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Passagem Ao Poético - Luto-melancolia-Alegoria
Passagem Ao Poético - Luto-melancolia-Alegoria
por
Agosto de 2006
DEFESA DE DISSERTAÇÃO
Banca Examinadora:
__________________________________________________________________________
Orientadora: Professora Vera Lins
__________________________________________________________________________
Professor André Luiz de Lima Bueno
__________________________________________________________________________
Professor Marcelo Jacques de Moraes
__________________________________________________________________________
Suplentes: Professor Luis Edmundo Bouças Coutinho
__________________________________________________________________________
Professor: Ronaldes de Melo e Souza
Para Solange
AGRADECIMENTOS
Estudo sobre a correspondência do poeta Paul Celan com sua mulher Gisèle
Celan-Lestrange, visando encontrar, nas cartas, as passagens ao poético. Passagens que nos
trazem as invenções celanianas e o surgimento dos poemas. A correspondência como “escrita
de vida”, enquanto um lugar de construção e experiência da bio-grafia. Cicatricement, cicatriz
sempre em movimento, verdadeiro operador da escrita celaniana. A estreita relação da poética
de Paul Celan com a questão da melancolia.
RESUMÉ
Étude sur la correspondance du poète Paul Celan avec sa femme Gisèle Celan-
Lestrange, dans le but de trouver, dans ces lettres, des passages au poétique. Passages qui
nous apportent les inventions celaniennes et le surgissement des poèmes. La correspondance
comme “écriture de vie”, comme un lieu de construction et d'expérience de la bio-graphie.
Cicatricement, cicatrice toujours en mouvement, véritable opérateur de l'écriture celanienne.
Le rapport étroit de la poétique de Paul Celan avec la question de la mélancolie.
SUMÁRIO
PASSAGENS AO POÉTICO: A CORRESPONDÊNCIA
DE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................. 8
2. BIOGRAFIA: ESCRITA-E-VIDA ................................................................................................................ 13
2.1. APRESENTANDO O POETA ........................................................................................................................... 14
2.2. A QUESTÃO DA BIO-GRAFIA ......................................................................................................................... 18
3. PAUL CELAN E O POEMA “FUGA DA MORTE”................................................................................... 27
4. O POETA E SUAS INDAGAÇÕES .............................................................................................................. 33
4.1. A QUESTÃO DA EXPERIÊNCIA DO POETA ..................................................................................................... 34
4.2. ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A POÉTICA DE PAUL CELAN ......................................................................... 49
5. AS CARTAS: O REGISTRO DE UMA POÉTICA ..................................................................................... 52
5.1. A CARTA E A QUESTÃO DO EQUÍVOCO EPISTOLAR ....................................................................................... 53
5.2. A CORRESPONDÊNCIA ENTRE PAUL CELAN E GISÈLE CELAN-LESTRANGE ................................................. 55
5.3. O SOBRE-VIVER DE UM POETA: AINDA E SEMPRE ........................................................................................ 74
6. A LÍNGUA E O SEU MOVIMENTO EM CICATRICEMENT .................................................................. 95
6.1 A EXPERIÊNCIA DE CICATRICEMENT ............................................................................................................. 96
6.2. PAUL CELAN: UMA POÉTICA DA MELANCOLIA .......................................................................................... 103
7. CONCLUSÃO ............................................................................................................................................... 117
8. BIBLIOGRAFIA DE PAUL CELAN.......................................................................................................... 121
8.1 EM TRADUÇÃO FRANCESA .......................................................................................................................... 122
8.2 EM PORTUGUÊS .......................................................................................................................................... 123
9. BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................................................... 124
1. INTRODUÇÃO
9
1
ADORNO, Theodor. Paraliponema. Paris: Klincksieck, 1976. p. 94.
2
BRODA, Martine. Dans la main de personne. Essai sur Paul Celan. Paris: Les Editions du Cerf, 1986. p. 97.
12
Paul Celan nasceu em 1920 na cidade de Czernowitz, antiga Bucovina, que era
um território integrado ao império dos Habsburgos, depois à Romênia, e à União Soviética.
Hoje pertence à república da Ucrânia. Nesta região, há setenta anos atrás conviviam quatro
culturas distintas: a alemã, a judaica, a latina e a eslava. Estas culturas deixariam marcas
importantes neste poeta e tradutor.
Em 1938, Paul Celan decidiu estudar medicina na França, já que a Faculdade de
Medicina de Bucareste não aceitava estudantes judeus. Quando retornou de férias, no verão de
1939, depois de estourar a guerra, a situação de sua cidade tinha se complicado. Celan foi
apanhado num canto da história. E foi surpreendido: uma intrusão do real, “ruptura do fio do
destino” 3.
Os judeus de Czernowitz começaram a ser perseguidos, a princípio pela polícia
política da Rússia de Stalin e depois por Hitler. Em 1941, os judeus foram perseguidos sem
trégua. Houve um momento de calmaria, e Celan chegou a escrever a amigos no exílio,
dizendo que ele e a família tinham escapado ilesos à barbárie alemã. Sua família, que estava
escondida nos guetos, regressou à cidade graças à ajuda do Alcade de Czernowitz. No
entanto, no mês de junho de 1942, recomeçaram as perseguições e deportações em massa.
Então, eles novamente precisaram se esconder na casa de vários amigos, burlando a vigilância
dos agentes da Gestapo. Paul Celan encontrou um abrigo numa fábrica de cosméticos de
Valentin Alexandrescu, um empresário romeno. Era um lugar seguro, e que talvez pudesse
acolhê-los por uns dois anos. Sua mãe não queria se esconder neste abrigo. Celan insistiu que
a fábrica de Alexandrescu oferecia toda a segurança.
Em um domingo à noite, Celan deixou a casa confiante de que seus pais o
seguiriam. Esperou-os durante toda à noite. Mas, não apareceram. No dia seguinte, ao
regressar à sua casa encontrou-a fechada. Seus pais tinham sido deportados. Morreram alguns
anos depois, em campos de concentração. Paul Celan nunca se perdoou por ter partido sem
seus pais. Este trauma o acompanhou durante toda a vida, e também na sua escrita. Escrita
que se revelava na língua alemã, língua materna: língua-morte, língua-trauma.
Paul Celan foi pego pelo terror alemão, e encaminhado a um campo de trabalhos
forçados. Ao sair do campo, ele foi trabalhar como chefe de uma redação de um suplemento
cultural de um jornal de Bucareste. Tinha 25 anos e escrevia seus poemas em alemão. Neste
3
LACAN, Jacques. Seminário VI (inédito). Lição 19 (29/04/59).
15
4
tempo de horror, Celan escreveu: “A morte é um mestre que vem da Alemanha”.
Felizmente, não só a morte vinha da Alemanha, mas também a possibilidade de um escritor se
expressar em alemão falando deste horror inenarrável. Vale aqui lembrar Theodor W. Adorno
que no princípio dos anos 50 afirmou que depois de Auschwitz, escrever um poema era um
ato de barbárie. Quinze anos mais tarde, ao ler a poesia de Paul Celan e de outros poetas,
retificou sua sentença e escreveu: “a dor perene tem tanto direito à expressão, como o
torturado ao grito; por isso pode ter sido errado afirmar que não se pode escrever mais
nenhum poema após Auschwitz” 5. A poesia também testemunha esta barbárie e, segundo as
palavras de Paul Celan, “testemunha a presença do humano – à majestade do absurdo.” 6
No final da década de 40, mais precisamente em 17 de dezembro de 1947, Paul
Celan parte para Viena, cidade que lhe atrai por sua grande tradição literária e em especial por
ser uma cidade marcada pela poesia de grandes poetas, como por exemplo, Georg Trakl. Em
Viena, ele encontra o pintor surrealista Edgar Jené (1904-1984) e se interessa por suas
pinturas. Quando Jené realiza uma exposição de pinturas, pede a Celan para escrever um texto
que sairá no catálogo da exposição. O texto de Celan se chama “Edgar Jené e o sonho do
sonho” e está traduzido para o português.
Em 1948, encontra com a poeta Ingeborg Bachmann e inicia uma relação amorosa
com ela. Em sua estadia em Viena, Celan mantem contato com o Grupo 47, e dentre seus
participantes estava Bachmann. Sua relação com este grupo será sempre conflituosa. A partir
da publicação da correspondência entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, tomamos
conhecimento que, em 1952, Celan participa, pela primeira e última vez, de um congresso
importante do Grupo 47,
4
CELAN, Paul. “Fuga da morte” in Sete rosas mais tarde. Antologia poética, seleção, tradução e introdução de
João Barrento e Y. K. Centeno. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p. 17.
5
ADORNO, Theodor. Apud SILVA-SELIGMANN, Márcio. in Cristal de Paul Celan. São Paulo: Iluminuras.
(orelha do livro).
6
CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte Poética, O meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia, 1996,
p.46.
7
“à Bad Niendorf (station balnéaire de la Baltique). Jusqu’au denier moment, Hans Werner Richter, le ‘chef’ du
groupe, ‘oubliera’ d’inviter PC. Il ne rédigera, hâtivement, une petite carte d’invitation (mentionée supra) que
suite à la demande pressante d’Indeborg Bachmann et de Milo Dor lors d’un ses sejours à Vienne, peu de temps
avant la réunion (cf. Hans Werner Richter, Briefe, hrsg. Von Sabine Cofalla, München-Wien, Carl Hanser, 1997,
16
Em 19.1.1965 (n.196), Celan escreve a Gisèle dizendo que enviou três cartas: uma
delas “a Oslo, (recusando de participar do almanaque (um tipo de anuário) publicado na
ocasião da noitada do Grupo 47).”8 Nas notas às cartas, Bertrand Badiou, o organizador desta
correspondência, diz que Paul Celan recusa a Kirsti Christensen, representante da Associação
dos Estudantes Noruegueses, o direito de publicar em uma antologia, as traduções de poemas
do livro Mohn und Gedächtnis (Papoula e Memória) lidos na ocasião de um encontro
consagrado ao Grupo 47. A nota segue explicando:
Celan vive em Viena pouco tempo, de dezembro de 1947 a julho de 1948, incapaz
de suportar a atmosfera fascista. Ao chegar em Paris, decide viver nesta cidade, e começa a
estudar literatura alemã e lingüística. Em 1950, ele completa os estudos universitários,
obtendo “a licença em letras”10. Este será seu título universitário mais elevado. Dentre os
estudos realizados se destacam: “estudo de literatura estrangeira”; “estudos práticos de
alemão”, “filologia alemã” e “lingüística geral”. Em novembro de 1950, com 30 anos, se
inscreve no DES (diploma de estudos superiores, equivalente ao mestrado), com um projeto
“de memória sobre Kafka”11. Em abril de 1952, Celan intensifica seu trabalho de pesquisa
sobre a obra de Kafka na Biblioteca Nacional da França e inicia a redação do texto sobre a
memória, do qual, infelizmente, não há nenhum rastro. Celan começa a ter conflitos com seu
orientador de DES e opta por abandonar os estudos universitários.
Depois da conclusão de seus estudos, Celan vai trabalhar na École Normale
Supérieure, ocupando o posto de leitor de alemão. De 1950 até seu suicídio em 1970, Celan
produzirá inúmeros livros. Em 1952, se casa com a artista plástica Gisèle Lestrange com
quem tem dois filhos: o primeiro, nasce em sete de outubro de 1953, com o nome de François.
p. 127 sq. ). (...) Les relations de PC avec Richter et le Groupe 47 resteront extrêmement problématiques, voire
conflituelles. PC veillera toujours à ne pas être considéré comme une membre du Groupe”. CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Paris: Seuil, 2001. p.58
(todas as traduções desta dissertação são traduções livres realizadas pelo autor).
8
“à Oslo (refus de participer à l’almanach publié à la occasion de leur soirée Groupe 47)”. CELAN, Paul.
CELAN- LESTRANGE , Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Paris: Seuil, 2001. p. 199.
9
“Dans sa lettre du 18.1.1965 à Felix Berner, responsable du service des contrats et des affaires juridiques de la
Deutsche Verlags-Anstalt, PC rappele, pour motiver son refus, qu’il n’a jamais faite partie du Groupe”. CELAN,
Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Ibidem. p. 189.
10
“la licence en lettres”. Ibidem. p. 486.
11
“de mémoire sur Kafka ”. Ibidem. p. 486.
17
Ele não sobrevive. Vive só um dia. O segundo filho nasce em seis de junho de 1955 e recebe
o nome de Claude François Eric.
Paul Celan, nascido Paul Antschel-Teitler, nomeia-se Paul Celan em 1946, a partir
da sugestão de uma amiga. O nome Celan vem do anagrama da grafia romena de seu
sobrenome: An/cel. A mudança de sobrenome coloca-o em uma situação singular, pois a sua
identificação ficaria restrita a seu nome de poeta. Já não seria mais possível localizá-lo na
tradição judaica. Com a troca do sobrenome, só podemos identificá-lo à sua escrita.
O poeta Celan elegeu o alemão como sua língua poética. Esta era a sua língua
materna, isto é, a que sua mãe lhe ensinou. Além de ser também a língua assassina dos
nazistas. O próprio Celan se diz um poeta de língua alemã. No entanto, seu alemão é singular,
à medida que, quando ele imigra para a França, o alemão não mais será falado no cotidiano,
mas será uma língua à parte: da escrita, das traduções, das leituras públicas e de seus
encontros literários na Alemanha, Suíça, Áustria ou mesmo em Paris, no contato com alguns
exilados. O alemão também será usado para ensinar, mantendo uma confrontação permanente
com o francês.
A singularidade dos seus poemas escritos em alemão se aproxima muito das
questões de Antonin Artaud sobre a língua francesa. Jean-Michel Rey explica, falando de
Artaud, que
12
REY, Jean-Michel. O Nascimento da poesia – Antonin Artaud. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2002. p. 69.
13
Ibidem. p. 69.
18
14
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. São Paulo, Martins Fontes, 1995. p.46.
15
Ibidem. p. 46.
16
“‘Bio’ de la ‘graphie’, vie intrinsèque de l’écriture”, in LAPORTE, Roger. Quinze variations sur um thème
biographique. Paris: Flammarion/ Éditions Léo Scheer, 2003, p. 12 (pontuação de Frédéric Yves JEANNET em
seu préfacio a obra de Laporte).
17
“Je ne conçois pas d’oeuvre comme détachée de la vie”. Ibidem. p. 412.
18
“S’il en est ainsi, ne faut-il pas dire que le ‘concept’ de biographie est réversible, que non seulement écrire est
nécessaire à la vie, mais encore que la vie d’homme elle-même ne doit pas être séparée de l’écriture? ” Ibidem. p.
412.
19
“écriture vivante et multiple”. Ibidem. p. 229.
19
Refletindo um pouco mais sobre este envolvimento entre a vida e a obra, temos
que reconhecer que a vida de um poeta também recebe as marcas de seus poemas: ela é
habitada por eles. Caminharemos aqui com o pensamento do poeta e pesquisador Marko
Pajevic20, que discute a questão da bio-grafia no texto “Le poème comme écriture de vie”.
Este texto nos leva a uma indagação pertinente. Em que medida a vida real do poeta importa
para o poema? E em que medida é suficiente conhecer a linguagem do poeta para conhecer e
compreender sua vida? Será que nós devemos dizer ao poeta: Je te connais21? “Eu te
conheço” é o início de um poema de Celan, escrito em letras maiúsculas e que dá título ao
poema:
Este poema se encontra entre parênteses, como uma dedicatória, e nos revela algo
de sua biografia. Aqui, vamos estabelecer uma posição interpretativa do poema,
acompanhando, passo a passo, o pensamento de Marko Pajevic. Ele diz que uma indicação
biográfica estabelecida por Christoph Schwerin a propósito deste poema “parece desenhar um
quadro interpretativo”23. A indicação biográfica fala das circunstâncias e dos sentimentos que
desencadearam em Celan o desejo de escrever este poema. Destacamos neste relato de
Schwerin, que é analisado criticamente por Pajevic, alguns pontos que nos interessam aqui:
O quanto o poeta, tomado pelo amor que dedicava a sua mulher, estava consciente
de seu próprio isolamento crescente do mundo, do desamparo que o dominava, isto
20
Marko Pajevic é estudioso da obra de Paul Celan, além de fazer pesquisas poéticas. Em 1999, ele defendeu
uma tese sobre Celan, sob a orientação de Henri Meschonnic et Gert Mattenklot, e publicada em 2000 em
formato de livro, intitulado Zur Poetik Paul Celans. Gedicht und Mensch – die Arbeit am Sinn (“A propósito da
poética de Paul Celan. O poema e o homem – trabalho sobre o sentido”).
21
Poema de Paul Celan, incluído no livro “Mudança de respiração”. Renverse du Souffle (Atemwende).
22
“(ICH KENNE DICH, du bist die Gebeugte,/ ich, der Durchbohrte, bin dir untertan./ Wo flammt ein Wort,
das für uns beide zeugte ?/ Du – ganz, ganz wirklich. Ich – ganz Wahn.) PAJEVIC, Marko. “Le poème comme
‘écriture de vie’”. in Revue Europe. N. 861-861. 2001. p.152. (poema « JE TE CONNAIS », traduzido para o
francês por Fernand Cambon).
23
“semble dessiner um cadre interprétatif ”. Ibidem. p. 152.
20
sobressai de um poema que ele escreveu em 1965. (...) Celan se encontrava em uma
crise tanto no que concerne a sua existência quanto a sua criação, e a mulher, pelos
seus desenhos, o ajudava a buscar um novo começo24.
Poderíamos aqui pensar, a partir deste relato, que a significação do poema seria
simplesmente ser ancorado no relato biográfico. Pajevic, analisando o texto de Schwerin, diz:
“Celan exalta sua mulher que o assiste nos bons como nos maus momentos, ele procura
instaurar um laço com ela nos registros da palavra.” 25
Se formos nos guiar por indicações biográficas, a palavra “delírio” tem referência
aos momentos de intenso sofrimento de Paul Celan, nos anos sessenta. Neste tempo, ele
precisou se internar por muitas vezes em hospitais psiquiátricos. Esta informação
parece legitimar uma interpretação segundo a qual Celan tematizaria aqui o que sua
mulher devia ter sofrido por e através dele, ele se submete a ela que, em seu delírio,
é para ele um ponto de referência e um socorro 26.
A propósito da data em que foi escrito este poema, é preciso marcar, que segundo
a editora de Bonn, este poema foi escrito em nove de janeiro de 1964. A datação de 1965,
relatada por Schwerin está equivocada, o que traduz a dificuldade das indicações biográficas.
Ela nos aponta uma certa insegurança das fontes, além das armadilhas da lembrança. Os
poemas de Celan se caracterizam por terem uma plurivocidade. E a biografia é um dos muitos
elementos que devemos colocar em obra para abordarmos esta poesia. Um pouco mais adiante
retomaremos este ponto da biografia.
Há muitas interpretações possíveis para o poema “EU TE CONHEÇO” já
levantadas por inúmeros estudiosos da obra de Celan. Pajevic fala das particularidades
formais deste poema. “EU TE CONHEÇO” é um dos raros poemas de Celan que é rimado de
maneira regular e também é o único poema que está inteiramente colocado entre dois
parênteses. Para Hans Georg Gadamer, “os parênteses separam aquele que diz ‘eu” da
universalidade habitual do eu lírico, tudo incluindo aí o tu apostrófo” 27. Deste fato, acrescenta
Pajevic, “o poema adquire para Gadamer o ‘caráter de uma discreta dedicatória ou de uma
24
“Combien le poète, pris dans l’amour qu’il portait à sa femme, était conscient de son propre isolement
grandissant dans le monde, de la détresse qui l’importait, cela ressort d’un poème qu’il écrivit en 1965. (...)
Celan se trouvait dans une crise, tant en ce qui concernait son existence que sa création, et sa femme, par ses
dessins, l’aidait à trouver un nouveau commencement”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”.
in Revue Europe. N. 861-861. Op. cit. p.153.
25
“Celan commémore sa femme qui l’assiste dans les bonnes comme dans les mauvaises passes, il cherche à
instaurer un lien avec elle dans le registre de la parole”. Ibidem. p. 153.
26
“semble legitimer une interprétation selon laquelle Celan thématiserait ici ce que sa femme a dû souffrir par et
à travers lui, il se soumet à elle qui, dans son délire, est pour lui un point de repère et un secours”. Ibidem. p. 153.
27
“les parenthèses séparent celui qui dit ‘moi’ de l’universalité habituelle du moi lyrique, tout en incluant le toi
apostrophé”. Ibidem. p. 153.
21
assinatura de um quadro’ (p.105)”28. Já James K Lyon faz uma relação com o caso Goll e “vê
nos parênteses ‘um gesto de proteção’: face a todos os ataques do mundo exterior, esse poema
seria a expressão do idílio e da segurança que Celan encontrava junto a sua mulher”29.
O último verso deste poema nos interessa, na medida em que ele nos coloca diante
do “delírio” e do “real”. Relembremos o verso, primeiro em alemão e depois em sua tradução,
para o português: “Du – ganz, ganz wirklich. Ich – ganz Wahn”. “Tu – toda, toda real. Eu –
todo delírio”30. Temos aqui, que nos reportar a história das palavras Wahn (delírio ou loucura)
e wirklich (real):
28
“ce poème acquiert pour Gadamer le ‘caractère d’une discrète dédicace ou de la signature d’un tableau’”. Esta
citação se encontra no livro Qui sui-je et qui est-tu? Commentaire de ‘Cristaux de souffle’ de Paul Celan de Hans
Georg Gadamer (trad. E. Poulain. Actes Sud, 1987). PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”.
Op. cit. p. 153.
29
“voit dans les parenthèses ‘un geste de protection’: face à toutes les attaques du monde extérieur, ce poème
serait l’expression de l’idylle et la securité que Celan trouvait auprès de sa femme (p. 188-89)”. (A citação de
James K Lyon está em seu livro Absolument pas hermétique. Réflexions sur la ‘juste’ lecture de la poésie de
Paul Celan. New York, 1985. éd. Joseph P. Strelka. Peter Lang. Berne. 1987). Ibidem. p. 154.
30
“Toi – toute, toute réelle. Moi – tout délire”. Tradução feita para o português a partir do francês. Verso do
poema JE TE CONNAIS já citado.
31
“Wahn, sous sa forme wân, signifiait encore em moyen-haut-allemand ‘attente, espérance’; wirklich avait été
forme sur wirken par les mystiques du Moyen Âge et signifiait ‘efficace, agissant, actif’. Ainsi, la ‘profondément
inclinée’n’est pas nécessaire celle qui porte le deuil, mais elle peut être aussi entendue comme celle qui porte
secours”. PAJEVIC, Marko. Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. Cit. p. 155.
32
“agir, produire de l’effet, être efficace”. Ibidem p. 164.
33
“par ‘réel (lement)’ ou par ‘effectif/vement’”. Ibidem. p. 164.
34
“le thème de la parole en tant qu’elle porte témoignage”. Ibidem. p. 155.
22
testemunho para o poeta, para a língua e para sua vida, esta palavra/fala é a poesia, que pulsa
e procria. Aqui, o autor lança mão da palavra alemã Zeugen que não pode ser compreendida
aqui “somente como un Bezeugen, mas como ‘procreação, fecundidade’”35. Vale lembrar que
o verbo bezeugen significa “exclusivamente ‘atestar, certificar, testemunhar’”36. Já Zeugen é
mais abrangente em seu significado, pois além de significar ‘testemunhar’, também pode
querer dizer ‘engendrar’. A poesia não só procria ou fecunda, mas também engendra o
homem.
Voltando a questão do real e do delírio, lembremos que é Nietzshe, em sua
filosofia, que coloca o real e o delírio em oposição. Estou aqui me referido à oposição trazida
por Nietzsche entre dois elementos: apolíneo e dionisíaco. Para o filosofo, estes dois
elementos são necessários à arte:
do lado de Apolo, a realidade sonhada mais perfeita, com sua aptidão para conferir
formas plásticas; do lado de Dionísio, a embriaguez portadora de veracidade e de
fusão. Um sem o outro permanece estéril; é somente na interação dos dois que a arte
pode conseguir se desenvolver37.
35
“seulement comme un Bezeugen, mais comme ‘procréation, fécondité’”. PAJEVIC, Marko. Le poème comme
‘écriture de vie’”. Op. Cit. p. 156.
36
“exclusivement ‘attester’”. Ibidem. p. 164.
37
“du côté d’Apollon, la realité rêvée plus parfait, avec son aptitude à conferer des formes plastiques; du côté de
Dionysos, l’ivresse porteuse de veracité et de fusion. L’un sans autre demeure stérile; c’est seulement dans
l’interaction des deux que l’art peut trouver à se developer”. Ibidem. p. 157.
38
CELAN, Paul. Arte Poética – O meridiano e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia. 1996. p. 67.
23
entre o poema e o homem: “Eu não tenho necessidade de sublinhar que o poema é escrito por
amor desta opinião – pelo amor dos homens, portanto contra todo vazio e toda atomização”39.
A opinião a qual Celan se refere na carta tem relação com Demócrito e também com o poema
“Strette” de seu livro Grille de la parole, que evoca “as devastações da bomba atômica”40.
Neste poema, Celan faz referência, de forma fragmentária, à palavra de Demócrito, que diz:
“Não há nada senão os átomos e o espaço vazio: todo o resto é opinião”41. Para Celan, é o
Homem que sobrevive mesmo que fragmentado. E o poema surge como uma manifestação.
Como diz o poeta, em outro momento, “a poesia não se impõe, mas se expõe”. Com estas
afirmações, ele pretende dar mais ênfase ao poema dando-lhe um “status de ponto de partida,
não o de um resultado de técnicas e conhecimentos determinados”42. Para Celan, não há um
engendramento de um poema: “!!Não falo em nenhum lugar do engendramento de um poema;
mas sempre somente do poema engendrado!!”43. Tanto no início quanto no fim da frase Celan
coloca duas exclamações, realçando seu comentário. Além disso, ele é firme em defender o
seu ponto de vista: “Os poemas não são fabricáveis; eles tem a vida dos seres animados
mortais”44. E o poema “não tem nada a ver com dados biográficos, o poema é escrita de
vida”45.
Aqui cabe acrescentar uma observação muito importante do tradutor Fernand
Cambon46. Segundo ele, no título da versão original do texto de Marko Pajevic, a palavra
Lebensschrift é uma palavra que Paul Celan empregava. Ela deve ser considerada como “a
transcrição direta em alemão da palavra bio-grafia”47. A literalidade da transcrição é menos
perceptível em francês e em português que não dispõem de tais “palavras compostas”48. Esta
39
“Je n’ai pas besoin de souligner que le poème est écrit pour amour de cette opinion – pour l’amour des
hommes, donc contre tout vide et toute atomisation”. “Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn – Extraits”. In
Revue Europe. N. 861-862. 2001. p. 58.
