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Cyrce Andrade

Marina Célia Dias


Maria Lúcia Medeiros
Zoraide Faustinoni da Silva

Brincar: o brinquedo
e a brincadeira
na infância

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S U M Á R I O

APRESENTAÇÃO 7

I. O PROJETO BRINCAR – Maria Lúcia Medeiros e Zoraide Faustinoni da Silva 9


1. O Projeto Brincar e seus desafios 9

2. A Infância e o Brincar: referenciais teóricos 13


2.1 Concepção de infância 13
2.1.1 A Infância nas leis brasileiras 15
2.1.2 Paradoxos sobre a infância 18

2.2 Brincar: contribuições de diferentes campos do conhecimento 20


2.2.1 As contribuições da Psicologia do desenvolvimento 21
2.2.2 As contribuições da Teoria Psicanalítica 31
2.2.3 Conclusões 34

3. O brincar na instituição de Educação Infantil 36


3.1 O espaço 36
3.2 O tempo 39
3.3 A rotina 40
3.4 Para além dos muros das instituições 42

II. BRINCAR: UM DADO DE MUITAS FACES E CORES – Cyrce Andrade 49

III. O BRINCAR COM AS MÚLTIPLAS LINGUAGENS NA EDUCAÇÃO INFANTIL – Marina Célia Moraes Dias 73

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MATERIAL DE APOIO DO PROJETO

Brincar: o brinquedo
e a brincadeira
na infância
Fundação Volkswagen Coordenadora do Projeto
Via Anchieta, km 23,5 CPI 1394 Maria Lúcia Medeiros
Bairro Demarchi 09823-901
Autoria do material
São Bernardo do Campo / SP
Cyrce Andrade
http://www.vw.com.br/fundacaovw
Marina Célia Dias
e-mail: fundacao@volkswagen.com.br
Maria Lúcia Medeiros
Presidente do Conselho de Curadores Zoraide Faustinoni da Silva
Holger Rust
Colaboradores
Diretor Superintendente Lucia Magalhães
Eduardo de A. Barros Luciana Coin
Regina Andrade Clara
Diretora de Administração
Sandra Cordeiro Marino
e Relações Institucionais
Conceição Mirandola Ilustração
Heloisa Holl
Cenpec – Centro de Estudos e Pesquisas
Projeto gráfico
em Educação, Cultura e Ação Comunitária
Fábio Meirelles
R. Dante Carraro, 68
Pinheiros 05422-060 São Paulo - SP Revisão
http://www.cenpec.org.br Ana Maria Herrera
Presidente do Conselho de Administração Fotografia
Maria Alice Setúbal Dudu Cavalcanti, Nelson Toledo,
Iolanda Huzak, Fábio Meirelles, professores
Superintendente
e formadores do Projeto Brincar
Anna Helena Altenfelder
Coordenadora Técnica
Maria Amabile Mansutti
Gerente de Projetos Locais
Claudia Micheluci Petri

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A P R E S E N T A Ç Ã O

Este fascículo é um material de apoio do Projeto Brincar: o brin-


quedo e a brincadeira na infância, desenvolvido pelo Cenpec – Centro
de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária, por
iniciativa da Fundação Volkswagen. É composto de três partes: a primeira
apresenta o Projeto, discute concepção de infância e destaca contribuições
de diferentes teóricos sobre o brincar e o desenvolvimento infantil. A se-
gunda trata de aspectos importantes da brincadeira infantil, como espaço,
tempo, repertório, companhia. E a terceira tem como foco a expressão da
criança de forma lúdica e por meio de diferentes linguagens.
Essas três partes se unem pelo princípio de que brincar é um
direito da criança. É uma rica possibilidade que ela tem de desenvolver sua
identidade e subjetividade e de se integrar à sua cultura.
A criança é um sujeito de direitos e precisa ter assegurado seu
desenvolvimento integral. O Projeto Brincar contribui para a educação
integral, uma vez que forma profissionais e voluntários para que entendam
a brincadeira na infância como um dos fatores principais para o desenvolvi-
mento integral da criança, pois desenvolve o corpo, as relações sociais, os
aspectos cognitivos e afetivos. Sobre isso falaremos ao longo do texto.
A concretização de uma educação integral se dá em diferentes
espaços e não apenas nas instituições formais de ensino. Esse projeto ofe-
rece repertório para o desenvolvimento de ações dentro e fora de insti-
tuições educacionais e incentiva a articulação entre unidades de educação
formal e outros espaços e instituições de seu entorno.

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I. O Projeto Brincar
Maria Lúcia Medeiros1
Zoraide Faustinoni da Silva2
1. O Projeto Brincar e seus desafios
O Projeto Brincar visa a colaborar com secretarias de governo e organizações
da sociedade civil na formação de gestores, professoras e professores, funcionários de
apoio, recreacionistas, agentes sociais e voluntários, oferecendo oficinas de formação,
material de apoio e acompanhamento das ações nas instituições educacionais3.
São objetivos desse projeto sensibilizar o olhar e enriquecer o conhecimen-
to teórico e a prática dos adultos que atuam com crianças em diferentes espaços,
oferecendo repertório de brincadeiras, jogos e brinquedos da cultura brasileira e es-
timulando a reflexão sobre as atividades recreativas, lúdicas e expressivas e seu papel
no desenvolvimento infantil. Diversos conteúdos são abordados: organização espaço-
-temporal, relação adulto-criança e criança-criança, valores implícitos nas brincadeiras,
acervo de brinquedos, a brincadeira do bebê e da criança pequena, brincadeira de faz
de conta, jogos com regras, brincadeiras de rua e quintal, construção de brinquedos,
desenvolvimento infantil e o brincar com as diferentes linguagens.
Essa formação caracteriza-se por um processo contínuo que tem como pon-
to de partida a prática e as concepções dos educadores e educadoras e apresenta 1
Maria Lúcia Medeiros é
coordenadora do Projeto Brincar,
novas contribuições, ampliando repertórios e alimentando a reflexão sobre a ação professora e pesquisadora de
na busca do aperfeiçoamento de todos os envolvidos. Para isso, a cada encontro há brincadeiras da cultura da infância,
pedagoga pela USP.
momentos de vivências relacionadas aos objetivos específicos do Projeto, de compar-
tilhamento de experiências pessoais e profissionais, de reflexões sobre a prática diária 2
Zoraide Faustinoni da Silva é
assessora da Coordenação Técnica
e outros dedicados ao estudo teórico. do Cenpec, mestre em Filosofia da
Educação pela PUC-SP.
O Projeto Brincar nasceu de uma preocupação com dois extremos que se
observam dentro das instituições educacionais na forma como os adultos encaminham 3
Ao longo do texto optamos por
usar o termo “educadores” para nos
a brincadeira. De um lado, temos os adultos que, em nome da necessidade legítima de referirmos ao adulto - homem ou
que as crianças tenham momentos livres, as deixam sem nenhum estímulo: não intera- mulher, professor ou professora,
gestor ou gestora - responsável
gem com elas durante as brincadeiras, tampouco as ajudam na organização do espaço ou pelo trabalho com as crianças.
as observam em seu brincar. De outro lado, há aqueles que exercem um controle exces- Sabemos que na educação infantil
esse trabalho é desenvolvido
sivo, seja moralizando conteúdos que emergem do jogo simbólico, seja tolhendo a livre principalmente por mulheres,
movimentação das crianças em nome da segurança física e da manutenção da ordem. porém julgamos que não cabe
fazermos aqui uma discussão de
Além disso, a brincadeira é vista, muitas vezes, apenas como uma estratégia para gênero. Optamos pelo uso do
9
termo “educadores” objetivando
ensinar conteúdos específicos, que vão desde amarrar os sapatos e lavar as mãos para fluência na leitura.

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comer até conteúdos de matemática, português ou ciências. Isso sem falar de situa-
ções em que a brincadeira praticamente desaparece, dando lugar a uma sequência
de atividades escolarizadas pouco apropriadas para crianças pequenas.
Dudu Cavalcanti

Todos os exemplos citados revelam falta de reflexão sobre o papel do adul-


to e mesmo falta de compreensão sobre o que é de fato a brincadeira infantil.
O Projeto Brincar tem como ponto de partida reavivar a memória das
brincadeiras e dos jogos dos próprios educadores e educadoras para a constru-
ção de um repertório do grupo, pois a brincadeira é um bem cultural, faz parte
da história de um povo e de um lugar e, portanto, deve ser preservada. Ao
Formação de professores mesmo tempo, procura aproximá-los da cultura lúdica contemporânea, olhando
do município de São
Paulo, 2005.
de perto as brincadeiras das crianças de hoje. Para isso, os participantes são estimula-
dos a observar as crianças e suas brincadeiras nos espaços públicos, dentro e fora da
instituição educacional, prestando atenção à frequência com que brincam, ao tipo de
brincadeiras, às interações, aos valores, entre outros aspectos.
A participação dos familiares e moradores da comunidade é incentivada. Pro-
põe-se o compartilhamento de brincadeiras que fazem parte do repertório pessoal e
da comunidade.
Busca-se a ampliação de espaços e tempos para as brincadeiras e jogos in-
fantis dentro e fora das instituições educacionais. Incentiva-se a articulação entre as
instituições da comunidade que trabalham com as crianças, localizando e reconhecen-
do os espaços disponíveis para que possam ser mais bem aproveitados por elas. Para
isso, mobilizam-se voluntários que se disponham a desenvolver brincadeiras, jogos ou
construção de brinquedos em praças, clubes, associações comunitárias ou mesmo nas
escolas, em período de recreio ou fins de semana.
Desse modo, promovem-se a divulgação e a valorização dos locais que a co-
Crianças no município munidade dispõe para brincadeiras e jogos das crianças, articulando-os e tornando-os
de Sertãozinho, 2009. verdadeiros espaços de convivência e aprendizagem.
O desenvolvimento desse projeto traz grandes desafios, na medida em
que evidencia contradições, resvala em valores e convicções pessoais que, ao mes-
Gisele Maria Miranda
Acervo pessoal de

mo tempo, devem ser respeitados e precisam ser discutidos para que se tornem
claros e a condução do trabalho seja transformadora. Sabemos que não há prática
sem teoria, mesmo quando não se tem clareza de quais são as concepções.
Temos cada vez mais estudos, pesquisas e documentos oficiais volta-
dos à infância que reconhecem a necessidade de a criança brincar para se de-
10
senvolver plenamente. Mas é preciso entender o que é próprio da brincadeira

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infantil também aos olhos da criança. Brincadeira que é corpo e emoção, que permite
o gesto espontâneo e único de cada um, dá espaço para o imprevisível, possibilita a
exploração sensorial, a relação afetiva, o desenvolvimento cognitivo, introduz regras de
convivência, incentiva a imaginação, acolhe, cria e faz crescer.

Este projeto faz parte do Programa Território Escola4


O Programa Território Escola tem como proposta articular a atuação da escola
às práticas culturais do território em que está inserida. O nome Território Esco-
la foi intencionalmente escolhido por sugerir uma reflexão sobre concepções que
consideram a escola como um espaço em que pessoas trabalham, estudam e se
relacionam, e que, portanto, é plena de vida, carregando em si um potencial de
transformação. Simultaneamente, também considera a escola no contexto de um
território, no qual estabelece vínculos de pertinência com outras instituições e servi-
ços públicos de atendimento às crianças e adolescentes. A apropriação do território
se dá pelo compartilhamento de um patrimônio cultural comum, pela relação entre
passado, presente e futuro.
A escola, seja de Ensino Fundamental, seja de Ensino Médio, seja de Educação Infan-
til, tem centralidade na educação das novas gerações, pois possibilita a apropriação
de ferramentas básicas para a inserção social. No entanto, a educação também se
dá no cotidiano familiar, nos diferentes espaços da comunidade, no contato com
os diferentes meios de comunicação. No sentido mais amplo, ultrapassa a sala de
aula, incorporando aprendizagens desenvolvidas em outros espaços educativos. Ex-
trapolar o espaço escolar significa reconhecer que as demais instituições têm uma
função educadora, o que possibilita construir uma relação de cooperação política,
somando esforços, integrando funções.

A escola, atualmente, é um dos principais espaços onde as crianças se encon-


tram. Portanto, deveria ser um lugar privilegiado para o encontro. E, para isso aconte-
cer, nada melhor do que as brincadeiras, “meio essencial para aproximar a escola da
vida” (ANDRADE, 1991, p. 28).
Se a escola permite à criança brincar, escolhendo seus parceiros, que não
necessariamente precisam ter a mesma idade, possibilitando a escolha de enredos, de 4
Em 2010 este Programa é
criação de espaços e a resolução de conflitos, ela terá uma grande oportunidade para constituído pelos projetos: Brincar: o
brinquedo e a brincadeira na infância;
desenvolver-se não só cognitivamente, mas social e emocionalmente. Entre na roda: leitura na escola e na
comunidade; Entre na roda: leitura na
No entanto, a espontaneidade, que está na essência do brincar, nem sempre educação infantil e na comunidade; 11
é bem compreendida pelos adultos. Na escola, corre-se o risco de confundir o brin- Estudar pra valer: ciclos 1 e 2.

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car, atividade que nasce da iniciativa das crianças, com aquelas preparadas pelo
professor para ensinar conteúdos específicos, valendo-se de recursos lúdicos.
Dudu Cavalcanti

O uso de recursos lúdicos para ensinar é válido, já que a brincadeira é uma rica
possibilidade que a criança tem de conhecer o mundo, mas o professor precisa
ter clareza de que atividade didática, ainda que lúdica e prazerosa, é diferente
do livre brincar da criança e não o substitui de forma alguma.
É preciso formar, portanto, o educador e a educadora que brincam,
que compreendem a importância da ludicidade, pois “nada será feito em favor do
Formação de professores jogo se os professores não se interessarem diretamente por ele” (ANDRADE,
do município de São 1991, p. 30). Logo, é preciso recuperar o lúdico dentro do educador adulto e buscar a
Paulo, 2005.
compreensão da brincadeira da criança.
Para compreender o brincar infantil é preciso olhar a criança brincando na
escola e também fora dela, pois nesta última situação ainda estão preservadas as prin-
cipais características do brincar: a espontaneidade, a escolha dos parceiros, dos temas,
dos objetos. No entanto, como nos diz Madalena Freire (1996), é preciso olhar com
atenção e presença. Um olhar que envolve a escuta e o desprender-se de nossos es-
tereótipos, daquilo que gostaríamos de ver e ouvir.

Bandet e Sarazanas (1973) defendem que todos os meios de educação de-


veriam informar-se sobre a forma como as crianças brincam e sobre os ob-
Maria Lúcia Medeiros

jetos que poderiam contribuir na atividade construtiva da brincadeira, pois


acreditam que as múltiplas investigações sobre o jogo mostram que não se
pode conhecer nem educar uma criança sem saber nem por que nem como
ela brinca. Também não se pode esquecer que a brincadeira é pertence da
criança (ANDRADE, 1991, p. 32).

Formação de professores É preciso que haja na escola espaço, tempo e liberdade para a criança decidir
do município de São o que, como e com quem brincar. O adulto pode ser um convidado dessa brincadeira
Carlos, 2008. ou apenas um espectador. Ele permite que a criança brinque, sem conduzi-la nem
abandoná-la, proporcionando tempo, espaço e mostrando-se disponível para as ne-
cessidades das crianças. Também deve haver o momento em que o educador participa
ativamente convidando as crianças para um jogo, propondo desafios, incentivando a
brincadeira. É imprescindível, no entanto, lembrar-se sempre de que as brincadeiras
existem anteriormente à escola e assim devem preservar seu caráter repousante e di-
vertido e tomar cuidado para que esses momentos não se tornem fazeres pedagógicos
disfarçados de brincadeira.
Outro desafio do Projeto Brincar tem sido o adequado equacionamento das
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condições para que as atividades propostas se desenvolvam. A concretização desse

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Projeto requer mudanças na rotina das instituições: traz a necessidade de se pensar na
organização de seus tempos, espaços e formas de convivência dentro da instituição e
dela com outros espaços da comunidade. Entraves burocráticos (reais e imaginários)
muitas vezes paralisam os educadores. Medo de tentar coisas novas e acomodação
impedem, muitas vezes, que soluções possíveis sejam postas em prática.
Durante os encontros de formação, busca-se problematizar essas questões
e, por meio da troca de experiências e de subsídios teórico-práticos, fortalecer os edu-
cadores para uma ação pedagógica mais criativa e consistente.

2. A infância e o brincar: referenciais teóricos


2.1 Concepção de infância
Zelo
Ao propor às educadoras e aos educadores Roseana Murray
projetos voltados para a infância, pretendemos com-
Cuidar da vida,
partilhar ideias, propostas, reflexões ligadas ao trabalho
desse infinito
cotidiano em escolas, creches e outras instituições des-
novelo
tinadas às crianças.
de tantas tramas
É importante começar explicitando a própria e cores.
ideia de infância. Do que falamos quando nos referimos Cuidar de cada
a ela? O que caracteriza essa fase da vida humana e vida
essa categoria social? Falar sobre a infância é abordar com desvelo,
uma diversidade de aspectos muitas vezes contraditó- para que a Terra possa
rios. Fala-se em infância como faixa etária, com algumas continuar sua dança,
especificidades com relação ao desenvolvimento físico, para que possamos todos
cognitivo, psíquico, emocional. Mas “a infância é mais continuar nossa trança.
do que simplesmente o tempo entre o nascimento
e o início da vida adulta. Está relacionada ao estado
e à condição de vida de uma criança: envolve a qualidade desses seus anos de vida”
(UNICEF, 2005, p. 1). O modo de ver a infância é sempre parte de um contexto social
e se diferencia conforme a época, o lugar e a cultura.
No mundo contemporâneo, defende-se a criança como cidadã dotada de
direitos . Mas nem sempre foi assim.
5

O historiador Philipe Ariès, centrando suas análises nas sociedades europeias,


trouxe contribuições importantes sobre o “sentimento de infância” ao longo da história. 5
Sobre isso falaremos no subitem 13
Segundo esse autor, até o fim do século XVI, ainda não existia na Europa o conceito de “A infância nas leis brasileiras”.

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infância. A criança participava desde cedo do mundo adulto, tanto no lazer quanto no
trabalho, participação que era limitada apenas por suas possibilidades físicas. Os adultos
participavam das brincadeiras consideradas hoje infantis, como cobra-cega, esconde-
-esconde, e as crianças, de outro lado, frequentavam bordéis e brigas de galo, por
exemplo. Com o crescimento das novas classes burguesas6, ganha corpo a tendência
de separar as crianças dos adultos, diferenciá-las, percebê-las como sujeitos com carac-
Acervo pessoal de Zoraide
Faustinoni da Silva, 1950.

terísticas próprias. A família torna-se nuclear e passa a assumir a proteção e a formação


da criança. Mais tarde, ao longo dos séculos XIX e XX (período da Revolução Indus-
trial), esse papel formativo será compartilhado com as escolas.
Condicionantes históricos, econômicos e culturais, entre outros, concorrem
para o modo de se ver e viver a infância. No caso da sociedade brasileira, há que se
considerar aspectos próprios de sua constituição. Por exemplo, além da influência eu-
ropeia, há a indígena e a africana. As marcas deixadas pelo processo de colonização,
escravidão e imigração estão presentes ainda hoje na sociedade como um todo: o
grande contraste econômico, as precárias condições de moradia de grande parte da
população, a falta de um sistema de saúde adequado, as dificuldades de inserção no
mercado de trabalho, o acesso desigual à escola, entre outros. O ensino público, por
exemplo, surgiu tardiamente no Brasil. As crianças de famílias ricas eram educadas
por preceptores até o início do século XX e as famílias pobres trabalhavam em vez
de estudar. É muito recente, entre nós o acesso da maioria de crianças de 7 a 14 anos
ao Ensino Fundamental. E no que se refere à Educação Infantil, esse acesso ainda é
bastante restrito.
6
O termo “classes burguesas” Se o modo de ver e viver a infância se diferencia conforme a época, a socie-
refere-se às classes ou classe
de proprietários do capital, dade e a cultura, é importante também destacar que, dentro de uma mesma socieda-
como os industriais, banqueiros, de e numa mesma época, podem conviver diferentes infâncias.
comerciantes, empresários
agrícolas e do setor de serviços. No Brasil, como em diversas sociedades contemporâneas, quando falamos
Originalmente, o termo “burguesia”
era aplicado aos habitantes dos de infância e criança há que se pensar de quem estamos falando:
aglomerados urbanos medievais
da Europa, que se dedicavam ao • Da criança filha de lavradores rurais?
comércio, à usura e ao artesanato.
O crescimento econômico dessas • Da criança indígena?
classes chocou-se com o poder dos
soberanos, do clero e da nobreza, • Da criança que vive na periferia urbana?
provocando os acontecimentos que
precipitaram a Revolução Francesa. • Da criança que vive nas favelas?
Tendo em suas mãos os negócios
do Estado, essas classes criaram • Da criança que vive no grande centro urbano?
condições propícias
ao desenvolvimento do modo E ainda, em um foco mais particular:
14 de produção capitalista
(SANDRONI, 2005, p. 102). • Da criança vítima de violência doméstica ou da que tem um lar acolhedor?

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• Da criança privada do convívio com outras crianças ou daquela
cercada de irmãos, primos e amigos?

Gleida Reis Rita


• Da criança que sofre doença crônica ou daquela que goza de
boa saúde?
• Da menina ou do menino?
Cada criança é única, conforme o contexto cultural, social, eco-
nômico e familiar em que vive e conforme suas características, pessoais.
É um “ser que é” e ao mesmo tempo carrega um grande potencial de
“vir a ser”.

