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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA


FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA - FMB
DEPARTAMENTO DE MEDICINA PREVENTIVA E SOCIAL - DMPS

Fonte: BOURKE, Jonh. The medicine-men of the Apache (1892). Disponível


em:<http://www.archive.org/details/medicinemenofapa00bourrich>

Repensando a relação entre saúde e cultura: Antropologia e


Medicina em cena*

Salvador, agosto de 2010

*
Texto didático elaborado pelas professoras Ana Angélica Martins da Trindade e Ana Cláudia
Gomes de Souza para o Módulo de Medicina Social e Clínica I (MEDB10).
2

Repensando a relação entre saúde e cultura: Antropologia e Medicina em


cena
Ana Angélica Martins da Trindade1
Ana Cláudia Gomes de Souza2 e 3

O propósito deste texto é refletir sobre um importante objeto de estudo


antropológico: a saúde, que ao ser analisada em compasso com os sujeitos da
cultura, permite relacionar comportamentos experimentados no organismo do
indivíduo com a sua realidade social, compartilhada coletivamente. Abordar
aspectos relacionados à construção de significados culturalmente constituídos,
como concepções de saúde, de doença, de corpo e de cura, indica a
necessidade de considerar compreensões de mundo diversas. Para alcançar
tais fins, fez-se necessário, inicialmente, examinarmos algumas definições
gerais relacionadas à antropologia, sendo ressaltado o interesse desta ciência
por estudar, especificamente, o fenômeno social da saúde. Com isso, tratamos
da antropologia médica4 e de como suas pesquisas etnográficas merecem
destaque por apresentarem a relação entre fatores culturais e o campo da
saúde.
Nesse trabalho apresentamos, ainda, a antropologia médica como uma
das ferramentas essenciais para a reformulação das diretrizes curriculares de
cursos de graduação na área da saúde, em especial, o curso de Medicina. Já
que hoje, a medicina é reconhecidamente uma área interdisciplinar, desse
modo, revela-se a importância das ciências humanas, como a antropologia, na
formação profissional dos profissionais que atuam na área da saúde, uma vez

1
Ana Angélica Martins da Trindade - Mestre em Ciências Sociais. Professora Substituta do
Departamento de Medicina Preventiva e Social da UFBA, responsável por duas das turmas do
Módulo de Medicina Social e Clínica I (MEDB10). Doutoranda do programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da UFBA (autora). angélica.ana@ufba.br
2
Ana Cláudia Gomes de Souza - Mestre em Ciências Sociais, Professora Assistente UCSAL,
Pesquisadora PINEB/UFBA (autora). anacla@ufba.br.
3
Gostaríamos de fazer um agradecimento especial às contribuições prestadas pelos
professores Cláudia D’arede e Paulo Pena para elaboração desse texto.
4
A Antropologia Médica surge nos Estados Unidos, na década de 1960, como uma área
específica de estudos de antropologia aplicada à área da saúde. Esta vertente da antropologia
que privilegiava os estudos epidemiológicos e das “instituições médicas” sofreu várias críticas,
em seu trajeto enquanto uma especialização da antropologia, relacionadas à forma como eram
feitas as interpretações dos eventos culturais, tomando a biomedicina como parâmetro para se
compreender os processos de adoecimento e cura nos mais diversos contextos (NOVO, 2010,
p. 56-7).
3

que o conhecimento produzido nas ciências sociais, por exemplo, auxilia a


melhor compreender inserção social dos pacientes e como estes se relacionam
com a enfermidade.
Com relação, as reflexões sobre a formação dos profissionais de saúde,
reforçam-se, cada vez mais, tendências constantes de renovação curricular do
curso de graduação em medicina, rechaçando-se paradigmas de cunho
tradicionalistas, centrados excessivamente nas ciências naturais. A medicina
foi ampliando, com constância, a absorção dos frutos de seu diálogo com a
antropologia médica e, com isso, destacam-se, hoje, aspectos ético-
humanísticos na formação médica. Vale observar que será na década de 70,
especialmente na França, que começam a serem produzidas visões
alternativas à biomedicina sobre o conceito de doença, sendo percebida como
processo vivido e elaborado internamente aos contextos sociais e culturais
(NOVO, 2010, p. 57). Esse desenvolvimento propiciou maiores possibilidades
aos profissionais em lidarem com a subjetividade e com a diversidade moral,
social e, especialmente, cultural que constituem as complexas realidades
sociais da atualidade. Como ressaltou Michel Sclair (1995, p. 272),

“...falta à nossa formação médica aquilo que os norte-


americanos denominam Medical Humanities, um conjunto de
disciplinas que proporciona uma visão da pessoa diferente de,
e complementar a, concepção anatômica, fisiológica e
patológica do ser vivo, concepção esta que tem atrás de si
séculos de tradição, mas que se viu reforçada, sobretudo, a
partir das últimas décadas, e que representa hoje uma forma
muito sofisticada do mecanicismo cartesiano”.

Na experiência da Faculdade de Medicina da Bahia (FMB/UFBA), a


reforma curricular mais recente data de 2007, através da qual se consolidou a
presença do módulo de Medicina Social, que, a partir da utilização do aporte
teórico das ciências sociais, possibilitou a aproximação dos estudantes de
medicina, em especial, com a antropologia médica. Esta alteração favoreceu a
consolidação de reflexões críticas em torno do estado de saúde da população
em seu cotidiano e a construção de um senso de responsabilidade social e
4

compromisso com a cidadania. Neste contexto, enfatizam-se a importância das


interpretações de aspectos culturais que considerem modos de vida, universos
sócio-culturais de realidades específicas, de modo a perceber,
qualitativamente, como são construídas formas de pensar e agir dos indivíduos
em relação à saúde. Partindo desta premissa, o presente texto tem a intenção
de analisar algumas das contribuições trazidas pela relação estabelecida entre
fenômenos culturais de saúde, doença, medicina, cultura e sociedade humana
como parte do repertório das perspectivas antropológicas de abordagem que
envolve a cultura, desenvolvidas em relação ao enfrentamento dos problemas
de saúde na atualidade.

