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JOSEF PIEPER

QUE É FILOSOFAR?
Tradução
Francisco de Ambrosis
Pinheiro Machado

Edições Loyola
Título original: Ji.
Was heisst philosophieren? Vier Vorlesungen, in Josef Pieper, Werke in
acht Banden. Band 3: Schriften zum Philosophiebegriff, Hamburg, Felix
Meiner, 2004, 15-75.
© Felix Meiner Verlag, Hamburg, 1995.
ISBN: 3-7873-1666-3
SUMÁRIO
PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal
REVISÃO TÉCNICA: Marcelo Perine
DIAGRAMAÇÃO: So Wai Tam
REVISÃO: Sandra G. Custódio

CONSELHO EDITORIAL:
Ivan Domingues (UFMG) capítulo 1
Juvenal Savian (UNIFESP)
A FILOSOFIA E O MUNDO DO TRABALHO 7
Marcelo Perine (PUC-SP)
Mario A. G. Porta (PUC-SP) capítulo li
Rogério Miranda de Almeida (PUC-PR) O OBJETIVO DA FILOSOFIA ............................................. . 23

Edições Loyola capítulo Ili


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ISBN: 978-85-15-03327-0
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007

J
lo 1
A FILOSOFIA E O
MUNDO DO TRABALHO

"A razão pela qual o filósofo


compara-se com o poeta é esta:
ambos têm a ver com a admiração."
1
TOMÁS DE AQUIN0

Quando um físico põe a questão: que é física, que é pesquisa


física?, ele põe uma pré-questão. Evidentemente, ao indagar desse
modo e buscar uma resposta, ainda não se faz física - ainda
não é física ou já não é mais física. No entanto, alguém entra
diretamente na filosofia ao formular e tentar responder a ques-
tão: que é filosofar? Essa questão não é uma pré-questão, mas
uma indagação eminentemente filosófica. Com ela nos encon-
tramos dentro da filosofia. Mais especificamente, não posso
dizer nada a respeito da essência da filosofia e do filosofar sem
fazer um enunciado sobre a essência do homem - e com isso já
está designado um domínio central da filosofia.
A esse domínio, portanto, à antropologia filosófica, per-
tence nossa questão: "Que é filosofar?".

1. A epígrafe provém do Comentário à Metafísica de Aristóteles, I, 3 (n. 55).


(Nota do ediror alemão)

17
Mas, por ser uma questão fil~fica, também não poderá Hoje, certamente, bonum commune e "utilidade comum" são
ser respondida de modo definitivo, pois pertence justamente à dados cada vez mais como idênticos, assim como é certo (o que
essência de uma questão filosófica o fato de não podermos dá no mesmo) que, de acordo com isso, o mundo do trabalho
receber nas mãos a resposta como "verdade acabada" (segundo começa a se tornar, ou ameaça tornar-se, sempre mais exclu-
as palavras de Parmênides), tal como se colhe uma maçã. Nesse sivamente o nosso mundo em geral. A reivindicação do mundo
sentido, será tratada mais adiante a estrutura de esperança da do trabalho torna-se cada vez mais total, abarcando progres-
filosofia e do filosofar em geral. Não vamos, portanto, prome- sivamente toda a existência humana.
ter uma definição manipulável, nem uma resposta que apreen- Se é correto dizer que o filosofar é um ato que transcende
da o objeto por todos os lados. e ultrapassa o mundo do trabalho, então nossa questão "que é
Numa primeira aproximação, pode-se dizer o seguinte: fi- filosofar?", indagação tão "teórica" e "abstrata", torna-se de re-
losofar consiste em uma ação na qual o mundo do trabalho é pente e sem querer uma questão extremamente atual do ponto
ultrapassado. Trata-se portanto, em primeiro lugar, de definir de vista histórico. Necessitamos dar somente um passo, no
o que se entende aqui por "mundo do trabalho" (Arbeitswelt), pensamento e também geográfico, para nos encontrarmos em
para então determinar o que significa o "ultrapassar" (Über- um mundo no qual o processo do trabalho, o processo da rea-
schreiten) desse mundo do trabalho. lização da "utilidade comum" determina toda a esfera da exis-
O mundo do trabalho é o mundo cotidiano do trabalho, o tência humana. É necessário apenas saltar uma linha limítrofe,
mundo da utilização, da serventia a fins, do rendimento, do muito próxima tanto interna como externamente, para se al-
exercício de funções; trata-se do mundo da necessidade e da cançar o mundo total do trabalho, no qual conseqüentemente
renda, o mundo da fome e do modo de saciá-la. O mundo do não existiriam mais filosofia e filosofar autênticos. Supondo
trabalho é dominado pelo objetivo de realização da "utilidade que seja correto o enunciado, filosofar significa transcender o
comum". É mundo do trabalho na medida em que trabalho mundo do trabalho e, portanto, faz parte da essência do ato
tem o mesmo significado de atividade útil (sendo então simul- filosófico justamente não ser próprio deste mundo das utilida-
taneamente próprio desta o caráter de atividade e de esforço). des e eficiências, da necessidade e do rendimento, desse mundo
O processo de trabalho é o processo da realização da "utilidade do bonum utile, da "utilidade comum", mas ser, por princípio,
comum". Tal conceito não deve ser igualado ao de bonum commu- incomensurável com ele. De fato, quanto mais total se torna a
ne: a "utilidade comum" é uma parte essencial do bonum
reivindicação do mundo do trabalho, tanto mais grave vem à
tona essa incomensurabilidade, esse não-pertencimento. E tal-
commune, mas este é muito mais geral. Ao bonum commune per-
vez possamos dizer que esse agravamento e esse perigo a partir
tence, por exemplo (como diz Tomás de Aquino 2), o fato de
do mundo total do trabalho são o que caracteriza propriamen-
existir pessoas que se entregam à vida inútil da contemplação;
te a situação da filosofia hoje, quase mais que sua problemática
pertence o fato de que se pratique a filosofia - na medida em
de conteúdo. A filosofia adquire - necessariamente! - cada vez
que, justamente, não se pode dizer que meditação, contempla-
mais o caráter do estranho, do mero luxo intelectual, até do
ção, filosofia sirvam à "utilidade comum".
autenticamente insustentável e do que não deve ser levado a
sério, quanto mais a reivindicação do mundo do trabalho coti-
2. Comentário ao Livro de sentenças de Pedro Lombarda 4 d. 26, 1, 2. diano domina o homem de maneira exclusiva.

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Todavia, primeiramente deve-s!i&fizer algo ainda sobre essa
incomensurabilidade do ato filosófico, desse transcender o mun-
do do trabalho que acontece no filosofar. Deve-se falar mais
uma vez a respeito disso de modo bem concreto.
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pode adquirir esta ou aquela coisa necessária para a existência
cotidiana?", "de que modo adquirimos isso?", "onde existe tal
produto?") -, de repente uma voz se levante com a questão:
"Por que existe sobretudo o ente e não antes o nada?" - com
Lembremo-nos das coisas que dominam hoje o cotidiano esse antiqüíssimo clamor de admiração filosófico que Heidegger3
do trabalho do homem, do nosso cotidiano. Não é necessário designou como a questão fundamental de toda metafísica! Será
aqui nenhum esforço especial do pensamento para torná-lo necessário dizer expressamente o quanto essa questão do filó-
presente: encontramo-nos drasticamente no interior desse coti- sofo é incomensurável relativamente ao mundo cotidiano do
diano. Trata-se, portanto, primeiro da corrida e da caça diária trabalho, da utilidade e da serventia a fins? Se essa questão
da existência física crua, corrida por alimentação, vestuário, mo- fosse expressa de modo imediato e inesperado entre os homens
radia etc. Depois, o cuidado que vai além do indivíduo (e simul- da produção e do sucesso, não seria considerado um louco aque-
taneamente o condiciona), as necessidades de uma nova ordem le que interroga? Em tais contraposições extremas, porém, a
mundial e de progresso - sobretudo em nossa pátria, mas tam- diferença realmente existente torna-se clara. Fica claro como
bém no mundo. Lutas de poder pela utilização dos bens da com aquela questão foi dado um passo que transcende e remete
Terra, conflitos de interesse nas coisas grandes e pequenas. Por para além do mundo do trabalho. A questão filosófica em sen-
todo lado, tensão extrema e sobrecarga - abrandadas somente tido autêntico atravessa o limiar que encerra sob si o mundo do
de modo aparente mediante diversões e pausas rapidamente cotidiano burguês do trabalho.
absolvidas: jornal, cinema, cigarro. Não é necessário continuar No entanto, o ato filosófico não é a única maneira de rea-
a esboçar essa situação. Todos conhecemos muito bem o aspec- lizar esse "passo além". A voz da autêntica poesia não é menos
to deste mundo. Não significa de modo algum que precisamos incomensurável com o mundo do trabalho do que a questão
olhar somente para essas culminações críticas que se apresen- do filósofo:
tam justamente nos dias de hoje. Trata-se simplesmente do
Immer steht der Baum in Mitt und Enden,
mundo do trabalho do dia-a-dia, no qual se deve trabalhar ener-
Vogel singen und in Gottes Lenden
gicamente, no qual fins muito concretos são impostos e reali-
Ruht der Kreis der Schiipfung selig aus4 .
zados, com objetivos que devem ser visados por um olhar
paralisante, direcionado para o que está perto e mais próximo.
Longe de nós querer desvalorizar esse mundo do cotidiano do 3. Martin HEIDEGGER, Was ist Metaphysik?, Frankfurt, 1943. Aliás, a for-
mulação não é nova; ela se encontra também em LEIBNIZ, Pourqui il y a
trabalho a partir de algum suposto ponto de vista superior da
plustôt quelque chose que rien?, in ID., Philosophische Schriften, Darmstadt,
filosofia. Por isso é preciso afirmar rigorosamente que esse 1965, V. I, P· 426.
mundo do trabalho cotidiano pertence essencialmente ao mun- 4. "Na árvore majestosa cantam os pássaros
do do homem, que justamente nesse mundo do trabalho são E no coração de Deus descansa feliz a criação".
Konrad WErss, ln exitu (versos iniciais); publicado pela primeira vez na
realizados os fundamentos de sua existência física, sem os quais coletânea de poesiaDie cumdische Sibylle, München, 1921. Posteriormente aces-
nenhum homem pode existir! Imaginemos que entre as vozes sível nas obras completas pela Editora Kõsel: Konrad Wmss, Gedichte. 1914-
que preenchem os locais de trabalho e o mercado - ("como se 1939, München, 1961.

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Uma voz como essa também res~a, na esfera dos fins rea- mundo do trabalho!), devido à força comum de transcendência,
lizados ativamente, como algo totalmente estranho. Não é dife- 0 ato filosófico é aparentado e próximo do poético, mais pró-
rente com as palavras daquele que reza: "Nós vos louvamos, vos ximo e estreitamente aparentado do que com as ciências exa-
exaltamos, vos agradecemos por vossa imensa glória" - como tas! Voltaremos a isso mais adiante.
isso poderia ser compreendido a partir das categorias da utili- O co-pertencimento é tão válido que onde quer que um
zação racional e organização da utilidade! Do mesmo modo o membro pertencente seja negado por princípio também os
amante é expulso da cadeia de fins desse mundo do trabalho outros não florescem - de tal maneira que, em um mundo do
cotidiano, e também todo aquele que mediante um profundo trabalho total, todas as formas e todos os modos do ultrapassa-
abalo existencial, que sempre é um abalo das relações do mun- mento de si mesmo fenecem necessariamente (ou melhor: deve-
do, chega à fronteira da existência (Dasein) - tal como na expe- riam fenecer se realmente fosse possível destruir completamen-
riência da proximidade da morte ou qualquer outra experiên- te a natureza humana). Onde o religioso não pode crescer, onde
cia parecida. Em tal abalo (também o ato filosófico, a poesia 0 artístico não encontra nenhum lugar, onde o abalo mediante
autêntica, a vivência artística em geral, a oração fundam-se em a morte e o Eros perdem sua profundidade e são banalizados,
um abalo!), o homem experimenta a não-conclusividade desse aí também não vicejarão a filosofia e o filosofar.
mundo cotidiano: transcende-o, dá um passo além dele. Pior que o mero emudecer e o apagamento é, por certo, a
E, em função da força comum de ultrapassamento e trans- inversão em formas de engano e mentira. Existem essas pseudo-
cendência, todos aqueles modos fundamentais de comporta- realizações daquelas atitudes fundamentais que somente na
mento do homem possuem entre si um co-pertencimento na- aparência ultrapassam o limiar do cotidiano. Há um modo de
tural: o ato filosófico, o religioso, o artístico e também o abalo rezar mediante o qual "este" mundo não é transcendido, me-
existencial mediante Eros ou mediante a experiência da morte diante o qual se faz antes a tentativa de integrar o divino na
ou qualquer outra dessas relações. Sabemos que Platão pensou cadeia de fins do cotidiano do trabalho como parte funcional.
o filosofar juntamente com Eros. No que tange ao co-pertenci- Há o encadeamento da religião na magia: não a entrega ao
mento entre filosofia e poesia, há uma frase notável e pouco divino, mas a tentativa de se apropriar do divino e de torná-lo
conhecida de Tomás de Aquino, no seu comentário à Metafísica disponível; há o encadeamento da oração numa prática que
de Aristóteles, que diz: o filósofo tem afinidades com o poeta pretende continuar possibilitando a vida sob aquele limiar. Há,
na medida em que ambos têm a ver com o mirandum, com o além disso, uma degeneração do Eros na sujeição da força da
admirável, com o que é digno de admiração, que reclama admi- entrega às pretensões e aos objetivos do limitado eu, que pro-
ração5. Essa frase difícil de ser esgotada ganha mais peso devi- vém da autodefesa angustiada contra o abalo produzido pelo
do a ambos os pensadores, tanto Aristóteles como Tomás, se- mundo maior e mais profundo, que só quem verdadeiramente
rem duas mentes sóbrias, inteiramente avessas a qualquer con- ama é capaz de penetrar. Há pseudoformas do artístico, há má
fusão romântica entre essas duas áreas. Assim, devido à orien- poesia que em vez de romper o limiar do cotidiano do trabalho
tação comum para o mirandum (o mirandum não aparece no somente pinta ornamentos, por assim dizer, enganosos na pa-
rede interna do cotidiano, entregando-se, como "poesia útil",
5. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles l, 3 (n. 55). privada ou política, mais ou menos abertamente a serviço do

