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QUE É FILOSOFAR?
Tradução
Francisco de Ambrosis
Pinheiro Machado
Edições Loyola
Título original: Ji.
Was heisst philosophieren? Vier Vorlesungen, in Josef Pieper, Werke in
acht Banden. Band 3: Schriften zum Philosophiebegriff, Hamburg, Felix
Meiner, 2004, 15-75.
© Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1995.
ISBN: 3-7873-1666-3
SUMÁRIO
PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal
REVISÃO TÉCNICA: Marcelo Perine
DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam
REVISÃO: Sandra G. Custódio
CONSELHO EDITORIAL:
Ivan Domingues (UFMG) capítulo 1
Juvenal Savian (UNIFESP)
A FILOSOFIA E O MUNDO DO TRABALHO 7
Marcelo Perine (PUC-SP)
Mario A. G. Porta (PUC-SP) capítulo li
Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR) O OBJETIVO DA FILOSOFIA ............................................. . 23
ISBN: 978-85-15-03327-0
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007
J
lo 1
A FILOSOFIA E O
MUNDO DO TRABALHO
17
Mas, por ser uma questão fil~fica, também não poderá Hoje, certamente, bonum commune e "utilidade comum" são
ser respondida de modo definitivo, pois pertence justamente à dados cada vez mais como idênticos, assim como é certo (o que
essência de uma questão filosófica o fato de não podermos dá no mesmo) que, de acordo com isso, o mundo do trabalho
receber nas mãos a resposta como "verdade acabada" (segundo começa a se tornar, ou ameaça tornar-se, sempre mais exclu-
as palavras de Parmênides), tal como se colhe uma maçã. Nesse sivamente o nosso mundo em geral. A reivindicação do mundo
sentido, será tratada mais adiante a estrutura de esperança da do trabalho torna-se cada vez mais total, abarcando progres-
filosofia e do filosofar em geral. Não vamos, portanto, prome- sivamente toda a existência humana.
ter uma definição manipulável, nem uma resposta que apreen- Se é correto dizer que o filosofar é um ato que transcende
da o objeto por todos os lados. e ultrapassa o mundo do trabalho, então nossa questão "que é
Numa primeira aproximação, pode-se dizer o seguinte: fi- filosofar?", indagação tão "teórica" e "abstrata", torna-se de re-
losofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é pente e sem querer uma questão extremamente atual do ponto
ultrapassado. Trata-se portanto, em primeiro lugar, de definir de vista histórico. Necessitamos dar somente um passo, no
o que se entende aqui por "mundo do trabalho" (Arbeitswelt), pensamento e também geográfico, para nos encontrarmos em
para então determinar o que significa o "ultrapassar" (Über- um mundo no qual o processo do trabalho, o processo da rea-
schreiten) desse mundo do trabalho. lização da "utilidade comum" determina toda a esfera da exis-
O mundo do trabalho é o mundo cotidiano do trabalho, o tência humana. É necessário apenas saltar uma linha limítrofe,
mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do muito próxima tanto interna como externamente, para se al-
exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da cançar o mundo total do trabalho, no qual conseqüentemente
renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do não existiriam mais filosofia e filosofar autênticos. Supondo
trabalho é dominado pelo objetivo de realização da "utilidade que seja correto o enunciado, filosofar significa transcender o
comum". É mundo do trabalho na medida em que trabalho mundo do trabalho e, portanto, faz parte da essência do ato
tem o mesmo significado de atividade útil (sendo então simul- filosófico justamente não ser próprio deste mundo das utilida-
taneamente próprio desta o caráter de atividade e de esforço). des e eficiências, da necessidade e do rendimento, desse mundo
O processo de trabalho é o processo da realização da "utilidade do bonum utile, da "utilidade comum", mas ser, por princípio,
comum". Tal conceito não deve ser igualado ao de bonum commu- incomensurável com ele. De fato, quanto mais total se torna a
ne: a "utilidade comum" é uma parte essencial do bonum
reivindicação do mundo do trabalho, tanto mais grave vem à
tona essa incomensurabilidade, esse não-pertencimento. E tal-
commune, mas este é muito mais geral. Ao bonum commune per-
vez possamos dizer que esse agravamento e esse perigo a partir
tence, por exemplo (como diz Tomás de Aquino 2), o fato de
do mundo total do trabalho são o que caracteriza propriamen-
existir pessoas que se entregam à vida inútil da contemplação;
te a situação da filosofia hoje, quase mais que sua problemática
pertence o fato de que se pratique a filosofia - na medida em
de conteúdo. A filosofia adquire - necessariamente! - cada vez
que, justamente, não se pode dizer que meditação, contempla-
mais o caráter do estranho, do mero luxo intelectual, até do
ção, filosofia sirvam à "utilidade comum".