As práticas terapêuticas dos Karipuna da área indígena Uaçá, englobam conhecimentos


biomédicos, saberes xamânicos, católicos e evangélicos, segue as diferentes escolhas
terapêuticas do paciente, desde o tratamento familiar com remédios caseiros à base de ervas,
passando pela consulta aos membros da família ou comunidade, até os diferentes
especialistas. (Laercio Fidelis Dias, Caderno de Campo, 2000)

Antropologia: objeto e método

O ensino da antropologia, aqui relacionado ao curso de graduação em


medicina, remete-nos a pensar em uma constante inquietação inicial dos
estudantes em saber do que trata a antropologia e qual a importância de tal
ciência. Então se mostra necessário retomarmos aspectos sobre a definição
das ciências, de um modo geral, partindo da delimitação do objeto de estudo.
No caso da antropologia, em seus elementos gerais, podem ser várias as
motivações dos especialistas, em suas diversas áreas de pesquisa, que os
levam a investigar e a elaborar explicações, fundadas em teorias, leis e
experiências. Assim, estamos diante de uma ciência que pode apresentar uma
multiplicidade de objetos de estudo, um conjunto de teorias e diferentes
métodos e técnicas de pesquisa, voltados a entender, através de
interpretações, fenômenos culturais como sistemas significativos, em suas
diversas formas históricas e geográficas (temporal e espacialmente).
As teorias que surgem das abordagens antropológicas baseiam-se em
pesquisas de campo que fazem com que os pesquisadores convivam com seus
5

objetos de pesquisa até serem capazes de interpretar hábitos, valores, modos


de vida, crenças, relações de parentesco, concepções de saúde e de doença,
entre outros vários aspectos da vida social (LAPLANTINE, 2005; SANTOS,
2004; GEERTZ, 1997).
A preocupação antropológica de compreender melhor o ser humano
relacionada à sociedade não é recente5, o interesse dos indivíduos em
observar seus semelhantes e, a partir daí, sua sociedade existe desde os
primórdios da humanidade. Porém, a constituição da antropologia como um
saber científico, tendo como objeto de conhecimento o homem e, sendo
aplicados métodos usados, até mesmo, na área física ou biológica, ocorreu
somente por volta da segunda metade do século XIX, na Europa. Foi um
momento em que se estabeleceu uma ligação entre o pleno desenvolvimento
do sistema capitalista industrial, desencadeador de uma série de mudanças
sociais, econômicas e políticas; e a concretização da autonomia da
antropologia como ciência social.
Através da expansão do colonialismo e do imperialismo, as nações
européias expandiam sua dominação pelo mundo, sendo assim subjugadas as
culturas africanas, asiáticas, indianas e latino-americanas ao poder dos países
centrais à expansão do capitalismo. Aspectos estes que se mostraram
presentes nas manifestações teóricas da antropologia durante o contexto
histórico em questão (COSTA, 2005).
A antropologia, a princípio, tinha como objeto de estudo os povos
colonizados na África, Ásia e América e, apesar de não coletarem seus dados
de modo direto, antropólogos procuravam descobrir as particularidades destas
sociedades. O objetivo das reflexões antropológicas da época era desvendar
as formas de vida e de organização de sociedades consideradas “exóticas”, o
que respondia de certa forma, aos interesses das classes dominantes
européias, que, por sua vez, apoiavam financeira e politicamente as pesquisas
desenvolvidas.

5
É possível pensarmos numa “pré-antropologia”. Desse modo a gênese da disciplina estaria
associada aos primeiros relatos dos viajantes europeus que tentavam descrever os “exóticos”
costumes dos povos com os quais mantinham contato. Dentre eles estariam cronistas,
missionários, filósofos, a exemplo de Hans Staden, Montaigne.
6

Dentre as teorias que marcaram o desenvolvimento científico do


pensamento antropológico e, que, no seu próprio interior foram superadas,
podemos citar: o evolucionismo, os determinismos, o etnocentrismo. Durante
algum tempo, explicações antropológicas basearam-se nas teorias biológicas
do evolucionismo para tratar de culturas distantes. Assim como ocorria com
organismos vivos, igualmente as sociedades humanas eram compreendidas a
partir de um desenvolvimento evolutivo, passava-se de estágios “simples”,
“primitivos” para outros mais “complexos, “civilizados”. Já os determinismos
biológicos e geográficos, procuravam atribuir causas às diferenças culturais e a
uma suposta inferioridade cultural relacionando-as, ora, a aspectos “raciais”,
“genéticos” das populações, ora às influências do meio ambiente físico. E, por
fim, o etnocentrismo6, outra tendência igualmente enfrentada e superada pela
antropologia, consistiu em posturas tomadas por uma dada sociedade para
julgar outras culturas, valores, crenças diferentes. Como ressaltou a sociologia
clássica, mais especialmente Émile Durkheim, importante sociólogo francês,
são as próprias referências culturais de um povo, que ao serem determinadas
como coisas absolutas, dificultam a compreensão de outras realidades. Com
isso, reflexões antropológicas sobre culturas diversas e a lógica própria que as
mesmas assumem foram se tornando objeto de discussão e análise desta
ciência social na contemporaneidade (SANTOS, 2004).
Ao longo do tempo, a antropologia adotou métodos diferenciados para o
desenvolvimento de estudos, o que levou aos próprios antropólogos passarem
a coletar os dados de suas pesquisas, tornando revolucionária a perspectiva de
resultados almejados a partir da inserção do pesquisador nos contextos
investigados. Observações mais detalhadas aliadas às caracterizações mais
sucintas levaram a constantes reformulações de categorias teóricas e
empíricas. Na atualidade, uma das perspectivas adotadas pela antropologia é a
interpretativa, voltada para a compreensão da relação entre indivíduo e cultura.
Propositiva de um sistema progressivo de análise, fundamentado em
diferentes razões e lógicas de organização da vida social de cada povo
estudado, a antropologia interpretativa ressalta a necessidade de se interpretar

