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Este livro vai para “Charles Perrone”, nosso BIG BROTHER do Texas,
emérito passista da Escola de Samba Unidos de Austin, que nos enviou
material precioso para a realização desse trabalho.

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André Bueno e Fred Góes

O QUE É
GERAÇÃO BEAT

BRASILIENSE
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osebodigital.blogspot.com
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AMÉRICA, ANOS 50:
O PESADELO REFRIGERADO
A chamada Geração Beat, assim como a cultura que
ela gerou, é muito pouco conhecida no Brasil e, até recente-
mente, quase nada fora publicado desses escritores e poe­
tas.
Se os livros passaram a ser publicados no Brasil, não
significa que no imaginário médio das pessoas Beat, ou Beat­
nik, tenha deixado de ser sinônimo de sujeira: barbudos,
cabeludos, calças gastas, sujos, andando pelas estradas de
carona.
Na melhor hipótese, a Geração Beat é associada dire-
tamente à ótica de Hollywood diante da juventude transvia-
da, dos rebeldes-sem-causa do tipo encarnado nas telas por
James Dean e Marlon Brando.
Que a figura de James Dean e Marlon Brando, ligada
às Gangs de rebeldes e delinqüentes juvenis com motocicle-
tas e roupas negras de couro na década de 50 americana,
tenha a ver com a Geração Beat em alguns pontos é fato.
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Mas que traduza, realmente, o que significou a cultura dessa
geração é outra coisa bem diferente.
O termo Geração Beat, assim como a cultura produzi-
da por ela, não designa um movimento organizado, estética
ou politicamente, em torno de um programa ou objetivos
comuns.
O nome Beat Generation foi criado por aquele que é
considerado o maior escritor e romancista dessa geração,
Jack Kerouac, e chegou ao conhecimento do público em ge-
ral através do New York Times, em novembro de 1952, num
artigo escrito pelo jornalista e também escritor Clellon Hol-
mes.
O termo Beatnik é uma fusão de Beat com Sputnik, a
nave soviética que foi pioneiramente para o espaço na se-
gunda metade da década de 50.
A metáfora resultante da fusão de Beat com Sputnik
não poderia ser mais precisa, já que os poetas e escritores
Beats eram, de fato, verdadeiros foguetes, inquietos, liga-
dos, criativos, absolutamente em contraste com a pasmacei-
ra e a caretice da década de 50 americana.
Beat e Hipster, termos que denominam os pais dos
Hippies e Freaks da década de 60, vieram do jargão do Jazz.
Beat pode ser associado, imediatamente, com a ba-
tida dos músicos de Jazz, e aí a gente tem the beat, ritmo,
movimento, embalo, ligação diretamente com o corpo e com
a sensualidade.
Por extensão, Beat significa também, nos textos e na
própria vida das pessoas daquela geração, fluência, improvi-
so, ausência de normas fixas, na vida e no texto, envolvimen-
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to profundo que traz música, balanço, liberdade e prazer.
Para Norman Mailer, hoje considerado talvez o me-
lhor escritor vivo da América, e que na década de 50 andou
muito perto dos Beats, inclusive através dos artigos escritos
no Village Voice, o Jazz é a manifestação do lado negro e
reprimido da América, a tradução da sexualidade reprimida,
idéias que ele defende, por exemplo, em The White Negro.
Beat também significava, ao mesmo tempo, bater e
beatificar, céu e inferno, anjos e demônios, numa curiosa
mistura em que a atitude de contestar, de agredir, de ir con-
tra o existente vem desde logo associada com o beatífico, o
convencimento pacífico, o ativismo político com fortes doses
de espiritualidade.
Beat não significou apenas um movimento artístico,
traduzido em textos, mas toda uma vasta movimentação
existencial que surgiu quase simultaneamente na Costa Les-
te (Nova Iorque, principalmente, e fortemente no Green­wich
Village) e na Costa Oeste (Califórnia, principalmente São
Francisco, Berkeley e cercanias), assim como na Carolina do
Norte (onde era editada a famosa Black Mountain Review).
A Geração Beat foi uma geração em movimento: ia
dos poemas às estradas, passando por bares e cafés, festas e
drogas, comunidades e qualquer outro palco onde estivesse
a vida.
Portanto, muito mais que um grupo de intelectuais
reunidos em torno de um projeto estético definido num pro-
grama, muito mais que um grupo de acadêmicos estéreis
tentando salvar o mundo dentro dos confortáveis muros da
universidade.
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A expressão Beat Scene (Cena Beat) diz respeito a to-
dos os acontecimentos, palcos e lugares ocupados pela Ge-
ração Beat durante seu período de efervescência e contes-
tação.
Beat Scene significa, também, uma série de álbuns, de
discos, com poetas falando, oralizando seus poemas; tradu-
ção de outro lance forte e típico da época: a tentativa de re-
tomar a tradição oral da poesia, ao mesmo tempo em que se
tentava juntar a música, o Jazz principalmente, com a poesia.
Foi enorme a resistência da crítica da época, e da crí-
tica posterior à década de 50, contra os Beats. Bruce Cook,
no livro Beat Generation, e Jane Kramer, no livro Ginsberg
in America, ambos livros muito completos e úteis para se
entender a Geração Beat, relatam esse bloqueio crítico, res-
ponsável pela demora de sete anos na publicação do texto
mais conhecido da Cena Beat: On the Road, de Jack Kerouac.
A crítica de esquerda, ligada ao Partido Comunista ou
agrupada em torno da Partisan Review, mandou bala, apon-
tando os Beats como um grupo de niilistas, românticos e
boêmios (portanto o oposto do revolucionário organizado)
ligados aos grupos lumpen dentro da sociedade (negros,
músicos de Jazz, delinqüentes juvenis, drogados, traficantes,
etc), ao invés de lutarem dentro dos sindicatos, junto aos tra-
balhadores americanos.
Dentro da ótica racionalista deste tipo de crítica, caro-
nas, Jazz, drogas, sexo e liberações dionisíacas, mesmo que
não fossem o pensamento e a ação propriamente reacioná-
rios do americano médio, tampouco eram um trabalho revo-
lucionário.
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A força que as sementes plantadas pela Geração Beat
iriam ganhar na década de 60, viria a desmentir em grande
medida esse tipo de crítica. Na base das manifestações paci-
fistas, anti-Vietnã e anti-nucleares, nas lutas das minorias e
nas lutas pelos direitos civis que sacudiram a América, pode-
se encontrar várias tendências, mas certamente, entre elas,
o inconformismo da Geração Beat que começa, a rigor, ainda
na década de 40, passa por toda a década de 50, chegando
até o primeiro ano da década de 60.
A figura carismática que sai diretamente das pequenas
reuniões Beat para os grandes concertos de rock e para as
grandes manifestações públicas da década de 60, fazendo a
Geração Beat desaguar num movimento muito mais amplo
que a estreiteza da década de 50, é certamente a do poeta
Allen Ginsberg, o maior poeta Beat, talvez o melhor poeta
americano vivo.
Desse ponto de vista, a Geração Beat não termina ab-
solutamente num fracasso, mas deságua num espaço políti-
co, estético e existencial muito amplo e importante.
O fato de que, por outro lado, os Beats tenham se
diluído, se retirado, se drogado ou bebido até à morte, ou
tenham sido devorados pelo consumo, é significativo, mas
menos relevante que seus desdobramentos em escala de
massa.
A crítica formalista também reagiu, e às vezes ainda
reage muito mal diante da poesia e da prosa Beat. O alvo
predileto desse tipo de crítica, nos Estados Unidos ou no
Brasil, era o estilo Beat: textos em ação, prosa espontânea,
frases do corpo em movimento, poesia brotando como vi-
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sões do céu e do inferno, ligação direta da arte e da vida, da
palavra e do corpo. Como se fossem eles, poetas e escritores
Beats, músicos de Jazz improvisando livremente suas frases.
Pode-se dizer que esses poetas e escritores fizeram,
e tentaram ao máximo fazer, a “LIGAÇÃO DIRETA ENTRE A
ARTE E A VIDA”, antecipando uma das metáforas mais fortes
dos anos 60: PEDRAS QUE ROLAM NÃO CRIAM MUSGO (em-
bora fosse mais difícil rolar na década de 50 e o rock que da-
ria nos Rolling Stones estivesse dando os primeiros passos,
negro pelas mãos de Chuck Berry, e depois traduzido para o
consumo branco no rebolado de Elvis Presley).
Uma das referências importantes para se entender a
arte e a vida dos poetas e escritores Beats é certamente a in-
corporação que eles fizeram do movimento constante como
sinônimo de liberdade, utopia de que o estar-em-movimen-
to-no-mundo fosse a própria liberdade.
Por não desejarem um esquema regular, de vida e de
trabalho, os poetas, os escritores e os pirados em geral dessa
geração na verdade dão continuidade a uma tradição, for-
te nos Estados Unidos, de escritores, poetas e compositores
populares rebeldes, não-conformistas e que justamente an-
davam de um lado a outro do país.
Diante disso tudo, é evidente que os poemas e a pro-
sa Beat tivessem justamente um Beat (batida), um feeling
(sentimento) e um swing (ginga, balanço) muito peculiares,
muitas vezes inalcançável pela ótica square (careta, confor-
mista).
O que já foi visto na poesia Beat como “descuido for-
mal”, displicência no “acabamento”, ausência de “síntese” e
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excessiva “discursividade”, é na verdade não perceber a for-
ça do ritmo, a batida (Beat) do bop na poesia.
Mais que isso, é não perceber a força do derramamen-
to oracular de um poeta como Allen Ginsberg, a força das
imagens se chocando poderosamente contra todo um fun-
do histórico e pessoal, é não perceber o descongelamento, a
desesterilização que esses ritmos, essas imagens e essa bus-
ca da oralidade trouxeram para a poesia norte-americana.
A poesia e a prosa Beat mostram com clareza as for-
mas tentando traduzir ritmos do corpo, da história, do movi-
mento, da libido querendo a liberação, incapaz de se estabe-
lecer (no exato sentido de settle down).
O que é bastante diferente de supor que os Beats fos-
sem incultos, ignorantes e anti-culturais. Na verdade, eles
conheciam a tradição livresca, normalmente tinham muitos
livros em casa, contrastando com a pobreza material de suas
casas.
O que é insuportável para a crítica acadêmica é o sen-
tido livre, vital, de apropriação não-dogmática, que os Be­
ats faziam da tradição literária, em língua inglesa (Whitman,
William Carlos Williams, Pound, Eliot, etc), ou da modernida-
de européia (Rimbaud, Baudelaire, Mallarmé, os Surrealis-
tas, os Dadaístas, etc).
Pobres, mas livres, independentes e espiritualmente
ricos, este poderia ser o lema dos Beats. Exemplo? A biblio-
teca de dez mil dólares de Keneth Rexroth num pardieiro de
vinte dólares.
Claro que nem todo poeta ou escritor Beat tinha uma
biblioteca desse porte, mas os livros sempre fizeram parte
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do circuito móvel da Geração Beat, já que eles, andando de
lá para cá nos Estados Unidos, passavam constantemente
temporadas uns nas casas dos outros.
Assim, a informação, falada e escrita, circulava muito,
já que ninguém vivia isolado na sua concha, relacionado ape-
nas com os livros das suas estantes.
A relação dos poetas e prosadores Beats com a univer-
sidade e com o esquema acadêmico era clara: não se impor-
tavam com as modas e revivais promovidos pela imprensa
acadêmica, não se dedicavam mais aos textos clássicos e es-
colares já esgotados, mas sim, a um tipo de criação artística
muito diferente das Boas Maneiras da Polidez Literária aco-
lhida e cultuada nas Academias.
A liberdade para escrever não poderia ser conseguida
por esse caminho pois, embora cultíssimos, educadíssimos e
preparadíssimos, os medalhões da universidade não tinham
molho, estavam desligados da realidade, escreviam com ex-
cessiva consciência e controle sobre cada palavra.
Entre a liberdade de referências, de movimentos, de
relacionamentos, de leituras públicas e privadas, mistura-
da com música, com sexo e com drogas da Cena Beat e os
cursos, e credenciais, degraus de carreira e todos os outros
protocolos da vida acadêmica havia um enorme fosso, quase
impossível de ser rompido.
Uma das conseqüências da enorme distância entre o
circuito acadêmico e a Cena Beat dos anos 50 é que, passado
todo esse tempo, a prosa e a poesia Beat são pouquíssimo
estudadas nos Estados Unidos, assim como são raras e difí-
ceis de serem encontradas as edições dos poetas, prosado-
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res e analistas dessa geração.
Diante disso, não é de se estranhar que a Geração Beat
só esteja chegando ao Brasil, de fato, na década de 80, muito
tempo depois da morte de Jack Kerouac (69) e agora que
Allen Ginsberg, William Burroughs e Lawrence Ferlinghetti,
vivos e ativos, já estão com sessenta anos ou mais de idade.
Por aí, pode-se avaliar com precisão a força do esque-
ma acadêmico-universitário norte-americano, que apesar de
todos os louvores que lhe são feitos, conseguiu tornar desco-
nhecido, dentro do seu próprio país, um movimento amplo e
profundo como a cultura da Geração Beat.
Romper com esse esquema significava romper com as
visões culturais dominantes numa América branca, protes-
tante e anglo-saxã, correlato imediato da afluência material
vivida pelos muito ricos, é claro, mas principalmente por lar-
guíssimos setores da classe média.
O estilo de vida e os valores dessa classe média afluen-
te na década de 50 era tudo que os Beats não desejavam
para si próprios, era tudo que representava o mundo CARE-
TA-SQUARE da vidinha média norte-americana.
Vai daí que os Beats, e nisso quase que em bloco, se
voltaram para outra tradição cultural, fortíssima: a da música
negra, mais precisamente o Jazz.
Muito mais que um “estilo” de música para ser ouvido
comportadamente em salas de concerto ou na sala de estar
com a família e os amigos reunidos, o Jazz surgiu ligado a
uma raça e a uma cultura reprimidas. E surge, com força to-
tal de contestação política e de liberação sexual, em cabarés
os menos familiares, em puteiros e outras áreas situadas no
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extremo oposto das bem-comportadas reuniões dos brancos
acadêmicos nas universidades.
Entender isso é entender por que, na América protes-
tante e moralista, racista e de classe média, a força da cultura
negra, embora tão forte e evidente, só chega ao grande con-
sumo devidamente “branqueada” e diluída.
Já demos neste livro o exemplo do rock, negro na raiz,
mas que chega ao grande consumo branco pelo rebolado de
Elvis Presley. E podemos dar agora o exemplo de Michael
Jackson, a super-estrela “branqueada” do momento: pode
canções líricas, não pode contestação política, nem carga se-
xual muito forte. No caso de Michael Jackson, acrescente-se
a isso um evidente “branqueamento” físico, que se traduz
em operação plástica para afilar o nariz, cabelo esticado, e
algum tipo de creme para branquear a pele.
Os Beats, ligados na existência real das ruas, interes-
sados nos becos e vielas da cidade, entenderam e buscaram
força na cultura negra, ou na cultura das minorias raciais em
geral, como forma de expressão de um ritmo de vida, de um
protesto, de um desejo, de uma batida (Beat) sob todos os
aspectos fascinante.
Essa batida incluía o corpo, a dança, a música e o sexo,
juntando o sagrado e o profano, coisa intolerável numa so-
ciedade fortemente protestante.
A mesma intolerância que a Igreja, no Brasil, demons-
tra diante da batida dos atabaques, que com seu ritmo hip-
nótico fazem baixar os santos. Diferente também do rufar
dos tambores militares, que alinha as tropas e faz os solda-
dos marcharem hipnoticamente obedecendo ordens.
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Como já dissemos, o próprio termo Beat, e seu corre-
lato próximo Hipster, vieram do jargão do Jazz, assim como
várias outras gírias.
O estilo de vida dos Beats também tinha a ver com o
mundo do Jazz, e bem entendido, do Jazz que naquela época,
e por algumas vertentes, não fazia parte do jogo comercial
de diluição, de apresentação comportada para platéias care-
tas. E, nesse sentido, o Beat que era um dissidente realmen-
te underground, liga-se numa força também underground.
O que os Beats amavam no Jazz, nos músicos de Jazz
e em todo o ambiente riquíssimo dos cabarés e dos lugares
onde se tocava o melhor Jazz, não era algo imediatamente
político, do tipo letras das canções referindo diretamente
questões sociais.
Evidente que esse tipo de abordagem, ligada ao ne-
gro oprimido na sociedade americana, nunca poderia ser
descartada. Mas o Jazz, pela sua própria existência, pela sua
própria capacidade de traduzir e envolver muito além das
palavras, muito além do bom-senso ou da boa intenção mo-
ralizante, junto com sua forte carga sexual, interessava aos
Beats, com seus saxofones sagrados, apocalipse bop santifi-
cado, sagradas bandas de Jazz e marijuana e Hipsters e paz e
picos e tambores!
Para os Beats, a cultura do Jazz tinha também um
sentido terapêutico, o que nos ajuda a entender porque um
dado cultural pode ser importante muito além do sentido
explicitamente político das letras.
A força que os Beats encontraram no Jazz, o sentido
de Saúde, de Cura, que por aí conseguiram sentir, pode ser
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entendido como a força do Sagrado-Profano, do não-racio-
nal, da presença firme do corpo pulsando, das pulsões e pul-
sações livres e rebeldes numa sociedade careta, de produção
e troca de mercadorias, retificada e alienada numa maneira
de viver congelada e num evidente desequilíbrio vital, sinô-
nimo de Doença.
Se os Beats foram de fato buscar força e caminho na
cultura negra do Jazz, em oposição à cultura branca, mora-
lista e protestante norte-americana, não foi apenas no Jazz
que eles conseguiram força.
Ainda dentro da América dos anos 50, os Beats surgi-
ram aliados com os Delinqüentes Juvenis do tipo Juventude
Transviada e Rebeldes Sem Causa, mas também se ligavam
ou estavam próximos de outras minorias como os Hispano-
Americanos (Chicanos), Índios, Traficantes, e uma vasta Fau-
na Urbana, toda ela dissidente da vida familiar e moral do
protestantismo norte-americano.
