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“Então falou Deus todas estas palavras: Eu sou o SENHOR teu Deus, que te tirei
da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.1, 2). Esse prefácio à Lei Moral deve
ser considerado como tendo igual referência a todos os Dez Mandamentos (e não ao
primeiro apenas), contendo como ele contém os mais pesados argumentos para reforçar
a nossa obediência a eles. Como é o costume de reis e governadores afixar seus nomes
e títulos antes dos editos por eles emitidos, para obter maior atenção e veneração ao
que publicam, assim também o grande Deus, o Rei dos reis, estando para proclamar
uma Lei aos seus súditos, para que pudesse afetá-los com uma reverência mais
profunda pela sua autoridade e fazê-los temer mais transgredir aqueles estatutos que são
decretados por tão poderosa Potestade e tão gloriosa Majestade, proclama seu augusto
Nome sobre eles.
O que exatamente acaba de ser apontado acima foi claramente estabelecido por
aquelas palavras de Moisés para Israel, que inspiram temor: “Para temeres este nome
glorioso e terrível, o SENHOR, teu Deus” (Dt 28.58). “Eu sou o SENHOR teu Deus”. A
palavra para “Senhor” é “Yahweh”, que é o Supremo, Eterno e autoexistente, a força do
qual é (como foi) soletrada para nós em aquele “que era, e que é, e que há de vir” (Ap
4.8). A palavra para “Deus” é “Eloim”, o plural de Eloá, pois embora ele seja um em
natureza, todavia é três em suas Pessoas. E esse Yahweh, o Supremo Objeto de culto, é
“teu Deus”, porque no passado ele foi teu Criador, no presente é o teu Soberano, e no
futuro será teu Juiz. Além do mais, Ele é o “Deus” dos seus eleitos por relação pactual,
e, portanto, seu Redentor. Assim, a nossa obediência à sua Lei é reforçada por essas
considerações: sua autoridade absoluta, gerando temor em nós – ele é “o SENHOR teu
Deus”; seus benefícios e misericórdias, produzindo amor em nós – “que te tirou da casa
(antitípica) da servidão”.
“[Tu] não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.3) é o primeiro
mandamento. Vamos considerar rapidamente o seu significado. Notamos o seu número
singular: “tu” e não “vós”, dirigido a cada pessoa separadamente, porque cada um de
nós está em questão ali. “Não terás outros deuses” tem a força de tu não possuirás,
buscarás, desejarás, amarás ou cultuarás nenhum outro. Não terás “outros deuses”, eles
são chamados assim não porque sejam, quer por natureza ou ofício (Sl 82.6), mas
porque o coração corrupto dos homens os inventa e estima como tal – como em “o deus
deles é o ventre” (Fl 3.19). “Diante de mim” ou “minha face”, a força da qual é mais
bem constatada pela sua palavra a Abraão: “Anda em minha presença e sê perfeito” ou
“correto” (Gn 17.1) – conduza-se tendo em mente que você está sempre em minha
presença, que meus olhos estão continuamente sobre você. Isso é muito perscrutador.
Somos muito aptos a descansar contentes se pudermos apenas aprovar-nos a nós
mesmos diante dos homens e manter uma bela demonstração de piedade externamente;
mas Yahweh perscruta o mais íntimo do nosso ser e não podemos esconder dele
qualquer concupiscência secreta ou ídolo escondido.
Vamos, em seguida, considerar o dever positivo imposto por esse primeiro
mandamento. Numa breve afirmação, é isso: você escolherá, adorará e servirá a
Yahweh como teu Deus, e a ele somente. Sendo quem é – teu Criador e Rei, a Soma de
toda a excelência, o supremo Objeto de adoração – ele não admite rival e ninguém pode
competir com ele. Veja então a absoluta racionalidade desta demanda e a loucura de
infringi-la. Esse mandamento requer de nós uma disposição e conduta adequadas à
relação que temos com o Senhor como nosso Deus, que é o único objeto adequado do
nosso amor e o único capaz de satisfazer a alma. Requer que tenhamos um amor por ele
mais forte do que todas as outras afeições, que o tomemos como a nossa mais alta
porção, que o sirvamos e obedeçamos a ele supremamente. Requer que todos aqueles
serviços e atos de adoração que rendemos ao verdadeiro Deus sejam feitos com a mais
alta sinceridade e devoção (implicados no “diante de mim”), excluindo a negligência
de um lado e a hipocrisia do outro.
Ao apontar os deveres requeridos por esse mandamento não podemos fazer
melhor do que citar o Catecismo Maior de Westminster. “Os deveres exigidos no
primeiro mandamento são – o conhecer e reconhecer Deus como único verdadeiro Deus
e nosso Deus (1Cr 28.9; Dt 26.17, etc.), e adorá-lo e glorificá-lo como tal (Sl 95.6, 7;
Mt 4.10, etc.); pensar (Ml 3.16) e meditar (Sl 63.6) nele, lembrar-nos dele (Ec 12.1),
altamente apreciá-lo (Sl 71.19), honrá-lo (Ml 1.6), adorá-lo (Is 45.23), escolhê-lo (Js
24.15), amá-lo (Dt 6.5), desejá-lo (Sl 73.25) e temê-lo (Êx 14.31); crer nele, confiando
(Is 26.4), esperando (Sl 103.7), deleitando-nos (Sl 37.4) e regozijando-nos nele (Sl
32.11); ter zelo por ele (Rm 12.11); invocá-lo, dando-lhe todo louvor e agradecimentos
(Fl 4.6), prestando-lhe toda a obediência e submissão do homem todo (Jr 7.23); ter
cuidado de o agradar em tudo (1Jo 3.22), e tristeza quando ele é ofendido em qualquer
coisa (Jr 31.18; Sl 119.136); e andar humildemente com ele (Mq 6.8)”.
Aqueles deveres podem ser resumidos nesses principais. Primeiro, a busca
diligente e por toda a vida de um maior conhecimento de Deus como ele é revelado na
sua Palavra e obras, porque nós não podemos adorar um Deus desconhecido. Segundo,
o amor de Deus com todas as nossas faculdades e forças, que consiste de uma pintura
sincera dele, e profunda alegria nele, e um santo zelo por ele. Terceiro, o temor de
Deus, que consiste no respeito para com sua majestade, suprema reverência por sua
autoridade, e um desejo por sua glória: como o amor de Deus é o motivo inicial da
obediência, assim o temor de Deus é o grande dissuasor da desobediência. Quarto, a
adoração de Deus de acordo com as indicações dele, para a qual as principais ajudas
são essas: estudo e meditação da Palavra, oração, e por em prática o que nos é
ensinado.
“Não terás outros deuses diante de mim.” Isto é, não darás a qualquer um ou a
qualquer coisa no céu ou na terra que habite a confiança do coração, veneração em
amor, e dependência que é devida apenas ao verdadeiro Deus; não transferirás para
outro o que pertence somente a ele. Nem devemos tentar dividi-los entre Deus e algum
outro, porque nenhum homem pode servir a dois senhores. Os grandes pecados
proibidos por esse mandamento são esses: primeiro, uma ignorância desejada de Deus
e de sua vontade por desprezar aqueles meios pelos quais podemos nos relacionar com
ele; segundo, ateísmo ou negação de Deus; terceiro, idolatria ou o estabelecimento de
deuses falsos e fictícios; quarto, desobediência e vontade própria ou desafio aberto a
Deus; e quinto, todas afeições desordenadas e não moderadas ou o estabelecer de
nossos corações e mentes sobre outros objetos.
São idólatras e transgressores desse mandamento os que fazem um “deus” como
imaginado pelas suas próprias mentes. Tais são os unitarianos, que negam que existam
três Pessoas na Trindade. Assim são os católicos romanos, que suplicam à mãe do
Salvador e afirmam que o papa tem poder para perdoar pecados. Assim são a vasta
maioria dos arminianos, que creem em uma Divindade derrotada e desapontada. Tais
são os sensuais epicureus (Fl 3.19), porque existem ídolos internos bem como externos.
“Esses homens têm posto seus ídolos em seus corações” (Ez 14.3). O apóstolo Paulo
fala da “cobiça que é idolatria” (Cl 3.5) e, por raciocínio imparcial, são todos os
desejos imoderados. O objeto ao qual rendemos esses desejos e serviços que são
devidos somente ao Senhor é o nosso “Deus”, seja o que for: o ego, o ouro, a fama, o
prazer ou os amigos. O que é o nosso Deus? A que a nossa vida é devotada?
2. O SEGUNDO MANDAMENTO
“Não tomarás o nome do SENHOR teu Deus em vão; porque o SENHOR não terá por
inocente o que tomar o seu nome em vão” (Êx 20.7). Como o segundo mandamento diz
respeito à maneira que Deus deve ser adorado (a saber, de acordo com a sua vontade
revelada); assim, esse nos ordena a cultuá-lo com aquela disposição de espírito que
seja compatível com a dignidade e solenidade de tal exercício e com a majestade
daquele com quem temos a ver: isto é, com a mais alta sinceridade, humildade e
reverência. “Para temeres este nome glorioso e temível, o SENHOR teu Deus” (Dt 28.58).
Ó, que altos pensamentos deveríamos abrigar de tal ser! Em que santo temor devíamos
nos manter diante dele! “O fim desse preceito é que o Senhor terá a majestade do seu
nome sustentada por nós como sendo inviolavelmente sagrada. O que quer que
pensemos e o que quer que venhamos a dizer dele deveriam ter o gosto de sua
excelência, corresponder ao sagrado sublime do seu nome, e tender à exaltação de sua
magnificência” (J. Calvino). Qualquer coisa pertinente a Deus deveria ser falada com a
maior sobriedade.
Esforcemo-nos, em primeiro lugar, em apontar o escopo e a abrangência desse
mandamento. Por o nome do SENHOR nosso Deus quer-se dizer Deus mesmo, como ele é
dado a conhecer a nós, incluindo todas as coisas por meio das quais ele foi servido
para se revelar: sua Palavra, seus títulos, seus atributos, suas ordenanças e suas obras.
O nome de Deus representa sua própria natureza e ser, como nos salmos 20.1 e 135.3,
João 1.12 etc. Às vezes, o nome de Deus é usado sem propor a nós uma finalidade
apropriada. E existem apenas duas finalidades que podem autorizar o nosso uso de
qualquer um dos seus nomes, títulos ou atributos: para a sua glória e para a nossa
própria edificação e de outros. Qualquer coisa além disso é frívolo e perverso, não
fornecendo base suficiente para fazermos menção de tão grande e santo nome, que é
cheio de glória e majestade. A menos que o nosso discurso seja designado para o
avanço da glória divina ou a promoção do benefício daqueles a quem falamos, não
temos justificativa para ter o nome inefável de Deus em nossos lábios. Ele se considera
altamente insultado quando mencionamos o seu nome para propósitos vãos.
