não-governamentais que as idéi-
○
○
ca dos anos anteriores [...] em espaço de ar- as de “fortalecimento cultural” dos povos in-
○
○
ticulação de informações, práticas pedagó- dígenas encontraram campo favorável.
○
○
gicas e reflexões dos próprios índios sobre ○
Aprofundaram-se os debates em torno das
seu passado e seu futuro, sobre seus conhe- questões indígenas e fortaleceu-se, entre os vá-
○
○
cimentos, seus projetos e a definição de seu rios segmentos da sociedade civil brasileira,
○
○
favoráveis à presença da escola nas comu- Assim, pelo menos no meio acadêmico e,
○
○
nidades indígenas, os quais procuramos digamos, ainda na teoria, era unânime a idéia
○
○
tizá-los, direi que a escola é necessária para na passa a ser um instrumento de reafirmação
○
○
identidade cultural;
○
• local de pesquisa de suas próprias neces- ser considerada e expressa pelos próprios
○
○
1998: 58).
○
156
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
○
○
indígena. meio das suas receitas de comida da roça,
○
○
Diz Gazzetta que: dos ornamentos, dos desenhos nos tururis,
○
○
do trançado das redes, dos pacarás, das al-
○
[...] é muito for te a cultura da identidade, deias, da localização e medida de suas ter-
○
○
é muito for te! Depois, as outras coisas. [...] ras, da venda de produtos da roça e artesa-
○
○
desde que os por tugueses chegaram aqui, os nato etc., constituíram-se em elementos
○
povos indígenas estavam condenados a se- vivificadores e significativos, por um lado, 157
○
○
rem extintos, isso até 1988, quando aparece para o “desvendar e despertar” do pensa-
○
a primeira Constituição brasileira, que diz al-
○
mento matemático Ticuna e, por outro, por
○
guma coisa, que garante alguma coisa. Claro
○
demonstrarem as características de um pen-
○
que não é de graça; todo o movimento, prin-
sar e fazer educação que pudessem permitir
○
cipalmente das organizações indígenas lá do
○
à escola indígena, como específica e diferen-
○
Norte, dos povos indígenas lá do Norte, é toda
○
ciada, ocupar os espaços aos quais realmen-
○
uma mobilização; eles não ganham isso de
○
graça, mas você vê que é a primeira vez que te tinha e tem direito.
○
Com o objetivo de discutir as possibili-
○
aparecem numa Car ta oficial alguns direitos.
○
dades desse “como fazer” na escola indíge-
○
Então, o que acontece? De repente, com es- ○
ses direitos, eles começam a ver uma luz no na, mostro, nas linhas a seguir, um breve mo-
○
○
fim do túnel, eles se fortalecem. [...] E quan- mento de um trabalho desenvolvido no Cur-
○
turo deles, a escola hoje faz par te desse pro- pondo idéias de como o etnoconhecimento,
○
○
porado e ressignificado pela maioria dos po- podem, juntos, numa situação de transcen-
○
○
vos indígenas [...]. E esse projeto de futuro é dência, oferecer condições para a promoção
○
○
seguimos criar isso (Gazzetta, entrevista gra- Essa proposta que apresentamos também
○
○
É dentro dessa problemática do “como fa- professor, como criador de estratégias peda-
○
○
zer”, apontada por Gazzetta, que evidenciarei, gógicas com base em seu saber, em elemen-
○
○
neste trabalho, ações pedagógicas estruturadas tos de sua cultura, expressos segundo sua pró-
○
tica voltada para cursos de formação de pro- O trabalho foi desenvolvido com base no
○
○
fessores indígenas e, em particular, para o Cur- texto “História do buriti”, um pequeno livro es-
○
so de Formação de Professores Ticuna da re- crito e ilustrado pela aluna Hermelinda Ahuê
○
○
gião do Alto Solimões, Amazonas – promovido Coelho, em 1996, satisfazendo a uma das dis-
○
○
pela Organização Geral dos Professores Ticuna ciplinas do curso. Contando a história do
○
○
Algumas das ações pedagógicas propos- história do mundo Ticuna em sua relação com
○
○
○
○
buriti”, a autora conta também um pouco da
○
○
2
Hermelinda Ahuê Coelho, aldeia Canimarú, 1996 história de seu povo, fala da relação do homem
○
○
e dos animais com a floresta e com essa espé-
○
O buriti serve para o homem comer e fazer cie de palmeira, muito resistente às inunda-
○
○
vinho. ções. Por meio do texto, o leitor percebe que
○
Serve também para alimentar os animais.
○
derrubar um buriti muito alto para retirar seus
○
Tem buriti no buritizal, na terra firme e nas frutos ainda é uma prática, embora discutível
○
○
restingas.
nos dias atuais, e salienta também, inclusive
○
As pessoas plantam o buriti perto da casa.
○
por meio das ilustrações, alguns aspectos das
○
Os animais que comem o buriti são: anta,
○
relações sociais da aldeia, quando diz da divi-
○
veado,
são dos frutos, de como lidar com eles e, por
○
jabuti, paca, quati, porco-do-mato, arara.
○
fim, de tomar o vinho.
○
O buriti quando está na água não morre.
○
As frutas, quando amolecem na árvore, caem. Para nós, leitores, o texto de Hermelinda
○
○
pretas. Aí as pessoas vão buscar. floresta, quando traz algumas respostas para
○
○
Quando já está preto o buriti, deixa em uma – Quando é tempo de o homem colher os
○
Duas horas e ele já amolece bem. – Como as pessoas fazem para colhê-los e
○
○
Com base nesse texto e em suas ilustrações, Além das questões sociais e culturais en-
○
preparei um material para ser lido e discutido volvendo a relação entre as pessoas da aldeia
○
○
em sala de aula com os alunos. Em sua primei- e a sua vida na floresta, o texto aponta tam-
○
○
ra parte, e tendo em vista os objetivos que pre- bém para questões espaciais, temporais e
○
muitas informações sobre essa espécie de pal- aturás? Quantos dias? São estas as perguntas
○
○
meira chamada buriti. que podem ser feitas quando a intenção é co-
○
ele é encontrado nativo na mata e, também, Podemos fazer muitas outras perguntas.
○
○
que as pessoas o plantam perto de suas casas. Tudo depende do que já conhecemos sobre o
○
○
Fala dos animais que comem seu fruto e da assunto e também de nossa vontade e neces-
○
colhidas pelas pessoas. As frutas são divididas fundo e de ampliar nossos conhecimentos.
○
○
entre as pessoas e levadas para a aldeia. De- Assim, também, os inúmeros textos produ-
○
○
pois de alguns dias, quando já amolecidas, as zidos pelos professores Ticuna e seus alunos,
○
2
Hermelinda Ahuê Coelho é professora de escola indígena e aluna do Curso de Formação de Professores Ticuna. Neste texto, deixo de
○
158
PAINEL 6
Os etnoconhecimentos na escola indígena
com a floresta e os animais, seus mitos e lendas, direção e sentido – e que o estudo das “matemá-
○
○
relatando suas festas, seu artesanato, a culiná- ticas” pode ser realizado com seus alunos, em
○
○
ria, a fabricação de utensílios etc., constituem, sala de aula, apoiado no etnoconhecimento de
○
○
para o leitor indígena e não-indígena, fontes seu povo, retomando, rediscutindo, revitalizando
○
inesgotáveis de conhecimento, de aprendizado, aspectos de sua cultura e redimensionando-os
○
○
de indagações, juntamente com outros textos para o momento presente. Os trabalhos criados
○
○
que trazem o conhecimento de outras culturas. pelos professores nas etapas posteriores do cur-
○
Aí entram os livros, os jornais, as revistas etc. so para as séries iniciais do Ensino Fundamen- 159
○
○
Com esse texto da professora Hermelinda, tal atestam essas afirmações.
○
○
entre muitos outros que poderiam ser coloca-
○
○
dos para nosso estudo, nossas considerações e
Bibliografia
○
nossos questionamentos – e trabalhados em si-
○
○
tuação didática –, pretendemos expressar as CAPACLA, Marta Valéria. O debate sobre a Educação In-
○
dígena no Brasil (1975-1995). Resenhas de teses e
○
idéias que vêm orientando nosso jeito de ser e
○
livros . Brasília: MEC, 1995.
○
agir durante as etapas do curso de formação de
D’ANGELIS, Wilmar da Rocha. Contra a ditadura da escola.
○
professores, as quais visam ao aprendizado da
○
Cadernos Cedes: Educação Indígena e Interculturalidade.
○
Matemática e, neste momento, estruturam tam- Campinas, 2000.
○
○
bém a criação e a organização deste trabalho D’ANGELIS, Wilmar R.; VEIGA, Juracilda (Orgs.). Leitura
○
○
rer saber mais e a pesquisa em novas fontes e nas, ano 19, n. 49, p. 62-75, dez.1999.
○
○
textos. No caso específico da Matemática, re- GRUPIONI, Luís Donisete B. De alternativo a oficial: so-
○
um direcionamento para as questões matemá- LOPES DA SILVA, Aracy. Prefácio. In: CAPACLA, Marta
○
sem, no entanto, nos afastarmos do pensamen- sil (1975-1995). Resenhas de teses e livros . Brasília:
○
○
rão de nossos questionamentos estão imersas, LOPES DA SILVA, Aracy; GRUPIONI, Luís Donisete B.
○
○
envoltas, relacionando-se com idéias que (Orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídi-
○
mento dado ao trabalho abre possibilidades para MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Secretaria de Educação
○
ral do povo indígena, assim como para outras ca- SILVA, Márcio Ferreira; AZEVEDO, Marta Maria. Pensan-
○
R o ra i m a e A c r e. I n : L O P E S DA S I LVA , A ra c y ;
texto proporcionaram-lhe novas perspectivas so-
○
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Jussara Gomes Gruber
Marlene de Oliveira
161
O Curso de Formação
○
○
○
de Professores Ticuna
○
○
○
○
○
Jussara Gomes Gruber
○
○
Organização Geral dos Professores Ticuna Bilíngües (OGPTB)
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
Em 1993, os professores membros da Organi- O curso de formação faz parte do Projeto Edu-
○
○
zação Geral dos Professores Ticuna Bilíngües cação Ticuna, que envolve um conjunto de ativida-
○
(OGPTB) reuniram-se para iniciar um curso que des organizadas em programas especiais voltados
○
○
lhes possibilitasse concluir o segundo grau com ○
para as questões de saúde, terra, meio ambiente,
habilitação para o exercício do Magistério. O curso
○
das férias escolares, de modo que todos os profes- capacitação de supervisores índios e a organização
○
sores pudessem freqüentá-lo sem prejuízo de suas do projeto político-pedagógico das escolas Ticuna.
○
○
O Curso de Formação de Professores Ticuna é, tante abrangente, que traz como parte da forma-
○
portanto, promovido pela OGPTB e conta com a par- ção do professor todos os aspectos que devem
○
○
ticipação de 250 professores. Já concluíram o Ensi- constar de uma escola diferenciada, como a pro-
○
○
no Fundamental 225 professores Ticuna, dos quais dução de materiais didáticos específicos, calen-
○
170 completaram o Ensino Médio em agosto de dário, programa curricular, planejamento, estudo
○
○
2001. Em julho de 2002, mais 35 docentes conclui- da legislação, entre outros, com a finalidade de
○
○
etapas, durante oito anos, totalizando 4.120 horas. tiva das escolas Ticuna.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A formação de educadores
○
○
○
Introdução
○
estado do Mato Grosso, na região do Rio Xingu e A partir de 1994, foi iniciada a formação de
○
○
seus formadores, tem uma extensão de 2.642.003 professores indígenas no parque, o que resultou
○
Kalapalo, Matipu, Nahukuá, Mehinaku, Waurá, postos. Também participam desse processo pro-
○
○
Aweti, Kamaiurá, Trumai, Ikpeng, Yawalapiti, fessores Panara, que atualmente residem na Ter-
○
○
Suyá, Kaiabi e Yudjá. A população está estimada ra Indígena Panara, vizinha ao parque, e dois
○
162
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
ligados à CPI-AC e à Unicamp, UFRJ, PUC-SP,
○
tem como objetivo mostrar o desenvolvimento Universidade de Londrina, Universidade
○
○
desse trabalho, enfatizando as práticas pedagó- Metodista de Piracicaba, Museu Goeldi e
○
gicas da equipe de formadores e dos professores
○
Unifesp.
○
indígenas.
○
○
○
Desenvolvimento
○
Histórico
○
163
do curso de formação
○
○
A primeira referência do processo de esco-
○
○
larização no Parque Indígena do Xingu foi a es- O curso de Magistério desenvolve-se por
○
cola do Posto Indígena (PIN) Leonardo, que, em meio de duas etapas intensivas anuais de trinta
○
○
1976, começou a funcionar com a presença de dias, sendo uma por semestre. Além das etapas
○
○
uma professora não-índia. Os alunos eram, em intensivas, é realizado o acompanhamento pe-
○
sua maioria, filhos de lideranças das aldeias vin- dagógico dos professores nas escolas das aldei-
○
○
culadas a esse posto indígena. Nos outros pos- as. Participam do curso 61 professores indígenas
○
○
tos, esse modelo se repetiu durante a década de de todos os povos do parque e os Panara, que
○
○
1980, sempre de forma intermitente, pois de- lecionam para 1.150 alunos entre crianças e ado-
○
mente monolíngües em Língua Indígena, eram questões ambientais, da valorização das diver-
○
○
No fim da década de 1980, todas as escolas vimento da autonomia dessas comunidades para
○
○
estavam desativadas por falta de professores. Ex- lidar com as relações de contato. A abordagem
○
alunos da escola do Posto Diauarum, das etnias de questões relativas ao meio ambiente tem o
○
○
suas próprias comunidades o que aprenderam, população xinguana para a importância da pre-
○
○
sem nenhuma orientação pedagógica. Eles reivin- servação e do uso racional dos recursos naturais.
○
dicaram um curso para aprender a serem profes- Essa iniciativa está sintonizada com a política de
○
○
sores. Em função dessa demanda, a Fundação vigilância da área e das fronteiras do parque e
○
○
Mata Virgem organizou reuniões com as lideran- com a mobilização em relação à proteção das
○
○
ças do parque, a fim de consultá-las sobre o inte- nascentes dos rios formadores do Xingu, por
○
mação de professores indígenas. Em 1994, deu- ção Terra Indígena Xingu (Atix) e pelo Instituto
○
○
de Professores para o Magistério nos PIN O projeto de educação está voltado à reali-
○
Diauarum e Pavuru, contando com a participa- zação de um intercâmbio entre as várias cultu-
○
○
ção de pessoas enviadas por todas as etnias do ras e à valorização das línguas indígenas, desse
○
○
parque, com exceção da Yawalapiti, cuja comu- modo reavivando o interesse dos jovens pelas
○
nidade deseja ter um professor não-índio. Esse próprias histórias, danças, artesanato, língua,
○
○
projeto, em 1995, ficou sob responsabilidade da pela vida social e cultural da comunidade.