Uns valorizam aquilo que a criança já é e que a faz ser, de fato,


uma criança; outros, ao contrário, enfatizam o que lhe falta e o Crianças do município
de Guará, 2009.
que ela poderá ou deverá vir a ser. Uns insistem na importância da iniciação
ao mundo adulto; outros defendem a necessidade de proteção em face
desse mundo. Uns encaram a criança como um agente dotado de compe-
tências e capacidades; outros realçam aquilo que ela carece (PINTO, apud
CORSINO, 2009).
No entanto, apesar das diferenças, há traços comuns a todas elas: a criança
tem um modo particular de conhecer, sentir, expressar, agir sobre o mundo... Tem
um modo espontâneo de ser, vê a realidade sob uma ótica pessoal e única, tem uma
forma particular de vivenciar o tempo e a repetição das ações, brincadeiras e histórias
não tem o mesmo significado para ela e para o adulto. Para conhecê-la, é fundamental
aprendermos a olhar para ela, para os seus gestos, a maneira como se movimenta,
como se relaciona (FRIEDMAN, 2005).

2.1.1 A infância nas leis brasileiras


Em tempos recentes, no Brasil, a maior atenção à infância está expressa em
leis que reconhecem a criança como sujeito de direitos. São direitos básicos que, no
entanto, ainda não estão completamente garantidos.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) determina o direito das crian-
ças e adolescentes à educação, e que se assegure a igualdade de condições para acesso
e permanência na escola gratuita e próxima de sua residência. Às crianças de zero a seis
anos de idade afirma o direito ao atendimento em creche e pré-escola.
A Educação Infantil, por sua vez, ganhou um grande impulso já a partir da dé-
15
cada de 1980, tanto no plano das pesquisas e do debate teórico quanto no plano legal,

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propositivo e de intervenção na realidade. Entre 1994 e 1996 o Ministério da Educação
(MEC) realizou vários debates que deram origem a uma série de publicações7, criando
referências e diretrizes para a Educação Infantil. Com a aprovação da Lei de Diretrizes
Nelson Toledo

e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/1996), esse segmento passou a constituir a


primeira etapa da Educação Básica. Em 2009 foi lançado pelo MEC o documento Indi-
cadores da Qualidade na Educação Infantil. Com esse documento, busca-se a melhoria
nas instituições de atendimento à criança levando-se em consideração aspectos como:
proposta pedagógica, planejamento e avaliação, trabalho com as linguagens, construção
da autonomia, ambiente natural e físico, materiais, riqueza de experiências, respeito às
diferenças, respeito à criança, interações, aspectos de saúde e segurança, a formação e
Município de
Caçapava, 2006. condições de trabalho dos profissionais, envolvimento da comunidade.

Embora a Declaração Universal dos Direitos da Criança tenha sido publicada em 1959
pela ONU, somente com a Constituição Federal de 1988, fruto do processo de demo-
cratização da sociedade brasileira, afirma-se em nosso país a concepção da criança como
sujeito de direitos.
Esses direitos estão expressos:
No capítulo II
Dos Direitos Sociais
Art. 60. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a se-
gurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso).
E, no capítulo III
Da Educação, da Cultura e do Desporto
Art. 208, ao tratar do dever do Estado com a educação, ressalta no item IV “o aten-
dimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade”.
A afirmação desse direito torna-se mais concreta com a publicação em 1990 do
7
Política Nacional de Educação Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No artigo 30 diz:
Infantil (1994); Educação Infantil
no Brasil, situação atual (1994); “A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa
Por uma política de formação do
profissional de Educação Infantil humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes,
(1994); Critérios para o atendimento por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar
em creches (1995); Educação Infantil:
bibliografia anotada (1995); Propostas
o desenvolvimento físico, metal, moral, espiritual e social, em condições de liberdade
pedagógicas e currículo em Educação e de dignidade.”
Infantil (1996); Subsídios para
credenciamento e funcionamento de E no artigo 60
instituições de EI (1998); Referencial
Curricular Nacional para a Educação “Na interpretação desta Lei, levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige,
16 Infantil (1998); Diretrizes Curriculares as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a con-
de Educação Infantil (1999).
dição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento.”

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Em 1996 foi promulgada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB),
que reconhece a Educação Infantil como a primeira etapa da educação básica. De
acordo com a Constituição Federal e a LDB, a educação infantil é direito da criança
e da família; dever do Estado, Poder Público e família; não obrigatória; e gratuita nos
estabelecimentos oficiais.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, de 1999, desdo-
bramento político-pedagógico da LDB, configuram-se como instrumento para a
construção de uma Educação Infantil de qualidade, que respeite a dignidade e os
direitos básicos das crianças nas instituições e supere a dicotomia entre assisten-
cialismo e educação.
Essas diretrizes constituem-se na doutrina sobre Princípios, Fundamentos e Pro-
cedimentos da Educação Básica, definidos pela Câmara de Educação Básica do CEMEI Maria Fernanda Lopes
Conselho Nacional de Educação, que orientarão as Instituições de Educação Infantil dos Piffer, Bebedouro, 2007.
Sistemas Brasileiros de Ensino, na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de
suas propostas pedagógicas.
Entre os artigos e itens que constam dessas diretrizes, destacamos os itens I, III e IV do art.
30 por ressaltarem princípios e diretrizes pedagógicas que também orientam nosso trabalho
de formação contínua de educadores.
I. As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil devem respeitar os seguin-
tes Fundamentos Norteadores: a) Princípios éticos da autonomia, da responsabilidade, da
solidariedade e do respeito ao bem comum; b) Princípios políticos dos direitos e deveres
de cidadania, do exercício da criticidade e do respeito à ordem democrática; c) Princípios
estéticos da sensibilidade, da criatividade, da ludicidade e da diversidade de manifestações
artísticas e culturais.
III. As Instituições de Educação Infantil devem promover, em suas Propostas Pedagógicas,
práticas de educação e cuidados que possibilitem a integração entre os aspectos físicos,
emocionais, afetivos, cognitivo/linguísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um
ser completo, total e indivisível.
IV. As Propostas Pedagógicas das Instituições de Educação Infantil, ao reconhecer as crian-
ças como seres íntegros, que aprendem a ser e a conviver consigo próprios, com os demais
e o próprio ambiente de maneira articulada e gradual, devem buscar a partir de atividades
intencionais, em momentos de ações, ora estruturadas, ora espontâneas e livres, a intera-
ção entre as diversas áreas de conhecimento e aspectos da vida cidadã, contribuindo assim
com o provimento de conteúdos básicos para a constituição de conhecimentos e valores.
A faixa etária atendida pela Educação Infantil sofreu alteração com a aprovação da Lei no
11.274/2006, que estabelece a duração mínima de 9 (nove) anos para o Ensino Fundamen-
tal, com matrícula obrigatória a partir dos 6 (seis) anos de idade. Essa medida deverá ser
implantada até 2010 pelos Municípios, Estados e Distrito Federal. 17

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Apesar dos avanços na educação e das leis de proteção à infância, no Brasil,
atualmente, temos ainda uma enorme desigualdade na forma como as nossas crianças,
meninos e meninas, vivem a infância. Por exemplo, sabemos que, embora o trabalho
infantil venha sendo combatido e sua ocorrência tenha diminuído, muitas crianças bra-
sileiras ainda atuam no mercado informal de trabalho8.
Essas crianças, meninas e meninos do Brasil, não têm uma rotina
diferenciada daquela vivida pelos adultos, pois exercem a função de traba-
lhadores precocemente, embora as leis determinem a proibição do trabalho
infantil e a obrigatoriedade de frequência da criança ao Ensino Fundamental.
Outras ainda sofrem violência doméstica e exploração sexual. E muitas não
Iolanda Huzak

contam com um atendimento de saúde adequado.


Assim, vivemos uma dicotomia entre leis avançadas de proteção à
infância e uma realidade de vida adversa. Há um descompasso entre a cria-
ção de uma lei e sua execução e fiscalização.
No que diz respeito às crianças que são atendidas em instituições
de Educação Infantil, há outros direitos expressos em lei que ainda precisam ser con-
cretizados. Dois deles merecem destaque: o que determina o respeito aos valores
culturais próprios do contexto social da criança e o que estabelece fundamentos nor-
teadores para as propostas pedagógicas das instituições de Educação Infantil. Entre os
objetivos centrais do Projeto Brincar está o de trabalhar com esses dois planos.

2.1.2 Paradoxos sobre a infância


Não é apenas o descompasso legal que separa as propostas da realidade, há
paradoxos na relação adulto-criança que precisam ser explicitados para que possam
8
Em 1995 foi criado o Programa
de erradicação do trabalho infantil
melhorar a qualidade das nossas intervenções.
(PETI). No final de 2005, esse
Programa foi integrado ao Bolsa
Vários autores9 chamam a atenção sobre a ambivalência dos adultos com
Família. De 2006 para 2008, segundo relação à criança. Corsino (2009) e Qvortrup (2008) apontam alguns paradoxos dessa
a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios (Pnad), do Instituto
relação nas sociedades modernas. Entre eles estão o fato de que os adultos:
Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), o trabalho infantil diminuiu.
• acreditam que é benéfica a convivência entre pais e filhos, mas vivem cada
No entanto, em 2008, 993 mil vez mais vidas separadas;
crianças e adolescentes entre 5 e
13 anos trabalhavam no país. Fonte: • gostam da espontaneidade das crianças, mas procuram tornar suas vidas
http://www.ibge.gov.br.
cada vez mais organizadas;
9
Ver entre outros: CORSINO (2009);
MOSS (2007); QVORTRUP (2008);
• afirmam que as crianças devem estar em primeiro lugar, mas cada vez mais
18
SARMENTO (1997). são tomadas decisões econômicas e políticas que não as levam em conta;

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• atribuem à escola um papel importante na sociedade, mas não se reconhe-
ce como válida a contribuição das crianças na produção de conhecimentos;
• valorizam e esperam das crianças comportamentos “infantis”, mas cobram
cada vez mais responsabilidade delas;
• preocupam-se com uma produção cultural mais especializada para infância
e ao mesmo tempo conteúdos e informações de todas as espécies estão expostos
através da mídia (principalmente TV e Internet) sem controle;
• discutem os direitos das crianças, mas não criam condições para suas garantias.
É necessário, então, começarmos o nosso trabalho nos perguntando que
concepção de criança nós temos e que infância queremos proporcionar às crianças.
Para isso, é fundamental ouvir e olhar as crianças, meninos e meninas, que estão à nos-
sa volta e não perder de vista a criança que fomos e ainda existe dentro de nós. Com
base nisso, buscar informações, através de estudos e pesquisas que possam ampliar
nosso conhecimento, visando ações mais coerentes e contribuindo na formação do
profissional da educação infantil.
Um profissional que reflete sobre sua prática, um pesquisador, um cocons-
trutor do conhecimento, tanto do conhecimento das crianças como dele pró-
prio, sustentando as relações e a cultura da criança,
criando ambientes e situações desafiadoras, ques-
tionando constantemente suas próprias imagens de

Fernanda Ribeiro
criança e seu entendimento de aprendizagem in-
fantil e outras atividades, apoiando a aprendizagem
de cada criança, mas também aprendendo com ela
(MOSS, 2007, p. 246-247).
No Projeto Brincar, o trabalho de formação inicia-
se recuperando as memórias de infância dos participantes e,
ao longo dos encontros, é dada forte ênfase à vivência de
brincadeiras e à troca de experiências dos envolvidos, além
de embasamento teórico sobre o tema. Formação de professores
Roger Bastide (1947) nos inquieta quando fala que “para poder estudar a no Cenpec, 2007.
criança é preciso tornar-se criança (...) é preciso viver o brinquedo”. Também nes-
sa linha Blackstone (2001) afirma que “é muito importante tomarmos consciência do
remanescente da mentalidade infantil no nosso corpo. Se conhecermos a história da
nossa dor, da nossa infância e a maneira como tendemos a projetá-la sobre as situações
atuais, podemos tornar nosso comportamento mais flexível”. 19

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A vivência de brincadeiras em momentos de formação recupera o sentido
que elas possuem, as dificuldades e desafios enfrentados, os medos, as alegrias e pra-
zeres, a socialização, a cooperação, a resolução de conflitos e outros aspectos a elas
Fernanda Ribeiro

relacionados. Acreditamos que uma vez “in-corporadas” (trazidas para o corpo) essas
brincadeiras e o que elas nos proporcionam damos um primeiro passo para uma mu-
dança efetiva da prática.

2.2 Brincar: contribuições de diferentes campos do conhecimento


Acreditamos que os problemas A Criança Nova que habita onde vivo
educacionais devem ser equacionados no Dá-me uma mão a mim
Formação de âmbito das questões políticas, sociais e cultu- E a outra a tudo o que existe...
professores no rais, e não apenas sob o enfoque da Ciência.
Cenpec, 2007. Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
Temos clareza, porém, de que não se pode
abrir mão do conhecimento científico para
enfrentar esses problemas. Mas, embora as teorias nos deem princípios norteadores
e parâmetros para orientar a ação, não podem ser transpostas diretamente para a
prática pedagógica. Além disso, as teorias não são neutras, por isso, quando fazemos
uma opção teórica, estamos nos comprometendo com uma determinada visão de
sociedade, de ser humano, de cidadão, de educação. Diferentes áreas e diferentes
tendências prevalecem em determinadas épocas e lugares, disputando espaço nos
meios educacionais, muitas vezes apresentando-se como a solução mágica para as
questões pedagógicas.
Assim, faz-se necessária uma apropriação crítica das diferentes teorias que
chegam a nós, educadores, que temos o compromisso de oferecer às novas gerações
a melhor formação possível.
Ao longo do século XX e início do XXI cresceu o esforço pelo conhecimento
da criança em vários campos do conhecimento, tais como Psicologia, Psicanálise, Neu-
rologia, História, Sociologia, Antropologia.

... o significado ideológico da criança e o valor social atribuído à infância têm


sido objeto de estudo da sociologia (...) Também a antropologia, pesquisando
a diversidade, tem permitido conhecer as populações infantis, suas brincadei-
ras, atividades, músicas, histórias e outras práticas culturais. Além disso, o sé-
10
Sobre estudos a respeito de culo XX assistiu à busca de uma psicologia baseada na história e na sociologia:
criança, infância e a brincadeira as ideias de Vygotsky e Wallon e o debate com Piaget mostram esse avanço...
20 ver também: BENJAMIN (2002);
HUIZINGA (1990). (KRAMER, 2003, p. 86)10.

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A tendência mais recente da Sociologia e da Antropologia contrapõe-se à
ideia de criança como ser pré-social, concebendo-a como um ser social pleno, dotado
de capacidade de ação e culturalmente criativo. Entre as contribuições da Sociologia e
da Antropologia, destaca-se o conceito de culturas da infância.

Por esse conceito entende-se a capacidade das crianças em construírem de


forma sistematizada modos de significação do mundo e de ação intencional,
que são distintos dos modos adultos de significação e ação (...) As culturas
da infância, sendo socialmente produzidas, constituem-se historicamente e
são alteradas pelo processo histórico de recomposição das condições sociais
em que vivem as crianças, entre si e com outros membros da sociedade
(SARMENTO, 2009, p. 3-4).
Constituem as culturas infantis não apenas as brincadeiras, mas também os
rituais, gestos, palavras, elementos simbólicos, o conjunto de significados que a criança
atribui ao mundo físico e cultural e as relações de comunicação com seus pares.
No que se refere à brincadeira, estudos da Antropologia mostram que ela
é universal. Acontece em todas as culturas, espelhando sua diversidade, mas também
mostrando semelhanças. Podemos usar como exemplo as brincadeiras de mãos, cujos

Nelson Toledo
gestos são muito parecidos, ou até mesmo iguais, porém a música que a acompanha
traz uma letra relacionada a assuntos específicos de um determinado tempo ou lugar.
A neurociência também vem nos revelando uma série de conhecimentos
sobre o funcionamento do cérebro e seu desenvolvimento, reafirmando, entre outras
coisas, a importância dos estímulos propiciados pelas brincadeiras para um desenvol-
vimento sadio. Durante o desenvolvimento de uma brincadeira, determinadas áreas
cerebrais são estimuladas propiciando o seu amadurecimento.
Entre as diversas contribuições teóricas, vamos nos deter mais em dois cam-
pos de conhecimento: o da Psicologia do desenvolvimento e o da Teoria Psicanalítica.

2.2.1 As contribuições da Psicologia do desenvolvimento


Município de Caçapava, 2006.
A Psicologia do desenvolvimento pretende estudar como nascem e como
se desenvolvem as funções psicológicas que distinguem o homem de ou-
tras espécies. Ela estuda a evolução da capacidade perceptual e motora, das
funções intelectuais, da sociabilidade e da afetividade do ser humano. Des-
creve como as capacidades se modificam e busca explicar tais modificações
(DAVIS, 1993, p. 19-20). 21

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Brincadeira, jogo ou brinquedo?11
No Brasil, as palavras jogo, brinquedo e brincadeira se misturam em seus significados,
algumas vezes sendo consideras sinônimas, outras vezes não. Em algumas línguas
europeias (francês, inglês, alemão, espanhol) o mesmo não acontece.
Brincar origina-se do latim vinculum, que quer dizer “criar laços, unir, juntar, cativar”
(Houaiss). Muitas vezes a palavra brincar significa não falar sério ou não levar as coisas
a sério, fazer zombarias, agir com imprudência, distrair-se com jogos infantis.
A palavra jogo também atrai diferentes significados. Referimo-nos a jogo, por exem-
plo, como uma brincadeira que tem regras preestabelecidas que devem ser seguidas
por todos os jogadores. Mas também usamos expressões como “jogo amoroso”,
“jogo político”...
Entre nós, a palavra brinquedo comumente é usada para designar o objeto de que a
criança muitas vezes se utiliza para realizar a sua brincadeira. Mas também a encon-
tramos designando a brincadeira em si. Lydia Hortélio, por exemplo, fala “Brinque-
do de criança” quando se refere à brincadeira de roda.
Diferentes autores usam uma ou outra dessas palavras com o mesmo sentido, Neste
texto procuramos respeitar a palavra utilizada por cada um. No entanto, considera-
mos mais adequado o uso da palavra brincar ou brincadeira para designar a ação da
criança que é voluntária, espontânea, dotada de um fim em si mesma. A brincadeira
CEMEI Prof a Cacilda pode ser ensinada, compartilhada, proposta por alguém e conter regras. Mas o seu
de Carvalho Caputo,
Bebedouro, 2007. caráter flexível, imprevisível e de que seja desejada pela criança se mantém.

Dentro da Psicologia do desenvolvimento elegemos, para o Projeto Brincar,


o aporte teórico interacionista, aqui representado por Wallon, Vygotsky e Piaget. Essa
concepção fundamenta-se na ideia de interação entre organismo e meio e entende o
conhecimento como um processo construído pelo sujeito durante toda a vida.
Wallon, Vygotsky e seus seguidores enfatizaram o caráter sócio-histórico e
cultural do ser humano, atribuindo à presença do fator humano no ambiente uma
importância decisiva para o desenvolvimento. Por essa razão são considerados socio-
interacionistas. De acordo com esses dois autores, a introdução da criança no mun-
do da cultura é sempre mediada por pessoas mais experientes, seja na família, seja
em outro grupo social. Mesmo quando age sozinha, a criança move-se num tempo
e num espaço organizado pela cultura, com objetos da cultura. E, por necessitar de
11
Sobre esse tema ver: HUIZINGA
(1990); PORTO (2007); ANDRADE
cuidados e proteção, a criança é sempre acompanhada muito de perto por pessoas
22
e MARQUES (2003). mais velhas do que ela.

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Ao desenvolver suas teorias, os três autores destacaram o ato de brincar
como fundamental ao desenvolvimento humano. Aqui nos interessa principalmente
as contribuições de cada autor para esse tema.

Wallon
Wallon (1879-1962) dedicou-se ao estudo da psicogênese da pessoa buscan-
do entender de que forma o ser humano se mobiliza e é mobilizado para se constituir
como sujeito social.
Para Wallon o homem é geneticamente social: é na relação com o outro que
as ações das crianças vão ganhando significado. É nos movimentos de outrem que toma-
rão forma os primeiros movimentos do bebê. Suas necessidades têm de ser atendidas,
compensadas, interpretadas. Suas manifestações de mal-estar ou bem-estar tendem a
suscitar nas pessoas que o cercam intervenções úteis ou desejáveis. Nesse processo, gra-
dativamente essas manifestações vão se tornando intencionais. O ser humano é, desde
o início, um ser social preocupado em construir-se a si mesmo: observa-se, explora seu
corpo, verifica os próprios limites físicos antes de entregar-se à tarefa de explorar o mun-
do externo. Wallon considera o período inicial do psiquismo infantil como um estado de
indivisão entre seu próprio corpo e o mundo exterior. Aos poucos, pelas interações com
outras pessoas, a criança vai se diferenciando daqueles que a cercam, construindo seu Emei Carmem da Silva,
São Paulo, 2009.
próprio eu, sem excluir, no entanto, a presença do outro.
O grande eixo da teoria do desenvolvimento de Wallon é a
questão da motricidade. Na atividade muscular identifica duas funções:

Roseli Pereira Lima


cinética (o músculo em movimento) e postural (o músculo parado). À
medida que o ser humano adquire e domina os signos culturais, a motri-
cidade, em sua dimensão cinética tende a diminuir, a se tornar ato mental.
Assim, o ato mental, que se desenvolve a partir do ato motor, passa a
inibi-lo, sem deixar de ser uma atividade do corpo. O indivíduo huma-
no atua sobre o outro pela expressividade e isso lhe permite sobreviver
(DANTAS, 1992, p. 37-38). A cultura e a linguagem são os instrumen-
tos para a evolução humana, mas o primeiro instrumento utilizado pela
criança é o adulto. A emoção, primeira manifestação da afetividade, pre-
cede o aparecimento das condutas de tipo cognitivo e há um conflito e
oposição permanente entre elas.
Wallon trabalha com três conceitos chaves: preponderância,
alternância e integração funcional. O desenvolvimento infantil é pon-
23
tuado por conflitos que impulsionam o desenvolvimento. Esse processo

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é caracterizado por predominância e alternância cognitiva e afetiva. Cada período de
desenvolvimento é marcado por uma função preponderante. As atividades predomi-
nantes correspondem aos recursos que a criança tem numa determinada fase para
interagir com o ambiente.