40
“les ravages de la bombe atomique”. Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn – Extraits”. In Revue Europe.
N. 861-862. 2001. Ibidem. p. 58.
41
“Il n’y a rien que les atomes et l’espace vide: tout le reste est opinion”. Citação de Demócrito feita por Celan
na mesma carta a Erich Einhorn.Ibidem.p.58.
42
“status d’un point de départ, non celui d’un résultat de techniques et de connaissances déterminée”. PAJEVIC,
Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. Op. cit. p. 159.
43
Cito: “!!Ne parle nulle part de l’engendrement d’un poème; mais toujours seulement du poème engendré!!”.
Ibidem. p. 159. (esta citação de Paul Celan foi retirada por Pajevic do livro Paul Celan, Der Meridian.
Endfassung Vorstufen Materialien. éd. Boschenstein/ H. Schmull, Suhrkamp, Francfort-sur-le-Main. 1999. p.
94).
44
“Les poèmes ne sont pas fabricables; ils ont la vie d’êtres animés mortels”. Ibidem. p. 159.
45
“n’a rien à voir avec des données biografiques, le poème est écriture de vie”. Ibidem. p. 159
46
Fernand Cambon é germanista, tradutor e ensaísta. Ele foi aluno de Paul Celan na École Normale Supérieure
durante os anos universitários 1963-1964 e 1966-1967.
47
“la transcription directe en allemand du mot bio-graphie”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de
vie’”. (nota do tradutor Fernand Cambon). Ibidem. p. 163.
48
“mots composés”. Ibidem. p. 163.
24
transcrição tem por efeito “um importante deslizamento de sentido”49. O deslizamento aqui
destacado diz de uma passagem da palavra leben(s), vida ou viver para a palavra schrift,
grafia ou escrita. Os dados biográficos não são a “verdade” do poema. A “verdade” se
encontra no deslizamento de sentido que a palavra bio-grafia porta em suas letras. Em Celan,
o poema e a pessoa (o homem) se situam no mesmo plano. Bio, por um lado, referindo-se a
questão da “pessoa” (da vida) e a grafia, por outro lado, na referência ao poema. E o
deslizamento do termo também aponta para a “bio da grafia, via intrínseca da escrita”, trazido
por Laporte. Em sua complexidade, a bio-grafia fala do poema e do homem. E o poema aqui
pode ser visto como a “presentificação do ser de um homem. Ele é ‘escrita de vida’”50. É a
presentificação da vida na escrita. Podemos aqui acrescentar que a vida do homem, nesta
perspectiva não deve ser separada da escrita. Vamos lembrar aqui o Avant-propos de Philippe
Lacoue-Labarthe ao livro de Roger Laporte intitulado Lettre à personne. Ele diz que quando a
obra Une vie de Laporte foi lançada em um “genêro (inédito): biografia”51, devemos pensá-la,
ao senso mais estrito, como “escrita da vida”52. Então, em Laporte, a vida, não certa vida, mas
a verdadeira vida, só chega com a escrita e como escrita, “a saber, o fato de escrever.
Escrever, é viver, porque existe uma vida que ‘não é nem anterior nem exterior à escrita’”53.
Aqui, neste avant-propos, e em todo o livro de Laporte, a escrita está sendo discutida sob o
parâmetro do término da escrita. Roger Laporte, em 24 de fevereiro de 1982, decide parar de
escrever e escreve seu último livro, Moriendo. Assim, renunciar a escrita não significa, de
maneira simples, “morrer”. É algo mais grave. Significa não ser mais capaz de escrever
“esta vida-aqui-de viver”. Habitar, sem habitá-la – porque é simplesmente inabitável ( ou
inospitaleiro, se o termo traduz justamente o alemao unheimlich) – , esse lugar sem lugar,
entre vida e morte. Ou não mais viver senão moriendo”54.
O projeto de Laporte de fazer uma biografia é um projeto de viver-escrever e está
relacionado “com um propósito retomado de Artaud: instaurar uma cultura que, ao contrário
49
“un important glissement de sens”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme ‘écriture de vie’”. (nota do tradutor
Fernand Cambon). Op.cit. p. 163.
50
“présentification de l’être d’un homme. Il est ‘écriture de vie’”. Ibidem. p. 159.
51
“genre (inédit): la biographie”. LAPORTE, Roger. Lettre à personne – Carnets. Paris: Plon. 1986. (Avant-
propos de Philippe Lacoue-Labarthe). p. 15.
52
“écriture de la vie”. Ibidem. p. 15.
53
“c’est-à-dire le fait d’écrire. Écrire, c’est vivre, parce qu’il existe une vie qui ‘n’est ni antérieure, ni extérieure
à l’écriture’”. Ibidem. p. 16.
54
“cette vie-là-de vivre. Habiter, sans l’habiter – parce qu’il est tout simplesment inhabitable (ou inhospitalier, si
ce terme traduit justement l’allemand umheimlich) – , ce lieu sans lieu, entre vie et mort. Ou ne plus vivre que
moriendo”. Ibidem. p. 16.
25
da arte desinteressada, seja ‘um meio refinado de compreender e de exercer a vida’. O que
Artaud esperava do teatro, eu o espero da escrita.”55
Além disso, Laporte acredita que a escrita lhe possa dar a possibilidade de se
sentir vivo. E novamente ele se serve do texto de Artaud, fazendo uma mudança verbal no
texto; onde Artaud escreve jouer (atuar) ele substitui por écrire (escrever). Citemos Artaud,
na leitura de Laporte: “Quando eu vivo eu não me sinto viver. Mas, quando (eu escrevo) é aí
que eu me sinto existir”56. Na correspondência de Paul Celan, seja à sua mulher Gisèle, seja a
alguns amigos, também encontramos uma forte relação entre a vida e a escrita. Lembremos
aqui a carta que ele envia a seu amigo Erich Einhorn, onde fala de seus escritos. Na referência
aos seus livros, Celan escreve: “Ao ver as coisas que eu lancei aqui, sobre o papel, você
saberá, sem dúvida, em que ponto estou da minha vida e de meus pensamentos (Eu jamais
escrevi uma linha que não tivesse a ver com a minha existência)”57. Existência e escrita estão
entrelaçadas no poeta.
55
“avec un dessein repris d’Artaud: instaurer une culture qui, à l’opposé de l’art désintéressé, soit ‘un moyen
raffiné de comprendre et d’exercer la vie’. Ce que Artaud attendait du théâtre, je l’attends de l’écriture”.
LAPORTE, Roger. Quinze variations sur um thème biographique. Op. cit. p. 408.
56
“ Quand je vis je ne me sens pas vivre. Mais quand (j’écris), c’est là que je me sens exister”. Ibidem. p. 408.
57
“À voir les choses que j’ai jetées là sur le papier, tu sauras sans doute où j’en suis de ma vie et de mes pensées.
(Je n’ai jamais écrit une ligne qui n’êut à voir avec mon existence)” Correspondance Paul Celan/ Erich Einhorn”.
Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001. Op. cit. p. 57.
3. PAUL CELAN E O POEMA “FUGA DA MORTE”
27
Encontramos com clareza, em Paul Celan, a relação paradoxal entre obra e vida.
O poema Todesfugue, traduzido por “Fuga da morte”, traz esta questão. Este poema foi escrito
em 1947, logo após o final da guerra. As feridas da guerra e do horror dos campos de
concentração deixavam sua marca em toda a humanidade. Cicatrizes sem cicatrização.
Naquele tempo o poeta chileno Vicente Huidobro, que estava em Berlim no final da guerra,
disse que a sua poesia não seria mais a mesma. Agora ele escreveria seus poemas com as
palavras feridas. Da mesma forma podemos dizer, que Celan também escreveu com palavras
feridas. Há, em sua poesia, uma “‘ferida de lembrança’ não curada”58, como veremos mais
adiante.
Paul Celan escreveu o poema “Fuga da morte” quando estava de passagem, em
Viena. Depois, foi morar em Paris, e demorou algum tempo para se adaptar aos hábitos
parisienses. Sentia-se só e muito culpado pela morte dos pais. Ficou em Paris até o fim da
vida. Ele irá dedicar-se à literatura, seja nas traduções, seja na escrita poética. Apesar de
morar em Paris e poder compartilhar com os alunos da École Normale Supérieure, onde
lecionava língua alemã, e com os amigos de língua alemã que moravam em Paris, ele
necessitava viajar constantemente à Alemanha, Suíça e Áustria. Parecia precisar ouvir a
língua alemã. Mas, mesmo em suas viagens, quando divulgava sua escrita, falando em
alemão, língua escolhida por ele para escrever seus poemas, Celan não ficava à vontade,
sempre estranhando alguma coisa. Às vezes ficava acuado com as perguntas, e com a falta de
entendimento em relação a sua poética. Acuado e revoltado. Não admitia ser chamado de
poeta hermético. Sua poesia era clara, e ele a escrevia para que todos entendessem, gostava de
dizer. O poeta sentia-se tomado por um desassossego sem trégua.
O poema “Fuga da morte” faz alusão à experiência de Paul Celan como
prisioneiro de guerra dos nazistas em um campo de trabalhos forçados. Ele surge depois da
experiência traumática vivida pelo poeta na guerra. Também traz à tona as atrocidades
ocorridas nos campos de concentração. Evoca uma experiência vivida em um campo de
concentração. Sabemos que os pais do poeta morreram nos campos. Este poema foi o
primeiro a ser assinado como Paul Celan. Aqui, ele se despedia do seu nome paterno
Antschel. O que estaria indicado aqui seria o que Maingueneau chamou de “reserva” de um
autor. Podemos lembrar que quando o escritor Julien Gracq é colocado na coleção La Plêiade,
ele se recusa a deixar reproduzirem sua assinatura. Maingueneau nos esclarece sobre este
ponto:
58
ABI- SÂMARA, Raquel. Quem sou eu, quem és tu? Hans-George Gadamer: leitor de Paul Celan. Tese de
doutorado apresentada no programa de Pós-graduação em Letras – UERJ, 2002. p.36.
28
O ato de Paul Antschel de mudar seu sobrenome, e se intitular Paul Celan não só
aponta para uma “reserva” incondicional do escritor, mas também para uma reescritura de seu
próprio nome. Não se trata de um pseudônimo como no caso de Julien Gracq. Esta mudança
de sobrenome estabelece um trabalho de linguagem, trabalho que irá de encontro a sua criação
poética. A mudança de nome só antecipa aquilo que estava por vir, isto é, uma mudança
semântica radical, uma gramática ferida.
O poema “Fuga da morte” traz em seus versos a possibilidade de uma experiência
entre a linguagem (sua escrita poética) e os eventos. E é nesta tênue relação entre a escrita e a
vida, que se dá a construção poética. Maingueneau nos esclarece sob este ponto dizendo o
seguinte:
o escritor só consegue passar para sua obra uma experiência da vida minada pelo
trabalho criativo, já obsedada pela obra. Existe aí um envolvimento recíproco e
paradoxal que só se resolve no movimento da criação: a vida do escritor está à
sombra da escrita, mas a escrita é uma forma de vida.60
59
MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Op. cit. p. 55-56.
60
Ibidem. p. 47.
61
FUENTES, Pablo. El arte de la fuga: La escritura poética y lo real, retirado do site
http://meltingpot.fortunecity.com/namibia/601/elartedelafuga.htm , dezembrode2002, p. 1.
29
oxímoro Schwarze Milch (Leite Negro). Entre as estrofes, se alternam duas transições e uma
coda final. Coda é um período musical brilhante e vivo, que termina a execução de um trecho.
O poema, em sua estrutura formal, se apóia “sobre o princípio construtivo da fuga musical”.62
Paul Celan utiliza os recursos musicais da fuga, fazendo uso de distintas vozes no texto.
Assim, ficamos com uma impressão de fuga.
Eis o poema:
Fuga da morte
62
“As partes principais da fuga musical são os desenvolvimentos e as transições. A fuga começa com uma voz
expondo o tema no tom principal. A continuação, uma segunda voz inicia o tema em uma forma um pouco
modificada, quase como uma ‘resposta’ enquanto a primeira voz cumpre uma função de contraponto. As
distintas vozes ou temas que se apresentam dão uma impressão de fuga.” (segundo apontamentos de Pablo
Fuentes).
30
63
CELAN, Paul. “Fuga da morte” in Sete rosas mais tarde. Antologia poética, seleção, tradução e introdução de
João Barrento e Y. K. Centeno. Edições Cotovia, Lisboa, 1996, p. 15-19.
64
FUENTES, Pablo. El arte de la fuga: La escritura poética y lo real. Op. cit., p.4.
31
65
FELMAN, Soshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” in Catástrofe e Representação. São
Paulo: Escuta, 2000. p. 43.
32
66
FELMAN, Soshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino.” Op. cit. p. 45.
67
CELAN, Paul. Não mais arte de areia in Poemas. Tradução de Pablo Oyarzún. Edición Electrónica de
www.philosophia.cl . Escuela de Filosofía. Universidade de Arcis, p. 86.
4. O POETA E SUAS INDAGAÇÕES
34
Em 22 de março de 1962, Celan escreve uma carta ao poeta René Char, carta esta
que ele não consegue enviar. Ele escreve para agradecer o apoio dado a ele por Char no
affaire Goll68. Cito alguns trechos da carta:
68
O chamado affaire Goll se refere à acusação feita por Claire Goll, viúva do poeta surrealista Yvan Goll, do
qual Celan era tradutor e amigo: Em 1951, a senhora Goll instiga o editor Franz Vetter da editora Pflug Verlag a
recusar as traduções de Paul Celan dos poemas de seu marido Yvan Goll, alegando “que elas portavam a marca
bastante pregnante do tradutor”. (Correspondance. Vol. II. p. 488.) Este ato teve conseqüências duras, porque
um tempo depois, ela publicou uma carta aberta em um jornal alemão, difamando o nome de Paul Celan,
acusando-o de plágio.
69
“Cher René Char, merci pour votre lettre – si vraie. Merci de me serrer la main – je serre la vôtre. (...) La
poésie, vous le savez bien, n’existe pas sans le poète, sans sa personne – sans la personne”. CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations Vol. II. Paris: Seuil, 2001. Op.
cit. p.535.
70
“quant à moi, on me redistribue, puis, on s’amuse à me lapider avec... les pièces détachées de mon moi”.
Ibidem. p. 536.
71
das Selbst em alemão.
72
“JE est un autre”. RIMBAUD, Arthur. Carta a Paul Demeny de 15 de maio de 1871. In: RIMBAUD Poésies,
Le livre de Poche n. 5924, p.201.
35
entendida como uma ferida, uma dimensão da experiência poética. A partir desta frase de
Rimbaud, o que se apresenta é a descontinuidade do eu. Rimbaud se opõe, nas palavras de
Michel Collot, à “teoria tradicional da expressão, segundo a qual o eu, na sua identidade e
integridade será mestre e fiador – auctor – de sua palavra”.73 A oposição de Rimbaud quebra
a hegemonia do eu. Ele recusa a concepção cartesiana que dá ao sujeito a faculdade de
coincidir com ele mesmo no ato de pensar: “é falso dizer: eu penso: deveríamos dizer: alguém
me pensa”.74 Rimbaud se mostra atento a isso que se passa alheio a si mesmo. Vale lembrar
aqui Lacan que também recusa a idéia do “eu penso”. Lacan diz que
contém tudo o que é herdado, que se acha presente no nascimento, que está assente
na constituição – acima de tudo, portanto, as pulsões, que se originam da
organização somática e que aqui [no isso] encontram uma primeira expressão
psíquica, sob formas que nos são desconhecidas78.
Para Freud, esta parte do aparelho psíquico permanece sendo a mais importante
durante toda a vida. Sabemos, pela psicanálise, que a formação do “eu” se dá a partir do isso.
Ele é um destinatário dos investimentos derivados do isso. Assim, o “eu” é “uma espécie de
73
COLLOT, Michel. “L’Autre dans le Même” in COLLOT, Michel & MATHIEU, Jean-Claude (org.). Poésie et
Alterité. Paris: Presses de L’École Normal Supérieure, 1990. p. 31.
74
“C’est faux de dire: Je pense: on devrait dire: On me pense”. RIMBAUD, Arthur. Carta a George Izambard de
13 de maio de 1871. In: RIMBAUD Poésies. Le Livre de Poche n. 5924. Op.cit. p. 200.
75
LACAN, Jacques. “Da estrutura como intromistura de um pré-requisito de alteridade e um sujeito qualquer” in
A controvérsia estruturalista. São Paulo: Editora Cultrix Ltda. p. 201.
76
COLLOT, Michel. “L’Autre dans le Même”. Ibidem. p. 31.
77
“j’ai voulu dire ce que ça dit”. Ibidem. p.31.
78
FREUD, Sigmund. Obras Completas. Volume XXIII. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1969. p. 169-170.
36
estação terminal de um processo gerado em outra cena”79. Então, ele não controla as reservas
libidinais do ser falante. Ele somente as conserva.
O poeta, quando traz a sua palavra não a traz pelo seu “eu” (moi), pois quem fala é
o Je não-reconhecido (Je méconnu). Podemos dizer, então, que o sujeito que fala está além do
“eu” e toca aquilo que é mais não-reconhecido (méconnu). É a partir deste desconhecimento,
no campo do “eu”, que podemos pensar o inconsciente e aproximá-lo do ça dit trazido por
Collot.
Há, então, um desconhecimento (méconnaissance) que vai implicar, em seu
significado, precisamente o sujeito (Je) de que fala Rimbaud. Assim, a questão do encontro
consigo mesmo, trazida por Celan, se refere muito mais ao desconhecimento de que fala
Lacan do que “a pessoa” em sua totalidade. Desconhecimento que talvez possa ter alguma
relação com os “pedaços destacados” do “eu”, na medida em que Celan fala de um “eu”
fragmentado. É claro que aqui estamos pensando na referência a singularidade da descoberta
freudiana, a saber: “a intrínseca determinação do sujeito por fatos de linguagem dos quais ele
não tem nenhuma percepção e que lhe são estritamente particulares”80. O próprio “ato falho”,
introduzido por Freud como uma formação do inconsciente, já aponta uma falha no “eu”, uma
singularidade do inconsciente onde as palavras que tropeçam são palavras que confessam.
Então, o inconsciente, esse saber não-sabido, porta uma falta e fala de um desconhecimento.
Deconhecimento que implica um saber, que precisa ser inventado. O laço entre
desconhecimento, inconsciente e invenção nos interessa aqui para pensarmos o poeta como
aquele que faz passagens em direção a uma invenção.
Em 17 de março de 1961, Celan assiste a três conferências de Theodor Adorno no
Collège de France, mas não pôde assistir a todas as conferências. Então, ele escreve para
Adorno para se desculpar dizendo: “eu me sinto muito sozinho, estou muito sozinho – comigo
mesmo e meus poemas (o que eu considero uma só e mesma coisa).”81 A travessia solitária
que Paul Celan empreende é bem exemplificada em seu discurso “O meridiano”. O texto
definitivo do discurso “O meridiano” “é o resíduo da decantação difícil de um manuscrito
enorme (notas, tentativas, transcrições entre maio e outubro de 1960) com cerca de 300
79
CABAS, Antonio Godino. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan. São Paulo, 1982. p. 216.
80
CONTÉ, Claude. O real e o sexual – de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. p. 252-253.
81
“Je me sens très seul, je suis très seul – avec moi même et mes poèmes (ce que je tiens pour une seule et même
chose).” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol II.
Op. cit. p. 530.
37
páginas”.82 Este discurso é qualificado por Derrida como um “ato exemplar”. Roger Laporte,
em seus comentários sobre Paul Celan complementa dizendo que:
82
CELAN, Paul. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Posfácio de Joao Barrento. Lisboa: Edições
Cotovia, 1996. p. 78.
83
“Le Méridien est en effet un ‘acte exemplaire’ dans la mesure où l’acte de la pensée et l’acte poétique ne font
q’un. Cet acte constitue une écriture, si constitue comme une nouvelle modalité d’écrire, comme expérience,
c’est-à-dire à la fois comme épreuve et comme traversée, comme franchissement, comme tentative de
franchissement d’une contrée effrayante, comme un frayage qu’il faut accomplir jusq’au bout”. LAPORTE,
Roger. Études. Paris: P.O.L. Éditeur, 1990. p. 72-73.
84
Schibboleth é uma palavra de origem hebraica que se encontra no Antigo testamento; em alemão quer dizer
algo próximo de Erkennungszerchen (signo de reconhecimento). Schibboleth também é um poema que Celan
escreveu em 1954 e faz parte do livro Von schwelle zu schwelle (De limiar em limiar).
85
Real aqui não tem nehuma relação com a realidade. Vou utilizar o termo em itálico para evitar possíveis
confusões com a realidade. Vamos abordar aqui o termo real na concepção lacaniana, que será explicado no
decorrer da dissertação.
86
CELAN, Paul. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 63.
38
Ao falar de “coisa divertida”, Celan faz um jogo, na língua alemã, com “as
palavras “tropos” e “trópicos” (que tem a mesma forma de plural, Tropen)”89. A palavra
tropos quer dizer no sentido dos céticos, argumentos que mostravam que era impossível
atingir a verdade. Também quer dizer desvio, mudança. Encontrar um Meridiano pode ser
lido como algo impossível de se realizar em sua totalidade, quer dizer, impossível de atingir a
verdade do encontro e, por conseguinte, impossibilidade que atinge o próprio poeta, em sua
busca de si mesmo. Além disto, a “coisa divertida” tem relação com a carta não enviada por
Celan a Char, já citada no início deste capítulo, que fala do divertir-se até se “lapidar com... os
pedaços destacados” de seu eu.
A partir da cronologia feita por Bertrand Badiou no segundo volume da
correspondência90, vamos poder adentrar um pouco nas notas e na agenda pessoal do autor,
onde encontraremos maiores referências bio-gráficas sobre Paul Celan. Em 22 de outubro de
1960, Paul Celan recebe o importante prêmio Georg Buchner, já comentado neste capitulo.
Depois, o texto do discurso intitulado “O Meridiano” será publicado. Neste dia, ele escreveu
em sua agenda uma referência ao discurso. Assim fala o texto incluído na cronologia de
Celan: “Mas o poema fala! Da data que é a sua, ele preserva memória, mas – ele fala. Ele fala,
certamente, sempre, da circunstância única que, propriamente, lhe diz respeito”.91 Este recorte
do texto vai ao encontro do que Michel Deguy diz em homenagem a Paul Celan: “todo poema
é de circunstância (...) Dito em outros termos: um poema espera. Ele espera repassar no
87
Cito : “Selbstbegegnung (rencontre de soi même)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 522.
88
CELAN, Paul. O Meridiano in Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 63.
89
CELAN, Paul. Ibidem. nota n.26. p. 63.
90
CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et Illustrations. Vol. II.
Paris: Seuil, 2001.
91
“Mais le poème parle! De la date qui est la sienne, il préserve mémoire, mais – il parle. Il parle, certes,
toujours, de la circonstance unique qui, proprement, le concerne”. Ibidem. p. 527.
39
‘meridiano’: quer dizer cruzar com uma circunstância”.92 O poema, então, espera. Espera a
circunstância que lhe dará algum sentido, a data que o fará sair da espera e esclarecer algo –
que se apresenta marcado pelo “enigma da data”, segundo as palavras de Derrida. O enigma
que aqui nada mais é que a experiência poética da data. E, nesta experiência poética da data,
leio uma passagem ao poético. Afirma-se uma poética – na relação com as datas. Celan em
seu discurso “Meridiano” declara que: “talvez se possa dizer que em cada poema fica inscrito
o seu ‘20 de janeiro’*. Talvez o que há de novo nos poemas que hoje se escrevem seja isto:
que é aí que, da forma mais clara, se procura manter viva a memória de tais datas”.93 Manter
viva a memória de datas, recortar uma circunstância, trazer o poema à sua singularidade de
acontecimento, dar “fisionomia às datas”, como dizia Benjamin e assim trabalhar o poema em
sua operação criadora.
Jacques Derrida dedica-se a trabalhar a questão do “enigma da data” no livro
intitulado Schibboleth. Derrida, neste livro, se propõe a estudar a importância da data na
poética de Paul Celan. As datas, muitas vezes, também tinham referência a um lugar. Alguns
poemas estão datados em Zurich, Tubingen, Todtnauberg, Paris, Jerusalém, Lyon, Tel-Aviv,
Viena, Assis, Colônia, Genebra, etc. Ele lembra que ao começo ou ao final de uma carta, “a
data consigna um agora do calendário ou do relógio”94. As datas, inscritas nas cartas, marcam
o que se encontra dado. E o que é datado é algo da ordem de uma assinatura – e que se
encontra re-marcado de uma forma singular. Para Derrida, o que se remarca é sua “partida”,
este início da carta que pertence à data, mas que a abandona ao partir dirigindo-se ao outro.
Há aqui, certa forma de repartição. A marca que a data porta deve ser des-marcada, pois ela
precisa se desgarrar do datado e seguir seu caminho. É preciso, então, que o datado não date,
isto é, não mantenha a fixidez do datado, que impediria a carta de seguir seu destino. Assim, a
legibilidade da data poderá comparecer arrancando ou se substraindo a si mesmo, isto é, a sua
aderência imediata ao aqui e agora.
Além disso, na experiência poética de Paul Celan, cada data tem a sua própria
ferida. Lemos no texto “Lectures de Paul Celan” de Roger Laporte uma reflexão importante
sobre a data, a partir de Derrida. Diz o texto: “nós nos interessamos pela data como por um
entalhe ou a uma incisão que o poema traz em seu corpo [...], o poema começa por se ferir em
92
“tout poème est de circunstance (...). Dit en autres termes: un poème attend. Il attend de repasser au
‘méridien’: c’est-à-dire de recouper une cirscunstance”. in DEGUY, Michel. “Paul Celan, 1990” in La raison
póetique. Paris: Galilée, 2001. p. 93.
* 20 de janeiro de1942 é a data em que os nazistas se reuniram em uma mansão à beira do lago Wansee, em
Berlim, para decidir o destino dos judeus. A “solução final” para o “problema judaico” era a câmara de gás.
93
CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 54.
94
DERRIDA, Jacques. Schibboleth. Para Paul Celan. Madrid: Arena Libros 2002.p. 29.
40
sua data”95. Podemos então dizer que a memória das datas, para Celan, tem relação com a
memória dos crimes do fascismo, e, de modo geral, com a memória de todas as violências
durante os séculos contra a humanidade. Cada poema de Celan porta um rastro destas datas.
Daí ele frisar que em cada poema estaria inscrito o seu “20 de janeiro”.