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mundo do trabalho: essa "poesia" n~ ultrapassa, nem mesmo possui uma agudeza histórica especial. Não se trata aqui, não
aparentemente (e é claro que o filosê'ff'ar autêntico tem mais em obstante, de uma crítica de época. No fundo, está em pauta um
comum com as ciências exatas particulares do que com essa desacordo perene.
pseudopoesia!). A risada da criada trácia, ao ver Tales de Mileto, o observa-
Por fim, há uma pseudofilosofia cuja característica é justa- dor do céu, cair no poço, é para Platão a resposta típica da
mente esta: nela o mundo do trabalho igualmente não é ultra- razoabilidade fixa do cotidiano diante da filosofia. E essa ane-
passado. Em Platão 6, Sócrates pergunta ao sofista Protágoras: dota da criada trácia encontra-se no começo da filosofia oci-
Que ensinas aos jovens que de ti se aproximam? E Protágoras dental. E "em todas as circunstâncias" (assim está no Teeteto de
responde: Comigo aprende-se prudência, seja em questões pri- Platão), o filósofo torna-se alvo de galhofa, "não apenas por
vadas, particularmente como administrar do melhor modo o parte das criadas da Trácia, como de todo o povo, levando-o sua
próprio lar, seja nas questões públicas, como atuar melhor pelo falta de experiência a cair nos poços e na mais triste confusão" 7 •
discurso e pela ação no Estado. Essa é a problemática clássica Platão, porém, não se expressa somente e nem acima de
da filosofia como saber de formação, uma filosofia aparente, rudo num discurso proposicional e em tese formal, mas fala
sem transcendência. por figuras. É o caso de Apolodoro, uma figura secundária (tal
Pior ainda, todas essas realizações enganosas concordam como parece num primeiro momento) nos diálogos Fédon e
no fato de não só não ultrapassarem, mas também de, justa- Banquete. Apolodoro é um daqueles jovens acriticamente entu-
mente, fecharem o mundo ainda mais e de modo mais defini- siasmados em torno de Sócrates, nos quais Platão talvez qui-
tivo sob o limiar do cotidiano; de encarcerarem de vez o ho- sesse apresentar-se a si mesmo. No Fédon é narrado sobre Apo-
mem no mundo do trabalho. Desse modo, todas essas pseudo- lodoro que ele, quando Sócrates na prisão levou a taça de cicuta
formas, sobretudo a pseudofilosofia, são algo muito pior, mui- à boca, foi o único entre os presentes a cair em um choro e em
to mais sem esperança que o fechamento ingênuo do homem soluços incessantes. Diz Fédon: "Deves saber, com efeito, que
mundano diante do não-cotidiano. Aquele que mergulha inge- homem é ele e qual seja o seu feitio" 8 • De si mesmo, diz Apolo-
nuamente no mundo cotidiano do trabalho pode um dia ainda doro, no Banquete9 , que desde muitos anos se dedicou fervoro-
ser atingido pela força do abalo escondida em uma questão samente a saber a cada dia o que Sócrates disse e fez, e que
genuína do filósofo, ou em uma poesia. Porém, um sofista, um "anteriormente, rodando ao acaso e pensando que fazia algu-
pseudofilósofo não pode ser abalado! ma coisa, eu era mais miserável que qualquer outro". Agora,
Voltemos, no entanto, a nossa questão inicial. Ao se inda- porém, encontra-se de modo extremado entregue a Sócrates e à
gar sobre a essência verdadeira da filosofia, questiona-se com filosofia. Na cidade, chamam-no de Apolodoro "louco". Esbra-
isso justamente para além do mundo do trabalho. Assim, já veja contra todos os outros e contra si mesmo, à exceção de um
está claro que essa questão e a sua posição hoje, na medida em único, Sócrates. Tomado por completa ingenuidade, anuncia
que precisamente o mundo do trabalho se apresenta com uma
pretensão de totalidade até então desconhecida no Ocidente,
7. ID., Teeteto, 174 a-e.
8. ID., Fédon, 59 b.
6. PLATÃO, Protágoras 318 a 6ss. 9. ID., Banquete, 172 e 4ss.

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por todos os cantos como seria "feli~acima de toda a medida" qual (esta é decerto a opinião de Platão) somente a procura
se pudesse ele mesmo falar sobre fi'f)sofia ou ouvir um outro. juvenil inabalada pela sabedoria, a autêntica philosoph~a pode
E depois fica novamente infeliz, pois não alcançou ainda o que manter-se firme. Em todo caso, Platão não poderia exprimir de
queria: ser como Sócrates. Esse Apolodoro encontra um dia maneira mais clara a incomensurabilidade de princípio do filo-
alguns amigos de então, justamente aqueles que agora o cha- sofar e do mundo do trabalho auto-suficiente e cotidiano.
mam de louco, raivoso. Trata-se, como Platão nota explicita- Todavia, esse aspecto negativo é só uma face daquela inco-
mente, de homens de negócios, de dinheiro, que sabem exata- mensurabilidade. A outra face chama-se: liberdade. A filosofia
mente como se faz algo e "estão inteiramente convencidos de é "inútil" no sentido de aproveitamento e aplicação imediatos
produzir algo" no mundo. Esses amigos pedem a Apolodoro - isso é um lado. O outro consiste no fato de a filosofia não se
para narrar algo a respeito dos discursos sobre o amor proferi- deixar usar, de não ser disponível para fins que estejam fora
dos em um banquete na casa do poeta Agaton. É claro que dela mesma, de ser ela mesma um fim. Filosofia não é um saber
esses homens do dinheiro e bem-sucedidos de modo algum de funcionário, mas, como disse John Henry Newman 10 , saber
pretendem ser instruídos sobre o sentido do mundo e da exis- de gentleman. Não saber "útil", mas "livre". Essa liberdade, po-
tência - menos ainda por Apolodoro! É antes o interesse pelo rém, significa que o saber filosófico não recebe legitimação a
picante ou pelo humorístico, pelo dito de modo belo, pela ele- partir de sua utilidade e de sua aplicabilidade, de sua função
gância formal da discussão que está em jogo aqui. Apolodoro social, de sua referência à "utilidade comum". Exatamente nes-
não se ilude sobre possíveis "interesses filosóficos" de seus se sentido era pensada a "liberdade" das artes liberales, artes li-
interlocutores. Diz-lhes na cara como se compadece deles: "pois vres - em oposição às artes serviles, artes servis, que, tal como
pensais fazer algo quando nada fazeis. Talvez também vós me afirma Tomás de Aquino, "são ordenadas para uma utilidade a
considerais infeliz, e creio que é verdade o que presumis; eu, ser alcançada mediante uma atividade" 11 • Filosofia, porém, é
todavia, quanto a vós, não presumo, mas bem sei". Mesmo as- desde sempre entendida como a mais livre entre as artes livres
sim, não se nega a relatar a respeito dos discursos sobre o amor. (as "Faculdades dos artistas" [Artistenfakultat], assim denomina-
Não pode silenciar: "se vós assim o desejais, devo fazê-lo" - das na Idade Média segundo as artes liberales, são idênticas às
deve-se considerá-lo um raivoso! E então Apolodoro narra jus- atuais Faculdades de Filosofia [Philosophischen Fakultat]).
tamente o Banquete! O Banquete de Platão tem precisamente a Assim, se digo que o ato filosófico ultrapassa o mundo do
forma de discurso indireto, de um relato - a partir da boca de trabalho ou se digo que o saber filosófico é inutilizável ou,
Apolodoro! Penso que se deu pouca importância ao fato de ainda, que filosofia é uma "arte livre'', digo sempre a mesma
Platão trazer à palavra seus pensamentos mais profundos por coisa. Essa liberdade cabe às ciências particulares somente na
meio desse jovem extremado, que se regala em um entusiasmo medida em que são empreendidas de modo filosófico. Aqui se
acrítico, por meio desse estudantezinho fervorosíssimo - e, além encontra também, tanto histórica como objetivamente, o senti-
disso, diante de um círculo de ouvintes de homens de dinheiro do autêntico da liberdade acadêmica (pois "acadêmico" signifi-
e sucesso, nem capazes, nem desejosos de receber esses pensa-
mentos ou ao menos de levá-los a sério! Há algo de desesperan- 10. John Henry NEWMAN, The Idea of a University, Discourse V, 5.
çado nessa situação, uma tentação para o desespero contra o 11. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles 1, 3 (n. 59).

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ca "filosófico"-: ~o co~trário não s!l1~fica nada.!) ..Pretensão à elaborem cientificamente um medicamento efetivo contra a
liberdade academica, ngorosamente, so pode existir enquant~ gripe. Pode-se falar e se dispor assim sem que com isso a essên-
o acadêmico mesmo é realizado no sentido de "filosófico". E cia dessas ciências particulares seja contradita. Mas: "Precisa-
assim também do ponto de vista histórico: a liberdade acadê- mos no momento de filósofos que ... " - sim, o quê? Agora só há
mica perde-se exatamente no mesmo grau em que se perde o uma possibilidade: " ... que desenvolvam, fundamentem e de-
caráter filosófico do estudo acadêmico ou, dito de outro modo, fendam a seguinte ideologia... " - só se pode falar assim com a
na medida em que a pretensão de totalidade do mundo do destruição simultânea da filosofia! Exatamente o mesmo ocor-
trabalho conquista o espaço da universidade. Aqui se encontra reria se fosse dito: "Precisamos agora de poetas que ... " - sim, o
a raiz metafísica do problema, a assim chamada "politização" é quê? Novamente só há uma resposta:" ... que [tal como o termo
somente conseqüência e sintoma. Com certeza, deve-se notar diz] utilizem a palavra como arma na luta por determinados
neste ponto que isso é com toda precisão o fruto justamente da ideais postos pelos fins do Estado ... " - só se pode falar assim
própria filosofia, da filosofia moderna! A respeito disso, logo com a destruição simultânea da poesia. No mesmo instante a
se dirá mais uma palavra. poesia cessaria de ser poesia; e a filosofia cessaria de ser filosofia.
Primeiramente, digamos algo sobre o tema "liberdade" da Não como se não houvesse mais nenhuma relação entre a
filosofia - em sua diferença para com as ciências particulares; realização do bem comum e a filosofia ensinada nas nuvens!
liberdade entendida como não-disponibilidade para fins. "Li- Porém: essa relação não pode ser formada e regulada pelo ad-
vres" em tal sentido são, como dissemos, as ciências particula- ministrador do bem comum. Aquilo que possui em si mesmo
res somente na medida em que são empreendidas de modo seu sentido e seu fim, o que é ele mesmo fim, não pode se
filosófico, na medida em que participam da liberdade da filo-
tornar meio para um outro fim - tal como não se pode amar
sofia. "O saber é livre em um sentido especial" - segundo
alguém "para que" ou "a fim de que"!
Newman 12 - "quando e na medida em que é saber filosófico."
Essa não-disponibilidade, essa liberdade do filosofar está
Consideradas em si mesmas, porém, as ciências particulares
- e notar isso me parece de importância extrema e atual! -
são muito bem e essencialmente "disponíveis para fins", são
intimamente ligada com o caráter teórico da filosofia, sendo-
essencialmente referenciáveis a uma "utilidade a ser alcançada
13 lhe de fato diretamente idêntica. Filosofar é a forma mais pura
mediante uma atividade" (tal como Tomás de Aquino diz das
do theorein, do speculari, do puro olhar receptivo sobre a realida-
"artes servis").
Falemos mais concretamente! A direção de um Estado pode de, no qual só as coisas dão as medidas e a alma é exclusiva-
bem dizer: precisamos agora, a fim de realizar um plano qüin- mente receptora destas. Sempre quando um ente é visado de
qüenal, de físicos que recuperem nesse ou naquele campo a modo filosófico, aí se questiona "de maneira puramente teóri-
vantagem das outras nações; ou: necessitamos de médicos que ca", de um modo, portanto, intocado por qualquer prática ou
vontade de transformação e, justamente por isso, elevado para
além de qualquer sujeição a fins.
12. "Knowledge, I say, is then especially liberal, or sufficient for itself, apart from
A realização da theoria nesse sentido, porém, está ligada por
every externai and ulterior object, when and so far it is philosophical"Gohn Henry
NEWMAN, The Idea of a University, Discourse, V, 5).
sua vez a uma pressuposição. Pressuposto é determinada rela-
13. TOMÁS DE AQUINO, Comentário à Metafísica de Aristóteles I, 3 (n. 59). ção de mundo (Weltverhdltnis), relação que parece anteceder toda

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posição e todo fomento consciente ...,;reórico", nomeadamente Esse é o caminho no qual historicamente a destruição da
neste sentido pleno (visando de modo puramente receptivo, filosofia se consuma - mediante a destruição de seu caráter
sem o vestígio de uma intenção de transformar as coisas, antes, teórico, cuja destruição por sua vez se baseia no fato de que o
precisamente ao contrário, pronto para fazer depender o sim e mundo cada vez mais é visto como a mera matéria-prima da
o não da vontade unicamente da realidade do ser que se mani- ação humana. Se o mundo não é mais visto como criação, en-
festa no conhecimento da essência)-, "teórico", nesse sentido tão não pode haver mais theoria em sentido pleno. Junto com a
não enfraquecido, só poderá ser o olhar humano quando o theoria, porém, decai também a liberdade do filosofar e vêm a
ente, o mundo for-lhe algo mais do que o campo, o material, a primeiro plano a funcionalização, o tão-somente "prático", a
matéria-prima da atividade humana. "Teoricamente", no senti- dependência de uma legitimação a partir da função social; vem
do pleno, poderá olhar na realidade somente aquele para quem a destaque o caráter de "trabalho" da filosofia, da que ainda
o mundo é de algum modo digno de veneração, criação final continua a ser chamada de filosofia.
em sentido estrito. Somente nesse solo germina o "puramente- Nossa tese, que agora deve ter recebido um contorno mais
teórico" pertencente à essência da filosofia. Desse modo, seria claro, justamente diz que pertence à essência do ato filosófico
uma união última e profunda, mediante a qual a liberdade do ultrapassar o mundo do trabalho. Essa tese, na qual de modo
filosofar e, portanto, o filosofar mesmo tornam-se intimamen- inclusivo tanto a liberdade como o caráter teórico da filosofia
te possíveis! E não é de admirar que a decadência daquela rela- são afirmados, não nega o mundo do trabalho (ela antes o
ção de mundo, daquela união (por força da qual o mundo é pressupõe expressamente como necessário), mas afirma: a ver-
visto como criação e não como mera matéria-prima), ande pas- dadeira filosofia funda-se na crença de que a riqueza autêntica
so a passo com a decadência tanto do caráter autenticamente do homem não se encontra na satisfação das necessidades, nem
teorético da filosofia como também da sua liberdade e da supe- em "que nos tornemos senhores e proprietários da natureza",
rioridade sobre o funcional. Há uma linha direta de Francis mas em sermos capazes de ver o que é - a totalidade daquilo
Bacon, que disse: "saber e poder são uma coisa só" e "o sentido que é. A filosofia antiga afirma que essa é a máxima plenitude
de todo saber é a dotação da vida humana com novas invenções que podemos atingir: que em nossa alma se inscreva a ordem
e remédios" 14 - passando por Descartes, que no Discurso sobre o da totalidade das coisas existentes 16 - um pensamento que a
método já formula de modo polêmico sua intenção de colocar tradição cristã recebeu no conceito de visio beatifica: "O que não
no lugar da antiga filosofia "teórica" uma filosofia "prática'', - os que veem
verao , aque1e que tu d o ver
''"'17
.
mediante a qual poderíamos "nos tornar senhores e proprietá-
rios da natureza" 15 - , até a conhecida formulação de Karl Marx
de que a filosofia até agora só viu sua tarefa em interpretar o
mundo, trata-se, doravante, de transformá-lo.
l
1

14. Francis BACON, Novum Organum I, 3; I, 81. 16. Cf. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2, 2.
15. René DESCARTES, Discurso sobre o método, 6. 1 17. GREGÓRIO MAGNO, apud TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 2,2.