autenticamente insustentável e do que não deve ser levado a
sério, quanto mais a reivindicação do mundo do trabalho coti-
2. Comentário ao Livro de sentenças de Pedro Lombarda 4 d. 26, 1, 2. diano domina o homem de maneira exclusiva.
14. Francis BACON, Novum Organum I, 3; I, 81. 16. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2, 2.
15. René DESCARTES, Discurso sobre o método, 6. 1 17. GREGÓRIO MAGNO, apud TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2,2.
1
O OBJETIVO DA FILOSOFIA
1 23
Precisamos, a fim de alcançar aqui u~ resposta mais ou me- da planta, mediante sua capacidade de relação e inclusão. E
nos clara, começar bem do início, bem de baixo. tudo o que for abrangido pela capacidade de inclusão da planta
Pertence à essência do ser vivo o fato de que viva e esteja em - tudo isso perfaz o campo de relação, o mundo da planta. A
um mundo, em "seu" mundo, de que possua um mundo. Ser planta tem um mundo; a pedra não.
vivo significa estar "no" mundo. Mas uma pedra não está tam- O primeiro ponto, portanto, é: mundo significa campo de
bém "no" mundo? Não está simplesmente tudo o que em abso- relação. Possuir um mundo significa: ser centro e suporte de
luto "existe" "no" mundo? Tomemos a pedra inanimada, que se um campo de relação. O segundo, porém, é: quanto mais alto o
encontra em algum lugar: ela está com e ao lado de outras coi- lugar do ser-interior, ou seja, quanto mais extensa e abrangente
sas "no" mundo? "No", "com", "ao lado de" - essas são palavras for uma capacidade de relação, tanto mais amplo e elevado será
de relação. Mas uma pedra não possui realmente uma relação o campo de relação submetido a esse ser. Dito de outro modo:
para com o mundo, "no" qual se encontra, nem para com as quanto mais alto um ser estiver na ordenação hierárquica da
coisas vizinhas, "ao lado" das quais e "com" as quais está "no" realidade, tanto mais amplo e elevado o lugar de seu mundo.
mundo. Relação em sentido genuíno se estabelece de dentro O mundo mais inferior é o das plantas, que em sua
para fora. Só há relação onde há um interior, portanto, um distensão espacial não vai além da proximidade de contato. O
centro dinâmico a partir do qual toda ação surge e ao qual se mundo hierarquicamente superior, e também mais amplo, dos
refere tudo o que se recebe e sofre. O interior (no sentido quali- animais corresponde à maior capacidade de relação dos ani-
tativo - a respeito do "interior" da pedra só se pode falar no mais. A capacidade de relação e inclusão dos animais é maior
sentido de situação espacial de suas partes!) é a capacidade de na medida em que o animal é capaz de percepção sensível, de
algo real de possuir relação, de se pôr em relação com um exte- perceber algo: trata-se de um modo, em contraposição ao âm-
rior. "Dentro" significa capacidade de relação e de inclusão bito meramente vegetal, especial e completamente novo de se
(Beziehungs- und Einbeziehungskraft). E mundo? Mundo significa colocar em relação com um exterior.
