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Autismo e Constituição Do Sujeito
Autismo e Constituição Do Sujeito
INSTITUTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO
Dissertação de Mestrado
AGRADECIMENTOS
Agradeço,
Aos meus filhos, MARIA CAROLINA ARAUJO VARELA e LUCAS ARAUJO
VARELA, cuja alegria e descontração me serviram de amparo.
Aos meus pais, ALBERTO LEMOS ARAUJO e MARIA DIVA DA COSTA
ARAUJO, pelo gosto pela matemática e pela criatividade.
A HUMBERTO JOSÉ MARTINS, pelo carinho e por seus freqüentes questionamentos.
A MARY KLEINMANN, pela competência em seu ofício.
A RENATA SANTOS SOUZA, pela cumplicidade com que tem assessorado boa parte
de meus afazeres, inclusive dessa dissertação.
A PAULO VIDAL, pela gentileza de sua escuta e pela agudeza de suas intervenções.
A GERALDO CHIOZZO DE OLIVEIRA, reumatologista, JÚLIO CESAR MATHIAS,
ortopedista e VALÉRIA MATHIAS, fisioterapeuta, de cuja competência profissional
dependi para levar adiante esse trabalho.
Ao SERVIÇO DE PSICOLOGIA APLICADA da Universidade Federal Fluminense,
pelo incentivo e acolhida nesse momento de conclusão.
Aos ANALISANDOS e PACIENTES, por seus ensinamentos.
Aos AMIGOS, porque a amizade é imprescindível.
RESUMO
RÉSUMÉ
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 01
CONCLUSÃO ...................................................................................................................
90
BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................
INTRODUÇÃO
O termo autismo foi cunhado por Eugen Bleuler por subtração de eros do termo
auto-erotismo inventado por Havellock Ellis e retomado por Freud. Bleuler designou
como autismo o estado de alheamento e de desinvestimento no mundo, gerador de certa
1
LACAN, J. - O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54) Rio de
Janeiro, Zahar Editores S.A., 1983, p.105
2
KLEIN, M. - Amor, Culpa e Reparação (1921-1945), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda., 1996.
3
TUSTIN, F. – Autismo e Psicose infantil (1972), Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1975.
auto-suficiência, que se expressa na analogia proposta por Freud, de um ovo que
encontra em seu interior tudo que precisa. Ao autismo foi atribuído lugar de destaque
entre os sintomas mais importantes da patologia descrita por Bleuler: a esquizofrenia.
Em 1943, Leo Kanner, em Baltimore, descreveu, pela primeira vez, o que chamou
distúrbio autístico do contato afetivo, síndrome de aparecimento muito precoce, que
tinha o fechamento autístico como sintoma fundamental. Simultaneamente, Hans
Asperger, em Viena, trabalhava na descrição de uma síndrome com traços bastante
semelhantes, embora mais amenos, que denominou psicopatia autística, e que ficou
conhecida posteriormente como Síndrome de Asperger.
Ao nascer, a criança autista não apresenta indício em seu organismo, que sugira o
desenvolvimento da síndrome. Desde os primeiros anos de vida, gradativamente, torna-
se manifesto que ela estabelece uma relação muito especial com o mundo que a cerca.
As primeiras manifestações podem ser sutis e costumam passar despercebidas.
Freqüentemente há relatos de que o bebê não se “aninha” quando é colocado no colo,
por isso é muitas vezes incômodo e desconcertante segurá-lo. Às vezes são “bonzinhos”
demais, às vezes choram demais. Eles não “conversam”, os sons que emitem não são
compatíveis com o balbucio comuns nos bebês a partir do terceiro mês. O bebê autista
não faz “gracinhas” visando seduzir aquele que se ocupa dele.
Uma das características mais marcantes nessas crianças é a precisão com que
registram as imagens tanto visuais quanto auditivas. Desta forma, são os primeiros, e às
vezes os únicos, a notar a falta - ou a mudança de lugar - de um objeto no ambiente.
Freqüentemente, são capazes de reproduzir literalmente falas – mesmo longas - que
registraram em alguma ocasião, às vezes, única. É comum que essa percepção particular
das coisas se expresse através de crises espantosas de agitação e angústia, que podem
incluir a heteroagressividade, mas quase nunca excluem a autoagressividade.
4
KANNER, l. – Os distúrbios autísticos do contato afetivo, in: ROCHA, P. S. (Org.), Autismos. São
Paulo, editora Escuta, 1997.
1991, traduziu o trabalho de Asperger para o inglês, promovendo seu merecido
reconhecimento, muitas discussões têm sido levantadas, sobretudo no sentido de decidir
se devem ou não ser consideradas como a mesma síndrome, e se esta deve ou não ser
incluída entre as esquizofrenias. No momento, existe uma forte tendência em considerar
ambas as síndromes como expressões diversas de um mesmo quadro patológico, visto
que a Classificação Internacional de Doenças em sua décima edição – CID X - inclui
ambas entre os Transtornos Invasivos do Desenvolvimento, diferenciando-as dos
Transtornos Emocionais e de Comportamento da Infância.
5
BARON- COHEN, S. – Autismo: uma alteração específica de “cegueira mental”, in Revista Portuguesa
de Pedagogia Ano XXIV, Coimbra, 1990. p. 408.
6
KANNER, L. – Os distúrbios autísticos do contato afetivo, op.cit.
Embora as palavras de Kanner mencionadas acima contradigam o entendimento
de Baron-Cohen, de fato, Kanner valorizou o aspecto emocional e isto pode ter
contribuído para que os psicanalistas tenham sido os primeiros a se dedicarem ao estudo
das crianças autistas.