20 1 que é filosofar? a filosofia e o mundo do trabalho 1 21

1
O OBJETIVO DA FILOSOFIA

Quem filosofa dá um passo além do mundo do trabalho cotidi-


ano.
O sentido de um passo, porém, é determinado menos pelo
ponto de partida que pelo ponto de chegada. Continuamos,
portanto, a indagar: para onde vai o filosofante ao transcender o
mundo do trabalho? Evidentemente, ultrapassa uma fronteira:
que tipo de região é essa que se encontra além da fronteira? E
como se relaciona o campo no qual o ato filosófico avança com
o mundo que justamente por meio desse mesmo ato filosófico é
superado e ultrapassado? Será aquele campo o "autêntico" e o
mundo do trabalho o "inautêntico"? Será o "todo" em contra-
posição à "parte"? A verdadeira realidade em contraposição a
uma realidade meramente aparente ou sombra do real?
Seja qual for a resposta dada a essas questões particulares,
em todo caso ambos os campos, o do mundo do trabalho e aque-
le no qual o ato filosófico avança ao ultrapassar o mundo do
trabalho, pertencem ao mundo do homem, que portanto possui
uma estrutura evidentemente articulada de modo poliédrico.
Eis, portanto, nossa próxima questão: de que espécie é o
mundo do homem? - uma questão que obviamente não pode
ser respondida sem levar em consideração o próprio homem.

1 23
Precisamos, a fim de alcançar aqui u~ resposta mais ou me- da planta, mediante sua capacidade de relação e inclusão. E
nos clara, começar bem do início, bem de baixo. tudo o que for abrangido pela capacidade de inclusão da planta
Pertence à essência do ser vivo o fato de que viva e esteja em - tudo isso perfaz o campo de relação, o mundo da planta. A
um mundo, em "seu" mundo, de que possua um mundo. Ser planta tem um mundo; a pedra não.
vivo significa estar "no" mundo. Mas uma pedra não está tam- O primeiro ponto, portanto, é: mundo significa campo de
bém "no" mundo? Não está simplesmente tudo o que em abso- relação. Possuir um mundo significa: ser centro e suporte de
luto "existe" "no" mundo? Tomemos a pedra inanimada, que se um campo de relação. O segundo, porém, é: quanto mais alto o
encontra em algum lugar: ela está com e ao lado de outras coi- lugar do ser-interior, ou seja, quanto mais extensa e abrangente
sas "no" mundo? "No", "com", "ao lado de" - essas são palavras for uma capacidade de relação, tanto mais amplo e elevado será
de relação. Mas uma pedra não possui realmente uma relação o campo de relação submetido a esse ser. Dito de outro modo:
para com o mundo, "no" qual se encontra, nem para com as quanto mais alto um ser estiver na ordenação hierárquica da
coisas vizinhas, "ao lado" das quais e "com" as quais está "no" realidade, tanto mais amplo e elevado o lugar de seu mundo.
mundo. Relação em sentido genuíno se estabelece de dentro O mundo mais inferior é o das plantas, que em sua
para fora. Só há relação onde há um interior, portanto, um distensão espacial não vai além da proximidade de contato. O
centro dinâmico a partir do qual toda ação surge e ao qual se mundo hierarquicamente superior, e também mais amplo, dos
refere tudo o que se recebe e sofre. O interior (no sentido quali- animais corresponde à maior capacidade de relação dos ani-
tativo - a respeito do "interior" da pedra só se pode falar no mais. A capacidade de relação e inclusão dos animais é maior
sentido de situação espacial de suas partes!) é a capacidade de na medida em que o animal é capaz de percepção sensível, de
algo real de possuir relação, de se pôr em relação com um exte- perceber algo: trata-se de um modo, em contraposição ao âm-
rior. "Dentro" significa capacidade de relação e de inclusão bito meramente vegetal, especial e completamente novo de se
(Beziehungs- und Einbeziehungskraft). E mundo? Mundo significa colocar em relação com um exterior.
o mesmo que campo de relação (Beziehungsfeld). Somente um ser Isso não significa de maneira alguma que tudo o que um
capaz de relação, somente um ser-interior (Innen-Wesen), e isso animal, tomado por assim dizer "abstratamente'', é capaz de
quer dizer somente um ser vivo, possui mundo. Somente a ele perceber (pois possui olhos para ver e ouvidos para ouvir) já
cabe existir no meio de um campo de relação. Trata-se, por prin- pertença também ao mundo desse animal. Não significa de
cípio, de formas diferentes de estar ao lado de: a que subsiste na forma alguma que todas as coisas visíveis ao seu redor sejam
relação entre pedras encontradas em algum lugar, amontoadas vistas por um animal dotado de sentido de visão, e nem que
na rua - e, portanto, vizinhos - e a forma dada, em contrapar- possam ser vistas. O espaço ao redor, mesmo o que é perceptí-
tida, na relação de uma planta para com as substâncias nutriti- vel "em si", não é ainda mundo! Essa era a concepção geral até
vas que se encontram na região de sua raiz no solo. Não há aqui as pesquisas sobre o meio ambiente (Umwelt) do biólogo Jakob
uma proximidade meramente espacial como fato objetivo, mas von Uexküll. Até então, tal como Uexküll mesmo formulou\
uma relação autêntica (no sentido original, nomeadamente, no
sentido ativo de inclusão): as substâncias nutritivas estão incluí- 1. Jakob von UEXKÜLL, Der unsterbliche Geist in der Natur, Hamburg, 19 38,
das no âmbito da vida da planta - a partir do interior autêntico p. 63.

24 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 25


"aceitava-se em geral que todos os anjnais dotados de olhos dotado de um órgão de busca equipado aparentemente para
percebiam os mesmos objetos". Uexkütr'descobriu que isso ocor- tal, pode encontrar um objeto que não corresponda ao princí-
re de modo totalmente diverso: "Os ambientes dos animais" pio de seleção desse .mundo a~imal) -'. es_sa realida~e-restrita
assim afirma Uexküll2, "não se identificam à ampla natureza'. (Ausschnitt-Wzrklzchkezt), determmada e limitada mediante a fi-
mas a um habitat estreito, escassamente mobiliado". Por exem- nalidade biológica do indivíduo ou da espécie, é denominada
plo: deveríamos pensar que uma gralha poderia, pelo fato de por Uexküll meio ambiente (em oposição a "ao redor" [Umge-
possuir "olhos na cabeça", ver um gafanhoto, para ela um ob- bung]; em oposição também a mundo [Welt]). O campo de rela-
jeto especialmente desejado, sempre que o recebesse à vista ou, ção do animal não é o seu ao redor, menos ainda o seu mundo,
dizendo de modo mais cuidadoso, sempre que aparecesse dian- mas seu "meio ambiente" neste sentido determinado: um mun-
te de seus olhos. Mas não é isso que ocorre! Ocorre na verdade do no qual algo é deixado de fora, um meio recortado, no qual
o seguinte (cito novamente Uexküll): "A gralha é completamen- seu possuidor ao mesmo tempo está adaptado e trancado.
te incapaz de ver um gafanhoto imóvel[... ] Vamos supor aqui, Talvez alguém se pergunte agora o que tudo isso tem a ver
primeiramente, que a forma do gafanhoto em repouso é bem com nosso tema "que é filosofar?". A relação, porém, não é tão
conhecida pela gralha, mas não pode reconhecê-lo devido à distante e indireta quanto parece. Estamos perguntando sobre
grama que se lhe sobrepõe, tal como nós temos dificuldade de 0 mundo do homem, e este é o aspecto sob o qual o conceito de
reconhecer uma forma a partir de imagens ocultas em outras meio ambiente de Uexküll se torna diretamente interessante,
imagens (Vexierbilder). Somente no salto é que a forma, segun- particularmente porque, segundo a opinião de Uexküll, nosso
do essa concepção, se livra das imagens secundárias. Após ou- mundo humano "de maneira alguma pode pretender ser mais
tras experiências, no entanto, deve-se supor que a gralha não real que o mundo da percepção dos animais" 4 . Portanto, o ho-
reconhece de modo algum a forma do gafanhoto em repouso, mem a princípio está limitado, do mesmo modo que o animal,
mas só quando a forma está em movimento. Isso explicaria o a seu meio ambiente, ou seja, ao meio restrito que foi seleciona-
imobilismo de muitos insetos. Se a forma em repouso não está do do ponto de vista da adequação a fins biológicos. Também
presente em absoluto no mundo perceptivo do inimigo perse- o homem não poderia perceber algo colocado fora desse meio
guidor, então, pelo imobilismo escapam em segurança do cam- ambiente e "nem mesmo encontrar pela busca" (como uma
po de visão do inimigo e não podem nem ser encontrados por gralha não pode encontrar um gafanhoto em repouso). Poder-
meio de busca"3 • se-ia, certamente, indagar: como é possível que tal ser, limitado
Esse meio restrito (Ausschnittmilieu), no qual o animal se a seu meio ambiente, preso a ele, poderia empreender pesquisa
encontra, por um lado, totalmente adaptado, por outro, total- sobre o meio ambiente?
mente preso (de tal modo que não pode de modo algum ultra- No entanto, não pretendemos provocar polêmicas. Vamos
passar o limite - pois "nem sequer pela procura", ainda que deixar esse ponto num primeiro momento e indagar, voltando
nosso olhar para o homem e para o mundo que lhe é ordenado,
de que espécie e de que força é a capacidade de relação do ser
2. lbid., p. 76.
3. lo., Streifzüge durch die Umwelten von Tieren und Menschen Berlin 1934
p. 40. ' ' '
4. lo., Die Lebenslehre, Potsdam/Zürich, 1930, p. 131.

26 i que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 27


humano? Dissemos que a capacidadJ:Ae percepção dos ani- ern certo sentido tudo, o todo. "Em certo sentido": nomeadamen-
mais é, em contraposição ao mundo vegetal, uma força de rela- te a alma é de tal modo tudo na medida em que é capaz de, conhe-
ção nova e mais ampla. Não se deve talvez agora reconhecer a cendo, se colocar em relação com a totalidade dos seres (e conhecer
maneira própria do homem, há muito denominada capacidade algo significa: tornar-se realmente idêntico ao que é conhecido).
de conhecimento espiritual, como um modo novo, não realizá- A alma espiritual está, assim afirma Tomás de Aquino em Sobre
vel no campo da vida vegetal e animal, de se colocar em rela- a verdade, essencialmente disposta a "convenire cum omni ente"6 ,
ção? E a essa capacidade de relação, essencialmente diferente, convirá conformar-se com todo os seres, a entrar em relação com
não está associado também um campo de relação, isto é, um a totalidade daquilo que possui ser. "Qualquer outro ser possui
mundo com dimensões essencialmente de outro tipo? Deve-se somente uma participação fragmentária no ser", enquanto o ser
responder a essa questão que, de fato, a tradição filosófica do dotado de espírito "é capaz de apreender o ser total" 7 • Na medida
Ocidente compreendeu a faculdade do conhecimento espiri- em que há espírito, "é possível que em um único ser a perfeição
tual, e justamente a definiu como faculdade de se colocar em do todo completo possua existência (Dasein)" 8 •
relação com a totalidade das coisas existentes. Como foi dito, Eis pois a afirmação da tradição ocidental: possuir espíri-
isso não significa uma mera característica, mas uma determi- to, ser espírito, ser espiritual, tudo isso significa: existir em meio
nação essencial, uma definição. O espírito, segundo sua essên- à realidade total, voltado à da totalidade do ser, vis-à-vis de
cia, não é determinado tanto pela característica da não-cor- l'univers. O espírito não vive "num mundo" ou em "seu" mun-
poreidade, mas primariamente pela capacidade de relação dire- do, mas "no" mundo. Mundo no sentido de visibilia omnia et
cionada à totalidade do ser. Espírito significa uma faculdade invisibilia [totalidade do visível e do invisível].
de relação com tal amplidão e tal abrangência de força, que o Espírito e realidade total são conceitos recíprocos, que res-
campo de relação associado a ele a princípio ultrapassa as fron- pondem um ao outro. Não se pode "possuir" um sem o outro.
teiras do meio ambiente. Pertence à natureza do espírito que
A tentativa de atribuir ao homem superioridade sobre o meio
seu campo de relação seja o mundo. O espírito não possui meio
ambiente, de dizer que o homem possui um mundo (não um
ambiente, possui mundo. É da natureza do ser espiritual rom-
meio ambiente), sem porém falar de sua espiritualidade; mais
per os limites do meio ambiente e, portanto, superar ambas as
que isso, a tentativa de afirmar que esse fato (de que o homem
coisas: a adaptação e a limitação (aqui já aparece aquilo que é,
possui mundo e não um mero meio ambiente) não tem nada a
ao mesmo tempo, libertador e ameaçador, dado diretamente
ver com o outro fato de que o homem é um ser dotado de
com a essência do espírito).
espírito - essa tentativa é empreendida no livro muito comen-
No livro de Aristóteles Sobre a alma5 se lê: "Agora pretende-
tado e abrangente de Arnold Gehlen O homem. Sua natureza e
mos, resumindo o que foi dito até agora sobre a alma, enunciar
sua posição no mundo9 • Gehlen volta-se, com razão, contra Uexküll:
mais uma vez: a alma é no fundo todo o ser" - um enunciado
que se tornou na antropologia da alta Idade Média uma locução
francamente estabelecida: anima est quodammodo omnia, a alma é 6. TOMÁS DE AQUINO, De Veritate 1,1.
7. lo., Summa contra Gentiles 3, 112.
8. lo., De Veritate 2,2.
5. III, 8.431 b 21. 9. Der Mensch. Seine Natur und seine Stellung in der Welt, Berlin, 1940.

28 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 29


o homem não está, como um animal, Jleso em um meio am- Para a antiga ontologia, pertence à essência do ser estar ao
biente, o homem é livre do meio ambiente e aberto ao mundo. alcance da alma espiritual. "Possuir ser" significa a mesma coi-
Todavia, continua Gehlen, essa diferenciação entre o animal sa que "estar no campo de relação da alma espiritual". Ambos
enquanto ser do meio ambiente e o homem enquanto ser aber- os enunciados querem dizer o mesmo estado das coisas. Este e
to ao mundo não se baseia "na característica [...] do espírito não outro é, de fato, o sentido da antiga frase, cujo entendi-
10 mento perdeu-se de nós totalmente: todo ente é verdadeiro
[ ... ]" . No entanto, justamente essa capacidade de possuir mun-

do é o espírito! Espírito segundo sua essência: faculdade de (omne ens est verum), bem como da outra frase de mesmo signi-
compreensão para o mundo! ficado: "ente" e "verdadeiro" são conceitos permutáveis. O que
Para a filosofia mais antiga - para Platão, Aristóteles, Agos- significa "verdadeiro" no sentido da verdade-coisa, da verdade
tinho, Tomás - o co-pertencimento dos conceitos "espírito" e da coisa? "Uma coisa é verdadeira" significa: é conhecida e
"mundo" (no sentido de realidade total) é tão estreita e profun- cognoscível, conhecida mediante o espírito absoluto, cognoscível
damente ancorado em ambos os membros que não só é verda- para o espírito não-absoluto. (Infelizmente não é possível aqui
deira a frase "espírito é relação para com a totalidade dos se- fundamentar essa interpretação de modo mais detalhado 11 .)
res", como também a outra afirmação, de que todas as coisas Qualidade de ser conhecido e cognoscível - o que é isso senão
existentes estão em relação com o espírito, e isso em um senti- referência ao espírito cognoscente! E quando, portanto, a filo-
do muito preciso que mal ousamos, num primeiro momento, sofia antiga diz que pertence à essência das coisas existentes
levar ao pé da letra. Não só pertence à essência do espírito que serem conhecidas e cognoscíveis, que não há de modo algum
o seu campo de relação é a totalidade das coisas existentes, mas entes que não sejam conhecidos ou cognoscíveis (todo ente é
também que pertence à essência das coisas existentes estarem verdadeiro!); quando ainda a filosofia antiga diz mesmo que os
no campo de relação do espírito. Ainda mais: para a filosofia conceitos "ente", por um lado, e "conhecido, cognoscível", por
outro, são permutáveis, que um pode tomar o lugar do outro
antiga significa inclusive o mesmo se digo "as coisas possuem
de tal modo que é o mesmo se digo "as coisas possuem ser" ou
ser" ou se digo "as coisas estão no campo de relação do espírito,
se digo "as coisas são conhecidas ou cognoscíveis" - então, a
estão referidas ao espírito" -, se bem que, obviamente, não se
filosofia antiga enunciou com isso justamente que está na es-
trata de uma espiritualidade "que paira livremente" como algo
sência da coisa mesma ser referida ao espírito. (Esse é o ponto
abstrato, mas trata-se de espírito pessoal, de capacidade de re-
importante para nós no contexto de nossa questão.)
lação fundada em si mesma. E de modo algum se trata, no
Resumamos, portanto: o mundo associado ao ser espiritual
entanto, somente de Deus, mas também inteiramente do espí-
é a totalidade das coisas existentes. Isso equivale a dizer que essa
rito criado, não absoluto, do espírito humano!
associação pertence tanto à essência do espírito - espírito é a
faculdade de compreensão da totalidade do ser - como à essên-
10. Ibid., p. 24. Impressionado com a crítica aqui exposta, Gehlen mo- cia das coisas existentes - ser significa estar remetido ao espírito.
dificou sua posição nas edições posteriores. Agora está dito que o conceito
estrutural do homem se baseia "não somente na característica do entendi-
mento" (Gesammtausgabe, ed. K.-S. Rehberg, Frankfurt am Main, 1993; itáli- 11. Cf. Josef PIEPER, Wharheit, der Dinge. Eine Untersuchung zur
co do editor). (Nota do editor alemão) Anthropologie des Hochmittelalters, München, 1948 (Werke 5).