o mesmo que campo de relação (Beziehungsfeld). Somente um ser Isso não significa de maneira alguma que tudo o que um
capaz de relação, somente um ser-interior (Innen-Wesen), e isso animal, tomado por assim dizer "abstratamente'', é capaz de
quer dizer somente um ser vivo, possui mundo. Somente a ele perceber (pois possui olhos para ver e ouvidos para ouvir) já
cabe existir no meio de um campo de relação. Trata-se, por prin- pertença também ao mundo desse animal. Não significa de
cípio, de formas diferentes de estar ao lado de: a que subsiste na forma alguma que todas as coisas visíveis ao seu redor sejam
relação entre pedras encontradas em algum lugar, amontoadas vistas por um animal dotado de sentido de visão, e nem que
na rua - e, portanto, vizinhos - e a forma dada, em contrapar- possam ser vistas. O espaço ao redor, mesmo o que é perceptí-
tida, na relação de uma planta para com as substâncias nutriti- vel "em si", não é ainda mundo! Essa era a concepção geral até
vas que se encontram na região de sua raiz no solo. Não há aqui as pesquisas sobre o meio ambiente (Umwelt) do biólogo Jakob
uma proximidade meramente espacial como fato objetivo, mas von Uexküll. Até então, tal como Uexküll mesmo formulou\
uma relação autêntica (no sentido original, nomeadamente, no
sentido ativo de inclusão): as substâncias nutritivas estão incluí- 1. Jakob von UEXKÜLL, Der unsterbliche Geist in der Natur, Hamburg, 19 38,
das no âmbito da vida da planta - a partir do interior autêntico p. 63.
do é o espírito! Espírito segundo sua essência: faculdade de (omne ens est verum), bem como da outra frase de mesmo signi-
compreensão para o mundo! ficado: "ente" e "verdadeiro" são conceitos permutáveis. O que
Para a filosofia mais antiga - para Platão, Aristóteles, Agos- significa "verdadeiro" no sentido da verdade-coisa, da verdade
tinho, Tomás - o co-pertencimento dos conceitos "espírito" e da coisa? "Uma coisa é verdadeira" significa: é conhecida e
"mundo" (no sentido de realidade total) é tão estreita e profun- cognoscível, conhecida mediante o espírito absoluto, cognoscível
damente ancorado em ambos os membros que não só é verda- para o espírito não-absoluto. (Infelizmente não é possível aqui
deira a frase "espírito é relação para com a totalidade dos se- fundamentar essa interpretação de modo mais detalhado 11 .)
res", como também a outra afirmação, de que todas as coisas Qualidade de ser conhecido e cognoscível - o que é isso senão
existentes estão em relação com o espírito, e isso em um senti- referência ao espírito cognoscente! E quando, portanto, a filo-
do muito preciso que mal ousamos, num primeiro momento, sofia antiga diz que pertence à essência das coisas existentes
levar ao pé da letra. Não só pertence à essência do espírito que serem conhecidas e cognoscíveis, que não há de modo algum
o seu campo de relação é a totalidade das coisas existentes, mas entes que não sejam conhecidos ou cognoscíveis (todo ente é
também que pertence à essência das coisas existentes estarem verdadeiro!); quando ainda a filosofia antiga diz mesmo que os
no campo de relação do espírito. Ainda mais: para a filosofia conceitos "ente", por um lado, e "conhecido, cognoscível", por
outro, são permutáveis, que um pode tomar o lugar do outro
antiga significa inclusive o mesmo se digo "as coisas possuem
de tal modo que é o mesmo se digo "as coisas possuem ser" ou
ser" ou se digo "as coisas estão no campo de relação do espírito,
se digo "as coisas são conhecidas ou cognoscíveis" - então, a
estão referidas ao espírito" -, se bem que, obviamente, não se
filosofia antiga enunciou com isso justamente que está na es-
trata de uma espiritualidade "que paira livremente" como algo
sência da coisa mesma ser referida ao espírito. (Esse é o ponto
abstrato, mas trata-se de espírito pessoal, de capacidade de re-
importante para nós no contexto de nossa questão.)
lação fundada em si mesma. E de modo algum se trata, no
Resumamos, portanto: o mundo associado ao ser espiritual
entanto, somente de Deus, mas também inteiramente do espí-
é a totalidade das coisas existentes. Isso equivale a dizer que essa
rito criado, não absoluto, do espírito humano!
associação pertence tanto à essência do espírito - espírito é a
faculdade de compreensão da totalidade do ser - como à essên-
10. Ibid., p. 24. Impressionado com a crítica aqui exposta, Gehlen mo- cia das coisas existentes - ser significa estar remetido ao espírito.
dificou sua posição nas edições posteriores. Agora está dito que o conceito
estrutural do homem se baseia "não somente na característica do entendi-
mento" (Gesammtausgabe, ed. K.-S. Rehberg, Frankfurt am Main, 1993; itáli- 11. Cf. Josef PIEPER, Wharheit, der Dinge. Eine Untersuchung zur
co do editor). (Nota do editor alemão) Anthropologie des Hochmittelalters, München, 1948 (Werke 5).