A partir da década de 80, surgiram publicações de autistas de alto nível, tais como
de Temple Grandin, Donna Williamn, Amelie Nothomb, também chamados savant, nas
quais são fornecidos elementos esclarecedores a propósito do funcionamento psíquico
autista. Através desses depoimentos, cai definitivamente por terra a concepção de que
esses sujeitos seriam seres isentos de angústia e de atividade mental, tal como fora
afirmado por Donald Meltzer. A idéia do autismo como um estágio normal do
desenvolvimento pode também ser considerada inteiramente ultrapassada. A própria
Francis Tustin, maior defensora dessa noção, as reformulou em suas últimas
colocações7. O entendimento do autismo como quadro predominantemente reativo,
segundo as idéias de Bruno Bettelheim8, encontra-se hoje bastante enfraquecida.
7
TUSTIN, F. - Entrevista com E. Vidal, in Letra Freudiana. O Autismo. VIDAL, M.C.
(org.), Rio de Janeiro, Livraria e Editora RevinteR Ltda, 1995, p.85.
8
Idem, ibidem.
manifestações que observamos no autismo nos remetem à diversidade de uma escolha
ocorrida num momento muito precoce de sua existência.
Desta forma, tomo como ponto de partida a assertiva de que os autistas estão
inseridos nas leis da linguagem. O modo singular como se servem da palavra, de tal
forma que não possamos identificar ali uma intenção de comunicação, poderia colocar
em questão a própria constituição da fala, ou mesmo a inserção do sujeito na linguagem,
isto é, em sua condição de ser falante.
9
LACAN, J. - O Seminário, livro 3, As Psicoses (1955-56) Rio de Janeiro, Zahar Editores S.A., 1985,
p.100
10
LACAN, J. – “Conférence à Genève sur le symptôme”, in Le Bloc-Note de la psychanalyse, n°5, Paris,
1985, p. 17
Tomando a psicanálise como caracterizada por destacar a responsabilidade do
sujeito perante sua expressão sintomática, não podemos senão considerar que há uma
escolha implicada na posição autística. A escolha, segundo a psicanálise, diz respeito à
posição que o sujeito assume frente ao Outro e ao gozo que lhe é próprio. Isso nos leva
a interrogar quanto à posição do sujeito autista frente ao Outro e a natureza do gozo que
ali comparece.
A psicanálise surge, no início do século XX, como uma invenção de Freud para
dar conta do que se passava no psiquismo de seus pacientes. Em seus primórdios,
influenciado pela neurologia, Freud elaborou o “Projeto para uma Psicologia
Científica”11 - ao qual passarei a referir-me como o Projeto –, visando uma abordagem
neurofisiológica do aparelho psíquico. O resultado foi uma certa neurologia fantástica12,
que não o entusiasmou a publicar. Hoje, quando Eric Kandel confirma as hipóteses
freudianas ao nível do funcionamento neurobiológico13, pode-se supor que as idéias de
Freud eram demasiadamente avançadas para os conhecimentos histo-fisiológicos da
época.
11
FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos (1895[1950] ) in Obras
Completas, Vol. I, Madrid (España), Editorial Biblioteca Nueva, 1981.
12
GARCIA-ROZA, L. A. – Sobre as afasias (1891), O Projeto de 1895, in Introdução à metapsicologia
freudiana, Vol. I, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor Ltda., 1991, p.80.
13
Pesquisador do ramo da neurociência, prêmio Nobel de medicina em 2001. Cf. se lê no Jornal O Globo
de 20/06/04; O Jornal da Família, p.1-2.
14
LACAN, J. – O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise (1959-60) Rio de Janeiro,
Zahar Editores S.A., 1988, p.62.
15
Idem, ibidem, p.49.
16
Idem, ibidem, p.60.
17
LACAN, J. – O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1953-54) Rio de
Janeiro, Zahar Editores S.A., 1983, p.174.
Assim, é possível se verificar, antes mesmo da “Interpretação dos sonhos”18, a
relevância da dimensão da linguagem para a psicanálise. Lacan destacou que:
Nesses termos, Lacan pontua que, no Projeto, Freud propõe os elementos básicos
do trilhamento significante demonstrando que a estrutura da linguagem, ou seja, a lei do
significante, ordena os elementos de estão em jogo no inconsciente, enquanto a
organização discursiva que ocorre no nível do pré-consciente, é comandada pela
linguagem como função – que é a fala. Entre a estrutura da linguagem e a fala
estabelece-se o encadeamento onde a economia psíquica se põe em exercício.
18
FREUD, S. – La Interpretacion de los sueños (1898-9[1900]), in Obras Completas, Vol. I, op. cit. Obra
considerada inaugural da Psicanálise.
19
LACAN, J. – O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise, op. cit., p.60.
2) Como partículas materiais em questão, devem admitir-se os
neurônios”. 20
20
FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.211.
21
Referência à intervenção de Kaufmann na aula de 27/04/60. Tal intervenção não consta do seminário
estabelecido e publicado em português pela Jorge Zahar Editor, op. cit., apenas no cd-rom Folio Views
4.0 das Obras Completas de Freud e Lacan.
22
FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.212.
cancelar e neutralizar a recepção de energia Qη. O princípio da inércia, considerado
como a função primária – e utópica - dos sistemas neuronais, diria respeito à conexão
direta dos neurônios sensíveis e motores possibilitando a descarga imediata dos
estímulos que não puderam ser evitados através de mecanismos musculares, mantendo,
assim, os neurônios, isentos de qualquer ocupação energética.
Uma vez investido por Qη, o protoplasma neuronal tem a capacidade de ser
sensibilizado pelo próprio processo condutor, tornando-o diferenciado para aquele Qη.
Dessa forma, num próximo investimento, Qη o percorrerá mais rapidamente, atendendo
melhor ao princípio de constância. A essas modificações protoplasmáticas, Freud
chamou de facilitação (Bahung)24. Em contrapartida, quando o protoplasma encontra-se
indiferenciado funciona como barreiras de contato. Nesses casos, Qη o percorrerá mais
lentamente. A função secundária, que requer acúmulo de Qη, é possibilitada pela
existência das barreiras de contato, que atuam como represas de quantidade:
resistências.
23
Idem, ibidem, p.213.
