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Editando Sylvia Plath

O autor fala sobre a crise da produção e do mercado literário.

A Redoma de Livros
Quando os Diários de Sylvia Plath foram publicados pela Biblioteca Azul, da Globo Livros,
conversei com a editora Erika Nogueira Vieira sobre essa que é minha escritora favorita.
Erika participou da edição de A Redoma de Vidro, Desenhos, da reedição dos Diários e
também de Johnny Panic, que está em trabalho.
“A nossa primeira edição dos diários é de 2004 e quase não teve saída”, conta Erika.
“Desde então a figura da Sylvia ganhou espaço no Brasil e a sua obra, mais leitores,
sobretudo depois da reedição do Redoma, que estava havia muito fora de catálogo. Essa
nova geração que descobriu o romance passou a procurar outros livros da autora, o que
nos deu fôlego para relançar os diários e propor a edição inédita no Brasil dos contos e
ensaios. Apesar de menos conhecida, essa é uma produção importante da autora; ela fala
o tempo todo dos contos nos diários. Acabamos priorizando a prosa da poeta e acho que
isso foi importante para aproximar novos leitores da obra da Sylvia.”
“O primeiro livro que li foi o Redoma de vidro. É por meio dele que a maioria dos leitores
entra em contato com a obra da Sylvia. Existe uma comparação comum entre esse único
romance dela (embora o Ted tenha afirmado que ela escreveu cerca de 130 páginas de
outro romance em seguida, provisoriamente intitulado Double Exposure, cujo manuscrito
“desapareceu” por volta de 1970) com O apanhador no campo de centeio, do Salinger,
que eu tinha acabado de reler para um curso de Literatura Norte-Americana na
universidade. Eu gosto de romances de formação em geral, então fiquei curiosa e fui
atrás. Nessa época eu também entrei em contato com as gravações em que ela lê os
próprios poemas. Esse registro me levou ao Ariel, depois parti para os outros livros dela.”
A comparação entre Plath e Salinger é bastante comum, os livros sendo colocados como
espelhos um do outro.
“Acho que o Holden ainda não experimentou muita coisa, tem uma apatia e falta de
esperança em geral com a sociedade adulta, embora ainda não tenha sido muito
desafiado por ela; ele a contempla e torce o nariz para o que vê, reluta em fazer parte
daquilo. Ele é mais novo do que a Esther (14 se não me engano?), para mim é mais sobre
o fim da infância do que sobre a entrada na vida adulta. Já a Esther é mais velha, se vê
confrontada diretamente com os desafios não só da vida adulta, mas os de ser uma
mulher nessa sociedade. Ela é ambiciosa, sonha em ser escritora, mas pensa no
casamento, na maternidade, parece ter que escolher entre uma coisa ou outra. Ela
levanta essa escolha compulsória, o modelo de mulher perfeita e os critica (os
personagens masculinos são fracos em geral. A maternidade, o parto não são um mar de
rosas). Acho feminista e atual, sim”, descreve Erika.
Sobre os desafios de editar a autora, Erika explica: “Acho que foi justamente encontrar o
tom certo para a prosa dela, que não é rebuscada, mas que é muito carregada de
imagens que se repetem em diferentes poemas, contos e até no romance e no diário. Por
exemplo, no Redoma ela diz: ‘As gaivotas, em suas pernas de pau, miavam como gatos’.
Essa imagem é reiterada no ensaio Ocean 1212-W, de 1962, um dos meus favoritos, em
que ela suscita essa mesma paisagem marítima da infância: ‘the wauling of gulls’. Ou o
trecho famoso ‘Enquanto avançava, eu sentia o coração batendo como um motor surdo
nos meus ouvidos. Eu sou eu sou eu sou’ que também é retomado no Ocean 1212-W: ‘As
from a star I saw, coldly and soberly, the separeteness of everything. I felt the wall of my
skin: I am I’.
“Identificar essa correspondência de imagens é muito prazerosa, apesar de nem sempre
ser simples, e poder discutir esses detalhes em diferentes textos com diferentes
tradutores e colegas dá uma sensação de que se está oferecendo um trabalho bom e
coerente aos leitores que não têm acesso à obra dela em inglês. Participar da edição de
vários textos tão autobiográficos como a da Sylvia também dá a impressão de que
estamos muito próximos ao universo da autora, e isso nem sempre é fácil.”
Peço para que ela nos mostre um trecho que a marcou durante o processo: “Um dos
trechos do diário que mais me marcou foi o relato de como ela e Ted resgataram um
passarinho machucado, que depois tiveram que sacrificar: ‘Fomos para casa: o
passarinho piava debilmente, bicava nossos dedos. Ted tirou a mangueira do chuveiro e a
prendeu no bico de gás do fogão, depois colocou a outra ponta dentro da caixinha,
prendendo-a com fita adesiva. Não consegui olhar & chorei & chorei. Sofrer é tirânico.
Sentia desespero para tirar o passarinho doente de nossa presença, infeliz com suas
bicadas insistentes & exigências. Olhei para dentro. Ted havia tirado o passarinho de lá
antes da hora & ele estava de costas, abrindo & fechando o bico em agonia enquanto
agitava os pezinhos. Cinco minutos depois ele me trouxe o passarinho, recomposto,
perfeito & lindo na morte. Caminhamos na noite azul-escura até o parque, levantamos
uma das pedras dos druidas, cavamos um buraco, enterramos o passarinho &
recolocamos a pedra no lugar. Deixamos samambaias & um pirilampo branco sobre o
túmulo, sentindo que nos livrávamos de um peso no peito.’ É espantoso – difícil não
associar ao que aconteceria mais tarde com ela.”
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/cultura/editando-sylvia-plath/

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