○
○
Associação Vida e Ambiente e, em 1996, passou a Uma das formas de valorização das línguas
○
○
ser desenvolvido pelo Instituto Socioambiental. indígenas vem sendo o processo de construção
○
A equipe do projeto é composta por educa- da sua escrita. Na década de 1980, havia, por
○
○
dores, antropólogos, lingüistas, agrônomos, bi- parte dos povos do PIX, resistência ao desenvol-
○
○
óloga, médicos, muitas dessas pessoas já envol- vimento da escrita em suas próprias línguas. O
○
○
vidas há vários anos com algum tipo de trabalho referencial de escola para as comunidades
○
na área. Além da equipe do ISA, há consultores xinguanas era baseado nas experiências ante-
○
○
riores, em que professores não-índios ensinavam tes centrava-se apenas no seu aprendizado in-
○
○
Português e Matemática, por isso a escrita fazia dividual, mas aos poucos começaram a atuar
○
○
sentido apenas na Língua Portuguesa. Além dis- como professores em suas aldeias.
○
○
so, o argumento das comunidades era de que Passamos a observar, então, que os temas tra-
○
ninguém esqueceria a própria língua. O deslo- balhados durante as etapas do curso eram refe-
○
○
camento da Língua Trumai pela Língua Portu- rência para os professores atuarem em sala de
○
○
guesa e da Língua Yawalapiti pela Língua Kuikuro aula. Em função disso, priorizamos a questão
○
vem servindo de exemplo para enfatizar a neces- metodológica de ensino no desenvolvimento dos
○
○
sidade de valorizar o ensino da Língua Indígena conteúdos em todas as disciplinas. Buscamos dar
○
○
também nas escolas. Em assembléias de lideran- ênfase à reflexão pedagógica, ao planejamento
○
○
ças de todo o parque, vários chefes têm reafir- de aulas, ao registro destas no diário de classe e
○
mado a necessidade de se aprender Português e à produção de materiais didáticos.
○
○
Matemática; entretanto, começam também a Um caminho interessante que vem sendo
○
○
apontar a necessidade de fortalecimento da Lín- desenvolvido na abordagem de temas e conteú-
○
○
gua Indígena. Esse discurso tem sido mais ○
dos novos, relacionado à elaboração de materi-
enfatizado por lideranças e comunidades da re- ais didáticos em Língua Portuguesa, é a criação
○
○
gião do Médio e Baixo Xingu. O uso da escrita de textos pelos professores sobre esses assuntos.
○
○
nas línguas indígenas ainda é bastante A equipe do ISA organiza apostilas, tratando de
○
○
incipiente, restringindo-se ao âmbito escolar, e conteúdos novos, para serem estudadas nos cur-
○
a maioria das comunidades ainda não valoriza sos. Essas apostilas vão sendo reconstruídas pe-
○
○
essa prática, concentrando sua expectativa em los professores, com textos produzidos por eles,
○
○
que a escola ensine a falar e escrever a Língua tornando esses conteúdos mais acessíveis aos
○
Na avaliação dos professores indígenas, é guem imprimir em seus textos uma visão e um
○
○
importante criar materiais didáticos na língua modo próprio de se expressar sobre os temas.
○
○
vários conceitos pelos alunos (transmissão de do Livro de história – volume 1 (publicado pelo
○
○
doenças, alguma operação matemática, por MEC em 1997), que aborda reflexões sobre a im-
○
○
O projeto de formação também tem traba- histórias tradicionais de início do mundo, as his-
○
lhado no sentido de preparar os professores para tórias do contato de cada povo xinguano conta-
○
○
a participação na sociedade nacional como ci- das pelos professores e pelos não-índios
○
○
dadãos, para que possam gerir seu território, (Orlando Villas-Bôas, Karl von den Steinen) e a
○
○
defender seus interesses e direitos. Essa prepa- história da chegada dos europeus ao Brasil. O
○
ração tem envolvido o aprendizado de diversas segundo livro, Brasil e África – uma visão
○
○
habilidades necessárias para as relações de con- xinguana, traz informações sobre a escravidão
○
○
zado do uso da Língua Portuguesa – oral e escri- brasileiras, o intercâmbio entre culturas e a for-
○
do dinheiro nas situações de compra e venda, trar a sua diversidade cultural, com o objetivo
○
○
conhecimento e compreensão de leis etc.). de oferecer uma visão mais ampla do que a usu-
○
○
so de escolarização, muitos aprenderam Portu- [...] Os primeiros moradores do Brasil são os po-
○
○
guês e foram alfabetizados durante as etapas do vos indígenas de várias etnias e idiomas diferen-
○
○
curso. A expectativa da maioria dos participan- tes. Depois apareceram outros moradores de ou-
○
164
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
tro país, que foram os portugueses. Através dos
○
portugueses também vieram muitos estrangeiros bora com orientações sobre planejamento de
○
○
de vários países para se instalar no Brasil. Atual- aula, resolução das dificuldades do professor e
○
mente a população brasileira é formada por mui-
○
avaliação do aprendizado dos alunos, como tam-
○
tas nações, línguas, costumes, tradições, conhe- bém procura ouvir a avaliação da comunidade
○
○
cimento e religiões diferentes [...] (Matari Kaiabi) sobre a escola. Esses assessores elaboram rela-
○
○
tórios que fornecem subsídios importantes para
○
Em muitos desses livros, além dos textos dos a avaliação do desenvolvimento do professor. 165
○
○
professores indígenas, temos mantido textos da Como orientação pedagógica nos cursos de
○
○
equipe do ISA ou de outras pessoas (escritores, formação, solicitamos aos professores que regis-
○
especialistas, historiadores, viajantes, pesquisa-
○
trassem suas aulas de maneira detalhada e nar-
○
dores etc.) que possam trazer contribuição à rativa. Inicialmente, somente alguns deles fazi-
○
○
compreensão e à ampliação do tema tratado. am esses registros de forma sintética. Aos pou-
○
○
Outro exemplo de reelaboração de conceitos cos, esse trabalho foi-se solidificando e, atual-
○
foi observado no diário de classe do professor mente, todos os professores fazem registros de
○
○
Jeika Kalapalo. Em seu diário encontramos regis- suas aulas, trazendo os diários aos cursos de for-
○
○
trada uma reelaboração do conceito de lixo orgâ- mação. Esses diários estão servindo de base para
○
Há três tipos de lixo: lixo seco, lixo molhado e lixo sores e também estão fornecendo elementos
○
○
perigoso. O lixo seco é papel, plástico, vidro e lata. para que, a partir do próprio trabalho, os profes-
○
O lixo molhado é resto de comida. O lixo perigoso sores exerçam na prática a reflexão pedagógica.
○
○
é pilha velha, remédio vencido, agulha e seringa Por meio do acompanhamento pedagógico,
○
○
usada, espinha de peixe e veneno de formiga. tem sido possível observar as diferentes estraté-
○
○
Por meio desses exemplos, pode-se observar são realizadas sempre num ritmo bastante lento
○
○
neizadora. Cada professor adapta à sua realida- coletivas, mas se preocupam em dar atenção es-
○
Aturi Kaiabi, em seu diário de classe, relata to individual. Muitas vezes, o professor propõe
○
○
uma aula sobre a Constituição brasileira e os di- aos alunos que façam atividades na lousa, ou
○
○
reitos da criança. Usou nessa aula um texto reti- então o professor se senta com cada aluno para
○
da, ele desenvolveu com os alunos uma reflexão aluno espera tranqüilamente que os outros co-
○
○
sobre os direitos da criança indígena, não se res- legas terminem a atividade proposta, prestando
○
○
tringindo ao livro didático. Ele usou também o muita atenção ao desempenho de cada um dos
○
capítulo “Dos índios” da Constituição, texto es- colegas da classe. Isso acontece sem que haja
○
○
tudado durante uma das etapas do curso. nenhum problema de indisciplina ou desatenção
○
○
No processo de formação, há duas maneiras por parte dos alunos. Sob o ponto de vista dos
○
○
vimento do trabalho do professor nas escolas: o muito lenta, mas acreditamos que ela é própria
○
○
zado por educadores da equipe e a leitura dos processo que ocorre dentro da concepção de
○
○
diários de classe dos professores indígenas. tempo vivenciada no cotidiano das pessoas nas
○
avaliar o resultado da formação desenvolvida por das aulas, existe uma diferença marcada entre
○
nas escolas de suas respectivas aldeias. Durante conteúdos são trabalhados num ritmo mais rá-
○
○
pido em comparação com as aulas dos profes- sendo abordados na escola como temas para a
○
○
sores da região do Baixo Xingu. Em contra- leitura, a produção de textos e as dramatizações.
○
○
partida, os diários de classe demonstram que, na Os professores vêm desempenhando um pa-
○
○
região do Baixo, o número de dias letivos é mai- pel importante no contexto da educação para a
○
or que na região do Alto. Tal situação tem levado saúde. Durante as aulas vêm trabalhando com a
○
○
a equipe a refletir sobre o fato de que os conteú- compreensão das causas, sintomas e medidas de
○
○
dos dentro do currículo das escolas não podem prevenção de doenças como a cárie, as diarréi-
○
estar atrelados ao tempo e que o ano letivo nas as, as DST, a malária, a hipertensão e a obesida-
○
○
escolas do PIX vem sendo cumprido no período de. Os agentes de saúde chegaram a participar
○
○
de um ano e meio a dois anos, pois as escolas de algumas etapas do curso, num trabalho inte-
○
○
param de funcionar no período de festas e ativi- grado, e são convidados pelos professores a par-
○
dades na roça. ticipar das aulas sobre saúde nas escolas. Esse
○
○
O acompanhamento pedagógico e a leitura trabalho articula-se com o da formação de agen-
○
○
dos diários de classe são instrumentos privilegia- tes de saúde e auxiliares indígenas de enferma-
○
○
dos para compreender como o professor escolhe ○
gem, desenvolvido pela Unidade de Saúde e
os temas/conteúdos para trabalhar na escola, as Meio Ambiente da Universidade Federal de São
○
○
atividades que vai utilizar para ensinar esses te- Paulo (antiga EPM).
○
○
mas e a seqüência que pretende dar no desenvol- Outro tema que tem merecido destaque nos
○
○
vimento das aulas. Ambos servem de subsídios cursos é a relação entre recursos naturais, cultu-
○
volvimento de pesquisas pelos professores indí- a refletir sobre as mudanças na economia dos
○
○
genas em suas comunidades. Alguns professores povos no PIX e a influência do dinheiro nas rela-
○
○
dos povos Kuikuro, Matipu, Ikpeng, Kaiabi e Suyá ções sociais, econômicas e políticas. Esse traba-
○
○
começaram a gravar e transcrever histórias nar- lho tem caminhado no sentido de desenvolver
○
radas pelos velhos. Um professor Kaiabi realizou uma análise comparativa das diferenças entre a
○
○
uma pesquisa sobre tatuagem a partir da grava- economia tradicional das comunidades e a eco-
○
○
ção da história sobre as guerras dos Kaiabi contra nomia de mercado e de que maneira a interfe-
○
○
os Apiaká. Ele levantou nomes e desenhos de qua- rência da economia de mercado pode ocasionar
○
volvendo uma pesquisa sobre trançado, assim Mudanças na economia do meu povo
○
○
gos (calendário indígena) a partir das estrelas e turais de acordo com as necessidades da co-
○
○
das flores e os períodos de seca e chuva associa- família, pescávamos, caçávamos para o consu-
○
A maioria dos professores vem trabalhando enfeitar, plantávamos para consumo da família
○
○
com temas relacionados à saúde e ao meio am- e também fazíamos canoa para o seu uso.
○
tuguesa e Matemática, direcionarem o trabalho a gente dava, trocava, pagava ao pajé só com ar-
○
○
tesanato e comida.
da escola na preparação dos alunos para as situ-
○
166
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
O que é manejo
○
bre as formas tradicionais de manejo dos recur- Manejo é o jeito de usar os recursos naturais.
○
○
sos naturais e caminhado em conjunto com o iní- Usar pode ser tirar, cuidar, respeitar, queimar,
○
transformar, plantar, guardar, colher, caçar, pes-
○
cio de novas experiências de manejo, como as fle-
○
chas e a taquara usada nas peneiras Kaiabi, ou a car. O manejo de antigamente era melhor do que
○
○
o de agora.
apicultura, promovidas pela Equipe de Alternati-
○
O manejo dos recursos mudou aqui no Par-
○
vas Econômicas do ISA em parceria com a Atix.
○
que do Xingu. Com a demarcação, a região de 167
○
cada povo ficou menor. A entrada do dinheiro in-
○
O cuidado que o meu povo tem com a natureza
○
tensificou a exploração dos recursos naturais. Os
○
Na comunidade eu vejo a preocupação em rela-
○
recursos naturais, que antes eram feitos só para
ção à natureza, como não queimar em volta da aldeia,
○
uso, agora estão sendo vendidos.
○
para não queimar remédios que ficam perto do pátio.
○
Hoje em dia está havendo mudança de inte-
○
Outra preocupação que apareceu agora para
○
resses dos adultos e dos jovens. A cultura não-
o povo Kaiabi: cada um que tem semente da plan-
○
indígena está ficando mais forte do que a indíge-
○
ta da roça é para cuidar e distribuir por família para
○
na. Isso está contribuindo para que o conhecimen-
○
plantar. Assim, as sementes nunca acabarão.
to das formas de manejar os recursos naturais
○
Na época de roçado, eles perguntam uns aos
○
esteja sendo esquecido.
outros: “Quem vai precisar da palha para cobrir a ○
○
palha para ser renovada. Isso eu já vi dentro da cas (agropecuária, garimpo, hotéis de pesca, ci-
○
○
minha aldeia que eu estou morando. dades que jogam esgoto nos rios etc.), que colo-
○
território demarcado.
○
Cada ano o chefe pede para as pessoas não Ocupação do espaço geográfico
○
tocarem o fogo.
○
Também o sapezal que tem em volta da aldeia, ocupam espaço desde o início do primeiro mundo.
○
○
se queimar o sapezal, vai faltar para cobrir casa. Nós, índios, temos 100% de sabedoria de so-
○
O meu povo tem cuidado com os pés de plantar, materiais para fazer artesanato, frutos para
○
○
buritizeiros. Eles não cortam os pés de buritizeiros, comer e caças do mato também.