Wallon nasceu em Paris em 15 de junho de 1879. Cursou a Escola Normal Superior,


tornando-se professor de Filosofia. Formou-se depois em Medicina e até 1931 atuou
como médico de instituições psiquiátricas. Paralelamente, consolida-se seu interesse
pela Psicologia da criança. Wallon tem por objetivo a elaboração de uma teoria do
desenvolvimento da pessoa, ou seja, o estudo integrado do desenvolvimento, que
abarque vários campos funcionais (afetivo, cognitivo, motor). Fundamentado no Ma-
terialismo Histórico Dialético, propõe-se a estudar o psiquismo em sua formação
e em suas transformações. Seu propósito era o de apreender o funcionamento do
pensamento em seus primórdios.
De 1920 a 1937, profere diversas conferências sobre a Psicologia da criança na Sor-
bonne e em outras instituições de ensino superior. Em 1925, funda o Laboratório de
Psicobiologia da Criança, publica sua tese de doutorado A criança turbulenta e inicia
um período de intensa produção de livros voltados para a Psicologia da criança. Em
seus estudos valeu-se da contribuição de outras áreas do conhecimento, tais como
a neurologia e a antropologia.
Em As origens do caráter (1934), o foco principal é a criança de 0 a 2 anos e os prin-
cipais temas abordados são o desenvolvimento do caráter e o papel da emoção. A
obra Do ato ao pensamento (1942) tem como objeto central a criança dos 2 aos 6
anos. Nela, trata das relações do gesto, do ato e da imitação com o pensamento
simbólico. No livro As origens do pensamento na criança (1945), dedica-se à faixa de
5 a 12 anos. Nele, busca explicar como se desenvolve a inteligência discursiva. Para
isso, recorreu a uma pesquisa na escola de Boulogne-Billancourt, onde se encontra-
vam representados todos os elementos componentes da população da cidade.
Wallon foi deputado por Paris na Assembleia Constituinte e tornou-se presidente
da comissão para a reforma do ensino em 1946, apresentando o Projeto Langevin-
Wallon em 1947. Manteve suas atividades científicas até 1953 e faleceu em 1962.
(Fontes: ZAZZO, 1978; MAHONEY, 2009.)

12
Cada autor usa uma
denominação diferente: jogo,
brincadeira e brinquedo. Sobre
Sobre o brincar, Wallon afirma que o jogo12 tem uma finalidade em si mesmo
24
isso ver boxe na p. 22. e pressupõe a livre escolha. Uma vez imposto, perde o caráter de jogo.

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Isso não significa que o brincar não exija esforço, mas sim que requer liberda-
de. Esse autor distingue algumas formas de jogos que predominam em diferentes fases
do desenvolvimento infantil:
• jogos funcionais – quando a repetição do movimento ou do gesto acon-
tecem pelo simples prazer e sem intencionalidade (atividades à procura de efeitos).
Por exemplo, balançar as mãos ou as pernas.
• jogos de ficção – brincar de boneca, de cavalo de pau etc.
• jogos de aquisição – quando a criança para para olhar, observar e compre-
ender o seu redor: coisas e seres, cenas, imagens, contos, canções etc.
• jogos de fabricação – exploração de objetos para entender, transformar e
criar novos jogos. Nestes, muitas vezes estão presentes os jogos de ficção e de aqui-
sição. Para Wallon, mais do que procurar seguir ou criar regras
para a brincadeira, a criança está em busca de novos desafios
ou dificuldades a serem por ela superados.
Para Wallon a atividade infantil é lúdica e gratuita.
A motricidade infantil, bem como a linguagem, é lúdica, mar-
cada por uma expressividade que supera de longe a instru-
mentalidade. E é desse gratuito e livre que surge o novo e a
criança passa a buscá-lo, com esforço, sem, no entanto, perder
o seu caráter lúdico. Por isso, para se educar uma criança é
preciso criar um espaço explorável, alimentar o jogo simbólico,
possibilitar a música, o desenho, enfim, a expressão da criança
(DANTAS, 1998, p. 118).
CEI Turma da Mônica, Vinhedo , 2012

Vygotsky
Na visão de Vygotsky (1896-1934), o ser humano constrói o mundo e a si
mesmo, faz-se na história, ao mesmo tempo que faz a história.
Vygotsky, com seus estudos, buscava entender a formação e a evolução
dos processos psicológicos humanos. Nessa busca, vale-se do conceito de media-
ção, processo por meio do qual as funções psicológicas superiores de pensamento,
tais como atenção voluntária, memorização ativa, pensamento abstrato, comporta-
mento intencional, ações conscientemente controladas, se desenvolvem. Segundo
ele, dois elementos são responsáveis pela mediação: o instrumento (material), que
regula as ações sobre os objetos e auxilia nas ações concretas, e o signo, ou instru- 25

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mento psicológico, que regula as ações sobre o psiquismo das pessoas servindo de
auxílio da memória e da atenção. No seu entendimento, a linguagem tem um pa-
pel semelhante ao dos instrumentos de trabalho. Ambos são construções da mente
humana e estabelecem uma relação de mediação entre o homem e o meio. Ela é
sistema simbólico fundamental, elaborado no curso da história social e desempenha
papel essencial no desenvolvimento das características psicológicas humanas. A lin-
guagem origina mudanças nos processos psíquicos humanos: permite lidar com obje-
tos do mundo exterior mesmo quando eles não estão presentes, possibilita a análise,
abstração e generalização, a comunicação entre as pessoas e o estabelecimento de
significados à cultura.
Segundo Vygotsky, desde os primeiros momentos de vida é o outro –
aquele(s) que cuida(m) e convive(m) com a criança – que, atribuindo significado aos seus
CEMEI Bruno Panhoca,
São Carlos, 2008. gestos desordenados, aos seus balbucios e choros, faz com que esses atos ganhem
significado para ela. Por meio das interações sociais e pela mediação
da linguagem, o ser humano vai atribuindo sentido ao mundo que o
cerca e, agindo nesse meio, vai se transformando e transformando
suas estruturas cognitivas. Para esse autor, a interação social não é
apenas facilitadora do desenvolvimento, mas constitutiva das funções
superiores de pensamento.
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores,
portanto, é mediado socialmente pelos signos e pelo outro. Ao
internalizar as experiências fornecidas pela cultura, a criança cons-
trói modos de ação e processos mentais. A partir daí, passa a se
apoiar menos em signos exteriores e mais em recursos próprios,
já internalizados.
Para Vygotsky, o desenvolvimento depende da aprendi-
zagem. Ele identifica dois níveis de desenvolvimento: o real, que
se refere ao desenvolvimento já realizado; e o potencial, que se
Fotos: Maria Lúcia Medeiros

relaciona às capacidades em vias de construção. Segundo ele, o


aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvi-
mento, cria uma zona de desenvolvimento proximal, ou seja, atua
no espaço existente entre a zona real e a potencial de desenvol-
vimento. No entendimento de Vygotsky, o mesmo papel cumpre
a “brincadeira de faz de conta”. Nela, a criança age como se fosse
maior do que é na realidade e desenvolve papéis que exigem
26 comportamentos não habituais para sua idade.

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Lev Semyonovitch Vygotsky nasceu em 5 de novembro de 1896 na Bielo-Rússia.
Em 1917, graduou-se em Literatura. Terminados os estudos universitários, Vygotsky
se dedica a atividades intelectuais bastante variadas. Ensina psicologia e prossegue
seus estudos de teoria literária e psicologia da arte. Em 1924, muda-se para Mos-
cou, passa a ser colaborador do Instituto de Psicologia e cria o Instituto de Estudo
das deficiências. De 1924 a 1934, junto com um grupo de colaboradores, elabora
sua teoria histórico-cultural dos fenômenos psicológicos e simultaneamente estu-
da Medicina. Vygotsky procurava uma abordagem abrangente que possibilitasse a
descrição e a explicação das funções psicológicas superiores, em bases aceitáveis
para as ciências naturais. Essa explicação deveria incluir a identificação dos meca-
nismos cerebrais subjacentes a uma determinada função, a explicação detalhada
da sua história ao longo do desenvolvimento, com o objetivo de estabelecer as
relações entre formas simples e complexas daquilo que aparentava ser o mesmo
comportamento; e deveria incluir a especificação do contexto social em que se deu
o desenvolvimento do comportamento. Vygotsky fundamenta-se nos métodos e
princípios do materialismo dialético, modelo teórico que tem como um de seus
pontos centrais a proposta de que os fenômenos sejam estudados como processos
em movimento e mudança. Assim, a tarefa do cientista seria a de reconstruir o
curso do desenvolvimento do comportamento e da consciência. Vygotsky escreveu
aproximadamente duzentos textos, dos quais uma parte se perdeu. A fonte principal
continua sendo a obra publicada em russo entre 1982 e 1984, mas, ainda que esta
antologia se intitule Obra completa, não abrange na realidade todos os textos que
puderam ser conservados, pois ainda não foram reeditados vários livros e artigos
publicados anteriormente.
(Fontes: VYGOTSKY, 1988; ZACHARIAS, 2009.)

Para Vygotsky a brincadeira (ou brinquedo, tal como aparece nas traduções
de seus textos para o português) origina-se de desejos que não podem ser imediata-
mente realizados. Ao brincar, a criança cria uma situação imaginária e essa característica
é o que define a brincadeira. A ação que ocorre nessa situação imaginária, portanto,
é o brinquedo. Para esse autor o “faz de conta” não é uma subdivisão da brincadeira,
mas é a brincadeira por excelência. Para ele a imaginação é definidora da brincadeira
e assim temos a sua clássica frase: “O brinquedo é a imaginação em ação”. Quando a
criança é muito pequena, os objetos “ditam” as ações para ela (a criança vê um chaveiro
e quer balançá-lo; ou o interruptor provoca a ação de ascender e apagar a luz). Com o
surgimento da linguagem, a criança começa a imaginar, e os objetos vão perdendo sua
27
força determinadora, a criança começa a brincar. Nesse momento, por exemplo, um

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pedaço de madeira pode virar um telefone, ou um cabo de vassoura transformar-se
em um cavalo, as ações surgem assim das ideias, e não mais dos objetos, dando início
à construção do pensamento abstrato.
Vygotsky não associa o brincar às atividades que dão prazer,
pois, segundo ele, nem sempre as situações vivenciadas nas brinca-
deiras são agradáveis, como nos momentos de negociação de papéis
ou quando o resultado de um jogo não é o melhor.
Considera que as regras e a fantasia estão presentes em
todas as brincadeiras, embora no início haja um predomínio da imagi-
nação sobre as regras e depois isso se inverta. Ao brincar de mamãe-
-filhinha, por exemplo, as regras de comportamento, embora não
sejam preestabelecidas, estão presentes na maneira de agir da crian-
ça, assim como a situação imaginária está presente num complexo
jogo de regras como é o xadrez.
CEMEI Mara Marques, Além de satisfazer necessidades e desejos, o brinquedo pos-
Bebedouro, 2007.
sibilita o desenvolvimento do pensamento abstrato, desencadeia o desenvolvimento da
vontade e da capacidade de fazer escolhas. Ele afirma que as maiores aquisições de uma
criança são conseguidas na situação de brincadeira (VYGOTSKY, 1988, p. 114).

Município de
Caçapava, 2006. Piaget
Piaget (1896-1980) preocupou-se, em seus estudos, com os aspectos rela-
cionados ao desenvolvimento da inteligência e deu ênfase ao papel ativo do sujeito.
A concepção de homem de Piaget é a de um sujeito em atividade, que constrói seu co-
nhecimento através das interações com o meio. A interação organismo-meio acontece
através de dois processos simultâneos: a organização interna e a adaptação. Vejamos o
que isso significa.
Ao nascer, o indivíduo recebe como herança uma série de estruturas biológicas
– sensoriais e neurológicas – que permanecem constantes ao longo da sua vida (fatores
invariantes). São essas estruturas biológicas que vão predispor o surgimento de certas
estruturas mentais, os esquemas. O esquema é uma estrutura cognitiva, com padrões
organizados de comportamento. São exemplos de esquemas: sugar, pegar, puxar, seriar,
Nelson Toledo

classificar. No início o bebê olha um objeto; mais tarde pode pegá-lo; depois o utiliza
como instrumento; num outro estágio a ação concreta dá lugar à ação interiorizada.
Piaget distingue quatro fatores principais para o desenvolvimento humano:
28
maturação, experiência física e lógico-matemática, transmissão social e o processo de

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equilibração, sendo este último o mais importante. Esse processo resulta do equilíbrio
entre assimilação e acomodação, operações realizadas pelo organismo para adaptar-se
ao meio e organizar-se internamente. A assimilação consiste na tentativa do indivíduo
de solucionar uma determinada situação a partir dos esquemas que possui. A acomo-
dação, por sua vez, consiste na capacidade de modificação da estrutura mental para
dominar um novo objeto de conhecimento... “A adaptação é um equilíbrio entre a
assimilação e a acomodação” (PIAGET, 1970, p. 17).
Os esquemas de assimilação vão se modificando, configurando os estágios
de desenvolvimento. Cada estágio se caracteriza pelo surgimento de estruturas origi-
nais que o distingue dos estágios anteriores. Porém, no decorrer dos estágios, o essen-
cial dessas construções sucessivas permanece como subestruturas, sobre as quais as
novas características se constroem. As atividades intelectual e biológica são partes do
processo global pelo qual o organismo se adapta ao meio e organiza as experiências.
A ação humana consiste em um processo contínuo que se orienta para o equilíbrio.
Nesse processo, ele destaca a importância crucial do jogo. Para ele o jogo
tem uma finalidade em si mesmo, é espontâneo, dá prazer, apresenta uma relativa falta
de organização e envolve motivação intensa (FRIEDMANN, 1996).
Segundo Piaget, as brincadeiras começam na fase sensório-motora, através
dos jogos de exercícios. Estes têm por finalidade o prazer do funcionamento, o movi-
mento pelo movimento... Eles não são exclusivos da criança pequena, reaparecendo
ao longo da vida. Por volta dos 2 anos, a criança passa a ter a possibilidade de simbo-
lizar, tomar uma situação por outra, um objeto por outro. Nesse momento, realidade
e fantasia se misturam. Com isso, dá-se o surgimento do jogo simbólico, nos quais a
criança representa algo, geralmente temas relacionados à vida afetiva. Piaget dá desta- CEMEI Maria Fernanda Lopes
que a esse tipo de jogo. Na obra A psicologia da criança afirma: Piffer, Bebedouro, 2007.

O jogo simbólico assinala, sem dúvida o apogeu do jogo


infantil... Obrigada a adaptar-se, sem cessar, a um mundo
social de mais velhos cujos interesses e cujas regras lhe
permanecem exteriores, e a um mundo físico que ela mal
compreende, a criança não consegue, como nós, satisfazer
as necessidades afetivas e até intelectuais do seu eu nessas
adaptações... É, portanto, indispensável à criança que possa
dispor de um meio de expressão própria, isto é, de um
sistema de significantes construídos por ela e dóceis às suas
vontades: tal é o sistema dos símbolos próprios do jogo 29
simbólico... (PIAGET; INHELDER, 1980, p. 52).

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Numa etapa posterior, o pensamento começa a ficar mais objetivo, a criança
consegue maior separação entre o real e a fantasia, dando lugar aos jogos com regras.
A regra substitui o símbolo, supõe relações sociais e é uma regularidade imposta pelo
grupo. Esses jogos podem ser sensoriais, como as corridas, ou intelectuais, como as
cartas e o xadrez, havendo competição ou colaboração entre as equipes ou indivíduos,
também podem ser simbólicos, como nas adivinhações.

Jean Piaget nasceu em Neuchâtel em 1896. Estudou Biologia e Filosofia, formou-se


em Ciências Naturais e doutorou-se em Zoologia. Após formar-se, foi para Zurich,
onde trabalhou como psicólogo experimental. Em 1919, Piaget mudou-se para a
França onde foi convidado a trabalhar no laboratório de Alfred Binet. Iniciou seus
estudos experimentais sobre a mente humana e começou a pesquisar também so-
bre o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Em 1921, Piaget voltou à Suíça e
tornou-se diretor de estudos do Instituto J. J. Rousseau da Universidade de Gene-
bra. Desenvolveu uma série de investigações em torno do pensamento espontâneo
da criança. Com 27 anos, escreveu o seu primeiro livro de Psicologia: A linguagem e
o pensamento na criança. Foi professor de Psicologia na Universidade de Genebra
de 1929 a 1954.
Na década de 1950 fundou o Centro Internacional e Epistemologia Genética da
Faculdade de Ciências da Universidade de Genebra, onde foram produzidas im-
portantes obras de Psicologia Cognitiva. Lecionou a disciplina de Psicologia da
Criança, a partir de 1952, na Sorbonne, Paris. Durante esse período, cerca de
onze anos, desenvolveu trabalhos sobre a inteligência com o grupo de investiga-
dores da Escola de Binet e Simon.
Piaget preocupou-se em desenvolver uma psicogenética da inteligência. A crian-
ça é concebida como um ser dinâmico, que a todo o momento interage com a
realidade, operando ativamente com objetos e pessoas. Essa interação com o
ambiente faz com que construa estruturas mentais e adquira maneiras de fazê-
-las funcionar.
Piaget escreveu várias obras, algumas das quais em colaboração de Barbel Inhelder.
Entre elas, destacam-se: Seis estudos de Psicologia; A construção do real na criança;
Epistemologia genética; O desenvolvimento do símbolo na criança; Da lógica da criança
à lógica do adolescente; A equilibração das estruturas cognitivas. Piaget morreu em
Genebra, na Suíça, com 83 anos.
(Fonte: ZACHARIAS, 2009.)

30

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2.2.2 As contribuições da Teoria Psicanalítica
Fundada por Freud (1856-1939), a Psicanálise foi por ele definida como um
procedimento para a investigação de processos mentais, um método, baseado nessa
investigação, para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma série de concepções
psicológicas adquiridas por esse meio e que se somam umas às outras para formarem
progressivamente uma nova disciplina científica (LOWENKRON, 2009). Segundo Me-
zan (2007), Freud, em sua obra Sobre uma Weltanschauung (visão de mundo), de 1932,
caracteriza a Psicanálise como um ramo da Psicologia, que investiga a vida psíquica,
o inconsciente, suas leis e seus efeitos sobre o comportamento humano.
A Psicanálise nasceu como um método investigativo aplicado a adultos, esten-
dendo-se posteriormente ao tratamento de crianças. Para Freud, ao brincar, a criança
tem prazer na aparente onipotência que adquire ao manipular os objetos cotidianos
associando-os a símbolos imaginários.
Melanie Klein (1882-1960), discípula de Freud, trouxe a brincadeira para o
trabalho psicanalítico com crianças. Klein via uma similitude entre a atividade lúdica in-
fantil e o sonho do adulto13. Discípulo de Klein, Winnicott (1896-1971) redimensiona a
brincadeira, diferenciando o brincar utilizado no processo de análise e o brincar
em si, uma atividade infantil, e que também faz parte do mundo adulto. Conside-
rava a possibilidade de que “na teoria total da personalidade, o psicanalista tenha
estado mais preocupado com a utilização do conteúdo da brincadeira do que
em olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como uma coisa em si”
(WINNICOTT, 1975, p. 61). Para ele os analistas infantis por se ocuparem tanto

Acervo pessoal de
América Marinho
dos possíveis significados do brincar não possuíam um claro enunciado descritivo
sobre essa atividade. E é isso que ele se propõe a fazer, trazendo importante
contribuição sobre o papel da brincadeira na constituição da subjetividade.

Winnicott
Para Winnicott, cada ser humano traz um potencial inato para amadurecer
e se integrar. Porém, o desenvolvimento desse potencial dependerá de um ambiente
facilitador que forneça os cuidados de que a criança precisa, sendo que, no início, esse
ambiente é representado pela “mãe suficientemente boa”. Segundo esse autor, a mãe
suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê,
uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a capacidade deste em lidar com
a frustração (WINNICOTT, 1975, p. 25). A adaptação da mãe às necessidades do
bebê dá a ele a ilusão de que existe uma realidade externa correspondente à sua pró-
31
pria capacidade de criar (idem, ibidem, p. 27). 13
A esse respeito ver Klein, M. 1997.