24
Idem, ibidem, p.215.
Freud propõe que os neurônios se diferenciam quanto à permeabilidade ao
impulso:
25
Idem, ibidem, p.215. Os grifos são de Freud.
26
Idem, ibidem, p.220. O grifo é de Freud.
1.2 – Memória e princípio do prazer
Retomando a idéia dos neurônios sensíveis e motores, pode-se dizer que o sistema
ψ se coloca na interposição deste círculo fechado que é a relação estímulo-descarga
motora, fazendo obstáculo à descarga completa e imediata. No entanto, na busca de
manter a homeostase exigida pelo princípio de constância, esse sistema opera desvios
que o caracterizarão como trama. A especificidade do sistema ψ se constitui justamente
nesses desvios, realizando passagens, transferências, que priorizarão, à revelia da
vontade consciente, uma direção em vez de outra. Através da facilitação, o movimento
do impulso trilhará o percurso de mais fácil descarga.
27
LACAN, J. – O Seminário, livro 16, De um outro ao Outro,(1968-1969), inédito, aula
do dia 26/02/69.
As barreiras de contato permitem o armazenamento parcial e a condução seletiva
de Qη segundo a maior ou menor facilitação, fazendo com que o impulso siga
preferencialmente numa direção e não em outra. Foi o que Freud chamou de
trilhamento. Ao afirmar que “A memória está representada pelas facilitações entre os
neurônios ψ”28, ele destacou a importância da memória como traço diferencial,
responsável pela preferência por um caminho em detrimento de outro. O fundamental
naquilo que se repete como memória não é tanto a identidade, mas a diferença entre os
traços. Assim, a diferença comparece aqui como o próprio princípio constitutivo do
aparelho psíquico. Dessa forma, a memória é constituída de mensagens que não estão
diretamente vinculadas à experiência, mas que trabalha regularmente numa sucessão de
sinais, circulando segundo o princípio de constância que Freud chamará em seguida de
princípio do prazer.
28
FREUD, S. – Proyecto de una psicologia para neurologos, op. cit., p.215.
29
Ver p.11.
podemos considerar que a linguagem como função se desenvolve no sistema ω,
enquanto a estrutura da linguagem corresponde ao sistema ψ.
Lacan pontua que uma necessidade discursiva se impõe a Freud e o leva a postular
a consciência como excluída da dinâmica dos sistemas psíquicos. A memória, ou
rememoração, não produz nada que possua a natureza particular da qualidade-
percepção. A função da memória, processo psíquico exclusivamente inconsciente,
implica num reproduzir e recordar “desprovido de qualidade”30. O sistema nervoso se
caracteriza pela capacidade de transformar as massas em movimento31, existentes no
mundo externo - as quantidades externas - em qualidades, favorecendo a tendência a
afastar a quantidade e respeitando o princípio do prazer. Freud situou o inconsciente
entre a percepção e a consciência, colocando-as à margem do aparelho psíquico,
exteriores a ele.
30
Idem, ibidem, p.222.
31
Idem, ibidem, p.223.
32
LACAN, J. – Le Séminaire livre 23, Le sinthome (1975-1976), Paris, Éditions du Seuil, 2005, p.131.
33
LACAN, J. - O Seminário, livro 7, A ética da psicanálise, op. cit., p.272.
lugar, que os elementos dessa estrutura são aqueles da linguagem tal como foi elaborado
por Ferdinand de Saussure: significante e significado.34 Um significante se define por
remeter sempre a outro significante, produzindo, nesse encadeamento, efeitos de
sentido, que se organizam num significado. Essa seria uma outra maneira de dizer o que
Freud havia postulado como um sistema de memória materializado no trilhamento de
quantidades - no nível inconsciente - fazendo surgir, de tempos em tempos, os signos de
qualidade, no nível consciente.
34
MILLER, J-A., O monólogo da apparola (1996-97), in Opção Lacaniana – Revista Brasileira
Internacional de Psicanálise n°23, São Paulo, Editora EOLIA, Dezembro/1998, p.68-76.
que tem uma única borda e um único sentido. Dessa forma, a banda de Moebius serve
para conceber imaginariamente o furo no real que promove a continuidade entre sentido
e sem-sentido.
Figura 1.2 – Esquema mostrando a banda de Moebius, destacando que apresenta apenas
uma borda.36
35
MAGNO, M.D. – A Psicanálise, Novamente: um pensamento para o século II da era freudiana (1999),
Rio de Janeiro, Novamente, 2004, p.60.
36
Idem, ibidem, p.64.
Figura 1.3 – Esquema da Banda de Moebius destacando sua superfície unilátera e não
orientável.37
37
Idem, ibidem, p.65. CAPÍTULO II
DA REPRESENTAÇÃO AO GOZO DE ALÍNGUA
2.1.1 - O grito
Com isso Lacan destacou que a percepção, tal como é apresentada por Freud, não
leva em conta nenhum critério de realidade, uma vez que o mundo da percepção se
constrói a partir da alucinação fundamental. De certa maneira podemos dizer que, no
homem, o mundo real é alucinatório. Disso se construirá o mundo externo no qual o
sujeito se deslocará.
2.2 – A carta 52
Freud descreveu o inconsciente como uma rede articulada de traços mnésicos que
correspondem a “lembranças conceituais”37. Lacan, fundamentado na lingüística de
Ferdinand de Saussure, formulou a noção de que essas lembranças conceituais
correspondem a significantes, de forma que o inconsciente consiste numa rede
articulada de significantes. A estrutura do inconsciente deve, portanto, ser considerada a
mesma da linguagem. Ela foi sintetizada por Lacan ao binário fundamental S1 Æ S2.
Esse matema quer dizer que o importante da relação entre essas marcas, é que, no
remetimento de uma a outra, há um sujeito se fazendo representar, isto é: “Um
significante representa o sujeito para outro significante”37. S1 Æ S2 quer dizer,
também, que um conjunto de significantes S1, como um essain37, um enxame de
significantes, representa o sujeito para S2, o significante de exceção; ou que a
multiplicidade do saber, representado por S2, está relacionado a S1 como unidade. Dito
ainda de outro modo, S1 Æ S2 quer dizer que o sujeito surge no intervalo entre o Um e o
Outro.