Esse tipo de aproximação e alianças, entre Negros,
Chicanos, Beats, Delinqüentes Juvenis, Boêmios, Índios e
Traficantes é interessante e mostra de comum a insatisfação
e o lado reprimido e pobre na América, do ângulo das mino-
rias raciais e culturais.
É interessante também notar que esse tipo de apro-
ximação introduz, via Geração Beat, elementos anti-racistas
na cultura americana, porque sempre promoveu o contato,
a miscigenação, cultural e fisicamente, mesmo que às vezes
de maneira ingênua.
Torna-se ainda mais interessante ao se verificar, nas
biografias dos principais atores da Cena Beat, o quanto eles
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andaram dentro ou próximos das universidades, dos círculos
intelectuais e bem-pensantes da América.
Era, portanto, a ruptura entre a classe média branca,
representada por vários membros da Geração Beat, e os va-
lores da sua classe, uma dissidência diante do caminho tra-
çado e esperado.
Na década de 60, esse tipo de dissidência existiria em
grande escala, com milhares de jovens abandonando as uni-
versidades ou colégios e, num momento ainda mais aguda-
mente político, desertando ou recusando o serviço militar e
a Guerra do Vietnã.
Respeitada a diferença numérica, entre os Beats dis-
sidentes nos anos 50, e a força enorme dos protestos dos
anos 60, ambas as atitudes poderiam ser sintetizadas num
lema famoso: Se Ligue, Sintonize e Caia Fora (Turn On: Tune
in, and Drop Out).
Os Beats não buscaram força apenas dentro da cultura
do seu país, mas também fora. Eles também incorporaram
e usaram, a seu modo, o Zen-Budismo. Se o Jazz significava
a batida, o corpo, o envolvimento hipnótico, mágico, o Zen-
Budismo introduziu, na cultura norte-americana, via Beats,
outros elementos: a possibilidade de Silêncio, a Meditação,
a Calma, a noção de Vacuidade do Ego, o Desapego Material
e tudo o mais que pudesse conduzir a alguma forma de Bea-
titude, de Iluminação.
Numa sociedade afluente e poderosa como a América
dos anos 50, vivendo um materialismo desenfreado, um con-
sumismo alienante e uma enorme pobreza espiritual, coroa-
da com uma Guerra Fria à sombra do Horror Nuclear, é claro
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que o Zen-Budismo significava um outro universo cultural,
uma outra visão da vida, uma forte espiritualidade, tudo
muito diferente da noção de Consumo (de imagens, de mer-
cadorias, de comportamentos, de expectativas, de artefatos
tecnológicos, etc).
Quer dizer que, se por um lado os Beats encontraram
força cultural numa raça oprimida dentro da própria Améri-
ca, a outra referência foi buscada fora da cultura do Ociden-
te, num Oriente diametralmente oposto ao American Way of
Life. Já que os Beats eram, claramente, um grupo que per-
cebia a falência dessa maneira de viver, e que o Sonho na
verdade se tornara um Pesadelo.
Mesmo que fosse um Pesadelo Refrigerado, era um
pesadelo e tinha que ser combatido. Não combater dentro
da tradição de luta da esquerda revolucionária não é sinôni-
mo de que não houve luta; ou que, automaticamente, todo
o legado poético e romanesco dos Beats seja “equivocado”;
ou argumentos do tipo.
O Zen entrou no tempero da cozinha Beat, de qual-
quer forma, em oposição a uma cultura verborrágica, pala-
vrosa, cheia de retórica, mas mentirosa e injusta, extrema-
mente materialista, que busca no conforto material todos os
valores da vida. Jogando para escanteio qualquer questão
espiritual ou filosófica mais profunda.
O Zen-Budismo, enquanto disciplina ascética e moral,
trata de revelações pessoais, individuais. É um conhecimen-
to para ser transmitido sem proselitismo ou propaganda os-
tensiva, direto do mestre para o discípulo. A síntese desse
caminho de conhecimento pode ser dada numa só frase: “Os
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que sabem não falam, os que falam não sabem.”
É claro, também, que havia um evidente choque entre
o Zen-Budismo enquanto disciplina ascética e moral, de re-
colhimento e silêncio, e o pique dos Beats, anárquicos, libe-
rando e buscando prazer.
A maneira como o Zen foi incorporado pelos Beats,
além do mais, não foi igual para todos os poetas, prosado-
res e teóricos da época. E vamos falar rapidamente desse
assunto.
Gary Snyder, poeta de São Francisco, um estudioso de
línguas orientais que depois receberia instrução formal Zen
num mosteiro do Japão, foi quem melhor incorporou o espí-
rito do Zen, ao seu trabalho poético, à sua própria vida.
Sua poesia, um dos grandes legados da Geração Beat,
incorpora o Zen em formas sintéticas, belíssimas, e em ne-
nhum momento descamba para o pseudo-intelectualismo
ou a divulgação grosseira.
Allen Ginsberg, poeta de Nova Iorque, além do Zen-
Budismo, incorpora o Hinduísmo a seus poemas de con-
teúdo fortemente social. Não importa se o seu Zen ou seu
Hinduísmo são “autênticos”. O fascinante é um jovem poeta
judeu americano sair de Nova Iorque, chegar às margens do
Ganges, aceitar a meditação e a compassividade orientais,
tornando-se o maior guru da América contemporânea.
Importa frisar que Ginsberg vai encontrar, fora da sua
cultura e fora da cultura dominante, o espírito e a força de
poemas notáveis, como por exemplo Who Be Kind To e Wi­
chita Wortex Sutra.
Nos livros de Jack Kerouac, a incorporação do Zen já é
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diferente, mais episódica, mais circunstancial, quase sempre
exterior ao espírito geral da narrativa. O que vem a dar num
contraste engraçado entre o pique alucinado dos persona-
gens e as tentativas, às vezes apenas engraçadas, de incor-
porar a espiritualidade Zen.
O maior divulgador do Zen nos Estados Unidos, nas
décadas de 50 e 60, foi sem dúvida Alan Watts. Ele chegou a
São Francisco em 50, era um pesquisador de Zen e reli­giões
orientais, e ao chegar a São Francisco já tinha sete livros pu-
blicados, numa carreira de pesquisador que começara aos
dezenove anos.
Seu trabalho de divulgação do Zen nos Estados Unidos
foi acompanhado de perto pelo mesmo tipo de trabalho fei-
to por D. T. Suzuki, falando pela televisão, fazendo conferên-
cias, dando cursos e aulas particulares.
Para Watts e Suzuki, o vale tudo dos Beats não era
exatamente o que pretendia a disciplina espiritual e o sen-
tido moral do Zen-Budismo. Eles achavam que os Beats na
verdade estavam buscando excitação, espalhando migalhas
de Zen, para justificar a insatisfação que tinham diante da
sociedade americana. Vamos agora dar uma olhada na Amé-
rica dos anos 50, a América da Guerra Fria, do Macartismo,
da Tecnocracia, do Consumo, daquilo tudo que Henry Miller,
um dos grandes antecessores dos Beats, colocou na seguinte
metáfora: “Pesadelo Refrigerado”.
Primeiro de tudo, era preciso bater firme, espalhar
alegria e revolução, valorizar a Vida diante da Morte Organi-
zada porque para os Beats não bastavam as ilusões coloridas
de felicidade, traduzidas em carros maiores e mais rápidos,
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maravilhas eletrônicas e um futuro sem limite com tvs-fones
e viagens de foguetes à lua.
Resumindo: associar o amor aos produtos vendidos
pela propaganda envenena o próprio ato de amar, incentivar
o sadismo no cinema e na televisão gera conseqüências que
não dá para relaxar com Coca-Cola.
Mas, fundamentalmente, não adiantava vender o
mito do Capitalismo do Povo e da Prosperidade sem Limites,
se por baixo permanecia o fato horroroso da economia des-
tinada à produção de guerra, um modelo para morrer, e não
para viver.
Na década de 50, não foram muitas as vozes que, na
América, se colocaram contra esse Pesadelo Refrigerado,
essa Selvageria de Neon, essa Morte Organizada.
Para complicar ainda mais, a década de 50 marca a
ascensão do conceito de Guerra Fria, de blocos geopolíticos
dividindo o planeta, de um ferrenho anticomunismo dentro
dos Estados Unidos. Traduzido no chamado Macartismo, ti-
rado de McCarthy, nome de um Senador ultra-reacionário,
cabeça das perseguições executadas pelo Comitê de Ativida-
des Anti-Americanas.
Nesse contexto, qualquer forma de crítica intelectual,
de pensamento autônomo dissidente, passava logo por es-
querdismo. E facilitava a perseguição política, o desemprego
para o perseguido, e outras formas de execração pública.
Vamos falar agora de alguns intelectuais tradicionais
que, cada um a seu modo, colocaram-se contra esse estado
de coisas.
Antes que o nosso jovem leitor associe essas figuras
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com freaks e desbundados, é bom explicar que todos eles
eram intelectuais, ligados à universidade, formados na tra-
dição humanista de crítica racional, organizada, da socieda-
de e da cultura. Estavam próximos da Geração Beat apenas
cronologicamente, e não nas atitudes existenciais imediatas,
tipo Jazz, sexo e drogas.
Em 1957, C. Wright Mills, um erudito, muda de rumo
e passa a publicar ensaios de sociologia agressivos, diretos,
ativistas. Ele não foi o primeiro a tentar dizer a verdade so-
bre a América daquela época. Grupos corajosos, ligados a
publicações como Dissent e Liberation, entraram antes na
batalha.
Além deles, desde o final da Segunda Guerra, Paul
Goodman e Dwight McDonald vinham fazendo uma lúcida
análise da América tecnocrática. Mills chamou mais a aten-
ção porque seu tom era mais enérgico, sua retórica mais
cativante, além dele ser o acadêmico bem-sucedido que de
repente bota a boca no trombone.
A sociologia visionária de Paul Goodman, um homem
de muitas aptidões e bastante influência, dirigia-se muito
aos jovens, e frisava as dificuldades de crescer e tornar-se
adulto numa sociedade que lhes apresentava: políticos de-
sonestos, poucas oportunidades do jovem ser útil, aptidões
desvirtuadas, patriotismo ingênuo e vários outros cortes na
possibilidade do jovem ir fundo na vida.
Diferente da crítica moralizante de Goodman, na dé-
cada de 50 um outro intelectual, que ficaria muito famoso na
década de 60, já estava em ação. Ele era Herbert Marcuse,
refugiado alemão, de formação marxista, portanto bem dife-
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rente do pensamento liberal da oposição norte-americana.
As idéias de Marcuse eram otimistas. A idéia central
de Eros e Civilização, publicado em 65, em resumo é a se-
guinte: “a tecnologia e a organização do trabalho numa so-
ciedade industria! desenvolvida já permitiriam a realização
de uma velha utopia, o homem enfim fazendo do trabalho
apenas um meio e não um fim em si. Escapando portanto do
reino da necessidade e tendo acesso ao reino da liberdade”.
Num outro tipo de resumo, significa o seguinte: “já
que as máquinas existem, deixemos que elas trabalhem para
nós, e vamos viver. Em tudo que isso implica em termos de
lazer, prazer, beleza, atividades criativas e relações não-alie-
nadas”.
Eros e Civilização descreveu a ética hippie muitos anos
antes da emergência desse grupo:
“O Eros Orfico transforma o Ser: ele domina a cruelda-
de e a morte através da liberação. Sua linguagem é música,
seu trabalho é brinquedo.”
Diante do Pesadelo Refrigerado da década de 50 nor-
te-americana, não havia apenas os Beats ou intelectuais dis-
sidentes como os citados.
No extremo oposto do pensamento crítico e racional,
tentando pensar a sociedade, seus problemas e as possíveis
saídas, havia um forte anti-racionalismo, uma grande des-
valorização do pensamento lógico, e da própria razão como
coisas inúteis.
Nesse extremo oposto, estavam os delinqüentes ju-
venis, desde o imediato pós-guerra: frenéticos, enfurecidos,
botando pra quebrar, sem nenhuma perspectiva, sem ne-
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nhum projeto.
É interessante notar que, do final dos anos 40 até ago-
ra, sucederam-se grupos e mais grupos de “rebeldes sem
causa”. Jovens, sempre ligados na ação frenética, vivendo no
mais imediato o contraponto da organização e do controle
sociais. Uma espécie de resposta necessária ao capitalismo,
à indústria da guerra, ao trabalho alienado e a todos os valo-
res dos mais velhos.
Acontece que todos esses movimentos de rebeldia
juvenil, que sempre se criaram entre adolescentes, mais do
que uma rebeldia sem causa, era e continua sendo uma re-
beldia sem saída.
O fato deles nunca terem tido padrões, organização,
moral, linguagem ou literatura em nada ajudou.
Houve os Rebels, os Rockers, depois os Hell’s Angels
e ainda depois os Skin Heads que, digamos agora, mais do
que propriamente rebeldes “sem causa” foram, ou ainda
são, traços claramente fascistas dentro da sociedade, tristes
caricaturas, justamente, dos valores mais caros aos generais,
aos cowboys, aos machões e aos predadores capitalistas em
geral: a morte, a violência como razão suprema, o desres-
peito pelas mulheres e pelos homossexuais, o desrespeito
pela própria vida, a exaltação enfurecida das máquinas e dos
símbolos exteriores de potência.
Pode-se até dizer que todos esses delinqüentes ju-
venis fascistas praticavam, ou ainda praticam, sem nenhum
pudor, escancaradamente, exatamente os valores que a so-
ciedade capitalista, imperialista, pratica por debaixo de dis-
farces jurídicos, legais e retóricos.
25
No que diz respeito à América dos anos 50, David Mi-
chaske viu que esses grupos eram uma espécie de rebordo-
sa do Sonho Americano, e ao invés de trabalho, construção
social e moralidade eles vieram com “... violência, sadismo,
sexo, consumo sem sentido, irreverência, flagrante desres-
peito pela pessoa ou propriedade de qualquer um exceto a
sua própria. Roubo, assassinato, vandalismo. Destruição sis-
temática de uma vitrine. O assassinato de uma vítima esco-
lhida ao acaso apenas para provar-se ‘suficientemente forte
para vestir a jaqueta dos Rebels’. Navalhas na bota, gangues
no estilo de Laranja Mecânica (A Clock-work Orange). Agres-
sividade. Desarticulação ...”
Se fica difícil voltar à década de 50 para imaginar o fas-
cismo desses grupos é, no entanto, bem mais fácil pensá-lo
na década de 60, muito mais divulgada, muito mais filmada,
televisada e gravada.
Basta lembrar o papel do principal grupo desse tipo na
época, os Hell’s Angels, primeiro diante dos festivais de mú-
sica, segundo diante dos movimentos políticos da década.
O Sonho da década de 60 começou a ser enterrado no
Festival de Altamont, que se realizou depois do famoso Festi-
val de Woodstock: se este foi pacífico, maravilhoso, reunindo
centenas de milhares em convivência nova e harmoniosa, o
de Altmont foi violento, grosseiro, baixo-astral e culminou
com um assassinato.
Quem viu o filme Gimme Shelter, dos Rolling Stones,
há de lembrar os momentos que antecederam esse assas-
sinato: Mick Jagger nervoso no palco, o show quase sendo
interrompido e, finalmente, enquanto os Stones cantavam
26
Simpathy for the Devil, a cena de um jovem negro sendo as-
sassinado pelos Hells Angels, que tinham sido contratados
para fazer a segurança do show.
O segundo exemplo, bem desdobrável, é ainda mais
contundente: os Hell’s Angels eram, além de machões e “oli-
góides”, fortemente anticomunistas, no melhor estilo do Ma-
cartismo da Comissão de Atividades Anti-Americanas e, mui-
to longe de serem “sem causa”, eram exatamente fascistas.
Portanto, se a Geração Beat desemboca nos grandes
Festivais de Música e nas campanhas políticas pelos Direitos
Civis, Contra a Guerra do Vietnã, pela Liberdade de Palavra, a
Favor dos Grupos Discriminados na Sociedade, e por aí afora,
Allen Ginsberg à frente, os delinqüentes juvenis da década
de 50 continuam nos Hell’s Angels que, diante das marchas
contra a guerra do Vietnã, saíam para espancar os manifes-
tantes e dissolver as manifestações, por considerá-las “coisas
de comunistas”.
Como se não bastasse, ofereciam-se como “gorilas”
(literalmente) para ir combater os commies (comunistas) no
Vietnã, deixando obviamente constrangido um governo que
precisava justificar sua política imperialista e genocida, mas
não através de uma aliança, à direita, tão francamente vio-
lenta.
O Imaginário dos movimentos da década de 60, farta-
mente divulgado no Brasil através de filmes, posters, roupas,
discos, livros e revistas, obviamente não tinha a ver com o
Imaginário fascista dos grupos tipo Hell’s Angels.
Tampouco o Imaginário da Cena Beat dos anos 50 se
confunde com essas imagens de ossos, caveiras, violência
27
gratuita e destruição imbecil, embora seja mais difícil de vi-
sualizar porque há uma grande diferença entre as duas dé-
cadas: na década de 50, quem quisesse divulgação tinha que
correr atrás enquanto que na década de 60, era impossível
escapar dos meios de massa e da divulgação constante.
Afora isso, a Geração Beat era do tipo me-deixe-em-
paz, não-me-encha-o-saco, e preferiam o sossego do anoni-
mato. Mas é com eles que o sentido comunitário, de Tribos
começa, coisa que se difundiria em grande estilo nos anos 60
(a ética da democracia participatória dos SDS — Students for
a Democratic Society — o sentimento de solidariedade numa
manifestação de protesto — os famosos sit-ins, love-ins, be-
ins, bed-ins e similares —, os festivais folk ou de rock, a im-
prensa underground, as comunidades rurais, e por aí afora).
A Cena Beat, muito mais íntima e localizada, tinha sím-
bolos mais visíveis, mais para consumo e esteriotipação, do
tipo: saxs e bongos, cigarro caindo do canto dos lábios, boi-
nas ‘existencialistas’, cachecóis pretos, cópias de Howl, On
the Road, Naked Lunch, artigos de Norman Mailer no Village
Voice, cafés enfumaçados, certamente o Jazz, e a gíria hip,
claro que só para entendidos, com a evidente intenção de
deixar os Caretas (Squares) Out e os Hipsters perfeitamen-
te IN (por dentro, por fora, gírias fortes depois incorporadas
em escala, de qualquer forma vindas direto do universo da
cultura negra, assim como, para usar um exemplo próximo,
a gíria da juventude desbundada do Rio de Janeiro sempre
veio do morro, da favela, do mundo negro marginalizado).
Antes de sairmos desse Pesadelo Refrigerado para en-
trar nas Frases do Corpo em Movimento, chegando depois
28
às Visões do Céu e do Inferno, encarando a Utopia nas Ruas,
deixemos aqui, didaticamente, um quadro simplificado dos
grupos de poetas e escritores, às vezes críticos e professores
universitários, mais em evidência da Geração Beat:

Grupo de Nova Iorque: (Costa Leste)


Allen Ginsberg, Jack Kerouac, Gregory Corso, William
Burroughs, Carl Solomon.

Grupo de São Francisco: (Costa Oeste)


Lawrence Ferlinghetti, Gary Snyder, Philip Lamantia,
Michael McCIure, Philip Whalen.

Grupo da Carolina do Norte (Revista Black Mountain):


Robert Creeley, Robert Duncan, Charles Olson.

Com uma nota final: é claro que este é um quadro sim-


plificado e que, dependendo do gosto e do ponto de vista
do freguês, pode ir, muito ou pouco ou mais ou menos, am-
pliando, excluindo ou incluindo poetas e escritores, dentro
do espaço que antecede ou dentro do espaço no qual se de-
senrola a Geração Beat.
Para os objetivos deste livro, dentro desta Coleção, o
quadro é significativo.

29
30
PROSA BEAT:
FRASES DO CORPO EM MOVIMENTO
A Geração Beat produziu, discutiu, leu e divulgou mui-
to mais poesia do que prosa. Por isso, falar dos escritores
da Geração Beat é falar fundamentalmente de duas pessoas:
Jack Kerouac e William Burroughs.
Para todos os efeitos, eles passaram a ser os escritores
da Geração Beat embora outros romances, muitas vezes com
temas parecidos com os deles, tenham sido escritos na mes-
ma época em que eles escreveram seus romances famosos.
Ambos acabaram se tornando personagens lendários
para as culturas Beat, Hipster, Freak, Hippie, do Rock, dos
Festivais, das Drogas, do Underground, da Contracultura.
Jack Kerouac nasceu em Lowell, Massachussetts, em
março de 1922. Descendia de bretões canadenses mistura-
dos com índios. Escreveu seu primeiro romance aos onze
anos de idade. Seu romance mais famoso é, sem dúvida,
On the Road. A Kerouac caberia reencarnar o mito do vaga-
bundo, andarilho, dissidente, buscando valores individuais e
31
aventura. Sem nunca, no mito, buscar um pouso.
Influenciado por Sebastian Sampas, com 17 anos deci-
diu ser escritor. Aos 18 anos, tomou conhecimento da vida,
aventuras e viagens do escritor Jack London. Foi uma pode-
rosa influência, e Kerouac decidiu ser um viajante solitário.
Seu primeiro romance publicado foi The Town and The City.
A história clássica acerca da criação de On the Road é
que esse romance foi escrito em três semanas, duma forma
muito peculiar: Kerouac botava rolos de papel de telex direto
na sua máquina Underwood, e metia bronca direto, para não
interromper o ritmo da mente sendo registrada cada vez que
fosse preciso parar e trocar a folha de papel.
Outro romance muito famoso de Kerouac, The Sub­
terraneans, também tem uma historinha famosa: foi escri-
to direto, em apenas três noites. Ainda outro de seus livros
sempre muito citado é The Dharma Bums (Os Vagabundos
de Arma), onde ele incorpora o Zen e, como costumava fazer
com vários personagens da Cena Beat, retrata em um dos
personagens o poeta Gary Snyder.
On the Road estava terminado e pronto para publica-
ção em 1949, mas só seria editado oito anos depois, em ple-
na segunda metade da década de 50.
Mais do que isso: Kerouac não tinha nem vinte e cinco
anos quando escreveu esse livro, morava em Nova Iorque
com uma tia e dependia de uma bolsa do governo america-
no.
Portanto, para um leitor que leia On the Road a partir
de uma ótica de 1984, muita coisa vai soar ingênua, quase
boba, embora o clima frenético e aventuroso talvez ainda
32
contagie muita gente de agora.
O que não pode ser esquecido é que, terminado no
final da década de 40, mais de trinta anos atrás, On the Road
é sob vários aspectos um precursor do que viria na década
de 50, na de 60 e na de 70.
Ou será assim tão difícil perceber que a expressão On
the Road (Pé na Estrada, na tradução deste livro pela Brasi-
liense) é o correspondente quase exato para Rolling Stones
(Pedras, pedras que rolam, pedras que rolam não criam mus-
go)?
Como o definiu, empolgado, David Pichaske no seu
Generation in Movement: “Pé na estrada — aquela grande
mina da consciência dos anos sessenta, aquela declaração
decisiva de, por e para a contracultura dos anos cinqüenta,
aquele grande, heróico e doce livro do final dos anos quaren-
ta, que não veria a luz antes de 1957, uma declaração contra
o status quo do pós-guerra e contra qualquer status quo.”
Acontece que a idéia de botar o pé na estrada não era
nova, a mística da aventura, da viagem, da utopia do cons-
tante movimento já pintara muitas vezes antes. E, no entan-
to, On The Road acerta na mosca. Por quê?
Vamos dar a palavra outra vez a David Pichaske: “Pé na
estrada — a mística é arrasadora. Tem sido arrasadora desde
tempos imemoriais. O convite de Kerouac à aventura não era
nada de novo, nada particular ao tempo, à nação ou mesmo
ao homem. Woody Guthrie esteve na estrada. O Ulisses de
Joyce botou o pé na estrada. Tom Jones esteve na estrada.
Os peregrinos de Chaucer caíram na estrada seiscentos anos
atrás, e o Ulisses de Homero alguns milhares de anos antes
33
deles.
Os papais dos anos cinqüenta, no entanto, não caíram
na estrada.”
Nessa altura, é bom informar ao leitor quem era, afi-
nal, o tal Neal Cassady, tão importante para Kerouac, para a
Cena Beat, e tão retratado nos livros de Kerouac.
Neal Cassady veio do mundo da delinqüência juve-
nil, era um verdadeiro outsider dentro da América careta
dos anos 40-50. Não tinha formação livresca, intelectual ou
escolar, como tiveram a maioria dos poetas e escritores da
Geração Beat (mesmo os menos famosos e quase nunca di-
vulgados).
Quando ele se aproxima de Kerouac, vem com um
papo acerca de Nietzsche, querendo saber qual era a dele.
Mas o próprio Kerouac sacou que o interesse real de Cassady
era outro: grana, lugar pra dormir, comida.
Neal Cassady atravessou toda Cena Beat, há referên-
cias a ele vindas de diversos pontos e fica nítido, no On the
Road, que o motor do barato, o really crazy era Moriarty-
Cassady, e não Sal Paradise-Jack Kerouac.
Dentro do esquema de fraternidade masculina, de
verdadeiro Clube do Bolinha que foi o de toda a Geração
Beat, fica ainda mais nítida a liderança, o carisma e a força
de Cassady, mesmo do Cassady absolutamente porralouca e
irresponsável com os próprios amigos.
A relação central de On the Road, entre Sal Paradise
(Jack Kerouac) e Dean Moriarty (Neal Cassady) tem fortes
traços homossexuais, que no entanto não dão em nada, já
que o negócio era garotas, apanhar garotas, muita birita, al-
34
guma maconha e dá-lhe, pé na estrada.
Allen Ginsberg declarou que Kerouac permitiu a muti-
lação da obra, retirando do original a passagem em que Dean
Moriarty come um caixeiro (enquanto na vida real aceitava
transar com homens).
Numa famosa entrevista que deu ao Gay Sunshine,
Allen Ginsberg desmontou de vez o mito, careta, da machi-
ce bem americana dos Beats: o personagem Carlo Marx de
On the Road é Ginsberg, onde o poeta aparece travestido de
“grande herói másculo”, ao invés de “judeu, bicha e comunis-
ta como eu era”.
Neal Cassady não parou na década de 50. No começo
da década de 60 ele botou outra vez o pé na estrada, ou-
tra vez de forma poderosa e original: juntou-se a Ken Kesey
e seus Merry Pranksters, que saíram pelos Estados Unidos
afora num ônibus chamado Furthur, promovendo famosas
sessões de música e dança, onde todo mundo tomava LSD e
viajava junto.
Acerca desse assunto, consulte-se o livro de Tom Wol-
fe, Electric Kool-Aid Acid Test, onde as experiências com áci-
do promovidas por Kesey são mostradas como algo muito
mais legal que as experiências promovidas por Timothy Le-
ary: enquanto nas dos Pranksters era ácido, música e dança,
Leary criava todo um clima místico, cobrava quatro dólares
de entrada, e aparecia todo de branco, qual um guru-jacu.
Assim como toda sua vida, a morte de Neal Cassady
permaneceu em um quase-anonimato: apareceu morto ao
lado dos trilhos de uma estrada de ferro, supostamente mor-
to por overdose de alguma droga.
35
De qualquer forma, a importância de Neal Cassady
para a Geração Beat é enorme: ele era o cara que fazia tudo
aquilo que alguns Beats, ainda presos à família e à escola, no
começo das viagens, gostariam de ser e fazer.
No On the Road, indiretamente, Cassady sobrevive
com Dean Moriarty. E a surpresa de muita gente diante da
explosão de energia que atravessa todas as partes do livro,
vai muito, justamente, para a energia de Cassady retratada
por Kerouac.
Paul Goodman foi um dos que ficaram espantados
com a energia e o movimento registrados no livro: “Em tre-
zentas páginas, esses caras cruzaram a América oito vezes!”
Dentro do próprio livro, entre uma e outra dessas via-
gens, o personagem Carlo Marx (Allen Ginsberg) pergunta a
Sal (Kerouac) qual o sentido de ficar cruzando a América de
um lado para outro, indo e voltando, sem definir nada.
Pegando por aí mesmo, o que se sente hoje em dia,
lendo On the Road, com Dean e Sal andando de carona ou
de carro coast-to-coast, de Nova Iorque pra São Francisco,
e de São Francisco pra Nova Iorque, até esbarrar com o mar
e a impossibilidade de continuar, é um romance desespera-
dor, uma energia dispersa, que bem poderia ter outro nome:
Sem Saída, metáfora da rebeldia sem causa ilhada e aprisio-
nada no mapa da América careta.
Diante de toda essa agitação e energia, fica até engra-
çado imaginar o Zen-Budismo como referência para Kerouac,
já que fala em silêncio, meditação e pacificação dos desejos,
rompendo as ilusões do ego e abrindo o caminho para a sa-
bedoria.
36
37
Mas Kerouac não queria nem saber, incorporou o Zen
a seu modo e mesmo a contemplação torna-se, nos seus tex-
tos, uma forma de ação, espécie de “metafísica da energia”,
na expressão de David Pichaske.
Um exemplo engraçado da peculiar incorporação do
Budismo feita por Kerouac está no livro Desolation Angels,
onde um dos personagens secundários decide que a essên-
cia do Budismo é “conhecer quantas pessoas for possível co-
nhecer”.
Mas tem um ponto que explica melhor o interesse de
Kerouac pelo Budismo: a rejeição do materialismo da Socie-
dade Tecnocrática de Consumo e a compreensão de que a
experiência pode ser uma etapa possível para a sabedoria.
A vida pessoal de Kerouac, no entanto, foi por um ca-
minho muito diferente do caminho da Sabedoria. No come-
ço da década de 60, retirou-se de cena, incapaz de conviver
com a notoriedade, e foi viver na sua cidade natal, Lowell,
Massachussetts.
Morreu em 69, mesmo ano em que morreu o Rolling
Stone Brian Jones, com o fígado e o estômago arrasados pelo
excesso de bebida, sem a beleza, sem a energia e sem a so-
nhada sabedoria.
Para Bruce Cook, crítico do The National Observer, au-
tor do livro The Beat Generation, “a morte de Jack Kerouac
no outono de 1969 colocou um ponto final no episódio Beat.
Kerouac foi vítima de seus próprios impulsos e de profunda
alienação que lhe ocasionaram a cultura e a contra-cultura
que ajudou a criar”.
Acontece que não foi bem assim, e para explicar basta
38
fazer um paralelo entre as duas figuras mais evidentes da
Geração Beat, um romancista e um poeta: Jack Kerouac e
Allen Ginsberg.
Afora todas as coisas que já dissemos, e afora ter tra-
balhado em muitas coisas, Kerouac era católico e conserva-
dor.
Não se considerava um Beat, mas um estranho, solitá-
rio, louco e místico. Acreditava que escrever e pregar a bon-
dade universal eram seus deveres na terra.
Consta que Kerouac votou em Eisenhower em 1956.
Pior: consta também que denunciou Ferlinghetti e Lipton
como comunistas, provocando uma enorme discussão.
Gary Snyder foi quem mais ficou chocado com esse
lance de dedo-durismo de Kerouac. Snyder profetizou o final
de Kerouac: “Tu, idiota, acabarás pedindo os ritos católicos
em teu leito de morte.”
Por essa via conservadora e católica, somada aos pro-
blemas de Kerouac com a bebida, dá para entender como
ele atravessou a década de 60 isolado, retirado, sem nenhum
projeto. E coloca ainda mais em relevo a figura de Allen Gins-
berg, que longe de alienar-se por qualquer cultura ou contra-
cultura que tivesse ajudado a criar, aceita o desafio de estar
em todas as frentes: festivais, passeatas, marchas, concer-
tos, recitais, etc.
Nesse nível, a diferença é fundamental: Kerouac é o
católico e conservador, Ginsberg é o poeta com formação
política, próximo do comunismo, que desbunda nos anos 60
mas não esquece que seu desbunde, seu misticismo, tudo
tem que fluir para a sociedade, para as outras pessoas, para
39
algum projeto de libertação.
Encontramos em Kerouac o seguimento de uma tra-
dição profundamente norte-americana de escritores do tipo
de Mark Twain, Jack London e Thomas Wolfe: todos eles es-
critores-em-movimento, amantes e perseguidores da “ver-
dadeira América”, sempre vista como romântica e livre, onde
o indivíduo era valorizado. Por aí, temos, sempre, uma cons-
tante busca-do-oeste literário.
Acontece que esse caminho, a pureza dessa possibili-
dade do Sonho Americano, tinha acabado, dando lugar a um
país industrializado, imperialista, profundamente conser-
vador nas suas camadas médias e totalmente voltado para
um projeto de Guerra Fria, interna e externamente, o que já
dava, na década de 50, num acirrado anticomunismo e anti-
intelectualismo.
E não seria do ponto-de-vista católico, conservador e
individualista que se poderia imaginar qualquer perspecti-
va de mudança na América dos anos 50 e 60. No entanto,
foi esse o caminho de Kerouac, depois de ter agitado a cena
com livros fortes, ter incentivado muitos talentos, especial-
mente Allen Ginsberg eWilliam Burroughs, e gastado energia
em mais de um continente.
O caminho do judeu, bicha e comunista Allen Ginsberg
era outro. Ele sabia bem o que significava estar do outro lado
do pensamento triunfante, da caretice anti-comunista, ma-
chista e católico-protestante americana.
É fulminante comparar o ostracismo e a melancolia da
morte de Jack Kerouac em 69 e Allen Ginsberg na linha de