Também encontramos em Celan a referência à data como algo de um valor
talismânico. Para ele, o número 23 tinha um valor de talismã ligado à sua data de nascimento,
que era 23 de novembro, e a data de seu casamento com Gisèle, um 23 de dezembro. Ele
chamava estas datas de “‘grandes aniversários’; os 23 dos outros meses do ano eram os
‘pequenos aniversários’”96. Em 23.1.1955, ele envia um telegrama (de Stuttgart) dizendo:
“BOM ANIVERSÁRIO MINHA QUERIDA BOM ANIVERSÁRIO”97. Mesmo internado
em uma clínica privada de Vésinet, Celan lembrava do dia 23. No dia 11 de maio de 1965 (n.
230), ele diz que terá que ficar quinze dias na clínica e acrescenta: “Será, pois para o 23, dia
de aniversário”98.
Michel Deguy nos fala que, para pensarmos a poesia de Celan como experiência,
ela teria que cumprir três requisitos: originalidade, rigor (mantendo a lógica própria do poema
– a sua singular respiração) e responsabilidade. E acrescenta:
95
“nous nous intéressons à la date comme à une entaille ou à une incison que le poème porte dans son corps [...],
le poème commence par se blesser à sa date ” LAPORTE, Roger. Études. Op. cit. p. 69.
96
“‘grands anniversaires’; les 23 des autres mois de l’année étant les ‘petits anniversaires’”. CELAN, Paul.
CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance II – Commentaires et Illustrations. Op. cit. p. 46.
97
“BON ANNIVERSAIRE MA CHÉRIE BON ANNIVERSAIRE”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN,
Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 64.
98
“Ce será donc pour le 23, jour d’anniversaire”. Ibidem. p. 241.
99
algos em grego significa “dor” , de onde vem o sufixo algia, que entra na formação de palavras do tipo
nevralgia, mialgia etc
100
“La poèsie celanienne, transfiguration de l’expérience en son poème, est cette prouesse des trois à la proue de
la poésie: par la densité de la gravité; par la logique de l’algos, ou pensée de la douleur; par la référence, oui,
autre nom de la responsabilité, c’est-à-dire la ‘puissance prochaine’(Merleau-Ponty) qu’exerce ce dire sur les
choses du temps, de notre temps.” DEGUY, Michel. “Paul Celan, 1990” in La raison póetique. Op. cit. p. 92.
101
DERRIDA, Jacques. “Poétique et politique du témoignage”. in Cahier de L’Herne - Jacques Derrida. 2005.
p. 521.
41
em Celan, isto não chegava a este ponto, mesmo assim. Mas, em todo caso, isto tem
o risco de pertubar o ato poético, que não é, propriamente, ‘eterno presente’, mas
que é perpetuamente recomeçado e engajado no presente efetivo. Isto vai
desempenhar um papel fixador bastante importante. 107.
102
CELAN, Paul. A morte é uma flor. Lisboa: Edições Cotovia. 1998. p. 133. (posfacio de João Barrento)
103
“à laquelle se rattachent l’idée de traversée et secondairement, celle d’epreuve”. LACOUE-LABARTHE,
Philippe. La poésie comme experience. Paris: Christian Bourgois Éditeur. 1997. p. 30.
104
“un acte qui se vit essentiellement au présent, plus que tout autre. C’est une sorte de présent incessamment
renouvelé”. CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”. Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund
Freud. 2001. p. 89-90.
105
“éternel présent”. RABINOVITCH, Solal. Les voix. Paris: Point hors ligne, Érès coll. 1999.
106
“par le bouleversement de la temporalité qu’elle engendre”. CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”.
Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund Freud. 2001. p.91.
107
“Chez Celan, ça n’etait pas à ce point là, tout de même”. Mais en tout cas, ça risque de bouleverser l’acte
poétique, qui n’est pas, lui, proprement ‘éternel présent’, mais qui est perpétuellement recommencé et engagé
dans le présent effectif. Ça va jouer un rôle fixateur très important”. Ibidem. p.91.
42
108
“le ‘temps spécifique de la poésie’, comme Celan l’a noté une fois”. PAJEVIC, Marko. “Le poème comme
‘écriture de vie’”. Op. cit. p. 159. (esta citação de Celan foi encontrado por Pajevic na margem de um livro lido
por Celan de Husserl: Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps.)
109
artigo publicado na Revue Europe.n. 861-862 Paris: 2001.
110
“la poésie serait la forme de langage la plus adéquate pour soutenir une tache marquée d’impossible”.
CAMBON, Fernand. “Paul Celan en Provence”. Carnets 35. Paris: École Psychanalytique Sigmund Freud. 2001.
Op. cit. p. 89.
111
“réel de l’acte poétique”. Ibidem. p. 89.
112
“réel de la Shoah”. Ibidem. p. 89.
113
LACAN, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Livro XI (1964-1965). Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1988, p.57.
114
Ibidem. p.57.
115
“Tout le contraire d’une métaphore, un événement pur, l’impossible, le surgissement d’une absolue horreur,
c’est-à-dire d’un réel (au sens lacanien) d’abord insymbolisable, qui risque de faire retour comme trauma, dans
le réel de l’Histoire, tant qu’il reste événement inanalysé, tant que le silence sera complice des forces qui, depuis
le début, oeuvraien pour le refoulement – l’oubli”. BRODA Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après
43
Auchwitz” in Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres essais. Paris: Les éditions du Cerf.
2002. p. 155.
116
DAYAN, M. “Répetition et composition du réel” in Topique 41, 1988. p. 101
117
LAMBOTTE, Marie-Claude. O Discurso melancólico. Rio de Janeiro: Companhia de Freud Editora. 1997. p.
500.
118
Ibidem. p. 500.
119
Ibidem. p. 500.
120
Ibidem. p. 501.
121
Ibidem. p. 501.
122
“ce trou, je le nomme réel. Réel s’entend ici aus sens lacanien: ce qui commence là ou le sens s’arrête”.
PRIGENT, Christian. L’Incontenable. Paris: P.O.L. 2004. p. 17.
123
“l’image à la pure perception, c’est-à-dire en tant qu’elle cherche à vider ou à evider l’image”. LACOUE-
LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p.101.
44
O caráter não metafórico da poesia de Celan nos fala de seu trabalho para
“simbolizar o insimbolizável”127, trabalho que um sujeito “descobre na língua o ‘ponto de
poesia’”128 a partir do qual, do impossível algo possa se inscrever. Celan inventa uma poesia
que caminha em direção ao caos das metáforas – “uma poesia sem imagens e sem metáforas,
à altura desta não-metáfora absoluta que é Auschwitz, do infigurável da morte”129. Uma
poesia que tem um caráter alegórico.
Luiz da Costa Lima, em seu livro Mímesis: Desafio ao pensamento discute a
questão da representação a partir do poema “Todtnauberg” de Paul Celan. O poema fala de
uma situação concreta: o encontro de Celan com Martin Heidegger na cabana do filósofo, na
aldeia de Todtnauberg, situada na Floresta Negra. Vejamos o poema:
Arnica, centáurea, o
sorvo no poço,
no topo
124
“sa mesure à l’impossibilité d’un language sans image ou à l’impossibilité de ce que Benjamin appelait le
‘pur language’”. LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p. 101.
125
“ j’ai toujours entendu mon mari insister sur le caractere absolument non métaphorique et dénué d’images de
sa poésie, qu’il associait à la réification du mot”. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Apud BRODA, Martine. “Paul
Celan, la politique d’un poéte après Auchwitz”. Dans la main de personne – Essai sur Paul Celan et autres
essais. Op. cit. p. 154.
126
“‘réification’ me semble être une traduction de cette Dinglichkeit ( comme consistance insufflée au linguage,
‘être-de-chose’ ou encore ‘effet-de-chose’), que Celan atribue au mot chez Mandelstam dans une des ‘Lettres à
Gleb Struve’ (op. cit), où il s’interroge sur le statut très particulier du référent dans la poèsie de celui-ci”.
BRODA, Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auchwitz”. In Dans la main de personne – Essai
sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 154.
127
“symboliser o l’insymbolisable”. BRODA, Martine. Ibidem. p.155.
128
“découvre dans la langue le ‘point de poésie’”. BRODA, Martine.Ibidem. p. 155.
129
“une poésie sans image e sans métaphore, à la hauteur de cette non-métaphore absolue qu’est Auschwitz, de
l’infigurable de la mort”. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Apud BRODA, Martine. Ibidem. p.155.
45
o dado estrelado
na cabana,
No livro –
que nomes recolheu
antes do meu? –,
a linha escrita
neste livro,
esperança, hoje,
da palavra
de um pensador
vinda
Ao coração
Muito úmido130
Creio estes poemas estritamente intraduzíveis, inclusive dentro de sua própria língua
e, por isso, aliás, incomentáveis. Furtam-se necessariamente à interpretação; eles a
interditam. No limite, são escritos para interditá-la. Eis por que a única questão que
os conduz, como conduziu toda a poesia de Celan, é a do sentido, da possibilidade
do sentido131.
130
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 268-269
(tradução feita por Luiz Costa Lima neste texto).
131
“Je crois ces poèmes strictement intraduisibles, y compris à l’intérieur de leur propre langue, et pour cette
raison d’ailleurs incommentables. Ils se dérobent nécessairement à l’interprétation, ils l’interdisent. Ils sont
écrits, à la limite, pour l’interdire. C’est pourquoi l’unique question qui les porte, comme elle a porté toute la
poésie de Celan, est celle du sens, de la possibilité du sens”. LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme
experience. Op. cit. p. 23-24. Tradução de Luis Costa Lima, no livro Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.269.
132
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Ibidem.
p.270.
46
reconstituição empírica dos poemas de Celan. Trata-se da análise que Peter Szondi fez do
poema “Eden” de Paul Celan. Cito: “a reconstituição da caminhada que fizera com o poeta em
Berlim torna nítido e comovente o que, de outra maneira, deixaria o leitor apenas
desorientado”133. Costa Lima propõe a reconstituição do “encontro” de Celan com Heidegger.
Há uma homologia entre os obstáculos do poema e os obstáculos do encontro. Diz: “é
admissível que o poema elimine os esclarecimentos necessários não para que exista o prosaico
ou elida o sujeito, porém por um motivo menos especulativo: os obstáculos do poema
funcionam como homólogos ao encontro”134. Não vamos nos adentrar no comentário de Costa
Lima sobre o poema. Faremos algumas pontuações que nos interessam.
Lacoue-Labarthe diz que a poesia tem, talvez, um só objeto: a interdição da
representação. Para este autor, a exigência última da poesia de Celan é uma espécie de
destruição da metáfora. O interdito à interpretação, assim como a interdição à representação
de Lacoue-Labarthe são questionados por Costa Lima.
O primeiro verso do poema Todtnauberg: “Arnica, centáurea” contém apenas
substantivos. Tanto arnica quanto centáurea são plantas medicinais. É interessante e
“literalmente significativo que um poema que dirá respeito a um encontro se inicie pela alusão
a recursos médicos”135, diz Costa Lima. Os três versos seguintes “sorvo no poço,/ no topo/ o
dado estrelado” falam de um lugar específico. A informação factual vem ajudar, pois se trata
de um poço que fica do lado de fora da cabana de Heidegger. O poço tem uma marca que
forma um dado estrelado. Ele lembra que a palavra Sternwurfel, “literalmente significa
‘estrela-dado’”136. A informação vem de uma carta do filho do filósofo, Hermann Heidegger,
que transcreve o que Celan escrevera no livro dos visitantes da cabana. Na carta lemos: “No
livro da cabana, com o olhar sobre a estrela do poço, com a esperança, no coração, de uma
palavra por vir. 27 de julho, 1967, Paul Celan”137.
Em dois de fevereiro de 1968, Celan escreve ao editor Robert Altmann
comentando a recepção de Heidegger ao poema “Todtnauberg”. Diz a carta:
133
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p.270.
134
Ibidem. p. 270.
135
Ibidem. p. 270
136
Ibidem. p. 270.
137
Ibidem. p. 271.
47
nos dissemos muito em silêncio. Eu penso que certas coisas ainda, um dia, serão
destacadas do não-dito para entrar no diálogo”. Se nós nos virmos, como eu espero,
na semana que vem, eu lhe levarei a carta.
Com minhas cordiais saudações, seu Paul Celan.138
A carta de Heidegger, em sua integra só foi publicada em 1998 por Stephan Krass
na Neue Zürcher Zeitung. Celan não faz nenhum comentário sobre a carta de Heidegger. Ele
também se cala diante de Heidegger. A presença do humor “múltiplo” na carta de Heidegger
fala das marcas deste encontro.
Prosseguindo nos questionamentos críticos trazidos por Costa Lima, para
pensarmos a representação, vamos partir agora de uma frase de Paul Celan recolhida por
Lacoue-Labarthe do discurso “O Meridiano”. Lacoue-Labarthe diz que os poemas de Celan
“trariam o traço de toda obra de arte: ‘a arte cria a distância do eu’”139. Esta frase que fala da
arte criando uma distância em relação ao eu, é corretíssima, diz Costa Lima, “tanto no caso do
poema considerado como da arte em geral se por ela se entenda que a obra de arte não é
propriedade da intencionalidade autoral”140. Para Costa Lima, “a obra apresenta ou produz
(darstellt) uma cena e não só a representa (vorstellt)”141. Mas isto não quer dizer que a
representação esteja ausente. Representação, para este autor, está na referência ao efeito
causado em um sujeito. A representação no poema Todtnauberg “pressupõe a apresentação de
uma certa cena pelo poema”142. A cena da qual Costa Lima fala não tem “um mero caráter
descritivo”143. Daí, esta apresentação proposta por Costa Lima produzir um novo objeto: o
poema, que
se projeta sobre restos ou parcelas da cena real: a subida de uma montanha por
alguém, que vê uma cabana e um poço; alguém que nutre um desejo; que sai da
cabana sem que ele se cumpra; que segue, junto com duas outras pessoas, por um
caminho que leva mais acima, de que sumariamente se diz ter um brejo e ser muito
138
[“Cher monsieur Altmann, \ Permettez-moi de ne vous citer que les trois phrases centrales de la lettre de
Martin Heidegger du 30 janvier: \\ ‘La parole du poète qui dit ‘Todtnauberg’ nomme lieu et paysage où une
pensée essaya de faire le pas en arrière dans l’Infime – la parole du poète qui est à la fois encouragement et
avertissement et qui garde dans sa pensée le souvenir d’un jour en Forêt-Noire, dont l’humeur fut multiple.\
Depuis lors nous nous sommes dit en silence beaucoup [cf. Le dernier vers de Todtnauberg]. \ Je pense que
certaines choses encore, un jour, seront détachées du non-dit pour entrer dans le dialogue.’ \\ Si nous nous
voyons,comme je l’espère, la semaine prochaine, je vous apporterai la lettre. \ Avec mes cordiales salutations\
votre\ Paul Celan\\ 2 février 1968”] CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance II –
Commentaires et Illustrations. Op. cit. p. 576-577.
139
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 269. (na tradução de João Barrento, a frase
de Celan fica assim: ‘A arte provoca um distanciamento do Eu’ ).
140
Ibidem. p. 273.
141
Ibidem. p. 273.
142
Ibidem. p. 273.
143
Ibidem. p. 271.
48
úmido. Por isso mesmo, a cena real pouco tem a ver com o poema, embora sem ela
não houvesse o poema. Em lugar da descrição, se impõe como que um esquema.144
Para Costa Lima, neste esquema nasce o que ele vai chamar de representação-
efeito.
O verso final, a saber, “muito úmido”, traz a inclusão de uma situação incômoda.
Aqui, não importa saber se o incômodo estava em Celan, apesar de reconhecermos que existe
um incômodo. O que importa aqui no poema é ele “conter uma posição de sujeito”145. Costa
Lima, neste momento de sua reflexão, lança uma pergunta: “como essa posição se constitui
senão a partir da apresentação (produção), a partir da qual se fala o que se fala?”146. O sujeito
para Costa Lima não está centrado em si mesmo. Ele é “fraturado” e tem uma mobilidade que
lhe possibilita assumir posições. Este sujeito “fraturado” tem como premissa ser capaz de
“ocupar posições diversas no interior da sociedade”147. É a partir deste sujeito que podemos
verificar o entrelaçamento entre produção do poema – que traz aspectos da realidade, mas,
também algo novo: “no caso de Todtnauberg, a silenciosa compreensão da incompreensão – e
a representação que provoca”148. A produção do poema, na leitura de Costa Lima apenas
começa na obra. O importante serão os seus efeitos. Então, a representação que Costa Lima
trabalha está sempre relacionada aos seus efeitos. Daí ele chamá-la de representação-efeito.
Por isto mesmo, acrescenta Costa Lima, a representação manterá um “caráter produtivo,
portanto potencialmente divergente”149.
Assim como Costa Lima, Lacoue-Labarthe também evoca a interpretação de Peter
Szondi que propõe
144
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 273-274..
145
Ibidem. p. 274.
146
Ibidem. p.274.
147
Ibidem. p. 276.
148
LIMA, Luiz Costa. Mímesis: Desafio ao pensamento. Op. cit. p. 276.
149
Ibidem. p. 277.
150
LACOUE-LABARTHE, Philippe. La poésie comme expérience. Op. cit. p.26
49
Lacoue-Labarthe. Um quase que faz respirar o poema pelo que resta a ser decifrado. Não só
resta a ser decifrado, mas também fica como resto mesmo. Há aqui uma impossibidade, não
apenas de decifração completa, mas também de uma interpretação total do poema. Daí
Lacoue-Labarthe falar do interdito à interpretação. Interdição que não impossibilita uma
interpretação, mas faz obstáculo à uma compreensão completa de um poema.
As posições de Costa Lima e de Lacoue-Labarthe são muito distintas, o que nos
faz pensar na complexidade do tema da interpretação e da representação/apresentação, que
obviamente não pretendo esgotar nesta dissertação. O que fiz aqui foi trazer duas posições
distintas, para abrir espaço ao pensamento do leitor.
O escritor Lucio Cardoso escreve, em seu diário, que o ato de escrever é um ato de
sobrevivência. Diz o depoimento:
O poema, para Paul Celan “quer ir ao encontro de um Outro, precisa desse Outro,
de um interlocutor. Procura-o e oferece-se-lhe. Cada coisa, cada indivíduo é, para o poema
que se dirige para o Outro, figura desse Outro”152. Podemos lembrar que, quando Paul Celan
escreve seu livro DIE NIEMANDSROSE (A Rosa de Ninguém), ele o dedica à memória de
Óssip Mandelstam, poeta russo, assassinado pelo regime stalinista em 1938.
Celan estabelece um diálogo com o texto em prosa de Mandelstam, “O
interlocutor”. No texto, Óssip Mandelstam compara o poeta ao navegador, que no momento
crítico, lança ao mar “uma garrafa lacrada”. Nela está escrito o seu nome e o “relato de seu
destino”. Vários anos se passam e um dia a garrafa é encontrada na areia. Aquele que
encontra a garrafa (o leitor) lê a carta, “toma conhecimento da sua data” e das “últimas
vontades do morto”. Ele “tinha o direito de fazer isso”. Não violou correspondência alheia. “A
151
CARDOSO, Lúcio. Diário completo. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1970. p. 60.
152
CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte poética, O meridiano e outros textos. Op. cit. p. 57.
50
carta, lacrada dentro da garrafa, estava endereçada a quem a encontrasse”.153 Ele era o
“destinatário misterioso”. Aqui podemos fazer uma reflexão sobre a carta e o poema. Entre os
dois encontramos semelhanças. A carta (dentro da garrafa lacrada) assim como o poema, não
é endereçada de maneira definida para alguém em particular. Entretanto, ambas tem
destinatário: a carta, destinada a alguém que, por acaso, topar com a garrafa na areia e o
poema encontra o “leitor na posteridade”. Em Celan, não há o leitor na posteridade mas, o
leitor ninguém.
Paul Celan escreve: “Um poema, sendo como é uma forma de manifestação da
linguagem, (...) pode ser uma mensagem em uma garrafa, lançada na crença (nem sempre
muito esperançosa) de que ela poderá em algum lugar e em algum momento chegar à terra
firme”.154 Assim, “os poemas estão a caminho – tem rumo”.155 Para onde, pergunta Celan. Os
poemas caminham em direção “a algo aberto, de ocupável, talvez a um tu endereçável, a uma
realidade endereçável”156. Trata-se de uma “mensagem cifrada que retem no interior de si
toda uma luz. Garrafa ao mar, Até outra mão, outro olhar, uma escuta distinta, acolham a
mensagem, a recebam, e justo nesse ato se transformem”157, diz o poeta espanhol José Angel
Valente. Esta luz vem de um engendramento nas “escalas da sombra, oculta ou ocultada,
muda ou não manifesta”158 em direção a uma palavra nova ou uma nova manifestação. No
entanto, Celan, como vimos, segue Mandelstam quando ele postula a existência do
Interlocutor. Também concorda com o fato de não podermos determinar quem vai ser este
interlocutor. O que Celan introduz de novo é o leitor ninguém. O poema não é endereçado a
“uma certa pessoa”159. Então, o lugar do Interlocutor “é um lugar vazio que vem designar esta
palavra: ninguém”160. O poema tendo como destinatário Ninguém (Personne) é uma
proposição que Mandelstam não “ousa ainda pensar”161.
A poética de Paul Celan nos introduz, então, uma nova forma de endereçamento.
Nela, constatamos um projeto de endereçamento testemunhal singular onde uma esperança
153
MANDELSTAM, Óssip. O Interlocutor, in: Revista Inimigo Rumor n.8. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000. p.61.
154
CELAN, Paul. Alocução na entrega do prêmio literário da cidade de Bremen in Arte poética, O meridiano e
outros textos. Op.cit. p. 34.
155
Ibidem. p. 34.
156
Ibidem. p.34.
157
VALENTE, José Angel. “Bajo um cielo sombrío”. In Paul Celan: rosa de nadie. Rosa Cúbica – revista de
poesía. Invierno 1995-1996. Barcelona. p. 21.
158
Ibidem. p. 21
159
“une certaine personne” BRODA, Martine. “Personne et la question de L’interlocuteur”. in Dans la main de
personne – Essai sur Paul Celan et autres essais.Op. cit. p. 64.
160
“est une place vide que vien désigner ce mot : personne”. Ibidem. p. 64.
161
“n’ose pas encore penser”. Ibidem. p. 64.
51
162
CELAN, Paul. “O Meridiano” in Arte poética, O meridiano e outros textos. Op. cit. p. 56
163
Ibidem. p.56
164
Ibidem. p.57.
165
Ibidem. p. 46.
166
Inouï quer dizer inaudito, mas também desconhecido ou inconcebível.
167
“Elle constate que l’Homme témoigne de soi dans l’absurde, dans ce qui ne s’entend pas – c’est la pensée
poétique”. PAJEVIC, Marko. “Le travail du sens de l’Homme. La poétique de Paul Celan”. p. 115.
5. AS CARTAS: O REGISTRO DE UMA POÉTICA
53
Desta forma, uma troca epistolar, com tal especificidade, não tem por fim uma
mera satisfação. Ela está a serviço, nas palavras de Elias Canetti, da “criação literária”171.
As cartas de Paul Celan para sua mulher não são apenas cartas de amor e não se
referem somente à vida familiar. Elas portam em si, muitas vezes, referências ao ato de
criação literária, ao estilo, e ao que Derrida chamou de “experiência da língua”. Além disso,
as cartas de Celan trazem uma outra passagem: a da bio-grafia, no sentido de Roger Laporte
já descrito neste texto. Uma passagem que nos esclarece a forte relação, na obra de Celan,
entre a vida e a escrita. É claro que não estou dizendo aqui que haja uma transposição da vida
para a obra, mas que, como já disse antes, se trata de uma estreita relação entre a vida e a
escrita.
A correspondência “pode atuar literariamente tanto quanto o texto de um poema,
desde que nela esteja presente a função poética”,172 nos fala Jakobson. Esta função se
“manifesta na palavra sentida como palavra e não como simples substituto do objeto
168
Castañon Guimarães, Júlio. Distribuição de Papéis: Murilo Mendes escreve a Carlos Drummond de Andrade
e a Lucio Cardoso. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1996, p. 7.
169
Kaufmann, Vincent. L’Equivoque Épostolaire. Paris: Minuit, 1990, p. 8.
170
Castañon Guimarães, Julio. Ibidem. p. 8.
171
CANETTI, Elias. O outro processo: as cartas de Kafka a Felice. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988. p.
17.
172
JAKOBSON, Roman. Apud ANGELIDES, Sophia. Correspondência entre Tchekhov e Gorki. São Paulo:
Edusp. 2001, p.23.
54
173
nomeado, nem como explosão de uma emoção”, acrescenta Sophia Angelides em seu
estudo sobre a correspondência entre Tchékhov e Gorki.
A carta é uma forma particular de palavra, na qual o autor experimenta uma maior
proximidade com a escrita propriamente dita, e para alguns autores funciona como um
laboratório. A partir da leitura de Roman Jakobson podemos pensar a poesia e a carta (ou até
o diário) de um escritor apresentando dois níveis semânticos diferentes de uma mesma
experiência. O caráter espontâneo e fragmentário e a alternância da linguagem poética e não-
poética são inerentes ao gênero epistolar. A passagem da simples comunicação não-literária
para a linguagem literária, e vice-versa, confere à carta um aspecto particular, misto de
documento informativo e texto literário. Além disso, muitas vezes vamos encontrar um
registro poético se insinuando e, às vezes, se sobrepondo ao registro “circunstancial
imediato”.174
Sabemos que a correspondência é sempre lacunar. E “a carta enviada atua, em
virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e
175
releitura, sobre aquele que a recebe”. Esta dupla função da carta a aproxima dos
hypomnemata 176.
Ainda podemos acrescentar aqui, a importância da carta para os exilados em Paris.
Celan tinha uma correspondência com amigos romenos, que viviam em Paris. Também
estabeleceu uma intensa correspondência com escritores e amigos que viviam na Europa e em
Israel. Talvez Rilke tenha razão quando diz que a carta é como um substituto ao país natal.
Vejamos um extrato de sua carta a Nanny Wunderly-Volkart, escrita na primeira metade do
século XX:
Só Deus sabe por que eu mantenho tantas relações; por vezes penso que é um
substituto do país natal, como se com essa rede estendida de influências, me fosse
dada, apesar de tudo, finamente repartida, a possibilidade de um estar em algum
lugar.177
173
ANGELIDES, Sophia. Correspondência entre Tchekhov e Gorki. Op. cit. Ibidem. p.23.
174
PESSOA, Fernando. Correspondência 1905 -1912. Organização de Manuela Parreira da Silva. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. p. 486.
175
FOUCAULT, Michel. A escrita de si in O que é um autor. Lisboa: Veja. 1992. p. 145.