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Winnicott nasceu em Plymouth, Devon, Inglaterra em 7 de abril de 1896 e morreu
em 1971. Começou a estudar Medicina em Cambridge, mas interrompeu seus estu-
dos para servir como cirurgião aprendiz – residente em um navio britânico, durante
a Primeira Guerra Mundial. Formou-se em Medicina em 1923 e, em 1927, foi aceito
na Sociedade Britânica de Psicanálise e qualificado como analista de crianças em
1935. Foi também pediatra durante quarenta anos.
Durante a guerra, Winnicott trabalhou com crianças evacuadas e separadas preco-
cemente dos pais, o que o colocou frente a frente com angústias infantis graves.
Um acontecimento relevante da vida desse autor foi a chegada em Londres, no
ano 1926, de Melanie Klein (1882-1960), uma das mais importantes analistas de
criança da sua época, com a qual ele trabalhou. Winnicott compartilhava com Klein
a convicção da importância suprema do primeiro ano da vida da criança para saúde
psíquica. Havia nesse ponto uma discordância com Freud (1895-1982) o que ocasio-
nou uma divisão na Sociedade Britânica de Psicanálise. Em 1945, um acordo entre
esses psicanalistas acabou por constituir três grupos: os Freudianos, o Kleinianos e
um grupo conciliador ao qual Winnicott pertenceu.
Diretor do Departamento Infantil do Instituto Psicanalítico da Sociedade Britânica
por 25 anos, foi ainda, por dois mandatos consecutivos, Presidente da Sociedade
Britânica de Psicanálise. Trabalhou no hospital Paddington Green Children’s até os
anos 60. Membro da Unesco e coordenador de vários grupos de estudos, autor de
vários textos, conferencista, sem deixar a prática clínica.
Atuando como pediatra, psicanalista e cidadão em vários setores da sociedade,
mostrou, na prática, a importância que dava ao entrelaçamento do indivíduo com o
meio. Emitiu valiosas opiniões referentes a projetos governamentais que interferiam
direta ou indiretamente na área da saúde ou educação, por meio de cartas enviadas
a colegas e autoridades; assim, encontramos cartas dirigidas ao Primeiro Ministro da
Inglaterra, a reitores de universidades, professores, sacerdotes, médicos das mais
variadas especialidades (psiquiatras, neurologistas, pediatras, psicanalistas), a fabri-
cantes de brinquedos, a amigos e inimigos, a leitores de suas publicações, a qualquer
cidadão comum que lhe pedisse ajuda.
A obra de Winnicott está embasada em sua prática clínica pediátrica e psicanalítica.
Em seus livros faz sempre referências aos registros sobre os pacientes que tratava.
Vários de seus livros foram publicados em português. Entre outros citamos: Da
pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2000. A criança e seu mundo. Rio
32 de Janeiro: Guanabara Koogans, 1982. A família e o desenvolvimento individual.

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São Paulo: Martins Fontes, 1993. O ambiente e os processos de maturação. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1983. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1988. O gesto espontâneo. São
Paulo: Martins Fontes, 1990. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. Con-
versando sobre crianças [com os pais]. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Pensando
sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
(Fontes: BOGOMOLETZ, 2009; LOWENKRON, 2009.)

Não se trata, porém, de uma mãe perfeita ou de uma supermãe, mas sim
de um adulto que exerce a função materna, aceita e acolhe o bebê atendendo às suas
necessidades. Segundo Oliveira (2009), Winnicott entende que, quando o pai cuida
do filho, na fase em que o bebê não se distingue do meio ambiente, sua função é
igualmente materna. Ou ainda que, no início da vida do bebê, a função do pai é apoiar
a mãe, juntamente com a família e a sociedade, para que ela possa desempenhar essa
tarefa tão complexa e delicada que é participar da emergência de um sujeito.
Segundo esse autor, é fundamental, para a constituição do “self” (eu), o modo
como a mãe coloca o bebê no colo, carrega-o, toca, manipula, aconchega, fala com ele.
A capacidade das mães em dedicar a seus filhos a atenção de que precisam, atendendo
suas necessidades de alimentação, higiene, acalento ou simples contacto,
cria condições para a manifestação do sentimento de unidade entre duas
pessoas. A confiança na mãe cria uma união entre ela e o bebê. Segundo
Winnicott (1975, p. 71), a brincadeira começa aqui.
O brincar não está dentro, nem fora do indivíduo. Há um espaço
potencial entre o bebê e a mãe, que varia bastante conforme as experi-
ências de vida do bebê em relação à figura materna (idem, ibidem, p. 63).
O bebê e o objeto estão fundidos um no outro. A visão que o bebê tem

Acervo pessoal de América Marinho


do objeto é subjetiva e a mãe se orienta no sentido de tornar concreto
aquilo que o bebê está pronto a encontrar.
É interessante observar que seus estudos da relação mãe-bebê
têm trazido contribuições importantes na educação de crianças pequenas,
pois o adulto cuidador é muitas vezes a pessoa de referência da criança.
Para explicar o surgimento do brincar, Winnicott deu destaque
ao que denominou como fenômeno transicional, ou seja, a área interme-
diária de experiência entre o corpo e o objeto. Inicialmente a criança leva
a mão, o dedo e o punho à boca; depois passa a usar objetos para isso.
33
Uma bola de lã, a ponta de um cobertor, uma melodia, algo que se torna

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importante para o bebê na hora de dormir, uma defesa contra a ansiedade. A esses
objetos Winnicott denomina objetos transicionais. São objetos que não fazem parte do
corpo do bebê, mas não são plenamente reconhecidos como pertencentes à realida-
de externa. É a primeira possessão do “não eu”. Há, em geral, por parte dos pais, um
reconhecimento ainda que intuitivo da importância desse objeto para a criança, a ponto
de levarem-no consigo quando saem de casa. À medida que a criança cresce, o objeto
transicional perde o significado.
Em primeiro lugar é a mãe que brinca com o bebê e ela se ajusta às suas ne-
cessidades lúdicas. Mais cedo ou mais tarde, ela estimula na criança seu próprio brincar
e descobre como é diversa a capacidade dos bebês em aceitar ou não a introdução
de ideias que não lhes são próprias. Dessa maneira, prepara o caminho para o brincar
conjunto num relacionamento. Quando se inicia a brincadeira compartilhada, surge a
possibilidade de ampliação das experiências lúdicas.
Winnicott sugere que deva haver uma atitude social positiva com respeito ao
brincar. Adultos devem estar disponíveis quando crianças brincam, o que não significa
que precisam ingressar nas brincadeiras das crianças.
“A criança que brinca habita uma área que não pode ser facilmente abando-
nada, nem tampouco admite facilmente intrusões” (idem, ibidem p. 76).
Há em primeiro lugar a necessidade de proteção, de modo que possa ser
criado o espaço de confiança para que a criança brinque criativamente. Em segundo
lugar, os que cuidam da criança devem ser capazes de colocá-la em contato com a he-
rança cultural, de modo apropriado, de acordo com a capacidade da criança, sua idade
emocional e fase de desenvolvimento.
A experiência criativa começa com o viver criativo, manifestado primeiro na brin-
cadeira. Para o bebê todo e qualquer objeto é um objeto a ser descoberto. Dada a oportu-
nidade, o bebê começa a viver criativamente, a utilizar objetos reais para ser criativo.
A característica essencial, segundo Winnicott, é de que brincar é uma expe-
riência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de
viver situada entre o subjetivo e o que é objetivamente percebido. A criança traz para
dentro da brincadeira objetos e fenômenos da área externa, usando-os a serviço de
algo que é interno.

2.2.3 Conclusões
Embora com diferentes enfoques, tanto a Psicologia do desenvolvimento
34
quanto a Psicanálise enfatizam a importância da brincadeira para o ser humano.

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Com base nos vários autores destacados, entendemos que o brincar se ma-
nifesta de diferentes maneiras: desde as brincadeiras que a criança, ainda bebê, faz com
o seu próprio corpo, com os sons vocais, com os objetos que o adulto lhe oferece
até aquelas que requerem destreza corporal, capacidade de imaginar e simbolizar e o
respeito a regras predefinidas.
O brincar é um processo histórica e socialmente construído. Isto é, as crian-
ças aprendem a brincar com os outros membros de sua cultura e suas brincadeiras são
impregnadas pelos hábitos, valores e conhecimentos de seu grupo social. As mães ou
pessoas responsáveis pelos cuidados com os bebês, através dos vínculos afetivos esta-
belecidos, interagem com eles, criando diferentes situações que poderíamos identificar
como o início desse processo.
A brincadeira se constitui inicialmente em uma forma de interação entre o
bebê e a mãe (ou o adulto que desempenha esse papel). Do aconchego materno,
dos acalantos e sorrisos surgem os jogos de reciprocidade: dar e pegar, esconder e
achar, colocar dentro e fora, bater palminhas, fazer “serra, serra, serrador” e outras. A
partir dos quatro meses, a criança começa a demonstrar atenção aos objetos e ao que
pode fazer com eles (bater, golpear, balançar). Até os 8-12 meses, os objetos não são
percebidos como permanentes e estáveis. Os jogos do tipo esconder e achar, colocar
dentro e fora fazem parte desse período. Constituem-se também em brincadeiras fa-
zer cócegas e caretas, fingir um tombo e outras formas de pantomimas que provocam
risos na criança pequena. A familiaridade com essas brincadeiras, e o seu final previsível
pela constante repetição, possibilita que a criança possa usufruí-las com tranquilidade. CEMEI Arnaldo de Rossis
Quando mais velhas, as crianças associam ou- Garrido, Bebedouro, 2007.
tros elementos à sua brincadeira e ampliam seus parcei-
ros incluindo cada vez mais outras crianças. Por volta dos
dois anos começam as brincadeiras de faz de conta, as
escolhas de papéis e enredos. As brincadeiras corporais
envolvem novos desafios como correr para escapar de
pegador, pular amarelinha sem pisar na linha, pular corda,
subir em árvores. Surgem os jogos em que as regras são
previamente combinadas e devem ser seguidas por todos
os participantes.
Finalmente, é importante retomar o caráter gra-
tuito da brincadeira, uma atividade livre e que tem fim em si
mesma. Quando a livre escolha das crianças, a espontanei-
dade, a possibilidade de criação são preservados, garante- 35
se a essência do brincar.

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3. O brincar na instituição de Educação Infantil
Uma instituição de Educação Infantil deve pensar, dentro do seu contexto
cultural e histórico, sobre o que é preciso oferecer como experiência à criança para
promover seu desenvolvimento integral. Com base nessa reflexão, é possível tomar
decisões que garantam um cuidado adequado, favoreçam a interação tanto entre adul-
to e criança quanto entre pares, promovam o acesso aos bens culturais. Tais decisões
se refletirão na configuração do tempo, do espaço e nas atividades que serão prioriza-
das. Tempos e espaços caminham juntos. Não é possível pensar em um espaço sem
pensar em como ele será utilizado no que se refere ao tempo, à quantidade e idade
das crianças, ao tipo de atividade, entre outros aspectos.

3.1 O espaço

As instituições para a primeira infância devem ser locais para provocação e confronta-
ção, discordâncias e indocilidade, complexidade e diversidade, incerteza e ambivalência,
mantendo o pensamento crítico aberto, o deslumbramento e assombro, a curiosidade
e diversão, aprendendo com adultos e também com crianças sobre perguntas para as
quais as respostas não são conhecidas. (MOSS, 2007, p. 246.)

O ambiente exerce impacto sobre as pessoas: traz sensações, mobiliza senti-


mentos, inspira ações. A configuração do espaço físico da instituição é importante para
promover situações de socialização, afetividade, descobertas e favorecer o desenvolvi-
mento integral da criança.
Em primeiro lugar, as características do prédio onde se instala uma instituição
determinam claramente limitações e possibilidades em seu uso. O ideal é que educa-
dores e arquitetos conversem previamente para pensar a melhor arquitetura para esse
espaço. No entanto, sabemos que a realidade brasileira não é essa. Na maioria das
vezes, parte-se de uma estrutura que já está dada, com reformas de casas residenciais.
Mesmo assim, com boas orientações de profissionais é possível fazer adaptações e
tornar o ambiente mais agradável, acolhedor e funcional.
A brincadeira, nas suas diversas modalidades e expressões, deve ser o centro
das ações das crianças na escola de Educação Infantil. Assim, é preciso pensar tempos
e espaços que a favoreçam.
Há escolas em que apenas a hora do recreio é o momento de brincar. Este
36
ocorre em um pátio pequeno, cimentado e com o tempo bastante reduzido. É comum

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vermos nesses momentos crianças agitadas, correndo, gritando e sem a possibilidade
real de montarem suas brincadeiras harmonicamente, de escolherem os parceiros e
os objetos com que vão brincar.
Outras escolas têm um espaço interno reservado para as brincadeiras: as
brinquedotecas. Muitas vezes é um espaço bastante estruturado, com local predeter-
minado para a brincadeira de carrinho ou a de casinha, onde o brinquedo atua como
o principal mediador entre a criança e o mundo. Às crianças fica reservado um horário
semanal, com frequência bastante reduzida, para ocuparem esse espaço, junto com
colegas da mesma sala que, geralmente, têm a mesma idade. Assim, uma proposta que
poderia ser enriquecedora das relações dentro da instituição e dela com a comunidade
acaba sendo usada de forma restrita.
É importante a criança poder se expressar livremente, correr
ou pular conforme suas necessidades, criar seu espaço, suas fantasias,
seus desenhos, suas histórias, encontrar crianças de diferentes idades.
Para um desenvolvimento saudável é importante ter contato com os
elementos da natureza, o ar livre, o sol, a terra, a areia, a água. Poder
construir seus buracos e castelos, sentir o vento, “voar” com ele, se
aquecer ao calor do Sol. Um espaço em que a criança possa escolher
com quem brincará e o que fará. Quando crianças de diferentes idades
brincam juntas, é dada a oportunidade de aprenderem a se respeitar e
a cuidar uns dos outros. Aprendem com os mais velhos a resolver ques-
tões, como, por exemplo, ter de dividir um brinquedo, ou determinar
papéis entre elas. Aprendem a cooperar (PEREIRA, 1996).
É necessário também oferecermos um espaço (interno ou ex-
terno) onde a criança possa ter acesso aos materiais de que necessita, sem
CEMEI Prof a Cacilda
precisar sempre da ajuda do adulto. Que possa criar esse espaço, decidindo do que vai de Carvalho Caputo,
brincar e onde montará sua brincadeira. Será uma casa, um barco, um carro?... Como Bebedouro, 2007.
eles serão? Será uma grande caixa de papelão? Uma casa feita de panos? Embaixo das
mesas da sala de aula? Há a possibilidade de inventar o seu próprio brinquedo, ou trans-
formar um que já existe em outra coisa de que esteja precisando naquele momento?
Organizar os materiais e brinquedos em estantes da altura das crianças pode
ser um facilitador do trabalho do adulto e da brincadeira da criança. Quanto mais clara
for a organização do espaço mais livre poderá ser o trabalho.
É importante considerar que diferentes espaços devam ser destinados à brin-
cadeira nas instituições que atendem crianças pequenas. Por isso cabe refletir: o pátio
37
é um espaço que propicia o encontro entre as crianças? Ele é amplo o suficiente para

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que as crianças possam correr ou realizar brincadeiras coletivas de roda ou de bola,
por exemplo? Existem brinquedos, árvores ou outros elementos em que as crianças
possam buscar desafios corporais como subir ou se pendurar? Existe a possibilidade do
aconchego para as crianças que estão buscando brincadeiras mais tranquilas, individuais,
em duplas ou em pequenos grupos?
E para as crianças muito pequenas, as que têm idade entre seis meses e três
anos? É oferecido a elas um espaço seguro que permita descobertas dessa fase da vida?
Espaços em que possam engatinhar, caminhar com ajuda ou sozinhas, cair, levantar,
subir e descer, pôr e tirar, empilhar e derrubar, fazer e desfazer? Um lugar em que
possam realizar experimentações sensoriais?
No que se refere ao espaço da sala de aula, o modo como é
configurado revela intenções por parte das educadoras e educadores.
Acervo pessoal de Maria Cristina Pires

Traduz, por exemplo, maior ou menor preocupação com a acolhida


das crianças, dá dicas sobre o tipo de movimentação que é esperado
ou permitido dentro dela, favorece ou não a interação entre pares.
Cadeiras dispostas num grande círculo, mesas enfileiradas ou forman-
do pequenos grupos, tapetes com almofadas, favorecem formas dife-
rentes de interação. O tipo de material oferecido, o modo como está
organizado, a possibilidade ou impossibilidade de acesso das crianças a
ele, a pré-organização ou não de propostas antes do início do perío-
do revelam o grau de intenção de favorecer a autonomia e propiciar
escolhas aos alunos. Além disso, dão dicas a um observador atento
sobre o tipo de atividade ou conteúdo privilegiado naquele espaço. A escolha do que
será exposto nas paredes, sob forma de painéis, fotografias, cartazes, revela o que se
quer comunicar, as fontes de informação escolhidas e maior ou menor preocupação
com critérios estéticos. Conduzem a uma compreensão mais intensa da obra que é
gestada naquele lugar.
A ideia de que é preciso oferecer um espaço estimulador é bastante presente
nos meios educacionais. No entanto, o que é um espaço estimulador? Certamente
não é uma sala com paredes carregadas de estímulos visuais, com desenhos estereoti-
pados ou materiais expostos sem critério. Um ambiente estimulador pode ser simples
na forma, na cor, deve conter a possibilidade de criação, construção e ter também
espaço amplo para a movimentação e cantos para o recolhimento, para a criança estar
sozinha, consigo mesma. Estimulador é o ambiente que acolhe e reflete a vivência do(s)
grupo(s) que o ocupa(m).
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3.2 O tempo

As crianças nos fascinam pelos momentos que transformam em únicos, ainda que os
repitam (também a repetição nos dá o pulso do tempo da infância). Ao mesmo tempo,
nos exigem o direito a suficiente tempo para que saibamos esperá-las sem pressas,
antecipações, nem estimulações precoces, desnecessárias e violentas. Esperá-las na
dilatação do tempo e, paradoxalmente, sem tempo. Desta forma, os instantes se fazem
completos, prazerosos, preciosos e consistentes. (CABANELLAS et al, 2007, p. 11.)

A criança vive a sua infância dentro de um tempo diferenciado do adulto.


Este vive um tempo cronológico, em que o relógio dita a hora de começar ou ter-
minar uma atividade. A criança, por sua vez, tem um ritmo próprio. Ora se dedica
rapidamente a uma brincadeira de casinha ou a um desenho, ora leva mais tempo
nessas mesmas atividades, mas isso nem sempre quer dizer que houve maior ou
menor grau de concentração. De outro lado, esse tempo também é cíclico. Há mo-
mentos em que a criança se recolhe, brinca consigo mesma, procura os interiores;
há outros em que ela se expande, quer a companhia dos colegas, ou dos adultos,
busca espaços maiores. Assim como o sol que começa tênue ao amanhecer, vai se
intensificando, esquentando e depois se recolhe. Igualmente a lua que ora cresce,
ora decresce, ou a maré cheia e vazia.
Cabe a nós perguntar: será que damos “tempo ao tempo”? Será que não nos
precipitamos ao determinar certos horários rígidos à rotina dos alunos? Quantas vezes
nos queixamos de que as crianças demoram a se organizar e de quanto é difícil para
Emei Carmem
elas a concentração em uma atividade. da Silva, São Paulo,
Para a criança a organização da brincadeira é intrínseca 2009.
ao brincar, ao contrário do adulto que vê a organização como
uma ação que o precede, que é pré-requisito. Esse descompas-
so também acontece quando se trata de terminar a brincadeira.
Se olharmos atentamente, vamos observar que muitas vezes,

Roseli Pereira Lima


quando as crianças estão no auge da concentração, nós falamos
que acabou o tempo, simplesmente porque “temos” de mudar
de atividade, pois planejamos mais uma atividade para aquele
momento, ou porque é o horário do lanche ou de limpar a sala.
Quantas vezes deixamos de flexibilizar os horários e de atender
as reais necessidades das crianças?
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Se, por um lado, precisamos rever a forma como organizamos o tempo,
por outro, também podemos ajudar as crianças a se situarem e gradativamente cons-
truírem a noção de tempo, pois é no convívio com os adultos que as crianças vão se
introduzindo no tempo cronológico.
Sabemos que existem períodos de diferentes durações para atendimento em
creches, escolas e outras instituições de atendimento à infância. É preciso analisar se
o tempo dedicado à alimentação, higiene, descanso, desenvolvimento de atividades e
projetos que visam à aprendizagem de conteúdos curriculares, atividades que possibili-
tam a livre expressão da criança, brincadeiras dirigidas pelo adulto e brincadeiras livres
está bem distribuído.
Muitas vezes vemos crianças em fila esperando para usar o banheiro ou lavar
as mãos. Essa monótona espera é necessária? Não poderiam desenvolver alguma ativi-
dade que pudesse ser interrompida quando chegasse a sua vez de usar o banheiro?
Outras vezes, descontado o tempo destinado à alimentação, à higiene e ao
descanso, o tempo que resta é totalmente preenchido com atividades que visam à
aprendizagem de conteúdos curriculares. Desaparece, assim, o tempo da brincadeira
tão necessário às crianças!
Quanto ao descanso, a diferença entre as necessidades de cada faixa etária
precisa ser considerada. Bebês precisam de muitas horas de sono, crianças pequenas
costumam dormir depois do almoço, crianças maiores geralmente não precisam mais
desse sono, mas, certamente, precisam de momentos de tranquilidade em determina-
dos horários. Enquanto uns dormem, outros podem ler, desenhar, assistir a um vídeo
ou brincar livremente, apenas com a supervisão do adulto.

EM Profa Lúcia
Maria Vilar Barbosa, 3.3 A rotina
Lorena, 2009.
No encontro entre tempo e espaço configura-se a rotina. Rotina não
significa um dia a dia monótono, mas estruturado de modo que haja rituais mar-
cando determinados momentos, que certos tipos de atividade tenham sua pe-
riodicidade determinada (diária, semanal, quinzenal) e que se imprima certo ritmo
Maria Lúcia Medeiros

ao trabalho, ritmo que é dado pelo tempo dedicado a diferentes propostas.