6
O etnocentrismo consiste em julgar como “certo” ou “errado”, “feio” ou “bonito”, “normal” ou
“anormal” os comportamentos e as formas de ver o mundo dos outros povos a partir dos
próprios padrões culturais. Pode consistir numa desqualificação de práticas alienígenas, mas
também na própria negação da humanidade do outro (THOMAZ, 1995, p.431).
7

como o outro constitui construções simbólicas representativas da dimensão


moral da sociedade, a partir do ponto de vista dos próprios informantes e
reconhecendo a diversidade de formas de pensar. Como indica Geertz (1997),
importante representante dessa corrente, a antropologia propõe um
7
“entendimento do entendimento”, baseada na concepção de cultura como a
representação de símbolos e de significados que permitem aos indivíduos
orientarem as interpretações de suas experiências e, consequentemente, suas
ações (UCHÔA e VIDAL, 1994).
Lima (2005) ao analisar, em um clássico trabalho de campo, a
construção de um sistema sociocosmológico do povo tupi, do rio Xingu,
oferece-nos um bom exemplo da variedade e da dessemelhança de visões de
mundo que se tornam objeto de estudo da antropologia, ao explicar a criação
da humanidade. Pode-se perceber como o povo em questão é capaz de
caracterizar organizações e concepções sociais constituídas pelos grupos
sociais do Xingu:

Os Yudjá (grupo indígena da região do Xingu) sustentam um conjunto


de mitos que muito da configuração atual do mundo e da condição
humana é obra de Senã’ã. Este xamã magnífico soprou a
humanidade, os Yudjá. Soprou o rio Xingu e a floresta [...]. Soprou
dois seres que tinham vida própria e aplicou a um no corpo de
homens; no de mulheres, aplicou o outro. Tornou a procriação
humana, que então era estritamente masculina, dependente do corpo
das mulheres. Soprou uma parte da humanidade para que ela se
perdesse na floresta, virasse abi imama (grupos da floresta que
representam uma multiplicidade de “outros”) [...]. Depois de sua
partida, o magnífico xamã inventou as primeiras mercadorias, como
as armas de fogo, os tecidos, as facas de aço e os aviões pequenos
(LIMA, 2005, p. 25).

Ou ainda, ao explicar uma imagem do mundo atual:

7
Complementarmente a esta concepção, pode-se ainda definir a cultura como fenômeno
unicamente humano, a cultura se refere à capacidade de que os seres humanos têm de dar
significados às suas ações e ao mundo que os rodeia, refere-se, pois, a capacidade que têm
de aprender (THOMAZ, 1995).
8

O céu é uma abóboda que circunscreve o espaço do mundo,


descendo até muito perto da terra e sustentando-se sobre a cabeça
de dois sapos-cururus gigantescos, situados no eixo leste-oeste, e
sobre as forquilhas dos galhos das árvores que se erguem em todo o
redor. Do lado de fora vive um povo abi de cabelos louros, a
superfície terrestre se estende indefinidamente, não há rio e não há
luz; as trevas dominam também o espaço vazio que se abre acima do
céu... Senã’ã assopra os Yudjá transformando-os em borboletas, e
envia-os ao vale do Xingu para coletar cipós [...] São multidão os
karai que se dedicam a renovação anual das amarras que sustentam
o mundo, todos vestidos de camisa colorida (ou branca, conforme a
versão) (LIMA, 2005, p. 26).

Nos dois fragmentos acima apresentados, a apreensão do outro é feita a


partir do reconhecimento das relações de alteridade8, percebe-se nos mitos o
esforço de compreender e demarcar as afinidades e diferenças presentes nas
formas simbólicas9 adquiridas pelos grupos sociais.
A antropologia contemporânea será marcada pelo uso de explicações e
análises interpretativas para compreender as mais diversas práticas dos seres
humanos em sociedade, evidenciando um encontro com o “outro”, aquele que
é proveniente de uma “outra” sociedade, o integrante de um “outro” sistema de
valores e costumes distintos dos meus, sendo, a partir daí, consideradas as
relações de alteridade10 presentes na sociedade. Tais relações de alteridade
são definidas na atualidade como elemento central dos estudos antropológicos
interpretativos da cultura, capazes de orientar uma percepção em relação ao
“outro” como alguém que possui a mesma natureza que a nossa, e, da mesma
maneira, compreendendo-se a demarcação de afinidades e de diferenças
presentes nas formas simbólicas adquiridas pelos grupos sociais.

8 Para a antropologia, a categoria alteridade significa a capacidade de conviver com o


diferente. Significa que eu reconheço “o outro” também como sujeito de iguais direitos. É
exatamente essa constatação das diferenças que gera a alteridade (THOMAZ, 1995).
9
Formas simbólicas referem-se a abordagens antropológicas da cultura que a consideram
como sistemas simbólicos, ou seja, a cultura é entendida como um sistema de símbolos, de
formas simbólicas e significados partilhados pelos membros de uma mesma cultura,
compreendendo, assim, regras sobre relações e modos de comportamento que permitem o
entendimento do sentido dos elementos culturais atribuídos por determinados grupos sociais.
10 Como destaca Velho (1985), a “noção de outro ressalta que a diferença constitui a vida
social, à medida que esta efetiva-se através das dinâmicas das relações sociais. Assim sendo,
a diferença é, simultaneamente, a base da vida social e fonte permanente de tensão e conflito”.
9

“Quando soubemos que o hospital seria referência para índias gestantes que corriam o
risco de morrer no parto, precisamos nos informar de alguns rituais desta população para
que a cultura do povo indígena fosse respeitada aqui dentro”, afirma a médica Regina
Honda, que coordena a maternidade do Hospital Interlagos. “Caso contrário, elas poderiam
rejeitar o atendimento médico e o perigo seria enorme.” Fonte:
http://delas.ig.com.br/comportamento/diadasmaes/da+tribo+para+a+maternidade/n1237
585720441.html. 19/04/10