38 1 que é filosofar? 1 39
filosófica se dirige. Porém, esse mundC?.&~ssas coisas, esse esta- tona. Trata-se exatamente desse estado de coisas: nas próprias
do de coisas são questionados de um modo especial. São ques- coisas que estão cotidianamente à mão torna-se perceptível o
tionados em sua essência última, universal, total, e assim o rosto mais profundo do real (não numa esfera do "essencial"
horizonte da questão se torna horizonte da realidade total. A destacada contra o cotidiano, ou como quer que se a chame);
questão filosófica dirige-se inteiramente a "isso" ou "aquilo" portanto, diante do olhar dirigido às coisas encontradas na
que está diante dos olhos, não a algo que esteja "fora do mun- experiência cotidiana se apresenta o não-cotidiano, o que não é
do" ou "em outro mundo" além do mundo da experiência do mais óbvio nessas coisas. É exatamente a esse estado de coisas
dia-a-dia. No entanto, a questão filosófica pronuncia: o que é que está associado aquele acontecimento interior no qual se
"isso" em geral e em última análise? Platão 1 diz: o que o filósofo colocou há muito o início do filosofar: a admiração.
anseia saber não é se te causo injustiça ou tu a mim, mas o que "Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que
é justiça em geral; não é se um rei proprietário de muito ouro tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens"
é feliz ou não, mas o que é dominação, felicidade, miséria em - exclama o jovem matemático Teeteto depois de Sócrates, o
geral - em geral e em última análise. questionador astuto e benévolo, surpreendente e paralisante
O questionar filosófico, portanto, dirige-se inteiramente (paralisado pela admiração!). E no diálogo Teeteto de Platão 2,
para o que se encontra cotidianamente diante dos olhos. Po- continua a resposta irônica de Sócrates: "Estou vendo, amigo,
rém: isso que se encontra diante dos olhos torna-se, para quem que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a
indaga daquele modo, transparente e translúcido, perde sua admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem
compacidade, sua conclusividade aparente, sua obviedade. As outra origem a filosofia". Neste ponto, na serenidade matinal e
coisas mostram uma face estranha, desconhecida, não-familiar totalmente sem cerimônia, quase de passagem, foi trazido à
e profunda. O Sócrates interrogador, que sabe tirar de repente palavra pela primeira vez o pensamento que, atravessando a
a obviedade das coisas, compara-se ele mesmo com o peixe- história da filosofia, se tornou um lugar-comum: o começo da
elétrico cujo choque faz paralisar. Todo dia falamos que este é filosofia é a admiração.
"meu" amigo, esta é "minha" esposa, "minha" casa, que, por- No fato de que o filosofar começa na admiração, eviden-
tanto, "possuímos" ou "temos" tudo isso. De repente, ficamos cia-se, por assim dizer, o caráter fundamentalmente não-bur-
estupefatos: "possuímos" de fato todos esses "bens"? Podem, guês da filosofia. Pois a admiração é algo não-burguês (seja-nos
em geral, ser possuídos? O que significa em geral e em última permitido, não inteiramente sem constrangimento, recorrer a
análise possuir algo? essa terminologia que se tornou corrente). O que significa o
Filosofar significa: distanciar-se, não das coisas do dia-a- emburguesamento em sentido espiritual? Antes de tudo, o se-
dia, mas das interpretações correntes, das valorações corriquei- guinte: que alguém tome o meio ambiente próximo, determi-
ramente válidas dessas coisas. E isso não em função de alguma nado pelas finalidades da vida, de modo tão definitivo e com-
decisão de se diferenciar, de ser "diferente" da maioria, mas pacto, a ponto de as coisas que encontra não serem mais capa-
pelo fato de que de repente uma nova face das coisas vem à zes de se tornar transparentes. O mundo das essências, maior,
46 1 que é filosofar?