○
quando eles estão fazendo construção de casa. cursos naturais, sem poluir os rios, ou ar, ani-
○
○
que são muito importantes os buritizeiros para uti- A ocupação do espaço geográfico dos não-
○
○
lizar nos artesanatos, como cesto e abanador. Por índios é muito diferente. Eles já vêm com um pen-
○
○
isso, o meu povo Aweti tem cuidado com os pés samento planejado para destruir a natureza, para
○
○
construir as grandes cidades e com eles trazem
○
muitos tipos de equipamentos que produzem pe- esses professores o mesmo tema, mas de ma-
○
○
tróleo, agrotóxicos. Isso traz muitos problemas neira que o ritmo de aprendizado seja respei-
○
para os moradores do Brasil, que são a poluição
○
tado, com um planejamento de trabalho espe-
○
do ar, água, terra, a contaminação de pessoas, cífico para cada grupo. Assim, em virtude dos
○
○
animais, peixes. Esses equipamentos causam
diferentes ritmos de aprendizagem dos parti-
○
grandes assoreamentos nas bacias dos rios e
○
cipantes do curso, vinte professores foram for-
○
principalmente os incêndios nas matas.
mados até 2000, outros dezesseis concluirão o
○
Isso está cada vez mais trazendo doenças
○
curso em 2001 e outros 25 deverão ser avalia-
○
diferentes para o povo brasileiro.
○
dos ao longo dos próximos dois ou três anos.
○
Depoimento de Aturi Kaiabi
○
Dos vinte professores formados, 19 ingressa-
○
ram no Curso de Licenciatura promovido pela
○
Espera-se que a escola seja um espaço po-
○
Unemat, que deverá habilitá-los no prazo de
○
lítico de reflexão e de informação que instru-
○
cinco anos para lecionar de 5ª a 8ª séries e no
mentalize a população xinguana para a mobi-
○
○
Ensino Médio.
lização política que permita amenizar os im-
○
Histórico da regularização do
○
te previsto com seis anos de duração, consta- Lideranças e professores da maioria das al-
○
○
168
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
presente a maioria das lideranças do parque. A relação com os municípios tem sido di-
○
○
Esse encontro do grupo de professores e lide- fícil: os secretários municipais não participam
○
○
ranças propiciou a discussão sobre a vincu- das reuniões com professores e lideranças in-
○
○
lação das escolas ao estado ou aos municípi- dígenas no PIX; há diferenças salariais entre
○
os. Foi um processo difícil de discussão entre os municípios; algumas prefeituras continu-
○
○
a equipe do ISA, professores e lideranças. Para am enviando merenda escolar inadequada ao
○
○
a equipe de formação, foi um processo per- contexto do parque (sal, açúcar, biscoitos,
○
meado de inquietações, tais como: como ex- carnes enlatadas etc.); não há critérios defi- 169
○
○
plicar da melhor maneira o funcionamento dos nidos para a contratação de índios ou não-
○
○
órgãos governamentais em suas diversas ins- índios como professores, sendo contratados
○
○
tâncias? Como optar por um atendimento me- até missionários; interferências do ponto de
○
lhor, sabendo-se que inexiste ainda uma polí- vista pedagógico (não-aceitação dos diários
○
○
tica adequada para as escolas indígenas? Ao dos professores da forma como vêm sendo
○
○
mesmo tempo, se o processo de regularização elaborados, impressão de livros didáticos ina-
○
○
das escolas não se iniciasse, a demanda por dequados, por exemplo), envio insuficiente de
○
escolarização levaria a um número maior de materiais escolares; falta de clareza na apli-
○
○
crianças e jovens fora do PIX. cação de recursos governamentais no atendi-
○
○
(Gaúcha do Norte, Feliz Natal e Querência). A ensino público, maiores contradições são en-
○
○
intenção das lideranças e dos professores foi contradas no respeito à sua especificidade.
○
experimentar os dois tipos de vínculo. Para as Apesar do avanço da legislação que legitima
○
○
diretores entre os professores índios. Eles têm multiplicam, pois o modelo de atendimento
○
○
contas, além de terem redigido o pedido de au- articulação entre órgãos governamentais e
○
○
CEE/MT, um dos passos burocráticos necessá- na Educação Escolar Indígena e com lideran-
○
rios. Uma das conquistas dos professores in- ças e professores indígenas, concretizando a
○
○
dígenas do PIX foi o direito de adquirir meren- participação destes no processo de gestão
○
○
por intermédio da escola. Para isso, foi flexibi- discussão sobre a escola no PIX vem sendo a
○
○
contas desses recursos. A Secretaria de Estado e lideranças. É importante que haja continui-
○
○
de Educação de Mato Grosso tem-se mostra- dade desse fórum de discussões, porque tem
○
deranças e professores indígenas na gestão das ção de que seu trabalho está inserido num con-
○
○
escolas, apoiando reuniões para discutir o texto maior da política dos povos que vivem
○
○
uma educadora que se integrou à equipe do rio, e que o seu vínculo profissional deve ser
○
○
projeto e que participa dos cursos e do acom- com a sua comunidade, evitando que sua atu-
○
○
○
○
○
Fundamental para professores
○
○
○
indígenas de Minas Gerais
○
○
○
○
○
Zélia Maria Rezende*
○
Seduc/MG
○
○
○
○
O estado de Minas Gerais, constituído por • a aprendizagem como um processo contínuo e
○
global que avança em função das experiências
○
diversos grupos socioculturais, abriga uma plu-
○
ralidade cultural e lingüística, compondo um vivenciadas pelos sujeitos em seu contexto his-
○
○
rico mosaico de diferentes tradições, conheci- tórico e social, sendo o etnoconhecimento o
○
pressuposto metodológico que retrata essa con-
○
mentos, valores e línguas que pode ser sinteti-
○
○
cepção de aprendizagem;
zado na expressão “Minas são várias”. ○
de Escolas Indígenas em Minas Gerais, fruto de lidade e da capacidade de atuação sobre ela;
○
indígenas mineiros, esse programa tinha como transformação da realidade em suas aldeias.
○
○
sor e para as escolas de cada povo indígena. jeto UHITUP (“alegria”, na Língua Maxakali),
○
○
tal para Professores Indígenas, realizado de 1996 • construir propostas específicas para as es-
○
educativas:
○
○
○
○
○
* Licenciada em História pela UFMG. Coordenadora-Geral do Programa de Implantação de Escolas Indígenas em Minas Gerais. Consultora da
○
○
170
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
lares adequados às necessidades, aos inte- processo de formação são dimensões sempre
○
○
resses e aos projetos de futuro de cada buscadas durante o curso de formação e para isso
○
povo;
○
foi de fundamental importância o exercício do es-
○
• fortalecer os processos interativos nos calen- tudo autônomo, da pesquisa independente, do
○
○
dários naturais, sociais e rituais dos espaços registro individual e sistematizado, seja com a
○
○
em que as escolas estão situadas. presença e a coordenação dos formadores, seja
○
Tendo como base os
○
○
principais problemas vivi-
○
○
dos pelos povos indígenas
Estudo da cultura
○
Múltiplas
○
de Minas Gerais, três e da natureza TERRITÓRIO
linguagens
○
questões foram eleitas • Culturas indígenas
○
ÁGUA • Línguas indígenas
○
para nortear todo o traba- • Geografia • Língua Portuguesa
○
• História CULTURA
○
lho, em uma perspectiva • Literatura
○
• Ciências Químicas, • Artes
○
transdisciplinar, abran-
Físicas e Biológicas
○
gendo três áreas de co- • Educação Física
○
• Uso do território Pedagogia
○
nhecimento indicadas
indígena
○
○
indígena
pelo diagnóstico e nos de-
• Fundamentos
○
da Educação
○
genas, os formadores e os
○
• Iniciação à pesquisa
○
atividades significativas foram algumas das preenchidas tanto pelos cursistas como pelos
○
○
atitudes, valores, conceitos e habilidades são pela coordenação por etnia, por meio de reu-
○
construídos no exercício de resolver questões ou niões registradas em fitas de áudio e/ou vídeo;
○
○
○
○
dão uma idéia de como os cursistas estão vendo consistiu em escolher um tema para desenvol-
○
○
seu processo de formação, em sua etapa formal- ver com os alunos, planejar e executar o plane-
○
○
mente final: jado na sua sala de aula, registrando as diversas
○
etapas; recolher e anexar os trabalhos e as avalia-
○
○
Durante todo este curso aprendi muitas coi- ções dos alunos; avaliar, em grupo, a aplicação e
○
○
sas boas, uma delas foi trabalhar com meus alu- os resultados obtidos individualmente, prepa-
○
nos. Na minha escola o aluno aprende a viver em rando um único relatório crítico de todo o tra-
○
○
comunidade, aprende os ensinamentos do nosso
balho. O formato desse trabalho final para os
○
povo, aprende a resgatar a consciência do cida-
○
Maxakali foi diferente – gravação em vídeo so-
○
dão brasileiro Pataxó e aprende a analisar a his-
○
bre sua cultura.
○
tória de outros grupos sociais. [...] Hoje ainda te-
O Curso de Magistério de Ensino Fundamen-
○
nho algumas dificuldades, mas estou consciente
○
tal para Professores Indígenas foi concebido
○
do que é bom para mim e meu povo. E, além do
○
mais, já tenho uma consciência de qual cidadão como um ciclo único e estruturado em:
○
○
O curso foi acontecendo e os nossos conheci- global de formação em que, partindo de situa-
○
○
mentos foram aumentando, cada módulo que acon- ções-problema reais, os cursistas têm contato
○
“como” se ensina.
○
que a gente participava, com o apoio dos nossos A preparação de cada módulo envolve
○
○
aliados que nos incentivaram, com a tradicional roda toda a equipe docente que, partindo da ava-
○
todo dia a gente fazia, cada avanço e obstáculo do módulo anterior e das demandas propos-
○
○
que via, muita coisa aprendia. [...] Me sinto muito tas pelos cursistas, participa de um movimen-
○
172
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
○
Troca de experiências e convívio com outras
○
ram também atividades de ensino não-pre- culturas. Conheci muita gente diferente e elas,
○
○
sencial. Orientados pelos formadores nas etapas de certa forma, colaboraram para que eu ocu-
○
passe um espaço que nunca havia ocupado an-
○
intensivas, os cursistas desenvolveram ativida-
○
des de pesquisa, literatura e escrita, coleta e pre- tes, dentro e fora da comunidade
○
○
paração de material didático, entre outras. Valmores Conceição da Silva,
○
professor Pataxó em formação
○
O estágio supervisionado constituiu-se em
○
um instrumento de formação em serviço. Após 173
○
○
O trabalho específico por etnia no curso
o quarto módulo intensivo de ensino presencial,
○
de formação mostrou resultados positivos
○
a Secretaria de Estado da Educação criou esco-
○
imediatos no rendimento acadêmico, na
○
las indígenas e designou os cursistas como do-
○
racionalidade de organização dos cursos, na
centes dessas escolas.
○
afirmação étnica e na valorização pessoal.
○
O estágio teve como foco central a reflexão
○
O Conselho Estadual de Educação de Mi-
○
da prática pedagógica incidindo sobre todos os
○
nas Gerais, no Parecer nº 1.109/98, de apro-
○
aspectos da vida cotidiana da escola e possibili-
○
vação do Curso de Magistério de Ensino
tando a construção gradativa de uma pedagogia
○
Fundamental para Professores Indígenas,
○
indígena, com características próprias e adequa-
○
○
considera que “essa escola torna-se real-
das à Educação Escolar de cada povo.
○
indígenas”.
das, interesses e objetivos diferenciados fo-
○
t ro g r u p o s é t n i c o s d e m a n e i ra m a i s
○
Maxakali, Kaxinawá, Kaingang, Bakairi, Guarani, sariamente propõe mudanças, desafios, mais
○
muito grande conhecer todo esse povão. Aprendi ser um bom sinal. Enfim, as questões não apa-
○
○
muitas coisas com as trocas de experiências. recem, a menos que se comece a caminhar.
○
○
○
○
○
iniciais do Ensino Fundamental para
○
○
○
o contexto indígena Xokleng e
○
○
○
Kaingang: igualando oportunidades,
○
○
○
fortalecendo identidades,
○
○
○
consolidando o direito à diferença
○
○
○
○
Marlene de Oliveira
○
○
Seduc/SC
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
○
O Curso de Formação e Habilitação de Professo- comunidades de origem. Tem a duração de 2.590 ho-
○
○
res de Séries Iniciais do Ensino Fundamental para o ras/aula, sendo que 20% da carga horária de cada disci-
○
○
Contexto Indígena Xokleng e Kaingang vem sendo plina é realizada na modalidade de ensino a distância.
○
desenvolvido pela SED/SC como experiência peda- O trabalho é desenvolvido com base nos pressu-
○
○
gógica em regime especial desde 1999, em cumpri- postos que orientam o Referencial Curricular Nacional
○
○
mento ao que dispõe a LDB nº 9.394/96, no seu artigo para as Escolas Indígenas, no que se refere à elabora-
○
de Educação, no que diz respeito à Educação Escolar que atenda aos anseios e aos interesses da comunida-
○
○
Indígena, bem como atendendo às determinações do de indígena, bem como à formação de educadores ca-
○
Fundo de Desenvolvimento do Ensino Fundamental pazes de assumir essas tarefas e de técnicos capacita-
○
○
e Valorização do Magistério que extingue, no prazo de dos a assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está pau-
○
○
cinco anos, a categoria de professor leigo. tado no documento “Educação Escolar Indígena”, que
○
Foi aprovado pelo Parecer nº 248/98 do Conselho integra a Proposta Curricular de Santa Catarina – Edu-
○
○
Estadual de Educação/SC e destina-se a professores cação Infantil, Ensino Fundamental e Médio: Temas
○
indígenas leigos que já atuam nas escolas indígenas, multidisciplinares, elaborado com a colaboração de
○
○
e as diretrizes do MEC, que apontam para a ela- sociedade democrática envolve, também, o re-
○
○
cação e do Desporto do Estado de Santa tradições das diferentes culturas, faz-se neces-
○
○
ção Indígena (NEI), tem buscado efetuar uma ção a essas comunidades, fortalecendo o pro-
○
ma educacional da sociedade envolvente, va- la esses povos estão excluídos do processo his-
○
○
lorizando as culturas e as tradições das comu- tórico global e atual da sociedade na qual se
○
○
nidades indígenas, em que a maioria de seus cussões promovidas pelo NEI com as comuni-
○
○
membros não possui sequer a escolarização dades, desde 1994, que vimos propondo pro-
○
174
PAINEL 7
Experiências de formação de professores indígenas
gramas específicos visando à formação de re- como à formação de educadores capazes de as-
○
○
cursos humanos para o exercício da docência sumir essas tarefas e de técnicos capacitados a
○
○
entre os próprios indígenas, considerando suas assessorá-las e viabilizá-las. Além disso, está
○
○
tradições socioculturais e estimulando a emer- pautado no documento “Educação Escolar In-
○
gência de métodos de ensino que garantam a dígena”, que integra a Proposta Curricular de
○
○
produção de uma literatura nas línguas nativas. Santa Catarina – Educação Infantil, Ensino Fun-
○
○
O estado de Santa Catarina abriga três damental e Médio: Temas Multidisciplinares,
○
etnias – Kaingang, Xokleng e Guarani – que que considera fundamental a formação de re- 175
○
○
somam 8 mil índios. cursos humanos para o exercício da docência
○
○
Os Guarani não possuem áreas demarcadas, entre os profissionais indígenas, considerando
○
○
o que faz com que ocupem terras de outros gru- suas tradições e estimulando a emergência de
○
pos indígenas. Em virtude da sua grande mobi- métodos de ensino que garantam a produção
○
○
lidade social, não é possível proceder a um de uma literatura na língua nativa.