176
Cadernos pessoais cuja função é permitir a constituição de si a partir da recolha do discurso dos outros.
Trazendo-os sempre à mão, aqueles que usavam estes cadernos se exercitavam regularmente em uma escrita
fragmentada. Retirado de texto inédito “Manuel Bandeira, Itinerário de Pasárgada”. Solange Rebuzzi. Puc-Rio,
2000.
177
“Dieu sait pourquoi j’entretiens autant de relations; parfois je pense que c’est un substitut au pays natal,
comme si avec ce réseau étendue d’influences, m’etait malgré tout donné, finement répartie, la possibilité d’un
être quelque-part”. RILKE, Ranier Marie. Apud BOUZINAC-HAROCHE, Geneviève. “Souffrir de l’Europe” in
Magazine Litteraire – maio 2005. p.21. (tradução da carta de Rilke feita por Vincent Kaufmann).
55
Para Celan, a escrita epistolar tinha uma importância ainda maior, pois ele não se
sentia muito próximo nem da sua Romênia natal, nem da Alemanha. Para ele, não existia um
país natal onde se ancorar, nem uma língua para sustentá-lo. Daí, Celan dizer, não sem ironia,
que habitava um país de nome Celanie. Ainda queremos acrescentar em relação ao sobrenome
do poeta, que o tradutor Fernand Cambon aproxima, pela homofonia, o sobrenome Celan do
178 179
verbo celer (celant ) e lança uma pergunta: “Teria alguém pensado que ‘Celan’ poderia
ser lido ‘ocultando’, do verbo francês ‘ocultar’?” 180
178
Celer significa manter segredo; ocultar.
179
Celant quer dizer ocultando.
180
“A-t-on pense que ‘Celan’ pourrait se lire ‘celant’, du verbe français ‘celer’? ”. PEYER, Rudolf. “Approché
d’une légende”. in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001, Op. cit. p. 46.
181
BADIOU, Bertrand. “Au coeur d’une correspondance” in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février
2001, Op. cit. p.193.
182
Ibidem. p.193.
56
183
termo empregado por Maurice Merleau-Ponty.
57
Meu querido,
É ainda perto de ti que eu estou, de tuas carícias, de teus olhos, de tua bela
sinceridade e de teu amor.
(...)
Para te amar mais livremente, mas isso também me dá medo – afinal é tão doce te
amar fora de toda lógica –184.
Nesta mesma carta, surge a leitora privilegiada de poesia. Gisèle se sente como
uma “espectadora” – sem dúvida alguma, a leitora mais próxima do poeta – da vida/obra de
Paul Celan. Em seu amor, há lugar para a leitora, mas, como veremos, com uma certa
dificuldade. Como amar um poeta? E prossegue a carta, com suas indagações:
(...) Deve ser muito difícil Amar um poeta, um belo poeta. Eu me sinto tão indigna
de tua vida, de tua Poesia, de teu Amor – e tudo já parece não existir para mim, além
de ti. Ouço tuas palavras, e te sinto tão perto de mim. – Amo estar mais perto ainda –
Amo te olhar – te saber aqui, te ver silencioso e concentrado, tu me dás confiança,
me acalmas, tão extraordinariamente. 185
184
“Mon Chéri, C’est encore près de toi que je suis, de tes caresses, de tes yeux, de ta belle sincerité et de ton
amour. Pour t’aimer plus librement, mais ça me fait peur aussi – et puis c’est si doux de t’aimer en dehors de
toute logique –” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.11
185
“(...) Ce doit être très difficile d’Aimer un poète, un beau poète. Je me sens si indigne de ta vie, de ta Poésie,
de ton Amour – et tout déjà semble ne plus exister pour moi, si ce n’est toi. J’entends tes paroles, et je sens tout
près de moi – J’aime être plus près encore – J’aime te regarder – te savoir là, te voir silencieux et concentre, tu
me donnes confiance, tu me calmes si extraordinairement”. Ibidem. p. 11-12.
186
“[Paris] Ce mercredi, 12 décembre [1951] Ma chérie, comment te dire la joie que j’ai ressentie ce matin, en
trouvant ta lettre? (...) Je te regarde, ma chérie, je te regarde déjà au-delà de cette brume que l’espoir, n’est pas,
ne se lassera pas de dissiper”. Ibidem. p.12 -13.
58
Em Paul Celan, há sempre uma bruma a ser dissipada, como um traço melancólico
que o acompanhará durante toda a vida. Na verdade, podemos dizer, em relação à vida do
poeta, que ele sobreviveu. “Sobre-viver”187, no sentido dado por Derrida, implicando uma
experiência de uma sobre-vida.
Em uma carta escrita a Celan no dia nove de janeiro de 1960, (n. 116), Gisèle se
mostra muito preocupada com a onda de anti-semitismo na Europa. Ela relata, que na noite do
Natal de 1959 houve muitas profanações de tumbas e de sinagogas, com inscrições injuriosas,
na Alemanha, na França e através de toda a Europa. Ela conta também que escreveu para os
amigos Nani et Klaus Demus (muito amigos de Celan). Na nota desta carta do livro de
correspondências entre Paul Celan e Gisèle Celan-Lestrange, Bertrand Badiou comenta e
esclarece a carta de Gisèle, pois nos revela a preocupação que ela tem com a vida do marido.
Vejamos a nota:
Nesta carta a Nani e a Klaus Demus, datada do dia 9 de janeiro de 1960, Gisèle
Celan-Lestrange evoca com insistência as dificuldades encontradas por Paul Celan:
‘Nanni [sic], Klaus, é preciso escutar Paul mesmo quando é difícil, mesmo quando é
inacreditável, será que posso também dizer, mesmo se ele se engana, por favor. É
raro que ele se engane. Mas eu bem sei que vocês sabem isto, mas eu sei também
que é bastante difícil. Bastante difícil de viver...\ Vocês, que são amigos de Paul, não
o deixem jamais, todos o deixam, todos o deixam. É difícil, difícil.188
187
“Sur-vivre”. “Poétique et politique du témoignage” in DERRIDA, Jacques. Cahier de L’Herne - Jacques
Derrida. 2005. p. 521.
188
“Dans cette lettre à Nani et Klaus Demus, datée du 19.1.1960, GCL évoque avec insistance les difficultés
rencontrées par PC: ‘Nanni [sic], Klaus, il faut écouter Paul même quand c’est difficile, même quand c’est
incroyable, est-ce que je peux dire aussi, même s’il se trompe, s’il vous plaît. C’est rare qu’il se trompe. Mais je
sais bien que vous savez tout cela, mais je sais aussi que c’est très difficile, très difficile a vivre...\ Vous qui êtes
les amis de Paul, ne le lâchez jamais, tous le lâchent, tous le lâchent. C’est difficile, difficile”. CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.Vol. II Commentaires et illustrations. Op. cit. p. 133.
189
“Le Sable des Urnes”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.
cit. p.13.
190
“A Maïa, pour que le jour se lève à minuit. Paul. Sur le pont des années à Paris.” Ibidem. p.13.
59
deste livro de Apollinaire, e consta uma menção da data de aquisição, feita por Gisèle
Lestrange, em 11 de agosto de 1951. Appolinaire, quando escreveu este poema, fez a seguinte
datação: “As Noites de Paris, primeiro de fevereiro 1912”191. O poema “Pont Mirabeau” se
inicia com três versos: “Sob a ponte Mirabeau corre o Sena/ E nossos amores, será preciso
que me lembre? / a alegria vinha sempre depois da pena192. O dístico que vem a seguir se
repete ao longo do poema, marca o tempo das palavras: “Que venha a noite e soe a hora, / Os
dias se vão, eu me demoro”193. Em seu final, os versos, apontam uma passagem do tempo e da
vida: “Passam os dias e passam as semanas,/ Nem o tempo passado, nem os amores voltam;/
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena”194. A referência a este poema de Apollinaire aparece em
inúmeras cartas de Celan para Gisèle. Na nota 2 da carta de 23.12.1960, Bertrand Badiou diz:
“A fórmula ‘sobre a ponte dos anos’ é empregada em muitas dedicatórias a Gisèle Celan-
Lestrange”.195 Além disso, não podemos esquecer que Paul Celan se suicida, pulando da
ponte Mirabeau. Sabemos, a partir do depoimento-homenagem de Edith Silbermann, uma
grande amiga de infância e juventude de Celan, que o poeta, desde sua primeira juventude,
“estava muito impressionado pela máscara mortuária da ‘Desconhecida do Sena’196, sobre a
qual, entre outros, seu mentor Alfred Margul-Sperber havia composto um poema”.197 Além
disso, complementa Silbermann
A água parece haver exercido uma atração especial sobre ele e a morte por
afogamento ter ocupado sempre de novo seus pensamentos. Isto o demonstram
poemas seus de diferentes períodos criativos, como “Schuttkahn” (Sprachgitter
1959), “Muschelhaufen” y “Unter der Flut” (Sob a maré – trad. para o português de
João Barrento.) (Lichtzwang 1970), mas sobretudo os versos de “Kenotaph” (Von
Schwelle zu Schwelle 1959), um epitáfio que já nos anos cinqüenta havia imaginado
para si mesmo198
191
“Les Soirées de Paris, 1, février 1912”. DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier D’Alcools. Genève: Librairie
Droz,1996. p. 90 (o poema Le Pont Mirabeau de Appolinaire foi retirado deste livro de Décaudin).
192
“Sous le pont Mirabeau coule la Seine/ Et nos amours, faut-il qu’il m’en souvienne ?/ La joie venait toujours
après la peine”. Ibidem. p. 90.
193
“Vienne la nuit, sonne l’heure,/ Les jours s’en vont, je demeure”. Ibidem. p. 90
194
“Passent les jours et passent les semaines,/ Ni temps passé, ni les amours reviennent; / Sous le pont Mirabeau
coule la Seine”. DÉCAUDIN, Michel. Le Dossier D’Alcools. Ibidem. p. 90
195
“La formule ‘sur le pont des années’ est employée dans plusieurs dédicaces à Gisèle Celan-Lestrange”.
CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol II. Commentaires et illustrations. Op. cit.
p.147.
196
Em Paris, na década de 40, uma mulher se suicidou pulando no rio Sena. Não foi possível saber a sua
identidade. Ela ficou conhecida como a “Desconhecida do Sena”. Paul Celan, quando se suicidou, se jogando no
Sena, também foi chamado de “Desconhecido do Sena”.
197
“estaba muy impresionado por la máscara mortuoria de la ‘Desconhecida Del Sena’, sobre la cual, entre otros,
su mentor Alfred Margul-Sperber había compuesto un poema. SILBERMANN, Edith. “Recuerdos de Paul
(Celan-Antschel)” trad. de Cecília Dreymüller in Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número
15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Barcelona. 2ª edição. 2005. p.174-175.
198
“el agua parece haber ejercido uma atracción especial sobre él y la muerte por ahogo haber ocupado siempre
de nuevo sus pensamientos. Esto lo demuestran poemas suyos de diferentes períodos creativos, como
“Schuttkahn” (Sprachgitter 1959), “Muschelhaufen” y “Unter der Flut” (Lichtzwang 1970), pero sobre todo los
60
Podemos também ler no poema “Und mit dem Buch aus Tarussa” [“Et avec le
livre de Tarussa”], de 1963, em tradução de Martine Broda, os versos:
(...)
Da laje
da ponte, de onde
ele saltou
falecendo na vida, voando
de suas próprias feridas, - da
Ponte Mirabeau199
Em seu artigo “La leçon de Mandelstam”, Martine Broda irá chamar estes versos
de “auto adivinhação”200.
Na carta do dia 7.1.1952, exatamente às 10 horas, Celan fala que talvez ainda
reste alguma porta aberta para ele, alguma esperança para a sua vida tão marcada de
imprevistos e de sofrimentos:
Maïa, meu amor, eu gostaria saber te dizer o quanto eu desejo que tudo isto fique,
fique conosco, permaneça sempre conosco.
Percebes? tenho a impressão, indo em direção a ti, de deixar um mundo, de ouvir as
portas baterem atrás de mim, portas e portas, pois elas são numerosas, as portas
deste mundo feito de mal-entendidos, de falsas claridades, de zombarias. Talvez
ainda me restem outras portas, talvez eu não tenha ainda re-atravessado toda a
extensão sobre o qual se espalha a rede de signos que descaminham – mas estou
indo, tu me ouve? eu me aproximo, o ritmo – eu o sinto – se acelera, os fogos
enganadores se apagam um após outro, as bocas mentirosas voltam a se fechar sobre
sua baba – não há mais palavras, não há mais ruídos, mais nada que acompanhe meu
passo – Eu estarei lá, junto de você, num instante, num segundo que inaugurará o
tempo.
Paul 201
“As bocas mentirosas voltam a se fechar sobre sua baba” se referem a Claire Goll,
viúva do poeta Yvan Goll e ao editor Franz Vetter da editora Pflug Verlag, que recusou as
versos de “Kenotaph” (Von Schwelle zu Schwelle 1959), un epitafio que ya en los años cincuenta había ideado
para si mismo”. SILBERMANN, Edith. “Recuerdos de Paul (Celan-Antschel)” trad. de Cecília Dreymüller in
Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Ibidem. p. 175.
199
“(...)“De la dalle/ du pont, d’où/ il a rebondi/ trépassé dans la vie, volant/ de ses propres blessures, - du/ Pont
Mirabeau”. CELAN, Paul. La Rose de Personne. Paris: José Corti, 2002. Trad. de Martine Broda. p. 149.
200
“auto divination”. BRODA, Martine. “La leçon de Mandelstam” in Dans la main de personne. Essai sur Paul
Celan. Op. cit. p.94.
201
“Maia, mon amour, je voudrai savoir te dire combien je désire que tout cela reste, nous reste, nous reste
toujour. Vois-tu, j’ai l’impression, en venant vers toi, de quitter un monde, d’entendre les portes claquer derrière
moi, des portes et des portes, car elles sont nombreuses, les portes de ce monde fait de malentendus, de fausses
clartés, de bafouages[sic]. Peut-être me reste-t-il d’autres portes encore, peut-être n’ai-je pas encore retraversé
toute l’étendue sur laquelle s’étale ce réseau de signes qui fourvoient – mais je viens, m’entends-tu, j’approche,
le rythme – je le sens – s’accélère, les feux trompeurs s’ éteignent l’un après l’autre, les bouches menteuses se
referment sur leur bave – plus de mots, plus des bruits, plus rien qui acconpagne mon pas – Je serai là, auprès de
toi, dans un instant, dans une seconde qui inaugurera le temps. Paul”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE,
Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.16
61
traduções de Paul Celan dos poemas de Yvan Goll. As difamações contra Celan continuarão
durante toda a vida, e mesmo, depois de sua morte.
A carta seguinte traz a questão da “implacável solidão” do poeta. Celan acreditava
que o encontro com Gisèle, em sua intensidade amorosa, possibilitava a ele, descobrir uma
“nova dimensão” de vida e novas coordenadas em seu sobre-viver. Vejamos a carta:
(...) que este mundo és tu, somente tu, e que ele se encontra ampliado, que ele
encontrou, graças a ti, uma nova dimensão, uma nova coordenada, aquela que eu não
me decidia mais a lhe conceder, que ele não é mais aquela implacável solidão que
me obrigava, a cada instante, a saquear o que se erguia diante de mim, a me voltar
obstinadamente contra mim mesmo – pois eu queria ser justo e não poupar ninguém!
– que tudo muda, muda, muda sob teu olhar – 202
(..)
Paul querido – é tão extraordinário o que nos acontece, é um pouco aterrorizador
quando nós refletimos sobre isto, mas é tão tranqüilizante de vivê-lo –
Eu vivo agora com a grande certeza de teu amor no fundo de mim e uma incrível
confiança que eu jamais conheci. 204
202
“(...) que ce monde est toi, toi seule, et qu’il s’en trouve agrandi, qu’il a trouvé, grâce à toi, une nouvelle
dimension, une nouvelle coordonnée, celle que je ne me decidais plus à lui accorder, qu’il n’est plus cette
implacable solitude qui m’obligeait à chaque instant de mettre à sac ce qui se dressait devant moi, de m’acharner
contre moi même – car je voulais être juste et n’épargner personne! – que tout change, change, change sous ton
regard – ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.17.
203
“pourquoi t’attaches-tu ainsi à moi?”. Ibidem. p. 17.
204
“(...) Paul chéri – c’est très extraordinaire ce que nous arrive, c’est un peu terrifiant quand on y réfléchit, mais
c’est tellement tranquillisant de le vivre – Je vis maintenant avec la très grand certitude de ton amour au fond de
moi et une incroyable confiance que je n’ai jamais encore connue”. Ibidem. p. 17-18.
205
“Mon Poète chèri, je voudrai tant pouvoir lire tout ce que tu as écrit. Mais ne crois-tu pas que j’y resterai
toujours un peu étrangère?” Ibidem. p.17.
62
muito bonita. Cito um trecho: “(...) eu sinto quanto este país me é estranho. Estranho, apesar
206
da língua, apesar de muitas outras coisas...” É nesta estrangeiridade da língua que o poeta
prossegue e resiste.
Em outra carta (n.52), do dia 31.1.1955, remetida de Stuttgart, ele diz: “(...) Eu
durmo mal aqui: a paisagem humana, neste desgraçado país (inconsciente de sua infelicidade)
é bem entristecedora. Os raros amigos, os verdadeiros, são desiludidos, resignados,
desencorajados”207. Algumas vezes, Celan, no contato com os alemães e com a língua alemã,
sentia-se deslocado: “(...) eu estou completamente deslocado neste país, onde fala a língua que
minha mãe me ensinou...”208 Em relação à língua materna, ensinada pela sua mãe na
Bucovina de sua infância, encontramos nos comentários do organizador da correspondência,
Bertrand Badiou, uma importante referência retirada dos cadernos de trabalho do poeta:
Paul Celan escreve em seu último dístico de “Proximidade das Tumbas”, datada por
PC sobre seu exemplar de trabalho de A areia das urnas [Czernowitz, 44 (depois de
meu retorno de Kiev)]: ‘E, de que maneira, tu suportas, tu, mãe, como outrora, ah,
em nossa casa\ a doce, a dolorosa rima alemã?’ (é preciso notar que daheim, “em
casa”, no país, rima aqui com Reim, “a rima, o verso”). 209
Para Celan, o alemão será a língua falada pelos seus poemas, mas também a
língua que ele terá que suportar durante toda a sua vida.
Na carta do dia 28.09.1955 (n. 69), remetida de Dusseldorf, Celan nos fala um
pouco de onde ele recolhe sua escrita. Cito-o:
(..) se há uma coisa que esta estada aqui me ensinou, uma vez mais, é bem esta: a
língua com a qual eu faço meus poemas não depende em nada do que se fala aqui ou
acolá, minhas angústias a este propósito, alimentadas por meus problemas de
tradutor são sem objeto. Se há ainda fontes de onde poderiam brotar novos poemas
(ou prosa), é em mim mesmo que eu as acharei e não nas conversas que eu poderei
ter em alemão, com os alemães, na Alemanha. 210
206
“(...) je sens combien ce pays m’est étranger. Etranger malgré la langue, malgre beaucoup d’autres choses...”
CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 22.
207
“(...) Je dors mal ici: le paysage humain, en ce malheureux pays (inconscient de se malheurs) est bien
attristant. Les rares amis, les vrai, sont déçus, résignés, découragés. Ibidem. p. 70.
208
“(...) je suis tout à fait dépaysé dans ce pays, où parle la langue que ma mère m’a apprise...”. Carta do dia
26.9.1955 (n.67). Ibidem. p. 80.
209
“Paul Celan écrit dans le dernier distique de Nähe der Gräber [Proximité des tombes], date por PC sur son
exemplaire de travail de Der Sand aus den Urnen ‘Cz[ernowitz], 44 (nach der Rückkehr aus Kiev) [Czernowitz,
44 (après mon retour de Kiev)]’: ‘Und duldest du, Mutter, wie einst, ach, daheim, \ den leisen, den deutschen,
den schmerzlichen Reim? [Et comment supportais-tu, toi, mère, comme jadis, ah, chez nous\ la douce, la
douloureuse rime allemande?]’ (GWIII, p. 20; il faut noter que “dahem”, chez soi, au pays, rime, ici avec
“Reim”, la rime, le vers). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II.
Commentaires et illustrations. Op.cit. p. 103.
210
“(...) il y a une chose que ce séjour m’a, une fois de plus, apprise c’est bien celle-ci: la langue don’t je fais
mes poème ne dépend en rien de celle que l’on parle ici ou ailleurs, mes angoisses à ce propos, alimentée par
mes ennuis de traducteur, sont sans objet. S’il y a encore des sources d’où pourraient jaillir de nouveaux poèmes
(ou de la prose), c’est en moi-même que je les trouverai et non point dans les conversations que je pourrais avoir
63
Para Celan, como para Kafka, a questão da língua é complicada. Para eles, que
não eram alemães, o alemão não foi, nem uma língua de adoção nem de eleição. O alemão é
escolhido como a língua de escrita. Celan escrevia nesta língua, ao mesmo tempo a língua que
sua mãe falava e a língua assassina dos nazistas. Vale lembrar aqui Kafka, que também era
judeu, escrevia em alemão e vivia no meio de uma população tcheca, quase meio século antes
de Paul Celan. Tanto Kafka quanto Celan tinham – para usar uma expressão do poeta Manuel
Bandeira –, “uma necessidade imperiosa de escrever”. 211
Na ocupação húngara, a partir do ano de 1889, a população tcheca sofreu várias
restrições, e uma delas era o impedimento, aos tchecos, de escrever em alemão. Este
impossível social não impediu Kafka de escrever em alemão. Em uma carta a Max Brod, de
junho de 1921, Kafka escreve: “impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever
em alemão, impossibilidade de escrever de outra maneira”. Escrever em alemão se impunha à
mão que escreve e era uma necessidade imperiosa. Também não podemos esquecer que Paul
Celan morava na França, e tinha conflitos também com a língua francesa. Em conversa com o
poeta francês Yves Bonnefoy, Celan expôs sua posição: “Vocês (tratava-se dos poetas
franceses, ocidentais) estão em sua casa, em sua língua, em suas referências, entre os livros
212
que vocês amam. Eu, eu estou fora...” Este fora se dá em “um não-país e em um não-
tempo”213. Assim, em Celan, há um duplo conflito linguageiro: com a língua alemã e com a
língua francesa. Por outro lado, em conversa com o poeta e amigo Jean Daive, atravessando o
cruzamento da rue des Écoles e do Boulevard Saint-Michel, Celan confidenciava seu desejo e
sua impossibilidade de escrever em francês. Cito a conversa:
“Poesia – essa é a inelutável unicidade da língua”215. Além disso, como nos diz o ensaísta
Rafael Gutierrez Girardot, a poesia de Paul Celan “é a complexa expressão de um exílio
absoluto que encontrou sua pátria impossível na língua alemã”,216 sempre buscando elaborar o
que parece impossível: uma pátria perdida.
Talvez, possamos aproximar Celan do escritor Edmond Jabès que pensava a
língua na referência, principalmente, ao que podemos chamar de estatuto de estrangeiridade.
Jabès nos fala que:
Eu nunca soube onde estava. Quando estava no Egito, estava na França. Desde que
eu estou na França, estou em outra parte. Ainda o problema do estrangeiro. O
estrangeiro não sabe mais qual é o seu lugar. Não há, senão a língua. Se um
estrangeiro vem a um país porque ele escolheu sua língua, ele encontra aí seu lugar.
Mas, onde ele encontra seu lugar? Simplesmente nessa língua. Ora, essa língua que
não cessa de aperfeiçoar já não é mais a língua que se fala ao seu redor. Seu lugar é
o lugar da língua: o livro. 217
215
CELAN, Paul. “Resposta a um inquerito da Librairie Flinker, Paris” (o objetivo do inquérito era o “problema
do bilinguismo”). in Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Op. cit. p.69.
216
GIRARDOT, Rafael Gutierrez. Bogotá: Gaceta de Colcultura No. 27, 1980.
217
Cito:“Je n’ai jamais su où j’étais. Quand j’étais en Egipte, j’étais en France. Depuis que je suis en France, je
suis ailleurs. Encore le problème de l’étranger. L’étranger ne sait plus quel est son lieu. Il n’y a que la langue. Si
un étranger vient dans un pays parce qu’il en choisit la langue, il y trouve son lieu. Mais il trouve son lieu où?
Simplement dans cette langue. Or cette langue qu’il ne cesse de perfectionner n’est plus la langue qui se parle
autour de lui. Son lieu, c’est le lieu de la langue: le livre”. “L’étranger d’Edmond Jabès”. Declarações recolhidas
por André Velter. Le Monde. Paris, 28/04/1989.
218
“(Ici, pensée pour toi encore, le souvenir de Saint-John Perse et de son ‘Chant de l’Alienne’”.) CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 387
219
“‘Alien Registration Act.’: ‘Rue Gît-le-coeur... Rue Gît-le-coeur...’ chante tout bas l’Alienne sous ses lampes,
et ce sont là méprises de sa langue d’Etrangère”. (Saint-John Perse. Exil, seguido de Poème à l’Etrangère,
Pluies, Neiges,Paris, Livraria Gallimard, 1946, p. 37). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Vol. II. Commentaireset illustrations. Op.cit. p. 293.
65
reescritos com sua mão, trocam suas mensagens, ‘lestrangement’”220. Celan faz alusão, uma
outra vez, ao sobrenome de sua esposa, De Lestrange que sonoramente faz eco a De
l’étranger221. A qualidade necessária para um poema, assim como para uma gravura, é ter
estranheza. Celan dava ênfase “sobretudo a estranheza.(...) Sobre este tema, Paul Celan anota
em 1968 esta reflexão de Paul Valéry: ‘Toda visão das coisas que não é estranha é falsa’”222.
A carta de Celan do dia 10.8.1952 (n. 18) faz referência às cartas não publicadas
de Gisèle, nesta correspondência, onde ela comentava um livro que Celan tinha lhe dado de
presente. Trata-se da Montanha Mágica de Thomas Mann. Em um dos trechos, ela diz: “Eu
entrei na Montanha Mágica”. Celan, responde a esta carta dizendo: “!O que eu fiz mais?
(questão pertinente, pois eu não me encontro, como você, sobre uma ‘montanha mágica’, mas
na planície). Oh, não muita coisa, infelizmente”223. Esta carta mostra um distanciamento
(crítico literário) de Celan em relação a Gisèle. Ele prefere usar o pronome “vous” ao invés do
“tu” habitual. É claro que a sensação de Gisèle de se sentir em uma montanha mágica é
natural diante do impacto da leitura do livro de Thomas Mann. No entanto, Celan, neste
momento, não se imagina em uma montanha. Tudo com ele se passa em um plano bastante
árido e seco, com pedras e sombras.