A importância das pesquisas etnográficas para abordar a saúde e a


doença

Ao se defrontar com sistemas culturais cada vez mais complexos, por


volta do século XX, a antropologia passou a utilizar um conjunto de métodos de
investigação científica que indicavam a necessidade de se estabelecer
contatos diretos com as sociedades estudadas para tentar explicar, interpretar,
compreender as culturas, e considerando, portanto, a extensa diversidade
cultural11. A antropologia moderna ao adotar o “trabalho de campo”, a
“observação participante” utilizou a etnografia como modalidade de pesquisa
científica de caráter qualitativo, fundamentada na inserção do pesquisador em
um campo de pesquisa diferente do seu próprio universo cultural, durante um
longo período. A pesquisa etnográfica consiste basicamente em estabelecer
relações com informantes, produzir diários de campo, realizar entrevistas,
dentre outras atividades com fins de realização de estudos sobre o
comportamento humano, a partir do contexto do objeto de pesquisa. O objetivo
é compreender como os indivíduos imprimem significados aos seus símbolos
culturais, seus valores, suas crenças e, assim, direcionam seus pensamentos e
atitudes.
O método etnográfico considera que é improvável a apreensão da
realidade como um todo; apesar de ser buscado incessantemente o

11
A diversidade das manifestações culturais se estende não só no tempo, mas também no
espaço. Diferentes culturas atribuem diversos significados perceptíveis através das suas
manifestações. A antropologia parte do princípio que mecanismos de diferenciação fazem parte
da história das relações entre as diferentes sociedades humanas. Para Lévi-Strauss (1989), ao
lado das diferenças devidas ao isolamento, existem aquelas, também muito importantes,
devido à proximidade: desejo de se oporem, distinguirem, de serem elas mesmas.
10

conhecimento dos fenômenos culturais por meio da interação entre o discurso


e o comportamento das pessoas, sendo as descrições detalhadas dos
ambientes físico e social realizadas pelos pesquisadores de extrema
importância. Para a antropologia médica, a pesquisa etnográfica com suas
ricas descrições do comportamento humano tornou-se um meio significativo
para a compreensão de crenças e valores que determinam práticas de saúde e
comportamentos associados à doença. Assim, as contribuições antropológicas,
capazes de trazer informações culturais, antes consideradas, muitas vezes,
irrelevantes para as intervenções terapêuticas, demonstram-se, a partir dos
resultados de suas pesquisas etnográficas, de grande influência para os
estudos na área médica que, exaustivamente, buscam contemplar as mais
diversas dimensões do ser humano (D’AREDE, 2005; UCHÔA & VIDAL, 1994).

Diário de Campo
Registro das peculiaridades sutis que chamam a atenção em campo.
Principal forma de registro de observação.
É também uma forma de objetivação da situação de campo, informa sobre as condições de
coleta dos dados (contexto).
Deve ser detalhado, extensivo, preciso e sistemático.
Deve incluir 2 tipos de relatos: descritivos e reflexivos.

Roteiro de Entrevista
Antes de elaborá-lo, é necessário adequá-lo ao objetivo da pesquisa, ao contexto da
entrevista: se aberto ou semi-estruturado.
Possibilidade de construção de um roteiro preliminar.
Flexibilidade para eliminação de perguntas pouco rentáveis e inclusão de outros aspectos.
O roteiro é um guia, não uma “camisa de força”.
Dados de identificação do entrevistado podem ser apresentados no início do roteiro ou no
fim.
Em relação à postura do entrevistador, busca-se um equilíbrio entre o favorecimento da
livre manifestação do entrevistado e o cuidado para não se distanciar do foco.
Intervenção do pesquisador deve ser sempre no sentido de favorecer que o entrevistado
esclareça aspectos ditos – “como assim?”.
Não é aconselhável que o pesquisador se posicione, as suas concepções não devem
interferir na conversa, ele está ali para ouvir e conhecer as práticas e representações.
11

A aproximação da medicina à antropologia e ao seu método etnográfico


permite a constituição de um novo olhar médico que busca valorizar aspectos
relacionados ao subjetivismo presente nas relações entre médico-paciente.
Aspectos como experiências de vida, crenças, sentimentos, modo de vida são,
hoje, considerados partes importantes e essenciais na promoção da saúde. A
prática médica não deve desconsiderar o saber popular, conciliando-o ao saber
científico, a medicina pode atender às necessidades de saúde e bem-estar do
paciente.
Na medida em que a cultura influencia, de maneira marcante, o
comportamento humano, a medicina se apóia na antropologia para desvendar
as culturas, o outro, num processo de reelaboração cultural de suas próprias
intervenções práticas, busca-se com isso formas mais eficientes de cura,
prevenção e promoção da saúde.

Etnografia
Consiste na presença intensa do pesquisador no contexto pesquisado, com uso da
observação participante e de entrevistas informais e semi-estruturadas.
Três tipos de dados são priorizados: documentos escritos, observações e relatos orais.
Resulta em uma “descrição densa” (Geertz) do contexto investigado, ressaltando tanto
aspectos formais da organização social, quanto os valores e visão de mundo.

“Ao chegar ao Rio, eu precisava apresentar-me a altos funcionários do governo e da polícia


federal, a fim de provar a minha identidade e a inocência política dos estudos propostos... Na
Bahia, velhas tradições ganhavam ameaçadora vida diante de mim. Para começar não havia
possibilidade de alojamento ou diversão para uma moça solteira, desacompanhada, sem
família e independente... Na Bahia há alegria de viver, alegria tangível como as jovens
palmeiras que emolduram igrejas nas colinas... À noite, a alegria se transformava em música,
quando as pessoas se visitavam e os jovens saíam em grandes bandos, apenas para andar, de
roupa limpa, e riam calmos, cantando, às vezes”. (Ruth Landes, A Cidade das Mulheres,
2002)

Antropologia Médica: a constituição do campo de pesquisa e prática

O interesse antropológico na área da saúde tem crescido


significativamente, uma vez que um número importante de trabalhos vem se
concentrando nesse campo de estudo. Delimita-se assim uma especialização
da antropologia, a antropologia médica, voltada para a abordagem dos
12