30 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 31


Vimos que existem graus de "muriâps": o inferior, o mun- sas existentes só pode ser atributo de um ser fundado em si
do das plantas, é limitado já espacialmente à proximidade de mesmo, não um quê, mas um quem, um eu-mesmo, uma pessoa.
contato; sobre este sobrepõe-se o meio ambiente dos animais; Agora chegou o momento de lançar um olhar retrospecti-
por fim, abrangendo por sobre todos esses mundos pequenos vo à questão da qual partimos. Eram duas, uma mais próxima,
e parciais, o mundo associado ao espírito, o mundo autêntico outra mais distante. A mais próxima: de que espécie é o mundo
enquanto totalidade do ser. A essa hierarquia dos mundos cor- do homem? A mais distante: que é filosofar?
respondem os campos de relação, portanto, vimos que há uma Antes, porém, de retomá-las, mais uma nota sobre a estru-
hierarquia das capacidades de relação: quanto mais abrangente tura do mundo associado ao espírito. Não é somente por meio
a faculdade de relação, tanto mais extensamente dimensio- da ampla distensão espacial que o mundo do ser espiritual se
nado é o campo de relação, o "mundo" subordinado. A essa diferencia do meio ambiente do ser não-espiritual (em geral
seqüência gradual dupla deve-se acrescentar agora um terceiro não se presta atenção a isso no debate sobre mundo e meio
elemento constitutivo: o fato de que à capacidade de relação ambiente). Não é somente por meio da "totalidade das coisas",
mas simultaneamente por meio da "essência das coisas" que o
mais forte corresponde um grau mais elevado de interioridade;
mundo associado ao espírito se constitui. Por isso é que o ani-
que, portanto, a faculdade de relação é mais abrangente e mais
mal está limitado em um meio recortado, pois a essência das
ampla na mesma medida em que o portador da relação é "mais
coisas se mantém oculta para eles. E somente porque o espírito
dotado de interioridade"; que à faculdade de relação mais bai-
é capaz de alcançar a essência das coisas é-lhe dado apreender a
xa corresponde não só a forma mais baixa de mundo, mas
sua totalidade - cujo contexto a antiga ontologia compreendeu:
também o menor grau do ser-em-si, enquanto ao espírito como
assim como o universo, também a essência das coisas é "univer-
faculdade de relação dirigida para a totalidade do ser deve sal". Tomás de Aquino afirma: "porque é capaz de apreender o
também corresponder o modo mais supremo do ser-em-si. universal, a alma espiritual possui a capacidade do infinito" 12 •
Quanto mais abrangente a capacidade de se remeter ao mun- Quem, ao conhecer, alcança a essência universal, a essência to-
do do ser objetivo, tanto mais profundamente a capacidade de tal das coisas, adquire justamente a partir disso um ponto de
tal abrangência está ancorada no interior do sujeito. Onde vista de onde a totalidade e o todo do ser, de todas as coisas
existe um grau mais elevado de "amplidão de mundo", especial- existentes tornam-se acessíveis e visíveis. No conhecimento es-
mente de orientação para a totalidade, aí também é alcançado piritual atinge-se a posição de um posto avançado ou ainda
o grau máximo de fundação-em-si-mesmo, que é o próprio do alcançável, a partir do qual o campo do universo pode ser visto.
espírito. Assim, ambas as coisas juntas perfazem a essência do Aqui se abre um campo para o qual só podemos lançar um
espírito: não somente a faculdade de relação dirigida ao totum olhar de passagem, mas que conduz ao centro de uma doutrina
do mundo e da realidade, mas também a capacidade exterior filosófica do ser, do conhecer, do espírito.
do estar em si mesmo, do em-si-mesmo, da independência, da Agora, no entanto, voltemos às questões que nos propuse-
autonomia - precisamente aquilo que na tradição ocidental mos responder. Primeiro, a questão mais próxima: de que es-
desde sempre é caracterizado como ser pessoa, como persona-
lidade. Possuir um mundo, ser remetido à totalidade das coi- 12. Suma teológica I, 76, 5 ad 4.

32 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 33


pécie é o mundo do homem? É o mun!Jo associado ao espírito Se, no entanto, é assim, se o homem essencialmente "não é só
o mundo do homem? Deve-se responéfe"r: o mundo do homem espírito", se o homem é, não p_or causa de -~m fracasso, nem de
é a realidade total, o homem vive em meio e em face da totali- um retrocesso de seu ser autêntico, mas positivamente e do modo
dade das coisas existentes, vis-à-vis de l'univers - enquanto e na mais genuíno, um ser no qual o campo da vida vegetal, animal
medida em que o homem é espírito! No entanto, ele não só não e espiritual se ligam em uma unidade, então o homem também
é puramente espírito, mas é espírito finito. Assim, a essência vive essencialmente não só em face da realidade total, do mundo
das coisas e a totalidade destas não lhe são dadas de maneira total das essências, mas seu campo de relação é um entrelaça-
definitiva e perfeita, mas "em esperança ". Voltaremos a isso mento entre "mundo" e "meio ambiente", entrelaçamento ne-
adiante. cessário, de acordo com a natureza do homem. Porque o ho-
Antes de mais nada, o homem não é espírito puro. Pode-se mem não é espírito puro, não pode viver unicamente "nas estre-
enunciar essa frase com diversos acentos. É usual enunciá-la no las", vis-à-vis de l'univers. Pelo contrário, ele necessita do teto so-
modo de lamento - uma acentuação que costuma ser tomada, bre a cabeça, precisa do meio ambiente próximo e familiar do
por cristãos e não-cristãos, como especificamente cristã. A frase cotidiano, carece da proximidade sensível do concreto, da ade-
pode também ser enunciada de tal modo que diga: com certeza quação na forma justa das relações costumeiras - e~ uma p~­
o homem não é espírito puro, mas o "homem autêntico" é a lavra: pertence a uma vida realmente humana tambem o meio
alma espiritual. Essas opiniões, todavia, não têm apoio nenhum ambiente (no sentido em que este se diferencia de mundo).
na tradição doutrinal clássica no Ocidente cristão. Em Tomás Todavia, pertence ao mesmo tempo à essência do homem
de Aquino há, a esse respeito, uma formulação muito aguda e corpóreo-espiritual o fato de que a alma espiritual informa os
pouco conhecida. Ele faz a si mesmo a seguinte objeção: "A âmbitos do vegetativo e do sensitivo, ~e tal modo que até a
finalidade do homem é o assemelhar-se perfeitamente a Deus. alimentação do homem é algo muito diferente da dos animais
Mais do que a alma unida ao corpo, será porém a alma separa- (sem contar que no âmbito humano existe o "banquete", que é
da do corpo a mais semelhante a Deus, que é incorpóreo. E, por algo inteiramente espiritual). A alma espiritual informa de tal
isso, as almas no estado de beatitude última serão separadas do
maneira todos os demais âmbitos que mesmo quando o ho-
corpo". Essa objeção revela a tese de que o homem autêntico
mem "vegeta" isso só é possível em função do espírito (a planta
seria a alma espiritual, tese que, por assim dizer, é coroada com
não "vegeta", assim como o animal!). E mesmo esse não-huma-
o brilho tentador de um argumento teológico. A essa objeção,
no a auto-inclusão do homem no meio ambiente (quer dizer,
responde Tomás de Aquino da seguinte maneira: "A alma uni-
no' mundo restrito determinado pelos fins vitais imediatos),
da ao corpo é mais semelhante a Deus do que a alma separada,
mesmo essa degeneração só é possível por força de uma dege-
porque possui de modo mais perfeito a sua natureza própria" 13
neração espiritual. Humano, ao contrário, significa conhecer além
- uma frase não tão simples de ser compreendida, na qual está
das estrelas, perceber além do invólucro da adequação costu-
afirmado não só que o homem é corpóreo, mas até mesmo, em
meira ao cotidiano a totalidade das coisas existentes, além do
certo sentido, que a própria alma é corpórea.
meio ambiente o mundo que o abrange.
Com isso, porém, demos de modo inteiramente inespera-
13. TOMÁS DE AQUINO, De potentia 5, 10, ad 5. do o passo para a primeira questão, para nossa questão propria-

34 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 35


mente dita: que é filosofar? Filosofar ~nifica justamente isto: poder ser formulada, refletida e respondida (na medida em que
experimentar que o meio ambiente próximo, determinado pe- uma resposta é possível) sem que simultaneamente "Deus e o
los fins vitais imediatos, pode ser abalado, mais, deve ser abala- mundo" entrem no jogo, ou seja, a totalidade daquilo que é.
do reiteradamente por meio do chamado inquietante do "mun- Tentemos uma resposta de modo ainda mais concreto. A
do", da realidade total que espelha as eternas essências das coi- questão "o que fazemos aqui e agora?" pode, evidentemente,
sas. Filosofar significa (havíamos indagado: para onde vai o ato ser entendida de modos diferentes. Ela pode também ser enten-
filosófico ao ultrapassar o mundo do trabalho?): ultrapassar o dida filosoficamente. Vejamos! A questão pode ser formulada
meio restrito do mundo do trabalho na direção do vis-à-vis de de tal modo que se espere uma resposta de tipo eminentemente
l'univers. Trata-se de um passo que conduz à amplidão das es- técnico-organizatório. "O que está acontecendo aqui?", "Aqui
trelas, que não são um teto sobre a nossa cabeça. Um passo que está ocorrendo uma conferência, no âmbito da Semana Univer-
se mantém constantemente aberto para o retorno, pois o ho- sitária de Bonn". Trata-se de um enunciado distinto e orienta-
mem não pode viver assim por muito tempo. Quem pretende- dor, inserido em um mundo (ou antes: meio ambiente) clara-
ria levar a sério a possibilidade de abandonar completa e defi- mente limitado e completamente claro. Essa resposta é enuncia-
nitivamente o mundo do trabalho da criada trácia, sem aban- da com um olhar voltado para o que está mais próximo. Mas a
donar a própria realidade humana! Aqui vale exatamente o questão pode também ser entendida de outro modo. Poderia
mesmo que Tomás de Aquino afirmou a respeito da vita con- acontecer que o indagador não se satisfizesse com tal resposta.
templativa: esta é genuinamente algo sobre-humano: "non proprie "O que fazemos aqui e agora?": alguém fala, outros ouvem a
humana, sed superhumana" [não propriamente humana, mas so- palavra falada e os ouvintes "entendem" o que se diz. Desenro-
bre-humana] 14. Com certeza, o homem mesmo é algo sobre- la-se em muitos mais ou menos o mesmo processo mental. O
humano. O homem supera infinitamente o homem, diz Pascal. que se diz é apreendido, pensado, refletido, aceito, rejeitado,
A tentativa de uma definição completa passa longe do homem. admitido com restrições, introduzido no próprio tecido de pen-
Não pretendemos aqui continuar desenvolvendo essas samentos. Essa questão visa a uma resposta das ciências parti-
idéias, que aparentemente chegam próximo do devaneio, mas culares. Pode ser entendida de tal modo que a fisiologia dos
reformular de modo inteiramente concreto e, por assim dizer, sentidos e a psicologia (da percepção, da apreensão, do apren-
palpável a questão "que é filosofar?", a partir do que até agora dizado, da contenção na memória etc.), as ciências particulares
dissemos, e tentar responder em uma nova aproximação. sejam chamadas e sejam suficientes para a resposta. Tal respos-
Como se diferencia uma questão filosófica de uma não- ta estaria num mundo mais amplo e superior ao da resposta
filosófica? Filosofar significa, tal como dissemos, voltar o olhar puramente técnico-organizatória anterior. Mas a resposta das
para a totalidade do mundo. É, portanto, a questão filosófica (e ciências particulares não estaria ainda no horizonte da realida-
somente ela) que tem expressa e formalmente por tema a totali- de total, poderia ser dada sem que simultaneamente se precisas-
dade do ser, o todo das coisas existentes? Não! Mas, o próprio e se falar "de Deus e do mundo". Se, no entanto, a questão "o
o diferenciador de uma questão filosófica é o fato de ela não
que fazemos aqui e agora?" for entendida filosoficamente, então
não será possível não falar "de Deus e do mundo". Não será
14. lo., De virtutibus. cardinalibus 1. possível se a questão for entendida de tal modo que ao mesmo

36 1 que é filosofar? o objetivo da filosofia 1 37


tempo se indague a respeito da essênçl: do conhecer, da verda-
de ou mesmo apenas da essência do ensinar. O que significa,
em absoluto e em seu fundamento último, ensinar? Alguém
pode dizer: um homem não pode em absoluto realmente ensi-
nar; assim como quando um doente se recupera, não foi 0
médico que o curou, mas a natureza cuja força curativa (talvez) MEIO AMBIENTE E MUNDO
o médico apenas libertou. Outro pode dizer: É Deus quem en-
sina interiormente - por ocasião do aprendizado humano.
Sócrates poderia dizer: o mestre só faz com que o aprendiz,
recordando-se, "adquira o saber a partir de si mesmo'', "não há
aprendizado, somente reminiscência" 15 • Finalmente, outro po-
deria afirmar: nós, humanos, estamos todos diante da mesma
realidade; o mestre aponta para ela, o aprendiz, o ouvinte então
a vê por si mesmo.
O que fazemos aqui, o que está em jogo? Algo organizatório Dissemos que é próprio do homem necessitar adaptar-se ao "meio
no quadro de uma série de conferências. Algo apreensível e ambiente" e, ao mesmo tempo, estar orientado para o "mundo",
investigável por meio da fisiologia e da psicologia. Algo entre para a totalidade do ser; e que é da essência do aro filosófico
Deus e o mundo. transcender o "meio ambiente" e penetrar no "mundo".
Eis, portanto, o que é próprio e diferenciador de uma ques- Isso, no entanto, não pode significar que exista aí, por as-
tão filosófica: que nesta vem à tona aquilo que perfaz a essên- sim dizer, espaços separados e que o homem possa sair de um
cia do espírito, o convenire cum omni ente, a conveniência com e adentrar no outro. Não é assim, como se existissem coisas
tudo o que existe. Não se pode questionar e pensar filosofica- caracterizadas por possuírem seu lugar no "meio ambiente" e
mente sem que entre em jogo a totalidade do ser, o todo das outras que não ocorrem no "meio ambiente", mas somente na
coisas existentes, "Deus e o mundo". outra região, a do "mundo". Obviamente, meio ambiente e mun-
do (por mais que utilizemos estes conceitos) não são duas regiões
separadas da realidade, de modo que o indagador filosófico
saísse de uma região e entrasse na outra! O filosofante não vira
o rosto quando, no ato filosófico, transcende o meio ambiente
do cotidiano do trabalho. Não tira o olhar das coisas do mun-
do do trabalho, das coisas concretas, sujeitas a fins, manuseáveis
do cotidiano. Não olha em outra direção a fim de ali então
enxergar o mundo universal das essências.
Não. Antes é para esse mundo mesmo, que se encontra
15. PLATÃO, Mênon 85 d 4; 82 a ls. diante de nossos olhos, visível, palpável, que a contemplação