Não podemos esquecer que a montanha, sete anos mais tarde, em 1959, terá para
Celan uma importância capital. Do “plano árido e seco” de 1952, para a “conversa na
montanha” de 1959, Celan percorreu um longo caminho. Um novo escrito surgiu, em prosa,
no ano da publicação de seu livro de poemas Sprachgitter (Grelha de linguagem). Depois de
Der Sand aus den Urnen (A areia das urnas, 1948), Mohn und Gedächtnis (Papoula e
Memória), 1952), e Von Schwelle zu Schwelle (De limiar em limiar, 1955), Conversa na
montanha foi escrito em um momento de transição, no qual o poeta trazia uma prosa
repetitiva, distante “da crescente economia”224 de seus poemas, nesta época. Excetuando o
longo poema “ENGFÜHRUNG” (“Stretto”) de Grelha de linguagem, os outros poemas deste
livro, já tendiam para esta economia de versos, que só iria se concretizar inteiramente em seus
últimos livros.
220
“les cuivres, réécrits de votre main, échangent leurs messages, ‘lestrangement’”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.490.
221
L’étranger quer dizer o estrangeiro; o estranho.
222
“surtout à l’étrangeté. (...) A ce sujet, PC note en 1968 cette réflexion de Paul Valéry: ‘Toute vue des choses
qui n’est pas étrange est fausse’”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II.
Commentaires et illustrations. Ibidem. p. 338.
223
“! Qu’ai-je encore fait? (question pertinente, car je ne me trouve pas, comme vous, sur une ‘montagne
magique’, mais dans la plaine). Oh, pas grand-chose, hélas.” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 32.
224
HARTMAN, Geoffrey H. “Holocausto, Testemunho, arte e trauma” in Catástrofe e Representação
(organizadores: Arthur Nestrovski e Márcio Seligmann-Silva). São Paulo: Editora Escuta Ltda. 2000. p.229.
66
“Seu parente e primo, aquele que era mais velho do que ele um quarto de vida de
Judeu, ele veio, grande, veio, ele também, na sombra emprestada, – pois eu pergunto
e pergunto outra vez quem já que Deus fez nascer Judeu vem com algo que lhe seja
próprio?”227
Aqui, na referência a sombra, o judeu mais novo veio pela sombra, não portando
nada que lhe pertencesse. Cito: “pois o Judeu você o sabe, o que tem ele que lhe pertença
realmente, que não lhe foi emprestado e tomado e jamais restituído”228. Há uma falta radical
que este encontro realiza e presentifica. Os judeus não tinham nada que lhes fosse próprio.
Assim, o silêncio se fez presente: “Assim, a pedra silenciou, ela também, e o
silêncio se fez na montanha. (...) Mas o silêncio não durou muito tempo, pois quando um
Judeu vem e encontra um outro, o silêncio logo termina, mesmo na montanha”229. Apesar de a
pedra ter silenciado, “o silêncio não é um silêncio, nenhuma palavra ali está calada, nenhuma
frase, é apenas uma pausa, apenas um intervalo entre as palavras, é apenas um vazio, podem-
se ver todas as sílabas imóveis em volta”230.
A carta de Celan do dia 14.8.52 (n. 20) é reveladora, no que se refere ao seu modo
peculiar de trabalhar os poemas. Depois de descrever a compra de vários livros a preço mais
em conta, em um bouquiniste perto da igreja de Notre-Dame e de pedir desculpas a Gisèle por
se considerar um gastador, Celan escreve: “Eu leio bastante para poder um dia escrever um
novo livro para você”231. O novo livro a que Celan se refere, se chamará Von Schwelle zu
Schwelle (De Limiar em Limiar) e sera dedicado a Gisèle.
Na nota número 8 do dia 14.8.1952 (n.20), o organizador da correspondência,
Bertrand Badiou diz que: “muitos dos poemas, aforismos ou pensamentos nasceram nas
225
Lenz, personagem de Büchner. Referência também ao discurso de Celan “O Meridiano” quando recebeu o
premio Büchner. O texto de Büchner também começa com Lenz subindo a montanha. Nota da tradutora Vera
Lins.
226
LINS, Vera. “Conversa na Montanha” (tradução). in Poesia e Crítica: Uns e outros. Rio de Janeiro: 7 Letras,
2005. p.35.
227
Ibidem. p. 35-36.
228
Ibidem. p. 35.
229
Ibidem. p. 36.
230
Ibidem. p. 36.
231
“Je lis beaucoup pour pouvoir un jour écrire un nouveau livre pour vous”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p.35.
67
margens mesmas dos livros. Numerosas páginas dos livros da Biblioteca de Paul Celan
constituem verdadeiros manuscritos”232. Estes manuscritos contidos em muitos livros de Celan
nos revelam a sua prática de escrita. A leitura, para ele, tinha uma importância crucial. É a
partir dela que ele elaborava muitos de seus poemas e sua forma de pensar o mundo e a
poesia. Daí suas inúmeras anotações nas margens dos livros lidos. Em uma carta,
possivelmente escrita em dezembro de 1954, (n.45) Paul Celan assina com a letra “i”,
sublinhando-a duas vezes. Este “i” celaniano tem relação com suas anotações nas margens
dos livros lidos e aponta para sua experiência de escrita, a saber, de onde surgem as suas
idéias poéticas. Vejamos a esclarecedora nota de Bertrand Badiou:
Paul Celan assina com um pequeno “i” sublinhando duas vezes. É assim que ele
assinala, para ele mesmo, muitas vezes, na margem de um livro, uma idéia, uma
fonte de inspiração, uma palavra ou uma frase ressaltada no momento de uma
leitura, um esboço mais ou menos elaborado de tradução ou de poema, uma reflexão
de natureza aforística ou especulativa. Em setembro de 1957, Gisèle Celan-
Lestrange escreve a Klaus Demus sobre o tema da inicial da palabra ‘idéia’: “Eu sei
que ele lê muito e que ele retoma e reflete sobre suas ‘i’ (idéias que ele vai marcando
aos poucos para trabalhá-los e fazê-los evoluir depois)”. Mas esta abreviação é
certamente liberada de seu sentido original no fio do tempo, para adquirir um valor
idiosincrático. O ‘i’ (precedido e seguido de um hífen ou não) indica uma fonte de
inspiração ou um texto em potencial – por vezes mesmo um poema já plenamente
existente, e que se publicou tal qual, depois de simples recolhimento do sinal.
Assinando deste modo, Paul Celan se identifica por assim dizer à poesia, ou pelo
menos a ‘idéia poética’ (confere ‘Eu sou a poesia’, proposição de Paul Celan
relatada por Jean Bollack em Pierre du couer, s.l., Pierre Fanlac, 1991, p. 9).233
A marcação em “i” nos livros lidos, liberada de “seu sentido original no fio do
tempo” adquire um valor totalmente outro. O pequeno “i” traz um potencial de escrita que
desencadeia a produção de poemas e de outros textos. Potencial que fala de uma “potência
próxima”, onde o “i” atua como catalizador, que aproxima o texto assinalado do texto
232
“Bien des poèmes, aphorismes ou pensées sont nés dans les marges mêmes des livres. De nombreuses pages
des livres de la Bibliotèque de PC constituent de véritables manuscrits”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE,
Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et illustrations. Op. cit. p.70.
233
“PC signe d’un petit ‘i’ souligné deux fois. C’est ainsi qu’il signale, pour lui-même, souvent dans la marge
d’un livre, une idée, une source d’inspiration, un mot ou une phrase relevés lors d’une lecture, une esquisse plus
ou moins élaborée de traduction ou de poème, une réflexion de nature aphoristique ou spéculative. En septembre
1957, GCL écrit à Klaus Demus au sujet de l’initiale du mot ‘idée’: ‘Je sais qu’il lit beaucoup et qu’il reprend et
réfléchit sur ses ‘i’ (idées qu’il note au fur et à mesure pour les travailler et les faire évoluer dans la suíte).’ Mais
cette abréviation s’est très certainement libérée de son sens originel au fil du temps, pour acquérir une valeur
idiosyncrasique. Le ‘i’ (precede et suivi d’un tiret ou non) indique une source d’inspiration ou un texte en
puissance – parfois même un poème déjà pleinement existent, et qui se publié tel quel, après simple retrait de ce
signe. En signant de la sorte, PC s’identifie pour ainsi dire à la poésie, ou tout au moins à l’ ‘idée poétique’ (cf.
‘Je suis la poésie’, propôs de PC rapporté par Jean Bollack dans Pierre de coeur, s.l., Pierre Fanlac, 1991,
p.9)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires er illustrations.
Op.cit. p.90.
68
produzido pelo poeta. Mesmo que o texto assinalado tenha perdido o seu sentido original, ele
age, silenciosamente, no poema ou no texto inventado pelo poeta.
Além disso, para Celan, o livro, tinha um caráter transformador. Lembremos de
Kafka em carta a seu amigo Oskar Pollak, em 1904:
(...) acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o
livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, porque o
estamos lendo? (...) Mas nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre,
que nos magoam profundamente, (...) Um livro tem que ser como um machado para
quebrar o mar de gelo que há dentro de nós É nisso que eu creio.234
(...) Mas é claro, eu traduzirei para você todos os meus poemas: já, em meus
passeios, eu os ausculto um pouco, para ver para onde eles ressoarão em francês –
eles são menos teimosos do que eu havia pensado. 235
234
KAFKA, Franz. Carta aos amigos. São Paulo: Nova Época Editorial Ltda. p.9
235
“Mais oui, je vous traduirai tous mes poèmes: déjà, en me promenant, je les ausculte un peu, pour voir par où
ils résonneront en français – ils sont moins têtus que je ne l’avais pensé.” in CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 34.
236
“J’ai écrit un poème, dur, difficile à traduire”. Ibidem. p. 491.
69
de uma “lição de alemão”237. É nesta mudança de atitude que o poeta nos mostra o manejo
singular que tem com as duas línguas: a francesa e a alemã. Assim, ao enviar uma carta
contendo um poema, na carta seguinte ele envia um dicionário, que chamarei aqui de
“Dicionário Celan”. Em geral, ele não vinha completo obrigando à Gisèle a consultar o
dicionário de alemão-francês.
Este dicionário criado por Celan também trazia palavras inventadas em francês, a
saber, traduções franco-celanianas. Este momento de invenção celaniana está sendo
considerado aqui no texto como um momento de “passagem ao poético”.
Na carta do dia 2 de abril de1966 (n. 396) ele envia um poema e logo na carta
seguinte ele manda o “Dicionário Celan”. Vamos transcrever o poema em alemão e depois
trazer a tradução feita pelo organizador da correspondência, Bertrand Badiou, que segue, em
parte, o dicionário enviado para Gisèle. A seguir, vamos transcrever a carta seguinte, do dia
3?. 4. 1966 (n.397), que traz o “Dicionário Celan”; e depois reescreveremos a tradução do
poema, a partir deste Dicionário, além, é claro, de nos servir, com as palavras faltantes, de um
dicionário comum de alemão-francês. Este poema vai nos dar a diretriz de nosso trabalho, no
238
que se refere à questão da língua, em seu movimento de cicatricement, que será melhor
desenvolvido no capítulo seguinte. Ele diz nesta carta: “(...) Hoje, eu te beijo, antes de voltar,
com as palavras (necessárias)” 239 As palavras de seu dicionário nos serão também necessárias
para nos aproximarmos da escrita melancólica de Celan, escrita que traz uma cicatriz sempre
em movimento. Vamos ao poema:
2. 4. 66
_____
Längst
237
“leçon d’allemand”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires
er illustrations. Op.cit. p. 71.
238
Podemos pensar aqui em cicatriz sempre em movimento.
239
“(...)! Aujourd’hui, je t’embrasse, avant de revenir, avec les mots (nécessaires!)”. CELAN, Gisèle. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p.415.
70
endlich,
heftig,
längst.
_______
2.4.66
An Gisèle240
O verdadeiro cicatricial
enganchado
no extremo, inex-
tricável,
Há muito tempo
Terminou-se de dançar a dança-espetáculo,
o peso a ser pago,
aqui, na entrada dos carros,
onde tudo acontece uma vez mais,
enfim,
com violência,
há muito tempo.
2. 4. 66
A Gisèle241
O “Dicionário Celan”, contido na carta do dia 3. 4. 1966 (n. 397) vem com as
seguintes indicações de tradução, que manterei no original:
240
CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 415.
241
“Le vrai cicatriciel,/ accroché/ dans l’extrême, in-/extricable,/ Depuis longtemps/ on a fini de danser la
danse-spectacle,/ la lourdement monnayée,/ ici, à l’entrée des voitures,/ où tout arrive encore une fois,/ enfin,/
avec violence,/ depuis longtemps./ 2. 4. 66/ A Gisèle”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 415-416.
71
242
Ibidem. p. 416.
243
Versos do poema, a partir da tradução francêsa, modificados a partir do dicionário Celan: “Le vrai-
“cicatricement” accroché/ dans l’extrême, impossible à devider”. Ibidem. p. 416.
244
“J’aime bien me défaire de mes poèmes, tu le sais bien” Ibidem. p.398.
72
É curioso que o tradutor João Barrento tenha traduzido o verso celaniano ich sah
ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn por “vi as suas raízes suplicar noite voltadas para o
céu”, fazendo uma junção do suplicar com noite que é diferente da tradução de Celan, e perde
parte do movimento trazido pelo poeta. Celan prefere traduzir seu verso em alemão (ich sah
ihre Wurzeln gen Himmel um Nacht flehn) para o francês – “je vis ses racines se dresser vers
le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la nuit” – transformando-o em dois versos, tensionando
as raízes em direção à noite. “Vi suas raízes se erguerem em direção ao céu para implorar/ que
haja noite” traz uma respiração que a tradução de Barrento não evidencia. Há um movimento
das raízes (do choupo, em uma clara referencia ao sujeito-poeta), com esforço, endereçadas ao
céu, esperando uma resposta que pudesse confirmar que haverá noite. No entanto, ele só
recolhe, em silêncio, uma “migalha”, perdendo de vista o seu choupo (as suas raízes). Isto nos
leva em direção a uma afirmação que Celan faz em sua correspondência para Gisèle: “eu sou
um homem sem raízes”.
245
“J’entendis dire qu’il y avait/ dans l’eau une pierre et un cercle/ et au-dessus de l’eau une Parole/ qui met le
cercle autour de la pierre./ Je vis mon peuplier descendre (aller vers le bas) vers l’Eau,/ je vis comme son bras
plongea dans la profondeur pour saisir,/ je vis ses racines se dresser vers le ciel pour implorer/ (qu’il y ait) de la
nuit./ Je ne lui courus pas après,/ je ramassai de par terre cette miette/ qui a la forme et la noblesse de ton oeil,/ je
détachai de ton cou la chaîne des dits/ et en bordai la table, où/ maintenant gisait la miette./ Et ne vis plus mon
peuplier” . Tradução para o francês feita por Paul Celan. Lembro aqui que choupo é uma árvore ornamental, da
família das Salicáceas, de flores pequenas e casca rugosa; choupo pode ser também álamo. Quando Celan
publica este poema, intitula-o “Ouvi dizer”. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 37. (poema do livro Von Schwelle
zu Schwelle (De limiar em limiar) de Paul Celan de 1955).
73
Em suas últimas cartas a Gisèle, Celan retoma seu oficio de tradutor de seus
próprios poemas. Talvez, deixando no ar um indício de que seus poemas podiam ser
traduzidos para o francês.
Após a morte de Alberto Camus, Celan preparou um texto para ser traduzido
pelos seus alunos da École Normal Supérieure. O texto de Camus escolhido foi “La mer au
plus près. Journal de bord”, do livro intitulado L’Eté de 1954. Na carta n. 114 de “[Paris]
quarta-feira de manhã [6.1.1960]”246, ele escreveu: “A morte de Camus: é, uma vez mais, a
voz do anti-humano, indecifrável. Se nós pudéssemos pensar com os dentes!”247. No mesmo
dia, Paul Celan escreveu uma carta ao poeta René Char (não enviada) falando a respeito da
morte de Camus:
René Char! Eu gostaria de lhe falar, neste momento, que é o de seu sofrimento, qual
é o meu sofrimento. O tempo luta com tenacidade contra aqueles que ousam ser
humanos – é o tempo do anti-humano. Vivos, nós estamos mortos, nós também. Não
há o céu da Provence; há a terra, aberta, sem hospitalidade; só há isso. Não há
consolo, não há palavras. O pensamento – este é um caso de dentes. Uma palavra
simples que eu escrevo: coração. Um caminho simples: aquele248.
mastigar
este pão, com
dentes de escrita250.
Os versos que nos interessam aqui são: “mastigar/ este pão, com/ dentes de
escrita”. De que dentes Celan estaria falando? Seria ainda uma última possibilidade do
246
“ [Paris] mercredi matin [6.1.1960] ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol.
I. Lettres. Op. cit. p. 112.
247
“La mort de Camus: c’est, une fois de plus, la voix de l’anti-humain, indéchiffrable. Si l’on pouvait penser
avec ses dents!”. Ibidem. p. 112.
248
“René Char! Je voudrais vous dire, en ce moment, qui est celui de votre peine, quelle est ma peine. Le temps
s’acharne contre ceux qui osent être humains – c’est le temps de l’anti-humain. Vivants, nous sommes morts,
nous aussi. Il n’y a pas de ciel de Provence; il y a la terre, béante, et sans hospitalité; il n’y a qu’elle. Point de
consolation, point de mots. La pensée – c’est une affaire de dents Un mot simple que je écris: coeur. Un chemin
simple: celui-là”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. II. Commentaires et
illustrations. Op. cit. p. 130.
249
“A parte da neve”.Tradução feita por João Barrento. CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. Cit. p. 163.
250
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 169.
74
homem falar, antes de ser tomado pelo que ele chamou de anti-humano? Os dentes de escrita
remetem à escrita, ela mesma, enquanto possibilidade de dizer alguma coisa ainda, apesar de
sua condição de poeta expatriado. Lembro aqui os versos do poema “Argumentum e silentio”,
feito em homenagem a René Char, que além de tocar na questão da noite, agora “sobrevoada
de estrelas, submersa pelo mar”, fala também de uma junção da noite com o “dente venenoso”
de escrita causando dor:
(...)
A ela, a noite,
sobrevoada de estrelas, submersa pelo mar,
a ela, ganha pelo silêncio,
a quem não gelou o sangue quando o dente venenoso
atravessou as sílabas251.
De sua parte uma coisa não está bem. Porque não me envias o que escreves? Não
importa o que, bem sabes que isto não será mal endereçado, bem sabes que podes
me escrever tudo o que se passa pela sua cabeça, mesmo que seja apenas o reflexo
de um instante de teu dia 252.
E acrescenta: “Eu te suplico, não guardes as cartas não enviadas, se elas me são
253
endereçadas” . Um pouco mais adiante, em outubro, Celan envia algumas cartas,
endereçadas a Gisèle, mas inacabadas. Antes de enviá-las, ele escreve uma longa carta no dia
30 de setembro de 1962 (n. 145), escrita de Genève. Celan novamente enfatiza a relação da
escrita com o amor, e, em especial, o amor pela sua mulher. Isto movia sua escrita: “Eu lhe
254
escrevo, meu Amor, eu lhe escrevo – isto faz viver” . Na carta do dia 3.4.1954 (n.39) não
251
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Ibidem. p. 69.
252
“De votre part une chose n’est pas bien. Pourquoi ne pas m’envoyer ce que tu écris? N’importe quoi, tu sais
bien que cela ne sera pas mal adressé, tu sais bien que tu peux m’écrire tout ce qui te passe par la tête, même si
ce n’est le reflet que d’un instant de ta journée”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance.
Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 140.
253
“Je t’en supplie, ne garde pas de lettres non envoyée, si elles me sont destinées”. Ibidem. p. 140.
254
“Je vous écris, mon Amour, je vous écris – cela fait vivre”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Vol. I. Lettres. Op. cit. p. 143.
75
somente faz referência ao amor, mas também ao entrelaçamento da arte – representada pela
sua mulher Gisèle – com a poesia, representada pelo próprio poeta:
Minha querida, você sabe bem: você é a ‘peinteuse’ da mesma maneira que eu, o
‘poéteux’. Eu, sei fazer uma coisa: te amar. – Tudo o resto tem pouca importância.
[Na margem:] e meus poemas: são você, meu amor255.
Em uma das cartas inacabadas (n. 156), datada de 23.X. 1962, a grafia de Paul
Celan está “extremamente pertubada”256. Também o início do texto é revelador de seu estado
psíquico. Entre novembro e dezembro de 1962, Celan passará por graves dificuldades
psicológicas ligadas ao caso Goll. Vejamos a carta:
255
“Ma chérie, vous le savez bien: vous êtes la ‘peinteuse’ au même titre que moi le ‘ poéteux’. Moi, je sais faire
une chose: vous aimer. – Tout le reste n’a que peu d’importance. [En marge:] Et mes poèmes: c’est vous, mon
amour”. CELAN, Gisèle. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 57.
256
“extrêmement troublée”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance. Commentaires et
illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 165.
257
“Vous êtes ma femme – vous êtes courageusement la femme d’un poète. Je vous remercie de l’être, si
vaillamment. Vous êtes, aussi, la mère de mes enfants, vous êtes la mère d’Eric. Merci, ma Chérie, de l’être si
courageusement. Vous êtes, vous le savez bien, la femme d’un poète maudit: doublement, triplement ‘juif’”.
CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 157.
258
“geste de conjuration et de résistance”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle Correspondance.
Commentaires et illustrations Vol. II. Ibidem. p. 540.
259
“[Il faut que la verité advienne\ et\ l’amour.]”. Ibidem. p. 540.
260
“vous savez bien que rien ne peut nous séparer jamais, jamais”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE,
Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 160.
76
Alguns dias antes, em Valloire, Paul Celan tinha vivido suas primeiras crises de
delírio: alucinações, ameaças acompanhadas de gestos agressivos com respeito a
Gisèle Celan-Lestrange. Paul Celan acusa um passante de estar implicado no caso
Goll dizendo-lhe: ‘você também, você está no jogo’. Durante a viagem de retorno
antecipada, ele arranca, com violência, ‘o lenço amarelo como as estrelas amarelas’
do pescoço de sua esposa (conversa com Gisèle Celan-Lestrange). Eric Celan, com
um pouco mais de sete anos, é testemunha destas cenas. Na sua agenda, com a data
de 21.12.1962, Paul Celan marca uma cruz (X) no interior de um quadrado. (Diário
de Paul Celan e conversa com Gisèle Celan-Lestrange)261.
Paul Celan ficou internado do dia 31.12.1962 até o dia 17.01.1963. Durante este
período, as cartas de sua mulher tinham um efeito de suporte, e mesmo de sustentação
psíquica. Desde a entrada na clínica, no final de dezembro, Celan recebeu oito cartas de
Gisèle. Os médicos tinham pedido a ela para se abster de visitá-lo. Celan diz, em uma das
cartas desta época, o quanto as cartas de sua mulher eram importantes para ele. Cito um
pequeno trecho da carta do dia quatro de janeiro de 1963 (n. 166): “Continue, eu lhes peço,
me escrevendo todos os dias: é de suas cartas que jorram minha esperança e minha
coragem” 262.
Alguns meses depois, já fora da clínica psiquiátrica, Celan escreve uma carta-
dedicatória para Gisèle, datada do dia 24 de outubro de 1963 (n. 176), anunciando a chegada
de um novo livro. Trata-se do livro de poemas intitulado Die Niemandsrose (“A Rosa de
Ninguém”), escrito entre os anos de 1959 e 1963, repartido em quatro ciclos de forma não
cronológica. Cito a carta-dedicatória:
Para você, meu Amor
sobre a Ponte dos anos,
Paul
Vale aqui uma divagação sobre o verso “É ainda e sempre nós” do poema “Le mot
d’aller-à-la-profondeur”, citado nesta carta-dedicatória. Ele ocupará um lugar importante na
relação de Paul Celan com Gisele nos anos de criação deste poema. Eu chamarei este período
261
“Quelques jours auparavant, à Valloire, PC avait vécu sés premières crises de délire : hallucinations, menaces
accompagnées de gestes agressifs à l’egard de GCL. PC accuse un passant d’être impliqué dans l’affaire Goll en
lui disant: « vous aussi, vous êtes dans le jeu! » Durant le voyage de retour anticipé, il arrache avec violence « le
foulard jaune comme les étoiles jaunes » du cou de son épouse (conversation avec GCL). EC, âgé d’un peu plus
de sept ans, est témoin de ces scènes. Dans son agende, à la date du 21.12.1962, PC a note une croix (X) à
l’interieur d’un carré. (Journal de PC et conversation avec GCL)”CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 169.
262
“Continue, je vous prie, de m’écrire tous les jours: c’est de vos lettres que rejaillissent mon espoir et mon
courage”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 164.
263
“Pour vous, mon Amour,/ sur le Pont des Années,/ Paul/ Paris, 24 octobre 1963./ Wir sind es noch immer.
(C’est encore et toujours nous)”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol.
I. Op. cit. p. 173.
77
de escrita de “ainda e sempre”, sinalizando a variação poemática dos versos. Este período
percorrerá algumas cartas entre os anos de 1959 e 1965, sendo a carta n. 302 (21 de novembro
de 1965) a última que Paul Celan envia. Este verso aponta também as dificuldades da relação
conjugal e o desejo do poeta, em muitos momentos compartilhado por Gisèle, de continuarem
casados “ainda e sempre”. Além disso, um outro período se instaura no poeta,
permanentemente, a partir de dezembro de 1962: um período de intenso sofrimento psíquico.
O poema surge pela primeira vez, em primeira transcrição, na carta-poema de
Paul Celan de 5.3.1959. Neste momento, Celan ainda estava no início da elaboração deste
poema e do livro La Rose de Personne. Depois de transcrever o poema, em alemão, sem
tradução, ele faz uma dedicatória para Gisèle: “Pelo seu aniversário, meu Amor, pelo
dezenove de março – esta noite, cinco de março 1959”264. Os momentos de crise ainda não
tinham acontecido e a relação com Gisele era harmoniosa. A referência a este verso só irá
aparecer de novo, na carta do dia quinze de abril de 1965 (n. 215), em plena crise conjugal. A
partir da cronologia feita por Bertrand Badiou, já sabemos que Paul Celan, em janeiro de
1965, convence sua mulher, depois de semanas de relações conflituosas, de se afastar por um
tempo de casa. Este pedido de Celan o deixa muito culpado. Nesta carta, ele diz que “nada
está perdido de nosso amor: É ainda e sempre nós”265. Gisèle, responde esta carta no dia 27 de
março, de Dinard (Bretanha), mostrando sua inquietude, dizendo que eles estavam vivendo
momentos muito duros no casamento, mas que conseguiriam superar os obstáculos. Cito um
trecho da carta, onde, novamente, o verso de Celan comparece:
Nós estamos tão perdidos longe um do outro, tão perdidos também neste momento,
um com o outro. Mas, isto vai mudar. O amor nos ajudará a encontrar o caminho.