complexos fenômenos da saúde e da doença que se constituem e devem ser


interpretados culturalmente e conjugando fatores diversos: biológicos,
sociológicos, econômicos, ambientais. Ao nos referirmos a inúmeros discursos
construídos sobre a saúde e a doença que coexistem, evidenciamos, ainda,
outro aspecto importante de caracterização da antropologia médica: as
estratégias variadas de pesquisa.
Assim como a antropologia geral, os estudos da antropologia médica
iniciaram-se com as descrições etnográficas do século XIX, sendo abordados
fenômenos como o xamanismo, as “medicinas tradicionais” e as “medicinas
populares”12. Merece destaque as contribuições de Marcel Mauss (1872 –
1950) e sua percepção em torno da noção técnica do corpo, compreendendo o
corpo humano como um instrumento natural e essencial que permite comparar
intervenções médicas variadas como a higiene, a sexualidade, etc., além das
significativas considerações que o antropólogo fez entre magia e religião,
enfatizando a prática dos curandeiros e seu poder dos enfeitiçamentos, sendo
as análises das questões do processo saúde – doença voltadas para as
descrições da relação cérebro – emoção (QUEIROZ & CANESQUI, 1986).
Outra importante contribuição para a antropologia médica foi a de
Evans-Pritchard, que realizou uma descrição da farmacopéia mágica e outras
características religioso-étnicas dos povos da África Central. Podemos citar
também Claude Levi-Strauss, que propôs a compreensão do pensamento
mágico e da mitologia, sendo comparados ao pensamento científico (QUEIROZ
& CANESQUI, 1986).

12
O xamanismo refere-se a uma das crenças e práticas espirituais mais antigas da
humanidade, presente não apenas na tradição indígena, mas em várias religiões. Pode até
mesmo ser considerada uma forma de religião, centra-se na figura do xamã que representa
uma figura dominante, um intermediário entre o mundo espiritual, natureza e comunidade
intermedeiam a relação sagrada do homem com o planeta e torna-se essencial ao processo de
cura. Sempre foi freqüente a dedicação do xamanismo às práticas de cura, sendo comparada a
uma forma de medicina da terra, derivada de conhecimentos medicinais ancestrais. As
medicinas tradicionais, por sua vez, são constituídas por práticas e crenças que visam à
manutenção da saúde. Foram desenvolvidas antes da medicina moderna e não se baseiam em
constatações científicas, como a medicina profissional convencional, pauta-se em valores
espirituais, ético/morais, e acontecimentos históricos significativos, sendo suas práticas ainda
presentes em algumas culturas.
Também para as medicinas populares corpo e espírito são inseparáveis, sendo o
sofrimento humano resultado de variadas causas: quebranto, a lua nova, a espinhela caída, um
osso rendido, os vermes, micróbios, o ar brabo, o alimento quente, uma praga rogada, o
castigo de Deus/ do santo/ ou do orixá, o encosto, feitiço, e outros. Para as medicinas
populares são necessárias a utilização de três formas de tratar doentes, que são: as plantas
medicinais, as rezas e as simpatias (SÁEZ, 2005).
13

Além das práticas médicas populares, tradicionais e religiosas com suas


crenças, também é objeto da antropologia médica o modo como se formam os
distintos saberes e experiências de cura populares que não pertencem à
medicina ocidental legitimada, e repercutem em alterações da realidade cultural
e institucional, interferindo, até mesmo, tanto na intervenção profissional dos
especialistas da cura, como na produção e distribuição de ações e serviços de
saúde. A cultura popular e seu saber informal sobre saúde e doença foram
reveladores da história de grupos sociais, com suas expressões políticas,
sociais e culturais, sendo absorvidos pelos projetos nacionais de
desenvolvimento social. Vale ressaltar que o propósito não foi o de demonstrar
uma medicina popular capaz de servir como alternativa à medicina “oficial”,
mas sinalizar que esta medicina científica convencional é mais uma variação
da diversidade de percepções sobre “doença”, “saúde” e “corpo”, dentre outras,
revestidas de sentido, e, que para compreendê-las, plenamente, é necessário
considerar o universo cultural de origem.
No que tange a medicina popular, por exemplo, pode-se afirmar que esta
traz importantes contribuições na dimensão da solidariedade emocional, uma
vez que a compreensão de uns com os outros está sempre presente nas
relações que envolvem curandeiros e doentes, pois a doença envolve não só
aspectos biológicos, mas elementos que caracterizam a percepção da pessoa
na sua dimensão global. Constata-se, então, a medicina como uma construção
social dependente, em especial, dos seus pacientes e das concepções que
apresentam sobre doença e saúde (QUEIROZ & CANESQUI, 1986; UCHÔA &
VIDAL, 1994).
Na atualidade, os referenciais teóricos que marcam o desenvolvimento
da antropologia médica vinculam-se as tendências da já referida corrente
interpretativa, sendo representados por importantes autores como Arthur
Kleinman e Byron Good. A antropologia médica contemporânea oferece novos
paradigmas de compreensão da saúde e da doença, constituindo-se elementos
teóricos e metodológicos essenciais para se pensar como os fatores culturais
interferem no campo da saúde. Kleinman e Good (1985) abordam fatores como
as desordens orgânicas ou psicológicas que acometem doentes e devem ser
interpretadas tanto por estes sujeitos, como por médicos e familiares
(KLEINMAN & GOOD,1985; UCHÔA & VIDAL, 1994).
14

Outra questão importante abordada pela antropologia médica foi


levantada por autores como Eisenberg e Cassell, é a distinção entre “doença
processo” (disease), a enfermidade e a “doença experiência” (illness), doença.
Quando os autores utilizam a expressão “doença processo” (disease),
enfermidade se refere a anormalidades dos órgãos, a patologias que levam ao
mal funcionamento do organismo biológico; já a “doença experiência” (illness)
representa a resposta subjetiva não só do paciente, mas de todos que o
cercam à doença. Nessa perspectiva, a experiência do adoecer não deve
somente ser percebido e encarado como simples reflexo do processo
patológico, sendo importante considerar-se formas específicas de pensar e
agir. O que significa dizer que uma mesma patologia e seus sintomas podem
ser interpretados de formas diferentes por indivíduos provenientes de culturas
distintas, tendo repercussões nos tipos de tratamento e na forma de adesão
que serão buscadas pelos pacientes. Como observou Cassell (1985): “Há uma
distinção entre a patologia de um órgão do corpo e a doença do homem como
um todo” (D’AREDE, 2005; UCHÔA & VIDAL, 1994, CASSELL, 1985).
Kleiman indica, ainda, que sistemas de cuidados à saúde são
construídos e organizados com base em interações e concepções sociais dos
grupos a partir de três setores distintos: profissional, tradicional e popular,
devendo-se considerar o sistema cultural que os informam. O mesmo autor
trata, também, do conceito de “modelo explicativo” para avaliar como se dão os
problemas de comunicação entre aqueles envolvidos em um episódio de
doença e de seu tratamento, sendo influenciados por fatores da personalidade
dos indivíduos e por elementos da cultura. Kleinman ressaltou a distinção
existente entre “os modelos explicativos” dos médicos e “os modelos
explicativos” dos doentes e de seus familiares, o autor indicou, ainda, como
crenças, normas de conduta e expectativas específicas são veiculadas através
desses modelos, o que permite o estudo do conjunto de elementos culturais
construídos no campo da saúde.
Os modelos explicativos apresentados por Kleiman evidenciam causas
naturais ou sobrenaturais das doenças, capazes de orientar entendimentos
sobre a descrição de sintomas ou sobre as doenças propriamente ditas
apresentados pelos pacientes, assim desvendam-se categorias espirituais ou
sobrenaturais que remetem às crenças de determinados grupos sociais tanto
15