frente de todos os grandes acontecimentos culturais e polí-
40
ticos da década de 60, culminando com as grandes jornadas
de 68, tanto nos Estados Unidos como na Europa (lembre-se
que, na Europa, Ginsberg foi chamado “O Rei de Maio”).
Deixando de lado agora as impossibilidades de vida de
Jack Kerouac, vamos falar agora da estética da prosa Beat,
começando por dizer que aquilo que os poetas tentaram na
sua poesia, foi ao mesmo tempo tentado pelos escritores,
principalmente Kerouac, na sua prosa. Sendo a primeira e
óbvia conseqüência disso uma maior proximidade entre pro-
sa e poesia, e em vários momentos uma grande dificuldade
em separar uma da outra.
Allen Ginsberg definiu o estilo de Kerouac como uma
“prosódia bop espontânea”, dentro de um “extraordinário
projeto” que consistia no seguinte: “descobrir o ritmo da
mente trabalhando em alta velocidade na prosa”.
Diante desse projeto, é claro que os convencionalis-
mos, formalismos e outras esterilidades acadêmicas esta-
vam automaticamente chutados para escanteio, sem chance
de retorno.
Por aí se vê, dentro da estética da prosa Beat, nova-
mente a importância do Jazz e da cultura negra da América:
o escritor Beat querendo escrever com a mesma liberdade
com que um músico de Jazz improvisa suas frases, com a
mesma sensualidade, com o mesmo movimento, com a mes-
ma beleza e frescor.
Frases do corpo em movimento: “a palavra escrita em
prosa como um registro vibrante, vivo, dinâmico, direto, de
um momento, de momentos intensos do corpo-mente em
movimento contínuo”.
41
Mesmo por aí, havia precedentes dentro da literatura
norte-americana. E dois antecessores ilustres certamente fo-
ram Henry Miller e Walt Whitman, buscando, justamente ...
a insistência no espontâneo, no improvisado, a importância
de viver no presente, a sensualidade, o desejo de quebrar as
censuras, um certo sentimento de santidade, e por aí afora.
A prosa de Kerouac foi muito identificada como uma
Escrita Automática ou uma Escrita Espontânea (e aí é preciso
lembrar as tentativas surrealistas, na Europa, de uma escrita
liberada do consciente, capaz de soltar as imagens do sonho,
do desejo, do inconsciente; os signos verbais vencendo as
barreiras impostas pela seleção racional.)
Se podemos apontar o improviso jazzístico e as idéias
surrealistas como relacionadas diretamente com a Prosa
Espontânea de Kerouac e outros Beats, podemos também
apontar, como referência, o Expressionismo Abstrato, do tipo
praticado por pintores como Jackson Pollock. Guardadas as
diferenças entre o uso de cores e linhas e o uso de palavras,
em ambos a mesma intenção de nunca terminar, de sempre
acrescentar, de nunca parar para retocar, para excluir.
No topo dessa relação que envolve Jazz, Surrealismo
e Expressionismo Abstrato, existe a tentativa de abolir a dis-
tância entre a palavra escrita e a palavra falada, entre o regis-
tro visual na página e o envolvimento oral.
Esse caminho, que já era forte em escritores como
Henry Miller e J. D. Salinger, em Jack Kerouac vai ser mui-
to mais acentuado, na tentativa de registrar o fluxo verbal e
não-verbal que envolve situações concretas de fala.
O que Jack Kerouac vai tentar recuperar em sua prosa
42
delirante, espontânea, contínua, expressionista e automáti-
ca, é a variedade de ritmos, de tons, o colorido, a vibração e
o ritmo das frases vivas, em movimento.
Daí fica mais fácil entender a ligação com o Jazz, com a
cultura negra, porque se tratava da ligação com uma cultura
oral, ligada ao corpo, inseparável do corpo, incapaz de ser
enquadrada num modelo linear, de texto ou de teorização.
Martelando freneticamente as teclas de sua máquina
de escrever, com rolos imensos de papel, para não interrom-
per o fluxo da narrativa, Kerouac estava na verdade queren-
do descongelar a linguagem, da palavra escrita, linearizada e
convencional demais para o ritmo do pensamento do corpo
em ação, em altíssima velocidade.
Por isso, muitas vezes, é só lendo a prosa de Kerouac
em voz alta, em voz bem solta, soltando o ritmo, que se po-
derá entender esse caminho, essa estética. Valendo o mes-
mo para grande parte da poesia da Geração Beat, toda ela
feita pensando na palavra, na recuperação da palavra poéti-
ca falada e cantada.
É óbvio que nem todo mundo concordava com esse
caminho, nem considerava válida a prosa de Kerouac. Alguns
chegaram a se perguntar se ele alguma vez merecera toda a
fama e a repercussão em torno do seu trabalho.
Outros, como o escritor Truman Capote, consideravam
o estilo espontâneo de Kerouac “mera datilografia”, ou seja,
mero ajuntamento de palavras sem nenhum valor literário.
E, como o estilo da Geração Beat na prosa e na poe-
sia era muito próximo, as críticas desse tipo também valiam
para os poetas, como Allen Ginsberg, volta e meia acusado
43
de ser excessivamente “discursivo” em seus poemas.
Não vamos resolver aqui polêmicas literárias envol-
vendo a Geração Beat. Deixamos apenas uma sugestão, aliás
extensível a outros poetas e outros romancistas, não apenas
os dessa geração: leia os livros, sinta os poemas, tire suas
próprias conclusões, não seja esquizóide, considere o valor
das suas emoções e das suas próprias opiniões.
E antes de passarmos a falar do outro grande escritor
da Geração Beat, William Burroughs, é importante ressaltar
um aspecto que unia os escritores e os poetas dessa geração.
Uma tendência nos escritores de prosa, assim como
dos poetas entre os “bárbaros santificados”, é a combinação
de poesia e prosa. O verso livre já pode ser visto como um
passo nessa direção e, por outro lado, os escritos de James
Joyce.
Os antigos bardos e menestréis iam da narrativa à
poe­sia, e vice-versa, tão naturalmente quanto eles se mo-
viam da palavra falada para a palavra cantada. O objetivo é
sempre o mesmo: criar um idioma que traga a palavra outra
vez de volta à vida. Quando a palavra encontra sua voz outra
vez, prosa e poesia andam juntas.
Claro que se a gente pensar na prosa da Geração Beat
dentro dessa referência, e das outras já apontadas, fica difícil
reduzi-la a uma “mera datilografia”, mero ajuntamento dis-
forme, incongruente e inútil, de palavras puxando palavras
em intermináveis rolos de papel.
Claro também que, pelo mesmo caminho, é ainda
mais difícil reduzir a poesia da Geração Beat, principalmente
a de Allen Ginsberg, porque é a mais atacada, à mera “dis-
44
cursividade”.
Esse tipo de discussão em torno da prosa da Geração
Beat fica ainda mais inconsistente quando se compara os
textos dos dois maiores prosadores Beat, Kerouac e Burrou-
ghs, e se descobre com grande facilidade enormes diferen-
ças formais e temáticas.
Em poucas palavras: Burroughs não utiliza a Prosa Es-
pontânea, ou Escrita Automática, que marca bastante o es-
tilo de Kerouac. Além disso, a barra exposta nos textos de
Burroughs é muitíssimo mais louca e mais pesada, fazendo
certas barras e certas peripécias narradas nos livros de Ke-
rouac parecerem histórias para criancinhas.
William Burroughs, conhecido como “A Farmácia Am-
bulante” da Geração Beat, pela quantidade e variedade de
drogas que tomava, já tinha 30 anos em 1944. Nesse mes-
mo ano, foi procurado em Nova Iorque por dois jovens, dez
anos mais jovens que ele, que ficaram fascinados com sua
loucura, inteligência e cultura: eram eles Jack Kerouac e Al-
len Ginsberg.
Tornaram-se amigos, passaram a levar altos papos
sobre literatura e sobre drogas, e foi Kerouac quem insistiu
com Burroughs para que ele escrevesse e publicasse.
O primeiro livro de Burroughs saiu em 1953, com um
título bastante sugestivo: Junkie, que a gente poderia tra-
duzir sem susto por Drogado. Esse livro foi publicado sob o
pseudônimo de William Lee, e trata obviamente de drogas,
dependências, delírios e visões variadas num tom, repeti-
mos, bastante diferente de Kerouac.
Burroughs já tinha quase 40 anos quando Junkie foi
45
publicado em 1953. Seu romance mais famoso, no entanto,
é certamente The Naked Lunch (O almoço nu), terminado em
1958: é um livro onde entram sexo, perversão, sadomaso-
quismo e drogas pesadas num clima delirante e surrealista,
algo portanto muito diferente de uma dissidência organiza-
da, com intenções de transformação social, ou com alguma
base ética ou moral.
Em suma, nada de edificante, nada de construtivo,
nada de positivo, realmente algo do tipo “não me siga que
eu não sou novela”.
The Naked Lunch, no entanto, foi escrito graças à insis-
tência de Kerouac. É como narra o próprio Burroughs, numa
entrevista dada à revista espanhola Quimera (traduzida e pu-
blicada no Brasil em Leia Livros): “Foi ele quem me animou a
escrever quando não me interessava realmente fazê-lo. Mas
quanto à influência, em nada me sinto perto dele. (...) Nos
anos 40, Kerouac me repetia que deveria escrever um livro e
intitulá-lo The Naked Lunch. Não tinha escrito nada desde a
época do ginásio e não me pensava como escritor, e assim o
disse a ele. Jack insistia e durante anos não me lembro de tê-
lo visto zangado ou hostil. Quando expunha meus escrúpulos
a respeito da escritura, sorria como um padre que sabe que
mais cedo ou mais tarde você voltará a Cristo.”
William Burroughs viveu na Europa durante a década
de 30 e passou a maior parte da década de 50 fora dos Esta-
dos Unidos, detestando Truman, Dulles, materialismo, buro-
cracia e todas as figuras do Sistema.
Allen Ginsberg, falando muito tempo depois dos anos
50, descreveu Burroughs como “um cientista preciso investi-
46
gando regiões da consciência, proibidas para a compreensão
comum pelas agências de Controle”.
Para Jeff Nutall, em 1960 Burroughs tinha se transfor-
mado no “deus do underground, brilhando obscuro e fabu-
loso atrás dos altos sacerdotes Ginsberg, Kerouac e Ferlin-
ghetti”.
Apesar disso, Burroughs, coerente na sua loucura e
no seu caminho sem moralidades, jamais aceitou o papel de
Guru, tão comum e tão aceito pela juventude da década de
60.
Para ele, nunca teve essa de ser o Pai, o Professor, o
Mestre, o Líder, o Guia, o Guru de ninguém. É novamente Jeff
Nutall quem vai lembrar o constante trabalho de Burroughs
para não ser mistificado ou transformado em Guru. E fazia
isso, por exemplo, nos seguintes termos: “E agora eu tenho
algo a dizer para vocês rapazes das esquinas do cosmos que
pensaram estar em contato com o Grande Operador — Otá-
rios! Babacas! Escrotos! — Eu odeio todos vocês. E nunca
pretendi dar ou pagar vocês com algo diferente de bosta de
cavalo.”
É claro que a venerável figura do imoralista que se co-
loca nesses termos sempre veio cercada de aventuras extra-
vagantes, mas reais, nada lendárias, e que certamente não
fazem dele Meu Tipo Inesquecível.
A mais leve delas diz respeito a suas aventuras em
Tânger, durante a década de 50, depois de ter escrito e pu-
blicado Junkie: trata-se do homossexual William Burroughs,
já se livrando da dependência das drogas pesadas, vivendo
muitas noites de prazer com os meninos prostituidos da Áfri-
47
ca do Norte.
Acerca dessa temporada em Tânger, e das suas rela-
ções com esses meninos, o imoralista Burroughs tem uma
síntese exemplarmente cínica e inescrupulosa. Quando per-
guntado acerca do sexo em Tânger, respondeu: “É tremenda-
mente simples. As crianças são muito pobres ...”
Embora homossexual confesso, Burroughs teve, pelo
menos até o período da força máxima da Geração Beat, duas
mulheres: uma foi uma condessa húngara, com a qual ele
se casou e furtivamente arrancou do continente europeu. A
outra foi Joan Burroughs.
Burroughs vivia com sua mulher Joan no México e foi
lá que ele a matou com um tiro de pistola no rosto. Segundo
ele, de maneira perfeitamente “acidental”.
Ele estava muito bêbado, sentindo-se muito mal; com
lágrimas nos olhos disse de repente para sua mulher Joan: “É
o momento de interpretar Guilherme Tell, põe o copo sobre
tua cabeça.”
Aconteceu em seguida que Burroughs, com uma pis-
tola fajuta, bêbado, apontou para o copo mas acertou Joan,
matando-a no ato. Foi preso, depois liberado, saindo direto
do México, depois de um período em liberdade condicional,
quando tinha que se apresentar todos os dias à polícia.
É claro que toda a figura de Burroughs se mistura,
sempre, com o uso das mais variadas drogas. Mas ele não
era do tipo que fazia literatura estilo “minhas experiências
sob controle com as drogas para ver como é”, como o foram
por exemplo as experiências com haxixe do filósofo alemão
Walter Benjamin.
48
As drogas, as visões, os delírios e as percepções de
Burroughs são uma espécie de base, elementos que abrem
uma picada literária de maneira peculiar, forte e original.
Sobre relatos, troca de experiências, enfim, acerca de
drogas, pode-se falar do livro The Yage Letters, correspon-
dência entre Burroughs e Ginsberg, resultado do seguinte
lance: no início da década de 50, Burroughs veio ao Ama-
zonas atrás do Yagé, segundo ele “a droga definitiva”. Allen
Ginsberg viria sete anos depois, resultando dessas duas via-
gens as cartas do referido livro.
Acerca da literatura de Burroughs, pode-se dizer que
ela apresenta um clima ao mesmo tempo surrealista e de
ficção científica, traduzindo as diversas intenções e preocu-
pações dele, enquanto escritor, enquanto filósofo, enquanto
pensador em busca de entendimento e alternativas, usando
para isso personagens, viagens, drogas e depois a supertec-
nologia eletrônica, com a qual Burroughs acredita (ou acre-
ditava) se tornarão desnecessárias coisas como homem, na-
tureza e discurso.
Como exemplo desse clima, transcrevemos abaixo
o final do conto chamado Não Pense, que trata justamen-
te, num clima de ficção científica, de um lugar imaginário e
exercícios imaginários de libertação diante do “pensamento
obrigatório”:

“Longe os anos luminosos da academia que nunca


existiu e nunca poderá existir. O Cérebro não pode permitir
que isso ocorra ou já tenha ocorrido há milhares de anos.
O Cérebro não permitirá descobrir como é fácil resolver os
49
problemas. Uma vez resolvidos os problemas, o artefato do
cérebro se tornaria anacrônico.” “O que é um problema? Mr.
Hubbard definiu o problema como postulado contra postu-
lado, intenção contra intenção. O artefato cerebral consta de
um mecanismo que o impede de resolver problemas e esse
mecanismo é a Palavra. O Cérebro só pode produzir mais ar-
tefatos supervenientes que produzam mais palavras. Nesse
último curso nós cortamos a palavra. O artefato cerebral com
seu mecanismo de palavras auto-limitador tornou-se agora
obsoleto. Não é feito de metal nem de quartzo. Não deixará
nenhum rastro em suas espáduas exceto as cinzas de uma
fogueira apagada.”

Burroughs acredita hoje em dia, e falando é claro que


de um ponto-de-vista bem americano, que nenhum movi-
mento revolucionário seja possível hoje em dia no Ocidente:
“são muitas as razões para isso; uma é que o processo indus-
trial está muito avançado; outra é que uma revolução vinda
de baixo é completamente impraticável”.
Nota-se que Burroughs, nesse lance, pensa exatamen-
te como um americano, generaliza o avanço industrial, igno-
ra completamente o que seja a miséria e o atraso dos paí-
ses do Terceiro Mundo e não tem muita noção do que está
jogando fora quando afirma ser impossível uma revolução
“vinda de baixo” (e, para quem vive num país como o Brasil,
num continente como a América Latina, é engraçado supor
uma revolução que “viesse de cima”).
William Burroughs tem hoje 70 anos, portanto, idade
de ser avô. Mas continua ativo e muito louco, numa época
50
em que a maioria ou já morreu ou já tirou o time de campo.
Recentemente, saiu publicado seu último romance,
chamado The Place of Dead Roads. Entre suas atividades
mais recentes, trabalhos com David Bowie, The Police e a
radical “new wave performática” Laurie Anderson.
Nada mal para um velhinho muito louco estar em
companhia de artistas tão modernos e tão jovens: o tempo
passou, muita coisa mudou, a maior parte da Geração Beat
ficou pelo caminho, mas William Burroughs continua botan-
do lenha na fogueira.

51
52
POESIA BEAT:
VISÕES DO CÉU E DO INFERNO
Ao contrário da prosa, muito centrada nas figuras de
Kerouac e Burroughs, a Geração Beat teve muitos e bons
poetas. Pelas características deste livro, vamos falar apenas
dos poetas que estiveram mais em evidência, deixando claro
desde logo o óbvio: entre os que não figuram neste livro,
estão muitos e bons poetas.
Uma coisa é certa: o maior poeta da Geração Beat,
vivo e ativo, talvez o maior poeta vivo dos Estados Unidos, é
Allen Ginsberg, sendo ele portanto quem fecha e quem ocu-
pa mais espaço nessas Visões do Céu e do Inferno.
Os poetas da Geração Beat surgiram, na mesma épo-
ca, na Costa Leste (Nova Iorque, principalmente no Greenwi-
ch Village), na Costa Oeste (São Francisco, na Califórnia e áre-
as próximas) e na Carolina do Norte (Black Mountain).
Os grupos de poetas que foram surgindo nesses luga-
res não tinham nenhuma plataforma política e nenhum pro-
grama estético que os unisse, mas uma coisa os unia dentro
53
da variedade: a rejeição total da poesia acadêmica e forma-
lizada, o salto por cima do intelectualismo estéril dos anos
30 e 40, a busca de uma poesia novamente ligada aos ritmos
da vida, desenvolvendo para isso novas concepções do po-
ema em paralelo com o Jazz, o Expressionismo Abstrato e
uma série muito variada de referências estéticas, políticas e
religiosas.
As Visões magníficas de William Blake, a potência do
poeta-cantor da América Walt Whitman, a modernidade e a
força dos experimentos poéticos de William Carlos Williams
e E. E. Cummings, algumas lições tiradas de Ezra Pound, êx-
tases à Ia Rimbaud, loucuras à Ia Baudelaire, a força política
da poesia marxista dos anos 30 americanos, as experiências
Surrealistas e Dadaístas chegando enfim aos Estados Unidos.
Na verdade, as Vanguardas da Europa do começo do
século, que nunca tinham chegado ao mundo da cultura an-
glo-saxônica, entram em cena com Breton, Duchamp, Leger,
Max Ernst e outros artistas europeus refugiados na América
durante a Segunda Guerra, influenciando bastante os poetas
da Geração Beat. É nítida essa influência, por exemplo, em
vários poemas de Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti.
Espiritualmente, alguns poetas da Geração Beat foram
buscar no Budismo Zen, no Hinduísmo e eventualmente no
Cristianismo (caso de Brother Antoninus), as bases e as refe-
rências que não existiam na América consumista, afluente,
reacionária e reificada do pós-guerra.
Some-se a isso o uso amplo e variado de drogas, am-
pliando Visões, despertando novos caminhos, incorporando
um grande número de novas Imagens à poesia norte-ameri-
54
cana, e se verá que a composição poética da Geração Beat
partiu, de fato, de muitas fontes.
O curioso é que os poetas Beats, já desde a década de
50, perceberam que a transformação política e social não ex-
clui necessariamente a espiritualidade, nem as drogas, nem
as experiências sexuais, nem os poderes extáticos, visioná-
rios da mente humana.
Vai daí que, mesmo com todas as referências do Budis-
mo Zen e do Hinduísmo, posteriormente tantas vezes usadas
de maneira beata e babaca, os poetas Beats estavam sempre
ligados no movimento da vida, da sociedade, da transforma-
ção deste mundo.
Essa poesia, ao abandonar o academicismo e o inte-
lectualismo estéreis, criou uma série de novas e fortes Ima-
gens e fez algo ainda mais importante: reintroduziu o som na
poesia e rejeitou velhas formas de controle, levando a poesia
para fora das bibliotecas, gabinetes e escritórios burocráti-
cos da cultura.
A ação desses poetas tornou a poesia muito popular,
fora do circuito comercial das editoras e dos trâmites do
prestígio acadêmico, através de edições independentes e lei-
turas públicas de poesia: em pequenos teatros, em casas de
Jazz, em residências particulares.
Dentro da poesia em língua inglesa, reintroduzir o som
na poesia significa referir, ainda a nível da página impressa,
aquilo que Eliot chamava de audio-imagination (imaginação-
auditiva) ou aquilo que Marianne Moore chamava inner ear
(ouvido íntimo, aproximadamente).
Indo um pouco além da página impressa, temos as re-
55
ferências de Walt Whitman e o estilo “Eu ouço a América
cantar”, e William Carlos Williams quando buscava o que ele
denominava common speach rhythms (os ritmos comuns da
fala).
Na prática imediata dos poetas da Geração Beat, no
entanto, o grande caminho tentado foi a aliança com o Jazz,
caminho esse que pode ser resumido numa frase: aliar-se ao
Jazz porque essa era a linguagem musical da América.
A poesia da Geração Beat tentou, portanto, trazer
para si a liberdade, o ritmo, a batida, a sensualidade das im-
provisações do Jazz, principalmente do Bop, o Jazz posterior
a Charles Parker.
Escrevendo em 59, Lawrence Lipton, em The Holy
Barbarians, já sintetizava essa aliança: “O que nós estamos
assistindo hoje em dia nas leituras públicas de poesia e na
união de poesia com Jazz é uma retomada de certos elemen-
tos perdidos da cultura oral, possibilitada pela revolução ele-
trônica nas comunicações, pelo fonógrafo, rádio, gravador e
os meios audio-visuais como cinema e televisão. Os poetas
há muito sentiam que escrever poesia apenas para a página
impressa era de certa forma insuficiente, deixando incom-
pleto o ato da comunicação.”
No mesmo texto, Lipton sintetiza o que talvez seja a
linha-mestra da poesia da Geração Beat, a retomada da tra-
dição oral e da função social do poeta: “Antes da invenção
da imprensa, a poesia ainda era largamente uma arte vocal.
Desde seus primórdios no drama ritual, quando o poeta era
profeta, vidente, xamã, sacerdote, juiz, bardo, sozinhos ou
combinados, a poesia era algo para ser falado, recitado ou
56
cantado com música e, com alguma freqüência, para ser
dançado. A poesia eram palavras mágicas, formas verbais
desempenhando uma das funções vitais do ritual.”
Já que essa foi de fato uma linha-mestra da poesia da
Geração Beat, continuaremos nela ao introduzir aqui o gru-
po de poetas da Carolina do Norte, responsáveis pela famosa
Black Mountain Review, editada pela Universidade de Black
Mountain, entre 1951 e 1956.
A primeira coisa a dizer é que a poesia Beat não acon-
teceu apenas fora da universidade, porque no corpo docente
da Universidade de Black Mountain estiveram poetas do ní-
vel de Charles Olson, Robert Creeley e Robert Duncan.
Se William Carlos Williams já tinha abandonado com-
pletamente a rima, Charles Olson foi ainda mais longe, ao
afirmar que a métrica e as formas tradicionais tinham se tor-
nado obsoletas.
O que ele queria, e buscou com sua ação poética, era
substituir o material obsoleto por novas estruturas orgâni-
cas: “O verso vem da respiração, da respiração do homem
que escreve no momento em que escreve.”
Com isso, Olson reafirma com tudo um caminho que,
como já vimos, tinha antecessores ilustres tanto na prosa
quanto na poesia norte-americana, que chega portanto à
Geração Beat, e que vai atingir sua força máxima no trabalho
de Ginsberg.
Buscar formas novas, orgânicas, ligadas à tradição oral
da poesia, retomando portanto a função social do poeta, sig-
nificou também pensar o outro pólo da questão: a platéia, os
receptores da poesia.
57
Para exemplificar essa questão, podemos usar outro
membro do corpo docente da Universidade de Black Moun-
tain, também poeta, também editor da Black Mountain Re­
view: Robert Duncan.
Para Duncan, não bastava pensar a relação do artista
com a sociedade em termos de entreter ou educar a platéia.
Era preciso transformar a platéia.
Numa época em que esteve em Venice West, Califór-
nia, onde viviam Lipton e outros poetas e escritores da Ge-
ração Beat, Robert Duncan sintetizou claramente essa preo-
cupação da seguinte maneira: “A princípio não há nenhuma
separação entre o escrever e conceber o poema e o lugar
onde ele vai ser apresentado. No entanto, ao ser escrito ele
está sempre destinado a uma platéia, a qual deseja atingir. O
poeta precisa ter a urgência de uma platéia maior, a qual é
também uma urgência social.
O que possa ser essa platéia ainda não está claro —
para mim, pelo menos — mas essa urgência social certamen-
te deve ser a de transformar a natureza da platéia. Não ape-
nas encontrar uma platéia, mas que a platéia também sinta
esse encontro; e ao encontrar a platéia, encontrar também
as condições rituais necessárias à transformação da platéia.”
De várias maneiras, em muitos lugares, graças ao tra-
balho de muitos poetas, esse contato foi sendo buscado. Os
resultados foram muitas vezes decepcionantes, outras vezes
muito bons, para platéias pequenas ou relativamente gran-
des, mas as platéias realmente grandes só foram atingidas
pelo poeta via música popular, na década de 60: por exem-
plo, quando os poemas do canto-quase-fala de Bob Dylan,
58
admirador e discípulo de Ginsberg, tornaram-se a voz de
toda uma geração.
Para ilustrar uma outra maneira de pensar a relação
do poeta com as platéias, com a própria poesia, e com a so-
ciedade, usemos agora como exemplo Michael McCIure.
McCIure, além de poeta, escreveu textos importantes
para teatro (The Beard, por exemplo), viveu em São Fran-
cisco desde 1953, e é dele o famoso Poema do Peyote, que
começa assim: “Livre — os sentidos vivos — na cadeira preta
— de balanço — / as paredes brancas refletindo a cor das nu-
vens / movendo-se sobre o sol. / Intimidades! Os quartos /
não importam — senão como divisões de todo o espaço / de
toda a beleza e feiúra. / Ouço a música de mim e escrevo-a
/ para ninguém. Passo fantasias / que me cantam com Vozes
de Circe ... /.”
Michael McCIure era criticado por Ginsberg, que acha-
va os primeiros poemas de McCIure “obscuros porque não
refletiam nenhuma causa social”, e a resposta de McCIure
era que Ginsberg vivia num “universo limitado, limitado pelo
humano, pela cidade, pelas extensões psicológicas da men-
te”.
Para se entender por onde queria seguir Michael Mc-
CIure, vejamos como ele encarava sua poesia:
“Meu conceito de poesia era intensamente alquímico,
em parte por causa da época. Era como estar num elevador
contendo um monte de gente com cabelo de recruta e cal-
ças apertadas. Ao encará-los, percebia que não poderia sair
fora do elevador a não ser que eu descobrisse alguma forma
alquímica ou super-humana. A maneira de escapar era criar
59
poemas que fossem criaturas vivas. Minha esperança era
que meus poemas pudessem ganhar vida, tornar-se organis-
mos vivos através da energia que eu jogava neles. Eu queria
poemas que tivessem seus próprios olhos, ouvidos, narizes,
pernas e dentes.”
Se conseguir audiências maiores para a poesia, inte-
ressando platéias as mais variadas, era e continua sendo algo
muito difícil, que esbarra em enormes bloqueios e condicio-
namentos; imaginem poemas que pudessem andar com as
próprias pernas, metáforas vivas fora do elevador louco da
sociedade!
Nessa altura do livro, é bom frisar que essa linha-mes-
tra que estamos apontando na poesia da Geração Beat, toda
ela voltada para a palavra falada e cantada, para as platéias,
para a comunicação pública ou para algo além da comuni-
cação pública de conteúdos sociais, significou um abandono
do veículo livro e da tradição da palavra impressa na folha
branca de papel.
Para falar nisso, vamos aproveitar para colocar em
cena um dos grandes mitos de toda a Geração Beat, ao lado
de Kerouac, Burroughs e Ginsberg, um poeta que vive até
hoje, com mais de 60 anos, na mesma mitológica São Fran-
cisco de tantas viagens: trata-se de Lawrence Ferlinghetti.
Aqui no Brasil, Ferlinghetti pode ser lembrado por
sua rápida aparição num filme, exibido comercialmente, O
Último Concerto de Rock (The Last Waltz, no original), que
mostra vários artistas na despedida do grupo The Band, que
durante muito tempo acompanhou Bob Dylan.
Nesse filme, Ferlinghetti é aquele velhinho muito lou-
60
co que aparece, como um garotinho travesso, lendo um poe-
ma amaldiçoando deus, a religião e a moral.
Na história da Geração Beat, Ferlinghetti esteve pre-
sente o tempo todo, agitando sempre, mas como estávamos
falando do veiculo livro, é bom informar que foi ele quem
fundou a editora e livraria City Lights Books, responsável
pela edição de boa parte do que de melhor foi produzido
pela Geração Beat.
A editora funcionava em São Francisco, e até hoje é
ela quem detêm os direitos de publicação de alguns livros
fundamentais da Geração Beat.
O livro mais importante, mais conhecido e mais divul-
gado de Ferlinghetti foi publicado em 1958 e se chama Coney
Island of the Mind. É uma poesia formalmente bem estrutu-
rada, empolgante, com traços surrealistas e dadaístas.
Embora o espaço seja pouco, não poderíamos deixar
de apresentar um trecho do poético Parque de Diversões da
Mente com o qual Lawrence Ferlinghetti ajudou a formular
o tom e o estilo do grupo de poetas Beat de São Francisco:

Nas maiores cenas de Goya parece que vemos


as pessoas do mundo
exatamente no momento em que
merecem pela primeira vez o título de
“humanidade sofredora”
Elas se retorcem pela página
numa verdadeira fúria de adversidade.
(...)
só mudou a paisagem
Elas ainda se alinham pelas estradas
61
afligidas por legionários
falsos moinhos de vento e galos dementes
nas auto-estradas de cinqüenta pistas
elas são as mesmas
só que mais longe de casa
num continente de concreto
salpicado por calmantes
ilustrando ilusões imbecis de felicidade.
A cena mostra menos carroças
porém mais cidadãos mutilados
em carros pintados
e eles têm estranhas licenças
que devoram a América.

Depois dessa palinha do Parque de Diversões da Men­


te de Ferlinghetti, passemos agora a outro grande poeta Beat
de São Francisco, o chamado Monge Budista da Geração
Beat: Gary Snyder.
No começo da década de 50, em São Francisco, foi
através de Gary Snyder que Ginsberg e Kerouac receberam
os primeiros toques acerca do Zen. No romance The Dharma
Bums (Os Vagabundos do Dharma), de Kerouac, todo ele re-
cheado de frases feitas e lugares comuns sobre o Zen, Snyder
entra como um dos personagens mais importantes, com o
nome de Japhy.
Já na década de 50, Gary Snyder buscava um caminho
que não fosse diferente de um “continente de concreto /
salpicado por calmantes / ilustrando ilusões imbecis de fe-
licidade”. E esse caminho ele iria buscar na meditação, na
pobreza voluntária, no contato com a natureza e as formas
62
mais simples da vida.
A autobiografia de Gary Snyder até 1959, rápida e
rasteira, sem enrolações, é a seguinte: “Nasci em 1930, em
São Francisco, e cresci numa espécie de chácara ao norte de
Seat­tle. O “Reed College” me deu, muito generosamente,
uma bolsa e formei-me em 1951, em Mitologia. Fiz um curso
de Lingüística na Universidade de Indiana e depois vagueei
um bocado trabalhando como lenhador e guarda florestal,
alternando com estudos de Chinês clássico em Berkeley, em
1956, época em que fui para o Japão para receber treino for-
mal Zen. Estive no Japão de maio de 1956 a agosto de 1957.
Trabalhei depois num petroleiro até abril de 1958, visitando
os portos do Mediterrâneo e do Pacífico. Fiquei em São Fran-
cisco até janeiro de 1959.”
Quando regressou, vinha casado com uma japonesa,
Masa, e ambos já tinham um filho, Kai e foram viver no vale
de Nevada City uma vida solitária e distante das badalações.
Seus principais livros de poesia na década de cinqüen-
ta e até o alvorecer dos anos 60 foram: RipRap and Cold
Mountain Poems, de 1969, e Miths & Texts, de 1960. Depois,
publicou Six Sections from Mountains and Rivers Without
End, mais The Back Country e A Range of Poems, ambos em
1966.
A poesia de Gary Snyder é concisa, de um artesanato
sutil e preciso, bastante distante do “derramamento oracu-
lar” de Ginsberg ou do longo fôlego dos poemas para serem
falados, recitados, cantados.
Seus poemas estão repletos de magia, contato direto
e não-verbal com realidades distantes das Cidades, traduzin-
63
do como pontos luminosos sacações que, no melhor estilo
Zen, não se traduzem em longos discursos, mas em shots,
tomadas curtas e secas, algo entre o verbal e o não-verbal.
Para ilustrar o que estamos falando da poesia de Gary
Snyder, vamos deixar para vocês um trecho do poema O Voto
de Amitabha e o hai-kai Masa, pela ordem:

Se depois de atingir o estado de Buda alguém no meu país


for lançado na prisão por vagabundagem, que eu não atinja a mais
alta e perfeita iluminação,
patos selvagens no pomar
geada na relva nova
Se depois de atingir o estado de Buda alguém no meu país
não conseguir apanhar uma carona em todas as direções, que eu
não atinja a mais alta e perfeita iluminação.
rochas molhadas zumbindo
chuva trovões a sudoeste
cabelo barba zumbindo
vento chicoteia pernas nuas
devíamos voltar
não voltamos
---
Masa na aurora quente nua
curvada sobre Kai
rindo, gotejando
pelos dois seios

Do Monge Budista da Geração Beat de São Francisco


passemos agora ao ex-menor abandonado e ex-delinqüente
juvenil de Nova Iorque que se tornou um dos grandes poe-
tas da Geração Beat, e que aprendeu uma lição fundamental
64
para um homem: lutar com os punhos é coisa de criança, a
verdadeira luta é com Palavras, Imagens, Metáforas, Magia.
E que o lance era botar boca afora locomotivas vermelhas
expelindo fumaça obscena e magia negra e não verdadeiras
obscenidades como Gasolina, Quatro de Julho e Bomba de
Hidrogênio.
Gregory Corso nasceu em Nova Iorque, em 1930, no
Greenwich Village, no mesmo Village da tradição boêmia e
cultural, onde a Cena Beat teria boa parte de seus grandes
momentos.
Mas cresceu como órfão, na barra pesada, adotado
por várias famílias, passando primeiro pelo inferno dos or-
fanatos e depois pelo inferno ainda pior dos reformatórios.
É pura verdade dizer que o encontro de Gregory Corso com
Allen Ginsberg e Jack Kerouac foi decisivo e mudou o rumo
de sua vida.
Gregory Corso, já lutando no front das Imagens Mági-
cas publicou na década de 50 os seguintes livros de poesia:
The Vestal Lady on Brattle and Other Poems, em 58, Gasoline
e Bomb, também em 58. Na década de 60, publicou The Hap­
py Birthday of Death, em 1960, American Express, em 61 e
Long Live Man, em 62.
Vale a pena ilustrar o trabalho de Gregory Corso com o
diálogo muito louco e fortemente surrealista, perfeito como
combate de Imagens, de Poetas Pedindo Carona na Auto-
Estrada.

Claro que tentei dizer-lhe


mas ele virou a cara
65
sem uma desculpa.
Disse-lhe que o céu persegue
o sol
Ele sorriu e disse:
“Para que serve isso.”
Eu me sentia como um demônio
de novo
Por isso disse: “Mas o oceano persegue
os peixes.”
Desta vez ele riu
e disse: “Suponho que os morangos
foram empurrados para uma montanha.”
Depois disso vi que a
guerra estava declarada . . .
Então lutamos:
Ele disse: “A carroça das maçãs como um
anjo numa vassoura
racha e lasca
velhos tamancos holandeses”.
Eu disse: “O relâmpago vai cair no velho carvalho
e libertar a fumaça.”
Ele disse: “Rua louca sem nome.”
Eu disse: “Assassino careca! Assassino careca! Assassino ca-
reca!”
Ele disse, perdendo de vez a cabeça:
“Fogões! Gasolina, Divã!”
Eu disse, apenas sorrindo:
“Sei que Deus voltaria a cabeça s
e me sentasse calado e pensasse.”
Acabamos nos evaporando
Odiando o ar.

66
Chegamos agora ao fera, ao deveras fera das flores,
das drogas, dos delírios proféticos, dos encantos líricos, dos
desejos políticos, do movimento constante, o poeta maior
da Geração Beat, ainda o maior poeta vivo da América: Allen
Ginsberg.
Ele começou a sair com tudo para as ruas, para a pul-
sação viva das ruas desde a década de 50, atravessou a déca-
da de 60 a todo vapor, não perdeu o pique na década de 70 e
continua década de 80 a fora como um turbilhão de imagens
frescas e renovadas da poesia, da política, da vida do homem
no planeta terra.
E nesse turbilhão de imagens tudo se integra, as tê-
nues linhas divisórias se apagam, numa variedade fortíssima.
Estilo? Poemas líricos e intimistas, poemas metrificados, lon-
gos trechos de quase-prosa, poemas absolutamente soltos
de qualquer regra formal, poemas delirantes, poemas sur-
realistas, poemas firmemente engajados na transformação
social. E soma, Visões do Céu e do Inferno como em Blake, o
coloquial-cantante pleno de mudança de Whitman, a objeti-
vidade do tipo de Charles Olson ou William Carlos Williams,
as imagens surrealistas e estranhas como se fosse ele um
Breton revivido, a síntese aprendida no hai-Kay e no pensa-
mento oriental, a poesia sinônimo de “respiração desobstru-
ída” e ainda mais, algumas lições aprendidas com o mestre
Ezra Pound (a quem visitou na Itália - Pound já velho - para
homenageá-lo, para entoar-lhe mantras, para ouvir de Ezra
Pound o rebate: my writing, stupid and ignorant all the way
through).
Allen Ginsberg é judeu americano, e assim sintetizou
67
sua biografia até 1960: “Nasci a 3 de junho de 1926, filho de
Naomi Ginsberg, emigrante russa, e de Louis Ginsberg, poeta
lírico e professor, em Paterson, Nova Jersey. Liceu em Pater-
son até os 17, Universidade de Columbia, marinha mercante,
Texas e Denver; repórter, Times Square, amigos na prisão,
lavagem de pratos, crítica literária, cidade do México, market
research, Satori no Harlem, Yucatã e Chiapas em 1954, Howl
no Oeste em 1955, viagem ao Ártico e depois Tânger, Vene-
za, Amsterdã, Paris, Londres. Leituras em Oxford, Harvard,
Columbia, Chicago, Kaddish em 1959, volta a San Francisco
e faz gravação para deixar e desaparecer por uns tempos no
Oriente”.
Até a década de 60, publicou: Howl (1956), Empty Mir­
rors (1960), Kaddish (1966), Reality Sandwiches (1963), The
Yage Letters (com William Burroughs), Wichita Wortex Sutra
(1966), TV Baby Poems (1967), Airplane Dreams (1968), An­
gkor Vat (1969), Planet News (1969).
O poema mais famoso e de mais fôlego de Ginsberg é
certamente o Howl (Uivo, que está para ser lançado no Bra-
sil), de 1955 e que teve duas leituras públicas marcantes na
história da Geração Beat: uma em 1955, na “Galeria Six”, de
São Francisco e outra, em 1956, também na Califórnia, desta
vez no “Gallery Theatre”, em Berkeley.
Howl é o correspondente poético da prosa espontâ-
nea de Kerouac, e foi escrito por sugestão do próprio Kerou-
ac: “Ele me sentou diante da máquina de escrever e disse:
‘Escreva um poema, só isso’. E dessa maneira o poema Howl,
que sintetiza uma geração inteira, foi loucamente datilogra-
fado numa tarde; uma trágica comédia de pastelão de frases
68
selvagens e imagens sem sentido pela beleza da poesia abs-
trata da mente correndo solta, fazendo combinações desen-
gonçadas como o andar de Charlie Chaplin e longos frasea-
dos como de um saxofone cujo som, eu sabia, seria ouvido
por Kerouac - tirando de sua prosa inspirada uma poesia re-
almente nova.”
Embora não esperasse que seu poema, uma mistura
de rapsódia, comédia, solidariedade e ódio fosse publicado,
Howl foi impresso antes que o On the Road de Kerouac, sen-
do publicado no outono de 1956.
Assim que chegou às livrarias, criou uma enorme po-
lêmica e uma bela gritaria dos moralistas, afora os inevitá-
veis processos correndo na justiça. Julgado, o poema não foi
considerado algo sem valor social, logo, não se tratando de
mera obscenidade, resultou na liberação para a venda nos
Estados Unidos.
O poema é longo, com imagens muito fortes, porém
aqui é possível deixar apenas os versos iniciais, numa ten-
tativa de fazer uma tradução aproximada das imagens de
Ginsberg:

“I saw the best minds of my generation destroyed by mad­


ness, starving
hysterical naked,
dragging themselves through the negro streets at dawn
looking for
an angry fix,
angelheaded hipsters burning for the ancient the ancient
heavenly connection
to the starry dinamo in the machinery of nigh,
69
who poverty and tatters and hollow-eyed and high sit up
smoking in
the supernatural darkness of cold-water flats floating across
the tops of cieties contemplating jazz...