meio ambiente e mundo 1 47
que se ~dmira, isto é, somente para '1 poder espiritual de modo definitivo), por exemplo, quem é o agente de determina-
conhecimento, que não possui e não vê tudo de uma vez, a da doença infecciosa. A princípio é possível que um dia se pos-
realidade dada pelos sentidos pode se tornar transparente aos sa dizer: a partir de agora está provado cientificamente, sem
poucos e as suas profundezas mais essenciais podem se tornar objeções, que as coisas são assim e não de outro modo. Nunca,
cada vez mais evidentes. porém, uma questão filosófica (por exemplo, que é isso "em
Justamente esse algo distintivamente humano pertence absoluto e em última análise"? Que é doença em absoluto, que
também ao filosofar. "Nenhum deus filosofa ou deseja ser sá- é conhecer, que é o homem?) poderá ser respondida de modo
13
bio, pois já é", assim diz Diotima, no Banquete de Platão, "nem definitivo e conclusivo. "Nenhum filósofo jamais foi capaz de
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios ... Não compreender completamente a essência nem mesmo de uma
deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que mosca", d"1z T ornas, d e Aqumo
. 14, d e quem também provém a
não pensa lhe ser preciso." "Quais são, Diotima, pergunto eu outra frase, quase contraditória: "o espírito cognoscente avan-
[Sócrates], os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ça para a essência das coisas" 15 • O objeto da filosofia é dado ao
ignorantes?" Ao que ela replica: "É o que é evidente desde já até filósofo na esperança. A isso se refere a expressão de Dilthey:
a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos". Esse "As exigências que se apresentam ao filósofo são irrealizáveis.
meio é precisamente o terreno do verdadeiramente humano. Um físico é um ser agradável,, útil para si e para outros. O
Verdadeiramente humano é, de um lado, não compreender filósofo existe, tal como o santo, somente como ideal" 16 • Está
(como Deus) e, de outro, não se endurecer, não se fechar no na essência das ciências particulares que estas se livrem da ad-
mundo do cotidiano, que se crê plenamente iluminado, não se miração na mesma medida em que alcançam "resultados". O
filósofo, no entanto, nunca se livra da admiração.
satisfazer com o não-saber, não perder a maleabilidade infantil,
Com isso, ficam claros, ao mesmo tempo, o limite e a gran-
própria de quem tem esperança e somente dele.
Desse modo o filósofo, como o que se admira, é superior à deza da ciência, bem como a estatura e a problematicidade da
filo_sofia. Com certeza, morar "sob as estrelas" é algo "em si"
limitação desesperada da estupidez - ele é um esperançoso!
mais nobre. No entanto, o homem não foi criado de modo a
No entanto, ele é inferior àquele que possui definitivamente,
sup~r:ar por muito tempo tal moradia! De fato, a questão que
aquele que sabe, que compreende. O filósofo, aquele que se
se dmge para o todo do mundo e para a essência última das
admira, é um homem cheio de esperanças.
coisas é "em si" de maior valor. Porém, a resposta não nos é
É também mediante essa estrutura da esperança (entre
simplesmente acessível como a resposta às questões das ciên-
outras!) que a filosofia se diferencia das ciências particulares.
cias particulares!
Nas ciências particulares e na filosofia há por princípio uma
O aspecto negativo que encontramos na estrutura da espe-
relação diferente com o objeto. A questão das ciências particu-
rança foi o que caracterizou o conceito de filosofia desde o
lares é por princípio definitivamente passível de resposta ou,
pelo menos, não é por princípio irrespondível. Pode-se dizer
conclusivamente (ou: poder-se-á supostamente um dia dizer de 14. TOMÁS DE AQUINO, Symb. Apost., Prólogo (n. 864).
15. Suma teológica, I, II, 31, 5.
16. Briefwechsel zwischen Wilhelm Dilthey und dem Grafen Paul Yorck v.
Wartenburg 1877-1897, Haale-Saale, 1923, p. 39.