2.2.3 – O pré-consciente: Vb
A Vb (Vorbewusstsein: pré-consciente) é o terceiro registro, e corresponde à
tradução da representação de coisa em representação de palavra, isto é, corresponde à
transformação da pura alucinação ligada ao princípio do prazer em identidade de
pensamento, regido pelo princípio de realidade, princípio que instaura o “eu oficial” 37.
Freud destacou que o pré-consciente “está ligado à ativação alucinatória das
represetações da palavra”37. Os movimentos do inconsciente, regidos pelo princípio do
prazer, chegam à consciência na medida que podem ser verbalizados, quer dizer,
traduzidos pelas palavras para o princípio de realidade que vigora no pré-consciente e
no consciente. Freud afirmou que:
Lacan destacou que, antes de Freud, ninguém havia colocado com tanta clareza o
caráter radicalmente conflituoso da organização psíquica, onde um dos sistemas se
desenvolve para ir contra a irretratável inadequação do outro.37
Essa unidade foi abordada por Lacan como S1, o enxame de signos perceptivos
que convergem num significante Um, que remete necessariamente a um significante
Outro. Para que isso ocorra é indispensável não apenas a existência do olho - capaz de
reconhecer o conjunto formado pela combinação da imagem com o real - mas que ele
esteja na posição devida. O esquema óptico ilustra que, para poder operar eficazmente
como Outro, é preciso que o outro esteja devidamente posicionado na cadeia simbólica.
Ele considera que:
2.5.3 – A nomeação
Na carta a Jennny Aubry, Lacan destacou que - ainda que a pulsão seja sem objeto
determinado - o desejo precisa ser nomeado para que haja a constituição de um sujeito.
Esta transmissão, da ordem de um desejo que não seja anônimo, se daria a partir da
função da mãe e do pai:
Ao afirmar que ”só pode haver definição do nome próprio à medida que há uma
relação entre a emissão nomeante e algo que em sua natureza radical é da ordem da
letra”, Lacan deu relevo ao significante como caráter distintivo e principal elemento do
nome próprio. Ele o situou como função da letra, pois não depende de seu caráter
fonemático. O nome próprio comporta duas ordens de funções: uma enquanto traço
distintivo puro – a letra -, outra enquanto garantia de um lugar simbólico no Outro,
através da qual o sujeito pode apoiar-se no que um ancestral designou para ele.37
Figura 2.2 – Esquema R: O campo da realidade recobre o Real ao ser esgarçado pelos triângulos
do Imaginário – m,i,ϕ -, e do Simbólico – M,I,P.37
Cerca de dez anos depois, Lacan acrescentou, nesse mesmo trabalho uma nota
dizendo que “o esquema R expõe um plano projetivo”37, também chamado de cross-cap.
Ele quer dizer com isso que, é na medida que houve a extração do objeto a, que o
sujeito, então barrado pelo desejo, sustenta o enquadre do campo da realidade.
Acrescentou ainda que:
Figura 2.3 – Esquema do cross-cap: a linha pontilhada representa uma banda de Moebius.
Indica que, ao efetuar um corte, retirando uma circunferência, o cross-cap transforma-se na
faixa de Moebius.37
O cross-cap é o acoplamento de duas estruturas heterogêneas: a banda de Moebius
representando o sujeito; e a esfera destacando o aspecto imaginário do objeto. O sujeito
só está constituído na medida que essa relação comparece no discurso do sujeito como
efeito do remetimento de um significante a outro significante. É o que se verifica
quando alguém expressa uma fala em que se produz uma significação. Veremos que a
problemática autista diz respeito ao impedimento do destacamento do objeto letra.
O olho como símbolo do sujeito indica que na etapa primitiva da constituição
subjetiva o sujeito é falado pelo Outro e só se constitui ao alienar-se num significante. É
o que se deduz ao ler em Lacan:
“Com o sujeito, portanto, não se fala. Isso fala dele,e é aí que ele se
apreende, e tão mais forçosamente quanto, antes de – pelo simples
fato de isso se dirigir a ele – desaparecer como sujeito sob o
significante em que se transforma, ele não é absolutamente nada. Mas
esse nada se sustenta no seu advento, produzido agora pelo apelo,
feito no outro, ao segundo significante. ”37
2.6 – O gozo
A experiência de satisfação descrita por Freud37 pode ser retomada, a partir da
leitura de Lacan, como uma descarga onde a satisfação em questão encontra-se
essencialmente ligada a uma experiência de gozo. Na instauração do inconsciente algo
se cifra no significante e ocorre um gozo nesse ciframento. Essa experiência enlaça a
comunicação tanto quanto a ultrapassa. Jacques-Alain Miller reorganizou a teoria do
gozo na obra de Lacan subdividindo-a em seis paradigmas do gozo37. Mostrou que ao
longo da teorização de Lacan se verifica uma verdadeira pulsação, um ir e vir entre
significante e gozo, que ora se aproximam, ora se afastam, refletindo nesta trajetória o
próprio movimento pulsional que vincula significante e gozo no ser falante.
Lacan, num lapso37, forjou o termo lalangue pelo acoplamento do artigo definido
la com o vocábulo langue37. Esse termo, traduzido como alíngua, está relacionada ao
que anteriormente foi definido como línguas naturais, língua corrente, ou língua
materna37 sem que possa igualar-se a essas noções, pois leva em conta a idéia de
unidade disjunta trazida pela matemática. Através de alíngua se transmite a coletânea
dos traços dos outros sujeitos em que cada um inscreveu seu desejo37. A inscrição
descrita por Freud na experiência de satisfação é abordada em termos de alíngua. Os
traços mnêmicos são representações que se registram em alíngua.