Em sua última carta (n. 302 de 21.11.1965) do período “ainda e sempre”, Paul
Celan faz uma dedicatória à Gisèle, antes de transcrever o poema. Cito: “Para reencontrar
nosso amor”271.
Em algumas destas cartas, neste período, Celan, e também Gisèle, como vimos,
utilizam o verso Wir sind es noch immer (“É ainda e sempre nós”) para compor a carta e para
expressar a idéia e a força do amor, seja na referência poética, seja na referência pessoal.
No entanto, curiosamente, são apenas nas cartas do dia 5.3.1959 (primeira carta
do ciclo) e do dia 21.11.1965 (última carta do ciclo) que Celan faz a transcrição integral do
poema. Em 1959, Celan envia a primeira transcrição. Sabemos que em 1963 o poema é
publicado no livro A Rosa de Ninguém, mantendo esta transcrição. Em 1965, o poema
aparece, em outra versão, pela última vez. É importante salientar que Celan, nestas cartas do
267
“Doucement, je remonterai la pente, encore, - nous la remonterons ensemble. Tant des forces investies dans la
résistance – il faut trouver le moyen de dépasser ce stade, de revivre, librement ”. CELAN, Gisèle. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Vol. I. Lettres. Op.cit. p. 176.
268
“Le pont des anées dure et durera”. Ibidem. p. 176.
269
“doute profond qu’il éprouve vis-à-vis de la thérapie qu’il subit et des médecins”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. Cit. p. 555.
270
“Peu de mots, peu de choses – et pourtant c’est un grand progrès. Ce sont des forces retrouvées pour lutter,
ensemble, pour et avec notre fils. La Poésie, elle aussi, viendra nous aider. Nous en sommes toujours, nous y
sommes toujours”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.Vol. I. Lettres.Ibidem. p.
252.
271
“Pour retrouver notre amour ”. Ibidem. p. 320.
79
período “ainda e sempre” mostra uma passagem ao poético quando transcreve os poemas em
dois momentos (a tradução do poema para o português virá na nota de rodapé). O primeiro
momento, em um esboço inicial do poema em carta enviada em 1959 (n.106), que ele manterá
na publicação deste poema. Em um segundo momento, que podemos chamar de forma final,
em 1965 (n. 302), ele faz mudanças significativas no poema. Vejamos as cartas-poemas:
[Paris, 5.3.1959]
(…)
/ Erste Niederschrift/272
Agora o poema, em sua forma definitiva, em 1965 (escrito somente nesta carta a
Gisèle). Quando houver mudanças nos versos, irei assinalá-las usando itálico. E a forma
272
“Première transcription” (primeira transcrição). CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 106.
273
Tradução do poema: “a palavra sobre o Ir-ao-fundo, / que nós lemos. / Os anos, as palavras, desde então. / É
ainda e sempre nós// Tu sabes, o espaço é infinito, / tu sabes, não precisas voar / tu sabes, o que se inscrevia em
teus olhos / aprofunda para nós as profundezas”.
80
anterior, será introduzida na mesma linha do verso modificado (do lado direito da página),
entre parênteses:
[Paris, 21.11.1965]
274
Na versão final, foi retirada estas palavras deste verso. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 320.
275
Parte do verso retirado, já assinalado no poema original em alemão. Ibidem. p.321.
276
Tradução da versão final do poema: “A palavra sobre o Ir-ao-fundo, / que nós lemos. / Os anos, sem palavras,
desde então. / É ainda e sempre nós. // Tu sabes, o espaço é infinito, / tu sabes, elas não voam muito longe. / tu
sabes, / só o que meu silêncio te confiou / nos eleva em direção às profundezas ”.
81
paroles depuis”; a palavras les (de “les paroles”) é substituida pela palavra sans. O verso,
então, fica destituído da palavra/fala e mostra uma radicalidade. Agora, sem palavras, o poeta
vai caminhar com seu silêncio. No entanto, ainda e sempre endereça a Gisèle alguma
possibilidade, de juntos, se elevarem em direção (vers) “às profundezas”. A diferença que
podemos perceber agora, no poema, é em relação à intensa ligação de Celan a Gisèle. Lemos
na exclusão da frase “o que se inscrevia em teus olhos” (ce qui s’inscrivait dans ton oeil) do
verso “você sabe, o que se inscrevia em teus olhos” (tu sais, ce qui s’inscrivait dans ton oeil)
um sinal no poema de uma solidão impossível de compartilhar. O laço com Gisèle é rompido
em parte. O poema fica com um verso bem solitário, “tu sabes” (tu sais) e o poeta lança mão,
a seguir, de um verso novo: “só o que meu silêncio te confiou” (seul ce que mon silence t’a
confié). Como compartilhar o silêncio? É nesta impossibilidade que Celan coloca o leitor.
Em 5.5.1965 (n.220), Celan diz para Gisèle que irá se cuidar. Alguns dias antes
(3.5.1965), ele escrevera uma carta, não enviada, para o crítico Jean Starobinski. Muito aflito,
pedia a indicação de um médico, por não confiar no Dr. Male, médico psicoterapeuta que o
atendia. Diz a carta: “Você poderia, bem rápido, nos ajudar, me recomendando um médico
judeu (ele sublinha o judeu) (o Professor Lebovici277 [sic] talvez?) Faça-o, por telegrama se
possível. Você poderá salvar nossas três vidas (se refere a ele, a Gisèle e ao filho Eric), que
ficarão eternamente reconhecidas a você”278. Celan acreditava que devia ter uma saída, mas se
perguntava como fazer para encontrar esta saída. Para ele, a solidariedade humana devia ser a
base desta saída e mais ainda: “Pois o que é o judaismo senão uma forma do Humano, o que é
a Poesia senão uma forma do mesmo Humano”279. O Humano sempre comparecia para Celan
como uma saída para o seu sofrimento. A complexidade da relação entre o Humano, a Poesia
e o judaísmo, era uma questão das mais relevantes trazidas pelo poeta, mas que não serão
tratadas nesta dissertação.
277
Serge Lebovici (1915-2000) é psiquiatra e psicanalista. É filho de um médico que emigrou da Romênia para
França no início do século passado e que morreu em Auschwitz; foi co-fundador, com Julian Ajuriaguerra, entre
outros, da revista La Psychiatrie de l’enfant (1958).
278
“Pourriez-vous, très vite, nous aider, en me recommandant un médecin juif (le Professeur Lebovici [sic] peut-
être?). Faites-le par télégramme si possible. Vous pouvez sauver nos trois vies, qui vous en resteront
éternellement reconnaissantes ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires
et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.209.
279
“car qu’est-ce que le Judaïsme sinon une forme de l’Humain, qu’est-ce que la Poésie sinon une forme de ce
même Humain”. ”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et
illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 209.
82
O pedido de socorro de Paul Celan vem com uma explicação importante. Lemos
na carta não enviada para Starobinski: “Eu estou muito pertubado – fizeram tanto para me
pertubar! Mas não estou inteiramente [sic] sem lucidez” 280.
Paul Celan toma regularmente medicamentos psicotrópicos (antidepressivos e
neurolépticos) desde janeiro de 1963. Sua inquietude em relação as suas capacidades de
concentração e de memorização será constante a partir do ano de 1964. No entanto, seu
esforço para manter a lucidez será a toda prova. Em algumas cartas, Celan irá usar a
conjugação verbal “je maintiendrai” do verbo maintenir281 que é uma espécie de variação do
verbo alemão stehen282. Além disso, Stehen é um poema de Celan do livro Atemwende
(“Mudança de respiração”)283 que foi traduzido por tenir debout (ficar em pé) e que também
pode ser traduzido por resistir. Seu esforço para se manter de pé, além da tentativa, muitas
vezes enunciada, de encontrar-se está presente em várias cartas deste tempo. Além disso,
como nos lembra Raquel Abi-Sâmara, a palavra stehen é usada por Celan em três variações:
“Eu assumo/ Eu resisto/ Eu recuso”284. Assim, Abi-Sâmara traduz os dois primeiros versos do
poema dando ênfase ao verbo resistir: “RESISTIR, `a sombra/ da ferida aberta no ar”285. A
interpretação de Gadamer para este poema mantém a discussão sobre a palavra Stehen. Cito-
o:
Esta ferida aberta no ar é algo invisível, irreconhecível. (...) Esta ferida (...) está ‘no
ar’, e é do tipo que projeta sombra, evidentemente apenas sobre mim, de modo que
ninguém mais percebe que eu me mantenho de pé (stehen) nesta sombra. Está dito
claramente: aquele que se mantém de pé fica de pé por si mesmo. 286
280
“Je suis bien troubler [sic] – on a tant fait pour me troubler! Mais je ne manque pas tout-à-fait [sic] de
lucidité”. O [sic] em troubler indica um erro de ortografia de Celan: troubler, em lugar de troublé. CELAN,
Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 209.
281
Maintenir quer dizer manter, sustentar; manter-se. Michaelis: dicionário escolar francês: francês-português,
português-francês. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2002. p. 217. Além disso, o Dictionnaire de l’Académie
française, neuvième édition (version informatisée) diz que esta palavra saiu do latim popular manutenere,
precisamente ‘tenir avec la main’ (manter/segurar com a mão). A poesia para Paul Celan é semelhante a um
aperto de mãos. Ela é também coisa de mãos.
282
Stehen significa estar de pé, encontrar-se; estar escrito. Michaelis: minidicionário alemão-português,
português-alemão. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1996. p. 339.
283
A palavra Stehen, segundo Lefebvre, quando utilizada sozinha, tem sobretudo o sentido de resistir, fazer face,
permanecer em pé com constância, não cair e manter-se. CELAN, Paul. Renverse du souffle. Édition bilingue.
Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Paris : Seuil. 2003.
284
“J’assume/ Je résiste/ Je refuse”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisele.Correspondance. Lettres.
Vol. I. Op. cit. p. 133. (confere com a nota do organizador da correspondência que diz que Celan usa três
variantes francesas da palavra Stehen. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 153.)
285
“STEHEN, im Schatten/ des Wundenmals in der Luft.” GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu ?
Rio de Janeiro:EdUERJ, 2005. p. 90. (Tradução e apresentação de Raquel Abi-Sâmara).
286
GADAMER, Hans-Georg. Quem sou eu, quem és tu ? Op. cit. p. 91.
83
(...) Sem esta campanha contra mim (trata-se do caso Goll já explicado em outro
momento da dissertação), e que é, isso é cada vez mais evidente, uma vasta tentativa
de recalcar, de excluir este poeta um pouco alias que eu sou, sem tudo isso: como
nossa vida teria sido então serena, de amor e de trabalho, da educação de nosso
filho. Mais nós perseveraremos, nós nos manteremos, todos os três, juntos, cada vez
mais unidos287.
A relação do poeta com o verbo maintenir tem uma história interessante. Gisèle
lembra na carta do dia 19 de janeiro de 1965 (n. 198) da visita que os dois fizeram a
Amsterdam: “Tu te lembras que, depois de Amsterdam, eu tive quatro ou cinco gravuras que
vieram sózinhas, entre as quais ‘Je maintiendrai’288. A nota n. 9 desta carta289, nos esclarece
um pouco mais sobre esta conjugação do verbo maintenir. Esta gravura feita por Gisèle
Celan-Lestrange será intitulada em definitivo Souvenir de Hollande – Erinnerung an Holland.
Celan a intitulou “Je maintiendrai” e ele insiste que o título esteja entre aspas e que ele não
deve ser traduzido. Os Celan estavam “particularmente sensíveis ao espírito de resistência
inscrito na história da Holanda, país que soube acolher Spinoza e se insurgir contra a
perseguição dos judeus (onda de greves de fevereiro de 1941)”290.
Em maio de 1965, já internado em uma clínica psiquiátrica (Le Vésinet), Celan
está menos angustiado e recupera o “fio” da leitura. Lemos na carta de 18.5.1965 (n.241):
Eu pude ler toda uma peça de Shakespeare – ‘Coriolano’ – sem perder o fio. ‘Das
Rotverlorene’ – Tu te lembras? Pois bem, nós o reencontraremos, esse vermelho-
perdido, perdidamente vermelho, perdidamente vivo.
Com todas as minhas forças a você e ao filho.
Viva Moisville! (casa de campo dos Celan) Viva Paris!
Nós manteremos291.
287
“(...) Sans cette campagne contre moi, et qui est, c’est de plus en plus évident, une vaste tentative de refouler,
d’exclure ce poète un peu d’ailleurs que je suis, sans tout cela : que notre vie aurait-elle donc été sereine,
d’amour et de travail, d’éducation de notre enfant. Mais nous nous acharnerons, nous maintiendrons, tous les
trois, ensemble, de plus en plus unis”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres.
Vol. I. Op. cit. p. 195
288
“souviens-toi, après Amsterdam j’ai eu quatre ou cinq gravures qui sont venues toutes seules, dont ‘Je
maintiendrai’”. Ibidem. p. 204.
289
Nota n. 9 da carta n.198 de 19.1.1965. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance.
Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.194.
290
“particulièrement sensibles à l’esprit de résistance inscrit dans l’histoire de la Hollande, pays qui sut accueillir
Spinoza et s’insurger contre la persécution des Juifs (vague de grèves de février 1941)”. Ibidem. p. 194.
291
“J’ai pu lire toute une pièce de Shakespeare – ‘Coriolan’ – sans en perdre le fil. ‘Das Rotverlorene’ – te
rappeles-tu ? Eh bien, nous le retrouverons, ce ‘rouge-perdu’, éperdument rouge, éperdument vivant. De toutes
mes forces à vous et au fils. Vive Moisville ! Vive Paris! Nous maintiendrons”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p.240.
84
(...) Eu não admito esta separação. Eu não admito deixar esta casa, minha casa.
Aqui, eu combaterei, ainda e sempre. Aqui você reencontrará suas forças, seu
trabalho, seu amor, sua compreensão, e você me ajudará no meu combate296.
292
“resulte de la fusion des deux expressions idiomatiques allemandes ‘der rote Faden’, le fil rouge, le fil
conducteur (expression inventée par Goethe, Affinités électives, II, 2), et ‘den Faden verlieren’, perdre le fil”.
CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. Cit.
p.221.
293
Na nota de Jean-Pierre Lefebvre para este poema, o tradutor nos fala que o escritor Lichtenberg tinha a
reputação de ser distraído. Ele estava sempre em perigo de perder o fio de seu pensamento. CELAN, Paul.
Renverse du souffle. Édition bilingue. Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Op.cit. p. 172.
294
“Le rouge-perdu d’un fil de pensée”. Ibidem. p. 104.
295
ALEMANN, Beda. “La poesía de Paul Celan” in ROSA CÚBICA – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996
(número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie.Op. cit. p. 93.
296
“(...) Je n’admets pas cette séparation, Je n’admets pas de quitter cette maison, ma maison. Ici, je combattrai,
encore et toujours. Ici vous retrouverez vos forces, votre travail, votre amour, votre compréhension, et vous
m’aiderez dans mon combat”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisele.Correspondance. Lettres. Vol. I.
Ibidem. p.309-310.
85
297
“retour du guerrier – du guerrier juif”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.
Commentaires et illustrations. Vol. II (Chronologie). Op. cit. p. 557.
298
“ Weisst du, wir sind es noch immer (Tu sais, c’est encore et toujours nous)”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 310.
299
“Bon anniversaire encore! Dans deux mois, ce sera notre grand anniversaire – puissons-nous en avoir
beaucoup d’autres encore, au milieu de nos forces, de toutes nos forces retrouvées”. Celan sublinha toutes
(todas). Ibidem. p. 312.
300
“il faut que Gisèle rentre avec Eric, il faut qu’Eric soit chez lui, qu’il reprenne le travail.” Ibidem. p.321.
301
“DIE LIEBE, zwangsjackenschön [L’AMOUR, d’une beauté de camisoles des forces].” CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p.265.
86
Gisèle escreve, em meio a momentos de muita aflição, que tinha estado com o
médico, o Dr. R. e tinham conversado muito. Diz a carta (n.312):
É preciso, Paul, que você se cuide, para sair deste mau período. É preciso te
reencontrar no verdadeiro para poder de novo levar uma vida normal, escrever,
ensinar, traduzir, realizar tudo o que você tem ainda a fazer302.
302
“Il faut, Paul, que tu te soignes, pour sortir de cette mauvaise période. Il faut te retouver dans le vrai pour
pouvoir à nouveau mener une vie normale, écrire, enseigner, traduire, réaliser tout ce que tu as encore à faire”.
CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op.cit. p. 329. (carta do dia 21
de dezembro de1965).
303
“ ‘Beziehungswahn’ [‘délire de relation’] (il emploie ce terme, entre guillemets, dans son journal à la date du
8.5.1965)”. CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations.
Vol. II. Op.cit. p. 212.
304
“Ma chère Gisèle, Il y a longtemps que je te dois une lettre, et à plusiers reprises j’ai pris l’elan pour t’en
écrire une. Mais que dire? Avec du connu et de l’inconnu... je brode... je brode du bon côté dirai-je, du côté
protégé aussi. Où est Eric ? Où êtes-vous? Voici me deux interrogations fondamentales, avez, bien sûr, un où
suis-je ?, digne d’être marqué. Peu d’élévation chez [manque], tu vois bien. Laisser la parole à qui ? A vous
deux, à mon fils et à ma femme. Je ne lis point – c’est lamentable.Puissiez-vous éviter cette phase (‘phase’)! Je
fais – vertueusement – le tour de ma chambre – vaste et vertueuse à son tour, mais bien sonore aussi quant à
l’inarticulé ou para-articulé. (Dieu ! Ne pas aboutir à cela !) Si vous avez une lettre d’Eric, copiez-la et donnez-
87
A “fase” do poeta não era nada boa. Como evitar esta fase, se indaga Celan. A
ênfase dada por Celan à palavra fase repetindo-a duas vezes e colocando-a entre aspas na
repetição nos conduz a uma antiga questão de poeta. Trata-se da perseguição feita pela viúva
do poeta Yvan Goll, Claire Goll, acusando Celan de plágio, além de escrever em revistas e
jornais coisas absurdas e terríveis sobre o poeta. Podemos até afirmar que as questões
psíquicas de Paul Celan se agravaram a partir desta perseguição desenfreada de Claire Goll.
Em muitas crises do poeta, a origem de seu sofrimento era um artigo de Claire, e até mesmo
encontrá-la em Paris em algum evento literário, desencadeava nele uma angústia intensa.
Lembremos aqui esta história, já contada, em parte, em uma nota de rodapé do Capítulo III da
dissertação. O “caso Goll” se desenrolou em três ‘fases’: (“A Fase I – 1949- 1952 –, Fase II –
1953- 1959 –, Fase III – 1960- 1962”)305. Em 1960, em uma carta aberta intitulada
“Unbekanntes über Paul Celan” (Coisas desconhecidas sobre Paul Celan306), publicada em
uma pequena revista literária de Munich, Claire Goll “acusa uma vez mais Paul Celan de ter
plagiado seu marido Yvan Goll no livro Papoula e memória”307. As acusações de Claire Goll
eram todas sem fundamentos literários. Em 16.12.1960, o poeta Hans Magnus Enzensberger
escreve no jornal Die Welt que, antes de tudo via em Claire Goll “um caso patológico”,
ressaltando que as declarações de Goll sobre este caso, deviam ser julgados “não de um ponto
de vista literário mas, sem dúvida, antes de um ponto de vista médico”308.
No dia nove 9 de fevereiro de 1966, Celan escreve, contando sobre o Professor
Jean Delay, diretor da Clínica da Faculdade, em Sainte-Anne. Jean Delay, além de ser
psiquiatra, era escritor. Nesta clínica, o trabalho de medicação era feito sob a supervisão do
professor Pierre Deniker, fundador, junto de Jean Delay, da psicofarmacologia. O poeta René
Char era amigo de Delay. Em conversas com Char, Jean Delay se mostrou interessado em
tratar de Paul Celan. Na clínica, Celan sente-se mais à vontade e gosta de ser tratado de Paul
Antchel, mas prefere ser chamado de Paul Anstchel-Celan. E diz: “É melhor: Paul Antschel-
Celan, - como isso nós nos habituaremos aos dois nomes”309. Lembremos aqui que em abril
la-moi. J’arrete – je vous regarde. Paul ” CELAN, Paul. CELAN- LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.
Lettres. Vol. I. Ibidem. p.355-356.
305
(“A Phase I – 1949- 1952 –, Phase II – 1953- 1959 –, Phase III – 1960- 1962)”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op.cit. p. 279.
306
“Des choses méconnus sur PC”.
307
“accuse une nouvelle fois PC d’avoir plagie son mari, Yvan Goll, dans Mohn und Gedächtnis”. Ibidem. p.
143.
308
“non pas d’un point de vue littéraire, mais sans doute plutôt d’un point de vue médical”. CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Ibidem. p. 145.
309
“Le mieux, c’est: Paul Anstchel-Celan, - comme ça on s’habituera aux deux noms”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p.361.
88
de 1955, Paul Celan recebe a recusa do Ministério da Saúde pública da “francesação do nome
Antschel em Celan”310. Este pedido de Celan foi feito, em 1953, junto ao pedido para se
naturalizar francês. Paul Celan gostaria de manter o nome Celan, quando fosse naturalizado
francês. No entanto, a administração pública francesa recusa este pedido considerando a
mudança do nome Anstchel para Celan “como uma verdadeira mudança de nome”311, que não
poderia ser feita na França. Em 8 de julho de 1955, sai o decreto de naturalização de Paul
Antschel, publicado no Jornal oficial do dia 17.7.1955. O nome Celan será visto por alguns
como um pseudônimo de Antschel. Durante toda a vida, o poeta usará o nome Paul Celan,
escolhido por ele. O nome Antschel aparecerá nos períodos de internação oficial ou quando
precisava fazer algum ato administrativo. Para a França, Paul Celan era oficialmente
reconhecido como Paul Antschel.
Em 16 de fevereiro de 1966 (n. 350), ainda na clínica, escreve dizendo: “Eu
reencontrei, entre outras, minhas forças epistolares”312. No dia seguinte escreve: “Mas, o tédio
cavou um pequeno lugar – eu espero que o tratamento vá remediar”313. Ele adquire o que
podemos chamar de uma esperança melancólica, ali onde um “tédio cavou um pequeno
lugar”. É como uma cicatriz que não se fecha. Podemos remediá-la, mas nunca fechá-la em
definitivo.
Na carta do dia 23 do mês de fevereiro de 1966, Celan fala da beleza das gravuras
de Gisèle e de seus poemas, retomando um pouco os temas poéticos. Lemos: “E minha poesia
se compraz sempre em seus clarões, luzes, em suas ravinas, e guiadas por suas asperezas
[sic]”314. As gravuras de Gisèle sempre provocaram em Celan uma fértil produção poética.
Juntos fizeram dois trabalhos, que foram expostos e muito apreciados, especialmente
Atemkristall (Cristal de souflle) de 1965, um ciclo de vinte e um poemas de Paul Celan e oito
gravuras de Gisèle Celan-Lestrange. Depois, este ciclo de poemas de Celan foi incluído em
seu livro Atemwende (Mudança de respiração). Lembremos aqui a carta do dia 29. 3. 1965
onde Celan escreve: “Minha querida, em seus cobres eu reconheço meus poemas: eles passam
por eles e estão neles, ainda ”315.
310
“francisation du nom Antschel en Celan”. CELAN Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance.
Commentaires et illustrations. Vol. II. Op.cit. p. 500.
311
“véritable changement de nom”. Ibidem. p. 500.
312
“j’ai retrouvé, entre autres, mes forces épistolaires”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 367.
313
“Mais l’ennui se creuse une petit place – j’espère que le traitement va y remédier”. Ibidem. p. 368.
314
“Et ma poésie se plaira toujours dans ses lueurs, lumières, dans ses ravines, et guider par ses aspérités [sic] ”.
Ibidem. p. 370.
315
“Ma chérie, dans vos cuivres je reconnais mes poèmes: ils y passent pour y être, encore”. Ibidem. p.228.
89
Em 12 de abril de 1966 (n. 406), Paul Celan escreve uma interessante carta ao
filho Eric falando de sua poesia e anunciando um novo ciclo de poemas:
Meu querido Eric,
(...) escrevo-te para dizer da minha alegria de te ver fazendo progressos na escola,
minha alegria de te ver tendo sucesso, igualmente, nos jogos e nos esportes.
Eu também trabalhei um pouco e não estou descontente. Você bem sabe: a
Poesia é algo de muito elevado, de muito áspero. Eu enumerei os poemas escritos
desde Niemandsrose (“A Rosa de Ninguém” ou “A Rosa Nula”) e percebo que
terminei um novo ciclo de Poemas e, graças a isto, um novo livro está terminado.
Nunca eu escrevi tanto; para a publicação de um livro, nunca tive tanto trabalho.
Mas verás – em breve – quando tiveres progredido em alemão, nós começaremos, ou
melhor: nós continuaremos a ver, juntos, o que eu faço, o que tu fazes. Mamãe deve
ter te ajudado muito – beije-a, por isto também.
Um beijo
Teu pai316
316
“Mon cher Eric,(...) je t’écris pour te dire ma joie de te voir faire des progrès à l’école, ma joie de te voir
réussir, également, dans tant de jeux et de sports. Moi aussi, j’ai travaillé un peu et je n’en suis point mécontent.
Tu sais bien : la Poésie c’est quelque chose de très haut, très âpre. J’ai compté les poèmes écrits depuis la «
Niemandsrose » (« La Rose de Personne » ou « La Rose Nulle ») et je m’aperçois que j’ai terminé un nouveau
cycle de Poèmes et, grâce à cela, un nouveau livre est terminé. Jamais j[e n]’ai écrit autant ; à la parution d’un
livre, je n’ai jamais connu tant de travail. Mais tu verras – bientôt – quand tu auras encore progressé en allemand,
nous commencerons, ou plutôt: nous continuerons de voir, ensemble, ce que je fais, ce que tu fais. Maman t’aura
tellement aidé – embrasse-la, pour cela aussi. Je t’embrasse. Ton père”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN,
Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 406.
317
“ressortissant souvent à l’autobiographie ou à la théorie poétique”. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN,
Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 559.