13. PLATÃO, Banquete 204 a 1-b 2.
58 1 que é filosofar?
tradição, teologia e filosofia 1 59
em última anál~se, Eros? E essa ques~~:é r~s~ondida ~evando
em conta tambem a resposta da tradiçao reltg10sa. Porem, não Isso significa que somente a partir do contraponto da in-
está justamente nessa ligação da filosofia com a teologia o ele- terpr~tação cris~ã,de ~undo pode-se filosofar de tal modo que
mento essencial do diálogo platônico, elemento que nos permi- se satisfaça a exigenna à qual Platão submeteu a filosofia. Mas
te vivenciá-lo como algo profundamente humano? Não é justa- como seria ~os~í~el uma filosofia cristã? Essa questão parece
mente daí que provém o seu caráter total, que inclui inteira- de lo,nge mais factl de responder do que a seguinte: como seria
mente toda a existência humana? possivel uma filosofia não-cristã? - desde que por filosofia se
É, portanto, impossível pretender fazer uma filosofia cons- entenda o mesmo que entendeu Platão.
ciente e radicalmente destacada da teologia - e simultanea- Evidentemente não se deve dizer: é suficiente ser cristão ou
mente recorrer a Platão. De modo platônico e com pretensão rec~nhecer a tradição cristã como verdadeira a fim de já poder
platônica só é possível filosofar a partir de um contraponto realizar filosofia em grande estilo. Filosofia é questionamento
teológico. Não se pode, justamente ao se questionar com serie- do mundo, penetração no ser, caminho "a partir de baixo" e
dade sobre a raiz das coisas (e isso ocorre no ato filosófico), portanto, vinculado à genialidade natural do olhar voltado par~
deixar de lado, em função de alguma pureza metodológica, a o mu~do. Também não se deve dizer: somente a filosofia cristã
tradição religiosa precedente e seu enunciado que expressamente poderia ser
. filosofia viva. O filosofar vivo pode existir tamb,em
atinge a raiz das coisas - a não ser que não se aceite mais esse em o~o~tç~o ao que é_cristão. Porém, só é possível se contrapor
enunciado! Porém, aceitá-lo, acreditar nele e deixá-lo de lado ao cristianismo
. mediante enunciados de fie' , aiºnd a que esses
ao filosofar - eis o que não se pode, com seriedade, fazer! enun~iados de fé possam ser apresentados de modo "puramen-
Surge, naturalmente, a questão: onde se pode encontrar te rac10nal", como são os enunciados de fé do racionalismo de
hoje e aqui a tradição pré-filosófica legítima? Qual é a figura modo que também aqui fica preservada a estrutura do fil;so-
hodiernamente encontrável da, como diz Platão 6, "notícia che- fa~ autêntico, que parte de um ponto de vista pré-filosófico, ou
gada até nós mediante um Prometeu desconhecido enquanto sep, dos enunciados de fé.
dádiva dos deuses"? A essa pergunta devemos responder que ?nde a tradição religiosa ressecasse completamente, a ponto
desde o fim da Antiguidade no Ocidente não existe tradição de nao se saber mais do que se fala quando se pronuncia pala-
pré-filosófica que atinja o todo do mundo a não ser a cristã. vras como "Deus", "Revelação", "Logos", somente ali a Filoso-
Não há hoje, no Ocidente, teologia a não ser a cristã! Onde se fia não poderia mais crescer.
encontraria uma teologia não-cristã em sentido pleno? 7 A filosofia adquire sua vitalidade e sua tensão interna pelo
fato de ser um contraponto da teologia. A partir daí ela tira 0
6. ID., Filebo, 16 c 2s.
seu tempero, o sa~ que a tor~a existencial! Precisamente porque
7. Logo após a Semana Universitária de Bonn (1947) fui informado a a filosofia profiss10nal, rebaixada a uma disciplina especializada,
respeito do seguinte: deve-se sim constatar hoje, por exemplo na obra de
Walter F. Otto, uma revivescência da teologia antiga, de modo que não se
pode mais dizer que a única teologia encontrável no Ocidente seria a cristã. sentido _preó~o de_ "verd_ade" na qual se "acredita" plenamente, a ponto de,
A esse respeito deve-se dizer que admiração ainda não é fé. Pretende-se seria- ~uma s1tuaçao ex1stenc1al extrema (diante da morte), poder-se rezar para
mente afirmar que, naquele novo grecicismo, a teologia antiga é tomada no "polo ou para D10mso? Se não é esse o caso, então não se pode falar de uma
teologia em senndo pleno".