○
○
mapeamento preciso e definitivo desse grupo. Entre os vários aspectos apontados pela Pro-
○
○
Entretanto, em 1990, registra-se sua presença posta Curricular de Santa Catarina, destaca-se
○
em pelo menos 22 municípios, áreas de ocupa- a discussão sobre o caráter diferenciado da Edu-
○
○
ção tradicional. cação Escolar Indígena, passando pela questão
○
○
Os Kaingang, um dos maiores grupos que da cultura como elemento determinante nas
○
○
sobrevivem no Brasil, somam 4.400 indivíduos, relações educacionais estabelecidas entre a es-
○
có (Municípios de Ipuaçu e Entre Rios), Toldo Propõe que o currículo, entendido como
○
(Seara), Ibirama e Palmas (Abelardo Luz). a forma como são distribuídos os períodos leti-
○
○
Os Xokleng somam aproximadamente 1.800 vos, o material didático, entre outros aspectos
○
○
índios e constituem o único grupo Xokleng do −, seja discutido e elaborado em parceria com
○
○
Brasil. Ocupam a área indígena de Ibirama e a comunidade indígena. Para tanto, trabalha-
○
a essas comunidades, a Secretaria de Estado da nas escolas indígenas, a partir da prática desen-
○
○
la que oferece toda a educação básica a apro- fessores de Séries Iniciais do Ensino Funda-
○
○
ximadamente 505 alunos, totalizando 1.227 mental para o Contexto Indígena Xokleng e
○
alunos. As ações voltadas para essas escolas são Kaingang vem sendo desenvolvido pela SED/
○
○
Indígena (NEI), diretamente vinculado à Dire- especial desde 1999, em cumprimento ao que
○
○
toria de Ensino Fundamental, constituído em dispõe a LDB 9.394/96, no seu artigo 79, e con-
○
Educação, escolas indígenas, universidades e Escolar Indígena, bem como atendendo às de-
○
○
O trabalho é realizado com base nos pres- tério que extingue, no prazo de cinco anos, a
○
○
supostos que orientam o Referencial Curricular categoria de professor leigo. Foi aprovado pelo
○
○
programa de educação que atenda aos anseios genas leigos que já atuam nas escolas indíge-
○
○
e aos interesses da comunidade indígena, bem nas, além de outros índios interessados, indi-
○
cados por suas comunidades de origem. dagógicos e oficinas de produção literária
○
○
Tem a duração de 2.590 horas/aula, e 20% Kaingang e Xokleng.
○
○
da carga horária de cada disciplina é realizada Os docentes do curso integram o NEI como
○
○
na modalidade de ensino a distância. Entre docentes e consultores, contam com reconhe-
○
uma etapa presencial e outra, os alunos desen- cida experiência na área de Educação Indígena
○
○
volvem trabalhos, tais como: estudos orienta- e constituem uma equipe interdisciplinar para
○
○
dos; coleta de dados nas suas comunidades, a elaboração de proposta teórico-metodológica
○
buscando responder ou elucidar questões para cada etapa de ensino, com o acompanha-
○
○
surgidas no período presencial e estágios que mento de dois auxiliares de ensino bilíngüe,
○
○
contemplem observação, participação e regên- responsáveis por atividades extraclasse com
○
○
cia de sala de aula com o respectivo registro Língua Kaingang e Xokleng.
○
dessas práticas. A avaliação perpassa todas as etapas pre-
○
○
Ocorre em etapas concentradas, durante o senciais e não presenciais e é realizada pelo
○
○
recesso escolar – 26 dias em janeiro e 15 dias conjunto dos participantes (cursistas, docen-
○
○
em julho –, no Colégio Estadual Agrícola Cae- ○
tes, coordenação) e pelas instituições envolvi-
tano Costa, e em etapas intermediárias nos das, tendo a função de redimensionar o pro-
○
○
meses de maio e setembro – seis dias, perfazen- cesso educativo, detectando dificuldades, en-
○
○
como professores leigos, não alterando, assim, vidas no curso propõem-se a capacitar o pro-
○
○
para que não fiquem tempo demasiado sem o proposta curricular das séries iniciais especí-
○
○
Todas as disciplinas de base comum, den- seja, uma proposta com organização curri-
○
○
tro do possível, procuram se adequar à ótica cular, conteúdos, metodologia, calendário es-
○
das culturas Kaingang e Xokleng, estabelecen- colar, avaliação e material didático que expres-
○
○
gue-se e busque conhecer mais sobre a sua O curso integra o Programa de Formação
○
Além dessas disciplinas de base comum, o Contexto Indígena, em que se inserem: 96 ho-
○
○
ral, Língua Kaingang/Xokleng, História e Orga- que atuam na Educação Indígena e o Curso Su-
○
longo do curso, computados nas horas de en- am nesse contexto. Inclui no quadro curricular
○
○
sino a distância, realizados em Língua Portu- as disciplinas Língua Indígena Materna e Cul-
○
○
guesa e Língua Kaingang ou Xokleng, com a tura Indígena (Kaingang, Xokleng e Guarani, de
○
minários para apresentação e problematização Metodologia de Ensino. Esse curso foi autori-
○
○
Os cursistas também participam de proje- 98, e inclui a capacitação das equipes vincula-
○
tos especiais de pesquisa e fomento cultural das aos Centros de Educação de Adultos
○
○
em suas comunidades, além de oficinas para (Ceas), assim como a produção de material
○
○
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Eunice Dias de Paula
177
Professores indígenas:
○
○
○
processos formativos e algumas
○
○
○
indagações
○
○
○
○
Eunice Dias de Paula*
○
○
Cimi/MT
○
○
○
○
○
As reivindicações por uma escola indígena formativos vivenciados por esse professor nos
○
○
com um ensino que atenda às expectativas dos anos que antecederam a sua prática pedagógi-
○
○
diferentes povos têm na figura do professor in- ca em sala de aula. Há uma concepção de for-
○
○
dígena um dos seus eixos basilares. De fato, ao mação fortemente marcada pela depreciação
pensarmos na longa trajetória desses quinhen- ○
○
○ em relação ao professor que não passou por
tos anos, em que as políticas públicas destina- processos de escolarização seriados, estabele-
○
○
das a essas populações, via de regra, foram cidos por nossa sociedade, em escolas fora das
○
○
pautadas por ações que visavam à assimilação aldeias, e que, portanto, estaria menos apto a
○
e ao apagamento da diversidade étnica presen- cursar um segundo grau com habilitação para
○
○
te neste país, constatamos que os diversos o Magistério em escolas indígenas. Como o que
○
○
agentes educacionais utilizados pelos coloni- se privilegia é a formação dada nos cursos or-
○
veis ao intento maior do projeto colonial. com escolaridade insuficiente. Queremos res-
○
○
Quando uma nova história começou a ser saltar o contra-senso embutido nessa concep-
○
traçada, há cerca de trinta anos, com os povos ção, pois se o que se espera é que ele seja um
○
○
indígenas exigindo escolas que estivessem a bom professor indígena, o processo formativo
○
○
serviço de seus projetos de vida, nada mais proporcionado pelas comunidades é que deve-
○
○
coerente que pessoas das diversas etnias as- ria ser considerado relevante.
○
nio lingüístico e cultural próprio a um mem- rio acarreta responsabilidades variadas, que
○
○
bro interno ao grupo, sem dúvida, superior ao têm que ser contempladas dentro do que as
○
○
boas intenções e preparo técnico, não pode ser tativas do trabalho do professor, responsabili-
○
○
comparado a quem nasceu e foi criado em ou- dades bastante diferentes das que ele pode en-
○
○
tro chão cultural, passando por experiências contrar entre os especialistas de Educação In-
○
○
formativas únicas, como os rituais de inicia- dígena, como “entender a vida dos brancos”, por
○
vência, os conhecimentos mitológicos etc. escola é uma instituição que está sendo apro-
○
○
Entretanto, de modo bastante paradoxal, priada pelos povos indígenas, mas que, nesse
○
○
so e na prática dos detentores do poder, encai- e espaços muito diferentes dos sistemas edu-
○
○
xada nos programas de Educação Escolar Indí- cativos tradicionais. A par dessas considerações,
○
○
gena que se multiplicaram no país, o mesmo ousamos afirmar que a formação dos profissio-
○
não se pode dizer a respeito dos processos nais de Educação Escolar Indígena não pode ser
○
○
○
○
○
○
* Pedagoga, mestre em Estudos Lingüísticos pela UFG, assessora pedagógica da Escola Tapirapé, em Mato Grosso.
○
178
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
so formativo vivenciado pelos professores em Tapirapé, assessorados pela Profª Dra. Yonne
○
○
suas comunidades, sob risco de continuarmos Leite, do Museu Nacional, UFRJ. No primeiro
○
○
a agir do mesmo modo que os primeiros colo- desses cursos, realizado em 1997, os professo-
○
nizadores. Ou a escola se insere nos sistemas res desejavam tomar decisões ortográficas, mas
○
○
educacionais indígenas, como algo necessário se sentiam inseguros a respeito de determina-
○
○
na realidade de contato com nossa sociedade, das palavras. Na avaliação, solicitaram que os
○
ou ela não será uma escola indígena, como aler- próximos cursos fossem realizados na aldeia, a 179
○
○
ta Melià.1 fim de facilitar a pesquisa com os mais velhos.
○
○
Queremos aqui destacar três experiências Esse fato é bastante significativo, pois demons-
○
○
formativas em que vimos atuando como asses- tra a articulação que pode existir entre novos
○
soria e que têm buscado superar essa contradi- conhecimentos, no caso, a aquisição de um ins-
○
○
ção, por meio de vários caminhos. Entre os trumental de análise lingüística, e o profundo
○
○
Tapirapé, povo com o qual convivemos há um conhecimento da Língua Tapirapé, exercido
○
○
longo tempo, a escolha inicial de pessoas con- pelas pessoas idosas.
○
sideradas aptas a serem professores aconteceu Os professores Kayabi, Apiaká e Mundu-
○
○
após longas discussões com a comunidade e a ruku, da região do rio dos Peixes, município de
○
○
decisão se encaixou num padrão cultural típi- Juara, em Mato Grosso, participaram do Proje-
○
○
co: os primeiros professores pertenciam a fa- to Tucum – Formação para Professores Indíge-
○
mílias tradicionais das quais podiam ser esco- nas – desenvolvido pelo estado do Mato Gros-
○
○
lhidas as lideranças. Após alguns anos, quando so. Entretanto, queriam elaborar a proposta
○
○
necessitaram de novos professores, o critério de curricular de suas escolas, uma vez que preten-
○
escolha utilizado foi o fato de dois rapazes te- dem oficializá-las como escolas indígenas. Para
○
○
rem ficado órfãos de pai. Queremos ressaltar, isso, solicitaram assessoria ao Conselho Indige-
○
○
nesses dois casos, o fato de que os critérios se- nista Missionário (Cimi), Regional MT. O traba-
○
○
letivos discutidos pela comunidade podem ser lho está sendo desenvolvido há dois anos em
○
completamente diferentes do que a simples encontros periódicos, dos quais participam não
○
○
passagem por bancos escolares durante alguns só os professores, mas toda a comunidade.2 São
○
○
anos. A preparação deles foi sendo feita por momentos muito ricos, pois todas as pessoas
○
○
permeado por um processo de reflexão e avali- como querem a escola para seus filhos, definin-
○
○
ação em reuniões com a comunidade. A habili- do todo o planejamento escolar, desde o calen-
○
○
tação para o Magistério aconteceu pela partici- dário até os conteúdos considerados importan-
○
○
pação no Projeto Inajá (I e II), organizado pelas tes no processo de aprendizagem concebido
○
Mato Grosso. Esse curso destinava-se também Os professores Guarani e Kaiowá, organiza-
○
○
a professores leigos das zonas rurais dos muni- dos no Movimento dos Professores Indígenas
○
○
cípios envolvidos, portanto não tinha a carac- Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul desde
○
terística de ser voltado exclusivamente a pro- a década de 1980, vinham lutando há muito
○
○
fessores indígenas. Um trabalho de “tradução” tempo para ter um curso de Magistério especí-
○
○
do curso fez-se necessário e, assim, o elo com a fico. O Projeto Ára Verá (“tempo iluminado”),
○
○
vida da aldeia foi se mantendo. Como havia assumido pela Secretaria de Educação do Esta-
○
uma lacuna no tocante à formação lingüística, do em 1999, em parceria com vários municí-
○
○
○
○
○
○
1
Bartomeu Melià, em palestra proferida no I Congresso Latino-Americano de Educação Escolar Indígena, promovido pela UFMS, em Doura-
○
○
2
Esse trabalho é desenvolvido em conjunto com Maria Regina Rodrigues e Maristela Sousa Torres, ambas da equipe de coordenação do Cimi,
○
Regional MT.
○
pios, passou por uma longa gestação, envolven- a presença de D. Júlia, rezadora de Amambaí,
○
○
do professores indígenas, lideranças e aliados foi incrível, pois, além de ela trabalhar na prá-
○
○
dos Guarani e dos Kaiowá e, com certeza, deve- tica os Fundamentos da Educação Tradicional,
○
○
se a esse processo amadurecido a possibilida- realizando diferentes tipos de danças e de ce-
○
de de avanços significativos em relação ao que rimoniais, alternava momentos de exposição
○
○
conhecemos em termos de cursos para profes- teórica para os cursistas, usando cartazes com
○
○
sores indígenas. mitos desenhados. Em todas as etapas, tem
○
Segundo seus autores, o Projeto Ára Verá acontecido a presença desses caciques
○
○
“constitui-se num processo integrado às práti- rezadores, que realizam todas as manhãs um
○
○
cas vivenciadas pelos Guarani/Kaiowá, as quais ritual conhecido como jehovasa, uma bênção
○
○
se baseiam em três grandes fontes – teko (cul- matinal para que tudo corra bem durante o dia.