38 1 que é filosofar? 1 39
filosófica se dirige. Porém, esse mundC?.&~ssas coisas, esse esta- tona. Trata-se exatamente desse estado de coisas: nas próprias
do de coisas são questionados de um modo especial. São ques- coisas que estão cotidianamente à mão torna-se perceptível o
tionados em sua essência última, universal, total, e assim o rosto mais profundo do real (não numa esfera do "essencial"
horizonte da questão se torna horizonte da realidade total. A destacada contra o cotidiano, ou como quer que se a chame);
questão filosófica dirige-se inteiramente a "isso" ou "aquilo" portanto, diante do olhar dirigido às coisas encontradas na
que está diante dos olhos, não a algo que esteja "fora do mun- experiência cotidiana se apresenta o não-cotidiano, o que não é
do" ou "em outro mundo" além do mundo da experiência do mais óbvio nessas coisas. É exatamente a esse estado de coisas
dia-a-dia. No entanto, a questão filosófica pronuncia: o que é que está associado aquele acontecimento interior no qual se
"isso" em geral e em última análise? Platão 1 diz: o que o filósofo colocou há muito o início do filosofar: a admiração.
anseia saber não é se te causo injustiça ou tu a mim, mas o que "Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que
é justiça em geral; não é se um rei proprietário de muito ouro tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens"
é feliz ou não, mas o que é dominação, felicidade, miséria em - exclama o jovem matemático Teeteto depois de Sócrates, o
geral - em geral e em última análise. questionador astuto e benévolo, surpreendente e paralisante
O questionar filosófico, portanto, dirige-se inteiramente (paralisado pela admiração!). E no diálogo Teeteto de Platão 2,
para o que se encontra cotidianamente diante dos olhos. Po- continua a resposta irônica de Sócrates: "Estou vendo, amigo,
rém: isso que se encontra diante dos olhos torna-se, para quem que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a
indaga daquele modo, transparente e translúcido, perde sua admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem
compacidade, sua conclusividade aparente, sua obviedade. As outra origem a filosofia". Neste ponto, na serenidade matinal e
coisas mostram uma face estranha, desconhecida, não-familiar totalmente sem cerimônia, quase de passagem, foi trazido à
e profunda. O Sócrates interrogador, que sabe tirar de repente palavra pela primeira vez o pensamento que, atravessando a
a obviedade das coisas, compara-se ele mesmo com o peixe- história da filosofia, se tornou um lugar-comum: o começo da
elétrico cujo choque faz paralisar. Todo dia falamos que este é filosofia é a admiração.
"meu" amigo, esta é "minha" esposa, "minha" casa, que, por- No fato de que o filosofar começa na admiração, eviden-
tanto, "possuímos" ou "temos" tudo isso. De repente, ficamos cia-se, por assim dizer, o caráter fundamentalmente não-bur-
estupefatos: "possuímos" de fato todos esses "bens"? Podem, guês da filosofia. Pois a admiração é algo não-burguês (seja-nos
em geral, ser possuídos? O que significa em geral e em última permitido, não inteiramente sem constrangimento, recorrer a
análise possuir algo? essa terminologia que se tornou corrente). O que significa o
Filosofar significa: distanciar-se, não das coisas do dia-a- emburguesamento em sentido espiritual? Antes de tudo, o se-
dia, mas das interpretações correntes, das valorações corriquei- guinte: que alguém tome o meio ambiente próximo, determi-
ramente válidas dessas coisas. E isso não em função de alguma nado pelas finalidades da vida, de modo tão definitivo e com-
decisão de se diferenciar, de ser "diferente" da maioria, mas pacto, a ponto de as coisas que encontra não serem mais capa-
pelo fato de que de repente uma nova face das coisas vem à zes de se tornar transparentes. O mundo das essências, maior,

1. ID., Teeteto, 175 e lss. 2. Ibid., 155 e-d.

40 1 que é filosofar? meio ambiente e mundo 1 41


mais profundo e mais autêntico, de .jício "invisível", não é poeta, assim fecha Goethe, aos 70 anos, um pequeno poema
mais pressentido. O admirável não ocorre mais, não surge mais: (Parabase) com o verso: "Existo para admirar"; e aos 80 anos diz
o homem não é mais capaz de se admirar. O sentido burguês, para Eckermann3 : "o máximo que o homem pode atingir é a
que se tornou embotado, acha tudo óbvio. O que é, porém, admiração".
verdadeiramente óbvio? É por acaso óbvio que existimos? É Essa "não-burguesice" do filósofo e do poeta - na medida
óbvio que existe a visão? Quem está preso no cotidiano, no em que conservam o poder de admiração em forma tão pura e
cotidiano interior, não pode fazer esses questionamentos por- forte - inclui em si com certeza o perigo do desarraigamento
que não consegue (quando com os sentídos despertos ou, no do mundo cotidiano do trabalho. A alienação do mundo e da
máximo, quando atordoado) esquecer de uma vez os fins ime- vida é de fato, por assim dizer, o perigo de profissão tanto do
diatos da vida. Mas é exatamente isso que caracteriza quem se filósofo como do poeta (todavia, não há propriamente filósofo
admira: para ele, para o homem surpreendido pela face profun- profissional, nem poeta profissional - o homem não pode viver
da do mundo, os fins imediatos da vida silenciam, pelo menos assim por muito tempo, como já foi dito). Admirar-se não tor-
quando olha surpreendido para a face admirável do mundo. na hábil; pois admirar-se significa ser abalado. Quem se decide
Assim, é aquele que se admira, somente ele, quem na forma a existir sob o signo do antigo grito de admiração: "por que
pura realiza aquela atitude originária para com o ser, denomi- afinal existe o ser?", terá de se precaver contra a ameaça de
nada desde Platão theoria, a percepção puramente receptiva da alienação que lhe vem do mundo do trabalho. Aquele para quem
realidade, não turbada por qualquer apelo intermediário da tudo se torna mirandum corre o risco de se esquecer do trato
vontade. Só há theoria enquanto o homem não se torna cego manipulador cotidiano com estas realidades que lhe vêm ao
para o admirável que há no fato de que algo existe. Pois o que encontro.
suscita a admiração do filosófico não é o que "nunca se viu", o O que é certo, no entanto, é o seguinte: o poder de admira-
anormal e sensacional, capaz de provocar alo parecido com a ção pertence às supremas possibilidades da natureza humana.
verdadeira admiração num espírito que se tornou embotado. Tomás de Aquino vê aqui quase uma prova de que só na visão
Quem necessita do inusitado para chegar à admiração mostra- de Deus o homem pode ser saciado. E vice-versa: vê nessa orien-
se justamente nisso como alguém que perdeu a capacidade de tação para o conhecimento do fundamento absoluto do mun-
dar a resposta certa ao mirandum do ser. A necessidade de sen- do a causa de o homem ser capaz de se admirar. Tomás defende
sação, mesmo adorando aparecer sob a máscara da Boheme, é a opinião de que na admiração começa um caminho em cujo
um sinal infalível da perda da autêntica força de admiração e, fim se encontra a visio beatifica, a visão beatificante da causa
portanto, da humanidade emburguesada. última. A prova de que a natureza humana não está disposta a
Perceber no que é cotidiano e familiar o verdadeiramente nada menor que a esse fim é o fato de o homem ser capaz de
estranho e não-cotidiano, o mirandum: este é o começo do filo- experimentar o mirandum da criação, ser capaz de se admirar.
sofar. E nisso, tal como Aristóteles e Tomás de Aquino afir- O abalo, sentido por aquele que se admira, o abalo do até
mam, o ato filosófico é aparentado ao ato poético. Ambos, o então óbvio, que agora de repente, num instante, perde sua
filósofo e o poeta, teriam a ver com o admirável, com aquilo
que gera e promove admiração. Aliás, no que diz respeito ao 3. GOETHE, Gesprdche mit Eckermann, 18/2/1829.

42 1 que é filosofar? meio ambiente e mundo 1 43


obviedade compacta, esse abalo pode, .mo foi dito, desarrai- ta desilusão - que, no fundo é algo positivo: a libertação da
gar aquele que se admira. Porém, não· é só dessa forma que ilusão - para aquele que admira, pois as obviedades perdem
perde a segurança do trato cotidiano do trabalho (isso no fun- sua validade até então indubitada e fica claro que elas não são
do é algo inofensivo), mas também no sentido perigoso de que definitivas. No entanto, o sentido da admiração é a experiência
a ele, como cognoscente, não apenas como agente, o chão sob os de que o mundo é mais profundo, mais amplo, mais misterioso
seus pés começa a faltar. do que parece ao entendimento comum. O sentido interno da
É estranho que, sobretudo na filosofia moderna, quase só admiração vai na direção do mistério. Ela não visa à provoca-
essa face da admiração tenha sido vista, de modo que a antiga ção da dúvida, mas ao despertar do conhecimento de que o ser
afirmação da admiração como o começo da filosofia tenha se enquanto ser é incompreensível e misterioso - que o ser mes-
convertido na afirmação de que no início da filosofia encontra- mo é um mistério, no sentido genuíno: não mera inviabilidade,
se a dúvida. não absurdo, nem mesmo propriamente obscuridade. Mais que
Assim afirma Hegel em suas Lições sobre a História da Filosofia, isso: mistério significa que uma realidade é incompreensível
quando se refere a Sócrates e a seu método de conduzir o in- porque sua luz é inesgotável e inexaurível. É isso que experimen-
terlocutor à admiração diante do aparentemente óbvio, dizendo ta propriamente aquele que se admira.
que a confusão é o elemento principal: "Esse fato meramente Nesse ponto fica evidente que admirar e filosofar estão
negativo é o ponto capital. É com a confusão que a filosofia ligados um ao outro num sentido muito mais essencial do que
começa em absoluto, uma confusão que ela produz para si mes- à primeira vista parece estar expresso na frase "a admiração é o
ma: é preciso duvidar de tudo, abandonar todos os pressupostos início da filosofia". A admiração não só é o começo da filosofia
a fim de possuí-los novamente, gerados então pelo conceito" 4 • - no sentido de initium, início, primeiro estágio, grau anterior.
Em plena sintonia com essa linha, no fundo cartesiana, Windel- Mais do que isso, admiração é principium, origem interna e per-
band, em sua famosa Introdução à filosofia, praticamente germaniza manente do filosofar. Não é que o filósofo, ao filosofar, saia
a palavra grega 8avµáÇnv ao traduzi-la como o "enlouquecimento "para fora da admiração" - ele, justamente, não sai da admira-
do pensamento em si mesmo" 5 • (Chesterton, note-se aqui de ção, a não ser que deixe de filosofar em sentido autêntico. A
passagem, a respeito dessa "ausência de pressuposto", cunhou a essência do filosofar é praticamente idêntica à essência da ad-
seguinte afirmação: há uma forma especial de loucura que con- miração. Por isso, já que levantamos a questão "que é filoso-
siste em alguém perder tudo, menos a razão.) far?", precisamos ainda examinar mais atentamente a essência
Será que o sentido verdadeiro da admiração realmente se da admiração.
encontra no desarraigamento, na evocação da dúvida? Ou an- Na admiração há algo negativo e algo positivo. O negativo
tes no fato de que um novo e mais profundo arraigamento se consiste em que aquele que se admira não sabe, não compreen-
torna possível e necessário? É certo que a admiração inclui cer- de, não conhece o que "está por trás"; como diz Tomás de
Aquino, "a causa daquilo a respeito do qual nos admiramos é-
nos oculta" 6 • Portanto, quem se admira não sabe; ou não sabe
4. HEGEL, Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie II, in Sdmtliche Werke
üubilauns-Ausgabe), ed. H. Glockner, Stuttgart, 1927ss., v. 18, p. 69.
5. W. WINDELBAND, Einleitung in die Philosophie, Tübingen, 1923, p. 6. 6. TOMÁS DE AQUINO, De potentia 6, 2.

44 1 que é filosofar? meio ambiente e mundo 1 45


perfeitamente, não compreende. Que.lf" compreende não se existência humana. A filosofia antiga entendia de fato a admi-
admira. Não se pode dizer de Deus que ele se admira, pois Deus r:ção como.algo d.istintivamente humano. O espírito absoluto
sabe tudo do modo mais perfeito. E mais: o que se admira não n:o s~ a~mira, pms não lhe cabe o negativo, porque em Deus
só não sabe, ele tem consciência de que não sabe, entende o nao h: nao-sa~er - somente quem não compreende se admira.
fato de não saber. Todavia, esse não é o não-saber da resigna- Tambem o animal não se admira, pois, como diz Tomás de
ção. Ao contrário, o que se admira é alguém que se põe a cami- Aquino, "não pertence à alma sensível se intranqüilizar em fun-
nho. À admiração pertence tanto que o homem silencie pasma- ção do.c~nhecimento das causas" 11 • No animal não há 0 aspec-
do por um instante como se ponha à procura. Em Tomás de to posltlvo da estrutura de esperança da admiração que é
Aquino, na Suma teológjca7 , a admiração é diretamente definida deseJO. d ' o
e saber. Só pode se admirar quem "ainda não" sabe.
mediante o desiderium sciendi, o anseio por saber, reivindicação Para os antigos a admiração era algo tão distintivamente
ativa por saber. humano, que se usou, nas disputas doutrinais cristãs um "ar-
Admiração, embora seja um não-saber, não é apenas não- gum~nto a par~ir da admiração:' como argumento p~ra a ver-
resignação, pois da admiração advém o deleite, como diz Aris- dadeira humanidade de Cristo. Ario negara a divindade de Cris-
tóteles8. A Idade Média repetiu-o: "omnia admirabilia sunt de- to. Apolinári~, ao contrário, formulou a tese: 0 Logos eterno
lectabilia"9, ou seja, tudo o que provoca admiração causa deleite. tomou em Cnsto o lugar da alma espiritual e ligou-se imedia-
Talvez até se ouse dizer: onde quer que se encontre deleite espi- tamente com, o corpo. (Não interessa aqui 0 aspecto teológico,
ritual, aí também deve-se encontrar o admirável, e onde quer no ·.entanto, e ~esses contextos teológicos que a intenção da
que se encontre capacidade de deleite, aí também se encontra a antiga on,tolog1a se. expressa como que "sob juramento"!)
faculdade de se admirar. O deleite daquele que se admira é o de . , ~ornas de Aqumo apre.sentou, contra a doutrina de Apo-
um iniciante, de um espírito voltado e tensionado sempre a lmano, segundo a qual a Cnsto não seria atribuível uma huma-
algo novo, inaudito. nida~e ~ompleta, de corpo e alma, o argumento a partir da
Nesta ligação entre positivo e negativo, porém, abre-se a adm1raçao. ~omás de.Aquino diz: a Sagrada Escritura (Lc 7,9)
estrutura de esperança da admiração, a forma construtiva da espe- narra que Cnsto admirou-se (na narrativa do centurião de Ca-
rança - própria justamente também do filosofar, assim como farnaum: "Senhor, eu não sou digno, mas dize somente uma
da própria existência humana. Somos essencialmente viatores, palavra [... ]", em seguida: "Jesus ouviu isso e admirou-se"·
caminhantes, "ainda não" somos. Quem poderia dizer que já tBavµCí~v). Se, porém, Jesus pôde se admirar, então, diz Tomá~
possui o ser que lhe cabe? "Não somos, esperamos ser", afirma de Aqumo, seria necessário admitir algo "fora da divindade do
Pascal1°. E no fato de que a admiração também possui a forma Verbo e.da alma sensível" (é própria a ambas a impossibilidade
construtiva da esperança, mostra-se o quanto ela pertence à da.admiração!), assim seria necessário admitir alguma coisa em
Cnsto pela qual a admiração lhe pertencesse, e esta seria: a mens
humana, "a alma espiritual humana" 12 • Somente para aquele
7. I, II, 32, 8.
8. ARISTÓTELES, Retórica I, 11, 1371 a 30ss.
9. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica I, II, 32, 8. 11. TOMÁS DE AQUINO, Contra gentiles 4, 33.
10. PASCAL, Pensées, n. 72 (segundo a numeração de L. Brunschvicg). 12. Ibid.