60 1 que é filosofar?
tradição. teologia e filosofia 1 61
evitou temerosamente todo contato c~ a temática teológica Isso já não é mais um enunciado filosófico "puro". Porém
(o que em parte pode ser dito também da assim chamada filo- a partir da essência da filosofia entendida como procura amo~
sofia "cristã") é que ela se tornou insossa. É exatamente isso ro~a da "sabedoria, t~l como Deus a possui", é inevitável que 0
que explica o efeito provocador e devastador do filosofar filosofo ultrapasse o ambito da filosofia "pura" e entre no âm-
heideggeriano. O seu caráter explosivo se deve unicamente ao bito da teologia, embora do ponto de vista teórico e metodo-
fato de apresentar questões com uma radicalidade desafiante a l~g~co, mas não do ponto de vista existencial, seja possível de-
partir de um impetus originariamente teológico, exigindo de si limitar conceitualmente os dois campos, mas não separá-los
uma resposta teológica, ao mesmo tempo que recusa radical- r~almente: De outro modo não é possível filosofar! Porque 0
mente essa resposta. De repente, nossa língua saboreia nova- filosofar, justamente por ser uma atitude humana fundamen-
mente o sal da teologia! tal para com a realidade, só é possível a partir da totalidade da
E hoje, na França, ocorre algo semelhante para além da existência humana, o que implica tomadas de posição perante
simples moda, porque o ateísmo "existencialista" não é de modo a realidade como um todo!
algum uma posição "puramente filosófica" ou mesmo "cientí- A respeito do conceito de uma filosofia cristã são necessá-
fica", mas teológica. Por isso pode oferecer a essa filosofia uma r~as ,~ind~ - para c~~cluir nosso esforço de resp~nder à ques-
dimensão teológica, pela qual essa filosofia, que na realidade é tao que e filosofar? - algumas observações, sem, todavia, ter
uma pseudoteologia e uma antiteologia, se tornou tão vital. De a pretensão de esclarecer exaustivamente ou mesmo nas suas
fato ela mexe com os homens de modo verdadeiro, pois trata linhas essenciais esse multifacetado e complexo conceito.
just~mente do todo com o qual a filosofia, segundo a defini- Em primeiro lugar, é necessário contradizer uma opinião
ção, tem essencialmente a ver! Quando Jean-Paul Sartre diz: "O corrente segundo a qual a filosofia cristã (ou uma filosofia cris-
existencialismo ateísta conclui, a partir da não-existência de tã) ~e diferenciaria de uma filosofia não-cristã, entre outros
Deus, que há um ser que não é determinado por nenhuma n:ottvos, por sua característica de possuir soluções mais lím-
vontade superior, e esse ser é o homem", não há decerto nin- pidas. N~o é ~ssim. Apesar de a filosofia cristã pensar a partir de
guém que tome isso por uma tese filosófica, ou por uma tese certezas mteiramente indubitáveis, ocorre que justamente a fi-
teológica ou por um enunciado de fé. Mas ele obriga a levar o losofia cristã é capaz de realizar mais puramente 0 verdadeiro
pensamento ao nível da teologia! A partir desse ponto de vista sentido da admiração filosófica, da admiração baseado no não-
é possível filosofar com vitalidade. saber. Um dos grandes pensadores de nosso tempo, inspirado
Certamente, filosofar de modo vivo e verdadeiro só é possível em Tomás de Aquino, disse que a marca diferenciadora do filo-
a partir do ponto de vista de uma verdadeira teologia, e isso sofar crist~o ~justamente não ter à disposição soluções límpidas,
quer dizer a partir da teologia cristã. No entanto, mais uma mas possmr numa medida mais alta que qualquer outra filoso-
vez, isso não quer dizer que todo filosofar que recorra à teolo- fia" o sentido do mistério 8• Mesmo no âmbito da fé e da teo-
gia cristã já realize a união entre verdade e vitalidade. O que logia - apesar de toda a certeza da fé -, não ocorre de modo
afirmamos é que uma filosofia, ao mesmo tempo verdadeira e !;r
viva, ou não se realiza em absoluto (e é possível que isso acon- ~;
!!: 8. R GARRJGOU-LAGRANGE, Der Sinn für das Geheimnis und das Hell-Dunkel
teça!) ou, se é realizada, então só pode ser como filosofia cristã. des Geistes, Paderborn, 1937, p. l 12s.