em termos de agentes naturais causadores das doenças, como micróbios,


bactérias, por exemplo, quanto em termos de agentes sobrenaturais,
responsáveis por gerar de sensações de “mal-estar”, como mau-olhado, feitiço,
inveja. A presença de tais categorias de “causação” das doenças em modelos
explicativos de pacientes revela aspectos mais complexos de análises,
relacionados a determinadas estruturas mais amplas de poder e organização
das sociedades, assim como são evidenciados critérios de seleção e
combinação de alguns elementos em detrimento de outros que ordenam as
escolhas dos indivíduos, conforme suas crenças, em relação ao tipo de
tratamento de doenças buscado por determinados pacientes, como o uso de
alternativas de terapias naturais, sobrenaturais ou profissionais (KLEIMAN
APUD HELMAN, 1994; D’AREDE, 2005).
Os estudos antropológicos recentes indicam a necessidade constante de
questionamento do “naturalismo” das interpretações biomédicas para que
sejam evitadas intolerâncias frente a outras formas de pensar e agir em relação
à doença. Ressaltam possibilidades de uma maior sistematização de
elementos que compõem o contexto cultural dos grupos humanos
populacionais, capazes de interferir na decisão de tratar ou não um
determinado problema e na escolha da terapia de cura, tratamento apropriado.
Desse modo, pode-se inferir que os estudos antropológicos contemporâneos
partem do principio que os
“...processos de doença e procura de tratamento são
processos imersos e mediados por contextos culturais
específicos. Ou seja, tanto a percepção da doença como as
ações de cura não dependem simplesmente de uma
classificação estática ou da ação de aspectos puramente
biológicos. Saúde, doença e cura acontecem dentro de
“sistemas médicos específicos”, o que lhes confere significados
e modelos de ações próprios” (LANGDON, apud NOVO, 2010).
16

Caso 1:
Daniel é um rapaz novo, casado há pouco tempo, que mora com a mulher e
os filhos. Ele me disse que nunca tiveram problemas de saúde além de gripe, diarréia,
quebranto, tosse e ressaca. A gripe é tratada com um chá preparado com casca de juta,
margaridinha, kamãte e limão. Também para a gripe, Daniel recomenda um banho
preparado com as folhas do limão galego. Para preparar o banho é necessário ferver a
água com as folhas do limão e deixar a mistura no sereno por uma noite. Esse
procedimento é necessário porque o chá tem de absorver o frio da noite para poder tirar o
calor do corpo e da cabeça que provoca o mal-estar. A diarréia é tratada com o chá do grelo
da goiabeira e do cajueiro. Quando não resolve é preciso procurar a enfermaria. Quando
criança está com quebranto, acompanhado de febre, diarréia e vômito, a sua esposa a leva
para benzer. Daniel disse que o pajé da aldeia sempre se oferece para dar uma “olhada” no
corpo das pessoas da família, na casa, para “ver se não há alguma coisa”. Daniel aceita
porque estão bem, e nunca sentiram nada (DIAS, 2000; 64).

Caso 2:
Inaveide pertence a uma das poucas famílias “crentes” (Assembléia de Deus) da
aldeia de Santa Isabel. Ela disse que quando alguém da família tem algum problema de
saúde, o tratamento é feito em casa ou na enfermaria da aldeia. Quando estão na roça,
longe da aldeia, o jeito é usar o “remédio do mato”. Em caso de gripe forte, cólicas e
diarréias, Ivaneide vai direto à enfermaria. Bem que, a diarréia também pode ser tratada em
casa com um tipo de batata que se encontra no mato. Para preparar o remédio rala-se a
batata e se coloca em vasilha com água. Deve-se ir tomando água com a batata ralada
durante o dia até a diarréia parar, é preciso procurar a enfermaria. Ivaneide disse que nunca
foi tratada com benzedores, sopradores e pajés. Ela conta, entretanto, que muitas doenças
são tratadas com orações a Deus. (DIAS, 2000; 64)

A abordagem antropológica da doença, da saúde e do corpo – diversos


saberes

As diversas concepções de saúde, doença e corpo estabelecidas por


grupos sociais em diferentes contextos e em diversos tempos alteram-se,
fundamentalmente, na medida em que importantes transformações ocorrem
nas sociedades. Vale observar, que estas diversas construções podem
17