318
Mon chéri, mon Paul chéri, Je voulais te dire ce soir que je pense à toi dans la solitude de mes soirées, dans la
solitude de mes journées. (...) Garde ce courage de lutter pour guérir, comme je garde le courage de travailler,
d’être là pour t’attendre. Pour qu’enfin nous nous retrouvions à jamais ensemble – CELAN, Paul.
LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Ibidem. p. 435.
90
Celan responde a esta carta com angústia (n.414). Estava prestes a receber um
tratamento à base de insulina, conhecido por terapia por insulina ou cura de Sakel319. Segundo
depoimento de Gisèle ao organizador da correspondência, Bertrand Badiou, não se tratava “de
uma verdadeira cura de insulina”320, mas de um tratamento visando melhorar as capacidade de
concentração e de memorização. Lemos na carta:
Minha Querida,
Amanhã, sem dúvida, começará a cura pela insulina, e eu te escrevo para lhe
dizer que eu estou, desde ontem, um pouco ansioso. Pensei até mesmo, esta manhã –
depois de uma noite não muito boa –, em ir procurar os médicos para falar com eles.
Mas não o farei. “Não há prega”, diz René Char, sobre esta pedra321 que ele nos deu,
“mas uma paciência milenar”322.
319
“Cura ou método de Sakel ou choque insulínico é um dos tratamentos da esquizofrenia – hoje abandonado –
que consiste em provocar um choque, um coma, por injeção intravenosa.” in CELAN, Paul. LESTRANGE-
CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol. II. Op. cit. p. 297.
320
“d’une vraie cure d’insuline”. Ibidem. p.561.
321
Os Celan receberam o galet de presente de René Char (entre os anos 1955-1956).
322
“Ma Chérie, demain, sans doute, commencera la cure à l’insuline, et je vous écris pour vous dire que je suis,
depuis hier, un peu anxieux. J’ai même pensé, ce matin – après une nuit pas trop bonne –, d’aller trouver les
médecins pour leur parler. Mais je ne le ferai pas. ‘Il n’y a pas de repli’, dit René Char, sur cette pierre qu’il nous
a donnée, ‘mais une patience millénaire’. CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance.
Lettres. Vol. I. Op. cit. p.436.
323
“Schlafbrocken” (Morceaux de sommeil na tradução de Bertrand Badiou) Carta n. 455. Ibidem. p. 478-479.
324
“(...) Keile,/ ins Nirgends getrieben:/ wir bleiben uns gleich (coins,/ enfoncés dans le nulle part: / nous restons
égaux à nous-mêmes)”. Ibidem. p. 478-479.
91
experiência psiquiátrica, Celan permanece sem ter onde se apoiar, fincando-se em “lugar
nenhum”.
Suas crises de delírio cessam por um tempo. Em janeiro de 1967, ele apresenta, de
novo, dificuldades psíquicas, que são agravadas mais ainda pelo encontro fortuito com Claire
Goll no Instituto Goethe de Paris. Em 30 de janeiro de 1967, Celan tenta se matar com uma
faca, que passa bem perto do coração. Gisele o salva in extremis325. Ele é internado no
Hospital Boucicaut para ser operado no pulmão esquerdo que foi gravemente lesado. Depois
de sua recuperação, ele é internado no hospital psiquiátrico Sainte-Anne, no período de 13 de
fevereiro a 17 de outubro de 1967, no serviço do Dr. Jean Delay, com saídas autorizadas a
partir do fim de abril. Na clínica, Celan escreverá mais da metade dos poemas de
Fadensonnen (“Sóis Desfiados’) que será publicado em outubro de 1968, além de uma grande
parte de seu livro Lichtzwang (“A força da luz”), que será publicado em 1970, após a morte
do poeta. Neste momento da internação, Celan também se ocupava do manuscrito de
Atemwende, livro que seria lançado em 1967.
No início desta internação, ele relembra, em versos, a internação forçada que teve
em 1965, fazendo a relação entre estas duas internações, ou seja, o poeta traz, em versos, os
traços destas difíceis experiências de separação e isolamento. Agora também, de alguma
forma, ele estava quase em regime de “prisão”. O poema que Celan escreve em primeiro de
março de 1967, já citado anteriormente nesta dissertação traz, em seus versos, o amor e a
camisa de força, o nada e o sopro expirado na clara referência a morte:
325
CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op.
cit. p. 565 (Cronologia feita por Bertrand Badiou).
326
“L’AMOUR, d’une beauté de camisoles de force, \ met le cap sur le couple de grues. \\ Qui, dans sa traversée
du néant, \ apportera le souflle expiré ici\ de l’autre côté, dans un des mondes ? ”. CELAN, Paul. LESTRANGE-
CELAN, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Ibidem. p. 566.
327
CELAN, Paul. “O Meridiano”. Arte Poética – O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 54.
92
“pausa na respiração” que o poema é construído. Jean-Pierre Lefebvre, nas notas a sua
tradução francesa do livro Atemwende (“Renverse du Souffle”) de Paul Celan diz que a
expressão Atemwende é mais do que uma simples mudança de orientação de respiração ou de
ar. Ela “designa o momento intermediário entre os dois tempos da respiração, durante o qual o
fluxo respiratório se inverte e recomeça no outro sentido”328. Nos textos preparatórios ao
discurso “O Meridiano” encontramos uma alusão de Celan a uma frase que sua mãe repetia
para ele: “o que temos no pulmão, temos na língua”329. Esta frase será desenvolvida pelo
poeta em uma palavra composta: “ ‘Auf Atemwegen’,‘Por caminhos da respiração’”330, que
permanece no texto definitivo de “O Meridiano” e exerce um papel importante na poética de
Paul Celan, pois liga a poesia à vida e à morte (“o que, ao pé da letra, fala-à-morte”331) .
Na clínica, Celan leu vários livros. Entre eles, Edmond Jabès (Le livre des
Questions II), Sigmund Freud (Jenseits des Lustprinzips “Além do principio do prazer” e Das
Ich und das Es “O Eu e o Isso”) e Thomas Bernhard (Verstörung). Em todos os livros as
marcas de leitura, anotações e o “-i-” (de idéia) estão presentes. No dia 20.3. 67, Celan
começa a ler o livro de Bernhard e termina no dia 23.3.67. Paul Celan sublinha e realça com
um traço na margem da página 183 algo que nos interessa aqui. Cito: “Todliche
Selbstgesprachigkeit. / Wahnsinn durch sich selbst als Wahnsinn der Welt, der Natur.
[Monólogo mortal. A loucura devido a si-mesma como loucura do mundo, da natureza]”332.
No fim do livro, Celan faz uma anotação, em relação à sua leitura da página 107, que toca no
ponto da melancolia: “ ‘-i-’ \ Die Schwermut, aufs neue geduldet, \ pendelt sic hein [O peso
melancólico, suportado de nova maneira \ reencontra seu ritmo pendular]333.
Em 15 de novembro de 1968, Paul Celan tem uma nova crise de delírios. Ele
agride um vizinho suspeitando que ele pudesse fazer mal a seu filho Eric. Celan é conduzido a
uma enfermaria psiquiátrica perto da Préfecture de Police e permanece diante dos médicos e
da assistente social, em um mutismo total “que ele rompe murmurando: ‘Eu sou francês’, ‘Eu
328
“désigne le moment intermediaire entre les deux temps de la respiration, pendant lequel le flux respiratoire
s’inverse et repart dans l’autre sens”. CELAN, Paul. Renverse du souflle. Tradução e notas de Jean-Pierre
Lefebvre. Op. cit. p. 128.
329
“ce qu’on a sur le poumon, on l’a sur la langue”. Ibidem. p. 128.
330
“ ‘Auf Atemwegen’, ‘Par des chemins de souffle’”. CELAN, Paul. Renverse du souflle. Tradução e notas de
Jean-Pierre Lefebvre. Op. cit. p. 128.
331
“ce qui à la lettre parle-à-mort”. Ibidem. p. 129.
332
“Tödliche Selbstgesprächigkeit. / Wahnsinn durch sich selbst als Wahnsinn der Welt, der Natur. [Monologue
mortel. La folie due à soi-même comme folie du monde, de la nature].” CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE,
Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p. 348.
333
“‘-i-’ \ Die Schwermut, aufs neue geduldet,\ pendelt sic hein. La pesanteur mélancolique, supportée de
nouvelle manière,\ retrouve son rythme pendulaire”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p.348.
93
Nesta carta, Gisèle mantém uma postura mais distante, não podendo falar as
palavras que Celan espera que ela diga. Já Celan, mantem o amor por Gisèle preservado de
todas as intempéries. Lemos na carta de 26 de dezembro de 1968: “Minha querida Gisèle, O
vinte e três de dezembro que você evoca é sempre nosso e sera sempre nosso, ele nos
acompanha para oferecer-se a nós, ele se increve em nossas palavras, em nossos gestos, em
tudo o que faz nossa vida”338.
Ele recebe visitas regulares de Gisèle e dos poetas mais próximos dele, Jean Daive
e André du Bouchet. Nesta internação ele escreve trinta e quatro poemas, que ele depois vai
interditar para a publicação.
Em 18.3.1970 (n. 670), Celan escreve uma de suas ultimas cartas endereçadas a
Gisèle: “Que posso eu te oferecer, minha querida Gisèle? Eis um poema escrito pensando em
334
“Qu’il rompt qu’en murmurant ‘Je suis français’, ‘J’ai été opéré d’un poumon”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et illustrations. Vol II. Op. cit. p.427.
335
O nome deste médico é mantido em sigilo.
336
“mélancolie délirante”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Commentaires et
illustrations. Vol. II. Ibidem. p.428.
337
“Il y a seize, c’etait aussi 23 décembre: le notre. Ce que nous n’aurons pas vécu depuis! Puisse cette nouvelle
année être moins dure. Je sais les mots que tu espès et que je ne peux dire. Je sais vers où ton regard se dirige
sans que je puisse y répondre : c’est très méchant, la vie. Dans ma peine et mon désarroi les mots me manquent,
te savoir là où tu es, je ne peux te dire ce que c’est pour moi; ton courage et ta patience malgré tout cela!”.
Gisèle. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 649- 650.
338
“Ma chère Gisèle, Le vingt-trois décembre que tu evoques est toujours nôtre et sera toujours nôtre, il nous
accompagne pour s’offrir à nous, il s’inscrit dans nos paroles, dans nos gestes, dans tout ce qui fait notre vie”.
Ibidem. p. 650.
94
você”339. O poema vem com uma tradução para o francês, palavra por palavra, e Celan vai
usar mais uma vez o vocábulo Wahn, que na tradução do poeta quer dizer delírio, loucura.
Lemos:
Celan, em sua luta que trava com a escrita, ainda se ergue e contempla sua mão.
Ergue-se para poder permanecer de pé (Stehen) em seu desejo de escrita.
339
“Que puis-je t’offrir, ma chère Gisèle? Voici un poème écrit pensant à toi”. CELAN, Paul. LESTRANGE-
CELAN, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op.cit. p. 687.
340
“Es wird etwas sein, später,/ das füllt sich mit dir/ und hebt sich/ an einen Mund/ Aus dem zerscherbten/
Wahn/ steh ich auf/ und seh meiner Hand zu,/ wie sie den einen/ einzigen/ Kreis zieht”. Ibidem. p. 688.
6. A LÍNGUA E O SEU MOVIMENTO EM CICATRICEMENT
96
sobrevoado por estrelas que são obra humana, de quem, sem teto, também neste
sentido até agora nem sonhado e por isso desprotegido da forma mais inquietante,
vai ao encontro da língua com a sua existência, ferido de realidade e em busca de
realidade”.346
A escrita de Celan luta com a língua alemã. Sua tentativa, nesta passagem
linguageira, segundo Shoshana Felman é a de:
aniquilar sua própria aniquilação presente nela, para se reapropriar da linguagem que
marcou a sua própria exclusão: os poemas deslocam a língua de forma a remoldá-la,
para mudar radicalmente sua semântica e pressupostos gramaticais e refazer –
341
MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da obra literária Op. cit. p. 60.
342
Segundo Maingueneau, a paratopia é a localização paradoxal em que se encontra o escritor no campo
literário. O paradoxal é que esta localização se dá numa “deslocalização” apontando para “uma difícil
negociação entre o lugar e o não lugar”.
343
Ibidem. p. 60.
344
CELAN, Paul. “Alocução na entrega do prêmio literário da cidade de Bremen” in Arte Poética, O Meridiano
e outros textos. Lisboa: Edições Cotovia, 1996, p. 33.
345
CELAN, Paul. Ibidem. p. 33.
346
CELAN, Paul. Ibidem. p. 34.
97
É esta linguagem apontada por Soshana Felman, que Celan chama de “seu projeto
de realidade”, projeto feito com esforço, em direção “ao encontro da língua com a sua
existência, ferido de realidade”348. Neste trajeto de remodelamento, em uma torção incessante,
Celan segue “ferido de realidade”, ferido de mundo. Em seu discurso de Bremen, Celan
esclarece o seu “projeto de realidade”:
Foi como podem ver, acontecimento, movimento, estar sempre a caminho, foi a
tentativa de encontrar um rumo. E se pergunto qual é o seu sentido, então penso que
terei de dizer a mim próprio que nesta pergunta também fala a pergunta sobre o
sentido dos ponteiros do relógio.349
347
FELMAN, Shoshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino” in Catástrofe e Representação. São
Paulo: Escuta, 2000, p. 39.
348
CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op.cit. p.34.
349
CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op.cit. p.34.
350
BADIOU, Bertrand. “Au coeur d’une correspondance” in Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février
2001, p.192.
351
Ibidem. p. 192.
352
Ibidem. p. 192.
98
pode ser lido como um ato terá uma melhor definição quando ele traduz La Jeune Parque de
Paul Valéry. A tradução desse poema de Valéry tinha sido considerada por Rilke como uma
tarefa impossível. Em uma de suas cartas, Paul Celan diz que há uma dimensão de aposta em
seu gesto. Em uma outra carta, endereçada a Gisele, no dia do aniversário dela, ele fala de sua
alegria por ter feito esta tradução:
Paul353
A nota a esta carta esclarece ainda, que Celan escreveu uma carta (não enviada) a
seu amigo Petre Solomon, datada do dia 15.3.1960, falando da importância desta tradução:
“Por estes dias será publicada minha tradução de La Jeune Parque. É a primeira tradução
alemã, Rilke, ele mesmo, considerava ‘impensável’ uma tal tradução.”354
Paul Celan transitava de língua em língua com uma facilidade enorme, mas tinha
uma necessidade imperiosa de traduzir os textos para o alemão. Era algo da ordem de uma
urgência quase vital. Além disso, este trânsito desimpedido entre as línguas o alimentava.
Estas línguas embabellent355 o seu alemão de poeta, conforme dizia Celan. Esta palavra
(embabellent) nos faz reportar a Babel, que é ao mesmo tempo um nome próprio e um nome
comum. Derrida diz em seu texto “Torres de Babel”, que Babel, enquanto nome próprio
deveria permanecer intraduzível. No entanto, este nome deriva de “um nome comum
significando o que nós traduzimos como confusão”.356 E isto nos leva a uma construção
inacabada – a própria “torre de Babel”: “o mito da origem do mito, a metáfora da metáfora, a
tradução da tradução”,357 configurando uma multiplicidade de línguas e um não acabamento
na própria construção de um sistema, seja ele arquitetônico, lingüístico ou literário.
353
“Pour vous, ma Chérie,/ ce poème qui est venu renaître/ dans notre Maison/ Pour votre anniversaire/ pour le
19 mars 1960/ Paul”. CELAN, Paul. LESTRANGE -CELAN, Gisèle. Correspondence. Lettres. Vol I. Op. cit.
p.116.
354
Cito: “ces jours-ci paraît ma traduction de la Jeune Parque. C’est la première traduction allemande, Rilke lui-
même tenait pour ‘invraisemblable’ une telle traduction.”CELAN, Paul. LESTRANGE -CELAN, Gisèle.
Correspondence. Commentaires et illustrations Vol II. Op. cit. p. 135.
355
A palavra parece sugerir movimento. Movimento das línguas que balançam, que entusiasmam. Assim,
embabeller pode se pensado a partir das palavras Babel e emballer. Babel se refere à confusão das línguas.
Emballer é empacotar, mas também pode ser entusiasmar-se.
356
DERRIDA, Jacques. Torres de Babel. Belo Horizonte: Editora da UFMG. 2002. p.12.
357
DERRIDA, Jacques. Ibidem. p.11.
99
uma contra-assinatura da língua alemã e ao mesmo tempo algo que advém a língua
alemã, que advém nos dois sentidos deste termo: que se aproxima da língua alemã,
que a socorre, sem entregar-se a ela, mas ao mesmo tempo fazendo com que a
359
escritura poética advenha, isto é, que seja um acontecimento que marque a língua.
O poeta é aquele que faz uma passagem com acontecimentos de escrita, e produz
um corpo novo à língua. Então, quando Celan cria uma obra, ele dá um “novo corpo à língua,
dá à língua um corpo tal que esta verdade da língua apareça ali como tal, apareça e
desapareça”.360
Em Celan, a questão da língua tem relação com a noção de cicatriz. Segundo
Derrida, o poeta trabalha com a língua e
358
DERRIDA, Jacques (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Buenos Aires.
2001. p. 16.
359
Ibidem. p. 16.
360
Ibidem. p. 16.
361
Ibidem. p. 16.
362
Cito: “Das Narbenwahre (Le Vrai-cicatrice), voici le résultat de mes diverses cogitations”. CELAN, Paul.
CELAN-LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol.I. Op. cit. p. 414.
100
poema que se inicia com os seguintes versos e que já foi transcrito integralmente no capítulo
cinco, referente às cartas como registro de uma poética: “A verdadeira-‘cicatriz sempre em
363
movimento’, enganchada/ no Extremo/ impossível de se desenredar” (aqui seguindo a
tradução proposta pelo “Dicionário Celan”), já sinaliza o difícil desenredar de suas questões
traumáticas. A questão da cicatriz (cicatrice) e da suas variações cicatricement364 e cicatriciel
(tradução proposta por Bertrand Badiou) aqui pode ser pensada na noção derridiana da
experiência da língua. Esta experiência, em Celan, fala de sua singularidade ao habitar o
idioma.
Celan revelava em seus escritos “uma cicatriz que não se fecha: a cicatriz de
365
nosso tempo” . Uma cicatriz que trazia a marca de seu tempo, de seu trauma: uma perda
irreparável. Este ponto da cicatriz é crucial na escrita de Paul Celan. Ele vai criar uma palavra
na correspondência com Gisèle Lestrange-Celan para falar desta questão: cicatricement. Um
advérbio, inventado pelo poeta, oriundo do francês cicatrice. Ainda uma palavra em
movimento. Aqui vale lembrar, que “há sempre um real da língua a coagir, a forçar uma
fronteira entre o possível e o impossível de dizer, entre o que é dizível e o que é indizível”. 366
Talvez, em Celan, esta coação do real da língua atue em sua radical tentativa de inscrição,
como no verso de Corona quando Celan diz que “é tempo que a pedra se decida a florir”.367
Nesse tempo, “no meio de tantas perdas, uma coisa permaneceu acessível, próxima e salva – a
língua”.368 Ela “teve que atravessar o seu próprio vazio de respostas”, 369
e abrir espaço em
370
meio “as mil trevas de um discurso letal”. A língua atravessou esses acontecimentos
reermegindo “enriquecida” com tudo isso. Nesses anos de travessia, Celan tentou escrever
poemas na língua alemã. Poesia ferida, com palavras feridas, sempre em busca da realidade.
Sua “verdadeira cicatriz” é uma cicatriz que nunca se fecha: cicatricement, sempre em
movimento. Movimento incessante, melancólico.
363
“Le vrai-‘cicatricement’ accroché/ dans l’Extrême, impossible à dévider”. CELAN, Paul. CELAN-
LESTRANGE, Gisèle. Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 415.
364
Cicatricement é um advérbio que Celan inventou e que pode ser traduzido também por "cicatrizmente". Este
neologismo celaniano também pode ser pensado como uma palavra substantivada.
365
“una cicatriz que no se cierra: la cicatriz de nuestro tiempo”. in GAY, José Maria Pérez. Paul Celan: Una
cicatriz que no se cierra. in site Nexos virtual (www.nexos.com.mx) p. 2.
366
MORAES, Marcelo Jacques de. O Saber e a verdade na língua: a questão da literatura in Revista de Estudos
de Literatura. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Vol. 2, p.138.
367
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Antologia poética. Lisboa: Editora Cotovia Ltda. 1996 p.15.
368
CELAN, Paul. Arte Poética, O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 33.
369
Ibidem. p.33
370
Ibidem. p. 33.
101
Há um breve poema de Paul Celan, escrito entre os anos de 1967/1968 que foi
publicado postumamente no livro Schneepart (1970/1971) intitulado “E FORÇA E DOR” que
fala também deste movimento de cicatricement:
E FORÇA E DOR
e o que me empurrou
e impulsionou e sustentou?
Anos de júbilo
bissextos,
rumor de pinheirais, uma vez,
a caça ilícita da convicção
de que isso deve ser dito de outra forma
que não assim.371
O lingüista alemão Harold Weinrich comenta em seu livro Lete, arte e crítica do
esquecimento sobre a importância do “e” conectivo nos versos iniciais do poema. O “e”
“confere ao poema um forte ímpeto de movimento” 372. Neste poema encontramos, apesar de
373
sua brevidade, um tom narrativo, no estilo bíblico (“E Deus disse...” ). Celan se pergunta,
nos primeiros versos, sobre o que produziu a dor. Pela força das formas verbais usadas “no
374
tempo narrativo pretérito perfeito” , a saber, “empurrou”, “impulsionou” e “sustentou”,
podemos pensar que o que produziu a dor foi um acontecimento violento: um trauma, sem
dúvida. Weinrich diz que:
obviamente é uma ‘ferida de lembrança’ não curada, da qual Celan fala em outro
poema e que também é a força que impele a dor da lembrança da ‘ferida da morte’,
bem como todo o seu poetar: o Holocasto, a inesquecível Shoah.375
Esta “‘ferida de lembrança’ não curada”, vai de encontro à questão da cicatriz que
não se fecha. Ela é uma ferida que traz em seu seio uma impossibilidade de cicatrização.
376
A experiência poética é feita na “errância espectral das palavras”, em carne
viva. E para ter esta experiência, a cada instante, o poeta deve viver a morte da língua. Deve
371
CELAN, Paul. “E FORÇA E DOR”. Apud WEINRICH, Harold. Lete, arte e crítica do esquecimento. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. p. 246-247.
372
WEINRICH, Harold. Lete, arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2001. p.
247.
373
Ibidem. p. 247.
374
Ibidem. p. 247.
375
Ibidem. p. 247.
376
DERRIDA, Jacques. (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Op. cit. p. 17.
102
em todos aqueles lugares onde sentiu que a língua alemã era assassinada de alguma
maneira, por exemplo, por sujeitos de língua alemã que faziam certo uso dela: que a
lastimavam, a matavam, lhe davam morte porque a faziam falar de tal ou qual modo.
A experiência do nazismo é um crime contra a língua alemã. O que se disse em
alemão, sob o nazismo é uma morte. Há outra morte que é a simples banalização da
língua. E logo há outra morte que é aquela que não pode advir à língua, senão a
causa do que ela é, quer dizer: repetição, letargia, mecanização, etc.377
Então, o poeta deve, com seu ato, enfrentar todas estas nuances da língua e
realizar uma “ressurreição”. A todo instante, ele tem que “tratar permanentemente com uma
língua que morre e que ele ressuscita, não oferecendo um verso triunfante senão o fazendo
regressar às vezes, como um ressuscitado ou um fantasma”.378 E esta ressurreição da língua
não se dá “como um corpo imortal nem como um corpo glorioso”379, mas como um corpo
mortal, frágil e vulnerável. O ato poético desperta a língua, mas para se ter esta experiência do
despertar e do retorno à vida da língua, em carne viva, será preciso encontrar-se muito
próximo de “seu cadáver”. Isto significa que o poeta, em seu ato, deve estar o mais próximo
possível de seus restos, de seus despojos.
Celan trabalha próximo da morte, em um “desenraizamento da língua”, além do
canto que ainda resta cantar. É uma experiência de limite. Escutemos seu canto:
para além de ti
se estende teu destino,
377
DERRIDA, Jacques. (entrevista feita por Évelyne Grossman) Diário de poesia (número 59). Op. cit. p. 17.
378
Ibidem. p. 17.
379
Ibidem. p. 17.
380
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 175.
103
381
“Pour moi, homme sans racine, point de pivot”. CELAN, Paul. CELAN-LESTRANGE, Gisèle.
Correspondance. Lettres. Vol. I. Op. cit. p. 273.
382
“un jeu de deuil”. BRODA, Martine. “Celan et Benjamin” in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan
et autres essais. Op. cit. p. 135.
383
“le sens sous-jacent à la vie et à l’histoire, comme à l’époque du drame baroque, est pour lui la mort”. Ibidem.
p. 135.
384
Cito: “le signifié sous-jacent à l’allégorie baroque est le cadavre ou la tête de mort, ‘facies hippocratica’ de
l’histoire, alors que l’allégorie moderne (Baudelaire) se fonde sur le souvenir. Chez Celan, la mort est ce qui
donne sens (Bedeutung und Richtung) à la vie.” Ibidem. p. 135.
104
Esta “facies hippocratica” da história trazida por Benjamin, a saber, a caveira, nos
revela uma ausência de liberdade simbólica de expressão. “Não existe, nela, (...) nenhuma
harmonia clássica da forma”385, diz Benjamin, acrescentando que:
(...) em suma, nada de humano, essa figura, de todas a mais sujeita à natureza,
exprime, não somente a existência humana em geral, mas, de modo altamente
expressivo, e sob a forma de um enigma, a história biográfica de um indivíduo.
Nisso consiste o cerne da visão alegórica: a exposição barroca, mundana, da história
como história mundial do sofrimento, significativa apenas nos episódios de
declínio.386
385
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução, apresentação e notas: Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1984. p. 188.
386
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op. cit. p. 188.
387
BRODA, Martine. “Celan et Benjamin”. in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais.
Op. cit. p. 135.
388
“écriture d’ombres sur les pierres”. Ibidem. p.136.
389
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 41.
390
KONDER, Leandro. Apud GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa
de compreensão das noções de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. in Revista número
6, O que nos faz pensar – Cadernos do departamento de filosofia da Puc-Rio. Rio de Janeiro. 1992. p. 98.