Eu vi os melhores cérebros da minha geração destruídos


pela loucura
Histéricos, nus e famintos
Tragados pelas ruas negras da madrugada a procura
De um pico raivoso,
Hipsters angelicais queimando-se pela primitiva ligação ce-
lestial
Nos dínamos chocantes das engrenagens da noite,
Miseráveis e esfarrapados com olhos sagrados nas alturas
do fumo
Na escuridão sobrenatural dos prédios gelados flutuando
Através do topo das cidades contemplando jazz ...”

A poesia de Ginsberg, desde o começo, foi uma poe-


sia de protesto. Mas certamente um protesto social muito
especial: Marx transfigurado na poesia delirante de Blake,
revolução e visão, revelação e transformação.
Desde o começo de seu trabalho, frisemos para evitar
confusões, que Ginsberg quer viver aqui mesmo, não pre-
tendeu nunca ir embora para Pasárgada: “Este é o único e
exclusivo / Firmamento. . . / Existo na Eternidade. / As coisas
deste mundo / São as coisas do céu. / (...) Porque o mundo
é uma montanha de merda /Se vamos movê-la / é preciso /
Meter a mão / .”
Desde o começo, a intenção da poesia de Ginsberg
70
ia no sentido de “apenas escrever. . . soltar a imaginação,
descerrar o segredo, anotar linhas mágicas saídas de minha
mente real”.
Theodore Roszak, em A Contracultura, observa o se-
guinte acerca da poesia de Ginsberg: “Há na obra de Gins-
berg muito da improvisação de Charlie Parker, bem como
do espírito dos action painters. Jackson Pollock trabalhava
numa tela com o compromisso de nunca apagar, nunca re-
fazer, nunca retocar, mas acrescentar, acrescentar... e deixar
que a obra se transformasse por si só em algo de singular
apropriado a este homem neste momento de sua vida.”
Acerca da maneira como Ginsberg sempre viu sua fun-
ção como poeta, Roszak disse o seguinte:
“Longe de ser uma excentricidade vanguardista, a
concepção que Ginsberg faz da poesia como um derrama-
mento oracular pode reivindicar uma prestigiosa genealogia
que remonte aos profetas visionários de Israel (e, para além
deles, talvez ao xamanismo da Idade da Pedra). Como Amos
e Isaías, Ginsberg aspira ser um nabi, um murmurador: uma
pessoa que fala com línguas, que permite que sua voz aja
como o instrumento de poderes acima de seu domínio cons-
ciente.”
No trajeto, ainda de acordo com as palavras de Roszak,
o que aconteceu foi o seguinte: “É como se, inicialmente,
Ginsberg se dispusesse a escrever uma poesia de aflição en-
colerizada; bradar contra a angústia do mundo que ele e seus
amigos mais chegados experimentaram nas sarjetas, guetos
e instituições mentais da nossa sociedade. O que resultou
desse sofrimento foi um uivo de dor. No fundo desse uivo,
71
porém, Ginsberg descobriu o que o Moloch burguês mais de-
sejava sepultar em vida: os poderes curativos da imaginação
visionária.”
O ritmo, a fluência e o fôlego das imagens poéticas de
Ginsberg, longe de serem uma “fraqueza”, como certas leitu-
ras caretas querem fazer crer, têm raízes muito precisas. Já
apontamos algumas, e deixemos agora falar o poeta William
Carlos Williams, comentando a poesia do jovem Ginsberg,
onde ele viu “um pulsar muito diferente do ritmo dos pés
que bailam, mas que encontra no vaivém dos seres huma-
nos, em todos os estágios de suas vidas, na ida ao banheiro,
à escadaria do metrô, nas rotinas do escritório ou da fábrica,
a medida mística de suas paixões.”
Foi Ginsberg quem fez a ponte entre a Geração Beat e
a Grande Década (os anos sessenta). O mágico murmurador
de mantras poético-políticas tornou-se um dos grandes sím-
bolos das rebeliões do desejo juvenil naquela década, estan-
do em todas: organizações de marchas de protesto, festivais
de música, recitais de poesia, encontros com os grupos mais
variados (músicos como Bob Dylan, acid-heads como Ken Ke-
sey e os Merry Pranksters, fascistas como os Hell’s Angels,
ativistas políticos como o pessoal do SDS — Students for a
Democratic Society, etc), tanto nos Estados Unidos (princi-
palmente a Califórnia) quanto na Europa (onde chegou a ser
considerado um dos reis do Maio de 68).
Em 1970, Ginsberg juntou-se ao monge Trumgpa. O
resultado dessa união foi a criação da Jack Kerouac School of
Disembodied Poetics (Escola Jack Kerouac de Poética Desen-
carnada). Essa escola funciona no Instituto Naropa, no Colo-
72
rado, e pertence ao monge Trumgpa.
O objetivo da escola é introduzir poetas à prática da
meditação, e a tradição meditativa às práticas poéticas oci-
dentais. Mais que isso: estabelecer a ligação entre corpo e
mente, através da cadência respiratória da meditação, que
eqüivale à cadência respiratória do discurso poético.
Para Ginsberg, tanto a poesia ocidental quanto a me-
ditação oriental estão relacionadas com o ato de respirar. Po-
rém, desde a invenção das técnicas de impressão, os poetas
esqueceram que a poesia está diretamente ligada à respira­
ção e que inspiração poética não é outra coisa senão respira­
ção desobstruída.
Ginsberg continua vivo e muito vivo, já perto dos ses-
senta anos, apresentando o show poético-musical First Blues,
definido por ele como “uma síntese de 30 anos de rock and
roll, contendo poemas de William Blake, calipsos criticando
a CIA e canções de amor”.
A excursão de First Blues começou no mesmo lugar,
o Gallery Theatre, no mesmo estado, a Califórnia, onde há
quase trinta anos ele fez a primeira leitura de seu poema
Howl.
Ginsberg, cujo pacifismo atravessa as décadas de 60
e 70, num certo momento de First Blues diz: “Meu discurso
ainda não destruiu os sindicatos intelectuais da CIA e da KGB.
Ainda não consegui vencer os exércitos humanos que mar-
cham para a III Guerra Mundial. Ainda não conheço o céu ou
o Nirvana. Ainda não aprendi a morrer.”
Ginsberg continua seu trabalho de murmurador de
mantras poético-políticas, multiplicando os efeitos de seu
73
74
“derramamento oracular”, nos últimos anos, em lugares tão
variados como a União Soviética, Cuba, Calcutá e as Filipinas,
além da Alemanha Oriental.
Howl está sendo traduzido para o chinês. Jovens es-
tudantes, falando em nome de um Departamento Cultural
chinês, convidaram Ginsberg para ir ao lançamento em Pe-
quim. Ginsberg aceitou o convite, estará ainda em 1984 em
Pequim, mas antes pediu aos estudantes para responderem
algumas perguntas, dentre as quais: “Como um escritor ga-
nha a vida na China? Quantos chineses já provaram LSD? O
que os chineses acham do homossexualismo?”
Finda a Geração Beat, acabada a Grande Década de
60, depois da calmaria dos anos 70, poesia para Ginsberg
hoje em dia é o seguinte: “São as pessoas contando umas
para as outras seus pensamentos e sentimentos. Poesia é
uma forma essencial de romper o círculo vicioso da mentira
dos pronunciamentos oficiais. Se os poetas conseguirem se
comunicar, eles demonstrarão que a idéia de uma guerra nu-
clear é uma loucura. Poesia é sobrevivência.”
Vamos fechar essas Visões do Céu e do Inferno falan-
do ainda do poeta Allen Ginsberg, com uma certa tristeza
por não podermos incluir aqui poemas como Sunflower Su­
tra (Sutra do Girassol), America, Supermarket in Califórnia
(Supermercado na Califórnia) ou Who Be Kind To (Para Quem
Ser Bondoso).
Mas vamos fazer, ainda, duas transcrições generosas
para o querido leitor: um poema e um manifesto. No poema,
Ginsberg responde por que medita, da seguinte maneira:
“Medito porque os dadaístas gritaram em Mirror Stre-
75
et / Medito porque os surrealistas comeram travesseiros no
passado / porque os imagistas respiram calmamente em Ru-
theford e Manhatan / medito porque há 2400 anos se medi-
ta / medito na América porque os hippies voaram um dia pe-
los céus de Chicago / medito sem nenhum porquê / porque
não sei o caminho de volta para o útero de minha mãe / me-
dito porque é fácil / e porque fico com raiva se não o fizer /
medito porque me mandaram meditar / medito porque tive
a visão de que William Blake também tomou LSD / Medito
porque não sei o que fazer da vida / E porque depois que Lu-
nacharski foi demitido Stalin matou Zdanov / Medito dentro
da concha do meu velho eu / Medito pela Revolução.”
Já o Manifesto, que você não leu nos jornais e revis-
tas porque estão mais preocupados com Generais, Delfins,
Cavaleiros do Apocalipse e outras Necrofilias, foi redigido e
assinado em Manágua, em 1983, pelos poetas Ernesto Car-
denal, Eugeny Yevtuchenko e Allen Ginsberg.
É com esse Manifesto que fechamos essa parte do li-
vro, frisando que o delírio, as drogas, a imaginação visioná-
ria, o homossexualismo e as visões do Céu e do Inferno não
excluem a solidariedade política, prática e objetiva:

“Somos três poetas de países diferentes. Um é poeta e


monge católico, filho de um país subdesenvolvido. Os outros dois
são filhos de superpotências, uma socialista e outra capitalista.
Mas estamos certos de que a única super potência que realmente
existe é o espírito humano, e que não existe nenhum estado maior
que a alma humana.
O espírito humano deve ser considerado a igreja de todos,
religiosos e ateus, em todas as partes do mundo. Não queremos
76
que a Nicarágua seja um fantoche nas mãos de ninguém. Somos
testemunhas do sofrimento que a tirania, a miséria e a ignorância
já causaram ao povo da Nicarágua. Somos testemunhas também
do desejo desse povo de defender sua liberdade econômica e cul-
tural.
Ajudemos o povo da Nicarágua a escrever poesia com tinta,
não com sangue.”