O nome de Deus é tomado em vão por nós quando o usamos sem a devida
consideração e reverência. Sempre que fazemos menção daquele diante de quem os
serafins velam os seus rostos, deveríamos ponderar séria e solenemente sobre sua
infinita majestade e glória, e inclinarmos os nossos corações na mais profunda
prostração diante desse nome. Como podem aqueles que pensam e falam do grande
Deus promíscua e aleatoriamente, usar seu nome com reverência quando todo o resto do
discurso deles é cheio de tolices e vaidade? Esse nome não deve ser ostentado ou
jogado de lá para cá em línguas soltas. Ó, meu caro leitor, adquira o hábito de
considerar solenemente de quem é o nome que você está para pronunciar. É o nome
daquele que está presente com você, que está ouvindo você pronunciá-lo. Ele é zeloso
por sua honra, e vingar-se-á terrivelmente daqueles que o têm menosprezado.
O nome de Deus é usado em vão quando é empregado hipocritamente, quando
professamos ser o seu povo e não somos. O Israel de outrora foi culpado desse pecado:
“Ouvi isto, casa de Jacó, que vos chamais do nome de Israel, e saístes das águas de
Judá, que jurais pelo nome do SENHOR, e fazeis menção do Deus de Israel, mas não em
verdade nem em justiça” (Is 48.1). Eles usavam o nome de Deus, mas não obedeciam à
revelação nele contida, e assim violavam esse terceiro mandamento (cp. Mt 7.22, 23).
Quando usando o nome de Deus, devemos fazê-lo de um modo que seja verdadeiro ao
seu significado e às suas implicações. Portanto, ele nos diz: “E por que me chamais
Senhor, Senhor, e não fazeis o que eu digo?” (Lc 6.46). De maneira semelhante, somos
culpados desse horrível pecado quando desempenhamos deveres sagrados frívola e
mecanicamente, não estando neles as nossas afeições. Oração sem prática é blasfêmia,
e falar com Deus com os nossos lábios enquanto os nossos corações estão longe dele
não é outra coisa senão zombarmos dele e aumentar a nossa condenação.
O nome de Deus é tomado em vão quando juramos com leviandade e
irreverência, usando o nome de Deus com tão pouco respeito como demonstraríamos
pelo nome de um homem, ou quando juramos falsamente e somos culpados de perjúrio.
Quando nos colocamos em juramento e atestamos que é verdade aquilo que não
sabemos ser verdade, ou que sabemos ser falso, somos culpados de um dos mais graves
pecados que o homem pode cometer, pois chamou solenemente o grande Deus para
testemunhar aquilo que o pai da mentira o impulsionou a dizer. “E aquele que jurar na
terra, jurará pelo Deus da verdade” (Is 65.16) e, portanto, cabe a ele considerar bem se
o que ele testifica é verdade ou não. Ah! É lamentável que os juramentos tenham se
tornado tão excessivamente multiplicados entre nós – estando impregnados, por assim
dizer, no corpo político – e geralmente tão desdenhado, que a enormidade dessa ofensa
é escassamente considerada. “E nenhum de vós pense mal no seu coração contra o seu
próximo, nem ameis o juramento falso; porque todas estas são coisas que eu odeio, diz
o SENHOR” (Zc 8.17).
E o que se dirá daquela vasta multidão de juramentos profanos que poluem a
nossa linguagem e ferem os nossos ouvidos, por uma vil mistura de execrações e
blasfêmias em sua conversação comum! “A sua garganta é um sepulcro aberto…
peçonha de áspides está debaixo de seus lábios; cuja boca está cheia de maldição e
amargura” (Rm 3.13,14). Extremamente vã é a irrefletida alegação deles de que não
pretendem fazer mal, vã suas desculpas de que todos os companheiros fazem o mesmo,
vão o argumento que é meramente para aliviar seus sentimentos! Que loucura é quando
homens enfurecem você, atacar Deus e provocá-lo bem mais que outros possam
provocar você! Mas ainda que os companheiros deles não os censurem, a polícia não
os prenda, nem o magistrado os castigue, todavia, “o SENHOR não terá por inocente o
que tomar o seu nome em vão”. “Visto que amou a maldição, ela lhe sobrevenha…
assim como se vestiu de maldição, como sua roupa, assim ela penetre nas suas
entranhas, como água, e em seus ossos como azeite” (Sl 109.17, 18). Deus é
terrivelmente inflamado por esse pecado, e, no exercício comum desse crime insultante
aos céus, a nossa terra tem incorrido em culpa terrível.
Tornou-se quase impossível andar pelas ruas ou andar em companhia misturada
sem ouvir o sagrado nome de Deus tratado com desprezo blasfemo. As novelas de hoje,
o teatro, e até o rádio (e mais ultimamente a televisão, o cinema e a imprensa) são
terríveis ofensores, e, sem dúvida, esse é um dos temíveis pecados contra ele, pelo qual
Deus está agora derramando seus julgamentos sobre nós. Há muito tempo ele disse a
Israel: “Porque… a terra chora por causa da maldição; os pastos do deserto se
secam; porque a sua carreira é má, e a sua força não é reta” (Jr 23.10). E ele ainda é o
mesmo: “o SENHOR não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”. Severo
castigo será a sua porção, se não nessa vida, com toda a certeza na eternidade, na vida
que está por vir.
4. O QUARTO MANDAMENTO
“Lembra-te do dia do sábado (Shabbath),[16] para o santificar. Seis dias
trabalharás, e farás toda a tua obra. Mas o sétimo dia é o sábado (Shabbath) do SENHOR
teu Deus; não farás nenhuma obra, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo,
nem a tua serva, nem o teu animal, nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas
portas” (Êx 20.8-10). Esse mandamento denota que Deus é o SENHOR soberano do nosso
tempo, o qual deve ser usado e aproveitado por nós exatamente como ele aqui
especificou. Deve ser notado, cuidadosamente, que ele consiste de duas partes, que
estão interligadas. “Seis dias trabalharás” (e não ‘poderás trabalhar’) é tão
divinamente exigido de nós quanto “lembra-te do dia do Shabbath para o santificar”. É
um preceito que requer de nós diligência para cumprir aquela vocação e estado de vida
na qual a divina providência nos colocou, para desempenhar seus ofícios com cuidado
e consciência. A vontade revelada de Deus é que o homem trabalhe e não passe o seu
tempo a toa; que ele trabalhe não cinco dias na semana, mas seis.
Aquele que nunca trabalha está incapacitado para a adoração. O trabalho serve
para abrir caminho para a adoração, assim como a adoração nos prepara para o
trabalho. O fato que qualquer homem possa escapar à observância desta primeira
metade do mandamento é uma triste reflexão sobre a nossa ordem social moderna, e
mostra quão longe nos distanciamos do plano e ideal divino. Quanto mais diligentes e
fiéis formos ao desempenhar os deveres dos seis dias, mais valorizaremos o descanso
do sétimo. Assim será visto que a indicação do Shabbath não foi qualquer restrição
arbitrária sobre a liberdade do homem, mas uma provisão misericordiosa para o seu
bem: que ele foi planejado como um dia de alegria e não de melancolia. É a dispensa
graciosa do Criador nos livrando da nossa vida de labuta mundana por um dia em sete,
concedendo-nos um antegozo daquela vida futura e melhor diante da qual a presente não
é mais que uma provação, quando podemos nos voltar inteiramente daquilo que é
material para aquilo que é espiritual e, portanto, sermos equipados para pegar com
nova consagração e renovadas energias o trabalho dos dias seguintes.
Deveria ser assim bastante evidente que essa lei para regulamentação do tempo
do homem não era uma lei temporária, criada para alguma dispensação, mas é contínua
e perpétua no propósito de Deus: o Shabbath foi feito “para o homem” (Mc 2.27) e não
simplesmente para o judeu; ele foi feito para o bem do homem. O que foi mostrado
acima sobre as duas partes desse estatuto divino recebe clara e irrefutável confirmação
na razão dada para o seu reforço: “porque em seis dias fez o SENHOR os céus e a terra, o
mar e tudo que neles há, e ao sétimo dia descansou” (v. 11). Observe bem o duplo
desdobramento disso: o augusto Criador dignou-se em apresentar um exemplo diante
de suas criaturas em cada aspecto: ele trabalhou por “seis dias”, e ele “ao sétimo dia
descansou”! Dever-se-ia também ser apontado que a indicação do trabalho para o
homem não é a consequência do pecado: antes da Queda – Deus o colocou “no jardim
do Éden para o cultivar e o guardar” (Gn 2.15, ARA).
A permanente natureza ou perpetuidade desse duplo mandamento é também
evidenciada pelo fato que nas razões acima mencionadas para seu reforço nada havia
que fosse particularmente pertinente à nação de Israel; pelo contrário, fala com voz de
trombeta a toda a raça humana. Além disso, a esse estatuto não foi dado um lugar na lei
cerimonial de Israel, que era para ser deixada quando Cristo tivesse dado cumprimento
aos seus tipos, mas na Lei Moral, que foi escrita pelos dedos do próprio Deus sobre
tábuas de pedra, para nos dar o significado de sua natureza permanente. Finalmente,
deve-se mostrar que os próprios termos desse mandamento deixam inequivocadamente
claro que ele não foi designado somente para os judeus, pois era igualmente obrigatório
para qualquer gentio que habitasse entre eles. Mesmo não estando eles em aliança com
Deus, nem debaixo da lei cerimonial, deles era exigido que guardassem o santo
Shabbath – “não farás nenhuma obra… nem o teu estrangeiro, que está dentro das tuas
portas” (v. 10)!
“O sétimo dia é o Shabbath do SENHOR teu Deus”. Note bem que não é dito
(aqui, ou em qualquer outro lugar das Escrituras) “o sétimo dia da semana”, mas
simplesmente “o sétimo dia”, ou seja, o dia seguinte aos seis de trabalho. Para os
judeus era o sétimo dia da semana, a saber, o sábado, mas para nós ele é – como o
“outro dia” que Hebreus 4.8 claramente declara – o primeiro dia da semana, porque o
Shabbath não apenas comemora a obra da criação, mas agora também celebra a ainda
maior obra da redenção. Assim, o SENHOR dispôs as palavras nesse quarto mandamento
de modo a se ajustarem a ambas as dispensações, e desse modo afirmar a sua
perpetuidade. O Shabbath cristão vai da meia noite de sábado à meia noite de
domingo: está claro a partir de João 20.1 que ele começa antes do nascer do sol e,
portanto, podemos concluir que começa na meia noite de sábado; enquanto de João
20.19 aprendemos (a partir do fato de que ele não é ali chamado “a noite do segundo
dia”) que continua durante a noite, e que a nossa adoração também deve continuar.
Mas embora o Shabbath cristão não comece até a meia noite de sábado, a nossa
preparação para ele deve começar mais cedo, ou de que outra maneira nós poderemos
obedecer à sua exigência expressa: “não farás nenhuma obra”? No Shabbath deve
haver um completo descanso durante todo o dia, não apenas de recreações naturais e de
fazer o nosso próprio prazer (Is 58.13), mas de toda atividade mundana. A esposa
necessita de um dia de descanso tanto quanto o marido, sim, sendo a “parte mais fraca”,
ainda mais. Coisas tais como mingau e sopa podem ser preparadas no sábado e
aquecidas no Shabbath, de modo que possamos estar inteiramente livres para nos
deleitarmos no SENHOR e nos entregar completamente à sua adoração e serviço. Vejamos
que não trabalhemos nem fiquemos acordados até tarde na noite de sábado, para não
transgredirmos o dia do SENHOR ficando até tarde na cama ou nos fazendo de sonolentos
para os santos deveres.