coexistir na atualidade, através da permanência de modelos antigos presentes


nas práticas sociais. Sendo essencial retomarmos uma breve trajetória histórica
das concepções em questão, seus significados e as conseqüências para os
cuidados com o corpo em relação aos pacientes e aos especialistas da cura.
Ressalta-se, assim, a necessidade da busca de um maior conhecimento sobre
a cultura local, permeada por uma visão menos preconceituosa das condições
de vida de diferentes realidades sociais.
Vale lembrar que a abordagem dos problemas de saúde de um
determinado grupo humano tem como ponto de partida a atenção para a
relação estabelecida entre indivíduos e suas culturas. Podemos, com isso,
utilizar as referências de Geertz para o entendimento antropológico do conceito
de cultura. Para o autor refletir sobre cultura exige uma percepção de universos
de símbolos e significados que permitem aos indivíduos interpretar
experiências e nortear suas ações, sendo assim diferentes acontecimentos
sociais se tornam inteligíveis e reforça-se, então, a importância da cultura na
compreensão de diferentes fenômenos humanos, como os de saúde e doença.
(GEERTZ, 1997; D’AREDE, 2005; UCHÔA & VIDAL, 1994).
A antropologia médica, em especial, passou a se dedicar ao estudo da
doença em relação ao comportamento humano a partir da análise de episódios
de “mal-estar”, de reações à dor, o que possibilitou diferentes interpretações de
acordo com a história de vida de cada indivíduo, elaborando reflexões sobre
aspectos subjetivos das realidades vivenciadas. A doença era, então,
percebida como fenômeno biológico objetivamente definido, com base nas
orientações da ciência médica ocidental. À antropologia médica restava
compreender o comportamento dos doentes em suas diferenças, sendo
buscadas possíveis causas que explicassem tais diferenças, baseadas em
cultura, classe social, gênero, entre outros aspectos (QUEIROZ & CANESQUI,
1986).
As concepções de saúde fazem parte de realidades bem concretas,
porém, suas definições parecem ser apresentadas sob formas imprecisas, sem
definições objetivas. Construções conceituais sobre saúde estão, muitas vezes,
vinculadas a representações de um vir a ser, com objetivos a serem
alcançados, tanto em termos dos indivíduos, como sociais. Um exemplo
recente de tal fato é a definição de saúde da Organização Mundial de Saúde
18

(OMS), que diz o seguinte: “saúde é o mais completo estado de bem estar
físico, mental e social, e não apensas a ausência de doenças”.
No caso das concepções classificatórias das doenças, as explicações
tornam-se mais claras, sendo encontradas ao longo da história da humanidade,
apresentadas de diversas formas e em várias organizações da sociedade,
doença e doentes, em geral, aparecem vinculados a um saber técnico. Desde a
Grécia antiga, com Hipócrates, quando entender a saúde e a doença
dependiam da racionalidade aguçada pela observação cuidadosa dos
fenômenos, uma medicina de elite centrou-se no cuidado do corpo e o médico
deveria contribuir com o estabelecimento da harmonia entre o indivíduo e seu
ambiente. A doença era, portanto, entendida como um fenômeno natural que
sendo controlado assegurava-se a competência dos praticantes da cura.
Já nas comunidades tradicionais, os eventos de doença eram explicados
por uma visão mágica, influenciada por espíritos e outras forças sobrenaturais,
sendo, ainda, indicadas a ação medicinal de produtos naturais para o
tratamento de patologias. Tempos depois, a partir do contato, alteraram-se as
explicações das causas das doenças. A doença passou a ser associada à idéia
de pecado, resultado da desobediência dos humanos aos ditames de deuses.
Um modelo religioso de compreensão das doenças substituiu a visão mágica
anterior, sendo os sacerdotes os autores de tais explicações e os doentes os
responsáveis por seus sofrimentos.
Com o desenvolvimento de estudos científicos voltados para a
taxonomia médica, por volta dos fins século XVIII e início do século XIX, a partir
do advento de novos métodos de pesquisa, como a utilização de estatísticas,
por exemplo, doenças novas e antigas foram descritas e classificadas. Surgiam
as preocupações com as ações de saúde a partir do ordenamento dos espaços
urbanos, em função da ampliação da transmissão das doenças, como ressaltou
Foucault13 em suas análises sobre as diferentes etapas da formação da
medicina social.

13
Ao analisar o nascimento da medicina social sob o capitalismo, Foucault indicou três etapas
de sua formação nas principais sociedades européias: a medicina do Estado, a medicina
urbana e a medicina da força de trabalho que representaram importantes novas fases da
prática médica, sendo evidenciadas as estratégias biopolíticas de controle social dos corpos,
propiciadas pelo próprio sistema capitalista de produção e acumulação de riquezas.
(FOUCAULT, 1986; JACOBINA, 2007).
19

A precariedade dos sistemas coletivos urbanos, como distribuição de


água e circulação de ar, foi objeto de preocupações de grupos sociais
dominantes que propuseram ações de saneamento, associadas a isto novas
condições de vida agravaram as condições de saúde das populações, como a
desnutrição, o alcoolismo, a violência, etc. Até que se chegou a um momento
em que a crise sanitária passou a oferecer riscos ao projeto de acumulação
capitalista. Assim, as concepções positivas de saúde associavam-se às
condições do meio externo e as doenças se caracterizavam como
conseqüência da pobreza e da injustiça social.
Com o passar dos tempos, grandes conquistas foram alcançadas, como
a descoberta de antibióticos e outros medicamentos eficazes no combate a
determinadas doenças, além do que tais conquistas modificaram as práticas de
saúde fundamentadas, a partir de então, no conhecimento técnico-científico,
desconsiderando-se práticas tradicionais de intervenções médicas. O controle
dos problemas de saúde tornou-se uma questão pública, prioritária para as
sociedades, até conquistar-se o enfrentamento de tais problemas através de
política sociais.
Com relação aos processos de saúde-doença, pode-se afirmar que
dependem da posição do observador: podem tanto indicar alterações
fisiopatológicas, como representar valores culturais que envolvem
subjetivismos, como o sofrimento trazido pelo processo de adoecer. E podem,
ainda, apresentar questões referentes à saúde pública.
Outro elemento que deve ser considerado nos estudos da cultura e dos
sujeitos é o de como pensar o corpo, sendo compreendido com base
existencial da cultura. O que implica em afirmar que os indivíduos se
constituem objetos para eles mesmos. A idéia de corpo também sempre esteve
presente nas preocupações de observações e estudos da humanidade. O
corpo já foi associado à beleza durante a Grécia antiga, à carne pecaminosa
para o cristianismo, a uma máquina de funcionamento perfeito segundo os
cartesianos. Reflexões sobre o corpo aparecem em contos de fada, em rituais,
no carnaval, sendo também abordado por várias ciências, constituindo
inúmeros ensaios.
Com a organização econômica das sociedades ocidentais baseadas no
avanço do sistema capitalista de produção e acumulação de riquezas, a
20