○
tura), tekoha (território) e ñe’e (língua) – que são Além disso, são consultados sobre assuntos
○
○
também os eixos fundamentais pelos quais vão que os professores, jovens em sua maioria, não
○
○
se articular os conteúdos e a metodologia do dominam. Durante a 5ª Etapa, quando discor-
○
curso”. 3 Essa proposta não ficou só no papel, ○
○
ria sobre as relações entre grafismo e escrita,
concretizando-se de várias formas: os alunos se exemplificando com motivos trançados em ar-
○
○
sentem absolutamente à vontade para se ex- cos e cestos, o Sr. Jofre, cacique rezador de
○
○
pressar em sua própria língua, durante as eta- Panambi, explicou em Guarani os nomes dos
○
○
pas presenciais do curso; às vezes, temos a sen- motivos decorativos. Foi uma surpresa para
○
sação de estar participando de um grande muitos, que não sabiam que havia denomina-
○
○
fórum de debates sobre a situação da língua, os ções diferentes para identificar os desenhos
○
○
valores culturais, ou sobre os sistemas educa- geométricos. Ainda nessa etapa, houve o lan-
○
cionais próprios e o que representa a presença çamento do livro de contos Ñe’ë Poty Kuemi
○
○
da escola; a “aula”, não raras vezes, transforma- (Palavras floridas tradicionais), produzido pe-
○
○
cabe aprender com verdadeiros mestres do nidades. O livro foi batizado pelos caciques
○
A estreita ligação do projeto com a vida cerimônia comovente chamada ñe’ë mongarai.
○
○
Guarani está assegurada também pela possibi- A dimensão desse ato excede qualquer plane-
○
○
lidade da participação constante de caciques jamento curricular que possa ser feito pelos
○
rezadores durante as etapas presenciais do cur- técnicos das Secretarias de Educação, pois sig-
○
○
so, conforme afirmado num dos princípios me- nifica, de fato, algo produzido pela Educação
○
○
criar condições favoráveis para desenvolver o Acreditamos que o breve relato dessas três
○
Durante a etapa de Fundamentos da Edu- sores o direito aos processos próprios de apren-
○
○
3
Projeto Ára Verá – Curso Normal em Nível Médio – Formação de Professores Guarani/Kaiowá, Campo Grande, MS, 1999, p. 13.
○
180
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
Projeto Tucum
○
○
○
Relato de uma experiência de formação
○
○
○
de professores indígenas em Magistério
○
○
○
○
○
Terezinha Furtado de Mendonça*
○
181
○
Seduc/MT
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
rias de Educação dos estados e municípios a
○
O presente artigo retrata a experiência de for-
○
incumbência de sua aplicação, em consonân-
mação de professores indígenas para o Magisté-
○
cia com a Secretaria Nacional de Educação do
○
rio – Projeto Tucum. Esse projeto foi desenvolvi-
○
MEC. Tal mediação foi resultado do Decreto nº
○
do de 1996 a 2000, em quatro pólos regionais do
○
estado de Mato Grosso: Tangará da Serra, Água 26/91, de 4 de fevereiro de 1991.
○
○
Boa, Rondonópolis e Paranatinga, para 11 etnias Também no mesmo ano, foram publicadas
○
Xavante, Bakairi e Bororo. Dos duzentos cursistas rio da Educação o Comitê de Educação Escolar
○
○
que iniciaram o Projeto Tucum, 176 se formaram Indígena, cuja finalidade é subsidiar as ações
○
em nível médio e, destes, 70% ingressaram nos educacionais indígenas, servindo de referência
○
○
cursos do terceiro grau indígena na Unemat. aos planos operacionais dos estados e municí-
○
○
rou as demandas apresentadas nas questões in- Nacional de Educação Escolar Indígena, nor-
○
○
dígenas, quando colocadas nas discussões; o teando as ações a serem implementadas nas
○
○
ral de 1988, foram assegurados os direitos in- dual de Educação (Seduc), ainda que sem com-
○
dios). Passou-se a reconhecer o direito à dife- indígenas, atendendo a algumas de suas neces-
○
○
do-se a partir daí um novo paradigma rela- Em setembro de 1987, em função das difi-
○
legislar sobre as populações indígenas, com entidades que vinham atuando nessa questão,
○
○
uma nova concepção que não aquela de incor- buscou-se uma articulação dos diferentes tra-
○
○
gena sai da esfera da Fundação Nacional do caráter oficial, o NEI/MT caracterizou-se como
○
○
Índio (Funai) e passa a ser de atribuição do Mi- um fórum de discussão de ações entre as di-
○
○
* Assessora pedagógica na Equipe de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Estado de Educação, MT. Atuou na Coordenação-Geral do
○
Projeto Tucum.
○
A partir de 1989, a Secretaria de Estado de nais, bem como para agregar forças e habilitar
○
○
Educação cria a Divisão de Educação Indíge- professores, levando em conta a diversidade
○
○
na e Ambiental, extinta na reestruturação da étnica e suas especificidades culturais, respei-
○
○
Secretaria, no ano de 1992. Essa divisão, em tando, dessa forma, o projeto educacional das
○
sua curta história, procurou desenvolver sua comunidades e sua necessidade de diferencia-
○
○
ação em consonância com o NEI, buscando mento.
○
○
responder às reivindicações das sociedades in- Em 1995, com o objetivo de reunir todas as
○
dígenas, encaminhadas por intermédio das li- agências envolvidas com a Educação Escolar
○
○
deranças de suas comunidades e por entida- Indígena, realizaram-se quatro seminários re-
○
○
des de apoio ao índio. Esse trabalho foi desar- gionais, a fim de pensar uma proposta comum
○
○
ticulado e o grupo esfacelado, sob o argumen- de formação de professores indígenas.
○
to da “modernização do Estado” e da gestão da Criou-se o Projeto Tucum – Programa de
○
○
qualidade total. Formação de Professores Índios para o Magis-
○
○
Com o atual governo, a questão indígena é tério. Tucum é o nome atribuído ao projeto por
○
○
retomada, discutida e analisada sob um novo ○
se tratar de uma palmeira resistente, cujo fru-
enfoque, constatando-se a inexistência de uma to faz parte da matéria-prima na confecção dos
○
○
política indigenista estadual. O tema passa a adornos, em todas as etnias do estado, e é na-
○
○
ser incluído no Plano de Meta. Nesse docu- tiva tanto no cerrado quanto na mata.
○
○
mento, algumas propostas são delineadas, ser- A escolha do nome não foi por acaso. Há
○
vindo como diretrizes para a implantação de uma associação do fazer criativo e cuidadoso
○
○
Estado de Mato Grosso (CAIEMT), órgão liga- educação como técnica, como prática social
○
○
do à Casa Civil, é reativada e orientada pelo e cultural. É uma relação metafórica entre cul-
○
○
Programa de Governo, passando a articular tura e educação como técnica que deve ins-
○
○
indigenista. contato.
○
○
O estado de Mato Grosso congrega 38 soci- Esse nome envolve sentidos, significações
○
○
edades indígenas, perfazendo uma população que se aderem ao projeto, vir tualizando
○
○
41 municípios do estado. No que se refere à re- so de construção do Projeto Tucum, esses sen-
○
○
alidade escolar, essa população dispõe de 150 tidos foram um desafio contínuo.
○
○
escolas, entre estaduais e municipais, atenden- Colocando-se como resposta, como enca-
○
○
Com o objetivo de assessorar as escolas in- pecíficos das populações indígenas no campo
○
○
dígenas, prestar atendimento técnico aos do- educacional, o projeto foi pensado como or-
○
○
com a Educação Escolar Indígena, a fim de de- regime de co-responsabilidade dos diversos
○
liberar sobre a política indigenista estadual na atores em torno do processo de formação di-
○
○
cação Escolar Indígena em Mato Grosso eram instâncias de gestão e execução da pro-
○
○
(Secchi, 1995), Seduc e CAIEMT avaliam a ur- posta pedagógica funcionalmente articuladas,
○
temple uma continuidade das ações educacio- entre elas foi construído pela consciência da
○
182
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
ação conjunta. Procurou-se superar o nexo de do trabalho, à função socializadora e cultural,
○
○
ligação tradicional, construído segundo uma à afirmação das identidades e dos valores e ao
○
○
concepção funcionalista de organização, por trabalho docente do professor cursista. Assim,
○
meio de funções hierarquizadas. o professor cursista e seu desempenho
○
○
O projeto teve como objetivos a capaci- cognitivo não foram os únicos aspectos a se-
○
○
tação e a habilitação de professores índios, o rem avaliados.
○
acesso e o desenvolvimento escolar por meio O projeto buscou romper com a lógica da 183
○
○
do diálogo intercultural, condições de desen- avaliação somativa, pela qual o aluno precisa
○
○
volvimento do processo educativo fundado nas ter número “x” de pontos para ser aprovado.
○
○
culturas e formas de pensamento indígena, Dessa forma, não se pensou na prova como
○
condições de produção do conhecimento de único instrumento de avaliação. Outros meios
○
○
processos interativos escola/comunidade e precisaram ser construídos, sempre a partir de
○
○
fortalecimento desse processo, valorização do critérios não mais ligados aos números de pon-
○
○
profissional de educação das escolas indíge- tos alcançados em si, mas aos objetivos defi-
○
nas, elaboração de proposta curricular diferen- nidos (idem, ibidem – ver Avaliação).
○
○
ciada, bilíngüe e intercultural para as escolas O curso foi desenvolvido de forma parce-
○
○
indígenas em que os cursistas atuam. lada, para atender à realidade das comunida-
○
○
A proposta pedagógica do projeto visou des, que não permitem ao professor índio au-
○
romper com a concepção dicotômica entre sentar-se de seu lugar de trabalho para fre-
○
○
educação e prática social, constituindo-se em qüentar um curso regular sem, com isso, cau-
○
○
processo de conhecimento integrado às práti- sar-lhe sério prejuízo. Assim, o curso foi
○
vam baseados em seu território, sua língua e férias e recessos escolares, com duração de
○
35).
○
área disciplinar.
○
excluir ou sentenciar, aprovar ou reprovar. Por- sença do monitor que observou, discutiu e
○
○
tanto, a avaliação incidiu sobre aspectos glo- analisou com os cursistas a sua atuação em
○
○
○
regionais, tendo por clientela 200 professores da Educação, o curso de formação de profes-
○
○
indígenas, atingindo indiretamente um públi- sores indígenas para o Magistério assume, ne-
○
○
co aproximado de 4.500 alunos. O primeiro cessariamente, uma qualidade constituinte de
○
pólo, situado no Município de Tangará da Ser- política pública em nível de estado e de muni-
○
○
ra, abrangia um total de seis municípios, en- cípio. O grande desafio a enfrentar, nesse ter-
○
○
volvendo oito etnias. O segundo, situado no reno, tem sido o do envolvimento das prefei-
○
Município de Água Boa, abrangeu quatro mu- turas de municípios com populações indíge-
○
○
nicípios e uma etnia. O terceiro pólo, no Mu- nas. A sensibilização das prefeituras, no senti-
○
○
nicípio de General Carneiro, abrangeu quatro do de aprender a Educação Indígena como
○
○
municípios e uma etnia. Por fim, o quarto pólo dever, conseqüentemente como compromisso
○
situou-se no Município de Paranatinga, abran- público, tem exigido disposição constante.
○
○
gendo três municípios e duas etnias. A invisibilidade dos índios como cidadãos
○
○
As etapas tiveram início em 1996, sendo mediatiza interesses e motivações de profes-
○
○
esse trabalho coordenado pelo estado, por ○
sores, repercutindo, por exemplo, na questão
meio da Seduc e da CAIEMT, com a consultoria da monitoria. O monitor deveria desempenhar
○
○
ticipação da Funai, das prefeituras municipais do projeto, com permissão de observar, acom-
○
○
Missionário (Cimi), Operação Amazônia Nati- índio, como cursista e como profissional da
○
○
tica (SIL), Congregação das Missionárias cendo dados e indicações aos docentes acerca
○
Nacional ( JMN), Congregação das Ir mãs específicas, enfim, colaborando com ajustes de
○
○
das às seguintes instituições: Universidade Fe- ma. Enfrentou-se, ao longo do processo, uma
○
○
deral de Mato Grosso (UFMT), Universidade rotatividade reiterada de monitores, com con-
○
○
Federal de Santa Catarina (UFSC). avaliação proposta. Essa flutuação teve dupla
○
○
Banco Mundial, por meio do Programa de De- da situação funcional dos monitores nas pre-
○
○
com apoio do Programa das Nações Unidas de deslocamento para as aldeias e, de outro, a
○
○
Educação e da Coordenadoria de Assuntos In- to. Essas dificuldades configuravam uma ten-
○
dígenas, em parceria com outros agentes e com dência de acumulação de papéis, até que se
○
○
safios imensos. Sendo a primeira ação sistemá- de docente na sede do município, ou em al-
○
○
184
PAINEL 8
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
requisito fundamental, quer fosse sob o posicionamentos em patamares de atualidade
○
○
enfoque das implicações pedagógicas, quer das discussões e decisões. Permitiram ver, no
○
○
sob o enfoque da dispersão geográfica das áre- âmbito dialógico dessas organizações entre si
○
as indígenas e das aldeias no interior dessas e com as outras, que a flutuação de represen-
○
○
áreas, necessitando de deslocamentos perió- tantes dificultou o avanço das discussões, li-
○
○
dicos ao longo de cada mês. mitando a ampliação e o aprofundamento da
○
Cada município deveria oferecer seu qua- interlocução. Permitiram ver que a experiên- 185
○
○
dro de monitores para atuar no projeto. Hou- cia do trabalho coletivo envolveu uma fase do
○
○
ve casos em que prefeituras “importavam” processo, um patamar específico de relação
○
○
monitores, por não disporem de profissionais pedagógica no interior do Projeto Tucum.
○
no município. Essa solução foi inadequada Esses desafios instigaram a capacidade de
○
○
para preencher a vacância de monitoria. Era resolução de dificuldades entre todos os envol-
○
○
imprescindível que o monitor fosse um profis- vidos, permitindo rever passos, lidar com con-
○
○
sional local, com conhecimento da realidade flitos, perceber erros, reconhecer fragilidades
○
e experiência no Magistério. Alguns pólos e contradições.