62 1 que é filosofar?
66 1 que é filosofar?
tradição. teologia e filosofia 67
ma falar de um "filósofo kantiano'', co'6 o que se pensa em ta, o ético, que não precisa necessariamente ele mesmo ser um
alguém cujas opiniões filosóficas estão de acordo com a dou- bom homem, se pronuncia sobre o bem. Do segundo modo
trina de Kant. Quando se diz que alguém é cristão em seu filo- per connaturalitatem, 0 homem bom conhece 0 , b '
f que e om pe10
sofar, isso não pode significar somente que sua visão de mun- ~to. de tomar parte, imediatamente, em função da consonân-
do se encontra em concordância com o cristianismo como dou- cia mt,erna,. por força de um faro infalível do amante (pois o
trina, pois cristianismo é essencialmente realidade, não mera amor e aquilo pelo que o estranho se nos torna próprio, pelo
doutrina! O problema de uma filosofia cristã não consiste só que surge a connaturalztas - como diz Tomás de A · 13')
S b · d. . qumo ..
em saber como se deve vincular sabedoria natural e fé sobrena- o Are .ªs c01sas ivmas, porém, julga com conaturalidade de
tural do ponto de vista teórico, mas de saber como a verdade essenna, c?m~. sobre algo próprio, aquele que, segundo uma
cristã, aceita pelo filósofo, se torna um filosofar cristão. frase de D10nis10 Areopagita, não só "aprende o que é Divino
É de Fichte a afirmação: "O tipo de filosofia que se escolhe mas o sofre" 14 • ,
depende do tipo de homem se é". A fórmula é um pouco infe- Assim, a figura completa da filosofia cristã é realizada no
liz, pois as coisas não se passam como se "escolhêssemos" uma filosofar
. _ daquele
. que não só "aprende" e sab e o que e, o ser
filosofia! Seja como for, o significado é claro e correto. Mesmo cr~st~,º (das Christliche) - para quem esse ser não é somente "dou-
no âmbito do saber natural as coisas não ocorrem como se trina ' com a qual p o d e, d e maneira
· puramente conceitual ti-
bastasse forçar um pouco a mente para alcançar uma verdade. rar suas conc~usões teóricas -, mas que permite o ser cris~ão
Isso vale sobretudo quando essa verdade diz respeito ao senti- tornar-se reah~ade em si mesmo e, portanto, em função de
do do mundo e da vida. Aqui não é suficiente ter uma "cabeça uma conaturahdade real, não só com o saber e com o aprender
inteligente". É necessário ser algo também como homem, como n:as que "sofr~ndo-o", experimenta essa realidade, ganha par~
pessoa. Ora, o cristianismo é uma realidade que penetra e for- s1 a ver~ade cnstã e a partir dela filosofa sobre os fundamentos
ma o homem tanto mais completamente em todas as suas fa- naturais da realidade do mundo e sobre o sentido da vida.
culdades, também na cognitiva, quanto mais este se abrir a ele.
Este não é o lugar nem é minha intenção falar mais profunda-
mente dessas coisas. O que foi dito é suficiente para tornar
conhecida a estrutura existencial de uma filosofia cristã.
Em Tomás de Aquino 12 , há a distinção, que se poderia di-
zer totalmente moderna, entre dois modos do conhecimento:
entre, por um lado, o conhecimento autenticamente teórico-
conceitual, per cognitionem) e, por outro, o conhecimento per
connaturalitatem, o conhecimento fundado na afinidade de es-
sência. No primeiro modo, conhece-se algo estranho; no segun-
do, conhece-se o que é próprio. Do primeiro modo, o moralis-
13. Ibid., II, II, 45, 2.
14. DIONÍSIO, AREOPAGITA, De divinis nominibus 2, 4 apud TOMÁS DE
12. Suma teológica I, 1, 6; II, II, 45, 2.
A QUINO, Suma teologzca II, II, 45, z. '
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