Essa organização do cotidiano, é importante notar, favorece a autono-
mia da criança. Conhecendo a rotina do seu grupo, uma criança torna-se capaz
de fazer muitas atividades sem necessidade de comando e controle externos.
Sem dúvida, é preciso prever na rotina situações para que a criança
40
exerça seu direito de escolha. Um bom modo de garantir isso são os períodos

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de atividade diversificada. Esse deve ser um momento em que a criança escolhe o que
gostaria de fazer, como e por quanto tempo gostaria de se dedicar a isso (respeitando-se
os limites de tempo e espaço colocados). O professor oferece um conjunto de opções
e um espaço convidativo, organizado de maneira que o aluno possa buscar o material
de que precisa, utilizá-lo e guardá-lo, sem depender completamente do adulto. O que
gostaria de fazer? Com quem gostaria de brincar? Em que momento gostaria de mudar
de atividade? Um espaço também onde a criança possa se organizar de acordo com
suas necessidades e com as do grupo.
Nesses períodos, cria-se oportunidade de favorecer o acesso a variados bens
culturais e possibilitar o desenvolvimento de linguagens expressivas da criança. Assim,
por exemplo, pode-se oferecer materiais para desenho, pintura, colagem, modelagem;
um canto para leitura, outro para jogos com regras; espaço para brincadeira de faz de
conta, para ouvir música, dançar.
Há escolas em que essas atividades diversificadas são realizadas diariamente,
durante metade do período, ou até mais, em que a criança permanece por lá e são
situações bastante enriquecedoras. As crianças conseguem se organizar melhor, fazer
escolhas, interagir entre elas, ao mesmo tempo que o professor estabelece uma rela-
ção mais individualizada com cada um de seus alunos. Outros momentos são dedica-
dos às atividades coletivas, pois a vida também tem esses momentos.
Nesse tipo de proposta, o professor está atento ao coletivo, à organização
do espaço e tem a oportunidade de dar atenção individual a determinadas crianças que
dela necessitem. É um momento privilegiado para que o professor observe as crianças
e melhor as compreenda. Município de Caçapava, 2006.
O trabalho com cantos de atividades diversificadas permite ao aluno esco-
lher o que vai fazer, dentre aquilo que lhe é oferecido. Dessa forma é dada à criança

Nelson Toledo
a possibilidade de entrar em contato com seu mundo interno, seus desejos, seus
anseios e receios. Nunca é demais lembrar que a criança não precisa estar o tempo
todo em atividade, nem interagindo ativamente com seus pares. A observação, o
recolhimento e mesmo a percepção da necessidade de descansar são grandes e
importantes aprendizados.
Faz parte da rotina também momentos dirigidos, em que o adulto traz pro-
postas estruturadas, com encaminhamentos escolhidos tendo em vista determinados
objetivos. Os momentos dirigidos, por oferecer novas possibilidades, conhecimentos,
informações, ampliam as possibilidades de escolhas futuras das crianças.
41

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3.4 Para além dos muros das instituições

Assumir um trabalho de acolhimento às diferentes expressões e manifestações das


crianças e suas famílias significa valorizar e respeitar a diversidade, não implicando a
adesão incondicional aos valores do outro. Cada família e suas crianças são portadoras de
um vasto repertório que se constitui em material rico e farto para o exercício do diálogo,
aprendizagem com a diferença, a não discriminação e as atitudes não preconceituosas.
Estas capacidades são necessárias para o desenvolvimento de uma postura ética nas
relações humanas. Nesse sentido as instituições de educação infantil, por intermédio de
seus profissionais, devem desenvolver a capacidade de ouvir, observar e aprender com as
famílias. (RCNEI, 1998, v.1, p. 77.)

É importante não perder de vista que apenas parte do tempo da criança será
vivido dentro das instituições de Educação Infantil.
Assim, se por um lado o fato de ser atendido em uma instituição específica é
parte da vida em comunidade, por outro, é preciso considerar a necessidade de usu-
fruir outros espaços, como o quintal, a rua, a praça, os espaços culturais e de lazer.
Sabemos que as crianças são atendidas por outras instituições além das es-
colares. A escola coexiste com outras instituições e equipamentos públicos de aten-
dimento à criança. Isso implica promover a integração entre experiências escolares
e não escolares.
O fortalecimento da relação da escola com a comunidade deve ser um ponto
forte. Trazer a comunidade para dentro da escola ou sair com a escola para fora de
seus muros são ações que enriquecem o trabalho educacional. Para isso é importan-
te convidarmos mães, pais, outros familiares e moradores para compartilharem suas
experiências culturais com as crianças e a equipe escolar. Esse movimento possibilita
conhecer e integrar as práticas culturais locais à educação escolar e estreita vínculos
entre cultura da escola e as práticas vivenciadas pelos alunos fora dela.
Também são ricas as ações que levam as crianças a usar outros espaços du-
rante o período escolar. Realizar passeios e promover brincadeiras em praças e parques
públicos, levar as crianças à biblioteca, ao cinema e ao teatro, são ações que ampliam o
universo cultural da criança. Desse modo, promovem-se a divulgação e a valorização dos
locais que a comunidade dispõe, articulando-os às escolas e tornando-os verdadeiros
espaços de convivência e aprendizagem.
42

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Sabe-se, no entanto, da dificuldade de efetivamente ocupar os espaços
coletivos e de como essa ocupação exige ações afirmativas da sociedade, nos âm-
bitos individual, comunitário e governamental. Fica clara a necessidade de políticas
públicas consistentes de atendimento integral à criança, que coordenem ações
dentro e fora das instituições de atendimento à infância.

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48

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II. Brincar: um dado
de muitas faces e cores
cyrce andrade1
Pular elástico, bater bafo, subir no pé de lata, pagar filipe, descer a ladeira
de rolimã, gerar bonecas de sabugo de milho... brincadeiras de ontem. Melhores que
as de hoje? Ou melhores porque foram nossas? Ouvimos com frequência o suspiro
saudoso e nostálgico dos adultos.
Houve um tempo em que a chave da cultura lúdica da infância estava nas
nossas mãos e quantas vezes a trancamos para os adultos! Éramos cheias de segredos,
esconderijos e línguas secretas – orais e escritas. A tinta de sumo de limão só podia
ser lida na chama de uma vela e, cuidado!, sem queimar o papel. Também nos encan-
távamos com as brincadeiras de nossos pais e avós, elas nos chegavam carregadas de
significado, haviam sido as brincadeiras deles.
Agora é a nossa vez de olhar para as crianças que brincam ao nosso redor.
Queremos ver as suas brincadeiras com o mesmo interesse com que olham para as
nossas. E vamos torcer para que elas não “virem a chave”...
Das mãos das crianças saem heroínas e heróis de plástico ou papel, que viaja-
ram de muito longe e desembarcaram na janela da televisão. Na terra firme da fantasia
esses heróis fazem faxina, dirigem ônibus escolares, param para fazer a lição de casa ou
para comer o lanche do recreio.
Com seus personagens, elas se apropriam do mundo dos adultos, buscam
conhecimento, constroem criativamente a cultura da infância e produzem a sua maior
arte: a brincadeira.
Para pintar comigo as cores do brincar, convidei outros autores, com seus
tons e pincéis. Para enxergá-lo melhor, escolhi lançá-lo como um dado e contemplar
cada uma das suas faces, ciente de que o todo acontece mesmo é dentro do dado,
onde mora a alma de quem brinca.

A face azul do tempo 1


Cyrce Andrade é assessora na
criação de brinquedotecas; professora
em cursos, palestras e oficinas sobre
Primeiro cenário: a creche, muito simples, fica em uma grande favela. brinquedos e brincadeiras; mestre em
49
Na pequena sala um emborrachado colorido cobre todo o chão. Sobre ele estão Psicologia da Educação pela PUC-SP.

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alguns brinquedos. As crianças deste grupo começam a se firmar em pé e a ousar os
primeiros passos. Sentadas no centro do tapete, a educadora e sua auxiliar estendem
a mão a uma criança, enquanto a outra escala suas pernas, levantam uma terceira que
perdeu o equilíbrio, fazem cafuné em outra que cochila em um cantinho, acompanham
com o olhar outras tantas ao seu redor. Uma delas canta baixinho. “Não temos muitos
recursos aqui”, explica a outra, sem perceber o acolhimento proporcionado por seus
braços, pernas, olhares e toques. Sem se dar conta de que as constelações de crianças
se formam ao redor delas mais do que em torno dos brinquedos. Serenas, vão dan-
do intencionalidade e significado às expressões dos pequenininhos. Essa tranquilidade
parece trazer a todos um grande bem-estar e permite a descoberta das primeiras
brincadeiras: repetir sons, imitar melodias, esconder e achar pequenos objetos, subir,
descer, descobrir o corpo e o espaço.
Segundo cenário: as crianças são um pouco maiores, têm
menos de três anos. A creche, também simples, dispõe de mais re-
cursos. A educadora carrega pincéis para a mesa, separa os potes de
tinta, entrega o material às crianças e todos fazem uma breve ativi-
dade. Depois, recolhe tudo, lava na pia e sai com as crianças para o
pátio. Em menos de meia hora ela está de volta para as atividades de
música, depois quintal, depois rodinha, depois... Os olhos das crian-
ças expressam a inquietação delas. E também a da educadora.
O segundo cenário explicita uma ideia torta: crianças pe-
quenas têm curto tempo de atenção; portanto, tudo deve aconte-
cer em ritmo de videoclipe. Prioriza-se a atividade e não a criança.
CEMEI Maria O primeiro cenário mostra o foco na criança. Esse olhar
Fernanda Lopes Piffer, não é determinado pela presença maior ou menor de recursos, mas pelo respeito às
Bebedouro, 2007. necessidades da criança, pela liberdade no uso do tempo.
Crianças um pouco mais velhas do que as dos exemplos citados começam as
suas brincadeiras pela distribuição de papéis ou pela combinação das regras. Para isso
elas continuam precisando de um recurso valioso: o tempo.
O tempo de combinar a brincadeira possibilita a descoberta de que é possível
e necessário fazer acertos. A criança estende essa descoberta a outras situações do seu
dia a dia.
O tempo previsto para as brincadeiras deve considerar que crianças preci-
sam planejar, começar, criar, realizar, transformar e terminar suas brincadeiras. Isso
mostra o respeito ao processo como um todo e também a importância em se con-
50
cluir qualquer atividade.

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Quando perguntamos aos educadores o que lhe trouxe-
ram suas brincadeiras de infância, ouvimos muito sobre a alegria, o
companheirismo, a competição, a raiva, o joelho esfolado, a cumplici-
dade, o choro e o aprendizado em elaborar todos esses sentimentos.
Quando se retira ou se reduz o tempo da brincadeira, privamos as
crianças dessas imprescindíveis descobertas, de tudo aquilo que nós
próprios ganhamos brincando quando éramos pequenos.
Se o lúdico desperta, provoca, suscita, ele não pode ser
oferecido às crianças como recompensa, prêmio ou consolo, no
tempo que sobra para aquelas que terminam outras atividades
antes das demais. Afinal, se a brincadeira nutre as crianças de um EMEI Paulo Ferracini,
Sertãozinho, 2009.
alimento que não se encontra em outros contextos, privá-las de brincar é negar-
-lhes esse nutriente. Quando o castigo é a privação da brincadeira, nós desnutrimos
a criança. Da mesma maneira, não deveríamos deixá-la sem almoço. Há anemias
visíveis e invisíveis.
Se sabemos da importância da brincadeira, por que lhe reservamos o tempo
do fim do dia ou do fim da semana? Por que lhe é dado o tempo que sobra? Não seria
mais lógico tirar o brincar do final da lista das atividades previstas e apostar nas suas
possibilidades de integração, de criação, de descoberta, de encontro – da criança com
ela própria e com os outros?
Há experiências que indicam que estamos no bom caminho:
Pois é, a gente sempre deixa o lúdico para o final do dia ou para a sexta-feira.
Outro dia, quando eu experimentei os jogos como primeira atividade, des-
cobri que isso trouxe um outro clima entre as crianças. E foi muito mais fácil
fazer as outras atividades com a turma. (Professora de Educação Infantil da
Rede Pública da Cidade de São Paulo.)
As propostas lúdicas – em brincadeiras ou dinâmicas – têm sido um frequen-
te recurso na formação de educadores e, nesse caso, reconhecidas por todos como
prazerosas e eficazes. Por que é tão difícil dar ao brincar o seu lugar quando se trata de
crianças? Estaremos, como bem explicitou uma professora, “EMEFezando as EMEIs,
quando deveríamos EMEIzar as EMEFs”?, observando que as Escolas Municipais de
Educação Infantil vêm incorporando a oposição entre trabalho e lazer, tão presente
nas Escolas Municipais de Ensino Fundamental. A brincadeira e tudo aquilo que ela
nos proporciona, constituindo-nos como sujeitos desde a infância, não deveria ser um
direito só das crianças pequenas, mas é isso que estamos vendo acontecer. Não pode- 51

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mos perder de vista que o Ensino Fundamental de nove anos deve ser um ampliador
e não um redutor desse direito.
Hoje vivemos a inegável demanda de recuperar o poder sobre o nosso tem-
po, como aponta Rosiska Darcy de Oliveira (2003, p. 69).

Para trabalhar, uma mulher com filhos pequenos realiza prodígios de organi-
zação, e seu horário de trabalho é traçado pelo avesso das responsabilidades
domésticas (...). Ou, então, traça o horário de seus filhos pelo avesso do
seu, impondo involuntariamente às crianças um tempo integral de atividades
múltiplas, possivelmente úteis, mas que privam a infância dos insubstituíveis
tempos livres em que a criança por si mesma vai descobrindo o mundo.

A face vermelha da companhia


São as pinceladas de Anna Bondioli (1998) que dão os primeiros
tons à face essencial da companhia: “Se o adulto é o primeiro brinquedo (o
único objeto com o qual a criança pode experimentar seu próprio poder),
então as primeiras brincadeiras são constituídas por situações felizes compar-
tilhadas por adulto e criança” (p. 215). E, mais tarde, quando entram em cena
os brinquedos, a educadora observa “as atividades infantis aparentemente
situáveis em uma relação solitária entre a criança e objetos são dotadas de
qualidade sociais e de valores comunicativos” (p. 219).
Brincar é ainda o tempo de estar consigo mesmo, com o outro, com
o universo cultural em que estamos inseridos, de forma concreta ou simbólica.
EM Profa Lúcia Maria Vilar
Barbosa, Lorena, 2009. As crianças aprendem, transmitem, criam e recriam as brincadeiras
com crianças da mesma idade, mais velhas, mais novas e com os adultos. Brincar é a
forma de apropriação e produção de cultura das crianças, espaço de interação entre
pares, onde descobrem os outros e a si próprios, desvendam o mundo e deparam-se
com desafios. Entre eles, o desafio (e direito!) de poder estar quieta, de ter prazer em
ouvir, em observar, em contemplar, em sentir, de estar aparentemente passiva, sem ser
sempre interrompida por um adulto que lhe diga: vá brincar!

“Há momentos em que, serenas, ficam imóveis na praia, sobre um rochedo,


ocupadas em contemplar o mar, num jardim, olhando a folhagem das árvo-
res, as flores, os pássaros, as nuvens, ouvindo música, e nem sempre a músi-
ca de instrumentos, mas a música dos ruídos da vida”, diz a voz de Françoise
52 Dolto (1999, p. 116).

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Brincar é uma ação que também se expressa no ato de estar com alguém, de
estar com o outro ou com o grupo. Em pequenos grupos, as brincadeiras favorecem
o estreitamento das relações entre pessoas de qualquer idade e enriquecem a nossa
experiência humana. CEMEI Bruno Panhoca,
São Carlos, 2008.
Queremos que as crianças diversifiquem seus agrupamentos, mas
elas, como nós, escolhem companheiros diferentes para propostas dife-
rentes. Diversificando as propostas, favorecemos às crianças a escolha de

Maria Lúcia Medeiros


diferentes companheiros nas brincadeiras. Respeitando o seu direito de ter
por perto, por exemplo, o melhor amigo, as crianças de mesmo sexo...
Sempre se pode descobrir “um amigo para quebra-cabeças”, como me
revelou uma garotinha.
É transparente o prazer das crianças quando contam com a partici-
pação dos adultos ou dos adolescentes em seus jogos. Os adolescentes, por
sua vez, têm prazer em ensinar às mais novas ou em construir brinquedos
que possam ser usados pelos pequenos.
A participação de um adulto na brincadeira não significa intromissão.

Maria Lúcia Medeiros


Quando somos convidados ou aceitos, há senhas para autorizar a entrada:
“Você vai ser a filha.”, “Quantos anos você vai ter?”. Em vários momentos,
entretanto, as crianças preferem estar entre elas: “giram a chave” e criativa-
mente incrementam a cultura lúdica da infância.
As brincadeiras são um elo entre as gerações, entrelaçando uni-
versos de ontem e de hoje. É importante contarmos às crianças as nossas
brincadeiras. Elas lhes interessam também porque são de seus pais, profes-
sores ou amigos adultos. Da mesma forma, precisamos aprender com elas Formação de professores no
as brincadeiras de hoje. Muitas vezes elas nos parecem difíceis. Os cartões município de São Carlos, 2008.
de “Pokemon”, “Yu-gi-oh!” e “Magic”, por exemplo, não são facilmente de-
cifrados. Mas as crianças são compreensivas com as nossas dificuldades e,
no tema específico das suas brincadeiras, costumam ter enorme paciência.
Identificam, de forma diferenciada, os adultos que se interessam pelo mundo
das suas brincadeiras. Afinal, o companheirismo se dá também pelo envolvi-
mento com o universo lúdico infantil contemporâneo. A cultura lúdica é uma
rua de duas mãos.
Para as crianças, a presença de adultos na brincadeira é tão interes-
sante quanto o jogo em si. Os adultos têm diferentes significações ao longo da
vida dos pequenos e costumam desempenhar respeitável papel como tema EM Profa Lúcia Maria Vilar 53
nas brincadeiras de faz de conta. Barbosa, Lorena, 2009.

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Há muitas formas de estar presente: ser protagonista, brincar junto, com-
partilhar um olhar de cumplicidade – ele é um sinalizador discreto da presença.
O educador pode ficar receoso de reduzir a liberdade da criança que brinca. No en-
tanto, a autonomia das crianças não se dá pela ausência dos adultos, mas pela maneira
respeitosa de estar junto.
Diante do computador reconhecemos facilmente tudo o que as crianças nos
podem ensinar. Será que isso se deve ao domínio da informática? Ou isso se deve ao
que, há muito mais tempo, elas vêm nos mostrando nas suas brincadeiras: arte, cria-
ção, solução de desafios, imaginação, sua maneira inusitada de ver o mundo? Compar-
tilhar é poder ver mesmo aquilo que não pode ser ensinado.

A face laranja dos temas


– Tu queres dar uma volta na minha nave espacial? – pergunta Lucas a Cecília.
– Quero sim – diz ela, já subindo no cajueiro e sentando-se como ele,
com um galho entre as pernas.
– Vamos partir para Marte, segure-se – avisa ele.
– Nossa, quantas constelações! Veja a Lua! Os meteoros! – Ela não para
de comentar, entusiasmada, durante a “viagem”.
Assustado com o que ela “vê”, ele pergunta com ares de preocupação:
– Cecília, tu estás sabendo que isto aqui é um cajueiro, né?
Sua preocupação se fundamenta, Cecília não tem, como ele, quatro anos, mas
vinte e cinco. Talvez ele não se espantasse tanto se ela fosse uma menininha.
Ângela Borba (2006) nos traz os tons das brincadeiras de faz de conta:

O brincar abre para a criança múltiplas janelas de interpretação, compreensão


e ação sobre a realidade. Nele, as coisas podem ser outras, o mundo vira do
avesso, de ponta-cabeça, permitindo à criança se descolar da realidade imediata
e transitar por outros tempos e lugares, inventar e realizar ações / interações com
a ajuda de gestos, expressões e palavras, ser autora de suas histórias e ser outros,
muitos outros: pai, mãe, cavaleiro, bruxo, fada, príncipe, sapo, cachorro, trem,
condutor, guerreiro, super-herói... São tantas possibilidades quanto é permitido
que as crianças imaginem e ajam guiadas pela imaginação, pelos significados cria-
dos, combinados e partilhados com os parceiros de brincadeira. Sendo esses ou-
54 tros, definindo outros tempos, lugares e relações as crianças aprendem a olhar
e compreender o mundo e a si mesmas de outras perspectivas (p. 46-47).

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Crianças criam, inventam, imaginam e sabem onde estão. “Imaginação é eu
transformar – de faz de conta, né? – esta cadeira num barco. Mentira é eu falar que
meu pai tem duzentos ventiladores na casa dele, e ele só tem um”, esclarece Henrique,
do alto dos seus 5 anos.
Nas suas brincadeiras dão novos significados aos
objetos, imaginam e contextualizam suas representações no
mundo em que vivem:
– É sua filha? Ela vai à escola? – pergunta a edu-
cadora à menina de mais ou meninos cinco anos,
que veste uma boneca-manequim.

Maria Beatriz Cordeiro Mecca


– Não, ela é grande, já trabalha. – diz a criança.
– E o que ela faz?
– Faz faxina em casa de família. Tá com um
problema lá. Não querem pagar salário nem vão
assinar a carteira dela.
Dois elementos importantes do mundo do traba-
lho, a Carteira Profissional e o Salário Mínimo, integram as
representações dessa criança. EMEI Monsenhor Alcindo
Estava certa, Ruth Handler, criadora da boneca-manequim mais conhecida Siqueira, São Carlos, 2008.
do mundo, quando percebeu que “a experimentação com o futuro, a uma distância
segura, por meio de brincadeiras de simulação, é uma parte muito importante do de-
senvolvimento” (JONES, 2004, p. 104).
A concepção que temos do brincar e da criança está presente em tudo o que
EMEI Paulo Ferracini,
foi dito até aqui. A percepção que a criança tem do mundo social dos adultos aparece Sertãozinho, 2009.
nas suas brincadeiras de faz de conta. Diante dessas representações vêm à tona
nossas dificuldades de adultos educadores. Os temas que nos incomodam nas
representações infantis são, com muita frequência, aqueles que nos preocupam
no nosso mundo de gente grande: a violência, a sexualidade, a morte...
Tantas voltas deu o mundo e ainda não encaramos uma conversa
aberta sobre os temas menos açucarados do faz de conta. No âmbito da
teoria, há quase vinte anos estamos desconstruindo a infância idílica, conside-
rando efetivamente sua diversidade social e cultural. No cotidiano dos espa-
ços de educação infantil, as brincadeiras continuam sendo muito bem-vindas
55
quando retratam o mundo idealizado.