Esse mandamento deixa claro que Deus deve ser adorado no lar, o que, sem
dúvida, inculca a prática do culto doméstico. Ele é dirigido mais especificamente que
qualquer dos outros nove mandamentos aos chefes de famílias e empregadores, porque
Deus requer que eles vejam que todos que estão sob seu encargo observem o Shabbath.
Para eles, Deus diz mais diretamente: “lembra-te do Shabbath para o santificar”. Ele é
para ser estritamente posto de lado para a honra do Deus três vezes santo, gasto no
exercício de santa contemplação, meditação e adoração. Porque é o dia que ele fez (Sl
118.24), não podemos fazer nada para desfazê-lo. Esse mandamento proíbe a omissão
de qualquer dever exigido, um desempenho descuidado do mesmo, ou enfado neles.
Quanto mais fielmente guardarmos esse mandamento, mais preparados estaremos para
obedecer aos outros nove.
Três classes de trabalho, e somente três, podem se encaixar no “Shabbath
Santo”. Trabalhos de necessidade, que são aqueles que não poderiam ter sido feitos no
dia anterior e que não podem ser relegados para o dia seguinte – tais como cuidar do
gado. Trabalhos de misericórdia, que são aqueles que a compaixão requer que
desempenhemos para com outras criaturas – tais como ministrar aos doentes. Trabalhos
de piedade, que são o culto a Deus em público e em privado. Precisamos vigiar e lutar
contra as primeiríssimas sugestões de Satã para corromper os nossos corações, desviar
as nossas mentes ou nos perturbar nos deveres sagrados, pedindo, sinceramente, em
oração por ajuda para meditar sobre a Palavra de Deus para reter o que ele nos dá. O
SENHOR faz a sagrada observância do seu dia de bênção especial; e, contrariamente, ele
visita a profanação do Shabbath com especial maldição (veja Ne 13.17,18), como a
nossa terra culpada está provando agora do seu amargo custo.
Esse mandamento para honrar o pai e a mãe é muito mais abrangente em seu
escopo do que parece à primeira vista. Ele não deve ser restrito ao nosso pai e mãe
literal, mas deve ser aplicado aos nossos superiores. “O fim do preceito é que, uma vez
que o Senhor Deus deseja a preservação da ordem que ele indicou, os graus de
proeminência estabelecidos por ele deveriam ser inviolavelmente preservados. A soma
disso, portanto, será que deveríamos reverenciar aqueles a quem Deus exaltou com
qualquer autoridade acima de nós, e deveríamos a eles render honra, obediência e
gratidão… Mas, como esse preceito é excessivamente repugnante à depravação da
natureza humana, cujo desejo ardente de exaltação dificilmente admitirá submissão, ele
foi, portanto, proposto como um exemplo daquele tipo de superioridade que é
naturalmente mais amigável e menos odioso, porque isso poderia mais facilmente
abrandar e inclinar as nossas mentes para o hábito da submissão” (J. Calvino).
Para que nenhum dos nossos leitores – nessa era socialista e comunista, quando
a insubordinação e a ilegalidade é o mau espírito dos nossos dias – se oponha a essa
interpretação abrangente do mandamento, vamos ponderar as seguintes considerações.
Primeiro, “honra” pertence primária e principalmente a Deus. Secundariamente, e por
derivação, pertence também àqueles a quem ele dignificou e fez nobres em seu reino,
levantando-os sobre os outros, concedendo-lhes títulos e domínio sobre os demais.
Deveríamos reverenciar a esses tanto quanto reverenciamos nossos pais e mães. Nas
Escrituras, a palavra “honra” tem uma aplicação extensa, como se pode ver em 1
Timóteo 5.17; 1 Pedro 2.17 etc. Em segundo lugar, observe que o título “pai” é dado a
reis (1Sm 24.11; Is 49.23), mestres (2Rs 5.13), e ministros do evangelho (2Rs 2.12; Gl
4.19).
“Portanto não se deve duvidar que Deus deixou aqui uma regra universal para a
nossa conduta, a saber, que a cada um a quem sabemos ter sido colocado em autoridade
acima de nós por sua indicação, devemos render reverência, obediência, gratidão e
todos os outros serviços em nosso poder. Nem faz qualquer diferença se eles são
merecedores dessa honra ou não. Porque qualquer que seja o caráter deles, ainda não é
sem a indicação da providência divina que eles alcançaram aquela posição por conta
de o Supremo Legislador ter ordenado que fossem honrados. Ele ordena
particularmente reverência aos nossos pais, que nos trouxeram à essa vida” (J.
Calvino). Dificilmente é necessário ser dito que o dever reforçado aqui é de natureza
recíproca – aquele de inferiores implicando uma obrigação correspondente sobre os
superiores –; mas o espaço limitado nos obriga a considerar aqui somente os deveres
daqueles que estão sujeitos aos seus superiores.
Primeiro, consideremos os deveres dos filhos em relação aos seus pais. Eles
devem amá-los e reverenciá-los, sendo temerosos de ofendê-los devido ao respeito que
têm por eles. Uma veneração filial genuína deve atuar nos filhos, de modo que se
abstenham de qualquer coisa que possa entristecer ou ofender os seus pais. Os filhos
devem ser submissos a eles: veja o bendito exemplo que Cristo deixou (Lc 2.51). “Vós,
filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto é agradável ao Senhor” (Cl 3.20).
Após Davi ser ungido para o trono, ele ainda cumpriu as ordens de seu pai cuidando do
rebanho (1Sm 16.19). Eles devem dar ouvidos às instruções deles e imitar-lhes as
práticas piedosas (Pv 6.20). Sua linguagem deve ser sempre respeitosa e seus gestos
demonstrarem submissão. Embora José fosse altamente exaltado no Egito, ele
“inclinou-se à terra diante” de seu pai (Gn 48.12). E note como o rei Salomão honrou
sua mãe (1Rs 2.19). E tanto quanto sejam capazes e seus pais tenham necessidade, eles
devem sustentá-los na velhice (1Tm 5.16).
Em segundo lugar, observemos nossos deveres para com governadores e
magistrados, a quem Deus estabeleceu acima de nós. Esses são representantes e vice-
regentes de Deus, sendo investidos de autoridade vinda dele: “por mim reinam os reis”
(Pv 8.15). Deus ordenou a autoridade civil para o bem geral da humanidade, pois se
não fosse por isso, os homens seriam bestas selvagens saqueando-se uns aos outros. Se
o temor dos magistrados não restringisse aqueles que lançaram fora o temor de Deus, se
eles não estivessem amedrontados dos castigos temporais, estaríamos tão salvos entre
leões e tigres como estaríamos entre os homens. Os governantes devem ser honrados em
nossos pensamentos, tendo deles uma ideia de representantes oficiais de Deus sobre a
terra (Ec 10.20; Rm 13.1 e At 23.5); eles devem ser honrados em nossos discursos,
apoiando seu ofício e autoridade, porque do perverso está escrito: “não receiam
blasfemar das autoridades” (2Pe 2.10, ARC). Devemos obedecer a eles: “Sujeitai-vos
a toda instituição humana por causa do Senhor, quer seja ao rei, como soberano, quer às
autoridades, como enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como para
louvor dos que praticam o bem” (1Pe 2.13, 14, ARA). Nós devemos render “a quem
tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra”
(Rm 13.7). E devemos orar por eles (1Tm 2.1, 2).
Em terceiro lugar, consideremos os deveres dos servos para com seus
senhores. Eles devem obedecer a eles. “Vós, servos, obedecei em tudo a vossos
senhores segundo a carne, não servindo só na aparência, como para agradar aos
homens, mas em simplicidade de coração, temendo a Deus” (Cl 3.22). Eles devem ser
diligentes no dever, buscando promover o interesse dos seus senhores, “mostrando toda
a boa lealdade” (Tt 2.10; Ef 6.5-7). Eles devem sofrer pacientemente suas repreensões
e correções, “não sendo respondões” (Tt 2.9, ARA). Tão estritamente Deus impõe
sobre os servos uma submissão quieta aos seus senhores que, mesmo quando um servo
não deu motivo para uma repreensão, ainda assim deveria sofrer silenciosamente a
infundada ira do seu senhor. “Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos seus
senhores, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus. Porque é coisa
agradável, que alguém, por causa da consciência para com Deus, sofra agravos,
padecendo injustamente. Porque, que glória será essa, se, pecando, sois esbofeteados e
sofreis? Mas se, fazendo o bem, sois afligidos e o sofreis, isso é agradável a Deus”
(1Pe 2.18-20). Ó, a que distância temos nos desviado dos padrões divinos!
Finalmente, devemos mencionar os pastores e seus rebanhos, ministros e o seu
povo, porque entre eles também existe tal relação de superiores e inferiores, ficando
sob a direção desse quinto mandamento. “Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a
eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas; para
que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil” (Hb 13.17).
Cristo revestiu seus servos de tanta autoridade que ele declara: “Quem vos ouve a vós,
a mim me ouve; e quem vos rejeita a vós, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita,
rejeita aquele que me enviou” (Lc 10.16). Portanto, novamente: “Os presbíteros que
governam bem sejam estimados por dignos de duplicada honra, principalmente os que
trabalham na palavra e na doutrina” (1Tm 5.17). Essa “duplicada honra” é aquela de
respeito e sustento. “E o que é instruído na palavra reparta de todos os seus bens com
aquele que o instrui” (Gl 6.6; 1Co 9.11). Como é solene essa advertência: “Eles,
porém, zombaram dos mensageiros de Deus, e desprezaram as suas palavras, e
mofaram dos seus profetas; até que o furor do SENHOR tanto subiu contra o seu povo, que
mais nenhum remédio houve” (2Cr 36.16).
A esse preceito é acrescentada essa promessa como um motivo e encorajamento
à obediência: “Para que se prolonguem os teus dias na terra que o SENHOR teu Deus te
dá”. Primeiro, como uma promessa do Antigo Testamento, essa deve ser considerada
como tipificando a vida eterna prometida pelo evangelho, visto que Canaã era uma
figura do céu. E, em segundo lugar, ela é repetida no Novo Testamento (Ef 6.2, 3 e 1Pe
3.10), visto que, frequentemente, o modo de Deus é prolongar uma vida obediente e
santa. E, em terceiro lugar, todas as promessas de bênçãos terrestres, contudo, implicam
necessariamente essa condição: elas serão literalmente cumpridas em nós se for para
promover a nossa eterna felicidade – de outro modo, seriam ameaças e não promessas.
Em sua misericórdia, Deus, com frequência, abrevia essa promessa e chama os seus
amados ao lar, para estar consigo.