46 1 que é filosofar?
meio ambiente e mundo 1 47
que se ~dmira, isto é, somente para '1 poder espiritual de modo definitivo), por exemplo, quem é o agente de determina-
conhecimento, que não possui e não vê tudo de uma vez, a da doença infecciosa. A princípio é possível que um dia se pos-
realidade dada pelos sentidos pode se tornar transparente aos sa dizer: a partir de agora está provado cientificamente, sem
poucos e as suas profundezas mais essenciais podem se tornar objeções, que as coisas são assim e não de outro modo. Nunca,
cada vez mais evidentes. porém, uma questão filosófica (por exemplo, que é isso "em
Justamente esse algo distintivamente humano pertence absoluto e em última análise"? Que é doença em absoluto, que
também ao filosofar. "Nenhum deus filosofa ou deseja ser sá- é conhecer, que é o homem?) poderá ser respondida de modo
13
bio, pois já é", assim diz Diotima, no Banquete de Platão, "nem definitivo e conclusivo. "Nenhum filósofo jamais foi capaz de
também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios ... Não compreender completamente a essência nem mesmo de uma
deseja, portanto, quem não imagina ser deficiente naquilo que mosca", d"1z T ornas, d e Aqumo
. 14, d e quem também provém a
não pensa lhe ser preciso." "Quais são, Diotima, pergunto eu outra frase, quase contraditória: "o espírito cognoscente avan-
[Sócrates], os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ça para a essência das coisas" 15 • O objeto da filosofia é dado ao
ignorantes?" Ao que ela replica: "É o que é evidente desde já até filósofo na esperança. A isso se refere a expressão de Dilthey:
a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos". Esse "As exigências que se apresentam ao filósofo são irrealizáveis.
meio é precisamente o terreno do verdadeiramente humano. Um físico é um ser agradável,, útil para si e para outros. O
Verdadeiramente humano é, de um lado, não compreender filósofo existe, tal como o santo, somente como ideal" 16 • Está
(como Deus) e, de outro, não se endurecer, não se fechar no na essência das ciências particulares que estas se livrem da ad-
mundo do cotidiano, que se crê plenamente iluminado, não se miração na mesma medida em que alcançam "resultados". O
filósofo, no entanto, nunca se livra da admiração.
satisfazer com o não-saber, não perder a maleabilidade infantil,
Com isso, ficam claros, ao mesmo tempo, o limite e a gran-
própria de quem tem esperança e somente dele.
Desse modo o filósofo, como o que se admira, é superior à deza da ciência, bem como a estatura e a problematicidade da
filo_sofia. Com certeza, morar "sob as estrelas" é algo "em si"
limitação desesperada da estupidez - ele é um esperançoso!
mais nobre. No entanto, o homem não foi criado de modo a
No entanto, ele é inferior àquele que possui definitivamente,
sup~r:ar por muito tempo tal moradia! De fato, a questão que
aquele que sabe, que compreende. O filósofo, aquele que se
se dmge para o todo do mundo e para a essência última das
admira, é um homem cheio de esperanças.
coisas é "em si" de maior valor. Porém, a resposta não nos é
É também mediante essa estrutura da esperança (entre
simplesmente acessível como a resposta às questões das ciên-
outras!) que a filosofia se diferencia das ciências particulares.
cias particulares!
Nas ciências particulares e na filosofia há por princípio uma
O aspecto negativo que encontramos na estrutura da espe-
relação diferente com o objeto. A questão das ciências particu-
rança foi o que caracterizou o conceito de filosofia desde o
lares é por princípio definitivamente passível de resposta ou,
pelo menos, não é por princípio irrespondível. Pode-se dizer
conclusivamente (ou: poder-se-á supostamente um dia dizer de 14. TOMÁS DE AQUINO, Symb. Apost., Prólogo (n. 864).
15. Suma teológica, I, II, 31, 5.
16. Briefwechsel zwischen Wilhelm Dilthey und dem Grafen Paul Yorck v.
Wartenburg 1877-1897, Haale-Saale, 1923, p. 39.
13. PLATÃO, Banquete 204 a 1-b 2.

meio ambiente e mundo 1 49


48 1 que é filosofar?
começo. Desde a sua origem, a filosofiJ:não se entendeu como questão da essência, ou seja, da questão filosófica (enquanto
uma forma especial e superior de saber, mas expressamente se for expressa por um homem), que ela não pode ser respondida
designou ;:orno uma forma consciente de automodera?ão. As no mesmo sentido em que foi formulada. Pertence à natureza
palavras "filosofia" e "filósofo" foram, segundo uma antiga len- da filosofia tender para uma sabedoria que, todavia, lhe perma-
da, cunhadas por Pitágoras, inclusive em oposição declarada nece inalcançável. Certamente não de modo que não houvesse
às palavras sophia e sophos: nenhum homem é sábio e sapiente, em absoluto nenhuma relação. Essa sabedoria é objeto da filo-
sábio e sapiente é somente Deus. Desse modo, o homem pode, sofia, mas como algo procurado com amor, não como algo
no máximo, denominar-se um amante da sabedoria: um philo- possuído. Eis, portanto, a primeira coisa que está expressa na
sophos. É assim que pensa Platão. No Fedro 17 , lança-se a ques- interpretação pitagórica e socrático-platônica da palavra
tão do nome que convém a Sólon, e também a Homero. Só- philosophia. Esse enunciado foi recebido e esclarecido na Metafí-
crates decide: "O nome de sábio, Fedro, me parece excessivo; sica de Aristóteles. Penetrou também, por meio de Aristóteles,
só vai bem com referência a Deus; o de amigo da sabedoria, nas obras dos grandes pensadores medievais. Por exemplo, en-
ou outra designação equivalente, além de ser mais modesto, contram-se no comentário escrito por Tomás de Aquino a esse
conviria melhor". capítulo da Metafísica de Aristóteles algumas variações notáveis
Essas narrações são conhecidas e tendemos a tomá-las como e profundas a respeito desse pensamento. Assim, ele diz: por-
algo meramente anedótico, algo pertencente ao âmbito da re- que é procurada em função de si mesma, a sabedoria não pode-
tórica. Há, todavia, creio eu, motivo suficiente para ser muito ria ser inteiramente propriedade do homem. Podemos "pos-
preciso neste ponto e levar a sério essa origem etimológica em suir" completa e inteiramente os resultados das ciências parti-
seu sentido enunciado. culares. No entanto, pertence à natureza desses resultados se-
O que, exatamente, está enunciado? Sobretudo, duas coi- rem "meios", de modo que não podem nos levar a procurá-los
sas. Primeiro, que não "possuímos" o saber, a sabedoria visada em razão de si mesmos. O que pode nos satisfazer e o que é pro-
pela questão filosófica. Em seguida, que não só o possuímos de curado em função de si mesmo é justamente o que nos é dado
modo provisório e casual, mas por princípio não podemos pos- na esperança: "Só é procurada por ela mesma [assim afirma
suí-lo. Trata-se aqui de um eterno ainda-não. Tomás de Aquino] aquela sabedoria que não pertence ao ho-
A questão sobre a essência contém propriamente a reivin- mem como uma propriedade". É próprio dessa sabedoria ser
dicação do compreender (Begreifen). Compreender significa, se- procurada amorosamente em função dela mesma, ser concedi-
gundo Tomás de Aquino, conhecer algo na medida em que é da ao homem como um empréstimo ("sicut aliquid mutuatum") 19 •
em si cognoscível; transformar toda cognoscibilidade em conhe- Pertence, portanto, à natureza da filosofia o fato de que
cimento de fato, conhecer algo "até o fim" 18 • Ora, não há sim- "possui" seu objeto sob a forma da procura amorosa. Com isso,
plesmente nada que o homem possa conhecer desse modo, no afirma-se algo muito importante e muito contestado. Por exem-
sentido estrito da compreensão. Assim, pertence à natureza da plo, a Hegel essa autodeterminação parece contradizer expres-
samente a filosofia, quando, no prefácio à Fenomenologia do Es-

17. PLATÃO, Pedro 278 d 2ss.


18. TOMÁS DE AQUINO, Super ]oh. I, 11 (n. 213). 19. ID., Comentário à Metafísica de Aristóteles I, 3, (n.64).

50 1 que é filosofar? meio ambiente e mundo 1 51


pírito, diz que pretende trabalhar para11e a filosofia "aproxi- E ainda um terceiro ponto é enunciado na antiga autode-
me-se do objetivo de deixar de lado o nome de 'amor do ·saber' finição da filosofia, ou seja, a recusa da filosofia de considerar-
e se torne saber real - é a isto que me proponho". Com isso, se a si mesma uma doutrina de salvação.
estaria formulada uma pretensão que a princípio ultrapassa as .,,;-1ªs que s.e entende por ."sabe~oria tal como Deus a pos-
possibilidades humanas, uma pretensão que levou Goethe a sm . O co?ceito de sabedoria aqm subentendido significa 0
falar de modo irônico de Hegel e dos filósofos como "desses seguinte: "E sábio em sentido estrito aquele que conhece a cau-
senhores que creem' d ominar
. D eus, a1ma e mun d o "20 . 22
sa suprema" ("causa" não deve ser entendida meramente no
Naquela interpretação original da palavra filosofia há, po- sentido de causa-eficiente, mas sobretudo de causa final). Ora,
rém, ainda um segundo enunciado que raramente costuma ser "conhecer a causa suprema'', conhecer não a causa de algo de-
considerado de modo expresso. Tanto na expressão legendária terminado e especial, mas conhecer "em absoluto" a causa su-
de Pitágoras como no Pedro de Platão e ainda em Aristóteles, o prema de tudo, a causa suprema da totalidade das coisas, isso
philosophos humano é contraposto ao sophos divino. Portanto, a significa conhecer em absoluto o de onde e o para quê, a ori-
filosofia não é procura amorosa do homem dirigida a qualquer gem e o fim, o princípio constitutivo e a estrutura, o sentido e
sabedoria, mas refere-se à sabedoria tal como Deus a possui. a ordenação articulada da realidade, o "mundo" de maneira
Aristóteles caracterizou justamente a filosofia pela pretensão total e no fundamento último. Esse conhecer, porém, no senti-
de voltar-se para uma sabedoria que somente Deus detém com- do de saber compreensivo, só pode ser atribuído ao espírito
pletamente, como "ciência divina" 21 • absoluto, a Deus. Só Deus compreende o mundo "a partir de
Esse segundo enunciado, contido na autodeterminação ori- um ponto", isto é, a partir de si mesmo como sua causa unitá-
ginária da filosofia, possui várias faces. Primeiramente, o enun- ria e última. "Sábio é aquele que conhece a causa suprema":
ciado anterior (a filosofia não pode compreender completa- nesse sentido, só Deus deve ser chamado sábio.
mente o seu objeto) é reforçado. O limite apresentado aqui é Eis, pois, o objetivo visado pela filosofia: a compreensão da
determinado mais proximamente como limite entre homem e realidade a partir de um princípio último de unidade. Pertence,
divindade: o homem é incapaz de possuir aquela sabedoria au- porém, à essência da filosofia estar de fato "a caminho" desse
têntica porque deixaria de ser homem. Além disso, é afirmado objet~v~ (a1:1orosamente, procurando, esperando!), mas por
que pertence ao conceito de filosofia estar referido à teologia. prmcip10 nao ter condições de alcançar esse objetivo. As duas
No conceito originário de filosofia está expressa uma abertura coisas pertencem ao conceito de filosofia tal como a Antigui-
para a teologia, algo que contradiz inteiramente o conceito de dade o desenvolveu e entendeu.
filosofia que se tornou corrente na época moderna, uma vez Com. isso, tocamos o ponto decisivo: é impossível, a partir
que esse conceito novo de filosofia afirma justamente ser ca- do conceito de filosofia, adquirir de modo filosófico uma in-
racterística decisiva do pensamento filosófico separar-se da teo- t~rpretação racional do mundo deduzida de um único princí-
logia, da fé e da tradição. pio e de "causa suprema". Isso significa que não pode haver um
"sistema fechado" da filosofia. A pretensão de deter "a fórmula
20. GOETHE em uma carta a Zelter de 27 de outubro de 1827.
21. ARISTÓTELES, Metafísica, I, 2. 983a 6-7. 22. Suma teológica, II, II, 9, 2.