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As encenações do faz de conta também são bem-aceitas quando podem ser “inter-
pretadas”, muitas vezes de forma aleatória, atribuindo à família o modelo das representações
infantis, como se não houvesse outras fontes: a escola, a cidade, a televisão.
Certa vez, a professora passava pelo pátio onde, entre alguns brinquedos, estavam
crianças de outras turmas. Vendo uma criança repreender severamente a sua boneca, lançou
o comentário:
– Nossa! Que mãe brava tem essa filha!
Ao que a criança prontamente respondeu:
– Não é a mãe dela, é a professora!
Quando o tema da brincadeira é a morte, os adultos se assombram, tomam as
representações infantis até como mau agouro e, muitas vezes, as interrompem. Em um curso
de formação, durante a evocação de brincadeiras significativas da infância, uma professora
nos contou da morte sempre presente: seu pai era dono de uma funerária. Nas entregas, as
crianças disputavam quem iria dentro da urna, para assustar as pessoas nos carros vizinhos,
ao levantar a tampa do caixão.
No filme Kolya – Uma lição de amor (1996), há uma passagem que ilustra
lindamente todos os elementos presentes na brincadeira de faz de conta: Kolya, um
menino de cinco anos, acompanhante constante de Louka, violoncelista que toca
em funerais, representa a cena de uma celebração fúnebre. Seus recursos são uma
caixa de sapato, um boneco de teatro de sombras e uma peça de lingerie. Cada
Acervo pessoal de Niled Dias Toniolo, 2009.

um desses elementos tem um significado inusitado na apropriação que Kolya faz


do mundo de Louka. É isso que, na maioria das vezes, fazem as crianças. Imagino
como as assustamos quando nos assombramos com as suas representações.
No tema da morte, a simbolização é interrompida com “cruz-credos”.
Na representação da violência, as intervenções dos adultos são explícitas: retira-
se o objeto-símbolo; coloca-se a criança de lado “para pensar” e até “para rezar”,
diz-se que é “feio” brincar disso – entre inúmeras outras soluções apaziguadoras
das angústias dos adultos.
Em qualquer brincadeira, o adulto pode retirar o objeto que o inco-
moda, mas não pode retirar o seu significado. Vamos recordar uma história do
nosso cotidiano escolar... A criança está atirando com um revólver de brinquedo.
O educador recolhe a arma, e ela passa a atirar com escova de dente, biscoito,
chinelo. O educador recolhe tudo, e a criança nos aponta o dedo. Aí o educador não sabe
como continuar a história...
56 Vamos ver agora uma história nada cotidiana: a criança, com uma boneca-bebê
encaixada na cintura esquerda, brinca de passar roupa. O ferrinho de plástico cor-de-rosa

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desliza sobre a tábua de passar azul-celeste. Tudo tão sereno... Até que a professora, atenta,
vê o ferro de passar pousar no braço da boneca, acompanhado do som “tchi”. Opa! Isso não
é cena de livros infantis ou novelas. Sem saber o que fazer a professora, sabiamente, não se
manifesta, não intervém, não diz à criança que é feio brincar disso, não coloca a criança de
castigo. Leva essa brincadeira da maneira mais séria que poderia, busca ajuda para ajudar de
fato a criança. Toma uma atitude adulta, comprometida com o seu trabalho e com um mundo
menos violento.
A professora expõe o fato à coordenação, à direção, comentando suas preocupa-
ções. A partir daí os encaminhamentos são da escola como instituição. Serei sempre grata à
professora que me contou essa história, ela ilustra, como nenhuma outra do meu repertório,
a questão da violência na brincadeira.
Quando uma criança solicita um brinquedo, ou realiza uma brincadeira que nos
incomoda, é porque, de alguma maneira, ela precisa dele. Não basta negar, é preciso enten-
der as razões dos seus pedidos. Não basta eliminar o objeto, é preciso entender o que ele
significa. E isso só é possível se o fizermos com os olhos dela e não com os nossos.
Brincadeira e violência não dividem o mesmo espaço. Fazer de conta que bate é
muito diferente de bater realmente:

“A violência de faz de conta é um desenho animado do conflito: uma representação


da raiva, da irritação, da lealdade, da traição e do amor. (...) é uma expressão vívida,
apaixonada e, às vezes, completamente satisfatória dos relacionamentos”, como es-
clarece Gerard Jones (2004, p. 98).
No trabalho em hospitais vemos as crianças pedirem para ir para a sala de cirur-
gia vestidas de Super-homem ou Batman. A fantasia lhes confere poderes que não somos
capazes de calcular. Outras vezes, carregam os bonecos desses personagens nas mãos. Esta
segunda cena em nada difere daquela de um adulto com seu santo de devoção. Nos dois
casos o poder não está no boneco, mas no que ele simboliza, no que ele significa.
Ao eliminar o símbolo, não estamos dispersando as ansiedades das crianças. Elas,
muitas vezes, nem sequer estão ansiosas nas suas representações. Não seriam nossas essas
ansiedades? Ao intervir, estamos tirando das crianças maneiras de assumir o controle sobre
suas preocupações. Como a criança encontrará outro caminho, já que o brincar é sua forma
de expressão por excelência?
A nossa preocupação com a violência real é absolutamente pertinente e, nesse sen-
tido, são mais eficazes intervenções que orientem as crianças na resolução de conflitos:
A disputa entre duas crianças chama a atenção da educadora, que se aproxima 57
e pergunta o que houve:

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– Eu já estava aqui com a minha boneca quando ele chegou com os
brinquedos dele.
– Mas eu também quero brincar e este é um canto bom para a mi-
nha brincadeira.
– Vamos encontrar uma solução – diz a educadora. Você tem uma
ideia, Clara?
– Tenho. Ele vai embora. Eu cheguei primeiro.
– E você, João? Tem uma ideia?
– Tenho. Ela pode brincar de boneca em qualquer lugar, ela sai.
– Alguma outra ideia?
As crianças parecem pensar.
– Posso passear um pouco com a minha boneca, enquanto ele brinca.
– Eu posso emprestar algumas coisas para a casinha dela.
– Ele pode ser o pai, sai para trabalhar e volta.
Neste “eu posso”, “ele pode”, as crianças levantaram algumas propostas. A edu-
cadora pergunta qual das sugestões escolheriam para resolver o impasse. Surpresa, ouve:
– Por que você quer que a gente escolha? Você acha que não temos
muito mais ideias? Temos sim!
E continuaram a elencar possibilidades...
O desafio da educadora havia se transformado numa grande brincadeira,
num disparador de ideias. Mas isso aconteceu por acaso. Intencional mesmo foi a sua
EMEI Paulo Ferracini, forma de intervir: não puniu as duas crianças, recolhendo os brinquedos, cena que ve-
Sertãozinho, 2009. mos com frequência, não privilegiou uma delas, não tomou ela própria
a decisão. Sabemos que em uma sala não estão apenas duas crianças.
Onde estavam as outras? Algumas estavam desenrolando suas próprias
brincadeiras. Pelo menos oito pararam para acompanhar a conduta da
educadora, na expectativa do desfecho da história. Provavelmente, não
será da próxima vez que as crianças usarão esse recurso, mas não há
dúvida de que elas aprendem conosco a resolver impasses. O uso regu-
lar de uma intervenção como essa transforma as atitudes das crianças,
tornando-as mais autônomas nas suas ações.
Bem diferentes são as reações quando a brincadeira faz referência
58
à sexualidade. Situações de faz de conta, como meninos vestidos de me-

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ninas, representações ou referências verbais à vida privada de um casal, perguntas como
“Pode ter duas Barbies na mesma cama?” provocam risos contidos e discretos convites a
outros adultos para que compartilhem a cena. São valorizadas as meninas que brincam com
papéis “masculinos” e, contrariamente, desvalorizados os meninos que representam papéis
femininos. As reações aqui são muito mais veladas. Quando a representação faz qualquer
alusão à homossexualidade, a postura preconceituosa dos adultos se escancara.
Certa vez, uma das professoras chegou mais cedo para o curso de formação.
Ela trabalhava com crianças de cinco anos e queria compartilhar uma preocupação.
Entre seus alunos havia um menino que, com muita frequência, representava papéis
femininos nas suas brincadeiras, preferia também a companhia das meninas e tinha
comportamentos mais “femininos” fora desse contexto. Conversamos alguns minu-
tos, falamos da postura das demais crianças, já muito crítica e carregada de ironias.
A educadora me pareceu, de fato, despida de julgamentos, atenta e disposta a uma
ação que, como expressou, “fortalecesse” aquela criança. Parecia-me segura também
na condução das demais crianças e do grupo. Depois de alguns minutos
de conversa, chegou à sua real angústia: como enfrentar as colegas e seus
risinhos e piadas constantes sobre esse menino? Como libertar essa criança
dos comentários maldosos pelos cantos da escola?
Estou certa de que essa educadora não descreveu nenhuma cena
inédita, todos nós já nos deparamos com ela. Não é diferente no mundo
fora da escola, mas dentro desses muros somos educadores e responsáveis
por todos os valores que transmitimos por palavras, atos e omissões.
Essas inquietações são um provocativo convite ao que os edu-
cadores têm de melhor: a capacidade de reflexão, o direito ao estudo, a
possibilidade de partilha com os colegas e, ainda, a riqueza do dia a dia com
as crianças. Pois estas
EMEI Paulo Ferracini,
querem ser fortes e felizes ao mesmo tempo que se sentem seguras. Se Sertãozinho, 2009.
prestarmos atenção, veremos que as fantasias delas expressam o que acham
que precisam atingir. Mas precisamos olhar além das nossas próprias expec-
tativas e interpretações adultas e enxergá-las através dos olhos de uma crian-
ça. Primeiro precisamos começar a desembaraçar os medos e preconceitos
que nos impedem de fazê-lo (JONES, 2004, p. 23).

A face verde do espaço


O espaço destinado ao brincar retrata a proposta conceitual, explicita a in-
59
tencionalidade. Não é possível, por exemplo, planejar espaços que visem à autonomia

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da criança se as prateleiras não forem acessíveis a ela, à sua altura. Relacionamos a
brincadeira à imaginação, à criação, à versatilidade; portanto, seria interessante que os
espaços do brincar fossem flexíveis. As crianças não precisam de uma casinha de tijolos,
com dois metros de altura – afinal, nossas paredes apenas sinalizadas com um traço
de giz no chão sempre foram bastante respeitadas, entrávamos e saíamos pela “por-
ta”, indicada pelo risco interrompido. Assim, algumas divisórias baixas, com as quais as
crianças possam construir casas, bancos, farmácias e mercados, são mais convenientes,
mais criativas, mais brincantes. São também mais coerentes com um olhar sobre o
brincar que o vê como atividade criadora, de investigação e descoberta. Antes de qual-
quer intervenção arquitetônica ou de mobiliário no local, precisamos ter clareza dessas
questões, pois elas vão apontar a intencionalidade no uso do espaço.
É essencial considerar a iluminação, o barulho, a quanti-
dade de crianças. O espaço lúdico não é cenográfico, haverá crian-
ças nele. Crianças que movimentam ideias, braços, joelhos. Bem
pensado, o espaço pode ser um facilitador da brincadeira: há como
criar cantos aconchegantes, áreas mais privadas ou áreas de concen-
tração, como as mesas, por exemplo, que dão “foco” ao tabuleiro
de jogo. Há como reinventá-lo nos diferentes momentos do dia e
transformá-lo com as crianças.
A organização, moldura necessária para a criação, é im-
prescindível.
E rever as normas de funcionamento em uso é um fasci-
nante desafio, como nos mostram as crianças do seguinte relato:
EMEI Paulo Ferracini,
Sertãozinho, 2009. Naquela tarde eu estava sozinha com as crianças na brinquedoteca, a edu-
cadora havia saído e eu deveria ensinar gamão para algumas crianças que já
tinham me pedido isso há algumas semanas. Sentada em uma mesinha, entre
dois meninos, abri o tabuleiro. Antes que eu começasse, chegou um terceiro:
– Me esperem! Eu também quero aprender.
Um dos que já estavam na mesa interveio:
– Não vai dar.
E dirigindo-se a mim, explicou:
– Temos uma regra. Ele só pode vir brincar com a gente quando guardar
o brinquedo que estava usando. Só pode pegar um segundo jogo, quando
60
guardar o primeiro. E não vai dar tempo.

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Não daria mesmo, o menino havia montado uma casinha, riquíssima em
detalhes. Sala, quarto, cozinha, panelinhas... Ele próprio olhou tudo aquilo,
olhou para o gamão sobre a mesa e, subitamente, seus olhinhos se acende-
ram. Dirigindo-se à menina, que preparara uma casinha ao lado da sua, disse:
– Flávia, minha comadre, toma conta da minha casa, que eu estou saindo
de férias. Logo, logo eu volto. Obrigado.
E, voltando-se a nós, esclareceu:
– Pronto, já resolvi. Agora vamos jogar!
Uma trapaça? Não, em nenhum momento ele disse que não guardaria os
brinquedos da casinha. Para aproveitar o momento de aprender um novo jogo, encon-
trou, entre a ficção e a realidade, uma solução inteligente. E cada vez que o via, sema-
nas depois, jogando gamão, pensava no bom uso que havia feito das suas “férias”.
O principal objetivo da organização é a autonomia, de quem usa e de quem
cuida. Ela não precisa ser o paraíso das crianças e o inferno dos adultos. Os cuidados
compartilhados geram cumplicidade, e não precisamos gerar uma
neurose. No mundo do faz de conta, carrinhos costumam passe-
ar pela cozinha, ao menos para fazer entregas de supermercados.
O dinheiro de papel de um jogo será útil na quitanda e o que vai
para o forno da casinha não derrete de verdade. A inflexibilidade,
sim, estressa e derrete nossos miolos. Ela está relacionada ao fato
de, algumas vezes, aquele ser um espaço não “para brincar”, e sim
um cenário idealizado por adultos para ser por eles contemplado. E
visitado por outros adultos: “Oba, hoje tem visita, a gente vai ver a
brinquedoteca!”, deixou escapar o menino radiante.
O espaço que acolhe o brincar revela os traços e rastros
deixados pelas crianças que brincam ali.
EMEI Paulo Ferracini,
Sertãozinho, 2009.
A face amarela dos brinquedos e jogos
Os brinquedos chegam às crianças, pela primeira vez, mediando a relação
com o adulto, em geral a mãe, quando ainda bebês. Ele começa a participar de um
“triálogo” e ganha significado porque foi apresentado à criança nesta relação entre
pessoas, está inserido em um universo particular. Quando o foco de um bebê passa
da sua boca para as suas mãos, os objetos ao seu redor começam a despertar seu
interesse. Esses objetos retratam o contexto cultural, o momento histórico, a socie-
61
dade na qual se inserem.

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A idealização da infância, como um tempo idílico, projeta-se nos brinquedos
de maneira indissociável. No momento de uma faxina anual no acervo, uma educadora
expressou a sua perplexidade:
“Brinquedo é coisa que a gente pode jogar fora?!”
E do que estava se desfazendo não eram brinquedos, eram restos do que
um dia havia sido um brinquedo.
Ela não era a única a se inquietar com a situação. Nas campanhas de arre-
cadação de brinquedos, aprendi como a classe média resolve essa questão. E como é
trabalhoso para as comunidades de baixa renda, receptoras por excelência dos brin-
quedos usados, separar o joio do trigo. Dois olhares se cruzam de maneira equivocada:
“as crianças são sempre muito criativas” e “tudo serve para quem não tem quase nada”.
As campanhas podem ser eficazes, mas é preciso que se explicite o que se quer, que
se direcionem as solicitações ou, no caso específico de brinquedos, não haverá lugar
para tantas pelúcias, campeãs nas arrecadações.
Temos hoje uma sociedade marcada pelo consumo e isso aparece, obviamen-
te, em alguns exagerados acervos caseiros de brinquedos. Mas a característica consumis-
ta não é da criança, ela está inserida nesta sociedade e, longe de ser vilã, é vítima.
No espaço doméstico, a composição de um acervo de brinquedos
depende da peculiaridade de cada família, quando ela dispõe de recursos
Acervo pessoal M. Lúcia Medeiros, 2006.

financeiros para isso, sem nos esquecermos de que, mesmo não dispondo,
estão igualmente sujeitas ao forte apelo da mídia.
Nos espaços coletivos, a composição do acervo explicita a pro-
posta lúdica. Ela é nítida e pode ser percebida tanto pelos itens incluídos
como por aqueles excluídos, tanto por sua qualidade e quantidade quanto
pela maneira como é apresentado e está disponibilizado às crianças. Nesse
sentido, a seleção e a organização dos brinquedos devem ser estudadas,
discutidas e, só depois, concretizadas. Quantas e quantas vezes começa-
mos de trás para a frente!
Compor um acervo supõe critérios e cuidados objetivos e subjetivos.

Critérios e cuidados na composição do acervo


Alguns critérios na seleção de brinquedos são frequentemente considerados: a
faixa etária das crianças; a possibilidade de representação do mundo adulto; o favorecimento
de aspectos do desenvolvimento da criança – observando-se aqui uma ênfase exagerada ao
62
aspecto cognitivo. A possibilidade de confecção de alguns itens também é analisada, pensan-

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do-se na economia de recursos financeiros. No entanto, o maior ganho na construção dos
brinquedos está no significado do processo de produção para o grupo.
Muitas vezes, a realidade em que vivem as crianças é levada em conta mais
para reduzir o repertório de brinquedos do que para ampliá-lo, quer seja no sentido
de retirar das crianças mais ricas os brinquedos singelos, como se eles não lhes inte-
ressassem, quer seja para retirar das crianças pobres brinquedos “sofisticados”, muitas
vezes definidos assim exclusivamente pelo seu alto custo.
O número de crianças que vão usar o acervo raramente é conside-
rado na sua composição. Estudos sobre essa relação de quantidade são pouco
conhecidos e não são considerados nem como referência. Devemos esses
dados aos trabalhos publicados na área de brinquedotecas. Jean Vial (1981)
propõe a relação de quatro brinquedos por criança assídua (p. 127).
Às vezes, a quantidade diz respeito ao próprio brinquedo: os blocos de
construção – exceto quando solicitados diretamente ao fabricante – não estão
previstos para um uso coletivo de muitas crianças ou grandes construções, o que
ocorre com frequência no espaço educacional. A maior quantidade de blocos Brinquedo artesanal de Miriti
desperta as crianças para as curiosas edificações em grupo. Outro exemplo: no mundo de Belém - PA, 2005.
dos adultos, o telefone funciona se houver dois aparelhos. Sem subestimar a capacidade
imaginativa da criança, que pode representá-lo com um toquinho de madeira, chamo a
atenção para a ânsia de diversificação dos objetos que, muitas vezes, desconsidera a inte-
ressante presença de dois ou mais brinquedos iguais. O mesmo acontece com as bone-
cas-bebê iguais ou bem semelhantes, que ajudarão a socialização entre crianças
pequenininhas, que se aproximam por imitação. Muitas vezes, uma composição
inadequada do acervo pode ser um fator gerador de conflitos entre as crianças,
em vez de favorecer sua integração.

Fotos: acervo pessoal M. Lúcia Medeiros


Se jogos didáticos estão amplamente presentes nos acervos, o mesmo
não se pode dizer daqueles que dão susto, provocam riso ou gritaria e trazem
prazer, alegria e diversão. A novidade, que desperta grande curiosidade nas crian-
ças, é quase sempre vista com receio pelos educadores. Leva-se muito tempo
entre o lançamento de um brinquedo interessante e a sua integração a um acer-
vo institucional. Quantas vezes, na impossibilidade de lidarmos com as “febres”,
que se alastram rapidamente das escolas particulares às públicas e comunitá-
rias, proibimos esses brinquedos no espaço educacional. Os “decks de cards”,
por exemplo, são os brinquedos interditados de hoje, como o foi há alguns
anos o Tamagochi, que precisava ser “alimentado” para não “morrer”. Não
63
há outra forma de se lidar com a cultura lúdica extramuros dentro da escola?