○
○
vivenciaram essa dificuldade de forma dramá- A avaliação de um projeto como o que ora
○
○
tica, havendo monitor que atendia a cursistas estamos apresentando supõe o tratamento de
○
○
de três povos indígenas diferentes. diferentes enfoques que dão forma a essa com-
○
jeto em parceria com diversas organizações Para efeitos do presente trabalho, destaca-
○
○
não-governamentais de apoio aos índios. Es- rei alguns desses aspectos que tiveram maior
○
das diferenciadas, exigindo, a cada fase do pro- da avaliação pelos diversos segmentos que par-
○
○
trução do projeto, da sua proposta pedagógi- quatro núcleos temáticos, a fim de enfatizar as
○
○
Essa participação mais direta no processo gicos, operacionais, políticos e financeiros. Ve-
○
pedagógico deu-se por intermédio de asses- jamos um pouco de cada um desses núcleos.
○
○
monitoria, ainda que por motivos plenamen- mentos expressou enfaticamente a impor-
○
rência de rotatividade, embora com implica- estudos centrada na pesquisa e nos conhe-
○
○
ções menos dramáticas, uma vez que a ques- cimentos culturais de cada povo. Esses dois
○
educativa.
○
sensíveis, como a questão lingüística. Essas blemas e que, portanto, exigiram maior es-
○
○
idas e vindas permitiram ver diferentes dimen- forço e cooperação interinstitucional para
○
projeto em parceria. Permitiram ver, no con- ria tenha sido um grande avanço nesse pro-
○
○
junto das organizações em si, que a flutuação jeto, a sua concretização no cotidiano não
○
tem sido uma das tarefas mais fáceis. Cada longo do percurso do Projeto Tucum desper-
○
○
instituição tem o seu próprio tempo insti- taram para a necessidade de se elaborar polí-
○
○
tucional, seu ritmo, suas prioridades, en- ticas públicas específicas para a Educação Es-
○
fim, o seu modo próprio de tratar as ques-
○
colar Indígena no Estado de Mato Grosso.
○
tões que lhe são apresentadas. Isso exige Os Cursos de Licenciaturas Específicos
○
um permanente esforço de todos os parcei-
○
para Professores Indígenas, que tiveram iní-
○
ros para valorizar os pontos de consenso e
○
cio em julho de 2001, são exemplos disso. Vi-
○
buscar superar os atritos e os dissensos.
sam à formação e à habilitação de professo-
○
○
Políticos. A implementação de políticas pú- res indígenas para o exercício docente no En-
○
blicas envolvendo diferentes atores exige a
○
sino Fundamental e Médio. Abrangem três
○
consolidação de um relacionamento que
○
áreas diferentes – Ciências Matemáticas e da
○
respeite a diversidade e que transite por di-
Natureza; Ciências Sociais; Línguas, Artes e
○
ferentes administrações, partidos políticos,
○
Literatura – e estão vinculados à Universida-
○
interesses locais e regionais etc. Nesse sen-
○
de do Estado de Mato Grosso em parceria com
○
tido, a realização do Projeto Tucum pode ○
outras instituições. Um dos objetivos do pro-
ser considerada uma iniciativa que conse-
○
projetos nos quais todos podem obter re- turo de cada povo.
○
para atender a tantas demandas acumula- cação Escolar Indígena construída coletiva-
○
○
das ao longo de cinco séculos de domina- mente, que contempla os programas de Ade-
○
ção e de desrespeito para com os assuntos quação Institucional, Fortalecimento das Es-
○
○
mundial etc.), além de reforçar o já consa- balho pedagógico. Cuiabá: SEE/MT, 1996. p. 30-35.
○
próprios para o financiamento dos assun- de Mato Grosso (CEI/MT). Urucum, jenipapo e giz: a
○
○
tos indígenas. Esse aprendizado fez com que Educação Escolar Indígena em debate. Cuiabá: Entre-
○
dores e com diferentes fontes de recursos. Educação Escolar Indígena para Mato Grosso. Cuiabá:
○
○
SEE/MT, 2000a.
Nesse sentido, o Projeto Tucum teve um
○
1
Trata-se de um programa de desenvolvimento agroambiental implementado em Mato Grosso, com recursos do Banco Mundial.
○
P AINEL 9
EXPERIÊNCIAS DE FORMAÇÃO
DE PROFESSORES INDÍGENAS
Bruno Kaingang
Arlene Bonfim
187
Experiência em formação
○
○
○
de professores
○
○
○
○
Bruno Kaingang
○
○
Associação dos Professores Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG)/PR
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
○
de qualidade para as mais variadas culturas e
○
○
Este trabalho quer enfocar a situação pela realidades existentes no Brasil. Falando nisso,
○
qual a Educação Indígena passou com a chegada
○
ainda recentemente muitas escolas localizadas
○
dos europeus às Américas, quando houve uma
em terras indígenas encontravam-se fora dos
○
grande desestruturação na educação. Marcado por
○
○ sistemas de ensino dos estados, sendo, portan-
grandes conquistas de terra, esse momento fez
○
Essa nova visão de sociedade imposta obrigou indígenas e a prática da língua materna com a
○
aos novos desafios propostos pela sociedade oci- tuição de 1988. Isso sem contar que o professor
○
○
dental. Nesse sentido, foram organizados vários indígena não conta com estímulos para a sua
○
○
Kaingang, para garantir uma reflexão em face dos A Constituição brasileira garante que a es-
○
○
desafios impostos aos povos indígenas do Brasil. cola indígena tem que ter tratamento diferen-
○
○
A Educação Indígena passou por um proces- sociedade indígena. No artigo 210, estabelece
○
so de desestruturação desde a chegada da co- que o Ensino Fundamental deve ser ministra-
○
○
tos anos. Esse momento de conquista das ter- gurando às sociedades indígenas a utilização de
○
○
ras e extermínio dos povos e suas culturas fez suas línguas maternas. Essa garantia é assegu-
○
com que o mundo indígena passasse por uma rada e regulamentada na Lei de Diretrizes e
○
○
dura transformação política, econômica, social Bases da Educação Nacional, de 1996, que ain-
○
○
e cultural. Assim, a educação tradicional dos da estabelece a articulação dos sistemas de edu-
○
○
povos passou a ter uma nova visão, européia, cação para a oferta da Educação Escolar Indí-
○
uma educação que não respeita as diferenças gena em forma bilíngüe e intercultural, de
○
○
existentes entre as sociedades, dessa maneira modo que garanta a recuperação de sua cultu-
○
○
existe uma educação que busque a formação do na estava vivendo no final do século XX, as co-
○
○
cidadão e sim uma formação voltada para o munidades indígenas, representadas por suas
○
○
remos que, passado o século XX, ainda não te- Kaingang do sul do Brasil. As lideranças e os
○
○
mos uma Educação Indígena estruturada com professores Kaingang começaram uma longa
○
○
suas especificidades e cujos educadores possu- discussão com entidades interessadas na Edu-
○
188
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
possibilitaram que a educação Kaingang tomas- dro de professores mais críticos no que se refe-
○
○
se rumos mais consistentes, surgindo então o re às questões indígenas e não só à educação,
○
○
primeiro curso de Magistério de Ensino Médio. pois para os índios a educação não está
○
Essa necessidade é visualizada pela histó- desvinculada da vida e de todas as relações exis-
○
○
ria de luta dos Kaingang, pois a população es- tentes no seu mundo. Dessa maneira, formam-
○
○
tava crescendo; hoje, são cerca de 30 mil pes- se as novas lideranças em suas comunidades,
○
soas e com índice de crescimento constante. chamando para si a responsabilidade da cons- 189
○
○
Situando-se em mais de trinta comunidades trução das mais diversas demandas existentes
○
○
Kaingang no sul do país, eles se encontram en- nas terras indígenas. Com o objetivo de fazer
○
○
tre os cinco povos indígenas mais populosos uma educação de qualidade e uma formação de
○
do Brasil. cidadãos críticos na busca de melhoria para to-
○
○
Além disso, o número de professores não- dos, esses professores nunca perdem de vista
○
○
indígenas era superior ao de professores indí- as alianças formadas em torno da educação.
○
○
genas. Grande parte destes professores não tem Com uma clareza maior da Educação Indí-
○
nenhuma formação específica para trabalhar gena, surge a necessidade de aperfeiçoamento
○
○
com Educação Indígena, possuindo somente o desses professores Kaingang e de ampliação do
○
○
Magistério. Isso sem contar que a maioria de- quadro de professores; reiniciam-se as lutas por
○
○
les vê o indígena com a mesma carga de estere- formação continuada e formação inicial. Sur-
○
ótipo que a população regional, o que seria su- gem vários encontros de formação promovidos
○
○
ficiente para prejudicar o desenrolar do proces- pela Secretaria da Educação do Estado e outros
○
○
so escolar sob sua orientação. Para piorar essa realizados pelos próprios professores Kaingang.
○
situação, as escolas das comunidades indígenas Nesses encontros, a participação das lideranças
○
○
tinham a mesma organização curricular e o (caciques) é muito importante, pois são elas que
○
○
material didático das demais escolas da rede vão garantir e dar suporte político para os pro-
○
○
pública. Além disso, muitas escolas ainda con- fessores atuarem e pensarem novas alternativas
○
Educação sem nenhuma especificidade. Por outro lado, o número de professores ain-
○
○
1988, os professores criam a sua própria orga- dígenas continuava sendo maior, como é até
○
nização jurídica, a Associação dos Professores hoje. A tão esperada educação de qualidade es-
○
○
Bilíngües Kaingang e Guarani (APBKG), e come- tava – e permanece – distante, pois a desquali-
○
○
çam uma discussão mais acirrada sobre a im- ficação dos professores para trabalhar com in-
○
○
plantação do ensino específico diferenciado. dígenas ainda não tinha sido superada; para
○
Dessa luta, surge então o primeiro curso de piorar isso, possuem em suas mãos as direções
○
○
Kaingang, já citado, que começa em 1993, gra- Com isso, surge a discussão sobre a auto-
○
○
ças às alianças feitas pela Universidade de Ijuí, nomia nas escolas indígenas, pois as escolas em
○
o Conselho de Missão entre Índios (Comin), o terras indígenas adotavam todo o sistema das
○
○
da Educação do Estado do Rio Grande do Sul e formação ainda é maior, pensando então em
○
○
em 1996, 22 professores, com habilitação espe- garantiria uma aproximação maior às es-
○
○
intercultural nas escolas Kaingang. com maior qualidade do ensino e com a práti-
○
○
○
paço perdido ao longo do tempo na formação dentora, e outro no Município de Benjamin
○
○
dos professores Kaingang, surgiu no ano 2000 a Constant do Sul, RS.
○
○
discussão sobre a formação de novos professo- Mais uma vez, as lideranças dessas comu-
○
res Kaingang. Desse modo, a Funai, a Universi- nidades estão presentes com seu apoio aos pro-
○
○
dade de Passo Fundo, a Universidade de Ijuí, as fessores, acompanhando todas as discussões no
○
○
lideranças indígenas e a APBKG, com o apoio que diz respeito à educação e às questões que
○
da Prefeitura Municipal de Benjamin Constant envolvem suas comunidades, pois a situação
○
○
do Sul, começam o processo de discussão, vi- hoje enfrentada pelos indígenas não é diferen-
○
○
sando atingir a garantia da especificidade da te daquela que todos nós estamos acostumados
○
○
Educação Kaingang e a conquista da autonomia a ver ao longo dos quinhentos anos de nosso
○
educacional nas terras indígenas. país. Certamente, não será essa luta por forma-
○
○
Essa idéia de formação de uma nova turma ção que irá garantir a existência das comunida-
○
○
de professores concretiza-se em janeiro de des indígenas, mas também a insistência na
○
○
2001, sendo iniciada, então, a formação de mais ○
busca por uma sociedade mais justa em que
uma turma de professores com um número de cada professor seja mais um instrumento de
○
○
cem professores Kaingang, divididos em dois luta por melhoria em todos os setores da socie-
○
○
no Estado do Amazonas:
○
○
○
Projeto Pira-Yawara
○
○
○
○
○
Arlene Bonfim
○
○
Seduc/AM
○
○
○
○
○
○
Introdução
○
Integrando-se aos dispositivos legais da des indígenas, que passam a gerir seus proces-
○
○
Constituição de 1988 e à LDB/96, que asseguram sos próprios de aprendizagem e a ocupar seus
○
○
respeito aos processos próprios de aprendiza- mesmo tempo que lhes garante o direito a uma
○
○
gem das sociedades indígenas no processo es- escola com características específicas, que bus-
○
○
colar, é que o estado do Amazonas, por meio da que a valorização de seu conhecimento tradici-
○
○
do Ensino (Seduc/AM), vem garantindo os direi- enfrentar o contato com outras sociedades.
○
○
tos indígenas, ao coordenar e executar a política Para atender a esse grande desafio, elaborou-
○
○
de Educação Escolar Indígena, com prioridade se o Projeto Pira-Yawara, que tem como objeti-
○
○
gais estabelecidos, o estado do Amazonas vem educação básica nas terras indígenas, garantin-
○
○
190
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
dade que responda aos anseios desses povos. de debate, para que as comunidades indíge-
○
○
nas possam determinar a formulação de uma
○
política lingüística a serviço da qual a escola
○
Ações do Projeto Pira-Yawara
○
estará atuando.
○
○
• Formação inicial de professores indígenas. • A escola indígena deve ser diferenciada, es-
○
○
• Formação continuada de professores indí- pecífica, intercultural, bi/multilíngüe, comu-
○
genas. nitária e de qualidade. 191
○
○
• Formação continuada de técnicos das Se- • Aprendizado via pesquisa como forma de
○
○
cretarias Municipais de Educação. compreensão da realidade, no qual os
○
○
• Assessoria técnico-pedagógica e adminis- etnoconhecimentos se aliem às diferentes in-
○
formações e aos conhecimentos técnico-cien-
○
trativa às Secretarias Municipais de Educa-
○
ção (Semeds). tíficos. Nesse enfoque, a produção do conhe-
○
cimento é mais importante do que sua repro-
○
• Formação continuada de técnicos da Secre-
○
dução. Por meio da pesquisa, os componen-
○
taria de Estado da Educação e Qualidade do
○
tes curriculares passam a ter por função pos-
Ensino (Seduc/AM).
○
sibilitar a reflexão, a compreensão crítica da
○
• Diagnóstico lingüístico e antropológico da ○
○
realidade e a capacidade de atuação sobre a
realidade indígena no estado do Amazonas.