Dito de outro modo, na medida que não há relação sexual, esta se dá por
intermédio do sentido precipitado pelo sem-sentido que caracteriza alíngua. O
fenômeno essencial de alíngua não é o sentido, mas o gozo.37 Dessa forma, alíngua não
está comprometida com o significado das palavras, mas com a gramática e com a
repetição37, pois retorna como um estribilho37, assim como a mensagem que surge na
primeira experiência de satisfação. O motor de alíngua não é a comunicação, mas a
homofonia37, o que desloca o foco da linguagem em direção à fala. No discurso
inconsciente, o significante, despojado do lastro do significado, faz emergir efeitos de
sentido que podem se propagar e proliferar ao infinito37.
Lacan considerou que alíngua deve ser entendida como aquilo que promove a
animação significante do corpo, de forma a possibilitar um gozo distinto do corpo, o
gozo fálico que ele denomina, neste contexto, gozo semiótico37, destacando que esse
gozo acontece na emergência do signo lingüístico37.
Lacan distinguiu um saber sobre alíngua do o savoir faire com alíngua. O saber
sobre alíngua corresponde a uma construção de saber capaz de estabelecer laço social,
um saber privativo da linguagem. Assim, Lacan disse que a “linguagem é uma
elucubração de saber sobre alíngua”.37 O discurso inconsciente, na medida que é
estruturado como uma linguagem também é uma elucubração de saber sobre alíngua37.
Mas o savoir faire com alíngua diz respeito a um saber capaz de fazer emergir um gozo.
Dessa forma, o inconsciente é testemunho de um savoir faire com alíngua, uma vez que
é um saber que se define pela conexão significante vinculada a um gozo. Esse
encadeamento significante chega à realidade na forma de um saber não sabido – um
enigma - que sustenta o laço social. Lacan afirmou que:
2.8 - Em síntese...
CAPÍTULO III
ELEMENTOS DA CONSTRUÇÃO DE UM CASO DE AUTISMO
Portanto, para a psicanálise, a criança autista está inserida na fala, ou seja, sua
subjetividade emerge no encadeamento significante. Ela, como todo falante, recebe seu
ser da relação com o significante. No entanto, a precocidade do aparecimento de suas
manifestações, a estranheza da fala, a forma como esses sujeitos se colocam no mundo,
levam a supor que, no autismo, a constituição da representação encontra-se
comprometida em sua origem, deixando o sujeito sem poder servir-se da proteção do
simbólico. Esse trabalho aborda a hipótese, trazida pela leitura de Lacan, de que a
clínica do autismo mostra as conseqüências de uma recusa radical da inserção
simbólica. O que quer dizer essa recusa, num ser cuja particularidade reside justamente
no seu assujeitamento ao Simbólico? O caso de um menino autista pode nos auxiliar a
elaborar esta questão.
André tinha nove anos de idade quando seus pais me procuraram. Apresentava
uma história clássica de autismo, só tendo começado a pronunciar as primeiras palavras
aos cinco anos de idade, após dois anos de tratamento. Quando iniciou o trabalho
comigo, embora apresentasse um vocabulário pobre, falava com clareza várias palavras
e já apresentava um esboço de comunicação com os familiares mais próximos que, em
geral, o tratavam com bastante carinho. Durante os atendimentos, pronunciava palavras
e frases soltas, aparentemente desconexas e sem endereçamento. A voz era, em geral, de
entonação metálica. Raramente me olhava. Era muito inquieto, e passava as sessões,
andando pela sala e dando pulinhos. Enquanto dava tapas na barriga com a mão direita,
mordia sistematicamente o punho esquerdo que, conseqüentemente, apresentava uma
mancha escura e um espessamento da pele. Algumas vezes chutava ou se jogava contra
a parede.
Estabeleceu-se entre nós uma interação através dessas falas. Ele fazia uma pausa e
me olhava, aguardando que eu as completasse exatamente como ele o faria. Assim, ele
dizia “Batman e...” para que eu completasse “Robin”, “Quadro da...” e me cabia a
palavra “estátua”, “Lata de... leite”. Nada era aceito senão as palavras exatas. Uma vez
ocupando esse lugar, não corresponder às expectativas tendia a levar à aflição, agitação
ou ao retorno ao fechamento autístico. Seguindo a indicação de Lacan de que o analista
deve colocar-se numa posição de “submissão completa, ainda que advertida” à posição
subjetiva do doente37, compartilho da opinião, explicitada por Jeanne-Marie Ribeiro, de
que o analista deve inicialmente se deixar regular pelas construções que a criança autista
já realiza, satisfazendo assim suas necessidades de colocação de ordem no mundo,
acolhendo seu comportamento repetitivo37.
Vimos que na carta 52, trabalhada no item 2.2 dessa dissertação, Freud indica que a
constituição do inconsciente impõe a suposição de uma inscrição prévia aos traços
mnêmicos, os signos de percepção. Esses não podem ser traduzidos em representação de
palavra, por não terem sido inscritos no inconsciente como representação de coisa. A
instauração do inconsciente requer a retranscrição dos signos perceptivos, retranscrição
essa que possibilita o estabelecimento da marca diferencial dos traços mnêmicos entre
si, que Freud descreve como facilitação. A partir dessa marca, onde, anteriormente, só
havia simultaneidade, passa a haver deslocamento metonímico e substituição
metafórica. Portanto, inconsciente se instaura partir de uma repetição que inscreve a
falta que comparece, desde então, indissociada da representação.
S1 Æ S2
Lacan considera que talvez o autista “só escute rumores (um zum-zum), quer dizer,
que tudo ao seu redor tagarela”37. Com essas palavras, ele parece confirmar o estatuto
de pura ressonância da fala autista, compatível com a apresentação do significante em
sua materialidade plena, à qual Freud se refere como massas moventes. Dessa forma, no
autismo a representação vigoraria como representação primitiva dos signos de
percepção, caracterizados pela simultaneidade e pela ausência da diferença.