6. O SEXTO MANDAMENTO
“Não matarás” (Êx 20.13). Nos primeiros cinco mandamentos, temos visto
como Deus salvaguarda a sua glória; nos cinco seguintes, contemplaremos como ele
providencia a segurança e o bem-estar dos homens: (1) para a proteção da pessoa do
homem; (2) para santidade e o bem de sua família (“não adulterarás”); (3) para a
segurança de sua propriedade e riquezas (“não furtarás”); (4) para a sua reputação ou
bom nome (“não dirás falso testemunho contra o teu próximo”). Finalmente, como uma
cerca forte envolvendo toda a Lei, Deus não apenas proíbe crimes externados, mas
impulsos íntimos maléficos em nossos pensamentos e sentimentos (“não cobiçarás”). É
a primeira dessas regulamentações que se relaciona especialmente com o nosso
próximo que vamos agora considerar: “não matarás”.
Esse sexto mandamento proíbe o bárbaro e desumano pecado do assassinato,
que é o primogênito do Diabo, que foi “homicida desde o princípio” (Jo 8.44). É o
primeiro crime sobre o qual lemos após a queda de Adão e Eva, por meio do qual a
corrupção transmitida aos seus descendentes foi pavorosamente demonstrada por Caim.
Seu rancor e inimizade incitaram-lhe para matar Abel, porque “as suas obras eram más
e as de seu irmão, justas” (1Jo 3.12). Mas esse mandamento não é restrito à proibição
do crime real de assassinato. Ele proíbe também todos os graus e causas de assassinato,
tais como ira e ódio irracional, difamação e vingança, e qualquer outra coisa que possa
prejudicar a segurança do nosso próximo ou nos tentar para que o vejamos perecer
quando estiver em nosso poder ajudá-lo e socorrê-lo.
Comecemos apontando que nem toda morte de um homem é assassinato. Não é
assim na execução da justiça, quando o magistrado sentencia o assassino, porque ele
está revestido de autoridade legal para condenar criminosos à pena de morte, e, se
falhar em fazer isso, Deus o acusará de pecado. “Quem derramar o sangue do homem,
pelo homem o seu sangue será derramado” (Gn 9.6). Essas palavras declaram o
princípio geral e imutável. “O teu olho não perdoará; vida por vida, olho por olho,
dente por dente, mão por mão, pé por pé” (Dt 19.21). Essa é a ordem de Deus ao
magistrado. Tampouco é o derramamento de sangue numa guerra justa passível de
acusação de assassinato. É legal pegar em armas contra um invasor ou para recuperar o
que foi injustamente levado. Dessa forma, Davi perseguiu os amalequitas que tinham
levado as suas esposas cativas. É legal também punir alguma grande injúria ou erro.
Davi fez guerra contra os amonitas por terem ultrajado os seus embaixadores (2Sm 10).
Como existem alguns que condenam essa afirmativa e denunciam toda guerra
como ilegal nessa dispensação cristã, nós salientemos que, quando os soldados vieram
ao predecessor de Cristo atrás de instrução dizendo “que faremos?” (Lc 3.14), ele não
disse “não lutem mais, abandonem as suas vocações”, mas lhes deu direções sobre
como deveriam se conduzir. Quando o centurião veio ao Salvador e extraiu argumentos
da sua profissão de militar, nosso Senhor não condenou a sua profissão, nem o reprovou
por ocupar tal cargo. Pelo contrário, ele elogiou muito a sua fé (Lc 7.8, 9). Quando
interrogado por Pilatos, Cristo declarou: “O meu reino não é deste mundo; se o meu
reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos
judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (Jo 18.36). Essas palavras implicam
claramente que, embora os meios carnais fossem impróprios para o avanço do reino
espiritual de Cristo, todavia, seu estado de humilhação não o havia impedido de
assumir o cetro real, e seus seguidores poderiam legalmente ter lutado para defender o
seu título.
Existe uma outra exceção, a saber, a morte acidental, à qual não cabe acusação
de assassinato, isto é, quando a vida é tirada sem qualquer intenção de fazê-lo. Nós
encontramos tal caso mencionado nas Escrituras, como quando cortando madeira o
machado escorregasse e, não intencionalmente, matasse alguém que estivesse perto (Dt
19.5). Para esses matadores inocentes, o Senhor indicou cidades de refúgio, onde
poderiam encontrar asilo seguro do vingador de sangue. Mas é bom chamar a atenção
para o fato de que devemos estar empenhados em coisas legais. De outro modo, se
estamos empenhados em coisas ilegais, e isso levar à morte de alguém, não poderemos
deixar de levar a culpa de assassinato (cf. Êx 21.22-24).
Consideremos em seguida os casos de assassinato. Suicídio é autoassassinato, e
é um dos crimes mais desesperados que podem ser cometidos. Porquanto esse crime
impede o arrependimento da parte de quem o perpetra, ele está além do perdão. Tais
criaturas são tão abandonadas por Deus que não podem se preocupar com a sua
salvação eterna, visto que passam para a presença imediata do seu Juiz com suas mãos
cheias do seu próprio sangue. Assim são os suicidas, porque eles destroem não apenas
o seu corpo, mas as suas almas também. O assassinato de outra pessoa é o crime mais
hediondo. Ele atormenta a consciência do seu perpetrador com remorsos horríveis, de
modo que ele próprio frequentemente se entrega à justiça. Aqueles que são assessores
são também culpados de assassinato, tal como os mandantes (2Sm 11.15; 12.9), ou que
consentem nisso (como Pilatos), ou ocultam (cf. Dt 21.6, 7, por clara implicação).
Esse mandamento não apenas proíbe a perpetração de assassinato; mas, do
mesmo modo, todas as causas e ocasiões que levem a ele. As principais delas são a
inveja e a ira. A inveja já foi bem descrita como “a ferrugem de uma alma cancerosa, o
vício nojento que transforma a felicidade alheia em miséria nossa”. Caim primeiro
invejosamente se lamentou do sucesso do sacrifício do seu irmão, e isso rapidamente o
induziu a matar. Assim, também, a ira injustificada e desordenada, se for abrigada no
coração, se transformará no veneno de um ódio implacável. Uma ira como essa não é
somente a causa, mas é verdadeiramente um tipo de assassinato, como é claro a partir
do ensinamento de Cristo em Mateus 5.21, 22.
Deveria ser salientado que a ira não é, como a inveja, simplesmente, e em si
mesma, ilegal. Existe uma ira virtuosa que, longe de ser pecado, é uma graça nobre e
digna de louvor (cf. Mc 3.5). Ser movido com indignação pela causa de Deus quando
sua glória é degradada, seu nome desonrado, seu santuário poluído e seu povo
caluniado, é uma ira santa. Existe também uma ira inocente e permitida quando somos
injustamente provocados por ofensas contra nós, mas aqui temos que estar muito em
guarda para “não pecar” (Ef 4.26). Uma ira viciosa e pecaminosa, que escurece o
entendimento e faz alguém agir como em frenesi, é uma que não tem causa e nem
limites. Jonas 4.1 dá uma ilustração de uma ira infundada. A ira é imoderada quando é
violenta e excessiva ou quando continua a ferver. “Não se ponha o sol sobre a vossa
ira” (Ef 4.26); se isso acontecer, a escória da malícia estará no seu coração na manhã
seguinte!
Para encerrar, vamos dar algumas regras para restringir e reprimir a ira. (1)
Trabalhe e ore por um espírito manso e humilde. Pense com humidade sobre você
mesmo e você não ficará irado se outros o menosprezarem. Toda contenda procede do
orgulho (Pv 3.10). Quanto menos orgulho você tiver, mais fácil será suportar o
desprezo dos outros. (2) Pense sempre na infinita paciência e indulgência de Deus.
Quantas afrontas ele leva de nós. Quão seguidamente damos a ele ocasião de estar
irado conosco; todavia, ele “não nos trata segundo os nossos pecados”. Que esse
grande exemplo seja nosso. (3) Cuidado com o preconceito contra alguém, pois isso,
certamente, fará que você interprete incorretamente as suas ações. Lute contra os
primeiros despontar da inveja e da ira; quando insultado, debite à ignorância ou à não
intencionalidade. (4) Afaste-se das pessoas cheias de ira (Pv 22.24, 25); o fogo se
espalha rapidamente.
7. O SÉTIMO MANDAMENTO
“Não adulterarás” (Êx 20.14). As virtudes da pureza são as bases das relações
domésticas. Como a família é o fundamento da sociedade humana, a classe de deveres
aqui envolvidos é secundária somente àquela que preserva a existência do homem.
Sendo assim, imediatamente seguindo o mandamento que declara a sacralidade da vida
humana, há esse preceito que é uma cerca em volta do mais alto relacionamento entre as
criaturas, salvaguardando assim a santa função da procriação da vida. Nada é mais
essencial para a ordem social que o relacionamento sobre o qual todos os outros estão
subsequentemente baseados, seja zelosamente protegido contra todas as formas de
ataque. O mandamento é uma simples, não qualificada e irrevogável, negativa: “Não
cometerás” (ARA). Nenhum argumento é usado, nenhuma razão é dada, porque nenhum
é requerido. Esse pecado é tão destrutivo e danoso que a mera menção do seu nome é
em si causa suficiente para essa dura proibição.
Esse mandamento notifica claramente que Deus exige o corpo tanto quanto a
alma para o seu serviço. “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que
apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o
vosso culto racional” (Rm 12.1). “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo
mortal, para lhe obedecerdes em suas concupiscências… se pelo Espírito mortificardes
as obras do corpo, vivereis” (Rm 6.12; 8.13). “Mas o corpo não é para a prostituição,
senão para o Senhor, e o Senhor para o corpo… Não sabeis vós que os vossos corpos
são membros de Cristo? Tomarei, pois, os membros de Cristo, e fá-los-ei membros de
uma meretriz? Não, por certo… glorificai, pois, a Deus no vosso corpo, e no vosso
espírito” (1Co 6.13, 15, 20). Para um cristão, esse pecado infame é um sacrilégio. “Ou
não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós,
proveniente de Deus, e que não sois de vós mesmos?” (1Co 6.19). Se Cristo ficou
indignado quando viu a casa de seu Pai transformada em covil de ladrões, quão mais
abominável aos seus olhos deve ser aquela perversidade que deprecia o templo do
Espírito Santo numa pocilga imunda!
“Não adulterarás”. Essa proibição foi preparada para guardar a santidade do
lar; pois, estritamente falando, “adultério” é um crime que somente uma pessoa casada
pode cometer – “fornicação” é o nome quando praticada por alguém solteiro. Como
aquele com quem temos a ver é inefavelmente puro e santo, portanto ele requer que nos
apartemos de toda a impureza. Esse mandamento diz respeito mais especialmente ao
governo das afeições e paixões, a guarda das nossas mentes e corpos numa disposição
tão casta que nada impuro ou indecente possa nos contaminar. Isso requer a disciplina
apropriada daquelas inclinações que Deus implantou para o progresso da espécie
humana. Portanto, devemos evitar tudo que possa ser ocasião para esse pecado, usando
todos os meios e métodos próprios para prevenir todas as tentações a ele.