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A escola não precisa, nem deve se apropriar dela, mas não expulsá-la seria uma con-
quista na relação entre o adulto e a criança.
A relação qualidade e custo precisa ser levada em conta, um acervo com itens
de qualidade pode significar muita economia a longo prazo. Não precisamos sempre
optar pelo básico, pelo mais simples. Alguns brinquedos e jogos com alta qualidade
estética trazem outro tipo de contribuição: é essencial conviver com a beleza do traço,
a densidade da cor ou da textura, a harmonia da composição, a delicadeza sonora.
Às vezes, projetamos no jogo princípios que gostaríamos de transmitir às crian-
ças. E atribuímos ao brincar poderes mágicos que ele não tem. Não é porque agre-
gamos a ele conteúdos ou valores, como a cooperação, por exemplo, que a criança
vai incorporá-los. Tenho visto reações competitivas em torno de jogos de tabuleiro de
cooperação tantas vezes quanto tenho visto atitudes cooperativas diante de jogos de
tabuleiro competitivos. Essas duas estruturas de jogo são igualmente importantes, pois
nos permitem, na segura situação da brincadeira, experimentar atitudes. As crianças
aprendem o mundo – é importante salientar – menos pelos seus brinquedos e jogos e
mais pelas relações humanas que a cercam. Como nos diz Adelin Rosseau (1989):

Os jogos de cooperação são um instrumento importante, revelam valores


que a criança possui em si, mas a educação para a cooperação se fará prin-
cipalmente pelo modelo cooperativo vivido entre os adultos (na família, na
escola, nos espaços de lazer e cultura) e, sobretudo, pela relação entre o
adulto e a criança, cada um com suas qualidades e seus limites contribui para
a realização de um projeto comum em benefício de todos (p. 37).
Na composição do acervo precisamos considerar a diversidade dos brinque-
dos: originários de culturas diferentes e produzidos por meio de processos diversos
– industrializados, artesanais, feitos por profissionais, pelas crianças, pelos pais. Sem
esquecer que a importância de um brinquedo no acervo se revela pelo lugar que ele
vai ocupar entre os demais.
As solicitações das crianças devem ser tão consideradas quanto as sugestões
de especialistas, as consultas a catálogos, a lojas, a feiras do setor, a sistemas de clas-
sificação de brinquedos e jogos, a sites, a outras creches, escolas ou brinquedotecas.
Nestes três últimos casos, temos a vantagem de ver o brinquedo em uso.
O brincar e os brinquedos são vistos pela criança como seu domínio. Isso
favorece as suas sugestões – em geral, bastante pertinentes –, que depois podem
64 estender-se a outras áreas.

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Há cuidados relativos à segurança que devem ser levados em conta: o des-
conforto de brinquedos com ruídos exageradamente fortes; o risco de um brinquedo,
inteiro ou quebrado, cortar, furar ou machucar, como, por exemplo, rodas de carrinhos
malfixadas, objetos de madeira mal-lixados, com quinas não arredondadas ou farpas. As
crianças menores exigem uma atenção especial: podem ingerir ou colocar nas narinas
ou ouvidos peças ou parte do brinquedo como, por exemplo, olhos de ursinhos de
pelúcia malfixados, enchimentos que podem vazar; podem se asfixiar com sacos plásti-
cos; podem se intoxicar quando a pintura não é atóxica, em especial os bebês; podem
se enroscar em cordões com mais de 30 centímetros ou se machucar com fios muito
finos. É imprescindível considerar a manutenção regular de brinquedos ao ar livre – es-
corregadores, gangorras, trepa-trepa – e, ainda, a necessidade da presença do adulto
em brinquedos com água, risco de fogo, mecanismos elétricos, entre outros.
Quanto à conservação de um acervo de uso coletivo é fundamental pon-
derar que seu uso é bastante distinto daquele feito por poucas crianças no espaço do-
méstico. É necessário levar em consideração a qualidade do produto, sua durabilidade,
seus encaixes, as possibilidades de limpá-lo e lavá-lo, a probabilidade ou não de repor EMEI Ana Casaline,
Sertãozinho, 2009.
suas peças e consertá-lo. Há também ações preventivas para a manutenção:
o reforço ou substituição das embalagens originais, a fotocópia de regras de
jogos, a plastificação de cartas, o acondicionamento de pequenas peças em
saquinhos, a escrita, desenho ou foto do conteúdo da caixa na tampa do jogo,
a criação de uma caixa para guardar as peças avulsas...
No início dos trabalhos na Brinquedoteca Peteca, na Rocinha, depa-
rávamo-nos sempre com peças perdidas pelos cantinhos da sala. Por mais
cuidadosos que fôssemos – crianças e adultos – havia, inevitavelmente, pe-
cinhas que escapavam, fugiam, voavam... Para elas criamos a “Caixa OVNI”,
que abrigava esses “objetos voadores não identificados”. Geramos, assim,
uma solução intencional: na falta de um dado ou outro pequeno objeto, a
caixa era o primeiro lugar de busca. Geramos, sem nenhuma intenção, uma EM Profª Lúcia Maria Vilar
brincadeira desafiadora no grupo das crianças mais velhas: “De onde é essa Barbosa, Lorena, 2009.
peça?”; começava a gincana para se saber quem conhecia melhor o acervo
da brinquedoteca.
As formas de organização dos brinquedos contribuem para o de-
senvolvimento da autonomia da criança: na escolha, no acesso, na busca, na
caixa dos objetos perdidos. A classificação e a organização visam à autonomia
da criança e do educador. Mesmo que códigos de classificação nem sempre
65
sejam registrados nos objetos, há sempre uma classificação presente na forma

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de organizar o acervo. As anotações da classificação são facilitadoras da conferência,
manutenção e, especialmente, da expansão e reposição do acervo.
Definir critérios e cuidados na escolha do acervo é tão importante quanto
respeitar as diferentes razões das crianças para a escolha dos seus brinquedos, em
especial, para a escolha do mesmo brinquedo repetidas vezes. Talvez porque tenhamos
tido tanto cuidado em lhes oferecer um amplo repertório, não aceitamos facilmente
sua “repetição”. Enquanto brinca, a criança dá novos significados a elementos da cultura,
elabora sentimentos, amplia sua compreensão do mundo; portanto, não se repete.
Como o Homem, ela não toma banho duas vezes no mesmo rio. Muda
o Homem e muda o rio, não é isso que nos dizia o filósofo Heráclito?
Ainda atentos às razões das crianças, é preciso que tenhamos
cuidado com intervenções do tipo: “Empreste o brinquedo para o cole-
guinha, você não está brincando mesmo!”. Muitas vezes o brinquedo tem
um importante significado afetivo, de vínculo.
Com todos os cuidados que possamos ter com um acervo de
brinquedos e jogos, é preciso ter uma postura crítica com relação à sua
supervalorização. Em algumas propostas, o lúdico encontra-se centrado
demais nos objetos, em detrimento do ato de brincar.
Cemei Cacilda de Carvalho
Caputo, Bebedouro, 2007. A face violeta do repertório
Os adultos compartilham no dia a dia o seu repertório de brincadeiras.
Fazem isso na família, na rua, no trabalho, diante de um pequeno aceno das crianças:
– Papai, me ensina uma brincadeira de quando você era pequeno?
Na fila do hospital, uma pequena chora no colo da sua mãe. A vizinha ao
lado cantarola para ela uma cantiga.
Na portaria do prédio, o menino não para quieto. O zelador lhe pergunta:
– O que é, o que é que quanto mais cresce mais perto do chão fica?
Ele responde e lança outra adivinha.
O senhor, sentado no ônibus, vê entrar uma senhora e sentar-se no ban-
co à sua frente. Do seu colo salta um pequerrucho que, segurando no en-
costo do banco, vira-se para trás. O senhor lança uma piscada de olhos. A
criança tenta imitá-lo.
As crianças agregam ludicidade ao seu dia a dia, nos momentos em que ca-
66
minham na rua, escovam os dentes, colocam a mesa. Adultos também brincam com
as palavras e “ludificam” pias entupidas de louça.

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Do que é feito esse repertório? Do que alegra o coti-
diano, do acervo da própria infância, acrescido do que aprende-
mos ao longo da vida com crianças ou outros adultos. Algumas

Maria Lúcia Medeiros


brincadeiras são sazonais, reaparecem com a chuva ou o vento.
Outras voltam e dão aos adultos o prazer de mostrar suas habi-
lidades no ioiô, no bambolê, no diabolô...
Certa vez, uma educadora expressou um desejo legíti-
mo para quem está todos os dias, horas a fio, com as crianças:
– Eu queria saber todas as brincadeiras do mundo!
Alguns anos atrás ela foi bem pequenininha. Quando
descobriu que os objetos não evaporavam quando sumiam do
seu campo de visão, começou a brincar de esconder e achar o rosto das pessoas CEMEI Bruno Panhoca,
São Carlos, 2008.
queridas, os bichinhos de plástico. Também se assustou com o “Miau!” do “Atirei o
pau no gato”. Mas isso foi só nas primeiras vezes, depois começava a rir bem antes,
prevendo aquele final apoteótico. Como ela gostava dessa repetição! Ainda bem
pequena, era só expressão e movimento. Havia muita alegria nesses gestos, explica-
nos Heloysa Dantas (1998): “a ludicidade da motricidade infantil – marcada por uma
expressividade que supera de longe a instrumentalidade – é raramente reconhecida
e respeitada” (p. 115).
Logo a criança alcança o mundo e, nos tons de Françoise Dolto:

Ter, perder, reencontrar, fazer, desfazer, refazer de outra maneira, criar, descriar,
recriar as relações com os seres e com as coisas infindavelmente, eis o que pare-
ce sempre novo e fascinante nos jogos dos humanos em busca de seu prazer e
da conquista em si mesmos de possibilidades sempre renovadas (1999, p. 115). EM Profa Lúcia Maria Vilar
Barbosa, Lorena, 2009.
Um dia essa criança descobre que ter um brinquedo nas
mãos atrai os seus pares, porque “sabe” que um brinquedo nas mãos é
mais brilhante que um brinquedo na caixa. A disputa é uma das formas
de entrar em contato com outras crianças. Há um momento em que
ela não distingue o que “é ela” do que “é dela”. Por isso, a retirada do
objeto provoca o choro de uma amputação. As sutilezas desses primei-
ros anos são encantadoras e nos desafiam na sua compreensão.
No faz de conta, que desabrocha riquíssimo de imagens, o
adulto tem importante papel, como nos revelam os pincéis de Bandet
e Sarazanas: 67

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João Paulo, de 6 anos, tinha um automovelzinho vermelho, lindo, de cordas.
Brincava sozinho em pleno verão, num campo pejado de papoulas em flor.
Vinte vezes deu corda ao brinquedo e outras tantas o largou no carreiro que
ladeia os campos. Depois, olhou para o carro, voltou-o nas mãos várias ve-
zes, meteu uma pedrinha dentro, hesitou... De repente, sentou-se no talude,
apanhou uma papoula, voltou-lhe as pétalas, tirou do bolso um elástico fino
que, em breve, serviria de cinto à improvisada boneca. Instalou a criaturinha
morena e vermelha no carrinho, deu corda ao carro e ei-lo a correr no
carreiro! Faltava-lhe um passageiro para o carro: o brinquedo, apesar de tão
perfeito, precisava de um acessório (1973, p. 55).
A figura humana, companheira, torna-se também adversária quando, em torno
dos quatro anos, começam a aparecer os primeiros jogos em grupo – e misturam-se ao faz
de conta. O desafio de entender e de combinar regras com as demais mostram as crianças
capazes de se ver em outros papéis, de tomar decisões e desenvolver sua autonomia. As
regras já estavam presentes nas representações da brincadeira simbólica, mas diziam respei-
to à sociedade, à encenação do mundo adulto, como salienta Vygotsky (1984). Os tabulei-
ros criados para as crianças pequenas, por exemplo, são belos e atraentes: eles encarnam o
aparecimento das regras do jogo sobre uma história carregada de fantasia.
Com o tempo, os tabuleiros ganham outros interesses: a estrutura, os desa-
fios, os adversários-parceiros. Com eles descobrimos que

jogar pode nos levar – ou nos trazer – para além da brincadeira, mas, mesmo
que isso não aconteça de forma explícita, não será nunca apenas brincar, só
jogar. Rir, aceitar limites, organizar uma tarefa, concentrar-se, disputar, es-
tar atento, sentir frio na barriga, raciocinar, pensar, gargalhar, competir com
os outros e consigo próprio, ser curioso, ter prazer, cooperar, descobrir-se
na relação com os outros, ser ágil, surpreender-se com a atitude do outro,
emocionar-se... Difícil esgotar a riqueza de contribuições que os jogos po-
dem trazer para o desenvolvimento humano de seres pequenos, médios ou
grandes (ANDRADE, 2008, p. 61).
Toda esta história começou com a professora querendo saber todas as brin-
cadeiras do mundo. Do que poderiam ter sido os fios das suas memórias, fomos
trançando a evolução do brincar. Com isso, percebemos a necessidade de conhecer a
criança que brinca. Sem esse conhecimento, as brincadeiras correm o risco de se de-
sencontrarem das crianças. O desinteresse dos pequenos é, com frequência, um bom
sinal de que não fizemos a escolha mais acertada. A adequação é fundamental quando
68
pensamos um repertório de brincadeiras para crianças.

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Formação de
professores
no município Prof. Enedir
de São Sampaio, EMEI,
Carlos, 2007 Braúna, 2012

No universo da Internet, por exemplo, podemos encontrar “quase” todas as


brincadeiras. Mas é importante que o educador se aproprie desse repertório, como
sugere Francisco Marques (Chico dos Bonecos):

As palavras ‘molde’ e ‘receita’ não possuem, para mim, nenhuma relação


com autoritarismo, mecanicismo, alienação. Para mim, ‘receita’ e ‘molde’
são, na culinária, na costura, na vida, na escola, pontos de partida, linhas de
largada, convites para a invenção e a irreverência. Copiar, imitar e remedar
são momentos essenciais no processo de construção da nossa autonomia, da
nossa autoria (MARQUES, 2003, p. 47).

A face brilhante do dado


Para decifrar essa face, vamos tomar emprestada a tinta dourada trazida por
Wallon: “A criança não sabe senão viver a sua infância. Conhecê-la pertence ao adulto.
Mas o que é que vai prevalecer neste conhecimento: o ponto de vista do adulto ou o
da criança?” (1981, p. 27).
A primeira aproximação do ponto de vista da criança se dá pela apropriação
que o adulto faz da sua própria infância, das suas brincadeiras e seus brinquedos. Mais
do que um repertório, esse é um patrimônio cultural imprescindível na constituição do
profissional que atua com crianças.
A segunda aproximação se dá pelo conhecimento, pelo estudo. Sem as tin-
tas, pigmentos e pinceladas de outros “pintores da infância”, como dar cores ao nosso
trabalho? Os estudiosos aqui citados nos ajudaram na construção das faces deste dado.
Sem as suas contribuições este texto seria impossível. Incluo aqui as contribuições das
crianças, seus educadores e suas histórias – e a importância de registrá-las. Estudar a
69
criança é respeitá-la. É abraçar com compromisso a profissão que escolhemos.

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A terceira aproximação do ponto de vista da criança se dá pela busca do
lúdico no mundo adulto:
Quando um adulto explicita sua sensação, dizendo “Foi muito bom brincar, eu
me senti criança outra vez!” ou “O curso despertou a criança guardada em mim”,
pode-se entender seu sentimento menos pela criança e pelo brincar e mais pelo
humano e pelo lúdico. O diálogo que se estabelece aqui é menos com “a criança
que existe dentro de cada um de nós” do que com o humano que nos constitui
(ANDRADE, 2008, p. 61).
Para mudar a qualidade das nossas ações com as crianças precisamos, cer-
tamente, de uma boa reflexão acerca do lúdico, da imaginação e da criação no nosso
mundo de adultos-educadores. Devemos, sobretudo, percebê-lo como imprescin-
dível na vida. Assim, traremos o foco sobre todos nós – crianças e adultos –, sujeitos
investigadores, inventores, autores da nossa história, produtores de cultura, de arte,
capazes de transformar pedras em dinossauros e sementes em estrelas, pois também
a alma do adulto brincante mora dentro de um lúdico dado de muitas faces e cores.
Maria Beatriz Cordeiro Mecca

EMEI Monsenhor Alcindo


Siqueira, São Carlos, 2008.

R e f e r ê n c i a s
ANDRADE, Cyrce M. R. Junqueira de. A formação lúdica do professor. Programa Salto
para o Futuro/TV Escola. Série Jogos e Brincadeiras: desafios e descobertas. Brasília/
Rio de Janeiro, maio, 2008 (2a edição). Disponível em: http://www.tvebrasil.com.br/
saltoparaofuturo.
BANDET, Jeanne; SARAZANAS, Réjane. A Criança e os brinquedos. Lisboa: Editorial
Estampa, 1973.
70 BONDIOLI, Anna. A dimensão lúdica na criança de 0 a 3 anos e na creche. In: BON-

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DIOLI, Anna; MANTOVANI, Suzanna. Manual de Educação Infantil: de 0 a 3 anos.
9. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
BORBA, Ângela Meyer. A brincadeira como experiência de cultura. Programa Salto
para o Futuro/TV Escola/MEC. Série O cotidiano na Educação Infantil. Boletim 23, nov.
2006. Disponível em: http://www.tvebrasil.com.br/salto.
DANTAS, Heloysa. Brincar e trabalhar. In: KISHIMOTO, Tizuko Morchida (Org.).
O brincar e suas teorias. São Paulo: Pioneira, 1998.
DOLTO, Françoise. As etapas decisivas da infância. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
JONES, Gerard. Brincando de matar monstros. São Paulo: Conrad, 2004.
MARQUES, Francisco (Chico dos Bonecos); ANDRADE, Cyrce. Brinquedos e brin-
cadeiras: o fio da infância na trama do conhecimento. In: DIAS, M. C. M.; NICOLAU,
M. L. M. (Org.). Oficinas de sonho e realidade na formação do educador da infância.
Campinas: Papirus, 2003.
OLIVEIRA, Darcy de Rosiska. Reengenharia do tempo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. (Série
Ideias Contemporâneas).
ROSSEAU, Adelin. Une invitation à découvrir... les jeux coopératifs. L’Enfant, n. 3, 1989.
VIAL, Jean. Jeu et education: Les ludothèques. Paris: Presses Universitaires de France,
1981.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70, 1981.
Filme
Kolya – Uma lição de amor. Direção de Jan Sverák. República Tcheca 1996.

71

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III. O brincar com as múltiplas
linguagens na educação infantil
Marina Célia Moraes Dias1 2
A aquisição da linguagem é uma das principais tarefas do desenvolvimento
infantil. Ela se desenvolve e se constitui desde a mais tenra idade pela participação da
criança na vida social, na interação com adultos e pares mais proficientes em práticas
de linguagens. Partimos de uma concepção de linguagem que não se restringe apenas
à fala, mas a todo sistema simbólico integrado por múltiplas linguagens que permite a
criança se apropriar da cultura e recriá-la.
Nascida em um contexto social e cultural, a criança desenvolverá sua hu-
manidade pelos atos de linguagem. As relações estabelecidas entre a criança e o uso
das palavras e outras linguagens transcendem o simples aprendizado e são formas
de estar no mundo (BATTAGLIA; DIAS, 2007). Ligando gestos, imagens e falas,
abrindo caminhos, a linguagem inaugura a possibilidade de a criança fazer sentido do
mundo que a rodeia. Nesse espaço de ação, expressão e interlocução, a criança que
fala e brinca se reconhece atuando sobre o mundo, sobre o outro e sobre si mesma
(DIETZSCH, 1999).
Muito cedo os bebês emitem sons articulados que lhes dão prazer e que
revelam seu esforço para comunicar-se. Os adultos e crianças mais velhas interpretam
essa linguagem peculiar dando sentido à comunicação dos bebês. A construção da lin-
guagem oral implica, portanto, a verbalização e a negociação de sentidos estabelecidos
entre pessoas que buscam comunicar-se. Ao falar com os bebês, geralmente utilizamos
uma linguagem simples, breve e repetitiva, que facilita o desenvolvimento da linguagem 1
Marina Célia Moraes Dias
e da comunicação. Ao mesmo tempo, os bebês são expostos à linguagem oral em toda é Professora Doutora da
Faculdade de Educação da USP,
sua complexidade nas situações de vida cotidiana. Na hora das refeições, por exemplo, pesquisadora da formação do
o adulto, aproximando-se da criança, fala: “Você está com fome... Vou preparar uma educador da infância. Autora da
tese de doutoramento Saberes
comidinha bem gostosa para você!...”. Nessas situações, as crianças se apropriam gra- Essenciais do Educador da Infância.
dativamente das características da linguagem oral, utilizando-as em suas vocalizações e Coorganizadora do livro Oficinas
de sonho e realidade na formação
tentativas de comunicação. Num certo sentido, podemos dizer que a criança aprende do educador da infância.
a verbalizar por meio da apropriação da fala do outro. Mas a comunicação acontece
2
Colaborou na elaboração deste
principalmente por meio de gestos, de sinais e da linguagem corporal, que dão signifi- texto Maria Lúcia Medeiros, 73
cado e apoiam a linguagem oral dos bebês e crianças pequenas. coordenadora do Projeto Brincar.

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Apesar da importância da linguagem oral, essencial ao pro-
cesso de iniciação da criança no mundo social e cultural, destaca-se na
primeira infância o papel das múltiplas linguagens expressivas: corporal,
Acervo pessoal de América dos

musical e plástica. Estas, junto com a linguagem verbal, formam um


Anjos Costa Marinho, 2009.

sistema simbólico integrado, adequado à maneira sensorial, estética e


global de a criança pequena conhecer o mundo. Nesse momento, as
experiências vividas dificilmente podem ser traduzidas por palavras,
mas são alcançadas por processos em que o corpo expressivo se cons-
titui instrumento principal.
O mundo para a criança ao nascer, e por boa parte da primeira
infância, é muito mais um mundo de sons, cores, ritmos, cheiros, formas,
gestos e movimentos que de palavras. Um mundo desconhecido, estra-
nho, que assusta pela quantidade de estímulos e pelo inusitado, mas que, ao mesmo
tempo, atrai, intriga e convida a criança a conquistá-lo. Um mundo a ser decifrado,
que pede para ser visto, tocado, ouvido, sentido e percebido numa comunicação total,
direta e profunda pelo ato de brincar.

Mundo da imaginação em ação, que possibilita à criança segurá-lo na


mão e transformá-lo em pensamento pelo ato de brincar. Mundo das
pessoas, dos afetos, da cultura, dos valores, dos costumes, das tradições,
das comidas, das músicas, das danças, das histórias, das canções, dos
rituais de celebração... Cultura que é nutrição, alimento para o corpo,
Acervo pessoal de Niled

a alma e o coração, que possibilita a alegria de ser (DIAS, 2003, p. 232).