3.1.2 – A função do juízo no autismo
O autismo pode ser abordado nos termos de um defeito que remonta à não
incidência da Bejahung. Vimos, anteriormente, que a Bejahung é o signo algébrico que
vincula o mundo do falante à representação. A alteração na instauração da representação
faz com que, no autismo, a realidade não assuma seu estatuto simbólico. Isso quer dizer
que problemática autista diz respeito ao impedimento de se fazer representar pelo
significante.37 A palavra não realiza a presentificação da ausência Real, ou seja, não
comparece como remetimento significante, mas em sua materialidade Real, sem
intenção de significação. Esse impedimento leva o significante a se expressar em sua
face real.
Dessa forma, o que seria juízo de atribuição pode ser expresso em termos de
incorporação do Simbólico no Real. Essa incorporação se exemplifica na concretude
constatável no comportamento e na fala dos sujeitos autistas.
Temple Grandin, refere uma incapacidade para pensar em palavras. Diz que, em
vez disso, seu pensamento se dá em imagens. Numa entrevista a Oliver Sacks, Temple
Grandin conta que não sabia desenhar ou fazer projetos até observar um desenhista
fazendo plantas:
Sacks diz que é como se ela tivesse engolido o desenhista por inteiro, como uma
jibóia. A partir daí, lentamente ele se “integrou” a ela, tornando-se parte dela.
O congelamento autístico não impede que os autistas falem. Impede que nos
ouçam, sobretudo quando, com nossa demanda, nos ocupamos deles. Os signos da
presença e do desejo do Outro - olhar, voz, certos ruídos e objetos em movimento -
podem provocar reação de horror, chegando às vezes a apresentar conseqüências
devastadoras, levando Kanner a dizer que para os autistas as pessoas são uma
“calamidade”.37
Essa observação, facilmente verificável no relato dos pais dos autistas, serve de
alerta àqueles que se propõem a tratar desses sujeitos: qualquer palavra demandante que
lhe é endereçada pode estar fadada ao fracasso. Isso não significa que não tenhamos
algo a lhes dizer. Há que se sustentar o convite à simbolização, não através de uma
demanda, mas de “extrapolações simbólicas”, tal com o Lacan se refere às intervenções
de Melanie Klein no caso Dick37. Essas extrapolações, se por um lado, fazem a
ambigüidade dos sistemas de linguagem, por outro permitem a transmissão de uma falta
estruturante. Na medida que fui falando e suportando a incerteza da eficácia de minhas
palavras, a agitação de André foi amenizando, as lágrimas cessaram e ele, molhado de
suor, retirou-se da sala, dizendo apenas, num tom inexpressivo: “Vai embora”.
Nesse episódio, André mostrou o sofrimento que pode emergir quando um certo
acontecimento - uma porta fechada, a ausência da analista - promove uma experiência
de privação em alguém que não dispõe do recurso de simbolização da falta. Por mais
observadores que sejam os autistas, não é qualquer mudança no ambiente que implica
numa catástrofe, mas aquela que evoca o que ocuparia o lugar de uma ausência, diante
da qual o sujeito se faria representar. Sua reação mostrava que a porta fechada da sala
de atendimento, naquele dia, ocupava esse lugar. Sua carência da proteção significante
evidenciou a impossibilidade de se fazer representar diante do que se apresenta para ele
como ausência: a porta fechada do consultório, bem como minha indisponibilidade para
ele. Isso parece ter lançado André numa “monstração”37 de seu mundo despedaçado.
Como uma criança autista vem suprir a falta originária da rede de representações
inconscientes? André, em seu desespero, repetia sem cessar: “- A água”, enquanto o
suor lhe vertia pelos poros. “A água” é significante privilegiado para indicar algo que só
encontra contorno na borda que o continente lhe oferece. Teria havido ali o esboço de
um enlace significante? A dramaticidade do episódio sugere, antes, o impedimento do
deslizamento metonímico e a colagem da falta no significante.
3.1.4 - A holófrase
Interrogo, a partir disso, se a holófrase, no caso do autismo, tal como proposto por
Jean-Paul Gilson e Angela Vorcaro37, pode ser considerada compatível com a proposta
de Marie-Christine Lasnik de uma estagnação do ser no tempo dos signos de percepção,
conforme visto no item 3.1.1.
Sustentada na primeira dessas abordagens acima, podemos considerar que as
frases pronunciadas por André, na etapa inicial do tratamento, correspondem a
petrificações significantes na forma de holófrase onde a palavra não tem a função de
mediador do Real. Ao estender seus “tentáculos”, André estabelece um lugar
transferencial, permitindo-me compartilhar de sua sucessão de signos, ou significantes
holofraseados, onde o simples fato de tomar a direção de um outro atravessado pela
falta, já favorece embora não garanta a operação de uma escansão.
Lacan afirma que há no autista “algo que se congela”37. Colette Soler considera
que esse “congelamento” no qual o autista se encontra, ocorre no tempo descrito por
Freud como auto-erotismo.37
O registro da sessão possibilitou tomar a fala “o espelho” como resposta que situa
a posição subjetiva que André ocupa. Num sentido amplo, um sujeito posicionado em
i(a) vê em i’(a), a imagem na qual o eu se reconhece como sujeito dividido. Essa
imagem se produz no reconhecimento de uma falta que, somente assim, se deixa
contornar. Em condições favoráveis, não se costuma ver o buraco que a imagem
circunda37. Ao responder “o espelho”, André sinaliza não ver essa imagem, mas o
buraco que seria velado por ela. Ali onde se produziria o fascínio imaginário reside um
congelamento real onde ele vê o nada: nem vaso, nem flores, somente o espelho.
No fragmento escolhido por André, pode-se notar que a madrasta inicialmente fala
com o, espelho, demandando a própria imagem. Em defasagem com a demanda, surge a
imagem de um outro, Branca de Neve. O insuportável da defasagem entre uma imagem
e outra leva a madrasta a quebrar o espelho. Nessa etapa do tratamento, André repete de
forma partida as frases selecionadas da história da Branca de Neve, intercalando-as com
falas em que conjuga o verbo quebrar com os objetos da sala acabando por formar uma
série: quebrar o quadro, quebrar o vaso, quebrar o porta-retrato, etc.