O modo como Deus considera o pecado da impureza já ficou claro mediante
muitas passagens da sua Palavra. Esse pecado, mesmo da parte de um homem solteiro,
é chamado de grande maldade contra Deus (Gn 39.9). Então, quanto mais inescusável e
intolerável é ele por parte de uma pessoa casada! A punição temporal atribuída a ele
debaixo da lei civil de Israel era não menos que a morte, a mesma que era atribuída ao
assassinato. Jó o chama de “uma infâmia… fogo que consome até à perdição” (31.11,
12). Muito dessa perversidade é praticada em segredo; mas, embora os seus
perpetradores possam escapar ao julgamento dos homens, eles não escaparão ao
julgamento dos céus, porque está escrito: “aos que se dão à prostituição, e aos
adúlteros, Deus os julgará” (Hb 13.4). “Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras,
nem os adúlteros… herdarão o reino de Deus” (1Co 6.9, 10).
“O pecado do adultério dificilmente não é tão enorme quanto o de assassinato.
O último destrói a existência temporal do homem, e o primeiro destrói tudo que faz a
existência ser um benefício. Se todos adotassem a licenciosidade dos adúlteros, os
homens em pouco tempo seriam reduzidos à degradação das bestas selvagens” (R. L.
Dabney). Para prevenir esse pecado, Deus instituiu a ordenança do casamento. “Mas,
por causa da prostituição, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu
próprio marido” (1Co 7.2).[17] O pecado do adultério é, portanto, a violação da
aliança e voto do casamento, e assim acrescenta perjúrio à infidelidade. A imoralidade
é um pecado contra o corpo (1Co 6.18). O desprazer de Deus contra esse pecado é
visto no fato que ele ordenou as coisas de modo que a própria natureza visita o mesmo
com pesadas penalidades em todas as partes do complexo ser do homem. “Não erreis:
Deus não se deixa escarnecer; porque tudo o que o homem semear, isso também ceifará.
Porque o que semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas o que semeia no
Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna” (Gl 6.7, 8).
Embora o casamento seja um remédio divinamente indicado para a impureza
sexual, isso não concede ao homem a licença para fazer de si mesmo uma besta. “Que
as pessoas casadas não venham a supor que todas as coisas são legalmente permitidas a
elas. Cada homem deveria observar a sobriedade para com a sua esposa, e cada
esposa, reciprocamente, para com o seu marido; ambos conduzindo-se de modo a nada
fazer que fique impróprio ao decoro e à temperança do casamento. Porque assim
deveria o casamento contraído no Senhor ser regulado pela moderação e modéstia, e
não partir para a lascívia mais vil. Tal sensualidade tem sido estigmatizada por
Ambrósio com uma severa – porém, não desmerecida – censura, quando ele chama
aqueles que em suas relações conjugais não têm contemplação com a modéstia de os
adúlteros de suas próprias esposas” (J. Calvino).
Que nenhum homem se gabe com a ideia de que não pode ser acusado de falta
de castidade, pois tem se abstido do ato propriamente dito, enquanto o seu coração é
uma cloaca de imaginações e desejos aviltantes. Porque a Lei de Deus é “espiritual”
(Rm 7.14), ela não somente proíbe os grosseiros atos externos de depravação, mas
também proíbe e condena a falta de castidade do coração – todas as imaginações e
pensamentos ilegais. Como existe o assassinato de coração, assim também existe o
adultério de coração, e aqueles que cometem impureza especulativa e prostituem seus
pensamentos e imaginações à impura aceitação da cobiça são culpados de transgredir
este mandamento: “Qualquer que atentar numa mulher para a cobiçar, já em seu coração
cometeu adultério com ela” (Mt 5.28). Portanto, descobrimos que o apóstolo não se
contentou em dizer que é melhor para o homem casar-se do que se contaminar com uma
prostituta, mas “é melhor casar do que abrasar-se” (1Co 7.9) – abrigar paixão
consumidora.
Ainda que o pecado de adultério seja mencionado sozinho nesse preceito, as
regras pelas quais esses mandamentos devem ser interpretados (cf. capítulos anteriores)
nos obrigam a entender que todas as outras espécies de impurezas são proibidas sob
essa desse grande pecado. Qualquer coisa que contamine o corpo é proibida aqui; o
adultério é expressamente mencionado porque todas as outras contaminações morais se
encaminham para ele. Pela maldade daquilo que todos os homens sabem ser errado,
somos exortados a abominar qualquer paixão ilegal. Como todas as maneiras de
castidade em nossos pensamentos, discursos e ações são ordenados pela perfeita regra
de Deus, assim qualquer coisa que seja no mínimo contrária e prejudicial a uma
castidade e modéstia sem mancha é proibida aqui. Qualquer outra união sexual, a não
ser aquela do casamento, é maldita aos olhos de Deus.
Esse mandamento proíbe todos os graus ou aproximações ao pecado que proíbe,
como olhar para cobiçar. Sua força é: “Tu de modo algum injuriará a castidade do seu
próximo ou o tentarás à impureza”. Isso requer que nos abstenhamos de vestimenta sem
modéstia, palavreado indelicado, intemperança na comida e na bebida que excitam as
paixões, e tudo que tenha qualquer tendência a induzir contra a castidade em nós
mesmos ou nos outros. Que os jovens especialmente fixem em suas mentes que toda a
conduta impura antes do casamento da parte do homem ou da mulher é um erro
cometido contra o casamento futuro. Mesmo que esse mandamento seja expresso na
forma de uma proibição negativa, ele ainda impõe positivamente todos os deveres
opostos, tais como a pureza do corpo, o preenchimento da mente com assuntos
sagrados, a colocação de nossas afeições nas coisas do alto e o uso do nosso tempo em
ocupações proveitosas.
Apresento algumas regras e sugestões para se evitar esse pecado: (1) Cultivar
um senso habitual da presença divina, percebendo que “os olhos do SENHOR estão em
todo lugar, contemplando os maus e os bons” (Pv 15.3). (2) Manter uma estrita
vigilância sobre os sentidos; pois, com muita frequência, esses são as avenidas que ao
invés de permitir a entrada de correntes agradáveis para refrescar, em geral deixam
entrar barro e lama para poluir a alma. Faça um pacto com os seus olhos (Jó 31.1).
Feche os seus ouvidos contra qualquer conversa obscena. Não leia nada que contamine.
Vigie os seus pensamentos, e trabalhe prontamente para expelir os que forem perversos.
(3) Pratique a sobriedade e a temperança (1Co 9.27). Aqueles que indulgem em
glutonaria e bebedice geralmente descobrem que seus excessos levam à cobiça. (4)
Exercite-se numa ocupação honesta e legal; está provado que a ociosidade é tão fatal a
muitos como a intemperança a outros. Evite a companhia do perverso. (5) Dedique-se
muito à oração fervorosa, implorando a Deus que limpe o seu coração (Sl 119.37)
“Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade
contra Deus?” (Tg 4.4). Isso se refere ao pecado do adultério espiritual: é o amor ao
mundo fazendo o coração estranho a Deus, as cobiças carnais atraindo a alma e
levando-a para longe dele. Há mais do que suficiente no próprio Deus para satisfazer,
mas ainda existe aquilo no crente que deseja encontrar sua felicidade na criatura.
Existem graus desse pecado, como é natural. Como pode haver adultério físico em
pensamento e desejo que não termina em ato consumado, assim o cristão pode
secretamente ansiar pelo mundo ainda que não se torne um completo mundano.
Devemos conferir essas inclinações quando os nossos corações são excessivamente
arrastados na direção de confortos e satisfações materiais. Deus é um Deus ciumento, e
nada o provoca mais que preferirmos coisas básicas antes que a ele próprio, ou dar a
outros aquela afeição ou estima que pertence a ele somente. Não abandone o seu
“primeiro amor” (Ap 2.4), não esqueça aquele com quem você está desposado (2Co
11.2).
8. O OITAVO MANDAMENTO
“Não furtarás” (Êx 20.15). A raiz da qual o roubo procede é o
descontentamento com a porção com que Deus tem concedido, e disto uma cobiça do
que ele vem retendo de nós e concedido a outros. Com sua usual acuidade, Calvino
acertou em cheio quando escreveu: “Essa lei é ordenada para os nossos corações tanto
quanto para as nossas mãos, de modo que o homem possa estudar tanto para proteger a
propriedade como promover o interesse de outros”. Como o anterior, esse preceito
também diz respeito ao governo das nossas afeições, ao colocar limites devidos aos
nossos desejos pelas coisas mundanas, para que não possam exceder o que a boa
providência de Deus determinou para nós. Por conseguinte, a conformidade daquela
oração: “Afasta de mim a vaidade e a palavra mentirosa; não me dês nem a pobreza
nem a riqueza; mantém-me do pão da minha porção de costume; para que, porventura,
estando farto não te negue, e venha a dizer: Quem é o SENHOR? Ou que, empobrecendo,
não venha a furtar, e tome o nome de Deus em vão” (Pv 30.8, 9).
“Não furtarás”. O dever positivo aqui nos impõe isso: tu preservarás por todos
os meios apropriados, e até além, tanto os seus bens como os do seu próximo. Esse
mandamento requer diligência e esforço apropriados para assegurar uma competência
em nós mesmos e nas nossas famílias, para que possamos não expor por meio das
nossas faltas nós mesmos e eles àqueles apuros que são a consequência da preguiça e
da negligência. Dessa forma, devemos procurar “as coisas honestas, perante todos os
homens” (Rm 12.17). Mas, ainda mais, esse mandamento é a lei do amor com respeito
aos bens do nosso próximo. Ele requer honestidade e retidão nos nossos negócios com
os outros, estando fundamentado sobre aquele primeiro princípio prático de toda a
conduta humana: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho
também vós” (Mt 7.12). Assim, esse mandamento coloca um sagrado cerco ao redor da
propriedade, na qual ninguém pode adentrar legalmente sem o consentimento do
proprietário.
O fato solene e impressionante que merece ser apontado é que o primeiro
pecado cometido pela espécie humana envolveu furto: Eva tomou (furtou) do fruto
proibido. Assim, também, o primeiro pecado registrado contra Israel depois que eles
entraram na terra de Canaã foi o de furto: Acã roubou de entre o espólio (Js 7.21). Da
mesma maneira, o primeiro pecado que contaminou a igreja cristã primitiva foi o
roubo: Ananias, com Safira, sua mulher, “reteve parte do preço” (At 5.2). Como é
frequente ser esse o primeiro pecado cometido externamente por crianças! E, portanto,
esse divino preceito deveria ser ensinado a elas desde a mais tenra infância. Há alguns
anos, visitamos uma família, e nossa anfitriã nos relatou como ela havia naquele dia
secretamente observado sua filha (com aproximadamente quatro anos de idade) entrar
num quarto onde estava um grande cacho de uvas. A criancinha olhou para elas cheia de
vontade, subiu na mesa e, então, disse: “Fora daqui, Satã. Está escrito: ‘Não furtarás’”,
e correu para fora do aposento.
“Não furtarás”. A mais alta forma desse pecado é quando ele é cometido contra
Deus, o que é sacrilégio. Na antiguidade, ele acusou Israel desse crime: “Roubará o
homem a Deus? Todavia vós me roubais, e dizeis: Em que te roubamos? Nos dízimos e
nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, sim, toda esta
nação” (Ml 3.8, 9). Mas existem outras maneiras pelas quais essa transgressão pode ser
cometida além da recusa em sustentar financeiramente a causa de Deus sobre a terra.