concepção de corpo passou a ser associada à força de produção, sendo


notório o interesse de controle e disciplinamento do corpo dos indivíduos pela
sociedade, como analisou Foucault. A medicina moderna do período em
questão tornou-se uma prática técnica e social, capaz de tratar tanto o corpo na
sua dimensão biológica, somática, quanto na dimensão ideológica, com a
finalidade política de controle das consciências das categorias de trabalhadores
por parte das classes dominantes na sociedade
Hoje, as concepções de corpo apresentam-nos como elemento
essencial para localizar o indivíduo numa determinada cultura, relacionando o
comportamento do sujeito ao mundo objetivo e, ao mesmo tempo,
considerando os significados culturais. O corpo, então, serve ao indivíduo como
uma espécie de orientação em relação ao tempo e ao espaço, normas e
motivações. Vale ressaltar que a noção de corpo já enfrentou dualidades entre
corpo e mente, sujeito-objeto, humano-animal, caracterizando diferentes
manifestações do imaginário dos seres sociais. Alguns autores como Merleau-
Ponty concebe o corpo como um “contexto em relação com o mundo”, já para
outros pensadores como Bourdieu, o corpo é o “princípio gerador e unificador
de todas as práticas” (MERLEAU-PONTY, apud CSORDAS, 2008). No caso da
antropologia médica a preocupação é entender o corpo, e, sobretudo, o corpo
como é visto entre nós.

A doença, ao mesmo tempo em que é a experiência mais individual por que passa o ser
humano, é um fenômeno cultural e, portanto, sua definição, origem e desenvolvimento
(concepção, etiologia e terapia) são construções culturais. Ao mesmo tempo em que é uma
forma de saber cujas manifestações se inscrevem no corpo, está sujeita continuamente a
interpretações sociais. Por isso não é possível entender como os Wayana-Aparai reagem e
absorvem a medicina ocidental sem considerarmos que há pelo menos quatro gerações
encontram-se em contato intermitente com a população regional e um pouco mais de três
décadas sofrem os efeitos diretos dos agentes assistenciais, funcionários do governo e
missionários. O pluralismo médico que se constituiu entre eles expressa uma espécie de
síntese desta relação que travam com o mundo de fora. (Paula Morgado, Caderno de
Campo, 1994)
21

Remédio natural
A FUNASA acredita que não apenas as maternidades tradicionais devem reservar espaço
para a cultura indígena como também é preciso incentivar a medicina indígena. No
congresso do ano passado, o foco defendido foi o da etnomedicina, técnica sobre a
produção de medicamentos naturais, por meio de plantas para o tratamento de doenças.
Os caciques que participaram do evento avaliavam que o regate dos medicamentos
naturais e o incentivo da produção dos mesmos protegem a população das tribos. “A gente
precisa resgatar esse conhecimento, pois não podemos depender só dos remédios dos
brancos. Muitos problemas de saúde, como febre, diarréia e gripe, podem ser resolvidos na
aldeia com nossas plantas, sem precisar ir pra cidade” afirmou Domingos Kaxinawá (de uma
tribo no Acre), na última edição da revista da FUNASA. Fonte:
http://delas.ig.com.br/comportamento/diadasmaes/da+tribo+para+a+maternidade/n1237
585720441.html. 19/04/10

Comentários Finais: alguns frutos do diálogo entre a Antropologia e a


Medicina

A antropologia ao estudar homens e mulheres em sociedade indica


caminhos importantes para a compreensão, interpretação e análise das
diversas e, ao mesmo tempo, únicas culturas e seus fenômenos que compõem
a vida coletiva da humanidade. Na busca exaustiva do conhecimento científico,
a antropologia utiliza métodos de pesquisa a partir dos quais as questões
relacionadas à cultura de um povo são apreendidas, sem ter a pretensão de
dar conta da realidade social como um todo, porém dispondo de elementos que
permitem caracterizar tais métodos como, essencialmente, qualitativos. As
abordagens antropológicas possibilitam, aos que se apropriam delas, como
indica Santos (2004) “pensar antropologicamente” sua área de atuação e
estudos, assim permite-se conhecer o contexto sociocultural dos indivíduos
com os quais se pretende estabelecer interações sociais, a partir de seus
valores, comportamentos, concepções, crenças e visões de mundo.
O desenvolvimento de estudos das ciências sociais em medicina
originou a antropologia médica, uma das especificações da antropologia. De
acordo com o entendimento oferecido pela antropologia médica podemos
refletir sobre suas contribuições à medicina tanto de forma analítica, quanto
prática, sendo capaz de complementar a prática médica com noções sobre
22

alteridade, diversidade e solidariedade, só para citar algumas. Com isso, as


abordagens antropológicas favorecem uma melhor percepção de interferências
diretas de crenças e valores dos pacientes na intervenção médica, sendo
importante considerar a avaliação do contexto social e cultural dos doentes que
informa suas visões de mundo e atitudes.
A antropologia médica coloca, em especial, aos médicos a necessidade
de compreensão dos aspectos objetivos e subjetivos da doença, ao oferecer
informações culturais do adoecer. Com isso, estudos antropológicos favorecem
entendimentos não apenas das dimensões biológicas das doenças, mas
também dos determinantes sociais dos processos de saúde-doença.
Com sua preocupação de analisar o comportamento humano em relação
à doença, a antropologia médica aponta para a importância do médico avaliar
as expectativas dos indivíduos que interagem com ele, no caso, o paciente. Na
relação entre médico e paciente deve-se considerar que atitudes e crenças são
previsíveis, quando considerado o meio social a que pertencem os indivíduos
em interação social. Como lembra D’arede (2005), uma boa estratégia que
facilita tal relacionamento é buscar melhorar a comunicação, sendo colocado
ao médico a essencialidade da decodificação de elementos característicos de
uma determinada cultura, como a linguagem própria de um determinado grupo.
Quando a comunicação é favorecida entre os indivíduos, suas intervenções
são permeadas por sentidos, sendo as mesmas, consequentemente,
compreendidas e aceitas.
Entender a antropologia, com seu aparato de saberes e métodos, pode
levar a medicina a subsidiar novas e efetivas formas de elaborar a promoção
da saúde de uma dada população, sendo, portanto, essencial à medicina
assumir um olhar atento e familiar ao universo sócio-cultural do processo de
saúde-doença.
23

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