○
Objetivo
○
buição de material didático específico e di- Formar os professores indígenas que estão
○
○
pedagógico.
○
membros.
Formação inicial de professores
○
○
indígenas
○
Forma de execução
○
○
○
as do conhecimento.
meio da participação efetiva dos professo-
○
○
res, em conjunto com suas comunidades. Etapas letivas intermediárias. Atividades de-
○
Etapa letiva
○
complementar superior
○
superior
○
○
2.300 900 – –
○
440
○
○
Formação continuada de professores Formação continuada de técnicos das
○
○
indígenas Secretarias Municipais de Educação
○
○
○
Ao reconhecer a necessidade de formação A Portaria Interministerial nº 559/91, de 16
○
inicial e continuada dos próprios índios para de abril de 1991, determina no seu artigo 7º:
○
○
atuarem como professores de suas comunida-
○
○
des, a Secretaria de Estado da Educação e Qua- [...] que os profissionais responsáveis pela
○
○
lidade do Ensino (Seduc/AM) vem implementar Educação Indígena, em todos os níveis, sejam
○
a Política Estadual de Educação Escolar Indíge- preparados e capacitados para atuar junto às po-
○
○
na, assegurando a autonomia das escolas indí- pulações étnicas e culturalmente diferenciadas
○
○
genas tanto no que se refere à construção de seu
○
projeto político-pedagógico, quanto à partici- sejam eles da Funai, das Secretarias Estadu-
○
○
pação plena de cada comunidade nas decisões ais ou Municipais de Educação e ONG, a fim de
○
○
relativas ao funcionamento dessas escolas.
○
[...] garantir às comunidades indígenas uma
○
Adequado às peculiaridades culturais dos ○
vivenciadas.
colas das terras indígenas está subordinada, ainda
○
Indígena – Seduc/AM.
são reduzidos e não possuem formação adequa-
○
inicial.
nicipais de Educação, capacitando-os no domínio
○
○
de discussão do grupo
○
• Base legal e conceitual da Educação Esco- ções e apoio às escolas indígenas na formulação
○
○
192
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
ção tem como proposta a discussão de temas que Educação e Qualidade do Ensino (Seduc/AM) vem
○
○
possam contribuir para a reflexão e a implemen- desenvolvendo uma política de articulação e de
○
○
tação de novas políticas e de práticas pedagógi- cooperação técnico-administrativa e financeira
○
○
cas e curriculares em áreas indígenas. com os municípios do estado, apoiando e fortale-
○
É executado nas sedes municipais, em cursos cendo, na estrutura organizacional das Secretarias
○
○
de 120 horas/aula, e conta, geralmente, com a par- Municipais de Educação, o desenvolvimento de
○
○
ticipação de diretores e professores de escolas uma política municipal de Educação Escolar Indí-
○
municipais e professores indígenas, bem como de gena, em consonância com a política estadual e 193
○
○
representantes de instituições locais ligadas à pro- com as diretrizes nacionais, política essa que con-
○
○
blemática indígena, sejam governamentais ou sidere a diversidade étnica do estado do Amazo-
○
○
não-governamentais, sob a orientação da Gerên- nas, os diferentes níveis de contato dessas etnias
○
cia de Educação Escolar Indígena (Seduc/AM). com a sociedade local e nacional e as peculiarida-
○
○
des regionais.
○
○
Temáticas básicas do programa Para atender a essa finalidade, a Secretaria
○
○
de Estado de Educação e Qualidade do Ensino
• Projeto Pira-Yawara, fundamentação e
○
(Seduc/AM), por meio da Gerência de Educação
○
operacionalização.
○
Escolar Indígena, vem desencadeando nos mu-
• Base legal da Educação Escolar Indígena, ○
○
genas brasileiras.
○
direitos humanos.
tica de Educação Escolar Indígena Municipal.
○
Assessoria técnico-pedagógica e
○
administrativa às Secretarias
○
Municipais de Educação
○
se, definindo metas e ações de Educação Escolar na, bem como a realização de cursos de for-
○
○
Indígena que atendam às demandas das comuni- mação de professores indígenas nas regiões
○
○
○
tre os vários segmentos locais à problemáti- representa uma grande novidade no sistema edu-
○
○
ca indígena, sejam governamentais ou não- cacional do País e exige das instituições e órgãos
○
governamentais, bem como o estabeleci- responsáveis a definição de novas dinâmicas,
○
○
mento de parcerias, para que juntos possam concepções e mecanismos, tanto para que essas
○
apoiar e garantir o desenvolvimento das
○
escolas sejam de fato incorporadas e beneficia-
○
ações relativas à Educação Escolar Indígena. das por sua inclusão no sistema oficial quanto
○
○
• Incentivo e apoio à criação de uma coorde- respeitadas suas peculiaridades.
○
○
nação ou setor responsável pela implemen-
○
tação de programas de Educação Escolar In- Cabe lembrar, então, que a Educação Indíge-
○
○
dígena na estrutura organizacional das Se- na, por seu caráter diferenciado, requer um qua-
○
○
cretarias Municipais de Educação. dro de técnicos devidamente preparados para atu-
○
ar nas comunidades indígenas. Dessa forma, é fun-
○
• Orientações quanto à política indigenista
○
brasileira e à legislação de ensino atual que damental que o estado disponha de um programa
○
○
trata da Educação Escolar Indígena, desta- ○
de formação para a sua equipe técnica, que sirva
cando a importância de seu cumprimento e de incentivo e apoio à implantação das novas po-
○
○
projetos e programas municipais de Educa- manter e preparar uma equipe de técnicos es-
○
○
ção Escolar Indígena, conforme estabelecem pecialistas das diferentes áreas do conhecimen-
○
○
as Diretrizes para a Política Estadual e Nacio- to para atuar, no âmbito das Secretarias Munici-
○
• Promoção de estudos e discussão sobre as quadros técnicos para a oferta de educação es-
○
○
bases conceituais da educação intercultural. colar bilíngüe e intercultural aos povos indíge-
○
○
indígenas.
○
Escolar Indígena (1995-1998), elaborado pela Secre- periência reconhecida e comprovada no campo
○
○
taria de Educação Fundamental (SEF/MEC) afirma: da Educação Escolar Indígena, composta por
○
○
194
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
○
○
etnoconhecimentos e Educação Escolar Indíge- e antropológico da realidade indígena
○
○
na, os quais realizam atividades temporárias de
no estado do Amazonas
○
○
capacitação da equipe técnica central e de acom-
○
O Governo do Amazonas, por meio da Secre-
panhamento e avaliação das ações de Educação
○
taria de Estado da Educação e Qualidade do En-
○
Escolar Indígena desenvolvidas pela Gerência, ou
○
sino (Seduc/AM), considera necessário realizar
○
mesmo executam trabalhos mais pontuais desti-
○
um diagnóstico da situação da Educação Esco- 195
nados à estruturação e ao desenvolvimento da
○
○
lar Indígena. A intenção é realizar um quadro de
própria Gerência de Educação Escolar Indígena –
○
expectativas para referenciar os procedimentos
○
Seduc/AM.
○
da Gerência de Educação Escolar Indígena e,
○
○
conseqüentemente, levar a bom termo as ações
A formação continuada
○
do governo do estado.
○
e o aperfeiçoamento dos técnicos da
○
O diagnóstico tem como propósito não simples-
○
equipe central dão-se por meio de diversas
○
mente gerar dados, mas inserir a discussão e a ela-
○
providências, de modo que possam:
○
boração das informações no contexto da formação
○
• assessorar os professores indígenas na pro- dos professores. Assim, é possível colocar os pro-
○
○
dução de materiais didático-pedagógicos, na ○
○
fessores indígenas em conexão com outras realida-
construção de currículos, metodologias e sis- des – a aldeia, o povo, a região –, além de estabele-
○
• atuar como docentes em curso de formação balho que vem sendo desenvolvido na formação de
○
○
inicial e/ou continuada de professores indí- professores indígenas, qual seja, a ênfase na pesqui-
○
genas;
○
• colaborar com idéias criativas e buscar solu- blicas à educação escolar esteja em consonância
○
plantar e desenvolver uma educação transfor- querem e necessitam, é preciso que os sistemas
○
○
Indígenas, p. 12).
○
que atuam nas escolas indígenas, bem como os pro- • Realizar um levantamento e estabelecer con-
○
○
○
que reivindicam Educação Escolar Indígena, Matemática na escola em uma Língua Indígena,
○
○
mas que não contam com nenhum apoio ou para elaborar um projeto de piscicultura, pro-
○
institucional.
○
jeto de informática etc.).
○
• A discussão da forma como deve se desen- Tem sido demanda dos povos indígenas no
○
○
volver cada levantamento deve contar com Amazonas, por exemplo, dos Munduruku de
○
a participação de representantes indígenas,
○
Borba, ou dos Desano de São Gabriel da Cacho-
○
que serão colaboradores em todos os senti- eira, bem como dos Mura de Autazes, que o Es-
○
○
dos: poderão dizer qual a melhor época para tado colabore nos seus projetos político-lingüís-
○
a realização dos trabalhos (questões climá-
○
ticos de recuperar, salvaguardar ou fomentar o
○
ticas e atividades econômicas, por exemplo,
○
uso das suas línguas, de modo que elas possam
○
podem influenciar) e poderão ajudar a defi-
efetivamente ser utilizadas no processo educa-
○
nir quais as informações importantes para
○
tivo e em todas as outras situações.
○
constar no levantamento.
○
○
• Realizar um amplo diagnóstico da situação ○
Principais ações
banas de todo o estado. • Responder às demandas dos povos indíge-
○
○
Desenvolvimento e fomento
○
estado do Amazonas
○
grande número de falantes de Português, neces- Esse programa tem como proposta instituir,
○
○
sitam de uma política de desenvolvimento e fo- entre os professores, a formação de índios como
○
○
mento do uso para que possam ser utilizadas pesquisadores de seu próprio universo cultural
○
com plenitude também em áreas outras que não e, igualmente, como escritores e redatores de
○
○
rias para a vida dos índios na e com a sociedade Maternas e/ou Portuguesa, referentes aos
○
○
tos outros países, as línguas indígenas podem ser Encaminhadas pelos vários componentes que
○
○
ocidental, o que permite que continuem sendo sa, como princípio metodológico do programa,
○
utilizadas nas novas condições que vão se colo- desencadeiam a interpretação, a construção e a
○
○
ampliar o campo de uso das línguas minoritárias cultural e lingüística de cada povo indígena en-
○
para que não deixem de ser utilizadas por insu- volvido no processo, em que os etnoconhecimen-
○
○
196
PAINEL 9
Experiências de formação de professores indígenas
tos, aliados às diferentes informações oriundas Tupana Ewowi Urutuwepy é uma obra lite-
○
○
dos conhecimentos técnico-científicos, expres- rária produzida inteiramente na língua Sateré-
○
○
sam claramente a importância da produção des- Mawé. Apresenta cantos religiosos, cantos de
○
○
ses materiais, ao instituir entre os professores não atividades recreativas, de valores que regem a
○
somente a autoria de cada um dos materiais por conduta humana, como a importância da soli-
○
○
eles próprios escritos, mas, principalmente, ao dariedade, da união, da vida, da necessidade do
○
○
eliminar a grande distância entre quem pensa e saber, da felicidade e do trabalho exercido pelo
○
quem executa a prática educativa. professor em sala de aula. 197
○
○
A ênfase dada ao processo de pesquisa per- O livro Poesia Sateré-Mawé apresenta uma
○
○
mite a produção diversificada de materiais, ora literatura em que a sensibilidade, aliada às ques-
○
○
escritos na Língua Materna, ora escritos na Lín- tões étnicas e culturais desse povo, é retratada a
○
gua Portuguesa, por decisão dos próprios pro- partir de cada uma das palavras e mensagens
○
○
fessores, constituindo-se, assim, em instrumen- produzidas. Esse livro reflete a longa trajetória
○
○
tos de construção curricular desenvolvidos a percorrida pelos professores durante o processo
○
○
partir da realidade, prática social e cultural de de produção textual, considerando o desenvol-
○
cada professor indígena e integrados à sua prá- vimento das modalidades da fala e escrita.
○
○
tica docente, para permitir a reflexão sobre seu Sateré-Mawé Mawé Mowe’eg Hap é todo pro-
○
○
e à publicação de literatura indígena realiza-se quais os alunos indígenas irão expressar de for-
○
○
com a distribuição e o acompanhamento desses ma escrita e oral suas idéias e experiências, bem
○
○
materiais nas escolas das aldeias. como reconhecer e aplicar os fatos da língua, de-
○
mes enriquecidos visualmente. Constituindo a pri- sentam tipos de recreações e de lazer hoje prati-
○
○
meira produção escrita, a coleção apresenta, na sua cados pelas crianças, pelos jovens e pelos adul-
○
○
maioria, textos na Língua Portuguesa, por decisão tos das várias aldeias da região.
○
seus temas aborda a fauna e a flora da área indíge- obra que relata o poder da criança e o conheci-
○
○
na Sateré-Mawé, que hoje fazem parte do quadro mento do povo no domínio e na utilização dos
○
○
natural das regiões compreendidas entre os rios recursos oferecidos pela natureza, na construção
○
e forma, à compreensão das inter-relações desse textos informativos, que se harmonizam com as
○
○
povo com a natureza e com a cultura. ricas ilustrações, apresenta os mais variados ti-
○
ampliados a partir de textos produzidos na lín- O poder curativo das ervas medicinais é na-
○
○
aldeias encontradas ao longo dos rios Marau e e uso dos remédios são orientados por meio de
○
○
Urupadi, assembléias indígenas ocorridas na re- dois livros produzidos, sendo um na Língua Por-
○
cotidianos, entre outras. É seu objetivo servir Set Ko’i. O conjunto dessas obras contém ricas
○
○
língua escrita.
○
○
○
retrata de forma descritiva a riqueza mítica e a po em que demonstram sentimentos de digni-
○
○
tradição do povo Sateré-Mawé sintetizadas em dade ao partilharem com alegria a reconquista
○
○
suas crenças, objetos sagrados e conhecimentos de suas terras. A obra apresenta textos diversifi-
○
acumulados. Os textos são produzidos na Lín- cados, ricos em detalhes e ilustrações, de valor
○
○
gua Portuguesa, acompanhados de ilustrações. cultural e histórico para esse povo.