Deus é roubado quando retemos a glória que a ele é devida, e somos ladrões espirituais
quando arrogamos para nós mesmos a honra e o louvor que só a ele pertencem. Os
arminianos são grandes transgressores aqui, atribuindo ao livre-arbítrio o que é
produzido pela livre graça. “Não me escolhestes vós a mim”, disse Cristo, “mas eu vos
escolhi a vós” (Jo 15.16) “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus,
mas em que ele nos amou a nós” (1Jo 4.10).
Outra maneira pela qual roubamos a Deus é por um desempenho infiel da nossa
mordomia. O que Deus confiou a nós pode ser tão ultrajado por nosso mau
gerenciamento, como se estivéssemos interferindo nos negócios de alguém ou
saqueando os bens do nosso vizinho. Esse mandamento requer de nós que
administremos as nossas propriedades do mundo, sejam elas grandes ou pequenas, com
diligência suficiente para provermos para nós e aqueles que dependem de nós. A
preguiça é uma espécie de roubo. Ela faz o papel do zangão e leva o resto da colmeia a
nos sustentar. Assim, prodigalidade é também uma forma de roubo, visto que a
extravagância e o esbanjamento são desperdícios dos recursos que Deus nos deu
quando se vive desordenadamente. Aquele que permanece num emprego secular que
exige dele trabalhar no Dia do Senhor está roubando de Deus o tempo que deveria ser
devotado à sua adoração. Antes de continuar, deve ser apontado que aquele que entra
no ministério do evangelho sem ser chamado por Deus, pretendendo obter uma vida
fácil e confortável, é um “ladrão e salteador” (Jo 10.1).
“Não furtarás”. Propaganda enganosa é uma brecha nesse mandamento.
Comerciantes são culpados quando adulteram ou apresentam mal as suas mercadorias, e
também quando deliberadamente enganam os seus fregueses no peso ou no troco.
Exploração é outra forma de roubo. O apóstolo Paulo admoesta: “Ninguém oprima ou
engane a seu irmão em negócio algum” (1Ts 4.6). Contrair dívidas para sustentar
luxúria e vaidade é roubo, como também o é não conseguir pagar as dívidas
decorrentes da compra do essencial. Um homem que transfere uma propriedade para a
sua esposa exatamente antes de ir à falência é ladrão aos olhos de Deus, e assim
também o é qualquer falido que, mais tarde, prospere financeiramente e, então, não
pague seus credores integralmente. São ladrões o homem ou a mulher que empresta e
não devolve. Esse mandamento é quebrado pelos inquilinos que negligentemente
estragam a propriedade e móveis do locador. Sonegação no pagamento de impostos é
outra forma de roubo; Cristo nos deixou um exemplo melhor (Mt 17.24). Aposta é ainda
outra forma de roubo, pois por ela os homens obtêm dinheiro pelo qual não realizaram
nenhum trabalho honesto.
Esse velho adágio é verdadeiro: “O que quer que venha das costas do Diabo vai
para a barriga do Diabo”. Certo é que Deus manda uma maldição sobre o que é obtido
pela força ou fraude: é posto num saco furado e pela Providência logo desaparece.
Deus, pelo seu justo julgamento, geralmente transforma um pecado no castigador de
outro e o que é obtido pelo roubo é perdido pela intemperança e uma vida abreviada.
Por isso está escrito: “As rapinas dos ímpios os destruirão, porquanto se recusam a
fazer justiça” (Pv 21.7); e novamente: “Como a perdiz, que choca ovos que não pôs,
assim é aquele que ajunta riquezas, mas não retamente; no meio de seus dias as deixará,
e no seu fim será um insensato” (Jr 17.11). Muitas vezes, Deus levanta aqueles que
lidam com eles, da mesma forma que eles lidaram com os outros. O temível
crescimento desse crime na sociedade moderna é devido à falha em impor a punição
adequada. Se o leitor está consciente de ter defraudado alguém no passado, não é
suficiente confessar esse pecado a Deus. No mínimo, uma restituição dobrada deve ser
feita (Lc 19.8 e 2Sm 12.6) – se o lesado estiver morto, então aos seus descendentes; se
ele não tiver descendentes, então a alguma instituição de caridade pública.
Aqui estão umas poucas sugestões de ajuda para evitar os pecados proibidos e
para o desempenho daqueles deveres inculcados por esse oitavo mandamento. (1)
Engaje-se num trabalho honesto ou, se é uma pessoa de recursos, em alguma vocação
honrosa, buscando promover o bem público. As pessoas que nada fazem são tentadas a
causar dano. (2) Lute contra o espírito do egoísmo procurando o bem-estar dos outros.
(3) Combata a luxúria e a cobiça dando liberalmente aos que estão em necessidade. (4)
Se o seu Salvador foi crucificado entre dois ladrões para que o dom da salvação
pudesse ser seu, não traga nenhuma reprovação sobre o nome dele por algum ato de
desonestidade. (5) Cultive a graça do contentamento. Para isto, considere
frequentemente a vaidade de todas as coisas temporais, pratique a submissão à divina
providência, medite muito sobre as promessas divinas (tais como Hb 13.5, 6), seja
moderado em todas as coisas, coloque as suas afeições nas coisas do alto, e lembre-se
diariamente da sorte terrena de Cristo.
9. O NONO MANDAMENTO
“Não dirás falso testemunho contra o teu próximo” (Êx 20.16). Tome essas
palavras simplesmente em seu valor nominal e elas proibirão apenas o horrível crime
de perjúrio ou o dar falso testemunho num tribunal. Mas o que é verdade quanto aos
mandamentos anteriores, também o é aqui: muito mais está implícito e inculcado do que
aquilo especificamente afirmado. Como temos tão frequentemente afirmado, cada um
dos Dez Mandamentos enuncia um princípio geral, e não apenas são proibidos todos os
outros pecados que estejam ligados ao nomeado e proibido, juntamente com todas as
causas e tendências a isso, mas a virtude oposta é definitivamente requerida, com tudo
que a alimenta e promove. Assim, em seu significado mais abrangente, esse nono
mandamento repreende qualquer palavra nossa que possa ferir a reputação do nosso
próximo, seja ela pronunciada em público ou em privado. Isso dificilmente precisaria
de qualquer argumentação, pois se restringirmos esse mandamento a seus termos
literais, ele não teria nenhuma influência sobre ninguém, salvo aquela pequena minoria
que é chamada a dar testemunho numa corte de justiça.
Em sua aplicação mais abrangente, esse mandamento tem a ver com o controle
do nosso falar, que é uma das faculdades distintivas e enobrecedoras que Deus
concedeu ao homem. As Escrituras nos dizem que “a morte e a vida estão no poder da
língua” (Pv 18.21), que “a língua benigna é árvore de vida” (Pv 15.4), e que uma
descontrolada é “um mal que não se pode refrear; está cheia de peçonha mortal” (Tg
3.8). Que as nossas palavras não são para serem pronunciadas de maneira leviana ou
impensada fica claro por aquela inefável e solene afirmação de nosso Senhor: “Mas eu
vos digo que de toda a palavra ociosa que os homens disserem hão de dar conta no dia
do juízo. Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás
condenado” (Mt 12.36, 37). Ó, quanto precisamos de oração! “Põe, ó SENHOR, uma
guarda à minha boca; guarda a porta dos meus lábios” (Sl 141.3). Os deveres referentes
às nossas línguas podem ser resumidos em duas palavras: nosso falar deve ser sempre
verdadeiro e expresso em amor (Ef 4.15). Dessa forma, como o oitavo mandamento
providencia a segurança da propriedade do nosso próximo; assim, o nono é designado
para preservar seu bom nome pelo nosso falar a verdade sobre ele em amor.
Negativamente, esse nono mandamento proíbe todo pronunciamento falso e
injurioso quanto ao nosso próximo; positivamente, ele inculca a conservação da
verdade. “O fim desse preceito é que, porque Deus, que é a própria a Verdade, execra
uma mentira, deveríamos preservar a verdade sem o mínimo engano” (J. Calvino).
Veracidade é a estrita observância da verdade em todas as nossas comunicações. A
importância e a necessidade disso aparecem a partir do fato de que quase tudo que a
humanidade sabe é derivado das comunicações. O valor daquelas declarações que
aceitamos dos outros depende inteiramente da sua veracidade e exatidão. Se elas forem
falsas, são sem valor, enganosas e maléficas. Veracidade não é apenas uma virtude, mas
é também a raiz de todas as outras virtudes e o fundamento de todo caráter reto. Nas
Escrituras, portanto, “verdade” é sempre sinônimo de “retidão”. O homem piedoso é
aquele que “fala a verdade no seu coração” (Sl 15.2). O homem que “pratica a
verdade” (Jo 3.21) cumpriu o seu dever. É pela verdade que o Espírito Santo santifica a
alma (Jo 17.17).
A forma positiva desse nono mandamento é encontrada nessas palavras: “Falai
a verdade cada um com o seu próximo” (Zc 8.16). Assim, o primeiro pecado proibido é
o da mentira. Ora, uma mentira propriamente dita consiste de três elementos ou
ingredientes: falar o que não é verdade; deliberadamente fazê-lo; e fazê-lo com uma
intenção de enganar. Nem toda falsidade é uma mentira; podemos estar mal informados
ou enganados, e sinceramente pensar que estamos afirmando fatos e, consequentemente,
não temos nenhuma intenção de enganar aos outros. Por outro lado, nós podemos narrar
o que é verdade, e ainda mentir ao fazê-lo, como nos seguintes exemplos: poderíamos
relatar o que é verdade, e, todavia, crer ser uma mentira, proferindo tal coisa com o
intuito de enganar; ou poderíamos mencionar as palavras figuradas de outra pessoa, e
fingir que ela quis dizer literalmente, como foi o caso com aqueles que deram falso
testemunho contra Cristo (Mt 20.60). A pior forma de mentira (entre os homens) é
quando, maliciosamente, nós inventamos uma falsidade com o propósito de prejudicar a
reputação do nosso próximo, que é o que está mais especialmente em vista nos termos
do nono mandamento.
Quão vil e abominável esse pecado se torna visível a partir das seguintes
considerações. É um pecado que faz uma pessoa mais parecida com o Diabo. O Diabo
é espírito e, portanto, pecados grosseiramente carnais não correspondem à sua natureza.
Seus pecados são mais refinados e intelectuais, tais como orgulho, malícia, engano e
falsidade. Ele “é mentiroso, e pai da mentira” (Jo 8.44), e quanto mais malícia entra na
composição de qualquer mentira, mais proximamente alguém se assemelha a ele. Tal
pecado é, portanto, o mais contrário à natureza e caráter de Deus, porque ele é o
“SENHOR Deus da verdade” (Sl 31.5), e por isso somos informados de que “os lábios
mentirosos são abomináveis ao SENHOR” (Pv 12.22). Como Satanás é um mentiroso e o
pai da mentira, e como Deus é o SENHOR Deus da verdade, assim seus filhos se
assemelham a ele nisso: “eles são meu povo, filhos que não mentirão” (Is 63.8). Deus
tem ameaçado o mais atemorizante castigo sobre “todos os mentirosos, a sua parte será
no lago que arde com fogo e enxofre” (Ap 21.8).