52 1 que é filosofar? meio ambiente e mundo 1 53


" é do ponto de vista concei. .:al, necessariamente
d o mun do ' 1
uma não-filosofia e uma pseudofilosofia. , . .
T 0 davia Aristóteles23 vê na filosofia, na metafisic.a, ~ mais
' f - d
elevada das ciências, justamente em unçao e esse
obJetlVO (de
-
TRADIÇÃO, TEOLOGIA
onhecer a causa última) ser alcançável, mesmo que tTao-s~­ E FILOSOFIA
C , · homem ornas
mente na esperança e ();orno um e~presnmo ao . " . ouco
de A uino, em seu comentário, diz nesse ponto. .Esse p
que ;e ganha nela (metafísico~ p.es~:24todavia, mais que tudo
aquilo que é conhecido nas ciencias . fil
Precisamente nesta estrutura dupla e d~ fa~e dupla da i o-
sofia precisamente no fato de que com admiraçao entra-se nu~
cami~ho infindável, precisamente no fato de a filoso~a poslsuir
· amente nisso e a se
a forma constitutiva da esperança, precis
manifesta como algo inteira e totalmente humano e, em certo No ato de filosofar realiza-se a relação do homem com a totali-
sentido, como a realização da própria existência humana. dade do ser. Filosofar dirige-se para o mundo como um todo.
Porém, ao homem é dada "sempre", "desde sempre", antes de
qualquer filosofia, antecedendo-a sempre, uma interpretação da
realidade. E essa interpretação da realidade é dada sob a forma
de uma tradição (em doutrinas e histórias), que justamente diz
respeito ao todo do mundo.
"Desde sempre" o homem se encontra em uma tradição
religiosa que oferece uma imagem do mundo como uma tota-
lidade. Pertence à essência dessa tradição existir e valer "desde
sempre", antes e previamente a toda filosofia, a toda interpre-
tação do mundo que se constitui a partir da experiência.
Há uma posição teológica que reconduz essa tradição ori-
ginária à revelação originária, quer dizer, a uma comunicação
ocorrida no começo da história humana, uma revelação (re-
velatio) do sentido do mundo e do sentido da história humana
no todo. Um anúncio que, mesmo hipertrofiado e incrustado,
continua vivo nos mitos e nas tradições dos povos. A esse res-
peito, não é possível discorrer agora com mais detalhes.
Importante, porém, em nosso contexto, é ver que os gran-
23. ARISTÓTELEAS, MetafísCicoam,Ie,n~d~:~a~~:~IYsica de Aristóteles I, 3 (n. 60).
des iniciadores da filosofia ocidental, dos quais vive ainda o
24. TOMAS DE QUINO, 1'
1 55
54 1 que é filosofar?
qual, aliás, os pré-socráticos de Tales a E ,d 1
ram com r d f, mpe oc es se opuse-
filosofar hodierno, sobretudo Platão e.,jristóteles, não só en-
contraram e confirmaram eles mesmos tal interpretação pré- "teologia
ram re or
Ju:n:st~'~~:~::;: as~~~t::ip~~~::a ~~a
1 · . . .
espécie de
crat1Cos pretende-
via do mundo, mas também filosofaram partindo dessa inter-
p p uma teo og1a. mais ongmária' pre'-ho menca. , .
pretação de mundo existente "desde sempre". "Já ouvi contar . ~rtanto, o que a história do começo da filosofia e d
uma história dos homens de antigamente. Eles conheciam a primeiro ~orescimento, nunca posteriormente i ualado ::~u
verdade. Se pudéssemos descobriu-la, ainda nos importaría- losofia
f; ocidental ' parece
. most rar e, o segumte:
. emg todo filoso- i-
1
mos com a opinião dos homens?" - diz Platão . Muito amiú-
alar encontra-se
"d d uma" mterpretação tradicional do mun d o, como
de diz que esta ou aquela doutrina "transmitida pelos anti- g.o fl es e sempre expresso, sobre o qual e no qual o filosocar
gos" é não só digna de honra, mas também verdadeira de se 1n ama. i;
modo eminente e intocável. "Tal como uma antiga doutrina ~latão, contudo, vai mais longe. Não, só afirm
a~ue
,
diz, Deus detém o começo, o fim e o meio de todas as coisas tradição a partir dos "antigos", que o filósofo de ha uma
e dirige-as para o melhor segundo sua natureza" - assim fala está convencido de que esse "sab er d os antigos"
, ve ' onrar, , 1 mas
·
o Platão ancião nas Leis2. O mesmo diz Aristóteles na Metafísi- análise, de procedência divina·· "E nquanto uma dadiva
, e'. emdos
u tlma
deu-
ca: "Uma tradição, em forma de mito, foi transmitida aos ses,d~a1 como estou convencido, a partir de uma fonte divina
pósteros a partir dos antigos e antiqüíssimos [ápxaíwv Kat ~e i.ante um Prometeu desconhecido em um brilh d f, '
nnµn<XAaíwv] segundo a qual essas realidades são deuses, e iluminador, a notícia veio para baixo ' , o e ogo
que o divino envolve toda a natureza" •
3
que nó: e mais próximos dos deuses~ ~o~s t::~;~:~i::h:;::
É importante perceber isso. Perceber que as grandes figu- :::;a~~ <pljµryl- desse pronunciado]", assim está dito no Filebo
ras paradigmáticas da filosofia ocidental referem-se "fielmen- o ar vo ta o para a doutrina das Idéias4. '
te" a uma interpretação prévia do mundo, transmitida por tra- Portanto, . ta1 como Deu
segundo Platão ' a " sabed ona,
;:i:::;.; J~u:0;::,~:~:;:ma m:,~
"' . ,
dição. Isso é importante, principalmente depois que a historio- forma anunciada e tomada
grafia moderna da filosofia, dominada pela crença racionalista isto é o filosofar S procura amorosa por essa sabedoria,
no progresso, situou o começo do filosofar na oposição entre o
divin~ iluminado~a :7e~~~nataroaphonto antecedente da sabedoria
pensamento e a tradição: filosofar seria, justamente, a" entrada ' ornem como um pr
de todo esforço pró r· d esente antes
na maioridade" da ratio contra a tradição. A rejeição de toda a filosofia p 10 o pensamento, sem esse contraponto a
tradição religiosa, sobretudo, pertenceria à essência da filosofia. D ' co~?, pr_ocurn amorosa por essa "sabedoria, tal como
E isso já estaria presente na origem da filosofia grega: os filóso- tamente nisso 'tamb,
eus a possm nao sena nem sequer pensavel.
, Entretanto, jus-
Es~a aut~n.omia "desd~~;~ ~
fos pré-socráticos e pré-áticos foram e são entendidos como em se expressa a auton . d fil
"iluministas". Mas as pesquisas mais recentes tornaram veros- do filosofar diante do "idosofar.
símil a idéia de que a doutrina dos deuses de Homero, contra a teudo prev10 da tradição e derivado da revelação di'vp1·nea o c?n-
em que t d fil e . . . consiste
0 a o e 1 osoiar mKia-se com a contemplação da reali-

1. PLATÃO, Pedro, 274 e lss.


2. ID., Leis, 715 e 7ss. 4. PLATÃO, Filebo 16 e lss.
3. ARISTÓTELES, Metafísica XII, 8. 1074 b 1.
tradição. teologia e filosofia 1 57
56 1 que é filosofar?
dade empírica visível, concreta e coloca1(:- diante dos olhos. O do dessa palavra a partir do conteúdo total da verdade revela-
filosofar começa "a partir de baixo", com ó questionamento das da, com isso não possui ainda a sabedoria mundana do filóso-
coisas encontradas na experiência cotidiana, que abrem ao fo, advinda da contemplação do mundo "a partir de baixo". Em
buscador profundezas sempre novas e "admiráveis". Ao contrá- contrapartida, quando o filósofo, em seu questionamento das
rio, pertence à essência da tradição "desde sempre" o fato de coisas, situa-se sob a luz daquela palavra, pode atingir conheci-
anteceder à experiência e à sua penetração pelo pensamento, de mentos (não de tipo teológico, mas de espécie inteiramente
modo que o "resultado" não é adquirido "a partir de baixo", filosófica, demonstráveis nas coisas) que de outro modo per-
mas oferecido, pré-dado, revelado desde sempre. maneceriam ocultos.
Trata-se aqui da relação de princípio entre filosofia e teolo- A falta de preconceitos diante da teologia é a característica
gia (teologia apreendida no sentido geral: como interpretação d? filosofar platônico. Platão ficaria surpreso se alguém lhe
do conteúdo da tradição). Pretendendo-se - de modo um tan- dissesse que ele teria ultrapassado a competência do pensa-
to simplificado, mas, a meu ver, não ilicitamente simplificado mento filosófico "puro" para entrar no âmbito da teologia
- reduzir a linhas fundamentais a relação essencial entre teolo- quando, no Banquete5, deixa Aristófanes narrar a história, apa-
gia e filosofia, tal como resulta de Platão e da filosofia antiga r~ntemente. tão ~rotesca e quase burlesca, do homem originá-
como um todo, pode-se dizer o seguinte: a teologia precede rio: este sena no.mício esférico, dotado de quatro braços e per-
"desde sempre" a filosofia, e isso não só no sentido de seqüên- nas e hermafrodita, depois teria sido cortado em partes ("como
cia histórica, mas no sentido de uma relação originária interna. se corta uma pêra, a fim de abri-la"), e agora cada parte procura
É em uma interpretação prévia da realidade e que abrange o a que lhe pertencia; e isso seria justamente o Eros: "O desejo e
mundo como um todo que a questão filosófica se acende. A a procura do todo".
filosofia está, portanto, essencialmente vinculada à teologia. Por trás das particularidades cômicas, o sentido fundamen-
Não há filosofar que não receba seu impulso e seu impetus de tal da história é o seguinte: em outro tempo, no início, nossa
uma interpretação de sentido do mundo como um todo, prece- natureza era intacta e inteira, mas os homens foram levados
dente e acríticamente adotada. No âmbito teológico, que não pela hybris, pela consciência de sua poderosa força própria e de
depende da experiência, torna-se apreensível a idéia de uma seu s "gran des pensamentos ", a ousar se aproximar dos deuses.
"sabedoria tal como Deus a possui", a partir da qual o movi- Como penalidade para essa presunção de querer ser como os
mento amoroso e investigador da filosofia no mundo da expe- deuses, os homens perdem sua totalidade originária. Agora cabe
riência recebe sempre de novo seu impulso e sua direção. a ~s~era~ça de que Eros, que é o desejo de retornar à figura
Isso não quer dizer que o teólogo possua algo que o filóso- ongmal mtacta, encontre de fato essa realização - "se honrar-
fo procura. O teólogo possui como teólogo, isto é, como con- mos os deuses".
servador e intérprete do conteúdo da tradição, não o saber É claro que .is.so não é "filosofia", pois não se trata de algo
ontológico do genuíno filósofo. Certamente, a palavra de reve- p.ensado e .adqumdo como um resultado a partir da experiên-
lação do Logos, mediante o qual tudo foi feito, é também um oa da realidade! A questão que se trata de responder é: que é,
enunciado sobre a forma constitutiva da realidade como um todo.
Mas o teólogo, que deve explicar, conservar e defender o senti- 5. ID., Banquete 189 d 6-193 d 5.

58 1 que é filosofar?
tradição, teologia e filosofia 1 59
em última anál~se, Eros? E essa ques~~:é r~s~ondida ~evando
em conta tambem a resposta da tradiçao reltg10sa. Porem, não Isso significa que somente a partir do contraponto da in-
está justamente nessa ligação da filosofia com a teologia o ele- terpr~tação cris~ã,de ~undo pode-se filosofar de tal modo que
mento essencial do diálogo platônico, elemento que nos permi- se satisfaça a exigenna à qual Platão submeteu a filosofia. Mas
te vivenciá-lo como algo profundamente humano? Não é justa- como seria ~os~í~el uma filosofia cristã? Essa questão parece
mente daí que provém o seu caráter total, que inclui inteira- de lo,nge mais factl de responder do que a seguinte: como seria
mente toda a existência humana? possivel uma filosofia não-cristã? - desde que por filosofia se
É, portanto, impossível pretender fazer uma filosofia cons- entenda o mesmo que entendeu Platão.
ciente e radicalmente destacada da teologia - e simultanea- Evidentemente não se deve dizer: é suficiente ser cristão ou
mente recorrer a Platão. De modo platônico e com pretensão rec~nhecer a tradição cristã como verdadeira a fim de já poder
platônica só é possível filosofar a partir de um contraponto realizar filosofia em grande estilo. Filosofia é questionamento
teológico. Não se pode, justamente ao se questionar com serie- do mundo, penetração no ser, caminho "a partir de baixo" e
dade sobre a raiz das coisas (e isso ocorre no ato filosófico), portanto, vinculado à genialidade natural do olhar voltado par~
deixar de lado, em função de alguma pureza metodológica, a o mu~do. Também não se deve dizer: somente a filosofia cristã
tradição religiosa precedente e seu enunciado que expressamente poderia ser
. filosofia viva. O filosofar vivo pode existir tamb,em
atinge a raiz das coisas - a não ser que não se aceite mais esse em o~o~tç~o ao que é_cristão. Porém, só é possível se contrapor
enunciado! Porém, aceitá-lo, acreditar nele e deixá-lo de lado ao cristianismo
. mediante enunciados de fie' , aiºnd a que esses
ao filosofar - eis o que não se pode, com seriedade, fazer! enun~iados de fé possam ser apresentados de modo "puramen-
Surge, naturalmente, a questão: onde se pode encontrar te rac10nal", como são os enunciados de fé do racionalismo de
hoje e aqui a tradição pré-filosófica legítima? Qual é a figura modo que também aqui fica preservada a estrutura do fil;so-
hodiernamente encontrável da, como diz Platão 6, "notícia che- fa~ autêntico, que parte de um ponto de vista pré-filosófico, ou
gada até nós mediante um Prometeu desconhecido enquanto sep, dos enunciados de fé.
dádiva dos deuses"? A essa pergunta devemos responder que ?nde a tradição religiosa ressecasse completamente, a ponto
desde o fim da Antiguidade no Ocidente não existe tradição de nao se saber mais do que se fala quando se pronuncia pala-
pré-filosófica que atinja o todo do mundo a não ser a cristã. vras como "Deus", "Revelação", "Logos", somente ali a Filoso-
Não há hoje, no Ocidente, teologia a não ser a cristã! Onde se fia não poderia mais crescer.
encontraria uma teologia não-cristã em sentido pleno? 7 A filosofia adquire sua vitalidade e sua tensão interna pelo
fato de ser um contraponto da teologia. A partir daí ela tira 0
6. ID., Filebo, 16 c 2s.
seu tempero, o sa~ que a tor~a existencial! Precisamente porque
7. Logo após a Semana Universitária de Bonn (1947) fui informado a a filosofia profiss10nal, rebaixada a uma disciplina especializada,
respeito do seguinte: deve-se sim constatar hoje, por exemplo na obra de
Walter F. Otto, uma revivescência da teologia antiga, de modo que não se
pode mais dizer que a única teologia encontrável no Ocidente seria a cristã. sentido _preó~o de_ "verd_ade" na qual se "acredita" plenamente, a ponto de,
A esse respeito deve-se dizer que admiração ainda não é fé. Pretende-se seria- ~uma s1tuaçao ex1stenc1al extrema (diante da morte), poder-se rezar para
mente afirmar que, naquele novo grecicismo, a teologia antiga é tomada no "polo ou para D10mso? Se não é esse o caso, então não se pode falar de uma
teologia em senndo pleno".
60 1 que é filosofar?
tradição. teologia e filosofia 1 61
evitou temerosamente todo contato c~ a temática teológica Isso já não é mais um enunciado filosófico "puro". Porém
(o que em parte pode ser dito também da assim chamada filo- a partir da essência da filosofia entendida como procura amo~
sofia "cristã") é que ela se tornou insossa. É exatamente isso ro~a da "sabedoria, t~l como Deus a possui", é inevitável que 0
que explica o efeito provocador e devastador do filosofar filosofo ultrapasse o ambito da filosofia "pura" e entre no âm-
heideggeriano. O seu caráter explosivo se deve unicamente ao bito da teologia, embora do ponto de vista teórico e metodo-
fato de apresentar questões com uma radicalidade desafiante a l~g~co, mas não do ponto de vista existencial, seja possível de-
partir de um impetus originariamente teológico, exigindo de si limitar conceitualmente os dois campos, mas não separá-los
uma resposta teológica, ao mesmo tempo que recusa radical- r~almente: De outro modo não é possível filosofar! Porque 0
mente essa resposta. De repente, nossa língua saboreia nova- filosofar, justamente por ser uma atitude humana fundamen-
mente o sal da teologia! tal para com a realidade, só é possível a partir da totalidade da
E hoje, na França, ocorre algo semelhante para além da existência humana, o que implica tomadas de posição perante
simples moda, porque o ateísmo "existencialista" não é de modo a realidade como um todo!
algum uma posição "puramente filosófica" ou mesmo "cientí- A respeito do conceito de uma filosofia cristã são necessá-
fica", mas teológica. Por isso pode oferecer a essa filosofia uma r~as ,~ind~ - para c~~cluir nosso esforço de resp~nder à ques-
dimensão teológica, pela qual essa filosofia, que na realidade é tao que e filosofar? - algumas observações, sem, todavia, ter
uma pseudoteologia e uma antiteologia, se tornou tão vital. De a pretensão de esclarecer exaustivamente ou mesmo nas suas
fato ela mexe com os homens de modo verdadeiro, pois trata linhas essenciais esse multifacetado e complexo conceito.
just~mente do todo com o qual a filosofia, segundo a defini- Em primeiro lugar, é necessário contradizer uma opinião
ção, tem essencialmente a ver! Quando Jean-Paul Sartre diz: "O corrente segundo a qual a filosofia cristã (ou uma filosofia cris-
existencialismo ateísta conclui, a partir da não-existência de tã) ~e diferenciaria de uma filosofia não-cristã, entre outros
Deus, que há um ser que não é determinado por nenhuma n:ottvos, por sua característica de possuir soluções mais lím-
vontade superior, e esse ser é o homem", não há decerto nin- pidas. N~o é ~ssim. Apesar de a filosofia cristã pensar a partir de
guém que tome isso por uma tese filosófica, ou por uma tese certezas mteiramente indubitáveis, ocorre que justamente a fi-
teológica ou por um enunciado de fé. Mas ele obriga a levar o losofia cristã é capaz de realizar mais puramente 0 verdadeiro
pensamento ao nível da teologia! A partir desse ponto de vista sentido da admiração filosófica, da admiração baseado no não-
é possível filosofar com vitalidade. saber. Um dos grandes pensadores de nosso tempo, inspirado
Certamente, filosofar de modo vivo e verdadeiro só é possível em Tomás de Aquino, disse que a marca diferenciadora do filo-
a partir do ponto de vista de uma verdadeira teologia, e isso sofar crist~o ~justamente não ter à disposição soluções límpidas,
quer dizer a partir da teologia cristã. No entanto, mais uma mas possmr numa medida mais alta que qualquer outra filoso-
vez, isso não quer dizer que todo filosofar que recorra à teolo- fia" o sentido do mistério 8• Mesmo no âmbito da fé e da teo-
gia cristã já realize a união entre verdade e vitalidade. O que logia - apesar de toda a certeza da fé -, não ocorre de modo
afirmamos é que uma filosofia, ao mesmo tempo verdadeira e !;r
viva, ou não se realiza em absoluto (e é possível que isso acon- ~;
!!: 8. R GARRJGOU-LAGRANGE, Der Sinn für das Geheimnis und das Hell-Dunkel
teça!) ou, se é realizada, então só pode ser como filosofia cristã. des Geistes, Paderborn, 1937, p. l 12s.