Dessa forma, retomando o esquema do vaso invertido, quando o olho não está
bem posicionado, o que representa estar fora do cone que percebe a convergência dos
raios no esquema, a imagem não se forma no devido lugar, ou seja, a linguagem não
envolve o sistema imaginário. Por isso, o registro imaginário é extremamente curto,
tornando a capacidade de expressão e de comunicação extremamente limitada.
A expressão de júbilo diante dessa imagem, bem como a proliferação das séries de
desenhos, que se seguem nesse momento, sugere o encontro com uma imagem
narcísica. Ele passa a desenhar figuras humanas das quais destaco o desenho de
Tia-Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro na mesma folha e em oposição a André-
sorrindo. Tia-Andréa-chorando-à-toa-virando-monstro/André-sorrindo, diz respeito a
uma relação especular onde se coloca uma condensação de jogos de oposição:
André/Andréa; chorando/sorrindo; Andréa/sorrindo; André/chorando; etc. Essa relação
especular consiste no deslocamento da relação da madrasta com o espelho o que, por si
só, já corresponde a um enlace significante e não mais à sucessão de S1, tal como na
relação Batman e Robim, Lata de leite, etc. Pode-se dizer que ele já abandonara a
simultaneidade e estabelecia sua rede. Assim, a relação Tia-Andréa-chorando-à-toa-
virando-monstro/André-sorrindo evidencia de modo bruto a binariedade do
encadeamento significante. Nessa etapa, não se pode dizer que já tenha se destacado um
objeto. Há uma oscilação entre diferenciação e indiferenciação, entre estabelecimento e
não estabelecimento da hiância que, se por um lado indicam uma defesa ainda bem
sucedida com relação ao corte, por outro, atestam um movimento. Além dessa
oscilação, chorando/sorrindo/virando são termos que também registram movimento.
Portanto, embora não se possa dizer que tenha havido o destacamento do objeto, o
movimento pulsional aponta inevitavelmente na direção da queda do objeto. Talvez a
utilização da expressão virando-monstro possa ser tomada como marca do lugar do
objeto. De qualquer forma, fica evidente que já não se sustenta um uso negativista da
linguagem.
CAPÍTULO IV
A REALIDADE E O GOZO NO AUTISMO
Kanner, ao considerar que, não havia diferença entre os autistas que falavam e os
que não falavam, pois “a linguagem não servia para transmitir mensagem aos
outros”37, sugeriu que a forma bizarra que caracteriza o emprego das palavras no
autismo deixa às claras um uso diverso daquele que parecia a razão de ser da fala: a
comunicação. Sabemos que Freud, ao elaborar a lógica dos sintomas de seus pacientes,
indicara que há nas palavras uma satisfação alheia à necessidade de comunicação.
Lacan chamou-a de gozo.
O autismo vem evidenciar que é possível que uma fala não seja causada pela
intenção de significação. Nesses casos, uma vez que se trata do falante, devemos
considerar, com Jacques-Alain Miller, que o motor persiste sendo a pulsão – embora
desvinculada da intenção de significação – e que, o que se produz é o gozo.37 Trata-se
de um comportamento atípico da pulsão em que o gozo não emerge enlaçado pela
palavra, produzindo um sentido imaginário, mas em sua pureza real. Em decorrência
disso, a realidade que se produz na tensão da relação entre o sujeito e o Outro não
assume a organização de um campo capaz de ser compartilhado socialmente.
Ao comentar o caso Dick, Lacan destacou o que Kanner estabeleceu como um dos
sintomas fundamentais do autismo - a ausência de endereçamento ao outro -
identificando aí a expressão da ausência de apelo ao Outro, enquanto instância
simbólica. Contrapondo-se à M. Klein, quando essa autora afirma que Dick está isolado
da realidade37, Lacan considerou que ele está inteiro na realidade, em estado puro,
inconstituído. O problema ali se relaciona à não simbolização da realidade. Ao dizer que
tudo para Dick era realidade pura e simples, Lacan aproximou o termo “realidade” à
idéia de Real como um exterior não cingido pelo simbólico. Trata-se do Real como
exterioridade radical, a qual Freud se referiu como “massas em movimento”37, de onde
partem os estímulos externos, a Q externa mencionada no Projeto. O mundo psíquico de
Dick encontra-se inteiramente situado aí, referido a um Outro Real, sem furo, e,
portanto, sem forma.
Klein, ao considerar Dick isolado da realidade, parece não cogitar uma realidade
não simbolizada. Lacan, por sua vez, afirmou que é preciso a incidência do simbólico
para que se possa acessar um mundo humano37, que é o mundo simbolizado, onde há o
interesse pelos objetos enquanto distintos. Na “Resposta ao Comentário de Jean
Hyppolite” ele chegou a dizer que são as articulações simbólicas que dão à percepção
seu caráter de realidade37. Daí afirmar que Dick “vive num mundo não humano”, numa
“relação instintiva do ser”37. Portanto, podemos notar que, se por um lado, divergindo
de Klein, Lacan visou dar relevo à realidade enquanto o Real não implicado no
simbólico, por outro, ele vinculou a inserção no mundo humano ao assujeitamento ao
simbólico. Ao apontar nessa direção, ele colocou em relevo a existência, no falante, de
um tempo anterior à simbolização, ainda que nossa “humanidade” dependa da
intervenção do simbólico. A clínica do autismo vem nos trazer esclarecimentos quanto a
este tempo, ao mostrar que é possível ao humano encontrar-se aprisionado a uma
realidade onde o Real está impedido de ser recortado pelo Simbólico. No Seminário
RSI, Lacan se indagou:
“O que pode ser supor uma demonstração no Real? [...] Nada mais o
supõe, senão a consistência cujo suporte, aqui, é a corda. A corda
aqui é, se posso assim dizer, o fundamento do acordo [...] a corda se
torna assim o sintoma daquilo em que o Simbólico consiste. O que
não deixa de combinar, no final das contas, com o que nos testemunha
a linguagem, com a fórmula ‘mostrar a corda’, onde se designa o
gasto de uma tecelagem, já que, afinal ‘mostrar a corda’ é dizer que a
trama não se camufla mais nisso cujo uso metafórico é tão
permanente, não se camufla mais no que se chama estofo.”37
“Tudo o que é trazido para a criança do exterior, tudo que altera seu
meio externo ou interno, representa uma intrusão assustadora, [...] a
alimentação é a primeira intrusão vinda do exterior para a
criança”37.