Ah! A que alturas terríveis esse pecado tem subido. Ele tem se tornado tão
comum que poucos têm qualquer consciência sobre isso, a ponto de termos de lamentar
que “a verdade anda tropeçando pelas ruas” (Is 59.14). Primeiro, a verdade se apartou
dos púlpitos. Todo um século se passou desde que a mentira da evolução cativou o
mundo científico e foi abraçada por milhares de pregadores não regenerados – uma
mentira que golpeia os próprios alicerces da verdade, pois repudia a queda do homem,
e põe de lado tanto a sua necessidade de redenção como de regeneração. Pela mesma
extensão de tempo o assim chamado “alto criticismo” de neologistas alemães tem sido
espalhado através dos países de fala inglesa por milhares de ministros ímpios, que
querem ser olhados como homens de intelectualidade superior. Uma vez que a verdade
se separou dos púlpitos, não demorou muito para que ela desaparecesse das casas
legislativas e dos centros comerciais, até que agora vivemos num mundo onde a
confiança entre as nações não existe, e onde a palavra dos nossos companheiros não é
mais para ser confiada.
Quão profundamente importante é, então, que um sagrado respeito pela verdade
fosse constantemente enfatizado entre os jovens, e que eles fossem ensinados que a
mentira é a entrada para todos os vícios e corrupção. Igualmente importante é que
aqueles que são encarregados dos jovens, particularmente seus pais, deveriam firmar
diante dos pequenos o exemplo pessoal do que eles ensinam, e não neutralizar o mesmo
fazendo promessas a eles que deixam de cumprir ou proferindo ameaças que nunca
levarão a efeito. Por sabedoria e prudência, cada um de nós deveria ser muito lento em
fazer uma promessa incondicional; mas, uma vez feita, deve ser mantida a qualquer
custo, a menos que mantê-la nos leve a pecar contra Deus. A proibição de dar falso
testemunho contra meu próximo igualmente me proíbe de dar falso testemunho sobre
mim mesmo, o que é feito quando faço pose de mais santo do que sou, ou quando
pretendo ser mais humilde, ou mais qualquer outra coisa que não seja realmente o caso.
Resta para nós afirmar que podemos violar esse nono mandamento até quando
falamos a verdade, se a falamos de maneira desnecessária e por motivos não
apropriados. “Nós ferimos o caráter do nosso próximo quando contamos suas faltas
verdadeiras, quando não há nenhuma necessidade de divulgá-las, quando as relatamos
àqueles que não têm nenhum direito de sabê-las, e quando a contamos não para
promover qualquer benefício final, mas para fazê-lo perder a sua estima na
sociedade… Mais ainda, transgredimos esse preceito até quando não falamos, ao
manter a nossa paz quando algo injurioso é dito sobre alguém e damos tacitamente o
nosso consentimento, ocultando o que sabemos ser o contrário” (John Dick). Bajular
uma pessoa é outra forma de violar esse preceito. Cumprimentar outra pessoa
meramente pelo ato de agradá-la ou gratificar a sua vaidade é perjurar sua alma e
colocar em perigo a sua segurança. Assim, também, dar um falso testemunho de caráter
ou recomendar um amigo a outro, quando sabemos que ele não merece esse testemunho,
é dar “falso testemunho”.
As seguintes orientações, por meio da graça de Deus, podem ser úteis para
preservar alguém desses pecados comuns. (1) Não seja influenciado por espírito
partidário a difamar outras pessoas. O espírito de sectarismo cria preconceito, e o
preconceito nos tira a vontade de receber e reconhecer o que é bom naqueles que
andam conosco, e nos deixa prontos para acreditar no pior sobre eles. Quão
frequentemente os escritores são culpados aqui. A intolerância denominacional tem sido
a causa de muitos homens interpretarem erroneamente alguém que difere deles e
imputar a este erros que ele não sustenta. (2) Não se ocupar dos negócios alheios; cuide
dos seus próprios negócios e deixe o dos outros para que Deus tome conta. (3) Reflita
mais sobre sua própria pecaminosidade e fraqueza. Em vez de estar tão pronto a ver o
cisco no olho do seu irmão, leve em conta a trave que está no seu. (4) Evite a
companhia de contadores de casos e tagarelas; fofocas ociosas são injuriosas para a
alma. (5) Se outros o caluniam, certifique-se de ter uma consciência vazia de ofensa
para com Deus e os homens, e, então, você não importará o que os outros pensem ou
digam sobre você.
10. O DÉCIMO MANDAMENTO
“Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma
do teu próximo” (Êx 20.17). O que está proibido aqui é a concupiscência ou um desejo
ilegal pelo que é de outro homem. Em nossa exposição dos mandamentos anteriores,
temos apontado que, embora seus verdadeiros termos estejam confinados à proibição
de atos exteriores, todavia, o escopo de cada um engloba e alcança a condenação de
tudo o que tenha qualquer tendência ou chance de levar ao crime manifesto. Neste
preceito final do Decálogo, encontramos clara confirmação do mesmo, porque nele
Deus expressamente impõe uma lei sobre os nossos espíritos, proibindo-nos de cobiçar
tudo quanto ele tenha nos proibido de perpetrar. A melhor maneira de evitar que os
homens cometam o pecado em ação é evitar que o desejem no coração. Dessa forma,
embora a autoridade de cada um dos nove primeiros mandamentos alcance a mente e os
intentos mais secretos da alma, todavia o SENHOR achou apropriado afirmar clara e
literalmente isso no décimo, onde ele, especificamente, repreende os primeiros
impulsos de nossos corações em direção a qualquer objeto que ele tenha cercado, e,
portanto, é o vínculo que fortalece o todo.
A concupiscência vil consiste daqueles pecados secretos e internos que estão
diante do consentimento da vontade e que são as sementes de todo o mal. A
concupiscência ou cobiça é o primogênito da depravação interna, as primeiras
manifestações e expressões da nossa natureza corrompida. Ela é uma violenta
propensão e inclinação para o que é mal, para aquilo que é contrário à santa vontade e
mandamento de Deus. A alma do homem é uma criatura vigorosa e operativa, sempre
externando atividades típicas de sua natureza. Antes da Queda, a alma do homem era
atraída a Deus como seu supremo objeto e fim de toda sua ação; mas, quando o homem
apostatou e se virou de Deus como seu único bem ou porção satisfatória, sua alma se
tornou enamorada da criatura. Dessa forma, a alma do homem caído, estando destituída
da graça divina e da vida espiritual, deseja objetos pecaminosos desprezando a Deus, e
desordenadamente cobiça coisas que em si mesmas são inofensivas, mas se tornam más
porque ele nem as recebe como provenientes de Deus, nem as usa para a sua glória.
Concupiscência, então, é aquela disposição irregular da alma que aqui é denominada de
“cobiça”.
O puritano Ezekiel Hopkins (a quem estamos em débito pela maior parte desse
capítulo, bem como por muitos pontos úteis nos precedentes) tem apontado que existem
quatro graus dessa pecaminosa concupiscência ou cobiça. Existe a primeira imagem ou
sombra de um pensamento mau, o embrião imperfeito de um pecado antes que ele tome
forma em nós ou tenha qualquer característica ou traço. Isso é ao que a Escritura se
refere como “toda a imaginação dos pensamentos” do coração humano. Tais
imaginações são expressamente declaradas como sendo “más” (Gn 6.5). Tais são as
primeiras manifestações da nossa natureza corrupta em direção àqueles pecados que
agradam as nossas inclinações sensuais. Elas devem ser firmemente vigiadas, odiadas e
resistidas. Elas devem ser pisoteadas como as faíscas de um fogo perigoso, porque tão
logo comecem a se agitar dentro de nós, poluem as nossas almas. Assim como o hálito
sobre o espelho o embaça, deixando ali um ofuscamento, assim o primeiríssimo
respirar de um mau desejo ou pensamento dentro do peito de alguém corrompe a alma.
Um degrau seguinte dessa concupiscência é alcançado quando esses maus
impulsos da nossa natureza corrompida são acolhidos na mente com algum grau de
complacência. Quando um objeto pecaminoso se apresenta diante de um coração carnal,
há uma resposta interna que afeta esse coração com deleite e gera uma simpatia entre
ele e o objeto. Como num caso de simpatia natural, um homem frequentemente se agrada
de um objeto antes que saiba a razão, o porquê se agrada; assim, também, numa
situação de simpatia ou resposta pecaminosa, o coração é ligado ao objeto antes que
tenha tempo de considerar o que há nesse objeto que tanto o mova e afete. À primeira
vista de uma pessoa, nós, muitas vezes, achamos que estamos mais atraídos por ela do
que por uma multidão de outras, ainda que todos possam ser igualmente desconhecidos
por nós. Dessa forma, o primeiríssimo vislumbre de um pensamento pecaminoso em
nossas mentes revela que existe algo em nós que gera uma consideração pelo mesmo,
antes que tenhamos tempo para examinar o porquê é assim. Essa segunda forma ou grau
de concupiscência é mais difícil de lançar fora que a anterior.
Se tais impulsos do mal são acolhidos por nós, um consentimento e uma
aprovação do pecado seguem no julgamento prático da pessoa, o qual, sendo cegado e
carregado pela força de afeições corruptas e carnais, recomenda o pecado à faculdade
executiva. O entendimento é o examinador de cada ação deliberada, de modo que nada
passa para a ação que não tenha primeiro sido julgado ali. A grande questão ponderada
é se essa ou aquela ação é para ser feita, e todas as faculdades da alma esperam qual
será a sentença definitiva aqui pronunciada e, dessa forma, realizada. Normalmente,
duas testemunhas aparecem e apelam para o entendimento ou julgamento sobre o
pecado: a Lei de Deus e o vice-gerente de Deus, a consciência. A Lei condena e a
consciência cita a lei. Mas, então, as afeições se intrometem e subornam o juiz com
promessas de prazer ou lucro, por esses meios corrompendo o julgamento para dar seu
voto e consentir no pecado. Observe como tudo isso recebe ilustração no diálogo entre
Eva e a serpente, antes que ela partilhasse do fruto proibido.
Quando qualquer impulso pecaminoso tem assim assegurado uma concessão do
julgamento, ele se transforma num decreto para a vontade. O entendimento tendo-o
aprovado, a vontade deve agora decidir executá-lo; e, então, o pecado está
completamente formado no interior e nada falta, a não ser a oportunidade para dá-lo a
luz em ação aberta. “Mas cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua
própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o
pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte” (Tg 1.14, 15). Assim, temos
tentado demonstrar o que a concupiscência ou a cobiça são, e os diversos graus dela: o
primeiro borbulhar dos pensamentos pecaminosos em nossos corações; nossos
primeiros deleites nos mesmos (e não amar esses primogênitos das nossas próprias
almas é completamente contra a natureza corrompida); o assentimento e a permissão do
nosso julgamento; e a decisão da nossa vontade. Cada um desses está expressamente
proibido pelo décimo mandamento. E se o pecado for mais adiante, ele excede os
limites desse mandamento e cai na proibição de algum dos anteriores, que proíbe mais
especificamente os atos externos do pecado.