Dias Toniolo, 2009.

Nessa perspectiva, falar, brincar, dançar, desenhar, pintar, mo-


delar, cantar, tocar um instrumento, representar, ler e escrever são ativi-
dades humanas simbólicas essenciais à criança e devem ser vivenciadas
ludicamente, num contexto de interações genuínas, para se constituírem
enquanto linguagens expressivas, ferramentas de significação, afirmação
e enraizamento da criança no mundo.

Brincar com histórias e com palavras


É pela linguagem (toques, olhares, expressões faciais, palavras e cantigas)
que o bebê é acolhido – “Dorme anjo, a manhã já vem, todos dormem e a noite
também...” (CAYMMI, 1959) –, corporal e afetivamente tocado. Olhares, arru-
lhos, balbucios e sorrisos emitidos pelos bebês a partir do segundo mês de vida
74 desencadeiam nova centelha de linguagens múltiplas – toques, gestos e palavras –

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“janela, janelinha – porta campainha – primmmmmmmm...”. E a mão do adul-
to toca olhos, boca e nariz num ato de brincadeira, afeto e proximidade com a
criança. Gestos e palavras combinam-se num aprendizado cultural de memórias e
significações – “palminha de São Tomé, pra quando papai vier”; “palma, palma, pal-
ma; pé, pé, pé; roda, roda, roda, caranguejo peixe é”. Assim, encarnando-se nos
corpos das crianças, as palavras tanto falam de experiências dos homens quanto
as criam. A música cantada, a rima do nome, o trava-língua, a poesia etc. vão es-
tabelecendo laços entre a criança e a palavra. A relação inicial das crianças com as
palavras permeia-se por graus de liberdade e plasticidade, aproximando-as dos jo-
gos de linguagem, da plurissignificação de sentidos e da sonoridade dos vocábulos.
Quem já não ouviu falar da “linguagem secreta” de crianças? Nas interações com
os adultos, conforme suas atitudes e concepções, as possibilidades de as crianças
brincarem com as palavras, integradas às múltiplas linguagens, vão se restringindo
ou se ampliando (BATTAGLIA; DIAS, 2007).
O discurso materno, quando a mãe está em condições de viver a maternida-
de plenamente, é frequentemente imaginoso, poético, transformando em um jogo a
dois o ritual da comida, do banho, da troca de roupa, com contínuas invenções. Alguns
desses jogos foram institucionalizados pela tradição: falar rimas e brincar com a criança
na hora de comer – “uma colher para a vovó, uma para o bebê”. A criança, até uma
certa idade, corresponde ao jogo e povoa de personagens sua refeição, atribuindo um
significado simbólico ao ato de comer. Comer torna-se um ato
estético, um brincar de comer, um recitar a refeição (RODARI,
1969). Também vestir-se ou despir-se tornam-se mais interes-
santes quando toma forma de brincar de vestir-se. Isso nos fala

Fábio Meirelles
da importância do brincar e da construção de vínculos entre
adulto e criança, no processo de apropriação da linguagem
e construção do pensamento.
Inventar histórias com objetos do cotidiano estimula
a capacidade inventiva e dá novos instrumentos para a criança
brincar sozinha. Enquanto brinca, a criança fala consigo mesma,
comentando a brincadeira, animando brinquedos, ou despren-
dendo-se deles para seguir outros indícios, num jogo imagi-
nário onde uma coisa puxa a outra. Esses indícios podem ser
uma simples palavra, um objeto, uma pessoa que aparece, um telefone ou campainha
que toca e desencadeiam o enredo de novas brincadeiras para a criança. Uma criança,
após lanchar, pega a casca de uma banana e começa a inventar uma história de um
75
polvo que nadava sossegado e encontra um tubarão (tesoura disponível no espaço

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próximo) de boca aberta pronta para comê-lo. Esse é um típico exemplo de uma brin-
cadeira criada pela criança a partir de uma situação do cotidiano, sempre repleto de
possibilidades para a imaginação infantil (MEDEIROS, 2008).
As histórias, lidas ou contadas, fazem parte desse processo. Quando lemos
ou ouvimos uma história, entramos para o mundo do “era uma vez”. As histórias se
transformam em rico alimento para a imaginação infantil, afloram no “faz de conta” e
ajudam a recriar o mundo real. É esse o mundo das brincadeiras.

Assim como procede com as coisas e as palavras, a criança também o faz


com a leitura: ela interage com os personagens e participa da estória, inserin-
do-se nas figuras no momento da contemplação... Ao ingressar nesse mundo
adornado de cores e tornar-se um personagem que compartilha ações e
sentimentos, cada criança é uma nova Alice que reinventa a estória e a narra
cada vez de modo diferente. A fantasia a faz imergir nas coisas, nas figuras ou
nas letras, e a imaginação livre e criativa produz o conhecimento de si e do
mundo (SCHLESENER, 2008, p. 16).
A imaginação infantil se alimenta também da leitura de outros gêneros textu-
ais (informativos, científicos, de arte, entre outros), que ampliam nossa sensibilidade e
nossos modos de ler o mundo, redimensionando a nossa condição humana e as nossas
possibilidades de viver e agir (BORBA, 2006).
À medida que as crianças crescem e ampliam o seu repertório cultural e de
experiências de vida, as brincadeiras ficam enriquecidas de gestos, palavras, cantigas e
contos tradicionais, possibilitando um diálogo entre gerações, fortalecendo a constru-
ção da identidade pessoal e cultural.

Maria Lúcia Medeiros

76
EM Samira Savoldi, 2008.

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Brincar, a música e o movimento
Antes mesmo do uso das palavras as crianças já se comunicam utilizando o
corpo como linguagem. Os movimentos corporais estão presentes na vida humana
desde antes do nascimento. Mães mais sensíveis conseguem perceber diferenças de
movimento do bebê no útero, relacionadas ao seu estado emocional ou a movimentos
físicos que realiza. Aos movimentos reflexos presentes desde o nascimento as crianças
vão acrescentando novos, intencionais e cada vez mais complexos: um sorriso, a mão
que busca pegar um objeto, o engatinhar, andar, correr, subir, pular, rodar, dançar...
A partir daquilo que recebem do mundo e do que
sentem vindo de dentro delas – emoções, sensações, ideias –,

Acervo pessoal de Maria Cristina Pires, 2007.


as crianças criam uma maneira de ser e estar no mundo que se
expressa através de seu corpo: o seu movimento próprio. Du-
rante toda a infância, estão sempre construindo novos gestos,
passos, danças, rimas, canções, brincando com o corpo e com
as palavras.
A música e o movimento são as primeiras linguagens a
que a criança tem acesso. Ainda no útero materno, a batida do
coração e o ritmo da respiração marcam a pulsação e o sentido
da vida imersa na água e na escuridão. A mãe empresta seu cor-
po e todo seu ser para que o bebê possa nascer. Empresta seu
colo, seu peito e sua voz para que a criança, rompendo o cordão
umbilical, possa crescer e transformá-lo em vínculo simbólico-cultural amoroso com a
vida, permitindo o encorajamento para a exploração e a ampliação do mundo... (DIAS;
NICOLAU, 2003).
A mãe3 que embala seu filho entoando canções de ninar vai introduzindo a
criança ao mundo, utilizando-se da música e do movimento expressivo, linguagens pre-
sentes nas mais diversas culturas, em diferentes épocas e geografias. A mãe conversa o
tempo todo com seu bebê e o insere no mundo social, mas o que fica de suas men-
sagens é principalmente a voz e a expressão do corpo materno. As qualidades sonoras
da voz da mãe – ritmo, timbre, melodia – dão prazer, conforto e segurança ao bebê
marcando a presença da mãe no corpo dele.
Um bebê primeiro canta, depois vai colocando palavras em sua entonação 3
O papel da mãe na sociedade
tal como um letrista se inspira na melodia de um parceiro. É assim a construção da lin- contemporânea se desdobra no papel
guagem falada: primeiro a melodia, depois as palavras e seus sentidos (TATIT, 1998). da educadora da creche, que também
preenche e enriquece a função de
Aos acalantos da mais tenra idade, da iniciativa materna, seguem-se as parlen- cuidar e educar as crianças enquanto
sujeitos de direitos, garantidos pela 77
das, nas quais os primeiros gestos da melodia infantil se insinuam a par com o elemento Constituição Brasileira.

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rítmico da palavra. E, aos poucos, vão chegando os brinquedos cantados, cuja ação
dinâmica, com suas variadas qualidades de movimento, vai ampliando e diversificando
o universo musical. Segundo Lydia Hortélio, essa é a música da cultura infantil, com
movimento, aliada à representação e a expressão do corpo inteiro. É uma música para
ser brincada próxima ao outro, com o outro, pela livre vontade de brincar, enriquecida
pelas canções que contêm as raízes da identidade de um povo. Através de sua prá-
tica, as crianças restabelecem o laço afetivo com a língua – “língua mãe”, aquela que
os poetas populares ainda conhecem, e com a língua mãe musical –, a canção popu-
lar, carregada do encanto e mistério da infância arquetípica da cultura brasileira, am-
pliando certamente, uma disposição fundamental para a beleza, o imaginário, o sonho
(HORTÉLIO, 2006).
As cantigas de roda e as danças infantis fortalecem elos
afetivos, sociais e culturais. De mãos dadas no círculo, ou dentro
dele, as crianças têm oportunidade de exercitar sua desenvoltu-
Maria Lúcia Medeiros

ra, compartilhar alegrias, projetar-se no grupo. No vai e vem da


roda, vão descobrindo a harmonia dos movimentos do corpo e
a musicalidade da própria voz. De verso em verso, as músicas e
danças mantêm vivas a história e a cultura de um povo, são ver-
dadeiros tesouros (DIAS, 1996).

As crianças pequenas que conhecem, saboreiam e aprendem


as possibilidades do corpo em movimento poderão sem dúvida
estabelecer uma forma pessoal e diferenciada de estar no mun-
do. As sensações, o prazer e o desprazer, os gostos e desgostos
EM Profa Lúcia Maria também estão no corpo: (re)conhecê-los, saber fazer escolhas
Vilar Barbosa, Lorena, e comunicar-se com os outros fazem parte da educação do corpo, pois o
2009. corpo é fonte de autoconhecimento (MARQUES, 2004, p. 37).
A linguagem musical, a expressão corporal e a dança fazem parte da cultura
infantil. Constituem um rico acervo de experiências sonoras rítmicas e simbólicas que
vem ao encontro das necessidades expressivas da criança em desenvolvimento.
No entanto, na sociedade contemporânea, é preciso ter critérios para esco-
lha de repertório cultural adequado às crianças. A mídia, voltada para o consumo, im-
pinge às crianças uma produção cultural que banaliza a dança e a música, com palavras
e gestos grotescos. A criança é exposta a uma erotização corporal não adequada, e a
um repertório musical e linguístico empobrecido, fato que as priva de uma iniciação
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cultural rica.

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Fotos: Maria Lúcia Medeiros
CEMEI Bruno Panhoca,
São Carlos, 2008.
Brincar, imitar, dramatizar
Desde muito cedo, a criança, brincando, conhece a realidade que a cerca,
imita as pessoas e até animais com os quais convive. Há uma primeira fase de imitar
sons ou gestos simples (o latido do cachorro, o sorriso da mãe, o bater palmas), indícios
ainda empíricos, presentes na realidade, que possibilitam representar uma pessoa ou
objeto. À medida que a criança vai crescendo, dos três para os quatro anos de idade,
passa a brincar de maneira cada vez mais complexa recriando não só gestos e sons,
mas também papéis sociais, numa atividade simbólica conhecida como brincadeira ou
jogo de faz de conta. Nesse momento a criança entra em um “não tempo” e “não es-
paço”, no mundo do “era uma vez”, onde tudo é possível. Age conforme regras sociais
que ela percebe ao seu redor, mas que também reinventa.
A brincadeira de faz de conta é uma rica oportunidade de a crian-
ça recriar a realidade, colocar-se no grupo, incorporar e reelaborar valores,
interagir com os colegas, aprender a lidar com os conflitos, com seus desejos
e suas frustrações.
Na brincadeira de faz de conta as crianças vão interagindo e, espon-
taneamente, criando papéis, dentro de um pequeno enredo ancorado nos
objetos presentes no espaço. É comum alguns pequenos combinados como
“eu era a mãe, você era a filha...” ou “eu dirijo o ônibus e você faz sinal para
entrar...”. No decorrer da brincadeira os papéis vão se invertendo, novas crian-
ças entram, outras saem da história e o faz de conta vai se desenrolando. Não
há um enredo preestabelecido. Nada é rígido nesse momento, o que vale é o CEI Pequeno Polegar,
interesse de quem participa e as negociações que se estabelecem para a conciliação de Vinhedo, 2012
todos os que estão envolvidos. Muitos elementos externos vão entrando e a brincadeira
continua num eterno vai e vem. Duas crianças brincando de mamãe e filhinha, ao ar livre,
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por exemplo, depararam-se com uma borboleta. Imediatamente esse pequeno animal

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é incorporado à brincadeira como se fosse uma visita recebida das fadas, e novamente desejo-
fantasia-realidade se entrelaçam a serviço da imaginação infantil (MEDEIROS, 2008).
A postura do professor nesse momento é um diferencial importante. Quando ele
observa, acolhe, “alimenta” e até participa da brincadeira, estabelece uma relação mais pró-
xima com a criança, aumenta o vínculo de confiança e enriquece esse momento ampliando
conhecimentos e habilidades. Uma professora de um grupo de crianças de três anos, numa
creche em São Carlos, observou as crianças que brincavam em um pequeno gramado co-
meçar a pegar galhos caídos no chão e iniciar um jogo de faz de conta transformando-os em
vara de pescar, espadas e outros instrumentos. Outras crianças se interessaram e começaram
a arrancar os galhos colocando a árvore em risco. A professora então propôs fazerem roli-
nhos de jornal que teriam a mesma função. E foi além, como o interesse maior era a pescaria,
colocou um pano no chão para ser o rio e sugeriu que as crianças escolhessem objetos para
“servir de peixes”. Imediatamente todo o grupo se envolveu completamente com prazer na
brincadeira, colocando diversos peixinhos (blocos plásticos) no “rio”, iniciando uma “grande
pescaria” (MEDEIROS, 2007).
Podemos observar que a brincadeira de faz de conta possui uma dinâmica própria
e uma finalidade em si mesma, sendo a espontaneidade e a criatividade seus elementos cha-
ves. Quando o professor se antecipa e tenta transformar esse brincar em uma representação
teatral, a expressão própria é tolhida da criança.
CEMEI Benedicta Sthal
Sodré, 2008.
Conforme as crianças vão crescendo (seis, sete, oito anos) e sua experiência se
aprofundando na brincadeira, o faz de conta e o jogo de papéis ficam mais com-
plexos. As crianças sentem necessidade de refazer os “combinados” ao longo da
brincadeira, vão se interessando em representar papéis e enredos mais bem defi-
nidos, aos poucos se aproximando da linguagem dramática propriamente dita. São
os jogos teatrais que surgem em torno, inicialmente, da representação de histórias
conhecidas e apropriadas pelo grupo, geralmente contos de fadas, até passarem
eles próprios a criar novos enredos, vestuários e cenários adequados e a pesqui-
sar com maior precisão gestos e expressões para a representação dramática. O
teatro possibilita a integração de diferentes linguagens: a música se faz presente na
Maria Helena Carmiatto Munhoz

sonoplastia; as artes plásticas no cenário, no figurino, na maquiagem; a literatura


na escolha dos textos etc., enriquecendo sobremaneira o repertório cultural e
humano das crianças.

Brincar, desenhar, pintar, modelar, construir


A linguagem plástica permite à criança a descoberta do mundo das linhas,
80 formas, cores, luzes, sombras, texturas e dimensões no espaço. Ela permite à crian-
ça apurar o tato, o olhar, e o pensar no exercício do brincar de desenhar, pintar,

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modelar e construir com diferentes materiais. A criança deixa sua marca, cria jogos, delimita
espaço, conta histórias numa ação investigadora das possibilidades da própria linguagem plás-
tica e de seu ser no mundo (FERREIRA, 2003).
O desenho não é cópia, é sempre criação, interpretação, pen-

Acervo pessoal de Maria Lúcia Medeiros


samento visual em ação. No início o que prevalece no desenho é o pra-
zer motor. Mas aos poucos este se torna aliado do prazer visual e do
prazer de dar sentido ao mundo. A relação física e sensorial que a criança
estabelece com o desenho possibilita a experiência de novas realidades,
ativando a imaginação. A conjunção mão/olho/cérebro torna-se presente
no ato de desenhar. No início é a mão que comanda a ação marcada
pelo prazer do movimento e da inscrição no papel. Depois é o olho que
passa a dirigir a ação, num diálogo mais articulado entre mente, motrici-
dade e percepção, anunciando a possibilidade de a criança ser sujeito da
ação (MOREIRA, 1987; DERDYK, 1989).
Desenho é pensamento projetado no espaço do papel, é manifestação
da necessidade vital de a criança agir sobre o mundo, intercambiar, comunicar.

Carmiatto Munhoz
Desenhar concretiza material e visivelmente a experiência de existir; obedece às

Maria Helena
necessidades do sistema nervoso, afinado a um desejo de significação e afirmação
do eu no mundo (DERDYK, 1989). “Quando a criança pinta, o mundo encolhe-
se até as dimensões de uma folha de papel, a folha transborda os seus limites e
torna-se o mundo” (STERN, 1986).
É desenho também a maneira que a criança organiza o seu espaço lúdico: CEMEI Benedicta
Sthal Sodré, 2008.
É desenho a maneira como organiza as pedras e folhas ao redor do castelo de areia,
ou como organiza as panelinhas, os pratos, as colheres na brincadeira de casinha.
Entendendo por desenho o traço no papel ou em qualquer superfície, mas tam-
bém a maneira como a criança concebe o seu espaço de jogo com os materiais de
que dispõe. (...) É a possibilidade de conhecer aquela criança através de uma outra
linguagem: o desenho do seu espaço lúdico. As bonecas sentadas no chão e os
carrinhos enfileirados falam sobre a criança que os arrumou. Contam sobre o seu
projeto... Para melhor conhecer a criança, é preciso aprender a vê-la. Observá-la
enquanto brinca: o brilho nos olhos, a mudança de expressão do rosto, a movimen-
tação do corpo. Estar atento à maneira como desenha seu espaço, aprender a ler a
maneira como escreve a sua história (MOREIRA, 1987, p. 16).
O tempo do desenho, da pintura ou da construção plástica corresponde a um
tempo próprio da criança, um tempo mental e emocional onde prevalece o ritmo individual
da execução. No jogo da linguagem plástica, o tempo e o espaço são transformados e se 81
submetem às atividades do sujeito-criança.

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Assim como o desenho, a pintura e outras manifestações plásticas possuem
qualidades expressivas próprias. A pintura possibilita a exploração de diferentes texturas
e densidades de tinta e tipos de instrumentos (pincéis, rolinhos, brochas) com diferen-
tes características, que correspondem a diferentes ideias, sensações, emoções, que a
criança deseja e necessita expressar.
A modelagem e a construção permitem sensações específicas,
proporcionadas pela experiência do tridimensional e do confronto com
temperatura, e flexibilidade diferenciada de materiais ou da necessidade
da busca de equilíbrio.
As construções em marcenaria ou com materiais reciclados de-
sencadeiam produções plásticas que favorecem o desenvolvimento do
jogo dramático e das narrativas subjetivas, possibilitando percursos criati-
vos expressivos extremamente significativos ao desenvolvimento pessoal
de cada criança (FERREIRA, 2003).
EMEI Paulo Ferracini,
Sertãozinho, 2009.
Considerações finais
Na infância existe uma estreita interdependência de todas as instâncias:
físicas, psíquicas, emocionais, culturais, que estão em jogo no processo de desenvol-
vimento da criança. A apropriação do mundo pelas crianças se dá de modo sensorial,
estético e global, num processo perceptivo entranhado na cultura e nas formas sen-
síveis da realidade, que se casam com uma necessidade de significação e afirmação
do EU no mundo. Sendo um ser em contínua transformação física e psíquica, a
criança apresenta uma maneira de ser curiosa e experimental na qual a descoberta
do mundo está associada à descoberta de si mesma. Nesse processo, as linguagens
EM Profa Lúcia Maria expressivas têm papel principal.
Vilar Barbosa, Lorena,
2009. “A criança, ser global, mescla suas manifestações expressivas:
canta ao desenhar, pinta o corpo ao representar, dança enquanto canta,
desenha enquanto ouve histórias, representa enquanto fala” (DERDYK,
1989). Quando as crianças podem usar múltiplos sistemas simbólicos, têm
maiores chances de compreender as relações complexas que fazem parte
do mundo em que vivem e de seu mundo interior, e desse modo se tor-
nam mais humanas.

O homem cria não apenas porque quer ou porque gosta, mas porque pre-
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cisa; ele só pode crescer enquanto ser humano coerentemente ordenando,

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dando formas, criando... A própria consciência nunca é algo acabado ou de-
finitivo. Ela vai se formando no exercício de si mesma, num desenvolvimento
dinâmico em que o ser humano, procurando sobreviver e agindo, transfor-
ma a natureza e se transforma também (OSTROWER, 1984).
Cabe a nós, adultos, proporcionarmos o máximo de oportunidades para as
crianças viverem plenamente a infância, brincando com as múltiplas linguagens, num
contexto social e cultural rico de possibilidades de ação, expressão e interlocução. Isso
demanda investimento contínuo na educação infantil e na formação do educador.

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