105
São os dilacerados da história, são os homens de luto”.391 O luto, para Walter Benjamin “é o
estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara,
para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática”.392
A teoria do luto surge para se contrapor à teoria da tragédia e “só pode ser
desenvolvida por meio da descrição do mundo que se abre ao olhar melancólico. Este é o
olhar da ruminação, da meditação, que está no olhar da gravura Melancolia de Dürer”.393 Esta
gravura foi uma das primeiras fontes de inspiração de Walter Benjamin em sua construção do
tema do anjo, que nos interessa aqui em seu aspecto de melancolia e de perda. Esta “imagem
da melancolia alada düreriana”394 aparece acompanhada de um anjo. Em 1933, Benjamin,
fugindo do nazismo que já se impunha, viaja para Ibiza, na Espanha. Lá, ele escreve o texto
“Agesilaus Santander”, que é “uma das chamadas notas de Ibiza”395. Em sua segunda versão,
o texto foi muito estudado por Gerschom Scholem. Ele buscava desvendar o hermetismo
deste texto. O que nos interessa aqui é a referência que Susana Kampff Lages faz à melancolia
e à autobiografia. Sabemos, a partir deste estudo de Scholem, que a obsessão pessoal de
Benjamin em relação ao tema dos anjos
rendeu frutos à reflexão teórica do filósofo berlinense e como certos traços pessoais
de caráter, a paciência, o gosto em presentear e, sobretudo, a melancolia,
acompanham esse movimento de passagem da biografia para a teoria. Como anota
Scholem, o escrito de Benjamin constitui uma espécie de auto-reflexão, tendo em
vista sua condição pessoal de escritor, judeu e suas relações amorosas.396
391
GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções
de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. in Revista número 6, O que nos faz pensar –
Cadernos do departamento de filosofia da Puc-Rio. Op. cit. p. 98.
392
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. Ibidem. p.162.
393
GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções
de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. Ibidem. p. 99-100.
394
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2002. p. 103.
395
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. Op. cit. p. 103.
396
Ibidem. p. 103.
397
GAY, José Maria Pérez. Paul Celan: Uma cicatriz que no se cierra in Ventana a la literatura y la filosofia
alemana (na Internet, site www.nexos.com.mx), p.3.
106
é aquele que penetra no objeto até que ele se revele e até a morte do objeto, que
coincide com essa revelação. O melancólico está sob a influencia de Saturno,
planeta que predestina para a clarividência, para a tenacidade, para a meditação.
Toda a sabedoria do saturnino vem do abismo: ela é obtida pela imersão no mundo
das coisas criadas.400
A dedicação dos melancólicos para com as coisas chega ao ponto deles retirarem
todo conteúdo histórico das coisas, descontextualizando-as de suas conexões espaço-
temporais, para depois elas ressurgirem com uma forte significação alegórica. É neste
percurso que se dá a essência do barroco. Em Benjamin, este processo barroco, critíco por
excelência, o faz mergulhar no objeto almejado, com a intenção de salvá-lo. No entanto, neste
processo, ele paga o preço deste mergulho, se perdendo no objeto.
Celan também era um filho de Saturno. O influxo que o atingia apontava para um
silêncio. Silêncio temporal, silêncio espacial além do silêncio nos espaços entre as palavras.
Na carta do dia 22.6.1954, (n.42) Celan envia um poema a Gisèle, traduzido por ele mesmo,
que traz questões concernentes à melancolia:
INSELHIN
398
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. São Paulo: Editora da Universidade de
São Paulo, 2002. Ibidem. p. 103.
399
GERALDO, Sheila Cabo. “Origem do Drama Barroco Alemão, leitura e tentativa de compreensão das noções
de origem, redenção, mônada, alegoria, melancolia e linguagem”. Op. cit. p. 100.
400
Ibidem. p. 100.
107
401
“Em direção à ilha, junto dos mortos,/ casados com a canoa desde o bosque/ com os céus enrolados nos braços
como abutres,/ as almas saturninamente aneladas:/ assim vogam os Estranhos e os Livres/ os Mestres do Gelo e
da Pedra/ rodeados pelo barulho de bóias que se afundam,/ e pelos latidos do mar azul-tubarão./ Eles remam,
remam, remam:/ Oh Mortos, Nadadores, adiante! Cercado também isto com nassa!/ E amanhã o nosso mar que
se evapora. “Em direção à ilha” (Tradução de João Barrento, exceto as palavras em itálico, que seguiram a risca
a tradução de Celan do alemão para o francês). CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p.71.
108
402
carregá-la para a terra, ela que ele nomeia ‘sua bem amada cega’” . O poema foi escrito
pleno de remorsos de ter ficado vivo: “Oh mastros de pedra da melancolia! Oh eu que estou
403
entre você e vivo! / Ô eu entre você e vivo e bonito, e ela não pode me sorrir...” . Marc
Sagnol diz que Celan religa a natureza à historia, e “ vê a melancolia não somente tomar conta
de seu coração, mas do conjunto da natureza, quando da morte de sua mãe” 404.
Sagnol diz que há uma travessia no decorrer destes poemas da juventude. Celan,
no poema “Papoula”, acreditava descobrir a sua bem amada, “seu coração, negro de
melancolia” 405. Este estado de espírito irá mudar e o “negro de melancolia” começará a fazer
parte da vida e da poesia de Celan. No poema “Do azul” esta travessia é bem exemplificada.
Cito dois versos do poema: “o granizo preto da melancolia/ cai num lenço, todo branco de
406
dizer adeus” . A queda do “granizo preto da melancolia” aponta para a dolorosa perda
407
materna: “Luto insuperável e insuperado da mãe” . Encontramos nos versos de Celan a
referência implícita ao verso “sol negro da melancolia” do poema “El Desdichado” de Gerard
de Nérval. Cito a primeira estrofe:
Sabemos que Paul Celan traduziu este poema de Nérval anos mais tarde e que
teve um intenso efeito sobre o poeta. “El Desdichado” é usado pelo poeta francês no sentido
de deserdado e não de infeliz ou miserável, como em geral é empregado. Mas, ele é
“deserdado de quê?” 409, pergunta a psicanalista Julia Kristeva. Ele foi privado de algo – “de
um território não-nomeável, que se poderia evocar ou invocar, estranhamente, do exterior, de
402
“apprend la mort de sa mère et s’imagine en rêve la porter en terre, elle qu’il nomme ‘sa bien-aimée
aveugle’”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et l’Ukraine chez Paul Celan”. in Germanistique.
Paul Celan. Poésie et poétique. Klincksieck, 2002. p. 45
403
“Ô mâts de pierre de la mélancolie! Ô moi qui suis parmi vous et vivant!/ Ô moi parmi vous et vivant et
beau, et elle ne peut pas me sourire...”. Ibidem. p. 45.
404
“voit la mélancolie non seulement s’emparer de son coeur mais de l’ensemble de la nature à la mort de sa
mère”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et l’Ukraine chez Paul Celan”. Op. cit. p. 45.
405
Ibidem. p. 45.
406
CELAN, Paul. Sete Rosas mais tarde. Op. cit. p. 19.
407
“deuil insurmontable, et insurmonté de la mère”. SAGNOL, Marc. “Sable et tristesse. La Bucovine et
l’Ukraine chez Paul Celan”. Op. cit. p. 49.
408
KRISTEVA, Julia. Sol negro – depressão e melancolia. Rio de Janeiro: Editora Rocco Ltda, 1989. p. 133.
409
Ibidem. p. 136.
109
um exílio constitutivo” 410. Essa qualquer coisa (“um território não-nomeável”) seria anterior
a um objeto discernível. Imaginariamente, ela toma a “consistência da mãe arcaica que,
411
entretanto, nenhuma imagem precisa consegue englobar” . Além disso, esta “qualquer
coisa” guardaria um “horizonte secreto e intocável de nossos amores e de nossos desejos” 412.
413
Há um aspecto inapreensível desta Coisa : ela é sempre perdida para o sujeito, que
separado do objeto pode se tornar um ser falante. O melancólico, do ponto de vista
psicanalítico parece exercer um domínio, tanto amoroso quanto odioso, sobre essa Coisa. Já o
poeta, nas palavras de Kristeva, “encontra o meio enigmático de estar, ao mesmo tempo, sob
414
sua dependência e... em outro lugar” . A escrita do poeta é o embate necessário entre a
busca incessante da Coisa perdida e a perda da Coisa.
A questão do luto e da melancolia foi trazida por Freud, em 1915, em meio as
suas pesquisas sobre o inconsciente. O luto, de modo geral, é “a reação à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a
liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante” 415.
Em algumas pessoas, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto.
Podemos pensar aqui a melancolia como um luto atípico, um luto não previsto no programa.
O luto, em Freud, não é considerado como uma condição patológica. Confia-se
que seja ultrapassado após algum período de tempo. Já na melancolia, as questões são mais
complexas, principlamente em relação aos sentimentos chamados de auto-estima. É verdade
que tanto no luto quanto na melancolia, os traços psíquicos característicos são semelhantes,
com exceção da diminuição da auto-estima. Encontramos, em comum, nos dois processos, um
“desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da
416
capacidade de amar e a inibição de toda e qualquer atividade”. No entanto, na melancolia
há uma pertubação da auto-estima, com “uma diminuição dos sentimentos de auto-estima, a
ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa
expectativa delirante de punição”.417 No luto, “o mundo se torna pobre e vazio” 418, enquanto
que na melancolia é o próprio “eu” que é atingido. Em relação ao termo alemão Selbstgefühl
410
Ibidem. p. 136.
411
Ibidem. p. 136.
412
Ibidem. p. 136.
413
Referência ao conceito freudiano Das Ding (A Coisa) que fala de um objeto perdido e sempre buscado.
414
KRISTEVA, Julia. Sol negro – depressão e melancolia. Op. cit. p. 137.
415
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume XIV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Imago Editora, 1974. p. 275
416
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume IV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Op. cit. p. 276.
417
Ibidem. p. 276.
418
Ibidem. p. 278
110
que foi traduzido por auto-estima, encontramos que “literalmente significa sentimento de si,
convicção do próprio valor e poder” 419. Lembremos aqui que Paul Celan buscava recuperar o
“sentimento de si” em vários momentos da vida. No seu diário, já citado neste texto, lemos a
referência a esta busca: “Selbstbegegnung (‘Encontro de si mesmo’)” 420.
Se no luto, o sujeito sabe exatamente o que perdeu, na melancolia, ele “sabe quem
ele perdeu, mas não sabe o que perdeu nesse alguém. Isso sugeriria que a melancolia está de
421
alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência” , isto é, existe algo
de inconsciente nela. Há um não-saber na melancolia que opera no sujeito.
Para Freud, “o complexo melancólico se comporta como uma ferida aberta
422
atraindo para si, de toda parte, energias de investimento” . Ele esvazia o “eu” até o
empobrecimento total. Para dar conta da ferida aberta – uma ferida narcísica – o sujeito
melancólico necessita de toda energia disponível. No entanto, por se tratar de uma ferida que
não se fecha, não há energia suficiente para suprir tal demanda.
A “ferida aberta” trazida por Freud, em Celan vai tomar uma direção distinta. O
termo cicatricement fala de uma cicatriz sempre em movimento: uma ferida aberta que deixa
uma cicatriz que nunca fecha. Na poética de Celan, podemos pensar que este “buraco” de
423
melancolia, que em Freud pode ser lido como uma ferida na “esfera psíquica” , sofre uma
torção. E produz, em outro lugar, poemas. Isto implica uma produção poética, que, no caso de
Paul Celan era muito rica, especialmente, mas não sempre, em seus momentos de internação.
A partir do estudo realizado por Jeanne Marie Gagnebin sobre os anjos, que eram
figuras essenciais do pensamento benjaminiano, a dimensão de perda se mostra fundamental
para entendermos a questão da melancolia na construção da obra benjaminiana. A dimensão
de perda, nas palavras de Susana Kampff Lages, confere um lugar importante aos anjos, pois:
faz com que essas figuras que povoam o texto benjaminiano, ora como fulgurações
quase ofuscantes, ora discretamente, quase secretamente, mas sempre como
aparições efêmeras, imprimam a seu texto um tom fundamentalmente
melancólico.424
419
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Novos Estudos – Cebrap. Número 32 – março de 1992.
(apresentação, tradução do original alemão, notas de tradução e discussão de Marilene Carone). p. 131
420
CELAN, Paul. LESTRANGE-CELAN, Gisèle. Correspondance.Commentaires et illustrations. Vol I I. Op.
cit. p. 522.
421
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Volume IV. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Op. cit. p. 277-278.
422
FREUD, Sigmund. “Luto e melancolia”. Novos Estudos – Cebrap. Número 32. Op. cit. p. 137.
423
FREUD, Sigmund. “Rascunho G – Melancolia”. Volume I. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. São Paulo: Imago Editora, 1974. p.282.
424
LAGES, Susana Kampff. Walter Benjamin: Tradução e melancolia. Op. cit. p. 104.
111
Quando, sob o olhar melancólico, o objeto se torna alegórico, quando ela lhe retira a
vida, ele (o objeto) permanece morto, mas salvo na eternidade; assim se apresenta o
objeto, entregue aos caprichos do alegorista. Quer dizer: de agora em diante é
totalmente incapaz de irradiar uma significação, um sentido; tem o significado que o
alegorista lhe dá431.
425
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op.cit. p.198.
426
Ibidem. p. 200.
427
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993. p. 45.
428
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. Op. cit. p. 66.
429
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Op.cit p. 200.
430
BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura. Documentos de barbárie. (Escritos Escolhidos). Seleção e
apresentação Willi Bolle. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
431
Ibidem. p. 36.
112
A partir de agora, o objeto, antes repleto de vida, torna-se “algo diferente, pelo seu
intermédio, fala de algo diferente”. Este movimento alegórico interessa aqui para pensarmos a
poética de Paul Celan: escrita que também toca as ruínas, no que sobreviveu em meio às
ruínas, em especial nas pedras fragmentadas, nos cacos de memória, e nas “vesículas de
lembrança”.
A escrita de Paul Celan também tende para uma escrita alegórica. No livro
Atemwende, traduzido para o português como “Sopro, Viragem” (tradução de João Barrento)
e para o francês como Renverse du Souffle (tradução de Jean-Pierre Lefebvre) tem um poema
que nos coloca diante da questão da alegoria e da verdade, temas importantes na poética de
432
Celan. O poema a que me refiro chama-se Ein Dröhnen e vamos introduzir três traduções
do poema, duas em francês e uma em português. O nosso trabalho de leitor dos poemas de
Paul Celan vai de encontro ao trabalho de Edmond Jabès, leitor e amigo de Celan. Ele diz que
a leitura de Celan penetrava nele pela voz do poeta, que em várias ocasiões leu poemas em
sua casa. Isto facilitava a sua leitura. É como nos esclarece Jabès:
A voz (de Paul Celan), lendo em minha casa, para mim, alguns de seus poemas, não
emudeceram. (...) Esta voz está no centro da leitura que faço de seus poemas; pois só
posso ler Paul Celan traduzido; mas, com os meios de que disponho para abordar
seus textos, com a ajuda da inesquecível voz do poeta, tenho quase sempre, a
convicção de não trai-lo433.
Prossigo a leitura sem a voz de Celan no centro de minha leitura, mas com a
convicção (“quase sempre”) de poder me aproximar de seus poemas, somente a partir de suas
traduções. Vejamos as três traduções do poema:
“Coup de tonnerre:
c’est la Vérité même
qui s’avance
parmi les hommes au coeur d’un
tourbillon de métaphores”434. (trad. Martine Broda)
432
Ein Dröhnen: es ist/ die Wahrheit selbst/ unter die Menschen/ getreten/ mitten ins/ Metapherngestöber. In
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 132.
433
“La voz (de Paul Celan), leyendo en mi casa, para mi, algunos de sus poemas, no há enmudecido. (...) Esta
voz está en el centro de la lectura que hago de sus poemas; pues solo puedo leer a Paul Celan traduzido; pero con
los medios de que dispongo para abordar sus textos, con la ayuda de la inolvidable voz del poeta, tengo, casi
siempre, la convicción de no traicionarlo”. JABÈS, Edmond. “La memoria de las palabras (Cómo leo a Paul
Celan)” in Rosa Cúbica – Revista de Poesia. Inverno 1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Op.
cit. p. 42.
434
BRODA, Martine. Tradução pessoal. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auschwitz”. in Dans la main
de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 155.
113
“Um ribombar: é a
própria verdade
que chegou
às pessoas
no meio do
turbilhão de metáforas”436.
435
“CELAN, Paul. Renverse du Souffle. Traduit de l’allemand et annoté par Jean-Pierre Lefebvre. Op. cit. p.
102
436
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 133.
437
“pulvérise le métaphores dans une multiplicité tourbillonnante qui les annule, comme dans l’ecriture tardif qui
tend de plus en plus vers l’allégorie”. BRODA, Martine. “Paul Celan, la politique d’un poète après Auschwitz”.
in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 156.
438
“celle-ci on le sait est en profondeur d’essence métonymique et non métaphorique dans la mesure où il y a
dispersion du sens, même s’il peut y avoir en apparence des métaphores”. Ibidem. p. 156.
439
“ d’une eruption d’images qui retombent en une pluie chaotique de métaphores ”. BRODA, Martine. “Celan
et Benjamin” in Dans la main de personne, essai sur Paul Celan et autres essais. Op. cit. p. 136.
440
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. Op. Cit. p. 41.
441
Ibidem. p. 41.
114
442
alemão, o símbolo é sinônimo de totalidade, de clareza e de harmonia” , diz Jeanne Marie
Gagnebin. Na leitura dos teóricos românticos, se colocamos em uma balança a alegoria junto
com o símbolo, a alegoria vai ser considerada “demasiadamente leve”, diz Benjamin. A
alegoria vai ser recusada por estes teóricos também por ter um caráter obscuro e por ser
ineficiente. No livro Origem do drama barroco alemão, há uma citação importante de
Benjamin que nos interessa aqui especialmente porque mostra a distância que existe entre o
símbolo e a alegoria. No texto, ele cita Friedrich Creuzer em seu estudo sobre o símbolo e a
mitologia, que mantém uma posição romântica: “À alegoria (Sinnbild) alemã falta totalmente
aquela dignidade altamente significativa. Por isso, deve ser restrita à esfera inferior, e
443
totalmente excluída de sentenças simbólicas” . É claro que aqui não estamos pensando em
uma inferioridade da alegoria, mas esta citação serve para pensar a total exclusão simbólica
que a alegoria tem. E, para Benjamin, nos tempos de hoje: “do primado da coisa sobre a
pessoa, do fragmento sobre a totalidade, a alegoria, por isso mesmo, seja o pólo oposto do
símbolo, enfrentando-o com poder igual” 444.
Para Georges Didi-Huberman,
442
Ibidem. p. 41.
443
BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura. Documentos de barbárie. (Escritos Escolhidos). Seleção e
apresentação Willi Bolle. Op. cit. p. 38.
444
Ibidem. p. 38
445
HUBERMAN-DIDI, George. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998. p. 185.
446
Ibidem. p. 185 (citação retirada de Zentralpark de Walter Benjamin, p. 227).
447
HUBERMAN-DIDI, George. O que vemos, o que nos olha. Ibidem. p. 185.
448
Ibidem. p. 185.
115
trazendo na memória o que há de mais sombrio, tendo à sua volta o que há de mais
problemático, por mais que atualize a tradição em que se insere, ela já não consegue
falar a linguagem que alguns ouvidos benevolentes parecem ainda esperar dela. A
sua linguagem tornou-se mais sóbria, mais factual, desconfia do “belo”, tenta ser
verdadeira.452
Celan, ainda nesta resposta à livraria Flinker, diz estar procurando a sua expressão
no campo do visual:
449
Ibidem. p. 185.
450
Ibidem. p. 187.
451
ROSEN, Charles. Poetas românticos, críticos e outros loucos. São Paulo; Ateliê Editorial, 2004. p. 162.
452
CELAN, Paul. “Resposta a um inquérito da Librarie Flinker, Paris” in Arte poética,O meridiano e outros
textos. Op. cit. p. 29.
453
CELAN, Paul. Ibidem. p. 30.
116
454
MASSOT, Josep. Noticias sobre Celan no Jornal digital espanhol La Vanguardia digital no site
www.lavanguardia.es .
455
Cito: “c’est la mort même qui a été volée à ceux qui mouraient et furent exterminés”. TEIXEIRA, Vincent.
Maurice Blanchot et Paul Celan, Voix sans visage, voix du silence. (Introdução. Retirada do site sobre Maurice
Blanchot: www.mauriceblanchot.net .
456
“par la parole la figure volée de la mort”. Ibidem.
7. CONCLUSÃO
118
457
“À voir les choses que j’ai jetées là sur le papier, tu sauras sans doute où j’en suis de ma vie et de mes
pensées. (Je n’ai jamais écrit une ligne qui n’êut à voir avec mon existence)” Correspondance Paul Celan/ Erich
Einhorn”. Revista Europe número 861-862/ Janvier-Février 2001. Op. cit. p. 57.
458
“excavación de sua vida”. DUPIN, Jacques. “Paul Celan” In ROSA CÚBICA – Revista de Poesia. Inverno
1995-1996 (número 15-16) Paul Celan: rosa de nadie. Op. cit. p. 13.
459
“magnetismo del abismo captado a flor de tierra.”Ibidem. p. 13.
119
baixo” 460. E prossegue fazendo a relação do caminhar de Lenz com o abismo: “Quem anda de
cabeça para baixo, minhas Senhoras e meus Senhores, quem anda de cabeça para baixo tem o
461
céu por abismo debaixo de si” . Desta forma, ele mostra sua implicação com esta
permanente experiência de confrontação diante do mundo e diante dos homens de seu tempo.
A experiência poética da data, considerada por nós como uma passagem ao
poético, conta e reconta as datas importantes para o poeta. Demonstramos a partir de sua troca
epistolar com Gisèle, a crucial importância de manter viva a memória das datas.
A poesia de Paul Celan diz de uma experiência, que acontece com o ato poético,
em sua singularidade. Um ato singular onde o poeta escreve o que é do campo do inomeável.
No entanto, sua escrita parte de um encontro faltoso, na medida em que os acontecimentos
que atravessam sua poética apresentam-se como questões impossíveis de simbolizar.
Paul Celan escreve uma carta, que não envia, mas também não destrói, para o
poeta René Char, que fala de “pedaços destacados” do seu “eu”. Esta carta nos lançou uma
questão interessante para refletirmos sobre o “eu” e sobre o Je. O “eu” (moi) foi pensado, na
referência à pessoa como totalidade, sinalizando a busca de Celan pelo encontro consigo
mesmo. Busca que resultou em fracasso. O poeta não escreve a partir de seu “eu”, mas em
uma travessia onde estão implicados o desconhecimento e o inconsciente. A questão do “eu”
trazida pelo poeta é esclarecida pela noção do desconhecimento (méconnaissance) que vai
implicar o sujeito (Je) de que fala Rimbaud, em sua fórmula “Eu é um outro”.
Destacamos, nesta disertação, o estudo sobre o luto e a melancolia a partir de
Sigmund Freud e Walter Benjamin. O nosso intuito não foi aproximar Paul Celan da estrutura
psíquica psicótica, mas enfatizar uma poética da melancolia, ou seja, o conteúdo literário que
a melancolia porta a partir dos estudos de Benjamin.
Jacques Lacan escreve algo novo a respeito da psicose de Schreber, já tão
estudada no meio psicanalítico. Ele lança sua pergunta: O que falta aqui ao louco, por mais
escritor que ele seja? E prossegue trazendo uma diferenciação precisa entre o chamado louco
e o poeta: “(...) Se Schreber é com toda certeza um escritor, não é um poeta. Schreber não nos
introduz numa dimensão nova da experiência. Há poesia toda vez que um escrito nos introduz
num mundo diferente do nosso” 462. Estabelece-se com o leitor uma relação fundamental, pois
a poesia irá atingir o leitor e convidá-lo a participar do poema. Lacan ainda diz que a poesia
faz “com que não possamos duvidar da autenticidade da experiência de São João de la Cruz,
460
CELAN, Paul. “O Meridiano”. In Arte Poética. O Meridiano e outros textos. Op. cit. p. 53. (Referência de
Celan ao texto “Lenz” de Georg Büchner).
461
Ibidem. p. 53.
462
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. as psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,1992. p. 94.
120
463
nem da de Proust ou de Gérard de Nerval” . Também a poesia de Paul Celan produz o
mesmo efeito de autenticidade destes autores. O sujeito poeta, radicalmente diferente do
sujeito dito psicótico, estabelece uma nova relação simbólica com o mundo. Nas palavras de
Lacan: “a poesia é criação de um sujeito assumindo uma nova ordem de relação simbólica
464
com o mundo. Não há absolutamente nada disso nas Memórias de Schreber” . Em Paul
Celan encontramos, além da experiência simbólica, uma experiência com o real, como já foi
trabalhado nesta dissertação. Uma poesia que é escrita trazendo alguma coisa do real, que
toca o poeta em sua experiência.
A questão da melancolia perpassa todo o caminho poético do poeta. Desde os seus
poemas iniciais, Celan fala da melancolia, em tom negro. Quando fica sabendo da morte da
mãe, por exemplo, sente remorso de estar vivo e faz alguns poemas, com o coração “negro de
melancolia” na travessia de juventude. Nas cartas, “o peso melancólico” suportado de muitas
maneiras, marcava um “ritmo pendular”. Em seu poema “Todesfuge” (“Fuga da morte”) a
melancolia comparece marcando o passo. Nos versos iniciais, “Leite negro da madrugada
bebemo-lo ao entardecer / bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite/ bebemos
e bebemos”, encontramos a referência à morte conforme já falamos. No entanto, também
lemos nas palavras “leite negro da madrugada”, deste verso inicial que percorre todo o poema,
a marca da melancolia. “Leite negro” é também o “granito preto da melancolia” do poema
“Do azul” que fala deste traço melancólico presente na poética de Paul Celan.
Na melancolia, o sujeito se defronta com situações impossíveis de serem
simbolizadas. O problema é que não há marcas deste fora-simbólico. Assim, o que não veio à
luz do simbólico surge no real e o sujeito diante disto fica com uma impossibilidade de se
dirigir à realidade. Há um movimento de esvaziamento do sujeito “que o faz escavar seu
próprio vazio” 465. O vazio escavado pelo poeta, repleto de real, encontra o “ponto de poesia”
466
para trazer à tona um poema. Nas palavras de Celan: “O escrito cava-se” . E o poeta que
467
escava os “fatos” que o atingem, ali “onde a memória se inflama” , trabalha com camadas
que precisam ser cautelosamente exploradas para também trazer outras camadas que, ficaram
fora de simbolização, mas que foram atravessadas anteriormente pelo real.
463
LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 3. as psicoses. Op. cit. 94.
464
Ibidem. p 94.
465
LAMBOTTE, Marie-Claude. O Discurso melancólico. Op. cit. p. 87.
466
CELAN, Paul. Sete rosas mais tarde. Op. cit. p. 129.
467
Ibidem. p. 131.
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