62 1 que é filosofar?

J tradição, teologia e filosofia 1 63


algum que para o homem crente tudo es.Jâl-ia "claro", todo pro-
possibili~ar soluções mais límpidas, mas de romper as barreiras
blema resolvido. Ao contrário, como disse Matthias Joseph Schee-
e o estreitamento metodológico do "puramente" filo 'fi
ben as verdades do cristianismo são de um modo muito especial f d · . SO ICO, a
. Iro e abn~ e lrbe.rar, de fato, O espaço do mistério para o
ina;reensíveis. Inteiramente inapreensíveis já são as verdades da
impulso m~rs genuinamente filosófico, para a procura amorosa
razão mas o diferencial das verdades do cristianismo é que estas
~~ s.abe~ona. Esse espaço, por definição, se caracteriza pela
"se m.'antêm ocultas para nós apesar da Revelação" 9 •
rlrmrtaçao, onde se pode continuar a caminhar até o infinito
Pode-se agora perguntar: como uma filosofia cristã possui
sem chegar "ao termo". Em contrapartida, o sentido dessas ver-
algo anterior a uma filosofia não-cristã se ela não alcança ne-
~ades teológicas sobre o mundo como um todo e sobre 0 sen-
tido da e~istência humana é precisamente a "função salvífica"
nhum grau maior de solução, se não adquire nenhuma respos-
ta, se os problemas e questões se mantêm? Pode ser que a verda- da teologia, que contrapõe um "não" ao espírito que natural-
de maior esteja em ver o mundo em seu caráter realmente mis- n:iente persegue a clareza, a transparência e a conclusividade do
terioso e em sua inesgotabilidade. Pode ser que justamente pela sistema (esse é o sentido da frase corrente: a verdade de fi' ,
experiência de que o ser é em si um mistério, não apreensível e " . eea
norma negativa" do pensamento filosófico).
não passível de ser tomado nas mãos por um enunciado abran- Portanto, o filosofar não se torna "mais simples" desse
gente, a realidade seja apreendida de modo mais profundo e modo! Pelo contrário, é de se esperar que 0 filósofo cristão do
verdadeiro do que num sistema em que ela seja totalmente trans- pont,o de vista ~o pen~am.ento, tenha mais dificuldades do ~ue
parente para o espírito pela sua clareza e distinção. E justamen- alguem. ~ue nao esteja vinculado à norma da verdade de fé
te esta é a pretensão da filosofia cristã: ser mais verdadeira pre- ~ransm1t1da. No Hypoerion, de Hõlderlin, encontra-se a frase:
cisamente no reconhecimento do caráter misterioso do mundo. As vagas do coração não lançariam para cima sua tão bela
Certamente, o filosofar não se torna por isso mais simples. esp~ma, e. não. se tornaria espírito, se não se lhe opusesse
0
Platão parece ter visto e sentido isso, se está correta uma inter- antigo e srlenc10so rochedo do destino" É 0 r h d '
. , . . oc e o antigo,
pretação de Platão 10 que afirma que ele compreendeu o filosofar mudo e inexoravel, impossível de ser amolecido 0 da verdade
como algo trágico porque deve recorrer constantemente ao mito, re:elada,. que impede o pensamento filosófico d~ fluir em um
e porque a interpretação filosófica do mundo não se deixa arre- leito de no bem canalizado. É pela complexidade do pensamen-
dondar em um círculo fechado. t~, causada por tal resistência, que a filosofia cristã se diferen-
O filosofar cristão também não se tornou mais simples, do cia da não-cristã.
ponto de vista do pensamento, pelo fato de a fé "iluminar" a Uma filosofia da história que conta com 0 domínio uni-
razão. Exatamente a aceitação expressa de argumentos teológi- versal do anticristo como estado final, isto é, uma filosofia
cos, por exemplo em Tomás de Aquino, não tem o sentido de para a qual a história dos homens, humanamente falando de-
ságua numa catástrofe, mas que apesar disso não se torna r:,_era
9. M. J. ScHEEBEN, Die Mysterien des Christentums, ed. J. Hõfer, Freiburg, filosofia de desespe~o, essa filosofia cristã da história não pode
1941, p. 8s. d.esembocar numa imagem simples da história do ponto de
10. Trata-se da interpretação de Gerhard KRÜGER, Einsicht und Leidenschaft, vista ~o. pensamento. ~m contrapartida, a filosofia do "pro-
Frankfurt a. M., 1939, p. 301.
gresso , JUStamente por ignorar o "apocalipse" se torna tão sim-
64 1 que é filosofar?
tradição, teologia e filosofia 1 65
ples! O pensamento filosófico não se tor.J8- mais simples quan- táveis naturalmente, e assim concordar com uma certeza mais
do se vincula à norma da Revelação cristã, pelo contrário, tor- poderosa. "Estados sem justiça não são nada mais que bandos
na-se - e essa pretensão é para o cristão simplesmente evidente - de ladrões": essa frase é, por certo, naturalmente evidente. Não
mais verdadeiro e mais conforme ao ser! é, porém, por acaso que ela não se encontra em um manual de
Trata-se de uma resistência criadora, fértil, que a verdade filosofia do direito, mas em um livro teológico, a Cidade de
revelada contrapõe ao pensamento filosófico. É uma pretensão Deus, de Agostinho.
mais rigorosa à qual se submete o filosofar cristão. O filosofar Podemos, agora, apresentar a questão: não seria a filosofia,
cristão se caracteriza por se submeter à necessidade de suportar de acordo com isso, completamente supérflua para o cristão?
uma tensão muito maior do que as dificuldades que surgem no Não basta a teologia, ou simplesmente a fé? "Quem já possui
âmbito do pensamento "puro". O filosofar cristão é mais com- uma visão de mundo", afirma Windelband em sua Introdução à
1
plexo, pois renuncia a chegar a formulações "evidentes", abs- filosofia 1, "e está decidido sob quaisquer condições a acreditar
traindo da realidade completa do homem e escolhendo com nela" (e esse é o caso dos autênticos cristãos!), "este não tem
que se ocupar. Colocado em fértil intranqüilidade por meio da necessidade alguma de filosofia para si". De fato, para a salva-
visão sobre a verdade revelada, é obrigado a pensar mais ampla- ção a filosofia não é necessária. Só uma coisa é necessária, e não
mente, sobretudo é obrigado a não se dar por satisfeito com a é a filosofia. O cristão não pode esperar da filosofia uma res-
superficialidade das harmonizações racionalistas. É pela bran- posta à questão da salvação humana ou mesmo a própria salva-
ca espuma do espírito no embate com o rochedo da verdade ção. Não pode filosofar com tais expectativas e em função de
divina que o filosofar cristão se distingue dos outros. tais resultados. Não pode filosofar como se sua salvação de-
Trata-se, portanto, de um enriquecimento em conteúdo pendesse da investigação dos contextos do mundo. O perder-se
universal que o filosofar cristão recebe do fato de estar vincula- em problemas, característica de um filosofar que se quer bastar
do ao ponto de vista precedente da verdade de Cristo. Isso su- a si mesmo, a identificação existencial com a problemática do
põe, evidentemente, que não somente o caráter cristão desse pensamento é estranha ao homem crente. Em Tomás de Aquino
filosofar seja autêntico e forte, mas também seu caráter filosófi- pode-se até descobrir uma serenidade do não-poder-compreen-
co. É preciso insistir sempre sobre isso, já que não se trata de der, uma postura muito próxima do humor. A filosofia é tão
algo evidente. Um famoso livro sobre a história da filosofia necessária e tão supérflua, como é necessária e supérflua a per-
medieval, de Maurice de Wulf, encerra com uma frase: a feição do ser humano. Filosofar é a realização da disposição
escolástica decaiu por falta não de idéias, mas de cabeças! natural da essência do espírito humano para a totalidade. Quem,
Dessa forma, a norma negativa que a teologia contrapõe ao no entanto, pretenderia (in concreto!) determinar o grau de ne-
pensamento filosófico é tudo menos "negativa", pois não se cessidade de realização natural dessa potentia!
caracterizará como algo negativo o fato de o pensamento ser Só mais um ponto: até agora falamos como se "o ser cris-
impedido de cair em determinados erros. Certamente é algo tão" fosse exclusiva ou predominantemente doutrina, enuncia-
positivo que o espírito humano seja fortificado pelo fato de do, verdade. E falamos de um "filósofo cristão" como se costu-
reconhecer o caráter de verdade revelada de certas verdades fi-
losóficas, que "em si mesmas" seriam alcançáveis e fundamen- 11. WINDELBAND, Einleitung in die Philosophie, p. 5.

66 1 que é filosofar?
tradição. teologia e filosofia 67
ma falar de um "filósofo kantiano'', co'6 o que se pensa em ta, o ético, que não precisa necessariamente ele mesmo ser um
alguém cujas opiniões filosóficas estão de acordo com a dou- bom homem, se pronuncia sobre o bem. Do segundo modo
trina de Kant. Quando se diz que alguém é cristão em seu filo- per connaturalitatem, 0 homem bom conhece 0 , b '
f que e om pe10
sofar, isso não pode significar somente que sua visão de mun- ~to. de tomar parte, imediatamente, em função da consonân-
do se encontra em concordância com o cristianismo como dou- cia mt,erna,. por força de um faro infalível do amante (pois o
trina, pois cristianismo é essencialmente realidade, não mera amor e aquilo pelo que o estranho se nos torna próprio, pelo
doutrina! O problema de uma filosofia cristã não consiste só que surge a connaturalztas - como diz Tomás de A · 13')
S b · d. . qumo ..
em saber como se deve vincular sabedoria natural e fé sobrena- o Are .ªs c01sas ivmas, porém, julga com conaturalidade de
tural do ponto de vista teórico, mas de saber como a verdade essenna, c?m~. sobre algo próprio, aquele que, segundo uma
cristã, aceita pelo filósofo, se torna um filosofar cristão. frase de D10nis10 Areopagita, não só "aprende o que é Divino
É de Fichte a afirmação: "O tipo de filosofia que se escolhe mas o sofre" 14 • ,

depende do tipo de homem se é". A fórmula é um pouco infe- Assim, a figura completa da filosofia cristã é realizada no
liz, pois as coisas não se passam como se "escolhêssemos" uma filosofar
. _ daquele
. que não só "aprende" e sab e o que e, o ser
filosofia! Seja como for, o significado é claro e correto. Mesmo cr~st~,º (das Christliche) - para quem esse ser não é somente "dou-
no âmbito do saber natural as coisas não ocorrem como se trina ' com a qual p o d e, d e maneira
· puramente conceitual ti-
bastasse forçar um pouco a mente para alcançar uma verdade. rar suas conc~usões teóricas -, mas que permite o ser cris~ão
Isso vale sobretudo quando essa verdade diz respeito ao senti- tornar-se reah~ade em si mesmo e, portanto, em função de
do do mundo e da vida. Aqui não é suficiente ter uma "cabeça uma conaturahdade real, não só com o saber e com o aprender
inteligente". É necessário ser algo também como homem, como n:as que "sofr~ndo-o", experimenta essa realidade, ganha par~
pessoa. Ora, o cristianismo é uma realidade que penetra e for- s1 a ver~ade cnstã e a partir dela filosofa sobre os fundamentos
ma o homem tanto mais completamente em todas as suas fa- naturais da realidade do mundo e sobre o sentido da vida.
culdades, também na cognitiva, quanto mais este se abrir a ele.
Este não é o lugar nem é minha intenção falar mais profunda-
mente dessas coisas. O que foi dito é suficiente para tornar
conhecida a estrutura existencial de uma filosofia cristã.
Em Tomás de Aquino 12 , há a distinção, que se poderia di-
zer totalmente moderna, entre dois modos do conhecimento:
entre, por um lado, o conhecimento autenticamente teórico-
conceitual, per cognitionem) e, por outro, o conhecimento per
connaturalitatem, o conhecimento fundado na afinidade de es-
sência. No primeiro modo, conhece-se algo estranho; no segun-
do, conhece-se o que é próprio. Do primeiro modo, o moralis-
13. Ibid., II, II, 45, 2.
14. DIONÍSIO, AREOPAGITA, De divinis nominibus 2, 4 apud TOMÁS DE
12. Suma teológica I, 1, 6; II, II, 45, 2.
A QUINO, Suma teologzca II, II, 45, z. '

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