Esse preceito final, então, declara seu solene protesto contra o pecado na vida
íntima. Nisto podemos contemplar e adorar o ilimitado domínio ou soberania do grande
Deus. Ele proclama seus direitos sobre a esfera oculta dos desejos. Sua autoridade
alcança a alma e a consciência e lança uma obrigação sobre os nossos pensamentos e
imaginação, que nenhuma lei humana pode fazer. Seria vão para os homens impor
estatutos sobre aquilo de que eles não podem tomar conhecimento, e, portanto, nossos
desejos e cobiças estão livres das censuras deles, exceto quando descobrem por si só
pelos atos externos. Mas, embora escapem à percepção e mandamento dos homens, não
escaparão, todavia, ao escrutínio e sentença de Deus, pois ele não vê como os homens
veem nem julga como os homens julgam. Os segredos de todos os corações estão
abertos e nus diante dos seus olhos; nem o mínimo alento de um desejo pode agitar em
nossas almas que não seja mais distintamente visível para ele do que o brilho do sol ao
meio-dia o é para nós.
A Lei de Deus, como o seu conhecimento, alcança o mais secreto recesso da sua
alma, perscruta cada canto do seu coração, julga aquelas cobiças que nenhum olho
humano pode espiar, e se elas são abrigadas e aprovadas, condenam o homem como
transgressor e merecedor da morte eterna, não importa quão agradável a sua conduta
externa possa ser. Então, quão vão é para nós nos contentarmos com uma conformidade
externa à Lei de Deus! Como deveríamos trabalhar para aprovar os nossos corações
em sinceridade e pureza diante de Deus; de outro modo, não somos mais que fariseus
hipócritas, que lavam apenas o exterior do copo, enquanto dentro continuamos cheios
de desejos impuros. Quantos existem que supõem que a Lei de Deus alcança apenas o
homem externo e que, mesmo abrigando e acariciando desejos perversos e propósitos
malignos em seus corações, contanto que esses desejos não se deixem ver em crimes
externos, não serão acusados por eles. Mas o Dia do Juízo mostrará que a verdade é
muito diferente. Quão poucos são os que refletem sobre os pecados do coração! Quão
poucos oram “Expurga-me tu dos que me são ocultos”! Não vos enganeis, Deus não se
deixa escarnecer, e ele não pode ser ludibriado por demonstrações externas.
Veja aqui a sabedoria de Deus em colocar esse mandamento no encerramento do
Decálogo, pois ele é uma cerca e guarda para todo o resto. É a partir das
contaminações internas da alma que todos os nossos pecados visíveis em palavras e
atos têm a sua ascensão. Toda a quebra do dia de descanso procede do desassossego
que é nascido do desejo pecaminoso. “Porque do coração procedem os maus
pensamentos, mortes, adultérios” etc. (Mt 15.19). Observe bem que Cristo coloca
“maus pensamentos” na frente, como o líder desse regimento vil! “Não cobiçarás”. Não
porás o seu coração sobre, nem terás a menor ânsia por aquilo que pertence a outro.
Alguém em objeção poderá dizer: “É impossível prevenir o desejo por aquilo que
admiramos”. É bem verdade; entretanto, nesse fato é revelada a condição caída do
homem e a perversidade desesperada de seu coração. Que tal desejo é pecaminoso e
danoso é descoberto somente à luz desse mandamento. Aquele que honestamente encara
esse preceito final do Decálogo deve ser convencido de sua pecaminosidade e levado a
reconhecer a sua desesperança, ou a perdição será o destino final. Deus nos deu sua
Santa Lei para que possamos ver o absoluto desespero do nosso caso, se formos
entregues a nós mesmos. Isso ele fez para nos levar até Cristo e à magnitude de sua
graça para com os pecadores arrependidos. E é no seu amado Filho, que obedeceu
perfeitamente a Lei, que o Pai se agrada!
APÊNDICE: UMA PALAVRA AOS PAIS
Uma das mais infelizes e trágicas características de nossa civilização é a
excessiva desobediência aos pais por parte dos filhos, quando menores, e a falta de
reverência e respeito, quando grandes. Infelizmente, isto se evidencia de muitas
maneiras, inclusive em famílias cristãs. Em nossas abundantes viagens nestes últimos
trinta anos, fomos recebidos em muitos lares. A piedade e a beleza de alguns deles
ainda permanecem em nossos corações como agradáveis e singelas recordações. Outros
lares, porém, nos transmitiram as mais dolorosas impressões. Os filhos obstinados ou
mimados não apenas trazem para si mesmos infelicidade perpétua, mas também causam
desconforto para todos que se relacionam com eles e prenunciam coisas ruins para os
dias vindouros.
Na maioria dos casos, os filhos são menos culpados do que seus pais. A falta de
honra aos pais, onde quer que a achemos, deve-se, em grande medida, ao fato de os
pais se afastarem do padrão das Escrituras. Atualmente, o pai imagina que cumpre suas
obrigações ao fornecer alimento e vestuário para os filhos e, ocasionalmente, ao agir
como um tipo de policial de moralidade. Com muita frequência, a mãe se contenta em
desempenhar a função de uma criada doméstica, tornando-se escrava dos filhos,
realizando várias tarefas que estes poderiam fazer, para deixá-los livres em atividades
frívolas, em vez de treiná-los a serem pessoas úteis. A consequência tem sido que o lar,
o qual deveria ser – por causa de sua ordem, santidade e amor – uma miniatura do céu,
degenerou-se em “um ponto de parada para o dia e um estacionamento para a noite”,
conforme alguém sucintamente afirmou.
Antes de esboçarmos os deveres dos pais em relação aos filhos, devemos
ressaltar que eles não podem disciplinar adequadamente seus filhos, a menos que
primeiramente tenham aprendido a governar a si mesmos. Como podem eles esperar
que a obstinação de suas crianças seja dominada e as manifestações de ira controladas,
se eles mesmos dão livre curso a seus próprios sentimentos. O caráter dos pais é
amplamente reproduzido em seus descendentes. “E Adão viveu cento e trinta anos, e
gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem” (Gn 5.3). Os pais devem eles
mesmos viver em submissão a Deus, se desejam obediência da parte de seus filhos.
Este princípio é enfatizado muitas e muitas vezes nas Escrituras. “Tu, pois, que ensinas
a outro, não te ensinas a ti mesmo?” (Rm 2.21). A respeito do pastor ou presbítero da
igreja está escrito que ele tem de ser alguém “que governe bem a sua própria casa,
tendo seus filhos em sujeição, com toda a modéstia (Porque, se alguém não sabe
governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?)” (1Tm 3.5). E, se um
homem ou uma mulher não sabem como dominar seu próprio espírito (Pv 25.28), como
poderão cuidar de seus filhos?
Deus confiou aos pais um solene e valoroso privilégio. Não exageramos ao
afirmar que em suas mãos estão depositadas a esperança e a bênção ou a maldição e a
ruína da próxima geração. Suas famílias são os berçários da igreja e do Estado, e, de
acordo com o que agora cultivam, tais serão os frutos que colherão posteriormente.
Eles deveriam cumprir seu privilégio com bastante diligência e oração. Com certeza,
Deus lhes pedirá contas referentes à maneira de criarem seus filhos, que a ele
pertencem, sendo-lhes confiados para receberem cuidado e preservação. A tarefa que
Deus confiou aos pais não é fácil, em especial nestes dias excessivamente maus.
Entretanto, poderão obter a graça de Deus, se a buscarem com sinceridade e confiança.
As Escrituras nos fornecem as regras pelas quais devemos viver, as promessas das
quais temos de nos apropriar e, precisamos acrescentar, as terríveis advertências, para
que não realizemos essa tarefa de maneira leviana.
[1]
Ian Murray relata que, além de sua esposa, apenas sete pessoas apareceram em seu enterro. Veja The Life
of Arthur W. Pink, de Ian H. Murray, publicado pela Banner of Truth.
[2] No prefácio à edição ampliada do seu livro The Life of Arthur W. Pink.
[3] Belcher refere-se, entre outras coisas, à rejeição que a sua pregação teve na maioria das igrejas, embora
Pink soubesse que estava sendo fiel à Palavra de Deus. Vide Born to Write: a Biography, de Richard Belcher,
publicado pela Richbarry Press.
[4] David Brainerd, Pioneer Missionary to the American Indians, publicado pela Evangelical Press. David
Brainerd foi genro do famoso teólogo puritano Jonathan Edwards (1703-1758). A Editora Fiel publicou A Vida de
David Brainerd, um volume que consiste do seu diário, com comentários de Jonathan Edwards.
[5] Publicado pela Editora Fiel sob o título “Deus é Soberano”. Com certeza, um dos melhores livros já
escritos sobre o assunto.
[6] Publicado pela Editora PES com o título “Os Atributos de Deus”.
[7] An Exposition of Hebrews, Arthur W. Pink, Baker Books.
[8] Exposition of the Gospel of John, Arthur W. Pink, Zondervan Publishing Company.
[9] Essa revista foi publicada mensalmente, sem interrupção, de 1922 a 1953. Após sua morte, sua esposa
Vera supervisionou a publicação das Studies restantes, com base nos textos deixados por Pink, até a sua última edição
em 1953. Cada edição da Studies incluía normalmente seis a oito artigos; cada artigo abordava um assunto diferente
ou livro da Escritura, que corriam como uma série ao longo das edições. Conseguir manter a publicação dessa revista
mensal, escrevendo sozinho profundas exposições bíblicas, ao longo de toda a sua vida, é um testemunho da graça
divina. A Providência que fechou os púlpitos para esse grande pregador é a mesma que preparou o cenário para o
surgimento desse grande escritor.
[10] Spurgeon, juntamente com John Owen e João Calvino, são alguns dos escritores que Pink mais cita ao
longo dos seus livros.
[11] É interessante como, frequentemente, vemos que muitos argumentos de Pink não passam de um
arranjo lógico de vários versículos e ensinamentos bíblicos, demonstrando como ele manejava bem a palavra da
verdade (2Tm 2.15).
[12] The Life of Arthur W. Pink, Ian H. Murray, pág. 275.
[13] Mostrando assim que o “eu, porém, vos digo” (Mt 5.22, 28, 32, 34, 39, 44) não é uma anulação dos Dez
Mandamentos, mas a interpretação apropriada e sempre tencionada por Deus, desde o princípio.
[14]
“até mil gerações”, na ARA [N. do T.].
[15] “é ilimitado”, na ARA [N. do R.].
[16]
Shabbath (hebraico) significa “descanso do labor”. Essa é a palavra que é traduzida como sábado no Antigo
Testamento, nas nossas versões da Bíblia em português (p.ex.: Êx 16.23, 25, 26, 29; Êx 20.8, 10, 11; Êx 31.14-16,
etc.). A versão do autor (KJV) traz o original Shabbath em vez de Saturday (sábado em inglês), evitando assim
possíveis confusões por parte do leitor [N. do T.].
[17]
“Para evitar a fornicação”, na King James Version, versão utilizada pelo autor [N. do T.].