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C�ntico negro

Jos� R�gio

"Vem por aqui" � dizem-me alguns com os olhos doces


Estendendo-me os bra�os, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(H�, nos olhos meus, ironias e cansa�os)
E cruzo os bra�os,
E nunca vou por ali...
A minha gl�ria � esta:
Criar desumanidades!
N�o acompanhar ningu�m.
� Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre � minha m�e
N�o, n�o vou por a�! S� vou por onde
Me levam meus pr�prios passos...
Se ao que busco saber nenhum de v�s responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,


Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os p�s sangrentos,
A ir por a�...
Se vim ao mundo, foi
S� para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus pr�prios p�s na areia inexplorada!
O mais que fa�o n�o vale nada.

Como, pois, sereis v�s


Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obst�culos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos av�s,
E v�s amais o que � f�cil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,


Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes p�tria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e fil�sofos, e s�bios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e c�nticos nos l�bios...
Deus e o Diabo � que guiam, mais ningu�m!
Todos tiveram pai, todos tiveram m�e;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que h� entre Deus e o Diabo.

Ah, que ningu�m me d� piedosas inten��es,


Ningu�m me pe�a defini��es!
Ningu�m me diga: "vem por aqui"!
A minha vida � um vendaval que se soltou,
� uma onda que se alevantou,
� um �tomo a mais que se animou...
N�o sei por onde vou,
N�o sei para onde vou
Sei que n�o vou por a�!

Jos� R�gio, pseud�nimo liter�rio de Jos� Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do
Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no
Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presen�a", e o seu principal
animador. Romancista, dramaturgo, ensa�sta e cr�tico, foi, no entanto, como poeta.
que primeiramente se imp�s e a mais larga audi�ncia depois atingiu. Com o livro de
estr�ia � "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) � apresentou quase todo o elenco dos
temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o
Homem, o esp�rito e a carne, o indiv�duo e a sociedade, a consci�ncia da frustra��o
de todo o amor humano, o orgulhoso recurso � solid�o, a problem�tica da sinceridade
e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

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