77
78
BEATS, HIPSTERS, HIPPIES,
FREAKS, DESBUNDADOS:
A UTOPIA NAS RUAS
Já vai longe a famosa década de 60. Muita gente já
pode falar dela para os filhos adolescentes; alguns já estarão
falando dela para seus netos. Mas ela permanece uma área
de referências muito forte, graças à variedade de desejos
políticos, não burocratizados, que mobilizou e colocou em
discussão. E permanece ainda mais forte porque a década de
70 foi um período de refluxo e rebordosas as mais variadas,
tornando ainda mais sedutoras as possibilidades desencade-
adas na década de 60.
A Geração Beat teve seus anos de máxima potência
entre, justamente, 55 e 60, portanto no alvorecer da Grande
Década. Nesse momento, um dos grandes agitadores Beat
sai de cena: Jack Kerouac, que se retira para sua cidade na-
tal, Lowell, até morrer em 69, mesmo ano em que morre o
Rolling Stone Brian Jones, mesmo ano em que se assistem os
primeiros lances do pós-68, aquilo que Julian Beck chamou
79
“morte da cultura”.
Neal Cassady, o drop-out pioneiro da Geração Beat,
continua na estrada, agora junto com Ken Kesey, os Merry
Pranksters e as cabeças feitas pelo ácido. William Burroughs
segue adiante no seu trajeto demolidor, imoralista e muito
louco, nem recuando, nem se tornando nenhuma forma de
Guru ou líder.
Quem faz, em grande estilo, a ponte entre a Geração
Beat e os anos 60, entre os Hipsters e Beats e os Freaks e
Hippies, no entanto, é o poeta Allen Ginsberg, estando na
linha de frente de quase todos os grandes lances jogados nos
Estados Unidos e na Europa.
A passagem de uma década para outra significou mui-
to mais que uma simples transição, natural, entre anos que
se perfilam disciplinadamente diante da História.
Não é à toa que o Howl (Uivo) de Ginsberg sintetiza
as experiências de toda a Geração Beat. Ali estão indelevel-
mente marcados os dilaceramentos, as experiências-limite,
as passagens por hospícios e prisões, o isolamento dos dis-
sidentes Beats diante do grande Pesadelo Refrigerado da
América reacionária, afluente, conformista e violentamente
anticomunista (assim como violentamente machista, patrió-
tica e estéril).
A Geração Beat lançou seus dados, viveu suas aven-
turas e foi abrindo as picadas a partir dos subterrâneos, dos
espaços fechados, dos grupos restritos, das contestações lo-
calizadas e muito dificultadas pelo momento histórico adver-
so e pela difícil expansão das possibilidades que se apresen-
tavam como alternativas ao Sonho Americano no imediato
80
pós-guerra.
Quando Ginsberg registra o desespero de ver os me-
lhores cérebros de sua geração destruídos pela loucura, nus,
famintos e histéricos em loucas madrugadas, batendo pelas
sarjetas como verdadeiros párias da América em plena Guer-
ra Fria, não são meras figuras de estilo, meras hipérboles
poé­ticas inventadas por um artista num gabinete limpo e bo-
nitinho: o grito era real, os uivos eram pra valer, e o caminho
tinha que ser aberto na porrada, na barra pesada, com dro-
gas pesadas, com imagens delirantes, com o pé na estrada e
quase sem saída, de certa forma emparedados no mapa da
América.
Já o espaço que se abriu, que foi aberto, e que foi tri-
lhado pelos jovens, pelos ativistas, pelos dissidentes e pe-
los desbundados dos anos 60, era muito maior, as opções
mais variadas, mobilizando um número imensamente maior
de pessoas que na Geração Beat, o que pode ser resumido
numa frase: tudo parecia possível.
O que não significa que na década de 60 americana
não houvesse prisões, hospícios, reacionarismo e conformis-
mo em altas doses. A diferença é que, com espaços maiores
e mobilizando muito mais gente, rompia-se em grande me-
dida o isolamento.
Já disseram que uma imagem fala mais do que mil
palavras. Isso sem dúvida vale para a incrível década de 60.
Os álbuns não amarelaram, as fotos e as imagens não de-
vem ser olhadas com lágrimas nostálgicas e conformistas no
canto dos olhos; o tudo é possível está no brilho dos olhos,
nas cores das roupas, na beleza das pessoas, no orgulho das
81
cabeças erguidas, na força dos grandes encontros coletivos,
sinais de um desejo muito poderoso, muito variado, sem tris-
tezas burocráticas, valendo para o comportamento, para a
estética e para a política.
Ao invés dos bares pequenos e enfumaçados onde os
Hipsters e Beatniks com traços existencialistas europeus ou-
viam Jazz e curtiam seus baratos, na década de 60 os acon-
tecimentos políticos são nas ruas e reúnem grande número
de pessoas, os festivais de música são ao ar livre e reúnem
milhares de pessoas, ou seja: a utopia estava nas ruas, havia
música em todos os lugares e a revolução estava no ar, so-
prando no vento.
América, anos 60, agora já se sabe que era impossível
fazer uma Revolução apenas a partir das universidades, dos
estudantes, da juventude, dos festivais de música e das lutas
políticas localizadas, dentro dos marcos e limites do capita-
lismo.
Mas é claro que não foi tudo em vão, mero sonho de
verão, para depois acordar; findou o sonho, dentro do velho
Pesadelo.
América, anos 60: o Free Speech Movement, os Stu­
dents for a Democratic Society, a luta pelos Direitos Civis, as
Marchas contra a Guerra do Vietnã, o Pacifismo Anti-Nuclear
ganhando seu espaço, o sonho pacífico do Reverendo Luther
King querendo justiça e liberdade para os Negros America-
nos, o sonho armado dos Black Panthers querendo justiça,
liberdade e espaço próprio para os Negros Americanos, as
Comunidades e Tribos de drop-outs e freaks e desbundados
negando e buscando alternativas naturais para a Tecnocra-
82
cia e a Indústria da Guerra e da Morte, os grandes Festivais
de Música lançando as bases para o sonho de convivência
pacífica e amorosa entre as pessoas, as escolhas pessoais
descongelando os tabus diante do Corpo reprimido, abrindo
espaço para as lutas de emancipação das Mulheres e dos Ho-
mossexuais, a solidariedade com as lutas de libertação dos
países colonizados e oprimidos do Terceiro Mundo.
Allen Ginsberg, o deveras fera, poeta da Geração
Beat estava lá, testando seus delírios e suas visões na práti-
ca social, nos encontros coletivos; agora, coisas muito mais
amorosas, ao invés de uivos desesperados, novas práticas
políticas, flores para a polícia, marchas políticas enquanto
verdadeiros espetáculos teatrais, e uma série enorme de
ações típicas da década (love-in, bed-in, seat-in, be-in, por
dentro, amores, camas, cadeiras, o ser e o estar no mundo
em movimento).
Imagens falam mais do que mil palavras; confira: as
imagens dos filmes como Woodstock; as fotos das Tribos e
Comunidades pacíficas; cabelos bem longos, roupas colori-
das, bonitas, e a possibilidade do encontro amoroso fora dos
limites institucionais da Família; o Sonho nos olhos brilhan-
tes do pastor Luther King e o tiro no brilho dos olhos dado
pelo Fascismo norte-americano; o Sonho violento de liber-
dade brilhando nas fotos dos jovens panteras negras carre-
gando seu orgulho e suas armas recuperadas, tão diferente
da figura do negrinho pai-Tomás dizendo “Sim Senhor”, “Pois
Não Madame”, no Brasil; a foto de Jerry Bubin, fundador do
partido Yppie junto com Albie Holmann, Partido da Juven-
tude, vestido de soldado revolucionário da independência
83
americana, prestando depoimento no Comitê de Atividades
Anti-Americanas, os meninos da América, de todas as for-
mas solidários com o povo do Vietnã em luta, de todas as
formas os anti-Cowboys, anti-Boinas Verdes, anti-John Wai-
nes e anti-Ronald Reagans, esse ser Necrofílico, então Gover-
nador da Califórnia; e as drogas, claro que as drogas, e Joplin,
e Hendrix, e Brian Jones, e toda a energia que não cabe nas
molduras lacrimejantes-oportunistas da Publicidade e seus
símbolos caretas para consumo de Otários (“liberdade”, “via-
gens”, “calças desbotadas”, “paz-e-amor-bichos”, a juventu-
de sadia travestida de hippie ou punk acendendo baseados e
fazendo cara feia nos cenários da Televisão).
Falar da década de 60, da passagem dos espaços li-
mitados vividos pela Geração Beat aos espaços públicos e
amplos ocupados nos anos sessenta, significa também falar
da Europa, principalmente da França.
Mas antes disso, cabe lembrar aqui um fato curioso, já
apontado neste livro: “a Geração Beat sempre foi mais lida,
mais conhecida, mais divulgada e traduzida em certos países
da Europa que nos próprios Estados Unidos”.
É novamente Allen Ginsberg, velho admirador e co-
nhecedor de artistas franceses como Apollinaire, Rimbaud,
Celine, Breton, quem vai fazer a ponte entre a Geração Beat
americana e os movimentos europeus de contestação na dé-
cada de 60.
Como se sabe, o auge das contestações políticas na
Europa foi o Maio-68 na França, quando o tudo parecia pos-
sível quase tornou-se de fato realidade: a França parou, as
ruas estavam ocupadas, não havia somente estudantes e
84
gente da universidade mobilizados, mas também parte dos
operários, o General De Gaulle saiu da França, indo se refu-
giar na Alemanha, mas na hora H, na hora da cobra fumar,
veio a indecisão, o vacilo, em parte graças ao Partido Comu-
nista, que não apoiou o movimento sindical, enfraquecendo
o avanço.
Nessa época, durante essas grandes movimentações
na França, Allen Ginsberg, mostrando uma incrível capacida-
de de estar presente no centro da ação, sem nunca temer as
críticas pelo seu tipo todo peculiar de “ação poética, política,
espiritual”, chegou a ser considerado um dos Reis do Maio-
68.
França, 68, confira: “A Imaginação no Poder; Chega de
Tomar o Elevador, é hora de tomar o Poder; O Álcool Mata,
Tomem LSD; Sejam Realistas, Peçam o Impossível. A Utopia,
aí também, estava nas ruas, a poesia estava nas bocas e nos
muros da cidade, tudo também parecia possível, mas re-
fluiu.” Deixou conseqüências importantes.
Entre os vários descongelamentos ideológicos resul-
tantes do Maio-68, e que não cabe discutir nesse livro, vale
frisar um, hoje em dia muito importante: o espaço político
alternativo que, surgido depois de 68, permitiu, ou no míni-
mo facilitou, o surgimento de grupos como os Verdes na Ale-
manha, assim como outros grupos pacifistas europeus, reu-
nindo tendências políticas variadas, com o objetivo de barrar
a possibilidade de uma Guerra Nuclear e lutar tanto pelo
congelamento quanto pela redução dos arsenais nucleares,
não só dos Estados Unidos, mas também da União Soviética.
Sem sofismas, e sem variantes tático-estratégicas,
85
o que está em jogo no surgimento e no crescimento dessa
luta política, ecológica no seu mais alto sentido, é nada mais,
nada menos que a sobrevivência da espécie humana e do
próprio planeta terra.
E essa sobrevivência, sem nenhuma dúvida, vai de-
pender muito da força que essa ecologia política anti-nuclear
vier a ganhar, não apenas na Europa, mas em todas as partes
do planeta: “para barrar a Morte, para impedir o Apocalipse,
para impedir que a Necrofilia Militarista acabe com a Vida”.
Quer dizer: o pacifismo, que na década de cinqüenta
da Geração Beat era visto como Utopia completa, reunindo
umas poucas pessoas, vistas às vezes como “idealistas abs-
tratos”, que iam para as ruas lutar contra as Armas Atômicas,
passa a ser, décadas depois, uma importante bandeira da
luta política.
Nessa altura, cabe citar um poeta e homem de teatro,
americano, predecessor da Geração Beat, de alguma for-
ma próximo da agitação Beat nos anos 50, pacifista desde
há muitas décadas, organizador de protestos civis pioneiros
contra as Armas Nucleares e a indústria da Morte, ainda vivo
e que passou pelo Brasil no começo da década de 70, aca-
bando preso em Ouro Preto, para ser em seguida expulso
do Brasil: Julian Beck, com sua companheira Judith Malina,
fundadores do Living Theater, não poderiam ser esquecidos
quando se fala da Utopia nas ruas.
E já que o Brasil entrou no assunto pela porta da pri-
são (no caso, a de Julian Beck em Ouro Preto-72), é por aí
mesmo que vamos, para frisar algo óbvio que muitas vezes
ainda gera confusão: “foi enorme a diferença entre os acon-
86
tecimentos europeus e norte-americanos e o drama históri-
co que nos estava reservado viver”.
As nossas utopias, e utopias porque até elas foram ne-
gadas de maneira violenta, eram de um tipo muito mais pró-
ximo e imediato, e diziam respeito a coisas que nos Estados
Unidos e na Europa já eram coisas há muito conquistadas.
São elas: partidos políticos legais, sindicatos legais, proprie-
dade de terra, salários justos, direitos civis, constituição res-
peitada, apoio aos desempregados, baixos níveis de inflação,
verbas para a educação e, fundamentalmente, uma tradição
de militares cumprindo seus deveres profissionais, obede-
cendo, simplesmente, os rumos políticos escolhidos pela so-
ciedade civil, jamais cogitando de intervir nas escolhas feitas
através de eleições.
Se depois de 68 houve um forte refluxo nos Estados
Unidos e na Europa, no Brasil houve uma tragédia. Uma par-
te da juventude da classe média aderiu ao milagre, botou
plástico de universidade nos carros, e foi curtir sambão jóia
em bares da moda. Outra parte desbundou, mas um des-
bunde diferente dos que referimos antes, porque os nossos
desbundados não conseguiram se politizar, não conseguiram
avançar, porque não havia mesmo por onde avançar, mas
no geral viveram suas utopias, envolvendo sexo, drogas e
rockn’roll, pelo menos, como uma forma de inconformismo
diante da caretice vigente.
Enfim, uma terceira parte da juventude da classe mé-
dia, vinda direto do movimento estudantil, uniu-se a vete-
ranos militantes da esquerda para tentar o caminho da luta
armada contra a ditadura militar. E como de fato as imagens
87
falam mais que as palavras, sugerimos que você assista ao
documentário Jango, de Silvio Tendler, e preste bem aten-
ção: primeiro na força popular das grandes manifestações
até 64 e na solidariedade popular aos cabos e marinheiros
rebelados; depois, preste atenção nas cenas posteriores ao
Al-5, com a ditadura militar consolidada, os grupos isolados
de estudantes brigando nas ruas, já sem apoio e solidarieda-
de popular.
Tire as conclusões que quiser, mas por favor não mo-
ralize em cima da coragem alheia, principalmente se você fez
do medo sua principal trincheira.
O que veio depois de 68, esperamos que todos sai-
bam com bastante clareza. Mas o que assusta e surpreende
é constatar que, nessa mesma parte em que falamos de Uto-
pia nas Ruas e desejos políticos muito variados, é ver que o
Brasil, no ano de 1984, tem como luta política central a cam-
panha pelas Eleições Diretas, para que possa terminar de vez
a ditadura militar de vinte anos.
É justamente neste ano que os livros e a discussão so-
bre a Geração Beat chegam ao Brasil, numa curiosa combi-
nação de tempos históricos muito diferentes.
Que sejam sempre bem-vindos os sinais poéticos, os
sinais estéticos, os traços das aventuras pessoais, as pistas
das transformações políticas.
Beat, batida, fraseado, melódico, poético, gritos, go-
zos, geladeiras, fornalhas, lenha na fogueira. Para que haja o
combate das imagens, para que se ocupe as ruas, para que
se tente o caminho que vai dar no sol.
TUDO, menos as figuras rígidas, doentes, embolora-
88
das, baixo-astral, ligadas na morte, que o FASCISMO gera.
Um abraço e um beijo em todos os que lutam CONTRA
isso, tentando criar FELICIDADE E FARTURA PARA TODOS.

89
90
INDICAÇÕES PARA LEITURA

A bibliografia da e acerca da Geração Beat no Brasil é quase ne-


nhuma. Dos grandes títulos Beat, a Brasiliense lançou, agora em 84, On
The Road (Pé na Estrada), de Kerouac. Promete lançar, ainda em 84, Via­
jante Solitário, também de Kerouac, Junkie e Naked Lunch, de Burroughs,
e ao que parece também o Howl (Uivo) de Ginsberg. É possível que outras
editoras entrem na parada e publiquem, logo, outros títulos da Geração
Beat.
Na antologia Quingumbo-Nova Poesia Norte-Americana, publica-
da pela Escrita em 80, tem alguns poemas, em tradução acompanhada do
original, de Ginsberg, Gary Snyder e Ferlinghetti.
Em algum sebo ainda se pode encontrar a Antologia da Novíssima
Poesia Norte-Americana, da Editorial Futura, de Lisboa, publicada em 73.
Ali, algumas traduções, sem os originais, de poemas de Ginsberg, McCIu-
re, Corso, Peter Orlovski, Gary Snyder e Robert Creeley.
Se no Brasil a situação é essa, nos Estados Unidos a situação não
é, como se poderia esperar, muito melhor, já que vários títulos da e acerca
da Geração Beat são difíceis de se encontrar, e muitas vezes estão out
of print. De qualquer forma, historicamente: de Allen Ginsberg, Howl
(56), Reality Sandwiches (63), Kaddish (66) e PIanet News (68), todos pu-
blicados pela City Lights Books, a famosa editora de Ferlinghetti, em São
Francisco. De Ferlinghetti, o clássico Coney Island of the Mind, publicado
pela New Direction. De Gary Snyder, Miyths & Texts, pela Corinth Press,
de Nova Iorque, e RipRap, pela Origin Press. De Gregory Corso, The Vestal
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Lady on Brattle, Gasoline e Bomb, pela City Lights Books. De Michael Mc-
CIure, Hymms to St. Garyon and Other Poems, pela Auham Press, de São
Francisco.
Acerca da Geração Beat, tem algumas coisas interessantes em A
Contracultura, de Theodore Roszak, publicado pela Vozes, em 72, e tam-
bém no A Morte Organizada, de Maciel publicado pela Ground/Global,
em 78.
Afora isso, as edições americanas e difíceis de se conseguir dos
clássicos Beat Generation, de Bruce Cook; The Holy Barbarians, de La-
wrence Lipton; Ginsberg in America, de Jane Kramer e Naked Angels, de
Charles Tytell. Talvez possa ser encontrado o A Generation in Motion, de
David Richaske, publicado pela Schirmer Books, de Nova Iorque, em 79.
Fechando a lista, existe um álbum com fotos e textos daqueles que
foram os grandes protagonistas da cena americana nos anos 60, chamado
The Sixties, publicado em 77 pela Random House / Rolling Stone Press.

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Biografia
Fred Góes: sou carioca do Largo do Humaitá, com 36 anos de Rio de Janei-
ro, letrista, poeta e professor de Teoria da Literatura na Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Desde 72 estou na luta, já tendo feito de tudo um pouco - jornalismo,
rádio, televisão, direção teatral.
Em 82 publiquei O País do Carnaval Elétrico, pela Editora Corrupio, na co-
leção “Baianada”, e o livro sobre Gilberto Gil para a coleção Literatura Comentada
da Editora Abril. No momento divido meu tempo entre ofícios e pareceres na TVE,
roteiros de shows musicais, a montagem de um espetáculo teatral, letras de música
e as aulas da faculdade, enquanto preparo junto com meu parceiro André Bueno, O
que é Letra de Música, um livro que tem por base o programa que produzimos para
a rádio MEC no ano de 63. De resto vou seguindo o conselho do velho Tolstoi que
dizia que, se alguém quer ser artista (e aqui artista tem o seu sentido mais amplo,
de levar a vida com arte) deve começar pintando a sua aldeia, ao que acrescento:
alguém que quer ser aranha, que tire das entranhas a sua teia.

André Bueno: Sou poeta (Brasa, Brasil), paulista, 30 anos, professor (Teo-
ria Literária/UFRJ), teórico (Contracultura: As Utopias em Marcha), parceiro de Fred
Goes neste livro e em Tirando de Letra (o livro, e o programa de rádio). Na mão:
Pássaro de Fogo no Terceiro Mundo - Vida, Paixão e Morte do Poeta Torquato Neto.
E no mais: acreditar que tudo é possível, aprender que nem tudo é possí-
vel, viver a ilusão da onipotência, superar a ilusão da onipotência, continuar na luta
pelas utopias de fartura e felicidade para todos, nesta vida.

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