No autismo, o olho está posicionado de forma que a convergência dos raios não
pode promover a imagem unitária, o que quer dizer que, por alguma razão, o desejo do
Outro primordial não pode ser simbolizado. O investimento libidinal da mãe não se
reúne ao real orgânico, permanecendo desconectado, como se o bebê estivesse impedido
de receber esse investimento. Esse sujeito não pode inserir-se no desejo dos pais pela
mediação significante, impossibilitando a nomeação de seu desejo. Real, Simbólico e
Imaginário permanecem desarticulados de forma que o real do objeto não pode ser
bordejado pelo significante nem capturado numa imagem fascinante. No lugar em que
deveria surgir a imagem especular unificada, surge o “real do duplo”, que é a divisão do
sujeito no real, onde o objeto não é marcado pelo estatuto fascinante do imaginário mas,
pela falta de enodamento, o que se destaca é seu estatuto de objeto real.
4.4 - O gozo no autismo
Na conferência de Genebra, quando Lacan disse que os autistas não nos ouvem
quando nos ocupamos deles37 sugere que, para o autista, não parece haver pacto
possível com o fingimento do Outro. Marc Strauss considerou que no autismo é Um ou
Outro. Ou ele com o Outro na mão, ou o Outro mortífero, intolerável37. Antonio di
Ciaccia, em sintonia com a leitura de Strauss, abordou essa solidão autista dizendo que,
para o autista, existe o Um-sozinho, o Um-sem-o-Outro37, onde a linguagem é puro
gozo que independe da identificação primária. Trata-se, portanto, de um gozo diferente
daquele que é promovido pela experiência alucinatória primitiva.
Rosine Lefort, por sua vez, ao considerar que no autismo “não há gozo do
balbucio”37, referiu-se à ausência do gozo que se marca na identificação primitiva com
S1, onde o registro de um traço diferencial remete à alteridade e inaugura uma cadeia
significante com possibilidade infinita de proliferação. O gozo fálico advém da
emergência da representação e da experiência alucinatória de satisfação, que estabelece
a captura do sujeito nas malhas do Outro simbólico. Não ocorrendo dessa forma, é
pertinente a interrogação quanto ao gozo que pode comparecer no lugar desta “falha” na
constituição da Vorstellung.
Lacan disse que, “se nada mais há senão a falta, o Outro se esvai e o significante
é o significante da morte”37. Talvez possamos pensar o real do significante no autismo
como significante da morte. O estabelecimento da relação complexa entre o sujeito e o
Outro pode ser figurada na forma de um cross-cap. A escolha dessa figura deve-se ao
fato dela demonstrar a articulação entre um corte, a banda de Moebius, e uma estrutura
binária, a esfera. No caso do autismo, a estrutura do cross-cap não se constituiu, e o
sujeito se mantém numa realidade que não se caracteriza por um campo de tensão entre
Simbólico e Imaginário, uma vez que não houve o destacamento do objeto. O sujeito
permanece inconstituído, como pura falta, não veiculada pelo significante, habitando
uma realidade que se restringe à estrutura representada pela banda de Moebius. A
realidade que se produz na tensão da relação entre o sujeito e o Outro assume uma
estrutura diversa daquela representada no cross-cap.
O autista sofre uma interrupção no nível da palavra que impede o enlace entre
Imaginário e Simbólico. Na conferência de Genebra, Lacan afirmou:
“Como o nome indica, os autistas se escutam a si mesmos. Escutam
muitas coisas. Isto desemboca normalmente na alucinação e a
alucinação sempre tem um caráter mais ou menos vocal. Todos os
autistas não escutam vozes, mas articulam muitas coisas e trata-se de
ver precisamente de onde escutaram o que articulam.” 37
Assim como todo falante é convocado a responder pela falta real, a escolha
autista indica também uma suplência com relação ao Real. Na ausência da constituição
da imagem especular do objeto faltoso surge o objeto enquanto duplo, que caracteriza o
comparecimento no real do que é da ordem do simbólico e do imaginário. Dessa forma,
a máquina do abraço, elaborada por Temple Grandin, possibilita que ela experimente no
Real do corpo uma sensação inteiramente sob seu domínio que servirá de mediador
simbólico e possibilitador de sua relação com o outro. Do mesmo modo, as imagens das
histórias infantis e as imagens que André passou a criar serviram-lhe de mediador
simbólico que possibilitaram que a apropriação pela palavra pudesse se dar
progressivamente.
CONCLUSÃO
Uma vez que, “no autismo, a linguagem não foi feita para comunicar”, o ser da
fala no autismo não comparece no sem-sentido veiculado na linguagem, mas naquilo
que está no seu cerne: o Real, conceituado por Lacan como alíngua. A linguagem
corresponde a um saber sobre alíngua.Sem poder apropriar-se desse saber, o autista,
ainda assim, apresenta um gozo em que se produz um saber fazer com alíngua. Esse
saber, tanto quanto o saber inconsciente, caracteriza-se por requerer um Outro ao qual
possa endereçar-se. A particularidade do autismo vincula-se ao posicionamento desse
Outro no limite do Real, tornando sua iniciativa prioritariamente catastrófica.
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