○
○
Produzida na Língua Portuguesa, a obra Cul- Sateré-Mawé E´Ko Nimuaria Ko´i,
○
tura, ambiente e sociedade Sateré-Mawé apresen- Koity´iwuaria E´ko, foi escrito na Língua Indíge-
○
○
ta os valores da cultura tradicional Sateré-Mawé na pelos professores Sateré-Mawé da aldeia Vila
○
○
relacionados aos modos de vida na aldeia, hábi- Batista, Rio Mari-Mari. Foi produzido com a in-
○
○
tos, costumes, território habitado e explorado. tenção de gerar junto aos alunos e à comunidade
○
Apresenta ainda uma visão crítica do processo processos de discussão e reflexão acerca dos há-
○
○
de dominação ao qual os índios foram submeti- bitos e costumes praticados nos dias de hoje pe-
○
○
dos ao longo de sua história. los habitantes da aldeia, em comparação com os
○
○
Histórias de vida é uma obra ilustrada produ- ○
da cultura tradicional dos antigos.
zida na Língua Portuguesa. Apresenta textos que O livro Chegada dos Sateré-Mawé no Rio Mari-
○
○
falam das experiências e dos fatos marcantes ocor- Mari e organização da Aldeia Vila Batista, escrito
○
○
ridos com os professores ao longo de suas vidas. na Língua Portuguesa, inicia-se com um relato so-
○
○
O livro Terras das línguas, ricamente ilustrado, bre os acontecimentos que levaram um grupo fa-
○
é uma produção recentemente publicada pela miliar Sateré-Mawé a deixar a região do Rio Andirá,
○
○
Seduc/AM, produzido no contexto do Programa de aldeia Ponta Alegre, e a se instalar na Terra Indíge-
○
○
Formação de Professores Indígenas de São Gabriel na Coatá-Laranjal, do povo Munduruku, Rio Mari-
○
da Cachoeira. Apresenta textos escritos em onze Mari. Além disso, há uma descrição do caminho
○
○
línguas: Baniwa, Desano, Hupd, Kubeo, Kuripako, percorrido durante a viagem, falando das dificul-
○
○
Nheengatu, Piratapuia, Tariano, Tukano, Tuyuka e dades enfrentadas e da organização da nova aldeia,
○
○
Wanano, possibilitando práticas pedagógicas além dos hábitos e costumes praticados. É uma
○
diversificadas e plurilíngües. Os textos abordam obra baseada em fatos reais, que retrata a realida-
○
○
assuntos diferentes, conforme a opção de cada de vivida pelos índios no Brasil e que permite uma
○
○
etnia, que vão desde receitas de remédios caseiros reflexão mais ampla sobre os conflitos que emer-
○
○
geografia das aldeias, formas de organização, mo- recursos materiais e didáticos, tanto no que se re-
○
○
dos de vida, crenças e costumes práticos do povo. fere ao material de apoio ao trabalho do professor,
○
fundas as relações que com elas estabelecem, os para professores e alunos indígenas:
○
○
Kwata-Laranjal, história e reconquista da terra. lápis preto, lápis de cor, papel sulfite, régua,
○
○
cres praticados contra eles e por eles contra os pincel atômico e régua de 30 centímetros,
○
○
199
Prática de sala de aula
○
○
○
na escola indígena
○
○
○
○
Yolanda dos Santos Mendonça*
○
○
○
○
○
○
Resumo
○
○
aprendizagem combinam espaços e momen-
○
○
Construir uma escola a serviço dos interesses tos formais e informais com concepções pró-
○
○
dos povos indígenas e gerenciada por índios, as- prias sobre o que deve ser aprendido. A comu-
○
sumindo um papel fundamental na medida em
○
nidade é muito importante nesse processo,
○
que se cristaliza como um novo ator social, dinâ-
pois possui sua sabedoria para ser transmiti-
○
mico e atuante, em processo construtivo e infor-
○
○
da e distribuída por seus membros e mostra
mativo, voltado para uma educação específica, di-
○
tências que contribuam para a educação do povo seus atributos, capacidades e qualidades. Há
○
○
articulador para tornar a Educação Escolar Indí- afetiva carrega múltiplos significados econô-
○
○
gena indispensável ao progresso de seu povo, em micos, sociais, técnicos, rituais, cosmológicos.
○
escola num espaço privilegiado para análise, dis- as quais estabelecem relação de cooperação e
○
○
cussão e reflexão da realidade, garantindo o ple- intercâmbio, a fim de adquirir e assegurar de-
○
terminadas qualidades.
○
Graças à mobilização e à união dos profes- movimento de articulação, pois quem faz a
○
○
sores indígenas junto aos Poderes Públicos é Educação Escolar Indígena ser específica, di-
○
○
que hoje já avançamos para a continuidade da ferenciada e de qualidade somos nós, e essa só
○
vida do planeta. A publicação RCNEI me fez será concretizada com a participação direta
○
○
ver, a partir da análise feita nessa obra, que dos interessados para garantir a sua realização.
○
○
seria um ponto de partida para minha profis- Devem ser oferecidas as condições necessá-
○
○
são, na qual tomei como educação transforma- rias para que a comunidade gerencie sua escola,
○
dora aquela que permite que as informações demonstrando a vitalidade e o desejo de forta-
○
○
adquiridas no decorrer do processo de apren- lecer sua identidade. Os direitos dos povos indí-
○
○
dizagem se tornem possibilidades de ações genas são coletivos. Temos o direito de decidir
○
○
para a recriação de uma realidade dramática sobre nossa história, nossa identidade, pensan-
○
que nos interpela quotidianamente. Cada povo do em nossas crianças como parte do presente
○
○
indígena que vive no Brasil é dono de univer- para não destruirmos nosso futuro. Temos que
○
○
sos culturais próprios e memória de percursos ter a escola como projeto próprio, e dela nos
○
○
* Professora na Paraíba.
○
200
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena
com a introdução do ensino escolar. Temos que correndo e fui aos poucos me entrosando com
○
○
ter postura e um trabalho adequado e responsá- as lideranças e as comunidades.
○
○
vel de comprometimento como articuladores, Lembrei-me das músicas de Toré, já que as
○
○
facilitadores, intervindo, orientando, problema- crianças gostavam de cantar outras músicas e
○
tizando, sem desconsiderar a atitude de curiosi- representar outras danças. Então, a música foi
○
○
dade dos alunos para com os novos conhecimen- o meu suporte. Mas músicas que nos fizessem
○
○
tos. Temos que formar uma escola da experiên- tocar no coração à vontade e o pulsar do peito,
○
cia, da convivência e da clareza. por uma versão nova. O Toré é uma cultura sa- 201
○
○
É importante que nossas crianças apren- grada de cada povo. Tive que me desdobrar para
○
○
dam sobre a vida de nossos antepassados e a fazer com que as crianças entendessem que elas
○
○
história mais nova, de mudanças nas aldeias e vivem e viverão nossa cultura, até mesmo por-
○
dos chefes que lideram nosso povo. É impor- que muitos não queriam nem saber, pois já es-
○
○
tante preparar os alunos para que, no futuro, tavam muito influenciados pelo outro modelo
○
○
eles possam continuar nosso trabalho. E a es- educacional. Foi aí que tive que introduzir pro-
○
○
cola pode ajudar a manter nossa cultura, para cedimentos didático-pedagógicos para que eles
○
que nós possamos manter nosso território. É entendessem que somos um todo e, por meio
○
○
preciso abrirmos os olhos e vermos que nesse de leituras e escritas relatadas por eles mesmos,
○
○
território estão plantadas nossas raízes, que juntos buscamos informações na nossa própria
○
○
hoje nasceram e se enramaram com uma for- família. Fomos montando e descobrindo novi-
○
ça enorme, que cada vez mais desabrocham dades que serviram de experiências e motiva-
○
○
para fortalecer a nossa sagrada identidade. São ções para uma realidade da própria criança. No
○
○
inúmeras as falsas informações que distorcem momento em que trabalhamos cada estrofe da
○
conhecer os índios. Grande parte do nosso sempre vem o porquê. Quando vamos cantan-
○
○
dadeiros donos desta terra. Devemos romper nosso povo com clareza e confiança, fazemos
○
com essas informações enganosas, acabar com um trabalho para desenvolver o que elas ouvi-
○
○
esse preconceito que foi e continua sendo res- ram e visualizaram. Aí começa o interesse para
○
○
ponsável por mortes e doenças no mundo in- saber mais: sempre perguntam o que fazer de
○
○
teiro. A terra é nossa subsistência. Ela é supor- agora em diante para não passar pelo que nos-
○
crenças e aos conhecimentos. A terra somos Temos que ter cuidado para não causar im-
○
○
nós. Temos que ser dinâmicos e práticos para pacto, pois muitas crianças se revoltam. O que
○
○
que os alunos desenvolvam suas capacidades temos que fazer é conscientizá-las, para cuidar
○
e aprendam os conteúdos necessários, para do pouco que nos resta. Se assim o fizermos,
○
○
realidade, com participação, e para assumir a não é o suficiente para o muito que nos leva-
○
○
valorização da cultura de sua própria comuni- ram, e só vamos conseguir se juntos lutarmos,
○
dade, respeitando direitos e diferenças dos sem medo de conhecer e buscar nossos direi-
○
○
Por meio de experiências da minha vida co- mos os nossos deveres. O Toré não é uma dan-
○
○
tidiana e de contatos com diversas pessoas de ça qualquer, foi-nos deixada pelos nossos an-
○
outras etnias, percebi que meu povo cada dia cestrais. Deus deu essa sabedoria a eles e tam-
○
○
mais estava sendo enganado e que nossas cri- bém aos velhos e até às pessoas mais novas,
○
○
anças cada dia mais desconheciam quem eram para invocarem os encantados e resolverem
○
○
na verdade. Foi daí que fiz uma análise e to- algo. Isso é prova de que nunca estamos sozi-
○
mei a iniciativa de ajudar meu povo, pois as- nhos, sempre temos alguém do nosso lado.
○
○
sim estarei ajudando a mim mesma. Conver- Mostramos às crianças que a mata é a cobertu-
○
○
sei bastante, mostrei os perigos que estávamos ra da terra. O vento é o respirar dos que já se
○
foram. A água e o rio são o sangue derramado
○
mos, pois ela interfere na política envolvente
○
do nosso povo. A terra é o pó da carne e dos os- e encaracolada, porque, no momento em que
○
○
sos dos nossos parentes que já foram plantados. as crianças e as comunidades descobrem sua
○
○
Gradativamente, fazemos com que as cri- verdadeira história e como ainda estão sendo
○
anças sintam amor pelo que é seu. Mas é pre- tratadas, passam a ter consciência e interfe-
○
○
ciso um trabalho árduo e longo, fazer compa- rem nas tomadas de decisões, como também
○
○
rações entre o que ouviram e o que são no pre- vão sentir curiosidade em se conhecer melhor
○
sente. Essa é a base, e só será feita se quiser-
○
e conhecer seu próprio território.
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
○
A Pedagogia do Texto na
○
○
○
○
Indígena Tupinikim
○
○
○
○
Preocupados com o resgate da cultura de der com o tempo, caso não seja sistematizado
○
nosso povo, estamos procurando enfocar, nas e passado de uma geração à outra.
○
○
zadas na comunidade indígena de Caeira Ve- Com o passar dos anos e com o crescente
○
○
Durante um mês, desenvolvemos o tema território, o nosso mangue sofreu várias in-
○
sensibilizar a comunidade indígena para a pre- servar uma parte de nossa cultura, nós nos pro-
○
○
servação do mangue que circunda nossa aldeia pusemos a desenvolver um projeto em que cada
○
○
e que vem sendo usado como nosso meio de aluno e seus pais pudessem expor seus conhe-
○
meras atividades que foram realizadas, procu- servação da natureza e de sua riqueza cultural.
○
○
der de que forma nós, moradores da aldeia, Esse manguezal é conhecido por ser um dos
○
○
202
PAINEL 10
Prática de sala de aula na escola indígena
Conama nº 004/85, a Lei nº 6.938/81, a Lei nº ao conhecimento coletivo, tudo isso respeitan-
○
○
4.771/65 e, no Espírito Santo, a Lei Estadual nº do a faixa etária de nossos alunos.
○
○
4.119, de 23/7/1988. Mas acreditamos que essa Durante a sistematização desses conheci-
○
“mina de tesouro” não deve ser preservada só
○
mentos, nossa fonte primeira foi a memória
○
porque a lei assim reza, mas porque é um peda- oral dos alunos, dos pais e dos mais velhos da
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ço de nós, pois aqui aprendemos e descobrimos aldeia, usando para isso entrevistas e pales-
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que a vida está nas coisas simples e ao mesmo tras. Fizemos também algumas visitas ao
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tempo grandes. manguezal, onde foram recolhidos diversos 203
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Cada espécie encontrada nesse manguezal tipos de recursos.
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tem sua beleza e importância. Nesse espaço, en- Num segundo momento, selecionamos,
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contramos moluscos e crustáceos variados: os-
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agrupamos e desenvolvemos aulas contextua-
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tra, sururu, ameixa (amêijoa), caramujo, buso, lizadas e interdisciplinares nas quais não havia
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papa-fumo, unha-de-velho, craca, chama-maré, fragmentação dos conhecimentos, mas um só
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siri, sapateiro, caranguejo, goiamum etc. Esses saber. Nessa segunda fase, outro princípio da
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seres vivos podem ser encontrados ao longo de
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Pedagogia do Texto que nos orientou foi o de
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toda a extensão do Mangue Piraqueaçu. confrontar o saber empírico dos alunos e da
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A maior parte da fauna do manguezal vem comunidade com outros saberes sistematizados
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do ambiente marinho, o que não exclui o ter- em livros (saberes considerados científicos).
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constituída pela espécie denominada mangue, variadas, tais como a produção de diferentes
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rada pelos mariscos para sua proteção. Apesar dissertativo etc.), teatro de varas, problemas
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de sua beleza e encanto, o manguezal possui envolvendo medidas, compra, venda, sistema
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também perigos, o que não intimida aqueles monetário, jogos, quebra-cabeças, artesanato
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que dele dependem para o seu sustento. com argila e sementes, desenhos variados.
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cípios da Pedagogia do Texto, na medida em que Estivemos diante do desafio que foi para
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esta valoriza o conhecimento local, cultural e nós, educadores e educandos, tentar compre-
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até mesmo individual do sujeito numa dimen- ender o mangue a partir de diferentes perspec-
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um primeiro momento, tentamos descobrir o vação do manguezal será de fato uma conquis-
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conhecimento empírico que os alunos deti- ta quando todos se conscientizarem da sua im-
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foram primeiro sistematizados em textos indi- Em suma, trabalhar o manguezal não foi ta-
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viduais e depois em textos coletivos. Buscamos refa árdua e penosa, mas prazerosa tanto para
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relacionar cada saber com o tempo, chegando nós, educadores, quanto para os alunos.
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